Tecnologias do Imaginário e Cibercultura

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Tecnologias do Imaginário e Cibercultura
TECNOLOGIAS DO IMAGINÁRIO E CIBERCULTURA
Coordenação: Prof. Dr. André Pase ([email protected])
Mesa 1 - TRANSFORMAÇÕES NO JORNALISMO
Coordenação: Karen Sica
Introdução à rastreabilidade e ao engajamento nos cibermeios
Lucas Santiago Arraes Reino1
Resumo: O presente artigo reúne informações a respeito do ciberjornalismo e suas
características:
interatividade,
hipertextualidade,
personalização,
memória,
multimidialidade e instantaneidade. Em seguida inclui a rastreabilidade entre elas e discute
como essa capacidade de mensurar a performance pode ser realizada, trazendo o conceito
de engajamento e das novas formas de consumo midiático.
Palavras-chave: Engajamento, Ciberjornalismo; Rastreabilidade
Introdução
Desde o começo da existência humana, para viver em comunidade e sobreviver às
adversidades era preciso relacionar-se melhor, por isso a comunicação sempre esteve no
topo das prioridades humanas. Isso está tão internalizado que se pode ver em cada novo
rebento que chega a uma família, depois de dar os primeiros passos, ou mesmo até antes
deles, são esperadas e incentivadas as primeiras palavras, até porque só os gestos, choros e
sorrisos não permitem aos bebês, conseguirem o que desejam, para serem compreendidos
eles precisam ter sua comunicação melhorada.
Assim como com os pequenos infantes, a comunicação entre os seres-humanos precisa ser
desenvolvida constantemente, se nos primeiros momentos da história ela era feita de forma
mais básica e objetivando a sobrevivência, sendo através de rugidos, gestos entre outras
formas menos complexas, quase como grandes bebês, ela ganhou palavras e outros
recursos, e o desenvolvimento dessa comunicação caminhou junto com a própria evolução
humana.
Innis (1951) desenvolveu em seu livro O Viés da Comunicação, teoria a respeito da grande
influência da comunicação sobre a civilização ocidental, através de pesquisas históricas
ele traçou uma linha do tempo das transformações realizadas e suas implicações, como a
comunicação desenvolveu-se, as sociedades e podemos hoje analisar com essa linha de
raciocínio o jornalismo.
Cada período histórico, cada civilização, para Innis (1951), possuía uma comunicação que
trabalhava pela construção de seu próprio monopólio conhecimento, ou oligopólio, até que
uma perturbação desse equilíbrio surgia. O monopólio acaba sendo uma forma de
equilíbrio porque o caminho natural do conhecimento é que os que mais tem, acabam
sendo os que mais recebem, e os que menos possuem, acabam não recebendo também.
Professor do Curso de Comunicação Social – Jornalismo da UFMA de Imperatriz (MA) e doutorando em
Comunicação pela PUCRS
1
Na separação proposta por Innis (1951), a argila, o estilete e a escrita cuneiforme do
começo da civilização na Mesopotâmia é o ponto inicial. É possível ver o prosseguimento
do surgimento e adoção dessas tecnologias de comunicação e suas transformações
chegando até o rádio a TV e à Internet. A cada nova ferramenta de comunicação novas
formas de comunicar surgiam junto, novas formas de relação e outras transformações
sociais aconteciam a reboque.
Com a chegada da Internet e sua comercialização um novo meio de produzir e consumir
notícias surgiu. Nomeado como jornalismo on-line, jornalismo digital, webjornalismo,
ciberjornalismo ou outros nomes menos populares, ele rapidamente ganhou a atenção das
pessoas, sendo hoje uma das principais fontes de informação dos brasileiros e,
provavelmente, de diversos outros povos.
Segundo pesquisa da Target Group Index (2014), que teve parceria do Ibobe no Brasil e
foi publicada em abril de 2014, 47% dos brasileiros usam a Rede Mundial de
Computadores como primeira fonte de informação, sendo a média mundial de 45%.
Foram mais de 200 mil pessoas entrevistadas em 70 países por quatro continentes. Entre
outros dados sobre os brasileiros, também sabe-se que a média de tempo conectado por dia
é de 3h39min, 10 minutos a mais do que se gasta com TV.
Atravessando fases iniciais, após a chegada da internet comercialmente no Brasil em 1995,
com um primeiro momento de transposição de conteúdo, de um meio para outro, passando
por diversas mudanças. Silva Júnior (2005, p.65) classifica o jornalismo na Internet em
três fases: a primeira é a transpositiva, quando os jornais transportavam para a Internet o
conteúdo impresso, sem alterá-lo; a segunda fase, chamada de perceptiva, quando os
veículos de comunicação percebem as novas possibilidades de uso da tecnologia,
oferecendo suporte a vídeo, áudio, hiperlinks, conteúdo exclusivo e outros, iniciando a
produção de um conteúdo exclusivo para os jornais on-line; e a terceira fase, chamada
hipermidiática, que privilegia o desenvolvimento de “conteúdo exclusivo para a Internet,
aproveitando-se das novas velocidades de conexão, ferramentas de interação e publicação
entre outras inovações que agregaram ao suporte tecnológico da produção para web”
(CANAVILHAS, 2001, p.66).
O que se pode entender, tentando formar um conceito que diferencie os modelos de
ciberjornalismo é que o primeiro está preso à fase transpositiva dos conteúdos, enquanto o
terceiro seria uma tendência natural da apropriação do espaço, com um formato exclusivo
para a Rede, seria um “produto de uma preocupação jornalística específica para a Internet
e suas particularidades” (GALARÇA, 2004, p.67).
Atualmente novas discussões sobre as fases do ciberjornalismo surgem, Barbosa (2013),
defende que já vivemos uma quinta fase, mas ainda assim as diversas características
próprias que fazem desse meio um tipo já amadurecido de jornalismo são vistas como as
mesmas, sem novas adições, o que soa estranho se refletirmos o quanto mundo nesses
cerca de 20 anos de jornalismo na Internet no Brasil.
Apesar dessas mudanças, boa parte do que o ciberjornalismo, termo que será adotado neste
artigo pela conexão da palavra e do conceito com o ciberespaço, é hoje já podia ser
vislumbrado no começo das pesquisas na área que identificaram as características e
estabeleceram o que hoje temos como base do que é o jornalismo feito para o ciberespaço.
Características do Ciberjornalismo
Schwingel (2008) realizou um extenso levantamento sobre os termos mais adotados e
quais pesquisadores preferiam um em contrapartida de outros. Apesar de já haver um
tempo já transcorrido de jornalismo na Internet, ainda é possível encontrar todos os
termos, e outros como jornalismo hipermidiático ou jornalismo eletrônico, sendo
utilizados por autores que são referência na área, portanto é preciso fazer uma definição de
qual terminologia usar e sua defesa.
On-line refere-se à condição de estar conectado à Internet, representaria a ligação entre o
jornalismo e a publicação na internet, apesar de aparentemente correto, o termo é limitado,
já que não representa a grandeza do meio, mas trata como apenas um adicional, como uma
transposição do jornalismo que é feita ao se conectar.
Webjornalismo seria uma junção de jornalismo com o termo World Wide Web, assim
como é feito com a televisão, telejornalismo, com o rádio, radiojornalismo. O problema é
que a Web é um pedaço do todo que é a realidade do jornalismo nesse meio, ela é uma
representação visual através de uma linguagem para navegadores, mas e as outras formas
que vem ganhando espaço para o jornalismo, como os aplicativos para celulares, estes
ficariam de fora, receberiam outra terminologia ou tornariam o termo incompleto, o que
não seria positivo.
Jornalismo digital seria uma ampliação da abrangência, mas feita em excesso. Isso porque
o digital abarca quase todas as áreas do jornalismo hoje, então o termo serviria para tratar
das tecnologias digitais na diagramação, na produção de vídeos ou mesmo na transmissão
de rádio, não servindo para o escopo deste trabalho. O digital é o oposto do analógico, tem
sua ligação com a tecnologia usada pelo jornalismo, mas é muito mais amplo.
Ciberjornalismo é o termo mais adequado para o trabalho porque ele é o resultado da
mesma reflexão que criou os termos provenientes de cibernética, como cibernação e,
especialmente, ciberespaço. Sendo assim, o ciberjornalismo é o jornalismo produzido,
publicado ou consumido no ciberespaço? Ou todas as opções anteriores em conjunto? Se a
relação está vinculada à produção então todas formas de jornalismo são ciber atualmente,
já que é improvável encontrar redações que não tenham acesso à Internet.
Restando a veiculação e o consumo, ficam ambos como condição para ser ciberjornalismo.
Se um conteúdo é feito para jornal impresso, mas uma cópia é publicada na Internet, isso
não a torna ciberjornalismo, também pode-se dizer de uma notícia é publicada em um site
e depois é impressa em papel e lida fora do ambiente digital. Em ambas as situações as
possibilidades de uso das características da Internet são excluídas e deixam, portanto, de
ser ciberjornalismo.
Para ser ciberjornalismo é necessário ser publicado e consumido no ciberespaço, outras
opções tornam-se híbridas. No decorrer dos anos de sua existência, diversos autores
tentaram identificar as características do ciberjornalismo e discutir como eles são
utilizados.
O ciberjornalismo possui diferenças em relação às outras mídias. Bardoel e Deuze (2001)
são os primeiros a sistematizar as características diferenciadoras do ciberjornalismo, os
autores citam a interatividade, hipertextualidade, multimidialidade e personalização de
conteúdo como características desse jornalismo. Palacios (2003) adicionou a memória, ou
perenidade, e a instantaneidade, ou atualização contínua, assim como Rocha (2000) e
Mielniczuk (2001) acompanharam sua interpretação dessas características.
Em livro organizado por Canavilhas (2014) uma nova característica é adicionada a lista, a
ubiquidade, definida como a condição de estar presente em todos os lugares, uma
consequência das novas tecnologias que foram popularizadas mais recentemente, como os
telefones celulares inteligentes, os tablets e a conexão de banda larga para esse tipo de
aparelho.
Schwingel (2008) aponta outras duas características que podem ser adicionadas a essa
delimitação, a flexibilização dos limites de tempo e espaço como fator de produção e a
utilização de ferramentas automatizadas no processo de produção, ambas relacionadas a
investigação da autora a respeito de sistemas de publicação para o meio.
Para uma análise mais aprofundada, cada uma das características será destrinchada a
seguir.
Rocha (2000) afirma que a instantaneidade é a capacidade de transmitir, instantaneamente,
um fato. As publicações em rede podem acontecer em tempo real e se aproximam da
velocidade do radiojornalismo, a mais instantânea das três mídias tradicionais, seguido por
TV e jornal. É muito rápido fácil e barato inserir ou modificar notícias na web. Não é
necessário conhecimento em linguagens de computador, pois são usados sistemas de
atualização com interface amigável e outras tecnologias que diminuem a necessidade de
um conhecimento aprofundado para inserção de informações.
A instantaneidade vem sendo uma das marcas mais impactantes nos outros meios. Os
ciberjornais furam, como é dito no jargão jornalístico, os outros meios, não esperando a
hora de ir para o ar o programa de TV ou rádio para noticiar, ou mesmo o dia seguinte
para imprimir o jornal. O instantâneo na Internet é concomitante, pode realizar
simultaneamente vários instantâneos, múltiplas coberturas, é a multiplicação do jornalismo
em tempo real, já que ao mesmo tempo o real é representado em seus diversos novos fatos.
Perenidade também é conhecida como arquivamento ou memória. O arquivamento das
informações em formato digital é simples e de alta capacidade. Além disso, a cada dia os
níveis de armazenamento aumentam, enquanto o tamanho dos dispositivos de memória,
como os discos rígidos diminuem de tamanho. Por outro lado, ela pode ser transferida e
copiada mais facilmente, a um baixo custo relativo. Palacios (1999 apud Mielniczuk 2001)
aponta para o fato do acúmulo das informações ser mais viável técnica e economicamente
do que em outras mídias. Sendo assim, o volume de informação diretamente disponível ao
usuário é consideravelmente maior no webjornalismo, seja em relação ao tamanho da
notícia ou à disponibilização imediata de informações anteriores. Desta forma, surge a
possibilidade de acessar com maior facilidade material antigo. Rocha (2000) lembra que a
informação digitalizada tem mais facilidades para a recuperação: “é possível guardar-se
grande quantidade de informação em pouco espaço, e essa informação pode ser recuperada
rapidamente com busca rápida full text” (ROCHA, 2000).
A recuperação dessa informação armazenada vem mudando a realidade dor jornais nos
meios digitais, eles perceberam que a conexão dos fatos novos com notícias do passado
podem gerar mais leitura, o tempo navegando pelo site aumenta. Ao rastrear o percurso de
entrada dos leitores nos ciberjornais é possível perceber que nem todos entram pela capa
do site, pela porta de entrada comum, muitos vêm a partir de buscas sobre assuntos
diversos, procurando a partir de palavras-chave em ferramentas de pesquisa como o
Google, chegando em matérias de outros dias, a memória é o passado das notícias, mas
sempre renovada agora no ciberjornal.
Também merece ser ressaltado que matérias antigas são recuperadas constantemente para
a capa dos jornais, iniciativas como a do Blue Bus, noticiário online sobre comunicação,
que publica diariamente uma chamada para algum texto divulgado anteriormente, com a
etiqueta Old but gold (antigo mas de ouro, em tradução do inglês), ou da Folha de S.
Paulo, que em sua capa coloca o que acontecia no mesmo dia e fora noticiado anos atrás,
são exemplos de como a memória não é apenas uma biblioteca acessada por poucos
leitores.
Interatividade no webjornalismo acontece quando o usuário da informação jornalística se
considera parte do processo de publicação (BARDOEL e DEUZE, 2001). Rocha (2000)
descreve que as mídias tradicionais sempre tiveram algum tipo de interação, como nas
seções de cartas de jornais e TVs e nos telefonemas para programas de rádio. Mas é no
webjornalismo que a interação atinge seu ponto máximo, já que o leitor pode escolher
vários caminhos para ler notícias, comentar e ver seus comentários publicados e à
disposição de outros leitores entre outras opções. Diante de um computador conectado à
Internet, acessando um webjornal, o usuário estabelece relações com a máquina, com a
própria publicação, através do hipertexto e com outras pessoas - seja autor ou outros
leitores (MIELNICZUK, 2001).
No estágio atual da Internet no Brasil é possível ver como a interatividade cresceu com o
desenvolvimento e popularização dos sites de redes sociais, como o Orkut, primeiramente,
e o Twitter e Facebook em seguida, nos quais muitos dos conteúdos publicados pelos
usuários é originado de jornais e revistas na Internet, além dos próprios veículos
incentivarem o compartilhamento do conteúdo e usares as redes para gerenciar os
comentários nas notícias publicadas em seus portais.
Multimediação, multimidialidade ou convergência de mídias ocorre na web, pois é
possível unir texto, imagem, som e vídeo. Rocha (2000) afirma que em breve, se poderá
usar cheiro, pois já existem pesquisas com transmissão de informações olfativas.
Mielniczuk (2001) resume que “no contexto do webjornalismo, multimidialidade, trata-se
da convergência dos formatos das mídias tradicionais (imagem, texto e som) na narração
do fato jornalístico”.
Com diversos sites permitido que todas as pessoas publiquem vídeos (Youtube, Vimeo
etc), áudios (Goear, Soundcloud etc.), aléms das já conhecidas plataformas de texto, ficou
muito mais simples ser multimídia, mas poucas são as iniciativas que fazem a
convergência, que fazem com que um vídeo complemente um texto, no geral o que ainda
se vê, como no G1, um dos maiores sites de notícia do Brasil, é uma mídia repetindo a
outra.
Bardoel e Deuze (2000 apud MIELNICZUK, 2001) chamam a atenção para a
hipertextualidade pela possibilidade de, a partir do texto noticioso, apontar para outros
textos como originais de releases, outros sites relacionados ao assunto, material de arquivo
dos jornais, textos que possam levantar os prós e os contras do assunto em questão, função
que em outras mídias ficava a cargo somente de jornalistas.
Ser hipertextual é não ficar preso a um consumo linear, no qual uma página segue outra,
no ciberjornalismo os leitores fazer sua linearidade, definem seu trajeto de leitura, nem
sempre de uma matéria de esportes para outra, ou a dissecação de toda uma editoria antes
de ir para a próxima. Ser hipertextual é permitir a liberdade de interação com o conteúdo,
é o que permite o primeiro passo de saída da passividade do internauta.
Rocha (2000) afirma que usar hiperlinks é o mesmo que navegar na Internet. O uso de
hiperlinks em conteúdo multimídia (áudio, vídeo, fotos, animações) é chamado de
hipermídia. Mídias tradicionais também usam hiperlinks, como o sistema de sumário e
número de páginas de livros, os sistemas de organização da Bíblia, as chamadas de capa
de jornais.
A personalização de conteúdo, também denominada de individualização, é a adaptação de
um produto aos desejos ou preferências do usuário do site. O Google Notícias, site da
gigante de buscas na Internet, permite ao leitor determinar que notícias ele quer que
apareçam no site, a quantidade listada na página principal e até a cor do website em
questão. “Como toda a informação está sendo tratada por computadores, é rápido colher
informações sobre usuários/leitores e oferecer a mídia que mais interessa a eles. Esta
personalização de conteúdo pode se realizar de diversas maneiras” (ROCHA 2000). Assim
como a forma, o conteúdo deve ser pensado para o leitor, podendo ser o principal atrativo
de um site.
Outros exemplos de personalização estão mais destacados hoje em dia com o uso
do RSS (formato coringa de distribuição de conteúdo) e de aparelhos móveis como
smartphones e tablets, que possuem ferramentas próprias de leitura, coletando o conteúdo
dos sites de notícia e re-empacotando de acordo com a personalização desejada pelo leitor.
Rastreabilidade como Característica do Ciberjornalismo
Quando uma pessoa acessa um site de notícias ela não está apenas consumindo
informações, lendo notícias ou acessando um espaço onde ela pode interagir comentando
suas ideias sobre temas atuais, mesmo sem nem sempre entender do que está falando
(BUENO; REINO, 2013). Ela está também oferecendo aos administradores do site
informações diversas sobre seu equipamento, seu tipo de conexão, hábitos de navegação,
sites acessados, localização entre outras. Sem nem sempre saber, estamos sendo estudados
pelos sites que navegamos.
Ferramentas como o Google Analytics (GA), o Piwik, o Parse.ly, o KISSMetrics, o Clicky
entre outras, permitem que um pequeno arquivo seja carregado junto com o restante do
site e que essas informações sejam coletadas e apresentadas aos administradores, elas
podem ser agrupadas de diversas formas e permitem que os jornais, ou qualquer outro site,
tenha comportamentos personalizados para cada usuário ou mesmo que haja uma
compreensão maior sobre quem é o leitor do veículo, algo muito mais avançado que as
pesquisas de opinião feitas para conhecer o público de TVs, impressos ou programas de
rádio.
Essas ferramentas de rastreamento de acesso permitem saber qual é a palavra-chave que
levou o leitor a acessar o site. Isso oferece a compreensão para preparar o site para ter
mais audiência, usando técnicas de SEO (Search Engine Optimization, a otimização para
sites de busca, em inglês), que seria otimizar, no jargão técnico, o jornal para ser mais
encontrado pelos que buscam notícias do que seus concorrentes.
Entender esse público e seu comportamento não é pouco importante, sites como o
Imperatriz Notícias, jornal laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Federal do
Maranhão, por exemplo, tem nos sites de busca mais de 79% das fontes de visitas feitas ao
jornal. Rastrear o leitor é essencial para a sobrevivência, ou autossuficiência, da
publicação, usando ferramentas como o GA ou outras já citadas.
Mas existem outras formas de rastrear que focam na forma que os olhos navegam pelas
páginas, a questão da usabilidade. Assim como em jornais impressos onde são discutidas
as páginas mais valiosas para o leitor, onde a página três seria a mais nobre, e os olhos
correriam de uma forma determinada, destacando lugares em detrimento de outros,
segundo pesquisas, os sites podem rastrear a leitura das notícias em tempo real e em cada
página ou a cada mudança da capa.
Em 2011, pesquisa apresentada no Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação) da região Nordeste, Bueno e Reino (2011)
demonstraram que é possível entender como os leitores leem os jornais e como isso pode
impactar na forma e no conteúdo de cada publicação.
Ao usar uma ferramenta chamada ClickTale, os pesquisadores conseguiram informações
sobre quais eram as áreas do site que recebia mais atenção dos leitores, quais matérias
foram lidas por completo, onde o mouse passeava ou repousou e até que trechos das
notícias recebiam mais atenção do que os outros, tudo através de um pequeno (menos de
10kb) software que fazia esse rastreamento e compilava os dados coletados.
São dois exemplos de ferramentas que permitem rastrear o leitor, quando falamos de
interatividade destaca-se muito mais a participação ativa do internauta, mas é possível
também identificar que a interação entre leitor e jornal está muito mais profunda e
complexa com a coleta daqueles dados que são repassados passivamente por quem acessa
a publicação digital.
Quantidade x Qualidade
O rastreamento permite uma contabilização das informações, com bancos de dados mais
acessíveis e maleáveis, essas informações quantificadas permitem uma enorme gama de
análises, como demonstrado anteriormente. Porém, como em uma clippagem de jornais, a
quantidade não é o suficiente para compreender o que é coletado, é preciso debruçar-se
sobre eles e analisar o que foi retirado.
Algumas métricas já existem há algum tempo e tentam traduzir os números, como as
métricas de televisores ligados em um determinado canal, utilizado pelo Ibope brasileiro
ou o Nielsen nos Estados Unidos. Mesmo falho, esse é um sistema que acabou tornando-se
o padrão da indústria e que tem muitas travas impedindo de mudar.
As redes de TV e anunciantes compram as classificações de um único
fornecedor credenciado com um interesse de longa data em agradar a ambos, O
sistema de classificações resultante tem uma inércia que se torna difícil para
novos concorrentes e que impede mudanças significativas nos métodos de
medição. O sistema de classificações é configurado para fornecer uma moeda
consistente, ou seja, um sistema de avaliação de valor, para a condução de
acordos de negócios, e não prioritariamente para fornecer uma contabilidade
precisa de todos que assistem à TV. (JENKINS, GREEN, FORD, 2014, p.156)
Portanto, além de ser uma métrica direcionada para quem gerencia o negócio do ponto de
vista econômico, também é falho a contabilizar por amostragem uma parcela que não
representa o todo. Por exemplo, no Brasil apenas aparelhos de pessoas que moram na
região da Grande São Paulo, Grande Rio de Janeiro, Grande Belo Horizonte, Grande
Curitiba, Grande Porto Alegre, Grande Florianópolis, Campinas, Grande Vitória, Grande
Goiânia, Grande Salvador, Grande Recife, Grande Fortaleza, Grande Belém e Distrito
Federal (IBOPE, 2015) são mensurados, uma parte do país acaba decidindo para todo o
resto o que é que deve ser mantido na programação da TV aberta.
Para dificultar ainda mais a medição de TVs, hoje é possível assistir a programação
através de computadores, celulares, há aparelhos de som de automóveis que trazem TV
neles e nem todos os conteúdos consumidos são adiquiridos por uma distribuição oficial,
downloads de filmes e músicas já não são mais os únicos na lista de descarga de arquivos,
há novelas, programas de TV e tudo mais que antes era consumido massivamente e através
de apenas um meio, espalhado por dispositivos.
Analisando as mudanças na produção e consumo de mídia, partindo dessa análise sore os
problemas com mensuração nas TVs americanas, Jenkins, Green e Ford (2014) começam
a discutir novas formas de medir, não só qualitativamente, essa relação entre o consumidor
e o produto, utilizando o termo engajamento.
Os modelos baseados em engajamento veem a audiência como uma cooperativa
de agentes ativos cujo trabalho pode gerar formas alternativas de valor de
marcado. Essa abordagem privilegia os públicos dispostos a buscar conteúdo
através de vários canais, visto que os espectadores acessam os programas de
televisão em seus próprios horários (..) Tais modelos valorizam a propagação
dos textos de mídia, uma vez que as audiências engajadas são mais propensas a
recomendar, discutir, pesquisar, repassar e até gerar material novo em resposta.
(JENKINS, GREEN, FORD, 2014, p.156)
Com as mudanças na forma de consumir produtos midiáticos as formas de medir devem
acompanhar as mudanças. Os ciberjornais não podem mais ficar apenas nas visitas,
páginas vistas e taxas de rejeição, é preciso medir o engajamento e ele vai além das
quantidades individuais, ele é quantitativo, qualitativo e interligado.
Considerações parciais
Um ciberjornal deve apreciar mais um leitor que acessa várias matérias publicadas em seu
site ou que ele acesse esporadicamente e comente em todas as visitas? Será que acessar o
jornal a partir de redes sociais e comentar por lá as notícias é mais vantajoso para o
veículo ou pior? Qual é o engajamento ideal para que o veículo de comunicação seja
relevante para o seu público-alvo? É preciso criar novas metodologias que enquadrem esse
novo perfil de consumo e integre esses diversos meios.
A rastreabilidade é uma característica evidente e que abre as portas para novas
possibilidades de compreensão da audiência, mas sozinha ela é só um conjunto de técnicas
de coleta de números que não podem ser usados de forma benéfica e consciente.
Não é possível definir apenas neste artigo o que deve ser feito, mas algumas questões já
podem ser colocadas: É preciso ser qualitativo já que cada veículo de determinados
públicos, determinadas redes sociais sendo utilizadas entre outras diversas características
que o tornam único. Não é possível esperar que um modelo fechado possa definir
exatamente o que é engajamento para toda diversidade midiática existente.
Outro ponto que é relevante para o prosseguimento dessa reflexão posterior é que o
engajamento possui escalas, que não há uma linha vermelha delimitando a passagem para
o público comum tornar-se engajado, então é preciso entender que há uma série de passos
a serem feitos e que uns deixam mais próximo e outros mais distante do maior
engajamento.
Também é preciso manter em mente que nem tudo é rastreável, quantificável e que a
complexidade das relações humanas nunca poderá ser completamente colocada em
números absolutos, portanto é preciso abrir espaço para o desconhecido ou
incomensurável e isso não é ruim. A dúvida sobre o quanto essa avaliação deve sempre
existir no trabalho de pesquisa científica.
Há três aspectos que devem ser colocados sempre em perspectiva dentro da análise a ser
feita, há os atores envolvidos na comunicação, há os objetos que interferem e alteram esse
processo e há o lugar pelo qual comunica-se e cria-se conexões. O lugar é o meio, mas
também é o ambiente do qual se fala e do qual se recebe o que é dito. Se alguém diz algo
(ator) utilizando recursos tecnológicos como um celular (objeto) isso é dito dentro de um
meio (blog/internet) e todos esses pontos interferem.
Muitos outros pontos podem surgir dessa análise e é preciso mais tempo e dedicação para
debruçar-se por todo o tema. Fórmulas fáceis para entender o engajamento estão
disponíveis, mas o resultado ainda está longe de ser o suficiente para quem busca respostas
convincentes. É no ciberjornalismo, por sua característica de rastreabilidade, que é
possível caminhar mais rapidamente nessa seara.
Novas pesquisas devem seguir a partir daqui, talvez estudando a interconexão entre
páginas de jornais e redes sociais, talvez definindo conceitos teóricos dessa escala de
engajamento ou mesmo refazendo os passos aqui feitos e buscando outros caminhos para
alcançar uma compreensão maior, o que em nada depreciaria o que aqui foi feito já que o
objetivo científico fica acima dos egos e desejos pessoais.
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em:
http://globaltgi.kantarmedia.com/knowledge-hub/free-data/ Acessado em 24 de ul.2014.
Porto Alegre “padrão-FIFA”: vamos
sonhar juntos? 2
Andressa dos Santos Pesce3
RESUMO
O artigo discute a noção de tecnologias do imaginário, sendo interesse central a
compreensão das técnicas jornalísticas utilizadas na construção de imaginários.
Primeiramente, apresentaremos a noção de imaginário, para então passarmos à discussão
do que consistem as tecnologias do imaginário, utilizadas no discurso jornalístico. A
abordagem ainda realiza um diálogo dos efeitos dos megaeventos esportivos na
transformação de cidades. Em uma breve aproximação empírica, o enfoque é Porto
Alegre, sede da Copa do Mundo de 2014, sonhada pela mídia a partir de suas
transformações para o Mundial.
PALAVRAS-CHAVE: Tecnologias do imaginário; imaginário; jornalismo; Porto Alegre.
Introdução
Os projetos para Porto Alegre, em época de Copa do Mundo, despertaram o
fascínio por mudanças, nítido a cada leitura de reportagem na mídia local. Os meios de
comunicação contribuíram para fazer emergir uma cidade idealizada. Cimentaram sonhos
de novas avenidas, arenas, sistemas de transporte. As cidades que se lançam a sediar
megaeventos esportivos ganharam visibilidade midiática. A cobertura jornalística sobre a
Copa em Porto Alegre (ou a Porto Alegre da Copa) explorou diferentes facetas da cidade,
seus habitantes, sua cultura. Essa exposição potencializa sua utilização na construção de
um imaginário de uma capital que ascendeu a uma condição totalmente diferente. Em
meio à poeira dos escombros e ao tique-taque do relógio, que mostrava o atraso das obras,
a mídia local também sonhou (fez sonhar?) com a Porto Alegre “padrão-FIFA” de
qualidade.
Estudar o imaginário e de que forma as tecnologias do imaginário contribuem para
sua constituição nos permite chegar à compreensão da participação da mídia nesse
processo, a partir da espetacularização do real (SILVA, 2003). Discutir se as obras foram
concluídas vai além de nossa tarefa. Vale, sim, notar a presença de sonhos e utopias que
constituíram a base do discurso jornalístico sobre estes mesmos legados. A ideia é
perceber de que forma as promessas para a cidade foram exploradas no jornalismo e
2
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Tecnologias do Imaginário e Cibercultura no XIII Seminário
Internacional da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
3
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade dos Meios de Comunicação
Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail:
[email protected].
constituíram, de certa forma, a base de uma argumentação sobre realizações futuras.
Algumas obras, de fato, não passaram de promessas que foram o motor de uma nova
cidade idealizada pela mídia. Entretanto, o que nos interessa é levantar as pistas de que,
através do discurso jornalístico, emergiu o desejo de que os projetos para a Copa e para a
cidade ganhassem vida, saíssem do papel.
Os megaeventos esportivos, de forma geral, adquirem tal importância que são
incluídos no planejamento estratégico4 das cidades. A ideia de promover a reestruturação
urbana para a Copa ou Olimpíadas torna-se um dos fascínios que promove a disputa para a
obtenção do direito de sediar. Da Costa (2008) observa que os megaeventos, no Brasil, são
marcas que pontuam a narrativa da cidade e o desenvolvimento do país. Para centros
urbanos menos desenvolvidos, a Copa se torna então uma oportunidade única de
transformar o espaço através da mobilização de esforços e recursos que não seriam
disponibilizados ou que demandariam um período muito longo para se concretizarem.
O Brasil tem algumas experiências em megaeventos esportivos e a maioria delas
ocorreu no Rio. Em 2007, a capital do Rio recebeu os Jogos Pan e Para-americanos. No
mesmo ano do Pan, o Brasil garantia a realização da Copa do Mundo de 2014. Esse
megaevento tinha sido sediado em 1950 no Brasil. A questão da falta de estádios que
atendessem aos pré-requisitos quase emperrou a candidatura. Em julho de 2007, ao
entregar sua proposta à FIFA, o Brasil garantia que 18 cidades estavam aptas a sediar
jogos. Em 30 de outubro do mesmo ano, saiu o anúncio oficial em Zurique, na Suíça. Em
relação às Olimpíadas, a situação é inédita: em 2009, o Rio foi escolhido como a primeira
cidade brasileira sede das Olimpíadas, em 2016.
O megaevento contemporâneo se tornou a medida e o padrão de um tipo de
transformação fundamental para acirrar a competição entre as cidades que buscam o status
de “globais”. Isso ajuda a explicar a disputa entre metrópoles mundiais para sediá-los.
Apesar disso, cabe considerar que a realização dessas competições continua a reproduzir o
favorecimento de poucos e a criação de novas desigualdades no espaço urbano. Ao
privilegiar construções de alto investimento, as cidades que sediam estão abertas à uma
configuração capitalista de seus espaços. Barcelona, sede olímpica em 1992 na Espanha,
serviu de modelo e inspiração para essa padronização urbana, principalmente para cidades
ocidentais. É um modelo a ser seguido - e um dos mais bem sucedidos (DA COSTA,
2008).
4
Na definição de Carvalho (2000), o planejamento estratégico consiste na identificação de uma crise na
centralidade econômica da cidade; na necessidade de torná-la competitiva aos investimentos estrangeiros;
em uma ação que venda a imagem da cidade para o mundo, a partir da descoberta de algo que possa se
constituir em sua marca de identidade.
A cidade sediou os JO antes de passar por um forte momento de
desindustrialização que atingiu a economia. A indicação como sede foi precedida pela
criação de um plano de desenvolvimento urbano. Como resultado, notou-se o aumento na
construção de escritórios e também no preço inflacionado de imóveis, além da criação de
20 mil postos de trabalho permanentes ou empregos “não-olímpicos” na economia. Depois
da experiência de Barcelona, a disputa aumentou significativamente, refletindo a
importância e o crescimento das Olimpíadas como um megaevento global. A competição
para sediar os JO de 1992 envolveu mais de 20 cidades, aumentou para 40 em 2004 e, em
2008, mais de 50 entraram na disputa (DA COSTA, 2008). Na avaliação de Da Costa
(2008), esse aumento do interesse é também reflexo da queda na ajuda governamental aos
planejadores do espaço urbano a partir da década de 90.
A mídia atualmente desempenha um papel central na realização de um
megaevento. Horne (2006) destaca que a promoção dos megaeventos esportivos
(Olimpíadas e Copa do Mundo de Futebol, especialmente) depende do Estado e da mídia.
O Estado constrói o que é e o que não é legítimo na prática esportiva e, ao fazê-lo,
determina os interesses do consumidor esportivo, além de viabilizar parcerias entre
autoridades locais, voluntários e organizações comerciais. A mídia, para Horne (2006),
também é essencial, pois sem sua participação, os megaeventos não chamariam a atenção
do público e o patrocínio de empresas. É neste sentido que Pierre Bourdieu (1997) fala da
planetarização dos Jogos Olímpicos, a partir de sua íntima relação e dependência da mídia.
O sociólogo afirma que as Olimpíadas atendem à indústria do entretenimento e dos meios
de comunicação que, por sua vez, transformam a natureza, a proporção e o interesse do
público nos megaeventos.
Os aspectos ligados à comunicação, como direitos de televisão, publicidade e
licença de patrocínio, estão se tornando cada vez mais fontes de financiamento do esporte,
especialmente dos megaeventos (TAVARES E DA COSTA, 1999). O aumento nos gastos
com direitos de transmissão exclusivos ilustra a importância desta etapa de negociação
entre as organizações midiáticas. No caso das Olimpíadas, os direitos de transmissão para
televisão5 correspondem a cerca de um terço da renda total com o evento, seguidos de
renda com patrocínio, bilheteria e merchandising (HORNE, 2006). Já na Copa do Mundo,
a audiência cresceu em 2014, segundo a entidade que organiza o evento, mostrando que a
transmissão é bastante rentável - pelo menos para a FIFA TV.
Segundo dados publicados no site da federação, a Copa de 2014 na FIFA TV bateu
recordes de audiência. Nos Estados Unidos, por exemplo, o evento foi considerado um
5
A estreia da transmissão dos JO ao vivo pela televisão ocorreu em 1960 durante as Olimpíadas de Roma,
quando telespectadores de 19 países europeus assistiram às provas.
“divisor de águas” para o futebol. Segundo a federação, a audiência durante a Copa bateu
os índices de dois campeões de público televisivo no país norte-americano: os
campeonatos de basquete da National Bastketball Association (NBA) em 2014 e de
beisebol da World Series em 2013. Ainda de acordo com os números oficiais da FIFA, a
Copa no Brasil registrou as maiores audiências de TV de todos os tempos na Alemanha,
Holanda e Bélgica. A final de 2014 entre Alemanha e Argentina atraiu a maior audiência
na história da TV alemã, com uma média de 34,7 milhões assistindo pela ARD
(Agrupamento das Emissoras Regionais de Rádio e Televisão Alemãs).
A quantidade cada vez maior de pessoas que acompanham pela mídia as
competições esportivas também leva à uma maior projeção das cidades-sede. A cobertura
jornalística explora diferentes facetas das cidades, seus habitantes, sua cultura. Essa
exposição, em nível regional, nacional e global, potencializa sua utilização na construção
da imagem das cidades. Há uma geração de capital simbólico, capaz potencialmente de
auferir rendas e de obter vantagem no cenário competitivo urbano (HARVEY, 2006). A
circulação global (de pessoas, de mercadorias, de informações) implica em uma
ressignificação das cidades no interior do sistema produtivo internacional, que viram
produto de consumo, cuja imagem pode ser vendida internacionalmente. Campanhas de
marketing de divulgação das sedes e uma cobertura jornalística positiva sobre a cidade são
oportunidades para transformar a ideia que se tem de um local.
Durante os anos de preparação, o Mundial revelava desejos por cidades que
receberiam atletas, turistas e negócios. Os espaços urbanos precisavam parecer atrativos
aos novos visitantes e investidores em potencial. A capital do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, foi escolhida em maio de 2009 como uma das sedes do Mundial, além de ter sido
cotada como sede da Copa das Confederações de 2013, também organizada pela FIFA 6. A
possibilidade de realização desses eventos impôs mudanças físicas na capital, mas também
operou na dimensão simbólica, enquanto oportunidade de uma nova representação da
cidade. A cobertura jornalística local priorizou assuntos como o andamento e a construção
de obras, que se tornaram um acontecimento jornalístico de grande relevância. Vários
projetos voltaram ao debate público – alguns novos, outros, bem conhecidos.
Os sonhos da Porto Alegre “padrão-FIFA”
O metrô, o estádio Beira-Rio e a revitalização da Orla do Guaíba foram algumas
das obras detalhadas, analisadas, projetadas e sonhadas pelas lentes da mídia. Muitas
6
O evento ocorreu um ano antes da Copa do Mundo de Futebol e é considerado um preparativo para os
países que recebem o Mundial. Seis capitais brasileiras sediaram a Copa das Confederações: Rio de Janeiro,
Belo Horizonte, Fortaleza, Salvador, Recife e Brasília. A falta de garantias de que o Beira-Rio estaria pronto
até junho de 2013 foi a justificativa da FIFA para que Porto Alegre fosse excluída dessa lista.
vezes, a insistência em determinadas obras parece redimensionar sua importância. É como
se elas já estivessem ali, em pleno funcionamento, incorporadas ao cotidiano, como uma
peça real (e fundamental) do cenário urbano. Que motor é esse que turbina, dá vida, ao
real? O imaginário, responde Silva (2010). Na condição de pesquisador, nossa tarefa é
justamente revelar as estratégias de comunicação que recobrem o real de camadas de
imaginário.
Para Silva (2003), o imaginário é uma construção histórica. O principal desafio do
pesquisador que se lança ao estudo de imaginários é justamente mostrar a presença do
concreto no imaginário, e do imaginário no concreto, revelando a naturalização da cultura.
O autor observa que as sociedades produzem representações e passam a acreditar nelas
como se fossem naturais. Se o imaginário é uma máquina que turbina e colore o real,
notamos que a realidade das obras em Porto Alegre tornava-se por vezes fantástica,
desejável, mágica, temida, quando representada pela mídia. A vida comum, naturalizada
nos meios de comunicação, ganha uma nova abordagem através da dimensão da
espetacularização do real. Notícia vira espetáculo. De que forma isso é possível? Através
das tecnologias do imaginário.
Utilizando conceitos já formulados por Maffesoli e Debord, Silva afirma que as
tecnologias do imaginário “estabelecem ‘laço social’ (Maffesoli) e impõem-se como o
principal mecanismo de produção simbólica da ‘sociedade do espetáculo’ (Debord)”
(2003, p.21). O autor destaca que as tecnologias do imaginário disseminam imaginários e
são típicas da “sociedade do espetáculo”, baseada no apelo pela sedução e pela emoção.
Silva (2003) esclarece que a mídia (compreendida enquanto informação, arte e
entretenimento) reúne todas as características das tecnologias do imaginário. O autor
chama a atenção para a mudança na relação entre emissores e receptores, hoje baseada na
interação, na adesão e no transitório. No lugar da manipulação, a sedução; em vez de
persuasão, a construção de imaginários: “a submissão voluntária (adesão), subjugação
consentida (audiência), dominação suave, limpa e regulada (consumo), conivência política
e legítima (democracia formal)” (SILVA, 2003, p.71).
A mídia tem a intenção de nos fazer acreditar que o que escreve é verdade; o
leitor/telespectador/ouvinte/usuário tem que acreditar na notícia. Para isso, conforme já
destacado, representa a realidade, mas uma realidade particular. Silva (2003) explora as
questões que envolvem o uso da técnica jornalística, ao abordar as noções de exatidão e de
verdade no jornalismo. E ressalta: o jornalismo nunca alcançará a verdade, somente a
exatidão; não produz verdade, utiliza técnicas:
[...] a verdade que se enuncia, o que sobrevém, o que emerge, é o fato de que a
técnica jornalística espetaculariza o acontecimento, levando ao nãoacontecimento. O jornalismo espetacular forja o seu destinatário, cria o seu
receptor e programa o seu jornalista. Instala-se, de ponta a ponta, um imaginário
(SILVA, 2003, p.105).
Esse efeito de espetacularização resulta dos processos de construção da notícia,
reconstrução do acontecimento e dramatização. A formatação do acontecimento modifica
a percepção do destinatário. É como se sua “bacia semântica” fosse irrigada, passando a
influenciar no seu imaginário. Conforme explica Silva (2003), o termo “bacia semântica”,
empregado por Durand, significa um “canal de irrigação do real pela imaginação”. Desta
forma, Silva (2003) compreende as tecnologias do imaginário como dispositivos de
alimentação dessas bacias.
Assim, as tecnologias do imaginário contribuem para a
produção de mitos e também ditam visões de mundo e estilos de vida. Na medida em que
todo imaginário é uma narrativa, essas tecnologias podem ser chamadas de “fábricas de
mitologias” (SILVA, 2003).
É aqui que nosso objeto de pesquisa, a cidade de Porto Alegre, entra em cena
novamente. O que a mídia fabricou a respeito dessa cidade, quais utopias foram
disseminadas, que tipo de sentimento ficou evidente quando se abordou as transformações
da cidade rumo à Copa? É pertinente ressaltar que alguns ícones, obras, que marcaram o
período de chegada do Mundial não ficaram prontos a tempo; outros, nem saíram do
papel. No entanto, essas obras contribuem para essa multiplicidade de representações de
Porto Alegre. Além disso, os planos existiram na dimensão simbólica e imaginária,
mobilizaram desejos, provocaram euforia nas manchetes de jornal. Vivemos um período
importante de alterações do traçado urbano da capital gaúcha: a Porto Alegre da Copa do
Mundo. A partir dessas mudanças, foi latente a expectativa de que uma cidade
ressignificada estava emergindo no imaginário. Cabe indagar como a mídia representou
essa cidade que se transformava física e simbolicamente - afinal, estava prestes a se tornar
uma cidade “padrão-FIFA”.
Uma nova Porto Alegre se desenhava no horizonte de 2014: uma cidade de novas
ruas, avenidas, meios de locomoção, estádios. Os contornos desse “desenho” foram
estabelecidos também, através de palavras e imagens, pelo discurso jornalístico. Para
representar esse novo lugar os meios de comunicação usaram o artifício da aceleração do
tempo, que permitia ver (em imagens, fotos) ou imaginar (pela descrição do texto) os
projetos já concluídos. Assim, as tecnologias midiáticas possibilitaram que tais obras
fossem vistas por todos os ângulos, ainda que algumas nem tenham iniciado. Neste cenário
de renovação urbana, o estádio Beira-Rio, a orla do Guaíba e o metrô foram alguns dos
símbolos que representaram essa nova cidade.
O imaginário do medo, da preocupação e da polêmica marcou a cobertura
jornalística das obras, especialmente na abordagem sobre os estádios. O estádio oficial da
federação em Porto Alegre foi o Beira-Rio, do Sport Club Internacional. A reforma iniciou
oficialmente em julho de 2010 e terminou com as proximidades do primeiro jogo da Copa
na cidade, em 15 de junho. A obra estava orçada em R$ 330 milhões, em um contrato
privado de responsabilidade do Internacional, segundo informa a Matriz de
Responsabilidades. A reforma, que visava se adequar às exigências da FIFA, incluiu novas
arquibancadas, cobertura, camarote, setores de imprensa e de hospitalidade, duas mil
vagas de estacionamento e construção de edifício garagem com mais três mil vagas. A
estimativa era de uma capacidade de atender 62 mil torcedores. No entanto, o projeto
intitulado Gigante para Sempre não abrange somente a modernização do estádio, de
acordo com informações da Secopa:
[...] o projeto do Sport Club Internacional é ainda mais ambicioso, prevendo a
revitalização urbana de toda a área onde está localizado, com a construção de
um centro de convenções, um hotel cinco estrelas, um centro de medicina
esportiva, prédios comerciais, uma delegacia do turista, além da recuperação de
parte
da
orla
do
Guaíba7.
A renovação da Orla do Guaíba foi outro projeto “desarquivado” pelas instituições
políticas e pela mídia local antes da Copa do Mundo. Mas não é de hoje que a região que
compreende o Guaíba, próxima ao estádio Beira-Rio, ganha destaque no planejamento da
cidade; sempre foi um dos pontos estratégicos. A construção do porto tornou-se central
para o governo estadual durante a primeira onda modernizadora na cidade no início do
século XX. Na época, o porto era considerado como o elemento que sintetizou o
imaginário de “modernização” e de “progresso” da cidade e do Estado. Atualmente, as
narrativas sobre a cidade enfatizam muito a imagem do pôr-do-sol no Guaíba. É um dos
cartões-postais da cidade e ganhou espaço nos materiais oficiais de promoção e divulgação
da Copa do Mundo no Brasil8.
Em dezembro de 2007, dois meses depois da escolha do Brasil como sede do
Mundial, a prefeitura de Porto Alegre apresentou um plano de revitalização da orla. Pouco
antes da Copa, em novembro de 2013, havia expectativa de que alguns armazéns fossem
reformados no prazo de um ano. Durante o Mundial, algumas festas e eventos foram
realizados no espaço que compreende o Cais do Porto (o espaço foi chamado
Embarcadero) e a beira do Guaíba (a Fan Fest da FIFA). Mas o projeto de revitalização
não avançou muito.
Além do estádio Beira-Rio e da orla do Guaíba, quando o assunto é transporte
público, o metrô surgiu como a representação da solução para os problemas de trânsito na
cidade pré-Copa do Mundo. Anunciado como uma obra da Copa, o metrô não foi
7
Informações sobre os estádios em Porto Alegre no site da Secopa. Disponível em: <
http://www.secopapoa.com.br/default.php?p_secao=37>. Acesso em: 10 out. 2014.
