TCC E ARTIGO - Centro Universitário Municipal de São José

Transcrição

TCC E ARTIGO - Centro Universitário Municipal de São José
CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ – USJ
GLÁUCIA DE SOUZA CORRÊA
“DESENHEI MINHA MÃE DE ROSA, SÓ QUE ELA É PRETA, SÓ QUE
PRETO NÃO PODE”: Algumas discussões sobre a diversidade étnico-racial na
Educação Infantil.
São José
2009
GLÁUCIA DE SOUZA CORRÊA
“DESENHEI MINHA MÃE DE ROSA, SÓ QUE ELA É PRETA, SÓ QUE
PRETO NÃO PODE”: Algumas discussões sobre a diversidade étnico-racial na
Educação Infantil.
Relatório de Pesquisa elaborado como
requisito para aprovação na disciplina de
Trabalho de Conclusão de Curso II do
Centro Universitário Municipal de São José
– USJ.
Prof. MSc Regina Ingrid Bragagnolo.
São José
2009
2
GLÁUCIA DE SOUZA CORRÊA
“DESENHEI MINHA MÃE DE ROSA, SÓ QUE ELA É PRETA, SÓ QUE
PRETO NÃO PODE”: Algumas discussões sobre a diversidade étnico-racial na
Educação Infantil.
Trabalho de Conclusão de Curso elaborado como requisito
final para a aprovação no Curso de Pedagogia do Centro
Universitário Municipal de São José - USJ.
Avaliado no dia: 08 de Julho de 2009 por:
Prof. MSc. Regina Ingrid Bragagnolo.
Orientadora
Prof. MSc. Evandro Brito.
Membro Examinador
Prof. MSc. Raquel Barbosa.
Membro Examinador
3
Agradecimentos
É com muita alegria que dedico este trabalho aos meus pais, Maria e Francisco
que sempre me apoiaram, e com muito amor e carinho se esforçaram para que eu
pudesse ter uma educação de qualidade.
Agradeço também a um companheiro muito especial, meu esposo José Victor, que
não só, esteve presente durante esta caminhada, como também empenhou muito esforço
para que eu pudesse alcançar meus objetivos.
Agradeço aos(as) educadores(as) que contribuíram em muito para minha
formação, em especial a professora Regina, à qual sempre se dedicou muito em suas
orientações.
4
Anjos Negros
(Shirley Pimentel de Souza)
[…] Chega!
A negritude dá seu grito de desabafo!
As crianças negras querem anjos da guarda negros.
O povo negro quer magia negra.
O povo negro quer cultura negra!
Repudiamos sua prepotência,
Repudiamos sua divisão racial,
Repudiamos sua aquarela racista.
Queremos anjos negros!
Faremos um “bem negro”.
Somos povo negro!
5
RESUMO
A diversidade étnico-racial é um assunto que precisa ser constantemente problematizado
nas Instituições de Educação Infantil, pois, se as reflexões sobre as diferenças forem
iniciadas, logo que as crianças ingressarem neste espaço de interação, tornar-se-á mais
fácil desconstruir o mito da supremacia racial branca na sociedade. Neste sentido,
através deste estudo, busquei investigar: Quais as relações étnico-raciais estabelecidas
entre educadores e crianças no cotidiano de um grupo da Educação Infantil? Esta
pesquisa, teve como objetivo principal, analisar como as crianças e professoras da
Educação Infantil interagem com a diversidade étnico-racial. Com a finalidade de
alcançar este propósito, realizei uma pesquisa qualitativa, por meio de estudos
etnográficos, que me possibilitaram uma aproximação significativa com os sujeitos
pesquisados. Estive presente no campo, dez dias, por cerca de três horas e trinta minutos
diários. Durante estas observações, fiz uso do diário de campo, para coletar os dados, e
foi possível constatar que, em muitos momentos, as crianças afro-descendentes são
invisibilizadas no espaço educacional e têm uma cumplicidade maior quando se
relacionam com seus pares, do que quando interagem com crianças de outras etnias.
Palavras-chave: Diversidade étnico-racial. Educação Infantil. Crianças.
ABSTRACT
The racial ethnic diversity is a subject that constantly needs to be discussed in the
upbringing education institutions, since if the reflections on the differences are initiated
as soon as children approach to this sort of interaction, this will become easier to
deconstruct the myth of the white race supremacy in society. Accordingly, through this
study, I sought: What are the ethnic racial relations between teachers and children in
their daily school life in an upbringing education group? Since this research had the
main goal of analyzing how children and teachers interact with themselves, having in
mind the racial ethnic diversity. In order to achieve this purpose, the qualitative research
was conducted through an ethnographic study. So, I had to be closer to the subject
studied in the field for ten days, that is to say, about, there hours and thirty minutes
daily, so as to collect data. As a result, it was possibly noticed that most of the time, the
Afro descendants children are blocked in the school environment when they approach to
their peers more than they have to be in touch with children from other races.
Keywords: racial ethnic diversity; upbringing; children.
6
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO......................................................................................................8
2. PROBLEMÁTICA.................................................................................................10
3. PROBLEMA DE PESQUISA................................................................................14
4. OBJETIVOS...........................................................................................................14
4.1 Objetivo Geral......................................................................................................14
4.2 Objetivos Específicos...........................................................................................14
5. JUSTIFICATIVA...................................................................................................15
6. NEGROS E EDUCAÇÃO......................................................................................18
7. CRIANÇA E EDUCAÇÃO INFANTIL................................................................ 25
8. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS........................................................... 32
8.1 Os Participantes.................................................................................................... 33
8.2 Instrumento de Coleta de Dados...........................................................................35
8.3 Situação Ambiente................................................................................................36
8.4 Organização, Tratamento e Análise de Dados..................................................... 38
9. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS............................................................40
9.1 Educadores(as) e as situações que envolvem a diversidade étnico-racial............40
9.2 Crianças afro-descendentes e a relação com seus pares.......................................48
9.3 As crianças afro-descendentes e suas relações com crianças de outras etnias..... 58
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................65
11. REFERÊNCIAS...................................................................................................69
12. APÊNDICES........................................................................................................74
13. ANEXOS..............................................................................................................84
7
1. INTRODUÇÃO
Racismo, preconceito e discriminação, questões que afligem constantemente a
vida dos cidadãos afro-descendentes no Brasil. O “pré-conceito” racial está muito
presente na sociedade brasileira, trata-se de um estigma que foi construído
historicamente e que está tão arraigado na sociedade que é uma tarefa árdua
desconstruí-lo.
Mas, por que existe preconceito? O que faz com que uma pessoa se sinta superior
ou inferior à outra pela diferença existente na cor da pele? Como desmistificar esse
“mito”da supremacia racial branca?
Muitos autores (MUNANGA 1988 e 2005, GOMES 2003, ROSEMNBERG,
1998), têm focado suas pesquisas na diversidade étnico-racial atrelada à educação.
Porém, somente no ano de 2003 foi sancionada a Lei 10639/03, que reconhece a cultura
negra como cultura brasileira, e torna “obrigatória” a inclusão da história da África e
dos Afro-brasileiros no currículo do Ensino Fundamental e Médio.
No entanto, acredito que o preconceito e a discriminação são aprendidos desde
que os seres humanos estabelecem suas primeiras interações sociais. Sendo a Instituição
de Educação Infantil um espaço destinado à interação e humanização das crianças
pequenas, em muitos momentos, pode ser um espaço onde as relações de discriminação
e preconceito podem aparecer. Mas como desconstruir esses estigmas com as crianças?
Perante a questões relacionadas à diversidade racial em minha prática como
educadora, lancei-me a pesquisar sobre a diversidade étnico-racial na Educação Infantil.
Desse modo, este estudo aborda o percurso de minha pesquisa, bem como, propõe um
debate das questões relacionadas à diversidade étnico-racial na infância com base nos
registros feitos no diário de campo.
Nesse sentido, por meio da problemática, inicio esta pesquisa, contextualizando as
questões e reflexões que me fizeram optar pela pesquisa relacionada à diversidade
étnico-racial. Posteriormente, na justificativa, busco ressaltar a importância de se
pesquisar a diversidade étnica na infância, partindo do pressuposto que os profissionais
que atuam nesta modalidade devem incorporar as questões raciais ao cuidar e educar de
forma a abranger outra dimensão: a dimensão do humanizar.
Em seguida, apresento o problema de pesquisa, bem como, os objetivos desta
investigação. Logo, inicio o referencial teórico, que norteou esta pesquisa a partir do
capítulo intitulado “Negros e educação”, onde faço um apanhado de algumas questões
8
históricas relacionadas aos afro-descendentes e à educação. No capítulo seguinte,
intitulado “Criança e Educação Infantil”, abordo discussões acerca da infância e das
Instituições de Educação Infantil atreladas ao tema central desta pesquisa. Após esse
respaldo teórico sobre o tema, descrevo, nos procedimentos metodológicos, a trajetória
da pesquisa, apresentando os participantes, o instrumento para a coleta de dados e as
sensações e sentimentos construídos na ida ao campo de pesquisa.
Na análise dos dados obtidos em campo, proponho uma discussão sobre os
registros feitos no diário de campo. Para isso, foi necessário subdividir este capítulo em
três sub-capítulos:
“Educadores(as) e as situações que envolvem a diversidade étnico-
racial”, onde são problematizadas as posturas dos(as) educadores(as) com relação à
diversidade étnico-racial;
“Crianças afro-descendentes e a relação com seus pares”, onde abordo as
relações estabelecidas entre as crianças afro-descendentes durante as brincadeiras;
“As crianças afro-descendentes e suas relações com crianças de outras
etnias”, onde realizo um debate sobre as interações existentes entre as crianças afrodescendentes e as crianças de outras etnias.
Ao final, são feitas conclusões baseadas nos conceitos encontrados nos
referenciais teóricos atrelados às percepções sobre as questões raciais observadas no
campo de pesquisa.
9
2. PROBLEMÁTICA
As relações estabelecidas no cotidiano educacional são muito significativas na
vida das crianças e muitas delas necessitam serem repensadas. Vivenciando o dia-a-dia
de uma Instituição, como profissional da Educação Infantil, comecei a refletir sobre as
relações étnico-raciais estabelecidas neste contexto. Diante de questões que
expressavam preconceito1 racial em um grupo de Educação Infantil onde as crianças
têm cerca de cinco ou seis anos, a professora sentiu a necessidade de desmistificar as
relações de preconceitos existentes no ambiente educacional e em muitos segmentos da
sociedade. Segundo a professora, todo início de ano ela apresenta às crianças vários
temas para ver qual é o mais adequado para desenvolver o projeto, e em uma destas
situações, resolveu passar um filme chamado “KIRIKOU”2.
Trata-se da história de uma tribo africana onde todos os seus personagens são
negros. Kirikou nasce nesta tribo e começa a sofrer muitos preconceitos por ser muito
pequeno, porém, é muito inteligente e forte, ao final, as pessoas percebem que devem
respeitá-lo. As crianças se envolveram com a história, e as problematizações acerca da
diversidade racial começaram a partir deste momento. No grupo, havia alguns
problemas quanto à aceitação das crianças negras, de acordo com o depoimento de uma
mãe negra, seu filho chorava muito em casa porque seus irmãos são brancos e ele
desejava ser como os irmãos. Houve outro caso em que uma mãe branca disse a seu
filho que não deveria conversar com uma das colegas por que ela era negra e a criança
contou a professora.
Situações essas que a motivaram a desenvolver planejamentos acerca da
diversidade étnico-racial, e a diferença foi o principal objetivo do seu projeto.
Refletindo sobre o assunto, cabe a indagação: Como os educadores infantis vêm
trabalhando a diversidade com as crianças?
A diversidade étnico-racial é algo muito presente nas salas de aula ou nas
Instituições de Educação Infantil por se tratarem de características que nos constituem
enquanto pessoas. Todavia, é um tema pouco trabalhado pelos educadores.
Compreendendo isto, a Secretaria Municipal de Educação de São José ofereceu a alguns
1
Para Souza (2005, p.2) [...] o preconceito é o primeiro passo para uma atitude discriminatória [...] o
individuo preconceituoso se prende a uma determinada opinião numa posição dogmática que o impede
de ter acesso a um conhecimento mais fundamentado [...]
2
Kirikou é um filme, tipo desenho animado, dirigido por Michel Ocelot, produzido no ano 2000. A
história se passa em uma tribo africana, o personagem principal é muito estigmatizado e mostra a todos
que não devemos ter preconceitos.
10
educadores da Rede, a possibilidade de frequentarem um curso intitulado: “Programa de
Diversidade étnico-racial”, o qual tive a oportunidade de participar de alguns encontros
onde foi enfatizada a importância de o (a) professor(a) mudar sua postura perante este
assunto, sendo que, já faz seis anos, desde a homologação da Lei 10639/03, e quase
nada foi efetivado em relação ao tema.
A Lei 10639/03 busca reconhecer a cultura negra, como cultura brasileira e
ressalta a obrigatoriedade de se trabalhar a história da África, do povo africano e a
contribuição dos negros para a formação da sociedade brasileira. Esta Lei reconhece
uma igualdade nas contribuições culturais de negros e brancos para a formação da
cultura brasileira, e, a partir daí, sugere que, sejam repensados o passado e a história do
Brasil que vem sendo contada nas Instituições Educativas.
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
políticas pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileira. (BRASIL, 2003).
Essas duas experiências trouxeram-me alguns questionamentos sobre o tema
diversidade étnico racial relacionado à Educação Infantil: Como trabalhar a diversidade
racial com as crianças? Por que é tão difícil encontrar histórias infantis que tratem desse
assunto? Por que as princesas e príncipes dos contos de fada são sempre brancos? Como
a criança negra constrói sua imagem e sua auto-estima desde a Educação Infantil se em
tudo o que a cerca há um padrão de beleza branco?
Por meio de pesquisa bibliográfica foi possível perceber que já existem muitos
estudos vinculados a este tema, um deles, publicado no ano de 2006, que se trata da
dissertação de mestrado de Gisely Pereira Botega que investigou a influência das
relações raciais na construção do autoconceito das crianças negras. Por meio desse
trabalho, a autora mostra que na população pesquisada há dificuldades de
relacionamento entre as crianças negras e brancas, sendo que, as crianças negras,
procuram estar sempre entre negros. Quando há alguma intervenção do professor sobre
as questões raciais, ele busca sempre proferir um discurso de que todos são iguais e não
de que as diferenças devem ser respeitadas.
11
Há, na Educação, uma importância muito grande em levar em conta a
singularidade de cada criança, no entanto, se as crianças forem consideradas todas como
iguais, novamente será reconstruída a idéia de um padrão de criança desejado. Nilma
Lino Gomes (2003), em uma de suas pesquisas, diz que a escola acaba criando um
padrão de beleza (estético) e uniformiza as crianças, sendo que, quando a menina negra
passa a frequentar a escola, ela precisa passar por um ritual para prender seus cabelos
todos os dias, pois estes são motivos de chacota. Será que por esses mesmos motivos, na
maioria das vezes, os meninos negros possuem os cabelos raspados? Dessa forma, qual
a percepção/sentimento que essas crianças têm do corpo negro e do cabelo crespo?
Ângela Maria dos Santos (2003) em seu livro “Vozes e Silêncios do Cotidiano
Escolar”, resultado de sua dissertação de mestrado, centra sua pesquisa nas interações
estabelecidas entre os alunos e a constituição das relações discriminatórias. A autora
salienta que quando a criança sofre preconceito, sente-se intimidada e envergonhada
com baixa auto-estima, fatores que, muitas vezes, tornam-se um problema de
aprendizagem. Muitas vezes, ser negro, remete-se a feiura e os colegas põem apelidos
uns nos outros, utilizando esteriótipos negativos, comparando-os com animais.
[...] as cenas que aparentam uma relação harmoniosa entre os alunos
mostram que existe um limite para a interação entre alunos negros e não
negros. A qualquer momento, seja em situações de tensão ou não a relação
de cordialidade se rompe. Então a cor ou outros atributos físicos dos colegas
são utilizados como recurso para ofensas raciais que, na realidade, não se
dirigem a um indivíduo, marca na individualidade o sentimento racista em
relação a um grupo. (SANTOS, 2003 p.29).
Alguns dos(as) professores(as) que participaram desta pesquisa não percebem
discriminação entre os alunos, como se houvesse uma convivência harmoniosa com
relação às questões étnico-raciais, eles afirmaram intervir, quando existe situações de
preconceito, no entanto, a pesquisadora, durante suas observações, não percebe isto.
Então, Santos (2003), ressalta a necessidade de uma reeducação das relações étnicoraciais.
A diversidade étnico-racial é um tema tão polêmico e temido pelos educadores
que me instigou a curiosidade em pesquisá-lo. Observando realidades muito
diferenciadas em crianças de uma turma de Educação Infantil, que um menino de quatro
anos, em uma atividade, deveria descrever suas características físicas, disse à
professora:
─ Ah, eu sô negão, e tenho o cabelo assim enlolado e o olho malon!
12
O garoto se descreveu com convicção, falando sobre sua identidade que o marca
como diferente. Já, a mãe de uma menina do mesmo grupo, também com quatro anos,
traz relatos de que, em casa, ela questiona por que tem essa cor, por que as amigas são
brancas e ela não, sendo que, em alguns momentos, já chorou por desejar ser como as
amigas. Então começo a me questionar: Quais as relações étnicas raciais estabelecidas
entre educadores e crianças no cotidiano de um grupo da Educação Infantil?
13
3. PROBLEMA DE PESQUISA
Quais as relações étnicas raciais estabelecidas entre educadores e crianças no
cotidiano de um grupo da Educação Infantil?
4. OBJETIVOS
4.1 Objetivo Geral:
Analisar como as crianças e professoras da Educação Infantil interagem com a
diversidade étnico-racial.
4.2 Objetivos Específicos:
-Identificar como os educadores mediam as situações cotidianas que envolvem a
diversidade étnico-racial.
- Verificar como o grupo de crianças afro-descendentes da Educação Infantil estabelece
relações com seus pares.
- Caracterizar como as crianças afro-descendentes estabelecem relações com crianças de
outras etnias.
14
5. JUSTIFICATIVA
Há tempos, na história do Brasil, que um de seus capítulos vem sendo omitido, a
história da cultura afro-brasileira e dos afro-descentes, porém, com a homologação da
LEI 10639/03, esse assunto eclodiu nas discussões entre educadores. Contudo, percebo
em minhas experiências diárias, que se trata mais da preocupação em atender a um
currículo, do que realmente a Lei se propõe a abordar. É possível imaginar aqui, quantas
discussões foram travadas, quantas pessoas sofreram, quantos movimentos foram feitos
até que esta Lei chegasse a ser homologada. E isso resolveu o problema? Não, pois a
diversidade étnico-racial é um tema muito discutido no âmbito educacional, mas, muitas
vezes, perpassam-se apenas discussões, como se fosse algo que está na “moda
educacional”, no entanto, as atitudes são poucas. Muitos educadores parecem temer o
assunto da diversidade, omitindo seu papel, quando se deparam com situações
relacionadas ao tema no ambiente educacional. Munanga (2005), afirma que os
educadores:
Na maioria dos casos, praticam a política de avestruz ou sentem pena dos
“coitadinhos”, em vez de uma atitude responsável que consistiria, por um
lado, em mostrar que a diversidade não constitui um fator de superioridade e
inferioridade entre os grupos humanos, mas sim, ao contrário, um fator de
complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral; e por
outro lado, em ajudar o aluno discriminado para que ele possa assumir com
orgulho e dignidade os atributos de sua diferença, sobretudo quando esta foi
negativamente introjetada em detrimento de sua própria natureza humana.
(MUNANGA, 2005, p.15)
Nesse sentido, qual o papel das Instituições de Educação Infantil na vida das
crianças? No meu entendimento, enquanto professora auxiliar de uma Instituição de
Educação Infantil, a creche, tem uma função social que tem como foco o
desenvolvimento e o conhecimento das crianças através do cuidar e do educar. Mas, o
que compreende este cuidar e educar? Segundo Cerisara (1999 p.16 -17)
[...] as instituições de educação infantil tem uma especificidade que as torna
diferentes da família e da escola e que devem, devido a especificidade da
faixa etária de suas crianças, desenvolver atividades ligadas ao cuidado e à
educação dessas crianças. [...]. Conseguir concretizar esta concepção em
práticas educativas ainda constitui um desafio para os educadores da área.
Este desafio está acima de tudo estreitamente ligado às relações creche –
famílias, que precisam ser enfrentadas urgentemente no sentido de explicitar
qual é o papel que estas duas instituições devem ter no atual contexto
histórico, a fim de que as professoras de educação infantil e as famílias –
pais e mães das crianças - possam assumir suas responsabilidades com maior
15
clareza de seus papéis que, mesmo sendo complementares um em relação ao
outro, são diferentes e devem continuar sendo.
Acredito que atrelado a este cuidar e educar está o humanizar, que faz com que
nos tornemos cidadãos, capazes de respeitar o outro, sem nenhuma forma de
discriminação3. Cuidar e educar na perspectiva da humanização, problematizando as
questões que tenham uma relevância social para a vida. Eloísa Candal Rocha, referindose sobre as diretrizes pedagógicas da Educação Infantil nos aponta a importância de
que:
O desenvolvimento das experiências educativas [...] depende de uma
organização pedagógica cuja dinâmica, ou se preferirem, metodologia, se
paute na intensificação das ações das crianças relativas aos contextos sociais
e naturais, no sentido de ampliá-los e diversificá-los, sobretudo através das
interações sociais, da brincadeira e das mais variadas formas de linguagem e
contextos comunicativos. Consideramos essas as formas privilegiadas pelas
quais as crianças expressam, conhecem, exploram e elaboram significados
sobre o mundo e sobre sua própria identidade social. [...]Enquanto
construção social, a infância deve ser reconhecida em sua heterogeneidade,
considerando fatores como classe social, etnia, gênero, religião como
determinantes da constituição das diferentes infâncias e de suas culturas.
(ROCHA, 2008, p.2-3)
Sendo assim, por que há uma resistência tão grande dos educadores com relação à
diversidade étnico-racial? Será a falta de conhecimento ou suporte teórico? Uma
dificuldade em dar visibilidade a essas questões que historicamente foram esquecidas?
Será o padrão eurocêntrico4 que prevalece ainda?
Existem poucas pesquisas que dão visibilidade a diversidade étnico-racial na
Educação Infantil. Por meio de investigação feita no site da ANPED5, considerado
referência para pesquisas educacionais, realizei um mapeamento nos grupos de trabalho
07 (Educação de Crianças de 0 a 6 anos) e 21 (Afro-brasileiros e Educação) os quais
mostraram que, desde a vigésima segunda reunião anual, foram publicados apenas
quatro artigos que citam o tema, mas não o aprofundaram.
Ao analisar o livro, “O que você pode ler sobre o negro” (LIMA, ROMÃO e
SILVEIRA, 1998), do núcleo de estudos negros, que trata-se de um guia de referências
bibliográficas sobre a questão dos negros, pude perceber que dentre todas as referências
3
Souza (2005), considera que a discriminação pode ser originada do preconceito, sendo que se trata de
um tratamento diferencia,l conferido a certos membros de certos grupos.
4
Ao fazer uso da expressão eurocentrico refiro-me a teoria que coloca a Europa e sua cultura como o
“centro do mundo”, como modelo, padrão para os demais povos e culturas.
5
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. www.anped.org.br Acesso em:
03/10/2008.
16
ali contidas, apenas uma delas aborda especificamente a Educação Infantil,o texto de
Ronilda Ribeiro: Ação educacional na construção do novo imaginário infantil sobre
África, mais uma vez, evidenciando a falta de pesquisas sobre o assunto.
Nesse sentido, são necessárias pesquisas que tratem deste assunto para que os
educadores possam visualizar, com uma clareza maior, como estão acontecendo estas
relações raciais no interior da creche. É de extrema importância que desde a Educação
Infantil as crianças negras não fiquem em um campo de invisibilidade, procurando se
reconhecer em um padrão embranquecido de beleza. É preciso mostrar às crianças que
não há uma cultura negra e uma cultura branca, há sim, a cultura brasileira que é
composta por uma diversidade muito grande, que vai além da negra e da branca, e isto
faz com que surjam diversos tipos de música, de dança, de culinária, diversos modos de
vestir e diversos tipos de beleza e nenhum deles deve se sobrepor ao outro.
