thesis 10.08.15 (palloma menezes _ vu) - VU-dare

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thesis 10.08.15 (palloma menezes _ vu) - VU-dare
Palloma Valle Menezes
ENTRE O “FOGO CRUZADO” E O “CAMPO MINADO”
uma etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas
Este trabalho é resultado de um doutorado desenvolvido em co-tutela entre a
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no Brasil, e a Vrije Universiteit
Amsterdam (VU Amsterdam), na Holanda. Este doutorado foi realizado no âmbito do
Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ), sob a orientação do Professor
Luiz Antonio Machado da Silva, e do Departamento de Antropologia Social e
Cultural (VU Amsterdam), sob a orientação do Professor Kees Koonings e da
Professora Marjo de Theije.
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Fiona Macaulay (University of Bradford)
Prof. Dr. Mattijs van de Port (Vrije Universiteit Amsterdam)
Prof. Dr Michiel Baud (Universiteit van Amsterdam)
Prof. Dr Martijn Koster (Universiteit Utrecht)
Prof. Dr Martijn Oosterbaan (Universiteit Utrecht)
_____________________________________________________________________
Menezes. Palloma Valle.
Entre o “fogo cruzado” e o “campo minado”: uma etnografia do processo de
“pacificação” de favelas cariocas/ Palloma Valle Menezes. Amsterdam, 2015.
1. Sociologia. 2. Sociologia Urbana. 3. Antropologia. 4. Antropologia Urbana
ISBN: 978-94-6299-159-0
Capa (Cover Design): Nikki Vermeulen
Fotografia da Capa (Cover Photo): Carlos Coutinho
Impresso por (Printed by): Ridderprint BV, Ridderkerk, the Netherlands.
VRIJE UNIVERSITEIT
Entre o “fogo cruzado” e o “campo minado”:
uma etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas
ACADEMISCH PROEFSCHRIFT
ter verkrijging van de graad Doctor aan
de Vrije Universiteit Amsterdam,
op gezag van de rector magnificus
prof.dr. F.A. van der Duyn Schouten,
in het openbaar te verdedigen
ten overstaan van de promotiecommissie
van de Faculteit der Sociale Wetenschappen
op maandag 21 september 2015 om 13.45 uur
in de aula van de universiteit,
De Boelelaan 1105
door
Palloma Valle Menezes
geboren te Rio de Janeiro, Brazilië
promotor:
copromotor:
prof.dr. C.G. Koonings
dr. M.E.M. de Theije
ABSTRACT
MENEZES, Palloma Valle. Between the "crossfire" and the "minefield": an
ethnography of the "pacification" process of Rio de Janeiro's favelas. 2015.
At the end of 2008, a new form of policing in Rio de Janeiro favelas profoundly
changed the routine and sociability of its residents. This mode of policing was called
Pacifying Police Unit (Unidade de Polícia Pacificadora, UPP). The main objective of
this dissertation is to analyze this project’s impacts on and consequences for the lives
of residents of "pacified" territories. Based on more than four years of ethnographic
fieldwork in the first two "pacified" favelas, namely Santa Marta and Cidade de Deus
(City of God), I take the UPP as a problematic object that is constantly inquired by
those who have been directly affected by it. The dissertation is, in this sense, a study
that focuses on the inquiries of those who lived the UPP as a problem. In conclusion, I
argue that one of the main consequences of the UPP implementation was a change in
the phenomenology of inhabiting the favela, a change that occurred mainly through
the emergence of what I call a "minefield" regime. I argue that the environment of
these favelas after "pacification" began to be characterized by the coexistence with
intensive fluctuations and creative arrangements between the old logic of the
"crossfire", based on the constant fear of shootouts, and the logic of the "minefield",
based on a constant monitoring of the environment and fear of possible
"contamination" generated by the contact between residents, police and drug
traffickers who now share the same territory 24 hours a day.
Keywords: violence, drug traffic, pacification, favelas, Rio de Janeiro.
SAMENVATTING
MENEZES, Palloma Valle. Onder "kruisvuur" en "mijnenveld": een etnografie van
het proces van "pacificatie" van Rio's favelas. 2015.