8
BRAZIL is calling you: Copa 2014. Vídeo da FIFA TV. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=pSwANq8gRS8>. Acesso em abril de 2015. Nesse vídeo da FIFA TV
sobre Porto Alegre, além do pôr-do-sol no Guaíba, a maioria das imagens também está relacionada à
natureza, destacando os parques da Redenção e Moinhos de Vento.
construído para o Mundial e nem tem data para ser concretizado. O projeto começou a
ganhar maior visibilidade midiática a partir de 2009, quando ainda era considerado uma
obra de mobilidade urbana na Matriz de Responsabilidades da Copa. Notícias sobre a
construção do metrô foram publicadas em sites criados pelo governo federal e municipal9
para divulgar ações relacionadas ao megaevento. Os meios de comunicação locais também
deram espaço ao projeto. Mesmo que localizado no nível das intenções (e não das
concretizações), é um plano idealizado e apoiado por alguns jornais locais. Causa fascínio
e está ligado ao imaginário da cidade neste tempo específico.
Esse desejo antigo de ampliar o deslocamento por trens em Porto Alegre foi
despertado novamente com a Copa. Em 1976, foram desenvolvidos estudos para um
projeto que objetivasse a redução do fluxo de veículos na BR-116, região metropolitana da
capital gaúcha. Em 1980, foi fundada a Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre S.A.
(Trensurb), que iniciou cinco anos depois a operação de trens. No entanto, vale diferenciar
esse sistema de transporte por trens do projeto do metrô, que passou por novos debates a
partir da proximidade do Mundial. O metrô volta a ser discutido como a solução para os
problemas de mobilidade urbana. No site da prefeitura de Porto Alegre, a obra é
considerada prioridade às vésperas do megaevento. De acordo com a prefeitura, o projeto
do metrô terá integração com os sistemas de BRTs e com o Trensurb, em 14,88
quilômetros de extensão nas 13 estações. A expectativa era de que o metrô atenda 300 mil
passageiros por dia.
Todos esses desejos e expectativas foram desenvolvidos em projetos urbanísticos
pelos governos e lançados ao debate público pela mídia, que explorou cada um desses
projetos, detalhou as obras e fez crescer a importância desses temas para a cidade. Na
próxima etapa, pretendemos mostrar de que forma os meios de comunicação agiram como
protagonistas na arte de criar o sonho de uma nova Porto Alegre nascida da Copa do
Mundo.
Vamos sonhar juntos?
Ficará mais claro notar os mecanismos da mídia que permitiram incorporar
símbolos como o metrô, o estádio e a orla, no cotidiano urbano a partir da leitura da versão
online de Zero Hora (ZH), que publicou um infográfico (FIG 1) intitulado “Como será o
9
A notícia sobre a construção do metrô foi publicada em sites criados pelo governo federal e municipal para
divulgar
ações
relacionadas
à
Copa
do
Mundo.
Disponível
em:
<http://www.portal2014.org.br/noticias/982/PORTO+ALEGRE+CONFIRMA+METRO+PARA+COPA.ht
ml> e <http://www.copa2014.gov.br/noticia/porto-alegre-tera-r-1-bilhao-do-orcamento-do-governo-federalpara-obras-do-metro>. Acesso em 02 dez 2013.
metrô de Porto Alegre”10. A figura traz informações como a extensão da linha, o custo
total, o tempo de percurso, a tarifa, o início e a duração das obras e previa que o projeto
levasse até cinco anos, a partir de 2011, para ser concluído.
Figura 1 – Infográfico no site do jornal ZH (14 de outubro de 2011).
O veículo em vermelho, preto e branco, que aparece no infográfico, é uma
possibilidade imaginada, já que concretamente o metrô ainda havia sido materializado.
Rua da Praia, Cairu, Triângulo e Fiergs são as localidades em destaque como rota da linha.
Há também uma ferramenta de interação com o internauta: quando ele aproxima o mouse
na linha amarela traçada, é possível ver os bairros e ruas próximos do metrô. Através dos
verbos no imperativo, o dispositivo pede a participação do internauta: “Navegue pelo
mapa e veja onde ficarão as estações da primeira fase do metrô da Capital”.
Além do metrô, outra obra que fazia sonhar com uma capital gaúcha renovada foi a
reforma do estádio Beira-Rio. O site do jornal ZH publicou infográfico11 que mostra as
obras (FIG 2).
10
COMO será o metrô de Porto Alegre. Site de Zero Hora. Sem data de publicação. Disponível em:
<http://www.clicrbs.com.br/zerohora/swf/especial_metropoa>. Acesso em: 11 mar. 2015.
11BEIRA-RIO, antes e depois da armação da cobertura. Publicado no site de Zero Hora em 15 de outubro de
2013. Disponível em: < http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/infografico/beirario-antes-e-depois-daarmacao-da-cobertura-56681.html>. Acesso em 02 nov 2013.
Figura 2 - Infográfico no site de ZH (15 de outubro de 2013).
O internauta é mais uma vez convidado a interagir: “confira como mudou a
fachada do estádio após a instalação das folhas metálicas que sustentarão a membrana que
cobrirá o Gigante”. Para isso, há um dispositivo de experimentação no estilo “antes e
depois”. Trata-se de uma foto da armação da cobertura do estádio. O lado esquerdo da
imagem representa o “antes”: o estado “real” do estádio. Já a parte direita da foto revela o
“depois” da obra, com a armação já colocada. Em um clique, o internauta experimenta a
mágica de ir do presente para o futuro, entra numa espécie de “máquina do tempo”, rumo
direção ao futuro - viagem proporcionada pela ferramenta midiática.
A renovação da região do Guaíba também foi sonhada em tempos de Mundial. Em
fevereiro de 2014, Zero Hora anunciou em uma reportagem12 que a primeira fase de
demolições do Cais terminaria em duas semanas e previa conclusão para dali a três anos.
Segundo o texto, “há quase três meses, a revitalização de cerca de dois quilômetros do
Cais Mauá, em Porto Alegre, começou a sair do papel”. A reportagem destaca ainda a
demolição de construções erguidas entre os armazéns históricos para abrigar
estabelecimentos comerciais, como lojas e restaurantes. Na mesma matéria, destaca-se a
foto do cais e um infográfico com detalhes da revitalização que “por mais de duas
décadas, foi um sonho não concretizado”, segundo o texto (FIG 3).
12
PRIMEIRA fase de demolições do Cais Mauá, em Porto Alegre, deve terminar em duas semanas.
Publicado
no
site
de
Zero
Hora
em
05
fev
2014.
Disponível
em:
<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/02/primeira-fase-de-demolicoes-do-cais-maua-em-portoalegre-deve-terminar-em-duas-semanas-4410294.html>. Acesso em: 16 mar. 2015.
Figura 3 – Infográfico no site do jornal ZH (05 de fevereiro de 2014).
Repare nas duas expressões utilizadas ao longo da matéria: “sair do papel” e
“sonho não concretizado”. O infográfico cria essa possibilidade de desengessar a obra,
transformando-a em um local imaginado e interativo. Através das legendas, é possível
inventar um lugar completamente diferente. Permite ao internauta que conheça cada região
e se localize espacialmente para, a partir daí, escolher os pontos nos quais irá se locomover
(com o auxílio do mouse) e buscar informações. É desta forma que o “sonho não
concretizado” ganha vida em cada um dos oito pontos destacados no infográfico. Ao
clique do mouse, textos propõem uma nova visão sobre o cais Mauá. Uma das legendas
promete que “o prédio onde funciona a superintendência de portos e hidrovias dará espaço
a um ‘hotel luxuoso, ao estilo butique’”. O leitor ainda fica com a sensação de que muitos
espaços verdes vão ser criados no local. As legendas falam sobre a construção de um
jardim vertical no muro que separa o cais da Avenida Mauá: “Na região, uma praça
escondida vai ser revitalizada. E mais árvores devem ser plantadas no local”.
Um ano depois dessa reportagem de ZH, o assunto seguia ganhando destaque em
outros veículos locais. O jornal Correio do Povo publicou em março de 2015 uma matéria
no site13 sobre as propostas de empresas para revitalizar orla, que seriam recebidas naquele
dia pela prefeitura. O texto dava prazo para conclusão da reforma: “Depois de conhecida a
empresa vencedora, a previsão é de que a obra esteja concluída entre 12 e 18 meses”. A
13
PRIMEIRA fase de demolições do Cais Mauá, em Porto Alegre, deve terminar em duas semanas.
Publicado no site do Correio do Povo em 03 mar 2015. Disponível em: <
http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/550340/Propostas-de-empresas-para-revitalizar-orla-do-Guaibaserao-recebidas-nesta-terca>. Acesso em 16 mar 2015.
foto do projeto arquitetônico, que acompanha a reportagem, mostra um local totalmente
diferente, idealizado e projetado no futuro.
A partir do acompanhamento das matérias sobre o metrô, a reforma do estádio e a
revitalização da orla, esses sonhos seguiam tendo espaço na mídia local. Revelava-se um
imaginário urbano específico, que continha os sonhos de uma cidade idealizada com a
chegada da Copa. Cumprindo com nossa missão de pesquisador do imaginário, podemos
afirmar que a cidade foi coberta por uma espécie de véu de magia e de fascínio que
recobria a realidade. A chegada do metrô e a revitalização da região do Guaíba não se
concretizaram. Mas, ao ler as notícias, emergiu um sentimento de exaltação, de euforia, de
necessidade de que as obras fossem ao menos iniciadas. Os projetos, pela descrição da
mídia, foram experimentados e incorporados no cotidiano de Porto Alegre. Essa é uma
criação da mídia, possibilitada através do acionamento de diferentes ferramentas
discursivas. Ficou a sensação de que foi só um sonho – mas um sonho coletivo, sonhado
através das narrativas midiáticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DA COSTA, Lamartine. Legados de megaeventos esportivos. Brasília: Ministério dos
Esportes, 2008.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2006.
HORNE, John. Sport in consumer culture. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2006.
SILVA, Juremir Machado da. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003.
________. O que pesquisar quer dizer: como fazer textos acadêmicos sem medo da
ABNT e da CAPES. Porto Alegre: Sulina, 2010.
TAVARES, Otávio; DA COSTA, Lamartine P. Estudos Olímpicos. Rio de Janeiro:
Editora Gama Filho, 1999.
A reambientação do jornalismo popular
no digital
Karen Sica14
Resumo:
O jornalismo popular é formado por elementos que o diferencia de publicações
tradicionais. No ambiente digital, estas características não permanecem em sua totalidade
quando as publicações se apresentam em sites e apps. Este trabalho objetiva trazer
subsídios que constatem esta informação, promovendo a possibilidade de uma integração
entre o popular e o tradicional quando os mesmos estão presentes no ambiente digital.
Palavras-chave: jornalismo popular, nova classe média brasileira, jornalismo digital,
convergência midiática.
1. Introdução
As transformações tecnológicas que ocorreram a partir de 1994, com o crescimento
expressivo da internet, alteraram a forma pela qual os jornais impressos eram planejados,
desenvolvidos e distribuídos. O aparecimento da mídia digital reorganizou os formatos de
comunicação e favoreceu novas articulações sociais, bem como maneiras inovadoras de
disseminação da informação.
A consolidação da comunicação no ambiente digital incorporou elementos
inovadores para o jornalismo, entre eles a multimidialidade, a interatividade e a
hipertextualidade (SALAVERRIA, 2005; CANAVILHAS, 2012). A efervescência do
jornalismo, a partir do surgimento da internet, comprova a apropriação do meio com a
finalidade de informação, o que aponta para uma necessidade social da comunidade. Os
jornais tradicionais foram os primeiros a garantirem espaço no ambiente digital e, aos
poucos, os jornais populares também passaram a estar presentes neste contexto.
As características das publicações populares, traçadas por Amaral (2006), como o apelo
visual, a linguagem acessível, as matérias idealizadas para o público-leitor de classes “C”,
“D” e “E”, com apelo dramático, proximidade geográfica e retrato do cotidiano,
continuam presentes apenas no impresso, não no digital, onde estas informações poderiam
Professora no Curso de Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Comunicação Social na Faculdade de
Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. (PUCRS). E-mail:
[email protected].
14
estar alinhadas com as possibilidades existentes. O contato direto com o público e a
sensação de pertencimento, bem como os itens anteriores destacados, é o que traz um
diferencial para este gênero popular, que está em pleno crescimento devido ao avanço da
classe média brasileira nos últimos dez anos (IBOPE, 2014).
Percebe-se, entretanto, que os jornais populares brasileiros ainda buscam um espaço no
ambiente digital e muitas publicações estão aquém das possibilidades de usos da
tecnologia. Este trabalho, portanto, objetiva trazer subsídios que constatem esta
informação, promovendo a possibilidade de uma integração entre o popular e o tradicional
quando os mesmos estão presentes no ambiente digital.
2. O jornalismo popular e a Classe “C”
Os meios de comunicação sofreram alterações nos últimos anos devido aos
avanços tecnológicos, ao acesso de informação renovado e cada vez mais ágil, às
mudanças nos hábitos de leitura dos indivíduos, entre outros fatores que influenciaram
este processo. Veículos de comunicação surgiram, bem como novos públicos apareceram
para suprir a demanda do mercado. Na última década do século XX, os jornais populares
chegaram ao Brasil com o intuito de alcançar e manter informados os indivíduos de
classes “C”, “D” e “E”, que eram ‘menosprezados’ pelos grandes veículos de
comunicação. Isto foi possível devido ao processo de industrialização, ocorrido no
período de Getúlio Vargas, e às transformações urbanas e econômicas do país, que
possibilitaram um aumento de empregos formais (AMARAL, 2006).
No contexto de uma considerável potencialidade econômica brasileira, iniciado
em meados de 1994 com o Plano Real e alinhado ao acesso a novas fontes de informações
como a internet, o aumento do poder aquisitivo é um dos aspectos que se evidencia
nitidamente, possibilitando as transformações no perfil distributivo de renda e,
consequentemente, a estratificação social no país. Embora este processo multifacetado
seja recente, a ascensão de uma nova classe média brasileira, denominada também de
classe “C"15, tem sido um tema de debates e destaque nos meios de comunicação, bem
como nos segmentos acadêmicos vinculados à área da comunicação visto que esta
significação gerou um redesenho na pirâmide social brasileira nos últimos anos. Prahalad
(2010) aponta que a pirâmide social do Brasil se transformou em um losango, no qual a
nova classe média ganha destaque na sociedade. Em consequência, houve a necessidade
de mudanças organizacionais a fim de que as empresas, bem como a mídia, sofressem
adaptações à diversidade existente.
15
Nesta pesquisa, trata-se classe “C" e nova classe média como termos equivalentes.
Embora o termo nova classe média esteja sendo bastante utilizado pela mídia
brasileira nos últimos dez anos, existem diferentes definições para o mesmo, o que gera
diferenças significativas na mensuração dessa camada popular e no valor atribuído a ela.
Os institutos de pesquisa que analisam estes indivíduos costumam considerar a renda
familiar como a principal variável para a identificação dos indivíduos que fazem parte da
classe média. Marcelo Neri (2011) e Márcio Pochmann (2012) também classificam a
sociedade brasileira tendo como base, principalmente, a renda dos indivíduos. Márcio
Pochmann (2012), por sua vez, garante que as transformações financeiras e sociais
sofridas pela base da pirâmide social podem ter mudado a situação econômica dessa fatia
enorme da população, porém o autor acredita que esta mudança não foi suficientemente
forte para retirar estas pessoas da condição de pobreza.
Já o pesquisador Jessé Souza (2012) compreende que as classes deveriam ser
definidas por seu estilo de vida e visão de mundo, não apenas pela renda familiar dos
indivíduos, embora e renda também seja um fator a ser considerado. O autor acredita que
os indivíduos emergentes não formariam uma nova classe média, mas sim uma nova
classe trabalhadora, composta por batalhadores brasileiros, e que estes estão indo em
busca de novos bens materiais, melhores condições de vida, qualidade de vida e
informação.
O fato de haver uma discrepância no que diz respeito ao termo nova classe média
brasileira apenas instiga ainda mais a discussão e justifica a abordagem do tema deste
artigo. Principalmente quando há uma relação intrínseca com a área da comunicação,
visto que os jornais populares no Brasil ainda seguem com alto índice de circulação. De
acordo com pesquisas realizadas mensalmente pelo Instituto Verificador de Comunicação
(IVC)16, cinco de dez jornais de maior circulação no país são publicações essencialmente
populares, são eles: Super Notícia, de Belo Horizonte/MG; Daqui, de Goiânia/GO; Extra,
do Rio de Janeiro/RJ; Diário Gaúcho, de Porto Alegre/RS e Meia Hora, do Rio de
Janeiro/RS. Muitos deles possuem jornais co-irmãos que podem ser categorizados como
tradicionais e standards, como é o caso do Extra e do jornal O Globo, e o Diário Gaúcho e
o jornal Zero Hora. Estes são impressos nascidos no mesmo grupo de comunicação, sendo
os populares destinados às classes “C”, “D” e “E”, e os tradicionais para as classes “A” e
“B”.
Isso apenas reforça o fato de que os indivíduos componentes desta parcela da
população brasileira passaram a buscar informação de uma forma contínua a fim de se
manterem presentes e serem membros interagentes dentro da sociedade, o que favoreceu
16
Disponível em: http://ivcbrasil.org.br/iMediaPlanner.asp?T=W
ainda mais o crescimento dos jornais populares. Além de manter as pessoas informadas
com, principalmente, assuntos locais e regionais, os jornais populares criaram um vínculo
forte com seu público-alvo justamente devido suas características, de acordo com Amaral
(2006) e Giner (2003): a) apelo visual: fotos vibrantes e coloridas, diagramação com
títulos instigantes, muitas vezes curiosos; b) linguagem acessível para estas pessoas que
estão criando o hábito da leitura de um jornal diário e os assuntos relevantes para que
tenham como foco os públicos de classes “C”, “D” e “E”; c) matérias idealizadas para
este público-leitor, com apelo dramático, proximidade geográfica, retrato do cotidiano do
público-leitor e cultural criada com o leitor; d) matérias que evidenciam as sensações que
o repórter presenciou no local da reportagem/fato e textos que expõem detalhes de cenário
e do ambiente no qual a notícia ocorreu; e) habilidade na promoção do entretenimento
com o público, principalmente com o uso de “promoções agregadas”, explicadas
anteriormente; f) baixo custo de compra do produto, normalmente com uma média de
preço que varia de R$ 0,75 a R$ 1,50 por edição.
Giner (2003) identifica, ainda, objetivos essenciais de uma publicação popular a
fim de que ela seja diferenciada de um jornal tradicional. São eles: entretenimento e
informação, serviço, educação. De acordo com o autor, o leitor da nova classe média
brasileira não tinha o hábito da leitura, mas adquiriu este hábito ao comprar o jornal
popular diariamente e perceber nele um valor-notícia. Isto é, o dinheiro que ali estava
sendo empregado, gerava conhecimento, informação e era, portanto, relevante para este
indivíduo. Assim, as publicações cumprem uma das suas principais funções: a utilidade.
Estes elementos fundamentais do jornalismo popular são o que o diferencia do jornalismo
tradicional. O contato direto com o público, a relação de amizade e a sensação de
pertencimento que existe a partir do leitor para com a publicação, bem como os itens
destacados anteriormente, é o que traz um diferencial para este gênero jornalístico
popular.
3. Desafios das novas linguagens no ambiente digital
O crescimento expressivo da internet e as possibilidades de utilização de novas
tecnologias, principalmente a partir de 1994, alteraram a forma pela qual os jornais
impressos eram planejados, desenvolvidos e distribuídos para os seus públicos. Ao tratar
sobre novas tecnologias, surgem novas interações entre informação e cultura, bem como
uma realidade completamente diferente para o jornalista de redação, e jornalista e leitor.
O aprimoramento do jornalismo digital redefine funções presentes no jornalismo
impresso. Os profissionais da comunicação sofreram intensas alterações no que diz
respeito ao desenvolvimento tecnológico e os processos de convergência desencadeados
nas redações. A partir deste contexto digital, ocorrem mudanças de equipes e
são
redefinidas rotinas jornalísticas na redação, que alteram o cotidiano dos profissionais da
comunicação (SALAVERRÍA, 2007).
A configuração de uma nova linguagem para o meio de comunicação no
ambiente
digital
incorporou
três
questões
inovadoras
para
o
jornalismo:
a
multimidialidade, a interatividade e a hipertextualidade. A utilização de um suporte digital
com o objetivo de conectar os jornalistas com o público mediante as redes possibilitou
que a interatividade se tornasse eficaz. Através desta, o sujeito promove os fluxos
informativos, o que implica a quebra a linearidade, que separam os interagentes em
emissor e receptor. Além disso, proporciona condições à colaboração, sendo que o
indivíduo ganha destaque no fazer jornalístico. A notícia em um meio online tem a
capacidade de fazer com que o leitor sinta-se parte do processo de fabricação através da
troca de e-mails; da disponibilização da opinião em comentários, fóruns, entre outros
(BARDOEL; DEUZE; 2001).
Já a hipertextualidade possibilita a interconexão de textos através de links onde
um mesmo assunto pode ser remetido a diversos textos, de acordo com a vontade do
leitor. Um texto pode conter conteúdos multimídia, além de outros sites relacionados ao
assunto, material de arquivo dos jornais, textos jornalísticos que possam gerar polêmica
em torno do assunto noticiado. O indivíduo determina o caminho de leitura que deseja
seguir. Esta é a capacidade que a rede possui para organizar estruturas discursivas lineares
e não-lineares mediante unidades de conteúdos multimidiáticos, sendo que quem define o
trajeto é o indivíduo que está em frente à tela.
Os meios de comunicação que não buscam as possibilidades tecnológicas, bem
como não compreendem esta nova realidade, na qual o indivíduo não é um mero
espectador dos fatos, mas sim um consumidor e um produtor de conteúdo, tendem a
perder seus futuros públicos, formados por jovens, acostumados à linguagem audiovisual
e a conteúdos lúdicos e interativos. Estas características são aplicadas para todos os
leitores, independente de classes sociais, visto que jovens que integram a classe “C”, de
acordo com pesquisa realizada pelo Data Popular (2012)17, são os novos formadores de
opinião, interagem na internet e buscam cultura e aperfeiçoamento.
As novas linguagens que surgiram através da internet são importantes para que se
possa compreender o ambiente digital no qual se configura os conteúdos jornalísticos. A
Pesquisa “Geração C”, produzida pelo Instituto Data Popular. Matéria no site da Secretaria de Assuntos
Estratégicos, publicada em 11 de fevereiro de 2012. Disponível em: <
http://www.sae.gov.br/site/?p=10589>. Acesso em 25 de outubro de 2014.
17
multimidialidade, por sua vez, refere-se à convergência dos formatos das mídias
tradicionais, independentemente de quantas forem, representadas por imagem, texto e som
na narração do fato jornalístico. A convergência torna-se possível em função do processo
de digitalização da informação e a sua posterior circulação e/ou disponibilização em
múltiplas plataformas e suportes, numa situação de agregação e complementaridade
(PALACIOS, 2003).
Outro desafio à comunicação e ao jornalismo, no contexto digital, é a
mobilidade. Nas últimas décadas, os avanços tecnológicos permitiram que as notícias
cheguem mais rápido a um público muito mais amplo. A democratização do acesso à
informação gera uma busca por um meio de linguagem eficaz e um conjunto de temas de
interesse público, o que possibilita a falta de especificidade do jornalismo impresso. Por
outro lado, há os meios de comunicação que buscam os nichos de mercado e trabalham
notícias especializadas, criando assim um outro extremo: a especialização em excesso
(CANAVILHAS, 2012).
Concebido como um dispositivo de telecomunicação destinado apenas à elite, o
celular evoluiu até o aparelho multifuncional, que está constantemente ligado e tem um
caráter pessoal, informativo, totalmente voltado à comunicação. O smartphone ganhou um
espaço central na vida pessoal e profissional dos indivíduos pelo fato de gerar interação
em qualquer momento do dia e local. De acordo com a pesquisa18 do Instituto Brasileiro
de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), divulgada em setembro de 2014, o número de
usuários ativos e com acesso à rede vem aumentando significativamente no Brasil. A
estimativa aponta a existência de 120,3 milhões de pessoas com acesso à internet no país,
o que significa um aumento de 18% em relação a estimativa divulgada no primeiro
trimestre de 2013, que era de 102,3 milhões, e 14% maior que a última divulgação, que
tinha sido de 105,1 milhões, referente ao segundo trimestre de 2013.
Além disso, a venda de dispositivos móveis cresce consideravelmente no país,
fator que indica mais uma vez o poder de consumo de bens duráveis por parte desta nova
classe média. De acordo com a pesquisa realizada pelo IDC19, divulgada em março de
2015, o mercado brasileiro de tablets finalizou o ano de 2014 com alta de 13% em volume
de vendas, totalizando cerca de 9,5 milhões de aparelhos comercializados. Deste volume,
96% das vendas foram para o consumidor final. Estes dados apontam, mais uma vez, que
Matéria intitulada “Número de pessoas com acesso à internet no Brasil supera 120 milhões”. Disponível
em: <http://www.nielsen.com/br/pt/press-room/2014/Numero-de-pessoas-com-acesso-a-internet-no-Brasilsupera-120-milhoes.html>. Acesso em: 22 de outubro de 2015.
19
Informações publicadas no site do IDC. Disponível em:
<http://www.idclatin.com/releases/news.aspx?id=1786>. Acesso em: 22 de abril de 2015.
18
a rapidez com que os aparelhos evoluíram e se enraizaram na sociedade é uma
consequência da forma como a tecnologia e o uso dado pelo indivíduo sofrem influência
de forma mútua. A existência destes dispositivos móveis possibilitou uma necessidade
nova, que por ser cada vez mais exigente, obrigou a tecnologia a responder com novas
valências.
4. Considerações finais
Após uma análise das características do jornalismo popular impresso e uma
comparação com os mesmos no ambiente digital, tendo como base um estudo de caso
amplo dos jornais Extra/RJ e Diário Gaúcho/RS, pode-se afirmar que o ambiente digital
proporciona
funcionalidades
marcantes,
como
é
o
caso
da
interatividade,
hipertextualidade e multimidialidade, e os jornais populares podem e devem se apropriar
desses elementos a fim de proporcionar um conteúdo de qualidade a seus leitores em
diferentes aparatos tecnológicos. Para tanto, torna-se necessário que haja uma equipe de
jornalistas treinados para trabalhar com diferentes linguagens e formatos. Para estar
presente no ambiente digital, não bastar apenas ter um site ou um app, mas, sim, exibir
um material jornalístico coeso, de qualidade, com informação relevante para o público,
que esteja presente onde o público está, seja por acesso em dispositivos móveis ou
desktop. O jornalismo desenvolvido para o impresso deve ser diferente do trabalho
apresentado no ambiente digital, mas, ao mesmo tempo, torna-se importante compreender
que o impresso e o digital não andam mais separados. Afinal, a cultura da redação deveria
ter sido modificada no momento em que a forma de consumo de informação sofreu
alterações significativas devido ao acesso a tecnologias e ao surgimento de novos hábitos
por parte dos leitores.
Percebe-se, também, que as mensagens produzidas para o ambiente digital não
estão apenas traçadas no jornalismo popular ou no tradicional, mas, sim, em uma junção
dos dois gêneros, que abrange tanto elementos do popular, como as cores, o layout e as
chamadas instigantes, assim como também oferece uma linguagem direta, como a
utilizada no jornalismo tradicional, e assuntos que não necessariamente são relevantes
para um público de classe "C". Isto ocorre devido à proximidade de redações dos dois
gêneros em um mesmo veículo de comunicação, à crise do jornalismo em sua totalidade,
à falta de uma equipe de profissionais que trabalhe exclusivamente conteúdos digitais
dentro das redações de jornais populares, a questões econômicas dos grandes meios de
comunicação e a fatores já evidenciados nesta pesquisa anteriormente. Observa-se,
também, que a linguagem de um jornal tradicional passa a ser utilizada em um jornal
popular no ambiente digital, quando se trata de jornais coirmãos. Isto é, os gêneros que
havia antes do surgimento da internet nem sempre se apresentam da mesma forma quando
aplicados a esse novo ambiente. Sendo assim, pode-se afirmar que há uma reambientação
do jornalismo popular quando o mesmo está presente no meio digital, no momento em
que há uma união de elementos do gênero popular com características do jornalismo
tradicional, criando uma linguagem-padrão, a qual pode ser identificada tanto no Diário
Gaúcho quanto no Extra.
Além disso, afirma-se que não há uma definição de classes sociais no ambiente
digital. Todos os indivíduos estão ali presentes com o objetivo de busca de informação,
independentemente do ambiente no qual eles estão inseridos social e economicamente. De
acordo com os editores entrevistados para esta pesquisa, percebe-se que os leitores dessas
publicações no ambiente digital não são apenas os leitores com as mesmas características
dos consumidores de jornais impressos diários, pois o ambiente digital proporciona
inúmeras informações para qualquer internauta, independentemente de classes. Então,
assim como leitores de classe “C" interagem e buscam conteúdos em sites de jornais
tradicionais, há leitores de classe “A" e “B" que, em determinado momento, acessam
notícias de jornais populares, havendo um desvio de audiência que faz parte do processo
de busca de informação e também de busca por pertencimento.
Referencial bibliográfico
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trabalhadora? 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
Mesa 2 - MOBILIDADE E INTERNET DAS COISAS
Coordenação: Sandra Henriques
Etnografia móvel: uma proposta de estudo do Paradigma das Mobilidades
Sandra Mara Garcia Henriques20
Resumo: Este trabalho propõe um novo olhar para a observação dos dispositivos móveis e
sua influência no processo comunicacional. A partir do Paradigma das Mobilidades
(URRY, 2007) busca-se ressaltar a importância das conexões sociais e suas relações com o
movimento. Para a compreensão do Paradigma no contexto atual, sugere-se uma
abordagem denominada Etnografia Móvel, uma metodologia que possui como proposta
compreender as experiências de mobilidade vivida pelos grupos em territórios e os
reflexos destes fenômenos na comunicação e interação social.
Palavras-chave: Comunicação; Mobilidade; Dispositivos móveis; Paradigma das
Mobilidades; Etnografia móvel.
O uso de dispositivos móveis e a amplitude das possibilidades de mobilidade veem
gerando novas perspectivas perante os processos informacionais e comunicacionais e,
consequentemente, ao cotidiano dos indivíduos. Estas perspectivas passam a ser
observadas a partir do momento em que os indivíduos estão conectados todo o tempo e
têm a possibilidade de produzir e compartilhar informações de forma imediata em sites,
aplicativos de redes sociais, e, também, para outros dispositivos.
Diante disto, a necessidade de outro olhar se faz necessária, propõe-se uma
observação a partir do viés de um Paradigma das Mobilidades desenvolvido pelo
sociólogo John Urry (2007) que parte do princípio da existência de uma nova ideologia
que ressalta o movimento como fator importante para a compreensão da sociedade, e
potencializa elementos presentes no cotidiano que merecem ser estudados enquanto
mobilidades e suas relações na vida social. Um dos principais desafios nos estudos das
20
Doutoranda do PPGCOM-PUCRS - Bolsista CAPES/FAPERGS. Mestre em
Comunicação Social pelo PPGCOM-PUCRS. E-mail:[email protected]
mobilidades refere-se à metodologia de pesquisa que deve ser apropriada para a
observação dos fenômenos móveis.
Assim, este trabalho busca contribuir com o estudo das mobilidades a partir da
ótica da Etnografia móvel, um método que possui a peculiaridade de estudar a mobilidade
dos indivíduos e suas conexões em territórios móveis. Apoiada ao Paradigma, ela trata das
mobilidades de uma justaposição de fatores locais e globais, que utiliza as tecnologias
móveis para mapear, acompanhar, registrar e descrever o processo ampliando as práticas
de observação das dinâmicas comunicacionais entre os indivíduos. O fundamental desta
metodologia é compreender as experiências de mobilidade vivida pelos grupos e qual os
reflexos destas na comunicação e interação social.
O Paradigma das Mobilidades
Com o século XX, novos sistemas que movem ideias, informações e pessoas
passam a fazer parte da sociedade de forma rápida e eficaz permitindo que as estruturas
sociais sejam ampliadas. Estudiosos atuais de processos que envolvem a capacidade cada
vez mais avançada e pouco explorada, da potencialidade de movimento nos dias atuais,
perceberam a necessidade de um olhar voltado para os estudos relacionados à mobilidade.
Esse novo viés surge com a constatação de que os estudos relacionados à mobilidade nas
ciências sociais, através dos tempos, estavam voltados aos efeitos do movimento na
sociedade, e não relacionados a ele enquanto um processo. Algo que dedicasse à
mobilidade o foco principal e não complementar a outros estudos.
É diante desta perspectiva que John Urry (2007) desenvolve o chamado
Paradigma das Mobilidades apontando a existência de uma nova ideologia que ressalta o
movimento como fator importante para a compreensão da sociedade.
Urry (2007) fundamenta o paradigma a partir da observação de que as ciências
sociais (aplicadas ou não) pouco tratam das questões voltadas à mobilidade, ignoram o
movimento como um ponto a ser estudado para compreender as estruturas sociais. Ele
apoia o paradigma no fato de que o tempo, as redes, a comunicação e a informação, e os
demais aspectos são elementos presentes na vida da sociedade atual e, portanto, merecem
ser estudados enquanto mobilidades e suas relações na vida social. A pluralidade do termo
é proposital, pois segundo o autor não há apenas um tipo de mobilidade, o movimento faz
parte de algo bem mais amplo, como as dimensões que envolvem o indivíduo de forma
cultural, imaginária, afetiva e espacial. Segundo ele vive-se vários tipos de movimentos,
paralelos, consecutivos, distantes um do outro, mas todos eles constantes no mundo social.
Atualmente, ideias, pessoas, objetos, informações transitam em ambientes devido à
velocidade do desenvolvimento tecnológico em função de um novo fenômeno cultural
móvel, permeado de fluidez e efemeridade, tornando inconstantes espaço, tempo e
significado. Para ele, as mobilidades estão associadas às mudanças que as cidades veem
sofrendo ao longo dos séculos, principalmente nos séculos XX e XXI e compara o tempo
como algo que mexe profundamente com a capacidade de movimento. O exemplo que o
autor dá para justificar esse processo é o relógio. Há um século atrás ele era tão simbólico
do moderno como o telefone celular é ubíquo e representa a modernidade dos dias atuais.
O Paradigma das Mobilidades vai além de querer suprir uma deficiência nos
estudos das ciências sociais, é um método que implica no estudo de como as mobilidades
influenciam o meio social. Ele passa a questionar a imposição da noção de presença,
relacionada aos ambientes físicos como pressuposto fundamental no estudo das interações
sociais em relação à proximidade e distância.
Esta questão se insere no paradigma a partir do contexto de que o movimento
sempre foi muito observado em relação ao corpo que se move, sua performance,
apontando que as pessoas dão sentindo ao mundo se movimentando por ele. Pela
sensibilidade física, o corpo sente a experiência dos espaços pela experimentação do
movimento. Os telefones celulares, hoje em dia, ampliam esta experiência, para Urry
(2011, p. 6), “vários objetos e tecnologias cotidianas sensualmente estendem as
capacidades dos laços humanos em todo o mundo” produzindo, assim, movimento durável
e estável.
Com o aumento da mobilidade, proporcionado pelo crescente desenvolvimento de
dispositivos que ampliam a comunicação entre as pessoas, há uma mudança perceptível
nas relações de presença nos ambientes urbanos das cidades, o desenvolvimento de
coordenação temporal ajudou resolver o problema da "distância" na cidade e na
comunicação. Desta forma, torna-se necessário um outro olhar, outra perspectiva
metodológica de pesquisa para que a compreensão deste processo se construa de forma a
acompanhar a atual conjuntura social na qual a mobilidade perpassa todos os campos,
principalmente da comunicação e interação entre as pessoas.
A mobilidade tecnológica é um fenômeno cultural na atualidade; as relações entre
as pessoas e os espaços que ela proporciona alteram os territórios que passam a carregar
informações como uma dupla camada que permeia o ciberespaço e o espaço urbano ao
mesmo tempo. Este espaço, dito espaço híbrido, é local utilizado cotidianamente para o
indivíduo se informar e comunicar com o mundo. As conexões always on (PELLANDA,
2005) por meio do uso de dispositivos móveis unem os espaços sociais - ciberespaço e
espaço urbano - em um único território informacional (LEMOS, 2007).
As tecnologias tornaram móvel a relação dos indivíduos com a informação e com
os territórios, o que se vê nas cidades são pessoas conectadas em rede e em territórios
móveis. O uso do GPS fomentou a criação deste novo território permeado de fluxos
informacionais (LEMOS 2007).
Estes fluxos estão associados tanto ao virtual do
ciberespaço quanto ao físico dos espaços urbanos, por isso vive-se atualmente novos
espaços híbridos nos quais a informação está associada e cada vez mais fomentada pelas
pessoas que por eles circulam. Lemos pontua “o território informacional não é o
ciberespaço, mas o espaço movente, híbrido, formado pela relação entre o espaço
eletrônico e o espaço físico” (2007, p. 221). Pode-se dizer que os dispositivos móveis se
tornaram mais conscientes de localização e com eles os indivíduos passaram a deixar
rastros nos espaços ao se movimentar e agregar informações a eles.
É a partir desse aspecto que se propõe um método que acompanhe os estudos e as
características do Paradigma das Mobilidades neste crescente fenômeno móvel, que
representa outra perspectiva cultural em relação á comunicação entre as pessoas e as
formas como a informação é disponibilizada, produzida e compartilhada. É o que Lemos
(2009) denomina de cultura da mobilidade na qual as pessoas, as cidades e as dimensões
interacionais sofrem uma reconfiguração devido ao constante movimento que perpassa as
estruturas sociais.
Etnografia móvel como proposta de estudo
Os estudos que abordam as questões relacionadas à mobilidade tecnológica
possuem desafios que vão além da busca de referenciais teóricos e observações de como
se pode estudar o movimento realizado por pessoas, ideias e/ou objetos. Um dos principais
desafios encontrados está em uma metodologia adequada que dê conta de compreender o
processo.
Ao propor uma etnografia móvel para a compreensão da mobilidade nos
estudos comunicacionais, partimos de um ponto principal da relação entre as tecnologias
móveis, seu uso pelas pessoas e a fluidez de territórios conectados. A geografia das redes
de conexão entre as pessoas é alterada por um acesso contínuo, o que altera
constantemente o território informacional que liga os grupos. Em um Paradigma mas
mobilidades, o território no qual a pesquisa é realizada não é estático, está sempre em
movimento.
Os agrupamentos da sociedade atual se diferenciam daqueles estudados no final
dos séculos XIX e XX pelos etnógrafos da época. Neste tempo estudavam-se as
comunidades únicas, contínuas que poderiam ser descritas pelos seus hábitos e costumes
locais. Hoje, a comunidade está centrada em agrupamentos que possuem como
característica a efemeridade e fluidez das relações e dos territórios habitados. A
comunidade e o território passam a ser móveis.
Com o ciberespaço, as comunidades adquiriram maior mobilidade, o que
possibilitou aos grupos transitarem em um espaço virtual. A etnografia virtual possibilita
os estudos destas mobilidades em redes digitais. No entanto, há uma reorganização atual
que une as conexões virtuais e o espaço físico das cidades como pontos de encontro e
formação de grupos. A mobilidade tecnológica difundida no cotidiano pelas tecnologias
móveis, e utilizada pelas pessoas em uma conexão em tempo real passa a causar um
impacto significativo no processo comunicacional e informacional entre os indivíduos e os
espaços sociais, não focando apenas no movimento dos grupos no ciberespaço.
As consequências deste imbricamento espacial são percebidas principalmente nas
estruturas sociais. Sutko e Souza e Silva (2011) apontam que um espaço permeado de
aplicativos móveis de localização consciente, como o GPS, que permite a geolocalização
de qualquer indivíduo implica em um aumento da comunicação e da coordenação entre os
indivíduos - formando grupos - em espaços públicos e aumenta a consciência e imersão da
experiência no fenômeno móvel. Pode-se pensar no flâneur descrito por Benjamin (1994)
que experienciava a cidade em seu caminhar pelas ruas. O flâneur contemporâneo agora
munido de possibilidades que vão além de sua própria experiência, pode registrar e
compartilhar instantaneamente com outros a cidade a partir de seu ponto de vista.
Esse processo gera uma camada paralela de conexão e informação entre os espaços
virtual e físico, deixando rastros digitais por toda parte. Estes rastros são móveis, se
alteram, e quanto mais se espalham, mais se conectam uns com os outros. Este fenômeno
apenas pode ser visto e vivido em uma cultura da mobilidade. Em nenhum outro momento
cultural, a possibilidade de encontros de grupos desta forma seria possível, pois havia uma
divisão entre os espaços de interação. A partir deste contexto novos sentidos e
experiências são realizados alterando a percepção dos indivíduos em suas relações com
outros e com os territórios culminando na formação de novas formas de agrupamento
social. Parte-se, assim, para uma proposta de compreensão destes fenômenos por meio de
um estudo etnográfico que compreende a mobilidade como um processo que influencia a
cultura e o cotidiano social.
A etnografia móvel parte então para o estudo destes fenômenos móveis, das
experiências de mobilidade dos indivíduos em um contexto no qual o próprio território de
conexão está em plena mobilidade. Desde os estudos da Escola de Chicago (início do
século XX) as cidades passam a serem ambientes de pesquisas etnográficas em busca da
compreensão de grupos diferenciados, como guetos, bairros e outros agrupamentos Estes
estudos se tornaram fundamentais compreender os contrastes que refletem a vida na
cidade nos dias atuais. No início do século, a cultura da grande metrópole passou a ser o
ponto de estudo de sociólogos e antropólogos que observaram a necessidade de novas
formas de pesquisa etnográfica para entender contextos diferenciados.
É por compreender que atualmente também se vive em um contexto cultural
diferenciado que se propõe um outro viés dos estudos etnográficos, focado nas conexões
comunicacionais geradas pela mobilidade das tecnologias em novos e amplos territórios
informacionais. Os agrupamentos desenvolvidos em uma cultura móvel se constroem com
a rapidez na qual se desconstroem ocupando os territórios das cidades e agregando a eles
significados. Ao propor esta metodologia como estudo quer se dizer que é necessário
compreender este novo fenômeno cultural por meio das experiências das pessoas em
mobilidade.
O que se destaca neste artigo é que o Paradigma das Mobilidades é a base para se
compreender as características da comunicação móvel. Por meio de estudos de grupos
efêmeros que aliam conexões virtuais e físicas, é possível compreender que redes sociais
móveis se desenvolvem a partir dos interesses em assuntos e territórios em comum que
rapidamente se desfazem na fluidez permitida por este fenômeno móvel. As tecnologias
parecem desaparecer na conexão, são cada vez mais imperceptíveis, pois estão totalmente
inseridas no ambiente natural do ser humano (WEISER, 1991). A etnografia móvel,
apropriada para os estudos da comunicação, deve partir do estudo das conexões entre o
tripé formado pelos indivíduos, os territórios e os dispositivos e como eles se entrelaçam
para que os estudos do movimento se tornem possíveis. Novoa (2015) complementa que
esta perspectiva etnográfica apoia-se numa dimensão teórica e prática da mobilidade,
realizadas de forma simultânea. Ela estuda o imediatismo dos fenômenos, a importância
do “estar lá”.
A mobilidade proporcionada pelas tecnologias móveis possibilita novas formas de
nomadismos que podem se referir aos espaços e às relações sociais dos indivíduos, e com
isso permite que os mesmos deem novos sentidos aos locais e às suas relações com outros
indivíduos na formação dos grupos. Estes grupos – as redes sociais móveis - é que são o
foco desta perspectiva etnográfica. As diversas manifestações sociais que ocorreram no
mundo (Tunísia, Islândia, Madrid, Brasil, Hong Kong, entre outros), se deram em países
diferentes, mas foram unidas pelo contexto da mobilidade de comunicação e informação
formando territórios informacionais que se conectaram entre si. Uma reação, quase que em
cadeia, se firmou entre indivíduos que tinham em comum não apenas a possibilidade de
participar de um momento político importante em seus países, mas possuíam também a
ferramenta para que uma ampla mobilização acontecesse. O empoderamento na
propagação de conteúdo que as tecnologias móveis trouxeram aos indivíduos formou um
grande grupo com um interesse em comum. Casos como as smart mobs (RHEINGOLD,
2002) e flash mobs - encontros de grupos em função de um propósito comum que se
dispersam rapidamente depois do objetivo almejado são importantes exemplos de grupos
que fazem parte deste fenômeno móvel e que merecem um estudo de suas práticas dentro
da cultura da mobilidade.
Como forma de pesquisa, os dispositivos utilizados na etnografia móvel são
telefones celulares, tablets, GPS e redes wi-fi. Muskat et al (2013) apontam a evolução nos
estudos com o auxilio destas tecnologias, “enquanto os etnógrafos clássicos viajavam para
locais distantes para participar do destino da sociedade e da vida cotidiana para coletar
dados, etnógrafos modernos usam a tecnologia moderna para ficar ‘sob a pele’ do grupoalvo” (2013, p.59). O pesquisador na etnografia móvel passa a fazer parte do processo de
pesquisa por meio de uma co-presença, uma “sombra” (JIRON, 2011) se movendo junto
ao objeto ou grupo pesquisado.
Considerações
O principal objetivo deste artigo não foi apresentar técnicas de pesquisa para a
realização de uma etnografia móvel. A proposta foi demonstrar que se vive atualmente em
um contexto diferenciado das relações entre as pessoas e os territórios, mediados pelas
tecnologias móveis, o que culminou em um novo processo social em que o cotidiano dos
indivíduos está envolvido diretamente com as questões da mobilidade. Esse contexto
carece de um Paradigma que permitisse um outro olhar, uma outra perspectiva que aponte
para a compreensão dos fenômenos móveis. O Paradigma das mobilidades serve de
referencial e traz consigo diversas observações sobre a importância do estudo do
movimento na sociedade atual. O que, para tal, merece uma metodologia que acompanhe
tais pesquisas. A etnografia móvel se propõe pela necessidade que o objeto de estudo, em
constante movimento, possui em mostrar os aspectos que envolvem as interações dos
indivíduos entre si e os locais estudados por meio da mobilidade tecnológica. Ela propõe
uma descrição densa destes processos para que as particularidades deste novo fenômeno
móvel sejam compreendidas.
Referências
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Brasiliense, 1994.
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Ciências da Comunicação., USP, ano 1, n.1, São Paulo, 2007, pp.121-137.
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Disponível
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SUTKO, D. M.; SOUZA E SILVA, A. de. Location aware mobile media and urban
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WEISER, Mark. The Computer for th 21st Century. Scientific American, pp 94-100, set
1991. Disponível em: http://www.ubiq.com/hypertext/weiser/SciAmDraft3.html.
Hello! I am here – A noção de presença social no contexto da Internet
das Coisas
Erika Oikawa
Doutoranda do PPGCOM/PUCRS. Bolsista CAPES/FAPERGS
[email protected]
Resumo
O objetivo deste trabalho é refletir sobre a noção de presença social, basilar aos estudos de
realidade virtual, a partir de contextos não imersivos da nossa vida cotidiana,
especificamente, no âmbito da Internet das Coisas (Internet of Things – IoT). Partimos do
pressuposto de que a atual configuração da ecologia midiática nos impele a pensar a noção
de presença social para além dos ambientes de simulação, problematizando o contexto da
IoT, que vem transformando não apenas a forma como nos relacionamos com os objetos
do nosso dia a dia, mas também conosco e com os outros. Exemplo sintomático desse
cenário são as profusões de objetos “inteligentes” que passam a habitar o nosso cotidiano e
os “assistentes virtuais”, como Siri, da Apple, que, a cada nova atualização, melhoram a
capacidade de compreender os contextos em que as pessoas estão inseridas.
