artigos, decisões e pareceres jurídicos

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artigos, decisões e pareceres jurídicos
André Castro Carvalho
organizador
Contratos de Concessão de Rodovias:
artigos, decisões e pareceres jurídicos
CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS:
artigos, decisões e pareceres jurídicos
organizador
autores
André Castro Carvalho
Antônio Carlos Cintra do Amaral
Arnoldo Wald
Celso Antônio Bandeira de Mello
Letícia Queiroz de Andrade
Lúcia Valle Figueiredo
Marina Gaensly
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C782
Contratos de concessão de rodovias : artigos, decisões e pareceres jurídicos / organizador
André Castro Carvalho. - São Paulo : MP Ed., 2009.
224p; 14X21 cm.
ISBN 978-85-7898-031-3
1. Concessões de serviços públicos. 2. Rodovias. 3. Pedágio. 4. Pareceres jurídicos. 5. Contratos. I. Título. II. Carvalho, André Castro, org.
09-5360.
09.10.09
CDU: 34:35.078.6
15.10.09
015714
Preparação de texto
Mônica A. Guedes
Diretor responsável
Marcelo Magalhães Peixoto
Capa
Veridiana Freitas
Impressão e acabamento
ORGRAFIC
Projeto gráfico e diagramação
Veridiana Freitas
MP Editora – 2009
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 2482, 6. andar
01402-000 – São Paulo
Tel./Fax: (11) 31012086
[email protected]
www.mpeditora.com.br
ISBN 978-85-7898-031-3
Todos os direitos reservados
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Apresentação
A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias – ABCR
vem realizando, desde a sua fundação, em 1996, a promoção e realização
de estudos para a melhoria da malha rodoviária brasileira. Rodovias bem
administradas e conservadas significam menores custos no escoamento da
produção nacional e melhores condições de competitividade para nossos
produtos no mercado externo. Também facilitam a ligação inter-regional,
fundamental para um país de dimensões continentais como o Brasil.
Além de sua atividade institucional, a constante busca pelo
oferecimento de inovações e de melhores condições de segurança e conforto aos usuários de rodovias tem impulsionado significativos esforços
da ABCR em pesquisa e desenvolvimento científico no âmbito rodoviário. Como exemplos, podem-se mencionar duas obras jurídicas anteriores
(Decisões e pareceres jurídicos sobre pedágio, em 2002, e Rodovias: uso da
faixa de domínio por concessionárias de serviços públicos, em 2005), nas quais
foram abordados aspectos relevantes do setor, tais como a natureza jurídica
da remuneração pela prestação do serviço, respeito à equação econômicofinanceira inicialmente pactuada, bem como outras nuances com relação
aos serviços acessórios que circundam a atividade de operação rodoviária.
Outras obras, de cunho mais operacional, também foram
fomentadas por esta Associação. Citem-se, como exemplos:
• Segurançarodoviária, de Adriano Murgel Branco, 1999;
• Oexcessodecargaedepressãodospneusnasrodovias/síntese,
de João Fortini Albano, 1999;
• ConcessãoderodoviasnoRioGrandedoSul/síntese, elaborada pela LASTRAN/UFRGS, 1999;
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• Avaliaçãodoequilíbrioeconômico-financeirodocontratode
concessãoderodovias, elaborada pela FIPE/USP, 2001;
• Fatosemitos:averdadesobreopedágio,2002(1ªed.)e2005
(2ªed.);
• Aexperiênciabrasileiradeconcessõesderodovias, elaborada
pela FIPE/USP, 2003.
• Avaliaçãodecimentosasfálticosdepetróleoparaempregoem
pavimentação:estudocomparativo, elaborada pela Imperpav
Engenharia, 2004;
• CAP30-45eCAP50-70:suautilizaçãoemrevestimentosasfálticos:estudocomparativo:relatóriotécnico, elaborada pela Imperpav Projetos e Consultoria, 2008.
Outra forma de incentivo à pesquisa e desenvolvimento no
setor rodoviário tem se verificado nos últimos Congressos promovidos
pela ABCR. Por meio do “Salão de Inovação” nas duas últimas edições
do Congresso Brasileiro de Concessões de Rodovias – CBR&C, a ABCR
proporcionou a diversos pesquisadores a possibilidade de exposição e apresentação de trabalhos específicos, premiando aqueles mais relevantes para
o setor.
Fruto de intensa pesquisa de doutrinadores, juristas e ilustres
magistrados do País, a presente obra visa a servir como fonte de consulta a
todos os operadores do Direito que se interessem pelo contrato de concessão
de rodovias e suas características peculiares, instrumento jurídico imprescindível para a baliza na operação, conservação e manutenção das rodovias
concedidas brasileiras.
São Paulo, 15 de outubro de 2009.
André Castro Carvalho
AssessorJurídico
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Sumário
Pareceres e artigos
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1.1. Parecer de Celso Antônio Bandeira de Mello
quanto à cobrança de pedágio sobre eixo suspenso de veículos comerciais.
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1.2. Parecer de Lúcia Valle Figueiredo acerca da
ausência do reajuste estipulado nos contratos
de concessão de suas associadas e suas conseqüências jurídicas.
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1.3. Parecer de Celso Antônio Bandeira de Mello
quanto à prorrogação do prazo da concessão
para fins de reequilíbrio econômico-financeiro
do contrato.
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1.4. Artigo de Arnoldo Wald e Marina Gaensly:
“Concessão de rodovias e os princípios da supremacia do interesse público, da modicidade
tarifária e do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato”.
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1.5. Parecer de Antônio Carlos Cintra do Amaral
quanto à legalidade do Edital de Concorrência
n° 001/2008, da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, que tem por objeto
a concessão para exploração do Sistema Rodoviário das BR’s 116 e 324, no Estado da Bahia.
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1.6. Artigo de Letícia Queiroz de Andrade: “Comentários acerca da aplicação do CDC à prestação de serviços públicos concedidos”.
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Decisões judiciais
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2.1 Decisão Liminar na Ação Ordinária nº
98.0017501-6 da 1ª Vara Federal da Circunscrição Judiciária de Curitiba – Paraná, para restabelecer os valores da tarifa de pedágio inicialmente fixados nos contratos de concessão daquele Estado,
acrescidos dos reajustes neles previstos.
161
2.2. Sentença na Ação Ordinária nº 98.0017501-6,
da 1ª Vara Federal da Circunscrição Judiciária
de Curitiba – Paraná, que homologa os termos
aditivos aos contratos de Concessão de Rodovias do Paraná.
185
2.3. Suspensão de Liminar e de Sentença nº 174/PR
do Superior Tribunal de Justiça, sobre o reajuste
tarifário a fim de garantir o equilíbrio econômico-financeiro contratual e evitar prejuízos aos
usuários e à própria concessão rodoviária.
191
2.4. Recurso Especial nº 1.077.298-RS do Superior
Tribunal de Justiça, sobre a fixação da tarifa de
pedágio distintamente para as diversas categorias de veículos e a possibilidade da cobrança
do pedágio com base no número de eixos, incidindo inclusive no eixo suspenso, que não toca
na malha viária, dos veículos de carga.
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Decisão do Tribunal de Contas da União
213
3.1. Voto do Ministro Walton Alencar Rodrigues
no Acórdão nº 393/2002 – Plenário. Referente à manutenção da Taxa Interna de Retorno –
TIR pactuada inicialmente como garantia
da Concessionária.
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Pareceres e Artigos
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Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello
PARECER
à consulta feita pela Associação Brasileira de
Concessionárias de Rodovias – ABCR, quanto à cobrança
de pedágio sobre eixo suspenso de veículos comerciais
19 de Junho
1998
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias –
ABCR expõe-nos os fatos abaixo, acosta Edital da Licitação
nº 007/CIC/97 – Lote 1, promovida pelo Departamento
de Estradas de Rodagem do Estado de São Paulo – DER,
formulando a seguinte
CONSULTA
O Governo do Estado de São Paulo promoveu (e segue
promovendo), por intermédio do DER, procedimentos licitatórios,
sob a modalidade de concorrência, visando a exploração, mediante
outorga de concessão de serviços públicos, de 23 (vinte e três) lotes
de rodovias paulistas, anteriormente administradas pelo próprio
DER ou pela DERSA – Desenvolvimento Rodoviário S.A.
O teor dos sobreditos editais é, em essência, o mesmo
para todos os lotes, exceto no que tange a particularidades e especificações técnicas inerentes a cada qual.
Segundo consta dos Editais, a remuneração da futura
concessionária pela prestação dos serviços relacionados à exploração das rodovias dar-se-á pela cobrança de pedágio aos seus
usuários, bem como por receitas acessórias.
O valor básico, os critérios e a periodicidade de reajuste
e as condições de revisão das tarifas de pedágio estão fixados no
Anexo 04 dos Editais, denominado “Estrutura Tarifária”.
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Celso Antônio Bandeira de Mello
O item 4.3. do Anexo 04 estabelece que as tarifas de
pedágio a serem cobradas dos usuários deverão ser diferenciadas por categoria de veículos. A classificação dos veículos leva em
conta o seu tipo, o número de eixos e a banda de rodagem. Com
base neste critério, os interessados procederam a análises financeiras e estudos de tráfego que serviram para nortear a decisão de
participar ou não dos certames licitatórios.
Já o item 4.6 trata das isenções do pagamento de pedágio, especificamente quanto aos veículos descritos no subitem 4.6.1.
Logo em seguida, o subitem 4.6.2 veda ao Contratante estabelecer
privilégios tarifários que beneficiem segmentos específicos de usuários, exceto o estabelecido no subitem 4.6.1 ou em lei, que especifique as fontes de recursos para ressarcimento da Concessionária.
No último dia 07 de maio, data na qual já haviam sido
celebrados 4 Contratos de Concessão concernentes ao programa
paulista de concessões rodoviárias, o Secretário de Estado dos
Transportes baixou a Resolução ST-11 tratando da classificação
de veículos pelo seu número de eixos, para fins de cálculo das
tarifas de pedágio.
Nos termos da Resolução, o Secretário dos Transportes resolveu que, para efeito da cobrança de pedágio pelas Concessionárias, serão considerados os eixos de veículos comerciais
que estiverem sendo adequada e efetivamente utilizados. Dessa
forma, as Concessionárias não poderiam computar para efeito
de cálculo das tarifas de pedágio os eixos de veículos comerciais
que estivessem suspensos pelos motoristas no momento da passagem pela cabine de cobrança, através de mecanismos hidráulicos ou mecânicos.
Isto posto, indaga-se:
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I – As empresas contratadas como concessionárias, à
luz do edital e seus anexos – os quais figuram como parte integrante do contrato de concessão – poderiam cobrar dos usuários
tarifas de pedágio calculadas com base no número de eixos que
o veículo efetivamente possui, independentemente de sua utilização no momento da passagem pela cabina de cobrança?
II – Resolução da Secretaria de Transportes estabelecendo que para cobrança de tarifas só se computem os eixos de
veículos efetivamente utilizados quando da passagem pelos pedágios implica alteração das condições resultantes do edital e, pois,
dos contratos em sua conformidade travados, acarretando agravo
ao equilíbrio econômico-financeiro originalmente estipulado?
III – Ante a Resolução mencionada, a concessionária
tem direito a que seja restaurado o equilíbrio econômico financeiro da concessão por ela afetado?
Às indagações respondo nos termos que seguem.
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PARECER
1. Edital é ato por cujo meio a Administração faz
público o seu propósito de licitar um objeto determinado, estabelece os requisitos exigidos dos proponentes e das propostas,
regula os termos segundo os quais os avaliará e fixa as cláusulas
do eventual contrato (cf. nosso Curso de Direito Administrativo,
Malheiros Eds., 10ª ed.).
O edital, como é de todos sabido, constitui-se em documento fundamental da licitação, pois é ele que dita os termos
do certame a ser travado, regulando-o desde seu nascimento até
sua conclusão, além de fixar o teor do futuro contrato, pois suas
disposições, já têm que estar desde logo estabelecidas, quando
menos em todo o essencial (art. 40, § 2°, III, da lei n° 8.666,
de 21.06.93, atualizada pela 8.883, de 08.06.94). Por isto costuma-se afirmar, em dicção feliz, que o edital “é a lei interna”
de cada licitação. Com efeito, abaixo da legislação pertinente e
obedecidas suas determinações, é o edital que determina as regras
específicas de cada certame.
LUCIA VALLE FIGUEIREDO, ilustre administrativista e juíza federal, encarece-lhe o relevo nos seguintes termos:
“Oeditalreveste-sedegrandeimportância,porqueseélícitoàAdministração usar de discricionariedade em sua elaboração, uma vez
publicado,torna-seesteimutáveldurantetodootranscursodoprocedimento.Fazleientreaspartes,comopropriamentedisseHELY
LOPESMEIRELLES”.(Direito dos Licitantes. Ed. Rev. dos Tribunais, 2ª ed. revista e ampliada, 1981, pag. 42).
E pouco avante:
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“O conteúdodoeditalreveste-sedesumarelevância,poisseéverdade
que,atravésdapublicidade,aAdministraçãosatisfazaoprincípio
daisonomiaeodaconcorrência,neletambémsecontémamatéria
dofuturocontrato”.(op. cit. pag. 44).
2. Os interessados em participar de um certame licitatório avaliam a conveniência de disputarem-no em vista das
condições do presumível engajamento. São elas, portanto, que
compõem o quadro em função do qual os possíveis interessados em contratar, decidem afluir ou não ao certame. É dizer, se
as condições lhes interessam, ingressam para concorrer. Se, pelo
contrário, não lhes oferecem atrativos, abstêm-se de fazê-lo.
É, ainda, em vista das condições estatuídas, constantes
do edital e de seus anexos, que se fazem as propostas. Ou seja, o teor
do proposto, a margem de vantagens, são estabelecidas nas ofertas
dos licitantes, sopesando seus ônus e cômodos, à face das condições
enunciadas e a que se terão de atrelar por força das regras veiculadas
no edital e demais anexos elucidativos.
Assim também, quem vence o certame irá assinar o
contrato ou, se já o assinou, irá executá-lo subordinado às normas
e condições que foram noticiadas por ocasião da abertura do procedimento licitatório.
Definida e posta em público a situação objetiva perante
a qual todos irão se defrontar, resulta claro que o prosseguimento
daquele específico certame e o contrato que, em conseqüência dele,
se travar, bem como as regras de seu ulterior cumprimento, hão de
estar amarrados aos termos que foram previamente anunciados.
Com efeito, a referida lei nacional que veiculou normas
gerais sobre licitações e contratos administrativos para todo o
País, em seu art. 3°, explicitamente dispôs que a licitação está
estritamente subordinada, entre outros princípios, ao da “vincu14
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laçãoaoinstrumentoconvocatório”e, no art. 41 estatuiu que “A
Administraçãonãopodedescumprirasnormasecondiçõesdoedital,
aqueseachaestritamentevinculada”.
É ao lume destas noções corriqueiras, ora relembradas
para ressaltar o pano de fundo sobre o qual se projetam as indagações formuladas, que se terá de examiná-las.
3. Nos termos da cláusula 4.3. do Anexo 4 do Edital as
tarifasserão diferenciadas na conformidade de uma “classificação
de veículos” – tabela 4 –, alimesmaestabelecidae que leva em
conta: o “tipo de veículo”, o “n° de eixos” e a “rodagem” (banda
de rodagem simples ou dupla).
Assim, segundo seus termos, um veículo com dois eixos
pagará sempre menos do que os que tenham três eixos e estes, de
seu turno, pagarão menos do que os que tenham quatro eixos,
assim como os de quatro pagarão menos do que os de cinco e os
de cinco menos do que os de seis – números de eixos que, a partir
de dois, surgem com os semi reboques ou reboques.
Neste quadro classificador dos veículos – tabela 4 –
está, portanto, claro, explícito, literal, estampado com objetividade indiscutível e sem ressalva alguma, que o número de eixos foi
tomado como um fator interferente com a tarifa (cujos multiplicadores são diversos em função da aludida classificação).
Dessarte, a classificação não tomou em conta a circunstância dos veículos, quando da passagem pelo pedágio, estarem
com eixos levantados ou arriados de maneira a tocar o pavimento
da estrada. Podia, eventualmente, tê-lo feito, se assim o desejasse,
ou, quando menos, se houvesse sido atribuída relevância à hipótese, haveria de produzir qualquer alerta ou advertência aos licitantes no que concerne a tal eventualidade. Não o fez, contudo.
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O que tomou em conta foi, para além de qualquer dúvida ou
entre-dúvida, o númerodeeixosdoveículo,com ou sem respectivo
reboque ou semi reboque.
Ou seja: indicou aos que poderiam se interessar em
afluir ao certame e, pois, aos que afluíram, o critério em vista
do qual deveriam fazer suas estimativas de fluxo de trânsito dos
diversos tipos de veículo e, portanto, sua previsão de receitas em
função desta variedade de veículos, tal como categorizados no
Anexo 4 do Edital.
4. Os licitantes, como é curial, teriam que assentar
todas as suas estimativas e previsões sobre o que estava estabelecido no edital e não sobre o que nele não estava. Nunca lhes
caberia elaborar pressuposições, imaginar hipóteses, construir
situações eventuais, por fora do edital, isto é, nele não cogitadas.
Se fosse intento deste abrigar exceções, variantes, discriminações,
certamente deveria enunciá-las.
De resto, foi o que fez.
Arrolou expressamente as que pretendeu acobertar com
um tratamento específico, distinto do previsto genericamente na
“classificação de veículos”. Daí que, nesta mesmo tabela, titulada classificação de veículos, excluiu da categorização de eixos,
de bandas de rodagem e da cobrança de tarifas, tanto motocicletas, como motonetas, bicicletas a motor e veículos das Forças
Armadas e Polícia Militar.
Acresce que apôs notas à sobredita Tabela classificatória,
para fins de produzir esclarecimento ou para impor adicionais,
bem como para registrar hipótese excludente dos referidos adicionais. É dizer: deixou explícito que estava a se esmerar em oferecer
todos os aditamentos aclaradores necessários.
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Nisto tudo, evidentemente, reforça-se e de modo
extremo o descabimento do licitante, por conta própria – e sem
nenhum amparo ou sugestão do edital – figurar situação modificadora do que constava da Tabela 4, atinente à “Classificação
dos Veículos”.
Assim, não era dado ao partícipe do certame produzir,
para fins de suas estimativas de fluxo de veículos e de correlata
receita em função da classificação deles, disseptações impertinentes, por não contempladas no edital nem nas notas que foram
acrescidas à tabela em apreço para fins de produzir as acotações
tidas como necessárias pela promotora da licitação para completa
elucidação dos licitantes.
Acresça-se a isto que, no item 4.6.2 do edital, proíbe-se
que o contratado ao cabo da licitação estabeleça privilégios tarifários em prol de segmentos específicos de usuários, ressalvados, de
um lado, os que na cláusula 4.6.1. estão especificados como isentos de pagamento de pedágio, com direito a trânsito livre e, de
outro, a hipótese de se tratar de cumprimento de lei que especifique as fontes de recurso para ressarcimento da Concessionária.
5. Donde, nada concorria para que o licitante, na estimativa de fluxo de veículos e consequentemente de receita (ante a
variedade de categorias), procedesse segundo um critério diverso
do previsto no edital.
Pelo contrário; o conjunto de elementos mencionados
arredaria qualquer possibilidade de ser despertada no espírito
dos concorrentes a excogitação de hipóteses que lhes insinuasse a
perspectiva de se afastarem, a todo risco, dos termos do ato convocatório para modificar-lhes o alcance mediante pressuposições,
ilações ou construções mentais, produzidas em desacordo com o
estabelecido e fartamente esclarecido pela promotora da disputa.
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Demais disto, não apenas falecia esta possibilidade como sequer
lhes seria permitida tal liberdade – a de postergar as regras editalícias para substituir seu conteúdo visível por um imaginário –
maiormente em vista de outras cláusulas.
É que, a teor da cláusula 11., os licitantes deveriam
apresentar um “PLANO DE NEGÓCIOS”, do qual obrigatoriamente constariam, segundo previsão do item 11.2., “a”, “as projeçõesanuaisdosvolumesdetráfegoedasreceitascorrespondentes,
porpraçadepedágioeporcategoriadeveículos,feitassobexclusiva
responsabilidadedoLicitante”.
Assim, o teor da oferta, sua viabilidade e as estimativas de remuneração de quem travasse o contrato encontravam-se
estritamente ligados ao volume de trânsito de veículos em suas
distintas variedades (um veículo de 6 eixos, com reboque ou
semi-reboque, paga a tarifa multiplicada por 6, um de cinco eixos
multiplicada por 5, um de quatro eixos multiplicada por 4, um de
3 eixos, multiplicada por 3 e um de dois eixos – salvo se automóvel, caminhoneta ou furgão cuja tarifa é simples – paga a tarifa
multiplicada por 2).
Por força disto mesmo, a cláusula 15.3.1, letra “e”, cometeu à Comissão Julgadora da Licitação o encargo de analisar e avaliar, nas propostas, a “consistênciadoPlanodeNegócios,verificada
através da análise da coerência das previsões financeiras...”, sendo
causa de desclassificação, consoante cláusula 15.3.2., a rejeição da
Metodologia de Execução, que, no conjunto ou em qualquerde
seuscomponentes,desatendesse os requisitos do item anterior.
É indiscutível, então, que os licitantes que montassem
seu Plano de Negócios fundados em premissas distintas das que
haviam sido fartamente explicitadas pela promotora do certame
estariam a assumir um risco que os expunha a todas as conse18
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qüências que incidem sobre quem se recusa a conformar-se com
as regras do edital ou se atreve a produzir para elas significação
diversa da que resulta clara e explicitamente de sua linguagem.
6. Não há, pois, senão concluir que se o edital classificou veículos levando em conta o “número de eixos” do veículo
com seu reboque ou semi-reboque, sem fazer disseptação alguma
de eixo levantado ou arriado quando da passagem pelo pedágio,
tal discrímen não pode ulteriormente ser estabelecido para fins
de reduzir a incidência tarifária a que estariam sujeitos, sem com
isto ficar manifestamente configurada alteração nas regras originariamente previstas.
Disto tudo resulta, como é claro a todas as luzes que o
concessionário tem o inquestionável direito de cobrar as tarifas de
pedágio levando em conta o número de eixos dos veículos, como
prevê a cláusula 4.3. do Anexo 4 do Edital e as cláusulas 26.12. e
26.13. do contrato – as quais se reportam ao Anexo XVII, que é,
como esclarece a cláusula 2.1., “q”, do contrato, o próprio Anexo
4 do Edital.
7. Segue-se, então, que a Secretaria de Transportes do
Estado de São Paulo, não pode, atítulodeestarexpedindodeterminaçãoconsentâneacomoeditaleo“contratodeconcessão”, estabelecer que a cobrança de tarifas se faça excluindo do cômputo de
eixos dos veículos os que estiverem suspensos no momento da passagem pelos pedágios operados e explorados por concessionários.
À toda evidência, se a Secretaria estabelece tal regramento, mediante Resolução do Snr. Secretário de Transportes,
produz com isto modificação nos termos iniciais do contrato e
afeta, detrimentosamente para o concessionário de rodovia, o
equilíbrio econômico financeiro originariamente estipulado.
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Ninguém duvida que conveniências públicas podem
ser causa de providências que interfiram com os termos iniciais de contratos administrativos, produzindo conseqüências
gravosas para o contratado. Entretanto, se tal se der, irrompe
o direito deste último a que se recomponha a equação turbada
pela medida prejudicial.
Donde, ou a Secretaria de Transportes reconhece que
a determinação em pauta está a modificar condições econômicas
da relação jurídica já travada e, para não afetá-la, revoga sobredita
imposição ou dela resulta para o Poder Público o inexorável dever
de restaurar o equilíbrio afetado.
8. Deveras, na teoria do contrato administrativo, a
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro – não sem razão
– é aceita como verdadeiro “artigo de fé”. Doutrina, jurisprudência e legislação brasileiras, em sintonia com o pensamento alienígena, assentaram-se pacificamente em que, neste tipo de avença, o
contratado goza de sólida proteção e garantia no que concerne ao
ângulo patrimonial do vínculo, até mesmo como contrapartida
das prerrogativas reconhecíveis ao contratante governamental.
A expressão “equação econômico-financeira” significa
igualdade, equivalência entre as obrigações assumidas pelo contratado à época do ajuste e a compensação econômica que lhe
haverá de corresponder em razão das referidas obrigações. Corresponde ao termo de equilíbrio que se definiu na conformidade
do que os contratantes estipularam quando do travamento do
liame. Esta noção de equivalência, de igualdade que deverá persistir, fica muito bem esclarecida nas seguintes expressões com
que MARCEL WALlNE a descreve:
“Assim,oequilíbrioeconômicoefinanceirodocontratoéumarelação
quefoiestabelecidapelasprópriaspartescontratantesnomomentoda
conclusãodocontrato,entreumconjuntodedireitosdocontratante
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Celso Antônio Bandeira de Mello
eumconjuntodeencargosdeste,quepareceramequivalentes,donde
o nome de equação;DESDEENTÃOESTAEQUIVALÊNCIA
NÃO MAIS PODE SER ALTERADA” (Droit Administratif,
Sirey, 5ª ed., 1963, pág. 618 – grifo e destaque são nossos).
O respeito a esta equação só existe quando ambas as
partes cumprem à fieldade o que nela se traduziu. Então, uma
delas, o contratado, tem que executar a prestação ou as prestações
devidas com absoluto rigor e exatidão. A outra parte, o contratante público, está, de seu turno, adstrito a assegurar ao contratado aquilo que, à época do ajuste, por ambos foi havido como
remuneração apta a acobertar o custo da prestação e o lucro previsto que a ela corresponderia.
É que, como muito bem o disse HELY LOPES MEIRELLES:
“Ocontratoadministrativo,porpartedaAdministração,destina-se
ao atendimento das necessidades públicas, mas por parte do contratado,objetiva um lucro,atravésdaremuneraçãoconsubstanciadanascláusulaseconômicasefinanceiras”(Licitação e Contrato
Administrativo, Ed. Rev. dos Tribunais, 7ª ed. atualizada, 1987,
pág. 161).
GEORGES PÉQUIGNOT, um clássico no tema contrato administrativo, ao respeito averbou:
“Ocontratantetemdireitoàremuneraçãoinscritaemseucontrato.
Éoprincípiodafixidezdopreçodocontrato.Ele não consentiu
seu concurso senão na esperança de um certo lucro. Aceitou
tomaraseucargotrabalhoseáleasque,senãohouvessequeridocontratar,teriamsidosuportadospelaAdministração;énormalqueseja
remuneradoporisso.
Alémdisso,seriacontrárioàregradaboa-fé,contráriotambéma
qualquersegurançadosnegócios,eportantoperigosoparaoestado
social e econômico, que a Administração pudesse modificar, especialmentereduzir,estaremuneração”(Théorie Générale du Contract Administratif, Paris, A. Pedone, 1945, págs. 433-434 – o
grifo é nosso).
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É induvidoso que a equação econômico-financeira é
um dos pilares da teoria do contrato administrativo. Para dizê-lo
com palavras de MARCELLO CAETANO:
“Ocontratoassenta,pois,numadeterminadaequaçãofinanceira(o
valor em dinheiro dos encargos assumidos por um dos contraentes
deveequivaleràsvantagensprometidaspelooutro)easrelaçõescontratuaistêmdedesenvolver-senabasedoequilíbrioestabelecidono
atodeestipulação”(Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Ed. Forense, 1977, págs. 255-256).
JEAN RIVERO, referindo-se à remuneração do contratado assim se expressou:
“Asdisposiçõesrelativasàremuneraçãoescapamdopoderdemodificação unilateral da administração. Mas, além disto, o elemento
deassociaçãojáassinaladosemanifestanestepontocomumaforça
particular: é o princípio do equilíbrio financeiro do contrato, que
é uma das características essenciais do contrato administrativo e a
contrapartidadasprerrogativasdaadministração”(Droit Administratif, Dalloz, 3ª ed., 1965, pág. 111).
Dessarte,nenhumadaspartesselocupletaàcustadaoutra.
Ambas recebem o que as incitou a travar o liame. Nem o contratante nem o contratado sacam outras vantagens além das que
consentiram reciprocamente em outorgar-se e que se constituíram na própria razão do engajamento havido. Cada qual obtém o
que previra e ajustara. Há, pois, satisfação dos respectivos escopos
e perfeita realização do direito contratualmente estipulado.
9. A proteção ao equilíbrio econômico-financeiro é
ampla e se manifesta com respeito a diferentes situações, que
assim se podem classificar:
a) agravos econômicos oriundos das sobrecargas decididas pelo contratante nousodeseupoderdealteraçãounilateral
docontrato,isto é, impostas ao contratante privado para ajustar
suas prestações a cambiantes exigências do interesse público. A
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noção de equilíbrio ou equação financeira do contrato defende-o
às completas contra a gravosidade destas modificações.
GEORGES VEDEL sintetiza bem esta situação, ao
registrar que:
“Aadministraçãopode,dentrodecertoslimites,modificaropesodas
obrigações que, em um prato de balança, estão ao encargo de seu
contratante,masdevelogocolocarnooutropratoascompensações
pecuniáriascorrespondentes”(Droit Administratif, 3ª ed., Presses
Universitaires de France, 1964, pág. 639).
Não estão em causa aqui, como diz o autor citado,
“perdas e danos que seriam devidos em razão de uma falta contratual consistente na inadimplência de suas obrigações. Trata-se
de uma indenização fundada sobre a necessidade de conservar
o balanço das cargas e vantagens, tal como foi encarado pelos
contratantes” (id. ibid., pág. 631).
b) agravos econômicos resultantes de medidastomadas
sobtitulaçãojurídicadiversadacontratual,isto é, no exercício de
outra competência, cujo desempenho vem a ter repercussão direta
na economia contratual estabelecida na avença. É o chamado
“fato do príncipe”, tomada a expressão com o âmbito específico a
que se reporta FRANCIS-PAUL BENOÎT, ao dizer:
“Convémentenderpor‘ fatodopríncipe’osatosjurídicoseoperações
materiais, tendo repercussão sobre o contrato, e que foram efetuadospelacoletividadequecelebrouocontrato,masagindoemqualidadediversadadecontratante”(Le Droit Administratif Français,
Dalloz, 1968, pág. 639).
O fato do príncipe não é um comportamento ilegítimo.
Outrossim, não representa o uso de competências extraídas da
qualidade jurídica de contratante, mas também não se constitui em inadimplência ou falta contratual. É o meneio de uma
competência pública cuja utilização repercute diretamente sobre
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o contrato, onerando, destarte, o particular. Seria o caso, e.g., da
decisão oficial de alterar o salário mínimo, afetando, assim, decisivamente, o custo dos serviços de limpeza dos edifícios públicos
contratados com empresas especializadas neste mister ou o de
alterar o preço de combustíveis ou da energia, quando se constituam em insumos importantes na formação do custo das prestações do contratado ou o de estabelecer alterações tributárias que
tenham igual repercussão etc.
É certo que esse agravo patrimonial não libera, como
diz BENOÎT, o contratante de executar as obrigações avençadas
com o poder público:
“Masocontratantetemdireitoaumaindenizaçãoreparandointegralmenteoprejuízoporelesofridoemrazãodofatoagravantedos
seus encargos” (op. cit., pág. 641).
c) agravos econômicos sofridos emrazãodefatosimprevisíveisproduzidosporforçasalheiasàspessoascontratantese que
convulsionam gravemente a economia do contrato. Seria o caso,
p. ex., de acentuada elevação do preço de matérias-primas, causada por desequilíbrios econômicos, ou por sobrecargas adicionais
impositivas provenientes de circunstâncias do contrato, conquanto não advenham das referidas alterações unilaterais, nem
resultem das chamadas “sujeições imprevistas”. É a “teoria da
imprevisão”, por via da qual, modernamente, se retoma o vetusto
princípio da cláusula “rebus sic stantibus”. Entre nós, a teoria da
imprevisão é perfeitamente acolhida como forma de restaurar as
previsões, consagradas na equação econômico-financeira.
d) agravos econômicos provenientesdaschamadas“sujeiçõesimprevistas”,isto é, “dificuldades de ordem material que as
partes não podiam prever e que fazem pesar uma carga grave
e anormal para o empreendedor (p. ex., encontro de um lençol
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d’água insuspeitado na escavação de um túnel)” – como as definiu VEDEL (op. cit., pág. 634).
Em tal caso, o contratante tem direito à indenização
total pelo prejuízo, exatamente por se tratar de encargo suplementar que altera a economia do contrato e que não estava
suposto na avença travada.
As “sujeições imprevistas” têm seu domínio de aplicação, por excelência, nos contratos de obras públicas. E, como
esclarece BENOÎT, diferem da hipótese específica da teoria da
imprevisão, em que, de regra, nesta última, o que altera o equilíbrio contratual são “circunstâncias, incidentes econômicos”,
ao passo que nas sujeições especiais o contratante choca-se com
“ fatosmateriais,incidentestécnicos”(op. cit., pág. 626).
e) agravos econômicos resultantesdainadimplênciada
administraçãocontratante,istoé, deumaviolaçãocontratual.
Ao compor-se consensualmente com um particular, a
Administração, assim como adquire direitos, também assume
obrigações. Estas, portanto, corresponderão a direitos do contratado, que não podem ser desconhecidos ou amesquinhados.
Assim, em relação à violação das obrigações contratuais
– como, e.g. a intempestividade dos pagamentos – também se
encontra protegida a equação econômico-financeira, com todos
os ressarcimentos de prejuízos oriundos de infrações do contratante público, isto é, correção monetária, juros de mora e prejuízos demonstráveis.
10. Em nosso direito positivo há previsões expressas
e até mesmo enfáticas exigindo o necessário respeito à equação
econômico-financeira do contrato.
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Assim, a lei n° 8.666, de 21.06.93, atualizada pela lei
nº 8.883, de 08.05.94 – que estabelece as normas gerais sobre
licitações e contratos administrativos – explicitamente dispõe em
seu art. 58, § 1° que:
“Ascláusulaseconômico-financeirasemonetáriasdoscontratosadministrativosnão poderão ser alteradas sem prévia concordância
do contratado”.
Também o art. 57, § 1°, estabelece:
“Osprazosdeiníciodeetapasdeexecuçãodeconclusãoedeentrega
admitem prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e
assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico financeiro,desdequeocorram...”
Por isto, quando a Administração exerce poderes de
alteração unilateral do contrato, o mesmo artigo 57, em seu
§ 2°, prevê que em tal caso:
“ascláusulaseconômico-financeirasdocontratodeverãoserrevistas
para que se mantenha o equilíbrio contratual”.
A mesma preocupação com o equilíbrio econômico
financeira do contrato se retrata no art. 65, II, “d”, o qual admite
alteração consensual do contrato:
“para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente
entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração
paraajustaremuneraçãodaobra,serviçooufornecimento,objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro
inicial do contrato,nahipótesedesobreviremfatosimprevisíveis,
ouprevisíveisporémdeconseqüênciasincalculáveis,retardadoresou
impeditivos da execução do ajustado, ou ainda, em caso de força
maior,casofortuitooufato do príncipe,configurandoáleaeconômicaextraordináriaeextracontratual”.
Revelador dos mesmos propósitos de salvaguarda do
equilíbrio original é o que consta do § 5° do mesmo art. 65, o
qual reza:
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Celso Antônio Bandeira de Mello
“Quaisquertributosouencargoslegaiscriados,alteradosouextintos,
bemcomoasuperveniênciadedisposiçõeslegais,quandoocorridas
apósadatadaapresentaçãodaproposta,decomprovadarepercussão
nospreçoscontratados,implicarãoarevisãodestesparamaisoupara
menos,conformeocaso”.
De resto, cuidado da mesma natureza está expressado igualmente, no art. 40, XI – assecuratório de reajustes, que
devem ser previstos já no próprio edital de licitação – e XIV, “c”,
dispositivo este último que faz correspondente exigência no que
concerne ao:
“...critériodeatualização financeira dos valores a serem pagos,
desdeadatafinaldoperíododeadimplementodecadaparcelaatéa
datadoefetivopagamento”.
Especificamente em tema de concessão de serviço
público, a lei nº 8.987, de 13.02.95, que disciplina tal instituto,
no art. 9°, § 4°, dispõe:
“Emhavendoalteraçãounilateraldocontratoqueafeteoseuinicial
equilíbrioeconômico-financeiro,opoderconcedentedeverá restabelecê-lo; concomitantemente à alteração”.
De resto, a atenção com a mantença do sobredito equilíbrio está igualmente expressada também nos parágrafos 2° e
3°, que pressupõem a revisão de tarifas para assegurar a equação
inicial. Também o art. 18, onde se estabelecem as cláusulas que
devem constar do edital de licitação de concessões, em seu inciso
VIII, traduzindo os mesmos cuidados, refere os critérios de reajuste e revisão de tarifas.
11. De fora parte as disposições legais mencionadas,
o assunto está resolvido no próprio Texto Constitucional. É
que a Lei Magna impõe de modo incontendível o respeito ao
citado equilíbrio.
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Com efeito, no inciso XXI do art. 37, determina que
obras, serviços, compras e alienações serão contratados com obediência a cláusulas de pagamento “mantidasas condições efetivas
daproposta”.
Estabeleceu, pois, a garantia de uma correlação incindível entre as obrigações de pagamento e as condições efetivas
da proposta. Vale dizer: como ambos as partes se obrigaram à
face daquelas condições efetivas,são elas que presidem, por uma
parte, a obrigação de prestar fielmente o convencionado para fazer
jus ao correspectivo e, por outra parte, a obrigação de pagar em
correlação com as condições efetivas que residiram na proposta.
Dado que as condições efetivas da proposta são feitas
em vista de determinadas condições preestabelecidas e não de
outras,para que se mantenham as condições da proposta é induvidoso, é livre de qualquer dúvida ou entredúvida, que as cláusulas de pagamento hão de assegurar o mesmo equilíbrio que
decorria das condições originais, sob pena de infringência frontal
à Constituição do País.
De todo modo, o dever de acatamento ao sobredito
equilíbrio também se encontra implicitamentesufragado na própria cabeça do mesmo art. 37, que erige o princípio da moralidade como um dos princípios da Administração Pública direta,
indireta ou fundacional (art. 37).
Ora, a moralidade administrativa não se compadeceria
com atitudes da Administração pelas quais deprimisse o equilíbrio contratual, sacando da contraparte aquilo que com ela ajustara quando do travamento da avença.
Assim, é inequívoco o direito que ao contratado assiste,
nos contratos administrativos e especificamente nas conces28
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Celso Antônio Bandeira de Mello
sões de serviço público, de pleno respeito à equação econômico
financeira pactuada, a qual, desde o travamento do contrato,
constitui-se em direitoadquirido,que, pois, não pode ser burlado pela contraparte.
12. Isto tudo posto e considerado, às indagações da
Consulta respondo:
I – À luz do edital e seus anexos e, pois, dos contratos
em sua conformidade firmados, as empresas contratadas como
concessionárias foram juridicamente tituladas para cobrar tarifas
de pedágio calculadas com base no número de eixos que o veículo
efetivamente possui, independentemente de estarem sendo utilizados no momento de passagem pela cabine de cobrança.
II – Constitui-se em alteração das condições resultantes
do edital e, pois, dos contratos em sua conformidade travados, acarretando agravo ao equilíbrio econômico-financeiro originalmente
estipulado, a Resolução da Secretaria de Transportes segundo a
qual, na cobrança de tarifas, só se computam os eixos de veículos
efetivamente utilizados quando da passagem pelos pedágios.
III – Ante a Resolução mencionada, a concessionária
tem direito a que seja restaurado o equilíbrio econômico financeiro da concessão por ela afetado.
É o meu parecer.
São Paulo, 19 de junho de 1998
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO
OAB-SP n° 11.199
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Lúcia Valle Figueiredo
CONSULTA
Consulta-nos a AssociaçãoBrasileiradeConcessionárias
de Rodovias – ABCR, por intermédio de sua ilustre advogada,
Dra. Letícia Queiroz Andrade, acerca da ausência do reajuste
estipulado, nos contratos de concessão de suas associadas e suas
conseqüências jurídicas.
Relata-nos os seguintes fatos.
Em reunião intersecretarial realizada no dia 27 de junho
de 2002, o Governo do Estado de São Paulo decidiu não estender
o reajuste anual das tarifas de pedágio às rodovias de pista simples, comprometendo-se, outrossim, a ressarcir os prejuízos sofridos
pelas concessionárias com recursos do Tesouro Estadual, conforme
consta da Ata Intersecretarial de 27.06.2002.
Muito embora não tenha o Governo do Estado de São
Paulo reiterado tal decisão por ocasião da homologação do reajuste
anual das tarifas de pedágio com data-base em julho de 2003, a
AgênciaReguladoradeServiçosPúblicosDelegadosdeTransportedo
Estado de São Paulo – ARTESP, ao divulgar os valores das tarifas de pedágio, que deveriam ser praticadas a partir de julho de
2003, descontou do valor total reajustado a parcela correspondente
ao diferencial relativo às rodovias de pista simples, fazendo com
que, se mantenha os efeitos da decisão governamental, tomada na
reunião intersecretarial do Governo do Estado de São Paulo de 27
de junho de 2002.
Em seguida, a Associação Brasileira de ConcessionáriasdeRodovias–ABCR, formula, em face dos fatos relatados,
seus quesitos.
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
QUESITOS
1. A decisão, expressada na Ata da Reunião Intersecretarial do Governo do Estado de São Paulo de não estender
o reajuste anual das tarifas de pedágio às rodovias de pista simples, possui caráter de ato jurídico abstrato, e, se assim for, seria
aplicável a quaisquer reajustes das tarifas de pedágio cobradas
em rodovias de pista simples, ou pelo contrário, se trata de ato
jurídico concreto, aplicando-se unicamente ao reajuste com database em julho de 2002?
2. Qual a repercussão da resposta ao quesito acima formulado, com relação aos efeitos jurídicos, que a decisão governamental expressa na Ata da Reunião Intersecretarial pode produzir
no tempo?
3. Considerando-se os efeitos jurídicos produzidos pela
decisão, as concessionárias têm direito de que sejam tomados
com base para a aplicação do índice de reajuste os valores inicialmente pactuados, que deveriam ter sido reajustados na data-base
de julho de 2002, como base para aplicação do índice do reajuste
com data-base em 2003?
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Lúcia Valle Figueiredo
PARECER
I. A equação econômico-financeira do contrato.
1. Não podemos nos dispensar de tecer considerações
acerca da equação econômico-financeira do contrato antes de
adentrarmos propriamente o tema.
1.1. A equação econômico-financeira do contrato, de
maneira singela, traduz-se no equilíbrio entre as obrigações assumidas pelo concessionário, os encargos que serão suportados e a
contraprestação devida pela concedente, a remuneração do concessionário. Esta a comutatividade do contrato.
Na hipótese, ora examinada, concessões de serviço
público, a remuneração é paga pelo usuário, não obstante possa
haver subsídio por parte da concedente, se esta entender, por
exemplo, que a tarifa justa é excessiva para o usuário.
2. A observância, durante todo o contrato, desse equilíbrio financeiro é vital nas concessões de serviço público, não
somente para assegurar o lucro do concessionário, inteiramente
lícito (garantido constitucionalmente), mas, principalmente, para
garantir a continuidade e a boaprestaçãodoserviçopúblico.
2.1. Dispõe a Lei 8.666/1993, nas hipóteses de o contrato ter sido alterado, sobre a possibilidade de acordodaspartes
para restabelecer o pactuado inicialmente, ou seja,a equação econômico-financeira do contrato, como avençada inicialmente.
No dizer de Hely Lopes Meirelles1:
“O equilíbrio financeiro ou equilíbrio econômico do contrato
administrativo, também denominado equação econômica ou
equaçãofinanceira, é a relação que as partes estabelecem inicialmente no ajuste, entre os encargos do contratado e a retribuição
da Administração para a justa remuneração da obra, do serviço
ou do fornecimento”.
1
LicitaçãoeContratoAdministrativo, 12ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2000, p. 181.
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“(...)”
“Essa correlação deve ser conservada durante toda a execução
do contrato, mesmo que alteradas as cláusulasregulamentares da
prestação ajustada, a fim de que se mantenha a equação econômica, ou, por outras palavras, o equilíbrio econômico-financeiro
do contrato.”
Exatamente para manter a equação econômico-financeira foi concebida, pelo Contencioso Administrativo Francês e a
doutrina francesa, a teoria da imprevisão.
3. Aplica-se a teoria da imprevisão, quer em decorrência de fatos alheios à vontade da contratante concedente, que, ao
se refletirem no contrato, produzam desbalanceamento da equação econômico-financeira, ou, ainda, em decorrência de determinações administrativas modificadoras do contrato.
4. As obrigações devem ser cumpridas como pactuadas. E, se é verdade que, na função administrativa sobrepõe-se
o interesse público ao do particular, colocando-se as partes em
desnível jurídico, menos verdadeira não é a afirmação da impossibilidade de ser introduzido o elemento surpresa no contrato, álea
não conhecida no momento da pactuação.