17
6. NEGROS E EDUCAÇÃO
O foco principal deste capítulo é investigar a maneira pela qual a história e cultura
afro-descendentes vem sendo abordadas no contexto educacional brasileiro e como isto
contribui para a perpetuação do preconceito e da discriminação. Nesse sentido, buscarei
abordar a Lei 10.639/03 e possíveis avanços após a sua homologação.
A discriminação, preconceito, racismo são questões que afligem a sociedade
brasileira, porém, atingem principalmente a população negra, isso ocorre por tratar-se de
um grupo étnico que vem sofrendo um processo de desqualificação desde o século VX.
Sendo que falsos ideais de superioridade da raça branca foram disseminados naquela
época e ainda estão presentes na sociedade atual. (Santos, 2002). Portanto, cabe-me
perguntar: Qual o imaginário social presente no cotidiano da Educação Infantil,
referente a essas questões de preconceito e discriminação racial? Serão a discriminação,
o preconceito e o racismo atos conscientes de quem o exerce? Ou serão atitudes que se
arraigaram ao longo de séculos naqueles que não refletem sobre o que é realmente ser
humano? Quais as justificativas dos cidadãos da sociedade atual para ainda praticarem o
preconceito dito “racial”?
O preconceito racial faz parte da história de um Brasil que tentou durante anos
ficar ofuscado, por ter se abordado a discussão da democracia racial, contudo, não
passaram apenas de aparências. Para Guimarães (2006, p. 269), a democracia racial
confere o período em que:
O Brasil teria sido percebido historicamente como um país onde os brancos
tinham uma fraca, ou quase nenhuma, consciência de raça onde a
miscigenação era, desde o período colonial, disseminada e moralmente
consentida; onde os mestiços, desde que bem-educados, seriam
regularmente incorporados às elites; enfim, onde o preconceito racial nunca
fora forte o suficiente para criar uma “linha de cor”.
Mas, como pode um país com tantas disparidades sociais entre brancos e negros
afirmar que vive em democracia racial? Está muito evidente e várias pesquisas6 já
confirmaram as desigualdades socioeconômicas que existem entre brancos e afrodescendentes em nosso país. Nesse sentido, é pertinente fazer um resgate histórico do
nascimento dos ideais que foram fortes influenciadores no surgimento do preconceito.
6
Refiro-me principalmente as pesquisas de Delma Silva (1999) e Petrônio Domingues (2005) que serão
citadas ainda neste capítulo.
18
Conforme Santos (2002), durante o século XV houve muitas “descobertas” e a
partir delas, alguns pensadores começaram a repensar sobre as verdadeiras origens da
humanidade. Uma das principais discussões que acontecia sob a ótica da teologia, era
em torno dos povos recém-descobertos, dentre eles, os negros africanos. Existiam
aqueles que defendiam a idéia de que eram seres humanos comuns, já, outros,
afirmavam que eram “bestas”. Em quaisquer das hipóteses para conquistarem sua
dignidade, estes povos deveriam se converter ao Cristianismo. O que me conduz ao
pensamento, de que, já neste momento, desejou-se sobrepor o Cristianismo às crenças
dos povos africanos.
Durante o século XVII, os filósofos iluministas romperam com ideais teológicos e
começaram a investigar sob a ótica da razão os povos não-europeus. Sendo assim,
subdividiam-se em monogenistas: Os que acreditavam que os fatores causadores das
diferenças eram a variação nos alimentos, clima e hábitos. E polígenistas, que atribuíam
as diferenças às origens. Mas ambos consideravam a raça branca como superior às
demais (SANTOS, 2002).
Mais tarde, os darwinistas fundamentados nos princípios de evolução da espécie e
de seleção natural, acreditavam que haveria uma raça pura que eliminaria as raças mais
fracas. Nesse sentido, defendiam que o preconceito era favorável à evolução, pois este
mantinha as populações separadas. Dessa forma, torna-se evidente pensar que estas
idéias favoreceram em muito a escravidão, bem como, o surgimento e perpetuação do
preconceito. (SANTOS, 2002).
O Brasil foi um dos últimos países a acabar com a escravidão, e isso ocorreu,
porque não foi mais possível suportar um sistema escravocrata, visto que já haviam
algumas revoltas em muitas fazendas e havia também uma preocupação muito grande
de que ocorresse um “enegrecimento” no país, sendo assim, libertaram-se os escravos
como se fosse um presente à população negra, e buscaram-se imigrantes com a
finalidade de suprir a mão-de-obra e de miscigenar a população. Com o fim da
escravidão, os negros ficaram à margem da sociedade sem oportunidade de trabalho,
sendo vistos como vadios, preguiçosos, e por aí seguem os rótulos que foram
designados à população negra até a sociedade atual. (Santos, 2002).
Porém, há muito tempo que esta história dos negros vem sendo omitida nas
escolas. A história do Brasil contada durante toda a Educação Básica aborda a chegada
dos portugueses, o Brasil Império, Independência do Brasil, Brasil República, tudo isso
mostrando as benevolências que os portugueses trouxeram para cá. Mas, e os negros?
19
Onde ficam nessa história? Os negros eram “apenas” os escravos, não cabem nessa
história de elites, que o Brasil aprendeu nas escolas, onde, durante muito tempo até os
dias atuais, estes foram retratados como escravos. Munanga (2005, p.16) afirma que,
“Todos, ou pelo menos os educadores conscientes, sabem que a história da população
negra quando é contada no livro didático é apresentada apenas do ponto de vista do
“Outro” e seguindo uma ótica humilhante e pouco humana”.
Age-se muitas vezes como se os negros não possuíssem cultura, história, como se
fossem apenas os escravos que aqui foram explorados, fazendo assim, com que a
sociedade tenha um sentimento de “piedade” dos mesmos. Essa questão presente na
nossa história dita, revela a invisibilidade da cultura e os cidadãos negros atualmente.
Hoje, há a necessidade de as escolas separarem, na história, o enfoque do
escravismo remetendo-se à cultura do negro.
Nos registros da história do Brasil, os afro-descendentes ainda ocupam a
periferia, o enfoque é centrado no navio negreiro, omitindo a nossa
ancestralidade, pois se a mesma fosse enfocada com justiça, nossas crianças
e jovens haveriam de dissociar a nossa história da história dos vencidos,
haveriam de perceber que a prática do escravismo se deu no Brasil e em
outros países como a Grécia e a Suécia, onde a escravidão foi branca. O
escravismo é um fato na história econômica da humanidade. E essa
informação ajudaria a desvelar os mitos acerca desse sistema produtivo
como a compreensão de senso comum de que só os negros foram
escravizados. (SILVA, 1999, p.101).
A ausência das discussões sobre a cultura e história dos negros na escola faz com
que a população negra não se sinta legitimada neste espaço, não o reconheça como
sendo seu, e faz com que cresça o preconceito das outras crianças diante das crianças
negras. Mas como evitar que aconteça o preconceito e a discriminação na escola? Como
surgiu o preconceito contra os negros? Poucos educadores trabalham com esta ótica de
desconstruir o que está posto pela história e pela sociedade, dessa forma, Machado
(2002), ao se referir sobre o preconceito aponta que:
Esse se constituiu na formação do estado brasileiro, e podemos afirmar que a
escravidão que atingiu tanto indígenas quanto africanos e perdurou entre
estes últimos em nosso país por cerca de 300 anos, é uma das principais
responsáveis por isso. Com o processo de conquista do território americano
e africano, aliado à escravidão, essas populações passaram a ser
consideradas como seres sem alma, inferiores, sendo preciso inseri-los no
processo civilizatório “superior” europeu, partir da adesão de padrões
culturais e de comportamento. Em fins do século XIX, no contexto do
processo de abolição, a maioria absoluta da população era composta de
negros. O discurso veiculado no período defendia que eles eram os
responsáveis pelos males da nação, sendo, portanto, necessário miscigenar a
20
população que com o passar dos tempos iria se tornar “branca”: era preciso
tornar o povo brasileiro homogêneo. Nesse contexto, reafirmaram-se os
preconceitos e estereótipos no sentido de inferiorizar as populações de
origem africana no que diz respeito ao padrão estético, moral e cultural. Os
aparelhos de reprodução ideológica e as instituições oficiais, incluindo a
escola, atribuem ao negro adjetivos e estereótipos como: feio, mau, sem
razão, instintivo e sem moral. O resultado disto é que alguns negros acabam
reproduzindo uma rejeição de si próprios, passando a aderir e reproduzir os
padrões culturais e de comportamento do dominador, nesse caso, de brancos
descendentes de europeus. (MACHADO, 2002, p.23).
Nesse sentido, é necessário que as Instituições Educacionais, e os educadores
tenham uma concepção de história e cultura brasileiras que enfoque a diversidade
existente no Brasil. Não é possível apenas separar a cultura e a história dos “brancos” da
cultura e a história dos negros. É fundamental evidenciar a heterogeneidade da qual o
Brasil é composto: índios, negros, brancos, orientais, bugres e outros mais. Nilma Lino
Gomes (2003), ressalta que:
[...] se a ênfase na discussão da cultura no campo educacional se restringir
ao simples elogio às diferenças ou ficar reduzida aos estudos do campo do
currículo e da cultura escolar, corremos o risco de não explorar toda a
riqueza que tal inflexão pode nos trazer. A cultura, seja na educação ou nas
ciências sociais, é mais do que um conceito acadêmico. Ela diz respeito às
vivências concretas dos sujeitos, à variabilidade de formas de conceber o
mundo, às particularidades e semelhanças construídas pelos seres humanos
ao longo do processo histórico e social. (GOMES, 2003, p. 75).
Conscientizar, através do discurso, torna-se algo inviável, hoje se discute que é
preciso trabalhar a identidade de cada um, partindo da sala de aula e, assim, evidenciar a
cultura e a descendência dos educandos, aliando-a à história brasileira. As Instituições
de Educação devem ter como foco primordial, compreender os alunos como seres
singulares que pertencem a culturas coletivas. Tendo em vista que a individualidade faz
parte de uma coletividade, de um grupo cultural, racial, étnico, econômico e regional.
Sendo assim, é fundamental estimular a criança ao autoconhecimento, motivando-a a
conhecer e reconhecer sua identidade. (ROMÃO, 2001).
Cabe ressaltar a importância de que o educando consiga identificar-se, reconhecerse no espaço escolar. Muitas vezes são trabalhadas inúmeras figuras ilustres da história,
mas alguma delas é negra? É necessário significar estas figuras e apresentá-las às
crianças.
Nos livros didáticos como o negro é representado? Em muitas escolas brasileiras,
o livro didático e de literatura são os principais recursos do educador, porém, muitas
vezes,
estes
possuem
conteúdos
e
imagens
errôneas,
que
consciente
ou
21
inconscientemente são internalizados pelos educandos. Até pouco tempo atrás não
haviam imagens de negros nos livros didáticos, pois grande parte destes livros traziam
um ideal de beleza eurocêntrico. Quando estas imagens apareciam, eram utilizadas,
remetendo-se aos escravos, pobres, excluídos socialmente. Sendo assim, quando a
figura do negro estava presente, este acabava sendo caracterizado por um estereótipo
que o “diminuía”.
Paulo Silva (2006), ao considerar um trabalho feito por PINTO (1981) onde o
autor analisou livros de leitura do período compreendido entre 1941 a 1975 afirma que:
Os personagens brancos, nos textos e nas ilustrações, eram apresentados
como representantes da espécie. Muito mais freqüentes que negros (e
indígenas), constavam em quase a totalidade de posições de destaque. Os
personagens brancos muitas vezes estavam inseridos em contexto familiar,
ao contrário dos personagens negros. Enquanto os personagens brancos
foram retratados em inúmeros tipos de atividades ocupacionais, dentre as
quais as de maior prestígio e poder, os negros foram apresentados em
número muito limitado, sempre nas funções mais desvalorizadas
socialmente. Os personagens brancos apresentaram maiores possibilidades
de atuação e autonomia, em comparação com os negros que,
prevalentemente, foram personagens sem possibilidade de atuação na
narrativa, em posição coadjuvante ou como objeto da ação do outro.
(SILVA, 2006 p.4)
Hoje em dia, após muitas discussões, já é possível visualizar a presença do negro
em alguns livros didáticos. Alguns autores, como Ana Célia Silva (2002), apontam que
estas transformações da representação social do negro, nos livros didáticos, aconteceram
principalmente depois da Constituição de 1988, que assinala a discriminação racial
como crime e após a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1998. Um
outro fator a ser considerado é que algumas editoras, como a FTD, advertiam para a
não-veiculação de estereótipos discriminatórios. Ao mencionar alguns livros publicados
pela mesma editora, após a década de 90, a autora afirma que:
Neles, os personagens aparecem, ilustrados com status econômico de classe
média, com constelação familiar, crianças praticando atividades de lazer, em
interação com crianças de outras raças/etnias, com nome próprio, sem
aspecto caricatural e freqüentando a escola; adultos negros exercendo
funções e papéis diversificados, descritos como cidadãos, interagindo com
pessoas de outras raças/etnias sem subalternidade, entre outras
transformações. (SILVA, 2002, p.4).
Uma preocupação que contempla os educadores e estudiosos da diversidade ainda
é o fato de que os números das pesquisas relacionadas à situação social (econômica ou
socioeconômica)
dos
afro-descentes
são
complexas,
estão
em
situação
de
22
vulnerabilidade pelo fato de encontrarem-se nas periferias, nos bolsões de pobreza.
Petrônio Domingues (2005, p.165) afirma que:
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 53
milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% são negros. De 22
milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, 70% são
negros (idem). Na área da educação, a situação do negro não é menos
calamitosa. Do total dos universitários, 97% são brancos, sobre 2% de
negros e 1% de descendentes de orientais (idem).
Delma Silva (1999), ao referir-se ao Relatório do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) de 1996 relata que as disparidades de possibilidades
entre negros e não-negros de ingressarem e manterem-se na escola são grandes, visto
que:
[...] os afro-descendentes com mais de 25 anos representam 68,8% da
população, são analfabetos. [...] a probabilidade de entrar na escola para os
brancos é de 85%, contra 65% para os afro-descendentes. A probabilidade de
ingressar na segunda fase do ensino elementar – 5ª a 8ª séries – é de 55% para
os brancos, diante de 40% para “pretos” e 44% para pardos. A probabilidade
de um “branco” que completou o primeiro grau chegar ao segundo grau –
atual ensino médio – é de 57%, enquanto que as probabilidades para um
“preto” ou um “pardo” recaem para 36% e 46%, respectivamente. (SILVA,
1999, p.104)
Nesse sentido, é perceptível que os cidadãos negros enfrentem maiores
dificuldades de acesso e permanência na escola, “[...] assim como freqüentam escolas de
pior qualidade, redundando em maior índice de reprovação e atraso escolar do que
aquele observado entre os brancos [...]”. (ROSEMBERG, 1998, p.79). Muitas vezes,
isso, é consequência da discriminação e preconceito existentes no âmbito educacional.
Estes números nos mostram que ainda existem na sociedade preconceito,
discriminação que fazem com que o negro sinta-se inferior, e acarretam na situação
econômica do mesmo, o que ocasiona o fracasso e a evasão escolar.
Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido
na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a
diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais
didáticos e às relações preconceituosas entre alunos de diferentes
ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e
prejudicam seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e
evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do
alunado branco. (MUNANGA, 2005, p.16)
Como pode um educador menosprezar a capacidade de um aluno pela cor da pele?
Infelizmente, ainda há um preconceito muito grande incutido na cabeça de alguns
23
educadores que acabam afetando diretamente os alunos, que são responsabilizados por
um fracasso que não lhes pertence, que faz parte do ranço discriminatório que ainda é
muito forte na sociedade brasileira e da má-formação dos educadores que não se
dispõem a trabalhar com a diversidade, como se esta, não existisse.
Gonçalves (2007), aponta em sua pesquisa que a justificativa das professoras para
o baixo rendimento apresentado pelos alunos negros, está centrada nos próprios alunos e
nos seus familiares. Dessa forma, torna-se mais fácil para o professor culpabilizar o
aluno do que desconstruir seus próprios preconceitos.
Em busca de maior igualdade social, após muitos anos, o movimento negro
existente na sociedade brasileira conquistou a Homologação da Lei 10639/03. Para Dias
(2005), durante as discussões das LDBs 4.024/61 e 5.692/71, as propostas para intervir
na exclusão social dos negros foram as mínimas, este movimento começou a aparecer
após a Constituição de 1988.
[...] em 1987 deflagra-se movimento intenso de discussão das propostas de
uma nova LDB. A discussão da LDB cruza-se com outros movimentos e, no
caso em análise, a questão de raça nas LDBs tem dois importantes marcos
impulsionadores: o Centenário da Abolição, em 1988, e os 300 Anos da
Morte de Zumbi dos Palmares, em 1995. O movimento social negro atua
intensamente no Centenário da Abolição da Escravatura. Ocorrem eventos
no Brasil inteiro, são publicadas pesquisas com indicadores sociais e
econômicos demonstrando que a população negra está em piores condições
que a população branca, comparando-se qualquer indicador: saúde,
educação, mercado de trabalho, entre outros. Constroem-se com isso novos
argumentos para romper com a idéia de que todos são tratados do mesmo
modo no Brasil. (DIAS, 2005, p. 54).
Na tentativa de melhorar as condições sociais da população negra, no sentido de
não haver mais discriminação, trabalhando nas escolas a diversidade cultural brasileira,
a identidade cultural das crianças, valorizando-as e desmistificando a história
“tradicional” do Brasil, foi sancionada a Lei 10639/03. Segundo Dias (2005):
[...] um dos primeiros atos do governo Lula foi sancionar um projeto de lei
apresentado pelos deputados federais Ester Grossi (educadora do Rio
Grande do Sul) e Ben-Hur Ferreira (oriundo do movimento negro de Mato
Grosso do Sul), ambos do PT. A lei, que modifica o artigo 26, foi
sancionada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva e pelo ministro
Cristovam Buarque em 9 de janeiro de 2003. A lei no 10.639 altera a lei no
9.394/96 nos seus artigos 26 e 79, e torna obrigatória a inclusão no currículo
oficial de ensino da temática “História e Cultura Afro-brasileira”.
Após a homologação dessa Lei ampliaram-se as discussões sobre a diversidade
étnico-racial nas escolas, pois os educadores que trabalham a partir do Ensino
24
Fundamental têm como “obrigação” abordar este tema durante suas aulas. Mas de que
maneira isto vem sendo feito? É preciso quebrar as barreiras do preconceito existente na
sociedade, nas escolas e nos educadores, para que os cidadãos negros não sejam mais
excluídos da história e da educação brasileira. Para tanto, é preciso trabalhar a
diversidade desde a Educação Infantil.
7. CRIANÇA E EDUCAÇÃO INFANTIL
A educação das crianças pequenas é, sem sombra de dúvida, um tema que muito
interessa aos pedagogos, acredito que é indispensável que educadores e pesquisadores
de infâncias tenham bem clara as concepções de infância, criança e Educação Infantil.
Dessa forma, neste capítulo proponho-me a contextualizar a Educação Infantil em uma
perspectiva histórica, até os dias atuais, abordando as concepções de criança e infância
que permeiam as discussões entre pedagogos, aliando-as ao tema central de minha
pesquisa sobre a diversidade étnico-racial.
A Educação Infantil é uma etapa muito importante da Educação Básica, pois
serve de base ao desenvolvimento do ser, valorizando-o e criando oportunidades para o
seu desenvolvimento, enquanto criança e sujeito de direitos. Sendo assim, Rocha (2008,
p.2) afirma que:
[…] reafirma-se o reconhecimento da especificidade da educação infantil
como primeira etapa da educação básica, cuja função sustenta-se no respeito
aos direitos fundamentais das crianças e na garantia de uma formação
integral orientada para as diferentes dimensões humanas (lingüística,
intelectual, expressiva, emocional, corporal, social e cultural). Tal função
realizando-se através de uma ação intencional orientada de forma a
contemplar cada uma destas dimensões como núcleos da ação pedagógica
ou campos de experiência educativa.
As crianças são sujeitos sociais que participam ativamente da cultura e da história,
sendo que esta é a concepção de criança presente na sociedade atual. Durante muito
tempo, foram compreendidas “como um vir a ser, tábula rasa, rastro vergonhoso da
nossa natureza corrupta e animal, inocência em forma humana, ou seja, as crianças são,
neste caso, Outros como fonte de todo mal, cabendo à educação regular e dominar, a sua
natureza corrupta.” (OLIVEIRA, 2004, p.182).
25
Ao pensar a infância, considero importante tratar de uma construção social que
aconteceu ao longo dos tempos. Sabe-se que não há uma única infância ou uma única
forma de experienciar esta fase da vida, sendo que as crianças não vivenciam a infância
todas da mesma maneira, pois participam de diferentes culturas e criam e recriam suas
próprias culturas. Rocha (2008, p. 3) afirma que: “Enquanto construção social, a
infância deve ser reconhecida em sua heterogeneidade, considerando fatores como
classe social, etnia, gênero, religião, como determinantes da constituição das diferentes
infâncias e de suas culturas.”
As primeiras preocupações com as crianças surgiram no final do século XVII e
início do século XVIII, com os pensamentos de Jean Jacques Rousseau, foi ele quem
destacou a necessidade de se enxergar a criança em seu mundo próprio com suas
especificidades pertencendo ao adulto compreendê-la e respeitá-la. Nesse momento, a
criança passou a existir como objeto de afeto e desenvolvimento para a sociedade.
É preciso ter consciência clara de que não existe uma forma única de ser
criança ou uma infância universal, para poder olhar os sujeitos que
corporizam esta categoria e suas múltiplas formas de vivê-la, indo além
dos conceitos sedimentados no nosso meio social. Na tentativa de quebrar
tais paradigmas, busca-se um modo de ver e pensar as crianças com
auxilio do Terceiro Olho, aquele que domina os conhecimentos científicos
e que prima por perceber o intelecto e conjugá-lo com a alma humana (a
visão interior e a inspiração intuitiva). […] É igualmente preciso modelar
esse olhar de forma que se consiga perceber as infâncias e os sujeitos que
compõem esta categoria social de maneira diversa e instável, e que se
revelam como algo que encarna a aparição da alteridade. (OLIVEIRA,
2004, p.188-189).
Ao reconhecer que a infância precisa ter um cuidado “especial”, surgem, então,
no período da Revolução Industrial, as creches.
Segundo Kuhlmann (2005), neste
período, as mulheres deixam seus lares para entrar no mercado de trabalho, as creches e
pré-escolas nascem com o objetivo de evitar um aumento na mortalidade infantil e
cuidar das crianças em um ambiente extra familiar.
Sabe-se que no Brasil conviveram e convivem diferentes infâncias: a
infância dos curumins, que foram catequizados para se tornar cristãos, e a
infância dos moleques e molecas negros que pertenciam aos sinhozinhos e
às sinhazinhas brancas, isto é uma história de desigualdades sociais, de
dificuldades, mas também uma história de brincadeiras e reconhecimento
social. Aqui, a educação e o cuidado das crianças pequenas iniciou-se no
mesmo momento em que aconteceu a urbanização, a industrialização, a
divulgação do discurso médico-higienista, a transformação na organização
da família e a criação da República. […] As primeiras creches brasileiras
surgiram como um mal necessário procurando atenuar a mortalidade
26
infantil, divulgar campanhas de amamentação, atender as mães solteiras e
realizar a educação moral das famílias. (BARBOSA, 2006, p 82-83)
De acordo com Kuhlmann (2005), até a década de 80, as Instituições de
Educação Infantil, tinham caráter assistencialista, priorizavam o “cuidar”, os aspectos
de higiene pessoal e saúde física, os aspectos pedagógicos não eram obrigatórios,
deixando a cargo do professor utilizá-los ou não. Já, na década de 90, compreende-se
que o cuidado e a educação devem caminhar juntos.
Na verdade, o que acontecia nesta época é que a educação era proporcionada de
acordo com as classes sociais, onde as crianças de baixa renda recebiam um
atendimento que priorizava os cuidados básicos com o corpo; já, as crianças de famílias
mais favorecidas economicamente, faziam parte de uma Educação Infantil com
perspectivas para a escolarização.