Palavras-chave: Presença social; hiperpresença, internet das coisas; assistentes virtuais.
1. Introdução
A noção de “presença” tem sido um dos conceitos-chave para os estudos sobre
comunicação mediada ganhando um importante impulso a partir de 2002, com a fundação
da Sociedade Internacional para a Pesquisa da Presença (International Society for
Presence Research - ISPR)21, organização sem fins lucrativos dedicada a apoiar pesquisas
acadêmicas relacionadas ao tema. Nesse contexto específico22, a noção de “presença” está
frequentemente relacionada a dois tipos de fenômenos interligados (BIOCCA, 1997;
BIOCCA; HARMS; BURGOON, 2003):
1) Telepresença, que corresponde à sensação perceptual de estar em um lugar
diferente daquele em que o corpo físico se encontra, sendo muitas vezes descrita
como a sensação de “estar lá” (being there) em um ambiente virtual.
21
http://ispr.info/
Neste trabalho, trataremos especificamente das noções de presença que compõem o eixo de
interesse da ISPR – basicamente voltado para o ambiente virtual –, não problematizando, portanto,
outras noções de presença como a de Hans Ulrich Gumbrecht ou de Jean Luc-Nancy.
22
2) Presença social, que corresponde à sensação de “estar junto de um outro” (being
with another), ou seja, está ligada à percepção de outras formas de agência, seja ela
humana ou não (objetos, máquinas, sistemas operacionais, avatares, etc).
Vários estudos vêm se dedicando ao longo dos anos para a investigação desses dois
âmbitos da presença, em especial em ambientes de realidade virtual (Biocca, 1997;
Biocca, Harms & Burgoon, 2003). Atualmente, essas questões têm ganhado novos
contornos com os avanços tecnológicos, em especial com o desenvolvimento de projetos
como Óculus Rift23 e Morpheus24 e suas diversas aplicações para a área de jogos
eletrônicos, treinamento em ambientes simulados (VILLAGRASA, 2014; CHITTARO;
BUTTUSSI, 2015) e até mesmo no tratamento da dor (HOFFMAN et al, 2014) e em
reabilitação médica (FERCHE et al, 2015). O argumento é que um elevado grau de
presença é capaz de proporcionar maior envolvimento e melhor desempenho em
ambientes de simulação, o que explica a grande concentração dos estudos sobre a presença
em torno das pesquisas sobre realidade virtual25.
No entanto, se está clara a necessidades de se pensar as questões da presença em
ambientes de realidade virtual, como deslocá-las para os ambientes não imersivos do
nosso cotidiano, em suas dimensões mais banais? É sobre isso que este trabalho objetiva
refletir, focando especificamente na noção de presença social (being with another).
Partimos da premissa de que, no atual contexto de internet das coisas, a presença social
torna-se conceito-chave para pensamos também as demais interações da vida cotidiana.
2. Internet das coisas e novas perspectivas sobre presença social
Em estudo sobre sistema de realidade virtual, Frank Biocca (1997) afirma que o grau
mínimo de presença social ocorre quando os usuários sentem a forma, o comportamento
ou a experiência sensória que indica a presença de uma outra inteligência, seja ela outro
humano, um não-humano ou a forma de uma inteligência artificial. Muito embora existam
questões importantes que devem ser consideradas ao se propor o deslocamento da noção
de presença social de um ambiente imersivo de realidade virtual (Ex.: interações no
Second Life, jogos no Óculos Rift etc.) para um não imersivo (Ex: interações no
Facebook26 ou Skype, etc.), acreditamos que a definição de presença social apresentada
23
https://www.oculus.com/en-us/rift/
https://www.playstation.com/en-gb/explore/ps4/features/project-morpheus/
25
Soares (2013) atenta para o fato de que, embora a presença seja objeto de estudo de diversas
áreas, há uma primazia em torno dos contextos de realidade imersiva.
24
26
Sobre a noção de presença social no Facebook, ver trabalho de Soares (2013).
por Biocca nos ajuda a refletir a interação com os nossos aparelhos digitais, especialmente
a partir do contexto da internet das coisas.
O filme Electric Dreams (Steve Barron, 1984) apresenta um cenário interessante
para iniciarmos essa discussão. A história gira em torno de um triângulo amoroso formado
pelo arquiteto Miles, sua vizinha Madeline e o seu temperamental computador pessoal
Edgar, uma espécie de ancestral de Samantha, o sistema operacional do filme Her (Spike
Jonze, 2014) e, como ela, um tipo de inteligência artificial que, por ora, só existe na ficção
científica: consegue expressar pensamentos e emoções de forma autônoma e até se
apaixona pelos humanos.
Se o vislumbre de um computador apaixonado por um humano parece coisa de
cinema, o mesmo estranhamento não causa a cena em que Edgar afirma a Miles I can
controll ALL your home appliances, ao mesmo tempo em que prepara uma xícara de café
enviando apenas um comando à cafeteira elétrica. Além dos eletrodomésticos, Edgar
também controla os sistemas de segurança e de iluminação e a rede de telefone de Miles,
sendo um verdadeiro precursor da chamada “casa inteligente” (smart home), sistema que
permite a integração de dispositivos domésticos diversos com a internet, possibilitando
que funções como termostato, fechaduras, iluminação e segurança sejam controladas por
meio de um smartphone.
As casas inteligentes são apenas um dos diversos ramos da IoT, que podem ser
compreendidas como
[...] a novel paradigm that is rapidly gaining ground in the scenario
of modern wireless telecommunications. The basic idea of this
concept is the pervasive presence around us of a variety of things
or objects – such as Radio-Frequency IDentification (RFID) tags,
sensors, actuators, mobile phones, etc. – which, through unique
addressing schemes, are able to interact with each other and
cooperate with their neighbors to reach common goals (ATZORI et
al, 2010, p. 1).
Na IoT, a agência dos objetos se torna cada vez mais explícita, seja por meio da
troca de informações entre objetos – a chamada M2M (Machine to Machine), que põe em
xeque a exclusividade antropocêntrica nos processos interacionais e comunicacionais –,
seja a partir das nossas próprias relações com esses objetos, na medida em que, cada vez
mais, passamos a delegar-lhes27 funções.
O caso da aplicação de código RFID28 nos uniformes dos alunos de uma escola na
Bahia é um exemplo de como a comunicação entre objetos pode afetar também as relações
humanas. Como explica André Lemos (2013), as etiquetas de RFID, que possuem códigos
27
Por delegação, compreendemos a noção proposta por Latour, que diz respeito ao processo de
distribuição da cognição entre agentes humanos e técnicos (Bruno, 2003).
28
Sigla para “Radio-Frequency Identification”, ou seja, identificação por radiofrequência.
universais únicos, foram cadastradas no sistema da escola, vinculando os dados de cada
aluno com o número de telefone celular dos pais ou responsáveis. A ideia é que cada vez
que o aluno uniformizado passe pela portaria da escola, que conta com um leitor dessas
etiquetas, informações acerca da entrada e saída do estudante sejam enviadas diretamente
aos seus responsáveis por meio de SMS.
Para Lemos (p. 264), ações como essa tensionam a relação entre as dimensões
legais, políticas, educacionais e tecnológicas da IoT, na medida em que um artefato
técnico passa a atuar como mediador das relações entre alunos, pais e professores: “O
escudo na camisa, no qual a etiqueta RFID foi implantada, é aqui objeto mediador da
relação entre os diversos actantes, cuja delegação (ao chip e ao sistema) institui formas
morais e éticas no script do sistema (BIJKER e LAW, 1994)”. Dessa forma, sugerimos
que os efeitos da mediação das etiquetas de RFID – profundamente ancorados nos
processos de vigilância atualmente em curso em nossas sociedades – podem ser
compreendidos também como efeitos de presença social dos objetos, já que determinadas
ações, sejam de alunos, professores ou pais, passam a ser tomadas – ou ao menos
consideradas – a partir da percepção de se estar na companhia, ou melhor, na presença
dessas etiquetas.
Outro exemplo de como IoT começa a se proliferar nos utensílios mais banais do
nosso dia a dia é o Vessyl, o chamado “copo inteligente”. De acordo com seus
desenvolvedores, o copo reconhece de forma automática qualquer líquido que nele seja
servido e, por meio de um aplicativo para celular, informa a quantidade de açúcar, cafeína
e calorias da bebida. A partir do monitoramento da ingestão de líquidos, ele também emite
notificações para que o usuário não esqueça de beber água quando o nível de hidratação
estiver baixo ou durante a realização de atividades físicas e auxilia no controle dos
horários para a ingestão de bebidas a fim de que o usuário tenha mais qualidade no sono29.
A principal justificativa da empresa que desenvolveu o produto centra-se no
argumento de que hidratação não se resume à “ingestão de oito copos de água por dia” 30,
mas a uma série de elementos que varia de pessoa para pessoa, que contempla desde
informações sobre idade e sexo a questões sobre atividades físicas e de sono, além de
fatores geográficos (temperatura, altitude, umidade). A partir dessas métricas
personalizadas, o copo “aprende” os hábitos do usuário, tornando-se capaz de dar
informações extremamente precisas acerca da hidratação de uma pessoa.
29
Informações obtidas no site do produto. Disponível em <https://www.myvessyl.com/vessyl/>.
Acesso em 20 nov. 2015.
30
O lema do produto é: HYDRATE INTELLIGENTLY. It’s not about drinking 8 glasses. Your
hydration needs are dynamic and unique to you.
É precisamente esse nível de personalização que abre a possibilidade de pensarmos
a presença social desses objetos em nossa vida diária, já que esse copo não se trata mais de
um simples suporte para bebidas, mas de um objeto que “ajuda a cuidar da saúde”31 e
“promete ajudar a emagrecer”32. Nesse sentido, torna-se central pensar também sobre
como esses dispositivos trazem implícitos em suas materialidades os discursos da
biomedicina contemporânea, nos quais o “eu” passa a ser traduzido em indicadores e
reverberando a ideia de que o pode ser medido e quantificado, pode ser aperfeiçoado
(NASCIMENTO; BRUNO, 2013).
3. A hiperpresença para além dos filmes de ficção científica
O rápido desenvolvimento da chamada inteligência artificial também se apresenta como
um importante eixo para pensarmos a presença social dos objetos. Nesse contexto, talvez o
software Siri, o assistente virtual da Apple, seja um dos exemplos mais icônicos desse
atual cenário. O software é um tipo de aplicação de inteligência artificial que utiliza
processamento de linguagem natural para responder perguntas dos usuários e executar
ações. O recurso foi lançado em 2011 e logo se tornou um sucesso por auxiliar, por meio
de um simples comando de voz, os mais variados tipos de tarefas, desde a simples leitura
de um e-mail a atividades mais complexas como reservas em restaurantes, compra de
bilhetes para shows, além do fornecimento dos mais diversos tipos de informações, de
previsão do tempo à cotação da bolsa de valores. Tudo isso graças à integração do
programa com outros aplicativos e sites, tais como Wikipedia, Yelp e Shazam, o que
potencializa suas capacidades como assistente virtual. What movies are playing today,
Find a table for four tonight in Chicago, Hey Siri, what song is this?, Compare AAPL and
the NASDAQ são apenas algumas das perguntas que Siri é capaz de responder, conforme o
site de apresentação da Apple, que ainda incentiva os usuários a interagirem com o
software como se fosse um amigo: Talk to Siri as you would to a friend and it can help
you get things done33.
Embora Siri esteja longe de ser uma inteligência artificial na potência de Samantha
ou de Edgar, é inegável a presença social que o assistente da Apple tem perante aos seus
usuários, que invocam o sistema, delegam-lhe funções e passam longos minutos
“provocando-o” com perguntas capciosas. Na internet há diversos vídeos sobre a evolução
31
Disponível em <http://www.tecmundo.com.br/saude/57878-vessyl-conheca-copo-inteligenteajuda-voce-cuidar-saude.htm>. Acesso em 10 nov. 2015.
32
Disponível em <http://veja.abril.com.br/noticia/vida-digital/vessyl-o-copo-que-promete-ajudara-emagrecer/>. Acesso em 10 nov. 2015.
33
https://www.apple.com/ios/siri/
de Siri na capacidade de responder as perguntas feitas pelos usuários 34, sendo notável o
crescente nível de humor e de ironia nas respostas da assistente virtual ao longo dos anos
(Fig. 1).
Figura 1 – Print screen da conversa entre o programa Siri e um usuário35
Podemos compreender essa crescente tentativa de “humanização” dos softwares –
seja por meio do humor ou da aproximação da “voz” maquínica com a humana36– como o
aprimoramento da presença social por meio dos afetos, da mesma forma que os emoticons
e emojis são considerados elementos que contribuem para uma melhor percepção da
presença social nas interações textuais em ambientes on-line37 (chats, comunidades
virtuais, fóruns etc.)
Além disso, a cada nova atualização, o software é aperfeiçoado, aumentando a
capacidade de compreensão de contextos em que o usuário está inserido. A ideia é que nas
próximas versões do sistema operacional, Siri se apresente de forma mais proativa –
graças à combinação de inteligência artificial, mineração de dados contidos em aplicativos
diversos e as informações que os próprios usuários produzem e consomem por meios dos
dispositivos digitais –, sendo capaz de antecipar suas necessidades: “our phones will just
34
Disponível em <http://www.buzzfeed.com/caitlincowie/most-hilarious-questions-to-asksiri#.dtzQp1vA7>. Acesso em 02 ago. 2015.
35
Disponível em <http://www.buzzfeed.com/jordanzakarin/if-you-ask-siri-about-her-she-throwssome-serious-shade#.fjLalXjY4>. Acesso em 20 nov. 2015.
36
Disponível em <http://corporate.canaltech.com.br/noticia/apple/apple-compra-startup-paradeixar-voz-da-siri-mais-natural-50285/>. Acesso em 20 nov. 2015.
37
Vide trabalhos de Macedo (2011); Lowenthal (2005); Rourke et al (1999).
know what we’re looking for. The idea is to get us what we want when we want it”
(GEAR, 2015, on-line).
Assim, a evolução de sistemas como Siri abre a possibilidade de pensarmos não
apenas a presença social desses objetos em nosso cotidiano, mas também a possibilidade
de uma hiperpresença para além dos filmes de ficção cientifica. Segundo Biocca, o termo
hiperpresença (hyperpresence) se refere à possiblidade de acesso à inteligência, intenção, e
impressões sensórias de um outro, que é, de certo modo, as capacidades que as novas
versões dos programas de assistentes virtuais buscam constantemente alcançar. Embora
Biocca esteja se referindo ao ambiente de realidade virtual ao tratar de hiperpresença, os
atuais avanços tecnológicos nos levam a refletir sobre essa noção em nossas vivências
cotidianas por meio da interação com sistemas de inteligência artificial que, cada vez mais,
integram os nossos dispositivos de comunicação.
4. Considerações finais
Hello I am here é a primeira frase que o sistema operacional Samantha, do filme Her,
pronuncia ao ser ativada e ilustra bem o quão pervasivos os objetos têm se tornando em
nossas vidas, especialmente neste momento em que a inteligência artificial parece ganhar
dimensões extraordinárias no contexto da chamada internet das coisas.
Nesse cenário em que a agência dos objetos se torna cada vez mais explícita, seja
por meio da chamada M2M (Machine to Machine), seja a partir das nossas próprias
relações com esses objetos, torna-se urgente problematizarmos a noção de presença social
– conceito chave para os estudos de realidade virtual –, a partir de experiências não
imersivas do nosso dia a dia.
Assim, se presença social está ligada com a capacidade de percebermos a
companhia de uma outra inteligência, seja ela humana ou não, nossos dispositivos, mais
do que presença social, caminham em direção a uma hiperpresença, à medida que, cada
vez mais, são capazes de processar dados contextuais e de se mostrar mais proativos diante
das necessidades dos usuários.
Dessa forma, ratificamos nossos argumentos de que a noção de presença social e
suas diversas nuances, tão importantes para os estudos de realidade virtual e ambientes
imersivos, tornam-se também cruciais para a compreensão das demais interações da vida
cotidiana.
Referências
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Salamanca, 2014.
Governo móvel: perspectivas e desafios para a cidadania no Brasil
Autor: Cíntia Caldas Barcelar de Lima
Mestranda em Políticas de Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Graduada
em jornalismo e em publicidade pela UnB. Auditora Federal de Controle Externo
(orientação comunicação social) no Tribunal de Contas da União (TCU).
Email: [email protected]
Resumo
O crescimento no uso de smartphones causou grandes mudanças na comunicação,
incluindo novas formas de interação entre governos e cidadãos. Informações e serviços
públicos que antes estavam atrás de um balcão, tornaram-se disponíveis na tela desses
dispositivos. Frente a essa tendência, propõe-se uma reflexão sobre a efetividade dos
aplicativos móveis e sua contribuição para o exercício da cidadania.
Palavras-chave: governo móvel, comunicação móvel, aplicativos móveis,
cidadania, participação.
A expansão no uso da internet ocorre ao mesmo tempo em que se
desenvolvem mudanças sociais, econômicas e culturais na sociedade. Nesse novo cenário,
o uso dos smartphones ganha cada vez mais espaço na vida das pessoas, ao ponto de já
representarem mais do que um mero dispositivo tecnológico. Criam uma nova forma
expressão e acesso à realidade. “Os telefones móveis, em geral, são considerados como
uma posse pessoal, uma <extensão do corpo>, e seu significado não é somente utilitário,
mas também emocional e estético”.38 (ARDÈVOL, M. et. al., 2011, p. 28, tradução nossa).
A telefonia móvel foi a tecnologia que mais rapidamente se difundiu na
história das comunicações (CASTELLS, 2009, p. 98). De acordo com a União
Internacional de Telecomunicações (UIT), em 2000 havia 738 milhões de assinantes de
telefonia móvel. Em 2015 esse número já chega aos 7 bilhões de assinaturas. Os números
do crescimento da banda larga móvel também são impressionantes, com penetração de
47% até o final de 2015, 12 vezes mais que o registrado em 2007. A estimativa da UIT é
de até o final de 2015, 69% da população mundial esteja coberta por redes 3G. Em 2011, a
penetração era de 45%. 39
“Los telefonos móviles, em general, se consideran como uma posesión personal, una <extension del
cuerpo> , y su significado no es solamente utilitário, sino también emocional y estético.” (ARDÈVOL, M.
et. al., 2011, p. 28).
39
UIT. ICT Facts and Figures – The World in 2015.
38
Em relação aos tipos de aparelhos, estima-se que já estejam em uso hoje no
mundo, cerca de 1,7 bilhões de smartphones40. A previsão é que em 2016 esse número já
supere os 2 bilhões de aparelhos, o que já equivaleria a quase metade do número total de
telefones móveis ativos no mundo. Mesmo nos países em desenvolvimento, apesar do alto
custo dos aparelhos e dos planos de acesso à internet móvel, o ritmo de crescimento no uso
desses dispositivos é alto.
O Brasil, por exemplo, já ocupa a sexta posição mundial, com 38,8 milhões de
unidades, ficando atrás de China, Estados Unidos, Índia, Japão e Rússia. O México ocupa
a décima primeira posição, com 28,7 milhões de aparelhos, a Colômbia a 22ª, com 14,4
milhões e a Argentina a 25ª, com 10,8 milhões.41 Calcula-se que em 2020 a América
Latina já seja a segunda maior em uso de smartphones, atrás apenas da Ásia-Pacifico.42
A ubiquidade e a conectividade permanente proporcionadas pela disseminação
dos smartphones criam novas formas de interação entre as pessoas e entre as pessoas e as
instituições. Escolas aplicam novas tecnologias ao ensino, empresas apostam na internet
para aumentar o consumo e governos redefinem as maneiras de interagir com o cidadão,
que agora contam com novos canais e possibilidades para a promoção da cidadania e da
participação na vida política.
Essa nova forma de relacionamento com os governos é reflexo não apenas das
possibilidades tecnológicas características da sociedade da informação, mas também do
advento de uma nova cultura em que os indivíduos buscam nos meios digitais, soluções
mais rápidas e econômicas para seus problemas diários.
"Foram-se os dias em que um governo podia ignorar os seus cidadãos e
esconder suas atividades. Até mesmo os governos mais autoritários não estão
imunes a partir dessas mudanças fundamentais na sociedade. Embora as
interações entre o Estado e os cidadãos tenham sido motivo de preocupação
tanto para teóricos quanto para praticantes de poder e de governo desde os
tempos antigos, as mudanças acontecendo hoje com a capacidade de acessar
informações, organizar e dar voz a opiniões são inéditas. As teorias existentes
têm de ser reexaminadas e modificadas para abordar esta mudança fundamental
na informação”43. (EDWARDS & SANTOS, 2015, p. xv, tradução nossa)
Diante desse potencial, no início da década de 90 surgiram as primeiras
iniciativas de governo eletrônico, e-government, ou simplesmente e-gov, definido por
Ruediguer (2002) como a utilização das novas tecnologias da informação e comunicação
40
EMARKETER. 2 Billion Consumers Worldwide to Get Smart(phones) by 2016.
EMARKETER. 2 Billion Consumers Worldwide to Get Smart(phones) by 2016.
42
GSMA. The Mobile Economy. Latin America 2014.
43
“Gone are the days when a government could ignore its citizens and hide its activities. Even the most
autocratic governments are not imune from these fundamental changes in society. Although the interactions
between the state and citizens have been of concern to both theorists and practioners of power and
government since ancient times, the changes happening today with the ability to access information,
organize, and voice opinions is unprecedent. Existing theories have to be reexamined and changed to address
this fundamental shift in information”. (EDWARDS & SANTOS, 2015, p. xv)
41
(TIC) tanto para a melhoria de processos internos dos governos quanto na sua relação com
fornecedores e cidadãos.
Em termos práticos, o governo eletrônico pode ser realizado pelo uso de
portais de governo, mensagens eletrônicas, aplicativos móveis e outras plataformas que
permitam a interação e a prestação de serviços públicos por meio da tecnologias digitais.
A utilização de tecnologias e dispositivos móveis para a execução de ações de
governo eletrônico são caracterizadas como governo móvel, m-government, ou m-gov.
Assim, enquanto o governo eletrônico abrange o uso de todas as tecnologias de
comunicação digital, o governo móvel restringe-se às plataformas móveis como tablets e
smartphones.
Kushchu (2007) define o governo móvel como uma estratégia envolvendo a
utilização de todos os tipos de tecnologias móveis e sem fio, serviços, aplicações e
dispositivos para melhorar os benefícios para as partes envolvidas no governo eletrônico,
incluindo cidadãos, empresas e todas as unidades de governo.
A Organização das Nações Unidas reforça esse entendimento ao defender que
apesar de estar em uma plataforma diferenciada, o m-gov deve ser compreendido como
uma modalidade integrante do governo eletrônico, que se diferencia das demais pelo uso
do canal móvel.
“Ele não deve ser visto como uma substituição ou um mero estágio progressivo
do e-governo. Na maioria dos casos de implementação de governo móvel, a
retaguarda ainda corre através do espectro da infraestrutura do governo
eletrônico para interoperabilidade e efetividade do custo. Ainda que as entradas
para os canais móveis apareçam em diferentes formas e funções, os
formuladores das políticas não devem considerar o governo móvel em meios
separados ou adicionais, mas sim, como um componente integral do governo
eletrônico”.44 (ONU, 2014, p.100-101, tradução nossa)
Estudo realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) em conjunto com a União Internacional de Telecomunicações
(UIT)45 aponta a comunicação móvel como uma tecnologia capaz de oferecer aos
governos oportunidades significativas de promover a economicidade, aprimorar a
comunicação com a sociedade, aumentar a troca de informações, expandir a entrega de
serviços públicos e ainda combater a desigualdade digital.
“Com as tecnologias móveis, informação e ações podem ser coordenadas em
qualquer local e entre agências, melhorando a colaboração e a coordenação entre
autoridades públicas de diferentes níveis de governo. (...) Além disso, a
penetração dos telefones móveis aumenta o acesso a grupos que eram
“It should not be viewed as a replacement or a mere progressive stage of e-government. In most cases of
mobile government implementation, the back office still runs through the spectrum of e-government
infraestructure for interoperability and cost effectiveness. Even though the frontends of the mobile channel
takes on diferent forms and functions, policymakers should not consider m-government as separate or
additional means, but rather, as an integral componente of e-government”. (ONU, 2014, p.100-101)
45
OECD/ITU. M-Government: Mobile Technologies for responsive govenments and connected societies.
OECD Publishing, 2011.
44
dificilmente difíceis de serem alcançados, por exemplo, cidadãos em áreas
rurais, e expande a accountability e a transparência governamental para um alto
número de cidadãos”.46 (OECD/ITU, 2011, p.13, tradução nossa)
Para Kushchu & Kuscu (2007) o governo móvel é um destino inevitável para
ferramentas de governo eletrônico.
“o número de pessoas tendo acesso a telefones móveis e conexões de internet
móvel está crescendo rapidamente. O acesso móvel – de qualquer lugar a
qualquer tempo – está se tornando parte da vida diária, e os governos terão que
transformar suas atividades de acordo com essa demanda de conveniência e
eficiência da interação para todas as partes” 47.(KUSHCHU & KUSCU, 2007,
p.1, 2, tradução nossa)
As ações de governo móvel tiveram início na década de 90, quando países
como Japão e Estados Unidos começaram a utilizar SMS48 para enviar alertas em massa
para a população. O recurso ainda é utilizado em muitos países para enviar notificações e
orientações para os cidadãos. No Brasil, por exemplo, campanhas educativas relacionadas
ao combate à dengue utilizam esse tipo de mensagem de texto para atingir o público alvo.
Com a disseminação dos smartphones as ferramentas de governo móvel
tornaram-se mais elaboradas, com a possibilidade de oferta de aplicativos móveis49 de
utilidade pública para smartphones. Esses aplicativos passaram a ser oferecidos aos
cidadãos em um número crescente de países. Em 2012, 29% dos 193 países integrantes da
ONU disponibilizavam aplicativos móveis como ferramentas de governo eletrônico. Em
2014 esse número aumentou para 49%50.
Em geral, essas aplicações buscam facilitar o acesso a serviços eletrônicos,
disponibilizar informações e orientações de interesse público. Também podem ser
oferecidas ferramentas para que o cidadão busque seus direitos e faça denúncias a
autoridades e órgãos de controle.
É comum que esses aplicativos fiquem concentrados em um endereço
eletrônico específico mantido pelo governo, para facilitar a localização pelos usuários que
poderão adquirir o software sem custos.
“With mobile technologies, information and actions can be co-ordinated in any location and among
agecies, improving collaboration and co-ordination between public authorities across levels of govenment.
(...) Furthermore, mobile phone penetration extends outreach and access to groups which are often difficult
to reach, e.g. citizens in rural areas, and expands government’s accountability and transparency to a higher
number of citizens”. (OECD/ITU, 2011, p.13)
47
“The number of people having access to mobile phones and mobile internet connection is increasing
rapidly. The mobile access – anywhere any time – is becoming a natural part of daily life, and the
governments will have to transform their activities according to this demand of convenience and efficiency
of interactions for all parties”. (KUSHCHU & KUSCU, 2007, p.1,2)
48
Sigla do inglês “Short Messaging Service” – serviço que permite o envio de mensagens de texto por meio
da rede telefônica móvel.
49
Também conhecidos como apps, são softwares desenvolvidos para executar tarefas específicas em um
dispositivo móvel
50
United Nations e-government survey 2014
46
Nos Estados Unidos, o site oficial do governo americano51 reúne mais de uma
centena de aplicativos destinados aos cidadãos, que podem, entre outras formas, utilizá-los
para consultar leis, documentos públicos e o orçamento do governo, procurar empregos,
buscar informações e serviços de saúde e educação.
Na União Europeia, sites oficiais de países como França52 e Alemanha
53
disponibilizam centenas de aplicativos móveis aos cidadãos europeus para facilitar a
prestação de serviços públicos e disponibilizar informações nas mais diversas áreas.
Na América Latina, o portal do governo chileno54 oferece uma série de
aplicativos voltados à prestação de serviços jurídicos, de saúde, transportes e segurança
pública, além do acesso a informações de utilidade pública.
No Brasil, o Guia de Aplicativos do Governo Federal55 disponibiliza dezenas
de aplicativos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário voltados ao acesso a
informações e à prestação de serviços. Lá estão, por exemplo, o aplicativo Câmbio Legal,
do Banco Central, que permite ao usuário identificar o local mais próximo para comprar e
vender moeda estrangeira, o aplicativo Brasil Banda Larga, que permite ao usuário testar a
qualidade de sua banda larga móvel e o Vacinação em Dia, do Ministério da Saúde, que
gerencia cadernetas de vacinação cadastradas pelo usuário.
Entende-se que, apesar de ainda estar no estágio inicial na maior parte dos
países, as ações de governo móvel mostram potencial para promover a participação e o
engajamento dos cidadãos, tornando-se uma ferramenta importante para o exercício da
cidadania.
Garcia e Lukes definem a cidadania como a conjunção de três elementos:
“1) a garantia de certos direitos, assim como a obrigação de cumprir certos
deveres para com uma sociedade específica; (2) pertencer a uma comunidade
política determinada (normalmente um Estado); e (3) a oportunidade de
contribuir na vida pública desta comunidade através da participação.” (GARCIA
Y LUKES, apud GORCZEVSKI, C.; MARTIN, N., 2011, p. 29)
Gorczevski e Martin (2011) defendem a participação política como
instrumento para a consolidação de um novo modelo de cidadania, calcado na democracia
e exercida por indivíduos ativos. “Na verdade é ela, a participação política, que transforma
o indivíduo em cidadão, que lhe dá a possibilidade de determinar sua própria sorte, de
participar do poder, de fazer as leis e de obedecer unicamente a estas.” (GORCZEVSKI,
C.; MARTIN, N., 2011, p. 126)
51
http://www.usa.gov/mobileapps
www.proximamobile.fr
53
https://www.govdata.de/
54
http://apps.gob.cl/
55
http://www.aplicativos.gov.br
52
Assim, a cidadania não pode ser considerada como o mero exercício de
direitos e deveres, mas sim como o uso desses direitos e deveres para a participação na
vida pública. Dessa forma, a cidadania ocorre quando o indivíduo tem a oportunidade não
apenas de expor suas demandas e opiniões, mas de ter suas ideias e anseios considerados
na construção de soluções e melhorias das políticas públicas.
No Brasil, a cidadania é postulada como a prioridade do governo eletrônico.56
As diretrizes elaboradas pelo governo estabelecem ainda a participação como elemento
essencial nesse processo.
“A política de governo eletrônico do governo brasileiro abandona a visão que
vinha sendo adotada, que apresentava o cidadão-usuário antes de mais nada
como ‘cliente’ dos serviços públicos, em uma perspectiva de provisão de
inspiração neoliberal. O deslocamento não é somente semântico. Significa que o
governo eletrônico tem como referência os direitos coletivos e uma visão de
cidadania que não se restringe à somatória dos direitos dos indivíduos. Assim,
forçosamente incorpora a promoção da participação e do controle social e a
indissociabilidade entre a prestação de serviços e sua afirmação como direito
dos indivíduos e da sociedade”.57
O texto ainda adiciona que essa visão “evidentemente, não abandona a
preocupação em atender as necessidades e demandas dos cidadãos individualmente, mas a
vincula aos princípios da universalidade, da igualdade perante a lei e da equidade na oferta
de serviços e informações”.
A internet móvel tem o potencial de acentuar as possibilidades de participação,
à medida que adiciona a ubiquidade e a conectividade constante às possibilidades de
interação com o Estado. Assim, os aplicativos de interesse público podem ser utilizados
para promover o acesso a informações e serviços públicos eletrônicos e aumentar a
interação entre governos e cidadãos, que ganham um novo canal para enviar opiniões,
demandas e denúncias.
Entretanto, Carpentier (2012) defende que o acesso e a interação representam
condições importantes para possibilitar a participação, mas não podem ser igualadas a ela.
“O conceito de acesso é baseado na presença, em várias diferentes formas: por
exemplo, a presença de uma estrutura organizacional ou uma comunidade, ou a
presença ao alcance operacional de tecnologias de produção de mídia. Interação
é uma segunda condição de possibilidade, o que enfatiza a relação sóciocomunicativa que é estabelecida, com outros seres humanos ou objetos. Embora
estas relações tenham uma dimensão de poder, esta dimensão não se traduz em
um processo de tomada de decisão”.58 (CARPENTIER, 2012, p.174, tradução
nossa)
56
Disponíveis em http://www.governoeletronico.gov.br/o-gov.br/principios
Diretrizes para o governo eletrônico brasileiro, disponíveis em www.governoeletronico.gov.br/ogov.br/principios
58 The concept of access is based on presence, in many different forms: for instance, presence in an
organizational structure or a community, or presence within the operational reach of media production
technologies. Interaction is a second condition of possibility, which emphasizes the social-communicative
relationship that is established, with other humans or objects. Although these relationships have a power
dimension, this dimension is not translated into a decision-making process. (CARPENTIER, 2012, p.174)
57
O autor define a participação como um processo político em que os atores
envolvidos nos processos de tomada de decisão estão posicionados em direção ao outro
por meio de relações de poder que são, em certo sentido, igualitárias.
A partir desse conceito, entende-se que o uso dos aplicativos, bem como de
outras ferramentas de governo móvel, tornam-se efetivos à participação à medida que em
seu conjunto - por meio de políticas e diretrizes sólidas - ou isoladamente - por meio de
aplicações específicas - permitam que o cidadão tenha suas demandas percebidas e
consideradas.
Mas algumas barreiras precisam ser superadas para que esse modelo de
governo móvel torne-se real. Desafios que vão desde a garantia de acesso da população às
redes e aos dispositivos móveis até a legitimação dos aplicativos como forma válida de
participação. Além disso, é necessário considerar a necessidade de que sejam estabelecidas
políticas e diretrizes para o governo móvel, que orientem as ações ao interesse público e
garantam a efetividade e a usabilidade dos aplicativos para a prestação de serviços
públicos eletrônicos e para a interação com o cidadão.
Vale ressaltar que a ênfase dessa estratégia de aproximação e promoção da
cidadania não pode estar apenas na mobilidade, mas sim no interesse social. "O foco deve
ser de fato sobre as necessidades do setor público e para os usuários finais, sejam estes
cidadãos ou empresas, para garantir que a tecnologia seja explorada para reorganizar a
forma como os servidores públicos trabalham e para atender às necessidades dos cidadãos
através de uma melhor prestação de serviços”.59 (OECD/ITU, 2011, p.12, tradução nossa)
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original: The rise of network society.
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1ª ed. Massachussetts: The MIT Press, 2007.
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University Press, 2009.
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Nova Iorque: The New Press, 2007.
GOGGIN, G.; HJORTH, L. The Routledge Companion to Mobile Media. 1ª ed.
Nova Iorque: Routledge, 2014.
“Focus should be indeed on the needs of the public sector and for the end-users, be these citizens or
businesses, to ensure that Technology is exploited to reorganize the way civil servants work and to meet the
needs of citizens through improved service delivery.” (OECD/ITU, 2011, p.12)
59
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movimentos sociais e novos protagonistas na esfera pública democrática. 1ª ed. Santa Cruz
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RUEDIGER, Marco Aurélio. Governo Eletrônico e Democracia – uma Análise
Preliminar dos Impactos e Potencialidades na Gestão Peublica. Revista o&s – v.9 – n.25 –
setembro/dezembro – 2002. 2002b.
Mesa 3 - REDES SOCIAIS E COLABORAÇÃO
Coordenação: André Pase
A comunicação de moda na era do Instagram:
dos it-bloggers às it-marcas
Daniela Aline Hinerasky60
ESPM-Sul
[email protected]
Resumo
O texto discute práticas comunicacionais recentes a partir do uso das mídias sociais, em
particular o Instagram, uma plataforma que tem se destacado na área da moda. Na esteira
do fenômeno dos blogs de moda e da celebrização dos seus autores, parte-se da figura
performática dos “it-bloggers” para estudar os digital influencers. Através de um
mapeamento inicial de iniciativas das grifes de moda neste aplicativo, busca-se conhecer
estratégias de comunicação de moda atreladas aos dispositivos móveis e a esse perfil
recente de celebridades.
Palavras-chave: comunicação; moda; dispositivos móveis; Instagram; celebridades
Introdução
Para além da banalização do ato fotográfico, a união da fotografia digital com
telefones celulares insere as imagens nas relações interpessoais, como nova maneira de
comunicação “scripto-visual”. Por interrogar o lugar da imagem no seu viés imaginário,
como expressão e representação, as tecnologias móveis elevam-na a eixo de laço social
(RIVIÈRE, 2006, p. 120-122).
Nesse viés, os dispositivos móveis, que reordenaram dinâmicas socioculturais e
comunicativas, alteraram também o mercado e os fundamentos da moda, tanto a maneira
como as roupas são desenhadas qunato os formatos de apresentação ao público. “Da forma
pela qual gravamos os desfiles à forma pela qual desenhamos e fazemos as roupas,
passando pela maneira com que as exibimos, tudo mudou”, argumenta o designer
Alexander Wang (Folha SP, 2014). As tecnologias digitais e as mídias sociais também
mudaram as formas pelas quais a moda é consumida e compartilhada.
Foi com a consolidação do fenômeno dos blogs de moda61 e street-style, em
meados dos anos 2000 (HINERASKY, 2010; 2012), que dinâmicas comunicacionais
60
Jornalista e pesquisadora nas áreas da moda e comunicação, é doutora em Comunicação pela PUC/RS, com estágio e
bolsa CAPES/PDEE, na Sorbonne/Paris V. Professora no Curso de Jornalismo da ESPM/RS, possui mestrado em
Comunicação e Informação pela UFRGS. E-mail: [email protected]
61 A despeito das suas fronteiras porosas e estreitas, Rocamora & Bartlett (2009) distinguem dois tipos de blogs de moda:
aqueles mais próximos à forma de “jornal íntimo” (proposta original do formato), isto é, aqueles que publicam notícias e
fotos de moda ou de seus autores com textos mais ou menos longos; e os blogs street-style (moda de rua), em que
sofreram transformações significativas. Os blogs e as redes sociais introduziram formas de
consumir informação de moda atreladas a estratégias de relacionamento, tanto interativas
quanto imediatas, trazendo possibilidades de mercado (e-commerce) e consagrando estas
plataformas no âmbito econômico.
As marcas, ao reconhecer que seus clientes passaram a ocupar tempo na
visualização e leitura dos conteúdos postados pelos blogueiros, começaram a valorizar
esses sites enquanto veículos de comunicação, e seus autores, enquanto formadores de
preferências de grupos sociais significativos e, mais que isso, estrelas. É quando os
blogueiros são legitimados não apenas como indicadores do cool, mas como “starbloggers”, um tipo de celebridade cujas atividades e performance os tornaram uma marca,
e junto com seus perfis nas mídias sociais, uma rede de negócios.
A partir desse cenário, o texto aponta avanços das discussões da autora nas
relações entre comunicação digital e moda, propondo uma continuação de pesquisas
anteriores. Tomando a figura performática e central dos “star-bloggers” ou “it-bloggers”,
na esteira do fenômeno dos blogs de moda, o intuito é verificar estratégias de comunicação
de moda nas plataformas móveis e estudar a figura de um novo perfil de celebridades, os
“digital influencers”.
Entre os objetivos, nos propomos a elencar iniciativas de comunicação das grifes
de moda e/ou perfis pessoais no Instagram, no intuito de identificar estratégias de
comunicação atreladas a este modelo recente de influenciadores consagrados. Em sentido
amplo, buscamos verificar os modos como essas redes mobile podem modificar
comportamentos de consumo.
Para discutir as mudanças nas estratégias de comunicação a partir das tecnologias
móveis, voltamo-nos inicialmente para o fenômeno dos blogs de moda e para as dinâmicas
da celebrização dos seus autores.
Dos “It-Bloggers” Às “It-Marcas”
Existem milhares de blogueiros de moda e street-style desde a febre do
fenômeno, em 2006, em cujos sites e redes online são compartilhadas imagens pessoais ou
fotografias de outras pessoas e seus looks nas ruas ou em portas de desfiles e eventos,
mundializando e desterritorializando estilos e, ao mesmo tempo, popularizando
tendências, modismos e grifes.
No segundo semestre de 2011, a repercussão sobre o assunto voltou à tona, com
avanços em dois aspectos: primeiro, quanto à publicidade nos blogs e recorrente
predominam as fotografias (ou até vídeos); mas a pluralidade dos mesmos é ultrapassada pelas temáticas do segmento
(beleza, esmaltes, moda masculina etc), pelos diferentes objetivos (blogs corporativos e promocionais), bem como pela
mistura de abordagens e assuntos no mesmo endereço (blogs mistos).
celebrização de seus editores; segundo, com respeito à proliferação e diversificação desses
sites, em diferentes formatos e conteúdos. Em 2014, o movimento dos blogs street-style
permanece em alta, mas os debates adquiriram contornos diferenciados. Após
democratizarem a moda e colaborarem para o crescimento de um espaço independente na
indústria e na comunicação, geram controvérsias sobre a divisão gerada no mercado da
publicidade e sobre o valor desse conteúdo.
Ao elencarmos (HINERASKY, 2014) etapas da evolução do fenômeno da
blogagem de moda – Blogging Opening ou Fase Exploratória; Star Blogging ou Fase da
Celebrização; Blogging Business ou Fase da Profissionalização; Blogging Beta ou Fase da
Renovação –, evidenciamos que a profissionalização pode ser relacionada à “era de ouro”
dos blogs, concomitantemente à necessidade da manutenção do gênero, que circunda no
meio-termo entre o blog e um site de revista. “Passaram por uma época transgressora,
sacudiram o então fechado mercado da moda e agora vivem o dilema da maturidade em
meio às redes sociais” (ELLE, 2014, p. 146)
Entre 2006 e 2009, os números de audiência dos blogs levam à sua exploração
econômica, com investimentos publicitários – anúncios estratégicos, integrados às lojas
virtuais, publiposts (nem sempre explícitos, porém) – parcerias e colaborações62 entre
autores e empresas do setor. As atividades variadas abrangem: contratos para participação
em eventos, conferências, palestras e cursos; programas audiovisuais, publicações,
consultorias, além de co-criações de produtos. Também recebem convites para dirigir
campanhas publicitárias ou realizar as sessões de fotos e editoriais para revistas, atuando
ora como modelos, ora como fotógrafos.
Diversos produtos são derivados do blog-mãe, como outros blogs ou sites, alguns
que seguem linha editorial diversa e alguns que são e-commerce, muitos dos quais
combinam conteúdo editorial e loja; vídeos para o blog (canais, Web-séries); filmes e até
livros, num movimento midiático inverso, do digital para o papel.
O gerenciamento de imagem e de credibilidade do produto e dos autores, por
meio da formação de uma equipe, de assessoria especializada ou por auto-gestão
(LOVINK, 2008, PRIMO, 2009) fazem parte desses procedimentos, claramente
reafirmados, na prática, com rotina professional, por meio de posicionamento, publicação
de suas agendas, contatos, regularidade dos postagens, além do uso frequente das redes
sociais online (HINERASKY, 2012b).
O processo de mercantilização da narrativa visual no rastro histórico da
comunicação de moda (MACHADO, 2013), de especificidades de experiências (são
62
Os editores de alguns blogs consagrados começaram a ser chamados para parcerias, campanhas, anúncios publicitários
e trabalhos com diversas marcas, entre as quais: Net-à-Porter, Corello, Massimo Dutti, Coach Rag & Boné, Tiffany.
Alguns também são contratados para co-criações de peças ou coleções, como Garance Doré, Yvan Rodic, Camila
Coutinho, Thassia Naves, Lalá Noneto, Cris Guerra e Ana Clara Garmendia, por exemplo.
diversos tipos de blogs e redes), de monetização dos blogs e de celebrização dos autores
instituem uma espécie de dinâmica da blogagem que implica “modos de proceder” entre
autores, leitores e anunciantes, uma processualidade profissional e uma performatividade
que consagram os blogueiros e as mídias sociais como rede de negócios (HINERASKY,
2012).
A celebrização dos autores, amadores ou profissionais, distingue a figura
performática e emblemática dos blogueiros (embora não verdadeiramente nova),
produtores de conteúdo que adquiriram status de formadores de opinião ou influenciadores
digitais (“digital influencers”), embasados tanto na produção de fotografias e conteúdo
original, como também na capacidade de produzir um senso de estilo e refletir a estética
urbana.
Em função da sua audiência, mesmo sem experiência ou “cultura de moda”63,
passaram a ter convites disputados para eventos, privilégios, presentes e roupas
emprestadas e uma aura de glamour. Passaram a ir às fashion weeks e aparecem de modo
regular na lista de “pessoas mais influentes” em revistas, jornais e sites. Com frequência,
começaram a ser fotografados por outros blogueiros ou fotógrafos de outros veículos,
tendo seus estilos dissecados, e seus endereços e conselhos de moda ditos aos leitores.
Consideradss “star-bloggers”, “it-bloggers” e até “it-girls”, nos últimos anos,
passaram a assumir o papel de personalidades, personagens ou modelos, tornando-se um
perfil recente de celebridades, cujo lifestyle, autenticidade e performance (GOFFMAN,
1975) são variáveis64 que implicam na sua consagração. Podem ser chamados de
“webcelebridades” ou “microcelebridades” (SENFT, 2008; PRIMO, 2009, 2009b;
BRAGA, 2010) se considerarmos o alcance variável e restrito com relação aos grupos de
interesse ou temáticas (o que justifica o o prefixo ‘micro’). Em processos midiáticos
novos, eles têm conquistado segmentos da audiência mais amplos, em função da atuação
diversificada, atuante e interativa nos diversos sites de redes sociais. É justamente esse
aspecto dialógico e a disponibilidade para a audiência (MARWICK, 2011) que os
diferencia das celebridades olimpianas.
Inicialmente, além da independência65 editorial e da interatividade – essências da
blogagem –, o conteúdo e estilo próximos da realidade dos leitores geravam a
identificação entre ambos e eram principais elementos do patrimônio dos blogueiros, hoje
63
A crítica em torno das blogueiras de moda reapareceu em julho de 2014 na entrevista do editor do jornal Le Figaro
dada ao FFW. Ler mais em: DUARTE, Marcela. “Blogueiros não têm muita cultura de moda”, diz editor de moda do
jornal francês Le Figaro”. FFW, 17/07/2014. Disponível em: http://ffw.com.br/noticias/gente/blogueiros-nao-tem-muitacultura-de-moda-diz-editor-de-moda-do-figaro-um-dos-principais-jornais-da-franca/ Acesso em 30 de julho de 2014.
64 Ao exercer um conjunto de interlocuções, representações e atitudes de perspectiva dramatúrgica que envolvem a
aparência, os relacionamentos e a persuasão-sedução, autores de blogs transformma as calçadas e portas dos desfiles em
uma espécie de palco, no qual executam uma mis-en-scène.
65 Somado ao livre acesso ao universo da moda, o bajulamento das marcas e das agências de publicidade aproximaram os
blogs das aparências e silhuetas irreais dos editoriais das revistas, num movimento contrário à independência dos blogs e
à insatisfação ao padrão dominante de representação da moda das últimas décadas.
substituídos pelo protagonismo visual e por recursos e valores sociais presentes nas redes
que configuram o prestígio social frente aos “outros”, chamado de capital social
(RECUERO, 2009, 2012). O capital social compreende um conjunto de estratégias para
manutenção da popularidade e autoridade e vem a estar cada vez mais ligado ao
investimento66 de cada ator em cada uma dessas insâncias, em particular, as redes sociais
em que atua e, por conseguinte, no retorno e/ou benefício deste investimento, seja
econômico ou humano.