4.1. Assinale-se ser um dos direitos mais lídimos do
concessionário o relativo à manutenção da equação econômicofinanceira ao longo de todo o contrato. A esse respeito, não tergiversam doutrina e jurisprudência.
4.2. A justa remuneração do concessionário é, por conseguinte, imperiosa, para garantir, como já afirmamos, o lucro lícito
da concessionária, a continuidade e a boa prestação do serviço.
Como já observamos, se a Administração entender necessário, para
bem satisfazer o interesse público, alterar cláusulas do contrato,
semmodificaçãodoobjetocontratual, poderá fazê-lo. Aliás, deverá
mesmo fazê-lo, se o interesse público isso postular.
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Lúcia Valle Figueiredo
4.3. Dispõe a Lei 8.666/1993, nas hipóteses de o contrato
ter sido alterado, sobre a possibilidade de acordo das partes para restabelecer o pactuado inicialmente, ou seja, a equação econômicofinanceira do contrato, como avençada inicialmente.
Note-se, que, nas hipóteses de “fatos do príncipe”, ou,
na verdade, em quaisquer outras causas de desequilíbrio contratual, inclusive a sujeição a fatos imprevistos, faz-se necessária a
prova cabal do ônus maior suportado pelo concessionário. Bem
como sua demonstração técnica, a fim de que possa ser determinada a reparação pela Administração Pública.
4.4. Aprofundemos um pouco a teoria da imprevisão.
A teoria da imprevisão, latosensu, com seus desdobramentos,
aplicada aos contratos administrativos, tem como supedâneo a
proteção do interesse público que, se deixado à deriva de injunções econômicas anormais, ou de acontecimentos anormais, ou,
ainda, de determinações administrativas, poderia sucumbir ou,
pelo menos, não ser satisfeito como pretendido.
5. Há que se fazer, expressamente, a distinção entre a
força maior e a teoria da imprevisão.
A força maior impossibilita o cumprimento do ajuste,
enquanto que os fatos imprevistos o tornam mais oneroso, dificultando ou, até mesmo, impossibilitando seu cumprimento,
caso não seja revisto o contrato.
5.1. Fatosimprevistos são todos aqueles que, por ocasião
da pactuação do contrato, eram ignorados pelas partes por absoluta impossibilidade de prevê-los. Esses fatos imprevistos caracterizam-se, principalmente, pela oneração do contrato.
Quando é a Administração a causadora desse ônus,
por alterações contratuais que determinou, deverá ressarci-los
integralmente.
5.2. Entretanto, poderá ocorrer que fatos alheios à vontade da contratante (a concedente), de ordem econômica, repercutam no contrato, de maneira a causar-lhe impacto substancial.
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Nesta hipótese, diversa da força maior, diante dessa álea econômica, poderá a contratada pleitear da Administração, que lhe
recomponha os prejuízos. Enfim, é preciso ter a contratada (na
hipótese sub examine, a concessionária) condições a lhe permitir
dar cabal cumprimento ao contrato.
5.3. Infere-se, pois, que, se por determinações dadas pela
contratante houver modificação econômica no contrato, a recomposição deriva do fato da administração ou fato do príncipe.
De outra parte, a álea econômica (também inserida na
teoria da imprevisão), suportada pela contratada, por motivos
alheios à contratante, também determina a recomposição.
O fundamento de tal recomposição é a proteção do
interesse público subjacente ao contrato, que deverá ser fielmente cumprido.
6. Examinemos melhor a teoria do “fato do príncipe”,
que, mais de perto, está a nos interessar. Divergem os autores no
que entender por “fato do príncipe”.
Alguns se referem a esta figura conceitual como relativa
a fatos provocados pela Administração Pública, qualquer que seja
esta, com repercussões no contrato. Outros entendem que o “fato
do príncipe” diz respeito somente a atos administrativos (lato
senso) da mesma autoridade contratante, porém, no exercício de
outra competência, que não aquela diretamente referida ao contrato, como, por exemplo, aumento da alíquota de um tributo.
Tais atos administrativos, embora não imediatamente
ligados aos contratos, por via reflexa neles repercutem, e, de tal
forma, a abalar a equação financeira.
6.1. Marienhoff 2 diz não compartir da opinião dos
que fazem a distinção acima exposta, porque a julga vaga de
sentido lógico.
2
S. MARIENHOFF, Miguel. “ContratosAdministrativos – Primer Congreso Internacional y
IV Jornada Nacionales de Derecho Administrativo” – Mendoza – Argentina, 1977, p. 17.
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Lúcia Valle Figueiredo
Entende o conceituado administrativista ser a mesma a
responsabilidade estatal, quer seja provocada pela mesma autoridade (a que celebrou o contrato) quer seja por outra.
Explica, ainda, mais adiante, o tratadista que, quando
se tratar de “fato príncipe”, quer seja decorrente da própria Administração contratante, quer de outra autoridade, a reparação deve
ser sempre integral.
7. Verifica-se, pelo já afirmado, ser inteiramente aplicável a teoria da imprevisão, em decorrência de fatos alheios
à vontade da Contratante Concedente, que, ao se refletirem no
contrato, produzam desbalanceamento da equação econômicofinanceira, ou seja, em decorrência de determinações administrativas modificadoras do contrato.
O fundamento de tal recomposição, sem dúvida, é o
interesse público subjacente ao contrato, que deve ser protegido. O
contrato deve ser fielmente cumprido, como já acentuado.
Deveras, a álea normal do negócio (os riscos empresariais), evidentemente cabe ao contratado. Porém, a anormal – por
se tratar de contrato administrativo – deve ser ressarcida.
8. Carlos Delpiazzo, conceituado autor uruguaio, trata
da equação econômico-financeira, nos seguintes termos:
“(...)”.
Evidentemente, en todo negocio siempre hay un elemento de
riesgo desde el punto de vista de su consideración económica, pero
hay un riesgo que es normal- el riesgo que asume todo empresario
cuando encara una determinada actividad- y, en cambio, puede
haber hipótesis de riesgo anormal.
Ese álea o riesgo anormal es el que plantea alguna dificultad en su
consideración desde el punto de vista jurídico, cuando se rompe
el equilibrio financiero del contrato”.
“(…)”.
En el primero de estos casos, es decir, cuando el equilibrio
económico-financiero se ve quebrado por causas inherentes a
la Administración contratante que no cumple lo pactado, nos
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encontramos frente a un supuesto de responsabilidad por incumplimiento, conforme a las normas del Derecho común.
Los casos que plantean más interés son los tres restantes.
Cuando hay causas que son imputables al Estado y que modifican
el contrato, (cuando hay lo que se denomina un “álea administrativa”) entonces nos encontramos frente a la denominada teoría
del hecho príncipe.
“(…)”.
La doctrina suele exigir la configuración de los siguientes requisitos para la aplicación de esta teoría:
a) la existencia de un perjuicio cierto y directo;
b) la intervención de la Administración que lo ocasiona debe
no haber podido preverse;
c) esa actuación de la Administración debe ser espontánea y
autónoma. (grifamos)
“(…)”.
“Su configuración reclama los siguientes requisitos:
a) alteración de orden económico proveniente de hechos naturales
o de actos de autoridad (no constitutivos de supuestos ya encartables en la teoría del hecho del príncipe);
b) imprevisibilidad;
c) perturbación ajena a la voluntad de las partes;
d) los hechos invocados deben ser posteriores al perfeccionamiento del contrato y anteriores a su definitivo cumplimiento;
e) pérdida efectiva derivada de una excesiva onerosidad (no bastando la disminución o desaparición de ganancias); y
f) el desequilibrio contractual debe ser transitorio”.
“(…)”.3
9. Lembremos, novamente, que a equação econômico-financeira do contrato, caracteriza-se pelo equilíbrio entre as
obrigações assumidas e as importâncias a serem recebidas. Esta
a comutatividade do contrato, como bem asseveram os ilustres
tratadistas do tema, enfatize-se, tanto na doutrina nacional
como alienígena4.
3
DELPIAZZO, Carlos E. ManualdeContrataciónAdministrativa, Tomo I – Parte General, 2ª
edición actualizada, Instituto de Estudios Empresariales de Montevideo, 1991, pp. 147, 148 e 149.
4
Citem-se, somente à guisa de exemplo: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Licitação–LeisdeMercadoePreços–EquilíbrioEconômico-Financeiro. In RTDP nº 9/1995, p. 89;
BREWER CARIAS, Allan R. ContratosAdministrativos. Editorial Jurídicos Venezolana, Caracas, 1992, p. 203; DELPIAZZO, Carlos E., obra já citada; JUSTEN FILHO, Marçal. ComentáriosàLeideLicitaçõeseContratosAdministrativos. São Paulo, Dialética, 9ª edição, pp. 498-506
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De conseguinte, se alterada a equação econômico-financeira do contrato, não contendem, doutrina e jurisprudência, no
sentido de que ou a Administração deve recompô-la, ou o contratado poderá pedir a rescisão, rompendo, pois, o laço contratual.
II. Reajuste e Revisão de Preços.
10. Deve-se fazer, também, para deslinde da questão a
enfrentar, a necessária distinção entre reajuste e revisãodepreços,
aonde se aloja a recomposição da equação econômico-financeira.
O reajuste configura-se em previsão inicial de custos
a maior. A obra ou serviço é estimado em determinada quantia, devendo incidir sobre esta quantia percentuais corretivos de
inflação. O quantumdebeaturnão é alterado. Conserva-se íntegro pelo reajuste.
10.1. De conseguinte, apenas o reajuste não poderá
recompor a equação econômico-financeira, quando desbalanceada por situações anômalas. O reajuste visa, isso sim, a manter
íntegra a equação econômico-financeira.
Insista-se: há, tão-somente, previsão da perda de valor da
moeda. Consiste, pois, em atualização permanente da mesma.
10.2. Os reajustes contratuais surgiram exatamente
do princípio da manutenção da equação financeira do contrato
ao longo de todo o prazo de sua execução. Não se cogitava, todavia, em situações anômalas, mas na preservação do status inicial,
passível de se modificar por força da inflação. Em outro falar,
visa-se a preservar o contrato como ajustado.
11. Reajuste e revisão de preço, saliente-se, diferem, pois
têm pressupostos diferentes. O primeiro, o reajuste de preço,
será utilizado para resolver os problemas referentes à recompoe; TORRES PEREIRA, Jessé. ComentáriosàLeideLicitaçõeseContrataçõesdaAdministração
Pública, Rio de Janeiro, Renovar, 5ª edição revista e atualizada, pp. 649-651.
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sição do equilíbrio financeiro resultante do aumento normal de
custos pela desvalorização da moeda.
11.1. De seu turno, a revisão da remuneração do concessionário visa a atender casos especiais, como, por exemplo, a alteração do contrato, tornando-o mais oneroso. Também há outras
hipóteses como o fatodaadministração, quer seja da mesma autoridade ou de outra, como já abordamos.
11.2. A distinção é de suma importância, porque,
mesmo nas hipóteses em que o contrato proíba reajuste por determinado lapso temporal, pode haver a recomposição.
Observa-se que a Lei de Concessões usou em diferentes
sentidos a palavra revisão, não tendo acontecido o mesmo com a
Lei de Licitações, que emprega corretamente as palavras revisão
e reajuste.
12. Vejam-se os artigos 65, inciso II, alínea “d” da Lei
de Licitações (recomposição de preços), o § 8º do mesmo artigo
refere-se a reajuste de preços, artigo 40, incisos XI (reajuste) e
XIV, alínea “c”, da atualização financeira.
De outra parte, o § 2º do artigo 9º da Lei 8.987/1995
refere-se genericamente à “revisão de tarifas”, que tanto poderá
significar reajuste ou recomposição. Já o § 3º, do mesmo artigo 9º,
utiliza a expressão revisão por recomposição. No § 4º do mesmo
artigo, o dispositivo, inequivocamente, embora não expressamente declare, está a se referir à revisão.
13. Releva notar: o amparo à justa remuneração, no
concernente à concessão de serviço público, encontra-se, até
mesmo, em nível constitucional. Consoante entendemos, o artigo
37, inciso XXI da Constituição, ao se referir à manutenção das
condições efetivas das propostas, autoriza a concluir que se aloja
no dispositivo a garantia.
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III. O ato administrativo decorrente da Ata da Reunião Intersecretarial do Governo do Estado de São Paulo.
14. O Governo do Estado de São Paulo, por entender
devidamente que o reajuste, a ser concedido às concessionárias nas
rodovias de pista simples, oneraria muito os usuários, resolveu não
concedê-lo, porém, compensando as concessionárias. Na verdade,
compensando de outra maneira a não outorga do reajuste.
14.1. A Ata Intersecretarial do Governo do Estado de
São Paulo é de 27.06.2002 e precedeu o reajuste, que se deveria
efetuar em 1º de julho.
Reproduza-se pequeno excerto:
“(...)”. Nesse sentido, ponderou que o Programa Estadual de
Concessões Rodoviárias necessitava de algumas adaptações, de
molde a tornar-se mais compatível com a realidade demonstrada
no setor e mais adequado ao interesse público. Um dos aspectos
ressaltados aos presentes, foi a necessidade de estabelecer algumas ponderações sobre o ajuste dos valores cobrados nas praças
de pedágio de rodovias com pistas simples, em face do público
que delas se utiliza e das condições em que se dá essa utilização.
Para tanto, lembrou que esse tipo de rodovia serve a uma categoria de usuários que se deslocam freqüentemente entre cidades
circunvizinhas, muitas vezes de maior porte, com o intuito de
trabalhar, estudar e/ou escoar a pequena produção de caráter
regional, caracterizando, pois, situação distinta das demais rodovias de pista dupla e sistemas, nas quais a incidência desses casos
é sabidamente menor. “(...)”
Como se verifica na ata, documentação do evento realizado (fundamento para o ato administrativo emanado) e, além
disso, ato administrativo em sua parte final (consoante se poderá
verificar, tem-se a decisão administrativa emanada). Transcreva-se para aclarar:
“(...)”. Por fim, o Senhor Governador submeteu a questão ao crivo
dos demais presentes, ficando decidido, por unanimidade, queo
reajusteanualdastarifasdepedágios,nadata-basedejulhodocorrente,nãoserácobradonasrodoviasdepistassimplesequeeventual
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reequilíbriodoscontratosdeconcessõesdar-se-áatravésderecursos
doTesourodoEstado. “(...)”. (grifos nossos).
15. Vamos nos deter no ato administrativo emanado.
Inicialmente, devemos conceituar ato administrativo para verificar seus efeitos.
Trazemos à colação nosso conceito de ato administrativo, em sentido estrito, como expendido em nosso Curso5:
“Ato administrativo é a normaconcreta, emanada pelo Estado, ou
por quem esteja no exercíciodafunçãoadministrativa, que tempor
finalidadecriar,modificar,extinguiroudeclararrelaçõesjurídicas
entre este (o Estado) e o administrado, suscetíveldesercontrastada
peloPoderJudiciário”.
Dissemos que é a norma concreta, portanto, não
norma geral, como os decretos regulamentares6 (gerais e abstratos). Ou, por outro giro, é norma que descende diretamente da
lei para reger determinada ou determinadas situações. E deve
ter previsão de tempo em que irá vigorar, a não ser que seja por
prazo indeterminado.
Já dissemos também que, no ato administrativo sempre
existirá quem determina, constitui, extingue ou modifica relações jurídicas e quem se beneficia (atos ampliativos) ou deve se
comportar (atos restritivos ou ordens) dentro dos parâmetros da
norma individual, norma concreta.
Com relação à eficácia que, de perto nos vai interessar, deixamos averbado, é a atribuição da possibilidade de o ato
deflagrar seus efeitos típicos. Pode, todavia, a eficácia estar protraída por condição suspensiva, pelo termo inicial ou, então, por
pendência de controle. E, também a eficácia pode estar referida a
certo e único evento ou a termo final.
5
CursodeDireitoAdministrativo, 6ª edição, São Paulo, Malheiros, 2003, Cap. V, p. 159.
O decreto regulamentar é ato expedido pelo Presidente da República dentro dos limites de
sua competência (art. 84, inciso IV, da Constituição Federal), para fiel execução da lei – esta, sim,
decisão política do legislador, fruto da vontade popular.
6
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Na questão formulada, a eficácia do ato estava diretamente referida “ao reajuste na data base do corrente (2002,
segundo a data da Ata) e, mais, às rodovias de pista simples (“que
o reajuste anual das tarifas na data-base de julho do corrente, não
será cobrado nas rodovias de pista simples...”).
15.1. Portanto, não cobrado o reajuste nas rodovias de
pista simples, durante o lapso temporal, em que deveria viger a
tarifa, o ato administrativo, que representou autêntico “fato do
príncipe” exauriu seus efeitos.
16. A motivação, a exposição das razões que levaram à
prática do ato, foi largamente explicitada na Ata (a situação e o
tipo de usuários nessas rodovias, portanto, as circunstâncias de
fato) que determinaram o comportamento administrativo.
Dissemos que o ato administrativo praticado correspondeu ao chamado fato do príncipe, tal seja, determinação
administrativa lícita que repercutiu no contrato, onerando-o.
Tanto é assim, que o próprio Governo do Estado de São Paulo
já acenou, ao praticar tal ato, com a possibilidade de o eventual
reequilíbrio dos contratos de concessões ser feito com recursos
do Tesouro do Estado.
16.1. Havia, sem dúvida, a competência legal para tal
determinação, que deveria ser cumprida, tal seja, absterem-se
as concessionárias de cobrar reajuste anual nas rodovias de
pista simples.
De outra parte, detinham as concessionárias de tais
rodovias o direito de pleitear revisão, a fim de que o equilíbrio
da equação econômico-financeira não fosse afetado. Ou, qualquer
outra forma de recomposição da tarifa sem onerar o usuário.
17. Deveras, como já dissemos alhures, a Administração somente pode fazer o que a lei expressamente determinar.
Nas palavras de Enterría:
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“A legalidade atribui potestades à Administração precisamente. A
legalidade outorga faculdades de atuação, definindo cuidadosamente seus limites, habilita a Administração para sua ação, conferindo-lhe, com efeito, poderes jurídicos. Toda ação administrativa
se nos apresenta, assim, como exercício de um poder atribuído
previamente pela lei e por ela delimitado e construído. Sem uma
atribuição legal prévia de potestade, a Administração não pode
atuar, simplesmente”.7
18. De outra parte, motivo é o pressuposto fático, ou
acontecimento no mundo fenomênico, que postula, exige ou possibilita a prática do ato. Difere do motivo legal, que é o pressuposto descrito na norma.
O motivo do ato administrativo emanado, que se
encontra na Ata Intersecretarial do Governo do Estado de São
Paulo consistiu no fato, absolutamente aleatório, de os usuários
das rodovias de pista simples terem determinadas características
e condições a recomendar o não aumento da tarifa.
Segundo Araújo Cintra:
“Entendemos, portanto, como motivos do ato administrativo, o
conjunto de elementos objetivos de fato e de direito que lhe constitui o fundamento. Isto significa que, para nós, os motivos do ato
administrativo compreendem, de um lado, a situação de fato, que
lhe é anterior, e sobre a qual recai a providência adotada, e, de outro
lado, o complexo de normas jurídicas por ele aplicada àquela situação de fato”.8
Engloba o autor, pois, no motivo a fundamentação
legal que lhe serve de base.
Consoante pensamos, a fundamentação legal é o calço, a
permissão para que o acontecimento, a demandar a conduta administrativa, possa ser requisito extrínseco do ato. Motivo não se confunde com motivação, esta última o móvel do agente.
7
GARCíA DE ENTERRíA, e RAMÓN FERNÁNDEZ. CursodeDerechoAdministrativo,
4ª ed., v. II, pp. 418-419.
8
ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de. Motivo e Motivação do Ato Administrativo, São
Paulo, Ed. RT, 1979, p. 97.
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18.1. De seu turno, a finalidadedoato se divide em imediata e mediata. Enquanto a primeira, também chamada de fim,
dá-nos a categoria do ato administrativo, a segunda, a mediata, visa
a atuar a vontade normativa, o interessepúblico subjacente.
trativos:
19. Sandulli averba sobre a tipicidade dos atos adminis“Os provimentos administrativos são – como se advertiu – atos
típicos. Os tipos são aqueles previstos pelo ordenamento e aqueles
apenas; e cada um desses é caracterizado pela função peculiar assinalada pelo ordenamento: a realização do interesse público específico ao qual é preordenado”. “(...)”.
“Quanto se disse importa ainda no que concerne à nominatividade
dos procedimentos administrativos: a cada interesse público particular a realizar corresponde um tipo de ato perfeitamente definido
(explícita ou implicitamente) pela lei.”9 (tradução nossa).
19.1. De seu turno, a causa também é requisito extrínseco, necessário à validade do ato administrativo e esta deverá
sempre existir na produção de qualquer ato jurídico.
Celso Antônio acresceu ao conceito de causa de André
Gonçalves Pereira a busca da finalidade da lei.
De conseguinte, causa, para o conceituado autor, é a
“correlação lógica entre o pressuposto (motivo) e o conteúdo do
ato em função da finalidade tipológica do ato”.10
A causa da decisão da concedente encontra-se na correlação lógica entre a situação do usuário de rodovia de pista simples
e o ato emanado, a determinação de não se conceder o reajuste
(arcando o Tesouro do Estado com as eventuais conseqüências).
O conteúdo do ato é a disposição encontrada na norma
concreta (no ato administrativo, na hipótese examinada, a não
concessão de reajuste para as rodovias de pista simples e a determinação de que seus reflexos na equação econômico-financeira
9
10
SANDULLI, Aldo M. ManualediDirittoAmministrativo, v. I, Nápoles, 1973, p. 357.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. CursodeDireitoAdministrativo, 14ª edição, p. 360.
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fossem resolvidos pelo Tesouro do Estado). O conteúdo é imanente ao próprio ato administrativo.
Pode, por sua vez, o conteúdo apresentar parte eventual, tal seja, cláusulas consubstanciadas em condições, termos
e encargos.
20. Na hipótese, que examinamos, interessa-nos o
termo, conteúdo eventual do ato administrativo. Termo, é o acontecimento futuro e certo que condiciona o início ou o fim da
eficácia do ato. Assim, podemos ter termo inicial, suspensivo da
eficácia, e final, resolutivo da eficácia.
20.1. Na consulta proposta, verificamos que o termo
inicial da deflagração dos efeitos do ato era a data avençada para
o reajuste, que não se iria realizar.
O ato administrativo produziria seus efeitos até à data
de novo reajuste contratual, época em que, novamente, a Administração deveria se pronunciar, aprovando ou não, o reajuste
proposto e lhe submetido a exame. Este o termo final, pouco
importando que não se encontrasse explícito.
20.2. Vejamos novamente a determinação emanada
pela Administração concedente.
“(...) ficando decidido, por unanimidade, que o reajuste anual das
tarifas de pedágios, nadata-basedejulhodocorrente (a ata é de
27.06.2002) não será cobrado nas rodovias de pistas simples e que
eventual reequilíbrio dos contratos de concessões dar-se-á através
de recursos do Tesouro do Estado.” (grifos nossos).
20.3. Verifica-se ter sido resolvido apenas o reajuste de
julho de 2002 (naturalmente para viger durante o lapso temporal
previsto nos contratos de concessão). Nada foi avençado para os
reajustes futuros. De se concluir, pois, que o termofinal da determinação, tal seja, do ato administrativo emanado, era o termo
inicial de novo reajuste.
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21. Deveras, a cláusula 26.1. dos Contratos de Concessões dispõem a periodicidade anual do reajuste. E a cláusula
26.1.1 que o valor base para o cálculo seria “aquele que efetivamente resultou da aplicação da fórmula do reajustamento no
período anterior”.
Assim, com segurança, poderemos concluir que o reajuste, a ser outorgado (ou já outorgado), deverá incidir ou sobre
a tarifa de julho de 2001, aplicando-se os índices relativos a 24
(vinte e quatro) meses, ou, então, incidir sobre a tarifa, que deveria ser em julho de 2002, como se o reajuste houvesse ocorrido,
aplicando-se os índices anuais.
21.1. Não teve a decisão intersecretarial, ou melhor
dizendo, o ato administrativo emanado, a finalidade de traçar
política tarifária diferente, o que teria sido possível, desde
que respeitada a equação econômico-financeira dos contratos
durante toda sua vigência. E, respeitadas, como é óbvio, as formalidades procedimentais.
Ou, por outro giro, claro ficou que se estava a referir
ao reajuste de julho de 2002, a não ser que, como já dissemos,
pretendesse alterar toda a política tarifária das concessões para
as rodovias de pista simples, o que teria representado alteração
contratual, passível de revisão.
E, sem dúvida, tal alteração somente poderia se dar
observadas as formalidades legais, enfatize-se.
Feitos os comentários devidos aos temas propostos na
Consulta, passamos a responder os quesitos.
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RESPOSTAS AOS QUESITOS
1. A decisão contida na Ata de Reunião Intersecretarial do Governo do Estado de São Paulo tem caráter de
ato administrativo concreto e não abstrato. Isto é, enquadra-se perfeitamente dentro do conceito de ato administrativo,
em sentido estrito, por nós expendido. Portanto, é, apenas, aplicável, ao reajuste de julho de 2002 para as rodovias de pista simples.
Com efeito, não pretendeu, consoante pensamos, a
decisão ter seus efeitos protaídos além do marco temporal de 1
(um) ano.
2. Em face da resposta ao quesito anterior, a conseqüência lógica é no sentido de que a decisão governamental
estava sujeita a termo final, tal seja, ao período de um ano,
conforme consta na cláusula 26.1. dos contratos de concessões
de rodovias. Ao cabo desse período, termo final dos efeitos do
ato administrativo, novo pedido de reajuste deveria ser submetido à Administração Concessionária, a fim de que, novamente, deliberasse.
3. A resposta é afirmativa, como já declinamos nos itens
21 e 21.1 deste parecer. Deve-se tomar por base ou o reajuste que
se deveria ter verificado e incorporá-lo à tarifa, ou, então, tomar-se
por base a tarifa sem o reajuste e aplicar-se o índice contratual
equivalente a 24 (vinte e quatro) meses anteriores.
É o parecer.
São Paulo, 10 de dezembro de 2003.
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Lúcia Valle Figueiredo
Lúcia Valle Figueiredo
Professora Titular de Direito Administrativo
da PUC-SP
Juíza aposentada do Tribunal Regional Federal
da 3ª Região
OAB 11.596
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A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias – ABCR,
expõe-nos o que segue, formulando ao depois
CONSULTA
“Os contratos de concessão de rodovias, à semelhança
dos demais contratos de concessão, têm duração longa, que,
na prática atual, varia entre 15 a 25 anos. Durante esse prazo,
é comum a ocorrência de fatores que provocam o desequilíbrio
da equação econômico-financeira desses contratos peculiares,
gerando para o concessionário o direito à correspondente compensação, que, em tese, pode se dar por meio de vários mecanismos, tais como, a revisão tarifária, a alteração dos encargos
atribuídos ao contratado, a utilização de recursos do tesouro e o
aumento do prazo contratual.
De acordo com as circunstâncias do caso concreto, o
reequilíbrio econômico-financeiro via aumento de prazo contratual constitui a alternativa de recomposição mais adequada para
que sejam atingidas as metas de interesse público, pois com ele
se evitam os indesejáveis aumentos do valor da tarifa e alteração
dos encargos contratuais, bem como a utilização de recursos do
tesouro público, que oneram a população como um todo.
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Discute-se atualmente se o aumento de prazo das concessões, para o fim específico de promover seu reequilíbrio econômico-financeiro, tem a mesma natureza jurídica das prorrogações
por simples conveniência e oportunidade, e, conseqüentemente,
se seriam aplicáveis a ambas os mesmos efeitos jurídicos e condições de válida produção.
Em face disto, indaga-se:
I – A extensão de prazo de concessões de serviço público
quando efetuada como fórmula substitutiva da elevação de tarifas
que seria necessária para recompor equilíbrio econômico-financeiro depende de previsão contratual?
II – A extensão dos prazos de concessão para recompor seu equilíbrio econômico-financeiro poderia ser feita mesmo
quando houvesse vedação genérica, mas expressa, de prorrogação
do contrato?
III – A extensão do prazo contratual, como forma de
reequilíbrio da equação econômico-financeira implica a renegociação das demais cláusulas contratuais, especialmente as
financeiras?
IV – Quais as condições de validade para extensão do
prazo das concessões para fins de reequilíbrio?”
Às indagações respondo nos termos que seguem.
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Celso Antônio Bandeira de Mello
PARECER
1. Uma vez que a Consulta formulada envolve matéria
referida a concessões de serviço público é aconselhável, liminarmente, recordar algumas noções básicas sobre estes serviços, uma
vez que tais noções, como logo se dirá, fornecem subsídios importantes para a resolução do problema que nos foi submetido.
A mais tradicional noção de serviço público é a que
foi formulada por LÉON DUGUIT, expoente do direito constitucional e do direito administrativo, figura pinacular de seu
tempo e chefe da chamada escola do serviço público. Para este
monumental publicista serviço público é “toda atividade cujo
cumprimentoéassegurado,reguladoecontroladopelosgovernantes
porserindispensávelàinterdependênciasocialedetalnaturezaque
nãopodeserassumidosenãopelaintervençãodaforçagovernante”
(Traité de Droit Constitutionnel, E. Fontemoing, Paris, 2ª ed., v.
II, 1923, pag. 55).
Entre nós, o eminente CIRNE LIMA, formula,
também, noção substancial e, conquanto em linguagem de um
tempo mais próximo ao nosso, enuncia idéia similar, com dizer
que: é “oserviçoexistencialàSociedadeou,pelomenos,assimhavido
nummomentodado,que,porissomesmo,temdeserprestadoaos
componentesdaquela,diretaouindiretamente,peloEstadoououtra
pessoaadministrativa”(Princípios de Direito Administrativo, Ed.
Rev. dos Trib., São Paulo, 5ª ed., 1982, pag. 82).
Em ambas as conceituações fica plenamente ressaltada
a extremada importância do serviço, seu enorme relevo para os
membros do corpo social, característica esta que, indubitavelmente, se encontra na base da noção de serviço público, isto é, no
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fundamento dela como elemento que o direito recolhe e consagra dando-lhe entidade jurídica.
2. Aliás, é oportuno dizer que a noção de serviço público
veio a ser apresentada por DUGUIT como fórmula revolucionadora do direito público em geral e do administrativo em particular,
porquanto o iluminado mestre procurava exibir que a verdadeira
justificação do Estado residia na idéia de “serviço aos administrados” e não na de um “poder comandante”; ou seja, pretendeu substituir o anterior eixo metodológico do direito público. Para ele, “o
serviçopúblicoéolimiteeofundamentodopodergovernamental”.
Daí haver arrematado “Etparlàmathéoriedel’Étatestachevée”
(op. cit. vol. cit., pg. 70).
Ademais, se ainda se toma em conta a noção de
DUGUIT sobre a regra de direito – cuja formulação, todavia,
não é o caso de abordar aqui – mais claro fica o papel serviente
dos administradores. Ainda em 1967, ao respeito escrevemos que,
para ele, em conseqüência: “OEstadopassaaserumconjuntode
serviçospúblicoseosgovernantes,submetidosàregradedireitoassim
comoossúditos,sãoapenasosgerentesdosserviçospúblicos” (Natureza e Regime Jurídico das Autarquias, Ed. Rev. dos Trib., São
Paulo, 1967, pag. 145). O administrativista belga CYR CAMBIER, com inegável procedência captou argutamente as conseqüências mais profundas implicadas nas posições do mestre de
Bordeaux ao averbar que elas “conduziam a fazer do poder um
dever,docomando,queéordemdada(jussus),umordenamento,
queéamedidaadotadaeadaptada(ordinatio)” (Droit Administratif, Ed. Maison Ferdinand Larcier, Bruxelas,1968, pag. 228).
3. As precedentes considerações são bastantes para
enfatizar o relevo da noção de serviço público, sua íntima relação
com uma concepção de Estado que melhor se afina com os valores democráticos, e conseqüentemente realçam o dever estatal de
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torná-loomaispossívelacessívelatodososcidadãos,já que a própria
razão de ser do Estado é servir aos administrados.
Deveras, tratando-se de atividade cuja importância é
tal que o Estado se vê constrangido a assumi-la e que, além disto,
subtrai ao campo da livre iniciativa (à exceção, entre nós, dos
serviços ditos sociais: educação, saúde, assistência e previdência
social), é óbvio que terá de ser ofertada à Sociedade nas condições
mais propícias para que esta possa deles dispor. Com efeito, se
estão definidos como instalados e residentes na esfera pública, de
tal sorte que os administrados, como regra, só podem usufruí-los
quando ofertados pelo próprio Estado ou quando este haja constituído terceiros no poder de prestá-los, precisamente por lhes
reconhecer a mais extremada importância social, é óbvio que hão
de ser oferecidos aos usuários em condições as mais favoráveis
possíveis, caso contrário estar-se-ia impedindo ou negando o desfrute de algo que foi havido como fundamental.
É esta elementar constatação que erige a “modicidade
das tarifas”, quando prestado por particulares credenciados a
fazê-lo, em princípio basilar do serviço público. Similarmente, a
gratuidade do serviço ou a modicidade das taxas são obrigatórios
quando seu prestador for o Estado.
4. Eis, pois, que a “modicidade” do montante a ser pago
contra a oferta do serviço tem um significado e um realce muito
maior do que a de uma simples regra, encartada no art. 6º, § 1º
e encarecida no art. 11 da lei 8.987, de 13.02.95, disciplinadora
das concessões. Constitui-se em um princípio do serviço público e
dentre eles, por certo, um dos que apresenta relevo máximo.
Com efeito, princípio é um comando fundamental que,
por sua força aglutinadora e por seu significado, é indispensável
para iluminar a composição lógica de um dado instituto, isto é,
de um dado complexo de normas nucleadas ao derredor de certo
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tópico ou, mesmo, conforme o escalão em que se radique, é fundamental para a intelecção de todo o sistema normativo.
O princípio, por definição, constitui-se em mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondolhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do
sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido
harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há
por nome sistema jurídico positivo. Daí porque violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer.
A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a
um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema
de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque
representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus
valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço
lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Donde, com ofendê-lo,
abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas
esforçada. Entende-se, pois, que são recomendáveis os mais
empenhados esforços em atendê-lo, pelo que, sua busca deve ser
sempre prestigiada e favorecida em todas as oportunidades.
Estando em pauta serviços públicos, o princípio da
modicidade apresentar-se-á, então, como impostergável vetor
interpretativo a ser mobilizado perante dúvidas exegéticas que se
proponham, oferecendo socorro para dilucidá-las e demandando
os direcionamentos hermenêuticos aptos a prestigiar sua vigência
e viabilizar sua aplicação.
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É com atenção posta nestas noções que se haverão de
examinar as indagações da Consulta.
5. Indaga, inicialmente, a Consulente se a prorrogação
do prazo da concessão, tendo em vista a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, depende de expressa previsão legal
e contratual.
Cumpre desde logo notar que são situações claramente
distintas as de prorrogações contratuais efetuadas por simples
convicção da conveniência e oportunidade administrativa de
extensão de seu prazo, (diante, sobretudo, do bom desempenho do concessionário e do interesse de ambos na continuidade
daquele vínculo) das que sejam efetuadas tendo em vista a sustentação do equilíbrio econômico-financeiro da relação.
Na primeira hipótese, nada há, do ponto de vista jurídico, que incite o Estado à prorrogação. Questões de conveniência
que o atraiam para tanto não se confundem com reclamos jurídicos que o levem a dilatar o período contratualmente previsto
e estipulado. Assim para as prorrogações suscitadas por mero
interesse administrativo em dilargar o prazo da concessão para
além de seu termo normal, é óbvio que seria necessária previsão
legal autorizadora. A ser de outro modo, a Administração estaria
agindo por fora das balizas normativas e, ademais, incorrendo
em burla ao princípio da licitação, já que outros, se soubessem
antecipadamente de tal possibilidade aberta pela lei e acolhida no
edital, poderiam ter acorrido ao certame ou, os que acorreram,
poderiam ter feito oferta distinta da que fizeram.
Não é esta, contudo, a situação que se porá quando a
prorrogação constitui-se em medida assecuratória do equilíbrio
econômico financeiro – direito do concessionário ao qual a Administração não teria como se evadir – sem, contudo, acarretar para
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os usuários o dispêndio suplementar causado pelo incremento
tarifário e sem implicar ônus algum para o Poder Público.
6. Com efeito, nesta última hipótese, à toda evidência,
o que entra em pauta é um expediente utilizável para evitar agravar os usuários com o aumento das tarifas, ou seja, para favorecer
a obediência ao princípio da modicidade delas. Assim, é visível
que em tal caso não está em questão a idéia singela de prosseguir
um vínculo além do termo inicialmente previsto apenas porque
a relação se apresentara como satisfatória. Antes, tal evento se
propõe como fórmula concebida para, ao atender um dever jurídico inelutável – o de promover o reajuste tarifário necessário
para manter o equilíbrio financeiro do contrato – evitar sua
repercussão sobre os usuários do serviço.
Daí que, a prorrogação contratual, ao contrário da
outra situação figurada, estará, de direito, assentada em dois
cânones normativos que lhe servirão de escora, isto é, de suporte
de legitimidade: de um lado, ante a vicissitude de respeitar a
equação econômico-financeira, a norma que lhe impõe tal dever
e de outro o princípio prestigiador da modicidade. Segue-se que
a ausência de previsão permissiva no edital ou no contrato estaria
suprida por estas aludidas normas, sendo que a disposição legal
que determina a modicidade das tarifas – noção que, como se
disse, tem hierarquia de princípio – é a que diretamente lhe servirá de calço.
De outra parte, “in casu”, não haveria cogitar de violência ao princípio da licitação, porque, como é óbvio, extensão
contratual suscitada para mantença do equilíbrio econômicofinanceiro, é circunstância que jamais poderia significar estímulo
para que acedessem ao certame eventuais licitantes que a ele não
acudiram, assim como em nada poderia interferir com as propostas efetuadas pelos que o disputaram. Deveras, não há nisto
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qualquer vantagem suplementar para o concessionário, capaz de
atrair concorrentes ou de alterar ofertas.
Assim, não há duvidar que, embora inexistindo na lei,
no edital ou no contrato, explícita contemplação de prorrogação
contratual para atender à finalidade mencionada, esta, sem a
menor dúvida ou entredúvida, é perfeitamente cabível. Ou seja:
dita prorrogação independe de previsão legal ou contratual.
7. Indaga mais a Consulente se tal solução seria admissível também nos casos em que o edital ou o contrato proibissem
prorrogação. A menos que um, outro, ou ambos vedassem a extensão contratual de modo a tornar claro que a interdição nele(s)
cogitada abrangia a que se efetuasse como fórmula substitutiva
da elevação de tarifas, que, de outra sorte, seriam incrementadas
para mantença da equação financeira, haver-se-ia de concluir pela
possibilidade da sobredita prorrogação.
Ou seja: uma intelecção razoável seria a de considerar não
incluída em seu âmbito, a contradita a uma solução que tem bons
fundamentos jurídicos para ser adotada e que, demais disto, apresenta óbvias vantagens para a Administração e para os usuários
do serviço, sem trazer agravo a direitos de quem quer que seja, ao
passo que a oposição a ela traria evidentes e indubitáveis desvantagens para os usuários ou, se estes fossem delas poupados, seriam
transferidas para o erário público, já que, em tal caso, este teria que
suplementar a receita do concessionário para conservação do equilíbrio econômico-financeiro afetado.
8. Este entendimento que se vem de expor encontra
conforto na melhor doutrina. Veja-se. Disse, CARLOS MAXIMILIANO, o príncipe de nossos mestres de exegese, que honrou
o Supremo Tribunal Federal com suas luminosas ensinanças:
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“Deve o Direito ser interpretado inteligentemente, não de modo a
que a ordem legal envolva um absurdo prescreva inconveniências,
vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” (Interpretação e
Aplicação do Direito, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 15ª ed., 1995,
pág. 166).
De outra parte, o eminentíssimo RECASÉNS SICHES,
a quem se deve a introdução da lógica do razoável como noção
presidente da interpretação em Direito, averbou:
“A norma legislativa se formula em termos gerais, porém quem a
formula tem em mente um determinado tipo de casos, bem reais,
dos quais teve experiência, ou têm mentalmente antecipados por
suaimaginação,emrelaçãoaosquaispretendequeseproduzaum
determinadoresultado,precisamenteporqueconsideraesteresultado
omaisjusto.
Entãoresultaevidentequeojuiz,antequalquercasoqueselheapresentetem,antesdetudo,queverificarmentalmenteseaaplicação
da norma, que em aparência cobre dito caso, produzirá o tipo de
resultadojustoemqueseinspirouavaloraçãoqueéabasedaquela
norma”. .....”Se, o caso que se coloca perante o juiz é de um tipo
diferentedaquelesqueserviramcomomotivaçãoparaestabelecera
normaeseaaplicaçãodelaatalcasoproduziriaresultadosopostosa
aquelesaqueelasepropôs,ouopostosàsconseqüênciasdasvalorações
emqueanormaseinspirou,entendoquesedeveconsiderarquea
normanãoéaplicávelàquelecaso” (Filosofia del Derecho, Editorial Porrua, Mexico, 2ª ed., 1961, pag. 659).
É claro que estas lições tanto têm aplicação à intelecção
das leis quanto à de um edital ou de um contrato. O mesmo
se pode dizer dos comentos feitos por HENRY CAMPBELL
BLACK, que foi ”Chief Justice”, isto é, Presidente da Suprema
Corte dos Estados Unidos da América do Norte e é autor daquele
que talvez seja o mais monumental trabalho sobre interpretação.
Disse ele:
“Uma lei deve ser interpretada em consonância com seu espírito e
razão;asCortestempoderparadeclararqueum
casoconformadoàletradaleinãoéporelaalcançadoquandonão
estejaconformadoaoespíritoeàrazãodaleiedaplenaintenção
legislativa” (Henry Campbell Black, “Handbook on the Cons60
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truction and Interpretation of the Laws”, West Publishing Co.,
St. Paul, Minn., 1896, pag. 48).
Citando decisão da Suprema Corte Americana, o referido jurista transcreve-lhe as seguintes considerações:
“Éumaregracediçaadequealgopodeestarconformeàletradeuma
leie,entretanto,nãocomapróprialei,porquenãoestáconformeao
seuespíritonemcomodeseusfautores. Istotemsidofrequentemente
afirmado e os repertórios estão repletos de casos ilustrativos de sua
aplicação.Istonãoéasubstituiçãodaintençãodojuizpeladolegislador;pois,frequentementepalavrasdesentidogeralsãousadasem
umalei,palavrasamplasobastanteparaabarcaroatoemquestão,
e, todavia, a consideração da legislação em sua totalidade, ou das
circunstânciasqueenvolvemsuaproduçãooudosresultadosabsurdosquepromanariamdeseatribuirtalsentidoamploàspalavras,
fazem com que seja descabido admitir que o legislador pretendeu
nelasabrangerocasoespecífico” (Rector of Holy Trinity Cherch
v. U.S.).
Observou ainda que:
“Itispresumedthatlegislaturedoesnotintendanabsurdity,orthat
absurd consequences shall flow from its enactments. Such a result
will therefore be avoided, if the terms of the act admit of it, by a
reasonableconstructionofthestatute” (Handbook on the Construction and Interpretation of the Laws, West Publishing, 1896,
pag. 104).
E logo além, à mesma página:
“The presumption against absurd consequences of the legislation is
thereforenomorethanthepresumptionthatthelegislatorsaregifted
whitordinarygoodsense”.
9. Quaisquer destas citações e elas em seu conjunto
assentam como uma luva ao caso concreto. Deveras, o que nelas
se lê é precisamente o ensinamento de que jamais se pode adotar
uma interpretação pedestre, aferrada à literalidade da linguagem
e que, em decorrência disto, venha a sacrificar o espírito da norma
ou abicar na extração de conseqüências por certo indesejadas por
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quem a estabeleceu, contrariando o que a lógica e o bom-senso
estariam a indicar como cabível.
Ora, o caso “sub examine” demanda, como é claro a
todas as luzes, entendimento capaz de atender aos reclamos do
fundamental princípio da “modicidade das tarifas”, tanto mais
porque fazê-lo só traz benefícios, não acarreta prejuízo a quem
quer que seja, não contravém qualquer cânone retor da atividade
administrativa e antes neles encontra respaldo. Assim, adotar
inteligência que abica em tão prezáveis resultados, ao invés de
adotar intelecção que, inversamente, só aporta inconvenientes, é
ato do mais elementar bom-senso.
Ninguém contenderia que entre duas interpretações possíveis, uma que exponencia vantagens, sem agravos a ninguém, e
outra da qual só resultam ônus e sacrifícios para os administrados
ou para a Administração, haver-se-á de adotar a primeira alternativa, pena de incorrer em irracionalidade manifesta.