In het najaar van 2008 heeft een nieuwe werkwijze van de politie in de sloppenwijken
het dagelijks leven en sociabiliteit van de inwoners ingrijpend veranderd. Deze politie
aanpak heette Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). De belangrijkste doelstelling
van dit proefschrift is om de effecten en de gevolgen die dit project heeft gehad op het
leven van de bewoners van deze "gepacificeerde" gebieden te analyseren. Op basis
van bijna vier jaar veldwerk in de eerste "gepacificeerde" favela’s, namelijk Santa
Marta en Cidade de Deus, neem ik de UPP als een problematisch object dat
permanent wordt onderzocht door degenen die er rechtstreeks door getroffen zijn. Dit
proefschrift is daardoor een onderzoek dat zich richt op degenen die de UPP als een
probleem hebben ervaren. Als conclusie stel ik dat een van de belangrijkste effecten
van de uitvoering van de UPP een verandering was in de fenomenologie van het
bewonen van de sloppenwijken, een verandering die voornamelijk heeft
plaatsgevonden door de opkomst van wat ik het "mijnenveld" regime noem. Vanuit
dit perspectief stel ik voor dat de leefomgeving van deze favela’s na de "pacificatie"
wordt gekenmerkt door het samenleven van bewoners, politie en mensenhandelaars
die nu 24 uur per dag hetzelfde gebied delen. Daardoor ontstaan intensieve fluctuaties
en creatieve arrangementen, tussen de oude logica van "crossfire", op basis van de
voortdurende angst van schietpartijen, en de logica van het "mijnenveld", gebaseerd
op constante monitoring van de omgeving en de angst voor mogelijke "besmetting",
gegenereerd door het contact.
Trefwoorden: geweld, drugshandel, vrede, favela, Rio de Janeiro.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS
3
INTRODUÇÃO
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1. “ENTRANDO EM UM GRANDE TÚNEL ESCURO”
2. AS ROTINAS, OS TIROTEIOS E A “LEITURA DO CLIMA” DAS FAVELAS
3. A UPP COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO DE DIVERSOS ATORES
4. CAMINHOS E DILEMAS DO CAMPO
5. INVESTIGANDO OS “PROCESSOS DE INVESTIGAÇÃO” DA UPP: ROTEIRO DA TESE
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I. DA INDETERMINAÇÃO À PROBLEMATIZAÇÃO
47
1. DO PONTO DE VISTA DOS “INVASORES”
1.1. A VIOLÊNCIA URBANA COMO “UM PROBLEMA SEM SOLUÇÃO”
1.2. SANTA MARTA: QUANDO A FAVELA TORNA-SE UM “LABORATÓRIO”
1.3. CIDADE DE DEUS: “LABORATÓRIO” PARA “PACIFICAÇÃO” EM ÁREAS EXTENSAS
1.4. A EXPERIMENTAÇÃO DO PROJETO E A CRIAÇÃO DA MARCA UPP
1.5. OS CAMINHOS DA “PACIFICAÇÃO” E A FORMAÇÃO DO CONSENSO EM TORNO DAS UPPS
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2. DO PONTO DE VISTA DOS “INVADIDOS”