As poucas blogueiras de moda e street-style bem-sucedidas deixaram de publicar
o lado cotidiano, real e humano da moda de não-especialistas que falam para nãoespecialistas, e começaram cada vez mais a publicar imagens de sonhos, com fotos de
maior qualidade e editadas, roupas de marcas-desejo, inacessíveis para a maioria, em
cenários de eventos de moda e grandes metrópoles.
Ao tornar-se referência em conceito de moda por meio da representação digital
cotidiana sustentada no estilo pessoal, meninas privilegiadas e personalidades se tornam
conhecidas nesses ambientes, em particular no Instagram. A fama na blogagem torna-se
chancela para a conquista de barganhas e parcerias, jabás, anunciantes e contratos,
transformando seus conteúdos em “publi-editoriais” e esses indivíduos em uma marca
midiática aspiracional.
Assim, enquanto difusores de fotografias instantâneas, conteúdos vestimentares
ou aparências impactantes através de uma plataforma midiática potencializada pelos
dispositivos móveis, o usuário passa a ser ele mesmo uma mídia, demonstrando que
“qualquer aparelho midiático conspira para essa produção narcísica de auto-referência ou
visibilidade” (BOUGNOUX, 1994, p. 61).
Num contexto das plataformas móveis, uma tendência latente são os “digital
influencers” ou formadores de opinião, indivíduos especialistas ou amadores que não
possuem site ou blog, mas que produzem conteúdo e tem popularidade a partir de alguma
rede social, como o Instagram. Inclusive, são conhecidos especialmente por seus perfis
nesses sites (Instagram, Youtube, Facebook, Twitter e/ou Pinterest).
No universo da moda, existem dois grandes grupos na categoria dos “digital
influencers”: de um lado, amadores, especialistas ou fashionistas que se tornam
conhecidos a partir da web, muitos das quais são famosos simplesmente por serem
famosos, por terem estilo, ou em função da percepção dos demais na vida deles. De outro
lado, alguns são celebridades oriundas do show-bizz: atrizes, atores, músicos, cantores,
“Como recurso, o capital social é passível de acumulação e transformação em outras formas de capital, como o
econômico (Bourdieu, 1983) e o humano” (RECUERO, 2012, p. 600). Ou seja, as ferramentas passam a ser usada como
uma forma de maximizar o acesso aos valores sociais, influenciando percepção e construção de capital social, cujo
caráter dinâmico dos recursos das redes, na mesma ferramenta, são destacados por Recuero (2012).
66
personalidades nacionais ou outros artistas anteriormente legitimadas em algum veículo
das mídias tradicionais, como TV, cinema, revistas etc.
Os “digital influencers” são qualificados pela expressividade das “cotações”,
onde o valor de cada um está associado ao número de ‘outros’ que participam da sua vida
ou ‘comunidade’ e às notas que eles lhe atribuem (BRUNO, 2004, p. 25). Na prática, esse
prestígio é facilmente constatado e tem a ver ao número de “curtidas” atribuídas na página
do Facebook, à quantidade de amigos e ao número de seguidores no Instagram, por
exemplo.
Significa afirmar que os “digital influencers” são indivíduos de capital social
constituído em torno de um ou mais perfis nos sites de redes sociais, nos quais a imagem,
a aparência, a atitude e a representação do restrito circuito da moda, seus eventos e roupas
de luxo são validadores.
O Instagram Na Moda
Criado em outubro de 2010, o Instagram é uma rede social online em formato de
aplicativo para dispositivos móveis que permite aos seus usuários tirar fotos e vídeos
curtos (de até 15 segundos), aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma variedade de
serviços (Facebook, Twitter, Tumblr e Flickr). Inicialmente, uma característica distintiva
era o fato de limitar as fotos no formato quadrado (semelhante ao Kodak Instamatic e as
câmeras Polaroid), em contraste com a proporção de tela de 16:9 típica das câmeras de
dispositivos móveis (CAVENDISH, 2013).
Possui mais de 150 milhões de usuários, e quase dois terços destes interagindo e
se engajando ativamente todos os dias com a plataforma. Ou seja, das 150 milhões de
pessoas que têm conta no Instagram, aproximadamente 90 milhões usam a ferramenta
diariamente. Segundo dados da Intelligence Report, grupo da Luxury Lab (L2), da
Universidade de Nova York, publicados pela Fashion Forward (FFW, 2014), o Instagram
é a plataforma social mais poderosa do mundo, com 15 vezes a taxa de engajamento do
Facebook (proprietário do Instagram). Para Galloway (2013), “é melhor ter 150 milhões
de usuários que são 15 vezes mais engajados do que um público de 1,3 bilhões (número de
usuários do Facebook)”.
A plataforma está tão em alta, que para a 52a edição (2014) da premiação mais
importante no mercado da moda, o “CFDA Fashion Awards”67, foi criada a categoria
“Fashion Instagrammer of the Year Award”, com oito perfis na competição. Para os
organizadores do prêmio, a iniciativa é mais uma prova da influência crescente das redes
67
Council of Fashion Designers of America
sociais no mundo da moda e, em especial, a emergência de personalidades que se tornam
conhecidas a partir desses ambientes.
Por ser a rede social online mais utilizada no mundo para compartilhar imagens
em função da mobilidade e ubiquidade, o Instagram ressignificou o uso das câmeras no
celular e tornou-se estratégica para o mercado da moda. Tem se mostrado eficiente para o
jornalismo e para a publicidade, na criação e configuração da identidade de veículos,
profissionais e empresas.
A Comunicação De Moda Na Era Do Instagram
As publicações e sites especializados, que até a primeira década da Internet eram
os veículos online essenciais na cobertura das coleções, tiveram seu território invadido por
uma diversidade de produtores de imagens e conteúdos, anônimos mas também famosos,
munidos de tecnologias móveis ligadas a redes wifi ou 3G, capazes de publicar em tempo
real os flagrantes das passarelas, bastidores e vitrines da moda.
Significa que universo da moda está ao alcance da mão por alguns “touchsscreens” (toques de tela), dinâmica que reordenou processos de comunicação e marketing
de produtos, destacados pelo estilista Tom Ford68, em entrevista ao NyMag.com:
Algo novo está acontecendo que eu estou apenas apontando agora - Isso
provavelmente não vai cair bem para a imprensa -, mas os clientes não se
importam mais sobre as análises ou publicações em cópias impressa. Eles estão
interessados na imagem que a Rihanna acabou de 'Instagrammar' enquanto ela
estava nua na cama, os novos sapatos que ela veste, e o que ela está falando sobre
eles (NyMag.com, FORD, 2014).
Já é realidade que milhares de pessoas acessam informações de moda dos seus
smartphones, direto dos perfis das marcas ou de usuários participantes em eventos de
moda. “Vejo os desfiles no Instagram, agora”, afirma. Eva Chen, editora-chefe da revista
“Lucky” (FFW, 2014). Nesse sentido, os dispositivos mobile assinalam um turning-point
na renovação das estratégias de comunicação, pelo alcance que os conteúdos dos usuários
(pessoais ou empresarias) atinge dependendo da popularidade da contas.
Num contexto de mudanças na esfera da produção e do consumo, o jornalismo e a
publicidade têm se adaptado. A imprensa mundial, como Vogue, Elle, Harper’s Bazzar,
FFW, tem experimentado produções a partir do Instagram. A edição brasileira da
Glamour69 realizou o primeiro editorial de moda no aplicativo no dia 02 de abril de 2014,
com sete fotos produzidas especialmente durante o primeiro dia da São Paulo Fashion
68
O designer Tom Ford, que hoje é consciente do papel do Instagram e dos instagrammers célebres, tem um histórico
conflitante em relação às mídias sociais nos últimos anos. Primeiramente, baniu o uso de telefones celulares de seus
desfiles e somente rendendo-se ao status quo temporadas atrás, quando incluiu até mesmo uma camisa temática de Jay-Z
Instagrammada em seu último desfile.
69 Revista faz editorial de moda no Instagram. Meio e Mensagem, 02 de abril de 2014. Disponível em:
http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noticias/2014/04/02/Revista-faz-editorial-de-moda-no-Instagram.html
Acesso em 05 de junho de 2014.
Week (com a modelo Maria Golob e fotos de Rodrigo Bueno). Cada uma das postagens
teve as informações de preços e das marcas apresentadas.
Por seu turno, empresas do setor da moda e da beleza e os estilistas procuram
repensar suas atuações, preocupados não somente em inovar nas apresentações das
coleções, mas em se aproveitar do potencial da Internet e da mobilidade. Vale dizer que o
Instagram permaneceu livre de monetização até última semana de outubro de 2013,
quando se lançou oficialmente como plataforma de publicidade. A estreia mundial da
publicidade no Instagram foi nos Estados Unidos, sendo uma marca de moda a a pioneira:
Michael Kors (@michaelkors).
O primeiro anúncio foi em 1º de novembro daquele ano, com uma foto produzida
da linha de relógios do estilista, num cenário parisiense e a seguinte legenda: “5:15PM
Pampered in Paris #mkt timeless” (“5h15min Mimado em Paris #mktatemporal). O
anúncio começou a aparecer na timelines (linhas do tempo) dos consumidores-usuários do
público-alvo e recebeu comentários variados, de reprovação e aprovação.
Embora houve muitas críticas, conforme reportagens publicadas sobre o tema, o
perfil da grife angariou 16 vezes mais novos seguidores com o anúncio patrocinado do que
com as postagens não pagas e é considerada a marca de luxo top no Instagram, seguida de
Gucci, Louis Vuitton, Burberry, Christian Louboutin, Prada, Marc Jacobs, Ralph Lauren,
Versace e Valentino.
Desde então, Inglaterra, Austrália, Canadá e França adotaram o formato de
publicidade70, o qual pode ser direcionadas por gênero, idade e país. “O Brasil é, agora, o
sexto país a vender mídia na plataforma” (CASTELLON, 2015). Os posts pagos se
aproximam bastante de uma publicação normal na rede em foto ou vídeo, com a diferença
de vir com a palavra “patrocinado” ou “sponsored” acima, no lado direito.
Além dos posts publicitários que aparecem na linha do tempo independentemente
de seguirmos ou não seguirmos a marca que está anunciando, empresas experimentam
outras estratégias a partir das ferramentas disponíveis na rede social mobile, como o uso
de mensagens diretas – caso da Gap – e de vídeos, sendo Burberry e Levi’s as primeiras a
testarem este procedimento.
A grife Calvin Klein possui um planejamento estratégico de comunicação para as
mídias sociais, já que somente no Instagram realiza uma abordagem especializada, em três
frentes: publicação na conta oficial; campanha de produto e campanha fortalecimento da
hashtag, estas últimas com a impulsão por meio de celebridades.
A conta @CalvinKlein publicou conteúdo do diretor criativo Francisco Costa, da
blogueira Hanneli Mustaparta e da modelo Vanessa Axente, rosto da Calvin Klein
70
Regras e tutorial para criar anúncios publicitários no Instagram disponíveis em:
https://www.facebook.com/business/help/976240832426180 Acesso em 15/11/2015
Collection. A marca também usou pela primeira vez o Instagram Direct, que foi
usado para que Francisco Costa se comunicasse com quem estava assistindo ao
desfile. […] A partir de 17/02, a marca também promoveu a campanha em
homenagem à lingerie com o logotipo “Calvin Klein” no cós, que ficou muito
popular nos anos 1980 e 90, com um teaser do projeto digital “mostre o seu.
#mycalvins”. Mais de cem formadores de opinião de 15 países, com alcance de
mais de 250 milhões de fãs em redes sociais, foram contratados pela marca, como
atores, blogueiros, modelos e músicos. Entre eles estão Fergie, Lara Stone, Cody
Simpson, Poppy Delevingne e Hanneli Mustaparta. A marca também vai promover
a hashtag em todas as suas contas de redes sociais (FFW, DUARTE, 2014).
Segundo dados de 2013 da Interbrand, publicados na Exame, as marcas mais
atuantes no Brasil nesta rede são Schutz, Melissa, Renner, Colcci e Farm, mas algumas
também já realizaram campanha, como a estilista Cris Barros. Ela lançou, em fevereiro de
2014, um projeto de divulgação da grife que envolvia uma microsérie71 com 12 filmes
publicados diariamente no perfil da marca (@crisbarrosbrand).
A partir deste levantamento, é possível elencar os seguintes formatos e
abordagens de comunicação de moda em ambiente mobile: a) anúncios patrocinados; b)
publicação de conteúdo de imagens ou vídeos através da conta oficial ou dos
designer/diretores criativos; c) uso do serviço de mensagens diretas (Direct messaging) do
Instagram; d) produção e publicação de vídeos e/ou webséries; e) parcerias e contratação
de influenciadores (blogueiros, modelos, músicos, atores, personalidades etc) para
divulgação dos lançamentos e produtos; f) promoção de hashtags (#) em todas as suas
contas.
Os designers e marcas têm empregado o Instagram para fazer circular de modo
ainda mais instantâneo as novidades porque já entenderam que é uma ferramenta exitosa
para se aproximar dos consumidores por lidar com imagens, as quais operam com o
imaginário e o desejo das pessoas. “Com o Instagram é possível separar-se dos atributos
físicos do produto e se aproximar mais do marketing de ‘engajamento’ (participação),
onde temos a possibilidade de colocar a uma marca onde quer que esteja, por vinculá-la a
sentimentos e idéias de uma forma muito poderosa”, explica Gonzalez (2011), o criador da
comunidade e blog instagramers.com .
Ademais, as empresas não só aproveitam do senso de estilo desses sujeitos, que
servem como referência, como também aproveitam seu apelo e alcance popular para
desenvolver estratégias criativas com seus consumidores. Um exemplo multi-uso desses
influenciadores celebres no Instagram é a campanha que a marca DKNY realizou em
junho de 2014 em conjunto com Cara Delevigne. Além da modelo assinar 15 peças para a
coleção da grife, inspiradas nela mesma, foi convocada para escalar, através da
71
A microsérie foi produzida pela Wepictures, com roteiro de Camila Fremder e direção de cena de Caroline Oliveira e
do americano Lee Phela. As cenas de “estética noir inspirada nos artistas Egon Schiele e Otto Dix, ambos
expressionistas. O elenco dos episódios é composto por oito mulheres, entre elas a apresentadora Didi Wagner” (FFW,
DUARTE, 2014).
plataforma, demais modelos para estrelar a campanha da próxima coleção. “Com as
hashtags #CaraWantsYou e #CaraD4DKNY, a top vai escolher duas new faces que serão
clicadas com ela em Nova York”.
As empresas alcançam os consumidores tanto pela identidade visual constituída
nos diferentes perfis oficiais, quanto pela informação espontânea ou contratada de imagens
e comentários sobre lançamentos por parte de influenciadores. Trata-se de uma espécie de
inversão dos fluxos tradicionais de divulgação e planejamento de comunicação e
marketing, tendo em vista que os mesmos dependem também da percepção e avaliação
desses incluenciadores, críticos e/ou clientes.
O reconhecimento das marcas em torno do potencial influenciador de
personalidades e de figuras conhecidas nestas redes tem levado à recorrente busca por
parcerias ou contratação desses intermediários na divulgação. “Nós pensamos que seria
inovador começar uma campanha com os influenciadores postando imagens antes mesmo
da marca”, disse Carfrae (2014), diretor de comunicações da Calvin Klein.
Dessa forma, houve, de um lado, a dinâmica emergente da mercantilização das
pessoas e conteúdos e, de outro, a personalização das marcas. O Instagram, em particular,
tornou-se um dos campos de batalha das grifes, com diferentes experiências. Nesta
perspectiva, o perfil virtual de uma personalidade já é considerado mais influente do que
qualquer análise de moda da imprensa segmentada, tendo em vista o fato de que “pessoas
estão se tornando marcas e tudo o que uma marca quer é ser uma pessoa” (NOBRE, 2014).
Considerações
Em uma pesquisa em andamento, é complexo apontar considerações finais.
Primeiro porque estamos na busca de encontrar os eixos teóricos e empíricos do estudo e,
no mesmo sentido, na fase de realizar a pesquisa documental e a observação exploratória
na plataforma. Parcialmente, constatamos que há uma exploração por parte do mercado de
figuras populares e célebres, que, por serem aspiracionais, tendem a impulsionar o
consumo e, inclusive, transformar clientes em fãs.
De forma eminente, os “digital influencers” são celebridades recentes e, por
vezes efêmeras, sujeitos midiáticos atrelados à sua condição de marca. Embora muitas
dessas pessoas são famosas sem ter alguma especialidade, são profissionais na
manutenção da fama, sendo o sucesso algo a ser trabalhado por meio de planejamento e
rotina profissional.
A pesquisa segue na busca da compreensão das estratégias de comunicação,
reconhecendo que a construção da imagem de “instacelebridades” é algo que depende de
uma série de “modos de proceder” tal qual a blogagem professional. De qualquer modo,
uma pista é encontrada: no processo de aproveitamento dos influenciadores, “it-people”
tendem a tornar-se “it-marcas”.
.
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Jovens no Instagram e as novas formas de construção de
identidades
Andressa Fantoni72
Resumo: O aplicativo e rede social para compartilhamento de fotografias e vídeos
Instagram é amplamente utilizado pelo público jovem. Este trabalho busca
compreender as possibilidades de construção e apresentação de identidades que a
juventude encontra nessa plataforma, a partir de uma revisão bibliográfica sobre práticas
ciberculturais juvenis. Considera-se que a supremacia da cultura orientada pelo visual no
aplicativo colabora para a valorização de aspectos estéticos dos conteúdos
compartilhados e a projeção de identidades desejáveis sob o olhar do outro.
Palavras-chave: Comunicação social; juventude; identidade; redes sociais;
internet.
Introdução
À medida que se tornam populares e acessíveis, as plataformas avançadas de
comunicação e informação são habilmente incorporadas pelos sujeitos às atividades de
suas rotinas, tornando-se parte constante e necessária de seu dia a dia. Em se
tratando especialmente dos jovens de nosso tempo, que cresceram durante os anos em
que a internet, os celulares e smartphones penetraram no cotidiano das pessoas,
nota-se uma facilidade particular em empregar as novas tecnologias. Como explica
Urresti (2008), essas transformações são naturalizadas gradualmente, deixando de ser
vistas como uma revolução constante para se tornarem hábitos comuns, vividas como
certezas pelos mais jovens.
Na juventude, o processo de subjetivação dos indivíduos é aberto à
temporalidade histórica sem as experiências prévias que se possui na vida adulta.
Como sujeitos em formação, adolescentes e jovens encontram-se em uma etapa crucial
de sua socialização. Em rede, participam de jogos profundos de socialidade, subjetivação
e construção de identidade (URRESTI, 2008). Nesse sentido, Gardner e Davis
(2013) veem nos aplicativos de dispositivos móveis ferramentas para que os jovens
expressem e explorem suas identidades, a exemplo do Instagram, plataforma e rede
72
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS. Bolsista Capes. Email:
[email protected]
social para o compartilhamento de fotografias e vídeos em que representam a maior
porcentagem da audiência.73
Considerando a identidade uma esfera central na vida dos jovens remodelada
pelas novas tecnologias (TURKLE, 2011), através de uma reflexão teórica a respeito das
práticas ciberculturais juvenis, este texto busca compreender as possibilidades de
composição e projeção de identidades que a juventude experimenta no Instagram.
Partindo do pressuposto de que as redes sociais na internet permitem ao sujeito não só a
afirmação de quem ele é, mas de quem gostaria de ser (TURKLE, 2011), compreende-se
que é possível apresentar identidades “melhoradas” – e, ao mesmo tempo, “préembaladas” – com o auxílio das ferramentas do aplicativo.
O que é, afinal, ser jovem?
Conforme Margulis e Urresti (2008), é fundamental reconhecer a imprecisão do
conceito de juventude; parece mais adequado falar de “juventudes” ou “grupos juvenis”,
rejeitando a concepção de mera categoria etária de características uniformes e
reconhecendo que a condição histórico-cultural de juventude não se oferece de igual
maneira a todos os integrantes da categoria estatística jovem.
Assim, os autores trazem a noção de moratória social para contemplar as
condições desiguais em que se encontram os indivíduos que pertencem à mesma
faixa etária e a diferentes setores sociais.
Tal
moratória
é
um
período
marcado pela suspensão de obrigações e responsabilidades, reservado a jovens de
classe média e alta, que desfrutam da oportunidade de estudar por um período maior e,
assim, adiar as exigências da vida adulta, compreendidas como o dever de construir uma
carreira profissional e instituir família. Os membros de setores populares não têm a
mesma possibilidade de acessar a moratória social pela qual se define a condição de
juventude, pois, geralmente, necessitam entrar cedo no mercado de trabalho e tendem a
iniciar as obrigações familiares precocemente.
Complementar ao
conceito de moratória social
é a moratória vital,
compreendida como crédito ou capital temporal – este, sim, associado à idade e comum
a todas as classes; é um excedente de tempo, reduzido para aqueles que não são jovens,
que se reflete em aspectos relacionados à energia, condição física, afastamento da
morte, etc. Em resumo, os autores definem a juventude como
uma condição que está estruturada socialmente e culturalmente em
termos de idade - como crédito de energia e moratória vital, ou
distância da morte - com a geração a que se pertence - enquanto
73
37% dos usuários do Instagram tem entre 16 e 24 anos. Disponível em: <http://goo.gl/rYtgLJ>. Acesso em
12 nov. 2015
memória social incorporada, experiência de vida diferencial - com a
classe social de origem - como a moratória social e período de atraso , com o gênero - segundo as urgências temporais que pesam sobre o
homem ou a mulher-, e com o lugar na família - que é o quadro
institucional em que todas as outras variáveis se articulam.
(MARGULIS E URRESTI, 2008, p. 29)
No presente trabalho, é especialmente relevante pensar nas juventudes em termos
de geração, definida como
[...] a circunstância cultural que advém de ser socializado com códigos
diferentes, de incorporar novas formas de perceber e apreciar, de ser
competente em novos hábitos e habilidades, elementos que separam os
recém-chegados no mundo das gerações mais velhas. (MARGULIS E
URRESTI, 2008, p. 19)
Entre jovens com acesso à internet há a partilha de uma cultura comum, tendo em
vista que reconhecem as mesmas linguagens, habilidades e códigos característicos à
familiaridade com tecnologias digitais. Se “cada geração pode ser considerada, até
certo ponto, como pertencendo a uma cultura diferente, na medida em que incorpora
novos códigos e habilidades de socialização, linguagens e formas de perceber, apreciar,
classificar e distinguir” (MARGULIS e URRESTI, 2008, p 18), entende-se que jovens
inseridos na cultura digital fazem parte da mesma geração.
Práticas ciberculturais juvenis
Gardner e Davis (2013) consideram as tecnologias dominantes decisivas na
definição e duração das gerações, sendo a extensão de uma geração subordinada à
longevidade de determinada inovação tecnológica. Os autores argumentam que a
juventude74 atual constitui o que chamam de “app generation”4, pois não somente está
imersa em aplicativos para dispositivos móveis, mas percebe o mundo como um
conjunto deles. Um grupo de aplicativos “é a combinação de interesses, hábitos e
conexões sociais que identificam uma pessoa”
(GARDNER E DAVIS, 2013, online).
Um número crescente de jovens utiliza aplicativos em seus smartphones ou
tablets para acessar sites de redes sociais, plataformas de mensagem instantânea, sites de
compartilhamento de vídeos, blogs, vlogs e mundos virtuais. Tais ferramentas de mídia
digital são adotadas pela juventude para expressar e explorar suas identidades. A
interface dos aplicativos torna-se, assim, parte integrante da forma que os jovens
escolhem para expressar a si mesmos online (GARDNER E DAVIS, 2013).
74
É importante ressaltar que, conforme explicam Gardiner e Davis (2013), o retrato de sua pesquisa é
baseado, principalmente, em jovens de classes média e média – alta, vivendo em uma sociedade próspera e
desenvolvida.
*Em tradução livre, “geração aplicativo”
Os autores acreditam que a formação de identidades através de aplicativos pode
seguir duas direções opostas: transformar o sujeito no avatar de outra pessoa ou permitir
a formação de identidade de forma deliberada, holística, ponderada. Nas palavras de
Gardner e Davis (2013, online), “é possível acabar com uma identidade forte e mais
poderosa, ou sucumbir a uma identidade ‘pré-embalada’ ou à interminável difusão de
papeis”.
Em seus estudos, os autores concluem que as identidades dos jovens estão cada
vez mais "embaladas", isto é: são desenvolvidas e apresentadas de modo que transmitam
uma desejável – e otimista – imagem do sujeito em questão. Ainda que exista
coerência entre o “eu” offline e o “eu” online dessas pessoas, não há, necessariamente,
uma correspondência direta entre ambos. Recursos como assincronia e anonimato
permitem aos jovens elaborar representações estratégicas, decidindo que informações
destacar, minimizar, exagerar ou omitir inteiramente (GARDNER E DAVIS, 2013).
Como explicam Gardner e Davis (2013), os sites de redes sociais enfatizam a
autoapresentação baseando sua organização em torno dos perfis individuais dos
usuários. Elementos básicos de um perfil no Facebook, por exemplo, servem para
“embalar” o “eu” para o consumo do público. Há certa pressão em apresentar-se como
um tipo de pessoa impressionante e desejável, seguindo um caminho valorizado pela
sociedade e certificando-se de que todas as postagens confirmem esse senso de
identidade precocemente cristalizado.
Urresti (2008) afirma que as mudanças trazidas com as novas tecnologias de
informação
e comunicação
causam
impacto decisivo sobre o
processo
de
articulação da subjetividade que, na adolescência, desempenha papel central. Embora a
subjetividade sempre esteja em processo de definição, a diferença em relação às
gerações jovens é que seu processo de subjetivação está aberto às vivências da época
sem a experiência prévia que se possui na fase adulta, “fazendo desta primeira exposição
à temporalidade social ‘seu’ mundo próprio, algo que não acontece na vida adulta e
menos ainda na velhice” (URRESTI, 2008, p. 41).
A emergência de tecnologias de comunicação ubíqua, dos sites que produzem
redes sociais e dos serviços de mensagem instantânea permite o contato, permanente e
em tempo real, entre jovens conectados em redes de grande extensão e complexidade.
Nessas redes, participam de “[...] jogos de aproximação, afinidade e sedução que,
em
sua
superfície, ocultam os jogos profundos de socialização, subjetivação e
construção de identidade que atravessam os primeiros inadvertidamente” (URRESTI,
2008, p. 43). Para participar das redes, fazer publicações é quase uma necessidade;
do contrário, fica-se de fora, vive-se em desconexão:
entre os adolescentes, e também os jovens, ter uma página no Facebook ou
MySpace ou ter um fotolog, faz parte das coisas que os identificam e os
distinguem entre seus pares: ao longo do tempo, torna-se uma obrigação,
exceto para aqueles que querem ficar de fora e perder todos os encantos das
promessas que acompanham a inclusão. (URRESTI, 2008, p. 61)
Boyd (2014) explica que os sites de redes sociais tornaram-se os lugares em que
os jovens socializam com seus pares: “costumava ser o shopping mas, para a juventude
discutida nesse livro, sites de redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram são os
lugares ‘legais’” (BOYD, 2014, p. 5). Na juventude, a socialização nos espaços que cada
grupo de adolescentes determina ser “legal” é fundamental para a aceitação social dos
sujeitos. O uso de cada site de rede social não se baseia em características técnicas das
plataformas, mas na forma como são apropriadas por determinado grupo de jovens:
eles se conectam com as pessoas que conhecem, observam como as pessoas
estão usando o site, e em seguida, reforçam ou combatem essas normas
através de suas próprias práticas. Como resultado, as normas de mídia social
são moldadas por efeitos de rede; os pares influenciam uns aos outros
sobre como usar um determinado site e, em seguida, ajudam coletivamente
a criar as normas desse site. (BOYD, 2014, p. 39)
A adoção de práticas distintas em cada plataforma, entretanto, não indica
que os jovens estão criando múltiplas identidades no sentido psicológico. Na verdade,
são escolhas de se representar de modos diferentes em sites diversos, cujos públicos e
normas variam. É nesse sentido que surge uma miscelânea de identidades online
(BOYD, 2014).
Nos anos 1990, Turkle (1995) sugeriu um futuro em que as fronteiras entre
máquina e ser humano são cada vez mais imprecisas. Diante da popularidade das salas
de bate-papo virtuais e jogos de computador para multijogadores, a autora identifica a
possibilidade de escape às limitações das identidades dos ambientes offline para
experimentar vidas e identidades paralelas: “[...] um eu descentrado que existe em
muitos mundos e desempenha muitos papéis ao mesmo tempo” (TURKLE, 1995, p. 18).
Boyd (2014) e Gardner e Davis (2013), no entanto, não percebem a confirmação
desse fenômeno nos sites de redes sociais. Ao contrário, consideram que, em tais
espaços,
as pessoas são mais facilmente identificáveis. Gardner e Davis (2013)
acreditam que as vidas offline e online das juventudes estão mais entrelaçadas, raramente
distinguidas pelos jovens. Para Boyd, os sites de mídia social encorajam uma atmosfera
não ficcional:
hoje, muitos adolescentes estão online para socializar com amigos que
conhecem de cenários físicos e para se retratar em contextos online que são
mais fortemente ligados a comunidades sociais não mediadas. Essas práticas,
que incentivam uma maior continuidade entre os mundos online e offline dos
adolescentes, eram muito menos comuns quando eu estava crescendo.
(BOYD, 2014, p. 38)
De fato, pode não ser adequado atribuir o multi-lifing sugerido por Turkle
(2011) ao uso dos sites de redes sociais pelos mais jovens. Entretanto, como
comenta a autora, a característica comum entre jogos, mundos virtuais e redes sociais
na internet é a necessidade de compor e projetar uma identidade através de um avatar,
“uma afirmação não apenas sobre quem você é, mas sobre quem quer ser” (TURKLE,
2011, p. 180); em sites como o Facebook, em que pensamos apresentar a nós mesmos,
nossos perfis acabam se tornando outra pessoa – normalmente, a fantasia de quem
gostaríamos de ser. Nesse sentido, é possível reconhecer o esforço, empenhado por
muitos jovens, em apresentar uma identidade desejável sob o olhar do outro, como
propuseram Gardner e Davis (2013).
Identidades construídas e projetadas no Instagram: algumas possibilidades
Instagram é um site de rede social e aplicativo para dispositivos móveis que
permite a captura e o compartilhamento de fotografias e vídeos. Seu funcionamento
consiste, resumidamente, em carregar imagens, manipulá-las através de filtros,
compartilhá-las com outros usuários e comentar ou “curtir” as publicações de outras
pessoas.
Hochman e Manovich (2013) afirmam que, incialmente, o Instagram não
parecia oferecer nenhuma inovação se comparado a outros serviços similares, como
ferramentas para manipulação de imagens, registro de localização de fotografias e
compartilhamento instantâneo. Contudo, é justamente a operação congruente desses
elementos em um único aplicativo móvel e a forma como permite a seus usuários criar,
partilhar e organizar informações que podem explicar a adoção generalizada do
Instagram e seu entrelaçamento com as atuais tendências culturais.
Como bem comentam Lee et al (2015), ao contrário de redes como
Twitter e Facebook, no Instagram é impossível publicar apenas conteúdo em forma de
texto; cria-se, assim, uma forte cultura orientada pelo visual no aplicativo, sobretudo
considerando seus avançados recursos de edição de fotografia. Em relação à projeção de
identidades, referidos autores afirmam que
[...] os usuários do Instagram utilizam imagens de todos os tipos de coisas
para apresentar suas personalidades, estilos de vida e gostos. Fotografias
são muito melhores do que os textos para a autoexpressão e gerenciamento
de impressão, uma vez que o mito da verdade fotográfica empresta à
fotografia uma credibilidade que ao texto pode faltar. As conclusões atuais
sugerem que o Instagram tornou-se um novo e empoderador meio de
autoapresentação, especialmente entre os jovens. (LEE et al, 2015, p. 4)
O Instagram conquistou as camadas juvenis da sociedade, que se apropriaram do
aplicativo como mais um espaço de sociabilidade. Assim, é necessário pensar no site
como ambiente em que os jovens se interconectam e, em seus processos de socialização,
articulam sua subjetividade e encontram novas formas para construir e projetar
identidades. As dinâmicas estabelecidas nessa plataforma voltam-se, sobretudo, à
supracitada cultura orientada pelo visual.
“A imagem é a moeda de troca do Instagram”, como bem comentam Gardner e
Davis (2013, online). A valoração superior da imagem em relação ao texto é uma
característica proeminente do aplicativo que sua interface torna evidente; basta observar
a forma como se organizam os perfis dos usuários: são centrados em suas imagens.
Além da fotografia de perfil, visualiza-se um mosaico com todas as fotografias e vídeos
que o indivíduo já publicou. Assim, os perfis do site constituem “vitrines” de imagens,
em que o único resquício textual é composto pelo nome do usuário e a facultativa
descrição de si mesmo.
A autoexpressão do sujeito através do Instagram, então, é elaborada a
partir das imagens que compartilha com sua rede de conexões, as quais são “tipicamente
selecionadas e editadas com cuidado, esparsamente publicadas e nem sempre
compartilhadas imediatamente” (HOCHMAN E MANOVICH, online). Percebe-se um
uso do aplicativo que não necessariamente obedece à possibilidade de publicação
instantânea, mas que é apropriado para a construção ponderada da apresentação de si
através de imagens selecionadas com cautela.
Dessa curadoria fazem parte os filtros disponíveis para transformar a aparência
das imagens, que são uma das principais e mais populares ferramentas do aplicativo.
Conforme Hochman e Manovich (2013, online), “ao adicionar matizes, grãos, contraste,
etc., cada filtro evoca uma ‘sensação diferente’ mudando a mensagem comunicada por
uma imagem”. As diferentes
tonalidades
disponíveis
lembram
a
estética
lomográfica, e a escolha por determinado filtro corresponde à tentativa de melhorar
a qualidade visual da imagem e personalizar o conteúdo a ser publicado. Ainda, em se
tratando de fotos de pessoas, é comum utilizar os filtros para melhorar sua aparência. A
apresentação de fotografias que receberam o tratamento dos filtros é uma forma de
expor uma versão mais desejável do “eu” que, obedecendo às operações automáticas e
restrições do aplicativo, representa uma forma de identidade “pré-embalada”.
Considerando, porém, o Instagram como espaço de socialização dos jovens com
seus pares de convívio offline, as versões que apresentam de si mesmos, embora
melhoradas, não se afastam significativamente da vida que levam à parte do site de rede
social. Haja vista que os jovens trazem seus círculos de relações para o aplicativo, a
audiência que os acompanha no Instagram é, ainda que minimamente, capaz de
legitimar (ou não) a forma como se apresentam no Instagram. Além disso, como
espaço para compartilhar narrativas do cotidiano, “fotos do Instagram ressoam como
experiências mais pessoais, ‘autênticas’ que constituem uma crônica do mundo (...)”
(HOCHMAN E MANOVICH, 2013, online) e, assim, tendem a configurar publicações
mais fiéis à realidade.
Por fim, a linguagem fundamentalmente visual do Instagram implica em um
processo de composição e projeção de identidade diferente do que ocorre em outros sites
de redes sociais. Se o sujeito deseja compartilhar com seus amigos o gosto por
determinada obra literária, por exemplo, poderia fazê-lo em formato de texto, de modo
breve ou detalhado, através do Twitter ou Facebook. No Instagram, uma alternativa
possível seria fotografar a capa do livro em questão e lhe atribuir uma legenda que
corrobore a preferência por aquela leitura. A mesma estratégia valeria para outros vários
gostos e atividades. Assim, a apresentação de si mesmo através do Instagram se baseia
em valorizar os aspectos estéticos das experiências, atividades e gostos a serem
compartilhados, tornando-os atraentes para o olhar do público.
Considerações finais
Como fase destituída de experiências que se acumulam na vida adulta, a
juventude abarca processos de subjetivação abertos à temporalidade social da época. Os
jovens de nosso tempo são sensíveis às novas tecnologias e facilmente incorporam e
naturalizam as transformações provocadas por plataformas avançadas de comunicação e
os sites de redes sociais por elas suportados. Assim, os processos de elaboração e
projeção de identidades manifestam-se também no ambiente virtual e, em face do caráter
always on da comunicação, em relação contígua às vivências que experimentam em
contextos físicos.
O Instagram é um espaço de sociabilidade ocupado ostensivamente pelo
público jovem. Como outros sites de redes sociais, configura um ambiente em que os
jovens articulam composições e projeções de identidades; entretanto, diferencia-se de
exemplos como Twitter e Facebook em razão de funcionar sob uma cultura orientada
pelo visual. Sendo a partilha de imagens condição fundamental às publicações do
aplicativo, entende-se que aqueles que
participam da rede social estão dispostos a projetar suas identidades através da
postagem de fotografias e/ou vídeos.
Embora a dinâmica de funcionamento do Instagram sugira imediatismo nas
postagens, não é o que necessariamente ocorre. As imagens compartilhadas
frequentemente sofrem curadoria cautelosa, sugerindo que os usuários preocupam-se
com as impressões que podem transmitir na rede social hospedada no aplicativo. As
fotografias editadas com o uso de filtros e outras ferramentas de manipulação
demonstram que os sujeitos desejam alterar a estética das imagens que compartilham,
personalizando e melhorando o conteúdo compartilhado – logo, criando a imagem de um
“eu” mais otimista e desejável.
Tendo em vista, porém, que as conexões das juventudes se mantêm no
ambiente online, as identidades dos indivíduos estão sujeitas à legitimação de seus pares.
Assim, é possível explorar vários modos de se apresentar em diferentes ambientes, mas
permanece necessário projetar identidades que correspondam às reais vivências dos
sujeitos, ainda que em versão “melhorada”. A obrigação de expressar atividades, gostos,
estilos de vida, etc., sempre através de imagens, demonstra a exacerbação da cultura
visual característica ao Instagram e a necessidade de trabalhar esteticamente esses
conteúdos. Compreende-se que as ferramentas oferecidas pelo aplicativo auxiliam na
projeção de identidades mais desejáveis e, ao mesmo tempo, pré-embaladas.
Referências
BOYD, danah. It's complicated: the social lives of networked teens. New Haven e
Londres: Yale University Press, 2014.
GARDNER, Howard; DAVIS, Katie. The app generation: how today's youth navigate
identity, intimacy, and imagination in a digital world. New Haven e London: Yale
University Press, 2013.
HOCHMAN, Nadav; MANOVICH, Lev. Zooming Into an Instagram City: Reading the
Local Through Social Media. First Monday, [S.l], jun. 2013. ISSN 13960466.
Disponível em: < http://goo.gl/GVC0YD>. Acesso em: 27 out. 2015.
LEE, Eunji et al. Pictures speak louder than words: motivations for using Instagram.
In: Revista Cyberpsychology, behavior, and social networking, v. 18. n. 9, 2015.
Disponível em: < http://goo.gl/408Yh7>. Acesso em: 15 nov. 2015.
MARGULIS, Mario; URRESTI, Marcelo. La juventud es más que una palabra. In:
MARGULIS, Mario (org.). La juventud es más que una palabra: ensayos sobre
cultura y juventud. Buenos Aires: Biblos, 2008.
TURKLE, Sherry. Alone together: why we expect more from technology and less
from each other. Nova Iorque: Basic Books, 2011.
. A vida no ecrã: a identidade na era da internet. Lisboa: Relógio D’Água
Editores,
1995.
URRESTI, Marcelo. Ciberculturas juveniles. Los jóvenes, sus prácticas
y sus representaciones en la era de internet. Buenos Aires: La Crujía
Ediciones, 2008.
Wikis: plataformas que estimulam a colaboração
Liana Gross Furini
Mestre em Comunicação Social (PPGCOM/PUCRS)
Professora Famecos/PUCRS
[email protected]
Resumo:
A internet é uma mídia bastante democrática, na qual os usuários têm poder para criar
conteúdo. Nesse contexto, multiplicam-se pela rede os espaços criados colaborativamente
– chamados de wiki. Essas plataformas possibilitam que qualquer usuário escreva ou edite
seu conteúdo. Nesses espaços, os usuários trabalham em cooperação, compartilhando seus
conhecimentos com os outros, situação que acontece em função dessa nova dinâmica
social.
Palavras-chave: Wiki. Internet. Ciberespaço. Colaboração.
Introdução
Na internet, os usuários, tradicionais receptores, participam ativamente da
produção de conteúdo. Em função disso, existem cada vez mais espaços que estimulam a
colaboração dos usuários na elaboração de algo com um objetivo único. A cooperação,
segundo Recuero (2009, p. 81) “é o processo formador das estruturas sociais”. Nessa
mesma linha, conforme apontado por Lessig (2008), as pessoas contribuem com esses
ambientes porque querem sentir que estão ajudando outros, que fazem parte de algo, como
em uma sociedade em rede, como apresentado por Castells (2007).
Lessig (2008) aponta ainda que, além da economia comercial, nesses ambientes
impera a sharing economy, uma economia baseada em compartilhamento e, como
acrescenta John (2012), seu objetivo não é fazer com que seus membros enriqueçam. Isso
significa que o acesso a esses materiais é regulado não por preço, mas por relações sociais.
Ao falar sobre essas práticas de produção de processos, repositórios e interfaces a
partir do ciberespaço, Sérgio Amadeu pontua que “a digitalização, a hipertextualidade e a
rede mundial de computadores, baseada na comunicação distribuída e anônima e no
trânsito livre de pacotes de bits, constituem um ambiente propício para as práticas
colaborativas dos internautas” (SILVEIRA, 2008, p. 86). Sobre isso, Lessig (2008, p. 28,
tradução nossa) acrescenta que “a cultura nesse mundo é plana; ela é compartilhada de
pessoa para pessoa”75.
Nesse contexto, em que a troca de informações é mais democrática e horizontal do
que jamais fora, surgem as wikis, plataformas que, segundo Lessig (2008, p. 156, tradução
nossa), “permitem que qualquer pessoa escreva ou edite em um espaço comum”76, de
forma colaborativa. “No seu conceito original, uma wiki expressa a visão de uma
comunidade com algum interesse em comum e une as pessoas em um espaço
compartilhado para discutirem ideias e criarem recursos”77 (AYERS, MATTHEWS,
YATES, 2008, p. 42, tradução nossa). Nesses espaços, “qualquer pessoa pode contribuir
significativamente para a estrutura do site, simplesmente criando novos links e
adicionando novas páginas. Essa abertura é o aspecto mais inovador e fantástico das
wikis”78 (EBERSBACH, GLASER, HEIGL e WARTA, 2001, p. 11, tradução nossa).
Em função da possibilidade de serem criadas por qualquer usuário, as informações
contidas nas wikis se proliferam com muita rapidez. Para Collins (2014), os espaços
colaborativos das wikis são mais inteligentes e mais rápidos do que as hierarquias topdown. Isso é diretamente ligado com o fato de os conteúdos serem construídos em
conjunto pelos usuários, não apenas coletivamente, mas colaborativamente.
As wikis possibilitam a existência de bancos de dados sobre qualquer assunto,
documentado por pessoas que se dedicam a publicar, editar e organizar esse conteúdo,
através de uma colaboração sem precedentes (LESSIG, 2006). Ao criar uma wiki sobre
algum assunto, o usuário não fica mais limitado ao seu conhecimento, ao passo que ela é
construída por qualquer usuário que tem conhecimento sobre algum assunto e queira
compartilhá-lo.
Wikipedia e mais
O termo wiki já existe no dicionário americano Oxford79, e é definida como “um
site que permite edição colaborativa de seu conteúdo e estrutura pelos seus usuários”80
(tradução nossa). As plataformas wiki são comumente classificadas como social softwares
(softwares sociais, em uma tradução livre), termo definido por Benkler (2006) como
“software cuja característica de design é que ele ameaça os fenômenos sociais genuínos,
75
Do original, “Culture in this world is flat; it is shared person to person”.
Do original, “lets anyone write or edit in a common space”.
77
Do original, “In its original concept, a wiki expresses the views of a community with some common
interest and brings people together in a shared space for discussing ideas and building resources”.
78
Do original, “anyone can contribute significantly to the structure of the site, simply by creating new links
and adding new pages. This openness is the innovative and amazing aspect of wikis”.
79
Disponível em <http://www.oxforddictionaries.com/us/definition/american_english/wiki>, acesso em: 24
out 2015.
80
Do original, “A website that allows collaborative editing of its content and structure by its users”.
76
sendo diferente das comunicações um-para-um ou um-para-muitos”81 (s/p, tradução
nossa). Klobas (2006) defende que “software social é um software que facilita interações
sociais, colaboração e troca de informações, e pode até fomentar comunidades, baseado
nas atividades de grupos de usuários”82 (p. 1, tradução nossa).
O primeiro social software de que se tem notícia, chamado WikiWikiWeb83, foi
desenvolvido em 1995 e se denomina “a primeira ‘wiki’, onde o conteúdo pode ser editado
por qualquer pessoa”84 (tradução nossa). O objetivo do seu criador, Ward Cunningham,
era “um software relativamente simples, que permitiria o trabalho coletivo em códigos de
software que poderiam ser publicados imediatamente”85 (EBERSBACH, GLASER,
HEIGL e WARTA, 2001, p. 12, tradução nossa), que é a principal ideia das wikis até hoje.
A Wikipedia86 é um dos mais conhecidos e mais prósperos sites nesse formato. O
site tem mais de 35 milhões de verbetes87, criados exclusivamente por pessoas que,
voluntariamente, quiseram dividir seu conhecimento com os outros e publicá-lo de forma
livre na internet. Lytras, Tennyson e Pablos (2009, p. 30, tradução nossa) afirmam que a
Wikipedia “serve como uma ótima ilustração de uma wiki bem executada”88, seguidos por
Lessig (2006), que diz que ela é um fenômeno colaborativo sem precedentes. O autor a
compara com a ciência, dizendo que da mesma forma, a Wikipedia também conta com
“pessoas do mundo todo trabalhando para convergir em uma verdade sobre uma ampla
gama de tópicos”89 (p. 244, tradução nossa).
Segundo Anderson (2006), a Wikipedia não se baseia em uma única pessoa ou
grupo com grande conhecimento sobre algum assunto específico. Ao invés disso, ela
“explora os conhecimentos de milhares de pessoas de todos os tipos – desde verdadeiros
especialistas até observadores interessados” (p. 63), e esse é um de seus maiores trunfos.
Utilizar o conhecimento e o esforço dos usuários pode ser bastante arriscado, em função
da falta de controle que se tem sobre o que é publicado. Ainda assim, segundo Lessig
(2006), “o projeto da Wikipedia (...) construiu – para o espanto da maioria – uma
81
Do original, “software whose design characteristic is that it threats genuine social phenomena as different
from one-to-one or one-to-many communications”.
82
Do original, “social software is software that facilitates social interaction, collaboration and informations
exchange, and may even foster communities, based on the activities of groups of users”.
83
Disponível em <http://c2.com/cgi/wiki?WikiWikiWeb>, acesso em: 24 out 2015.
84
Do original, “the first ever ‘wiki’, where content can be edited by any person”.
85
Do original, “a relatively simple software that would enable collective work on software codes that could
be published immediately”.
86
Disponível em <https://www.wikipedia.org/>, acesso em: 24 out 2015.
87
Informação disponível em <https://wikimediafoundation.org/wiki/FAQ/en>, acesso em: 20 ago 2015.
88
Do original, “serves as an excellent illustration of a well-executed wiki”.