Assim, pelas razões expostas, é de concluir que é perfeitamente possível a extensão do prazo contratual de concessionário
como fórmula alternativa à elevação de tarifas que teria de ocorrer para fins de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro
do ajuste, ainda que disposição editalícia ou cláusula contratual
contenham disposição que apenas genericamente interdite prorrogação do contrato.
10. Indaga também a Consulente se a extensão do prazo
contratual como forma de reequilíbrio da sobredita equação
implica a renegociação das demais cláusulas contratuais, especialmente as financeiras.
O único sentido da prorrogação do contrato com a
função supra indicada é evitar a elevação das tarifas. Ou seja, sua
única razão de existir é promover a substituição dos valores em
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que se traduziria tal incremento pela dilação do lapso temporal ao
longo de cujo percurso o concessionário captaria as tarifas que lhe
corresponderiam, de sorte que, graças a este período suplementar
de captação delas, possa haurir, compensatoriamente, o equivalente ao que perceberia em um lapso temporal menor se as tarifas
houvessem sido reajustadas, como de direito.
Sendo esta a única justificativa, o único fundamento,
da prorrogação contratual bem se vê que não comparece para
nada qualquer alteração desbordante deste escopo. É dizer: tal
prorrogação, à toda evidência, não implica qualquer renegociação de cláusulas contratuais, que ultrapassem o limite singelo de
promover a equivalência entre os dois termos a que se aludiu: de
um lado, a detença da atualização das tarifas, com a conseqüente
subtração de receita a que o concessionário faria jus, e, de outro
lado, a compensação desta perda, com a recuperação dos equivalentes valores pela extensão do prazo do contrato.
Toda alteração de cláusula contratual, toda renegociação, notadamente de ordem financeira, que ultrapasse o requerido
pelos tópicos mencionados será perfeitamente alheia às razões e
fundamentos autorizadores da extensão do contrato para além de
seu termo final originariamente estabelecido. Assim, é evidente
que o concessionário não tem obrigação alguma de aceitar modificações de tal ordem como condição para extensão do prazo
contratual, sempre que tais alterações sejam desnecessárias para
o atingimento da finalidade que justificaria a extensão do contrato, desbordando, pois do escopo e dos limites que serviriam de
suporte lógico e jurídico para sua prorrogação.
11. Postremeiramente a Consulente indaga quais as
condições de validade para extensão do prazo das concessões
quando operado para fins de reequilíbrio. Desde logo, é preciso
que seja indiscutível, absolutamente certo, o direito do conces63
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sionário a um dado reajuste, o qual, justamente, será substituído pela ampliação do prazo contratual. De outra parte, cumpre
que esta dilatação seja estabelecida na exata medida necessária à
absorção do montante subtraído ao concessionário pela não elevação das tarifas e conseqüente perda de valores que, em condições normais, auferiria até o final originariamente previsto para
o contrato.
12. Isto posto, às indagações da Consulta respondo:
I – Independe de previsão contratual a extensão de
prazo de concessões de serviço público quando efetuada como
fórmula substitutiva da elevação de tarifas que seria necessária
para recompor equilíbrio econômico-financeiro;
II – A extensão do prazo contratual com a finalidade
acima mencionada pode ser efetuada ainda quando haja no contrato genérica vedação de prorrogação do termo da concessão,
pois dita interdição, à toda evidência, não se propõe a obstá-la na
específica hipótese em questão;
III – A prorrogação procedida com a finalidade indicada, obviamente não implica em nada e por nada qualquer
renegociação de cláusulas contratuais, notadamente financeiras,
alheias ao único sentido de tal extensão de prazo; isto é: promover compensação de perdas que o concessionário sofrerá com a
manutenção incólume do valor tarifário;
IV – Para validade da prorrogação do prazo de concessão, efetuada em substituição à elevação de tarifas, requer-se, de
um lado, que seja indiscutível o direito do concessionário a um
dado reajuste que ficará bloqueado e, de outro, que a dilatação do
prazo se contenha na medida necessária à absorção do montante
subtraído pela não elevação das tarifas, de maneira a reparar o
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concessionário pela perda de valores que, em condições normais,
auferiria até o final originariamente previsto para o contrato se
lhe fosse outorgado o reajuste devido.
É o meu parecer.
São Paulo, 16 de junho de 2006.
Celso Antônio Bandeira de Mello
OAB-SP nº 11.199
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CONCESSÃO DE RODOVIAS E OS
PRINCÍPIOS DA SUPREMACIA
DO INTERESSE PÚBLICO, DA
MODICIDADE TARIFÁRIA E DO
EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO
DO CONTRATO
ARNOLDO WALD
Advogado. Professor Catedrático da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
MARINA GAENSLY
Advogada. Mestre em Direito Público pela UERJ.
SUMÁRIO: I – A política nacional de desestatização e
a concessão de rodovias. II – As novas concessões. III –
Especificidades relevantes e modelos de concessão. IV –
O caráter contratual das concessões: um contrato especial
(CF, art. 175, p. ún., I). V – Atendimento ao “interesse
público”: respeito aos contratos ou modicidade tarifária?
VI – Equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de
concessão. VII – Conclusão.
EMENTA
A política de concessão da exploração de serviços em estradas e rodovias à iniciativa privada, na década de 90, viabilizou notória melhoria de diversas estradas brasileiras,
cujas más-condições constituem não apenas um entrave
ao desenvolvimento econômico, mas sobretudo um risco
à própria segurança e integridade física dos seus usuários.
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Não por outra razão, Estado recentemente retomou a política de privatização do setor.
Por se ter alcançado, nos leilões mais recentes, tarifas aparentemente mais baixas, tem sido aventada a possibilidade
de rever os contratos firmados anteriormente, a fim de
diminuir a taxa de rentabilidade dos concessionários.
Comparação de valores que desconsidera as peculiaridades de cada caso concreto (como demandas específicas de
investimentos em cada trecho ou estrada e diferença entre
os modelos de concessão adotados).
Alteração aventada que, de todo modo, não encontra guarida na ordem jurídica vigente.
Natureza contratual da concessão (contrato de natureza
especial, segundo art. 175, p. ún. III, da CF). Necessidade
de observância, por parte da Administração, dos princípios
da boa-fé, da confiança e da moralidade.
Investigação do sentido e do alcance dos princípios da
supremacia do interesse público, da modicidade tarifária e
do equilíbrio econômico-financeiro da concessão.
“ConstituiçãoFederal
Art. 37 (...)
XXI-ressalvadososcasosespecificadosnalegislação,asobras,
o serviços, compras e alienações serão contratados mediante
processodelicitaçãopúblicaqueassegureigualdadedecondiçõesatodososconcorrentes,comcláusulasqueestabeleçam
obrigaçõesdepagamento,mantidas as condições efetivas
da proposta,nostermosdalei,oqualsomentepermitiráas
exigênciasdequalificaçãotécnicaeeconômicaindispensáveis
àgarantiadocumprimentodasobrigações.”
I – A POLÍTICA NACIONAL DE DESESTATIZAÇÃO E
A CONCESSÃO DE RODOVIAS
1.
Muito embora a política de cobrança de pedágio
em rodovias tenha sido, há bastante tempo, implementada com
sucesso em numerosos países da Europa e da América do Norte,
sua introdução no Brasil foi lenta e reticente. Durante muitos
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Arnoldo Wald e Marina Gaensly
anos, em pouquíssimas estradas havia pedágio e geralmente a
concessão do serviço era outorgada a uma empresa estatal.
2.
Há mais de quarenta anos, por exemplo, o Governador do Estado de São Paulo decidiu conceder à estatal Dersa
Desenvolvimento Rodoviário S/A a concessão do chamado
Sistema Imigrantes-Anchieta. Naquela época, a implantação
do pedágio deu azo à intensa discussão acerca da sua constitucionalidade, bem como da possibilidade de cobrança da tarifa
sem via alternativa. O Tribunal de Justiça de São Paulo, na ocasião, decidiu pela constitucionalidade da cobrança, tendo sido
a decisão confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (Sessão
Plenária, RE 75.641, relator Ministro Xavier de Albuquerque,
Revista Trimestral de Jurisprudência nº 70, pp. 469-473)1.
3.
Em meados da década de 1990, em meio à adoção
de ampla política nacional de desestatização de diversos setores da economia, o governo brasileiro – tanto na esfera federal
quanto na estadual – decidiu ampliar o número de rodovias
concedidas e facultar também à iniciativa privada a exploração
do serviço.
4.
Em 1993, foi criado o Programa de Concessão de
Rodovias Federais – PROCOFE, no bojo do qual foram concedidos aproximadamente 14 mil quilômetros de estradas. A
Lei nº 9.277/96 (Lei de Delegações) possibilitou a assinatura
de convênios entre a União e os Estados, de modo a delegar a
estes últimos trechos de rodovias federais, visando a integração com programas estaduais de concessão.
1
A obra O pedágio – constitucionalidade e legalidade, publicada pela Dersa, em São Paulo,
1974, reuniu diversos pareceres emitidos sobre o tema, subscritos por Arnoldo Wald (21.11.1969),
Hely Lopes Meirelles (27.10.1970), Pontes de Miranda (29.9.1970), Miguel Seabra Fagundes
(26.6.1971), Orlando Carlos Gondolfo (22.11.1969) e pela Procuradoria Geral da Justiça, representada pelo Procurador Eurico de Andrade Azevedo (17.6.1971).
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
5.
Assim é que estradas mal conservadas, que constituíam não apenas um entrave ao desenvolvimento econômico,
mas sobretudo um risco à própria segurança e integridade física
dos seus usuários, passaram a ceder lugar, em geral, a rodovias
bem asfaltadas e bem sinalizadas, complementadas por serviços
que vão desde a prestação de informações aos usuários sobre as
condições do tráfego, até guincho, resgate e atendimento préhospitalar em caso de acidentes.
6.
A população, em geral, aprovou a adoção da política de concessões rodoviárias. Pesquisa do Instituto Datafolha, com motoristas que trafegavam pela Rodovia Presidente
Dutra logo após a privatização, mostrou que 93% deles foram
favoráveis a que as rodovias passassem a ser administradas por
particulares, tendo apenas 5% dos motoristas se declarado
contrários à privatização2. Outra pesquisa, realizada em 2006
pela Confederação Nacional do Transporte, mostrou que, das
23 melhores rodovias do país, 20 são administradas pela iniciativa privada e que 79,8% das estradas pedagiadas foram
classificadas como “ótimas” ou “boas”3.
7.
Mas as concessões da década de 90 não foram
suficientes. Estima-se que as rodovias transportem, atualmente, cerca de 65% de toda a produção nacional. Porém,
aproximadamente 80% das estradas brasileiras ainda são classificadas como deficientes, ruins ou péssimas4.
8.
Não é difícil perceber, portanto, que um dos principais gargalos ao desenvolvimento econômico brasileiro ainda
está nas estradas mal conservadas e congestionadas, causado2
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff02059822.htm
Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2007/10/10/rodovias_leiloadas_precisam_
de_ recapeamento_e_sinalizacao_1039356.htm
4
Arnoldo Wald. Arecentejurisprudênciarelativaaoscontratosdeconcessão. Digesto Econômico vol. 60, número 432, p. 34-46.
3
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Arnoldo Wald e Marina Gaensly
ras de diversos obstáculos à produção e à exportação, tais como
atrasos no embarque de mercadorias, aumentos no preço dos
fretes e demais deficiências estruturais que geram o que se convencionou chamar de “custo Brasil”: despesas que encarecem a
produtividade e desfavorecem a competitividade das empresas
que atuam no país.
9.
Embora se reconheça que a privatização não pode
alcançar todas as rodovias e que o pedágio não é necessariamente uma solução eficaz em qualquer caso, não há dúvida
de que, para o setor de infraestrutura rodoviária, os institutos da concessão e da parceria certamente proporcionam um
grande progresso. São fatores de desenvolvimento econômico,
reduzem o índice de acidentes e ainda, sob o prisma de justiça
social, fazem recair os encargos decorrentes da manutenção de
rodovias não sobre toda a sociedade, mas apenas sobre aqueles
diretamente interessados no serviço: os próprios usuários.
II – AS NOVAS CONCESSÕES
10.
Por tudo isso é que, depois de longo período sem
novas concessões, o Estado brasileiro voltou a recentemente
adotar a política de transferir à iniciativa privada a exploração
das rodovias.
11.
A União Federal, por exemplo, decidiu ampliar o
número de estradas privatizadas, realizando, em outubro de
2007, leilão para a exploração de 7 trechos rodoviários, que
totalizaram 2.600 quilômetros. Estradas importantes e de
grande peso no escoamento da produção brasileira (como a
Rodovia Fernão Dias, que liga Belo Horizonte a São Paulo,
e a Rodovia Régis-Bittencourt, que liga São Paulo a Curitiba) foram transferidas à iniciativa privada. Também alguns
Estados federados voltaram a ampliar o número de estradas
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concedidas, podendo-se citar, como maior exemplo, a recente
licitação do Trecho Oeste do Rodoanel de São Paulo, obra de
grande importância estratégica para a maior cidade do país.
12.
O resultado desses últimos leilões, porém, tem
despertado algumas controvérsias com relação às concessões
anteriores. O preço da tarifa alcançado nos novos pedágios
ficou significativamente menor do que o das concessões realizadas na década de 90, além de ter havido grandes deságios nos
certames licitatórios.
13.
A relação entre o preço do pedágio dividido por
quilômetro tem sido a grande vedete comparativa. Na Rodovia
dos Bandeirantes, situada no Estado de São Paulo e que foi concedida na década de 90, por exemplo, o usuário paga R$ 0,127
por quilômetro atualmente. Enquanto isso, a tarifa que será
cobrada na Rodovia Fernão Dias, recentemente privatizada,
ficou em R$ 0,01 por quilômetro rodado. No Trecho Oeste do
Rodoanel, também objeto de concessão recente pelo Estado de
São Paulo, o custo ficará em R$ 0,09 por quilômetro.
14.
Sob o impacto da discrepância entre esses números, alguns setores da imprensa, entidades de defesa do consumidor e até representantes de órgãos estatais se apressaram a
afirmar que havia indícios de “desequilíbrio econômico-financeiro” nos contratos de concessão firmados na década de 90. E
que haveria também um lucro exacerbado dos concessionários,
em detrimento dos princípios da modicidade tarifária e supremacia do interesse público.
15.
Nesse cenário, duas perguntas cabem ser feitas. A
primeira é se tais números são fonte segura para se afirmar que
há, realmente, nas concessões anteriores, um “desequilíbrio”
entre as prestações devidas pelos usuários e os ganhos auferidos
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pelas concessionárias, ou seja, um lucro indevido das empresas
que estaria onerando indevidamente os usuários.
16.
A segunda pergunta, por sua vez, é: se efetivamente houver alguma discrepância relevante em termos de
rentabilidade, seria juridicamente possível rever os contratos
de concessão anteriores para diminuir as taxas de lucro das
empresas concessionárias, com base nos princípios da modicidade tarifária, da supremacia do interesse público e do próprio
equilíbrio econômico-financeiro da concessão?
17.
Este estudo busca responder essas duas questões.
III – ESPECIFICIDADES RELEVANTES E MODELOS
DE CONCESSÃO
18.
A concessão de rodovias à iniciativa privada é
precedida de amplo estudo acerca da viabilidade e da melhor
forma para sua implementação. De fato, nem toda rodovia é
passível de exploração por meio de pedágio. Muitas, embora
tenham importância política e social, em razão do baixo
número de usuários, não dão ensejo a uma concessão economicamente viável. Além disso, cada estrada tem uma demanda
específica de investimentos e um retorno econômico próprio.
Certas estradas, por exemplo, demandam realização de obras
como a duplicação de faixas, construção de pontes, túneis, viadutos etc. Outras carecem apenas de recapeamento. O fluxo de
veículos – e, portanto, o retorno do investimento do concessionário – também varia acentuadamente caso a caso.
19.
Cada trecho explorado tem, portanto, sua particularidade, que, se não inviabiliza, ao menos dificulta a simples comparação entre os valores resultantes de uma divisão do
preço do pedágio por quilômetro.
73
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20.
Mas não é só. O preço do pedágio também varia
conforme a estratégia política adotada por cada poder concedente. Ao delegar a exploração de um trecho à iniciativa privada, o ente estatal pode ou não cobrar o chamado valor de
outorga ou ônusdaconcessão, que nada mais é do que um preço
a ser pago pelo concessionário ao concedente apenas e tão-somente em virtude da delegação.
21.
O valor de outorga, por vezes, tem por objetivo
custear obra na própria estrada objeto da exploração. É o caso da
recente licitação para a concessão do Trecho Oeste do Rodoanel
de São Paulo, por exemplo, em que o Governo Estadual decidiu cobrar ônus de concessão para custear as obras necessárias à
finalização do projeto rodoviário em questão.
22.
Evidentemente que, quando a concessão é condicionada ao pagamento de um valor de outorga ao Poder
Público, o preço do pedágio se eleva. Nas recentes licitações
realizadas em esfera federal, que chamaram a atenção da coletividade pelo baixo valor da tarifa alcançado nos leilões, não
houve cobrança de qualquer quantia pela outorga.
23.
É bom registrar que não há possibilidade de se
afirmar, a priori, qual modelo de concessão é melhor ou mais
vantajoso para a coletividade. Embora tenha um apelo popular, a decisão de reduzir ao máximo a tarifa do pedágio, não
cobrando qualquer valor pela outorga, pode implicar na distribuição dos custos da realização de outros investimentos em
estradas entre todos os contribuintes, ao invés de atribuí-los
apenas àqueles que diretamente se beneficiam desses recursos:
os usuários.
24.
A decisão sobre qual modelo adotar, portanto,
além de envolver uma enorme carga política, deve ser casuís74
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tica, ou seja, deve levar em consideração uma enormidade de
aspectos relativos a cada caso concreto, a cada trecho rodoviário a ser concedido.
25.
Do que foi brevemente exposto acima, já é possível depreender que a resposta à primeira pergunta é negativa.
A diferença entre os valores dos pedágios das concessões anteriores, da década de 90, e o das mais recentes não pode ser
atribuída, genericamente, sem levar em consideração as peculiaridades de cada caso concreto, a uma variação da taxa de
rentabilidade dos concessionários. Além de serem trechos com
demandas de investimentos e retornos financeiros diferentes,
são modelos de concessão também distintos.
26.
Essa conclusão, porém, não exaure a questão em
análise. Resta ainda a segunda e mais importante indagação: se
efetivamente houver alguma discrepância relevante na taxa de
rentabilidade das concessões realizadas na década de 90 e nas
mais recentes, seria juridicamente possível rever os contratos
anteriores a fim de reduzir o lucro dos concessionários, com
fundamento nos princípios da modicidade tarifária, da supremacia do interesse público e do próprio equilíbrio econômicofinanceiro da concessão?
27.
A resposta a essa indagação requer maior aprofundamento no plano teórico jurídico.
IV – O CARÁTER CONTRATUAL DAS CONCESSÕES:
UM CONTRATO ESPECIAL (CF, 175, P. ÚN., I)
28.
Diferentemente do sistema anterior às privatizações, em que, como já dito, as concessões eram outorgadas
normalmente a empresas públicas ou de capital misto, numa
relação que já foi classificada de incestuosa, as concessões de
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serviços públicos mais recentes, outorgadas à iniciativa privada,
têm um caráter contratual inviolável5.
29.
Efetivamente, a grande modificação da legislação
editada na década de 90, inspirada, aliás, na própria Constituição de 1988, foi a atribuição de um caráter contratual à
concessão, limitando o poder da autoridade e impondo deveres
estritos e direitos específicos ao concessionário.
30.
A Constituição de 1988 reconhece o caráter contratual da concessão e garante, ademais, a livre iniciativa, a
propriedade privada e o devido processo legal substantivo, que
assegura direitos fundamentais ao contratado. Como os recursos investidos agora são privados, a intervenção do Estado não
mais pode ser arbitrária ou discricionária, mas deve ser baseada
no que for contratualmente estipulado.
31.
De fato, a nova fase do direito da concessão caracteriza-se sobretudo por sua despolitização, que impede, por
exemplo, a fixação de tarifas demagógicas ou confiscatórias,
vincula a noção de modicidade tarifária às de serviço adequado
e de equilíbrio econômico-financeiro, e demanda a definição
prévia e adequada dos deveres do concessionário e das sanções
que lhe podem ser aplicadas.
32.
Há, sobretudo, regras do jogo pré-estabelecidas
que não podem ser aleatoriamente modificadas. Quem presta
serviço público necessita ter não apenas a contraprestação do
seu investimento (que é representada pelas tarifas cobradas dos
usuários), mas também ter preservadas a sua confiança e a sua
boa-fé.
5
Arnoldo Wald, Luiza Rangel de Moraes e Alexandre de Mendonça Wald, ODireitodeParceriaeaNovaLeidasConcessões, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996, p. 38.
76
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33.
Com efeito, os princípios da boa-fé, da confiança
e da lealdade devem reger quaisquer relações negociais, inclusive as de direito público6. Embora tenham se desenvolvido
no âmbito do direito privado, não há qualquer motivo para
se supor que tais princípios não sejam aplicáveis também às
ações e aos contratos celebrados pelo Poder Público. Justamente
ao contrário, por sua própria natureza, o Estado tem obrigação ainda maior de atuar sempre e em qualquer circunstância
com boa-fé, em obediência ao próprio princípio da moralidade
administrativa (art. 37, caput, da Constituição).
34.
Ao dever de atuar de boa-fé corresponde o direito
de outrem de ver realizada a sua expectativa, ou seja, de não ser
frustrada a confiança que depositou no co-contratante ou em
terceiro.
35.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem
reconhecido que o princípio da boa-fé também deve ser observado pela Administração, impedindo-a, por exemplo, de reformular atos para atingir direitos de terceiros, que confiaram na
regularidade do seu procedimento7. A esse respeito, destaque-se
acórdão relatado pelo Ministro Ruy Rosado Aguiar:
“Sabe-se que o princípio da boa-fé deve ser atendido também
pela administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu
comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado
pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os
6
Nesse sentido, Roberto Dromi lembra que o princípio da boa-fé é “enraizado en lasmás
sólidastradicioneséticasdenuestracultura”, razão pela qual fundamenta e informa “todonuestro
ordenamientojurídico,tantopúblicocomoprivado”. (LasEquacionesdelosContratosPúblicos. Buenos Aires, Ciudad Argentina, 2001, p. 51).
7
Almiro do Couto e Silva escreveu relevante trabalho sobre a importância da preservação da
boa-fé do particular, mesmo que ela se contraponha, aparentemente, ao princípio da legalidade
administrativa. Diz o autor que a “proteção da boa fé ou da confiança (Vertrauensschutz) que os
administradores têm na ação do Estado, quanto à sua correção e conformidade com as leis” é elemento estruturante do Estado de Direito, junto com o próprio princípio da legalidade (Princípios
daLegalidadedaAdministraçãoPúblicaedaSegurançaJurídicanoEstadodeDireitoContemporâneo. Revista de Direito Público nº 84, pp. 46-63).
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próprios passos depois de estabelecer relações em cuja seriedade os
cidadãos confiaram”8.
36.
Há, na realidade, diversas outras decisões relevantes reconhecendo que também o Estado deve observar, nas relações com os particulares, o princípio da boa-fé, não servindo
como justificativa para a prática de atos arbitrários a mera invocação da supremacia do interesse público sobre o privado.
37.
No julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 1883, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a Administração não poderia ser
beneficiada pela nulidade do ato que praticara. Transcreva-se
parte do acórdão, relatado pelo Ministro Edson Vidigal,
acompanhado pelos Ministros Felix Fischer, Gilson Dipp e
José Arnaldo da Fonseca:
“Julgado que, aplicando esse entendimento, rejeita pedido diametralmente oposto a ele, está dispensado, porque o fez de forma
implícita, da análise explícita da inconstitucionalidade da Lei
5.021/66, Art. 1º, embora fosse competente para tanto, na forma
incidental, ademais de não poder alegar nulidade quem a
ela deu causa”9 (os grifos são nossos).
38.
Ainda no âmbito do direito administrativo,
cumpre destacar relevante acórdão relatado pelo Min. Paulo
Medina, no que foi acompanhado pelos Ministros Peçanha
Martins, Eliana Calmon e Laurita Vaz, que, além de condenar
o Estado à reparação do dano material, condenou-o também
ao pagamento de danos morais, por violação ao princípio da
boa-fé e confiança:
8
e ss.
9
STJ, 4ª Turma, REsp 141.879-SP, Rel. Min. Ruy Rosado Aguiar, LexSTJ, vol. 111, pp. 187
STJ, 5ª Turma, ROMS nº 1883, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ 8.2.1999.
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“O resultado danoso (o desfazimento do contrato e a dor psicológica imputada aos recorrentes) decorrentes do instrumento público
falso (nexo causal), estão a autorizar a condenação do Estado, fundada na responsabilidade civil deste.
Acresça-se que ao Estado incumbe a atuação fundada
nos princípios da confiança e boa-fé, que devem pautar
todas as relações travadas com os administrados. A
conduta que importa violação desses deveres tem nítido
caráter de ilicitude. Posto isso, provejo o recurso especial,
entendendo cabível no caso a condenação do Estado do Mato
Grosso do Sul ao pagamento de danos morais aos recorrentes.”
(os grifos são nossos)10
39.
Em outra decisão relevante, amplamente divulgada pela imprensa e no qual funcionamos como advogados,
o Superior Tribunal de Justiça, confirmando acórdão do TRF
da 1ª Região11, garantiu à empresa de transporte aéreo Varig
S/A direito a indenização em decorrência do congelamento das
tarifas determinado pelo Poder Concedente, inclusive por força
da quebra da confiança depositada pelo particular12. A propósito do assunto aqui tratado, registrou o ilustre Min. Luiz Fux,
em voto-vista:
“As decisões atacadas privilegiam a segurança jurídica, pilar que
sustenta o administrado, posto depositar credibilidade nas leis que
regulam o contrato, na legitimidade dos atos do Poder Público e
nos contratos que engendra, por isso que rompida a confiança
e exurgindo a surpresa lesiva, nasce o dever de indenizar, máxime quando estratégias econômicas falham, levando à
exaustão econômica setor nobre da economia nacional.”
40.
Nessa mesma linha, ao julgar o Recurso Especial nº 300.116, relatado pelo Ministro Humberto Gomes de
Barros, no que foi acompanhado pelos Ministros José Delgado
10
STJ, 2ª Turma, REsp 439465, Rel. Min. Paulo Medina, RSTJ 164, p. 142.
TRF da 1ª Região, Apelação cível nº 96.01.11458-0/DF, Rel. Des. Eliana Calmon, DJ
8.6.1999.
12
STJ, 1ª Turma, REsp nº 628.806, Rel. Min. Francisco Falcão, Revista de Direito Renovar,
nº 34, p. 156.
11
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e Francisco Falcão, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu
que o “princípiodasupremaciadointeressepúblicosobreoprivadonãoédeordemabsoluta”, não podendo servir como fundamento para atos ilegais e arbitrários, em virtude dos princípios da boa-fé e da aparência:
“De início, considerou-se a administração, livre para desfazer seus
próprios atos, independentemente de qualquer cautela. Bastava a
alegação de que o ato malsinado padecia de nulidade.
Mais tarde, surgiu a preocupação de se compatibilizar o princípio da autotutela da administração com aqueles outros relativos
à segurança das relações jurídicas, no resguardo da boa-fé e do
próprio interesse público.
(...) Percebe-se, assim, que a supremacia do interesse
público sobre o privado deixou de ser um valor absoluto.
Tal princípio, muitas vezes prestou-se a deformações, servindo
de justificativa para implantação de regimes ditatoriais, tornou-se necessário temperá-lo com velhas regras do Direito Privado, que homenageiam a boa-fé e a aparência jurídica .”13
(grifos nossos)
41.
O mencionado acórdão adotou os fundamentos do
parecer ministerial proferido nos autos com os seguintes termos:
“O princípio da legalidade da administração constitui
apenas um dos elementos do postulado do Estado de
Direito. Tal postulado contém igualmente os princípios
da segurança jurídica e da paz jurídica, dos quais decorre
o respeito ao princípio da boa-fé do favorecido. Legalidade e segurança jurídica constituem dupla manifestação
do Estado de Direito, tendo por isto, o mesmo valor e a
mesma hierarquia.”14
42.
Desse modo, há que se reconhecer que, no novo
direito administrativo da concessão, ao lado de ideais como
13
STJ, 1ª Turma, REsp nº 300.116, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, RSTJ 154, p. 104.
O autor do citado parecer é o então Procurador, hoje Ministro Presidente do STF, Gilmar
Ferreira Mendes.
14
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modicidade tarifária e supremacia do interesse público, há
também outros princípios fundamentais que precisam ser
ponderados, como o da boa-fé, da confiança, da lealdade e
da moralidade.
43.
Na realidade, muito embora o princípio da supremacia do interesse público seja axioma frequentemente invocado em matéria de concessões, sua definição prática pressupõe
a ponderação de uma miríade de aspectos tão grande que, mais
recentemente, tem-se questionado a própria utilidade da invocação desse princípio na praxis jurídica15.
44.
O tema, tanto por sua importância para a ciência
jurídica, quanto por sua relevância específica para a solução da
questão em análise, aconselha um exame mais detalhado.
V – ATENDIMENTO AO “INTERESSE PÚBLICO”:
RESPEITO AOS CONTRATOS OU MODICIDADE
TARIFÁRIA?
45.
Já se teve oportunidade de sustentar, no campo
do direito privado, que é preciso superar a equivocada ideia
de que a “função social” ou “interesse social” significa sempre
e necessariamente a proteção à parte economicamente mais
fraca da relação contratual16. Nem sempre deverá ser favorecido o contratante débil, pois, como assevera Stefano Rodotá,
“aescolhadeveserfeitademodoaassegurarprevaleçaointeresse
queseapresentamaisvantajosoemtermosdecustosocial ”17.
15
Vide, a esse respeito, a coletânea organizada por Daniel Sarmento, e que conta com contribuições dos Professores Alexandre Aragão, Gustavo Binenbojm e Humberto Ávila, Interesses
públicos versusinteressesprivados.Desconstruindooprincípiodasupremaciadointeressepúblico.Rio
de Janeiro, Ed. Lúmen Júris.
16
Arnoldo Wald,Ointeressesocialnodireitoprivado. Revista Jurídica nº 338, p. 9-23.
17
Stefano Rodotá,LaBuonaFede.In: Guido Alpa e Mario Bessone.Tecnicaecontrollodei
contrattistandard. Rimini: Maggioli Editore, 1984, p. 115-29.
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46.
A mesma premissa de raciocínio vale para o direito
público. Não há dúvidas de que promover o “interesse da coletividade” é o mister fundamental da Administração Pública e
por isso o ente estatal goza de uma série de prerrogativas, inclusive a presunção de legalidade dos seus próprios atos. Porém, a
definição do que venha a ser “interesse público” não é simples.
47.
De fato, no caso do pedágio, sob um prisma restrito e imediato, pode até parecer que há “interesse público”
na redução das tarifas pagas pelos usuários ou até na garantia de liberdade ampla, geral e irrestrita de locomoção, com a
supressão da cobrança. Uma análise mais criteriosa do assunto,
todavia, afasta a seriedade desta conclusão.
48.
Certamente, seria ótimo se os cidadãos pudessem
dispor de estradas asfaltadas e seguras num simples passe de
mágica: de graça ou a baixíssimo custo. A realidade, contudo,
não é bem essa. A criação de uma infraestrutura de serviços
minimamente satisfatória custa dinheiro. E a história do país
demonstra que, caso esses recursos provenham diretamente do
Estado, das duas uma: ou o serviço deixa simplesmente de ser
prestado ou o custo é financiado por empréstimos tomados
junto às instituições financeiras internacionais e pago – principal mais juros – por toda a sociedade.
49.
Na realidade, no Brasil, até os anos 80, aconteciam as duas coisas: o Estado se endividava e, mesmo assim,
não conseguia prestar serviços de forma minimamente satisfatória. Por longo tempo, pelo menos durante o Estado Novo
e até a década de 1980, o Brasil preferiu buscar recursos para
custear seus gastos com infraestrutura sob a forma de empréstimos internacionais, em lugar de incentivar investimentos privados no setor.
82
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50.
Ocorre que, a despeito de a concessão de serviços
públicos à iniciativa privada envolver, naturalmente, o custo
de se assegurar o lucro dos concessionários, é alternativa que
apresenta vantagens incontestáveis sobre a tomada de empréstimos internacionais para financiamento da atividade estatal.
Uma delas é a de que o custo social que representa o lucro
dos concessionários (diferentemente do custo dos juros dos
empréstimos) só se verifica quando há efetiva prestação do serviço, que, desse modo, é necessariamente estimulada. Outra é
que tal custo recai apenas em quem se beneficia diretamente
do serviço, não na sociedade como um todo, como no caso do
financiamento da atividade estatal.
51.
Portanto, se a ideia básica do “princípio da supremacia do interesse público” é o atendimento do interesse de toda
a sociedade, da totalidade ou do maior número de interessados,
há que se reconhecer que tal princípio não é promovido pelo
descumprimento generalizado dos contratos de concessão.
52.
De fato, modificações nos contratos de concessão,
a despeito dos motivos que a ensejam, invariavelmente acarretam ruptura de credibilidade. Alterar os contratos de concessão, no decorrer de sua vigência, não só viola diversos princípios gerais do direito (como o de que os pactos devem ser
cumpridos, da moralidade e da boa-fé), como também acarreta
o custo político de diminuir a confiança dos investidores.
53.
Essa conduta, se não deixa a Administração totalmente a mercê de interessados, diminui a credibilidade do país,
o que acarreta diversos prejuízos para a coletividade. A respeito, note-se que a recente melhora do Brasil na classificação
das agências internacionais de risco StandardandPoor´s e Fitch
Ratings– fato amplamente comemorado por trazer inúmeros
benefícios à toda a nação (como o barateamento do crédito, a
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atração de investimentos não especulativos e a criação de novos
empregos) – levou em consideração justamente a maior seriedade do país em honrar seus compromissos.
54.
Essa seriedade, que vem sendo paulatinamente
construída ao longo dos anos, deve-se a vários fatores, inclusive
a decisões judiciais relevantes, como as do Superior Tribunal
de Justiça reconhecendo que a suspensão do direito à cobrança
do pedágio prejudica o próprio usuário e o interesse público
que se alegava proteger por lesar os investidores e aumentar o
Risco Brasil. A propósito, manifestou-se a Corte Especial do
STJ, em aresto relatado pelo eminente Min. Edson Vidigal:
“A equação econômico-financeira é um direito constitucionalmente garantido ao contratante particular (CF, art. 37, XXI). Se
as características do contrato não fossem asseguradas, permitindo ao Poder Público poderes ilimitados para alterar cláusula contratual, o particular não teria interesse em negociar
com a Administração.
A alteração unilateral do contrato por parte do poder concedente,
pois, só é possível mediante a inequívoca demonstração de que a
cláusula anteriormente firmada, com o decorrer do tempo, teria
passado a afrontar o equilíbrio entre o lucro devido ao contratante e o atendimento ao interesse público, e desde que assegurados o contraditório e o devido processo legal, o que não se verifica
neste caso. (...)
O descumprimento de cláusulas contratuais por parte do
governo local viola o princípio da segurança jurídica, inspira insegurança e riscos na contratação com a Administração, resultando em graves conseqüências para o interesse público, inclusive com repercussões negativas sobre o
influente ‘Risco Brasil’.”18
18
STJ, AgRg na Suspensão de Liminar nº 76, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ 20.9.2004. Nessa
linha, o Superior Tribunal de Justiça tem suspendido o efeito de liminares que sustam a cobrança de pedágio nas rodovias concedidas, com fulcro no art. 4º da Lei nº 8.437/92, para evitar
risco à economia pública, como foi feito nos acórdãos da Suspensão de Liminar nº 108-RS, DJ
3.8.2004, e da Suspensão de Liminar nº 34-PR, Rel. Min. Nilson Naves, DJ 20.9.2004.
84
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55.
Em outro julgamento, no qual se debatia a aplicabilidade da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso) e de um
decreto administrativo que, instituindo vagas destinadas a
idosos em transporte interestadual sem indicação da fonte
de custeio e de seus critérios, fazia com que as empresas de
transporte ficassem sujeitas a arcar com os custos do benefício
concedido pela lei, a Corte Especial do STJ, na mesma linha,
assentou que:
“Se as características do contrato firmado não fossem asseguradas, permitindo-se ao Poder Público poderes ilimitados para
unilateralmente revê-lo, garantindo a execução de tal isenção
sem prévia regulamentação, o particular não mais teria interesse
ou segurança para negociar com a Administração.
Não há como se concluir, portanto, que a liminar concedida, que
apenas determinou a observância do devido processo legal, até
que decidida a demanda, possa ferir qualquer dos poderes tutelados pela Lei 4.348/64, art. 4º. Fazê-lo seria, desde logo, admitir
unilateral alteração no próprio contrato, ofendendo-se, assim, o
princípio da segurança jurídica, de forma a inspirar insegurança e
riscos na contratação com a Administração, resultando em graves
conseqüências para o interesse público, inclusive com repercussões
negativas sobre o influente “Risco Brasil”19.
56.
Portanto, a análise do que seja “interesse público”
deve ser feita dentro de uma visão geral, sistêmica e dilatada.
A invocação do interesse público, no plano do direito administrativo, não equivale a uma espécie de ação afirmativa em prol
do usuário do serviço. Há um interesse público – mais geral
e mais amplo – no respeito ao contrato que se contrapõe ao
interesse imediato de pagamento de uma tarifa mais baixa.
19
STJ, CE, AgRg SS 1411, Rel. Min. Edson Vidigal, RSTJ nº 188, p. 95. Na decisão monocrática desafiada pelo agravo regimental que deu origem a esse acórdão, o Min. Edson Vidigal
pontuou, com muita pertinência:“IstoporqueumPaíscomoonosso,comtantosproblemascomo
odasonegaçãofiscal,dacorrupçãocomodinheiropúblico,odasevasõesinconfessáveisdebilhõesde
dólaresparaosescaninhosilícitosdosparaísosfiscais,umPaístãoprecisadodeinvestimentosexternos
indispensáveisaoenfrentamentododesempregoeprecisadodedesenvolvimentoeconômico,nãopode
cochilarespecialmentenessetemaderespeitoaoscontratos.”
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
57.
Não por outra razão, na própria sistemática legislativa, a modicidade da tarifa não é a única, nem a principal
finalidade a ser perseguida. Veja-se o teor do dispositivo que
consagra tal princípio na Lei nº 8.987/97:
“Art. 6º (...)
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de
regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.”
58.
Como se vê, o próprio legislador não trata a modicidade tarifária como um fim em si mesmo; trata-a como um
dos objetivos da política tarifária, ao lado de outros postulados
relacionados à garantia de acesso e de qualidade do serviço.
Note-se, nesse sentido, que a própria lei prevê outro mecanismo
de promoção do ideal de modicidade das tarifas, que não passa
pela usurpação ou redução da rentabilidade do concessionário:
“Art. 11. No atendimento às peculiaridades de cada serviço
público, poderá o Poder Concedente prever, em favor da concessionária, no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes
provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias
ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas
a favorecer a modicidade das tarifas, observado o disposto no art.
17 desta Lei.”
59.
Na realidade, como já se pode perceber e será visto
melhor a seguir, a modicidade tarifária é um comando que se
aplica ao administrador nomomentodalicitação, na fixação das
condições das propostas e respectiva escolha da que lhe é mais
vantajosa. Não é uma carta branca para que a Administração
altere os contratos que estejam em vigor. Estes, pelo próprio
conjunto de normas a que sua celebração deve obediência, são
presumivelmente módicos.
86
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60.
Com efeito, se a modicidade tarifária é finalidade que preside a própria elaboração do edital (onde o Poder
Público pode prever “outrasfontesprovenientesdereceitasalternativas,complementares,acessóriasoudeprojetosassociados” em
favor da concessionária, consoante o art. 11 da Lei de Concessões já transcrito), a proposta vencedora da licitação e, via
de consequência, materializada no contrato, é a que melhor
espelha, dentre as existentes, o equilíbrio ideal entre os diversos
valores perseguidos pelo constituinte e pelo legislador, inclusive o de modicidade tarifária.
61.
Desse modo, parece-nos que nem a tutela do inespecífico “interesse público”, nem o objetivo geral de “modicidade tarifária” são fundamentos jurídicos suficientes para a
alteração dos contratos de concessão de rodovias em vigor, em
detrimento de outros princípios e valores fundamentais, como
boa-fé, confiança e moralidade administrativa, que devem
pautar a conduta estatal, como visto acima.
62.
Resta assim saber se o “princípio do equilíbrio
econômico-financeiro do contrato de concessão” autorizaria
a pretendida alteração. Este é o tema que será abordado no
tópico a seguir.
VI – EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS
CONTRATOS DE CONCESSÃO
63.
Equilíbrio econômico-financeiro da concessão é
noção que remonta à teoria francesa da imprevisão, bem como
à jurisprudência norte-americana, que consagrou a razoabilidade e a lealdade que deve presidir a fixação das tarifas (fair
return, fairnessinratemakingpower).
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
64.
As Constituições brasileiras de 1934 (art. 137), de
1937 (art. 147) e de 1946 (art. 151) asseguravam aos concessionários o direito a revisão de tarifas, a fim de que seus lucros
(“ justa remuneração do capital”) permitissem-lhes atender às
necessidades de melhoramentos e expansão desses serviços.
Nada obstante não fosse claro, os administrativistas da época
já extraiam dessa cláusula constitucional o conceito de equilíbrio econômico-financeiro do contrato20, que seria explicitado
na Constituição de 1967 (art. 160), na Emenda Constitucional
nº 1/69 (art. 167) e na legislação ordinária21.
65.
A Constituição de 1988, porém, se referiu a “equilíbrioeconômicoefinanceiro” da concessão. Nada obstante, é
pacífico que tal garantia ainda tem sede constitucional. Alguns
autores entendem que ela está implícita na “política tarifária”,
prevista no art. 175, III, p. ún., que deve ser equilibrada 22. A
maioria, entretanto, reconhece que a garantia do equilíbrio
econômico-financeiro é consagrada, mais especificamente,
pelo art. 37, inciso XXI (o que, inclusive, lhe confere extensão
ainda maior, pois se tornou explicitamente aplicável a todos os
contratos administrativos e não somente à concessão23).
20
Nesse sentido, comentando a Constituição de 1946, Caio Tácito afirmou que: “A doutrina
ou a jurisprudência nacionais não foram, ainda, mobilizadas para a exegese construtiva do preceito constitucional. Os comentadores à lei fundamental não vão além das apreciações gerais, na
compreensível expectativa de que a lei ordinária especifique critérios e medidas sobre o regime
dos serviços públicos concedidos. Decorre, no entanto, diretamente, da norma constitucional, a
consagração inequívoca do princípio do equilíbrio financeiro da concessão de serviço público.”
(DireitoAdministrativo, São Paulo: Saraiva, 1975, p. 246).
21
Quando elaborado o texto do Decreto-lei nº 2.300/86, o Consultor Geral da República, Dr.
Saulo Ramos, salientou na exposição de motivos que nele se consagrava o princípio do equilíbrio
econômico-financeiro, afirmando que: “Os poderes de controle e direção da Administração Pública, na execução dos contratos, constituem um aspecto expressivo que atende à necessidade de
satisfazer os interesses coletivos, tornando o particular contratado um real colaborador do serviço
público. Assim, o projeto dispõe sobre a alteração unilateral da situação jurídico-contratual, no
que pertine às cláusulas regulamentares ou de serviço, respeitada, sempre, equação econômicofinanceira do contrato, vale dizer, ‘aequivalênciarazoávelentreasobrigações,atendidaáleaordináriadocontrato’.”
22
Hely Lopes Meirelles, Licitaçãoecontratoadministrativo, 11ª ed., São Paulo: RT, p. 167.
23
Entre as várias decisões que versaram a matéria, destaca-se acórdão sobre pedido de indenização por quebra do equilíbrio econômico-financeiro feito pela empresa aérea Transbrasil S/A,
88
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66.
Dispõe referido dispositivo, in verbis:
“Art. 37 (...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, os
serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a
todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações
de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta,
nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. (grifamos)
67.
De acordo com a norma acima transcrita, nas
concessões devem ser preservadas, até o término do contrato,
as condições previstas na proposta que se sagrou vencedora da
licitação – condições estas que consubstanciam uma relação
entre, de um lado, os encargos do contratante e, de outro, a
retribuição que lhe é assegurada. É justamente essa relação que
se denomina equação ou equilíbrio econômico-financeiro24.
proferido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no qual foi relator o então Juiz Vicente
Leal (RevistaForense, v. 319, jul./set. 1992, p. 141): “A Constituição Federal de 1967, sob a redação
da Emenda nº 1/69, assegurava, nos contratos de concessão de serviços públicos, a manutenção
do equilíbrio econômico e financeiro do pacto, por meio da fixação de tarifas reais, suficientes,
inclusive, para a justa remuneração do capital e a expansão dos serviços (art. 167, II). O mesmo
princípio, com maior abrangência, encontra-se esculpido no artigo 37, XXI, da nova Carta Política.”. Mencionada decisão foi objeto de Recurso Extraordinário da União Federal, do qual o
Supremo Tribunal Federal, pela sua 1ª Turma, não conheceu, em decisão unânime de 17.06.97,
sendo relator o Ministro Octávio Gallotti (RecursoExtraordinário nº 183.180, RevistadeDireito
Administrativo, v. 224, abr./jun. 2001, p. 392 e ss.).