2.1. MAIS UMA “OPERAÇÃO POLICIAL NORMAL”?
2.2. A INAUGURAÇÃO DA UPP E O SURGIMENTO DE UMA “NUVEM DE ESPECULAÇÃO”
2.3. OS RUMORES COMO UM MECANISMO DE INVESTIGAÇÃO COLETIVA
2.4. MAPEAMENTO DOS RUMORES DA “PACIFICAÇÃO”
2.5. RUMORES COMO SÍNTESES DAS MUDANÇAS DOS PROBLEMAS PÚBLICOS NAS FAVELAS
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II – DA PROBLEMATIZAÇÃO AOS TESTES
107
3. ENTRE ORDENAMENTOS E RESISTÊNCIAS
3.1. NOVAS REGRAS E SEUS IMPACTOS NA ROTINA DAS FAVELAS “PACIFICADAS”
3.2. A INSTALAÇÃO DE CÂMERAS E O “BIG BROTHER SANTA MARTA”
3.3. “DURAS” CONSTANTES E O LANÇAMENTO DA CARTILHA DE ABORDAGEM POLICIAL
3.4. O CONTROLE DA VIDA CULTURAL NA FAVELA E A CRIAÇÃO DA RÁDIO SANTA MARTA
3.5. A REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS E ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES NA POLÍTICA NA FAVELA
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143
4. O PROBLEMA DA APROXIMAÇÃO NO “POLICIAMENTO DE PROXIMIDADE”
4.1. OS TRAUMAS DO PASSADO
4.2. MEDOS RELACIONADOS AO FUTURO DA UPP
4.3. AS “FERRAMENTAS DE APROXIMAÇÃO” UTILIZADAS EM ÁREAS “PACIFICADAS”
4.4. “ESSE É O BONDE DA PRISCILLA SE NÃO QUER, ENTÃO, REJEITA. UH, ACEITA!”
4.5. “ELA É MÃEZONA, MAS QUANDO É NECESSÁRIO, BATE FEITO HOMEM”
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176
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III. DOS TESTES À ESTABILIZAÇÃO
189
5. MONITORAMENTO E CONTAMINAÇÃO
5.1. “NA FAVELA, TÁ TUDO MONITORADO”
5.2. “AGORA É GATO E RATO”
5.3. O PERIGO DA “CONTAMINAÇÃO”
5.4. EVITANDO FALAR SOBRE E COM POLICIAIS E TRAFICANTES
5.5. QUANDO O CONTATO É INEVITÁVEL: COMO TENTAR NÃO SE CONTAMINAR?
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216
6. MAPEAMENTO E ROTINIZAÇÃO
6.1. “EDUCANDO A ATENÇÃO” PARA “NAVEGAR” NO NOVO AMBIENTE DA FAVELA
6.2. POLICIAIS MAPEIAM MORADORES E TRAFICANTES
6.3. MORADORES MAPEIAM POLICIAIS E TRAFICANTES
6.4. TRAFICANTES MAPEIAM POLICIAIS E MORADORES
6.5. A ROTINIZAÇÃO E A “ACOMODAÇÃO” TEMPORÁRIA DOS CONFLITOS
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257
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IV. DA ESTABILIZAÇÃO ÀS NOVAS INDETERMINAÇÕES
265
7. NOVAS OPORTUNIDADES E PREOCUPAÇÕES PÓS-UPP
7.1. “A GENTE NÃO QUER FALAR DE POLÍCIA... A GENTE QUER MUDAR O FOCO”
7.2. PERCEPÇÕES SOBRE A UPP SOCIAL E OS TERRITÓRIOS DA PAZ
7.3. “SERÁ QUE AINDA ESTAREMOS AQUI QUANDO AS OLIMPÍADAS CHEGAREM?”
7.4. A “INVASÃO” DE TURISTAS EM FAVELAS “PACIFICADAS”
7.5. QUANDO O MERCADO “INVADE” A FAVELA
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267
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272
277
281
8. NOVAS INSEGURANÇAS EM “TEMPOS DE PAZ”
8.1. “TEM UM TARADO RONDANDO NA FAVELA”
8.2. DIFERENTES VERSÕES PARA EXPLICAR O “SUMIÇO DO TARADO”
8.3. “ESTÃO ROUBANDO ATÉ CUECA DO VARAL”
8.4. DA ANOMALIA À ESTATÍSTICA
8.5. “A UPP SERVE PARA QUE, SE AGORA ESTÁ TENDO ESTUPRO E ROUBO NA FAVELA?”