Mas, Ana Beatriz Cerisara (1999), ressalta que mesmo estas Instituições, tendo
abordagens diferentes (assistencialista e educativa), ambas tinham caráter educativo.
Sendo que uma priorizava os aspectos de higiene da classe mais pobre; e a outra,
voltava-se para a escolarização da elite. Após muitas discussões, a necessidade de uma
educação menos hierarquizada fez com nascesse a idéia do cuidar e educar de maneira
indissociável.
Educar e cuidar é a expressão usada para representar que, na Educação Infantil,
não se pode separar o cuidado da educação, um está totalmente atrelado ao outro.
Porém, muitos educadores, atualmente, ainda conseguem dissociar em suas práticas o
que é cuidado, e o que é educação. O que evidencia que eles ainda compreendem a
criança como um ser incompleto.
Essa dicotomização entre as atividades com um perfil mais escolar e as
atividades de cuidado, revelam que ainda não está clara uma concepção de
criança com sujeito de direitos, que necessita ser educada e cuidada, uma
vez que ela depende dos adultos para sobreviver e também pelo fato de
permanecer muitas vezes de 10 a 12 horas diárias na instituição de educação
infantil. (CERISARA, 1999, p. 16).
A criança enquanto sujeito de direitos, ativo na sociedade, deve ter no espaço da
Instituição de Educação Infantil, possibilidades para a manifestação de suas múltiplas
linguagens. É extremamente importante que estas Instituições sejam agradáveis,
estimulantes, acolhedoras e que as crianças sintam prazer em estar nestes locais, pois é
nesse ambiente que os pequenos passam a maior parte do seu tempo. O espaço da
Educação Infantil deve oportunizar as interações entre as crianças de diversas faixas
27
etárias, liberdade para se expressar, criar, dançar, movimentar, cantar e, finalmente,
desenvolver-se integralmente da melhor forma possível.
As crianças a sua moda compreendem o mundo que os cerca. Portanto, são
sujeitos completos em si mesmos, que pensam se expressam criativamente e
criticamente sobre o espaço institucional onde são cuidadas e educadas. São
sujeitos conscientes de sua condição e situação e se expressam de múltiplas
formas. (BATISTA, CERISARA, OLIVEIRA, RIVERO, 2004, p.3)
Martins Filho (2006), chama-nos atenção para a importância dos processos de
socialização existentes na creche, ressaltando a necessidade de buscar uma linguagem
comum às crianças, estabelecendo laços de confianças entre o adulto e a criança. Esta
relação favorece a construção da cultura de pares, sendo que a presença do adulto é de
fundamental importância, principalmente, se este procura potencializar as manifestações
culturais dessas crianças como algo a ser considerado e ampliado.
É imprescindível que os educadores de Educação Infantil rompam com seu olhar
adultocêntrico e coloquem as crianças como sujeito principal nas relações estabelecidas
no interior das creches, pois como ressaltam
Batista, Cerisara, Oliveira, e Rivero
(2004, p.2), “uma Pedagogia da Infância e, mais precisamente, uma Pedagogia da
Educação Infantil teria como um de seus princípios, buscar a voz das crianças pequenas
sobre sua vida, vivida no contexto das Instituições de Educação Infantil.”
Parafraseando Rocha (2008), é possível afirmar que uma pedagogia da infância
precisa ter como foco principal, os processos com os quais as crianças irão constituir
seus conhecimentos, considerando-as como seres humanos concretos e reais, que
perpassam por diferentes interações sociais e culturais, que também constituem suas
infâncias.
Muitas crianças passam a maior parte de suas infâncias dentro das creches, sendo
que chegam a ficar nesses espaços doze horas diárias. Conscientes disso, os professores
de Educação Infantil devem proporcionar espaços e tempos para as brincadeiras, e
considera-las como um dos eixos principais do trabalho pedagógico. Através do brincar,
a criança cria e recria possibilidades de conhecimentos por meio das relações que
estabelece com a sociedade e com seus pares. Agostinho (2005), afirma que:
[…] as crianças estão dizendo a todo tempo que querem um lugar onde
possam brincar, sozinhas, acompanhadas de outras crianças ou dos adultos.
Por meio das suas cem linguagens nos disseram cem vezes cem que querem
um espaço que lhes garanta o direito à brincadeira. As crianças no seu
brincar vão indicando que gostam muito de estar entre seus pares, em
28
pequenos grupos e em espaços circunscritos […] (AGOSTINHO, 2005,
p.66-67).
Através dessas brincadeiras, as crianças revelam suas culturas e seus modos de
interagir com a sociedade, manifestando assim, suas identidades sociais e indicando ao
educador o que deve contemplar em seu trabalho pedagógico.
Muitas são as mediações existentes entre as crianças e a sociedade na sua
constituição, a mídia, através de desenhos infantis, filmes, músicas, enfim, dos artefatos
culturais é uma importante mediadora nos modos como as crianças brincam. Para
Brougère (2004, p.95):
A brincadeira oferece uma compensação ao status real de dependência da
criança, que é a tradução de um desejo de independência por meio de
imagens positivas do mundo adulto ou, pelo menos, consideradas como tais
pela criança. A imagem do futuro responde a um desejo presente. É no
presente da infância que nasce a expressão do futuro.
O brinquedo possibilita à criança criar e sair de sua “infância” para experienciar o
mundo adulto, o mesmo autor ressalta que, através deste brincar, elas podem ter
vivências adultas, sem correr risco algum. Um brinquedo que possibilita isso,
constantemente, são as bonecas Barbie que, segundo Brougère (2004, p.103), sua
“beleza, sucesso, riqueza, popularidade tornam a Barbie atraente, despertam o desejo de
se projetar e brincar”. A questão é, que muitas vezes, esse tipo de brinquedo acaba
transmitindo à criança o desejo de um ideal distante de sua realidade, ou que
supervalorizam coisas secundárias como a beleza, por exemplo.
Atualmente, observo que há um culto à beleza muito grande, há um padrão de
beleza pré-estabelecido, onde as pessoas precisam se “encaixar” nesse padrão para se
sentirem belas, e acabam assim, acatando ou reforçando a idéia de um padrão
eurocêntrico. É possível atualmente observar que nunca houve tantas mulheres com seus
cabelos extremamente lisos, ou seja, a moda da escova definitiva. Um outro exemplo
voltado diretamente para o cotidiano das crianças são novamente as bonecas Barbie,
estas são veneradas, principalmente pelas meninas. No grupo de crianças com o qual
trabalho, as meninas têm verdadeira adoração por esta boneca, levam para o CEI a
Barbie princesa, Barbie butterfly, Barbie castelo de diamantes, uma infinidade de
bonecas com roupas e cabelos diferentes uns do outros, porém, nunca apareceram com
nenhuma Barbie negra. Estas já se encontram no mercado, mas são poucas e difíceis de
serem encontradas. Sendo assim, cabe-me perguntar: Como a criança negra da
29
Educação Infantil irá se identificar, e reconhecer, se a maioria dos brinquedos
comercializados transmitem um ideal de beleza embranquecido?
Observo que, em pleno século XXI, ainda perpetua a idéia de supremacia branca,
dessa forma, reafirmando o preconceito e as desigualdades sociais. Estes, ainda assolam
as relações existentes em nossa sociedade, em certos lugares, de forma escancarada, e,
em outros, de maneira mais sutil, em que acabam por gerar um sofrimento éticopolítico7. Sendo que os indivíduos que agem de maneira preconceituosa pouco falam,
mas demonstram em seus atos e olhares um preconceito tão agressivo quanto aquele
onde os indivíduos sofrem agressões físicas. Geralmente as formas de discriminação
existentes nas escolas não são escancaradas, pois as pessoas se julgam como alheias de
qualquer tipo de preconceito, mas, discriminam o outro. Cavalleiro (2003), diz que
muitas vezes os professores não sabem como lidar com a diversidade racial entre as
crianças e com seus próprios preconceitos, dessa forma, acabam sendo omissos através
do silêncio. Há a pressuposição de que não existe racismo por parte dos educadores,
sendo assim, prevalece o silêncio, não se fala em racismo nas escolas e salas de aula,
porém, os professores ocultam suas atitudes preconceituosas visto que, estas, são
condenáveis do ponto de vista da educação. Esse silêncio frente à discriminação acaba
facilitando e reforçando atitudes discriminatórias no espaço educacional e,
consequentemente, em outros âmbitos sociais.
Sendo assim, quando a vítima do preconceito é a criança, o problema é bem
mais grave, pois sua auto-estima fica comprometida, o que acaba repercutindo em várias
esferas de sua vida.
Silva (1998), diz que a auto-estima está diretamente ligada aos sentimentos de
êxito, fracasso, vergonha, enfim, as percepções que a pessoa tem de si, porém, os fatores
sociais têm uma grande importância na formação destas percepções. Os educadores
precisam estar atentos aos possíveis problemas que a discriminação racial pode
provocar às crianças, pois ela interfere diretamente na sua identidade.
Nas Instituições Educacionais, a discriminação às crianças negras acontece na
maioria das vezes por meio dos estereótipos, criados pelas outras crianças ou pelos
próprios educadores. Para Cavalleiro (2003), os estereótipos dão origem ao estigma, que
ao ser atribuído ao indivíduo negro, dificulta suas relações sociais e lhes impõe a
7
A autora Bader B. Sawaia afirma que: “O sofrimento ético-político é gerado por práticas econômicas,
políticas e sociais que variam de acordo com as variáveis dominantes (uma ou mais de uma) no processo
de exclusão social: raça, gênero, idade e classe. A força do sofrimento pode ser tão intensa que chega ao
limite da recusa da vida ou morte em vida.” (SAWAYA, 2003).
30
característica de desacreditado. Os estereótipos podem ter relação direta na construção
da identidade da criança, pois ela ouve, e internaliza aquilo como sendo uma verdade a
seu respeito ou de seu grupo étnico. Nesse sentido, a mesma autora acredita que a
constituição da identidade é o resultado das percepções que temos de nós mesmos, que
advém da percepção que temos de como os outros nos vêem. Berger e Luckmann, (1976
apud, Cavalleiro 2003, p.103), definem identidade como sendo “[...] formada por
processos sociais. Uma vez cristalizada é mantida, modificada, ou mesmo remodelada
pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da
identidade são determinados pela estrutura social.”
A sociedade acaba reforçando este preconceito, pois ainda existe a idéia de
embranquecimento cultural da população. Conforme aponta Machado (2002), era
necessário miscigenar o povo para que houvesse um predomínio da cultura e da
população branca. Este ideal foi um forte propagador do preconceito no Brasil. Sendo
assim, Silva (1998), ressalta que a educação como um processo contínuo é o caminho
mais viável para reverter esta percepção que a sociedade tem acerca dos cidadãos
negros, que influencia diretamente em sua auto-estima.
Com o intuito de estabelecer no ambiente escolar, relações que sejam contra as
ideologias que reforçam a discriminação racial, é preciso instaurar novas formas de
relações entre crianças negras, brancas e afro-descendentes, romper com velhos
discursos eurocêntricos, promover situações de diálogo e de questionamentos para que
todos possam ter o conhecimento de si no encontro com o diferente, com a diversidade,
reafirmando a idéia de que todos somos diferentes em nossas particularidades.
(SOUZA, 2005).
31
8. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A diversidade étnico-racial é um tema que vem instigando a curiosidade de
muitos pesquisadores das áreas humanas e sociais. Esta pesquisa tem como foco,
estudar as relações estabelecidas entre as crianças da Educação Infantil sobre as
diferenças étnico-raciais. Sendo assim, trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativa,
em que o fenômeno é impossível de ser medido, este estudo é de cunho descritivo, onde
os fenômenos observados foram registrados. Segundo MINAYO (1994, p. 21-23), a
pesquisa qualitativa:
[…] responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências
sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja,
ela trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças,
valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis. […] Essa corrente teórica como o próprio
nome indica, coloca como tarefa central das ciências sociais a compreensão
da realidade humana vivida socialmente.
Uma das maneiras de saber como as crianças se relacionam e pensam é
observando suas brincadeiras, suas interações com seus pares, pois por meio dessas, que
elas revelam grande parte dos conceitos que já constituíram sobre si mesmas, sobre a
sociedade, sobre as pessoas, enfim, sobre o ambiente que as cerca cotidianamente.
Dessa forma, para realizar uma pesquisa com crianças foi preciso que a pesquisadora se
inserisse diretamente no ambiente que as crianças convivem, e passasse a fazer parte
deste grupo. Acredito que a maneira mais viável para executar este trabalho por meio
das aproximações à perspectiva etnográfica.
André (1995), ressalta que, para um estudo ser caracterizado como etnográfico,
deve usar técnicas de pesquisas que estejam ligadas à etnografia, como, a observação
participante, podendo utilizar entrevistas informais e a análise de documentos. A
pesquisadora, ao realizar seu trabalho de campo, deve interagir com o objeto
pesquisado, sendo que a sua permanência prolongada no campo é fundamental durante a
coleta e análise de dados. Esta deve estar sempre atenta ao que está ocorrendo no
processo, retratando a visão pessoal dos interlocutores. Foi importante, neste tipo de
pesquisa, que os participantes ou eventos fossem observados em sua forma mais
“natural” possível, para que a posterior descrição dos dados seja mais próxima à
realidade.
32
8.1 Os Participantes
Os participantes envolvidos nesta pesquisa são compostos por um grupo de vinte
crianças, com cerca de quatro a cinco anos. É organizado por uma professora e uma
professora auxiliar de uma Instituição de Educação Infantil, localizada na Grande
Florianópolis. Os integrantes do processo foram escolhidos de acordo com a
disponibilidade dos educadores em contribuir com a pesquisa.
Quando os sujeitos principais das pesquisas são as crianças, deve-se ter alguns
cuidados a fim de preservá-las, sendo assim, neste trabalho não, serão divulgados os
nomes verdadeiros dos pequenos, e sim, nomes fictícios. Conforme Kramer (2002), a
divulgação dos nomes das crianças nas produções acadêmicas é algo complexo, pois ao
mesmo tempo em que as pesquisas consideram as crianças como autores sociais de sua
história, há que preservá-los, e muitas vezes, isso ocorre através do anonimato.
Em respeito às crianças, por tratar de um tema que poderia vir a expô-las, optei
por não fazer uso de imagens fotográficas nesta pesquisa, e apenas usar suas narrativas,
não se trata de mantê-las no anonimato, mas sim, de preservá-las. Sônia Kramer, ao se
referir a pesquisas com crianças, ressalta que:
Quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a infância
como categoria social e entende as crianças como cidadãos, sujeitos da
história, pessoas que produzem cultura, a idéia central é a de que as crianças
são autoras, mas sabemos que precisam de cuidado e atenção. Elas gostam
de aparecer, de ser reconhecidas, mas é correto expô-las? Queremos que a
pesquisa dê retorno para a intervenção, porém isso pode ter conseqüências e
colocar as crianças em risco. (KRAMER 2002, p.42).
É perceptível que as relações existentes entre as crianças e educadores(as), no
interior das Instituições de Educação Infantil, perpassam por inúmeras questões
presentes na estrutura social, mas que neste espaço possuem uma outra dimensão por se
tratar de um espaço educativo. Dessa forma, foram realizadas dez observações no
espaço da creche, onde as crianças desenvolvem suas atividades diárias, brincadeiras e
interações entre o grupo e adultos presentes.
Um pré-requisito fundamental para alcançar os objetivos desta pesquisa foi que
neste grupo tivessem indivíduos negros. Pois o foco principal das observações foram as
interações entre as crianças com as diferenças étnico-raciais e as mediações feitas pelos
adultos nestas ocasiões. Em um primeiro contato com o grupo, tive a impressão de que
33
havia cinco crianças negras no grupo, mas, na segunda observação, isso me gerou várias
dúvidas:
Comecei novamente a observar o grupo de crianças, fiquei pensando, não há
cinco crianças negras nesta turma. São morenas? São negras? São afrodescendentes? Como fazer essa classificação? Isso me trouxe muitas
angústias como pesquisadora, tenho muito receio de ser tendenciosa e acabar
fazendo a minha classificação em relação às crianças. (Diário de Campo
13/04/2009).
Vale ressaltar que na turma existem quatro crianças e a professora auxiliar que
através das características fenotípicas (cor da pele, formato do nariz e dos lábios)
possibilitam-me dizer que são afro-descendentes. Dentre elas Graziela8, que é morena
clara, tem o nariz achatado e arredondado, cabelos crespos e os lábios grossos. Henri, é
moreno escuro, tem o nariz um pouco achatado, cabelos pretos e raspados, não são
muito curtos, mas não chegam a formar cachos. Mariana, que tem a pele escura, os
cabelos cacheados nas pontas, o nariz achatado e os lábios grossos. Jonatan, tem a pele
morena escura, cabelos raspados, nariz achatado e lábios grossos.
Mesmo estes sujeitos sendo afro-descendentes, não é um sinônimo de que são
negros. O ser negro, considerar-se, reconhecer-se negro, é algo muito subjetivo, ou seja,
somente quem pode declarar que um indivíduo é negro, é ele próprio, e este sentimento
de pertencimento pode ser chamado de negritude.
Munanga (1988), esclarece que a negritude nasceu há algum tempo, de um
sentimento de frustração dos intelectuais negros, isso ocorreu por não terem encontrado
no Humanismo Ocidental, todas as dimensões de sua personalidade, ou seja, não foram
tão reconhecidos quanto os intelectuais brancos, devido ao preconceito existente. Nesse
sentido, a negritude é uma reação, uma defesa do perfil cultural do negro. Porém, há
vários autores que abordam esta questão da negritude dentre eles: Césaire (apud,
MUNANGA, 1988, p.44), que define a negritude inicialmente como sendo:
[...]o simples reconhecimento do fato de ser negro, a aceitação do seu
destino, de sua história de sua cultura. Mais tarde Césaire irá redefini-la em
três palavras: identidade, fidelidade, solidariedade. A identidade consiste em
assumir plenamente com orgulho, a condição de negro, em dizer, cabeça
erguida: sou negro. [...] A fidelidade repousa numa ligação com a terra mãe,
cuja herança deve, custe o que custar, demandar prioridade. A solidariedade
é o sentimento que nos liga secretamente a todos os irmãos negros do
mundo, que nos leva a ajudá-los e a preservar nossa identidade comum.
8
Os nomes utilizados para me referir às crianças são fictícios.
34
Dessa forma, é possível compreender a negritude como um conceito amplo e
subjetivo. Sendo que os sujeitos principais desta pesquisa são crianças pequenas, não é
possível afirmar que são crianças negras, pois estas precisam primeiramente se
reconhecerem como negras, para que a sociedade possa vir a assim denominá-las.
Durante as observações feitas no campo, pude observar através das narrativas9 das
crianças, que mesmo sendo elas, crianças pequenas, Henri, Mariana e Jonatan
reconhecem seu pertencimento étnico-racial e o valorizam, podendo ser assim
considerados como negros. Já, Graziela, em momento algum, falou sobre o seu
pertencimento étnico-racial, o que me permite me referir a ela apenas como afrodescendente e não como uma criança negra.
Vale ressaltar que em se tratando de
crianças, é importante desde a Educação Infantil abordar estas questões com os
pequenos, valorizando a auto-estima e criando oportunidades de reflexão a cerca de seu
pertencimento étnico-racial e se assim desejarem, tornar-se-ão cidadãos negros.
8.2 Instrumento de Coleta de Dados
A perspectiva etnográfica é comumente utilizada nas pesquisas onde as crianças
são o foco, e requer observação participante, ou seja, a interação direta com o sujeito
pesquisado. Sendo assim, foi por meio das observações participantes que busquei
realizar minha investigação acerca da diversidade étnico-racial na Educação Infantil.
A técnica de observação participante se realiza através do contato direto do
pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a
realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. O observador,
enquanto parte do contexto da observação, estabelece uma relação face a
face com os observados. Nesse processo, ele, ao mesmo tempo, pode
modificar e ser modificado pelo contexto. A importância dessa técnica
reside no fato de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos
que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados
diretamente na própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável
e evasivo na vida real. (CRUZ, 1994, p.59).
Como tratam-se de observações participantes para a coleta de dados foi utilizado
como fonte de registros, o diário de campo, que se deu a partir de um protocolo de
observações, onde foram anotadas todas as observações feitas. As narrativas das
crianças durante suas brincadeiras, interações com os adultos e com seus pares, e
manifestação de suas múltiplas linguagens, que foram eixos norteadores do protocolo.
9
Essas narrativas serão apresentadas e discutidas no capítulo de análise.
35
A fim de direcionar focos para as observações e registrar os dados mais relevantes,
estabeleceu-se algumas categorias principais que compuseram o protocolo de
observações no campo, são elas:
•
Interação das crianças negras com o grupo de crianças brancas.
•
A relação das crianças negras com seus “pares”.
•
A relação do adulto com as crianças negras e demais etnias.
•
Situações cotidianas que envolvam a diversidade étnico-racial.
•
Como as crianças significam a diversidade étnico-racial.
•
Brinquedos, literatura infantil e diversidade étnico-racial.
Estas observações foram realizadas no mês de abril, do ano de 2009, sendo que,
foram feitas, dez observações, onde a permanência no grupo de crianças foi de três
horas e trinta minutos, cada uma.
Nesse tipo de pesquisa, principalmente em Educação Infantil, o ato de documentar
através de registros é muito importante, deve-se registrar o que se vê e o que se ouve.
Gandini (2002, p.152), afirma que “através da observação e da escuta atenta e cuidadosa
as crianças, podemos encontrar uma forma de realmente enxergá-las e conhecê-las. Ao
fazê-lo, tornamo-nos capazes de respeitá-las pelo que elas são e pelo que elas querem
dizer”.
8.3 Situação Ambiente
O ambiente no qual as observações foram realizadas é uma Instituição de
Educação Infantil, localizada na Grande Florianópolis, e que não será divulgada o nome
neste trabalho para se preservar a identidade dos sujeitos envolvidos na pesquisa.
O primeiro contato com a Instituição foi realizado através da coordenadora
pedagógica, que foi muito atenciosa em apresentar dados relativos à Instituição, mostrar
o espaço físico da mesma e fazer contato com as professoras, a fim de mediar a escolha
do grupo de crianças disponível e com as características fundamentais para a realização
desta pesquisa. No primeiro contato, o acolhimento por parte da Instituição me
possibilitou algumas expectativas em imaginar como seria este grupo, como as crianças
me receberiam, enfim, fiquei ansiosa em logo iniciar as observações.
Na primeira observação, a primeira sensação de ir a campo, como pesquisadora,
foi bastante confusa, pois tive a impressão de que professoras me viram como uma
36
estagiária e não como pesquisadora, queriam logo saber se eu “daria aulas”. Em um
primeiro momento, as crianças se calaram frente à minha chegada, não fizeram nenhum
comentário sobre minha presença ali, entre eles. Entretanto, alguns minutos depois, a
professora disse para eu me apresentar, e as crianças continuaram sem me questionar,
mas observei que muitos exibiam um belo sorriso e um olhar misto, entre a timidez e a
curiosidade. O que me fez ter a sensação de estar sendo bem acolhida, porém, ainda
permaneci com a insegurança de desvendar o que seus olhares estavam revelando. Em
uma situação bastante semelhante ao se referir a uma etnografia com crianças, Ferreira
(2004, p.43), cita momentos como esse, como sendo travo do silêncio e relata que: “É
no confronto com esses <<não>> olhares, não sabendo ainda como os interpretar, que é
sentida a primeira perplexidade: seriam eles de ausência de interesse ou de tímida
curiosidade face a minha presença?”
No segundo dia, quando retornei a campo, as dúvidas começaram a surgir, “Você
aqui de novo?” ,“Por que você voltou?” Para as crianças, isso também se torna um
processo confuso, pois querem saber o que eu estou fazendo lá. Expliquei que também
estudo, vou a uma “escola” como eles, mas que estou estudando para ser professora e,
por isso, passaria um tempo lá, observando para ver como é ser professora. Mas acredito
que para eles seja um tanto quanto estranho ter alguém na sala que não é a professora e
não é criança.