24
Na síntese de Hely Lopes Meirelles, equilíbrio econômico-financeiro da concessão “é a relação que as partes estabelecem inicialmente no ajuste,entreosencargosdocontratanteearetribuiçãodaAdministração,paraajustaremuneraçãodoseuobjetivo” (EstudosePareceresdeDireito
Público,São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, v. 3, p. 275). É sempre bom lembrar que, não
obstante a doutrina e a jurisprudência brasileiras dominantes considerem que as duas expressões
se equivalem, há uma diferença entre equilíbrio econômico e financeiro da equação contratual. Na
realidade, coube ao Professor Mario Henrique Simonsen – doublé de economista e (eventualmente) de jurista – fazer a distinção entre os dois aspectos da garantia constitucional, sustentando que
a equação econômica se refere ao lucro, ou seja, à rentabilidade global que o concessionário deve
auferir em virtude da concessão, enquanto que a equação financeira significa a manutenção das
entradas (inputs) e saídas (outputs) dos recursos financeiros no patrimônio do concessionário, na
forma e no ritmo inicialmente previstos no contrato. A distinção tem efeitos práticos da maior
importância, pois enseja como consequência necessária, a abrangência, em eventual indenização
devida por mora do Poder Público, não só dos juros legais, mas também dos juros de mercado,
que são, em geral, muito superiores.
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68.
O princípio da preservação do equilíbrio econômico-financeiro foi reafirmado na legislação ordinária, mais
especificamente nos arts. 9º e 10 da Lei nº 8.987/95 (Lei de
Concessões), e no art. 65, II, d, da Lei nº 8.666/93, in verbis:
“Art. 9o A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo
preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas
regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.
§ 1o A tarifa não será subordinada à legislação específica anterior
e somente nos casos expressamente previstos em lei, sua cobrança
poderá ser condicionada à existência de serviço público alternativo e gratuito para o usuário.
§ 2o Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das
tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro.
§ 3o Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou
extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a
revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.
§ 4o Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o
seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.
Art. 10. Sempre que forem atendidas as condições do contrato,
considera-se mantido seu equilíbrio econômico-financeiro.”
“Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados,
com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
(...)
II - por acordo das partes:
(...)
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da
administração para a justa remuneração da obra, serviço ou
fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem
fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou,
ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe,
configurando área econômica extraordinária e extracontratual;”
90
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69.
É crucial observar, para o tema em análise, que,
nos termos expressos do Texto Constitucional e da legislação ordinária, a equação econômico-financeira da concessão
é fixadanomomentodapropostaedarespectivacontratação, e
deve ser preservada pelas regras de revisão previstas na lei, no
edital e no contrato.
70.
Por isso, ao lado da acepção genérica de justa correspondência entre as contraprestações (ou da “equivalência
honesta” a que se refere o direito francês)25, a garantia da equação econômico-financeira tem também, no direito brasileiro,
uma acepção específica, que é a da intangibilidadedascondições
daproposta.
71.
Pode-se dizer, desse modo, que assim se combinam as duas regras constitucionais sobre o tema: a equação
econômico-financeira da concessão é aquela instituída no
momento da proposta, não podendo sofrer redução (art. 37,
XXI), estando a política tarifária (art. 175, p ún., III) sujeita à
sua manutenção.
72.
A garantia da intangibilidade das condições da
proposta relativiza o poder da Administração de alterar unilateralmente os contratos. Restringe a alterabilidade unilateral
do contrato administrativo aos aspectos regulamentares ou de
execução, resguardando os aspectos econômico-financeiros. A
25
O princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato no direito francês tem origem
na jurisprudência do Conselho de Estado, datada de 1910, quando Léon Blum defendeu a consagração, pelo tribunal administrativo, da idéia de que deveria ser mantida, entre as partes contratantes, o que ele denominou “équivalence honnête”. E essa equivalência honesta seria assegurada
justamente pela “manutenção das bases do acordo, a equivalência financeira e comercial que nele
foi (inicialmente) consagrada.” (Conclusões de Léon Blum, de 11.3.1910 no caso Ministériodas
ObrasPúblicas contra CompagnieGénéraleFrançaisedeTramways, julgado na França pelo Conselho de Estado. In: Charles Debbasch e Marcel Pinet, LesGrandsTextesAdministratifs, Sirey,
1970, p. 331).
91
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propósito, o art. 58, I, da Lei nº 8.666/93 ressalva expressamente que:
“Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a
prerrogativa de:
I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado;
§ 1o As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos
contratos administrativos não poderão ser alteradas sem
prévia concordância do contratado.”
73.
A equação econômico-financeira original não
pode ser alterada, na realidade, nem pela autoridade administrativa nem pelo próprio legislador, sob pena de violação
não só do art. 37, XXI, mas também do art. 5º, XXXVI, da
Constituição (já que o direito à manutenção das condições
da proposta constitui um direito adquirido do concessionário), e do próprio art. 1º, caput, por importar quebra da segurança jurídica, valor fundamental do Estado de Direito.
74.
Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal, ao assegurar à empresa aérea Transbrasil S/A direito à indenização
por quebra do equilíbrio econômico-financeiro (julgamento
este que foi leading case na matéria), expressamente reconheceu
que: “nemhaveriadeseraobservânciadeumdecreto-leiexcusa
válidaparaodescumprimentodagarantiaconstitucional” (STF,
1ª Turma, RE nº 183.180, Rel. Min. Octávio Gallotti, Revista
deDireitoAdministrativo, v. 224, p. 407).
75.
Pois bem. Se, consoante a letra expressa da própria Constituição, as condições da proposta (dentre as quais se
incluem as taxas de rentabilidade asseguradas aos concessionários) devem ser mantidas até o término do contrato, é imperioso
concluir que o princípio do equilíbrio econômico-financeiro,
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além de não facultar a alteração dos contratos de concessão de
rodovias firmados na década de 90, até mesmo a veda.
76.
O princípio do equilíbrio econômico-financeiro
da concessão, em particular na sua acepção de intangibilidade
das condições da proposta, é, ao lado dos princípios da boafé, da confiança e da moralidade administrativa, uma garantia
do concessionário contra as aventadas alterações. Tal garantia obriga a Administração a, necessariamente, respeitar a confiança daquele que optou por contratar com o Poder Público,
diante de uma expectativa de lucro.
VII – CONCLUSÃO
77.
Ante todo o exposto, conclui-se que o bom resultado dos últimos leilões para a concessão dos serviços de exploração de rodovias brasileiras deve ser amplamente comemorado, mas as condições das propostas vencedoras não podem
servir de pretexto para a alteração dos contratos firmados na
década de 90. E isso por dois motivos que se complementam e
não se confundem.
78.
O primeiro é que, em matéria de rodovias, cada
trecho concedido à exploração tem suas peculiaridades, que
variam em função de vários fatores: desde a política adotada
por cada poder concedente (que pode ou não exigir ônus de
outorga, por exemplo), até a demanda específica por investimentos de cada rodovia (necessidade ou não, v.g., de realização de
obras complementares). Assim sendo, é extremamente imprecisa a simples comparação numérica entre valores do pedágio
cobrado em cada trecho.
79.
O segundo motivo, por sua vez, é de cunho estritamente jurídico. As concessões de serviços públicos, no regime
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constitucional em vigor, têm um caráter contratual inviolável.
Isso significa que a alteração desses contratos só pode se dar nos
casos e na forma previstos na lei ou no próprio instrumento,
e não com base na simples invocação do princípio da modicidade tarifária ou na abstrata supremacia do interesse público.
80.
A modicidade tarifária não é um fim em si mesmo,
mas um dos vários objetivos a serem observados pelo Poder
Concedente na elaboração do edital, não servindo, assim,
como justificativa concreta para alteração unilateral dos contratos pela Administração. Por outro lado, o que venha a ser
interesse público, nesse caso, é altamente questionável. Se, em
princípio, parece haver interesse público na redução das tarifas
cobradas dos usuários de rodovias, há que se reconhecer, como
visto acima, que há um interesse público ainda maior no respeito aos contratos firmados com investidores privados.
81.
Ademais, ao lado desses conceitos, há também
outras normas que precisam ser observadas e ponderadas, como
os princípios da boa-fé, confiança, lealdade e moralidade administrativa, bem como a garantia constitucional do equilíbrio
econômico-financeiro da concessão, que, como visto acima, ao
invés de autorizar uma revisão dos contratos, como poderia se
supor precipitadamente garante, ao contrário, a preservação até
o término da concessão das condições da proposta vencedora da
licitação (dentre elas a taxa de rentabilidade).
82.
Portanto, modificar as regras pré-estabelecidas
para as concessões anteriores é lesar injustificadamente aqueles
que fizeram vultosos investimentos no país mesmo diante de
cenário incerto e ainda frágil da economia nacional.
83.
Convém notar, sob esse prisma, que o investimento no país há 10 anos atrás era certamente muito mais
94
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arriscado do que é hoje. E, como se sabe, quanto maior o risco,
maior deve ser a taxa de rentabilidade oferecida para atrair o
capital. Logo, se as taxas de lucros das concessões anteriores
efetivamente se demonstram superiores às que têm sido estipuladas nas contratações recentes, não terá sido por negligência
ou descuido do Poder Concedente, mas sim para atender ao
objetivo – legítimo – de atrair, na época, o investidor.
84.
A propósito, é importante notar que os candidatos
só conseguem apresentar propostas menos custosas hoje por se
beneficiarem do conhecimento técnico, do mercado de trabalho
e de fornecedores, bem como da credibilidade financeira construídos a partir das concessões firmadas na década de 90. Para
que esse e outros setores da economia continuem a se desenvolver, em benefício da própria coletividade, é preciso manter-se o
ambiente de segurança jurídica e de respeito aos contratos.
***
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Consulta formulada pela Associação Brasileira de
Concessionárias de Rodovias – ABCR sobre a legalidade
do Edital de Concorrência n° 001/2008, da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, que tem por objeto
a concessão para exploração do Sistema Rodoviário das
BR’s 116 e 324, no Estado da Bahia.
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CONSULTA
A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias – ABCR, por intermédio de seus ilustres mandatários Tojal,
Teixeira Ferreira, Serrano & Renault – Advogados Associados,
formula consulta sobre a legalidade do Edital de Concorrência
n° 001/2008 (republicado em 19/12/2008), da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, que tem por objeto “a
concessãodoserviçopúblicoderecuperação,operação,manutenção,
conservação,implantaçãodemelhoriaseampliaçãodecapacidade
doSistemaRodoviário” das BR’s 116 e 324, no Estado da Bahia.
Esclarece a consulente que considerou necessária a
interposição de Ação Declaratória de Nulidade, “emquesebusca
aprestaçãojurisdicionalnosentidodequeoEditaleatosadministrativosinstituídospelaAgênciaNacionaldeTransportesTerrestres
noâmbitodoprocedimentodelicitaçãoreferenteàConcorrêncian°
01/2008sejamdeclaradosnulos”.
As ilegalidades apontadas em sua petição inicial referem-se, basicamente, a:
a) o Plano de Negócios, a ser apresentado pelas licitantes, não contém os elementos necessários a que seja
analisada objetivamente a exequibilidade de suas
propostas econômicas;
b) o Edital admite que “novosinvestimentosinicialmentenãoprevistosserãoremuneradossemlevaremconta
arelaçãoetaxaderetornoexpressosnoPlanodeNegócios”; e
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Antônio Carlos Cintra do Amaral
c) é ilegal a “previsãodomecanismodenominado‘DescontodeReequilíbrio’,peloqualsepretendeodescontoda
remuneraçãodoconcessionárioemrazãododescumprimentodemetasdequalidadeprevistasnocontrato”.
Solicita-me a consulente emitir opinião sobre o assunto, para o
que junta os elementos necessários à sua melhor compreensão
(cópia do Edital, da minuta de contrato, da petição inicial e
outros documentos) e formula os seguintes Quesitos:
1. O Edital contém critérios objetivos para avaliação da
consistência interna e da razoabilidade das estimativas realizadas no Plano de Negócios a ser apresentado pelas licitantes? Caso negativo, a ausência desses
critérios afronta o princípio do julgamento objetivo,
caracterizando, assim, ilegalidade do Edital?
2. O retorno esperado pela concessionária, quando da
formulação e apresentação de sua proposta, pode
ser alterado ao longo da duração da concessão? Essa
alteração é compatível com a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, assegurada pela Constituição e pela Lei?
3. O “Desconto de Reequilíbrio”, previsto no Edital,
tem respaldo legal?
Passarei a emitir a opinião solicitada.
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PARECER
1. Nota Introdutória
O ordenamento jurídico brasileiro está construído em três
escalões. No topo, as normas constitucionais. No segundo escalão, as
normas legais. No terceiro, os atos administrativos, decisões judiciais
e negócios jurídicos. Os atos administrativos – entre os quais os editais de licitação – têm seu fundamento de validade nas normas legais.
Daí o princípio da legalidade, explicitamente previsto no “caput”do
art. 37 da Constituição da República.
As concessões de serviço público são reguladas, no
Brasil, pelas Leis 8.987 e 9.074, ambas de 1995 e de caráter nacional. Naquilo que não conflita com as normas dessas duas leis,
aplica-se, às licitações para concessão de serviço público, a “legislaçãoprópria” (art. 14 da Lei 8.987/95). Essa legislação própria é
a Lei 8.666/93, que dispõe, no art. 124:
“124.Aplicam-seàslicitaçõeseaoscontratosparapermissão
ouconcessãodeserviçospúblicos,osdispositivosdestaLeique
nãoconflitemcomalegislaçãoespecíficasobreoassunto.”
As questões referentes à legalidade das normas do referido edital devem ser, portanto, analisadas à luz desse esquema
constitucional e legal. É o que farei a seguir.
2. A política tarifária nas concessões de serviço público
No art. 175, a Constituição da República, ao regular as
concessões e permissões de serviço público, determina em seu parágrafo único que “Aleidisporásobre...III–políticatarifária”.
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Antônio Carlos Cintra do Amaral
Sobre o assunto, escrevi em estudo publicado na revista
Regulação Brasil, da ABAR-Associação Brasileira de Agências de
Regulação (Revista n° 1, Ano 1, 2005, pp. 7/21):
“Apolíticatarifárianasconcessõesdeserviçopúblicofoiestabelecida
pelasLeis8.987e9.074,ambasde1995,emcumprimentoaoart.
175,incisoIII,daConstituição.Nãocompeteàsagênciasreguladoras formularessapolítica,limitando-seelasaexecutá-las.
A política tarifária estabelecida pela legislação repousa na
equaçãoeconômicadocontratodeconcessão,queabrange,de
um lado, a receita tarifária e as receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, com vista
àmodicidadedatarifa(art.11daLei8.987),e,dooutro,
oscustos,oônusdaconcessão(nocasodelicitaçãodemaior
oferta),aamortizaçãodosinvestimentosefetuadospelaconcessionáriaeolucro.Tudoissoestárelacionadocomoprazoda
concessão,quesenãointegraé,pelomenos,parâmetroparaa
fixaçãodaequaçãoeconômicadocontrato.Essasituaçãopode
serassimgraficamenteexposta:
EQUAÇÃO ECONÔMICA DA CONCESSÃO
•Remuneraçãoaopoder
concedente pela outorga da
concessão (quando for o caso)
•Receitatarifária(atarifapode
resultar da proposta, ou ser
fixada pelo poder concedente)
•Custos
•Receitasalternativas,
complementares, acessórias ou de
projetos associados (com vista a
favorecer a modicidade da tarifa)
•Amortizaçãodos
investimentos efetuados
•Lucro
Prazo da Concessão
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
Aequaçãoeconômicadocontratodeconcessãoémantida
mediante reajuste de tarifas. Quando surge fato superveniente e
imprevisível,contidonaálea extraordináriadaconcessão(Fato
daAdministração,FatodoPríncipeouTeoriadaImprevisão),cabe
rever ou recomporocontratoembenefíciodaconcessionária.Há
váriosmecanismospossíveisderevisãoourecomposiçãodaequação
econômicadesbalanceada,inclusiveomenosdesejávelemaisproblemático,queéoaumentodatarifa.Assim:
POLÍTICA TARIFÁRIA E PRESERVAÇÃO DA
EQUAÇÃO ECONÔMICA DA CONCESSÃO
REAJUSTE – Tem por função assegurar a manutenção da equação econômica inicial
docontrato
REVISÃO – Temporfunçãorestabeleceraequação
econômicainicialdocontrato
• RevisãoPeriódica
• RevisãoEventual
-FatodaAdministração
-FatodoPríncipe
-TeoriadaImprevisão”
A legislação, ao estabelecer a política tarifária das concessões de serviço público, abandonou o modelo anterior de
tarifa pelo custo, para adotar o de tarifa pelo preço. O modelo
de tarifa pelo custo, aplicado especialmente no setor de energia elétrica, correspondia, em linhas gerais, a um contrato por
administração. A concessionária, juntamente com o poder concedente, calculava o custo da prestação do serviço, direto e indireto, acrescido de uma remuneração incidente sobre o custo apu102
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rado. No modelo de tarifa pelo preço, a concessionária exerce o
serviço por sua conta e risco, como está explicitado no art. 2°,
inciso III, da Lei 8.987/95.
Essa inovação foi salientada em documento intitulado
“ConcessõesdeServiçosPúblicosnoBrasil”, publicado e distribuído
pela Presidência da República em abril de 1995, em que se dizia:
“(...)noqueserefereàpolíticatarifáriaparaasnovasconcessões,será
abandonadaaregradetarifaçãoquegaranteumaremuneraçãofixa
calculadacombasenoscustostotaisincorridos–oqueincentivavaa
ineficiênciadasempresas” (p. 21).
Note-se que o regime de administração era previsto pelo
Decreto-lei 2.300/86, em seu art. 9°, inciso II, alínea “c”, para
contratação de obras e serviços. O Projeto de Lei 1.491, do qual
resultou a Lei 8.666/93, manteve esse regime no art. 10, inciso II,
alínea “c”. Esse dispositivo foi, porém, vetado pelo Presidente da
República, com o argumento de que “envolveaassunçãodeelevadíssimos riscos pela Administração”. Nas razões do veto, dizia-se,
ainda, que “esseregimedeexecuçãointeressaaocontratado,quese
remuneraàbasedeumpercentualincidentesobreoscustosdoqueé
empregadonaobraouserviço,tornaressescustososmaiselevadospossíveis,jáque,assim,tambémosseusganhosserãomaximizados”. O
Congresso Nacional tentou reintroduzir esse regime de execução
ao aprovar o Projeto de Lei de Conversão n° 10, do qual resultou
a Lei 8.883/94. Mas ele foi novamente vetado. As razões do veto
foram desarrazoadas, já que se partiu da presunção de má-fé por
parte do contratado. Mas é inegável que o regime de administração
contratada eliminava o risco do contratado, pelo que mesmo não
tivesse ele sido vetado seria incompatível com o regime estabelecido na Lei 8.987/95, que atribui o risco à concessionária, embora
minimizando-o na hipótese de álea extraordinária.
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
Vale dizer: a política tarifária adotada pela legislação
em vigor não assegura, em termos absolutos, a manutenção ou
restabelecimento da equação econômico-financeira inicial do
contrato de concessão. Atribui à concessionária uma margem de
risco, qual seja, o risco do negócio. Isso está em acordo com a
distinção tradicional, efetuada pela doutrina administrativista,
entre álea ordinária e álea extraordinária.
Pode dizer-se, portanto, que a equação econômicofinanceira inicial do contrato deve ser mantida, desde que não
ocorra fato superveniente, imprevisível e extraordinário que
provoque seu desbalanceamento. Como diz o art. 10 da Lei
8.987/95:
“Art.10.Semprequeforematendidasascondiçõesdocontrato,
considera-semantidoseuequilíbrioeconômico-financeiro.”
Essa norma diz o óbvio. A rigor seria desnecessária, embora a experiência demonstre que às vezes não deixa
de ser útil a lei explicitar o óbvio, para afastar equívocos conceituais que costumam ser cometidos por seus intérpretes
e aplicadores.
A este passo, volto a meu estudo publicado na Revista
da ABAR. Intangível não é o contrato de concessão – espécie de
contrato administrativo – mas sua equação econômico-financeira
inicial. Mais explicitamente: intangível é o retorno esperado pela
concessionária quando formulou sua proposta. Mas essa afirmação
ainda não abrange todos os aspectos da questão. É necessário acentuar que essa intangibilidade somente se põe diante da ocorrência
de fatos supervenientes, imprevisíveis e extraordinários. Convém
deixar mais clara essa colocação, distinguindo os conceitos econômico e jurídico do desequilíbrio econômico-financeiro.
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3. Conceitos econômico e jurídico do desequilíbrio
econômico-financeiro do contrato de concessão
Os contratos administrativos, entre os quais o de
concessão de serviço público, podem ser desequilibrados econômica ou financeiramente sem que isso faça surgir o dever
jurídico da parte beneficiada de recompor a equação inicial
e o correspondente direito da parte prejudicada a essa recomposição. A concessionária pode gerir mal sua atividade. Inflar
seus custos. Perder produtividade. Ou podem ocorrer fatores
externos, como, no caso de concessão de rodovias, a redução no
volume do tráfego em desacordo com o previsto. Nessas situações, a concessionária não tem direito à recomposição do equilíbrio inicial. Configura-se o desequilíbrio econômico-financeiro
do contrato, mas isso sob a ótica econômica. O desequilíbrio
somente se caracteriza como jurídico se tiver sido causado:
a) por um Fato da Administração, como alteração
unilateral do contrato ou descumprimento de obrigações contratuais pelo contratante;
b) por um Fato do Príncipe, como aumento ou redução de tributos ou alteração de política cambial;
c) por um fato incluído na chamada Teoria da Imprevisão, como força maior ou caso fortuito, interferências imprevistas (“sujétions imprévues”),
surgimento de rotas de fuga de pedágio (no caso de
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rodovias) ou incorporação de receitas alternativas,
complementares, acessórias ou de projetos associados, surgidas durante a execução do contrato (art.
11 da Lei 8.987/95).1
Esses fatos devem ser imprevisíveis (ou previsíveis mas
de consequências incalculáveis) e caracterizar-se como extraordinários (incluídos na álea extraordinária).
O direito – e correspondente dever – à recomposição
do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato administrativo é assegurado pela Constituição da República no art. 37,
que enuncia os princípios a serem observados pela Administração
Pública e determina, no inciso XXI, que sejam “mantidas as
condições efetivas da proposta, nos termos da lei” (grifei).
Veio a Lei 8.666/93, no art. 65, inciso II, alínea “ d”:
“Art.65.Oscontratosregidosporestaleipoderãoseralterados,
comasdevidasjustificativas,nosseguintescasos:
.................................................................................
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmenteentreosencargosdocontratadoearetribuiçãoda
Administraçãoparaajustaremuneraçãodaobra,serviçoou
fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiroinicialdocontrato,nahipótesedesobreviremfatosimprevisíveis,ouprevisíveisporémdeconsequências
incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do
ajustado,ouainda,emcasodeforçamaior,casofortuitoou
1
O art. 11 da Lei 8.987/95 dispõe que essas receitas extraordinárias devem ser previstas no edital. Quando isso ocorre, elas integram a equação econômico-financeira inicial da concessão.
Mas podem não ser previstas desde logo. Seria desarrazoado sustentar que em um contrato de
longa duração, como a concessão de serviço público, essas receitas não pudessem ser adotadas
quando surgidas na etapa de execução do contrato. Sustentei esta opinião no meu “Concessão
deServiçoPúblico” (2ª edição, revista, atualizada e ampliada, São Paulo, Malheiros, 2002,
pp. 50 e 97).
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fatodopríncipe,configurandoáleaeconômicaextraordinária
eextracontratual.”
No mesmo sentido, os §§ 3° e 4° do art. 9° da Lei
8.987/95 e o art. 35 da Lei 9.074/95:
Lei8.987/95,art.9°:
“§3°.Ressalvadososimpostossobrearenda,acriação,alteraçãoouextinçãodequaisquertributosouencargoslegais,após
aapresentaçãodaproposta,quandocomprovadoseuimpacto,
implicaráarevisãodatarifa,paramaisouparamenos,conformeocaso.
§4°.Emhavendoalteraçãounilateraldocontratoqueafeteo
seuinicialequilíbrioeconômico-financeiro,opoderconcedente
deverárestabelecê-lo,concomitantementeàalteração.”
Lei9.074/95,art.35:
“Art.35.Aestipulaçãodenovosbenefíciostarifáriospelopoder
concedenteficacondicionadaàprevisão,emlei,daorigemdos
recursos ou da simultânea revisão da estrutura tarifária do
concessionáriooupermissionário,deformaapreservaroequilíbrioeconômico-financeirodocontrato.”
O raciocínio puramente econômico conduz a um equívoco conceitual. Não se pode negar que o desequilíbrio é sempre
econômico ou financeiro. Mas para que dele decorra um dever da
parte beneficiada de recompor a equação inicial do contrato – e um
correspondente direito da parte prejudicada a essa recomposição
– é necessário que seja juridicamente qualificado. E isso está em
harmonia com o esquema legal de tarifa pelo preço, que atribui à
concessionária o risco do negócio (álea ordinária).
Sintetizando:
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A. A política tarifária estabelecida pela Lei 8.987/95
para as concessões de serviço público é a de tarifa
pelo preço, e não a de tarifa pelo custo.
B. Coerentemente, a lei atribui à concessionária o risco
do negócio, contido na chamada álea ordinária, excetuando o risco pelo desequilíbrio econômico-financeiro do contrato provocado por fatos supervenientes,
imprevisíveis (ou previsíveis mas de consequências
incalculáveis)e extraordinários.
C. O contrato pode estar desequilibrado econômica
ou financeiramente, sem que surja o dever jurídico de ser reequilibrado pela parte beneficiada, e o
correspondente direito da parte prejudicada a essa
recomposição. Esse dever somente existe nos casos
em que o desequilíbrio é provocado por um Fato
da Administração, um Fato do Príncipe ou um
fato incluído na Teoria da Imprevisão. O conceito
jurídico de desequilíbrio econômico-financeiro do
contrato pressupõe o fato econômico, mas somente
aquele juridicamente qualificado como desequilibrador de sua equação inicial, nos termos da legislação vigente. Sem essa qualificação, o desequilíbrio resulta do risco do negócio, a que está sujeita
a concessionária de acordo com o art. 2°, inciso III,
da Lei 8.987/95.
4.
Análise do edital da ANTT
Até este ponto discorri sobre aspectos conceituais indispensáveis à apreciação da legalidade do edital sob exame. A partir
de agora, passarei a analisá-lo.
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4.1. Critérios de avaliação do Plano de Negócios
A apresentação, pelas licitantes, do Plano de Negócio
tem dois objetivos:
a) verificar a consistência da proposta vencedora, ou,
em outras palavras, a coerência entre a concepção do
empreendimento contida no Plano e a tarifa proposta; e
b) servir de base para a constatação de eventual desequilíbrio econômico-financeiro ao longo da duração
do contrato.
Na etapa da licitação, a análise do Plano de Negócios é indispensável para formar juízo sobre a exequibilidade da
proposta. Isso está claro no item 3.10.2 do Anexo 16 do Edital
(“TermodeReferênciadoPlanodeNegócios”):
“3.10.2.Paratanto,osPLANOSDENEGÓCIOSdeverãoretratar:
a) consistênciainterna,deformaapermitirqueseproceda
a análise de coerência entre as diferentes previsões feitas
quantoaomontanteecalendáriodeinvestimentosedespesasoperacionaiseasreceitas,financiamentonecessárioe
fontesdefinanciamentos;
b) razoabilidade das estimativas realizadas, de modo que
possam ser analisadas a tarifa proposta e sua exeqüibilidade, a conseqüente receita proveniente do pedágio e as
justificativaspertinentes,aparticipaçãodoendividamento
no financiamento dos investimentos e a exeqüibilidade
econômico-financeiradoempreendimento.”
Nos itens anteriores desse Anexo 16, está dito o que
deve conter o Plano de Negócios e como deve ele ser preenchido
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pelas licitantes. Mas não está dito como ele deve ser avaliado.
Vale dizer: não estão definidos os critérios para verificação da
consistência da proposta, ou seja, não estão definidos os critérios
para apurar se a proposta de menor tarifa guarda coerência com
a concepção do empreendimento. Assim, não estão definidos
critérios para determinar se essa proposta é exequível.
A Lei 8.987/95 é clara, no § 3° do art. 15:
“§3°Opoderconcedenterecusarápropostasmanifestamente
inexeqüíveisoufinanceiramenteincompatíveiscomosobjetivosdalicitação.”
Mesmo que o Plano de Negócios contenha todos os
elementos necessários à verificação da exequibilidade da proposta, está faltando a explicitação dos critérios que deverão levar
a ANTT a considerar uma proposta exequível ou inexequível.
Assim, não é que o Edital não contém critérios suficientemente
objetivos para que o poder concedente aceite ou não a proposta
de menor tarifa. Simplesmente eles não existem, o que torna a
decisão da ANTT totalmente subjetiva. Não se pode falar, portanto, em decisão contida na margem de discricionariedade da
Administração, mas em decisão livre de quaisquer parâmetros
estabelecidos pelo Edital. Essa situação conflita com o princípio
do julgamento por critérios objetivos, que, de acordo com o
art. 14 da Lei 8.987/95, deve ser observado nas licitações para
concessão de serviço público.2
2
Vale ressaltar que se não fica demonstrada a consistência interna da proposta, não há como
analisar um eventual desequilíbrio econômico-financeiro da concessão ao longo de sua duração. Essa análise pressupõe que o equilíbrio econômico-financeiro inicial esteja objetivamente
caracterizado. Por outro lado, essa ausência de objetividade inviabiliza que os participantes da
licitação, os cidadãos em geral e os próprios órgãos de controle possam avaliar a razoabilidade da
decisão tomada pela Comissão de Outorga quanto à aceitabilidade da proposta de menor tarifa.
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4.2. A intangibilidade da equação econômicofinanceira inicial da concessão
O contrato de concessão – espécie de contrato administrativo – é alterável unilateralmente pelo poder concedente. Mas
sua equação econômico-financeira inicial é intangível. Mais
explicitamente: é intangível o retorno esperado pela concessionária quando formulou sua proposta.
Nesse sentido já se pronunciou o Tribunal de Contas
da União. Transcrevo trecho do Voto do Ministro-Relator
Walton Alencar Rodrigues, no Acórdão n° 393/2002 – TCUPlenário:
“Ofluxodecaixaéoinstrumentoquepermite,aqualquerinstante,verificarseataxainternaderetornooriginalestásendo
mantida.CaberessaltarqueaTaxaInternadeRetorno–TIR
é extraída diretamente da proposta vencedora da licitante e
expressaarentabilidadequeoinvestidoresperadoempreendimento.Emtermosmatemáticos,aTIRéataxadejurosque
reduzazeroovalorpresentelíquidodofluxodecaixa,ouseja,
ataxaqueigualaofluxodeentradasdecaixacomassaídas,
numdadomomento.
Assim, pode-se dizer que a manutenção da taxa interna de
retornoégarantiatantodoPoderPúblico,quantodaconcessionária,esuamodificaçãodáensejoàrevisãocontratual,na
formaprevistanaleienocontrato.”
Na mesma linha, o Acórdão 988/2004 – Plenário, do
qual foi Relator o Ministro Marcos Vinicios Vilaça. Ao apreciar
contrato de concessão entre a União e a Concessionária RioTeresópolis S.A. (CRT), o TCU determinou à Agência Nacional
de Transportes Terrestres (ANTT) que:
“9.1.2.–adoteprovidênciasnosentidodeestabeleceraTaxa
Interna de Retorno – TIR obtida do caixa não-alavancado
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como indicador do equilíbrio econômico-financeiro do contratoPG-156/95-00,firmadoentreoextintoDNEReaConcessionáriaRio-Teresópolis;”.
A equação econômico-financeira inicial da concessão não
pode ser variável, o que eliminaria a única proteção que o ordenamento jurídico garante à concessionária. Isso fica claro em estudo
elaborado pela Fundação Getúlio Vargas, por solicitação da Auditoria Geral do Estado do Espírito Santo – AGE/ES, referente à Avaliação Econômico-Financeira do Contrato de Concessão do Sistema
RODOSOL, anexado à consulta. Vejamos (p. 14):
“Oequilíbrioeconômico-financeirodeumcontratodeconcessãoestá
relacionadoàmanutençãodesuaTaxaInternadeRetorno(TIR)ao
longodaconcessão.ATIRrepresentaarentabilidademédiaanual
dosinvestimentosrealizados,correspondendoàtaxadedescontoque
torna o valor presente do fluxo de caixa futuro do projeto igual a
zero.ATIRtemavantagemdesercalculadaapenascomosvalores
dofluxodecaixalíquido,semdependerdevariáveisexternas,oque
atornaprincipalparâmetroaserobservadoquandodasalterações
contratuaisafimdepreservaroequilíbrioeconômico-financeirodas
condições inicialmente pactuadas, garantindo a rentabilidade
inicialmente prevista.”(grifei)
E mais adiante (p. 59):
“Oscontratosdeconcessãoemgerale,emparticular,osdeconcessão
rodoviáriatêmcomopressupostojurídicoamanutençãodoequilíbrio econômico-financeiro da relação contratual, ao longo de sua
vigência.
O conceito utilizado para definir a condição de equilíbrio
econômico-financeiro dos contratos de concessão diz respeito
à manutenção da mesma Taxa Interna de Retorno (TIR) do
projeto da Proposta Comercial, ao longo da vigência do contrato.”(grifei)
Em obra consagrada, o jurista espanhol Gaspar Ariño
Ortiz (“TeoríadelEquivalenteEconómicoenlosContratosAdministrativos”, Madrid, Instituto de Estudios Administrativos, 1968)
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elenca quatro princípios básicos que regem os contratos administrativos: (a) o da mutabilidade; (b) o da continuidade; (c) o da
colaboração; e (d) o do equivalente econômico. O contratado é
obrigado a aceitar alterações unilaterais do contrato por parte da
Administração contratante, que busca, com isso, realizar o interesse público. Como diz Ariño Ortiz, “acimadosinteressesparticulares–puramentepecuniários–daspartes,impõe-seointeressegeral,
queconstituiofimprimáriodocontrato” (p. 223). E acrescenta: “A
imutabilidadedocontrato...vê-sematizadapelaimutabilidadedo
fim” (p. 225). Alterado o contrato, não pode o contratado negar-se
a dar continuidade à execução do seu objeto. O princípio da continuidade igualmente se impõe por força da realização do fim
primário do contrato, que é o interesse público. Mas o contratado
deve ser visto como um colaborador da Administração, e não um
adversário, muito menos um inimigo.
Dessa situação de sujeição ao que a doutrina administrativista convencionou chamar de “cláusulasexorbitantes”, decorre o
princípio do equivalente econômico, que “vem a ser assim o contrapontonecessário,naordemfinanceira,aumasituaçãodeflexibilidadecontratualnoobjetoeconteúdodasprestações” (p. 242).
O princípio pacta sunt servanda continua a existir. Só
que ele é atenuado pela maior flexibilidade das cláusulas contratuais, em decorrência “ da presença na relação contratual de
aspectosregulamentares” (Ariño Ortiz, p. 228). Como escrevi no
artigo publicado na Revista da ABAR, acima citado (p. 20):
“Defender a imutabilidade dos contratos de concessão durante o
prazode20,25ou30anosé,nomínimo,ingenuidade.Oquea
concessionáriatemdireitoaverrespeitado–eopoderconcedente
tem o dever de respeitar – é o equilíbrio econômico-financeiro do
contrato.Este,sim,éintangível.Ocontratoémutávele,maisainda,
deve ser modificado sempre que o interesse público assim o
exija.”(grifos no original)
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Em resumo: o Direito brasileiro determina que os pactos
devem ser observados. Mas excepciona hipóteses contempladas na
Constituição e nas leis. Nos contratos administrativos, deve ser
observado o pacto inicialmente ajustado, mas somente quanto
à equação econômico-financeira inicial. Esta é intangível. No
caso de concessão de rodovias, o TCU entendeu, nos Acórdãos
acima citados, que o respeito à equação econômico-financeira inicial do contrato traduz-se na manutenção, durante todo o prazo
da concessão, da TIR contemplada na proposta apresentada pela
concessionária na etapa da licitação.
Vale referir, a este passo, trabalho sob o título “OEquilíbrioEconômico-FinanceironasConcessõesdeRodoviasFederaisno
Brasil” (publicado pelo Tribunal de Contas da União na coletânea “RegulaçãodeServiçosPúblicoseControleExterno”, Brasília,
2008, pp. 217 e ss.), de autoria de Adalberto Santos de Vasconcelos. O autor discorreu longamente sobre os modelos “estático”
e “ dinâmico” de equilíbrio econômico-financeiro das concessões
de rodovias, argumentando em favor da adoção do “modelo
dinâmico”, por ele considerado “moderno”, em contraposição ao
“modelo estático”, por ele considerado “tradicional”. Em linhas
gerais, o “modelo estático” baseia-se na manutenção da equação
econômico-financeira inicial do contrato durante todo o prazo
de sua execução, enquanto o “modelo dinâmico” caracteriza-se
pela adaptação dessa equação à realidade econômica cambiante.
Tal adaptação seria efetuada mediante ajustes realizados nas revisões periódicas. A adoção do “modelodinâmico” é por ele proposta tanto para os contratos em andamento, quanto para os que
vierem a ser celebrados.
Não me cabe opinar sobre qual modelo é o mais adequado. Esta questão extrapola os limites do conhecimento jurídico. Situa-se na esfera econômico-financeira. Sob a ótica jurídica, posso apenas afirmar que o Direito brasileiro adotou o
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“modeloestático”, pelo que a adoção do “modelodinâmico”, tanto
nos contratos em andamento quanto nos por celebrar, dependeria
de reforma constitucional e legal. Não poderia ser efetuada por
decisão administrativa, infralegal.
Vale notar que o autor do referido trabalho, com elogiável rigor científico, não pretendeu extrapolar os limites do
conhecimento econômico-financeiro. Na Conclusão, escreveu
(p. 262):
“Por fim,sugere-se,para trabalhosfuturos,oaprofundamentodos
estudosquantoaomodeloderegulaçãoatualdasconcessõesderodoviasfederais,haja vista que neste trabalho procurou-se centrar
nos aspectos econômico-financeiros.”(grifei)
E acrescentou mais adiante, à mesma página:
“Outroestudoquepodeserrealizadodizrespeitoàverificaçãodos
atuaiscontratosdeconcessãoderodoviasfederais,seestariamequilibradoseconômico-financeiramenteemvirtudedesuasrentabilidades
(TIRs)permaneceremconstantesdesdeoiníciodaexecuçãocontratual. Tal questão justifica-se em decorrência da forte alteração do
cenárioeconômicodenossoPaís,desdequeforamlicitadososcinco
primeiroslotesdeconcessãoderodoviasfederais.Assim,umaTIRpor
voltade23%a.a.poderiasercompatívelcomaperspectivaderisco
em1994ou1995–ambientecominflaçãonãocontrolada(Plano
Real,àépoca,eraincipiente),incertezaspolíticasetc.Noentanto,
ocálculodocustodeoportunidadeatualmenteimplicariataxasde
rentabilidadebemmaismódicas,ouseja,alterariam-seascondições
‘iniciais’ em que foi calculada a rentabilidade das concessões em
andamento.Então,pergunta-se:Comaalteraçãodascondiçõesiniciais,nãofoiquebradooequilíbrioeconômico-financeiroinicialdos
contratosdeconcessão?A fim de responder esta questão, deve-se
aprofundar tanto na doutrina administrativista quanto nos
aspectos econômico-financeiros dos atuais contratos de concessão.”
(grifei)
Respondo à questão proposta pelo autor dizendo que,
para adotar-se o “modelo dinâmico”, seria necessário alterar o
inciso XXI do art. 37 da Constituição da República, que deter115
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mina sejam “mantidas as condições efetivas da proposta”
(grifei). Ter-se-ia, a seguir, que alterar o art. 65, inciso II, alínea
“ d”, da Lei 8.666/93 – aplicável às concessões de serviço público
de acordo com o art. 124 da mesma lei – que dispõe sobre o restabelecimento da “relaçãoqueaspartespactuaraminicialmente”
(grifei), assim como dispositivos da Lei 8.987/95, sobretudo o §
4° do art. 9°, que fala em “inicialequilíbrioeconômico-financeiro
docontrato”(grifei) e o art. 10. Este, ao determinar que “Sempre
queforematendidasascondiçõesdocontrato,considera-semantido
seuequilíbrioeconômico-financeiro” diz o óbvio, ou seja, que a lei
adota o “modelo estático” de equilíbrio.
Em síntese: o “modelo dinâmico” não encontra respaldo no Direito brasileiro, o que ressalta a distinção, a que
aludi acima, entre os conceitos econômico e jurídico de desequilíbrio do contrato.
4.3. O “Desconto de Reequilíbrio”
Entendo que o “Desconto de Reequilíbrio”, previsto no
item 20.6 da minuta de contrato anexa ao edital, é incompatível
com a ordem legal. Por si só, vicia o instrumento convocatório.
Esse “Desconto” foi assim definido no Comunicado Relevante n° 11, expedido pela Comissão de Outorga em
16/01/2009:
“O Desconto de Reequilíbrio, determinado pela avaliação
anual de desempenho, é um mecanismo pactuado entre as
partesparareequilibrarocontratonoscasosdeatrasoouinexecuçãodeobrasdeampliaçãodecapacidadecondicionadas
aovolumedetráfegoedeobraseserviçosdecaráternãoobrigatórioeseráaplicadopelaANTT,ouvidaaConcessionária
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Antônio Carlos Cintra do Amaral
sobre a avaliação de desempenho efetuado, no prazo assinaladopelaAgência.”
Se a concessionária não cumpre suas obrigações, deixando de efetuar ou efetuando fora dos prazos os investimentos
previstos, deve sofrer as sanções previstas no contrato e na lei,
podendo, até, chegar a ser declarada a caducidade da concessão,
na conformidade do art. 38 e parágrafos da mesma lei. Mas o
descumprimento de obrigações contratuais ou legais, por parte
da concessionária, não é causa de desequilíbrio econômicofinanceiro inicial do contrato.
Mais ainda: o poder concedente é proibido de transigir
com esse descumprimento. O interesse público é indisponível, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (“Curso
de Direito Administrativo”, 25ª edição, São Paulo, Malheiros,
2008, pp. 73 e ss.). Ao poder concedente não é dado tolerar o
descumprimento das obrigações contratuais pela concessionária,
especialmente a de prestar serviço adequado, que pressupõe a
realização, nos prazos, dos investimentos projetados. Em casos
extremos, tem o dever de declarar a caducidade da concessão.
É possível, em certos casos, rever o esquema e o cronograma de investimentos previstos no contrato de concessão.
Isso para manter ou reequilibrar a equação econômico-financeira
inicial, em decorrência de fato superveniente, imprevisível (ou
previsível mas de consequências incalculáveis) e extraordinário
(incluído na álea extraordinária do negócio), tal como exposto
acima. Mas nesse caso a alteração contratual é efeito do desequilíbrio verificado, e não sua causa.
Por outro lado, reduzir a tarifa como contrapartida do
inadimplemento contratual, como pretende o edital, é juridica-
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
mente inadmissível. O interesse público exige que as obrigações
sejam cumpridas. E o interesse público é indisponível.
É verdade que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) prevê a redução do preço contratual
ajustado pelas partes. Nos casos de vício do produto ou do serviço, o consumidor pode exigir o abatimento do preço (art. 18,
§ 1°). Mas a relação de consumo é de direito privado, enquanto
a de serviço público é de direito público. O poder concedente
continua com a titularidade do serviço concedido, embora seu
exercício seja delegado à concessionária. Assim, continua com a
responsabilidade, solidária, pela prestação de serviço adequado
ao usuário. Não pode eximir-se dessa responsabilidade, reduzindo o valor da tarifa cobrada pela concessionária.
O usuário não é consumidor. A distinção entre eles
foi objeto de estudo incluído no meu citado “ConcessãodeServiço
Público” (pp. 113/118). Escrevi (pp. 115/116):
“Adistinçãoconceitualentreusuáriodeserviçopúblicoeconsumidorpodesergraficamenteexpostanosseguintestermos:
A) Relação de serviço público
Poder Concedente <
> Concessionária <
> Usuário
Aconcessionáriaéobrigadaaprestaroserviçocujoexercíciolhefoi
atribuído,masopoderconcedentecontinuacomodeverconstitucionaldeprestá-lo,emboraescolhaaopçãodefazê-loindiretamente
sobregimedeconcessãooupermissão,comolheéautorizadopeloart.