89
Do original, “people from around the world working to converge upon truth across a wide range of
topics”.
enciclopédia online extraordinária, apenas através do esforço voluntário de milhares,
contribuindo com ensaios e edições em uma wiki pública”90 (p. 199, tradução nossa).
Ambientes colaborativos (e não apenas coletivos)
As plataformas wiki originalmente foram criadas com o objetivo de “permitir que
um time trabalhe em um projeto colaborativamente”91 (LESSIG, 2008, p. 156, tradução
nossa). “Os membros de uma comunidade wiki usam o espaço compartilhado para
escrever, discutir, comentar, editar, refletir e avaliar, com o objetivo final de criar um
resultado compartilhado”92 (WEST e WEST, 2009, p. 13, tradução nossa). Isso significa
que as pessoas que fazem parte de uma comunidade wiki são estimuladas a dividirem com
os outros o que sabem. Para Ayers, Matthews and Yates (2008, p. 42, tradução nossa),
uma wiki “não é simplesmente uma tecnologia, mas toda uma abordagem para um grupo
que utiliza um site para colaborar”93. As wikis geram como resultado um material cujo
autor não é apenas um usuário. Ao contrário, defende Benkler (2006), os materiais criados
em wikis têm autoria colaborativa.
Nesse sentido, essas plataformas possibilitam a existência de bancos de dados
potencialmente sobre qualquer coisa, documentados por pessoas que se dedicam a
escrever, editar, corrigir e organizar esses materiais. Se uma pessoa que conhece qualquer
assunto decide criar um blog sobre, ela está limitada ao seu conhecimento. A mesma coisa
acontece com um site, uma página em alguma mídia social ou qualquer outro espaço como
esses, que funcionam através da comunicação um-para-um ou um-para-muitos, como já
mencionamos, baseados no pensamento de Benkler (2006). Esses espaços são interativos e
podem, potencialmente, receber alguma colaboração de leitores, mas não são construídos
com um propósito colaborativo. Todavia, se a mesma pessoa cria um verbete em alguma
wiki, não fica mais limitada ao seu conhecimento, ao passo que o conteúdo pode ser
construído por todo e qualquer usuário que tenha conhecimento sobre o assunto e interesse
em compartilhá-lo. Colaborativamente, não apenas coletivamente. Isso significa que, além
de terem a possibilidade de criar e contribuir com os verbetes já criados, os membros da
comunidade, mais do que isso, são estimulados a fazê-lo, com o objetivo de melhorar o
conteúdo, gerando um resultado colaborativo e mais próximo da verdade.
Esse estímulo gera uma explosão de conteúdo. Lessig (2008, p. 30, tradução nossa)
aponta que isso gera “um extraordinário acesso a uma vasta gama de cultura. Nunca antes
90
Do original, “The Wikipedia project (...) has built – to the astonishment of most – an extraordinary online
encyclopedia solely through the volunteer efforts of thousands, contributing essays and edits in a public
wiki”.
91
Do original, “enable a team to work on a project collaboratively".
92
Do original, “Wiki community members use the shared space to write, discuss, comment, edit, reflect and
evaluate, with the ultimate goal to complete a shared outcome”.
93
Do original, “is not simply a technology but a whole approach for a group using a website to collaborate”.
houve tanto disponível para tantos”94. Hoje, as plataformas colaborativas permitem acesso
a conteúdos criados pelos próprios usuários, disponível a qualquer pessoa com acesso à
internet, instantaneamente, sem restrições geográficas.
Considerações finais
Para Ebersbach, Glaser, Heigl e Warta (2008), o conceito de wiki marca um novo
nível do uso de Internet. Entendemos que a qualidade do material resultante do trabalho
em conjunto feito pelos usuários nessas plataformas colaborativas deve-se ao fato de que,
além de publicar conteúdo, os usuários são estimulados a corrigir o que estiver errado ou
incompleto, o que aumenta a chance de gerar um resultado final de qualidade.
Reagle (2010) se refere à Wikipedia como uma “comunidade de conteúdo
aberto”95 (p. 14, tradução nossa), e defende que ela aumentou o acesso à informação e ao
conhecimento. Por serem escritas por qualquer usuário, as wikis aumentam a rapidez com
que a informação evolui e é disponibilizada na internet. Informações que podem estar em
lugares de difícil acesso, hoje estão à mão de todo mundo que tem acesso à internet, com
muita facilidade e rapidez.
Ebersbach, Glaser, Heigl e Warta (2008) defendem que o trabalho colaborativo
pressupõe abertura e respeito mútuo entre os participantes. Nesse sentido, relembramos
que as plataformas wiki não funcionam através de trocas monetárias de nenhum tipo, mas
sim através de uma economia baseada em compartilhamento, como proposto por Lessig
(2008). As pessoas participam desses ambientes porque têm um compromisso (que, vale
lembrar, é voluntário) com uma comunidade.
Ainda, Benkler (2006) acrescenta que esse tipo de software “oferece um vislumbre
de um desafio mais básico e radical. Ele sugere que o ambiente em rede torna possível
uma nova modalidade de produção de organização: radicalmente descentralizada,
colaborativa e sem donos”96 (s/p, tradução nossa), ou seja, de autoria coletiva, como já
havíamos mencionado. As plataformas colaborativas de criação de conteúdo têm um papel
importante no aumento do poder do público e na queda dos gatekeepers, ao passo que
aumenta o acesso dos indivíduos à informação e ao conhecimento.
Referências:
94
Do original, “extraordinary access to a wide range of culture. Never before had so much been available to
so many”.
95
Do original, “open content community”.
96
Do original, “offers a glimpse at a more basic and radical challenge. It suggests that the networked
environment makes possible a new modality of organizing production: radically decentralized, collaborative,
and nonproprietary”.
ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: do mercado de massa para o mercado de nicho.
Rio de Janeiro: Elsevier Brasil, 2006.
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how you can be a part of it. San Francisco: No Starch Press, 2008.
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O boato na era das mídias digitais: WhatsApp e saúde pública
Danton José Boatini Junior
Mestrando - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [email protected]
Resumo: O surgimento dos dispositivos móveis provocou uma transformação na forma
como nos relacionamos com a informação. O boato, gênero comunicacional “tão antigo
quanto a palavra humana”, segundo Renard, permanece vivo na pós-modernidade,
adaptado às novas ferramentas de comunicação. Este trabalho tem como objetivo
estudar a manifestação de boatos por meio do aplicativo WhatsApp. Com base em
três narrativas de grande repercussão, procura-se entender quais elementos contidos
nessas mensagens contribuíram para torná-las verossímeis aos olhos dos receptores. A
análise será feita com base em casos ocorridos recentemente no Brasil e relacionados a
um dos assuntos que mais desperta interesse nas redes sociais, a saúde pública.
Palavra – chave: Whatsapp; boato; cibercultura
1. Introdução
O surgimento dos dispositivos móveis provocou uma transformação na maneira
como nos comunicamos. Fenômeno “tão antigo quanto a palavra humana”, nas
palavras de Renard (2007, p.
97), o boato se mantém vivo na pós-modernidade. Tendo em vista as novas formas de
comunicação possibilitadas pela Internet e a maneira como o imaginário se configura em
meio a este cenário, este trabalho pretende desenvolver uma reflexão acerca da
participação do aplicativo WhatsApp na manifestação de boatos. O objetivo é
compreender quais os elementos utilizados na manifestação destas mensagens são
determinantes para tornar verossímil um relato inverídico. Para fazer a análise,
selecionamos três casos ocorridos recentemente no Brasil e que e estão
relacionados à saúde pública.
Se por um lado a internet possibilitou uma facilidade de acesso aos meios de
comunicação, uma vez que hoje qualquer indivíduo pode disponibilizar conteúdo na
rede, por outro, a quantidade de informação inverídica é crescente. Cabe ressaltar que
esse processo se dá em um cenário onde “as novas tecnologias deram-nos um mundo
em que quase toda a gente pode publicar uma página de aspecto credível na internet”
(GILLMOR, 2005, p. 174). Foi neste contexto que o WhatsApp consolidou-se como
uma das principais ferramentas de comunicação mediada pelo computador na
atualidade. Lançado em 2009, o serviço já ultrapassou a marca de 900 milhões de
usuários97. Trata-se de um aplicativo para smartphones que possibilita o envio de
mensagens instantâneas de texto e chamadas de voz, pelo qual os usuários podem
encaminhar fotos, vídeos e mensagens de áudio. Uma vez que não é necessário pagar
para mandar uma mensagem, bastando estar conectado à internet, o aplicativo
rapidamente ocupou o lugar das mensagens de SMS, enviadas de celular para celular.
A proliferação de boatos por meio das redes sociais tem sido objeto de estudo
de vários pesquisadores. Como um dos fenômenos mais recentes da comunicação
digital, o WhatsApp, por sua vez, ainda não foi suficientemente estudado, o que o torna
um tema com grande potencial de pesquisa.
Com a possibilidade de interação um-para-um e muitos-para-muitos, o
WhatsApp proporciona uma nova roupagem às antigas conversações que marcaram o
início da internet. Diferente dessas plataformas, no entanto, o WhatsApp proporciona ao
usuário a possibilidade de estar permanentemente online, bastando para isso ter um
aparelho de telefone celular conectado à Internet e com o aplicativo em uso. Da mesma
forma, é possível estabelecer uma comunicação entre dois
indivíduos
que
não
necessariamente estejam conectados ao mesmo tempo, de modo que podemos
observar a existência tanto da comunicação síncrona (em tempo real) quanto assíncrona
(quando não há uma unidade temporal). Outra característica que difere o WhatsApp de
outras redes sociais digitais é que, ao contrário do Facebook e do Twitter, mensagens
repassadas por usuários não contam com uma identificação de origem – o que
impossibilita fazer um juízo crítico sobre a confiabilidade da fonte.
No WhatsApp, a interação não é apenas textual, já que o aplicativo conta com
uma ferramenta de gravação e envio de arquivos de voz. O mecanismo foi introduzido
no aplicativo em agosto de 201398. Trata-se, portando, de uma conversação multimodal,
que faz uso de várias interfaces (RECUERO, 2012, P. 60). Ainda assim, na troca de
mensagens textuais, transparece a característica da escrita oralizada, com a utilização
de uma linguagem coloquial, do dia a dia. Quanto ao círculo social, o WhatsApp
também conta com particularidades em relação a outras redes sociais digitais. Para se
comunicar com outro usuário, é necessário ter o número do seu telefone celular. Isso
indica uma certa proximidade que não se repete em outras redes - o que poderá ser
decisivo para nossa ação de acreditar ou não em uma mensagem.
Recuero (2012) aponta a necessidade de compreender os rituais estabelecidos
pelas redes, “muitas vezes através de comportamentos coletivos e meméticos, para que
se compreenda como o sentido é construído nos espaços da mediação do computador e
sua influência nas redes sociais na
97
98
http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/09/whatsapp-chega-900-milhoes-de-usuarios.html.
http://blog.whatsapp.com.
Internet” (p. 93). A autora defende que a conversação em rede é uma apropriação das
ferramentas digitais, “onde limitações são criativamente suplantadas, e novos usos
emergem da coletividade” (p.
216). Ao abordar a interação mediada pelo computador, Primo (2011) observa uma
característica básica das mensagens textuais na Internet, que é a possibilidade de
inclusão de citações diretas de mensagens anteriores, o que “facilita a interconexão das
ideias em discussão” (p. 220).
2. Boato na pós-modernidade
Embora tenham adquirido uma nova dimensão a partir do advento da internet, o
boato é um fenômeno antigo. Renard (2008, p. 97) observa que, quando um amigo nos
conta alguma novidade, nosso primeiro impulso é acreditar na informação, não apenas
porque confiamos na fonte, mas também porque é “materialmente impossível, na vida
cotidiana, checar todas as informações que recebemos”.
Um boato ou uma lenda urbana é um enunciado ou uma narrativa breve, de
criação anônima, que apresenta múltiplas variantes, de conteúdo
surpreendente, contada como sendo verdadeira e recente em um meio social
que exprime, simbolicamente, medos e aspirações. (RENARD, 2008, p. 98)
Já na era das redes sociais, Jenkins irá afirmar que a “qualidade final que faz
com que o conteúdo de propague é também a qualidade com o maior potencial de
causar danos” (2014, p.
267). O autor acrescenta que os textos que são particularmente producentes e engajantes
frequentemente conduzem a um engajamento profundo e têm grande tendência a se
espalhar (2014, p. 270).
Mesmo em uma era em que dispomos de farta oferta de meios para comprovar as
informações, o inverossímil ainda encontra formas de demonstrar coerência aos olhos do
receptor. Tacussel (2006) ressalta que um ponto interessante na questão do imaginário
pós-moderno é que “a distinção entre o verdadeiro e o falso não é tão forte quanto nós
poderíamos imaginar, apesar dos meios de comunicação e de verificação que nós temos”
(p. 9).
Quanto ao imaginário, eu diria que as pessoas têm uma necessidade de
acreditar em coisas excepcionais, inverossímeis, têm necessidade de sonhar
e de sentir medo. E os meios tecnológicos dos quais nós dispomos, ao invés
de controlar essa situação, amplificam-na. (TACUSSEL, 2006, p. 9).
3. Estudos de caso
Para analisar como os boatos se desenvolvem por meio do WhatsApp, vamos
estudar três casos recentes que obtiveram grande repercussão no Brasil. A coleta dos
boatos foi feita com base em notícias de dois veículos de grande audiência no país, os
sites G1 e Extra Online. A análise será feita levando em conta os seis itens que, segundo
Legros et al (2011, p. 196), integram a grade de análise dos boatos e das lendas
contemporâneas: a coleta da narrativa e suas variantes, o estudo do contexto da difusão, a
medida do grau de veracidade, o estudo do paratexto, a análise da estrutura narrativa e a
interpretação dos boatos e lendas contemporâneas.
Como forma de delimitar o objeto de estudo, os casos em análise estão
relacionados à preocupação da sociedade contemporânea com a saúde, um dos temas
mais difundidos pelas redes sociais. Sfez (1996) identifica a grande saúde, ou saúde
perfeita, como a utopia dos anos 2000. Por meio da tecnologia, o corpo humano é
submetido a um controle rigoroso, tendo como produto final o homem perfeito. Desta
forma, conforme o autor, a ideologia da comunicação parece, por meio do corpo e das
questões que ele suscita, tomar a forma de uma utopia.
Na era da comunicação todo-poderosa, a informação sobre os problemas de
saúde circula, de fato, entre as diferentes culturas, tendendo a homogenizar as
práticas particulares, e o vírus da “saúde tende a tornar-se universal. Pois a
comunicação que parecia alimentar-se de si mesma e engendrar uma visão “pósmodernista”, sem ponto de ancoragem na realidade, está paradoxalmente
fornecendo seu próprio antídoto com as novas teorias biomoleculares que ela
ajudou a constituir. (SFEZ, 1996, p. 42)
Para o autor, embora a saúde do corpo não seja uma preocupação recente, o que
antes era caracterizado como uma “arte”, agora se vê dotada de meios tecnológicos que
provocam uma transformação na relação do médico com seu paciente, bem como a
relação do indivíduo com seu corpo (p. 42).
3.1 O vírus Ebola
O primeiro caso ocorreu em 2014 e obrigou até o Ministério da Saúde a lançar
um comunicado com esclarecimentos à população. Conforme o boato, um nigeriano
teria sido internado no Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão
(HUUFMA), em São Luís, com sintomas da doença. Posteriormente, teria morrido 99. O
texto compartilhado acrescenta outros personagens que já estariam com os mesmos
99
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/08/ministerio-da-saude-desmente-boato-sobre-caso-deebola-no-brasil.html.
sintomas, além de destacar o suposto interesse das autoridades em acobertar o caso. O
rumor causou grande apreensão na população, tendo em vista o potencial altamente
destrutivo da doença e o surto que, à época, acometia países da África Ocidental.
Um nigeriano chegou a São Luís - Ma, na terça feira, começou a passar mal, foi
internado no hospital Universitário HUUFMA. Ele faleceu no sábado à noite
com diagnóstico do vírus"EBOLA". O governo do Estado do Maranhão e o
Ministério da Saúde ordenaram que fosse mantido em sigilo. No entanto, o
ministro da saúde, Arthur Chioro, confirmou ao sec. ricardo Murad que já tem
5 pessoas internadas com os mesmos sintomas em estado grave! A Polícia
Federal iniciou hoje a operação "fronteiras fechadas", onde qualquer pessoa
que tenha estado no continente africano nos últimos 10 meses não podem entrar
no
país.
Repassem!!!!
(EXTRA
ONLINE,
http://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/ministerio-da-saude-desmenteboato-sobre-nigeriano-morto-por-ebola-no-brasil-13614390.html)
Em texto publicado em seu site, no dia 18 de agosto de 2014, o ministério afirma
que “com relação aos boatos que estão circulando nas redes sociais e por meio do
aplicativo Whatsapp sobre Ebola, o Ministério da Saúde esclarece que não ha caso
suspeito ou confirmado da doença no Brasil”100. A nota explicava ainda que, de acordo
com os dados oficiais divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os países
acometidos pelo surto eram Guiné, Libéria e Serra Leoa – enquanto o boato tinha como
personagem um cidadão de origem nigeriana.
Quanto à estrutura do texto, observamos que a narrativa utiliza-se da linguagem
jornalística, inclusive citando fontes oficiais, como forma de garantir verossimilhança –
de tal forma que o relato assemelha-se a um lead.
3.2. Transmissão de HIV
O segundo caso que iremos analisar é o de um boato conhecido e antigo, mas
ressurgiu na internet. Trata-se do caso de um falso enfermeiro ou enfermeira que, ao
oferecer testes de glicose para pedestres em locais públicos, estaria na verdade
transmitindo o vírus HIV. O caso ocorreu em Salvador (BA), porém já foi observado em
diversas regiões do país e por meio de diferentes redes sociais. Em geral, apresenta as
mesmas características.
Registrada em agosto de 2014, a falsa informação compartilhada pelo WhatsApp
vinha acompanhada da fotografia de uma mulher de 28 anos. Ela foi alertada por
pessoas que receberam as mensagens, já que o texto continha o número de seu telefone.
Alguns usuários dirigiram-se a ela com ameaças. Na ocasião, a vítima do boato
100
http://www.brasil.gov.br/saude/2014/08/ministerio-desmente-boatos-sobre-casos-de-ebola-no-brasil.
registrou queixa na Polícia Civil 101. Histórias semelhantes já foram compartilhadas
com a fotografia de homens.
Repasse p geral em todos os grupos… essa mulher está c vírus do hiv… soro
positivo ela… cuidado ...se ela te add … ou se Vc vêla pela rua n se
aproxime pois ela está c agulha furando os outros …se um desses números te
add querendo te conhecer (…) caia fora pois é dela… ela mora em 7 de abril…
repassando
geral
aos
grupos.
(G1,
http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/08/mulher-presta-queixa-apos-sua-fotorodar-em-
Embora, neste caso, o texto tenha utilizado uma escrita oralizada – ou netspeak –
, a narrativa acima utiliza-se de outro artifício para criar verossimilhança. Trata-se da
imagem anexa ao texto escrito. Para Debord (1997), o espetáculo, definido como
“relação social entre pessoas, mediada por imagens” (p. 14), como tendência a fazer ver
o mundo que já não se pode tocar diretamente, “serve- se da visão como o sentido
privilegiado da pessoa humana – o que em outras épocas fora o tato” (p.
18). A fotografia, portanto, dá credibilidade a um relato inverossímil.
3.3. Refrigerante contaminado
O terceiro caso também já foi visto por diversas vezes na internet, com
variações, ainda antes do advento das redes sociais. Trata-se da falsa informação de que
os refrigerantes Fanta e Coca-Cola teriam causado insuficiência renal e tumores em
consumidores. Este texto já foi apresentado tendo como alvo produtos de outras marcas.
O texto, porém, manteve-se o mesmo. O texto que iremos analisar foi divulgado em
maio de 2015, no Rio de Janeiro.
Não beba FANTA UVA, FANTA LARANJA E COCA COLA. A propaganda
parou… Por quê? Reparem… A propaganda quase não se vê mais na mídia…
Porque será??? Estamos repassando o e-mail abaixo para conhecimento e
prevenção, principalmente para aqueles que bebem estes refrigerantes. Este email está sendo repassado dentro do Hospital que trabalha pessoa amiga. Fato já
está confirmado: Vinte e três pessoas já passaram pelo Hospital das Clínicas
com um mesmo sintoma: falta de atividade renal e o aparecimento de tumores
no reto. Todos os internados relatam o começo das fores e a consequente
internação após ingerirem altas doses desses refrigerantes. (EXTRA,
http://extra.globo.com/noticias/brasil/eboato-que-consumo-de-fanta-uva-tenhalevado-casos- de-cancer-15947777.html)
O texto, assinado por uma funcionária fictícia da Sociedade Brasileira de
Cardiologia, cita um suposto Dr. Paulo José Teixeira, “formado pela USP e
especialista em Toxicologia”, que recomenda aos consumidores não consumir mais os
101
http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/08/mulher-presta-queixa-apos-sua-foto-rodar-em-app-comoportadora-de-hiv.html.
referidos refrigerantes. A mensagem finaliza afirmando que a Coca-Cola reconheceu a
culpa e irá indenizar os pacientes. Tanto a Coca-Colaquanto a Sociedade Brasileira de
Cardiologia e o Instituto Fleury, também citado na mensagem, divulgaram
informando
que
a
mensagem
era
inverídica.
A
Sociedade
notas
Brasileira
de
Cardiologia informou, inclusive, que a mensagem tem sido compartilhada na internet
pelo menos desde 2006, ano em que publicou uma nota oficial em seu site
informando não ser a autora do
texto102
No terceiro caso, o elemento utilizado para dar verossimilhança ao relato é a
citação de instituições reconhecidas como idôneas. A credibilidade destas instituições
têm o efeito de provocar, no receptor, o entendimento de que a informação pode ser
verídica.
Algumas características são comuns aos três boatos. O tom alarmista está
presente em todos eles, assim como os erros gramaticais e de ortografia (mantido na
descrição acima). Outro traço comum é o fato de terem sido encontradas variações a
todos eles em diferentes cidades e em outras plataformas de comunicação. A esse
respeito, Renard (2008) afirma que “a coleta das variantes de uma narrativa já é
suspeita de uma lenda, porque as diferentes versões de um mesmo acontecimento não
podem ser todas verdadeiras” (p. 99). Por fim, nos três casos, as instituições ou vítimas
citadas tiveram de ir a público para desmentir as informações, o que demonstra o grande
alcance potencial da comunicação via WhatsApp.
4. Conclusão
Considerando que o WhatsApp é apenas uma das ferramentas de comunicação
possibilitada pelas novas tecnologias, pode-se afirmar que sua relação com a
disseminação de boatos está longe de ser exclusiva, mas integra um fenômeno
observado em toda a Internet. Se a informação que circula na rede é ágil, por outro lado
ela também é menos apurada, uma vez que qualquer cidadão pode publicar conteúdo,
sem a necessidade de seguir alguns padrões.
Embora algumas características do aplicativo possam ser vistas como uma forma
de facilitar a manifestação de boatos, entendemos que o fator preponderante para que o
receptor acredite na mensagem está em artifícios criados pelo emissor para dar
verossimilhança ao relato, o que Barthes chama de “efeito de real”. Como vimos, em
102
http://extra.globo.com/noticias/brasil/eboato-que-consumo-de-fanta-uva-tenha-levado-casos-de-cancer15947777.html
cada um dos boatos analisados, há um fator responsável por criar esse efeito: a
linguagem jornalística, no primeiro caso; a imagem, no segundo; e a utilização de
fontes idôneas, no terceiro.
Em artigo sobre o efeito de real, Barthes recorre à literatura de Flaubert e à
história de Michelet para referir-se aos detalhes “supérfluos”, deixados de lado pela
análise estrutural, mas que como elementos da narrativa possuem um papel importante
para simular o real. Entre as técnicas, obras e instituições fundadas na necessidade
incessante de autenticar o “real”, da qual o realismo literário é um precursor, o autor
cita a fotografia (testemunha bruta “do que foi lá”), a reportagem, as exposições de
objetos antigos, o turismo dos monumentos e lugares históricos.
A facilidade de acesso à produção de conteúdo online, hoje universalizada, exige
do usuário atenção redobrada com relação à informação que circula na rede. Esses
elementos, somados à análise dos casos estudados, reforçam a mudança que as redes
sociais proporcionaram na nossa relação com o boato. Esses elementos, somados à
análise dos casos estudados, reforçam a mudança que as redes sociais proporcionaram
na nossa relação com o boato.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Efeito de real. In: Literatura e semiologia: pesquisas semiológicas.
Petrópolis: Editora Vozes, 1972.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Volume 1. São Paulo: Paz e
Terra, 1999. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro:
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Presença, 2005.
LEGROS, Patrick et al. Sociologia do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2014.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Editora Cultrix, 1971.
PRIMO, Alex. Interação mediada por computador: comunicação, cibercultura,
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RECUERO,
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computador e redes sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2012.
RENARD, JeanBruno. Um gênero comunicacional: os boatos e as lendas
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Famecos. Porto Alegre: FAMECOSPUCRS. n. 32, abril de 2007.
SFEZ, Lucien. A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia. São Paulo: Edições Loyola,
1996. TACUSSEL, Patrick. Imagem e contemporaneidade: entrevista com Patrick
Tacussel. Revista Famecos. Porto Alegre: FAMECOS PUCRS.n. 31, dezembro de 2006.
“TRIBUNAL” DAS REDES SOCIAIS: O DISCURSO
DE ÓDIO NO CASO PATRÍCIA MOREIRA X ARANHA
Bibiana Hegele Bolson
1
[email protected]
Resumo: O presente artigo visa refletir sobre como as redes sociais contribuiram para
fortalecer o sentimento coletivo de ódio à Patrícia Moreira, em especial, o conteúdo do
Twitter. Em agosto de 2014, flagrada por uma câmera de televisão durante um jogo de
futebol gritando “macaco”, a imagem da torcedora gremista circulou no mundo, o caso
foi amplamente abordado na mídia, Patrícia saiu do anonimato para se tornar um
símbolo conhecido e negativo. O Grêmio, clube envolvido, foi punido com a eliminação
da competição que disputava e a jovem, antes mesmo de ser julgada pela Justiça, foi
transformada na personificação de um problema social centenário: a questão racial. Na
Internet, ela teve a privacidade invadida com a publicação de dados pessoais e recebeu
uma série de ameaças, entre elas a que culminou com um crime, um torcedor revoltado
com o acontecido ateou fogo na casa da família de Patrícia. Com base em referências
teóricas como Michel Maffesoli (1987; 2006), Pierre Bourdieu (1989) e Raquel Recuero
(2009)), o trabalho busca compreender a propagação da violência simbólica no
ambiente online e as consequências no caso.
Palavras-chaves: Racismo no futebol. Redes Sociais. Discurso de ódio. Violência
Simbólica.
1.Introdução
“O que você espera para sua vida? ”, pergunta o apresentador Celso Portioli em
entrevista exclusiva no canal SBT. “Eu espero voltar para minha vida normal”, responde
Patrícia Moreira, a torcedora do Grêmio flagrada por uma câmera de televisão gritando
“macaco” para o jogador Aranha. A questão é que Patrícia Moreira não vai ter o que
considera uma “vida normal” tão cedo, não será esquecida pela opinião pública e
provavelmente não recupere a rotina de desconhecida que levava até o dia 28 agosto de
2014.
Quase um ano depois daquela noite em que passou a ser internacionalmente
conhecida como a torcedora racista, a jovem vive escondida, fala com poucos amigos e
familiares, não trabalha e evita acessar a Internet. Na mesma entrevista ao Domingo
Legal em que confessou o desejo de voltar a ser uma desconhecida, alguns meses depois
1
Mestranda em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
do ocorrido na Arena em Porto Alegre, Patrícia revelou ter sido sofrido ameaças de
estupro e de morte nas redes sociais. Contou que rapidamente foi localizada, que todas
as contas (Instagram, Facebook e Twitter) foram invadidas e que as ameaças eram
estendidas também à família.
CP: “O que você fez com seus perfis na Internet? ”
P: “Eu deletei. Não queria ver xingando minha família”.
CP: “Você teme também pela sua família? ”
P: “Lógico”.
CP: “Você tem receio de ficar marcada para sempre? ”
P: “Tenho.
CP: “Por que você está sendo a personagem principal
desse caso de racismo? ”
P: “Por a câmera ter pegado em mim e ficou marcado. ”
Esse capítulo envolvendo Patrícia Moreira entra para a história recente como
um evento marco no que diz respeito ao racismo no futebol brasileiro, narrativa que
ainda está fresca, em mutação, entretanto de tamanho impacto que justifica o interesse
de análise. A representatividade do caso suscita uma infinidade de questionamentos em
diferentes campos e principalmente no das Ciências Humanas, que mais interessa a esse
trabalho.
Na verdade, é válido dizer que com outros episódios relevantes e de repercussão
mundial, o ano inteiro de 2014 é emblemático quanto a temática do preconceito racial no
futebol. A partir dos inúmeros acontecimentos registrados e amplamente repercutidos na
mídia e nas redes sociais o tema impactou em diversas esferas sociais. Pode se afirmar
com segurança que houve um rompimento significativo no imaginário popular
motivados por punições inéditas no âmbito esportivo e uma nova interpretação diante
dos comportamentos preconceituosos dentro dos estádios, esses que até então
atravessaram o tempo como culturalmente aceitáveis, debatidos de forma massificada.
Se os tempos mudaram, o imaginário construído por muitos anos no futebol também,
destaca Juremir Machado da Silva:
Há sempre um ponto de virada. O imaginário é uma infiltração que
produz um novo acúmulo até resultar num transbordamento. Foi o que
aconteceu. Se um dia foi “tolerado” usar a palavra macaco, se os torcedores
do Internacional com humor incorporaram o termo, hoje não dá mais. Outras
expressões, como “negro fedido”, jamais deixaram de ser o que são: racismo.
O episódio com o goleiro santistas Aranha foi a famosa gota de água.
(CORREIO DO POVO, 2014)
Por outro lado, o que aconteceu fez vir à tona outras reflexões importantes sobre
as relações sociais dos usuários nas redes, tema que vem ganhando força nas pesquisas
de cibercultura no Brasil. É neste contexto que o presente artigo é desenvolvido, com a
avaliação dos desdobramentos negativos produzidos no ambiente online, quando os
debates relevantes quanto ao racismo caminharam ao lado dos discursos de ódio, das
manifestações de discriminação, preconceito e machismo. Patrícia Moreira é
personagem de uma conduta equivocada, em que crime de injúria racial obviamente não
de ser desconsiderado ou justificado, porém foi “sentenciada” onde não há poder prático
de jurisdição, mas local em que há força suficiente de condenação no âmbito pessoal/ na
vida: nas redes sociais. A Internet foi o referencial para a propagação de uma violência
sistêmico-simbólica (Bourdieu, 1989; Zizek, 2009), um tipo de violência imbricada nas
relações de poder entre grupos sociais.
Nos discursos mediados pelo computador, há também “punição” que passa a ser
real. Duas semanas depois do flagrante nas arquibancadas, o ódio disseminado nas redes
sociais, incentivou um torcedor do Grêmio a fazer justiça com as próprias mãos.
2. Racismo no futebol
Antes de ingressar no objetivo central deste trabalho, é necessário elaborar
algumas considerações sobre o tema que foi mote para desencadear o caso Patrícia
Moreira x Aranha, o preconceito racial.
Qual a razão dos comportamentos preconceituosos nos estádios de futebol? Por
que gritar “macaco”? Essas não são questões que podem ser respondidas com
facilidade, mas um dos aspectos essenciais para a explicação do comportamento está na
origem do próprio esporte no Brasil e no contexto histórico-social do país.
No século XX, football, termo original usado para o esporte nos seus primeiros
anos, era na época a modalidade da elite. De origem britânica, foi muito praticado por
ingleses imigrantes no país e pela alta sociedade brasileira, mantendo a pomba de uma
prática esportiva europeia inclusive com o uso integral de palavras em inglês para
denominar as posições e momentos do jogo.
Descreve Fernandes (2010, p.10):
É a de um esporte praticado quase que exclusivamente por clubes de
engenheiros e técnicos ingleses e suas famílias no início do Século XX. Do
fascínio pelo novo esporte por jovens da elite metropolitana que conviviam
com os ingleses e seus clubes. Da organização de clubes para a prática do
futebol nos bairros da elite social da Capital, que se tornaram, igualmente,
importantes centros de convivência das “famílias de bem”.
Esse modelo elitista foi mantido nas duas primeiras décadas do esporte,
entretanto, de forma clandestina, o futebol conquistou também aqueles que eram
excluídos de praticá-lo: negros e mulatos. Não aceitos nos clubes e nas ligas, a
segregação era feita na arquibancada, só tinham direito a esse local os brancos,
enquanto a geral, quase sempre as encostas dos morros, ficava disponível para os
negros. Assim, obviamente, o termo “macaco” passou a fazer referência a questão
racial. Consequência também dos discursos que eram sustentados na visão europeia
sobre progresso, nesse período, imergiram teorias que “comprovavam” a inferioridade
racial do país formado por parte de negros e mestiços, acreditava-se que o futuro estaria
comprometido e a nação fadada ao atraso. O futebol, novidade da Europa, reproduzia o
pensamento dos intelectuais. Por isso, praticado exclusivamente por jogadores brancos
para passar a imagem de uma nação.
A segregação em campo, não impediu o futebol de ser convertido na prática
esportiva número um no Brasil como destaca Gilberto Freyre (2014, p.25):
O desenvolvimento do futebol, não num esporte igual aos outros,
mas numa verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de
vários daqueles elementos irracionais da nossa formação social e de cultura.
O futebol legitimava o samba, o candomblé, a malandragem, e tantas outras
formas de expressão cultural.
Nos anos 30, com a profissionalização do esporte, o negro passou a ser aceito no
futebol, além disso, a conquista do então histórico terceiro lugar na Copa do Mundo de
1938 fortaleceu a relação da população com a prática esportiva. Entre os destaques do
mundial estava Lêonidas, um dos primeiros jogadores negros a ter a imagem
comercialmente explorada.
As conquistas da Seleção Brasileira e dos times do eixo Rio-São Paulo
intensificavam a relação nacional com o esporte, a presença do negro nos times de
futebol foi aumentando, que de inaceitável passou a ser insubstituível. Mudou o perfil
dos times, mas também o apelo social quando elite e classes mais baixas assumiram o
gosto pelo mesmo: um negro poderia ser ídolo e símbolo internacional. E o ápice na
década de 50: o início da carreira de Pelé. Personagem de três Copas do Mundo, ao lado
de outros negros, o jogador marcou todo um período. De excluídos muitos atletas
negros passaram a ser tratados como heróis nacionais e celebridades. Estava criado o
rótulo internacional: Brasil, a pátria das chuteiras.
Conforme Helal (1999), o futebol pode ser visto no Brasil como um poderoso
elemento de integração cultural, capaz de proporcionar um sentido singular de
totalidade e unidade, com uma universalidade que mobiliza e gera paixões em milhões
de pessoas. Para o autor, o esporte faz ainda mais, transforma os indivíduos de classes
sociais diversas em “iguais”.
Entretanto, essa possível “democracia racial” que o
futebol provocaria na sociedade, não se confirma quanto as frequentes manifestações
preconceituosas relacionadas aos gramados. Se o tempo consolidou a imagem que hoje
é difundida globalmente do jogador negro brasileiro bem-sucedido, com jogadores
negros assumindo um status oposto daquele dos primórdios da modalidade, agora em
posição de astros, idolatrados e divinizados, respinga nessa relação traços da herança
colonialista e escravista do país, em que negros não deixaram de protagonizar capítulos
de preconceito. Se tornaram figuras centrais de casos de racismo dentro de campo, alvos
de manifestações racistas nas arquibancadas e manchetes de um tema que parece não ter
fim.
3. Redes sociais
O artigo vai analisar algumas das manifestações postadas no Twitter, ferramenta
de micromensagens lançada em 2006, obtendo um crescimento no mundo e no Brasil.
Nela os usuários são convidados a responder “o que você está fazendo?” (Recuro e
Zago, 2009). É uma rede social em que a interação pode ser feita com desconhecidos,
todos usuários podem enviar mensagens a pessoas que não tem relação.
A título de definição, pontua Recuero (2009), as redes sociais na Internet são
constituídas de representações dos atores sociais e de suas conexões. Essas
representações são, geralmente, individualizadas e personalizadas. Ainda Recuero
(2009, p.3):
“As redes sociais devem ser diferenciadas dos sites que as suportam.
Enquanto a rede social é uma metáfora utilizada para o estudo do grupo que
se apropria de um determinado sistema, o sistema, em si, não é uma rede
social, embora possa compreender várias delas”.
O termo que surgiu da sociologia, Barnes (1987) foi pioneiro nos estudos que
conceitualizavam o que é rede social como visão das relações sociais entre sujeitos a
partir de nós e laços. O termo foi cunhado em 1954, quando o pesquisador estudou os
vínculos sociais em uma vila de pescadores e concluiu que o conjunto da vida social
poderia ser analisado a partir de um conjunto de pontos, às vezes, unidos por linhas,
formando uma rede inteira de relações.
Sendo assim, no contexto da Internet, os atores, portanto, são os primeiros
elementos da rede social, e equivalem aos nós da rede (Recuero, 2009), no caso, cada
ponto da cidade na teoria de Barnes. Os atores são, na verdade, representações sociais
de cada um, como que espaços construídos por cada ator, nos quais cada um vai decidir
como interagir com o restante da rede. E essas conexões promovidas pelos sites de redes
sociais, em muitos casos, potencializam a disseminação de discursos como o que
interessa este artigo: o discurso de ódio, que propaga a violência e a agressividade,
danosas a que sofre, levando em determinadas circunstâncias o silenciamento, a perda
de capita social2 e até ao rompimento das conexões com a rede, com a exclusão de um
perfil, por exemplo.
No caso aqui abordado, Patrícia Moreira excluiu todas as páginas que tinha na
Internet. Foi também pela Internet que a torcedora foi identificada após a divulgação das
imagens da televisão ESPN que a flagravam na arquibancada gritando “macaco”. Os
compartilhamentos nas Internets tiveram ainda outras repercussões a serem analisadas a
seguir.
4. Entendendo o caso Patrícia Moreira x Aranha
No dia 28 de agosto, durante uma partida entre Grêmio e Santos, minutos antes
do final do confronto em Porto Alegre, o goleiro Aranha relatou ao árbitro Wilton
Pereira Sampaio que havia sido vítima de xingamentos por parte da torcida. O juiz
determinou que a partida seguisse, mas assim que terminou Aranha em entrevista as
emissoras de televisão e rádio disse que havia sido ofendido com palavras racistas e que
no momento das ofensas pediu para que os cinegrafistas que estavam próximos ao local
registrassem o rosto de quem estava gritando.
As declarações foram suficientes para que o assunto voltasse às principais
manchetes da mídia nacional e internacional. As manchetes passaram a vir então
acompanhadas então do flagrante: o cinegrafista da Espn Brasil gravou o momento
exato em que uma torcedora gritava “macaco”. Pela multiplicação da imagem em sites,
canais de televisão e redes sociais, rapidamente ela foi identificada como Patrícia
Moreira.
2
Para Pierre Bourdieu (1983), o capital social é constituído dos valores negociados e embebidos na
estrutura dos grupos sociais, aqueles associados a “fazer” parte destes grupos. As impressões, o suporte e
o
apoio
social
diante
de
um
grupo
seriam
considerados
capital
social.
No dia seguinte, Patrícia foi transformada na personagem central do ato racista,
uma espécie de símbolo do preconceito, perdeu o emprego e sua imagem foi publicada
inúmeras vezes. Teve informações confidenciais divulgadas, passou a sofrer ameaças,
foi obrigada por razões de segurança a ficar na casa de parentes. Tamanha exposição,
fez com que um torcedor do Grêmio, inconformado com os atos racistas e com as
sequentes punições ao Grêmio, que foi excluído da Copa do Brasil, ateasse fogo contra
a casa da família da Patrícia.
5. Discurso de ódio
Conforme dados da Ong Safernet, as mensagens violentas ganharam espaço na
Internet nos últimos anos no Brasil. Sendo que nos últimos três, o número de páginas
com conteúdo de intolerância racial, religiosa e sexual e com material que faz apologia
a violência e ao ódio, cresceu 200%. Esses números indicam que as redes sociais foram
transformadas no ambiente ideal para as manifestações presentes na sociedade, mas que
em caráter físico, frente a frente, são contidas pelo temor das punições, são crimes e
passíveis de julgamento. A mesma pesquisa destaca que 61% dos usuários entre 9 e 23
anos, entre 2012 e 2013, costumam se comportar na Internet de forma diferente, sendo
que 34% se sentem mais livres e 10% acham normal “xingar” e fazer “piadas” com as
situações.
O francês Bourdieu (1989), em seu livro Poder Simbólico, trata do poder que se
vê em toda parte, mas que nem sempre é percebido. Seriam os sistemas que estruturam
as sociedades, como a religião, a arte e mesmo a língua. Esses símbolos seriam
instrumentos de integração social. Os indivíduos se subdividem, estabelecendo grupos
de dominados e de dominadores. Ou seja, uma classe ou característica específica
constrói um poder imposto de forma simbólica, que vai fazer com que seja gerada uma
violência pela prevalência, essa, a violência simbólica.
Nesse artigo, interessa explicar que as ideias defendidas por Bourdieu podem ser
interpretadas na abordagem dos conteúdos da Internet. Os discursos de ódio integram a
violência simbólica propagada em variadas conexões. Essa violência é simbólica porque
não está presente fisicamente, mas permeia as relações sociais. Uma violência
estabelecida principalmente pelo uso da linguagem.
Se a violência simbólica se apresenta pela força de uma classe ou um
grupo social possui perante os outros, a linguagem é o meio transmissor pela
qual essa violência é repassada. Ao se falar em violência nos sites de redes
sociais, sabe-se que não se trata da violência física, imposta pela presença do
corpo propriamente dito, e sim de algo marcado na linguagem. Mas a
percepção da violência nesses sites vai além do que está explícito, vai até a
replicação de algo que não parece ser violento. (SOARES, 2013, p.76)
No mesmo caminho, Zizek (2009) afirma que a linguagem constitui um universo
emblemático no os seres humanos atribuem valores simbólicos à linguagem, as palavras
acabam definindo um tipo de performance de algum grupo, que pode ser violenta, com
estigmas impostos, como o racismo, por exemplo. As palavras legitimam a crença de
quem as pronuncia.
Na Internet, Dery (1994) a separação do corpo da palavra gera a aceleração da
hostilidade de um conflito, o espaço acaba sendo propício para a propagação de
discursos de ódio, ofensivos e agressivos. Se o “anonimato” inibe a punição, não há
eminente necessidade de “polidez”. Dessa forma, pela capacidade da rede reunir
pessoas com históricos e backgrounds diferentes, com grandes diferenças, mais
facilmente surgem os conflitos.
Para Lebrun (2008), estudioso francês que trata sobre o fenômeno do ódio, o
ódio é um sentimento e as intolerâncias das pessoas, como a intolerância de raça,
religião ou política são materializações destes sentimentos. Através da violência
expressa nas palavras, o indivíduo pode atingir os demais presentes no círculo social,
com a agressão verbal, afirma:
O ódio, mais do que um sentimento ou uma manifestação de
explosão violenta, é um fato de estrutura, temos ódio pelo fato de falarmos,
assim pode ser enunciada a afirmação freudiana de que o indivíduo é inimigo
da civilização. A civilização nos impõe sempre um gozo a menos, uma falta,
uma restrição, e a isso respondemos com ódio. A questão decisiva, então, é o
que fazemos com esse ódio que nos habita pelo fato de estarmos inseridos na
linguagem? (LEBRUN, 2008, p.9)
O gozo do ódio é precisamente o fato de deixar o ódio realizar-se,
cumprir-se como se esquecêssemos que ele é apenas a nossa resposta ao fato
de que não colocamos mais a mão sobre o que a língua já nos subtraiu.
(LEBRUN, 2008, p. 32)
Recuero(2012) reforça a ideia que as palavras que não seriam utilizadas numa
conversação cotidiana são escritas online, porque não há a presença do outro marcada
explicitamente, não reciprocidade imediata, se houver, há um computador como
mediador.
6. O Twitter como tribunal para Patrícia Moreira
Para demonstrar o conteúdo propagado no Twitter relacionado à Patrícia
Moreira, foram coletadas 42 mensagens publicadas posteriormente ao acontecimento do
caso de racismo na Arena Grêmio e durante os desdobramentos do caso (a partir de final
agosto de 2014). A seleção foi aleatória, usando apenas o filtro de busca “Patricia
Moreira” ou com a variação acentuada “Patrícia Moreira”. A intenção foi reunir um
número de terminados tweets para brevemente analisar quais são os discursos mais
recorrentes.
A Análise de Conteúdo foi o método escolhido para demonstrar a ideia central
deste trabalho. Conforme Bardin (1977, p.38), ela aparece como um conjunto de
técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e
objetivos de descrição de conteúdo das mensagens. A técnica permite compreender o
sentido da comunicação, como também descobrir uma segunda significação. Além
disso, a categorização irá guiar a apreciação, ainda conforme Bardin (1977, p.117):
A categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos
de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento
segundo o gênero (analogia), com os critérios previamente definidos. As
categorias são rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos
(unidades de registro, no caso da análise de conteúdo) sob um título genérico,
agrupamento esse efetuado em razão dos caracteres comuns destes
elementos.
Assim, as mensagens podem ser categorizadas da seguinte forma:
A) As ofensas (“puta”, “vadia”, “nojenta”, “piranha”), aparecem 18 vezes;
B) Fotos que expõe Patrícia Moreira são compartilhadas em 6 momentos;
C) Os discursos que condenam a torcedora e que pedem que ela seja presa
aparecem 16 vezes
D) Há 3 referências a fisionomia de Patrícia Moreira, a considerando “gostosa”
e sugerindo que pose nua.
É importante destacar que essa foi uma amostragem pequena diante da dimensão
que o assunto exigiria, mas o artigo não se propunha a detalhar a análise de conteúdo,
mas por meio da coleta auxiliar na construção das reflexões sobre os discursos de ódio
nas redes sociais, como objetivo principal relacionar os conceitos ainda recentes com o
caso de Patrícia Moreira. Ainda que superficial, a coleta já exemplifica os conceitos que
foram abordados até aqui.
As repercussões nas redes sociais podem ser analisadas ainda sob o olhar do
tribalismo. Maffesoli fala que a anemia existencial suscitada por um social demasiado
racionalizado, faz com que as tribos urbanas acentuem a urgência de uma socialidade
empática, que seria a partilha das emoções e partilha dos afetos, neste caso, o próprio
ódio pode demonstrar identificação. As milhares de manifestações demonstram que
diante da popularidade da temática, participar daquele contexto representava também
reproduzir o que a maioria estava fazendo. A indignação do coletivo manifestada pelo
apoio a um indivíduo (no caso, o goleiro Aranha) e ao repúdio ao vilão (Patrícia
Moreira). Assim sendo, além do sentimento de ódio já mencionado como forma de
externalização violência simbólica na Internet, ocorreu a propagação da coletividade do
pensamento antirracista. Ou seja, mesmos torcedores que vão aos estádios e gritam
“macaco”, “negro” ou “macacada”, no momento auge do compartilhamento de emoções
ingressam também na onda de “defesa” da causa. E a figura de Patrícia simbolizava
tudo aquilo de preconceituoso, de errado e por isso repugnado.