Sobre isso Manuela Ferreira (2002), diz que a presença de uma mulher adulta que
não é educadora e acompanha a rotina do grupo, causa estranheza aos pequenos. Dessa
forma, é fundamental brincar com o grupo, acompanhá-los em suas brincadeiras, mas
sem interferir em sua fluência e sempre pedir autorização de todos para participar das
brincadeiras.
A sala deste grupo é arejada e clara, com várias janelas, onde as crianças adoram
ficar olhando para a rua, tem uma prateleira com brinquedos e outra com materiais
pedagógicos e brinquedos. Nas paredes há produções de todas as crianças fixadas,
tratam-se de desenhos com o seguinte título: “EU.” E tinham os rostos das crianças
desenhados por elas mesmas, observei, principalmente, como as crianças afrodescendentes se desenharam: Jonatan, estava um pouquinho pintado de verde, vermelho
e marrom por cima, Graziela, estava desenhada de marrom com os cabelos crespos e,
Henri, desenhou-se de marrom com os cabelos pretos. Na outra parede tem um papel
pardo com várias letras “A” coladas nele, um mural confeccionado pelas professoras
com os aniversariantes e há, no corredor, um grande cartaz feito com tinta guache.
37
Existem nesta sala, cinco mesas com quatro cadeiras cada, nestas, as crianças fazem
suas refeições, brincam e fazem suas produções, no canto da sala, há um colchonete e,
ao lado, uma cesta com livros.
Um outro fato curioso ocorreu desde o início, quando as crianças começaram a me
chamar de “profi” e usavam disso para me pedir o que as outras professoras não
autorizavam. Sempre que queriam algo que era negado por elas, recorriam a mim, como
se fosse mais fácil ter o meu consentimento, dessa forma, em alguns momentos,
solicitavam-me a participar de suas brincadeiras, e, em outros, queriam fazer uso da
minha presença para se favorecerem.
Manuela Ferreira (2002), diz que estes usos estratégicos que as crianças fazem da
pesquisadora, por se tratar de uma adulta, que participa das brincadeiras, ou pela
proximidade que estabeleceu com algumas crianças, muitas vezes, resulta em uma
situação desconfortável, pois, “fazem uso, uma vez mais, da representação dominante
do adulto como alguém com poder e o usam para exercer e legitimar seu poder junto de
outras crianças”. (FERREIRA, 2002, p.160).
O início da pesquisa no campo me trouxe muitas dúvidas, pois há uma expectativa
muito grande de observar muitas coisas, e ao entrar em contato com as crianças não é
possível observar tudo o que ocorre no grupo, muitas vezes em um primeiro momento,
não surgem situações relacionadas ao tema da pesquisa. Sendo que as crianças estão
vivenciando o processo delas, e eu, como pesquisadora, tenho de esperar que este
processo perpasse pelo tema da minha pesquisa, o que requer muitas vezes, ler as
entrelinhas, sem ser tendenciosa. Dessa forma, conforme aponta Ferreira, muitas vezes é
preciso,
[...] mais do que olhar para observar, é preciso escutar para compreender o
que elas nos dizem, a partir da auscultação da sua <<voz>>, onde a escuta
das e com as crianças reclama, sobretudo, ensaiar (me) (n) uma nova atitude
epistemológica, a da escuta sensível [...] (FERREIRA, 2002, p.152).
Quando se vai a campo realizar uma pesquisa de perspectiva etnográfica é
necessário interpretar os textos culturais das crianças e isso requer muita atenção da
pesquisadora, pois é preciso fazer o exercício da auscultação e revelar o que dizem sem
fazer julgamentos. (FERREIRA, 2004).
Com o passar dos dias, e pelo fato de ir a campo, em uma sequência de dez dias
consecutivos, fui gradativamente estabelecendo um vínculo mais próximo, tanto com as
38
crianças, quanto com as professoras, o que fez com que pudesse observá-las mais de
perto, sem que se sentissem intimidadas pela minha presença.
8.4 Organização, Tratamento e Análise de Dados
A organização, o tratamento e a análise dos dados coletados foram feitas por meio
da análise do conteúdo. Nessa perspectiva, foi realizada a categorização e análise dos
registros. Para Gil (2007), a categorização trata-se de organizar as respostas obtidas
durante a pesquisa, dessa forma é preciso estabelecer categorias para analisá-las
adequadamente, e isto pode ser uma tarefa bastante simples, desde que a pesquisa seja
bem planejada. Sendo assim, as categorias estabelecidas nesta pesquisa se darão a partir
dos objetivos específicos e dos registros feitos e serão analisadas com base no
referencial teórico.
Para Bardin (1977), a análise de conteúdos divide-se em três partes, a pré-análise,
que é um período de intuições e refere-se aos textos lidos para a fundamentação da
pesquisa. Ou seja, é a gama de materiais que foram lidos e selecionados para a
elaboração do referencial teórico de acordo com o problema e objetivos da pesquisa. A
segunda etapa de organização da análise, consistiu na exploração do material, ou seja, a
partir dos três objetivos específicos estabelecidos, os registros foram divididos em três
grupos correspondentes aos objetivos. Posteriormente, cada episódio significativo
recebeu uma palavra-chave (categoria) que correspondia ao conteúdo a ser utilizado na
análise. A terceira e última etapa, consiste no tratamento dos resultados, ou seja,
elaborar as discussões, a partir do referencial teórico.
39
9. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Tendo como base as leituras feitas para a elaboração deste trabalho, este capítulo
tem como objetivo produzir um debate dos episódios registrados no diário de campo,
durante as observações que servem de dados para esta pesquisa. Inicialmente, serão
problematizadas as situações que envolvem a diversidade étnico-racial e estão
vinculadas à postura dos educadores sobre este tema, sendo que o primeiro sub-capítulo,
trata das formas de produção da invisibilidade das crianças afro-descendentes na
Instituição de Educação Infantil.
O sub-capítulo seguinte, aborda a discussão de como se estabelecem as relações
das crianças afro-descendentes com seus pares, de maneira que nestas relações há um
vínculo de cumplicidade que resulta no aparecimento de uma cultura infantil, própria
deste grupo.
O último sub-capítulo, promove uma discussão sobre a interação das crianças
afro-descendentes com as crianças de outras etnias. Afinal, como esta relação é
estabelecida? No decorrer deste texto, será possível perceber que, muitas vezes, os “não
ditos” também revelam atitudes discriminatórias.
9.1 Educadores(as) e as situações que envolvem a diversidade étnico-racial
“Pentia profi!”
A Instituição de Educação Infantil é um dos primeiros espaços de socialização das
crianças pequenas, assim sendo é necessário que os pequenos sintam-se seguros e
acolhidos neste ambiente. Visto que a Educação Infantil é a primeira etapa da Educação
Básica, é sua função respeitar os direitos fundamentais das crianças e garantir uma
formação integral, orientada para as diferentes dimensões humanas. (ROCHA, 2008).
Para tanto, é preciso que o(a) educador(a) estabeleça com o grupo uma relação de
confiança, criando vínculos afetivos que permitam às crianças se expressarem através de
suas múltiplas linguagens. É necessário buscar uma linguagem comum às crianças e
assim estabelecer laços de confianças com os pequenos. Sendo que a interação entre a
criança e o adulto é de fundamental importância para potencializar as manifestações
40
culturais dessas crianças, como algo a ser considerado e ampliado. (MARTINS FILHO,
2006).
Tendo em vista que os educadores devem estar preparados para interagir com as
mais diversas situações do cotidiano, este sub-capítulo tem a finalidade de discutir os
episódios observados em campo, onde as educadoras se deparavam com situações que
pudessem envolver a diversidade étnico-racial.
Vale lembrar que o(a) educador(a) sempre deve estar atento às falas (narrativas) e
atitudes das crianças, suas brincadeiras e brinquedos, pois são através destes elementos
que podemos entender o que as crianças pensam e dizem a respeito do mundo e do que
as cerca cotidianamente.
Em uma das minhas primeiras idas a campo, pude observar que na hora em que as
professoras começaram a fazer a higiene das crianças, a professora que estava trocando
a roupa e penteando os cabelos, não arrumou os cabelos das crianças afro-descendentes,
quem fez isso foi a auxiliar que também é afro-descendente, a professora só penteou os
cabelos de alguns meninos “brancos”. Então comecei a me questionar: Será isso, um
tratamento diferenciado por parte da professora? Ou será apenas uma coincidência? Foi
então que comecei a prestar mais atenção no momento da higiene dos dias seguintes:
Na hora em que as crianças começaram a se arrumar para ir embora pude
observar que aconteceu o mesmo fato do primeiro dia de observação, a
auxiliar penteou os cabelos das crianças negras e de algumas brancas e a
professora penteou o cabelo de poucas crianças, sendo que nenhuma delas
eram negras, Henri e Jonatan (afro-descendentes) têm os cabelos bem
curtos, quase raspados, e, em nenhum momento, tiveram seus cabelos
penteados ou molhados como fazem com todas as crianças. (Diário de
Campo 13/04/2009).
Dessa forma, é possível perceber que as crianças afro-descendentes são penteadas
principalmente pela auxiliar, sendo que a professora geralmente arruma os cabelos de
poucas crianças e destas, nenhuma é afro-descendente. Henri e Jonatan, em momento
algum, tiveram seus cabelos penteados, evidenciando um processo de segregação, de
invisibilidade, pois acredito que mesmo tendo os cabelos curtos, os garotos gostariam
de receber o mesmo tratamento oferecido às outras crianças. Será que as professoras se
atentaram para o fato de que as crianças podem se sentir “excluídas”? Outro
acontecimento que evidenciou a invisibilidade das crianças afro-descendentes foi
quando:
41
Depois do lanche, as professoras arrumaram as crianças e novamente a
auxiliar penteou as mesmas crianças e a professora foi trocar a roupa de
algumas delas. Quando Mariana (afro-descendente) sentou para arrumar seu
cabelo, percebeu que a auxiliar iria apenas molhar e amarrá-lo então ela
disse: “Pentia profi!” Então ela penteou o cabelo de Mariana. (Diário de
Campo 14/04/2009).
No episódio anterior, Mariana trouxe à tona uma pista, a garota revelou que
percebeu um tratamento diferenciado por parte das educadoras, ou seja, todas as
crianças foram penteadas, exceto ela, sendo assim, Mariana precisou pedir para que isso
acontecesse de fato. Será que esse fato já ocorreu outras vezes para que Mariana tivesse
essa atitude de falar que gostaria de ser penteada?
E Henri e Jonatan? Como se sentem, vendo todos os colegas sendo penteados
todos os dias e eles não? Talvez as professoras acreditem que não há necessidade, pois
eles têm os cabelos curtos, mas cabe-me questionar: O que será que estas crianças
pensam dessas atitudes das professoras? Será que, se as professoras penteassem seus
cabelos, isso não favoreceria o autoconceito de Henri e Jonatan?
Frequentemente as crianças afro-descendentes são estereotipadas por causa de
seus cabelos, o cabelo negro é, muitas vezes, visto como um símbolo de inferioridade e
esses estereótipos marcam a vida dos negros, pois muitas vezes são as primeiras
experiências públicas de segregação e discriminação. Sendo assim, algumas famílias
negras, ao arrumarem os cabelos das crianças, o fazem na tentativa de romper com os
estereótipos. (GOMES, 2002).
O fato de terem os cabelos arrumados pode favorecer o autoconceito das crianças,
pois ao se sentirem bonitas e valorizadas, sentir-se-ão também, mais confiantes e o
cabelo deixará de ser um sinônimo de discriminação, para ser um elemento constitutivo
do autoconceito. (BOTEGA, 2006).
Episódios como esses citados anteriormente, evidenciam a necessidade de os(as)
educadores(as) fazerem o movimento da alteridade e refletir sobre a forma como as
crianças afro-descendentes estão sendo vistas no interior da creche, é preciso dar mais
visibilidade a essas crianças. É bastante provável que as ações das professoras não
tenham a intenção de discriminar as crianças, porém, os cabelos marcam a negritude
dessas crianças, e o fato de não serem penteadas, colocá-as em um campo de
invisibilidade.
A invisibilidade carrega consigo a discriminação, e quando as crianças negras não
têm suas especificidades reconhecidas, ou seja, são tratadas como se não estivessem ali,
42
ou como se as diferenças não existissem, elas ficam sim, em um campo de
invisibilidade, pois elas percebem as diferenças. Diferenças essas que muitas vezes são
silenciadas pelos educadores por não saberem como abordá-las.
Parece-me que quando este silenciamento é constante, torna-se mais difícil para as
crianças encontrarem elementos para se reconhecerem no espaço da Educação Infantil,
visto que se a criança não encontra elementos vinculados ao seu pertencimento étnicoracial, para se identificar, ela acaba ficando na invisibilidade.
Retomando o que diz Cavalleiro (2003), muitos educadores não sabem lidar com
suas
próprias
representações
culturais,
pautadas
na
lógica
eurocêntrica
e,
consequentemente, com a diversidade racial entre as crianças e, dessa forma, tornam-se
omissos por meio do silêncio. O silenciamento gera a invisibilidade que muitas vezes
gera uma segregação da criança àa suas características físicas e culturais, o que acaba
interferindo no autoconceito destas. Ana Célia Silva (2005), complementa que:
A invisibilidade e o recalque dos valores históricos e culturais de um povo,
bem como a inferiorização dos seus atributos adscritivos, através de
estereótipos, conduz esse povo, na maioria das vezes, a desenvolver
comportamentos de auto-rejeição, resultando em rejeição e negação dos seus
valores culturais e em preferência pela estética e valores culturais dos grupos
sociais valorizados nas representações.
Nesse sentido, é possível afirmar que a valorização, a problematização, as
discussões das questões raciais bem como, o reconhecimento das Instituições de
Educação Infantil, como sendo um espaço de diversidade étnico-racial é uma das
formas de legitimar a importância dos cidadãos negros na sociedade brasileira e
proporcionar às crianças que tenham uma opinião sólida sobre sua cultura. Sendo que
estas atitudes também acabam repercutindo na mudança de opinião dos cidadãos de
outras etnias, pois passam a conhecer a cultura do outro e a valorizá-la e respeitá-la
tanto quanto à sua. (SILVA, 2005).
Posso afirmar que a falta de conhecimento e pesquisa dos educadores contribuem,
e muito, para o aumento da invisibilidade nas Instituições de Educação Infantil, como
pode ser visualizada:
Hoje, as professoras iniciaram a tarde, contando uma história ao grupo de
crianças. Era a história “Piteco e as cores”, falava de um urso que fazia
várias pinturas em telas. Durante a história, mostravam várias coisas
coloridas que Piteco havia feito: borboleta, sol, arco-íris dentre outras. Após
a história, as professoras pediram que as crianças fizessem desenhos
43
coloridos como os de Piteco. Então, uma das professoras falou: “ Mas que
cor que não é para usar?” As crianças responderam em coro: “Preeto.”
“Isso mesmo” falou a professora. Comecei a circular nas mesas e observar
os desenhos das crianças, nenhuma delas pegou a cor preta para desenhar e
haviam lápis pretos em todas as mesas. Pareceu-me que este é um
combinado antigo, pois as crianças já sabiam que não deveriam usar esta
cor. (Diário de Campo 15/04/2009).
Nesse episódio, fica claro que as crianças não “deveriam” optar pela cor preta
para colorirem seus desenhos, e que elas já sabiam disso, mesmo antes de a professora
falar. Nesse sentido, cabe-me questionar: Por que é errado usar a cor preta? Que
concepções fundamentam essa professora para ela desejar que as crianças não usem a
cor preta? Outra situação semelhante ocorreu quando:
Na hora de Camila trocar a roupa, a garota colocou uma calça preta e estava
colocando uma camiseta preta, foi então que a professora olhou e falou:
“Não, não! Camila pode procurar outra camisa, não pode se vestir toda de
preto!” A menina fica sentada com a mochila no colo, procurando outra
camiseta, sem fazer nenhum comentário. (Diário de Campo 16/04/2009).
No acontecimento acima, é possível observar que Camila desejava se vestir com
uma roupa toda preta, porém, a professora não permitiu, exigindo que a garota
escolhesse outra camiseta. Por que Camila não pode se vestir com a roupa preta? Por
que muitas pessoas relacionam o preto ao mau? Será que, se Camila estivesse se
vestindo toda de branco ou de azul, a reação da professora teria sido a mesma? Dessa
maneira, o que a professora acaba de apontar às crianças é que elas não podem pintar
com o lápis preto, nem vestir-se com roupas pretas, ou seja, o preto tem uma conotação
de mau.
É importante ressaltar que a cor preta não está diretamente relacionada com a
diversidade étnico-racial, mas de que maneira as crianças afro-descendentes irão
interpretar essas atitudes da educadora? Durante o andamento da atividade citada
ocorreu um fato que me oportunizou refletir sobre isto:
Henri (afro-descendente) fez um desenho e me chamou para ver, disse: “Oh
é o meu pai!” Falei: “Ah, que bonito o seu pai, que cor é essa que você
desenhou ele?” Ele respondeu: “ Eu desenhei azul, só que o meu pai é
preto, mas ele gosta de roupa azul.” Mariana (afro-descendente) que estava
sentada ao seu lado falou: “Desenhei minha mãe de rosa, só que ela é preta
(continuou em tom de cochicho) só que preto não pode. Agora eu vou te
desenhar, que cor tu qué, por que o branco não aparece?” Falei: “E que
cor eu sou Mariana? Você acha que eu sou branca?” Ela responde: “É!”
Então peguei o lápis branco e o lápis amarelo escuro coloquei perto do meu
braço e perguntei: “ Qual você acha que é mais parecido com a minha
pele?” Ela respondeu: “ É esse.” Apontando para o amarelo. Então disse à
44
ela: “Quero que você me desenhe com esse então.” Sendo assim, Mariana
me desenhou com o lápis amarelo escuro. (Diário de Campo 15/04/2009).
Durante essa atividade, ficou evidente que Henri e Mariana gostariam de desenhar
seu pai e sua mãe, respectivamente, com o lápis de cor preta, porém, este não era
permitido naquele momento, então eles o fizeram de outra cor. Através deste episódio,
foi possível constatar que as crianças da Educação Infantil percebem sim, as diferenças
raciais, e se reconhecem como pertencentes à cultura afro-descendente. Tanto que
Mariana me reconheceu como diferente no momento em que quis me desenhar com o
lápis branco, parece-me que a menina já “elaborou” uma construção social de que as
pessoas de outras etnias são as pessoas ditas branca, pois me disse que o lápis branco
não apareceria, e, dessa forma, julgava-me como uma pessoa branca, porém, após a
mediação que fiz com o lápis amarelo e o lápis branco, ela percebeu que, na verdade, eu
era mais parecida com o amarelo do que com o branco.
Ao legitimar a idéia de que as crianças percebem as diferenças étnico-raciais, Ida
Mara Freire (1998, p.38) diz que:
[…] a percepção da própria diferença é um fator que a criança apresenta
muito antes que possa estar apta a falar sobre ele será a interação social que
proporcionará à criança o espaço para se constituir-se como sujeito, é o
outro que ajudará a saber quem ela é. Esse “outro” é sua família, seu grupo
étnico, a vizinhança, seus colegas e o pessoal da creche ou pré-escola.
Entretanto, que espaço é oferecido a essas crianças para que se reconheçam em
um espaço cultural ao qual elas pertencem?
Em situações como essas, as crianças interiorizam e relacionam a cor preta à sua
negritude, à negritude de seus pais. Atitudes como estas, da professora, acabam
mediando a lógica construída socialmente de que o preto, o escuro, estão sempre
relacionados ao mal, ao feio. O que muitas vezes gera nas crianças uma repulsa à sua
identidade étnico-racial. Para Rosemberg (1985, apud, SILVA, 2005), muitas vezes a
cor negra aparece associada a personagens maus, o negro acaba relacionado à sujeira,
tragédia, maldade, e a criança que internaliza essa representação negativa tende a não
gostar de si própria e dos outros que têm as mesmas características.
Dessa forma, é possível questionar: Qual o papel dos educadores frente às
questões raciais? É preciso que os educadores reflitam sobre as questões raciais, pois a
ausência de suporte teórico destes, acaba por mediar às crianças falsos ideais a respeito
de si próprias.
45
Para Nilma Lino Gomes (2003), a escola tem se tornado um espaço onde as
representações desqualificadoras sobre os negros têm sido muito difundidas, e por isso
deve também ser o lugar da superação das mesmas. No entanto, é tarefa do(a)
educador(a) compreender os diferentes povos ou etnias, suas classificações históricas e
como isto interfere na auto-estima dos(as) educandos(as). Para a partir daí entender o
conjunto de representações sobre o negro existente na sociedade e na escola, e destacar
as representações qualificadoras construídas politicamente pelos movimentos e
comunidades negras.
Nesse sentido, é preciso oportunizar momentos em que as crianças possam pensar
sobre as características que os constituem e que, consequentemente, reflitam sobre as
diferenças. Durante as observações, a professora proporcionou uma atividade onde
surgiram vários elementos que favoreceriam a discussão da diversidade étnico-racial
relacionada à auto imagem das crianças, no entanto, as diferenças apareceram, mas não
foram problematizadas.
A professora deu início a uma atividade, ela havia confeccionado um crachá
com o nome de cada criança e deixou-os espalhados no colchonete, então
pediu que cada um localizasse seu nome, todos conseguiram fazer a tarefa.
Feito isto, distribuiu um pedaço pequeno de papel para cada criança e pediu
que se desenhassem prestando muita atenção na cor dos cabelos, da pele e
dos olhos. Disse ela: “Tem que ser igual a vocês!” Observo que Jonatan
(afro-descendente) procura uma cor que se parece com ele, pega o azul
escuro e encosta na sua pele, mas descarta-o, então pega o preto encosta na
sua pele e tenta pintar com ele, mas estava com a ponta quebrada, pega o
laranja e começa a desenhar, desenha-se então de laranja e verde.
A professora pergunta: “Jonatan você é dessa cor? Não né? Você é
marrom!” Ele diz que não sabe fazer. A professora pega outro papel e um
lápis marrom entrega a Jonatan e diz: “Faz de novo bem bonito, você é
dessa cor!” Ele ficou um tempo olhando para o lápis e depois falou: “Orra
é igual eu!” Começou a desenhar e derrubou a cadeira no chão, a professora
ficou brava e tirou a cadeira de Jonatan dizendo: “Agora você vai fazer em
pé!” E deixou-o até o fim da atividade sem cadeira. Ele ficou fazendo seu
desenho e ao terminar veio me mostrar. Falei: “Está lindo Jonatan.” Então
ele foi todo contente mostrar para a professora, mas ela ficou brava porque
ele não separou o corpo com o pescoço, deu outro papel e mandou-o
desenhar novamente. Ele pareceu-me muito triste. Ela disse que era para ele
se olhar no espelho antes de fazer o desenho, ele ficou se olhando um tempo
e voltou para a mesa, mas não fez o desenho. Foi então que a auxiliar
ajudou-o a desenhar ,dizendo cada parte como deveria ser e ele conseguiu
terminar. ( Diário de Campo 23/04/2009).
Durante essa atividade, a professora gostaria que as crianças reconhecessem seus
nomes e que fizessem um auto-retrato, porém, observei que ela exigiu mais das crianças
afro-descendentes que se desenhassem com suas características fenotípicas, do que das
46
crianças de outras etnias. Por exemplo: Jonatan não deveria ser colorido, e sim marrom,
mas seu colega Marcelo pode se desenhar colorido.
Luana também teve que se desenhar novamente porque tinha feito o
contorno do seu corpo de preto e ela não é desta cor, segundo a professora,
ela é branca. Graziela se desenha de vermelho, então a professora pergunta
se ela é vermelha, ela aponta para sua blusa que era vermelha, mas a
professora diz: “Você não é vermelha, você é marrom.” ( Diário de Campo
23/04/2009).
Luana não pode se desenhar com o lápis preto, porque ela é branca, e Graziela,
que se desenhou da cor da roupa que estava vestida, também foi repreendida, pois na
verdade ela é “marrom”. Mas como mostra o episódio a seguir, Victor pode se desenhar
de vermelho e ele era “branco”.