175 da Constituição. O inadimplemento pela concessionária gera
sua responsabilidadeperanteousuário,mastambémresponsável
é,solidariamente,opoderconcedente,namedidaemquemantéma
titularidadedoserviçoconcedido.
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B) Relação de consumo
<
Poder Público
Fornecedor <
> Consumidor
O fornecedor é obrigado a prestar o serviço ao consumidor. O
Poder Público tem o dever de regular a relação contratual entre
eles,protegendoaparteconsideradamaisfraca.Oinadimplemento
pelo fornecedor gera sua responsabilidade peranteoconsumidor.
OPoderPúbliconão é responsávelpelocumprimentodasobrigaçõespelofornecedor.”
E exemplifiquei (p. 117):
“Opressupostobásicodoinstitutodaconcessãodeserviçopúblicono
DireitoBrasileiroéaprestaçãode‘serviçoadequado’.Oprincípio
da indisponibilidade do interesse público,aqueserefereCelso
AntônioBandeiradeMelloemdiversosescritos,impedequeopoder
concedenteconcordecomqualquersoluçãoqueprejudiqueessaprestação,pormínimoquesejaoprejuízo,oquenãoocorrenarelaçãode
consumo,emqueosinteressesenvolvidossãoprivados.Porexemplo:
oordenamentojurídiconãoadmitequeousuárioconcordecoma
prestaçãode‘serviçoinadequado’sobacondiçãodequeaconcessionáriareduzaatarifa.Jáoconsumidorpodeexigirabatimentodo
preçocasooserviçoprestadopelofornecedornãosejasatisfatório.”
Voltei ao assunto em 01/06/2007, no Comentário
nº 144, divulgado no site www.celc.com.br. Nele, busquei atualizar a distinção em face da Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei
11.079/2004). Mas não alterei os conceitos anteriormente expostos,
e que foram, mais uma vez, por mim sustentados em palestra no
XXII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, realizado em
Brasília no período de 8 a 10 de outubro de 2008.
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Se a concessionária não cumpre suas obrigações
contratuais e legais, o poder concedente é solidariamente responsável por esse descumprimento. Não pode ele barganhar,
admitindo que o descumprimento seja compensado por uma
redução na tarifa cobrada.
Repito: o “Desconto de Reequilíbrio” nada tem a ver
com o reequilíbrio do contrato, já que a não realização de investimentos que a concessionária se obrigou a fazer, nos prazos contratuais, não se configura como causa jurídica de desequilíbrio.
Cabe, então, perguntar: e o que ele é?
É evidente a resposta: configura-se como uma penalidade. E seu caráter de penalidade torna-se mais acentuado quando
se verifica que somente pode conduzir a um “mal”: a redução da
tarifa. Se ele fosse resultado de “avaliaçãodedesempenho”, como
se pretende que seja (subitem 20.6.1 da minuta de contrato), esse
“mal” deveria ser contraposto a um “bem”, ou seja, a elevação da
tarifa, ou outra vantagem para a concessionária, na hipótese de
desempenho acima do estritamente obrigatório (por exemplo: uma
antecipação na realização de investimentos), acarretando assim um
benefício extraordinário aos usuários (sobre sanções negativas e
positivas, veja-se Norberto Bobbio, “Dallastruturaallafunzione”,
Milano, Edizioni di Communità, 1977, pp. 13/42).
Como penalidade, o “DescontodeReequilíbrio” incorre
em duas ilegalidades. Primeiro, porque não está previsto na legislação aplicável, ou seja, esta não autoriza o poder concedente a
aplicar a penalidade de redução das tarifas. Segundo, porque,
como foi demonstrado pela ABCR em um dos anexos à sua consulta, ele tem como hipóteses de incidência fatos idênticos aos que
ensejam, cumulativamente, a aplicação de sanções contratuais, o
que caracteriza ofensa ao princípio bis in idem.
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Não vislumbro argumento que demonstre a legalidade
desse “Desconto”. Não me parece aceitável a afirmação contida na
Nota Técnica BNDES/AEP n° 09/2008, de 29/07/2008 – anexada
à consulta e que certamente serviu de respaldo à escolha do modelo
adotado – de que essa redução tarifária tem fundamento no art. 6°
da Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei 11.097/2004). Esta lei
expressamente dispõe, no § 2° do art. 3°, que:
“§ 2°. As concessões comuns continuam regidas pelas Lei n°
8.987,de13defevereirode1995,epelasleisquelhesãocorrelatas,nãoselhesaplicandoodispostonestalei.”
Diz-se, na referida Nota Técnica:
“Oprincípiodaeficiêncianaprestaçãodosserviçospúblicos,
bemcomoorespeitoàsnormasdoscontratosécomumaambas
espéciesdeconcessão,sejadaquelasregidaspelaLein°8.987/95,
sejadasqueintegramasparceriaspúblico-privadas.”
Dessa consideração, o autor extrai a conclusão de que
se aplica às “concessões comuns” o parágrafo único do art. 6° da Lei
das PPPs:
“Parágrafoúnico.Ocontratopoderápreveropagamentoao
parceiro privado de remuneração variável vinculada ao seu
desempenho,conformemetasepadrõesdequalidadeedisponibilidadedefinidosnocontrato.”
Defender tal tese, a título de contribuição para uma
reforma da Lei 8.987/95, talvez fosse defensável. Se bem que
mesmo assim eu teria dúvidas, porque entendo que a “remuneração” a que se refere esse dispositivo legal é aquela paga pelo poder
concedente, e não pelo usuário, e na “concessãocomum” o poder
concedente não paga nada. Mas pretender que ele se possa aplicar às “concessões comuns”, em nome do princípio constitucional
da eficiência, desborda dos limites da atividade de interpretação
e aplicação das leis. Mais ainda: não só desborda desses limites,
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mas se choca frontalmente com o § 2° do art. 3° da mesma lei,
acima transcrito.
Aliás, a minuta de contrato anexa ao Edital deixa claro
(item 33.5.2) que “AConcessãoseráregidapelaLei8.987,de13
defevereirode1995,e,noquecouber,pelaLein°10.233,de5de
junhode2001”. Não menciona – nem poderia mencionar – a Lei
das Parcerias Público-Privadas (Lei 11.079/2004).
A interpretação defendida pelo autor da referida Nota
Técnica parece-me traduzir o pensamento de que diante do
eventual conflito entre eficiência e legalidade a Administração Pública deveria ser eficiente, à custa da legalidade. Sobre
isso publiquei estudo sob o título “O Princípio da Eficiência
no Direito Administrativo”, incluído em “Licitação e Contrato
Administrativo–Estudos,ParecereseComentários” (Belo Horizonte, Editora Fórum, 2ª tiragem, 2007, pp. 27/34), que encerrei escrevendo:
“Porúltimo,salientoquenãovejooposiçãoentreosprincípiosda
eficiência e da legalidade.Apessoaprivada,queagedentroda
chamada ‘autonomia da vontade’, não está desobrigada de cumprir a lei. Muito menos a Administração Pública, que deve agir
em conformidade com a lei.Adotandoadistinçãoefetuadapor
André Gonçalves Pereira (“Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo”.Lisboa:Ática,1962),entrelicitude e legalidade,posso
dizerqueaatuaçãodaspessoasprivadasdevesereficiente e lícita,
enquanto a atuação do agente administrativo deve ser eficiente
e legal. Em outras palavras: dizer-se que a Administração está
autorizadaapraticaratos ilegais,desdequeissocontribuapara
aumentarsuaeficiência,énomínimotãoabsurdoquantodizer-se
que uma empresa privada pode praticar atos ilícitos, desde que
issocontribuaparaaumentarsuaeficiência.”
Por último, observo que a norma do parágrafo único do
art. 6º da Lei 11.079/2004 é coerente com o esquema de riscos
das parcerias público-privadas. No seu art. 4º, a Lei das PPP’s
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dispõe: “Nacontrataçãodeparceriapúblico-privadaserãoobservadasasseguintesdiretrizes:...VI-repartição objetiva de riscos
entre as partes”.(grifei) Mas não seria coerente com o esquema
das “concessõescomuns”,em que o risco normal do negócio é totalmente atribuído à concessionária pelo art. 2º, inciso III, da Lei
8.987/95, como visto acima.
Assim, entendo que o “DescontodeReequilíbrio”:
a) resulta de “avaliação de desempenho”, que somente
seria defensável se a política tarifária da concessão
fosse pelo custo, e não pelo preço;
b) consiste em autorização, não prevista em lei, para
que o poder concedente tolere a inadimplência da
concessionária em troca da redução da tarifa;
c) conflita com a obrigação de a concessionária prestar
serviço adequado, como tal definido no art. 6°, § 1°,
da Lei 8.987/95;
d) fere o princípio da indisponibilidade do interesse
público; e
e) a pretexto de reequilibrar a equação econômicofinanceira do contrato em favor do poder concedente – o que não tem sentido, já que a inadimplência pela concessionária não constitui, sob
a ótica jurídica, causa de desequilíbrio contratual – termina por desequilibrá-lo em desfavor
da concessionária.
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Respostas aos Quesitos formulados
À vista do exposto, respondo aos Quesitos formulados:
1. O Edital contém critérios objetivos para avaliação da
consistência interna e da razoabilidade das estimativas realizadas no Plano de Negócios a ser apresentado pelas licitantes? Caso negativo, a ausência desses critérios afronta o
princípio do julgamento objetivo, caracterizando, assim,
ilegalidade do Edital?
O Edital não contém critérios objetivos para avaliação da consistência interna e da razoabilidade das estimativas realizadas
no Plano de Negócios, a ser apresentado pelas licitantes. Em
consequência, a ANTT não pode avaliar a exequibilidade da
proposta de menor tarifa, a fim de recusá-la caso manifestamente inexequível, como determina o § 3° do art. 15 da Lei
8.987/95. Tal situação contraria, por outro lado, o princípio do
julgamento por critérios objetivos, contemplado no art. 14
da mesma lei.
2. O retorno esperado pela concessionária, quando da
formulação e apresentação de sua proposta, pode ser
alterado ao longo da duração da concessão? Essa alteração é compatível com a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, assegurada pela
Constituição e pela Lei?
A Constituição da República, em seu art. 37, inciso XXI, e a
legislação, em vários dispositivos, asseguram a manutenção do
equilíbrio econômico-financeiro inicial ao longo da concessão,
pelo que é vedado ao poder concedente alterar o retorno espe124
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rado pela concessionária ao formular e apresentar sua proposta.
O TCU entendeu, nos acórdãos acima citados, que a manutenção da TIR inicial, extraída da proposta vencedora, é a garantia
dessa situação. No mesmo sentido, é o entendimento da FGV,
no referido estudo solicitado pela Auditoria Geral do Estado do
Espírito Santo – AGE/ES.
3. O “Desconto de Reequilíbrio”, previsto no Edital, tem
respaldo legal?
O “DescontodeReequilíbrio” tem evidente caráter sancionatório, pelo que não pode ser aplicado não apenas por falta de
previsão legal, mas igualmente porque, se aplicado, violaria o
princípio do bis in idem. Além do mais, não serve para reequilibrar o contrato, podendo, ao contrário, desequilibrá-lo. Não
bastasse isso, conflitaria com o princípio da indisponibilidade do interesse público, ao admitir que o serviço pudesse
ser prestado ao usuário com perda de qualidade, em troca de
redução da tarifa cobrada, o que contrariaria, ainda, o dever
da concessionária de prestar serviço adequado, a ela atribuído
pela Lei 8.987/95 no seu art. 6°.
Observe-se, afinal, que o prosseguimento da licitação
com as ilegalidades apontadas resultará na celebração de um contrato passível de anulação, já que, de acordo com o § 2° do art. 49
da Lei 8.666/93, a nulidade do procedimento licitatório induz à
do contrato. Anulado o contrato, a Administração terá o dever de
indenizar a contratada, pelo que esta houver executado até a data
em que a nulidade for declarada “eporoutrosprejuízosregularmente
comprovados,contantoquenãolhesejaimputável,promovendo-sea
responsabilidadedequemlhedeucausa” (parágrafo único do art. 59
da mesma lei). Essa situação – é evidente – causaria sérios prejuízos
ao interesse coletivo primário.
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É meu parecer.
São Paulo, 05 de maio de 2009
Antônio Carlos Cintra do Amaral
Advogado (OAB/SP nº 41.668).
Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP.
Professor convidado nos Cursos de Especialização em Direito
Administrativo, na PUC/SP, e em Direito Público, na Escola Paulista da Magistratura.
Membro do Instituto dos Advogados de Pernambuco.
Diretor e Coordenador Geral do Centro de Estudos sobre Licitações
e Contratos – CELC (São Paulo).
Autor de vários livros, artigos e estudos publicados em revistas jurídicas especializadas.
Autor de mais de 150 Comentários, divulgados, desde outubro de
1999, no site www.celc.com.br.
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COMENTÁRIOS ACERCA DA APLICAÇÃO DO
CDC À PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
CONCEDIDOS
Letícia Queiroz de Andrade
Mestre em direito administrativo pela PUC-SP
Professora de direito administrativo da PUC-SP.
Sócia coordenadora do setor regulatório-administrativo
do escritório Siqueira Castro Advogados.
A prestação de serviços públicos concedidos apresenta
características que a distingue de outras atividades econômicas,
sobretudo no que se refere à liberdade, ou melhor, à ausência de
liberdade do prestador, que não define o modo e as condições de
prestação do serviço e tampouco o valor de sua remuneração.
Como cediço, a modelagem da prestação é definida
integral e exclusivamente pelo Poder Público, que, com ela, objetiva a implementação de políticas públicas, concebidas para a
consecução de interesses coletivos.
As obrigações estipuladas nos contratos de concessão e
o valor das receitas, que geralmente resulta das propostas apresentadas nas correspondentes licitações, definem a equação econômico-financeira dos contratos, que, por força do art. 37, XXI,
da Constituição Federal, deve ser mantida.
Por tais motivos, a prestação de serviços públicos não
é sequer considerada atividade econômica, em sentido estrito1,
porquanto, em que pese a possibilidade de geração de riqueza, seu
desempenho não se submete integralmente a boa parte dos prin-
1
Nesse sentido, recente decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida no julgamento da
ADPF nº 76, em que se discutiu a natureza da atividade postal desenvolvida pela ECT – Empresa
de Correios e Telégrafos.
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
cípios elencados no art. 170 da Constituição, como, por exemplo,
a livre iniciativa e livre concorrência.
Tais distinções recomendam que a aplicação de legislação concebida para as atividades econômicas propriamente ditas
não seja efetivada sem consideração das peculiaridades do regime
jurídico pertinente à prestação de serviços públicos concedidos.
Contudo, o exame das decisões judiciais que trataram
do tema nos últimos 10 (dez) anos2 permite-nos afirmar que a
aplicação do CDC aos serviços públicos concedidos pelo Poder
Judiciário não resulta da acolhida e reflexão sobre teses desenvolvidas a respeito do tema.
Por motivos compreensíveis, nota-se que as decisões
judiciais objetivam solucionar, de modo pragmático, demandas
repetitivas em larga escala, que se referem, sobretudo, aos serviços
de telecomunicações e energia elétrica3, sem adentrar em digressões quanto à natureza jurídica peculiar do regime de concessão
de serviços públicos.
Nesse contexto, as expressões “usuário de serviço público”
e “consumidor” são empregadas como sinônimas, o que também
se verifica nos Decretos nº 2.335/97 e 2.338/97, que regulamentam, respectivamente, atribuições da ANATEL e ANEEL.
Com efeito, à semelhança do que ocorre em relação
às demais atividades, o critério determinante para aplicação do
Código Consumerista à prestação de serviços públicos, concedidos ou não, é, na ampla maioria dos casos, a existência
de remuneração.
Baseado em tal critério, o Poder Judiciário recusa a
aplicação do CDC aos serviços públicos gratuitos, como saúde e
educação, porquanto o custeio geral desses serviços por meio de
impostos não se enquadra no conceito de remuneração.
2
Foram examinadas cerca de 700 (setecentas) decisões judiciais, com enfoque principal nas
concessões de rodovias.
3
59% das decisões do STJ que tratam da aplicação do CDC à prestação de serviços públicos
concedidos referem-se a demandas relacionadas a concessionárias de telefonia e 20%, às concessionárias de distribuição energia elétrica.
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Letícia Queiroz de Andrade
Contudo, por estarem diretamente relacionadas ao
benefício especificamente usufruído, as taxas, assim como
as tarifas, são enquadradas no conceito de remuneração,
do que deriva a aplicação do CDC para os serviços por meio
delas remunerado4.
A despeito desse panorama, há diversas decisões que
derrogam, de modo pontual, a incidência de determinados dispositivos do CDC em caso de conflito com regras específicas
relativas às concessões de serviço público5.
Ressalte-se, entretanto, que, a despeito de reconhecerem
a prevalência da regulação especificamente aplicável a determinados aspectos da prestação dos serviços públicos sobre dispositivos
do CDC, referidas decisões não chegam a afastar a aplicação do
CDC aos serviços públicos concedidos, restringindo-se, como
dito, a reconhecer incompatibilidades pontuais.6
Esse enfoque pontual do tema à luz de dispositivos
infraconstitucionais obsta o conhecimento dos correspondentes
recursos extraordinários por parte do STF, que nunca enfrentou
de modo direto a discussão relativa ao tratamento diferenciado
4
Com relação a esse ponto deve se destacar a divergência da Ministra Eliana Calmon, da 2ª.
Turma do STJ, que menciona em suas decisões estar filiada à corrente doutrinária segundo a qual
o CDC só se aplica aos serviços públicos remunerados por tarifa. Vale citar, ainda, trecho do
voto da Ministra NANCY ANDRIGUI, da 3ª. Turma do STJ, relatora do Recurso Especial nº
625.144-SP, julgado em 09/02/2004, acerca da aplicação ou não do CDC aos serviços prestados
por tabelionatos de notas: “Osserviçosnotariais,portanto,sãoserviçospúblicosimprópriosou“uti
singuli”,jáque,alémdeseremprestadospordelegaçãoaparticulares(característicadosserviçospúblicosimpróprios),sãoserviçosde“utilizaçãoindividual,facultativaemensurável”esão“remunerados
portaxa”e“nãoporimposto”.
5
Atualmente, todas as decisões do STJ em que se apresenta conflito entre as regras do CDC e
a regulação específica aplicável à matéria foram favoráveis à preponderância do regime específico.
6
Nesse sentido, vale conferir trecho a seguir transcrito do voto Ministro HUMBERTO
MARTINS, no julgamento do Recurso Especial nº 872584, em 21/11//2007, pela Segunda
Turma do STJ: “O Direito do Consumidor qualifica as relações jurídicas entre usuários
e operadoras naquilo que não for objeto de regulação ou quando a regulação extrapolar
oslimitescientíficosdoDireitodeTelecomunicaçõesepassarainvadiraórbitadaquela
província. A cobrança indevida de ligações não efetuadas é questão nitidamente consumerista. A
exigênciadaassinaturabásica,porseuturno,étemaespecíficodaregulaçãodosserviçosdetelecomunicações.” (D/n)
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que a Constituição Federal estabelece entre usuários de serviços
público e consumidores7.
Especialmente no que se refere às concessões de rodovias, a decisão unânime proferida no julgamento do Recurso
Especial nº 467.883, em 17/06/2003, pela 3ª. Turma do STJ,
relatada pelo Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DE
DIREITO, vem sendo adotada como leading case na matéria,
cuja ementa transcreve-se:
“Concessionária de rodovia. Acidente com veículo em razão
de animal morto na pista. Relação de Consumo.
1.Asconcessionáriasdeserviçosrodoviários,nassuasrelaçõescom
osusuáriosdaestrada,estãosubordinadasaoCódigodeDefesado
Consumidor, pela própria natureza do serviço. No caso, a concessão é, exatamente, para que seja a concessionária responsável pela
manutençãodarodovia,assim,porexemplo,manterapistasema
presençadeanimaismortosnaestrada,zelando,portanto,paraque
osusuáriostrafeguememtranqüilidadeesegurança.Entreousuário
darodoviaeaconcessionária,hámesmoumarelaçãodeconsumo,
comoqueédeseraplicadooart.101,doCódigodeDefesadoConsumidor.
2.Recursoespecialnãoconhecido.”
Da breve fundamentação da decisão supracitada
extrai-se que, no caso, a aplicação do CDC não se baseou apenas
no critério da remuneração da atividade, mas, também, na consideração de que a finalidade das concessões de rodovias é garantir
a segurança de seus usuários, como se houvesse um contrato de
transporte entre eles e a concessionária prestadora do serviço8.
7
Para ilustrar esse entendimento, transcreve-se trecho de recente decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, relatada pelo Ministro GILMAR MENDES, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 571.572-8, em 08/10/2008:“Otemadefundo,ameuver,éinfraconstitucional.Asnormaslegaisdedireitodoconsumidoréqueorientamoresultadodademanda,enãoestão
estastendosuaconstitucionalidadeimpugnada.Nãoérazoável,emsituaçõescomoaqueaaquise
examina,asupressãodesteexameparafazerincidirdiretamenteospreceitosconstitucionais.Quanto
aoponto,portanto,orecursoextraordinárionãopodeserconhecido.”
8
O mesmo se nota em outra decisão unânime da 3ª. Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 647.710, em 30/06/06, na qual o Ministro CASTRO FILHO, invoca o precedente
acima citado e menciona que a possibilidade de um animal adentrar na pista constitui “risco da
atividadeeconômicadaré”.
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Letícia Queiroz de Andrade
Ocorre que a rodovia não é um meio fechado de transporte, e, tampouco, a atividade desenvolvida pelas concessionárias de rodovias constitui atividade de transporte, por força da
qual lhes seja atribuído o risco de transportar os usuários em
segurança, como prevê o artigo 734 do Código Civil9.
Parece-nos que escapa ao exame que o Poder Judiciário
faz da matéria que os serviços prestados pelas concessionárias não
criam, em si, riscos para os usuários da rodovia.
Bem ao contrário, se é verdade que trafegar pela rodovia é algo arriscado, os riscos de tráfego são reduzidos pelos serviços por elas prestados, que não têm mais responsabilidade pelo
fato de a rodovia estar sendo utilizada do que os fabricantes dos
veículos que o usuário utiliza para trafegar na rodovia e os que
fornecem o combustível necessário para que os veículos sejam
postos em movimento.
Verifica-se, portanto, haver uma confusão entre o risco
relativo ao serviço prestado na rodovia e a segurança do usuário
com relação a eles, e o risco relacionado ao uso da rodovia, que é
assumido pelo próprio usuário no momento em que decide por
ela trafegar, sujeito, inclusive, a acidentes causados por motoristas
imprudentes, negligentes e imperitos.
Por tal motivo, parece-nos imperioso distinguir os
riscos criados pelo uso da rodovia dos que são, efetivamente, criados pelos serviços fornecidos pela concessionária.
É evidente que as concessionárias devem ser responsabilizadas pelas falhas nos serviços por elas prestados, inclusive de
modo objetivo em relação a suas ações comissivas, o que pode
ocorrer, por exemplo, quando houver danos resultantes de obras
que estejam sendo realizadas na pista, do transporte de pessoas
em ambulâncias sob responsabilidade, do guinchamento inadequado de veículos, dentre outros.
9
Art. 734 do CC: “Aresponsabilidadecontratualdotransportador,peloacidentecomopassageiro,nãoéilididaporculpadeterceiro,contraoqualtemaçãoregressiva.”
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
Todavia, especialmente no que se refere à prestação dos
serviços de remoção de animais e objetos da pista, dos quais se
originam a maior parte das demandas em que se aplica o CDC
aos serviços públicos prestados em rodovias, não se pode dizer que
exista risco criado pela colocação de tais serviços no mercado.
Eventuais danos a eles relacionados podem advir da
omissão na prestação dos serviços, razão pela qual deve ser aplicado
a esses casos o entendimento atualmente predominante nos Tribunais Superiores quanto à distinção entre atos comissivos e omissivos, para fins de aplicação das teorias objetiva ou subjetiva acerca
da responsabilidade civil do Estado e dos prestadores de serviço
público, com base no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal.
Deveras, o tratamento especial da responsabilidade
civil atribuída aos prestadores de serviço público, e também ao
Estado, pela Constituição Federal, é um ponto de partida importante para que o Poder Judiciário vislumbre a incompatibilidade
do regime de reparação de danos aplicável aos prestadores de serviço com o regime previsto no CDC.
Em relação a esse aspecto, até mesmo os consumeristas
mais fervorosos reconhecem que a aplicação do CDC aos serviços públicos não se faz de modo indistinto em relação às demais
atividades econômicas, por força do que estabelece o art. 22 do
próprio CDC10.
Nesse sentido, o Ministro Antônio Herman Benjamin11, que escreve e leciona sobre o tema, sustenta que:
“A Administração Pública, como fornecedor que é (art. 3º), em
termos de responsabilidade civil iguala-se aos agentes econô10
“Art.22-Osórgãospúblicos,porsiousuasempresas,concessionárias,permissionáriasousob
qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes,
segurose,quantoaosessenciais,contínuos.
Parágrafoúnico.Noscasosdedescumprimento,totalouparcial,dasobrigaçõesreferidasnesteartigo,
serãoaspessoasjurídicascompelidasacumpri-lasearepararosdanoscausados,naformaprevista
nestecódigo.” (D/n)
11
BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos. O conceito jurídico de consumidor. BDJur, Brasília, DF. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/8866>. Acesso em:
14 mar. 2007.
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micos privadossemprequeestiverdiantedevíciosdequalidadepor
insegurança(produtoseserviços),víciosdequantidade(produtose
serviços)evíciodequalidadeporinadequação(produtosapenas).Só
quanto aos vícios de qualidade por inadequação dos serviços
équeoPoderPúblicorecebedoCódigodeDefesadoConsumidor tratamento diferenciado(art.22).”
A distinção a que se refere o Autor acima citado relaciona-se ao tratamento diferenciado que o Código do Consumidor atribui aos defeitos e vícios dos produtos e bens oferecidos no mercado de consumo, para fins de reparação dos danos
por eles causados.
Os produtos e serviços defeituosos, de que trata a
seção II do Capítulo IV do CDC, são aqueles que causaram
lesão ao consumidor, o qual passa a ser, então, credor de uma
indenização.
Já os vícios tornam os produtos ou serviços impróprios
ou inadequados para consumo, razão pela qual, além de eventual
indenização, o consumidor pode exigir, alternativamente, a sua
escolha, a substituição do produto por outro ou a reexecução do
serviço, a restituição da quantia paga ou abatimento proporcional
do preço, conforme se tem do art. 20 da seção III do Capítulo
IV do CDC.
Em outras palavras, a responsabilidade do fornecedor
por defeito do produto ou serviço depende da ocorrência de lesão
ao consumidor, que pode pleitear uma indenização pelas perdas e
danos sofridos; enquanto a responsabilidade por vício do serviço
independe da ocorrência efetiva de lesão e outorga ao consumidor
outros direitos, além de eventual indenização.
Pois bem. Como o art. 22 do CDC situa-se na Seção
relativa à responsabilidade por vício de produtos e serviços e prevê
apenas que o prestador de serviço público deve ser compelido a
cumprir as obrigações de fornecer serviços adequados, eficientes,
seguros e, quanto aos essenciais, contínuos, e a reparar os danos
causados, entende-se que a Administração Pública e terceiros que
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prestam serviços públicos não estão obrigados a restituir a quantia paga ou a promover abatimento proporcional do preço.
Eis o que a esse respeito diz Zelmo Denari12, um dos
autores do anteprojeto do Código de Consumidor:
“Nos termos do Art. 22 e seu parágrafo único, quando os órgãos
públicossedescuramdaobrigaçãodeprestarserviçosadequados,eficientes,segurosecontínuos,sãocompelidosacumpri-loserepararos
danoscausados,naformaprevistanoCódigo.
Em primeira aproximação, vale observar que os órgãos públicos recebem tratamento privilegiado, pois não se sujeitam
às mesmas sanções previstas no art. 20 para os fornecedores
de serviços.Defato,oparágrafoúnicosomentefazreferênciaao
cumprimentododeverdeprestarserviçosdeboaqualidade,oque
afasta as alternativas da restituição da quantia paga e do
abatimento do preço, envolvendo somente a reexecução dos
serviços públicos.”(Destacamos)
No mesmo sentido, João Batista de Almeida esposa o
seguinte entendimento:
“Parece que, em relação aos serviços públicos, o CDC alterou
o regime de responsabilização, limitando as alternativas, em
caso de descumprimento, à reparação de danos (defeitos) e à
possibilidade de compelir as pessoas jurídicas fornecedoras
a cumprir as obrigações assumidas por lei ou por contrato,
não se lhes aplicando o art. 20, que prevê as alternativas de
ressarcimento, como reexecução dos serviços, restituição de
quantia paga e abatimento proporcional do preço(CDC,art.
18,c/coart.22,caputeparágrafoúnico).”
Assim, de acordo com o entendimento predominante
entre os consumeristas, as concessionárias de serviços públicos
não estão sujeitas às exigências de restituição de quantia pagas e
ao abatimento proporcional do preço.
Em nossa opinião, além de afastar a adoção de medidas individuais que alterem o valor da tarifa (abatimento proporcional do preço) e comprometam a manutenção do equilí12
CódigoBrasileirodeDefesadoConsumidor,9. ed., Forense Universitária. p. 228.
134
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brio econômico-financeiro do contrato (devolução de valores), o
parágrafo único do artigo 22 do CDC claramente restringe a
responsabilidade dos prestadores de serviço público aos casos de
descumprimento das obrigações previstas. Confira-se:
“Parágrafoúnico.Noscasosdedescumprimento,totalouparcial,
dasobrigaçõesreferidasnesteartigo,serãoaspessoasjurídicascompelidasacumpri-lasearepararosdanoscausados,naformaprevista
nestecódigo.” (Destacamos)
A dicção do parágrafo único do art. 22, supratranscrito,
aplicável especificamente à prestação de serviços públicos, é bastante diversa da que consta do art. 14, abaixo reproduzido.
“Art. 14 - O fornecedor de serviços responde, independentementedaexistênciadeculpa, pelareparaçãodosdanoscausadosaosconsumidorespordefeitosrelativosàprestaçãodosserviços,bemcomoporinformaçõesinsuficientesouinadequadas
sobresuafruiçãoeriscos.”
Ora, a referência expressa ao descumprimento de obrigações é compatível com o entendimento predominante nos Tribunais Superiores acerca do art. 37, § 6º, da CF, no sentido de
que só há responsabilidade por atos omissivos dos prestadores de
serviço público quando tinham o dever de fazer algo e não o
fizeram, ou, em outras palavras, descumpriram uma obrigação
legal ou contratual, conforme defende Celso Antônio Bandeira
de Mello13:
“Há responsabilidade objetiva quando basta para caracterizá-la a
simplesrelaçãocausalentreumacontecimentoeoefeitoqueproduz.
Há responsabilidade subjetiva quando para caracterizá-la é
necessário que a conduta geradora de dano revele deliberação
na prática do comportamento proibido ou desatendimento
indesejado dos padrões de empenho, atenção ou habilidades
normais (culpa) legalmente exigíveis, de tal sorte que o direito
em uma ou outra hipótese resulta transgredido. Por isso é
sempre responsabilidade por comportamento ilícito quando
13
CursodeDireitoAdministrativo, 25. ed., Malheiros, 2008. p. 989.
135
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o Estado, devendo atuar, e de acordo com certos padrões, não
atua ou atua insuficiente para deter o evento lesivo.”
De se ver, portanto, que resultam do próprio Código
do Consumidor diferenças relacionadas ao regime de responsabilização dos prestadores de serviços público e, ainda, a inaplicabilidade de medidas individuais que alterem o valor da tarifa, como
o abatimento proporcional do preço, e comprometam a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, como a
restituição de quantias pagas, previstas no art. 20 do CDC.
Já os administrativistas que tratam do tema alinham-se
a uma de duas correntes: (i) a que afasta integralmente a aplicação
do Código do Consumidor às concessões de serviços públicos,
e, (ii) outra, no sentido de que o CDC deve ser aplicado às concessões de serviço público, salvo no que for incompatível com o
regime a elas pertinente.
O principal fundamento jurídico-positivo da tese que
rejeita integralmente a aplicação do CDC à prestação de serviços
públicos é o tratamento diferenciado que a Constituição Federal
outorga ao usuário de serviço público e ao consumidor.
Com efeito, o artigo175, parágrafo único, inciso II, da
Constituição Federal, faz expressa referência à edição de leique
reguleosdireitosdosusuáriosdeserviçospúblicos, a qual também
é mencionada no artigo 27 da Emenda Constitucional nº 19/98,
cujo teor transcreve-se:
“oCongressoNacional,dentrodecentoevintediasdapromulgaçãodestaEmenda,elaborarálei de defesa do usuário de serviços
públicos.” (D/n).
Esposando a tese de que o CDC não deve ser aplicado à
prestação de serviços públicos concedidos, Antônio Carlos Cintra
do Amaral sublinha que a relação jurídica entre concessionária e
usuário não pode ser equiparada à que vincula fornecedor e consumidor, porquanto:
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“Diversamentedasituaçãodeconsumo,arelaçãocontratualentre
concessionária e usuário, mediante a qual uma parte se obriga a
prestar um serviço, recebendo em pagamento um preço público
(tarifa),temcomopressupostoumaoutra,entreconcessionáriaeo
poderconcedente.Emsituaçõessemelhantesaessa,adoutrinacivilista italiana aponta a existência de dois contratos coligados, um
principal,ooutroacessório.”14
Wald:
No mesmo sentido, confira-se o que diz Arnoldo
“a situaçãodoconsumidortípicodiferedarelaçãocontratualexistenteentreconcessionáriaeusuários,emqueumaparteseobrigaa
prestar um serviçorecebendo em contrapartida a tarifa, e que por
suaveztemcomopressupostooutrarelaçãoqueseestabeleceentrea
concessionáriaeoPoderConcedente”15.
Com base nesse entendimento, Antônio Carlos Cintra
do Amaral sustenta que a defesa do usuário de serviço público
não deve ser feita pelos órgãos de defesa do consumidor, mas
pelas respectivas agências reguladoras, a quem compete, inclusive, o controle de verificar se os direitos dos usuários estão sendo
observados, como se tem abaixo:
“...adefesadousuáriodeserviçopúbliconãoéatribuiçãodos
órgãosdedefesadoconsumidor,esimdarespectivaagênciareguladora, cujo desafio é organizar-se adequadamente para isso.
Comoaleiprevistanoart.27daemendaConstitucionalnº19
atéhojenãofoiaprovadapeloCongressoNacional,ousuáriode
serviçopúblicotemtidosuadefesabaseadaemumalei(8.078)
queclaramentenãoseaplicaàrelaçãodeserviçopúblico,esim
àdeconsumo,conceitualmentediversadaquela.
Nadaimpede,porém,queaagênciareguladoramantenhaconvêniocomessesórgãosdedefesadoconsumidor,paraquetambém
participemdadefesadousuáriodeserviçopúblico.Éessencial,
14
Distinção entre Usuário de Serviço público e consumidor, REDAE – Revista Eletrônica de
Direito Administrativo Econômico, número 6, maio/junho/julho de 2006. Salvador. p. 2.
15
ODireitodeParceriaeaLeideConcessões, 2. ed., Saraiva, 2004. p. 159.
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porémqueexistaumCódigodedefesadoUsuáriodeServiço
Público,quesirvadebasejurídicaparaessaatuação.”16
De fato, as leis das agências que regulam as concessões
de rodovias prevêem tal atribuição, conforme textos normativos
abaixo transcritos.
Lei nº 10.233/2001 da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT
“Art. 11 - O gerenciamento da infra-estrutura e a operação dos
transportesaquaviárioeterrestreserãoregidospelosseguintesprincípios gerais:
(...)
III-protegerosinteressesdosusuáriosquantoàqualidadeeofertade
serviçosdetransporteedosconsumidoresfinaisquantoàincidência
dosfretesnospreçosdosprodutostransportados.”
Lei Complementar nº 914/2002 da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do
Estado de São Paulo – ARTESP
“Artigo4º-AARTESP,noâmbitodosserviçoscompreendidosem
suasfinalidades,teráasseguintesatribuições:
(...)
XVII-atuarnadefesaeproteçãodosdireitosdosusuários e dos
demais agentes afetados pelos serviços públicos de transporte
sob seu controle, recebendo petições, representações, reclamações,epromovendoasdevidasapurações.”
Lei nº 4.555/2005 da Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários e Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de
Janeiro – AGETRANSP
16
Ob. cit. p. 5.
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“Artigo3º-Noexercíciodesuasatividades,pugnaráaAGETRANSPpelagarantiadosseguintesprincípiosfundamentais:
(...)
IV-proteçãodosusuárioscontrapráticasabusivas e monopolistas;”
Lei nº 10.931/97 da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul
– AGERGS
“Art.2º-ConstituemobjetivosdaAGERGS:
I - assegurar a prestação de serviços adequados, assim entendidos
aquelesquesatisfazemascondiçõesderegularidade,continuidade,
eficiência,segurança,atualidade,generalidade,cortesianasuaprestaçãoemodicidadenassuastarifas.”
Além disso, em consonância com o art. 175 da Constituição Federal, os artigos 3º e 29 da Lei de Concessão de Serviço Público, abaixo transcritos, atribuem ao poder concedente a
tarefa indeclinável de regular, fiscalizar e aplicar sanções relativas
aos serviços públicos concedidos:
“Art.3º-Asconcessõesepermissõessujeitar-se-ãoàfiscalização
pelopoderconcedenteresponsávelpeladelegação,comacooperaçãodosusuários.”
“Art.29-Incumbeaopoderconcedente:
I-regulamentaroserviçoconcedidoefiscalizarpermanentementeasuaprestação;
VII-zelarpelaboaqualidadedoserviço,receber,apurare
solucionarqueixasereclamaçõesdosusuários,queserãocientificados,ematé30dias,dasprovidênciastomadas.”
De forma que, conforme mencionado pelo Prof.
Antônio Carlos Cintra do Amaral, o desafio é mais fático do
que jurídico, pois a ausência de um sistema de proteção próprio
para defesa dos usuários do serviço público e de atuação efetiva
das agências reguladoras ou de outras entidades relacionadas ao
poder concedente, em tal sentido, fez com que as demandas em
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massa dos usuários de serviços públicos fossem absorvidas por
promotorias de justiça das áreas de consumo e órgãos de defesa
do Consumidor.
Conforme mencionado acima, a tese sustentada por
esses autores, baseada no tratamento diferenciado que a Constituição confere aos direitos dos usuários de serviços públicos, não
foi, ainda, enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal.
Deveras, a esmagadora maioria dos administrativistas
brasileiros17 entende que o Código do Consumidor aplica-se às
concessões de serviços públicos, salvo nos casos em que sua disciplina seja incompatível com as normas de direito público inerentes à prestação de serviços públicos e ao regime de concessão.
O principal fundamento jurídico-positivo desta corrente é a referência expressa à prestação de serviços públicos em
dispositivos do CDC, bem como a previsão do artigo 7º da Lei
nº 8.987/95, no seguinte sentido:
“Art.7º-SemprejuízododispostonaLeino8.078,de11de
setembrode1990,sãodireitoseobrigaçõesdosusuários:
I-receberserviçoadequado;
II-receberdopoderconcedenteedaconcessionáriainformaçõesparaadefesadeinteressesindividuaisoucoletivos;
III-obtereutilizaroserviço,comliberdadedeescolhaentre
váriosprestadoresdeserviços,quandoforocaso,observadasas
normasdopoderconcedente.
IV-levaraoconhecimentodopoderpúblicoedaconcessionáriaasirregularidadesdequetenhamconhecimento,referentes
aoserviçoprestado;
V-comunicaràsautoridadescompetentesosatosilícitospraticadospelaconcessionárianaprestaçãodoserviço;
VI - contribuir para a permanência das boas condições dos
benspúblicosatravésdosquaislhessãoprestadososserviços.”
17
Dentre eles, Alexandre Santos de Aragão, Celso Antonio Bandeira de Mello, Dinorá Adelaide Grotti, Juarez Freitas, Marçal Justen Filho, Marcos Juruena Villela Souto, Maria Sylvia
Zanella de Pietro, Leon Frejda Szklarowmski, Toshio Mukai, Cesar A. Guimarães Prereira.
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Destarte, para os partidários dessa corrente, as peculiaridades do regime de concessão de serviços públicos devem resultar
em derrogações parciais de dispositivos do Código do Consumidor, mas não chegam a afastar integralmente sua incidência.
Nesse sentido, confira-se o que diz Celso Antônio Bandeira de Mello18:
“ÉimportanteassinalareencarecerqueaosusuáriosdeserviçospúblicostambémseaplicamproteçõesresidentesnoCódigo
de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, 11.9.1990). Quanto
aistonãohádúvidapossível,umavezqueinúmerosdeseus
dispositivosreportam-seexpressamenteaserviçospúblicos.
(...) Entretanto, dadas as óbvias diferenças entre usuário (relação de
direito público) e consumidor (relação de direito privado) com as
inerentesconseqüências,certamentesuasdisposiçõesterãodesecompatibilizarcomasnormasdedireitopúblico.Então,alegislaçãodo
consumidornãoseaplicaráquandoinadaptadaàíndoledoserviço
público, ou quando afronte prerrogativas indeclináveis do Poder
Público ou suas eventuais repercussões sobre o prestador de serviço
(concessionáriooupermissionário)”. (Destacamos)
Vale citar, ainda, o entendimento de Marçal Justen
Filho , que destaca a dificuldade prática relacionada à identificação a priori de quais dispositivos do CDC seriam incompatíveis
com o regime jurídico próprio das concessões de serviço público:
19
“A disciplina do Direito do consumidor apenas se aplicará na
omissãodoDireitoAdministrativoenamedidaemquenãohaja
incompatibilidadecomosprincípiosfundamentaisnorteadoresdo
serviçopúblico.Emtermospráticos,essasoluçãopodegeraralgumasdificuldades.Oqueécertoéaimpossibilidadedeaplicação
puraesimples,demodoautomático,doCódigodeDefesadoConsumidornoâmbitodosserviçospúblicos.”
Sem deixar de reconhecer tal dificuldade, parece-nos
ser possível afirmar que seriam incompatíveis com o regime das
18
19
CursodeDireitoAdministrativo, 25. ed., Malheiros, 2008.
TeoriaGeraldasConcessõesdeServiçoPúblico, Dialética, 2003. p. 557.
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concessões de serviços públicos os dispositivos do CDC que
afrontem (i) regras específicas de direito administrativo sobre os
serviços públicos e o regime de concessão; (ii) prerrogativas atribuídas ao poder concedente; (iii) a vinculação da relação jurídica
de prestação de serviços públicos com o conteúdo do correspondente contrato de concessão, (iv) a disciplina da atividade por
princípios de direito público; (v) a dimensão pública dos interesses relacionados à prestação dos serviços públicos.
Com o intuito de dar mais concretude a esta discussão, passa-se a examinar as regras do CDC que seriam aplicáveis às concessões de serviços públicos, procedendo-se ao exame
de sua compatibilidade ou não com as peculiaridades de seu
regime jurídico.
1) Direito de informação sobre os serviços ofertados
Por força do inciso III do art. 6º do CDC, incluem-se
entre osdireitosbásicosdoconsumidor:
“III-ainformaçãoadequadaeclara sobreosdiferentesprodutos
eserviços,comespecificaçãocorretadequantidade,características,
composição,qualidadeepreço,bemcomosobreosriscosqueapresentem.”
O direito de informação serviu de base para questionamentos relativos à discriminação de pulsos nas contas de telefone e também integra a motivação do Decreto nº 6.523, de 31
de Julho de 2008, que trata do Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) por telefone, “comvistasàobservânciadosdireitos
básicosdoconsumidordeobterinformaçãoadequadaeclarasobre
osserviçosquecontratare,demanter-seprotegidocontrapráticas
abusivasouilegaisimpostasnofornecimentodessesserviços”.
O artigo 1º do referido Decreto expressamente elenca
como destinatários de seus comandos os fornecedores de serviços
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regulados e prevê uma série de obrigações que afetam o modo de
prestação de serviços públicos.
Nas demandas relacionadas à discriminação de pulsos
nas contas de telefone, a existência de regulação específica expedida pela ANATEL foi decisiva para o indeferimento de pedidos
de maior detalhamento das cobranças, por se entender que tais
regras prevaleciam sobre o direito geral de informação previsto
no CDC, cujos contornos não são definidos com precisão20.
Além disso, as repercussões da instituição de novas
obrigações sobre a equação econômico-financeira do contrato de
concessão também foram consideradas para o indeferimento de
tais demandas.