A dimensão do caso é também movida pelo tema: o futebol suscitaria os mais
primitivos dos sentimentos. A paixão pelo clube liga pessoas de classes distintas,
constituindo um forte vínculo emocional e o conceito de tribalismo também está ligado
a afetividade. Para Durkheim (), a “força de atração” faz com que alguma coisa tome
corpo e assim se expressaria sentimento como a paixão. As crenças comuns são
elaboradas, ou, simplesmente que se procura a companhia “daqueles que pensando e
que sentem como nós”. É a troca de sentimentos, discussões de botequim, crenças
populares, visões do mundo. Sensação de contágio pelo sentimento.
7. Considerações finais
O objetivo neste artigo não foi apresentar conclusões definitivas sobre o tema,
mas estimular uma reflexão sobre o comportamento nas redes sociais e interpretações
dadas para o caso racismo no futebol. Neste trabalho, a ideia foi demonstrar como
características próprias das conexões onlines possibilitam que a ferramenta seja usada
para propagar discursos de ódio.
Do ponto de vista da Pós-Modernidade, a busca do “eu” que se transforma em
“nós”; quando, passionalmente, qualquer crença individual é suprimida pelo fato de
querer compartilhar, mas também de externalizar discursos odiosos. Na reflexão de
Maffesoli (1987, p.197), esse “tribalismo” é a experiência de um grupo fundamentado
num forte sentimento de pertencimento necessita, para a sobrevivência de cada um, que
outros grupos se criem a partir de uma exigência da mesma natureza. Condenar Patrícia
Moreira é a manifestação do poder simbólico, antes mesmo que a torcedora seja de fato
julgada pela Justiça. Se tratando de um assunto que envolve futebol, os desdobramentos
fazem parte também de um universo em que o próprio ambiente, torcer em estádios já
estimula as mais passionais das manifestações.
A repercussão do caso rendeu as mais variadas discussões no meio esportivo e
na sociedade. Porém, deve ser principalmente analisada também não apenas na
amplitude, mas em contextos particularizados. Patrícia Moreira, de fato, foi
preconceituosa ao chamar Aranha de Macaco, mas independente das motivações, das
circunstâncias e da própria ação, a torcedora foi transformada na personificação dos
piores sentimentos. Ficou marcada, teve os direitos (de privacidade e dignidade)
violados por um coletivo, sofreu ameaças e quase um ano depois segue com medo de
viver uma rotina normal. As redes sociais condenaram previamente Patrícia Moreira
antes da defesa da envolvida perante a Justiça, o debate, que deveria servir para avanços
da temática como sociedade, foram em alguns momentos desviados. As ferramentas
tecnológicas acabaram sendo usadas para disseminar o ódio e mesmo fortalecer o
próprio preconceito. O tribunal das redes sociais condenou Patrícia Moreira, assim
como já condenou outros personagens em momentos diferentes. Afinal, que civilização
é essa que utiliza de ferramentas importantes para reproduzir o mal? A quem compete
julgar ou rotular Patrícia Moreira? Como controlar a violência simbólica nas redes? São
apenas algumas das reflexões que podem ser feitas do tema, que pode ser explorado
incansavelmente pela academia.
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106
O Tempo das Redes e o surgimento do novo receptor/emissor no
Brasil
Manuel Petrik*
Ao se desdobrar a raiz etimológica (latina) da palavra comunicação surgem três
núcleos: commune - hic - actione (ato de tornar comum aqui). Tornar uma informação de
domínio comum traduz-se em um ato que transcorre em um determinado local, num
determinado período de tempo. A temporalidade (atualidade do fato) é, como se sabe,
fundamental no critério de noticiabilidade no jornalismo.
Em 2005, completam-se 20 anos do início da difusão da internet em lares
brasileiros. A rede mundial de computadores e, mais recentemente, as redes sociais
alteraram as formas de conexão entre as pessoas e os meios de acesso à informação no
espaço e, principalmente, no tempo.
As redes vêm ganhando atenção dos meios acadêmicos, na área da Comunicação,
muito em função da nova aura que envolve o receptor, cada vez mais investido como
emissor. Ainda que vistas com certo desdém, as redes são, como todas as tecnologias,
reveladoras de comportamentos e de tendências sociais. Para este artigo, foram
escolhidas duas postagens no Facebook, diferentes em conteúdo, mas complementares
no sentido, como se verá. A primeira delas, publicada no perfil do jornal El País, no
Brasil, trata, exatamente, de uma matéria em que a questão central é a própria rede social
e o algoritmo que funciona como filtro de seleção ao que será visto no feeed de notícias
de cada usuário (figura 1).103 A segunda repercute uma entrevista com o sociólogo
espanhol e teórico das redes Manuel Castells, publicada na página do jornal Folha de
São Paulo (figura 2).
O tópico sobre a ordenação de conteúdos pelo Facebook foi um dos que mais
recebeu comentários, naquela semana, no perfil do periódico espanhol. O texto analisa e
contrapõe os resultados de um artigo de cientistas sociais do próprio Facebook,
publicado na revista Science, que tenta abrandar os efeitos do algoritmo na exposição de
posts que apenas corroboram a visão político-ideológica de cada pessoa, valorizando
*Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PPGCOM-PUCRS).
103
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/06/tecnologia/1430934202_446201.html>.
Acesso em: maio de 2015.
107
aqueles aos quais o usuário se alinha em detrimento aos que se opõe104. O artigo é,
portanto, uma resposta aos críticos das chamadas bolhas ideológicas, que seriam
causadas pela rede social, em que se enfatizam pontos de vista em comum, reforçando
sectarismos e posicionamentos radicais.
Independente da influência (ou não) da estrutura tecnológica de funcionamento
da rede social, o que se vê, atualmente, é um aturdimento por parte do público, ao
mesmo tempo em que se encontra cada vez mais entusiasta dos novos aparatos. “Um
monopólio [da técnica] que acentua a disseminação mais rápida [da informação] causa
uma profunda perturbação na sociedade”, diagnosticou Harold Innis (1951/2011, p.282).
A aceleração causada pela circulação on-line de informações vem provocando uma
mudança significativa no comportamento e a nova configuração social do tempo tem
uma parcela importante nisso.
1.1 Novo tempo no ciberespaço
“Nós matamos o tempo e o tempo nos enterra”. A citação do personagem
principal de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, bem interpreta a
relação do homem com a dimensão temporal no seu transcurso existencial. Dominar o
tempo (ganhar em produção) e o espaço (encurtar distâncias) tornou-se o mote de
sociedades ao longo da História. O ser humano está, não só física, mas culturalmente
condenado a orientar-se por essas duas dimensões. É sabido e desnecessário citar todos
os autores que ressaltam a ruptura provocada pelo virtual e, especialmente, pelas redes
sociais, nesses dois elementos. Mais interessante e esclarecedor seja, talvez, retomar
aqueles teóricos que não conviveram com essas tecnologias, mas ocuparam-se da
essência da técnica.
No campo específico da comunicação, a relação entre tempo e espaço foi
abordada por Harold Innis:
Um meio de comunicação tem uma importante influência na disseminação
do conhecimento através do espaço e do tempo e se torna necessário estudar
suas características a fim de avaliar sua influência sobre o quadro cultural.
De acordo com suas características, um meio pode ser mais apropriado para a
disseminação do conhecimento através do tempo em detrimento ao espaço
(...) A relativa ênfase no tempo ou no espaço irá implicar um viés [bias] de
significação para a cultura na qual está inserido (1951/2011; p. 103). 105
104
Disponível em: <http://www.sciencemag.org/content/early/2015/05/08/science.aaa1160>. Acesso em:
maio de 2015.
105
À primeira vista, o texto pode sugerir um certo determinismo tecnológico. Na verdade, remete a uma
interconexão entre suportes materiais, tempos históricos e inclinações culturais. Como nota Luiz C.
Martino, no prefácio à obra citada, a leitura atenta de Innis tratará de “estabelecer pontes e
108
Se no século XX o público se viu numa condição de anomia, definido como
massa e visto como sujeito apático (basta lembrar que, pela perspectiva das Teorias da
Comunicação, essa noção só começa a mudar com as pesquisas de campo empíricas de
duplo fluxo e, mesmo assim, de forma tímida, na década de 1930), na segunda década do
século XXI a configuração é outra. Há, ao contrário, a emersão de um enunciador
opiniático, que sobre tudo se posiciona, não raro esquecendo argumentos e enveredando
pela virulência verbal do ódio ao diferente ou a quem não se encontra no seu campo
(bolha) de posicionamento.
É importante retomar, também, a concepção de tempo proposto por Agnes Heller
(1993). Talvez aquele que mais se aplique à situação atual seja o do presente “agora
mesmo”. Conforme a autora, “‘Agora mesmo’ denota ação. (...) Passo de uma ação a
outra e nada muda. Para ser mais, mais exata, se algo muda, a mudança não é causada
pela minha passagem de uma ação a outra” (1993/p.51-52). Para Heller, a distinção do
que passou para o que está por vir chama-se “pessoalidade”, o espaço para encarar a
transição temporal a partir de si, da trajetória de cada um. Ante a repetição de presentes
contínuos (carentes de “tempos idos”, como o recém-nascido) e, aparentemente inócuos,
as redes surgem como novo espaço para expressão do eu sufocado pelo tempo da
contemporaneidade. São dispositivos para a busca de um ser pessoal que fica subsumido
a um contínuo de atos e ações. A nova configuração da disposição temporal, portanto,
gera a angústia necessária para a assunção de um reformulado indivíduo receptor,
sempre pronto a interagir opinando.
1.2 Opiniões e bolhas ideológicas no Facebook
O artigo proposto pelos funcionários do Facebook coloca, no centro da discussão,
a autonomia do sujeito receptor. O comportamento nas redes reflete uma predisposição
ao sectarismo inato e talvez reforçado pelas angústias de perdas de parâmetro
características da contemporaneidade, ou, por outro lado, é resultado de novas formas de
disposição das informações, ordenadas de acordo com a lógica maquinística do
algoritmo? A manchete do El País vai na mesma direção da primeira hipótese:
“Usuários transformam seus murais no Facebook em bolhas ideológicas – Algoritmo na
rede reduz a diversidade ideológica, mas não é o maior culpado, aponta estudo”.
correspondências entre as propriedades materiais dos meios e as configurações do poder e da cultura” (;
p. 14). Um meio, com as características de seu suporte e de acordo com a orientação da cultura em que
surgiu, irá tender mais ao espaço ou ao tempo, também aí ambos definidos segundo a linguagem e,
portanto, a partir de um significado social preestabelecido
109
No corpo do texto, a discussão é mais ampla. Começa reafirmando a
impossibilidade da neutralidade da técnica: “Embora ainda muita gente não saiba,
o Facebook seleciona o que os usuários veem em seu mural”, para, em seguida, explicar
como funciona o algoritmo e introduzir opiniões de especialistas (críticas) ao artigo
publicado na Science.
Na postagem do El País, o comentário que mais gerou curtidas (52 no total) foi
do usuário L.S.S., que trouxe a discussão para a política brasileira: “O Facebook está
pautando o pensamento das pessoas. Isso é horrível. Eles escolhem o que a gente deve
ver.(...) Petistas parecem idiotas defendendo seus ídolos corruptos. Odiadores do PT
falam m. o tempo todo defendendo ideias ultrapassadas”. As respostas, na maioria,
complementavam essa proposição inicial. A quantidade de comentários originados a
partir da opinião desse enunciador o transforma, praticamente, em um líder de opinião,
como aquele previsto pelas pesquisas norte-americanas da década de 1930, mas que, não
fosse a rede social, despontaria para o anonimato. “Um dos maiores efeitos de ruptura da
internet é combinar publicação e comunicação (interpessoal) em um único meio”, notam
Anderson, Bell e Shirky (2012; p.15) em ensaio sobre o jornalismo pós-industrial, mas
que traduz de forma ampla a lógica das novas tecnologias.
A discussão, a partir daí, oscila entre as duas bolhas ideológico-partidárias
brasileiras (PT-PSDB), e o tema em si, da tecnologia afetando o modo de pensar.
“Depende somente do indivíduo escolher entre se submeter a uma auto-lavagem
cerebral, ou buscar informação de várias fontes”, disse B.P., gerando 50 curtidas. Os
demais comentários não renderam tantas apreciações. Mesmo assim, há uma grande
variedade de posicionamentos, destacando a intolerância de alguns: “Acho um absurdo!
Tirem essa matéria daqui! Audácia!”, disse L.M.. “Dessa eu ri!”, escreveu G.R.. E
transparece a abundância de termos de baixo calão em outros, como o vociferado por
M.A.: “Não fode PORRA... Algum dia foi diferente seus merdas! (SIC)”. Inúmeros
simplesmente marcavam seus amigos, indicando a leitura, com comentários do tipo
“olha o que falávamos”, ou “vale a leitura”, como se servissem de alerta para um engodo
perpetrado pela rede social.
A questão apontada por críticos é se, antes, o emissor poderia escolher entre o
canal de TV, a emissora de rádio ou o jornal A, B ou C, agora o Facebook escolhe o que
disponibilizar ao receptor, de acordo com um filtro que, supostamente, reflete as
preferências do usuário. A lógica de combinação do filtro, porém, é sempre a mesma, ou
110
seja, não varia de acordo com escolhas individuais (se a preferência do internauta é por
postagens de amigos, familiares, colegas de trabalho ou por notícias de veículos de
imprensa, blogs ou páginas institucionais). Haveria, portanto, nessa coordenação pelo
filtro eletrônico, um motivo a mais para rebeldia/expressão do eu nos textos de
comentários na rede social, proporcionando um novo local de fala, mais amplo e sempre
tecnicamente mediado para o angustiado receptor/emissor.
1.4 O brasileiro pouco cordial e as redes
As alterações de comportamento do brasileiro nas redes ultrapassaram as
fronteiras nacionais e foram objeto de análise de Manuel Castells, em visita ao Brasil, no
último mês maio, para um ciclo de palestras. Na abordagem ao tema, o autor deixa clara
uma dissidência com autores clássicos na formação do país, como Sérgio Buarque de
Holanda e Gilberto Freyre. “Simpatia do brasileiro é um mito, diz sociólogo Manuel
Castells”106, é o título da postagem, e também da matéria, para em seguida completar:
“A imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Na relação entre as
pessoas, sempre foi violento.(...) Esse é o Brasil que vemos hoje na internet. Essa
agressividade sempre existiu”. Na entrevista ping-pong, o sociólogo discorria sobre o
que considera uma “crise mundial dos sistemas tradicionais de democracia
representativa”, decorrente da transparência e da agilidade proporcionadas pela internet,
dizendo que, no Brasil atual, a crise se agrava por problemas econômicos. Castells é
perguntado por que o brasileiro tem a sensação de que, na internet, há demasiada
violência no debate. Ele responde dizendo que não crê na hipótese, lembra a injustiça
social brasileira, em si agressiva, e a violência perpetrada pelo Estado com a tortura
durante a ditadura militar. “A única coisa que a internet faz é expressar abertamente o
que a sociedade é em sua diversidade. Trata-se de um espelho”, sintetiza.
O post da Folha teve mais de 24.563 curtidas e mais de 6 mil compartilhamentos,
números muito elevados, inclusive para um periódico já tradicional em termos nacionais.
“Basta ler os cometários no Facebook”, disse a leitora T.M., como complemento ao
título, reafirmando sua condição de receptora/emissora, e recebendo elogios de
concordância de outros internautas, além de 1.252 curtidas. Em seguida, tal qual no post
sobre o algoritmo, os primeiros comentários remetem à dualidade política brasileira:
“Até por que eu não sou obrigado a concordar com esquerdistas... A única corja que
odeio!”, afirmou D.S.S. “Brasileiro é tão bonzinho que votou na Dilma”, afirmou A.T.,
106
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1630173-internet-so-evidencia-violenciasocial-brasileira-afirma-sociologo-espanhol.shtml , acessado em maio e junho de 2015.
111
no que foi reprimida de forma agressiva por A.M.: “Só lixo comentou aqui”. Três
comentários, intercalados e de usuários diferentes, lembram que a questão não é política,
mas cultural e de educação. Tais ponderações remetem, então, a discussão para o caráter
do brasileiro. “Quando um caminhão carregado de qualquer coisa tomba, os bons
brasileiros aparecem imediatamente, para socorrer o motorista?...Não....Pra saquear a
carrada...”, escreveu D.J.C, com 831 curtidas e desencadeando o novo debate sobre a
ética e a moral do país.
De forma geral, os comentários dão vazão a uma enxurrada de críticas à nação e
“ao brasileiro”, quase sempre referido na terceira pessoa. Mas um grande número
também se opõe à observação de Castells, com argumentos que vão desde o fato de ser
ele estrangeiro, ter pouco contato com brasileiros (“É um idiota estrangeiro que se acha
com propriedade para falar dos brasileiros”, agrediu L.H.), ser sociólogo (?!), ou por
motivos prosaicos, como o de que “provavelmente o Dr. não deve conhecer o Nordeste e
o seu povo”, como disse L.G. O debate também passa pelo papel do meio tecnológico
em ativar o ódio: “O ‘brasileiro cordial’ do Sérgio Buarque não tem computador!”, disse
T.S..
1.5 Considerações
A tecnologia mais difundida e o predomínio de um meio são sempre reveladores
de uma identidade em uma civilização. Como mostrou Innis, o desenvolvimento de uma
técnica, em determinada cultura, é essencialmente ligado ao ciclo econômico dominante
naquela sociedade. E a economia é, como ressaltaram os Estudos Culturais e também
Manuel Castells, uma prática cultural. Sob essa perspectiva e, em última instância, a
tecnologia é a projeção materializada de uma identidade cultural, a partir de uma base
econômica, e com um fim utilitário, que transcende socialmente essa sua designação
pragmática precípua. Aparatos tecnológicos, tomados em conjunto com a cultura que os
gera, são, portanto, reveladores.
Neste artigo, procurou-se enfatizar as alterações temporais como motivadoras de
mudanças comportamentais por parte do público receptor/emissor, talvez manifestadas
de forma mais acentuada em uma cultura como a brasileira. “Cada tecnologia cria o seu
imaginário, sua mitologia, sua necessidade e seus defensores. A característica principal
das tecnologias mais revolucionárias é se imprimir no imaginário social como
incontornáveis”, nota Juremir Machado da Silva (2013/ p.54), ao abordar o trabalho de
Innis. Sob o auspício da conexão absoluta, em qualquer lugar e a qualquer hora, o
112
emissor vê, na rede social, a ilusão de um espaço libertário onde pode dar expressão à
perda de sentido causada por uma aceleração temporal na circulação de informações
(públicas ou do grupo que o cerca na rede). Quanto haverá de liberdade em um campo
onde quem faz a lei é um monopólio (Facebook) e quem a fiscaliza, um algoritmo? Sob
o viés do tempo e parafraseando Castells, as redes sociais, hoje, são mais de indignação
do que de esperança.
Para este trabalho, foram selecionadas duas postagens, uma que analisa e
questiona o funcionamento técnico de uma rede e os posicionamentos ideológicos de
seus usuários, e outra em que o foco recai sobre a matriz do brasileiro (cordial ou
agressivo), mas em que o componente da rede e, portanto, da comunicação, está
implicado. Em ambos os casos, há manifestações de agressividade e violência verbal.
Apesar da discordância de Castells, essa beligerância linguística e comunicacional não
se apresentava nesse nível no Brasil, por exemplo, em discussões e rodas de conversas
entre estranhos, ou mesmo nas cartas de leitores de jornal impresso. Há, portanto e
também aí, um componente de viés estabelecido pelo meio tecnológico, embora que não
somente por esse. Tal meio, a rede social em suporte virtual, é uma inovação no país,
que só nas últimas décadas deixou de conviver com a ausência de um letramento
alfabético e, rapidamente, é impelido ao letramento digital. Novamente, parecemos estar
diante de um m movimento semelhante àquele bem identificado por Wainberg em
relação ao momento de expansão da comunicação massiva entre as décadas de 1920 e
1950 no país: "na verdade, no novo contexto de redes sofisticadas que se interligam, os
brasileiros tem o que partilhar. O objeto do Brasil tornou-se o Brasil." (2001; p.14)
Cabe ressaltar que a introdução das novas tecnologias coincide com um momento
histórico também inédito do Brasil, se considerarmos que, entre 1994 e 2014 (a internet
domiciliar é de 1995), completaram-se 20 anos de democracia em que todos os
presidentes concluíram seus mandatos. É o maior período institucionalmente
democrático na história do país, desconsiderando a República Velha, onde grassavam as
fraudes eleitorais. De súbito, o brasileiro viu-se podendo votar, expressar-se, consumir
produtos culturais mais complexos em um ambiente de relativa estabilidade
macroeconômica e ainda contar com um aparato absolutamente novo para usufruir de
tudo isso.
Com a brevidade possível, procurou-se fazer aqui uma leitura da comunicação a
partir de seus meios, sem escorregar em determinações a partir de seus suportes.
113
Anteviram-se nesses, isto sim, chaves para explicar fenômenos comunicacionais mais
amplos. Procura-se demonstrar, nas duas postagens emblemáticas, que a temporalidade e
a conectividade propostas pelo Facebook vêm gerando uma transformação no
comportamento do receptor/emissor, provocando também, a partir disso, um debate
sobre fundamentos da identidade nacional. Embora a rede social congregue de forma
equânime características de espaço e de tempo, a forma como ela introduz tais alterações
de dimensões é demasiado acelerada, ainda mais em uma sociedade pouco apta no
letramento do alfabeto.
A tensão presente nos diálogos das redes parece bem sintetizada por McLuhan,
ao recorrer à literatura para explicar as perturbações ocorridas entre os séculos XV a
XVII:
Shakespeare explica minuciosamente que o próprio princípio de ação
consiste no parcelamento das operações sociais e da vida sensorial individual
em segmentos especializados, daí resultando uma busca frenética por uma
nova interação global das forças operantes, a qual, por sua vez, leva a furiosa
ativação de todos os elementos e pessoas afetadas pela tensão. (McLUHAN ,
1972, p.39)
Toda a explicação entre a transição na configuração social do medievo para a
modernidade é explicada por McLuhan citando trechos de Rei Lear, de Shakespeare.
Para o teórico canadense, os personagens Kent, Edgar e Cordélia são caracterizados
como feudais, “fora do tempo” para reforçar que a peça “é a perfeita ilustração do
processo de despojamento sofrido pelos homens ao passarem de um mundo de papéis ou
funções para um mundo de ocupações ou tarefas” (Idem, p. 35).
Sem ter vivido plenamente esse mundo lógico e linear que acompanha as
mudanças cognitivas coincidentes com a tipografia, o Brasil depara-se, rapidamente,
com a complexidade espraiada e difusa das redes virtuais. Nessa perspectiva, o brasileiro
não sofreria de um Complexo de Vira-Latas, como queria Nelson Rodrigues, mas sim da
mesma angústia complexa das personagens de Rei Lear.
Bibliografia
ANDERSON,
C.W.;
BELL,
Emily;
SHIRKY,
Clay.
Post-Industrial
Journalism: Adapting to the present. Nova York: Tow Center for Digital Journalism,
Columbia
University,
2012.
(Disponível
em:
<http://towcenter.org/wp114
content/uploads/2012/11/TOWCenter-Post_Industrial_Journalism.pdf> Acesso em: 1º
de junho de 2015.)
CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais
na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar: 2013.
HELLER, Agnes. Uma Teoria da História. Tradução de Dílson Bento de Faria
Ferreira Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.
INNIS, Harold. O Viés da Comunicação. Tradução de Luiz C. Martino.
Petrópolis: Vozes, 2011.
MCLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg: a formação do homem
tipográfico. São Paulo: Editora Nacional/ Edusp. 1972.
SILVA, Juremir Machado da. Suportes da Comunicação: entre Meio e Poder.
Matrizes, São Paulo, Ano 7 – nº 1, jan./jun. 2013. p. 47-57.
WAINBERG, Jacques. Casa Grande e Senzala com Antena Parabólica:
telecomunicação e o Brasil. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.
Figura 1
115
Figura 2
116
Mesa 4 - PLATAFORMAS EMERGENTES
Coordenação: Paulo Pinheiro
As tecnologias e a relação com a dimensão
da memória: um olhar sobre o Evernote.
Mariana Wichrowski
GAUTERIO107.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.
108
Resumo: O presente artigo pretende realizar uma reflexão sobre o conceito de
memória e sua relação com a tecnologia da informação e os dispositivos móveis. Para
tanto lançamos um olhar sobre o sistema Evernote, refletindo sobre o seu
funcionamento e a relação com a nossa capacidade mnemónica de guardar
informações que recebemos em nosso cotidiano.
Palavras-chave: Comunicação Social, Memória, Tecnologia, Dispositivos móveis,
Sistema Evernote.
As tecnologias e a relação com a dimensão da memória:
Pensar a dimensão de memória é entender que ela não é passado, ela é uma armação
do presente, ela é processual. Ou seja, a memória está intimamente ligada ao que
entende-se por lembrança versus esquecimento. Diferente da história, que é sobretudo
um lugar de fala de reconhecimento científico que pressupõe ações, atitudes e
transformações, a memória não é um campo disciplinar e sim um conceito.
107
Doutoranda do curso de Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/
PUCRS, e-mail: [email protected].
108
Trabalho apresentado no XIII SEICOM 2015 (Seminário Internacional da Comunicação) organizado
pelo PPGCOM da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS no GT Tecnologias do
Imaginário e Cibercultura.
117
Eric Havelock (1996) reflete como a invenção da escrita interferiu na perda das
capacidades da arte da memória. A escrita significou uma certa liberdade para a
memória, onde seria permitido deixar espaços em branco para serem ocupados por
outras memórias. Se houve uma libertação da memória, houve também perda das
capacidades mnemônicas que não foram recuperadas. Segundo o autor, na Grécia sem
escrita as condições de preservação eram mnemônicas pois cada pronunciamento
tinha de ser lembrado e repetido. O alfabeto tornou disponível um registro visual
completo abolindo a necessidade de memorização. Se antes a necessidade de recordar
gastava uma cota de capacidade cerebral, a partir da escrita o pronunciamento já não
precisava ser memorizado.
Em Nota sobre o “Bloco Mágico” (1925),
Sigmund Freud coloca em cena esta
questão tecnológica. O autor fala sobre a metáfora do esquecimento e a questão da
escrita libertando para o esquecimento.
Quando desconfio de minha memória — sabe-se que o neurótico faz isso
consideravelmente, mas também a pessoa normal tem todo motivo para fazê-lo —,
posso completar e garantir sua função tomando notas. A superfície que conserva a
anotação, a caderneta ou folha de papel, torna-se como que uma porção materializada
do aparelho mnemônico que carrego em mim, ordinariamente invisível. Se tenho
presente o lugar em que foi acomodada a ‘recordação’ assim fixada, posso
‘reproduzi-la’ à vontade, a qualquer momento, e estou seguro de que ela permaneceu
inalterada, ou seja, de que escapou às deformações que talvez sofresse em minha
memória (FREUD, 2011, p. 242).
Freud (2011) utiliza a metáfora do “Bloco Mágico” 109
para refletir sobre o
nosso aparelho psíquico. O “Bloco Mágico” consistia em um pequeno invento que
prometia fazer, segundo seus inventores, mais do que a folha de papel e a lousa.
Para Freud (2011), esta tecnologia poderia oferecer na sua estrutura uma maneira
imperfeita de auxiliar na memória. As formas de aparelhos auxiliares, como óculos e
câmeras fotográficas por exemplo, para o autor, auxiliam a memória de maneira
imperfeita pois “nosso aparelho psíquico realiza justamente o que não podem fazer:
109
Bloco Mágico é uma prancha de resina ou cera castanha-escura, com uma borda de papel, sobre a prancha está
colocada uma folha fina e transparente, da qual a extremidade superior se encontra firmemente presa à prancha e a
inferior repousa sobre ela sem estar nela fixada. Ela consiste em duas camadas, capazes de ser desligadas uma da outra
salvo suas extremidades. A camada superior é um pedaço transparente de celuloide. A inferior é feita de papel
encerado fino e transparente. Para utilizar o Bloco Mágico, escreve-se sobre a parte de celuloide da folha de cobertura
que repousa sobre a prancha de cera. Querendo destruir o que foi escrito é necessário levantar a folha de cobertura
dupla da prancha de cera com um puxão leve pela parte inferior livre.
118
tem ilimitada capacidade de receber novas percepções e cria duradouros — mas não
imutáveis — traços mnemônicos delas” (p. 243).
Se eu quiser utilizar amplamente essa técnica para melhorar minha função
mnemônica, notarei que disponho de dois procedimentos diversos. Primeiro, posso
escolher uma superfície que preserve intacta por tempo indefinido a nota que lhe é
confiada, ou seja, uma folha de papel em que escrevo com tinta. Obtenho, assim, um
‘traço mnemônico duradouro’. A desvantagem desse procedimento é que a
capacidade da superfície receptora logo se exaure. A folha fica inteiramente escrita, já
não tem espaço para novas anotações, e sou obrigado a servir-me de outra ainda em
branco. Além disso, a vantagem desse procedimento, o fato de permitir um ‘traço
duradouro’, pode perder seu valor quando meu interesse na anotação se acabar após
algum tempo e eu não quiser mais ‘conservá-la na memória’. O outro procedimento
não exibe esses dois defeitos. Quando escrevo com giz numa lousa, tenho uma
superfície que mantém a capacidade receptora por tempo ilimitado e cujas anotações
posso apagar no momento em que deixam me interessar, sem ter de jogar fora a
superfície mesma em que escrevi. A desvantagem, nesse caso, é que não posso ter um
traço duradouro. Querendo acrescentar anotações ao quadro, tenho de eliminar
aquelas que já o cobrem. Portanto, irrestrita capacidade receptora e conservação de
traços duradouros parecem excluir-se mutuamente nos dispositivos que substituem
nossa memória; ou a superfície de recepção tem de ser renovada ou as anotações têm
de ser eliminadas. (FREUD, 2011, pp. 242-243).
Mas o que a chamadas novas tecnologias representadas pelos dispositivos móveis
podem oferecem além da tecnologia da escrita no papel ou do dispositivo do “Bloco
Mágico” estudado por Freud?
Parte-se do pressuposto que todo avanço tecnológico determina uma mudança no
campo das mentalidades. Ou seja, a forma influencia o conteúdo, tema atual quando
se discute, por exemplo, as consequências da Internet sobre a linguagem, ou ainda dos
dispositivos móveis sobre a memória e o comportamento humano. Deve-se pensar
então nas possibilidades tecnológicas e sua relação com a memória na medida em que
as novas tecnologias vão se acoplando ao corpo humano. Isso muda a nossa relação
com a memória enquanto parte das possibilidades cognitivas do corpo humano.
As tecnologias da memória: um olhar sobre o sistema Evernote
Com popularização da internet e por consequência, de várias ferramentas online
trouxeram facilidades para a vida das pessoas. Na revista online de Pequenas
Empresas Grandes Negócios, encontramos dicas de ferramentas que são muito úteis
para o cotidiano dos microempreendedores individuais (MEI), pessoas que precisam
efetuar uma série de tarefas e não possuem muita gente para ajudar nos afazeres.
Dentre as ferramentas citadas na matéria de 16 serviços grátis essenciais para
119
microempreendedores4 destaca-se o sistema Evernote5, uma ferramenta que segundo
a revista serve para que as pessoas "não se esqueçam de nada".
Figura 1: Captura de tela da página inicial em português do sistema Evernote. Disponível em
https://evernote.com/intl/pt-br/. Acesso em 31 de maio de 2015.
O logotipo sugestivo da face de um elefante, como visualizamos no canto superior
esquerdo da Figura 1, revela, neste contexto, um signo de memória, já que os
elefantes são conhecidos como animais que possuem grande capacidade mnemônica,
a famosa “memória de elefante”. Acostumados a percorrer grandes áreas, os elefantes
desenvolvem uma precisa memória espacial que permite recordar exatamente onde
encontrar água e comida, mesmo depois de andar centenas de quilômetros.
O Evernote é um sistema que pode ser instalado no computador ou em dispositivos
móveis como smartphones e tablets, ou em um tecnologias wearables - termo que
significa tecnologias para vestir- , que promete facilitar a captura e armazenamento de
informação, como notas, listas, ideias, esboços, imagens ou outros arquivos
multimídia, como vídeo ou áudio. Antes, o sistema Evernote era centrado em uma
4
Disponível
em
<http://revistapegn.globo.com/Noticias/noticia/2014/08/16-servicos-gratis-essenciais-paramicroempreendedores.html> . Acesso em 27 de maio de 2015.
5 https://evernote.com/intl/pt-br/
120
aplicação desktop tradicional e de armazenamento local mas foi estendido para uso
em diferentes dispositivos móveis em combinação com a sincronização em nuvem6 e
de uma interface na web. Agora, não só pode ser usado para manter notas privadas,
mas também para compartilhar as notas com um grupo de colaboradores através de
um serviço em nuvem. As notas no Evernote são estruturadas utilizando uma
combinação de cadernos (pastas), tags7 e uma timeline8. O Evernote oferece ainda,
funcionalidade de pesquisa e filtragem para recuperar notas com base em seu
conteúdo, através de metadados e tags, conforme Figura 2.
Figura 2: Captura de tela do sistema Evernote em 20 de junho de 2015.
6 O armazenamento de dados por nuvem não implica na utilização de computadores interligados. Tendo acesso a
esse servidor online (ou plataforma online ou ainda site de armazenamento de arquivos) você consegue ter acesso
a todos os seus arquivos salvos, de qualquer computador, tablet ou smartphone que tenha acesso à internet. É uma
espécie de e-mail com capacidade de espaço gigantesca, onde você envia seus arquivos para backup ou
compartilhamento,
no
entanto
sem
troca
de
mensagens
ou
similares.
Disponível
em
<http://www.techtube.com.br/o-que-e-armazenamento-em-nuvem/> . Acesso em 29 de maio de 2015.
7 Existe outra forma de organização e classificação de informações extremamente comum na internet e na Web
2.0, que utiliza palavras-chave para relacionar informações semelhantes. Essas palavras-chave são conhecidas
como Tags ou metadados. Metadados são dados usados para classificar e organizar arquivos, páginas e outros
conteúdos. Disponível em < http://www.tecmundo.com.br/navegador/2051-o-que-e-tag-.html> . Acesso em 28 de
maio de 2015.
8
Timeline é uma palavra em inglês que significa "linha do tempo", na língua portuguesa. Trata-se da ordem das
publicações feitas nas plataformas sociais online, ajudando o internauta a se orientar, exibindo as últimas
atualizações feitas pelos seus amigos. No entanto, o principal objetivo da timeline é a organização cronológica das
informações publicadas no perfil de um usuário em uma rede social. Disponível em <
http://www.significados.com.br/timeline/> . Acesso em 28 de maio de 2015.
121
Para além da memória pessoal, ou seja, dados que não compartilhamos e que nos
servem no dia-a-dia, o Evernote abre a possibilidade de uma memória compartilhada,
coletiva. Neste sentido, para Lévy (2006), o discurso sobre a memória coletiva ganha
uma importância face ao desenvolvimento das redes, as impressões registadas e suas
estratégias de acesso – a memória em si – são fundamentais, em um contexto de
inteligência coletiva e sua interconexão permanente. As redes facilitam este processo
de difusão e compartilhamento da memória. A memória passa a possuir uma função
social.
Para Halbwachs (2003) o indivíduo participaria de dois tipos de memória: uma
memória individual, interna ou pessoal, onde as lembranças se agrupam em torno de
uma determinada pessoa que as vê de seu ponto de vista, ou como na memória
coletiva, externa ou social, onde as lembranças se distribuem dentro da sociedade
grande ou pequena da qual são imagens parciais. Para o autor, essas duas memórias se
interpelam com frequência, especialmente se “a memória individual, para confirmar
algumas de suas lembranças [...] pode se apoiar na memória coletiva, nela se deslocar
e se confundir com ela em alguns momentos, nem por isso deixará de seguir seu
próprio caminho” (p.71).
Importantes, são portanto, segundo Casalegno (2006), “essas ideias da memória como
um sistema de inter-reações de memória individuais e essa sinergia de recordações
pessoais articuladas com as dos outros em um movimento perpétuo.” (p.30). Sistemas
como o Evernote possibilitam uma interconexão entre as memórias individuais e
coletivas através dos recurso disponíveis que classificamos como “próteses da
memória” ou ainda “meta-memória” organizadora de metadados que podemos acessar
a qualquer momento no ciberespaço.
Todo este impulso que a comunicação móvel está recebendo tem reflexo direto nas
práticas sociais. A implantação tecnológica é alimentada pelo uso e vice-versa. A
aplicação intensa por diferentes camadas da população está alterando hábitos e
conceitos sobre o uso do ciberespaço. (PELLANDA, 2008, p.2)
Neste sistema as mesmas memórias podem ser acessadas de qualquer dispositivo
(computador, notebook, tablet, smartphone, smartwhatch) através do acesso pelo log
in do usuário, conforme Figura 3.
122
Figura 3: Captura de tela da página inicial em português do sistema Evernote. Disponível em
https://evernote.com/intl/pt-br/. Acesso em 20 de junho de 2015.
Algumas “próteses de memória” estão avançando e levando sistemas como o
Evernote para dar suporte ao seu funcionamento. É o caso dos smartwatchs por
exemplo. Usado como uma segunda tela do smartphone, o smartwatch usa a internet e
é capaz de receber aplicativos utilizados para mostrar informações e operar recursos
do telefone.
Esses tipos de tecnologias wearables podem ser considerados o computador mais
pessoal que possuímos e são mais um avanço no sentido de caminharmos para essa
simbiose entre homem e máquina. As novas tecnologias wearables procuram
potencializar as atividades humanas como extensões dos nossos membros e do nosso
cérebro, da nossa memória.
Considerações finais:
Todos os dispositivos móveis que carregamos pressupõe um modo muito antigo de
carregar as perceptivas de comunicação junto ao corpo. Quando os escravos no século
XIX carregavam os papéis na algibeira por exemplo, permite pensarmos o quanto os
meios de comunicação estão desde muito tempo acoplados junto ao corpo.
Com a advento da internet no século XX e a expansão dos dispositivos móveis no
século XXI, a comunicação contemporânea passa a lançar mão da sensação de dispor
123
de todas as informações do mundo ao alcance do “toque dos dedos”, o que nos faz
pensar sobre a metáfora de Jorge Luís Borges presente em sua obra A Biblioteca de
Babel escrita em 1941.
A ilusão de que se pode ter acesso a todas as informações e conhecimentos do mundo
torna plausível a maravilhosa imaginação de Jorge Luís Borges (1899-1986) quando
descreveu a sua Biblioteca de Babel (1941). Borges imaginou um mundo perturbador:
a sua biblioteca não tinha apenas capacidade ilimitada para armazenamento, podendo
conter todas os livros que existissem, mas também os que se pudesse imaginar para o
futuro. A certeza de que em Babel existia essa biblioteca universal provocou nos
bibliotecários, inicialmente, um sentimento de alegria, também porque poderiam ali
achar um livro- ou melhor-, o livro que reunisse a complexidade de todos os outros,
sendo a ‘chave e compêndio’, assemelhando-se a uma divindade. Mas esse ‘livro
total’ nunca foi encontrado. Instaurou-se, então, a decepção e a depressão e alguns
bibliotecários enlouqueceram. (WEINRICH, 2001 apud BARBOSA, 2013, pp. 343344).
Agora temos um lugar onde podemos guardar um número infinito de informações a
qualquer hora do dia ou da noite em um dispositivo móvel que levamos junto ao
corpo e preservando estas informações em nuvem, lugar acessível para todos.
Entre o fluxo das relações humanas e as trajetórias em rede do ciberespaço abre-se a
lista das várias expressões emergentes das cibersocialidades, que ilustram o novo
paradigma social da sinergia entre comunidade, a memória e a comunicação. As
‘novas tecnologias’ são velhas criações que existem desde que surgiu o homem. Hoje,
são os usos e as experiências que lhe dão valor ao fornecerem-lhes o sentido: cabe
aos humanos as utilizar para concretizar essa visão poética (CASALEGNO,
2006,p.33).
Estamos caminhando para uma era “cyborg” onde homens e máquinas são cada vez
mais “simbióticos”. Para Warwick (2006) não há duvidas das possibilidades para
além da interação homem e máquina através de dispositivos móveis. Essa relação
entre homem e máquina vai além, havendo oportunidades reais de afirmação dessas
formas de simbiose, iniciando pelos smartphones e tablets e se afirmando com a
tecnologia dos wearables e nos próprios chips implantados ao nosso corpo.
A questão neste artigo é lançarmos um olhar não somente sobre o funcionamento do
sistema Evernote mas sobre o que ele representa. As novas tecnologias fazem refletir
sobre uma possível “terceirização da memória”, ou uma “meta-memória” composta
124
por bits9 que possibilita deixarmos espaços livres em nossa memória para ser utilizado
com outras informações. Sistemas como o Evernote facilitam esta dinâmica entre
memória e tecnologia.
Referências bibliográficas
BARBOSA, Marialva. História da comunicação no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013.
CASALEGNO, Federico. Memória cotidiana. Comunidades e comunicação na era
das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.
FREUD, Sigmund. Nota sobre o “Bloco Mágico” (1925) In: FREUD, Sigmund. O
Eu e o Id, "Autobiografia" e outros textos (1923-1925). (Sigmund Freud. Obras
completas vol. 16), São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.
HAVELOCK, Eric A. A revolução da escrita na Grécia: e suas consequências
culturais. São Paulo: Editora da UNESP/ Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
LÉVY, Pierre. Diálogo com Pierre Lévy: A memória como processo no tempo
presente In: CASALEGNO, Federico. Memória cotidiana. Comunidades e
comunicação na era das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.
PELLANDA, Eduardo Campos. Comunicação móvel: das potencialidades aos usos
e aplicações. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. INTERCOM,
Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008. Disponível em
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-1727-1.pdf>. Acesso
em 3 de junho de 2015.
WARWICK, Kevin. Diálogo com Kevin Warwick: Memória cibernética e cérebro
em rede. In: CASALEGNO, Federico. Memória cotidiana. Comunidades e
comunicação na era das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.
9
Bit significa dígito binário em português, é a menor unidade de informação que pode ser armazenada ou
transmitida na comunicação de dados, e um bit pode assumir somente 2 valores, como 0 ou 1. Os computadores
possuem comandos que testam e manipulam bits, essas instruções são múltiplos de bits, que por sua vez são
chamados de bytes. Volume de tráfego em redes de computadores são geralmente descritos em termos de bits por
segundo. Disponível em < http://www.significados.com.br/bits/>. Acesso em 01 de julho de 2015.
125
O campo de Ficção Científica na plataforma de autopublicação
Wattpad
Luiza Carolina dos Santos
Mestre – PUCRS
[email protected]
RESUMO
A partir da plataforma de autopublicação para leitores e autores Wattpad, este trabalho
se propõe a analisar o campo que se forma a partir do perfil oficial Wattpad Sci-Fi e de
que forma este se constitui. O referencial teórico se baseia principalmente em Pierre
Bourdieu e o aporte metodológico para a realização desta pesquisa é a netnografia. A
análise resultante aponta para a formação de um campo específico, com instâncias
próprias de consagração, preservação e reprodução.
Palavras-chave: cibercultura; leitura; autopublicação; Wattpad;
Introdução
Este trabalho se propõe a realizar uma análise do campo constituído na
comunidade de ficção científica do Wattpad a partir dos conceitos de instâncias de
consagração, preservação e reprodução propostos por Bourdieu (1974; 2006) ao pensar
a produção artística no âmbito da arte erudita e da indústria cultural. A metodologia
para a coleta e análise de dados utilizada foi a netnografia, fundamentada a partir de
Hine (2000) e Kozinets (2010), com a delimitação do campo marcada a partir do perfil
oficial Wattpad Sci-Fi, voltado apenas para a produção e divulgação de ficção científica.
O Wattpad pode ser caracterizado como uma plataforma de leitura e
autopublicação com viés social, ou seja, disponibiliza sem custo e sem curadoria um
sistema no qual qualquer escritor pode tornar seu trabalho público dentro daquela
comunidade de leitura e escrita, que permite a interação entre os participantes, pública e
privada. O conteúdo está acessível para qualquer um que possua uma conta na
plataforma, também sem nenhum custo, não sendo possível tornar as obras rentáveis
dentro desse espaço.
Ao criar um perfil com informações básicas, o usuário pode tanto explorar a
escrita quanto a leitura. Como leitor, é possível encontrar histórias através das tags e
dos rankings da plataforma, assim como votar e comentar nas histórias que você está
lendo. De acordo com dados apurados durante o ano de 2014, atualmente são 40
milhões de usuários, dos quais cerca de 90% são apenas leitores (WATTPAD, 2014). O
serviço, já consolidado na América do Norte, vem crescendo em países como Itália,
Turquia, Espanha e Inglaterra (CHAPMAN, 2014).
O Mercado dos bens simbólicos
Segundo aponta Bourdieu (1974), a vida intelectual e artística permanece,
durante todo o período da Idade Média e parte do Renascimento, sob a tutela da
aristocracia e da igreja. Na relação de patrocínio, algum tipo de “recompensa” era uma
prática usual do período, muitas vezes em forma de dedicatória ou uma cópia artística
da obra (CHARTIER, 1998) – esse tipo de reconhecimento, em algum nível, ou ainda a
própria recompensa pelo investimento, retornam atualmente na prática conhecida como
126
crowdsourcing, que utiliza um modelo de financiamento coletivo para obras artísticas e
produtos, potencializado pela internet.
O processo de autonomização desse campo só irá ocorrer com o surgimento de
uma categoria socialmente distinta de produtores de cultura profissionalizados que
esteja disposta a liberar a área desse domínio e deseje tornar autônomo o sistema de
relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos (BOURDIEU, 1974).
A legitimidade artística alcançada pelo grupo – em Florença no século XV –, a
partir do direito do artista de legislar com exclusividade em sua própria área, no que diz
respeito à forma e ao estilo, é que vai possibilitar a formação do campo cultural. Com a
Revolução Industrial, essa autonomização do campo artístico se acelera, deixando
evidentes as características mercantis e culturais da obra, que subsistem de forma
separada no campo (BOURDIEU, 1974). No momento em que passa a existir um
mercado da obra de arte, passa também a ser possível fazer a distinção entre a arte
mercadoria e a arte pura e, a partir daí, também é quebrada a submissão anterior com o
mecenas ou patrão por uma liberdade ilusória do mercado.
Após a Revolução Industrial, passa a ser possível identificar com clareza a
dissociação de dois campos distintos: o campo da arte erudita e o campo da indústria
cultural. A diferença primordial entre os dois é a quem se destina aquela produção
artística, ou seja, o campo erudito produz para produtores enquanto o campo da
indústria cultural produz para os não iniciados nas artes – o público em geral. Cada um
desses campos irá se consolidar e constituir características próprias de consagração e
reprodução (BOURDIEU, 1974).