Ao ver o desenho de Augusto, a professora diz: “Por que você pintou sua
roupa de preto Augusto? Estava tão bonito!” Ele responde: “Mas não tinha
branco.” Ela diz: “Ah, mas podia ter deixado sem pintar.” Durante esta
atividade fiquei me questionando: Por que a professora teve esta atitude com
Jonatan (afro-descendente)? Com Luana? Com Augusto? E as outras
crianças como o Marcelo que se desenhou de azul e laranja? Victor que se
desenhou de vermelho? E Manuela que se desenhou com os cabelos loiros e,
no entanto, seus cabelos são castanhos? Por que Jonatan (afro-descendente)
não pode ser laranja e verde, e Marcelo pode ser laranja e azul? O que os
diferencia? ( Diário de Campo 23/04/2009).
A professora chama atenção de Augusto porque pintou sua camiseta com o lápis
preto, e não era dessa cor, era branca, mas Manuela também não tem os cabelos loiros e
os fez assim, sem problema algum. Tive a impressão de que a professora gostaria que as
crianças afro-descendentes ressaltassem mais as características físicas que às constituem
do que as outras crianças. Então me pergunto: Será que a professora teve essas atitudes
com a finalidade de envolver o tema da minha pesquisa? Será que ela pensou que
ressaltando as características das crianças afro-descendentes estaria mediando as
diferenças?
Nesse sentido, observei que a professora desejava que as crianças afrodescendentes seguissem um padrão para se desenharem, já, as crianças brancas, só não
poderiam se desenhar de preto.
Após presenciar tal episódio fiquei pensando: Por que a professora não fez uma
discussão sobre as características de cada um, levando todos até o espelho e dando
ênfase a questão racial que é tão presente neste grupo? Teria sido uma excelente
oportunidade de trabalhar as diferenças e a auto-estima das crianças. Foi possível
47
perceber que ela desejava sim, que cada um se desenhasse com suas características
fenotípicas, porém, ela não refletiu com as crianças a importância de sermos diferentes.
Também seria interessante propor um diálogo referindo-se ao crachá como um
instrumento de identificação, mostrando que se eles se desenhassem parecidos, quem
olhasse para o crachá, conseguiria facilmente identificá-los.
A professora preocupou-se muito em enfatizar a importância das crianças afrodescendentes se desenharem com cores parecidas com o real. Visto que Jonatan e
Graziela, que são negros, teriam de se desenhar de marrom, mas Luana, que não é afrodescendente, não pode se desenhar de preto, e Manuela, pode fazer seus cabelos loiros,
mesmo sendo eles escuros... Episódios como esses trazem novamente à tona a discussão
sobre a falta de preparo dos educadores para problematizar as questões relacionadas à
diversidade étnico-racial, o que resulta no silenciamento dessas questões.
Ao discutir sobre o silenciamento das
questões raciais nas Instituições de
Educação, Cavalleiro (2003, p.58), ressalta que:
[…] ausência de informação, aliada a um pretenso conhecimento, resulta no
silêncio diante das diferenças étnicas. […] Assim, vivendo numa sociedade
com uma democracia racial de fachada, destituída de qualquer preocupação
com a convivência multiétnica, as crianças aprendem as diferenças, no
espaço escolar, de forma bastante preconceituosa.
Nesse sentido, é imprescindível que os educadores busquem subsídios, em uma
formação constante que possam atender às necessidades das crianças. As discussões
sobre a diversidade racial nas Instituições de Educação vêm crescendo nos últimos anos
(BOTEGA, 2006, GOMES, 2003, CAVALLEIRO, 2003), porém, isto não está sendo
suficiente para estimular os educadores a problematizarem esse tema com as crianças
pequenas. É preciso quebrar o silêncio existente nas creches e o “mito” da igualdade
racial que só existem nas representações de alguns educadores. Munanga (2005), diz
que os educadores, na maioria das vezes, praticam uma política de avestruz,
escondendo-se do problema ou sentindo pena dos “coitadinhos”, porém, seu verdadeiro
papel seria o de mostrar que ao falar em diversidade, o objetivo não é julgar quem é
superior ou inferior e sim, mostrar que a diferença é algo complementar, a diversidade
enriquece a humanidade em geral, e quando o(a) educador(a) tem conhecimento disso é
mais fácil ajudar o aluno a assumir com orgulho a sua diferença. É preciso dar voz às
48
crianças e as famílias (afro-descendentes e de outras etnias) para que falem e mostrem
suas culturas e as riquezas existentes nelas.
Dessa forma, foi possível perceber durante o processo de observação que as
educadoras, mesmo sem intencionalidade, acabam discriminando as crianças afrodescendentes por desconhecimento de algumas questões, tais como: O fato de atrelarem
à cor preta uma conotação de mau e pelo lugar de invisibilidade que atribuíram a
algumas crianças afro-descendentes ao não pentearem seus cabelos. Atitudes como
essas, revelam o despreparo das educadoras que resultam no silenciamento das questões
relacionadas à diversidade étnico-racial e, consequentemente, na perpetuação do
preconceito e da discriminação.
9.2 Crianças afro-descendentes e a relação com seus pares
“Nasceu! É a cara do pai!”
Com o intuito de compreender um pouco mais as crianças, suas relações e
interações no interior das instituições de Educação Infantil é necessário conhecer suas
culturas, suas preferências, suas brincadeiras dentre outras. Nesse sentido, este subcapítulo tem como foco principal, discutir e compreender como são estabelecidas as
relações das crianças afro-descendentes com seus pares, a partir das observações
realizadas e registros do diário de campo.
Partindo do princípio de que “A brincadeira pressupõe uma aprendizagem social”.
(BROUGÈRE 1995, p. 98). É importante frisar que mesmo as crianças pequenas
participam de uma cultura própria delas, à qual não está totalmente desvinculada do
mundo adulto, pois esta encontra-se inserida nele, mas é uma cultura específica das
crianças. As crianças representam esta cultura principalmente através de suas
brincadeiras, sendo que neste momento elas utilizam as representações significadas no
seu universo cultural.
Durante as observações que realizei, foi possível perceber que entre as crianças
afro-descendentes, em suas brincadeiras, há um vínculo muito forte, sempre buscam
estar aos pares, e dessa forma, criam uma identidade de grupo, ou seja, elas têm uma
49
maneira própria de brincar, na qual parecem ter uma intimidade e cumplicidade entre
elas:
Mariana (afro-descendente) e Henri (afro-descendente) começam a brincar
juntos, brincam de mamãe e papai, Graziela (afro-descendente) tenta entrar
na brincadeira, dizendo a Mariana: “Eu vou arrumar seus cabelos”.
Mariana chama Henri para perto dela e diz bem baixinho: “Henri vamo
brinca de casamento?” Parecem sentirem-se envergonhados quando
percebem que estou por perto, então Mariana me olha e diz: “Tu não escuta
tá?” Respondi que não estava escutando. Os dois dão os braços como se
estivessem casando e saem. Pegam uma boneca loira de olhos azuis e
colocam dentro da blusa de Mariana. Eles voltam e ela diz a Graziela:
“Agora tou grávida, vai nascer!” Se deita no colchonete abre as pernas e faz
força para o bebê sair, Graziela faz o parto e diz: “Nasceu!” Mariana diz: “É
a cara do pai!” E entrega a boneca para Henri, ele pega a boneca nos braços
e fica olhando. Então pergunto a ele: “Henri ela é a carinha do pai?” Ele
me responde: “Não é, não! Olha aqui. ” E aponta para olho da boneca
passando a mão nos cabelos. Então Mariana diz: “É só de brincadeirinha,
Henri.” Continuam a brincadeira. Henri ficou muito tempo brincando com a
boneca nos braços. Rezou com ela, cochichando e, por fim, disse: “Boa
noite meu Deus.” E fez a boneca dormir. ( Diário de Campo 13/04/2009).
Nessa brincadeira é possível perceber que as crianças envolvidas são todas
crianças afro-descendentes. Elas brincam de casamento, de mamãe e papai e envolvem a
sexualidade na brincadeira, brincam dessa forma somente entre elas, em um canto da
sala, onde há um colchonete que fica distante do lugar em que as educadoras costumam
estar. As crianças evitam que as outras pessoas (principalmente se esse outro for um
adulto) ouçam ou participem de suas brincadeiras. Sobre isso Sayão (2003), revela que
quando as crianças brincam de faz-de-conta, experimentam lugares que estão para além
das convenções construídas socialmente. Nessas brincadeiras, nem sempre a
experimentação de alguns lugares é permitida pelos adultos, o que faz com que, em
alguns momentos, as crianças precisem se esconder até mesmo, enganá-los.
Em muitas ocasiões, as crianças evidenciam que desejam um lugar onde possam
brincar sozinhas ou acompanhadas, elas querem seu direito à brincadeira. E durante as
brincadeiras mostram que gostam de brincar em espaços circunscritos entre seus pares.
(AGOSTINHO, 2005).
Durante suas manifestações, nessa brincadeira, as crianças vão evidenciando
algumas características das culturas infantis, por exemplo: a brincadeira de casamento
que é algo pertencente à cultura adulta, o fato de Mariana “estar grávida”, deitar-se na
posição e fazer força para o seu bebê nascer é uma significação social do que ela
observa no mundo adulto, e da maneira como ela ressignifica a sua sexualidade.
50
Brougère (2004), ressalta que a brincadeira oportuniza a criança uma
compensação ao seu status de dependente, e isso se traduz em um desejo de
independência pelas imagens positivas que ela tem do mundo adulto. As brincadeiras
possibilitam às crianças manifestar-se sobre tudo que as cerca, e esta é uma
característica presente na cultura das crianças. Talvez, se não fosse através da
brincadeira, Mariana não teria “liberdade” para expor o que pensa sobre a sexualidade, e
dessa forma, as crianças criam e recriam inúmeras possibilidades que repercutem de
maneira muito eficaz no seu desenvolvimento.
No episódio anterior, Henri e Mariana representam lugares construídos
socialmente para o homem e a mulher, porém, o menino assume o lugar de cuidador da
filha e reza com ela para dormir, lugar este, que de acordo com as construções sociais,
“deveria” ser assumido pela mãe. Neste sentido percebe-se que na relação existente
entre esse grupo de crianças, elas subvertem a lógica sexista, pois o menino é o
cuidador. No entanto, reafirmam que a mulher é a geradora e o casamento é
heteronormativo.
Sayão (2003), ressalta que as crianças demonstram que os lugares de gênero vão
se delineando muito cedo, mesmo que na infância existam muitas transgressões destes
lugares. Essa subversão à lógica parece ser uma manifestação típica de um momento da
vida que logo desaparecerá, diante das determinações socialmente construídas que
normatiza os lugares de meninos e meninas. Nesse sentido, os(as) educadores(as) têm
um papel muito importante perante as questões de gênero, o de brincar junto as crianças
e problematizar as pistas que as crianças evidenciam durante as brincadeiras.
Quando as crianças encontram espaços para essas transgressões, vão além do que
é pré-determinado para cada sexo, buscam brinquedos diferentes daqueles que lhes são
impostos e ressignificam a cultura no qual estão inseridos e criam formas originais de
relacionamento. Dessa forma, elas recriam e inventam novas formas de ser menino e
menina. (FINCO, 2007).
Durante as brincadeiras, as crianças fazem escolhas, priorizando aquilo que lhes
gera curiosidade e lhes proporciona prazer, nesses momentos, as fronteiras do que é
permitido e do que não é permitido não são levadas em conta. Dessa forma, é possível
afirmar que as categorizações de brinquedos para meninos e meninas são construtos
sociais dos adultos. (FINCO, 2004).
Mariana, Henri e Graziela, demonstram em suas atitudes, conhecimentos sobre a
sexualidade, eles sabem que os bebês vem da barriga de suas mães, e, de certa forma,
51
sabem como os bebês nascem. Evidenciam também que reconhecem a lógica idealizada
socialmente de que é preciso primeiro casar para depois ter filhos. E através dessas
vivências que ampliam suas significações sociais, as crianças ensaiam novos
conhecimentos sobre a sexualidade. Em uma outra situação foi possível observar que:
Graziela (afro-descendente) brinca muito tempo sozinha, com um boneco
então vai até Lana e diz: “Cuida do meu bebê que eu vou no mercado?”
Lana faz um gesto positivo com a cabeça, ela sai e volta com Henri (afrodescendente), diz: “Papai olha, papai é seu bebê” Os dois saem com o
boneco, Graziela tira a roupa dele e diz: “Sabe como é o nome disso? É
pinto!” Os dois riem muito. (Diário de Campo 17/04/2009).
Novamente, Graziela e Henri tornam-se parceiros em uma brincadeira que envolve
a sexualidade, a qual não observei acontecer em nenhum momento entre as crianças
afro-descendentes e as crianças de outras etnias. Isso pode confirmar a hipótese de que
as crianças afro-descendentes estabeleceram entre si um vínculo que as permite brincar
com maior intimidade.
A criança pequena descobre a sexualidade a partir do próprio corpo, isso começa
quando ela percebe que meninos e meninas são diferentes, e após essa descoberta, a
criança começa a descobrir seu corpo e o prazer que ele pode lhe proporcionar. Nas
creches, há uma tendência muito forte das educadoras em reprimir as atitudes das
crianças relacionadas à sexualidade. Há em torno das discussões sobre sexualidade uma
moral que muitas vezes impede falas, perguntas, ou brincadeiras que envolvam esse
tema. Isso torna-se muito claro através da fala de Mariana, quando percebe que eu
estava por perto e diz: “Tu não escuta tá?”. Cláudia Ribeiro (2008, s/p), ao discorrer
sobre a sexualidade infantil, afirma que,
[...]as crianças são seres sexuados, manifestam natural e espontaneamente
sua sexualidade e desenvolvem suas idéias sobre a temática; a autoexploração auxilia na compreensão do corpo e do prazer e a repreensão não
fará com que a criança pare de se tocar, mas com que o faça de modo
culposo; manipular genitais, afagar, beijar, tocar um ao outro são gestos
comuns entremeados de muitas risadas e cócegas, com o mesmo sexo ou o
outro.
Os educadores precisam observar estas brincadeiras e fazer uso delas para a
compreensão das culturas infantis, não reprimindo as crianças diante de situações que
envolvam a sexualidade, mas sim, esclarecendo suas dúvidas, por meio de inúmeros
recursos que também fazem parte dessa cultura, tais como: histórias, fantoches, alguns
52
bonecos que já existem no mercado que tem os órgãos sexuais, bonecas grávidas que
permitem à criança saber como os bebês nascem, enfim, esse é um tema que deve ser
explorado de acordo com as pistas das crianças, mas nunca tratado como algo
pecaminoso ou errado.
Com a finalidade de compreender as crianças e suas culturas, os adultos precisam
se desprender da cultura adulta e do olhar “adultocêntrico”, Oliveira (2004), ressalta que
é necessário olhar a criança com um “terceiro olho”, o olho da visão interior ,aquele
capaz de perceber as diferentes infâncias, o olhar da alteridade. Coutinho (2001, p. 1),
complementa que, “[…] o desafio não é só de conhecer ‘a imagem do outro criança’,
mas conseguir desvencilhar nossos modos de ver da nossa cultura adulta. Pensar a
infância, partindo dela mesma.” E conforme aponta Brougère (1995), é preciso
desmistificar o mito de que a brincadeira é algo natural na criança. Sendo que a criança
desde que nasce está inserida em um contexto social e seus comportamentos já estão
impregnados por essa convivência inevitável. A criança aprende desde cedo a brincar
com as pessoas que cuidam dela. Dessa forma, a brincadeira é um processo de relações
interpessoais, assim sendo, de cultura.
Por meio dessas brincadeiras, as crianças evidenciam seus pensamentos e
construções sociais. Observei que durante a brincadeira com a boneca loira, as crianças
mostraram que conheciam sua identidade e negritude, pois reconheciam a boneca como
diferente delas. Esse episódio traz à tona uma outra discussão, que corrobora a idéia de
que as crianças conhecem sim, as diferenças étnico-raciais existentes na sociedade:
Mariana (afro-descendente) diz: “É a cara do pai!” E entrega a boneca para
Henri (afro-descendente), ele pega a boneca nos braços e fica olhando.
Então, pergunto a ele: “Henri ela é a carinha do pai?” Ele me responde:
“Não é, não! Olha aqui.” E aponta para olho da boneca passando a mão nos
cabelos. Então Mariana diz: “É só de brincadeirinha, Henri.” Continuam a
brincadeira. Henri ficou muito tempo brincando com a boneca nos braços.
Rezou com ela, cochichando e, por fim, disse: “Boa noite meu Deus.” E fez
a boneca dormir. ( Diário de Campo 13/04/2009).
Nesse relato, as crianças brincavam com uma boneca loira de olhos azuis, e ao ser
questionado com as semelhanças existentes entre Henri e a boneca, o garoto reconhece
que existem diferenças entre eles. Em alguns momentos das observações, Henri e
Mariana deixam evidente que reconhecem sua negritude. Isso fica claro no episódio
anterior, quando reconhecem a boneca como diferente deles, mas também, quando
53
desenham seus pais com lápis azul e rosa e dizem que seus pais são “pretos”, mas o
fizeram daquela cor, dada a proibição da professora em usar o lápis preto.
Em um outro episódio, observei que Jonatan também reconhece seu pertencimento
étnico-racial e fala sobre ele:
Jonatan (afro-descendente) olha e percebe que eu estou lhe observando, fica
um pouco envergonhado e diz: “Sabia que eu zogo bola com a minha
irmã!” Pergunto: “É Jonatan você tem uma irmã? Ela é grande ou
pequena?” Ele responde: “Ela é bem pequeninha, assim oh.” Falo: “Ela é
assim bonita como você?” Jonatan responde: “Ela é assim azul que nem eu”
(fala isso levantando a camisa e mostrando a cor da sua barriga). Pergunto a
ele: “Você é azul? ” Ele responde: “É, ela é dessa cor que eu sou.”
Respondo: “Então ela é muito linda, porque essa cor é muito bonita.”
Jonatan diz: “Ahan.” e sai caminhando pela sala em busca de um
brinquedo. (Diário de Campo 20/04/2009).
Quando pergunto a Jonatan, se a irmã é bonita como ele, o garoto logo se refere à
sua cor, o que me remete ao pensamento de que ele realmente acha sua cor bonita. Ao
falar de sua cor e da irmã, está falando da sua identidade, da forma como ele se percebe
diante do mundo, ou seja, ele percebe que sua cor é diferente de algumas pessoas, mas é
igual a da sua irmã, e esses são fatores importantes para a constituição da negritude.
Henri, Mariana e Jonatan já elencaram elementos étnicos constitutivos de suas
identidades e fazem uso desses para afirmar sua negritude.
As crianças, desde cedo, começam a constituir sua identidade, quando nascem e
começam a estabelecer relações com o mundo, já estão recebendo elementos que,
aliados à outros, formarão um conjunto e farão parte de sua identidade. Oltramari e
Kawahala (1998), ressaltam que o homem constrói sua identidade em contato com o
mundo, a criança quando nasce, já faz parte de uma etnia que tem suas próprias
características físicas, de uma determinada classe social, uma família, um bairro e uma
cidade. E o reconhecimento de si se dará através do reconhecimento mútuo com os
indivíduos do seu grupo social, com sua história, tradição e cultura. E a partir disso, irá
estabelecer relações que poderão possibilitar ou não que o indivíduo se identifique com
esse grupo social. Ao discutir sobre identidade, Erikson (1976, apud CAVALLEIRO,
2003, p.19) confirma que:
[…] identidade refere-se a um contínuo sentimento de individualidade que
se estabelece valendo-se de dados biológicos e sociais. O indivíduo se
identifica reconhecendo seu próprio corpo, situado em um meio que o
reconhece como ser humano e social. Assim, a identidade resulta da
54
percepção que temos de nós mesmos, advinda da percepção de como os
outros nos vêem.
Considerando essas concepções de identidade e os episódios mostrados
anteriormente, é possível afirmar que essas crianças observam as diferenças étnicoraciais existentes e se reconhecem como iguais a seus familiares e alguns dos colegas,
porém, reconhecem também que são diferentes de outros. E isso confirma a idéia de que
eles têm conhecimentos em relação à sua negritude.
A negritude é um processo muito subjetivo, conforme Munanga (1988), o
sentimento de pertencimento à cultura negra é que vai determinar a negritude do
cidadão. Ou seja, não é só porque uma pessoa é afro-descendente que ela terá de ser
denominada de negra, somente quem pode declarar que um sujeito é negro(a) é ele
próprio, isto configura a sua negritude.
Césaire (apud, MUNANGA, 1988), explica que a negritude pode ser definida em
três palavras: identidade, fidelidade, solidariedade. A identidade, requer que o indivíduo
assuma com orgulho, a condição de ser negro; a fidelidade, tem ligação com a terra mãe;
e a solidariedade, é o sentimento que nos liga aos irmãos negros do mundo, e nos leva a
preservar nossa identidade comum.
Nesse sentido, para que desde a Educação Infantil ocorram esses processos que
levam à constituição da negritude, é fundamental trabalhar o autoconceito das crianças
negras, elas precisam se sentir bem com relação ao seu corpo, sua imagem e as
características que as constituem. Gisely Pereira Botega (2006, p. 111), em sua pesquisa
fala sobre a importância do autoconceito das crianças negras e esclarece:
[…] compreendo o autoconceito como o olhar, como a imagem que o sujeito
tem sobre si mesmo que se constitui nas relações sociais atravessadas pelas
culturas, gêneros, gerações, raças, classes. Não é algo fixo e imutável, mas
transitório, contraditório e provisório que engendram diferentes atitudes dos
sujeitos no mundo.
Esse autoconceito é fundamental para que as crianças negras sintam-se enaltecidas
perante às outras, para que, se necessário, saibam como lidar com situações que
ofendam seu pertencimento étnico e de modo que assumam sua negritude em todos os
sentidos.
A fim de problematizar o autoconceito das crianças afro-descendentes é
importante que as Instituições de Educação Infantil ofereçam recursos necessários para
55
que essas crianças se sintam reconhecidas e valorizadas no espaço da creche. No
período em que fiz as observações junto ao grupo de crianças, pude constatar que as
crianças negras brincavam muito de boneca, sobretudo, com uma boneca loira. No
entanto, na sala desse grupo de crianças não havia nenhuma boneca negra, nem livros,
brinquedos, imagens, adereços que favorecessem o “reconhecimento” do pertencimento
étnico-racial destas crianças. Esse fator me chamou atenção, pois observei que
constantemente as crianças afro-descendentes (Mariana, Henri e Graziela) formavam
um grupo e brincavam muito entre elas, e em muitas situações, essas brincadeiras
envolviam bonecas que sempre tinham um padrão de beleza embranquecido.
Hoje Mariana (afro-descendente) não foi à creche, então observei que Henri
(afro-descendente) convidou Graziela (afro-descendente) para brincar com
ele de papai e mamãe, ela aceitou. Sendo assim, a mamãe foi trabalhar e o
papai, que era Henri, ficou em casa, cuidando da filha que era a mesma
boneca loira, ele fica muito tempo brincando com a boneca. (Diário de
Campo 16/04/2009).
Henri, na maioria das vezes, busca Mariana para participar de suas brincadeiras,
eles parecem ter estabelecido um vínculo, já, Graziela, participa dessas brincadeiras,
mas, na maioria das vezes, não é protagonista. Nesse dia, como Mariana não estava,
Henri procurou Graziela para brincar com ele, e os dois brincaram de ser papai e
mamãe da mesma boneca loira que aparece muitas vezes nas brincadeiras das crianças
afro-descendentes. Então comecei a me questionar: Será que se houvesse bonecas
negras isso não favoreceria o autoconceito ou a auto-imagem
das crianças afro-
descendentes? Será que as crianças afro-descendentes teriam preferência por uma
boneca negra?
A falta de recursos materiais e humanos contribui para o silenciamento das
questões raciais e para a manutenção do preconceito e da discriminação nas Instituições
Educacionais. A respeito disso, Cavalleiro (2003, p. 100-101), fala que:
A escola, penso, representa um espaço que não pertence, de fato à criança
negra, pois não há se quer um indicio de sua inclusão, exceto a sua presença
física. […] A escola tem se mostrado omissa quanto ao dever de reconhecer
positivamente a criança negra no cotidiano, o que converge para o
afastamento dela do quadro educacional. Se o acesso à educação representa
um direito de todos os cidadãos, é contraditório o espaço escolar não estar
preparado para receber crianças negras, essencialmente num país de maioria
negra.