No que se refere ao Decreto nº 6.523/08, entendemos
que as inovações jurídicas por meio dele introduzidas só poderiam ter sido veiculadas por meio de lei, em virtude do previsto
nos artigos 5º, II, e 37, caput, da Constituição Federal, o que
conduz ao reconhecimento de sua invalidade.
Contudo, em nossa opinião, não se pode dizer que o
direito de informação seja, em si, incompatível com o regime de
concessão de serviço público, de modo que sua eventual derrogação dependerá da demonstração de que as obrigações dele decorrentes são incompatíveis com as obrigações estabelecidas nos respectivos contratos de concessão.
20
Nesse sentido, confira-se decisão da Segunda Turma do STJ, proferida no julgamento do
REsp nº 1072280, em 16/09/2008, a seguir transcrita: “ADMINISTRATIVO. TELEFONIA.
DETALHAMENTO DOS PULSOS ALÉM DA FRANQUIA. DECRETO Nº 4.733/03. 1. A
concessionária de serviços de telecomunicações não estava obrigada ao detalhamento dos
pulsos em período para o qual não existia específica previsão legal neste sentido.Inteligência
doDecretonº4.733/03.PrecedentesdeambasasTurmasquecompõemaPrimeiraSeção.2.Amens
legis,aodeterminaradatainicial,teveemmiraproporcionaràsconcessionáriasumperíodoparase
adaptaremàsnovasregras.3. Não obstante seja direito básico do consumidor a informação
clara e adequada acerca dos serviços prestados, não restava outra opção às empresas de
telefonia senão conformar-se às determinações emanadas pela Anatel e às cláusulas de seu
contrato de concessão, deixandoderealizaro“bilhetamento”daschamadaseinserindonascontas
dosusuáriososvaloresreferentesaospulsosqueexcederemafranquia.PrecedentesdeambasasTurmas
quecompõemaPrimeiraSeção.4.Recursoespecialprovido.”(D/n)
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2) Direito à modificação ou declaração de nulidade de
cláusulas abusivas
Por força do inciso V do art. 6º do CDC, também
constitui direito básico do consumidor:
“V-amodificaçãodecláusulascontratuaisqueestabeleçamprestaçõesdesproporcionaisousuarevisãoemrazãodefatossupervenientes
queastornemexcessivamenteonerosas.”
Com efeito, o equilíbrio dos direitos e obrigações contratuais entre consumidores e fornecedores é uma das principais
notas características do Código do Consumidor, cuja concretização autoriza a atuação dos órgãos administrativos de defesa do
consumidor e a intervenção do Poder Judiciário.
Nesse sentido, o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor prevê a nulidade das cláusulas abusivas estabelecidas em
contratos firmados entre fornecedores de serviço ou produto e
consumidor. Em textual:
“Art.51-Sãonulasdeplenodireito,entreoutras,ascláusulascontratuaisrelativasaofornecimentodeprodutoseserviçosque:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou
seja,incompatíveiscomaboa-féouaeqüidade;
(...)
§1ºPresume-seexagerada,entreoutroscasos,avontadeque:
I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a
quepertence;
II-restringedireitosouobrigaçõesfundamentaisinerentesà
natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou
equilíbriocontratual;
III-semostraexcessivamenteonerosaparaoconsumidor,considerando-seanaturezaeconteúdodocontrato,ointeressedas
parteseoutrascircunstânciaspeculiaresaocaso.
(...)
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§ 4° É facultado a qualquer consumidor ou entidade que
o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze
acompetenteaçãoparaserdeclaradaanulidadedecláusula
contratualquecontrarieodispostonestecódigooudequalquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e
obrigaçõesdaspartes.”
Dentre outras hipóteses sem maior repercussão no que
se refere às relações entre concessionárias e usuários de serviço
público, referido dispositivo legal prevê a possibilidade de que o
Ministério Público requeira a declaração de nulidade de cláusula
considerada iníqua ou abusiva.
A elasticidade de tais conceitos propicia o ajuizamento
de ações com base em interpretações desatreladas de parâmetros
jurídico-objetivos, durante todo o prazo de vigência do contrato
de concessão.
A adesão das concessionárias a uma minuta de contrato
que constituiu anexo obrigatório de uma licitação, cujas cláusulas
não podem ser por elas alteradas, parece-nos evidenciar a incompatibilidade de aplicação de tal previsão à relação jurídica que
vincula concessionárias e usuários de serviços.
Contudo, há diversas ações ajuizadas com base no dispositivo do CDC em comento, do que a cobrança de assinatura
básica para a prestação de serviços de telefonia é exemplo.
Nesse caso, as repercussões relacionadas ao desequilíbrio da equação econômico-financeira do contrato acabaram
obstando a declaração de nulidade das cláusulas contratuais em
que a referida cobrança estava prevista, embora a fundamentação
não tenha integrado a redação da Súmula 356 do STJ, segundo
a qual “ élegítimaacobrançadetarifabásicapelousodosserviços
detelefoniafixa.”
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3) Direito à proteção jurídica e administrativa para
prevenção ou reparação de danos individuais, coletivos
ou difusos
Os incisos VI e VII do art. 6º do CDC também elencam
como direito fundamental do consumidor a efetiva prevenção e
reparação de danos patrimoniais ou morais, individuais, coletivos
ou difusos, por meio do acesso a órgãos judiciários e administrativos que assegurem a proteção do consumidor.
A defesa dos consumidores é feita por procuradorias de
justiça especializadas em direito do consumo e pelas entidades que
integram o denominado Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a que se refere o art. 105 do CDC, abaixo transcrito:
“Art.105-IntegramoSistemaNacionaldeDefesadoConsumidor–SNDC,osórgãosfederais,estaduais,doDistritoFederale
municipaiseasentidadesprivadasdedefesadoconsumidor.”
Os PROCONs federal e dos Estados atuam de modo
articulado com entidades municipais e associações privadas,
como o IDEC, por exemplo, o que propicia a capilarização do
sistema de atendimento aos consumidores.
Além de prestar informações e orientações gerais aos
consumidores, tais entidades registram suas reclamações e formulam queixas aos fornecedores dos mais diversos produtos e
serviços, solicitando informações e a adoção de medidas preventivas ou corretivas.
As entidades integrantes do SNDC dotadas de personalidade jurídica de direito público têm competência para aplicação de multas administrativas, em caso de não atendimento
às intimações expedidas para a obtenção de informações ou da
prática de infrações aos direitos previstos no CDC.
Em nossa opinião, a aplicação de sanções administrativas às concessionárias de serviço público por entidades que inte146
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gram o SNDC invade esfera de competência do poder concedente,
a quem incumbe regular, fiscalizar e, portanto, aplicar as sanções
administrativas pertinentes à execução dos serviços concedidos,
conforme previsto nos artigos 3º e 29 da Lei de Concessões de
Serviço Público21.
Além disso, a aplicação cumulativa das sanções administrativas previstas no CDC e na Lei nº 8.987/95 configura verdadeiro bisinidem,dada a possibilidade de incidência de mais
de uma sanção administrativa a um mesmo fato punível, o que
não ocorre em relação às atividades econômicas não reguladas.
O exemplo mais gritante dessa invasão de competências do poder concedente por parte das entidades que integram o
SNDC é a previsão da possibilidade de intervenção administrativa na concessão e, até mesmo, de sua cassação por violação de
obrigação contratual ou legal, que consta do art. 59 do CDC22.
Tais dispositivos legais, anteriores à Lei de Concessões e às leis das agências reguladoras, violam frontalmente o
art. 175 da Constituição Federal, do qual deriva a competência regulatória do poder concedente, a quem incumbe intervir
na concessão, nas hipóteses previstas na Lei nº 8.987/95, bem
como assumir as atribuições da concessionária, caso decrete a
caducidade da concessão.
Parece-nos evidente que as entidades que integram o
SNDC não pode invadir competências indeclináveis do poder
concedente, que lhe foram atribuídas pela Constituição e Lei
21 “Art. 3º - As concessões e permissões sujeitar-se-ão à fiscalização pelo poder concedente
responsável pela delegação, com a cooperação dos usuários.”
“Art.29-Incumbeaopoderconcedente:
I-regulamentaroserviçoconcedidoefiscalizarpermanentementeasuaprestação;”
22
“Art.59-Aspenasdecassaçãodealvarádelicença,deinterdiçãoedesuspensãotemporáriada
atividade,bemcomoadeintervençãoadministrativa,serãoaplicadasmedianteprocedimentoadministrativo,asseguradaampladefesa,quandoofornecedorreincidirnapráticadasinfraçõesdemaior
gravidadeprevistasnestecódigoenalegislaçãodeconsumo.
§ 1° A pena de cassação da concessão será aplicada à concessionária de serviço público,
quando violar obrigação legal ou contratual.
§ 2° A pena de intervenção administrativa será aplicada sempre que as circunstâncias de
fato desaconselharem a cassação de licença, a interdição ou suspensão da atividade.” (D/n)
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de Concessões, até porque a ele caberá arcar com as consequências administrativas e econômico-financeiras decorrentes seja da
intervenção seja da caducidade da concessão.
No que se refere à defesa do consumidor em juízo, pode
ser exercitada individualmente ou de modo coletivo, conforme
previsto no art. 81 do CDC23.
De acordo com que o estabelece o art. 82 do CDC, as
ações coletivas podem ser ajuizadas pela administração direta e
indireta, bem como por representantes do Ministério Público e
associações de defesa do consumidor legalmente constituídas há
pelo menos um ano.
O CDC inovou na atribuição de legitimidade ao Ministério Público para o ajuizamento de ações que visam à proteção de
interesses ou direitos individuais homogêneos, com base na doutrina que entende que a lesão a interesses individuais de consumidores possui repercussão coletiva presumida.
Arnoldo Wald24 entende ser incabível o ajuizamento
de ação civil pública contra concessionárias de serviço público
para resguardar direitos individuais homogêneos decorrentes do
Código de Defesa do Consumidor, em razão da diferença que a
Constituição estabelece entre usuário de serviço público e consumidor, como se observa da transcrição abaixo:
“Seaaçãocivilsereferiradireitosindividuaishomogêneos,
sendoinvocadooCódigodeDefesadoConsumidor,descabe,
devendo ser julgado o autor carecedor da ação, em face dos
preceitosconstitucionais,segundoosquaisousuáriodeservi23
“Art.81-Adefesadosinteressesedireitosdosconsumidoresedasvítimaspoderáserexerciaem
juízoindividualmente,ouatítulocoletivo.
Parágrafoúnico.Adefesacoletivaseráexercidaquandosetratarde:
I-interessesoudireitosdifusos,assimentendidos,paraefeitosdestecódigo,ostransindividuais,denaturezaindivisível,dequesejamtitularespessoasindeterminadaseligadasporcircunstânciasdefato;
II-interessesoudireitoscoletivos,assimentendidos,paraefeitosdestecódigo,ostransindividuais,de
naturezaindivisíveldequesejatitulargrupo,categoriaouclassedepessoasligadasentresioucoma
partecontráriaporumarelaçãojurídicabase;
III-interessesoudireitosindividuaishomogêneos,assimentendidososdecorrentesdeorigemcomum.”
24
Ob. cit. p. 166.
148
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çospúblicosconcedidosdevetertratamentoespecífico,nãose
enquadrandonaclassificaçãogenéricadeconsumidor.”
Com efeito, a legitimidade do Ministério Público para
promover a defesa coletiva de direitos dos usuários de serviços
públicos independe de previsão no CDC, porquanto o inciso
III do art. 129 da Constituição Federal prevê, dentre as funções
institucionais do Ministério Público, a promoção de inquérito
civil e ação civil pública para proteção de interessescoletivos.
Parece-nos, entretanto, incompatível com a dimensão
e finalidade coletiva, a legitimação do Ministério Público para
promover inquéritos civis e ações civis públicas que tenham por
objeto interessesindividuaishomogêneosde caráter disponível.
4) Direito à adequada e eficaz prestação dos serviços
O inciso X do art. 6º do CDC também arrola entre os
direitos fundamentais do consumidor “aadequadaeeficazprestaçãodosserviçospúblicosemgeral.”,em consonância com o previsto
no art. 7º, I da Lei nº 8.987/95, de modo que não vislumbramos
incompatibilidade entre os dois regimes em relação a tal direito.
O problema relacionado à aplicação desse direito aos
serviços públicos concedidos refere-se, em verdade, ao que deve
ser considerado serviçoadequado.
Tendo em vista que as características e modo de fornecimento dos serviços públicos são definidos unilateralmente pelo
poder concedente no contrato de concessão, deve-se entender que
a inadequação resultaria do descumprimento das obrigações contratuais.
Contudo, há diversas ações fundamentadas na inadequação do serviço prestado que resultam de formulações subjetivas desatreladas das condições contratuais, as quais, para nós,
constituem o parâmetro de avaliação da adequação ou não do
serviço prestado.
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5) Proteção contra riscos à segurança do consumidor
O art. 8º do CDC dispõe que:
“Art.8°-Osprodutoseserviçoscolocadosnomercadodeconsumo
nãoacarretarãoriscosàsaúdeousegurançadosconsumidores,exceto
osconsideradosnormaiseprevisíveisemdecorrênciadesuanatureza
efruição,obrigando-seosfornecedores,emqualquerhipótese,adar
asinformaçõesnecessáriaseadequadasaseurespeito.
Parágrafo único. Em se tratando de produto industrial, ao fabricantecabeprestarasinformaçõesaqueserefereesteartigo,atravésde
impressosapropriadosquedevamacompanharoproduto.”
Especialmente no que toca às concessões de rodovias, a aplicação deste dispositivo para a resolução de demandas entre usuários e concessionárias de rodovias parece-nos
estar cercada por uma confusão entre o risco de segurança
relativo ao serviço prestado na rodovia e o risco relacionado
ao uso da rodovia, que é assumido pelo próprio usuário
no momento em que decide por ela trafegar, sujeito, inclusive,
a acidentes causados por motoristas imprudentes, negligentes
e imperitos.
Ressalte-se que, ainda, que os serviços prestados pelas
concessionárias não têm por objeto a fiscalização e segurança das
pessoas que nela trafegam, os quais estão inseridos na esfera do
denominado poder de polícia do Estado, sendo, portanto, indelegáveis ao particular.
A fiscalização do tráfego na rodovia e do estado do veículo e da situação do motorista, que são fundamentais para a
preservação da segurança das pessoas, insere-se na competência
das Polícias Rodoviárias, Federal ou Estaduais, e dos órgãos executivos rodoviários (DNIT, DERs, etc.), conforme resulta do art.
144 da Constituição Federal25.
25
“Art.144-Asegurançapública, dever do Estado,direitoeresponsabilidadedetodos,é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,
atravésdosseguintesórgãos:
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Com efeito, somente os órgãos ou entidades que integram o Sistema Nacional de Trânsito detêm os poderes e instrumentos necessários ao patrulhamento ostensivo nas estradas
e, portanto, legitimidade de impor sanções quando o usuário
trafegar em velocidade superior à permitida, utilizar veículos em
estado precário ou de modo perigoso.
No caso das rodovias federais, tais deveres estão expressamente previstos no Decreto Federal nº 1.655, de 03 de outubro
de 1995, que dispõe o seguinte:
“Art. 1º - À Polícia Rodoviária Federal, órgão permanente, integrantedaestruturaregimentaldoMinistériodaJustiça,noâmbito
dasrodoviasfederais,compete:
I-realizaro patrulhamento ostensivo, executando operações
relacionadas com a segurança pública,comoobjetivodepreservaraordem,a incolumidade das pessoas,opatrimôniodaUnião
eodeterceiros;
(...)
III–aplicarearrecadarasmultasimpostasporinfraçõesdetrânsito
eosvaloresdecorrentesdaprestaçãodeserviçodeestadiaeremoção
deveículos,objetos,animaiseescoltadeveículosdecargasexcepcionais.”(D/n)
No que se refere aos animais que invadem a pista de
rodagem, é importante observar, ainda, que a responsabilidade por sua guarda e vigilância é do dono do animal, da qual
decorra a consequência prevista no art. 936 do Código Civil,
abaixo transcrito:
I-políciafederal;
II - polícia rodoviária federal;
III-políciaferroviáriafederal;
IV-políciascivis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
(...)
§2ª-Apolíciarodoviáriafederal,órgãopermanente,organizadomantidopelaUniãoeestruturado
emcarreira,destina-se,naformadalei,aopatrulhamentoostensivodasrodoviasfederais.
(...)
§ 5º - Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, aos
corposdebombeirosmilitares,alémdasatribuiçõesdefinidasemlei,incumbeaexecuçãodeatividades
dedefesacivil.”(D/n)
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“Art. 936 - O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o
dano por este causado , se não provar culpa da vítima ou
forçamaior.”
6) Inversão do ônus da prova
A inversão do ônus da prova é prevista no art. 6º, VIII,
do CDC, in verbis:
“VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a
inversãodoônusdaprova,aseufavor,noprocessocivil,quando,a
critériodojuiz,forverossímilaalegaçãoouquandoforelehipossuficiente,segundoasregrasordináriasdeexperiências;”
Bem de se ver, portanto, que a inversão do ônus da
prova não se dá de forma automática, sendo necessário para
tanto a existência da verossimilhança das alegações daquele que
sofreu o dano e a sua hipossuficiência, que, de acordo com José
Geraldo Brito Filomeno26, deve ser entendida como a “conotação
de pobreza econômica ou falta de meios, sobretudo em termos de
acessoaconhecimentostécnicosoupericiaisemdadoconflitonascido
derelaçõesdeconsumo.”
A respeito da compatibilidade ou não da inversão do
ônus com o regime de concessão de serviço púbico vale observar que os partidários da tese da responsabilidade subjetiva do
Estado e prestadores de serviço público por atos omissivos defendem a possibilidade de inversão do ônus da prova nos casos em
que a prova da culpa do serviço seja de difícil acesso aos usuários, como defende Celso Antônio Bandeira de Mello27:
“...eminúmeroscasosderesponsabilidadeporfauteduservicenecessariamente haverá de será admitida uma ‘presunção de culpa’,
penadeinoperânciadestamodalidadederesponsabilização,antea
extremadificuldade(àsvezesinstransponível)dedemonstra-seque
26
Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 9. ed., Forense
Universitária, 2007.
27
Ob. cit. p. 988.
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oserviçooperouabaixodospadrõesdevidos,istoé,comnegligência,
imperíciaouimprudência,valedizer,culposamente.”
7) Solidariedade pela reparação de danos
O parágrafo único do art. 7º e o art. 25 do Código
do Consumidor28 prevêem que os fornecedores de serviços ou
produtos responderão de forma solidária pelos danos causados
a terceiros o que, consequentemente, confere ao consumidor o
direito de intentar medidas contra todos que estiverem na cadeia
de responsabilidade que propiciou a colocação do produto ou do
serviço no mercado.
Entende-se que todos os que tenham intervindo, de
alguma forma, direta ou indiretamente, na relação de consumo,
contribuindo em qualquer fase, seja na produção, oferta, distribuição, ou venda, são solidariamente responsáveis.
Em relação ao Poder Concedente é possível afirmar que
a regra da solidariedade prevista no Código do Consumidor é
incompatível com a delegação ínsita ao conceito de concessão de
serviço público, prevista no art. 2º, II, da Lei nº 8.987/95, e com
a previsão do art. 25 da mesma Lei, cujo teor reproduz-se:
“Art.2º.(...)
II - concessão de serviço público: a delegação da prestação, feita
pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência,àpessoajurídicaouconsórciodeempresasquedemonstre
capacidadeparaseudesempenho,porsuacontaeriscoeporprazo
determinado.”
“Art.25-Incumbeàconcessionáriaaexecuçãodoserviçoconcedido,
cabendo-lheresponderportodososprejuízoscausadosaopodercon28
“Parágrafoúnico.Tendomaisdeumautoraofensa,todosresponderãosolidariamentepelareparaçãodosdanosprevistosnasnormasdeconsumo.”
“Art.25-Évedadaaestipulaçãocontratualdecláusulaqueimpossibilite,exonereouatenueaobrigaçãodeindenizarprevistanestaenasSeçõesanteriores.
§1°Havendomaisdeumresponsávelpelacausaçãododano,todosresponderãosolidariamentepela
reparaçãoprevistanestaenasSeçõesanteriores.
§2°Sendoodanocausadoporcomponenteoupeçaincorporadaaoprodutoouserviço,sãoresponsáveis
solidáriosseufabricante,construtorouimportadoreoquerealizouaincorporação.”
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cedente, aos usuários ou a terceiros, sem que fiscalização exercida
peloórgãocompetenteexcluaouatenueessaresponsabilidade.”
Com base em tais dispositivos, doutrina e jurisprudência são uníssonas no sentido de que a responsabilidade do Poder
Concedente em relação aos danos causados na execução dos
serviços públicos é subsidiária, porquanto, a despeito de caber à
concessionária a execução do serviço concedido, a titularidade do
serviço permanece com o Poder Concedente, conforme estabelece o art. 175 da Constituição Federal.
Contudo, no que se refere aos danos causados aos
usuários por prestadores de serviços e fornecedores contratados
pela concessionária, não há como se afastar a regra da solidariedade prevista entre a concessionária e os prestadores de serviços e
fornecedores por ela contratados, o que também decorre do § 1º
do art. 25 da Lei nº 8.987/9529.
8) Prescrição quinquenal
De acordo com o art. 27 do CDC, “prescreve em cinco
anosapretensãoàreparaçãopelosdanoscausadosporfatodoproduto
oudoserviçoprevistanaSeçãoIIdesteCapítulo,iniciando-seacontagemdoprazoapartirdoconhecimentododanoedesuaautoria”.
Trata-se de prazo prescricional mais longo que o previsto
no art. 206, § 3º, V, do Código Civil, fixado em três anos, que
reputamos deva ser aplicado às concessões de serviços públicos.
Isso porque o tratamento diferenciado ao sistema de
reparação de danos advindos da prestação inadequada de serviços públicos é reconhecido no próprio Código do Consumidor,
em consonância com a distinção estabelecida no art. 37, § 6º, da
Constituição Federal.
29
“Art.25,§1º-Semprejuízodaresponsabilidadeaqueserefereesteartigo,aconcessionáriapoderácontratarcomterceirosodesenvolvimentodeatividadesinerentes,acessóriasoucomplementares
aoserviçoconcedido,bemcomoaimplementaçãodeprojetosassociados.”
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9) Repetição do indébito por valor igual ao dobro do
pagamento em excesso
Tal direito está previsto no parágrafo único do art. 42
do CDC, abaixo transcrito:
“Art.42-Nacobrançadedébitos,oconsumidorinadimplente
nãoseráexpostoaridículo,nemserásubmetidoa qualquer
tipodeconstrangimentoouameaça.
Parágrafoúnico.Oconsumidorcobradoemquantiaindevida
temdireitoàrepetiçãodoindébito,porvalorigualaodobrodo
quepagouemexcesso,acrescidodecorreçãomonetáriaejuros
legais,salvohipótesedeenganojustificável.”
Como mencionado acima, predomina o entendimento
de que a devolução do valor pago ou o abatimento do preço não
se aplica à prestação de serviço público, razão pela qual a repetição
do indébito em dobro pode ser afastada nos casos em que se considere que o pagamento em excesso se relaciona à existência de vício
no serviço a que se refere o art. 22 do CDC.
De fato, a devolução de valores em dobro prevista no
dispositivo legal parece-nos incompatível com o regime jurídico
das concessões, até porque, na ampla maioria dos casos, não são
as concessionárias que fixam o preço a ser pago pelo usuário.
10) Responsabilidade objetiva por defeitos relativos ao
fato de serviço
Já mencionamos também que o Código do Consumidor alberga a teoria do risco criado, por força da qual o fornecedor de serviço deve responder, independentemente de culpa,
pelos riscos inerentes à colocação do serviço no mercado, con-
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substanciando-se o que se denomina de responsabilidade pelo
fatodoserviço, prevista no art. 14 do CDC30.
Ocorre que a responsabilidade sem culpa para atos omissivos é incompatível com a interpretação predominante nos Tribunais Superiores a respeito do art. 37, §6º, da Constituição Federal,
que trata especificamente dos prestadores de serviços públicos.
Por esse motivo, sustentamos que a discussão relativa à
responsabilidade dos prestadores de serviço público só pode ser
feita à luz da Constituição Federal.
11) Responsabilidade por vício do serviço e restituição da
quantia paga ou abatimento proporcional do preço
De acordo com o previsto no art. 20 do CDC o fornecedor responde por vícios do serviço, ainda que não causem lesão
aos usuários, configurando-se o que se denomina de responsabilidade pelo vício do serviço31.
A diferença entre a responsabilidade prevista no art.
14 do CDC e a contemplada no dispositivo supra mencionado é
que esta decorre do fato de que o serviço fornecido é inadequado
30
“Art.14-Ofornecedordeserviçosresponde,independentementedaexistênciadeculpa,pela
reparaçãodosdanoscausadosaosconsumidorespordefeitosrelativosàprestaçãodosserviços,bemcomo
porinformaçõesinsuficientesouinadequadassobresuafruiçãoeriscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar,
levando-seemconsideraçãoascircunstânciasrelevantes,entreasquais:
I-omododeseufornecimento;
II-oresultadoeosriscosquerazoavelmentedeleseesperam;
III-aépocaemquefoifornecido.
(...)
§3°Ofornecedordeserviçossónãoseráresponsabilizadoquandoprovar:
I-que,tendoprestadooserviço,odefeitoinexiste;
II-aculpaexclusivadoconsumidoroudeterceiro.”
31
“Art.20-Ofornecedordeserviçosrespondepelosvíciosdequalidadequeostornemimpróprios
aoconsumooulhesdiminuamovalor,assimcomoporaquelesdecorrentesdadisparidadecomasindicaçõesconstantesdaofertaoumensagempublicitária,podendooconsumidorexigir,alternativamente
eàsuaescolha:
I-areexecuçãodosserviços,semcustoadicionalequandocabível;
II-arestituiçãoimediatadaquantiapaga,monetariamenteatualizada,semprejuízodeeventuais
perdasedanos;
III-oabatimentoproporcionaldopreço.”
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para o consumo, independentemente de ter ou não acarretado
alguma lesão ao consumidor, cabendo ao fornecedor reexecutar o
serviço ou restituir a quantia paga ou o abatimento proporcional
do preço.
Sendo assim, a responsabilidade do fornecedor por vício
do serviço diferencia-se da responsabilidade pelo defeito do serviço tanto no que se refere aos seus pressupostos, porquanto a responsabilidade por vício independe de lesão e a outra a pressupõe;
quanto no que se refere às suas consequências, pois a responsabilidade por defeito gera o dever de indenizar e, a outra, o dever de
reexecução ou de restituição da quantia paga ou de abatimento
proporcional do preço, além de eventuais perdas e danos.
Contudo, mesmo entre os consumeristas, prevalece o
entendimento de que a possibilidade de abatimento do preço e
restituição da quantia paga não se aplica à prestação de serviços
públicos, que são especialmente tratados no art. 22 do CDC,
conforme mencionado acima.
Como este dispositivo legal situa-se na seção relativa à
responsabilidade do fornecedor por vício decorrente do fato do
produto ou do serviço e só faz referência à reparação, entende-se
que não se pode exigir abatimento do preço e restituição da quantia paga dos fornecedores de serviços públicos.
Sendo assim, desaparece, na prática, a distinção entre
responsabilidade por defeito e por vício do serviço, porquanto a
obrigação do prestador restringe-se à reparação que só tem lugar
quando há lesão.
Tal entendimento, qual seja, o de que o usuário de serviço público não pode exigir a restituição da quantia paga ou
o abatimento do preço, é compatível, ainda, como o regime de
concessão, pois afasta a possibilidade de adoção de medidas individuais que alterem o valor da tarifa (abatimento proporcional do
preço) e comprometam a manutenção do equilíbrio econômicofinanceiro do contrato (devolução de valores).
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Pois bem. Estas são apenas algumas considerações
sobre o tema, que carece de maior aprofundamento e reflexão,
sobretudo no que se refere a seus contornos constitucionais. De
todo modo, parece-nos ser importante que a aplicação do Código
do Consumidor à prestação de serviços públicos concedidos – a
qual, em nossa opinião, resulta mais de circunstâncias fáticas do
que jurídicas – não se efetive sem consideração das peculiaridades do regime jurídico que lhe é pertinente, sem a clara percepção de que os princípios e regras da legislação consumerista
foram concebidos para atividades com características distintas, e
de que a intrincada relação entre usuário, prestador do serviço e
poder concedente tem caráter jurídico-administrativo.
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Decisões Judiciais
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Autos nº. 98.0017501-6
CAMINHOS DO PARANÁ S/A; CONCESSIONÁRIA
ECOVIA CAMINHO DO MAR S/A; EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE RODOVIAS DO NORTE S/A – ECONORTE;
RODONORTE – CONCESSIONÁRIA DE RODOVIAS INTEGRADAS S/A; RODOVIA DAS CATARATAS S/A E RODOVIAS
INTEGRADAS DO PARANA S/A – VIAPAR, todas concessionárias de obras públicas, consistentes na recuperação, melhoramento,
manutenção, conservação, operação e exploração de trechos de rodovias federais neste Estado, propuseram esta AÇÃO ORDINÁRIA,
indicando como réus o DEPARTAMENTO DE ESTRADAS DE
RODAGEM DO ESTADO DO PARANÁ – DER; o ESTADO
DO PARANÁ; a UNIÃO FEDERAL e o DEPARTAMENTO
NACIONAL DE ESTRADAS DE RODAGEM – DNER, pedindo:
a) a condenação da União a praticar os atos jurídicos necessários à execução fiel das condições constantes dos Convênios de Delegação, dos
editais de licitação (por ela aprovados) e dos contratos de concessão
ou, se reputar mais adequado, a promover a resilição dos Convênios e
a retomada dos bens e serviços para a órbita federal; ou b) a declaração da nulidade dos atos administrativos de modificação dos contratos de concessão, restabelecendo-se a situação anterior, inclusive no
tocante ao valor do pedágio; ou c) a decretação da rescisão dos contratos de concessão pactuados entre as Autoras e Réus, por inadimplemento destes últimos. Pediram, ainda, indenização por perdas e
danos, abrangendo danos emergentes e lucros cessantes. Requereram
a antecipação da tutela, para o fim de ser restabelecida a situação
jurídica existente antes da prática dos atos questionados, com manutenção das concessões nos termos constantes da contratação original,
ou, alternativamente, autorização de suspensão dos encargos e investimentos programados, com a execução tão-somente das despesas
relacionadas com a conservação das rodovias principais.
Os efeitos da tutela requerida foram parcialmente antecipados, por decisão das fls. 3273-3280, datada de 21 de agosto de
1998, nos seguintes termos:
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
“1.Até a decisão final deste processo e enquanto perdurar a redução das tarifas, as autoras ficam obrigadas a executar as obras
e os serviços que forem indispensáveis para a manutenção e a
conservação das rodovias sob sua responsabilidade, nas mesmas
condições em que hoje se encontram, e a manter, no mínimo os
serviços de atendimento pré-hospitalar. Tem-se, como certo que
as rodovias apresentam, hoje, perfeitas condições de trafegabilidade e segurança.
2. As verbas para custeio da fiscalização e para o aparelhamento
da Polícia Rodoviária ficam reduzidas na mesma proporção da
redução das tarifas.
3. Todos os demais serviços e obras somente serão executados
na medida em que o fluxo de caixa do empreendimento permitir, e segundo prioridades que deverão ser estabelecidos de
comum acordo entre cada uma das autoras e o DER, e anuência
da União.”
Devidamente citados, os réus apresentaram suas contestações. O DER, à fl. 3399; o Estado do Paraná, à fl. 3638; a União, à
fl. 4492, e o DNER, à fl. 4503.
As autoras manifestaram-se sobre as contestações à fl.
4546, fazendo a juntada de cópia de parecer técnico elaborado pela
MCM Consultores Associados.
Determinada a especificação de provas, a União (fl. 4616)
e o DNER (fl. 4618), não tendo provas a produzir, requereram o
julgamento antecipado da lide.
O Estado do Paraná (fl. 4626), e o DER (fl. 4629), requereram a produção da prova pericial.
As autoras, à fl. 4633, requereram o julgamento antecipado da lide, trazendo para os autos os documentos das fls. 46494737; cópia do parecer técnico do Eng. Fernando Mac Dowell (fls.
4738-4814) e cópia do parecer técnico de Ricardo Knoepfelmacher
(fls. 4816-4963), ambos contratados pelo próprio Estado do Paraná.
Ao mesmo tempo, requereram a ampliação da antecipação dos efeitos da tutela.
O pedido de ampliação da tutela foi indeferido (fl. 4990).
Tendo em vista a juntada de pareceres técnicos contratados pelo próprio Estado do Paraná, pediu-se a confirmação deste,
e do DER, quanto ao interesse na produção da prova pericial.
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Decisões Judiciais
Ambos reiteraram o interesse na realização da prova pericial (fls.
4992 e 4994).
Manifestaram-se, mais uma vez, as autoras, pedindo o
indeferimento das provas requeridas, reputando-as inúteis e meramente protelatórias.
PASSO A DECIDIR
Das provas.
São duas as questões de mérito que deverão ser decididas em sentença, após a conclusão, dizendo respeito à primeira,
sobre o rompimento do equilíbrio econômico-financeiro, dos
contratos de concessão das rodovias, em razão da medida unilateral adotada pelo Estado do Paraná, e a segunda, sobre o prejuízo daí decorrente. Confirmada a instauração do desequilíbrio
econômico-financeiro, o ato que o provocou é ilegal, e por isso,
deve ser declarado nulo, enquanto que, demonstrada a existência
do prejuízo, os responsáveis deverão ser condenados a indenizar.
Aqui, cuida-se de examinar, agora, sobre a necessidade
da prova pericial para o referido julgamento.
Os pareceres técnicos juntados pelas autoras, dois dos
quais elaborados por encomenda do próprio Estado do Paraná,
já trazem elementos suficientes que permitem decidir ambas as
questões. O valor dos prejuízos, cuja existência venha a ser reconhecida na sentença, poderá e deverá ser apurada em procedimento de liquidação, quando, então, se for o caso, será feita a
perícia, por ora desnecessária. Caracteriza-se, portanto, a situação
prevista no art. 427 do CPC:
“Art. 427. O juiz poderá dispensar prova pericial quando as
partes, na inicial e na contestação, apresentarem sobre as questões
de fato pareceres técnicos ou documentos elucidativos que considerar suficientes.”
Diante disso, a prova pericial deve ser indeferida, com
base no art. 420, parágrafo único, II, do CPC:
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“Parágrafo único. O juiz indeferirá a perícia quando:
I – (...)
II- for desnecessária em vista de outras provas produzidas.
III – (...)”
Como o Estado do Paraná e o DER manifestaram-se nos
autos após a juntada, pelas autoras, de documentos e dos pareceres
técnicos, é possível presumir que deles tenham tomado ciência. No
entanto, não tendo havido intimação expressa para esse fim, devem
ser intimados para manifestarem-se sobre os aludidos documentos
e pareceres, do modo a afastar eventual alegação de nulidade da
futura decisão. Com isso, abre-se oportunidade aos dois mencionados réus para contestarem as conclusões dos pareceres trazidos pelas
autoras, com a possibilidade, até, de apresentarem o seu parecer técnico, em sentido contrário.
Preliminares argüidas.
As preliminares argüidas devem ser decididas desde já.
Litisconsórcio ativo.
Alega o Estado do Paraná que a natureza do feito não
comporta litisconsórcio ativo, impondo-se, em conseqüência o desmembramento do processo em autos distintos, um relativo a cada
uma das autoras. É que a situação de fato de cada uma das autoras
seria diversa em relação às outras, assim como seriam inúmeras as
variáveis, requerendo uma análise técnica pormenorizada de cada
caso, em razão das particularidades de cada contrato, bem como
consideração dos reflexos econômico-financeiro produzidos pelas
alterações em relação a cada uma das concessionárias isoladamente.
A preliminar deve ser rejeitada, pois acima das diversidades apontadas, prevalece a identidade do objeto e da causa de pedir
e, como observam as autoras, suas pretensõesderivamtodas,igualmente,deummesmocomplexodeatoeomissõesdosRéus (fls. 4555).
Merece atenção o seguinte trecho pinçado da réplica da fls. 4554:
“Transtorno haveria, se o litisconsórcio não se houvesse formado
e cada concessionária formulasse sua própria demanda. As várias
ações seriam conexas – o que nem o ESTADO põe em dúvida.
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Decisões Judiciais
Os processos seriam reunidos no mesmo Juízo e os autos, apensos. Haveria a multiplicação de peças repetidas (iniciais, contestações, recursos, documentos iguais juntados pelos autores e réus
nos vários processos etc.) – e, conseqüentemente, o conjunto de
cadernos processuais apensos seria ainda maior. A instrução probatória ou seria unificada (resultando na mesma situação que se
terá em virtude do litisconsórcio), ou, em grande parte, inutilmente repetida.”
Legitimidade ativa.
A União e o DNER levantaram a preliminar de ilegitimidade das autoras para pedirem a resilição dos convênios, de que
não participaram. Não procede a alegação, pois não é apenas isso
que pedem as autoras. Com efeito, pedem a anulação, também, do
ato que, unilateralmente, reduziu o valor do pedágio, bem como
a indenização pelo dano daí decorrente. Para isso, evidentemente,
possuem legitimidade ativa.
Incompetência da Justiça Federal.
Alega o DNER que, a se admitir “que possam as Autoras
pleitear um Juízo denúncia de Convênios firmados entre entes federativos, estar-se-ia reconhecendo a possibilidade do poder Judiciário
colocar em pólos opostos, entes federativos que pretenderam celebrar um pacto de cooperação associativa. Impende observar, porém,
que para que o Poder Judiciário possa conhecer do pedido contido
na alínea “a” da peça vestibular, constatada e provocada a ocorrência de verdadeiro conflito federativo entre a União e o Estado do
Paraná, a contenda somente poderá ser validamente dirimida pelo
Colendo Supremo Tribunal Federal, por força do artigo 102, I, “f”
da Carta Política...”
Também aqui não procede a preliminar, pois, como se
viu, as autoras não pretendem apenas a denúncia do Convênio firmado pela União com o Estado do Paraná, mas também a nulidade
de ato praticado pelo Estado do Paraná, bem como a indenização
devida pelos demais réus, responsáveis pelos prejuízos a elas impostos, casos em que inocorrem conflitos entre as entidades federadas.
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Falta de interesse de agir.
Diz o DNER que falta às autoras interesse processual,
pois ingressaram em juízo pugnando por providência que já haviam
obtido na área administrativa, pois tanto o DNER, quanto a União,
já haviam iniciado a prática dos atos jurídicos necessários à execução
fiel das condições constantes dos Convênios de Delegação.
A preliminar suscitada não se sustenta, na medida em
que, tanto o DNER, como a União, além de não terem tomado
nenhuma iniciativa no sentido de atender as pretensões das autoras,
estão a contestá-las nesta ação.
Ilegitimidade passiva da União e do DNER.
A União e o DNER sustentam não possuírem legitimidade para figurar no pólo passivo da relação processual, pois houvera a delegação da competência plena ao Estado do Paraná para
deliberar sobre as concessões. Defendem, assim, que não possuem
legitimidade passiva, pois nenhum ato foi praticado no âmbito da
Administração Pública Federal no sentido de ratificar os atos praticados pelo Estado do Paraná, que foram justamente aqueles que
pretensamente causaram prejuízos às autoras.
A preliminar deve ser rejeitada, pois, embora a redução da
tarifa de pedágio tenha resultado de ato direto do Estado do Paraná,
é ela dependente da autorização prévia da União, pelos seus órgãos
competentes. O que as autoras alegam é que a manutenção dessa
decisão, sem nenhuma oposição da União e do DNER, importa
omissão, da qual resultaram os alegados prejuízos. Dessa perspectiva, é de se admitir que, efetivamente, tanto a União, quanto o
DNER, estão legitimados a comporem a lide. Ademais, a delegação
da administração das rodovias ao Estado do Paraná não pode afastar a responsabilidade da União na manutenção desse serviço, que é
federal e se reveste do mais alto interesse social.
Ampliação da tutela antecipada.
Os efeitos da tutela foram parcialmente antecipados em
decisão liminar datada de 21 de agosto de 1998, como medida
necessária para manter o equilíbrio econômico e financeiro dos
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Decisões Judiciais
contratos de concessão de exploração de rodovias, rompido em virtude da redução das tarifas de pedágio, por ato unilateral de um
dos réus, o Estado do Paraná. Mais tarde, já em agosto de 1999, as
autoras pediram a ampliação da tutela deferida (fl. 4633), pedido
esse que não foi acatado, ao argumento de que o periculum in mora
teria sido afastado pela liberação das autoras da obrigação de realizarem obras novas, não sendo possível saber, naquele momento,
se as dificuldades financeiras de que as autoras se diziam tomadas resultavam da insuficiência da tutela antecipada, ou de outras
causas de origem estrutural (fl. 4990). Até então, não tinham sido
examinados, com a devida detença, os pareceres técnicos juntados
aos autos, pois aguardava-se, ainda, que o Estado do Paraná e o
DER sobre eles se manifestassem.
Ambos se manifestaram às fls. 4992 e 4994, requerendo a
produção de prova pericial, por entenderem insatisfatórios os pareceres técnicos existentes. A disposição assim demonstrada permite
prever que a prestação jurisdicional ainda poderá demandar longo
tempo, até que se torne definitiva.
O perigo que pode resultar da demora do processo impõe
que seja retomada a análise do pedido de ampliação da tutela, pois
é esse o instrumento que a técnica processual criou para garantir
a efetividade da jurisdição, sempre que esta possa sofrer os danos
impingidos pelo tempo.
A quebra do equilíbrio econômico-financeiro
dos contratos.
Não se nega o direito que tem o Poder Concedente (o
Estado do Paraná e o DER) de alterar unilateralmente o contrato de
concessão. Tal, porém, só é admitido, se for preservado o equilíbrio
econômico e financeiro inicialmente estabelecido no contrato.
Sustenta o DER, às fls. 3415-3416, que esse equilíbrio
foi mantido:
“As alegações das concessionárias de que a redução dos encargos
e investimentos e a conseqüente redução tarifária inviabilizaria
o Programa de Concessões, e torna impossível a recomposição
da equação econômica e financeira não é verdadeira, tendo em
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vista que a redução dos encargos e investimentos manteve a taxa
de retorno de investimento – TIR nos mesmos patamares das
propostas comerciais a fim de preservar o equilíbrio econômicofinanceiro dos contratos.”
Demonstra, às fls. 3419-3420, que a redução tarifária
foi compensada com a supressão dos encargos e investimentos,
não tendo, assim, gerado nenhum desequilíbrio financeiro, pois
as taxas de retorno do empreendimento (TIR) teriam sido mantidas no mesmo percentual das propostas originais de cada uma
das concessionárias.
Os economistas Cláudio Adilson Gonçalez e Celso Luiz
Martone, da MCM Consultores Associados, todavia, demonstram
em seu parecer (fls. 4570 e ss.) que essa assertiva é falsa, pois para
manter a TIR em nível semelhante ao das propostas originais, o DER
introduziu nos custos de administração, operação e conservação das
concessionárias, uma injustificada e indevida redução da ordem de
16% a 29% gerando, com isso, saldos de caixa totalmente irreais.
Para compreender a controvérsia assim estabelecida, há
necessidade de traduzir alguns termos técnicos.
Qualquer pessoa que invista um capital de R$ 100,00,
na data de hoje, para recebê-lo de volta daqui a um ano, certamente haverá de querer uma remuneração (juros), mesmo que não
haja inflação nesse período. Isso decorre do princípio fundamental
de que o dinheiro tem valor diferente no tempo. Se os juros pretendidos forem de 20%, pode-se dizer que, para essa pessoa, é indiferente receber R$ 100,00 hoje, ou R$ 120,00 daqui a um ano, caso
em que se poderá dizer que R$ 100,00 é o Valor Presente de R$
120,00. Para se determinar o valor presente de um valor a ser recebido no futuro é preciso, portanto, levar em conta uma Taxa de
Desconto que, no caso, é de 20%. Há que se alertar, porém, que o
valor correspondente ao desconto já se encontra embutido no valor
futuro (VF), de modo que, para achar o valor presente (VP) não é
sobre ele que deve ser aplicada a taxa de desconto (t), sendo necessário valer-se da seguinte fórmula: VP = VF ./. (1+t ./.100).
A taxa de desconto que seja suficiente para recuperar o capital investido é conhecida como Taxa Interna de Retorno (TIR).
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Decisões Judiciais
A Taxa Interna de Retorno TIR, por sua vez, está intimamente ligada ao conceito de Valor Presente Líquido (VPL).
Se esse mesmo investidor, que precisava receber R$
120,00, daqui a um ano, para recuperar o capital inicial de R$
100,00 (porque a taxa interna de retorno é de 20%), receber de volta
R$ 150,00, estará recebendo, então, um resultado adicional de R$
30,00, que é o Valor Presente Líquido (VPL).