O campo de produção erudito, por ter uma circularidade quase perfeita de
produção e consumo, não obedece às leis de concorrência do mercado, visando produzir
ele próprio as suas normas de produção e critérios de avaliação das obras. Nesse caso,
ocorre a concorrência pelo reconhecimento propriamente cultural, que é concedido
pelos pares – esse tipo de consagração é muito visível atualmente no campo da
produção intelectual, por exemplo. Dessa forma, uma vez que ocorre o encontro entre
produtores diferentes, nesse encontro se dá o embate pela pretensão à ortodoxia, ou,
também, ao monopólio de uma determinada classe de bens simbólicos:
Afora os artistas e os intelectuais, poucos agentes sociais dependem tanto, no
que são e no que fazem, da imagem que têm de si próprios e da imagem que
os outros e, em particular, os outros escritores e artistas, têm deles e do que
eles fazem. [...] qualidade que parece tão difícil de definir porque só existe na
e pela relação circular de reconhecimento recíproco entre os artistas, os
escritores e os eruditos. Todo ato de produção cultural implica na afirmação
de sua pretensão à legitimidade cultural (BOURDIEU, 1974, p. 108).
As obras produzidas no campo erudito são acessíveis apenas a um número
reduzido, exigindo o domínio de um código específico e dependendo do nível de
instrução dos receptores. Por essas características, se torna necessária uma relação entre
as instâncias de preservação do capital de bens simbólicos – como, por exemplo,
museus – e as instâncias de reprodução – como a escola – , uma vez que é preciso criar
consumidores aptos ao consumo das produções artísticas do campo, assim como novos
produtores capazes de renovar a produção (BOURDIEU, 1974).
Já no campo da indústria cultural, a submissão ocorre em relação a uma
demanda externa representada pelos detentores dos instrumentos de produção e de
difusão das obras artísticas, obedecendo, assim, aos imperativos da concorrência pela
conquista de mercado. A procura é pela rentabilidade máxima, representada
essencialmente pela conquista de um máximo de público. Essa cultura, considerada
127
como cultura média, só pode definir-se, tanto no âmbito da produção quanto da
recepção, em relação à cultura erudita (ou legítima), estando impossibilitado de obter
sua autonomia.
O que percebemos na cultura digital é justamente a possibilidade de inverter a
lógica da indústria cultural, uma vez que se torna possível chegar à consagração de
público primeiro, para, somente depois, passar a integrar uma instância que detém hoje
não mais os meios de produção ou difusão – uma vez que estes estão acessíveis a uma
parcela considerável da população incluída digitalmente –, mas sim que detém um
determinado capital cultural dentro do campo, ou seja, uma posição de influência e
destaque.
Quando anteriormente a passagem por uma grande gravadora ou editora era
imprescindível para que o artista pudesse não apenas chegar ao mercado, mas também
produzir sua obra, hoje a produção e a circulação podem ser feitas de forma
independente – ainda que demande, obviamente, uma boa parcela de dedicação por
parte do artista. Casos como esse não são raros na indústria da música, da literatura e do
jornalismo, em que o sucesso na web pode levar à contratação do artista por uma
gravadora ou editora de grande porte. Alguns artistas, ainda, optam por manter sua
produção no âmbito digital, buscando caminhos alternativos para o retorno financeiro.
Essa alteração do campo da cultura aponta não apenas para uma modificação na forma
de circulação dos bens culturais, mas também para uma modificação na própria forma
de produção de cultura.
Instâncias de consagração, de preservação e de reprodução no Wattpad SciFi
O perfil Wattpad SciFi publicou quatro obras e nele há um total de treze listas de
leitura. Além disso, mantém uma comunicação constante com seus seguidores, postando
mensagens em seu perfil, e envolve os membros constantemente, com desafios de curta
duração. O perfil se posiciona, conforme definição própria na categoria “sobre”, como
um ponto de referência dos leitores do gênero no que diz respeito a notícias, novidades e
histórias disponíveis no Wattpad.
Figura 38 – Perfil Wattpad SciFi detalhe
128
110
Fonte: <http://www.wattpad.com/user/ScienceFiction>. (Acesso em 13 de outubro de 2014).
Ao posicionar-se como referencial no meio de ficção científica, o Wattpad SciFi
propõe-se a dar indicações de leitura aos fãs ou iniciantes do gênero, elaborando listas
de leitura, que são devidamente selecionadas. Os usuários da plataforma são livres para
enviar suas histórias como sugestão de inclusão em uma lista de leitura existente
específica. Isso é feito com o envio do link para uma publicação específica, por meio de
mensagens privadas. Entretanto, nem todas as histórias são aceitas, o que nos faz
lembrar, quase que imediatamente, do processo de publicação tradicional através de
editores.
Como nos esclarece a descrição no próprio perfil, existe sim um processo de
curadoria cuidadosamente realizado para cada uma das listas de leitura: não basta
apenas se encaixar no gênero, é preciso que a história apresente qualidade literária para
que receba o selo de indicação. São considerados como requisitos para julgamento da
obra pela equipe a capacidade de expressar sentimentos e emoções de forma profunda e
detalhada; a apresentação de uma escrita cuidadosa e gramaticalmente correta e a
capacidade de fornecer informações básicas de forma correta (como resumo e tags que
possam nortear o leitor sobre o conteúdo da obra) e conteúdo adequado de acordo com
as regras da plataforma.
Figura 39 – Detalhe perfil Wattpad SciFi (submissões)
“O perfil oficial do Wattpad para a comunidade de ficção científica no Wattpad. Siga este perfil para
atualizações sobre fandoms populares e escritores de ficção científica. Deixe um comentário e nos conte o
que você gostaria de ver neste perfil. As listas a seguir são listas de leitura de histórias do Wattpad criadas
para você. Se você gostaria de ver alguma história adicionada na lista, por favor poste sua lista de leitura e
ideias nos comentários abaixo. Nós adoraríamos ouvir sobre qualquer lista de leitura de ficção científica
que você tenha montado, mas por favor não anuncie seu próprio trabalho neste perfil”.
110
129
111
Fonte: <http://www.wattpad.com/user/ScienceFiction>. (Acesso em 13 de outubro de 2014).
Bourdieu (1974) aponta que o campo da indústria cultural e o campo da cultura
erudita possuem suas próprias instâncias de consagração, distintas uma da outra. Se, na
indústria cultural, a consagração é o mercado, na cultura erudita isso fica por conta do
reconhecimento dos pares. No campo da cibercultura, no contexto específico da
comunidade de ficção científica do Wattpad, podemos dizer que as listas de leitura do
Wattpad SciFi adquirem um caráter das instância de consagração, uma vez que a
história passa a ter um determinado valor por estar incluída dentro daquele grupo.
Não é apenas através das listas de leitura que o Wattpad SciFi se engaja em um
processo de curadoria dos bens simbólicos gerados pela comunidade, o mesmo pode ser
observado através das obras publicadas e dos concursos elaborados. A obra composta de
pequenos contos criados pelos usuários e intitulada Nano Bytes – A Collections of Short
SciFi Stories é formada, em sua maioria, por contos premiados por edições de concurso
do perfil.
Figura 40 – Capa da obra Nano Bytes – A Collection os Short SciFi Stories
“Submissões. Se você gostaria de ver uma de suas histórias em nossas listas de leitura, considere os
seguintes pontos: preste atenção à gramática para ter certeza que a sua história é compreensível e
acessível; tente passar sentimentos e emoções com profundidade e de forma detalhada; mantenha seu
conteúdo apropriado para todas as idades; forneça informações completas sobre as suas histórias, pois
gostamos de mostrar histórias com descrições claras, tags relevantes e capas inspiradoras; seja positivo e
gentil, pois respeitamos os escritores que respeitam a comunidade Wattpad. Se você está contente que a
sua história satisfaz todos os itens acima, envie uma mensagem privada para nós incluindo os seguintes
detalhes: título da história e link; descrição da história e explique porque você acha que sua história
deveria ser adicionada em uma lista de leitura e em qual delas.
111
130
Fonte: <http://www.wattpad.com/ story/23550178-nano-bytes-a-collection-of-short-scifi-stories>.
(Acesso em 13 de outubro de 2014).
A partir dessa coletânea, por exemplo, não ocorre apenas a consagração do autor
de determinada história, que teve seu valor reconhecido pela comunidade, mas também
a criação e a preservação de uma memória literária. Ora, se as obras passam por um
processo de seleção no qual apenas uma delas é escolhida, isso pressupõe que existe
uma série de outras histórias que foram descartadas, ou, para usar Carrière e Eco (2010),
que foram esquecidas. Apenas através do esquecimento podemos construir e preservar
uma memória – e esse é o mesmo princípio do qual nos fala Bourdieu (1974) quando
menciona as instâncias de preservação da cultura erudita, como é o caso dos museus.
Uma coletânea como a Nano Bytes, que está sempre em construção, uma vez que
novas histórias vão sendo adicionadas à medida em que novos concursos vão sendo
realizados, procura também preservar para os leitores seguintes o que foi julgado de
melhor naquele período de tempo naquela comunidade específica. É possível perceber,
pelas interações feitas entre os leitores, que tal obra possui sim um status de qualidade,
que só foi possível alcançar devido ao criterioso método de seleção das histórias. Assim,
o Wattpad SciFi se torna um ponto aglutinador de leitores que esperam indicações de
leitura com um caráter específico de qualidade.
Figura 41 – Comentário sobre a qualidade da coletânea de contos de ficção científica
112
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23550178-nano-bytes-a-collection-of-short-scifi-stories>. (Acesso
em 15 de dezembro de 2014).
Comentário: “Obrigado por montar esta coletânea aqui. Contos de ficção científica são a coisa que eu
mais gosto de ler, mas difícil de localizar.” Resposta: “Sim, eu concordo, boa ficção científica é um
achado raro no Wattpad. Eu gosto especialmente de histórias com uma pitada de ficção científica dura
para tornar plausível. Eu gosto que a história destrua a minha visão da realidade”.
112
131
O comentário evidencia que o trabalho de curadoria executado pelo perfil é de
qualidade e que, portanto, se espera no futuro que esse padrão se mantenha. Da mesma
forma, que se passe a conceder o status de boa literatura de ficção científica aos contos
adicionados na coletânea. Entretanto, não apenas os leitores manifestam sua aprovação
quanto ao conteúdo disponibilizado, mas, para os escritores, fazer parte de tal coletânea
também significa uma grande dimensão simbólica, como observamos nos dois
comentários a seguir.
Figura 42 – Comentário sobre a honra de participar da coletânea de contos
113
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23550178-nano-bytes-a-collection-of-short-scifi-stories>. (Acesso
em 23 de dezembro de 2014).
Figura 43 – Comentário “Obrigado por incluir minha história”
114
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23550178-nano-bytes-a-collection-of-short-scifi-stories>. (Acesso
em 6 de janeiro de 2015).
Se é, em geral, por meio dos concursos realizados pelo perfil que surgem muitos
dos contos organizados na coletânea, esses concursos transcendem o caráter de instância
de consagração, como foi possível observar na análise da obra SciFi Competitions. Com
início em novembro de 2014, o perfil lança em média três competições por mês no
formato de capítulos do livro, ordenados por data – o resultado de cada um é o capítulo
seguinte de cada desafio.
Figura 44 – Competição criada pelo perfil Wattpad SciFi
Comentário: “Uau! Eu finalmente posso votar na minha própria história (nunca conseguir me animar a
fazer isto no meu próprio perfil). Eu agradeço por este feito, e pela chance da minha história fazer parte
desta grande coleção!” Resposta: “Não se preocupe. Nós iremos fazer a parte de votar em seu nome. Amo
suas histórias!”
114
Comentário: “Espero que todos gostem desta história. Obrigada por incluir ela!” Resposta: “O prazer é
nosso”.
113
132
115
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23570386-scifi-competitions>. (Acesso em 13 de janeiro de
2015).
De acordo com o resumo da obra, a ideia é de que os desafios possam ser
utilizados não apenas como uma forma de competir com outros escritores, mas também
como desafios pessoais, como forma de treinar e fomentar a própria escrita e como um
bom lugar para descobrir novas histórias. Os novos desafios também eram divulgados
na página do Wattpad SciFi, no formato de mensagens para todos os seguidores,
chegando a estes, também, por e-mail.
Figura 45 – Mensagem enviada aos seguidores do perfil Wattpad SciFi
116
Fonte: <http://www.wattpad.com/home>. (Acesso em 27 de janeiro de 2015).
“Competições SciFi. O ganhador do primeiro desafio do perfil de Ficção Científica, a história de uma
página com o tema fuga, foi o escritor do Wattpad com sua história chamada Infusão. Dentre mais de 520
entradas, esta história foi selecionada por muitos dos juízes como uma de suas favoritas. Parabéns ao
autor, a história será a primeira adicionada ao NanoBytes – Coletânea de Contos aqui no perfil de Ficção
Científica.”
116
“ScienceFiction enviou a seguinte mensagem aos seus seguidores: É #SciFriday outra vez, e nesta
semana nós temos um desafio rápido para você. Nós estamos procurando por uma história do tamanho de
um tweet com um tema de distopia ou pós-apocalipse. Detalhes completos do concurso podem ser
acessados no link a seguir. Divirtam-se, o time SciFi.
115
133
Podemos perceber que os concursos não visam apenas premiar os melhores
escritores, mas desafiam todos os participantes a exercitar o talento da escrita – ou seja,
funcionam como uma forma de treinamento para os iniciantes. Essa característica nos
remete novamente a Bourdieu (1974), que explica que é necessária a manutenção de um
público para uma arte específica, é necessário que um grupo de pessoas domine aquele
código para que faça sentido a existência daquela arte – e isso ocorre essencialmente
através da educação artística. Caso não ocorra a manutenção de uma arte, esta está
fadada à extinção.
Percebemos que esse é um caráter forte dos concursos: aumentar o número de
pessoas que dominam o código da literatura de ficção científica a partir do processo de
educação que pode ser realizado com esses concursos. Essa dimensão simbólica de
educação e incentivo pode ser observada no comentário de um participante que recebeu
menção honrosa em seu primeiro concurso.
Figura 45 – Comentário “É uma sensação maravilhosa receber uma menção honrosa”
117
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23570386-scifi-competitions>. (Acesso em 20 de janeiro de
2015).
Outros dois comentários de participantes de um concurso também percebem um
caráter educacional em suas participações, sentindo-se motivados a seguir
experimentando seus talentos para a escrita de ficção científica, como observamos nas
figuras abaixo.
Figura 46 – Comentário “Muito obrigado pela menção honrosa”
118
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23570386-scifi-competitions>. (Acesso em 17 de janeiro de
2015).
Figura 47 – Comentário “Parabéns a todos os participantes”
“Meu Deus! É uma sensação maravilhosa receber uma menção honrosa. Este é o primeiro concurso de
ficção científica que eu participei e eu sinto que me sai bem. Obrigada @ScienceFiction por me escolher,
foi divertido participar.”
118
“Muito obrigada pela menção honrosa. Isto me faz sentir que estou no caminho certo. Esperando
ansiosa pela próxima competição.”
117
134
119
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23570386-scifi-competitions>. (Acesso em 21 de janeiro de
2015).
O mesmo viés educativo, voltado à reprodução do gênero, também pode ser
percebido em outras duas obras publicadas pelo Wattpad SciFi: Greats of SciFi,
compilação de pequenos perfis contando a história de vida de grandes autores, e How to
Write Science Fiction, guia de auxílio para iniciantes.
Este último procura dar dicas e servir de auxílio para escritores, ou, ainda, “se
nada mais, espero que inspire vocês a tentarem a escrita no gênero ficção cientifica, se
ainda não tentaram”120, como diz o próprio resumo. Com mais de 13 mil leituras, a obra
aborda tópicos que envolvem o processo criativo – desde a anotação de ideias para
desenvolvimento posterior até planejamento, criação de universos alternativos, detalhes
envolvendo viagens no tempo e, ainda, um cuidadoso trabalho de categorização de
subgêneros de ficção científica.
Analisando os comentários presentes em cada capítulo do livro, podemos
perceber o valor educativo concedido à obra pelos próprios usuários, que procuram tirar
dúvidas sobre questões específicas – como os subgêneros – ou ainda procuram apenas
apoio como impulso para iniciar seu percurso na escrita. Os fragmentos abaixo mostram
algumas dessas interações, mas o tópico será trabalhado de forma detalhada adiante, no
intuito de compreender a discussão sobre o próprio processo literário que ocorre entre
os membros da comunidade.
Figura 48 – Comentário “Começar é metade da batalha”
121
Comentário: “É uma grande honra estar naquela lista de menções honrosas! Eu vou chorar... XD
Parabéns a todos os participantes também. Não foi um concurso fácil. Eu vi muitas outras histórias
maravilhosas que infelizmente não foram citadas aqui, mas estas coisas sempre acontecem em todos os
concursos. Então, lembrem de não desistir dos seus sonhos. É por isso que nós escrevemos e nós não
deveríamos esquecer isto. Tudo de melhor para vocês e obrigada por ler.” Resposta: “Obrigado por
participar do concurso e por nos dar algo legal para ler.”
120 http://www.wattpad.com/story/23513631-how-to-write-science-fiction.
121
Comentário: “Começar é metade da batalha. Obrigado.” Resposta: “Com certeza. Passar da página em
branco é sempre um bom começo.”
119
135
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23513631-how-to-write-science-fiction>. (Acesso em 16 de
dezembro de 2014).
Figura 49 – Comentário “Obrigado pelos exemplos”
122
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23513631-how-to-write-science-fiction>. (Acesso em 16 de
dezembro de 2014).
Figura 50 – Comentário sobre subgêneros de ficção científica
123
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23513631-how-to-write-science-fiction>. (Acesso em 17 de
dezembro de 2014).
Já a história Greats of Sci Fi é uma construção coletiva na comunidade:
inicialmente o grupo responsável pelo perfil Wattpad SciFi elaborou três pequenos
textos contando a história de três grandes autores do gênero, seus preferidos.
Posteriormente, uma vez que a obra estava no ar, qualquer um estava convocado a
escrever sobre um dos seus autores preferidos e enviar, através de uma mensagem
privada, sua história para avaliação e possível publicação.
Se o How to Write Science Fiction se voltava para a educação e o domínio de
um código característico da ficção científica enquanto escrita, percebe-se que o Greats
of SciFi se volta para a formação e a educação de um público de leitores. Ou seja, o
primeiro se preocupa com a manutenção de uma classe que seja capaz de produzir
determinada expressão artística, enquanto o segundo dedica-se a instruir leitores que
sejam capazes de compreender esse código com maior profundidade, preocupando-se
com a formação de um público consumidor. Esse caráter de formação de leitores pode
ser observado, por exemplo, no comentário abaixo, extraído da obra mencionada.
Figura 51 – Comentário sobre o livro “The City and the Stars”
124
“Obrigado pelos exemplos. Meu livro é definitivamente ficção científica leve, então. É sobre um
conflito com humanos mutantes.”
123
Tradução do autor: “Se eu tenho uma história de ficção científica sobre uma guerra: humanos X
alienígenas, isto é ficção cientifica leva ou ficção científica pesada?"
122
136
Fonte: <http://www.wattpad.com/story/17708914-greats-of-science-fiction>. (Acesso em 28 de dezembro
de 2014).
Aos poucos, vamos percebendo as particularidades desse campo de produção e
consumo de literatura de ficção científica on-line, que não se configura nem dentro do
modo específico da indústria cultura nem da cultura erudita, como nos propôs Bourdieu
(1974). Vai se mostrando uma composição nova, híbrida, com aspectos marcantes
como instâncias de consagração, preservação e reprodução, as duas últimas bastante
tradicionais de um campo de arte erudita. Entretanto, é um campo para não iniciados
também, que busca discutir, delimitar, compreender e formar.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1974.
BOURDIEU, Pierre. A Produção da crença: contribuição para uma economia dos bens
simbólicos. Porto Alegre: Editora Zouk, 2006.
CARRIÉRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Rio de
Janeiro: Record, 2010.
CHAPMAN, Glen. Writers and readers go mobile and social at Wattpad. GMA News
Online, 2014. Disponível em:
http://www.gmanetwork.com/news/story/381220/lifestyle/
HINE, Christine. Virtual Ethnography. London: Sage, 2000.
KOZINETS, Robert V. Netnography: Doing Ethnographic Research Online. London:
Sage, 2010.
WATTPAD. How we're helping Wattpad writers. Blog do Wattpad, 2014. Disponível
em: http://blog.wattpad.com/how-were-helping-wattpad-writers/. Acesso em 8 de
dezembro de 2014.
Comentário: “Eu acabei de terminar de ler o livro ‘A cidade e as estrelas’. Demorou muito tempo para
que eu terminasse de ler, mas valeu a pena. É muito bom.” Resposta: “O livro ‘A cidade e as estrelas’
pode ser difícil (a sequência principalmente), mas é um livro magnífico e a forma como ele descreve a
ascensão para as estrelas é de tirar o fôlego.”
124
137
Remediação, transmídia e realidade aumentada em “Japan Pop
Show”, de Curumin, no Noize Record Club
Belisa Zoehler Giorgis
Resumo
Em 2015 foi lançado no Noize Record Club, clube de vinil vinculado à revista Noize,
do segmento de música, o LP de “Japan Pop Show”, do artista Curumin. Mediante
assinatura, os integrantes do clube recebem discos de vinil de álbuns já lançados
anteriormente, junto com uma revista, que traz conteúdos exclusivos relacionados à
obra e ao artista ou banda, e outros itens, que nesse caso específico são dois adesivos do
clube e do artista, sendo que no verso de um deles está um QR Code que remete a uma
playlist em site de serviço de streaming de música. Este trabalho se propõe a verificar
como se articulam na produção da experiência estética os elementos de remediação,
transmídia e realidade aumentada nesse caso. Concluiu-se que, no contexto
contemporâneo da cibercultura, tais elementos são de grande relevância para a
experiência do usuário ou assinante, relacionando as materialidades e o interpretativo
que resultam na produção de sentido.
Palavras-chave: Cibercultura; Cognição e Percepção; Realidade Aumentada;
Materialidades da Comunicação; Vinil.
Introdução
O presente trabalho busca analisar, no lançamento de “Japan Pop Show”, de
Curumin, realizado no Noize Record Club, elementos de remediação, transmídia e
realidade aumentada e seu impacto na experiência. O produto consiste em um LP, com a
capa e o encarte, uma revista com conteúdos do artista e dois adesivos, sendo que um
deles traz no verso um QR Code que remete a uma playlist em site de serviço de
streaming de música.
No contexto pós-moderno em que a tecnologia permeia todos os âmbitos da
vida e o acesso aos diferentes conteúdos é facilitado por essa circunstância, ao mesmo
tempo em que ressurgem em nichos o consumo de produtos em formatos como o disco
de vinil, coloca-se o problema de pesquisa: de que forma os elementos de remediação,
transmídia e realidade aumentada relacionam-se à experiência no LP “Japan Pop
Show”, de Curumin, lançado pelo Noize Record Club? O objetivo principal é
compreender a experiência, a partir de elementos de remediação, transmídia e realidade
138
aumentada em “Japan Pop Show”. Os objetivos específicos são: descrever teorias
relacionadas cibercultura, remediação, transmídia, retromania, materialidades, cognição
e realidade aumentada; identificar os diferentes elementos do objeto a serem analisados
para produzir apontamentos que possibilitem a compreensão de sua importância para a
experiência; e analisar os elementos identificados com base no referencial teórico
descrito.
A metodologia a ser utilizada será baseada em revisão bibliográfica e pesquisa
documental. Para a análise, será utilizado referencial teórico relacionado a cibercultura e
e remediação, com André Lemos, transmídia, com Henry Jenkins, retromania, com
Simon Reynolds, cultura do vinil, com Simone Pereira de Sá, materialidades e
experiência estética, com Hans Ulrich Gumbrecht, cognição, com Maria Cristina
Strocchi, tecnopsicologia, com Derrick de Kerckhove, e realidade aumentada, com
Claudio Kirner e Romero Tori.
“Japan Pop Show”, de Curumin, no Noize Record Club
O Noize Record Club iniciou em 2014 e é um clube de discos de vinil, no qual
entusiastas do formato podem realizar assinaturas válidas por três edições. Com ele, os
assinantes recebem em LP álbuns já previamente lançados em outros formatos, com a
revista Noize trazendo conteúdos exclusivos relacionados ao disco e ao artista. O clube
iniciou com o envio a seus assinantes do LP de “Antes que tu conte outra”, da banda
Apanhador Só, e a segunda edição foi o álbum da Banda do Mar, homônimo.
O álbum “Japan Pop Show”, de Curumin, foi lançado originalmente em 2008.
No Noize Record Club, foi a terceira edição a ser enviada aos assinantes do clube, em
2015. Ela trazia o LP com a capa e o encarte adaptados para o formato e a revista Noize
em que, além de outros conteúdos variados sobre música, traz na seção “Como fazer”
um tutorial de Curumin para a produção musical com samples, cujo vídeo está
disponível no site da revista, mostrando a criação da música “Kyoto”, e textos
produzidos pelo artista para as seções Páginas Negras, onde fala sobre suas memórias
afetivas relacionadas à cultura japonesa, “Pra ver”, indicando filmes, “Pra ler”,
recomendando livros, e os itens da Discoteca Básica do rap nacional, além da entrevista
central com o artista, em que ele comenta cada uma das faixas do disco. Em termos de
projeto gráfico, a revista tem metade de seu conteúdo de cabeça para baixo, em alusão
139
aos dois lados de um disco de vinil e o ato de virá-lo ao fim de cada um deles. O
produto traz também adesivos do clube e do álbum e um cartão com um QR code para
acesso à playlist “Estação Curumin”, em site de serviço de streaming de música.
Figura 1: O LP “Japan Pop Show”, com a capa, o encarte e a revista
Ao realizar a assinatura, as pessoas recebem um comunicado por e-mail
confirmando a ação e são adicionados a um grupo secreto do clube no site de rede social
Facebook. Nele, o clube realiza suas comunicações oficiais aos assinantes e estes
compartilham diferentes conteúdos. O que é postado pelos assinantes se divide em:
informações relacionadas ao recebimento dos produtos, por vezes com fotos, e opiniões
a respeito; e conteúdos sobre a cultura do vinil, como fotos de álbuns que estão
escutando ou troca de informações sobre discos, aquisição e manutenção de toca-discos
e outras questões relacionadas.
Cibercultura, vinil, materialidades e cognição
A cultura contemporânea, em sua forma técnica, de acordo com Lemos (2013),
se produz a partir de uma sinergia entre o tecnológico e social. Essa relação entre a
técnica e a vida social, considerando a cultura contemporânea associada às tecnologias
digitais, cria o que o autor chama de cibercultura. O autor pontua, ainda, que novas
140
formas de agregação social têm por vetores as tecnologias, resultando a cibercultura de
uma convergência. Ela inicia em 1950, com a informática e a cibernética, passando a se
popularizar na década de 1970 e tendo um estabelecimento completo nas décadas de
1980, com a informática de massa, e 1990, com a Internet.
Conforme Lemos (2013), por meio do devir micro, tornando-se invisível, e do
devir estético, tornando-se belo, as tecnologias se desdobram em um processo de
onipresença, permeando de forma intensa e quase imperceptível o ambiente cultural.
Elas passam a ser vetores de experiências estéticas e de compartilhamento social de
emoções.
A cibercultura é regida por um conjunto de práticas sociais e comunicacionais
baseadas no princípio da re-mixagem, a partir das tecnologias digitais, de acordo com
Lemos (2002). Ela é caracterizada pelo que o autor chama de "três leis fundadoras:
liberação do polo da emissão, princípio de conexão em rede e a reconfiguração de
formatos midiáticos e práticas sociais" (LEMOS, 2002, p. 1).
A primeira delas, segundo Lemos (2002), se relaciona com o espaço propiciado
pelas tecnologias para vozes e discursos que antes não encontravam canais para sua
disseminação nos outros meios massivos existentes. Na segunda, a lógica se baseia em
que tudo está em rede, sendo que tudo comunica, sejam pessoas ou objetos.
De forma relacionada a isso, no contexto da cultura da convergência, de acordo
com Jenkins (2008) a interação de poder entre produtor e consumidor acontece de
maneiras imprevisíveis, ao mesmo tempo que mídias corporativas e alternativas se
cruzam. Nesse processo, mídias de diferentes épocas colidem de formas cada vez mais
complexas, principalmente a partir da ação de comunidades de fãs. Estabelece-se uma
cultura de participação, com a interação de produtores e consumidores conforme um
novo conjunto de regras, que se articula nas interações sociais dos consumidores. Esse
novo processo coletivo de consumo se desdobra no que se pode compreender como
inteligência coletiva.
Considerando a terceira das leis fundadoras da cibercultura, conforme proposto
por Lemos (2002), a reconfiguração, a partir da lógica de que tudo muda, porém não
completamente, evitando a ótica de substituição, passa pela modificação das formas de
articulação de práticas e espaços, assim como de modalidades midiáticas. Isso
transcende, segundo o autor, a "ideia de remediação (remediation) de Bolter e Grusin"
considerando-se tanto a "remediação de um meio sobre o outro" (BOLTER; GRUSIN,
2002, apud LEMOS, 2002, p.3), como também a reconfiguração como uma alteração
141
nas práticas comunicacionais e nas estruturas sociais. A recombinação, no entanto, não
é o que de mais inovador é trazido pela cibercultura, de acordo com o autor, mas sim o
alcance possível dos processos, principalmente devido à cultura da participação.
A primeira década do século XXI é chamada por Reynolds (2011) de “década
Re”, por haver sido ela “dominada pelo prefixo -re: revivals, relançamentos, remakes,
reencenações” (REYNOLDS, 2011, p. xi). Essa tendência, de acordo com o autor, é a
intersecção entre a cultura de massa e a memória pessoal, relacionada com o passado
relativamente imediato. Ela envolve documentação exata (fotografias, vídeos, gravações
musicais, a Internet), inclui artefatos da cultura pop e busca um encantamento,
brincando com referências por meio de reciclagem e recombinação. Essas questões
podem ser verificadas de forma clara nos diferentes elementos de “Japan Pop Show” no
Noize Record Club.
Considerando-se o processo atual de reconfiguração, verifica-se nesse contexto,
conforme Sá (2009), o surgimento de um nicho de consumo musical relacionado a
discos de vinil e toca-discos. Esse contexto propicia iniciativas como é o caso do Noize
Record Club. Considera-se que essa revitalização do vinil diante do hoje oportunizado
pela tecnologia - mobilidade, acesso a diversos conteúdos pela Internet, dentre outros
potenciais - reflete o que a autora descreve como apropriação cultural cujas razões a
indústria fonográfica desconhece, remetendo à noção de remediação (BOLTER;
GRUSIN, 2000, apud SÁ, 2009). Isso sugere, conforme a autora, a dupla lógica de
conservação e ruptura que articula a atuação de um meio sempre em relação aos
anteriores. As características materiais do disco e do toca-discos são os elementos
centrais nessa articulação, como artefatos culturais a produzir um conjunto de relações
sociais e materiais específico (STERNE, 2006, apud SÁ, 2009).
Desse modo, se poderia considerar que a atmosfera de clube, como espaço de
socialização em rede relacionado a interesse específico, junto com as questões materiais
envolvidas, a partir dos diferentes elementos do produtos e suas articulações, estariam
vinculadas ao que se potencializa no ambiente contemporâneo e se desdobra na
experiência. Gumbrecht (2010) conceitua a experiência estética “como uma oscilação
(às vezes, uma interferência)” entre “efeitos de presença” e “efeitos de sentido”
(GUMBRECHT, 2010, p. 22). Conforme o autor, as materialidades são “todos os
fenômenos e condições que contribuem para a produção de sentido sem serem, eles
mesmos, sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 28), considerando a produção de presença
“todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto
142
dos objetos ‘presentes’ sobre corpos humanos” (GUMBRECHT, 2010, p.13). Isso
produz a epifania que, junto ao interpretativo, gera a produção de sentido.
Conforme Strocchi (2007), a partir da percepção, a aquisição de conhecimento
acontece por meio de um conjunto de processos mentais a que chamamos de cognição,
que representa a produção de significado a partir da interpretação de experiências
sensoriais somadas a memória, gostos e vivências. Pode-se afirmar, portanto, que a
cognição é o resultado do interpretativo. Dentre os diferentes elementos que conduzem
a esse processo, cabe salientar os conteúdos da revista, principalmente a entrevista, em
que o artista contextualiza cada uma das faixas do álbum, e o tutorial relacionado ao
vídeo em que apresenta parte de seu processo criativo e de trabalho. Nisso se articula
também o grupo no Facebook. A inter-relação desses conteúdos no contexto é de
transmídia e de remediação. Pode-se dizer que, junto à epifania a partir da produção de
presença no âmbito das materialidades, se produz de forma efetiva o sentido em caráter
amplo na experiência estética.
Nesse contexto, traz-se o olhar de Sá (2009) de que as características materiais
do disco de vinil e do toca-discos dão concretude à experiência musical, no ambiente
atual de desmaterialização, e são parte do prazer e das limitações do processo. No
universo de tendências homogeneizantes, de acordo com Sá (2009), os discos de vinil
são elementos de distinção, dentro do circuito de produção, circulação e consumo
musical no contexto contemporâneo.
A atmosfera de exclusividade do produto do Noize Record Club, junto com os
elementos de transmídia, representados pelo QR Code e o grupo exclusivo para
assinantes do clube no Facebook, aliados ao conteúdo da revista, dialoga com o que
Jenkins (2014) menciona como o potencial de um conteúdo ser compartilhado por seus
públicos por motivos próprios, o que ele chama de propagabilidade. Relaciona-se a isso
a criação de um conteúdo que envolva a audiência após atrair sua atenção e uma
“centralização da presença da audiência num local online específico” (JENKINS, 2014,
p. 27). A propagabilidade, ainda segundo o autor, reconhece a importância das conexões
sociais entre os indivíduos.
143
Figura 2: Os dois adesivos que vêm com o produto, sendo que um deles traz no verso o QR Code
A realidade aumentada, de acordo com Kirner e Tori (2006) leva o ambiente
virtual para o espaço do usuário, que é mantido em seu ambiente físico, sendo que este é
complementado com objetos virtuais em diferentes tipos de plataformas, por meio de
distintos dispositivos, como, por exemplo, smartphones. Assim, é possível visualizar
dados digitais no contexto real, ampliando a percepção da realidade em que o usuário
está inserido.
Um exemplo é o uso de QR Code, como no caso de “Japan Pop Show”. Numa
ação para estender a experiência, é possível, com um smartphone, realizar a leitura do
QR Code que está disponível no verso de um dos adesivos que vêm com o produto.
Com isso, é acessada uma playlist no serviço de streaming de música Rdio chamada
“Estação Curumin”, na qual estão canções do próprio artista e de outros semelhantes,
que compõem o que é chamado de seu “universo musical”, conforme informações
presentes junto ao QR Code.
144
Figura 3: O conteúdo que é acessado após a leitura do QR Code
Verifica-se nisso uma ação de transmídia, na forma de acesso, e de remediação,
ao passar-se de uma forma de disponibilização de conteúdo musical para outra, num
processo também de reconfiguração. Ao acessar o link por meio do QR Code, aparece
uma página com a informação clicável da playlist. Se o usuário ainda não possui o
aplicativo instalado, é direcionado à loja de aplicativos correspondente ao sistema
operacional utilizado no smartphone. Caso o usuário já tenha o aplicativo instalado, é
aberta a playlist no aplicativo.
As questões de transmídia e remediação também estão presentes no grupo no
Facebook e nos conteúdos da revista. No que tange à tecnologia, salientamos a seção
“Como fazer”, em que o artista dá o passo a passo de como criar uma música com
samples, cujo conteúdo se desdobra em um vídeo disponível no site da revista Noize e
em seu canal no YouTube. Nele, o artista mostra como se articula o processo,
demonstrando como utiliza o MPC – Music Programmer Controler para produzir a
música “Kyoto” a partir de elementos sonoros, o que também consistiria em um
processo de remediação, sobre o qual especificamente se opta por não abordar de forma
mais aprofundada neste trabalho.
Verificam-se nisso as questões descritas por Kerckhove (1995) no que tange à
tecnopsicologia, considerando que novas características psicológicas são desenvolvidas
pelos sujeitos em sua relação com os ambientes psicológicos, em um processo que se
145
transforma constantemente. O autor refere que os dispositivos e ambientes estabelecem
uma nova condição da existência, deixando de ser somente ferramentas que orientam
ações. No contexto atual, por exemplo, a busca por desdobramentos de informações e
conteúdos relacionados ao álbum utilizando a Internet aconteceria de forma que se
poderia caracterizar como natural.
Desse modo, poderia-se afirmar que a experiência dos assinantes ou usuários do
Noize Record Club, mesmo sendo entusiastas do disco de vinil, seria bastante diferente
sem os demais elementos que a compõem. Estes colaboram, no âmbito das
materialidades e também do interpretativo, na construção de sentido que vem a tornar a
fruição estética do álbum, dentro dessas articulações, uma experiência única e especial
para aqueles que a vivenciam. Isso ocorre para além da simples aquisição de um LP ou
da audição por meio de realização do download pela Internet ou por serviço de
streaming de música, independentemente de questões outras relacionadas à qualidade de
som, mobilidade e demais aspectos a serem possivelmente considerados no contexto.
Considerações finais
No ambiente contemporâneo da cibercultura, se disseminam produtos que
relacionam elementos diferenciados e que possibilitam inter-relações no que se
caracteriza por transmídia e remediação, também a partir do desdobramento de
realidade aumentada. A popularização do acesso à tecnologia possibilitou a expressão
de vozes que apontam potenciais nichos a serem contemplados no desenvolvimento de
diferentes produtos, como é o caso do retorno dos discos de vinil ao mercado. Assim, no
contexto atual, se poderia considerar que iniciativas desenvolvidas sem um
planejamento que contemple um olhar prévio e amplo acerca das possibilidades, interrelações e desdobramentos estariam definitivamente abrindo mão de fazer uso de uma
série de elementos que as potencializariam.
Partindo do proposto para a realização deste trabalho, a verificação e análise dos
elementos de transmídia, remediação e realidade aumentada em “Japan Pop Show” no
Noize Record Club, é possível considerar que foi desenvolvida uma abordagem que
contemplou os objetivos delineados, respondendo ao problema de pesquisa. Assim, se
pôde compreender como se articula, nesse caso, a conjunção dos diferentes elementos,
146
considerando as materialidades, por meio da produção de presença, e o interpretativo, a
partir da cognição, resultando na produção de sentido que resulta na experiência.
Cabe colocar que o estudo poderia vir a contemplar uma expansão, a partir da
análise mais aprofundada de todos os itens que compõem, de forma detalhada, cada um
dos elementos expostos neste trabalho, que constituem o produto. Nesse processo,
poderia também ser analisado o Noize Record Club e seus itens como parte de um
processo de reconfiguração não somente do mercado fonográfico, em que propostas
diferenciadas, com elementos agregados e formas de apresentação inovadoras
potencializam o produto música no contexto contemporâneo, mas também da
reconfiguração do mercado editorial de veículos de comunicação, segmentados ou não.
Isso a partir de uma ressignificação da revista Noize como produto, também na relação
de seu site e demais canais agregados, como dos sites de redes sociais Facebook,
Twitter, Google+, YouTube, Instagram e Rdio, a partir da criação do Noize Record
Club. Verifica-se, no entanto, que para o delimitado no problema de pesquisa, este
trabalho alcançou os objetivos delineados para sua realização.
REFERÊNCIAS
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: O que o sentido não consegue
transmitir. Rio de Janeiro: Editora Contraponto/Editora PUC-Rio, 2010.
JENKINS, Henry. Cultura da Conexão. São Paulo: Aleph, 2014.
_____________. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.
KERCKHOVE, Derrick de. A Pele da Cultura. Lisboa: Editora Relógio D’Água,
1995.
KIRNER, Claudio e TORI, Romero. Fundamentos de Realidade Aumentada. In:
TORI, Romero, KIRNER, Claudio e SISCOUTTO, Robson. Fundamentos e tecnologia
de realidade virtual e aumentada. Porto Alegre: Editora SBC - Sociedade Brasileira de
Computação, 2006.
LEMOS, A., Cibercultura: Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea. Porto
Alegre: Sulina, 2002, 6ª ed, 2013.
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Disponível
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NOIZE. Site da revista Noize. Disponível em: <http://www.noize.com.br>. Acesso em:
30 julho 2015.
147
NOIZE #67 Japan Pop Show. Revista Noize. Porto Alegre: Noize Comunicação, 2015.
NOIZE
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Disponível
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NRC | Como fazer música com sample, por Curumin. Canal da revista Noize no
YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VumUl0m_bz4>.
Acesso em: 30 julho 2015.
REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop culture’s addiction to its own past. New York:
Faber and Faber, Inc, 2011.
SÁ, Simone Pereira de . O CD morreu? Viva o vinil!. In: Perpétuo, I.F.; Silveira, S.A.
(Org.). O futuro da música após a morte do CD. São Paulo: Momento Editorial, 2009, p.
49-74.
STROCCHI, Maria Cristina. Psicologia da Comunicação: manual para estudo da
linguagem publicitária e das técnicas de venda. São Paulo: Editora Paulus, 2007.
148
O livro digital em diferentes formatos
Francielle Franco dos Santos125
Karen Sica126
Resumo: O livro tem registrado em sua história a adoção de diferentes suportes que
permitiram a sua materialização: do pergaminho ao papel, chegando, hoje, à tela como
suporte de leitura digital. Modificam-se não apenas os suportes de escrita e leitura, mas
as apropriações e os contextos de leitura. Dessa forma, torna-se necessário entender, no
cenário editorial gaúcho, os principais suportes (hardware e software) de leitura digital,
bem como os principais formatos e a percepção do leitor neste contexto.
Palavras-chave: livro digital; formatos de livro digital; plataformas de leitura digital.
1. Introdução
De acordo com Chartier (1999a), um texto agrega uma significação que
pode ser alterada quando os dispositivos do objeto tipográfico que o propõem a leitura
também mudam. Diferentes suportes de escrita foram utilizados pelo homem e “com
efeito, cada forma, cada suporte, cada estrutura da transmissão e da recepção da escrita
afeta profundamente os seus possíveis usos e interpretações” (CHARTIER, 1999a, p.
105).
Dessa forma, “do mesmo modo que o contexto semiótico do código escrito
foi historicamente modificando-se, mesclando-se com outros processos de signos, com
outros suportes e circunstâncias distintas do livro, o ato de ler foi também se
expandindo para outras situações” (SANTAELLA, 2004, p. 17). Assim, o leitor
contemplativo, habituado com objetos e signos duráveis e estáticos, como o livro
impresso e a tela do desktop, passa a conviver com o leitor imersivo, que conecta os nós
125
Graduanda do Curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade de Comunicação Social da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista do Laboratório de Pesquisa em
Mobilidade e Convergência Midiática (UBILAB – Famecos – PUCRS). E-mail:
[email protected].
126
Professora no Curso de Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Comunicação Social na
Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
(PUCRS). E-mail: [email protected].
149
entre as palavras, as imagens, os vídeos e outras linguagens, como na tela do
smartphone (SANTAELLA, 2004).
Além dos tablets e dos e-readers, os smartphones já são considerados
dispositivos de leitura digital visto que, segundo o Instituto de Pesquisa Nielsen, no
primeiro trimestre de 2015, 54% dos leitores de e-books realizaram seus downloads
através destes dispositivos móveis (MALONEY, 2015). Tendo em vista a importância
do tema, este artigo tem por objetivo compreender, no cenário editorial universitário
gaúcho universitário, quais são os principais suportes (hardware e software) de leitura
digital, assim como os principais formatos e a percepção do leitor neste contexto.
2. O histórico do livro: dos suportes primitivos ao livro digital
O desenvolvimento da escrita ocorreu através de diferentes suportes ao longo da
história. Chartier (1999b) afirma que não há texto fora do suporte onde possa ser lido ou
ouvido e a compreensão do texto depende das formas através das quais ele atinge o seu
leitor. Portanto, o texto não existe em si mesmo, isolado da materialidade
(SANTAELLA, 2004).
A cronologia dos suportes utilizados na produção do livro organiza-se a partir de dois
formatos fundamentais: o rolo e o códice; o que vale dizer, três materias-primas
essenciais: o papiro, o pergaminho e o papel (PINHEIRO, 1999). O papiro é o mais
popular de todos os produtos vegetais empregados na escrita de tanta importância
histórica em si mesmo e pelos textos que conteve. O momento em que o papiro virou
suporte de escrita não pode ser mencionado com precisão, contudo, o Museu Louvre
possui um papiro que data de 273 anos a.C., o que nos leva a concluir que se trata de
uma época muito longínqua (MARTINS, 2002).
As dificuldades de importação do papiro, em função das guerras, somadas à escassez
natural, forçaram o homem a utilizar outra matéria-prima como suporte para a escrita: o
pergaminho. Extraído de pele de animais, o pergaminho tem a sua primeira menção na
história data do ano de 301 a.C. Os altos custos do pergaminho evidenciaram a
necessidade de substituição deste suporte por outro que tivesse preços mais acessíveis.
Sendo assim, o papel é inventado na China, aproximadamente no ano de 140 a.C.
Febvre e Martin (2000) reiteram que a invenção da imprensa teria sido inoperante se um
novo suporte do pensamento, o papel, não tivesse feito a sua aparição na Europa, dois
séculos antes, para ser utilizado generalizado e corrente até o final do século XIV.
O pergaminho foi escrito, como o papiro, em apenas um lado, até que se descobriu ser
perfeitamente possível fazê-lo nas duas faces. Enquanto a escrita era realizada apenas
no sentido vertical do rolo, o pergaminho era enrolado, como o papiro, para constituir o
volumen. A escrita no reto e no verso vai dar nascimento ao códex, isto é, ao
antepassado imediato do livro (MARTINS, 2002). Com a utilização dos dois lados do
suporte o custo de fabricação do livro diminiu consideravelmente. Além disso, o códex
permite a reunião de grande número de textos em um volume muito menor se
comparado aos antigos rolos de papiro ou pergaminho (CHARTIER, 1999b). O códex
pode ser definido, nas palavras Rouveyre, citado por Martins (2000), como “os
manuscritos cujas folhas eram reunidas entre si pelo dorso e recobertas de uma capa
150
semelhante a das encadernações modernas”, ou seja, o livro no formato impresso como
conhecemos hoje.
O livro impresso foi, até hoje, o herdeiro do manuscrito: por sua organização em
cadernos e pela hierarquia dos formatos (CHARTIER, 1999b). Martins (2002) afirma
que o incunábulo, livro impresso até o ano de 1500, embora fosse um livro impresso,
prolongou, de maneira artificial, o uso do manuscrito, ou pelo menos a sua aparência já
que transpunha elementos daquele formato para o livro impresso. Então, a disposição
das folhas de papel em cadernos agrupados é mais do que um simples formato, mas sim
uma revolução dos suportes e formas que transmitem o escrito (CHARTIER, 1999b, p.
101).
Sendo assim, entra em cena um novo suporte de leitura: a tela (de diferentes
dispositivos eletrônicos). O uso de diferentes suportes se modifica de acordo com a
evolução tecnológica, industrial e cultural, isto porque “[...] não existe nada mais
efêmero do que os suportes duráveis” (CARRIÈRE e ECO, 2010 p. 24). A efemeridade
dos suportes tem ameaçado a hegemonia do papel enquanto suporte principal do livro.
Contudo, a ideia de que o livro digital suprimirá a existência do impresso é equivocada
visto que essa ameaça “[...] se encontra por tantas invenções fundadas em princípios
diferentes” (FEBVRE e MARTIN, 2000, p. 6).
Dessa forma, os formatos podem, e devem, co-existir, pois têm princípios e objetivos
diferentes. Somente com o surgimento do livro digital é que se quebra o paradigma do
livro objeto enquanto um conjunto de folhas agrupadas e cobertas por uma capa dura.