56
As Instituições de Educação Infantil devem ser espaços acolhedores da
diversidade. Não só da diversidade racial, mas de gênero, de culturas, de classes sociais,
enfim deve acolher a demanda que a frequenta, pois esse, é um direito de todas as
crianças. Além de recursos materiais que propiciem auto-identificação das crianças
afro-descendentes, é necessário que o dia-a-dia nas Instituições de Educação Infantil
seja acolhedor, pois os indivíduos que lá freqüentam, são sujeitos afetivos, todos
necessitam de afetividade e amorosidade, necessitam ser aceitos e valorizados, assim
sendo, a criança afro-descendente precisa sentir que é respeitada e reconhecida neste
espaço que também é seu. (BOTEGA, 2006).
É importante que a criança sinta-se legitimada neste espaço, pois assim ela terá
segurança para estabelecer relações de troca com as demais crianças e com os(as)
educadores(as). Quando a criança não se sente pertencente a determinado ambiente ou
determinado grupo de crianças, ela começa a ser segregada nas brincadeiras, nas
atividades, enfim, no espaço da creche. Durante minhas idas a campo, pude observar
que as crianças afro-descendentes desse grupo, brincam mais entre si do que com as
crianças de outras etnias, porém, observei também que Jonatan e Graziela, em muitos
momento,s brincam muito sozinhos.
Hoje observei que Jonatan (afro-descendente) tem ficado muito distante das
outras crianças, Graziela (afro-descendente) brinca muito sozinha com as
bonecas e conversa muito com elas, apesar de eu ainda não ter conseguido
ouvir estas conversas, pois ela para quando me aproximo e começa a
conversar comigo. Henri (afro-descendente) e Mariana (afrodescendente)continuam muito próximos. (Diário de Campo 15/04/2009).
Através desse episódio e dos registros já apresentados nesse texto é possível
perceber que Mariana e Henri estabelecem uma relação muito próxima de cumplicidade,
Graziela, em alguns momentos, está presente em suas brincadeiras, mas ainda assim se
mantém um pouco afastada do grupo de crianças, em muitos momentos, brinca sozinha.
Já, Jonatan, fica muito distante das outras crianças, brinca muito sentado na mesa com
bonecos. Percebo que há, nesse grupo, uma afinidade entre as crianças afrodescendentes, mas Jonatan não permanece sempre com esse grupo. Então cabe-me
questionar: Por que, em grande parte dos momentos, Jonatan brinca sozinho? Será esta
uma preferência sua ou o garoto sente-se segregado do grupo?
Durante o tempo que estive presente neste grupo de crianças, observei que não há
uma discriminação explícita com relação às crianças afro-descendentes, não são
57
estereotipadas e nem se fala sobre as diferenças, porém, pude observar que, muitas
vezes, silenciosamente, sem que haja qualquer menção a diversidade étnico-racial,
Jonatan não se faz presente nas brincadeiras.
Por meio dessa discussão, é possível considerar que a maioria das crianças afrodescendentes desse grupo estabeleceram entre si um vínculo que as permite estabelecer
uma relação de cumplicidade nos momentos vivenciados na creche. Esses momentos
revelam que por meio de suas culturas infantis, evidenciadas durante as brincadeiras,
esse grupo tem uma intimidade durante as brincadeiras, pois quando brincam sozinhos,
fazem ensaios a respeito do seu corpo e da sexualidade, o que não fazem nas
brincadeiras com outras crianças. Porém, nesse grupo, há uma outra criança negra,
Jonatan, que na maioria das vezes, reserva-se das brincadeiras com as outras crianças o
que me remete ao questionamento: Isso se trata de uma escolha ou segregação? Jonatan,
em muitos momentos, fica distante do grupo, o que pode ser uma preferência sua ou um
sentimento de segregação em relação às outras crianças.
9.3 As crianças afro-descendentes e suas relações com crianças de outras etnias
“Você é um ingoísta!”
A diversidade étnico-racial é uma questão muito presente nos grupos de Educação
Infantil, pois tratam-se de características que constituem os seres humanos, porém,
muitas vezes, esse tema acaba sendo silenciado, dada a dificuldade que os adultos têm,
em falar sobre as diferenças. Com a finalidade de garantir que as crianças estabeleçam
relações de respeito mútuo é necessário que a diversidade seja vivenciada pelas crianças
como algo enriquecedor para a população e para a cultura do Brasil.
As crianças, desde a Educação Infantil, observam as diferenças existentes nas
pessoas que compõem seu grupo social, porém, elas precisam saber também que essas
diferenças não podem ser motivos para qualificar ou desqualificar alguém. Não somos
todos iguais, mas todos os cidadãos têm o direito de serem respeitados. Nesse sentido,
por meio das observações realizadas, abordo neste sub-capítulo as relações
estabelecidas entre as crianças afro-descendentes e as crianças de outras etnias.
Por meio das observações, pude constatar que no grupo de crianças pesquisado, há
interação entre as crianças afro-descendentes e as crianças de outras etnias em
momentos como do lanche, das brincadeiras, das atividades. Nos momentos que estive
58
em campo, presenciei uma cena em que uma criança “branca” (de outras etnias)
desqualificou verbalmente as crianças afro-descendentes. Porém, concordo com Louro
(1997, apud, BOTEGA, 2006, p.88), quando ressalta a importância de “percebemos os
‘não ditos’ no espaço escolar, já que, muitas vezes não dizer significa manter e garantir
a norma, por isso, é fundamental prestarmos atenção e cuidado naquilo que dizemos, ou
que não dizemos[...]” Ou seja, muitas vezes, o “não dito” também revela atitudes
discriminatórias, isso se torna evidente quando:
Aproximo-me de Jonatan (afro-descendente) e percebo que ele brinca
sozinho com um carro e uma pista. Então Camila se aproxima e tenta
convencer Jonatan a ceder a pista para ela brincar, ele diz: “Não eu quero
brincar também.” Mas Camila diz: “Então cê brinca com o carro e eu com
a pista.” Jonatan acaba aceitando. Camila chama Gilson para brincar com
ela, mas ele estava com um carro bem pequeno e tenta pegar o carro de
Jonatan, que segundo eles é o carro “baita”. Jonatan diz: “É só um
pouquinho.” E cede o carro também. Camila e Gilson começam a brincar
juntos e não deixam mais Jonatan brincar, o garoto desiste e vai procurar
outro brinquedo.(Diário de Campo 13/04/2009).
Nesse episódio é possível perceber que Camila queria brincar com os brinquedos
de Jonatan, mas fica claro que não desejava brincar com ele. O garoto tenta resistir,
porém acaba cedendo todos os brinquedos para Camila e Gilson, que iniciam uma
brincadeira juntos e não permitem que Jonatan participe. Sendo assim, cabe-me
perguntar: Por que Jonatan cedeu os brinquedos, se ele gostaria de continuar brincando
com eles? Por que Camila e Gilson não permitiram que Jonatan continuasse brincando
junto? O que está implícito nessa relação?
Nessa situação, Camila e Gilson não falaram nada sobre o pertencimento étnicoracial de Jonatan, no entanto, é possível perceber que existe entre eles uma relação de
conflito à qual faz com que Jonatan entregue seus brinquedos e saia em silêncio. Será
que essa relação estará pautada na idéia de supremacia branca? Será que as crianças
“brancas” (de outras etnias) se julgam superior à Jonatan? Será que Jonatan se sente
inferior às outras crianças? Em uma outra circunstância é possível visualizar um
episódio semelhante:
Jonatan (afro-descendente) brinca sozinho com a casinha e com os bonecos.
Marcelo tenta tirar os brinquedos dele, mas Jonatan não aceita e Marcelo
oferece muitos outros brinquedos em troca, mas Jonatan não cede, Marcelo
desiste. Luan chega e pede a casa a Jonatan e ele diz que não, então Luan
puxa a casa e começa a brincar. Jonatan vai à caixa pegar outro brinquedo,
então vem com um brinquedo amarelo que forma figuras de monstros
quando acionado um botão. Jonatan diz a Luan que precisa colocar esse
59
brinquedo dentro da casa, Luan se interessa pelo brinquedo e permite que
Jonatan brinque junto dele, mas percebo que quem comanda a brincadeira é
Luan. (Diário de Campo 24/04/2009).
Novamente, Jonatan fica como coadjuvante em uma brincadeira que ele mesmo
iniciou. Primeiro Marcelo tenta tirar os brinquedos de Jonatan, mas ele resiste, depois
Jonatan cede a casa para Luan, mesmo dizendo que não cederia. Então o garoto arruma
uma estratégia de continuar brincando com a casa através do interesse de Luan por um
outro brinquedo, mesmo assim, Jonatan não é mais o protagonista de sua brincadeira.
Borba (2006, p.14), diz que durante esses movimentos de conflitos das crianças,
[…] ainda que tenha sobressaído o investimento das crianças na negociação
de conflitos para garantir o processo interativo do brincar, também se
revelaram hierarquias e relações de poder entre elas, as quais lhes conferem
autoridade para definir quem pode ou não participar de determinadas
brincadeiras.
A autora ressalta que as crianças fazem uso de princípios para classificar os
membros do grupo com os quais elas querem brincar e seus respectivos lugares durante
as brincadeiras. Esses princípios são: bonito, feio, menino, menina, legal, chato dentre
outros. Dessa forma, as relações de poder, prestígio e estatuto social, também estão
presentes no cotidiano das crianças o que as faz mobilizarem um complexo conjunto de
estratégias para lidar com essas relações, a fim de ter uma participação social durante as
brincadeiras.
Assim sendo, a ação do poder ocorria entre todos os sujeitos envolvidos, porém,
Camila, Gilson e Luan eram os sujeitos que detinham o poder na situação. Desejavam
de alguma forma ter os brinquedos de Jonatan, e este, mesmo sem consentir, perdeu o
“direito” de brincar com os objetos desejados, e os respondeu com silêncio diante
daquela situação.
Mais uma vez fica visível que há uma relação de poder de algumas crianças sobre
Jonatan, pois ele cede os brinquedos sem nenhuma reação aparente, como se fosse seu
“dever” deixar que Camila, Gilson e Luan pegassem seus brinquedos. Ao falar das
relações de poder, Foucault (apud, BOTEGA, 2006, p.159) mostra que,
[…]o exercício do poder não é simplesmente uma relação entre ‘parceiros’
individuais ou coletivos; é um modo de ação de alguns sobre outros. Deste
modo, o poder é exercido por um sobre os outros e não é da ordem do
consentimento, na medida em que as relações de poder se articulam entre os
dois elementos, dois pólos, e o outro sobre o qual o poder se exerce é
reconhecido como sujeito da ação. Portanto, existe um campo de
60
possibilidades que engendram formas de respostas, reações, resistências,
intervenções. As relações de poder ocorrem entre as ações de sujeitos ativos.
Para Sayão (2003), o símbolo do poder social está no homem, branco, de classe
média, heterossexual e cristão, essas relações de poder tornam-se evidentes no
andamento das brincadeiras das crianças. Mais uma vez vem à tona a discussão de um
padrão estabelecido socialmente, o padrão de quem tem o poder, de quem domina, esse
padrão que foi construído socialmente e que, muitas vezes, acarreta a população afrodescendente o status de inferior e que faz com que se cale diante de seus direitos, por
muitas vezes acreditar nesse padrão errôneo da supremacia branca.
Cavalleiro (2003), aponta que o silêncio da criança afro-descendente diante das
outras crianças, evidencia sua fragilidade e a falta de confiança que tem nos adultos que
estão à sua volta. Pois em muitos momentos é exposta a situações humilhantes, não
domina seu direito de defesa e nem recorre aos adultos para defendê-las. Em outros
momentos, quando a criança negra tenta resistir e não ceder aos comandos dos colegas,
ainda é culpabilizada pela situação:
Jonatan (afro-descendente) brincava novamente sozinho com dois bonecos,
fingia jogar futebol com eles em cima da mesa, de repente diz: “Agora vamo
lutá, porrada, porrada, porrada...” E finge que os bonecos estão lutando.
Augusto tenta pegar um boneco de Jonatan, mas desta vez ele não cede e
Augusto diz: “Você é um ingoísta!” Jonatan diz: “Não sô não!” E continua
a brincar. (Diário de Campo 17/04/2009).
Esse episódio mostra que Augusto tenta tirar o boneco de Jonatan, mas ele não
cede e por isso ele é chamado de egoísta. Esses conflitos que ocorrem entre as crianças
são, de certa maneira, constitutivos para a identidade deles, visto que Jonatan conseguiu
resistir à pressão de Augusto por querer o brinquedo.
A identidade e as diferenças precisam ser temas constantemente discutidos nas
Instituições de Educação Infantil, a negritude além de ser um processo subjetivo
importante para as crianças afro-descendentes deve ser também um processo debatido e
visualizado pelas crianças de outras etnias. É necessário desconstruir os processos de
“pré-conceitos” exercidos em relação à diversidade racial. Muitas vezes, as crianças da
Educação Infantil agem, pautadas em modelos socialmente construídos, que presenciam
e ouvem na sociedade e, por fim, crescem acreditando nestes. Em um dos momentos
que estive presente no campo, presenciei uma situação em que um dos meninos do
grupo se referia a Henri e Jonatan como os meninos “pretos”:
61
Ao chegar à sala, observei que ainda tinham poucas crianças, então me
aproximei do grupo que estava sentado à mesa e falei: “Só chegaram vocês
ainda?”Augusto me respondeu: “É, aqueles menino preto não chegaro.”
Perguntei: “O que foi Augusto?” Ele disse: “O Jonatan e o Henri não viero
ainda, só quando a Janice (transporte) chegá”. (Diário de Campo
23/04/2009).
Esse registro mostra a forma como Augusto se referiu a Henri e Jonatan como se
fosse algo natural dizer que alguém é preto, e atribuindo um tom pejorativo ao se referir
a eles como “os menino preto”. E ao ser questionado, ele explicou que Henri e Jonatan
só chegariam mais tarde. Então fiquei me questionando: Por que quando perguntei se só
havia chegado eles, Augusto imediatamente quis apontar a ausência de Henri e Jonatan?
Será que o garoto percebeu a minha proximidade com as crianças afro-descendentes?
Por que Augusto se referiu aos meninos como “meninos pretos”? Será que Augusto quis
desqualificar a etnia de Henri e Jonatan? Ou será que esta é a forma identitária que ele
usa para reconhecer a negritude de Henri e Jonatan?
Em uma sociedade como a vivenciada atualmente, onde ainda prevalece uma
visão desqualificadora que foi historicamente construída à respeito dos cidadãos negros
e a identificação qualificadora dos cidadãos brancos, o processo de socialização das
crianças da Educação Infantil ocorrerá da mesma maneira, se não houver uma
intervenção da família e da escola. (CAVALLEIRO, 2003). Dessa forma, cabe ao
educador(a) desconstruir certos estigmas, falas e ações que podem ser preconceituosas
no cotidiano da educação, o papel do(a) educador(a) deve ser o de mostrar as diferenças
e não de silenciá-las.
Não seria demasiado supor que a ausência desse tema no planejamento
escolar impede a promoção de boas relações étnicas. O silêncio que envolve
essa temática nas diversas instituições sociais favorece que se entenda a
diferença como desigualdade e os negros como sinônimos de desigual e
inferior. (CAVALLEIRO, 2003, p.20).
Explorar o tema da diversidade étnico-racial
não serve apenas para que as
crianças negras afirmem seu pertencimento étnico racial, mas também, para que as
crianças de outras etnias construam um novo modo de pensar, de ver os cidadãos afrodescendentes não atrelados ao preconceito. E isso é muito importante na medida em que
a identidade das crianças afro-descendentes vai sendo construída, também a partir das
percepções que os outros têm delas mesmas (ERIKSON, 1976, apud. CAVALLEIRO,
62
2003). E com percepções qualificadoras à respeito de si, as crianças poderão reconstruir
seu autoconceito.
Jonatan (afro-descendente) brincava na mesa ao meu lado, quando Luan
chegou e me falou: “Olha profi, eu cortei o meu cabelo!” Respondi a ele:
“Seu cabelo ficou muito bonito, quem cortou?” Ele me respondeu: “Foi o
moço lá perto da minha casa porque tava bem grandão.” Jonatan falou:
“Eu também cortei o meu!” Falei: “O seu também está muito bonito,
Jonatan, quem foi que cortou?” Ele respondeu: “Foi o meu primo porque se
não ia ficá sujo e duro.” Respondi a ele: “Não Jonatan, nosso cabelo só
fica assim se a gente não lavar, se você lavar não vai ficar sujo e duro.”
(Diário de Campo 16/04/2009).
Nesse episódio, fica claro que Jonatan criou uma representação desqualificadora
com relação aos seus cabelos, pois o garoto afirma que necessita ter os cabelos curtos,
pois se não, ficará “sujo e duro”. Certamente, essa afirmação que Jonatan fez, advém de
tudo o que ele já observou e ouviu acerca dos cidadãos afro-descendentes e que faz
parte do seu autoconceito. Botega (2006, p.85), ressalta que, “a constituição do
autoconceito ocorre também pelo olhar do outro sobre nós, a imagem, ou as imagens do
outro exercem função naquilo que somos, sentimos e pensamos. No contexto da escola,
diversos são os olhares que se cruzam e que nos constituem”.
Nesse sentido, é necessário que as Instituições de Educação Infantil transgridam
suas posturas com relação à diversidade étnico-racial. Em face à complexidade de
problemas relacionados a diversidade étnico-racial, cabe aos educadores(as), repensar e
lutar por práticas que tenham como finalidade, a qualificação das crianças afrodescendentes. Sendo assim, torna-se indispensável a preparação de um trabalho que
aponte para a problematização das diferenças, o respeito mútuo e a possibilidade de
falar sobre as diferenças sem receio e sem preconceito. (CAVALLEIRO, 2003). Pois, se
a Instituição de Educação Infantil não propiciar os recursos necessários para o
reconhecimento das crianças afro-descendentes, quem irá propiciar?
Durante os dias que estive em campo, pude observar que apesar da quantidade
pequena de brinquedos existentes na creche, as crianças brincavam muito. Constatei
também que dentre esses brinquedos não havia nenhum que favorecesse ou propiciasse
a auto-identificação das crianças negras, por exemplo, só existiam bonecas “brancas”
com os olhos claros, com as quais as crianças negras brincavam muito. Por este motivo,
resolvi levar uma boneca negra para o grupo de crianças. Queria observar como elas
iriam reagir quando descobrissem a boneca, então optei por colocá-la na prateleira,
junto às outras bonecas, e não falar ao grupo que foi eu quem trouxe. Deixei livre para
63
ver se iam brincar, passadas duas observações eu ainda não havia presenciado nenhum
interesse das crianças pela boneca negra, então:
Camila pega uma boneca e põe no carrinho para brincar, depois volta, tira
esta boneca do carrinho e vai escolher outra, olha a boneca negra passa a
mão nela, mas pega a boneca loira que estava ao lado. Graziela brinca com
outra boneca loira e Lana tenta entrar na brincadeira, então Graziela mostra
a ela a boneca negra. Lana pega-a e coloca no chão, enche uma mochila com
brinquedos, pega a boneca no colo e começa a brincar. Lana diz a Graziela:
“Eu vou levar minha filha no médico.” Graziela responde: “A minha vai
almoçar.” Tento entrar na brincadeira, e peço a filha dela percebo que ela
vem até mim, mas fica constrangida, então me afasto e finjo que não estou
mais prestando atenção. As duas continuam a brincadeira juntas fazem
comida e dão para suas filhas. Graziela briga com a boneca loira: “Come!
Come! Se não você não vai ter aniversário! Vai come já!” (Diário de Campo
24/04/2009).
No registro anterior, é possível perceber que Camila brinca com a boneca loira,
mas a boneca negra lhe chama atenção. Graziela (afro-descendente), também brinca
com uma boneca loira, mas ao escolher uma boneca para a colega, sugere a boneca
negra. E Lana ao perceber a boneca negra, logo opta em brincar com ela. Dessa forma,
retorno a afirmar que se as Instituições de Educação Infantil proporcionarem no
cotidiano das crianças, elementos que propiciem o autoconceito das crianças afrodescendentes, haverá a socialização e a interação dos grupos de crianças.
A presença dessa boneca negra, na sala, pode contribuir muito para o autoconceito
das crianças negras, assim como, para quebrar os estigmas e preconceitos existentes em
relação ao negro, ou seja, para quebrar o silêncio existente em torno da questão racial. É
preciso que os(as) educadores(as) enxerguem os corpos negros nas creches, eles não
podem ser ignorados, invisibilizados. É preciso observar seu físico, seu jeito de ser, de
pensar, é fundamental realmente enxergar as crianças e famílias negras que frequentam
as Instituições Educacionais para que seja possível repensar as práticas educacionais e
assim não excluí-las, e sim, mostrá-las. (BOTEGA, 2006).
Neste sentido, vale ressaltar que neste grupo, as relações estabelecidas entre as
crianças afro-descendentes e as crianças de outras etnias, não estão pautadas em
“xingamentos” e estereotipação das crianças afro-descendentes. Mas em muitos
momentos seguem uma lógica dos “não ditos” o que, da mesma forma, acaba sendo
considerado como uma prática discriminatória, sendo que há uma relação de poder
existente entre algumas crianças “brancas”sobre uma das crianças negras. Dessa forma,
é possível apontar para a intervenção do educador, como principal alternativa para
64
desconstruir falsos ideais de supremacia branca, em detrimento da inferioridade da
cultura negra.
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O debate relacionado à diversidade étnico-racial e as crianças ainda está longe de
ter um fim, pois ainda existem muitas questões a serem pensadas sobre este tema.
Tendo em vista que a finalidade principal desta pesquisa foi analisar como as
professoras e as crianças da Educação Infantil interagem com a diversidade étnico-racial
em seus cotidianos, foi possível ter uma base para algumas discussões, vale ressaltar
que os dados obtidos através das observações servem para problematizar a realidade das
crianças afro-descendentes nas Instituições de Educação Infantil, visto que a pesquisa
foi realizada apenas sob a realidade de um grupo de crianças de uma Instituição da
Grande Florianópolis e não pode ser visto como uma verdade pronta, mas deve servir
para que os(as) educadores(as) repensem suas práticas, direcionando-as
para as
questões relacionadas à diversidade racial.
Nesta investigação foi possível observar que os(as) educadores(as), em muitas
ocasiões, não dão à devida atenção às questões relacionadas à diversidade étnico-racial.
Será que isso ocorre devido ao seu desconhecimento perante o assunto? Tornou-se
visível que as crianças afro-descendentes da Educação Infantil reconhecem as
diferenças e seu pertencimento étnico racial e falam sobre ele em suas brincadeiras,
desenhos e conversas. Dessa forma é necessário que o(a) educador(a) esteja atento às
narrativas das crianças durante suas brincadeiras.
Outra questão evidenciada na pesquisa é que as crianças pequenas se expressam
também através das brincadeiras que fazem parte de suas culturas infantis, e, por meio
destas, evidenciam como significam a realidade que as cercam. Quando o educador não
interpreta as diferenças como algo significativo a ser problematizado com o grupo, as
crianças afro-descendentes ficam em um campo de invisibilidade, pois não têm suas
especificidades distinguidas, o que resulta no silenciamento das questões raciais e na
perpetuação da discriminação. Este silenciamento ocorre, uma vez que muitos,
educadores(as), têm uma certa resistência em discutir as diferenças com as crianças.
Tornou-se evidente, no decorrer da pesquisa, que as crianças afro-descendentes do
grupo observado, criaram entre si um vínculo afetivo que as permitem brincar com uma
65
cumplicidade maior do que quando relacionam-se com as crianças de outras etnias.
Durante as brincadeiras, fazem ensaios acerca de sua sexualidade e preferem brincar em
lugares afastados dos olhos e ouvidos dos adultos. No entanto, há neste grupo, uma
outra criança afro-descendente que em muitos momentos está distante do grupo, o que
me trouxe questionamentos se este distanciamento seria uma preferência sua ou uma
segregação do grupo, devido ao seu pertencimento étnico racial. É importante que desde
a Educação Infantil a diversidade racial seja problematizada com as crianças, pois assim
as crianças afro-descendentes terão a oportunidade de reconhecer sua negritude em um
espaço educativo que também humaniza, assim como as crianças de outras etnias terão a
possibilidade de conhecer a cultura afro-descente e desconstruir estigmas a respeito dos
cidadãos negros.