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V. DAS NOVAS INDETERMINAÇÕES ÀS NOVAS INVESTIGAÇÕES
317
9. O (RE)TENSIONAMENTO DO CLIMA NAS FAVELAS “PACIFICADAS”
9.1. A PRESENÇA AUSENTE DA MILÍCIA EM FAVELAS COM UPP
9.2. O (RE)FORTALECIMENTO DO TRÁFICO
9.3. A VOLTA DA CORRUPÇÃO POLICIAL
9.4. A “CRISE” DAS UPPS
9.5. “ESTÁ TUDO VOLTANDO A SER COMO ANTES”
319
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335
340
345
10. SOCIOLOGIA DA CRÍTICA ÀS UPPS
10.1. O DESARMAMENTO DA CRÍTICA E DO TRÁFICO EM ÁREAS “PACIFICADAS”
10.2. O CONSENSO EM TORNO DAS UPPS
10.3. O SILENCIAMENTO DA CRÍTICA AO PROJETO
10.4. O REARMAMENTO DA CRÍTICA E DO TRÁFICO
10.5. O FIM DO CONSENSO E A POLARIZAÇÃO DA CRÍTICA ÀS UPPS
353
353
356
360
368
376
CONSIDERAÇÕES FINAIS
391
1. AS MÚLTIPLAS CAMADAS DE VIGILÂNCIA QUE SE SOBREPÕEM NAS FAVELAS “PACIFICADAS”
2. A CONTINUIDADE DA EXPERIÊNCIA DE “VIDA SOB CERCO” PÓS-“PACIFICAÇÃO”
3. DO “TÁ TUDO DOMINADO” AO “TÁ TUDO MONITORADO”
4. O REGIME DE “CAMPO MINADO”
5. ENTRE O “FOGO CRUZADO” E O “CAMPO MINADO”
391
394
396
400
404
REFERÊNCIAS
409
ANEXOS
425
CONTENTS
ACKNOWLEDGEMENTS
3
INTRODUTION
11
1. "ENTERING A LONG AND DARK TUNNEL”
2. ROUTINE, SHOOTINGS AND THE FAVELA “MEASUREMENTS OF CLIMATE"
3. THE UPP AS OBJECT OF INQUIRY OF DIFFERENT ACTORS
4. FIELDWORK PATHS AND DILEMMAS
5. INQUIRING THE UPP'S “INQUIRY PROCESSES”: DISSERTATION ROADMAP
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37
I. FROM INDETERMINATION TO PROBLEMATIZATION
47
1. FROM THE POINT OF VIEW OF THE “INVADERS”
1.1. URBAN VIOLENCE AS "A PROBLEM WITHOUT SOLUTION"
1.2. SANTA MARTA: WHEN THE FAVELA BECOMES A "LABORATORY"
1.3. CITY OF GOD: "LABORATORY" FOR “PACIFICATION” IN LARGE AREAS
1.4. A PROJECT TRIAL AND THE CREATION OF THE UPP BRAND
1.5. PATHS OF "PACIFICATION" AND CONSENSUS FORMATION AROUND UPPS
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77
2. FROM THE POINT OF VIEW OF THE “INVADED"
2.1. ONE MORE "NORMAL POLICE OPERATION"?
2.2. THE ARRIVAL OF UPP AND THE EMERGENCE OF A "CLOUD OF
SPECULATIONS"
2.3. RUMORS AS A COLLECTIVE INQUIRY TOOL
2.4. MAPPING RUMORS. OF “PACIFICATION’
2.5. RUMORS AS SYNTHESIS OF SHIFTS IN PUBLIC PROBLEMS IN THE FAVELA
83
83
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94
103
II – FROM PROBLEMATIZATION TO TESTS
107
3. BETWEEN ORDER AND RESISTANCE
3.1. NEW RULES AND ITS IMPACTS ON THE ROUTINES OF "PACIFIED" FAVELAS
3.2. THE INSTALLATION OF CAMERAS AND "BIG BROTHER SANTA MARTA"
3.3. CONSTANT STOP-AND-FRISKS AND THE LAUNCH OF A GUIDE TO DEALING
WITH THE POLICE
3.4. THE CONTROL OF CULTURAL LIFE IN THE FAVELA AND THE
ESTABLISHMENT OF THE SANTA MARTA RADIO STATION
3.5. REGULARIZATION OF SERVICES AND SOME SHIFTS IN POLICY IN THE
FAVELA
109
109
113
4. THE PROBLEM OF RAPPROACHMENT IN "PROXIMITY POLICING"
4.1. TRAUMAS OF THE PAST
4.2. FEARS RELATED TO THE FUTURE OF THE UPP
4.3. “TOOLS OF RAPPROACHMENT” USED IN “PACIFIED” AREAS
4.4. “THIS IS PRISCILLA’S GANG, IF YOU DON’T WANT IT, THEN REJECT IT!