Com essas considerações, será possível compreender o
ponto central da discussão entre as autoras e o DER/PR.
Afirma o DER que a redução da tarifa de pedágio não
trouxe nenhum prejuízo às concessionárias, porque houve uma
reprogramação dos investimentos, com a exclusão de obras em montante tal que não alterou a Taxa Interna de Retorno (TIR) prevista
nos projetos originais. Com isso pretende-se dizer que a redução
de receitas (menor pedágio) foi compensada com igual redução de
custos (corte nas obras), de modo que os saldos líquidos de caixa, ao
longo dos 24 anos da concessão, permitem a recuperação do capital
investido, tal como previsto nos projetos originais.
Ocorre, porém que o DER, conforme confirmam os pareceres técnicos, ao reduzir os custos, para compensar a perda da receita,
excluiu não apenas o custo das obras cortadas, mas também custos
administrativos, que na prática, não sofreram nenhuma redução e,
por isso, não poderiam ter sido excluídos. A conseqüência disso é
que o fluxo de caixa elaborado pelo DER afasta-se da realidade, pois
cortando custos administrativos que efetivamente ocorrem, e que por
isso não poderiam ter sido cortados, produziu saldos de caixa irreais,
que não recompõem o capital investido.
Veja-se o parecer da MCM Consultores Associados:
fl. 4575
“Em primeiro lugar, não é necessariamente verdadeiro que a
redução ou alteração temporal dos investimentos reduz os custos
com mão de obra. Não é razoável admitir-se, por exemplo, que
os investimentos alterados pelo DER/PR (que dizem respeito
basicamente à Restauração das Rodovias Principais e Obras de
Melhoria e Ampliação da Capacidade) alterariam os valores orçados para o pagamento de salários da Administração (Diretorias,
Gerências e Pessoal Administrativo).
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“Além disso, o número de praças de pedágio e postos de pesagem
foi mantido pelo DER/PR exatamente igual à Proposta Original. Conseqüentemente, o número necessário de funcionários,
por exemplo, para arrecadação de tarifas de pedágio e operação
das balanças seria o mesmo. Tampouco é possível dizer, a priori,
que o número de acidentes nas estradas do Paraná se reduziria
a ponto de evitar gastos com atendimento médico e mecânico.
Nada garante que a redução e/ou postergação daqueles investimentos, dado o volume de tráfego, provocaria uma redução no
número de acidentes – ao contrário, (fl. 4576) intuitivamente,
presume-se que deva aumentar a insegurança e, portanto, a ocorrência de acidentes.
(...)
“Não é razoável, por exemplo, imaginar que as concessionárias
economizem com aluguel/locação de imóveis para sede nos primeiros anos do projeto (antes da construção da sede própria),
uma vez que o número de funcionários e atividades continuam
os mesmos em ambos os casos. O mesmo se pode dizer dos gastos
com tarifas (energia elétrica, água e telefone), material de escritório, equipamentos para segurança individual e combustível e
manutenção de veículos.
fl. 4578-4579
“Fatores uniforme de redução dos custos foram utilizados para
todas as áreas, como pode ser visto no quadro 3 abaixo. Os redutores variam conforme os lotes sem qualquer relação com os
cortes e reprogramações dos investimentos. Essas constatações
sugerem fortemente a ausência de critérios lógicos na efetivação
dos cortes de custos.
Fator de Redução Linear de Custos Proposta Original x Alteração DER
ECONORTE
Fator de Redução Linear
80%
VIAPAR
Fator de Redução Linear
81%
CATARATAS
Fator de Redução Linear
78%
CAMINHOS
Fator de Redução Linear
71%
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Decisões Judiciais
Fator de Redução Linear de Custos Proposta Original x Alteração DER
RODONORTE
Fator de Redução Linear
75%
ECOVIA
Fator de Redução Linear
84%
Ricardo Knoepfelmacher, da MGDK & Associados
confirma à fl. 4834:
“Além disso, as propostas de reequilíbrio apresentadas pelo Poder
Concedente envolveram um raciocínio pelo qual os custos e despesas operacionais constantes das propostas das seis concessionárias foram alterados pela aplicação de fatores redutores. Essa
prática não é adequada, pois os orçamentos de custos e despesas operacionais são partes integrantes do plano de negócios das
concessionárias e, portanto, a única forma de alterar-se esses
orçamentos seria alterando-se os encargos a elas impostos. Nada
indica que haja relação direta entre a redução de receitas decorrentes de alteração das tarifas decidida pelo Poder Concedente e a
redução de despesas administrativas e operacionais nas rodovias,
pois não houve alteração de encargos. Por isso, não seria correto
introduzir-se, especialmente em uma medida unilateral do Poder
Concedente, multiplicadores que reduzam (ou aumentem) estes
valores, uma vez que eles fazem parte do conjunto de premissas
já em análise pelas instituições com as quais as concessionárias
vinham negociando o financiamento aos projetos.”
Mas, não é apenas o corte indiscriminado e injustificado
dos custos administrativos que distorce o fluxo de caixa elaborado pelo DER. Segundo a MGDK & Associados, não se levou
em consideração a realidade de que um empreendimento do porte
desse assumido pelas concessionárias exige sempre a participação
de capital de terceiros, por via de financiamentos. Por isso, na apreciação das entradas e saídas de recursos, é preciso levar em conta
os aportes gerados pelos empréstimos e os dispêndios relativos ao
serviço da dívida.
Confira-se à fl. 4835:
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
“O Poder Concedente, quando elaborou as simulações que culminaram nas propostas feitas às seis concessionárias, elaborou
apenas Fluxos de Caixa de Projeto, ou seja, os Fluxos de Caixa
que partem da premissa de que os empreendimentos seriam
suportados apenas por capital próprio dos acionistas. Não foi
essa a premissa das propostas das concessionárias – até porque,
conforme já dito, isso praticamente nunca ocorre.”
Por todas essas razões, o fluxo de caixa elaborado pelo
DER precisa ser corrigido, levando-se em consideração os custos
administrativos, que não sofreram nenhuma redução com a reprogramação das obras, e introduzindo-se os componentes relacionados
com o aporte do capital financiado.
É a advertência que faz Ricardo Knoepfelmacher, da
MGDK & Associados, à fl. 4835:
“Por isso, conforme dito anteriormente, a avaliação da equação
econômica financeira de um projeto desse tipo deve necessariamente levar em conta o novo Fluxo de Caixa Alavancado, ou
seja, o Fluxo de Caixa que considera os financiamentos e os
encargos financeiros compatíveis com o quadro gerado, e que
permite que se avalie os resultados do empreendimento, nessas
novas condições para os seus acionistas.”
Esse trabalho foi realizado por MCM Consultores Associados que, comparando os fluxos de caixa da proposta original das
concessionárias e da alteração unilateral promovida pelo DER com
outras duas simulações, determinou o Valor Presente Líquido de
cada uma das situações, chegando à conclusão de que a redução da
tarifa de pedágio não foi compensada pelo corte de investimentos e,
por isso, provocou efetivo desequilíbrio econômico e financeiro dos
contratos da concessão (fls. 4581 e 4582):
“2.3.2 – Fluxo de caixa com alavancagem financeira.
Nessa seção analisaremos os fluxos de caixa sob a ótica do empreendedor, ou seja, considerando-se os empréstimos de capital de terceiros e os pagamentos dos serviços da dívida. Essa abordagem torna-se
particularmente importante no caso em exame, dado que – como
ficou demonstrado – na maioria dos lotes as alterações promovidas
pelo DER/PR nos investimentos e nas tarifas provocaram maior
necessidade de financiamento nos primeiros anos da concessão.
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Decisões Judiciais
(...) O quadro 5 mostra os comparativos dos VPI´s para quatro
diferentes situações:
i) Fluxo alavancado da Proposta Original (primeira coluna);
ii) Alteração DER/PR, onde aceita-se, apenas a título ilustrativo,
as reduções de custo promovidas pelo órgão e considera-se o
financiamento previsto na Proposta Original (segunda coluna):
iii) Alteração DER/PR, mas mantendo-se os CAOC (Custos de
Administração, Operação e Conservação) e os financiamentos
previstos na Proposta original (terceira coluna) e
iv) Alteração DER/PR, com os CAOC da proposta original e
considerando-se aportes adicionais de recursos de terceiros para
cobrir as novas necessidades de caixa, com os custos de captação
obedecendo às condições atuais de mercado (quarta coluna).
Quadro 5
Comparativo dos Fluxos de Caixa com Financiamento
Saldos de Caixa com Alavancagem Financeira
Valor Presente Líquido a Taxas de Desconto Relevantes
Alteração DER/PR
c/ Financ. Original
Recálculo (*) c/
Financ. Original
C/ Financ. Adicional
a Condições Mercado
Proposta Original
Alteração DER/PR
c/ Financ. Original
Recálculo (*) c/
Financ. Original
C/ Financ. Adicional
a Condições Mercado
13,0%
14,0%
15,0%
LOTE 2
Proposta Original
Taxas Desconto
LOTE 1
10.154
8.312
6.725
12.617
9.420
6.710
-11.971
-13.725
-15.121
-72.536
-60.534
-50.864
63.060
51.475
41.647
61.745
47.700
35.848
25.899
14.182
4.407
19.060
9.304
1.248
LOTE 3
13,0%
14,0%
15,0%
41.948
33.796
26.935
37.430
28.459
20.941
5.906
-1.329
-7.251
LOTE 4
-11.074
-13.551
-15.444
22.386
18.889
15.926
LOTE 5
13,0%
14,0%
15,0%
162.943
134.692
110.769
145.471
116.567
92.278
93.607
67.877
46.445
15.024
11.003
7.614
-10.613
-13.197
-15.298
-10.613
-13.197
-15.298
LOTE 6
80.470
58.927
41.125
22.000
17.613
13.882
18.826
14.077
10.072
-1.275
-4.829
-7.757
-12.857
-13.302
-13.619
(*) O recálculo foi realizado com base no fluxo de caixa do DER/PR, mantendo os custos
de Administração, Operação e Conservação das propostas originais.
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“Nota-se que, mesmo que se considerássemos válidas as estimativas dos CAOC presentes na alteração do DER/PR e admitíssemos a hipótese otimista muito pouco provável de que os financiamentos ainda pudessem ser obtidos nas mesmas condições
consideradas nas propostas originais, os VPL´s apresentados na
segunda coluna (Alteração DER/PR com Financiamento Original), quando comparados aos da Proposta Original, atestam que
as equações de equilíbrio econômico-financeiras dos contratos de
concessão estariam, na maioria dos casos, comprometidas.”
A análise do quadro supra reproduzido demonstra que,
mesmo que se admita como verdadeira a premissa adotada pelo
DER, segundo a qual haveria efetiva redução dos custos administrativos, da ordem de 16% a 29% (fato que os técnicos negam de
forma unânime), ainda assim, a reprogramação feita pelo Estado
do Paraná, ao reduzir a tarifa de pedágio, não permite a manutenção do mesmo VPL (Valor Presente Líquido) previsto nas propostas
originais. À exceção do Lote 1, em todos os demais há efetiva perda
das concessionárias. Compare-se a coluna “Proposta Original” com
a coluna “Alteração DER/PR c/Financ. Original”. Verifique-se,
contudo, que o equilíbrio que se observa em relação ao Lote 1 é
apenas aparente, pois, quando se introduzem no fluxo de caixa os
custos administrativos indevidamente reduzidos pelo DER, tem-se
como resultado um Valor Presente Líquido negativo, o que equivale
dizer que, nesse caso, o capital investido não só não será recuperado, como, ainda, sofrerá redução. Ou seja, haverá efetivo prejuízo.
Compare-se a coluna “Proposta Original” com a coluna “Recálculo
c/Financ. Original”.
Inviabilização do programa de concessões.
É facilmente compreensível e até mesmo intuitivo que
um empreendimento de tal vulto como o de construir, conservar e
explorar rodovias somente seja viável se houver um financiamento
de longo prazo, seja porque o empreendedor privado não possui o
capital necessário, seja porque o retorno do capital investido não
ocorre imediatamente. A viabilidade de um programa que tem por
objeto a exploração de rodovias, mediante a cobrança de pedágio,
depende, portanto, da sua financiabilidade.
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Decisões Judiciais
Os pareceres técnicos juntados aos autos demonstram
que a atitude unilateral do Estado do Paraná, ao reduzir a tarifa
de pedágio, golpeou duramente a financiabilidade do programa.
Afirma o eng. Fernando Mac Dowell, à fl. 4749, que
“Devido à medida unilateral do Governo, abalou a credibilidade
do programa junto aos agentes financeiros, comprometendo os
empréstimos de longo prazo em negociação para o cumprimento
do Programa original.”
enfático:
Ricardo Knoepfelmacher, da MGDK & Associados é
fl. 4839
“O grande problema advêm do fato de que, com a redução das
tarifas de pedágio, foi alterada de forma importante a percepção
do risco dos financiamentos quanto ao Anel de Integração. Com
isso, os processos de negociação dos empréstimos de longo prazo
foram interrompidos.
Em resumo, desde a reduçãodastarifas de pedágio os seis contratos
de concessão referentes ao Anel de Integração do Paraná encontram-se praticamente paralisados. As concessionárias, tendo sido
desobrigadas pela Justiça dos investimentos previstos em contrato,
estão na prática apenas prestando, precariamente, os serviços de
atendimento ao usuário e de conservação.
Sem condições de contrair financiamentos de longo prazo, as
empresas concessionárias estão tendo que promover a rolagem de
seus empréstimos-ponte, que deverão perdurar até que os financiamentos de longo prazo sejam viabilizados, o que somente será
possível algum tempo após a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão.
A simples retomada das negociações envolvendo esses empréstimos de longo prazo depende do reequilíbrio contratual, que
é, na prática, ponto de partida para qualquer evolução do Anel
de integração.”
fl. 4841
Na origem do quadro de dificuldades hoje vivido pelo Anel de
Integração do Paraná está a medida tomada pelo Poder Concedente, pela qual as tarifas de pedágio foram reduzidas sem que
fosse promovido, ao mesmo tempo, o efetivo reequilíbrio das
equações econômico-financeiras dos contratos de concessão.
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
A quebra do equilíbrio contratual teve lugar, portanto, em função
de ato unilateral adotado pelo Governo do Estado. O perfil de
risco dos empreendimentos foi alterado não em função de questões
conjunturais, mas dessa medida governamental.
Certamente, a simples retomada das tarifas, fruto de mero raciocínio matemático, não é por si suficiente para a recuperação do
equilíbrio econômico-financeiro, pois a percepção de risco por
parte dos financiadores, que impacta o custo de captação das concessionárias e onera os projetos, é hoje significativamente maior
que antes da redução das tarifas.
A repactuação de uma nova equação de equilíbrio para os contratos de concessão, portanto, somente será justa e eficaz se forem
levadas em conta, quanto às condições de financiamento, as premissas impostas pelo contexto atual do Anel de Integração.”
Todas essas considerações levam à segura convicção de
que o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão
resultou, efetivamente, rompido em razão da redução unilateral da
tarifa de pedágio, e de que esse equilíbrio não veio a ser restaurado,
nem pela reprogramação feita pelo DER, nem pela antecipação parcial dos efeitos da tutela, liminarmente deferida.
Nulidade da redução unilateral das tarifas de pedágio.
Necessidade de aprovação prévia do Ministério
dos Transportes.
A administração e a exploração de trechos de rodovias foi
delegada ao Estado do Paraná, mediante convênio firmado com a
União. Consta, no convênio, como obrigação do Estado do Paraná
submeter ao Ministério dos Transportes qualquer alteração do programainicial,e como obrigação do Ministério dos Transportes, na
qualidade de delegante, aprovaroudesaprovarpropostasdealteração
doprogramainicial,consoante§3ºdoart.4ºdaPortariano368/
GM,de11desetembrode1996(Cláusula Quarta, item 1, inc.IX, e
item 3, inc. I).
A alteração do programa inicial foi feita mediante portarias do DER, sem prévia submissão ao Ministério dos Transportes
que, em decorrência, não pode autorizá-la. A alteração assim promovida pelo DER extrapolou, portanto, a delegação outorgada ao
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Decisões Judiciais
Estado do Paraná, sendo, assim, nula, ante a carência de fundamento de validade.
Diante dessa alteração não autorizada, assim se pronunciou o Consultor Jurídico do Ministério dos Transportes, em nota
encaminhada ao Ministro da Pasta (fls. 3251-3259):
“Preliminarmente cumpre esclarecer que os Convênios de delegação celebrados com o Estado do Paraná têm por objeto a delegação da administração e exploração de rodovias ou trechos de
Rodovias Federais e, nos termos de suas cláusulas, o exercício da
administração e da exploração, mediante concessão, dar-se-á em
acordo com o Programa de Concessões Rodoviárias do Estado,
aprovado pela União, o qual faz parte integrante de cada um dos
respectivos Convênios, não havendo quaisquer previsões de que o
estado Delegatário unilateral de assim proceder.
(...)
É sabido que o estado define inicialmente as tarifas a serem impostas, com base nas propostas apresentadas pela concessionária e
sempre dentro de uma metodologia já discutida com o DNER,
a qual deve estar contida no programa apresentado pelo Estado
quando do pleito inicial. Se assim estiver caracterizado, tal medida,
para ser adotada pelo Estado, somente poderia acontecer se precedida de aditamento ao convênio, em face da configuração da
alteração do programa, sujeito a nova aprovação deste Ministério,
bem assim, de estudos técnicos e econômicos que demonstrem a
necessidade de revisão das tarifas em estrita observância às disposições ínsitas na legislação federal de concessões (Lei nº 8.987/95),
a qual encontra-se jungida o instrumento pactual compondo o rol
de normas que a fundamentam, nitidamente citadas no preâmbulo dos contratos.
Assim, entende-se ser necessário a expedição de expediente àquele
Estado, alertando-o da ilegalidade do ato pretendido, (...)”
A ilegalidade é apontada, também, pelo Procurador
Geral do DNER, em nota dirigida ao Diretor Geral dessa autarquia (fls. 3260-3270):
“Vemos, portanto, que para obtenção da delegação, o Estado
do Paraná teve projetos técnicos aprovados pelo Ministério dos
Transportes que, certamente, observaram as normas técnicas para
execução de obras e serviços vigentes do DNER.
As portarias editadas em 17 de julho de 1998, subscritas pelo
Diretor Geral do DER/PR, sem qualquer comunicação prévia ao
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
Ministério de estado dos Transportes ou a esta Autarquia Federal,
aprovam a redução de serviços a serem executados na rodovia,
reduzindo conseqüentemente, o valor da tarifa cobrada pela Concessionária. Ora, basta um perfunctório exame das normas acima
transcritas para que possamos verificar que a Autarquia Estadual,
antes de submeter ao exame do Ministério dos Transportes e do
DNER as modificações nos projetos aprovados para viabilizar o
Convênio, não os pode modificar, alterando os quantitativos de
obras e serviços a serem executados nas Rodovias.”
Necessidade da manutenção do equilíbrio econômico
financeiro.
Segundo o art. 65 da Lei no. 8.666, de 21-6-1993, a
Administração pode alterar unilateralmente os contratos administrativos, quandohouvermodificaçãodoprojetooudasespecificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos. Dispõe,
ainda, que, havendoalteraçãounilateraldocontratoqueaumente
os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer,
por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial. O restabelecimento desse equilíbrio econômico-financeiro, por sua
vez, importando alteração do contrato, só pode ser realizado de
comum acordo. Confira-se:
“Art. 65. Os contratos regidos por esta lei poderão ser alterados,
com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
I – unilateralmente pela Administração:
(...)
b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos
limites permitidos por esta Lei:
II – por acordo das partes:
(...)
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contrato e a retribuição da Administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento,
objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro
inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou impeditivos da execução do ajustado, ou ainda, em caso
de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando
área econômica extraordinária ou extracontratual.
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Decisões Judiciais
§ 6º “Em havendo alteração unilateral do contrato que aumente
os encargos do contrato, a Administração deverá restabelecer, por
aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial.”
Essa disciplina, que se impõe pela própria força da lei,
foi reproduzida no contrato de concessão que o Estado do Paraná
firmou com cada uma das concessionárias. Veja-se:
“CLÁUSULALIII
DaalteraçãodoCONTRATO
EsteCONTRATOpoderáseralteradonosseguintescasos:
I–unilateralmente,peloDER,paramodificaroPROGRAMADE
EXPLORAÇÃODOLOTE;
II–poracordo:
a) quando conveniente a substituição de garantias contratuais;
quandonecessáriaamodificaçãopararestabelecerarelaçãoàspartes
pactuaraminicialmente,entreosencargosdaCONCESSIONÁRIA
easreceitasdaconcessão,objetivandoamanutençãodoinicialequilíbrioeconômicoefinanceirodesteCONTRATO.”
Apesar da previsão legal e da convenção contratual, o
DER reduziu o valor do pedágio e, unilateralmente, modificou o
programa de exploração, tentando recompor o equilíbrio econômico-financeiro, abalado pela redução da tarifa de pedágio.
Ocorre, porém, que o equilíbrio não foi restaurado, conforme consenso unânime dos técnicos, resultando, daí, não só a
nulidade do ato que determinou a redução tarifária, como também
do ato unilateral que pretendeu, mas não conseguiu, restabelecer o
necessário equilíbrio econômico-financeiro, que o próprio contrato
de concessão define como condiçãofundamentaldoregimejurídico
da concessão (Cláusula XIV, item I) e como pressuposto básico da
equaçãoeconômicaefinanceiraquepresidiráasrelaçõesentreaspartes
(Cláusula XIV, item 2).
Ampliação da antecipação dos efeitos da tutela requerida
A antecipação dos efeitos da tutela parcialmente deferida
no dia 21-8-98, há mais de um ano, portanto, tinha evidente caráter
provisório, pois rodovia nenhuma pode manter-se por longo tempo,
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
apenas com as obras de conservação e reparos, sem sofrer deteriorações que o afetem, até, em sua estrutura. Pretendeu-se, na ocasião, preservar a população de um pedágio, cujo valor era julgado
excessivo, e, ao mesmo tempo, abrir uma oportunidade para que as
partes pudessem caminhar com celeridade a uma solução de consenso, a única possível para resolver o caso. Tal, contudo, não ocorreu, tornando-se necessário rever aquela decisão, que já se mostra
insuficiente para proteger o direito das autoras do perigo da demora,
existindo, agora, condições para dar atenção à observação feita pelo
Juiz Volkmer de Castilho, no julgamento do Agravo de Suspensão
de Execução de Liminar nº 1998.04.01.056815-3, ao referir-se à
antecipação apenas parcial da tutela requerida (fl. 4670):
“Penso que S.Exª não optou pela melhor solução; parece-me
que, em respeito aos contratos, deveria ter restabelecido tanto
o valor como os encargos e deixar a situação como se fosse a
situação anterior, mas como, por algumas considerações que
não vêm ao caso discutir, resolveu, ao invés de restabelecer o
valor da tarifa, reduzir ainda mais as condições de desempenho
e os encargos das empresas...”
Na atual fase em que se encontra o processo, quando falta
apenas colher as razões que o Estado do Paraná e o DER possam
ter contra os pareceres técnicos juntados aos autos, dois dos quais
encomendados pelo próprio Estado do Paraná, já se tem uma cognição que ultrapassa os limites da mera plausibilidade, para adquirir
elevado grau de certeza, podendo-se afirmar com grande segurança
que, efetivamente, são ilegais as portarias do DER, que reduziram o
valor das tarifas de pedágio, sendo, em conseqüência, nulas, assim
como são nulas as alterações do programa de exploração, unilateralmente feitas pelo DER. Tudo isso porque, em primeiro lugar, exorbitam da delegação recebida a união, pois que não contaram com
a prévia aprovação do Ministério dos Transportes e, em segundo
lugar, porque, mesmo que assim não fosse, rompem com o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, enquanto
que as proposições de recomposição não restabelecem, de maneira
alguma, as condições iniciais dos referidos contratos, como, aliás,
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Decisões Judiciais
reconhecem à unanimidade os técnicos que examinaram a questão.
Tem-se, assim, como presente, o pressuposto do fumus boni juris.
O prejuízo que decorre da demora do processo é claramente
perceptível, pois todo o programa de concessões tende a inviabilizar-se,
seja pela impossibilidade de manter as rodovias em bom estado, por
longo tempo, com as receitas reduzidas pela metade, seja pela impossibilidade de obter recursos externos, por meio de financiamentos, pois
a única garantia dos investidores, que é a receita do pedágio, é unilateralmente manipulada pela vontade política da Administração, sem
preservar as condições que serviram de base para os contratos.
A simples leitura do parecer da MCM Consultores
Associados, juntado pelas autoras, e dos pareceres encomendados pelo Estado do Paraná à MGDK & Associados S/C Ltda.
(Ricardo Knoepfelmacher), e ao Eng. Fernando Mac Dowell, não
deixa dúvidas de que a medida unilateral tomada pelo DER 1)
quebrou o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de
concessão; 2) inviabilizou a execução destes; e 3) trouxe prejuízo
às concessionárias.
Além disso, a manutenção da situação provisoriamente
admitida pelo provimento liminar que antecipou parcialmente os
efeitos da tutela requerida, tende, com o passar do tempo, a agravar
a situação de insustentabilidade dos projetos, reclamando urgente
revisão, até mesmo para atender à apreensão manifestada pelo DER,
em sua contestação, às fls. 3426-3428:
“Sobre a antecipação da tutela jurisdicional deferida por VOSSA
EXCELÊNCIA, “data máxima vênia” inviabilizará o Programa
de Concessões no Estado do Paraná, reduzido que foi a um
mínimo de obras e serviços, conforme alteração do (PER), sendo
que o Programa de concessões, ficará restrito a uma mera operação denominada “tapa buracos” a título de conservação, proporcionando em curtíssimo espaço de tempo a volta das rodovias ao
estado anterior ao pedágio, pois é certo e inegável que o tráfego
pesado e intenso demanda obras de maior envergadura e suporte
para a adequada prestação de serviços aos usuários com a melhoria das condições de tráfego e de segurança.
(...)
“Com tal procedimento, difícil não é prever que o pavimento terá
sua vida útil reduzida, terminando sucateado pelo excesso de peso
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
dos veículos de transporte ante a ausência de restauração e serviços de pesagem, ensejando assim, a falência total do pavimento e
o comprometimento das obras de arte especiais das rodovias que
compõem o Anel de Integração.
(...)
“Vale destacar, também, no caso em apreço, que está em jogo
não só a preservação da obra pública (rodovia, obras de arte especiais e serviços), mas diretamente o próprio desenvolvimento das
regiões e indiretamente de todo o Estado resultante do melhor
escoamento de produtos, bens e riquezas de forma mais rápida e
segura, isto sem falar no bem maior que é a segurança do usuário
tanto material quanto pessoal.”
Por outro lado, “Gazeta Mercantil”, na edição do dia 28
de outubro do corrente ano, à página A-6, sob o título “Quebrade
contratospreocupainvestidorexterno”, destaca que:
“O descumprimento de contratos de privatização pelos governos
federal e estaduais, como ocorreu no Paraná e Rio Grande do
Sul – é um dos fatores que, ao lado da disputa judicial em torno
da Cemig, tem suscitado a desconfiança dos investidores internacionais. O resultado é a falta de crédito e o desinteresse por
investimentos diretos no Brasil.
Diretores de três bancos estrangeiros afirmam que as operações de “Project finance” para concessões de rodovias estaduais
foram praticamente inviabilizadas após esses incidentes. O próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) suspendeu negociações de financiamento de concessionárias depois que os governos gaúcho e paranaense congelaram ou reduziram tarifas de pedágio.”
Também o Procurador Geral do DNER demonstra o
seu receio, à fl. 3262, em nota dirigida ao Diretor Geral daquela
autarquia:
“Assim, como se pode perceber, a diminuição em percentual aproximado dos 50% do valor da tarifa pode ocasionar não só grave
instabilidade ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato,
como também a suspensão de financiamentos imprescindíveis ao
regular andamento da concessão, podendo advir daí conseqüências gravíssimas, inclusive a rescisão do contrato, com pesados
ônus para a Administração Pública e para o usuário.”
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Decisões Judiciais
Fica claro, assim, que o acréscimo dos efeitos danosos
do provimento liminar, apontados pelo próprio DER, aos outros
efeitos, até mais danosos, ainda, decorrentes da redução unilateral
da tarifa de pedágio, levará à total inviabilização todo o programa
de concessões de rodovias. Está presente, assim, o pressuposto do
periculum in mora, tornando urgente conferir maior amplitude à
antecipação dos efeitos da tutela requerida.
Cumpre advertir que não é objeto desta ação determinar
o valor do pedágio que seja tecnicamente adequado e economicamente suportável pela população, mas, unicamente, decidir sobre a
legalidade do ato unilateral do Estado do Paraná que reduziu pela
metade a tarifa de pedágio por ele mesmo estipulada. Se a decisão
final apontar para a efetiva ilegalidade e conseqüente nulidade do
ato, o efeito necessário será o restabelecimento do valor do pedágio
inicialmente fixado. É esse o efeito que, diante das circunstâncias
presentes nos autos, que convencem quanto à verossimilhança da
alegação de ilegalidade, a que se antecipa. Assim fazendo, não se está
aumentando o valor do pedágio, mas, simplesmente, reconduzindo-o ao patamar inicialmente estabelecido pelo próprio Estado do
Paraná. Assim, se esse valor se mostrar excessivo e economicamente
insuportável pela sociedade, não é ao Poder Judiciário que caberá
a busca da solução, mas ao próprio Estado do Paraná, que o fixou.
Advirta-se, ainda, que a ilegalidade do ato não repousa unicamente
na redução do valor do pedágio, mas nesse fato acrescido do desequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão que, inevitavelmente, acarreta. Isso significa que esta decisão judicial não está
a proibir a redução da tarifa de pedágio, mas a declarar que, promovida a redução, obrigatoriamente deve ser restabelecido o equilíbrio
econômico-financeiro do contrato de concessão, porque, do contrário, estará ferido o direito que a concessionária tem de ver mantidas
as condições iniciais do contrato. Por isso, se o Estado do Paraná
estiver convencido de que a tarifa do pedágio foi, por ele, próprio,
fixado em valor demasiadamente elevado para a população, não só
poderá, como deverá reduzi-la, resguardando, todavia, o equilíbrio
econômico-financeiro dos contratos de concessão.
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
DECISÃO
Por tudo isso, com base nos fundamentos expostos:
1. Indefiro a prova pericial requerida pelo Estado do
Paraná e pelo DER.
2. Faculto, todavia, a apresentação pelo Estado do Paraná
e pelo DER, de contestação aos documentos juntados pelos autores às
fls. 4569-4614, e 4633-4989, ou de laudo ou parecer técnico de profissional qualificado de sua livre escolha, com a mesma finalidade, no
prazo comum de 60 (sessenta) dias.
3. Rejeito todas as preliminares levantadas pelo Estado
do Paraná, pela União e pelo DNER, em suas manifestações das fls.
3638, 4492 e 4503, respectivamente.
4. Considero presentes os pressupostos processuais e as
condições da ação, não havendo irregularidades a sanar ou nulidades formais a declarar. Dou, assim, por saneado o processo.
5. Ante a inequívoca prova que me convence, de forma
segura, quanto à verossimilhança da alegação de ilegalidade das portarias do DER, que reduziram o valor do pedágio, sem restabelecer
adequadamente o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos
de concessão, e, por isso, ameaçam de dano irreparável todo o programa de concessões de rodovias, ANTECIPO OS EFEITOS DA
TUTELA REQUERIDA em amplitude maior do que aquela deferida na decisão das fls. 3273-3280, para restabelecer os valores da
tarifa de pedágio inicialmente fixados nos contratos de concessão,
acrescidos dos reajustes neles previstos. Todavia, para que a comunidade diretamente afetada não seja colhida de surpresa, a cobrança
dos valores restabelecidos deverá ser precedida de ampla divulgação,
com pelo menos 30 dias de antecedência.
Intimem-se.
Curitiba, 17 de dezembro de 1999.
Zuudi Sakakihara
Juiz Federal da 1ª Vara
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AÇÃO ORDINÁRIA
Autos no 98.0017501-6
Autor: Caminhos do Paraná S/A.
Concessionária Ecovia Caminho do Mar S/A
Empresa Concessionária de Rodovias do Norte S/A –
Econorte
Rodonorte – Concessionária de Rodovias Integradas S/A
Rodovia das Cataratas S/A
Rodovias Integradas do Paraná – Viapar
Réu: Departamento de Estradas de Rodagem do Estado do
Paraná – DER
Estado do Paraná
União Federal
Departamento Nacional de Estradas de Rodagem –
DNER
SENTENÇA
1. Relatório
Trata-se de ação ordinária ajuizada pelas concessionárias de trechos de rodovias federais neste Estado em face dos réus
acima nominados em que se discute, basicamente, a validade dos
atos administrativos que alteraram unilateralmente os contratos
de concessão.
Passo a relatar os fatos ocorridos a partir do r. despacho
saneador de fls. 5001 a 5018, o qual bem resumiu e decidiu as questões processuais então pendentes.
As partes foram regularmente intimadas (fls. 5021-v,
5023-v e 5154-v). O Estado do Paraná interpôs embargos de declaração (f1s. 5.024 a 5.026), aos quais foi negado provimento (fls.
5.087 a 5.088).
A Federação da Agricultura do Estado do Paraná – FAEP
– requereu seu ingresso nos autos como assistente, muito embora
sem especificar a quem pretende assistir às fls. 5.027 a 5.086.
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
Sobre tal pedido, o Estado do Paraná e a União manifestaram-se favoravelmente (fls. 5.124 e 5.139, respectivamente); a
parte autora e o DER manifestaram-se contrariamente (fls. 5.126
- 5.133 e 5.144 – 5.151, respectivamente).
Por fim, o Estado do Paraná e o DER pediram a dilação
do prazo para apresentação do laudo técnico deferido pelo r. despacho saneador.
No dia 23 de março de 2000, foi protocolada petição
subscrita pelos procuradores da parte autora, do Estado do Paraná
e do DER, informando sobre a realização de transação, bem como,
pedido de sua homologação judicial.
O DNER e a União afirmaram que não se opõem
à transação.
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação
As concessionárias-autoras firmaram com o DER e o
Estado do Paraná os Termos Aditivos ao Contrato de Concessão
de Obras Públicas, que representam verdadeira transação e pedem
homologação judicial dos referidos acordos.
Diante de transação sobre direitos disponíveis – e assim
o é o direito patrimonial decorrente de contratos de concessão –
só cabe ao juiz analisar os requisitos formais para que proceda
à homologação.
Cumpre, então, analisar à luz dos arts. 1.025 a 1.036 do
Código Civil a regularidade dos seguintes Termos Aditivos:
•TermoAditivono 14/2000 ao Contrato de Concessão de
Obras Públicas no 071/97, celebrado entre o Estado do Paraná, por
intermédio do DER/PR, à União, como interveniente, através do
Ministério dos Transportes, o DNER e a ECONORTE S/A;
•TermoAditivono 15/2000 ao Contrato de Concessão de
Obras Públicas no 072/97, celebrado entre o Estado do Paraná, por
intermédio do DER/PR, à União, como interveniente, através do
Ministério dos Transportes, o DNER e a Empresa Concessionárias
Rodovias Integradas do Paraná S/A;
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Decisões Judiciais
•TermoAditivono 16/2000 ao Contrato de Concessão
de Obras Públicas no 073/97, celebrado entre o Estado do Paraná,
por intermédio do DER/PR, à União, como interveniente, através
do Ministério dos Transportes, o DNER e a Empresa Rodovia das
Cataratas S/A;
•TermoAditivono 17/2000 ao Contrato de Concessão de
Obras Públicas no 074/97, celebrado entre o Estado do Paraná, por
intermédio do DER/PR, à União, como interveniente, através do
Ministério dos Transportes, o DNER e a Concessionária Caminhos
do Paraná S/A;
•TermoAditivono 18/2000 ao Contrato de Concessão de
Obras Públicas no 075/97, celebrado entre o Estado do Paraná, por
intermédio do DER/PR, à União, como interveniente, através do
Ministério dos Transportes, o DNER e a RODONORTE S/A e
•TermoAditivono 19/2000 ao Contrato de Concessão
de Obras Públicas no 076/97, celebrado entre o Estado do Paraná,
por intermédio do DER/PR, à União, como interveniente, através
do Ministério dos Transportes, o DNER e a Ecovia Caminhos do
Mar S/A.
Pela leitura dos Termos Aditivos, os quais seguem o
mesmo padrão, depreende-se que houve concessões mútuas dos
contratantes acerca do objeto do litígio.
A transação limitou-se à alteração do sistema tarifário
inicialmente vigente e à revisão das prioridades de investimentos
requeridos para cada um dos lotes de rodovia. Constam outras
cláusulas, como a que desobriga as concessionárias de promoverem desapropriações ou servidões administrativas, que retornam
à competência do DER, com a conseqüente supressão da cláusula
contratual que tratava da verba para custeio de desapropriação, no
contrato originário.
Trata-se, portanto, de alterações pontuais nos contratos
de concessão anteriormente firmados.
O que difere em relação a cada concessionária são os
anexos, justamente tendo em vista a particularidade de cada lote de
rodovias. Assim, o Anexo I de cada Termo Aditivo traz alterações
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
no Programa de Exploração de Rodovias (PER); o Anexo II altera
a estrutura tarifária e o Anexo III produz alterações nos quadros da
proposta comercial.
Não existem irregularidades na transação, uma vez que
as partes dispuseram somente acerca dos seus direitos, não prejudicando nem aproveitando senão os que nela intervieram.
As concessionárias, o Estado do Paraná e o DER renunciaram, ainda, a qualquer pretensão que pudessem deter em relação ao
DNER ou à União, que se mantiveram alheios à transação, fundadas
nos eventos descritos na Ata de Reunião do Programa de Concessão
de Rodovias – Anel de Integração de 15 de março de 2000.
O DNER, tendo tomado conhecimento da transação, a
ela não se opôs, conforme se lê da petição protocolada em 23 de
março de 2000. Assim também se manifestou a União, através do
seu procurador judicial.
As transações que se apresentam para homologação mostram-se, portanto, regulares.
Caberia a este juízo, ainda, decidir acerca do pedido de
assistência formulado pela Federação de Agricultura do Estado do
Paraná – FAEP. Tendo em vista que os eventuais assistidos transigiram, conforme a análise supra, o pedido resta prejudicado.
3. Dispositivo
Em virtude do exposto, homologo os termos aditivos
aos contratos de concessão acima analisados, bem como a transação veiculada por meio da petição de fls. 5169-5170, extinguindo o processo com julgamento de mérito, fulcro no art. 269,
III do CPC.
Cada uma das partes arcará com os honorários do seu
advogado.
Os encargos processuais serão suportados pela parte
autora.
Oficie-se aos relatores dos agravos de instrumento interpostos contra as decisões tomadas neste processo, dando-lhes ciência desta sentença.
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Decisões Judiciais
A sentença começa a produzir efeitos desde logo, haja vista
a desistência do prazo recursal feito pela parte autora, pelo DER e
pelo Estado do Paraná.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Curitiba, 24 de março de 2000
Silvia Regina Salau Brollo
Juíza Federal Substituta
1ª Vara Federal
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Superior Tribunal de Justiça
SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA Nº 174 - PR
(2005/0146360-5)
REQUERENTE : CAMINHOS DO PARANÁ S/A
ADVOGADO : CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO
FILHO E OUTROS
REQUERIDO : DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DO PARANÁ
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO
PARANÁ
DECISÃO
Vistos, etc.
Sustentando a ocorrência de grave lesão à ordem administrativa, à segurança e à economia públicas, a concessionária de serviços públicos de administração e exploração de rodovias Caminhos
do Paraná S/A, pede, aqui, a suspensão da decisão proferida pelo Juiz
de Direito da Comarca de Lapa/PR, que nos autos da Ação Civil
Pública que lhe move o Ministério Público do Paraná, determinou a
suspensão do percentual de 42,86% a ser aplicado sobre as tarifas de
pedágio cobradas na BR 476 – trecho Lapa-Araucária/PR.
Alega que após vencer a Concorrência Internacional nº
004/96, realizada pelo Governo do Estado do Paraná para execução de obras e serviços de recuperação, melhoramento, manutenção,
conservação, operação e exploração de trechos de rodovias, celebrou,
em 14/11/1997 (fl.165) Contrato de Concessão nº 074/97, sendo-lhe
adjudicado o Lote 4, compreendendo 305 kms em trechos distribuídos nas rodovias BR 277 e BR 373.
Posteriormente, diz, requereu e lhe foi deferida, mediante
termo aditivo, a inclusão de novos trechos, como forma de recompor
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, abalado em razão
da inclusão de encargos oriundos do ISSQN – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, bem como da alteração da alíquota do
COFINS e do PIS, não previstos quando da assinatura do contrato.
Os Termos Aditivos 086/2002 e 074/97 juntos agregaram
aos encargos da concessionária 83,3 kms, nas rodovias BR 476 e PR
427, com o que, garante, foi restabelecido o equilíbrio econômicofinanceiro do contrato de concessão.
Em Dezembro de 2003, continua, para livrar-se da
“guerra” travada entre o Executivo e as empresas de pedágio, concordou em assinar, juntamente com o Estado do Paraná e o DER/PR,
um “Contrato Preliminar” com vistas à redução da tarifa de pedágio
em aproximadamente 30%, restando prevista, pelo mesmo pacto,
a constituição de comissão paritária para readequação da equação
econômico-financeira contratual.
Em que pese, contudo, tenha o DER/PR, nesta oportunidade, se obrigado, em contrapartida à redução tarifária acordada,
a realizar, a seu encargo, as obras e serviços de restauração, melhoria e ampliação da capacidade dos trechos em comento, nada fez.
Sequer foi chamada para assinar a versão consolidada do contrato
de concessão contemplando o acordo firmado entre as partes, noticia a requerente.
Por isso a empresa, após infrutíferas notificações enviadas
ao DER/PR e ao Governo do Estado do Paraná, para que dessem
cumprimento ao pacto ou restaurassem os termos do contrato original, ajuizou ação ordinária, na qual deferida antecipação de tutela,
determinando o retomada, pelas partes, da Execução do Contrato
de Concessão nos termos em que estava sendo desenvolvida no
momento anterior ao acerto do “Contrato Preliminar”.
Entendeu o juiz da causa que “areduçãodatarifabásica
de pedágio de 30%, sem que tenha havido a re-adequação do Contrato Originário conforme previsto no Acordo Preliminar, provoca o
desequilíbrioeconômico-financeirodocontrato,oquecausaprejuízos
àautora”(fl.243).
Essa decisão acabou, assim, por restabelecer a aplicação do
aumento de 42,86% na tarifa, ficando a cargo da autora a realização
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Decisões Judiciais
das obras originalmente previstas como de sua responsabilidade e
que estavam pendentes de execução até então.
Deferido, em ação civil pública proposta pelo Ministério Público daquele Estado, provimento liminar para suspender a
incidência desse percentual sobre as tarifas de pedágio, formulou,
a Concessionária, Pedido de Suspensão, negado pelo Presidente do
Tribunal de Justiça do Paraná, ao argumento de que ausentes os
requisitos legais autorizadores da medida.
Contra essa decisão insurgiu-se a empresa, em agravo
regimental, pendente de apreciação na Corte local.
Sobrevém, por isso, novo pedido de suspensão, no qual
a Concessionária sustenta que a “execuçãodaliminarproferidapelo
JuizdaDireitodaComarcadeLapa-PR,mantidapeloPresidentedo
TJPR,portanto,vulneraaordemadministrativa,instalandoinsegurançajurídica,colocandoemriscoavidadosusuários,alémdepropiciarestúpidasangriaderecursospúblicos” (fls.14/15).
Destaca que por não ter honrado o acordo preliminar, o
DER/PR deixou de realizar obras e serviços de restauração, melhoria
e ampliação do trecho rodoviário em comento, estando as estradas
a reclamar reparos urgentes, pelo que necessita a Concessionária
recompor suas receitas para que possa executá-los. Diz mais, que
conforme estudo técnico do Ministério dos Transportes “o Erário
deixarádeeconomizaranotávelquantiadeUS1.767.694,00” (fl. 14),
inviabilizando, também, a criação de novos postos de trabalho.
Relatei.
Decido.
Já firmado nesta Corte e no STF o entendimento de que
não cabe examinar, no pedido de suspensão de liminar, as questões
de fundo envolvidas na lide, devendo a análise cingir-se, somente,
aos aspectos concernentes à potencialidade lesiva do ato decisório,
em face das premissas estabelecidas na Lei 8.437/92 (RTJ 143/23).
Essa orientação, contudo, não deixa de admitir um exercício mínimo de deliberação do mérito, haja vista, cuidar-se de contra-cautela, vinculada aos pressupostos da plausibilidade jurídica e
do perigo da demora, que devem estar presentes para a concessão
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
das liminares. A propósito, AGRSS 846/DF, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence (DJ 8.11.96).