No grupo de crianças observado, há interação entre as crianças afro-descendentes
e as crianças de outras etnias, porém, as crianças afro-descendentes, relacionam-se com
mais frequência com seus pares do que com as crianças de outras etnias. Constatei que
entre as crianças não há uma discriminação visível com relação às crianças afrodescendentes, entretanto, há a prática oculta, ou seja, não se fala sobre as questões
raciais, mas, muitas vezes, revelam-se atitudes discriminatórias durante as brincadeiras.
Dessa forma, o caminho percorrido na elaboração desta pesquisa me permite
concluir que as relações estabelecidas no cotidiano da Educação Infantil a respeito das
diferenças étnicas são pautadas no silenciamento das educadoras, frente à questão racial,
o que resulta na invisibilidade das crianças afro-descendentes. As crianças revelam que
reconhecem as diferenças e estabelecem um vínculo entre seus pares que as permitem
estabelecer uma relação de cumplicidade. Já, as crianças de outras etnias, não costumam
estigmatizar através de estereótipos as crianças afro-descendentes - pelo menos não
ficou visível nos momentos de observações - mas de certa maneira, evidenciam durante
as brincadeiras uma relação de conflitos na disputa por brinquedos à qual tentam se
sobressair em relação a uma das crianças negras. Será este o início de uma relação
apreendida socialmente, onde o padrão branco é “superior”?
Tendo em vista que a diversidade étnico-racial estará sempre presente nas
Instituições Educacionais, visto que se tratam de características constitutivas dos seres
humanos,
quanto mais este tema for discutido nas Universidades, nos cursos de
formação de educadores(as), maior será a chance desses futuros educadores(as)
repensarem suas posturas e abordarem as diferenças de maneira a desconstruir os “préconceitos”. Nesse sentido, se a diversidade racial for trabalhada desde a Educação
66
Infantil e os sujeitos vivenciarem as diferenças, isso contribuirá para a diminuição da
discriminação na sociedade. Nesse sentido, vale lembrar que o problema do preconceito
não está somente dentro das escolas, é um problema social que atinge todas as classes,
no entanto, é importante levantar o debate acerca destas questões para que os cidadãos
comecem a rever suas posturas perante seus “pré-conceitos” e repensem a situação dos
cidadãos afro-descendentes em nossa sociedade.
Ao chegar à etapa de finalização desta pesquisa é possível dizer que ela me
suscitou muito mais questionamentos do que eu tinha ao iniciá-la. Promovendo novos
conhecimentos, e assim novas dúvidas que requerem novas pesquisas. O tema da
diversidade étnico-racial ainda tem muitas questões a serem debatidas até que os
cidadãos afro-descendentes sejam de fato reconhecidos e respeitados. Para tanto, é
necessário que haja pesquisas que discutam este tema e dêem visibilidades aos afrodescendentes. Nesse sentido, posso indicar que seja de grande valia uma pesquisa que
tenha como foco os(as) educadores(as), ou seja, que aborde o que as educadoras pensam
sobre a diversidade étnico-racial. Acredito também ser interessante uma pesquisa que
tivesse como estratégia a pesquisa-ação, onde o(a) pesquisador(a) trabalharia com
elementos relacionados à diversidade racial com as crianças (histórias, bonecas,
fantoches, filmes). Sendo que isso traria à tona o que as crianças pensam sobre as
diferenças, e permitiria ao pesquisador, trazer suas vozes para dentro da pesquisa. Nilma
Lino Gomes (2005), ressalta que a maioria da população que frequenta a Educação de
Jovens e Adultos (E.J.A.) atualmente são negros. Então cabe-me questionar: Por que
isso ocorre? Será devido à segregação que existe em relação às crianças afrodescendentes no Nível Fundamental? Será que estas crianças evadem da escola e
retornam, posteriormente para a E.J.A.? Está é uma outra possibilidade de investigação
a ser feita com relação à diversidade étnico racial.
Posso encerrar dizendo que atualmente a quantidade de pessoas que discriminam a
população negra ainda é muito grande. Mas discriminar por quê? Pela cor da pele? Que
sentido há, em desqualificar alguém por que sua pele é mais escura? O preconceito traz
inúmeros malefícios para a população afro-descendente, malefícios que só podem ser
sentidos por quem é negro. Silas Corrêa Leite, em sua poesia, “Vista a minha pele”
retrata o sentimento dos cidadãos negros em relação ao preconceito.
Vista a minha pele
(Silas Corrêa Leite)
67
Vista a minha pele
Você conseguiria?
Seja negro só por um dia
Seja preto por mim
Somando todas as minhas cores assim
Vista a minha pele
Sinta a minha cor
Seja você quem for
Capture a minha dor
Lá dentro de mim
E procure me compreender melhor assim
Vista a minha pele
Eu sou igual a você
Ser humano porque
Corpo, Mente, Coração
Então, por que racismo e discriminação?
Vista a minha pele
Sou vermelho por dentro
E negro sempre cem por cento
Afro-descendente
Além de para sempre
Inteiramente ser humano e sobretudo gente
Vista a minha pele
Vista-se de mim […]
68
11. REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Kátia Adair. Creche e Pré-Escola é Lugar de Criança? In: MARTINS
FILHO, Altino José (org). Criança pede respeito: Temas em Educação Infantil.
Mediação: Porto Alegre, 2005.
ANDRÉ, Marli Dalmazo Afonso de. Etnografia da Prática Escolar. Campinas, SP:
Papirus, 1995.
BARBOSA, Maria Carmem S. Por amor e por força: rotinas na educação infantil.
Porto Alegre: Artmed, 2006.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. France: 70 LTDA, 1977
BORBA, Angela Meyer . As culturas da infância nos espaços-tempos do brincar:
estratégias de participação e construção da ordem social em um grupo de crianças de 46 anos. 2006. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT07-2229--Int.pdf>
Acesso em: 19/06/2009
BOTEGA, Gisely Pereira. Violência e escola: focalizando as relações raciais produzidas
entre as crianças. In: SOUSA, Ana Maria B.; VIEIRA, Alexandre; Lima Patrícia
Moraes. (Orgs.) Ética e gestão do cuidado: a infância em contextos de violência.
Florianópolis: 2006
BOTEGA, Gisely Pereira. Relações raciais nos contextos educativos: Implicações na
Constituição do Autoconceito das Crianças Negras Moradoras da Comunidade de Santa
Cruz do Município de Paulo Lopes/SC. Florianópolis, 2006.
BRASIL. Lei nº. 10639 de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e
Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm> Acesso em:
25/08/2008.
BROUGÉRE, Gilles. Que possibilidade tem a brincadeira. In: BROUGÉRE, Gilles
Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 1995.
BROUGÉRE, Gilles. Barbie ou o desejo de ser adulto. In: BROUGÉRE, Gilles.
Brinquedos e companhia. São Paulo: Cortez, 2004.
CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e
discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2003.
CERISARA, Ana Beatriz. Educar e cuidar: por onde anda a educação infantil?
Florianópolis, Perspectiva, v.17, n. especial, p.11-21.1999.
69
CERISARA, Ana Beatriz; BATISTA, Rosa; OLIVEIRA Alessandra M. R de;
RIVERO, Andréa S. Partilhando olhares sobre as crianças pequenas: reflexões sobre
o estágio na educação infantil. Florianópolis.2004.
COUTINHO, Ângela Maria Scalabrin. Infância e diversidade: as culturas infantis.
2001
Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/24/P0790177045589..doc> Acesso
em:31/05/2009.
CRUZ, Otávio N. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, Maria
Cecília de Souza.(Orgs.) Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Petrópolis. RJ:
Vozes, 1994.
DIAS, Lucimar Rosa. Quantos passos já foram dados? A questão de raça nas leis
educacionais – da LDB de 1961 à Lei 10.639 de 2003. In: ROMÃO, Jeruse. (Org)
História da Educação do Negro e outras histórias. Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília. 2005.
DOMINGUES, Petrônio. Ações afirmativas para negros no Brasil: o início de uma
reparação histórica. Revista Brasileira de Educação, n. 29. Maio /Jun. /Jul. /Ago. 2005.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n29/n29a13.pdf> Acesso em: 25 ago.
2008.
DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos
históricos. Tempo, 2007, vol.12, no.23, p.100-122. ISSN 1413-7704.
FINCO, Daniela . A educação dos corpos femininos e do masculinos na Educação
Infantil. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart. (Org.). O coletivo infantil em creches e préescolas: falares e saberes. São Paulo: Cortez, 2007.
FINCO, Daniela. Educação infantil, gênero e brincadeiras: Das naturalidades às
transgressões. 2004. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/28/textos/gt07/gt07945int.rtf> Acesso em:
07/06/2009
FELIPE, Jane. Educação para a sexualidade: Uma proposta de formação docente. In:
Educação para igualdade de gênero. Salto para o futuro. TV escola. Nov.2008.
Disponível em:
<http://www.tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/163222Edu_igualdade_gen.pdf> Acesso
em: 07/06/2009
FERREIRA, Manuela. Os estranhos <<sabores>> da perplexidade numa etnografia com
crianças em Jardim de Infância. In: CARIA, Telmo H.. Experiência etnográfica em
ciências sociais. 832. ed. Porto: Edições Afrontamento, 2002.
FERREIRA, Manuela M. A gente gosta é de brincar com meninos. Porto, Portugual,
Ed. Afrontamento, 2004.
FREIRE, Ida Mara. Brincando de esconde-esconde: A construção da identidade da
criança afrodescendente no contexto da educação infantil. In: LIMA, Ivan Costa;
70
ROMÃO, Jeruse; SILVEIRA, Sônia M. (Orgs.). Os negros, os conteúdos escolares e a
diversidade cultural II. Florianópolis, n. 4, NEN,1998.
GANDINI, Lella e GOLDHABER, Jeanne. Duas reflexões sobre a documentação. IN:
EDWARDS, Carolyn e GANDINI, Lella. Bambini: a abordagem italiana à educação
infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5.ed. São Paulo: Atlas,
2007.
GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo:
reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Revista Brasileira de Educação,
n. 21 set./out./nov. 2002. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE21/RBDE21_05_NILMA_LINO_GOM
ES.pdf> Acesso em: 25/08/2008.
GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação, n.
23. Maio/Jun./Jul./Ago. 2003. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a05.pdf > Acesso em: 25/08/2008.
GOMES, Nilma Lino. Educação de jovens e adultos e questão racial: algumas reflexões
iniciais. In: SOARES, Leôncio; GIOVANETTI, Maria Amélia Gomes de Castro;
GOMES, Nilma Lino. (Orgs.) Diálogos na educação de jovens e adultos. 1 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005.
GONÇALVES, Vera. Lucia. S. Tia, qual é meu desempenho?. 1. ed. Cuiabá:
EdUFMT, 2007.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Depois da democracia racial. Tempo soc.
[online]. 2006, vol. 18, no. 2, pp. 269-287. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ts/v18n2/a14v18n2.pdf> Acesso em: 25/08/2008
KRAMER, Sonia. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças.
Cad. Pesquisa, n.116, Jul. 2002.
KUHLMANN, Moysés Jr. A educação infantil no século XX. In: STEPHANOU,
Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara (orgs). Histórias e memórias da educação no
Brasil, vol.III: século XX. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
LEITE, Silas Corrêa. Vista a minha pele. 2008. Disponível
em:<http://poetasilas.blogspot.com/2008/10/vista-minha-pele-poema.html> Acesso
em:19/06/2009
LIMA, Ivan Costa; ROMÃO, Jeruse; SILVEIRA, Sônia M. (Orgs.). O que você pode
ler sobre o negro – Guia de referências bibliográficas. Florianópolis, NEN,1998
MACHADO, Aldonei. Pensando a história e a prática pedagógica: As diferenças
culturais. Florianópolis: UDESC/CEAD, 2002. P. 17-38.
71
MARTINS FILHO, Altino José. Crianças e adultos na creche: marcas de uma relação.
ANPED, 2006. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT07-2274--Int.pdf>
Acesso em: 08/11/2008
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, técnica e arte: O desafio da pesquisa social.
In: MINAYO, Maria Cecília de Souza. (Orgs.) Pesquisa social: Teoria, método e
criatividade. Petrópolis. RJ: Vozes, 1994.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988.
MUNANGA, Kabengele. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Estud.
av., jan./abr. 2004, vol.18, no.50, p.51-66. ISSN 0103-4014.
MUNANGA, Kabengele. (Org.) Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005.
OLIVEIRA, Alessandra M. R. de. Entender o Outro(...) Exige mais, quando o Outro é
uma criança. Reflexões em torno da Alteridade da Infância no Contexto da Educação
Infantil. In: SARMENTO, M. J. e CERISARA, A. B. Crianças e Miúdos: perspectivas
sociopedagógicas da Infância e Educação. Portugal: Edições ASA, 2004.
OLTRAMARI, Leandro Castro; KAWAHALA, Edeleu. Discriminação, educação e
identidade. In: LIMA, Ivan Costa; ROMÃO, Jeruse; SILVEIRA, Sônia M. (Orgs.). Os
negros, os conteúdos escolares e a diversidade cultural II. Florianópolis, n. 4,
NEN,1998.
RIBEIRO, Cláudia. Gênero e sexualidade no cuidar e educar. IN: Revista Pátio (on line)
Caminhos da inclusão. Ano VI n.16. Mar. à Jun. 2008. Disponível em:
<http://www.revistapatio.com.br/sumario_conteudo.aspx?id=201>Acesso em:
07/06/2009
ROCHA, Eloísa Alcíres Candal. Diretrizes educacionais - pedagógicas para a
educação infantil. Tubarão, 2008.
ROMÃO, Jeruse. Por uma educação que promova a auto-estima da criança negra.
2. ed. Brasília, DF: 2001. Ministerio da Justiça 28 p.
ROSEMBERG, Fúlvia. Raça e desigualdade educacional no Brasil. In: AQUINO, Júlio
Groppa. Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São
Paulo: Summus, 1998. p.73-91.
SANTOS, Ângela Maria dos. Vozes e silêncios do cotidiano escolar. Cuiabá:
edUFMT, 2003.
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do "ser negro": um percurso das idéias
que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: EDUC: Pallas, 2002.
72
SAWAIA Bader Burhan. Fome de felicidade e liberdade. Educarede. 2003.
Disponível
em:<
http://www.educarede.org.br/educa/index.cfm?pg=textoapoio.ds_home&id_comunidad
e=44> Acesso em: 30/11/2008
SAYÃO, Débora. T. Pequenos Homens, Pequenas Mulheres? Meninos, Meninas?
Algumas questões para pensar as relações entre gênero e infância. Pro-posições,
Campinas/SP, v. 14, n. 3, p. 67-88, 2003. Disponível em:
<http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/edicoes/texto247.html> Acesso
em:11/06/2009
SILVA, Ana Célia. A representação social do negro no livro didático: o que mudou?
2002.
Disponível
em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/25/excedentes25/anaceliadasilvat21.rtf> Acesso em:
26/10/2008.
SILVA, Ana Célia. A desconstrução da discriminação no livro didático. In:
MUNANGA, Kabengele.(Org.) Superando o Racismo na escola. 2. ed. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005
SILVA, Ana Maria. Auto Estima e Educação. In: LIMA, Ivan Costa; ROMÃO, Jeruse;
SILVEIRA, Sônia M. (Orgs.). Os negros, os conteúdos escolares e a diversidade
cultural II. Florianópolis, n. 4, NEN,1998.
SILVA, Delma. Afrodescendência e educação, cultura e identidade e as perspectivas do
aluno afro descendente com a escola pública. In: LIMA, Ivan Costa; ROMÃO, Jeruse;
SILVEIRA, Sônia M. (Orgs.). Os negros e a escola brasileira. Florianópolis, n. 6,
NEN,1999
SILVA, Paulo V.B. Personagens negros e brancos em livros didáticos de Língua
Portuguesa. 2006
Disponível em <http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT21-1808-Int.pdf> Acesso em: 26/10/2008.
SOUZA, Maria Elena Viana. Construção da identidade dos alunos negros e afro descendentes: alguns aspectos. 2005. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/28/textos/gt21/gt211276int.rtf > Acesso em
15/01/2008.
SOUZA, Shirley Pimentel. Anjos Negros. Ibotirama. Disponível em:
<http://www.mundojovem.com.br/poema-negro-3.php> Acesso em: 19/06/2009
73
12. APÊNDICES
“DESENHEI MINHA MÃE DE ROSA, SÓ QUE ELA É PRETA, SÓ
QUE PRETO NÃO PODE”: Algumas discussões sobre a diversidade
étnico-racial na Educação Infantil.
Gláucia de Souza Corrêa10
Regina Ingrid Bragagnolo11
Resumo
A diversidade étnico-racial é um assunto que precisa ser constantemente problematizado
nas Instituições de Educação Infantil, pois, se as reflexões sobre as diferenças forem
iniciadas, logo que as crianças ingressarem neste espaço de interação, tornar-se-á mais
fácil desconstruir o mito da supremacia racial branca na sociedade. Neste sentido,
através deste estudo, busquei investigar: Quais as relações étnico-raciais estabelecidas
entre educadores e crianças no cotidiano de um grupo da Educação Infantil? Esta
pesquisa, teve como objetivo principal, analisar como as crianças e professoras da
Educação Infantil interagem com a diversidade étnico-racial. Com a finalidade de
alcançar este propósito, realizei uma pesquisa qualitativa, por meio de estudos
etnográficos, que me possibilitaram uma aproximação significativa com os sujeitos
pesquisados. Estive presente no campo, dez dias, por cerca de três horas e trinta minutos
diários. Durante estas observações, fiz uso do diário de campo, para coletar os dados, e
foi possível constatar que, em muitos momentos, as crianças afro-descendentes são
invisibilizadas no espaço educacional e têm uma cumplicidade maior quando se
relacionam com seus pares, do que quando interagem com crianças de outras etnias.
Palavras-chave: Diversidade étnico-racial. Educação Infantil. Crianças.
“I DREW MY MOTHER IN PINK, BUT SHE IS BLACK- SO BLACK CANNOT
BE.” Some discussions about racial ethnic in the upbringing
Abstract
The racial ethnic diversity is a subject that constantly needs to be discussed in the
upbringing education institutions, since if the reflections on the differences are initiated
as soon as children approach to this sort of interaction, this will become easier to
deconstruct the myth of the white race supremacy in society. Accordingly, through this
study, I sought: What are the ethnic racial relations between teachers and children in
their daily school life in an upbringing education group? Since this research had the
main goal of analyzing how children and teachers interact with themselves, having in
mind the racial ethnic diversity. In order to achieve this purpose, the qualitative research
was conducted through an ethnographic study. So, I had to be closer to the subject
studied in the field for ten days, that is to say, about, there hours and thirty minutes
daily, so as to collect data. As a result, it was possibly noticed that most of the time, the
10
11
Acadêmica da 8ª fase de pedagogia, do Centro Universitário Municipal de São José.
Professora orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso, que resultou na elaboração deste artigo.
74
Afro descendants children are blocked in the school environment when they approach to
their peers more than they have to be in touch with children from other races.
Keywords: racial ethnic diversity; upbringing; children.
Introdução
Racismo, preconceito e discriminação, questões que afligem constantemente a
vida dos cidadãos afro-descendentes no Brasil. O “pré-conceito” racial está muito
presente na sociedade brasileira, trata-se de um ranço que foi construído historicamente
e que está tão arraigado na sociedade que é uma tarefa árdua desconstruí-lo.
Mas, por que existe preconceito? O que faz com que uma pessoa se sinta superior
ou inferior à outra pela diferença existente na cor da pele? Como desmistificar esse
“mito”da supremacia racial branca? Como trabalhar a diversidade racial com as
crianças? Como a criança negra constrói sua imagem e sua auto-estima desde a
Educação Infantil, se em tudo o que a cerca há um padrão de beleza branco?
Diante de questões como essas, posso dizer, que acredito, que o preconceito e a
discriminação são aprendidos desde que os seres humanos estabelecem suas primeiras
interações sociais. Sendo a Instituição de Educação Infantil um espaço destinado à
interação e humanização das crianças pequenas, em muitos momentos, pode ser um
espaço onde as relações de discriminação e preconceito talvez apareçam. Entretanto,
como desconstruir esses estigmas com as crianças?
Perante a questões relacionadas à diversidade racial em minha prática como
educadora, paralelamente a um curso oferecido pela Secretaria Municipal de Educação
de São José, no ano de 2008, intitulado: “Programa de Diversidade Étnico Racial”,
lancei-me a pesquisar sobre a diversidade étnico-racial na Educação Infantil.
A finalidade principal desta pesquisa foi analisar como as professoras e as crianças
da Educação Infantil interagem com a diversidade étnico-racial em seus cotidianos. Os
objetivos traçados buscavam: Identificar como os educadores mediam as situações
cotidianas que envolvem a diversidade étnico-racial; verificar como o grupo de crianças
afro-descendentes da Educação Infantil estabelece relações com seus pares; e,
caracterizar como as crianças afro-descendentes estabelecem relações com crianças de
outras etnias. Este artigo, busca sintetizar o percurso de minha pesquisa, bem como,
propõe um debate sobre as questões relacionadas à diversidade étnico-racial na infância
com base nos registros feitos no diário de campo, atrelados ao referencial teórico.
Educação e a diversidade étnico-racial
Há muito tempo que a história dos negros vem sendo omitida nas Instituições
Educacionais. A história do Brasil contada durante toda a Educação Básica aborda a
chegada dos portugueses, o Brasil Império, Independência do Brasil, Brasil República,
tudo isso mostrando as benevolências que os portugueses trouxeram para cá. Mas, e os
negros? Onde ficam nessa história? Os negros eram “apenas” os escravos, não cabem
nessa história de elites, que o Brasil aprendeu nas escolas, onde, durante muito tempo
até os dias atuais, estes foram retratados como escravos. Munanga (2005, p.16) afirma
que, “Todos, ou pelo menos os educadores conscientes, sabem que a história da
população negra quando é contada no livro didático é apresentada apenas do ponto de
vista do “Outro” e seguindo uma ótica humilhante e pouco humana”.
Age-se, muitas vezes, como se os negros não possuíssem cultura, história, como se
fossem apenas os escravos que aqui foram explorados, fazendo assim, com que a
75
sociedade tenha um sentimento de “piedade” dos mesmos. Essa questão presente na
nossa história dita, revela a invisibilidade da cultura e dos cidadãos negros atualmente.
Hoje, há a necessidade de as escolas separarem, na história, o enfoque do
escravismo remetendo-se à cultura do negro.
Nos registros da história do Brasil, os afro-descendentes ainda ocupam a
periferia, o enfoque é centrado no navio negreiro, omitindo a nossa
ancestralidade, pois se a mesma fosse enfocada com justiça, nossas crianças
e jovens haveriam de dissociar a nossa história da história dos vencidos,
haveriam de perceber que a prática do escravismo se deu no Brasil e em
outros países como a Grécia e a Suécia, onde a escravidão foi branca. O
escravismo é um fato na história econômica da humanidade. E essa
informação ajudaria a desvelar os mitos acerca desse sistema produtivo
como a compreensão de senso comum de que só os negros foram
escravizados. (SILVA, 1999, p.101).
A ausência das discussões sobre a cultura e história dos negros na Escola faz com
que a população negra não se sinta legitimada neste espaço, não o reconheça como
sendo seu, e faz com que cresça o preconceito das outras crianças diante das crianças
negras. Mas como evitar que aconteça o preconceito e a discriminação na Escola? Como
surgiu o preconceito contra os negros? Poucos educadores trabalham sob a ótica de
desconstruir o que está posto pela história e pela sociedade, valorizando as diferenças.
Neste sentido, cabe-me perguntar: Como a criança negra da Educação Infantil irá
se identificar, e reconhecer, se a maioria dos brinquedos comercializados transmitem
um ideal de beleza embranquecido?