Apesar de terem sido mantidos os elementos fundamentais do livro (sumário, cabeçalho,
numeração de página, entre outros), o fato de a leitura ocorrer intermediada por uma
tela, e não mais por uma página, gerou uma barreira que dificulta que os agentes da
cadeia produtiva do livro, e até mesmo alguns leitores, não percebam o novo objeto
como um livro tal qual o impresso. A resistência de perceber a tela como a nova
interface do livro pode ser justificada pelo fato de que “as interfaces são em seu cerne
metaformas, informação sobre informação” (JOHNSON, 2001, p. 4), sendo assim, o
leitor não sente a mesma apropriação material referente ao papel quanto lê um livro em
tela.
3. Transformam-se os leitores e as práticas de leitura
Assim como o livro evoluiu, através dos suportes e plataformas, os leitores e as
maneiras de leitura transformaram-se igualmente. Conforme descreve Chartier (1999a),
o leitor retratado antes do século XVIII aparentava estar estático em ambientes fechados
como gabinetes e espaços reservados. É a partir deste período que o leitor começa a ser
retratado com maior liberdade, lendo em movimento em ambientes públicos. A
evolução dos suportes conferiu ao livro uma mobilidade nunca experimentada,
permitindo com que o leitor pudesse transitar com o objeto em diferentes ambientes.
Para ser desenrolado e lido, um rolo tinha de ser segurado com as duas mãos:
logo, como mostram afrescos e baixos-relevos, era impossível para o leitor
escrever ao mesmo tempo em que lia, daí a importância do ditado em voz
alta. É com o códex que o leitor conquista a liberdade: pousado sobre uma
mesa ou escrivaninha, o livro em cadernos não exige mais a total mobilização
do corpo (CHARTIER, 1999b, p. 101).
151
Modificaram-se também os leitores, passíveis de classificação. Santaella (2004)
categoriza os leitores em contemplativo e movente, definições semelhantes às realizadas
por Chartier (1999b) que define os leitores como intesivos ou extensivos. Entretanto a
autora acrescenta, ainda, um outro perfil: o leitor imersivo. O leitor contemplativo “é
aquele que tem diante de si objetos e signos duráveis, imóveis, localizáveis,
manuseáveis: livros, pinturas, gravuras, mapas, partituras” (SANTAELLA, 2004, p. 24).
Isto é, o leitor do livro impresso ou o leitor intensivo mencionado por Chartier (1999b).
O leitor movente é aquele “que foi se ajustando a novos ritmos de atenção, ritmos que
passam com igual velocidade de um estado fixo para um móvel. [...] É, enfim, o leitor
apressado de linguagens efêmeras, híbridas, misturadas” (SANTAELLA, 2004, p. 29),
bem como o leitor extensivo, descrito por Chartier (1999b), que lê um grande volume
de textos com maior velocidade. O terceiro tipo de leitor mencionado por Santaella
(2004), e dificilmente imaginado por Chartier, é o leitor imersivo, que lê no
ciberespaço. Diferentemente dos dois tipos de leitores que o precedem, o leitor o
imersivo está em constante “estado de prontidão, concentrando-se entre nós nexos, num
roteiro multilinear, multissequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao
interagir com os nós entre as palavras, imagens, documentação, músicas, vídeo, etc.”
(SANTAELLA, 2004, p. 33).
Somos levados a imaginar que com a evolução dos suportes, dos tipos de leitores e das
práticas de leitura, os perfis de leitores devem, gradativamente, se sobrepor ao tipo
antecedente. Porém, “embora haja uma sequencialidade histórica no aparecimento de
cada um desses leitores, isto não significa que um exclui o outro, que o aparecimento de
cada um desses tipos de leitores leva ao desaparecimento do tipo anterior”
(SANTAELLA, 2004, p. 19). Sendo assim, temos ainda hoje, dividindo práticas de
leitura e suportes de leitura, o leitor contemplativo (intensivo), o leitor movente
(extensivo) e o leitor imersivo. Ainda segundo a autora, as diferentes formas do livro
também funcionam como índices de práticas distintas de leitura. A partir do conceito de
que “a leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significado” (CHARTIER,
1999a, p. 77), logo conclui-se que o mesmo texto pode ter diferentes interpretações de
acordo com apropriação feita por cada leitor.
4. Principais suportes de leitura digital e formatos de livros digitais utilizados pelo
público universitário gaúcho
Para que fossem definidos os histórico do livro e as transformações sofridas no
comportamento de leitura, bem como nas práticas de leitura, foi realizado um
levantamento bibliográfico e documental. Contudo, para que se pudesse definir os
suportes de leitura digital e os formatos de livros digitais mais utilizados pelos
estudantes universitários gaúchos foi realizada uma pesquisa quantitativa. O
questiontário foi disponibilizado em grupos de estudantes universitários no Facebook,
no período entre 25 de setembro de 2015 até o dia 13 de outubro de 2015.
Após a análise dos resultados, o público respondente do questionário pode ser
caracterizado como jovens gaúchos; com faixa etária média entre 20 e 23 anos de idade;
com formação superior em andamento ou completa; principalmente estudantes das
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Unisinos; com graduação principalmente nas áreas de
Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas e Ciências Exatas e da Terra. Afim de
delimitar o público, foi questionado se os respondentes já haviam lido livros no formato
152
digital. Assim, dos 328 indíviduos que acessaram o questionário, 260 (80%) afirmaram
já ter lido livros no formato digital. Definidas as questões de caracterização do público,
questinou-se quais eram os principais dispositivos de leitura digital utilizados.
Gráfico 1 – Principal dispositivo de leitura digital
Fonte: As autoras (2015).
Observa-se, no Gráfico 1, que o principal dispositivo de leitura digital apontando pelos
260 respondentes da pesquisa é o computador, com 27% das respostas; em segundo
lugar está o notebook, com 24% das respostas; e em seguida estão o smartphone e iPad.
Assim, pode-se caracterizar o público como um leitor contemplativo, visto que lê
principalmente em dispositivos estáticos. Considera-se, aqui, que o notebook seja
estático porque ele não apresenta a mesma mobilidade que tablets e smartphones. Dessa
forma, ele tem caracaterísticas mais próximas do computador em relação aos
dispositivos móveis.
Gráfico 2 – Dispositivo secundário de leitura digital
153
Fonte: As autoras (2015).
No Gráfico 2, observa-se que o principal dispositivo secundário de leitura digital é o
smartphone, com 32% dos total de 167 indivíduos que afirmam ler em mais de um
dispositivo. Este resultado vai ao encontro da fala de Santaella (2004), ao afirmar que os
tipos de leitores co-existem e não se excluem. Assim, o leitor contemplativo, que lê na
tela do computador, também lê na tela do smartphone. Este resultado aponta para uma
tendência de leitura móvel, que deve ser considerada pelo mercado editorial. Após a
definição dos dispositivos de leitura digital, questionou-se quais eram os principais
formatos de livro digital utilizados.
Gráfico 3 – Principais formatos de livro digital
Fonte: As autoras (2015).
No Gráfico 3, nota-se que o PDF é o principal formato utilizado (57%), seguido pelo
formato Epub (14%) e pelo formato iBooks (12%). Acredita-se que o formato iBooks
tenha sido apontado em função deste também ser o nome do software para leitura digital
154
nos smartphones com sistema iOS. Como a grande parte dos respondentes afirmou que
lê no smartphone, pode ter acontecido uma confusão entre o formato de livro digital
iBooks e o software de leitura do sistema iOS. Portanto, considera-se que o terceiro
formato de livro digital mais utilizado seja o formato HTML (web) com 8% das
respostas.
Com os formatos definidos, pode-se elaborar um quadro com características próprias de
cada formato. Assim, foi solicitado que os respondentes relacionassem cada
característica com o formato mais adequado a fim de, dessa forma, definir qual a
opinião do público diante aos três principais formatos de livro digital.
Quadro 1 – Características relacionadas aos formatos de livro digital.
Formato
PDF
Característica atribuída
o É mais fácil de usar.
o Mais parecido com o impresso.
o Mantém a paginação.
o Estático.
o Adapta-se a diferentes telas.
o Não permite a inserção de recursos interativos.
o Fica diferente dependendo do dispositivo em que é aberto.
o Pode ser lido no navegador de internet.
Epub
o É o menos estático.
o Adapta-se a diferentes telas.
HTML
o Pode ser lido no navegador de internet.
o É mais interativo.
o Menos fácil de usar.
o Menos parecido com o impresso.
Não se aplica
o Não se adapta a diferentes telas.
o Não mantém a paginação.
o Permite a inserção de recursos interativos.
o Pode ser transformado em aplicativo.
A partir da análise do Quadro 1, pode-se afirmar que o PDF é o formato de livro digital
mais consumido e aceito pelo público universitário gaúcho. Pelo número de
características atribuídas a este formato, ele, sem dúvida, é o mais conhecido entre os
155
respondentes. As características de adaptar-se a diferentes telas e ter o layout
modificado conforme a tela em que é visualizado foram atribuídas ao formato PDF.
Entretanto, se considerarmos o layout do livro digital, nota-se que ele se mantêm o
mesmo, ou seja, não é responsivo, não se modifica de acordo com a tela em que é
visualizado. Conclui-se que as questões de layout responsivo e conteúdo interativo não
estão claras para o público universitário gaúcho.
Sobre o formato HTML, pode-se afirmar que o público respondente reconhece as
características básicas (como interatividade e a leitura através o navegador), porém não
mencionou a adaptação a diferentes telas e nem a possibilidade deste formato ser
distribuído por meio de um aplicativo. Então, pode-se afirmar que este público não tem
uma opinião suficientemente clara quanto ao formato HTML.
O formato Epub teve pouquíssimas características atribuídas. Conforme os resultados
apresentados, pode-se afirmar que o público em questão não reconhece a maioria das
características do formato Epub. Apesar dos inúmeros esforços por parte de consórcios
como o IDPF, o formato Epub não tem a mesma aceitação e penetração que o formato
PDF tem entre os universitários gaúchos. Sendo assim, o PDF é o formato mais aceito,
com o maior número correto de características atribuídas.
5. Considerações Finais
Para o público universitário gaúcho, o PDF é o principal formato de livro digital.
Questiona-se, aqui, se este formato é predominante em função da demanda gerada pelo
público ou se o público, por não ter outro formato satisfatório, acaba por utilizar o PDF
como livro digital tendo em vista as dificuldades de produção e acesso a outros
formatos. O formato Epub não atende às expectativas do público leitor ou o mercado
editorial não consegue desenvolver com qualidade livros no formato Epub? Acerca dos
dispositivos de acesso e leitura digital, destaca-se o uso do computador como principal
aparelho de leitura digital. Contudo, nota-se o uso do smartphone coo dispositivo
secundário de leitura digital.
Define-se, então, como satisfatório o livro digital produzido pelas editoras universitárias
gaúchas, tendo em vista a opinião do público universitário definida a partir do
questionário quantitativo. Pondera-se, apenas, que as potencialidades do meio digital
não estão sendo exploradas. O grande desafio, não só do mercado editorial gaúcho, mas
de todo o mercado brasileiro, é conseguir utilizar as possibilidades interativas do meio
digital sem tornar a interatividade desnecessária, além de conseguir produzir livros
digitais com qualidade em um formato que consiga ter o mesmo alcance do formato
PDF.
Como indicação para propostas futuras, sugere-se explorar as características de cada
formato através de questionários mais detalhados, como pesquisas experimentais e de
usabilidade a fim de definir quais as características mais importantes em cada formato e
dispositivo de leitura digital. Posteriormente, poderiam ser definidas diretrizes para boas
práticas de acordo com cada formato e dispositivo de leitura digital. Ainda torna-se
importante questionar os diferentes níveis de interatividade para cada tipo de
publicação, poderiam ser investigadas livros digitais de acordo com a área do
conhecimento, ou o tipo de leitura e questionar até que ponto os diferentes tipos de
interação atrapalham a leitura ou agregam valor ao conteúdo.
156
Bibliografia
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de André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010. 269 p.
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XIV e XVIII. Tradução: Mary Del Priori. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
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Henrique Tavares de Castro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.
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SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo.
São Paulo: Paulus, 2004.
157
Telltale Games The Walking Dead: observando modos de comunicação
no videogame
Victor Felipe Barbosa PESSOA127
Faculdade de Informação e Comunicação
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO
Resumo: Levantando autores e teorias sobre comunicação, apresenta-se a ideia de
comunicação como a capacidade de se fazer entender. Partindo desse pressuposto,
também são levantados teorias e estudos sobre o videogame para identificar quais
recursos o mesmo possui para atingir tal feito, focando em dois recursos observados, o
do tempo e o do espaço, os analisando dentro do game The Walking Dead.
PALAVRAS-CHAVE: videogame; comunicação; tempo; espaço; the walking dead.
1- Introdução
Dentro da grande área de pesquisa do campo da comunicação, diferentes aportes
para variados tipos de tema são aceitos e discutidos. Dentre os vários aportes, o que
relaciona a comunicação e as tecnologias, que podemos forçosamente chamar do
paradigma tecnológico da comunicação, possui uma grande aceitação, e seu debate
sempre se mantém fervoroso devido ao surgimento de novas tecnologias e as mudanças
que as mesmas trazem consigo.
Uma tecnologia em especial, a do videogame, surgida recentemente, por volta da
década de 70, foi se aprimorando e ganhando popularidade ao longo dos anos.
Inicialmente com mero foco de entretenimento, um brinquedo deveras, o videogame foi
se complexando por um anseio tanto dos desenvolvedores de games, quanto do público
em geral, e poderíamos dizer da própria tecnologia, para contar mais histórias,
implementar novos desafios, proporcionar mais envolvimento.
127
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás
(FIC/UFG) E-mail: [email protected]
158
Todos os recursos que a mídia do videogame foi agregando e criando para
alcançar esses anseios e se transformar na mídia que podemos observar hoje em dia,
possuem suas peculiaridades que, ao serem observadas, revelam como o videogame
particularmente trabalha com a questão comunicacional, que, por sua vez, leva a mídia a
poder discutir também questões culturais, educacionais, entre outros de aspecto
semelhante.
O papel e as possibilidades que o videogame passou a desempenhar despertaram
a atenção da mídia não só do grande público, mas de grandes empresas, agências de
publicidade, do governo, da medicina, e claro, da academia. Com uma demanda cada
vez maior de se entender os videogames, suas pesquisas vêm ganhando força, tanto as
que se aventuram no estudo próprio da mídia como aquelas que estudam a mídia como
pano de fundo de outra disciplina ou aplicabilidade.
Esse trabalho, como já mencionado, procura relacionar o estudo dos videogames
com a grande área da comunicação, procurando contribuir para a fomentação dos dois
temas. Não se possui aqui, porém, a pretensão de estipular verdades ou marcos nesse
tipo de estudo, compreende-se que o campo ainda está em desenvolvimento, certas
ideias chaves ainda estão se maturando, e variadas observações e discussões, que é ao
que esse trabalho se propõe, são de extremo valor nesse momento.
Aqui, especificamente, é observado o game The Walking Dead, lançado pela
produtora de games Telltale Games, cujo tema do game se relaciona com os quadrinhos
e a série de tv de mesmo nome. Levantando algumas ideias sobre o conceito de
comunicação aqui trabalhado e algumas características da mídia levantada por
pesquisadores da área, como Aarseth, Frasca, entre outros, observa-se como essas
características são utilizadas para que o game se comunique com o público. Com essa
comparação e observação em mãos, discute-se e reflete-se sobre o caminho
comunicacional da mídia, tudo de acordo ao espaço oportuno desse trabalho.
2- Metodologia
Tratando-se de um trabalho de observação e análise, é importante definirmos
como base os conceitos, ideias e autores que aqui são trabalhados, afim de estipularmos
um limite perceptível para os leitores e pares, para que um diálogo mais conciso e
159
focado possa emergir. Procura-se apontar uma noção de comunicação ligada a
tecnologia e observar características da tecnologia do videogame.
2.1- A comunicação
Como primeiro passo, abordamos o conceito de comunicação. Devemos fazer a
ressalva, porém, de que existem outros conceitos que podem ser abordados, e que não é
do objetivo deste trabalho estipular o trabalhado aqui como ponto único de discussão. A
comunicação aqui é colocada como a capacidade do indivíduo de se fazer entender por
um outro. Tal ideia pode ser percebida ao observarmos sua noção sendo empregada no
debate que certos autores estabelecem com a tecnologia e o ato comunicacional.
Marshall McLuhan, um famoso teórico da comunicação, busca em suas obras
enfatizar o elemento do meio. Não ignorando outros elementos da comunicação, o que o
autor propõe é que os meios, que para os fins apenas deste trabalho entenderemos como
mídia/tecnologia, desempenham um fator ímpar na compreensão daquilo que se deseja
comunicar. McLuhan compreende que cada tecnologia, como a tv, o rádio, a escrita e a
fotografia, transformam a mensagem para o receptor, uma vez que a comunicação está
atrelada a percepção sensorial dos indivíduos e que cada meio fornece percepções ou
estímulos sensoriais diferentes. Não apenas isso, cada meio fornece ao indivíduo uma
nova forma de pensar, uma nova forma de expressão, que age no próprio cerne da
elaboração da comunicação, em outras palavras, o indivíduo não pensa no que quer
dizer e em como dizer de formas separadas. Uma das famosas frases do autor, “o meio é
a mensagem”, sintetizam essa compreensão do papel dos meios.
A mesma concepção defendida por McLuhan pode ser encontrada também nos
trabalhos do pesquisador e professor Pierre Lévy. Já trazendo as pesquisas e os debates
para uma era moderna e digital, a qual McLuhan não pertenceu plenamente, o autor
continua a defesa da importância das tecnologias e dos meios. Lévy faz, como no título
de sua obra “As tecnologias da inteligência”, aproximação do pensamento e do ato
comunicacional com os aparatos tecnológicos. Fugindo um pouco, porém, do
generalismo de McLuhan, Lévy compreende que as tecnologias desempenham sim um
papel no pensamento humano, assim como também na cultura, sociedade e na
economia, todavia, mas devemos focar apenas nas tecnologias diretamente ligadas a
ação comunicacional, para evitarmos um estudo raso, tendo esse pensamento sempre ao
fundo. O autor mantém a ideia de que a relação entre o sensorial humano e a
160
comunicação encontra seu elo na tecnologia, e que eles não podem ser pensados de
forma distinta, relação essa que o autor coloca como sendo nossa ecologia cognitiva.
“Separar o conhecimento das máquinas da competência cognitiva e social é o
mesmo que fabricar artificialmente um cego (o informata “puro”) e um
paralítico (o especialista “puro” em ciências humanas), que se tentará
associar em seguida; mas será tarde demais, pois os danos já terão sido
feitos.” (LÉVY, Pierre – 2010, p.55)
Essa relação que a comunicação desenvolve com a tecnologia pode ser
observada através da história, cada nova tecnologia, em especial cada novo meio de
comunicação, afetava e moldava as relações dos indivíduos. Como destacado na obra do
autor John B. Thompson, “A mídia e a modernidade: Uma teoria social da mídia”, a
comunicação se coloca como uma atividade social distinta das demais (p.25), pois ela
não acaba em si mesma, ela muda e afeta, assim como é afetada, por outros variados
fatores, em especial, a tecnologia. Trabalhando com o exemplo do rádio, a tecnologia
permitiu que indivíduos que moravam longe da cidade pudessem receber notícias e
informações mais rápido, todavia, não se trata apenas de uma expansão territorial
permitida pela tecnologia, mas da integração de toda uma parcela da sociedade, de
novos hábitos de ouvir rádio, do estabelecimento de uma forma de entretenimento, entre
outras opções.
2.2- O videogame
Como segundo passo, devemos destacar e esclarecer quais características do
videogame serão analisadas. Como sabemos e podemos facilmente perceber, existem
inúmeros gêneros e estilos de games diferentes, que se utilizam de variadas
características e recursos para atingirem seus objetivos próprios. Não nos é permitido,
em questão de tempo e espaço deste trabalho, percorrer os diferentes gêneros de games
assim como todas as características empregadas. Como o game em questão analsiado é
o The Walking Dead, partindo de um conhecimento da dinâmica do mesmo, foca-se nos
recursos de tempo, espaço e ação performática do jogador como características
observáveis.
Essas características não são escolhidas ou mesmo definidas (em termo de
nomenclatura) aleatoriamente. Toma-se de empréstimo a divisão proposta por Aarseth
161
sobre as dimensões dos games, ais quais ele estipula sendo as dimensões do gameworld,
do game play e do game structure. Essas dimensões existem sempre em conjunto, mas
possuem dentro de si características e recursos da mídia que podem, de forma teórica e
didática, serem agrupadas, pois refletem um objetivo e uma utilização em comum. As
três características em destaque nesse trabalho se encontram dentro das dimensões do
gameworld e do game play que estão ligadas, respectivamente, ao conteúdo ficcional do
game e a atuação do jogador ou jogabilidade.
A dimensão do gameworld possui não só as características do tempo e espaço do
game, mas trabalha também com toda a referência simbólica gráfica, como texturas,
lugares e objetos, assim como toda o conteúdo ficcional, como as personagens, a
história e a narrativa. O game play, por sua vez, possui as características e recursos de
jogabilidade, como regras, motivação, objetivos e ações possíveis. O importante a ser
compreendido, é que não se utiliza dessa divisão para debater quais são ou não recursos
próprios do videogame, mas aceita-la, mesmo sabendo que existe um debatene
emergente sobre esse tema, e procurar observar como esses elementos não só como
esses elementos compõe os games, como propõe Aarseth, mas observar como eles são
usados retoricamente, segundo as perspectivas de Frasca.
O tempo aqui é analisado, pois como Juul alerta, o tempo de uma narrativa é
colocado sempre no passado, é sempre uma história contada, e quando analisamos um
game, que ocorre no presente, ou seja, onde o jogador age, joga, ocorre um paradoxo.
Nesse sentido, os games, em especifico o The Walking Dead, devem trabalhar com a
característica do tempo para conciliar o tempo de jogo com o tempo da narrativa. Do
mesmo modo, a história apresenta determinados estilos como terror ou drama se
utilizando de recursos narrativos específicos, como suspense, omissão, reviravoltas,
entre outros. Quando, no caso dos games, o jogador se encontra no momento de jogo,
no presente, onde não há essa narração, outros recursos e características atuam como
permeadores desses estilos, sendo eles o espaço, que situa o jogador tanto no ambiente
de jogo, ou seja, no ambiente de ações, como no ambiente ficcional, com sentidos e
significados.
A performance do jogador é colocada em questão como uma característica da
mídia, pois os games são sempre duais, são sempre objetos/artefatos e atividades, onde
podemos observar, por exemplo, o jogo de xadrez, com suas peças e tabuleiro, e pessoas
o jogando (Juul, 2005, posição 481). Quando aplicados a um contexto comunicacional,
os componentes, as características, virtuais ou não, podem ser empregadas
162
retoricamente, mas a posição dos jogadores em relação aos mesmos e a proposta
narrativa possui sua relevância significativa.
3- O game
The Walking Dead é um game lançado pelo estúdio Telltale Games, para
diversas plataformas, em abril de 2012. Ele possui o mesmo nome da série de TV e dos
quadrinhos que deram origem a ambos, onde a ideia por trás dessa relação é justamente
a de colocar o game e sua história narrada como pertencente ao universo ficcional da
franquia. O game é classificado como um game de terror e aventura, além de outros
subgêneros, e são essas características, assim como a temática do universo ficcional,
zumbis e o fim do mundo, que os recursos do videogame devem ser capazes de
comunicar.
O game foi sendo lançado em partes, totalizando cinco partes no total. Cada uma
dessas partes só pode ser jogada em sequência, e cada uma conta determinados eventos
da história geral do game. A história é focada na personagem Lee Everett, que é
mostrada no começo do game sendo presa pelo crime de assassinar sua mulher. A
viatura que o estava conduzindo sofre um acidente, e Lee logo se vê perdido em meio a
vários zumbis, sem saber o que está acontecendo.
Fugindo à procura de ajuda e abrigo, Lee acaba invadindo uma casa onde
conhece Clementine, uma pequena garota que havia ficado sozinha em casa durante
uma viagem de seus pais. Sem coragem de abandona-la, Lee resolve acompanha-la e
protege-la, e grande parte da história gira em torno da amizade dessas duas personagens.
Juntos eles partem em busca de entender o que está acontecendo e, com sorte, encontrar
os pais de Clementine. Durante o caminho, vários outros personagens aparecem e logo
formam um grupo, buscando sobreviver e escapar desse mundo caótico e cheio de
zumbis.
3.1- O estilo do game
Como já dito, The Walking Dead é um game de aventura e de terror, mas essa
classificação está mais ligada ao seu conteúdo ficcional, de modo geral, os games são
dividos e classificados por seus modos de jogo, como games de tiro, games de
163
estratégia, games de luta, entre variadas classificações. The Waling Dead é um
classificado como um game point-and-click (apontar e clicar), modo o qual coloca que
todas as ações do jogador estão ligadas a clicar em algo.
Games de point-and-click agrupam todas as ações do game, desde as mais
básicas como andar, até as mais complexas como resolver um quebra cabeças, em um
simples ato de clicar. Isso só é possível pois, nesse tipo de game, em especial no The
Walking Dead, todas as ações são tratadas como escolhas. Ao se deparar com um
machado no game, por exemplo, ao clicar no machado três opções aparecem na tela do
jogador, ele pode olhar o machado, pode pegar o machado, ou pode deixar o machado,
opções essas que devem ser clicadas e a própria inteligência artificial do game executará
as ações da escolha.
Essa mesma lógica que o game utiliza para um objeto também é emprestada para
a relação com as outras personagens. Quando o jogador clica em outra personagem,
uma série de opções diferentes aparecem, e se dessas opções se iniciar um diálogo, da
mesma forma que o jogador escolhe ações ele deverá escolher as falas do protagonista,
no caso Lee, durante a interação. A interação entre essas escolhas e a história é que os
desenvolvedoras da Telltale games procuraram unir, fazendo com que cada escolha
possa ter relevância na trama, seja um personagem tendo ou não um objeto no futuro, ou
personagens brigarem entre si por escolhas de diálogos específicos.
4- O tempo no game
Um aspecto que todo game tem que lidar é com o aspecto de temporalidade.
Todo game, por ser uma ação performativa, um elemento ergótico, possui o seu tempo
de jogo, onde o jogador se sente imerso no game e onde suas ações são permitidas ou
alternadas em relação a outros jogadores ou eventos. Essa imersão, todavia, não é uma
imersão total, e o jogador está sempre em contraposição com a realidade que o cerca,
assim como o tempo dessa realidade, ou seja, o tempo “real”. Quando se aplica uma
narrativa ou um contexto comunicacional a mídia, observa-se o surgimento de outro
tempo, o fictivo, ou seja, o tempo da história que se passa no game. Por fim, destaca-se
que existe o tempo do gameworld, relacionado a ciclos, durações e eventos que nos dão
a ideia de progresso e de que o tempo está passando.
Nesse sentido, conseguimos observar quatro quadros distintos do tempo presente
nos games. Não necessariamente um game apresenta todos esses quadros, e mesmo
164
quando o faz, pode mostra-los de forma sequencial, misturada ou de outras variações
possíveis. Cada um, por sua vez, contribui em certos aspectos para a compreensão do
game, e devemos analisar cada um em relação a proposta de terror e apocalipse zumbi
em The Walking Dead.
Começando pelo tempo real, ou o tempo fora do game, observa-se que não há
nenhuma relação direta com o que ocorre fora do game com o que ocorre dentro do
mesmo. Caso o jogador leve uma hora ou cinco minutos do tempo real para realizar uma
ação, não há relação, premiação ou consequência dentro do game. Nesse sentido, não há
um padrão que indique a quantidade de tempo ou duração do game, sendo apenas a
divisão em cinco capítulos do game como pontos de referência ao jogador sobre um
limite temporal. Essa falta de relação não é uma falha ou um problema, pelo contrário,
sua ausência permite ao jogador que as seções de jogo se adaptem ao seu tempo,
tornando-as mais acessíveis.
Seguindo para o tempo de jogo, que podemos chamar de tempo de coordenação
(das ações), já podemos notar momentos diferenciados disponíveis ao jogador. Como já
mencionando, o game começa em uma cutscene, com Lee sendo levado por uma
viatura. Essa cutscene, assim como várias outras que ocorrem durante o game,
estabelece um momento onde o jogador não possui ação de controle sobre as
personagens. Nesse momentos, o próprio game estabelece controle sobre os
acontecimentos como forma de guiar a história, como forma de estabelecer eventos que
devem ocorrer para o desenrolar da trama. Em The Walking Dead especificamente, as
cutscenes não sou totalmente momentos passivos, com o jogador podendo, por meio de
cliques, escolher os diálogos da personagem Lee. Nesses momentos, o jogador possui
um tempo de escolha limitado pela própria duração da cutscene, e suas falas devem ser
escolhidas dentro do tempo estabelecido por uma barra na parte inferior da dela que vai
desaparecendo, recurso esse necessário para coincidir o jogar do jogador com a
narrativa. Além das cutscenes, existe também o tempo de exploração, onde o jogador
pode controlar a personagem e andar pelo cenário a procura de pistas, outras
personagens ou objetos, durante esse período, o tempo do jogador é ilimitado, onde o
jogador pode explorar ou apenas deixar o personagem parado pelo tempo desejado que
nada no mundo se alterará. Há também o tempo de combate no game, quando o jogador
deve enfrentar ou fugir de oponentes, sejam outros humanos ou zumbis. Durante esse
período especifico, o jogador é livre para controlar a personagem, mas deve realizar
uma determinada ação e um período de tempo, como atirar em um zumbi, ou fechar
165
uma porta, caso contrário, algo acontece que faz o jogador perder o game, como Lee
morrendo por exemplo. Esses três períodos distintos coordenam todas a jogabilidade do
game, sendo eles alternados por gatilhos ou eventos específicos, por exemplo, durante
um período de exploração, somente após falar com todas as personagens é que o
jogador é transferido para um momento de cutscene, enquanto que durante um diálogo
de uma cutscene, se um evento ocorrer, como o surgimento de zumbis, o jogador é
transferido para um período de combate, e assim o game vai se repetindo e se alterando
em diversos momentos.
Outro tempo, o tempo do gameworld, não é tão explorado em The Walking
Dead. O game deixa claro, principalmente pela parte visual, em que momento os
acontecimentos da história estão ocorrendo, como sendo de dia ou de noite, por
exemplo. Todavia, devido ao tempo de coordenação permitir que o jogador gaste o
tempo que lhe convier na exploração, o tempo do gameworld é dessincronizado da
passagem de tempo, ou seja, ele se torna apenas um componente da história e apoio para
o tempo fictivo, que vemos em seguida.
O tempo fictivo, o tempo da história em The Walking Dead, é o principal
conduíte do game. Para estabelecer tal tempo, o game faz os empréstimos das cutscenes,
mencionadas acima e dos diálogos. Por meio delas, o game faz empréstimo das técnicas
narrativas de passagem de tempo de contar histórias, e a passagem do tempo é percebida
tanto em cenas como mostrar os personagens dormindo e acordando, quando em
diálogos como “nós andamos o dia todo” ou “logo vai escurecer”. O tempo no
gameworld, como o período da noite, só se alterna caso a história do game o diga, e é
justamente o avanço da narrativa que alavanca o surgimento de eventos e que resulta na
percepção do jogador da passagem do tempo no game.
4.1- O espaço no game
Quando entramos na discussão do espaço nos games, temos que levar em
consideração que existem dois tipos de espaço, o espaço matemático e dimensional em
que vivemos, e os espaços criados, sejam espaços sociais, culturais, fantasiados, entre
outros. No caso dos videogames, estamos nos referindo a um objeto virtual, sendo
assim, o espaço nos games, mesmo sendo capaz de emular dimensões, profundidade,
gravidade, entre outras características do espaço matemático, não deixa de ser uma
166
simulação, ou seja, o espaço nos games sempre cai no domínio da representação e do
simbólico.
Quando dizemos, todavia, que se trata de um espaço representado, como alerta
Aarseth, temos que compreender que a representação se divide em dois aspectos
distintos, o da representação espacial (emulação/simulação) e o dos espaços
representados (simbólicos/significativos). No caso do The Walking Dead, a
representação espacial é a construção gráfica e com auxílio das regras do espaço
jogável, enquanto que os espaços que o jogador vê construído e do qual absorve
informações e referências está ligado a contextos, o que podemos chamar de espaço
fictivo.
A representação espacial em The Walking Dead, assim como em outros games,
se mostra um fator relevante, pois ela atua não só como espaço de ações, mas também
como um espaço limitador, em outras palavras, um espaço ditatório de regras. Nem
todas as portas podem ser abertas, nem todos os objetos podem ser pegos, nem todas as
direções podem ser seguidas, onde o espaço do game, seja por barreiras invisíveis (no
caso das direções), seja por não fornecer opções de clique (no caso das portas e objeto)
estabelece uma jogabilidade no mundo. O espaço ficcional, por sua vez, advém desse
espaço, mas é reforçado, graficamente principalmente, no que as coisas significam, dá
nome ao lugar e retifica sua existência, seja por nomes, marcas, símbolos, ou outros
tipos de referências. Um exemplo claro que estabelece e distingue esses espaços e é
observável no game é o que há além do espaço jogável. A representação delimita um
espaço jogável no game, todavia, o jogador consegue observar que esse espaço é maior
do que a área a que ele é restringida, onde esse espaço além dialoga justamente com o
espaço fictivo, indicando que a historia do game, mesmo limitada aquele espaço naquele
momento, existe em um mundo maior, o gameworld não se restringe apenas a
jogabilidade aqui, mas ele carrega consigo o espaço da franquia, um mundo como o
nosso, com estradas, prédios, pessoas, as que sofre o apocalipse zumbi.
5- O espaço e o tempo como fatores retóricos
Entendendo as divisões do tempo e a divisão espacial nos games, assim como as
delimitando também em relação ao game The Walking Dead, busca-se observar como
esses elementos são articulados retoricamente, ou seja, como o tempo e o espaço são
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trabalhados para que se atinja o objetivo comunicacional do game, o de contar uma
história de terror e zumbis no universo da franquia de mesmo nome.
Começando pelo aspecto temporal, entende-se logo de início que, por se tratar
de um game com uma história e uma narrativa, é necessário a divisão entre momento de
jogo e ações (tempo de coordenação) e o tempo narrativo (tempo fictivo). Como Juul e
outros pesquisadores destacam, há uma incompatibilidade entre as ações em tempo
presente do jogar do jogador e a narrativa no passado. No caso do The Walking Dead,
que estipula uma forma de jogo nas escolhas do diálogo durante o tempo fictivo, essa
adaptação só é possível limitando o tempo de escolha a um tempo plausível de acordo
com a narrativa/cutscene.
Quando, no game, o jogador passa a ficar livre e controlar a personagem
principal, ele entra no tempo de coordenação. Aqui, por se tratar de um momento de
gameplay performático/ergótico nítido, ou seja, onde o jogador deve atuar e se esforçar
para desenvolver o game e superar os desafios do mesmo, os desenvolvedores optaram
por dar liberdade de tempo as habilidades de cada jogador, podendo levar o tempo que
for necessário para sua exploração. Teoricamente, o jogador poderia levar uma semana,
em tempo real, para sair de um determinado momento do game, o que não condiz em
nada com a narrativa proposta. Para corrigir tal problema, enquanto o tempo de
coordenação é ilimitado, o tempo do gameworld, que dá ambiência a história, é
congelado. Se, na narrativa, no tempo ficcional, um determinado evento acontece a
noite, embora o jogador gaste dias no tempo de coordenação para ativar tal evento, o
tempo de gameworld sempre manterá a ambiência noturna, parada, para manter a
ligação entre os mesmos.
Os tempos vão se conectando e avançando por gatilhos. No tempo de
coordenação, o jogador deve explorar o cenário, coletar objetos e conversar com outras
personagens, quando ele coleta determinado objeto, conversa com um número x de
pessoas ou se posiciona em determinado local, o game aciona um evento, que pode
permanecer no tempo de coordenação ou passar para o tempo fictivo. O tempo fictivo,
pelas cutscenes ou diálogos, desenvolve a história, desenvolve o tempo, progride, e
então retoma para o tempo de coordenação, que fica amarrado e significativo pelo
auxílio do tempo do gameworld. Essa utilização de gatilhos como despertadores de
eventos e de tempos diferentes, cria uma espécie de corrente temporal, e a progressão
temporal, além de ser indicada nas falas ou narrativa, é compreendida e percebida na
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superposição de eventos um após o outro. O tempo não é apenas informado ao jogador,
ele é emulado pela sequência de eventos.
O tempo também é utilizado como recurso para criar suspense e adrenalina na
história, de acordo com a temática apocalíptica. Durante os diálogos clicáveis nas
cutscnes, por exemplo, o tempo é variável de acordo com o que se está sendo dito, em
uma conversa calma e amigável, o jogador tem um período de escolha de ações maior,
enquanto que se estiver um uma conversa mais agressiva ou que esteja começando uma
briga, esse tempo vai se tornando mais reduzido, e o jogador deve tomar decisões
rápidas, normalmente não sendo as desejadas. Da mesma forma, quando o jogador está
enfrentando um oponente, como um zumbi, quanto mais próximo o inimigo estiver ou
mais machucado o personagem estiver, menor o tempo de sua ação.
O espaço, por sua vez, não só é capaz de produzir sensações como o tempo, mas
sua carga simbólica e significativa é muito maior, pelo fato de ele ser um elemento
visual no game. Os elementos visuais do game, sendo eles texturas, objetos, iluminação
e afins, estão ligados a noção de espaço representado, e atuam como criadores de
cenários e lugares, ou seja, espaços específicos. Esse tipo de espaço é utilizado em The
Walking Dead para dar o tom pós apocalíptico ao game, com destroços por todos os
lados, corpos esparramados, sangue em roupas e objetos, iluminação baixa, tudo
contribuindo para uma visão mórbida dos lugares. Esse espaço também é construído
com o auxílio de outros elementos que não apenas os objetos de cena, digamos assim,
como a aparição de personagens famosos da série de Tv e quadrinhos que indicam que o
cenário do game coincide com o da franquia, assim como nas falas das personagens a
citação de lugares reais, como Atlanta e Macon, cidades norte americanas, situando
também o jogador no mundo do game, que pretende ser uma cópia do mundo real.
Esse espaço representado, o espaço fictivo, como visto, possui um fator retórico
muito ligado ao simbolismo e aos significados, e ele é um fator determinante para aliar a
história narrada ao espaço de jogo, a representação espacial, amarrando a carga
significativa da história ao mesmo. Mas a representação espacial também possui uma
habilidade retórica própria que, como vimos, está ligado a limitação do jogador. Com o
espaço restringindo os lugares que o jogador pode explorar, ele serve como modo de os
desenvolvedores impedirem que a performance do jogador fuja a narrativa. Não se trata
de uma questão de diminuir as opções do jogador, mas te conte-las um universo
plausível de ação. No game, o jogador poderia, em tese, controlar a personagem para
seguir uma estrada e ver onde ela levaria, mas com essa decisão, todo o plot e a relação
169
programada e preparada com as outras personagens e os eventos para o local onde eles
estão seria perdido. Sem que seja necessário informar que o jogador não pode fazer essa
ação, é simplesmente negado o espaço, algumas vezes negado de forma coerente com a
narrativa, como um horda de zumbis bloqueando a estrada, ou destroços no caminho,
outras vezes de forma abrupta, simplesmente com paredes invisíveis, onde é mais
importante negar o espaço e manter o jogador em uma linha coesa com a história, do
que inventar um motivo para ele não poder seguir determinada direção.
Deve-se notar que, mesmo o espaço e o tempo funcionando como esses recursos
retóricos, eles não os produzem independentemente. Como pode ser percebido
repetidamente na fala desse autor, ambos atuam como formas de aliar a narrativa e a sua
história ao game e não, necessariamente, de criar a narrativa. Nesse quesito, o The
Walking Dead trabalha muito com o empréstimo comunicacional de outras mídias,
como os recursos de cena do cinema, roteiros, diálogos, entre outros.
A questão que se relaciona ainda com o espaço e o tempo, nos games, é que eles
são simulados e o jogador é colocado para atuar nos mesmos, ou seja, o jogador é
imerso em ambos. Assim, o tempo e o espaço além de casarem a narrativa com o game,
devem funcionar como recursos abarcadores do jogador e tornar a experiência do game
plausível, não apenas a sua história. A redução do tempo de escolha de clique do
jogador em momentos de tensão não é um recurso apenas para ressaltar que na história
ele teria apenas aquele tempo de pensamento, mas é para que o jogador se sinta também
pressionado. Da mesma forma que o jogador ser impedido de avançar por um lugar
devido a destroços não é apenas uma forma de manter o mesmo no espaço da história,
mas de fazer o jogador se sentir sem saída.
6- Conclusão
A ideia para escrever esse artigo e conduzir essa análise parte da relação e dos
sentimentos que o autor teve ao jogar o game The Walking Dead, procurando entender
os recursos que o mesmo dispôs para provocar tais sensações. Devido às limitações do
formato do artigo para a discussão, focou-se em certos elementos específicos, o tempo e
o espaço, mas deve ser feito a ressalva de que muitos outros recursos atuam ao mesmo
tempo, e que todos possuem sua relevância e utilidade na construção do game, da
mesma forma que mesmo a discussão sobre esses recursos não pode ser levada ao seu
total.
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O game The Walking Dead, assim como a empresa desenvolvedora, Telltale
Games, possuem a característica peculiar de focar o game na narrativa e utilizar o
recurso de escolhas para progressão da mesma. Nesse sentido, nota-se que a própria
questão do gênero do game, ou seja, sua proposta, já possui grande influência em como
certos recursos podem ou não ser utilizados. O foco na narrativa que os desenvolvedores
propõem, sendo assim, é de grande relevância nesse artigo, pois a narrativa por si
trabalha com uma história fixa, algo passado, que, para a transfiguração para o presente
de um game, necessita utilizar de forma coesa tanto o tempo como o espaço para se
justificar e se colocar diante o jogador.
Durante a análise, porém, era perceptível a dificuldade de se referir a esses
recursos e a sua aplicação sem mencionar outros. Embora a utilização de espaços e
tempos reduzidos ou a mudança de tempos em momentos diferentes servem como um
recurso retórico em The Walking Dead, essa observação acabou ficando direcionada a
relação estipulada pela narrativa com os mesmos, compreendendo o tempo e o espaço
como auxiliadores na manutenção da narrativa.
O fato de esses dois recursos terem os papéis de auxiliadores em The Walking
Dead não significa que essa é sua função nata. Como dito, o gênero e o estilo do game
condicionaram o uso desses elementos para isso. Outros tipos de games, com outras
propostas, outras interações, podem acarretar em novas utilizações ou ampliar as
possibilidades de ambos.
Uma observação interessante é que esses dois recursos só se apresentam como
recursos comunicacionais e retóricos pois, na mídia, o jogador é colocado como agente.
O fator performático é que liga os videogames a questão da capacidade de simulação,
que por sua vez, possui características próprias comunicacionais, como a criação de
experiências sensoriais, que despertam o uso desses tipos de recursos. Que leva a
mesma ideia também de imersão, quando se diz que um jogador se sente dentro do
game, é porque certos recursos são construídos e utilizados especificamente com esse
propósito, como o caso dos trabalhados aqui.
No caso do The Walking Dead, fica claro que a comunicação e os usos retóricos
ainda são emprestados e se encontram fortemente ligados a narrativa tradicional assim
como o uso da linguagem cinematográfica e do vídeo. A maioria dos recursos do
videogame, da mesma forma que o tempo e o espaço, são acoplados a esse formato
padrão, criando novas combinações, mas mantendo perceptível uma forma de contar
histórias já comum.
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Quando pesquisando e debatendo o tema do videogame, principalmente com um
foco comunicacional e acadêmico, uma das grandes dificuldades é a existência ou ao
menos uma linguagem comum sobre termos, elementos e recursos da mídia. Esse
trabalho, como já dito e referenciado, usa principalmente termos expressos por Aarseth
e Juul, que possuem também suas referências próprias. Deve se entender que mesmo
que haja variações de termos, esse trabalho procura servir como propagador dessa
linguagem, assim como aceita que haja variações e adaptações em outras pesquisas.
Durante a construção desse artigo, outra ideia que ficou clara em relação ao
tempo e espaço nos videogames é que eles são dois elementos manipuláveis. Diferente
do tempo e espaço de um livro ou filme, que é simplesmente criado e apresentado, nos
videogames, esses dois recursos não só podem se alterar em momentos diversos, como
eles podem ser manipulados tanto pelos desenvolvedores, como na criação dos gatilhos
em The Walking Dead, como pelos jogadores, como no tempo infinito de exploração
dos jogadores ou a capacidade de recomeçar um nível, onde o jogador molda o uso do
tempo de acordo com seu padrão de jogo.
Embora tenha ficado claro o reforço que esses elementos têm para a narrativa,
não ficou claro o seu potencial comunicacional no que diz respeito a mensagem em si.
Apesar do espaço fictivo apresentar uma carga significativa considerável, essa carga
advém mais da representação visual em si do que da noção espacial, da mesma forma
com o tempo, onde a percepção de uma mensagem ou de um conteúdo significativo a
partir dele é ainda menor do que o do espaço. Essa relação talvez aponte para o fato de
que os videogames, ou ao menos os recursos aqui analisados, tendem a atuar e serem
melhor aproveitados como elementos de simulação do que como elementos narrativos
ou de transmissão de mensagens.
A comunicação advenha do tempo e do espaço se coloca em um patamar mais
subliminar e, no caso dos videogames, se assimila muito com o tipo de comunicação
que os mesmos conseguem trabalhar com o uso de regras e objetivos. Não se trata de
uma comunicação direta, em se dizer o que está acontecendo, mas usar esses recursos
para estipular o que pode acontecer e como. Quando se delimita um local no espaço e
um tempo no gameworld, por exemplo, o game indica que tudo aquilo que possui de
relevância na história acontece nesse momento e nesse local, mais do que limitadores,
esses recursos atuam como foco ao jogador.
Por fim, espera-se que, com essa breve análise, esse artigo auxilie no debate da
mídia do videogame e que se torne mais claro quais recursos a mídia possui e de quais
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maneiras eles podem ser trabalhados. O game The Walking Dead faz uma junção
interessante de elementos fortemente narrativos, que normalmente colocam o jogador
em um cenário passivo, e elementos de jogabilidade e simulação, que atuam justamente
na direção oposta, tornando o jogador ativo. São justamente esses novos modos de
articular e trabalhar conteúdos que tanto esse artigo quanto a pesquisa desse autor
pretendem mostrar.
Referências
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Analysis. Disponível em: http://hypertext.rmit.edu.au/dac/papers/Aarseth.pdf Acesso
em 20 de fevereiro de 2015.
_______________. Cybertext: Perspective on ergodic literature. Maryland: The
Johns Hopkins University Press, 1997.
BJORK, Staffan e LANKOSKI, Petri. Game research methods. ETC Press, 2015.
FRASCA, Gonzalo. Play the Message: Play, Game and Videogame Rhetoric. 2007.
Tese de doutoramento em Filosofia. Copenhague: IT Universty of Copenhagen.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 6º ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
JUUL, Jesper. A clash between game and narrative. 1999 Tese de mestrado em jogos
de computadores e ficção interativa. Copenhague: Universty of Copenhagen.
MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. 12º
ed. São Paulo: Cultrix, 2002.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: O futuro do pensamento na era da
informática. 2º ed. São Paulo: editora34, 2010.
THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade: Uma Teoria Social da Mídia. 9º
ed. Petrópolis: Vozes, 2008
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