Nessa linha, quanto ao potencial lesivo da liminar em
comento, tenho por certo que na oportunidade da celebração do
contrato de concessão, conforme autorizado pela legislação pertinente, inseriram-se cláusulas prevendo mecanismos de manutenção
de seu equilíbrio econômico-financeiro, como o reajuste tarifário.
Esses mecanismos têm origem na política pública traçada para o
setor e são vitais para que a prestação do serviço público possa se
dar em conformidade com os princípios constitucionais e legais
incidentes, e que não só permitam, mas viabilizem a celebração de
tais contratos entre o Poder Público e o particular que se disponha
a negociar com a Administração.
Assim já decidi em hipótese semelhante (SL 57-DF): o
descumprimento de cláusulas contratuais, impedindo a correção do
valor real da tarifa, nos termos em que previsto no contato de concessão, causa sérios prejuízos financeiros à empresa concessionária,
podendo afetar gravemente a qualidade dos serviços prestados e sua
manutenção, implicando ausência de investimentos no setor, prejudicando os usuários, causando reflexos negativos na economia pública,
porquanto inspira insegurança e riscos na contratação com a Administração Pública, afastando os investidores, resultando graves conseqüências também para o interesse público como um todo, além, é
claro, de repercutir negativamente no chamado “Risco Brasil”.
Entendo que o interesse público não se resume à contenção de tarifas, sendo evidenciado, também, na continuidade do
serviço de qualidade, na manutenção do contrato de concessão do
serviço público, de modo a viabilizar investimentos no setor. Assim,
o descumprimento do que foi legalmente pactuado, com a chancela
do Judiciário, pode, no caso, afetar o seu equilíbrio econômicofinanceiro, até porque não há como olvidar a real inflação do País a
atingir a quem contrata a longo prazo.
No caso concreto, não me passou despercebido o fato
de que a recomposição tarifária de 42,86% foi autorizada por
anterior decisão judicial nos autos da Ação Ordinária – Proc.
2005.70.00.014409 (fls.242/349). Ainda, que na ação em que pro194
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Decisões Judiciais
ferida essa decisão, objetivando impedir o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, a Concessionária insurgiu-se contra a inércia da administração em formalizar o Acordo
Preliminar – pelo qual a Concessionária concordara em reduzir
a tarifa em 30%, desde que a administração realizasse as obras e
serviços de restauração, melhoria e ampliação das estradas.
Diz aquela decisão: “areduçãodatarifabásicadepedágio
de30%,semquetenhahavidoare-adequaçãodoContratoOriginário
conformeprevistonoAcordoPreliminar,provocaodesequilíbrioeconômico-financeirodocontrato,oquecausaprejuízosàautora”(Fl.243).
Desta forma, entendo que a decisão impugnada, ao suspender a incidência do percentual de 42,86% sobre as tarifas cobradas pela requerente, impede a restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, comprometendo sua
manutenção e a continuidade do serviço público concedido, inviabilizando, ainda, a realização das obras necessárias à manutenção
das rodovias exploradas pela requerente, circunstâncias que põem
em risco não só a economia pública, mas, também, a segurança dos
que por ali trafegam.
Por isso, reconheço a alegada afronta ao interesse público e
presentes os requisitos autorizadores da excepcional medida de contracautela, pelo que defiro, parcialmente, o pedido, suspendendo os efeitos da liminar concedida nos autos da Ação Civil Pública nº 702/2004,
até o julgamento do mérito perante o Tribunal de origem.
Expeça-se comunicação.
Intimem-se.
Publique-se.
Brasília (DF), 13 de setembro de 2005
MINISTRO EDSON VIDIGAL
PRESIDENTE
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Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.077.298 - RS (2008/0164119-0)
RELATORA : MINISTRA DENISE ARRUDA
RECORRENTE : EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE RODOVIAS DO SUL S/A ECOSUL
ADVOGADO : ALEXANDRE FERNANDES GASTAL E
OUTRO(S)
RECORRENTE : AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES - ANTT
PROCURADOR : PATRíCIA VARGAS LOPES E OUTRO(S)
RECORRIDO : EDGAR HEINEMANN E OUTRO
ADVOGADO : RONALDO RESENDE DE OLIVEIRA E
OUTRO(S)
INTERES. : ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROCURADOR : JOSÉ ELINALDO RODRIGUES DE SOUSA
E OUTRO(S)
INTERES. : UNIÃO
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO
ESPECIAL. ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC.
NÃO-OCORRÊNCIA. COBRANÇA DE PEDÁGIO. TARIFA
FIXADA, DISTINTAMENTE, PARA AS DIVERSAS CATEGORIAS DE VEÍCULOS, COM BASE NO NÚMERO DE
EIXOS. INCIDÊNCIA DA TARIFA SOBRE O EIXO SUSPENSO, QUE NÃO TOCA A MALHA VIÁRIA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE.
1. Não viola o art. 535 do CPC, tampouco nega a prestação
jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido,
adota, entretanto, fundamentação suficiente para decidir de
modo integral a controvérsia.
2. A controvérsia estabelecida nos presentes autos consiste em
saber se é possível ou não efetuar a cobrança da tarifa de pedágio tomando por base o número de eixos do veículo de transporte, ainda que a rodagem correspondente não esteja em contato com a malha viária.
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
3. A Lei 10.233/2001, ao criar a Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT - e definir as suas atribuições, incumbiu-a de “publicar os editais, julgar as licitações e celebrar os
contratos de concessão de rodovias federais a serem exploradas
e administradas por terceiros; fiscalizar diretamente, com o
apoio de suas unidades regionais, ou por meio de convênios de
cooperação, o cumprimento das condições de outorga de autorização e das cláusulas contratuais de permissão para prestação de serviços ou de concessão para exploração da infra-estrutura “. Estabeleceu, ainda, que, “na elaboração dos editais de
licitação, (...) a ANTT cuidará de compatibilizar a tarifa do
pedágio com as vantagens econômicas e o conforto de viagem,
transferidos aos usuários em decorrência da aplicação dos
recursos de sua arrecadação no aperfeiçoamento da via em que
é cobrado”.
4. No intuito de se reduzir custos no transporte rodoviário de
cargas, foram introduzidas novas tecnologias capazes de proporcionar economia de pneu e combustível, entre as quais está a
possibilidade de levantamento de alguns dos eixos do veículo. O
acionamento do sistema, que antes era feito de modo mecânico
e hoje em dia se efetiva com um simples toque de botão (suspensor pneumático), normalmente é feito para evitar o desgaste
dos pneus nas hipóteses em que veículo transportador está com
pouca ou nenhuma carga. A diminuição do atrito com o asfalto
implica, em consequência, economia de combustível.
5. É correto afirmar que um dos principais custos suportados
pela empresa que administra e explora as rodovias em regime
de concessão decorre da necessidade de recuperação e manutenção da malha viária, que sofre maior desgaste quanto maior
for a pressão exercida sobre ela. Fala-se em pressão na medida
em que a questão não se resume ao peso da carga, mas à relação
peso versus área.
6. Basta imaginar que um caminhão de quinze toneladas com
os cinco eixos tocando o asfalto produzirá menos desgaste que
outro, nas mesmas condições, que estiver com um dos seus eixos
suspenso, ainda que observadas as normas administrativas que
definem os limites de peso — de acordo com o art. 99 do Código
de Trânsito Brasileiro, “somente poderá transitar pelas vias terrestres o veículo cujo peso e dimensões atenderem aos limites
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Decisões Judiciais
estabelecidos pelo CONTRAN “ —, normalmente fixados com
base na quantidade de eixos do veículo.
7. Nessa hipótese, o caminhão com um dos eixos levantados causará maior desgaste da via e, a se considerar somente esse fator,
deveria pagar uma tarifa mais alta, situação, no entanto, que
não ocorre na forma como o pedágio é cobrado atualmente.
8. Por outro ângulo, é fácil perceber que um caminhão de cinco
eixos pagará uma tarifa de pedágio maior que um de três, não
obstante a possibilidade bastante plausível de que os dois estejam exercendo a mesma pressão sobre a malha viária, o que se
obtém dividindo-se o seu peso total pela quantidade de eixos,
ou seja, ainda que estejam provocando o mesmo desgaste, a
tarifação, como é feita atualmente, será desigual.
9. Veja-se que, a depender do ângulo sob o qual se analisa a
situação, a modificação dos critérios definidos no contrato de
concessão poderá trazer vantagens ou desvantagens aos usuários
das vias sob regime de concessão. A solução apresentada pelas
instâncias ordinárias, de desconsiderar o eixo suspenso na fixação do valor do pedágio, a pretexto de se criar uma situação isonômica, acaba contrariando o princípio da isonomia, na medida
em que somente o veículo que dispõe da tecnologia de suspensão
de eixos, e que no momento da utilização desse sistema, como
dito anteriormente, estará provocando maior desgaste à via, será
beneficiado com a redução do valor do pedágio.
10. Assim, considerando que a legislação que trata da matéria
não impede a fixação da tarifa com base no número de eixos dos
veículos e que essa parece ser a forma mais objetiva de fixá-la,
deve prevalecer a sistemática prevista no contrato de concessão,
sobretudo porque o art. 9º da Lei 8.987/95 dispõe que “a tarifa
do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta
vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato “.
11. Ademais, o afastamento da cobrança de pedágio em relação
ao eixo suspenso, como bem ressaltaram os recorrentes, traz
inúmeras inconveniências, valendo destacar as seguintes: (a)
a segurança do veículo fica prejudicada, pois, com um menor
número de pneus em contato com o chão e a consequente diminuição do atrito, menor será a sua estabilidade e maior será
o espaço necessário para frenagem; (b) a criação de um critério diverso do atualmente utilizado poderá acarretar demora
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
na cobrança e, por conseguinte, afunilamento do tráfego nos
postos de pedágio; (c) o levantamento do eixo pode ser feito
com o simples toque de um botão, um pouco antes da passagem pela praça de pedágio, o que estimula o cometimento
de fraudes.
12. “A utilização ou não de todos os eixos do veículo quando da
passagem pela praça de pedágio é decisão que cabe ao usuário
do veículo, não sendo admissível que, em decorrência de decisão
unilateral sua, modifique-se o critério de tarifação estabelecidos
pelo legislador e pelo administrador, à míngua de previsão legal
nesse sentido” (REsp 1.103.168/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJe de 27.4.2009).
13. Recursos especiais providos, para julgar improcedente o
pedido formulado na inicial, com a consequente inversão dos
ônus sucumbenciais.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os
Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça: A
Turma, por unanimidade, deu provimento aos recursos especiais,
nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros
Benedito Gonçalves, Luiz Fux e Teori Albino Zavascki votaram com
a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro
Francisco Falcão. Assistiu ao julgamento o Dr. Guilherme Chaves
Gastal, pela recorrente Empresa Concessionária de Rodovias do Sul
S/A - ECOSUL.
Brasília (DF), 28 de abril de 2009 (Data do Julgamento).
MINISTRA DENISE ARRUDA
Relatora
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Decisões Judiciais
Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.077.298 - RS (2008/0164119-0)
RELATORA : MINISTRA DENISE ARRUDA
RECORRENTE : EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE RODOVIAS DO SUL S/A
ECOSUL
ADVOGADO : ALEXANDRE FERNANDES GASTAL E
OUTRO(S)
RECORRENTE : AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES - ANTT
PROCURADOR : PATRíCIA VARGAS LOPES E OUTRO(S)
RECORRIDO : EDGAR HEINEMANN E OUTRO
ADVOGADO : RONALDO RESENDE DE OLIVEIRA E
OUTRO(S)
INTERES. : ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROCURADOR : JOSÉ ELINALDO RODRIGUES DE SOUSA
E OUTRO(S)
INTERES. : UNIÃO
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA DENISE ARRUDA
(Relatora):
Trazem os autos dois recursos especiais, ambos interpostos com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição Federal,
em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região cuja
ementa é a seguinte:
“ADMINISTRATIVO.
PEDÁGIO.
DISPENSA
DA
COBRANÇA INCIDENTE SOBRE OS EIXOS DE VEÍCULOS PARA TRANSPORTE DE CARGA, SEMPRE QUE
ESTESNÃOESTIVEREMEMCONTATOCOMOAMALHA
ASFÁLTICA.AÇÃOORDINÁRIA.PROCEDÊNCIA.
Aindaqueacobrançadatarifatomeporbalizaonúmerodeeixos
dos veículos, é notório que estes se fazem presente quando existir
maiormassaasertransportada.
Restandocomprovadoodesnecessáriousodosreferidoseixos,desnecessáriatambémsefazaarrecadaçãodopedágiopormaiorvalor.”
(fl.377)
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados.
No primeiro recurso (fls. 410-427), EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE RODOVIAS DO SUL S/A - ECOSUL aponta violação dos arts. 4º, do Decreto-Lei 791/69, 9º, §§ 2º a 4º,
10 e 13, da Lei 8.987/95, 35, da Lei 9.074/95, e 6º, 57, § 1º, 58, §§
5º e 6º, e 65 da Lei 8.666/93. Afirma, em síntese, que: (a) a legislação que regula a matéria estabelece que a cobrança de pedágio nas
rodovias deve ocorrer de acordo com a categoria de cada veículo; (b)
com base em tal premissa, o contrato de concessão definiu como
critério de cobrança do pedágio o número de eixos que o veículo
possui, e não os que ele efetivamente utiliza; (c) quanto melhor for
distribuído o peso, menor será o desgaste das rodovias; (d) o art. 13
da Lei 8.987/95 possibilita a cobrança da tarifa de pedágio de modo
diferenciado, de acordo com as características e os custos de cada
segmento de usuários; (e) ao impor um critério de diferenciação dos
veículos diferente daquele previsto no contrato de concessão, o acórdão recorrido viola as regras relativas ao procedimento licitatório,
além de implicar verdadeira ingerência do Poder Judiciário sobre a
discricionariedade da Administração; (f) a orientação adotada pela
Corte de origem estimula a fraude e contribui para a perda de fluidez do tráfego na praça de pedágio.
No segundo recurso (fls. 429-437), a AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES - ANTT - sustenta
contrariedade aos arts. 475, I, e 535, II, do CPC, e 4º e 5º do DecretoLei 791/69. Alega, em suma, que: (a) não foram supridas as omissões
indicadas nos embargos de declaração opostos na origem; (b) o fator
principal para a fixação das tarifas de pedágio é o desgaste que o veículo causa à rodovia; (c) o afastamento da cobrança do valor referente
ao eixo suspenso induz à quebra do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato, a ensejar a imediata revisão da estrutura tarifária.
Apresentadas as contrarrazões e admitidos os recursos,
subiram os autos.
É o relatório.
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Decisões Judiciais
Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.077.298 - RS (2008/0164119-0)
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA DENISE ARRUDA
(Relatora):
Assiste razão aos recorrentes.
Salienta-se, inicialmente, que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que não viola o
art. 535 do CPC, tampouco nega a prestação jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos
argumentos trazidos pelo vencido, adota, entretanto, fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia, conforme ocorreu no acórdão em exame, não se podendo cogitar de
sua nulidade. Nesse sentido, os seguintes julgados: AgRg no Ag
571.533/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de
21.6.2004; AgRg no Ag 552.513/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo
Gallotti, DJ de 17.5.2004; EDcl no AgRg no REsp 504.348/RS, 2ª
Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 8.3.2004; REsp 469.334/
SP, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 5.5.2003;
AgRg no Ag 420.383/PR, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ
de 29.4.2002.
Com efeito, o aresto atacado abordou todas as questões
necessárias à integral solução da lide, concluindo, no entanto, pela
impossibilidade de se considerar o eixo suspenso, que não encosta
na rodovia, no cálculo do valor devido a título de pedágio.
Não se deve confundir omissão com decisão contrária aos
interesses da parte.
Quanto ao mais, impende ressaltar que a possibilidade da
cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder
Público está prevista no art. 150, V, da CF/88.
Em nível infraconstitucional, a matéria foi inicialmente
tratada pelo Decreto-Lei 791/69, que assim dispõe:
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
“Art. 1º Fica o Govêrno Federal autorizado a, nos têrmos do
Artigo20,incisoIIdaConstituição,instituircobrançadepedágio,
queserádevidopeloscondutoresdeveículosautomotoresqueutilizemviaspúblicas,integrantesdosistemarodoviáriofederal.
(...)
Art.4ºAstarifasdepedágioserãofixadas,distintamente,paraas
diversascategoriasdeveículoseespéciesdesemoventes.
Art.5ºAbasedecálculodastarifasdepedágiolevaráemconta,
obrigatoriamente,osseguintesfatôres:
I-Custodeconstruçãodaobraemelhoramentosexistentesoua
introduzirparacomodidadeesegurançadosusuários;
II-Custosdosserviçosesôbreserviçosoperacionais,administrativosefiscais.
Parágrafo único. Na fixação das tarifas de pedágio para
determinada via ou obra rodoviária federal, serão considerados, igualmente, os custos dos transportes rodoviários
naregião.”
Já na vigência da Constituição Federal da 1988, a Lei
7.712/88 (posteriormente revogada pela Lei 8.075/90), no intuito
de disciplinar a cobrança de pedágio nas rodovias federais, criou o
chamado “Selo Pedágio”. Na ocasião, ficou estabelecido o número
de eixos do veículo como um dos critérios para a fixação do valor
do pedágio.
Confira-se:
“Art.3ºOmontantecalculadoparaserarrecadadocomopedágionãopoderáultrapassaraonecessárioparaconservarasrodovias
federais,tendoemvistaodesgastequeosveículosautomotores,utilizadosnotráfego,nelasprovocam,bemcomoaadequaçãodessas
rodoviasàsnecessidadesdesegurançadotrânsito.
Parágrafoúnico.Ficaaprovadaatabelaanexadevaloresdo
pedágio,paraoexercíciode1989,queseráanualmenteajustada
naleidediretrizesorçamentárias.”
“Categoria/Descrição
Nº de eixos
0 - 7(*)
> 7(*)
1/Motocicleta
2
0,50
0,17
2/Automóvel,
Caminhonete, Furgão
2
1,00
0,33
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Decisões Judiciais
“Categoria/Descrição
Nº de eixos
0 - 7(*)
> 7(*)
3/Ônibus e
Caminhão Leve
2
2,00
0,67
4/Ônibus e
Caminhão Médio
3
5,00
1,66
5/Ônibus e Caminhão
Pesado Semi-Reboque
4
6,00
2,00
6/Ônibus e Caminhão
Pesado Semi-Reboque
5 ou mais
8,00
2,66
7/Trailer
1
1,00
0,33
8/Trailer
2
3,00
1,00
9/Trailer
3
4,00
1,33”
(*) Ano de fabricação
Mais recentemente, a Lei 9.277/96 autorizou a União,
por intermédio do Ministério dos Transportes, “a delegar, pelo
prazodeatévinteecincoanos,prorrogáveisporatémaisvinteecinco,
aosmunicípios,estadosdaFederaçãoouaoDistritoFederal,ouaconsórcioentreeles,aadministraçãoderodoviaseexploraçãodetrechos
derodovias,ouobrasrodoviáriasfederais“.
Destaca-se, por fim, que a Lei 10.233/2001, ao criar a
Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT - e definir as
suas atribuições, dispôs o seguinte:
“Art.26.CabeàANTT,comoatribuiçõesespecíficaspertinentes
aoTransporteRodoviário:
(...)
VI–publicaroseditais,julgaraslicitaçõesecelebraroscontratos
deconcessãoderodoviasfederaisaseremexploradaseadministradas
porterceiros;
VII–fiscalizardiretamente,comoapoiodesuasunidadesregionais, ou por meio de convênios de cooperação, o cumprimento das
condiçõesdeoutorgadeautorizaçãoedascláusulascontratuaisde
permissãoparaprestaçãodeserviçosoudeconcessãoparaexploração
dainfra-estrutura.
(...)
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
§2oNaelaboraçãodoseditaisdelicitação,paraocumprimento
dodispostonoincisoVIdocaput,aANTTcuidarádecompatibilizaratarifadopedágiocomasvantagenseconômicaseoconforto
de viagem, transferidos aos usuários em decorrência da aplicação
dosrecursosdesuaarrecadaçãonoaperfeiçoamentodaviaemque
écobrado.”
Diante desse panorama legislativo, impõe-se analisar
a controvérsia estabelecida nos presentes autos, que está em saber
se é possível ou não efetuar a cobrança da tarifa de pedágio
tomando por base o número de eixos do veículo de transporte,
ainda que a rodagem correspondente não esteja em contato com
a malha viária.
No intuito de se reduzir custos no transporte rodoviário
de cargas, foram introduzidas novas tecnologias capazes de proporcionar economia de pneu e combustível, entre as quais está a
possibilidade de levantamento de alguns dos eixos do veículo. O
acionamento do sistema, que antes era feito de modo mecânico e
hoje em dia se efetiva com um simples toque de botão (suspensor pneumático), normalmente é feito para evitar o desgaste dos
pneus nas hipóteses em que veículo transportador está com pouca
ou nenhuma carga. A diminuição do atrito com o asfalto implica,
em consequência, economia de combustível.
É correto afirmar que um dos principais custos suportados pela empresa que administra e explora as rodovias em regime
de concessão decorre da necessidade de recuperação e manutenção da malha viária, que sofre maior desgaste quanto maior for
a pressão exercida sobre ela. Fala-se em pressão na medida em
que a questão não se resume ao peso da carga, mas à relação peso
versus área.
Basta imaginar que um caminhão de quinze toneladas
com os cinco eixos tocando o asfalto produzirá menos desgaste
que outro, nas mesmas condições, que estiver com um dos seus
eixos suspenso, ainda que observadas as normas administrativas
que definem os limites de peso — de acordo com o art. 99 do
Código de Trânsito Brasileiro, “somentepoderátransitarpelasvias
terrestresoveículocujopesoedimensõesatenderemaoslimitesesta206
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Decisões Judiciais
belecidospeloCONTRAN” —, normalmente fixados com base na
quantidade de eixos do veículo.
Nessa hipótese, o caminhão com um dos eixos levantados causará maior desgaste da via e, a se considerar somente esse
fator, deveria pagar uma tarifa mais alta, situação, no entanto, que
não ocorre na forma como o pedágio é cobrado atualmente.
Por outro ângulo, é fácil perceber que um caminhão de
cinco eixos pagará uma tarifa de pedágio maior que um de três,
não obstante a possibilidade bastante plausível de que os dois estejam exercendo a mesma pressão sobre a malha viária, o que se
obtém dividindo-se o seu peso total pela quantidade de eixos, ou
seja, ainda que estejam provocando o mesmo desgaste, a tarifação,
como é feita atualmente, será desigual.
Veja-se que, a depender do ângulo sob o qual se analisa
a situação, a modificação dos critérios definidos no contrato de
concessão poderá trazer vantagens ou desvantagens aos usuários
das vias sob regime de concessão. A solução apresentada pelas instâncias ordinárias, de desconsiderar o eixo suspenso na fixação
do valor do pedágio, a pretexto de se criar uma situação isonômica, acaba contrariando o princípio da isonomia, na medida em
que somente o veículo que dispõe da tecnologia de suspensão de
eixos, e que no momento da utilização desse sistema, como dito
anteriormente, estará provocando maior desgaste à via, será beneficiado com a redução do valor do pedágio.
Assim, considerando que a legislação que trata da matéria não impede a fixação da tarifa com base no número de eixos
dos veículos e que essa parece ser a forma mais objetiva de fixá-la,
deve prevalecer a sistemática prevista no contrato de concessão,
sobretudo porque o art. 9º da Lei 8.987/95 dispõe que “atarifa
doserviçopúblicoconcedidoseráfixadapelopreçodapropostavencedoradalicitaçãoepreservadapelasregrasderevisãoprevistasnesta
Lei,noeditalenocontrato“.
Ademais, o afastamento da cobrança de pedágio em
relação ao eixo suspenso, como bem ressaltaram os recorrentes,
traz inúmeras inconveniências, valendo destacar as seguintes:
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(a) a segurança do veículo fica prejudicada, pois, com um menor
número de pneus em contato com o chão e a consequente diminuição do atrito, menor será a sua estabilidade e maior será o espaço
necessário para frenagem; (b) a criação de um critério diverso do
atualmente utilizado poderá acarretar demora na cobrança e, por
conseguinte, afunilamento do tráfego nos postos de pedágio; (c)
o levantamento do eixo pode ser feito com o simples toque de um
botão, um pouco antes da passagem pela praça de pedágio, o que
estimula o cometimento de fraudes.
Confira-se, por fim, o seguinte precedente desta Corte a
respeito da matéria:
“ADMINISTRATIVO.PEDÁGIO.LEGITIMIDADEPASSIVA
DAUNIÃO.
REDUÇÃO DA TARIFA QUANDO SE TRATAR DE VEÍCULOVAZIOCOMUMOUMAISEIXOSSEMCONTATO
COMAMALHAASFÁLTICA.IMPOSSIBILIDADE.CRITÉRIODIFERENCIADORDETARIFASESTABELECIDOPELO
LEGISLADOREQUENÃOLEVAEMCONTA,OBJETIVAMENTE,QUANTIDADEDECARGATRANSPORTADAOU
NÚMERODEEIXOSQUETOCAMOSOLO.
I-Sentençadeprimeirograueacórdãoqueafastaramaspreliminares de ilegitimidade passiva e, no mérito, com base no Princípiodarazoabilidade,entenderamquenãosedevelevaremconta,
paraefeitosdeenquadramentotarifário,oeixodoveículoquando
esteestiversuspenso,semcontatocomosolo,emrazãodepoucaou
nenhumacargatransportada.
Omissis.
II-Oart.4ºdoDecreto-Lein.º791/69estabelecequeastarifasde
pedágioincidemdeacordocomacategoriadoveículo,nãohavendo
critério legal que permita diferenciação unicamente com base no
númerodeeixos.
III-Acircunstânciadeumoumaiseixosdoveículonãoestarem
emcontatocomosolonãoimplicanasuamudançadecategoria
paraefeitosdeenquadramentotarifário.
IV- A utilização ou não de todos os eixos do veículo quando da
passagem pela praça de pedágio é decisão que cabe ao usuário
do veículo, não sendo admissível que, em decorrência de decisão
unilateral sua, modifique-se o critério de tarifação estabelecidos
pelo legislador e pelo administrador, à míngua de previsão legal
nessesentido.
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Decisões Judiciais
VI-RecursosespeciaisdaUniãoedaConcessionáriadeRodovias
doSulS/A-ECOSULprovidos.”(REsp1.103.168/RS,1ªTurma,
Rel.Min.FranciscoFalcão,DJede27.4.2009)
À vista do exposto, os recursos especiais devem ser providos, para julgar improcedente o pedido formulado na inicial, com a
consequente inversão dos ônus sucumbenciais.
É o voto.
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Superior Tribunal de Justiça
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
PRIMEIRA TURMA
Número Registro: 2008/0164119-0 REsp 1077298 / RS
Números Origem: 200604000260905 200671100004988
PAUTA: 28/04/2009
JULGADO: 28/04/2009
Relatora
Exma. Sra. Ministra DENISE ARRUDA
Presidente da Sessão
Exma. Sra. Ministra DENISE ARRUDA
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. RAQUEL ELIAS FERREIRA DODGE
Secretária
Bela. MARIA DO SOCORRO MELO
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE RODOVIAS DO SUL S/A ECOSUL
ADVOGADO : ALEXANDRE FERNANDES GASTAL E
OUTRO(S)
RECORRENTE : AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES - ANTT
PROCURADOR : PATRíCIA VARGAS LOPES E OUTRO(S)
RECORRIDO : EDGAR HEINEMANN E OUTRO
ADVOGADO : RONALDO RESENDE DE OLIVEIRA E
OUTRO(S)
INTERES. : ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROCURADOR : JOSÉ ELINALDO RODRIGUES DE SOUSA
E OUTRO(S)
INTERES. : UNIÃO
ASSUNTO: Ação de Cobrança – Pedágio
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Decisões Judiciais
SUSTENTAÇÃO ORAL
Assistiu ao julgamento o Dr. GUILHERME CHAVES GASTAL,
pela parte RECORRENTE:
EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE RODOVIAS DO SUL S/A
ECOSUL.
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia PRIMEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a
seguinte decisão:
A Turma, por unanimidade, deu provimento aos recursos
especiais, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.
Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Luiz Fux e Teori
Albino Zavascki votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco
Falcão.
Brasília, 28 de abril de 2009
MARIA DO SOCORRO MELO
Secretária
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Decisão do
Tribunal de Contas da União
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ACÓRDÃO 393/2002 – PLENÁRIO
GRUPO I – CLASSE V – PLENÁRIO
TC 014.811/2000-0 (com 11 anexos)
Natureza: Representação
ENTIDADES: Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT e concessionárias de rodovias federais
INTERESSADO: Tribunal de Contas da União
EMENTA: Representação. Estudo sobre a viabilidade
técnica e jurídica do reequilíbrio econômico-financeiro de contratos
de concessões rodoviárias, em virtude da obtenção de receitas alternativas, tais como a exploração de redes de fibras óticas. Determinações à ANTT. Multa ao responsável. Ciência aos interessados.
VOTO
Conheço da comunicação ao Plenário como representação, com fundamento nos arts. 68 e 69 da Resolução TCU
136/2000.
A obtenção de receitas acessórias ou alternativas, por
parte das concessionárias, tais como as provenientes de exploração
de redes de fibra ótica ao longo das rodovias, deve ser garantida e
revertida em prol da modicidade das tarifas cobradas dos usuários.
Tal preocupação foi também compartilhada pelo legislador ordinário, que estipulou, expressamente, no art. 11 da Lei
8.987/95, a seguinte regra:
“Art.11.Noatendimentoàspeculiaridadesdecadaserviço
público,poderáopoderconcedenteprever,emfavordaconcessionária,
noeditaldelicitação,apossibilidadedeoutrasfontesprovenientesde
receitasalternativas,complementares,acessóriasoudeprojetosassocia-
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dos,comousemexclusividade,comvistasafavoreceramodicidadedas
tarifas,observadoodispostonoart.17destalei.
Parágrafo único. As fontes de receita previstas neste artigo
serãoobrigatoriamenteconsideradasparaaaferiçãodoinicialequilíbrioeconômico-financeirodocontrato.”
Portanto, para o pleno atendimento da representação, é
necessário verificar dois pontos:
- se os contratos de concessão assinados com as concessionárias seguem o estabelecido no art. 11 da Lei 8.987/95; e
- se o DNER (agora ANTT) está aplicando corretamente
a regra, incluindo as receitas alternativas ou complementares no
fluxo de caixa, para fins de redução das tarifas.
Verifico que os contratos firmados com a Novadutra,
Concer e CRT prevêem expressamente que as receitas alternativas,
complementares ou acessórias serão computadas com vistas a favorecer a modicidade das tarifas, nos termos preconizados pela Lei
8.987/95, contendo cláusulas uniformes de seguinte teor:
“SeçãoV–DasFontesdeReceitas
75. A principal fonte de receita da CONCESSIONÁRIA
advirádorecebimentodaTARIFAdepedágio;todavia,emrazãoda
peculiaridadedoserviçoaserprestado,éfacultadoàCONCESSIONÁRIAexploraroutrasfontesdereceitas,sejamelascomplementares,
acessóriasoualternativasàfontedereceitaprincipalou,ainda,explorarfontesdereceitasprovenientesdeprojetosassociados.
76.Aexploraçãodessasfontesdereceitasdependerá,emcada
caso,dapréviaaprovação,peloDNER,deprojetodeviabilidadejurídica,técnicaeeconômico-financeiraaserapresentadopelaCONCESSIONÁRIA, que assegure a compatibilidade da exploração comercial
pretendida com as normas legais e regulamentares aplicáveis, com as
cláusulas do correspondente CONTRATO de concessão, com o PROGRAMADEEXPLORAÇÃODARODOVIA,comasmetaseobjetivos da concessão e com a prestação de serviço adequado, nos termos
definidosnositens29a31,bemcomoprocedaaanálisedoimpactoda
receitaesperadasobreasdemaisreceitasdaCONCESSIONÁRIA.
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77.Acadaperíodode12(doze)meses,porocasiãodadata
deaniversáriodoCONTRATOdeconcessão,oDNEReaCONCESSIONÁRIAprocederãoaanálisedoimpactodareceitaobtidanarelaçãoqueaspartespactuaraminicialmente,revendoovalordaTARIFA
BÁSICADEPEDÁGIO,demodoafavorecerasuamodicidade.”
Assim, a situação jurídica das concessionárias Novadutra, Concer e CRT está conforme a legislação pertinente, no sentido de que as receitas porventura auferidas devem ser revertidas
para a modicidade das tarifas.
No entanto, efetivamente, tal reversão está ocorrendo
somente com relação à concessionária Novadutra, pois nos autos
do TC 014.824/2000-8 foi realizada inspeção que examinou
todas as adequações e revisões contratuais ocorridas desde o início
da concessão e verificou-se a inclusão dessas receitas no fluxo de
caixa da concessionária, com vistas a modicidade.
Quanto às concessionárias Concer e CRT, o DNER informou que a Concer possuía um único contrato de publicidade, ainda
não contabilizado, e, em relação à CRT, não tinha conhecimento
da percepção dessas receitas. Assim, merece ser melhor examinada a
situação dessas duas concessionárias.
Já com relação à Concessionária da Ponte Rio-Niterói, a
unidade técnica e o Ministério Público entendem que o contrato
atual não contempla a revisão de tarifas, em virtude da obtenção de
receitas alternativas ou complementares, e propõem a necessidade
de alteração do contrato de concessão de forma que preveja a consideração das receitas alternativas no cálculo do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Compulsando diretamente o Contrato de Concessão e seus
termos aditivos, verifiquei que em 20.5.95 foi firmado o 1º Termo
Aditivo de Rerratificação ao Contrato de Concessão PG-154/94-00,
o qual, em sua Cláusula Terceira, alterou a Cláusula 59 do contrato
de concessão, de forma a contemplar as inovações introduzidas pela
Lei 8.987/95, particularmente a possibilidade de obtenção de receitas alternativas para favorecer a modicidade da tarifa.
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Para melhor compreensão, transcrevo a seguir a nova
redação da Cláusula 59 e sua alínea “e”, que tratam especificamente
da questão:
“Cláusula 59. A TARIFA BÁSICA DE PEDÁGIO será
revistaparaestabelecerarelaçãoqueaspartespactuaraminicialmente
entreosencargosdaCONCESSIONÁRIAearetribuiçãodosusuários
daRODOVIA,expressanovalordaTARIFABÁSICADEPEDÁGIO, com a finalidade de manter o equilíbrio econômico-financeiro
inicialdocontratodeconcessão,em estrita observância das disposições da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, arts. 9º a 13º,
nosseguintescasos:
(..............omissis...................)
e)quandoaCONCESSIONÁRIAauferirreceitaalternativa,complementar,acessóriaoudeprojetosassociadosàconcessão,nas
condiçõesestabelecidasnoCONTRATO;” (destacado.)
Assim, contrariamente ao afirmado, até pelo próprio
DNER, o contrato celebrado com a Concessionária da Ponte RioNiterói S.A. prevê a revisão de tarifa quando a concessionária auferir
receita alternativa, complementar ou acessória, contribuindo para a
modicidade, em estrita observância ao art. 11 da Lei 8.987/95.
Talvez tenha concorrido para o equívoco o fato de que o
DNER, em resposta ao Tribunal, ter afirmado que, de acordo com a
Cláusula 70 do contrato, não há “acontabilizaçãodequalqueroutra
receitaquenãoadepedágioparafazerfaceaosencargosdaconcessionária” (fl. 82).
A Cláusula 70 do Contrato de Concessão PG-154/94-00,
dispõe que:
“70. As receitas complementares para a cobertura dos
encargosdeconcessãoadvirão,basicamente,daexploraçãodasáreas
de serviço, definidas no item 20 do Edital de Pré-qualificação nº
0107/93-00” (destacado.)
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Por sua vez, o item 20 do edital acima referido estabelece
que “Consideram-se‘ áreasdeserviço’asadjacentesaosacessosdaPonte
edestinadasaosserviçosdeassistênciaaosusuários”.
Ora, além de essa conclusão ofender frontalmente a Lei
8.987/95 (art. 11) e o próprio Contrato de Concessão PG-154/94-00,
com as alterações introduzidas pelo 1º Termo Aditivo de Rerratificação, mesmo que se interprete isoladamente a cláusula referida, a
compreensão a ela emprestada está completamente dissociada do
seu texto.
Com efeito, ao utilizar a expressão “basicamente”, o dispositivo contratual não excluiu a possibilidade de percepção de outras
receitas alternativas que se mostrassem viáveis. Assim, se porventura houver outras formas de obtenção de receita alternativa, elas
poderão ser auferidas e consideradas para fins de contribuir para a
modicidade da tarifa. Essa é a correta interpretação do dispositivo e
a única que possibilita sua compatibilidade com a Lei 8.987/95.
Concluo, portanto, no sentido de que o Contrato de
Concessão PG-154/94-00 firmado com a Concessionária da Ponte
Rio-Niterói S.A. está de acordo com os termos do art. 11 da Lei
8.987/95, havendo previsão contratual para que as receitas complementares sejam computadas no fluxo de caixa a fim de contribuir
para a modicidade da tarifa.
Resta verificar se o DNER e, agora, a ANTT, estão dando
efetivo e integral cumprimento à regra contratual.
Diversa, porém, é a situação da concessionária Concepa.
De acordo com a cláusula 75 do Contrato de Concessão
PG-016/97-00, é estipulado que as receitas complementares não se
incorporam às receitas da concessão, nem devem ser consideradas
para efeito de reajuste ou revisão da tarifa, in verbis:
“70. As receitas complementares advirão basicamente da
implementação de projetos comerciais associados à concessão; essas
receitas complementares não se incorporam, para nenhum
efeito, às receitas da concessão, nem devem ser consideradas
para efeito de reajuste ou revisão da Tarifa Básica de Pedágio.”
(destacado.)
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Essa cláusula contraria frontalmente o disposto no art. 11
da Lei 8.987/95.
Ressalte-se que o Contrato, em sua Cláusula 3ª, da Seção
III, relaciona como legislação a ele aplicável a referida Lei 8.987/95.
Além disso, na Cláusula 7ª, alínea “a”, da Seção V, onde
estão relacionados os critérios para solução de divergências na
interpretação de cláusulas contratuais, está fixado que as disposições da Lei 8.987/95 prevalecem sobre as cláusulas contratuais, no
que forem discrepantes, in verbis:
“7.Asdivergênciasacercadaaplicaçãodecláusulascontratuaisqueporventuranãopuderemsersanadasporrecursoàsregrasgerais
deinterpretação,resolver-se-ãodeacordocomosseguintescritérios:
a)asnormasdaLei8.666/93,de21dejunhode1993,
edaLei8.987,de13defevereirode1995esuasalterações,prevalecem,noqueforemaplicáveisàsconcessõesdeobraspúblicas,sobre
quaisqueroutras;”
Assim, deve ser modificada a Cláusula 75 do Contrato de
Concessão PG-016/97-00, para que se adeqüe aos ditames da Lei
8.987/95 e da Cláusula 7 do próprio contrato, no sentido de que sejam
consideradas as receitas alternativas no cálculo do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, contribuindo para a modicidade da tarifa.
No tocante ao argumento levantado pela Concessionária Concepa e pelo sr. Maurício Hasenclever Borges, ex-DiretorGeral do DNER, em resposta à audiência, no sentido de que a Lei
8.987/95 é posterior à licitação que deu origem ao contrato, não se
lhe aplicando, entendo que essa circunstância não afasta a incidência da Lei 8.987/95.
Com efeito, o contrato foi assinado já na vigência da lei e,
por isso, o ajuste deve observar integralmente as disposições legais,
haja vista que, por ser lei de direito público, é imperativa, cogente e
tem eficácia imediata, atingindo os atos em curso, fazendo valer o
princípio de que o interesse público prevalece sobre o particular.
Aliás, é até surpreendente esse argumento ter sido argüido
pelo responsável e pela concessionária, haja vista que o contrato por
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eles assinado prevê a integral submissão à Lei 8.987/95, conforme já
exposto (Cláusulas 3ª e 7ª).
Alega, ainda, o responsável que o edital dispunha que as
receitas complementares eram tidas como eventuais e não deveriam
compor a equação econômico-financeira original, nem ser consideradas para elaboração da proposta de tarifa. A partir daí, afirma não
ver “emquemedidaapercepçãodessareceita,nocasodaCONCEPA,
possa comprometer o inicial equilíbrio econômico-financeiro do contrato,ajustificaarevisãodatarifadopedágio.” (fls. 179/80).
Como o sr. Maurício Hasenclever Borges, mesmo tendo
sido responsável por todo o processo de concessão, reconhece que
ainda não conseguiu perceber a questão em toda a sua plenitude,
chegou a oportunidade de esclarecê-lo.
É importante ressaltar que as disposições do edital por ele
citadas não foram em nenhum momento impugnadas. Elas explicitam que as receitas complementares, alternativas ou acessórias, por
seu caráter de eventualidade, não podem ser consideradas para a
elaboração da proposta de tarifa.
Isso não significa que, na eventualidade de sua ocorrência,
elas possam ser auferidas pelas concessionárias, sem que isso fique
registrado no seu fluxo de caixa, ou seja, que a concessionária se
aproprie inteiramente desses valores sem absolutamente nenhuma
contrapartida.
Explico melhor a importância do registro dessa receita no
fluxo de caixa.
O fluxo de caixa é o instrumento que permite, a qualquer
instante, verificar se a taxa interna de retorno original está sendo
mantida. Cabe ressaltar que a Taxa Interna de Retorno - TIR é
extraída diretamente da proposta vencedora da licitante e expressa
a rentabilidade que o investidor espera do empreendimento. Em
termos matemáticos, a TIR é a taxa de juros que reduz a zero o valor
presente líquido do fluxo de caixa, ou seja, a taxa que iguala o fluxo
de entradas de caixa com as saídas, num dado momento.
Assim, pode-se dizer que a manutenção da taxa interna
de retorno é garantia tanto do Poder Público, quanto da concessio-
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CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS: ARTIGOS, DECISõES E PARECERES JURíDICOS
nária, e sua modificação dá ensejo à revisão contratual, na forma
prevista na lei e no contrato.
Se fosse reconhecida validade para a Cláusula 75 do Contrato de Concessão PG-016/97-00, isso permitiria que a receita
complementar arrecadada não fosse computada no fluxo de caixa,
gerando ganho indevido para a concessionária, absolutamente disforme com toda a moldura contratualmente estabelecida e prevista
para a sua remuneração, em prejuízo do Poder Público e dos usuários do serviço, obrigados a pagar tarifa que deveria ser necessariamente menor que a cobrada.
Ao contrário, obrigando-se o registro dessas receitas acessórias ou complementares no fluxo de caixa, na forma prevista no art.
11 da Lei 8.987/95, se porventura a concessionária arrecadar receitas dessa espécie, isso elevará, em um primeiro momento, o valor
total das suas receitas, acarretando um aumento da taxa interna de
retorno. Isso dará ensejo ao processo de revisão tarifária, que tem por
objetivo restituir a taxa interna de retorno ao seu valor original. Para
tanto, será necessário reduzir a receita vinculada à cobrança de pedágio, no mesmo valor que foi acrescido pelas receitas complementares.
Isso se consegue, logicamente, por meio de redução da tarifa.
Esse é o mecanismo, então, que ocorre quando se dá plena
eficácia ao art. 11 da Lei 8.987/95.
Estando demonstrado que os termos da Cláusula 75 do
Contrato de Concessão PG-016/97-00, firmado com a Concepa,
estão em flagrante contrariedade com o art. 11 da Lei 8.987/95 e com
as demais disposições do próprio contrato, devem ser rejeitadas as justificativas apresentadas e aplicada multa ao responsável, sem prejuízo
de determinar-se à ANTT a adequação do referido contrato.
Por fim, quanto às considerações da instrução técnica a respeito da necessidade de regulamentação do art. 11 da Lei 8.987/95,
acompanho integralmente a posição do Ministério Público, no sentido que o dispositivo não depende de nenhuma regulamentação,
pois seu parágrafo único é claro ao estabelecer que as receitas alternativas serão consideradas para a aferição do equilíbrio econômicofinanceiro do contrato.
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Decisão do Tribunal de Contas da União
De igual modo, quanto ao momento de entrada das receitas alternativas no fluxo de caixa, se à medida que é realizada ou se
projetada para todo o período da concessão, entendo que, por ser
matematicamente indiferente o método escolhido, é mais adequado
manter o procedimento de somente contabilizar a receita após a sua
realização, como já está sendo adotado pelo DNER, haja vista seu
caráter de eventualidade.
Ante o exposto, acolho em parte os pareceres e VOTO
por que o Tribunal adote a DECISÃO e aprove o ACÓRDÃO que
ora submeto a este Plenário.
Sala das Sessões, em 30 de outubro de 2002.
Walton Alencar Rodrigues
Ministro-Relator
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Fonte
PaPel miolo
PaPel caPa
edição
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