É fundamental discutir a identidade de cada um, partindo de suas vivências na
Instituição e, assim, evidenciar a cultura e a descendência dos educandos, aliando-a à
história brasileira. As Instituições de Educação devem ter como foco primordial,
compreender os alunos como seres singulares que pertencem a culturas coletivas, tendo
em vista que a individualidade faz parte de uma coletividade, de um grupo cultural,
racial, étnico, econômico e regional. Sendo assim, é fundamental estimular a criança ao
autoconhecimento, motivando-a a conhecer e reconhecer sua identidade. (ROMÃO,
2001).
Oltramari e Kawahala (1998), ressaltam que o homem constrói sua identidade em
contato com o mundo, a criança quando nasce, já faz parte de uma etnia que tem suas
próprias características físicas, de uma determinada classe social, uma família, um
bairro e uma cidade. E o reconhecimento de si se dará através do reconhecimento mútuo
com os indivíduos do seu grupo social, com sua história, tradição e cultura. E a partir
disso, irá estabelecer relações que poderão possibilitar ou não que o indivíduo se
identifique com esse grupo social.
Martins Filho (2006), chama-nos atenção para a importância dos processos de
socialização existentes na Creche, ressaltando a necessidade de buscar uma linguagem
comum às crianças, estabelecendo laços de confianças entre o adulto e a criança. Esta
relação favorece a construção da cultura de pares, sendo que a presença do adulto é de
fundamental importância, principalmente, se este procura potencializar as manifestações
culturais dessas crianças como algo a ser considerado e ampliado.
Parafraseando Rocha (2008), é possível afirmar que uma pedagogia da infância
precisa ter como foco principal, os processos com os quais as crianças irão constituir
seus conhecimentos, considerando-as como seres humanos concretos e reais, que
perpassam por diferentes interações sociais e culturais, que também constituem suas
infâncias.
76
Muitas crianças passam a maior parte de suas infâncias dentro das Creches, sendo
que chegam a ficar nesses espaços doze horas diárias. Dessa forma, os professores de
Educação Infantil devem proporcionar espaços e tempos para as brincadeiras, e
considerá-las como um dos eixos principais do trabalho pedagógico. Através do brincar,
a criança cria e recria possibilidades de conhecimentos por meio das relações que
estabelece com a sociedade e com seus pares. Agostinho (2005), afirma que:
[…] as crianças estão dizendo a todo tempo que querem um lugar onde
possam brincar, sozinhas, acompanhadas de outras crianças ou dos adultos.
Por meio das suas cem linguagens nos disseram cem vezes cem que querem
um espaço que lhes garanta o direito à brincadeira. As crianças no seu
brincar vão indicando que gostam muito de estar entre seus pares, em
pequenos grupos e em espaços circunscritos […] (AGOSTINHO, 2005,
p.66-67).
Através dessas brincadeiras, as crianças revelam suas culturas e seus modos de
interagir com a sociedade, manifestando assim, suas identidades sociais e indicando ao
educador o que deve contemplar em seu trabalho pedagógico.
Desta maneira, com o intuito de estabelecer no ambiente educacional, relações
que sejam contra as ideologias que reforçam a discriminação racial, é preciso
problematizar novas formas de relações entre crianças negras, brancas e afrodescendentes, romper com velhos discursos eurocêntricos, promover situações de
diálogo e de questionamentos para que todos possam ter o conhecimento de si no
encontro com o diferente, com a diversidade, reafirmando a idéia de que todos somos
diferentes em nossas particularidades. (SOUZA, 2005).
Procedimentos Metodológicos
Este estudo trata-se, de uma pesquisa de caráter qualitativa, em que o fenômeno
é impossível de ser medido, é de cunho descritivo, onde os fenômenos observados
foram registrados. Segundo Minayo (1994, p. 21), a pesquisa qualitativa “[…] responde
a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de
realidade que não pode ser quantificado”.
Uma das maneiras de saber como as crianças se relacionam e pensam é
observando suas brincadeiras, suas interações com seus pares, pois por meio dessas, que
elas revelam grande parte dos conceitos que já constituíram sobre si mesmas, sobre a
sociedade, sobre as pessoas, enfim, sobre o ambiente que as cerca cotidianamente.
Acredito que a maneira mais viável para executar este trabalho é por meio das
aproximações à perspectiva etnográfica.
A perspectiva etnográfica é comumente utilizada nas pesquisas onde as crianças
são o foco, e requer observação-participante, ou seja, a interação direta com o sujeito
pesquisado. Sendo assim, foi por meio de dez observações-participantes, de cerca de
três horas e trinta minutos cada uma, que busquei realizar minha investigação acerca da
diversidade étnico-racial na Educação Infantil. Assim sendo, para a coleta de dados foi
utilizado como fonte de registros, o diário de campo, que se deu a partir de um
protocolo de observações, onde foram anotadas todas as observações feitas.
Os participantes envolvidos nesta pesquisa são compostos por um grupo de vinte
crianças, com cerca de quatro a cinco anos. É organizado por uma professora e uma
professora auxiliar de uma Instituição de Educação Infantil, localizada na Grande
Florianópolis. Os integrantes do processo foram escolhidos de acordo com a
disponibilidade dos(as) educadores(as) em contribuir com a pesquisa.
77
Descrição e Análise dos dados
Tendo como base as leituras feitas para a elaboração da pesquisa, busco aqui,
produzir um debate de alguns episódios registrados no diário de campo, durante as
observações que servem de dados para esta pesquisa.
A invisibilidade carrega consigo a discriminação, e quando as crianças negras não
têm suas especificidades reconhecidas, ou seja, são tratadas como se as diferenças não
existissem, elas ficam em um campo de invisibilidade, pois elas percebem as diferenças.
Diferenças essas que, muitas vezes, são silenciadas pelos educadores por não saberem
como abordá-las.
Parece-me, que quando este silenciamento é constante, torna-se mais difícil para
as crianças encontrarem elementos para se reconhecerem no espaço da Educação
Infantil, visto que, se a criança não encontra elementos vinculados ao seu pertencimento
étnico-racial para se identificar, ela acaba ficando na invisibilidade. Posso ressaltar que
a ausência de reflexão dos(as) educadores(as) sobre as questões raciais contribuem para
o aumento da invisibilidade nas Instituições de Educação Infantil, como pode ser
visualizado em um episódio que presenciei durante as observações:
Hoje, as professoras iniciaram à tarde, contando uma história ao grupo de
crianças. Era a história “Piteco e as cores”. Falava de um urso que fazia
várias pinturas em telas. Durante a história, mostravam várias coisas
coloridas que Piteco havia feito: borboleta, sol, arco-íris dentre outras. Após
a história, as professoras pediram que as crianças fizessem desenhos
coloridos como os de Piteco. Então, uma das professoras falou: “ Mas que
cor que não é para usar?” As crianças responderam em coro: “Preeto.”
“Isso mesmo” falou a professora. Comecei a circular nas mesas e observar
os desenhos das crianças, nenhuma delas pegou a cor preta para desenhar e
havia lápis preto em todas as mesas. Pareceu-me que este é um combinado
antigo, pois as crianças já sabiam que não deveriam usar esta cor. (Diário de
Campo 15/04/2009).
Nesse episódio, fica claro que as crianças não “deveriam” optar pela cor preta para
colorirem seus desenhos, e que elas já sabiam disso, mesmo antes de a professora falar.
Nesse sentido, cabe-me questionar: Por que é errado usar a cor preta?
É importante ressaltar que a cor preta não está diretamente relacionada com a
diversidade étnico-racial, mas de que maneira as crianças afro-descendentes irão
interpretar essas atitudes da educadora? Durante o andamento da atividade citada,
ocorreu um fato que me oportunizou refletir sobre isso:
Henri12 (afro-descendente) fez um desenho e me chamou para ver, disse:
“Oh é o meu pai!” Falei: “Ah, que bonito o seu pai, que cor é essa que você
desenhou ele?” Ele respondeu: “ Eu desenhei azul, só que o meu pai é
preto, mas ele gosta de roupa azul.” Mariana (afro-descendente) que estava
sentada ao seu lado falou: “Desenhei minha mãe de rosa, só que ela é preta
(continuou em tom de cochicho) só que preto não pode. Agora eu vou te
desenhar, que cor tu qué, por que o branco não aparece?” Falei: “E que
cor eu sou Mariana? Você acha que eu sou branca?” Ela responde: “É!”
Então peguei o lápis branco e o lápis amarelo escuro coloquei perto do meu
braço e perguntei: “ Qual você acha que é mais parecido com a minha
pele?” Ela respondeu: “ É esse.” Apontando para o amarelo. Então disse a
12
Os nomes que utilizei para me referir às crianças são todos fictícios.
78
ela: “Quero que você me desenhe com esse então.” Sendo assim, Mariana
me desenhou com o lápis amarelo escuro. (Diário de Campo 15/04/2009).
Durante essa atividade, ficou evidente que Henri e Mariana gostariam de desenhar
seu pai e sua mãe, respectivamente, com o lápis de cor preta, porém, este não era
permitido naquele momento, então eles o fizeram de outra cor. Através desse episódio,
foi possível constatar que as crianças da Educação Infantil percebem sim, as diferenças
raciais, e se reconhecem como pertencentes à cultura afro-descendente. Tanto que
Mariana me reconheceu como diferente no momento em que quis me desenhar com o
lápis branco, parece-me que a menina já “elaborou” uma construção social de que as
pessoas de outras etnias são as pessoas ditas brancas, pois me disse que o lápis branco
não apareceria, e, dessa forma, julgava-me como uma pessoa branca, porém, após a
mediação que fiz com o lápis amarelo, ela percebeu que, na verdade, eu era mais
parecida com o amarelo do que com o branco.
Em situações como essas, as crianças interiorizam e relacionam a cor preta à sua
negritude, à negritude de seus pais. Atitudes como essas, da professora, acabam
mediando a lógica construída socialmente de que o preto, o escuro, estão sempre
relacionados ao mal, ao feio. O que muitas vezes gera nas crianças uma repulsa à sua
identidade étnico-racial. Para Rosemberg (1985, apud, SILVA, 2005), muitas vezes “a
cor negra” aparece associada a personagens maus, o negro acaba relacionado à sujeira,
tragédia, maldade, e a criança que internaliza essa representação negativa tende a não
gostar de si própria e dos outros que têm as mesmas características.
Para Nilma Lino Gomes (2003), a Instituição Educacional tem se tornado um
espaço onde as representações desqualificadoras sobre os negros têm sido muito
difundidas, e por isso deve também ser o lugar da superação das mesmas. No entanto, é
tarefa do(a) educador(a) compreender os diferentes povos ou etnias, suas classificações
históricas e de que maneira isso interfere na auto-estima dos(as) educandos(as), para, a
partir daí, entender o conjunto de representações sobre o negro existente na sociedade e
na escola, e destacar as representações qualificadoras construídas politicamente pelos
movimentos e comunidades negras. Nesse sentido, é imprescindível que os educadores
busquem subsídios, em uma formação constante que possam atender às necessidades
das crianças.
Foi possível perceber, no decorrer da pesquisa, que as crianças afro-descendentes
do grupo observado, criaram entre si um vínculo afetivo que as permitem brincar com
uma intimidade maior, do que quando se relacionam com as crianças de outras etnias.
Elas sempre buscam estar aos pares, e, dessa forma, criam uma identidade de grupo, ou
seja, elas têm uma maneira própria de brincar, na qual parecem ter uma cumplicidade:
Mariana (afro-descendente) e Henri (afro-descendente) começam a brincar
juntos, brincam de mamãe e papai, Graziela (afro-descendente) tenta entrar
na brincadeira, dizendo a Mariana: “Eu vou arrumar seus cabelos”.
Mariana chama Henri para perto dela e diz bem baixinho: “Henri vamo
brinca de casamento?” Parecem sentirem-se envergonhados quando
percebem que estou por perto, então Mariana me olha e diz: “Tu não escuta
tá?” Respondi que não estava escutando. Os dois dão os braços como se
estivessem casando e saem. Pegam uma boneca loira de olhos azuis e
colocam dentro da blusa de Mariana. Eles voltam e ela diz a Graziela:
“Agora tou grávida, vai nascer!” Se deita no colchonete abre as pernas e faz
força para o bebê sair, Graziela faz o parto e diz: “Nasceu!” Mariana diz: “É
a cara do pai!” E entrega a boneca para Henri, ele pega a boneca nos braços
e fica olhando. Então pergunto a ele: “Henri ela é a carinha do pai?” Ele
me responde: “Não é, não! Olha aqui. ” E aponta para olho da boneca
passando a mão nos cabelos. Então Mariana diz: “É só de brincadeirinha,
Henri.” Continuam a brincadeira. Henri ficou muito tempo brincando com a
79
boneca nos braços. Rezou com ela, cochichando e, por fim, disse: “Boa
noite meu Deus.” E fez a boneca dormir. (Diário de Campo 13/04/2009).
Observei que durante essa brincadeira com a boneca loira, as crianças mostraram
que conheciam sua identidade e negritude, pois reconheciam a boneca como diferente
delas. Dessa forma, esse episódio traz à tona uma discussão que corrobora a idéia de
que as crianças conhecem sim, as diferenças étnico-raciais existentes na sociedade. E
evidencia que as crianças afro-descendentes estabeleceram uma cumplicidade que as
torna muito próximas.
No entanto, há neste grupo, uma outra criança afro-descendente que em muitos
momentos está distante do grupo, o que me trouxe questionamentos. Será que esse
distanciamento é uma preferência sua ou uma segregação do grupo, devido ao seu
pertencimento étnico racial? É importante que desde a Educação Infantil a diversidade
racial seja problematizada com as crianças, pois assim as crianças afro-descendentes
terão a oportunidade de reconhecer sua negritude em um espaço educativo que também
humaniza, assim como as crianças de outras etnias terão a possibilidade de conhecer a
cultura afro-descente e desconstruir estigmas a respeito dos cidadãos negros.
Neste grupo, há interação entre as crianças afro-descendentes e as crianças de
outras etnias, porém, as crianças afro-descendentes, relacionam-se com mais frequência
com seus pares, do que com as crianças de outras etnias. Constatei que entre as crianças
não há uma discriminação visível com relação às crianças afro-descendentes, entretanto,
há a prática oculta, ou seja, não se fala sobre as questões raciais, mas, muitas vezes,
revelam-se atitudes discriminatórias durante as brincadeiras.
Concordo com Louro (1997, apud, BOTEGA, 2006, p.88), quando ressalta a
importância de “percebemos os ‘não ditos’ no espaço escolar, já que, muitas vezes não
dizer significa manter e garantir a norma, por isso, é fundamental prestarmos atenção e
cuidado naquilo que dizemos, ou que não dizemos[...]” Ou seja, muitas vezes, o “não
dito” também revela atitudes discriminatórias, isso se torna evidente quando:
Aproximo-me de Jonatan (afro-descendente) e percebo que ele brinca
sozinho com um carro e uma pista. Então Camila se aproxima e tenta
convencer Jonatan a ceder a pista para ela brincar, ele diz: “Não, eu quero
brincar também.” Mas Camila diz: “Então cê brinca com o carro e eu com
a pista.” Jonatan acaba aceitando. Camila chama Gilson para brincar com
ela, mas ele estava com um carro bem pequeno e tenta pegar o carro de
Jonatan, que segundo eles é o carro “baita”. Jonatan diz: “É só um
pouquinho.” E cede o carro também. Camila e Gilson começam a brincar
juntos e não deixam mais Jonatan brincar, o garoto desiste e vai procurar
outro brinquedo.(Diário de Campo 13/04/2009).
Nesse episódio é possível perceber que Camila queria brincar com os brinquedos
de Jonatan, mas fica claro que não desejava brincar com ele. O garoto tenta resistir,
porém acaba cedendo todos os brinquedos para Camila e Gilson, que iniciam uma
brincadeira juntos e não permitem que Jonatan participe. Sendo assim, cabe-me
perguntar: Por que Jonatan cedeu os brinquedos, se ele gostaria de continuar brincando
com eles? Por que Camila e Gilson não permitiram que Jonatan continuasse brincando
junto? O que está implícito nessa relação?
Borba (2006, p.14), diz que durante esses movimentos de conflitos das crianças,
[…] ainda que tenha sobressaído o investimento das crianças na negociação
de conflitos para garantir o processo interativo do brincar, também se
revelaram hierarquias e relações de poder entre elas, as quais lhes conferem
80
autoridade para definir quem pode ou não participar de determinadas
brincadeiras.
A autora ressalta que as crianças fazem uso de princípios para classificar os
membros do grupo com os quais elas querem brincar, e seus respectivos lugares durante
as brincadeiras. Esses princípios são: bonito, feio, menino, menina, legal, chato dentre
outros. Dessa forma, as relações de poder, prestígio e estatuto social, também estão
presentes no cotidiano das crianças, o que as faz mobilizarem um complexo conjunto de
estratégias para lidar com essas relações, a fim de ter uma participação social durante as
brincadeiras.
Durante os dias que estive em campo, pude observar que, apesar da quantidade
pequena de brinquedos existentes na Creche, as crianças brincavam muito. Constatei
também, que não havia nenhuma boneca negra, nem livros, brinquedos, imagens,
adereços que favorecessem o “reconhecimento” do pertencimento étnico-racial dessas
crianças. Por exemplo, só existiam bonecas “brancas” com os olhos claros, com as quais
as crianças negras brincavam muito. Por esse motivo, resolvi levar uma boneca negra
para o grupo de crianças. Neste curto período de tempo, não observei que as crianças
tivessem se sentido atraídas por essa boneca. Porém, a presença dessa boneca negra, na
sala, pôde contribuir muito para o autoconceito das crianças negras, bem como, para
quebrar os estigmas e preconceitos existentes em relação ao negro, ou seja, para quebrar
o silêncio existente em torno da questão racial.
Considerações Finais
Vale ressaltar que os dados obtidos através das observações servem para
problematizar a realidade das crianças afro-descendentes nas Instituições de Educação
Infantil. Visto que a pesquisa foi realizada apenas sob a realidade de um grupo de
crianças de uma Instituição da Grande Florianópolis, e não pode ser vista como uma
verdade pronta, mas deve servir para que os(as) educadores(as) repensem suas práticas,
direcionando-as para as questões relacionadas à diversidade racial.
Dessa forma, o caminho percorrido na elaboração desta pesquisa me permite
concluir que as relações estabelecidas no cotidiano da Educação Infantil a respeito das
diferenças étnicas são pautadas no silenciamento das educadoras, frente à questão racial,
o que resulta na invisibilidade das crianças afro-descendentes. As crianças revelam que
reconhecem as diferenças e estabelecem um vínculo entre seus pares, estabelecendo
uma relação de cumplicidade. Já, as crianças de outras etnias, não costumam
estigmatizar através de estereótipos as crianças afro-descendentes - pelo menos não
ficou visível nos momentos de observações – mas, de certa maneira, evidenciam,
durante as brincadeiras, uma relação de conflitos na disputa por brinquedos, à qual
tentam se sobressair em relação a uma das crianças negras.
Ao chegar à etapa de finalização desta pesquisa é possível dizer que ela me
suscitou muito mais questionamentos do que eu tinha ao iniciá-la, promovendo novos
conhecimentos, e novas dúvidas que requerem outras pesquisas. O tema da diversidade
étnico-racial ainda tem muitas questões a serem debatidas até que os cidadãos afrodescendentes sejam de fato reconhecidos e respeitados. Para tanto, é necessário que
sejam desenvolvidas pesquisas que discutam este tema e dêem visibilidades aos afrodescendentes. Nesse sentido, posso indicar que seja de grande valia uma pesquisa que
tenha como foco os(as) educadores(as), ou seja, que aborde o que as educadoras pensam
sobre a diversidade étnico-racial. Outro fator interessante é ressaltado por Nilma Lino
Gomes (2005), ao apontar que a maioria da população que frequenta a Educação de
Jovens e Adultos (E.J.A.), atualmente, são negros. Então, cabe-me questionar: Por que
81
isso ocorre? Será devido à segregação que existe em relação às crianças afrodescendentes no Nível Fundamental? Será que essas crianças evadem da escola e
retornam, posteriormente para a E.J.A.? Está é uma outra possibilidade de investigação
a ser feita com relação à diversidade étnico racial.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Kátia Adair. Creche e Pré-Escola é Lugar de Criança? In: MARTINS
FILHO, Altino José (org). Criança pede respeito: Temas em Educação Infantil.
Mediação: Porto Alegre, 2005.
BORBA, Angela Meyer . As culturas da infância nos espaços-tempos do brincar:
estratégias de participação e construção da ordem social em um grupo de crianças de 46 anos. 2006. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT07-2229--Int.pdf>
Acesso em: 19/06/2009
BOTEGA, Gisely Pereira. Relações raciais nos contextos educativos: Implicações na
Constituição do Autoconceito das Crianças Negras Moradoras da Comunidade de Santa
Cruz do Município de Paulo Lopes/SC. Florianópolis, 2006.
CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e
discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2003.
CERISARA, Ana Beatriz; BATISTA, Rosa; OLIVEIRA Alessandra M. R de;
RIVERO, Andréa S. Partilhando olhares sobre as crianças pequenas: reflexões sobre
o estágio na educação infantil. Florianópolis.2004.
GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação, n.
23. Maio/Jun./Jul./Ago. 2003. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a05.pdf > Acesso em: 25/08/2008.
GOMES, Nilma Lino. Educação de jovens e adultos e questão racial: algumas reflexões
iniciais. In: SOARES, Leôncio; GIOVANETTI, Maria Amélia Gomes de Castro;
GOMES, Nilma Lino. (Orgs.) Diálogos na educação de jovens e adultos. 1 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005.
KRAMER, Sonia. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças.
Cad. Pesquisa, n.116, Jul. 2002.
MARTINS FILHO, Altino José. Crianças e adultos na creche: marcas de uma relação.
ANPED, 2006. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT07-2274--Int.pdf>
Acesso em: 08/11/2008.
82
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, técnica e arte: O desafio da pesquisa social.
In: MINAYO, Maria Cecília de Souza. (Orgs.) Pesquisa social: Teoria, método e
criatividade. Petrópolis. RJ: Vozes, 1994.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988.
MUNANGA, Kabengele. (Org.) Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005.
OLTRAMARI, Leandro Castro; KAWAHALA, Edeleu. Discriminação, educação e
identidade. In: LIMA, Ivan Costa; ROMÃO, Jeruse; SILVEIRA, Sônia M. (Orgs.). Os
negros, os conteúdos escolares e a diversidade cultural II. Florianópolis, n. 4,
NEN,1998.
ROCHA, Eloísa Alcíres Candal. Diretrizes educacionais - pedagógicas para a
educação infantil. Tubarão, 2008.
ROMÃO, Jeruse. Por uma educação que promova a auto-estima da criança negra.
2. ed. Brasília, DF: 2001. Ministério da Justiça 28 p.
SILVA, Ana Célia. A desconstrução da discriminação no livro didático. In:
MUNANGA, Kabengele.(Org.) Superando o Racismo na escola. 2. ed. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005.
SILVA, Delma. Afrodescendência e educação, cultura e identidade e as perspectivas do
aluno afro descendente com a escola pública. In: LIMA, Ivan Costa; ROMÃO, Jeruse;
SILVEIRA, Sônia M. (Orgs.). Os negros e a escola brasileira. Florianópolis, n. 6,
NEN,1999.
SOUZA, Maria Elena Viana. Construção da identidade dos alunos negros e afro descendentes: alguns aspectos. 2005. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/28/textos/gt21/gt211276int.rtf > Acesso em
15/01/2008.
83
13. ANEXOS
DECLARAÇÃO
DECLARAMOS para os devidos fins que o artigo intitulado: “DESENHEI MINHA
MÃE DE ROSA, SÓ QUE ELA É PRETA, SÓ QUE PRETO NÃO
PODE”: Algumas discussões sobre a diversidade étnico-racial na Educação
Infantil, resultante do Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) de Pedagogia do Centro
Universitário Municipal de São José – USJ de autoria de: Gláucia de Souza Corrêa,
foi devidamente revisado por um profissional da Língua Portuguesa, assim como a
tradução do resumo foi revisada por um profissional com domínio da Língua Inglesa.
São José, 03 de agosto de 2009.
____________________________________
Nome do acadêmico
84

Documentos relacionados