[OH,] ACCEPT IT!”
4.5. “SHE’S A SUPERMOM, BUT WHEN NEED BE, SHE HITS LIKE A MAN”
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III. FROM TESTS TO STABILITILY
189
5. MONITORING AND CONTAMINATION
5.1. "THE FAVELA IS UNDER INTENSIVE SURVEILLANCE"
5.2. "NOW IT IS A CAT-AND-MOUSE GAME"
5.3. THE DANGER OF "CONTAMINATION"
5.4. AVOIDING TALK ABOUT AND TALK WITH POLICE AND DRUG DEALERS
5.5. WHEN CONTACT IS INEVITABLE: HOW TO PREVENT CONTAMINATION?
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205
211
215
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6. MAPPING AND ROUTINIZATION
6.1. THE “EDUCATION OF ATTENTION” TO "NAVIGATE" IN THE NEW FAVELA
ENVIRONMENT
6.2. COPS MAP RESIDENTS AND DEALERS
6.3. RESIDENTS MAP COPS AND DEALERS
6.4. DEALERS MAP COPS AND RESIDENTS
6.5. THE ROUTINIZATION AND THE TEMPORARY ACCOMMODATION OF
CONFLICTS
229
IV. FROM STABILITY TO NEW FORMS OF INDETERMINATION
265
7. OPPORTUNITIES AND CONCERNS AFTER UPP
7.1. "WE DO NOT WANT TO TALK ABOUT THE POLICE ... WE WANT TO CHANGE
OUR FOCUS"
7.2. PERCEPTIONS OF "UPP SOCIAL" AND "TERRITÓRIOS DA PAZ"
7.3. WILL WE WILL BE HERE WHEN THE OLYMPIC GAMES HAPPEN?
7.4. THE "INVASION" TOURISTS IN "PACIFIED" FAVELAS
7.5. WHEN THE MARKET "INVADES" THE FAVELA
267
8. NEW INSECURITIES IN "TIMES OF PEACE"
8.1. "THERE IS A PERVERT PROWLING THE FAVELA"
8.2. DIFFERENT VERSIONS TO EXPLAIN THE PERVERT'S DISAPPEARANCE"
8.3. “PEOPLE ARE EVEN STEALING UNDERWEAR OFF CLOTHESLINES”
8.4. FROM ANOMALY TO STATISTICS
8.5. "WHAT'S THE USE OF THE UPP IF RAPE AND ROBBERIES ARE HAPPENING
IN THE FAVELA”?
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301
306
V. FROM NEW FORMS OF INDETERMINATION TO NEW INQUIRIES
317
9. THE (RE) STRENGTHENING OF THE "PACIFIED" FAVELA CLIMATE
9.1. THE [ABSENT] PRESENCE OF MILITIAS IN "PACIFIED" FAVELAS
9.2. THE (RE) STRENGTHENING OF DRUG TRAFFICKING
9.3. THE RETURN OF POLICE CORRUPTION
9.4. THE "CRISIS" OF THE UPPS
9.5. "EVERYTHING IS GOING BACK TO HOW IT USED TO BE"
319
319
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340
345
10. A SOCIOLOGY OF CRITICISM REGARDING UPPS
10.1. DISARMAMENT OF CRITICISM AND DRUG TRAFFICKING IN “PACIFIED”
AREAS
10.2. THE CONSENSUS AROUND UPPS
10.3. SILENCING CRITICISM REGARDING UPP
10.4. THE REARMAMENT OF CRITICISM AND DRUG TRAFFICKING
10.5. THE END OF CONSENSUS AND THE POLARIZATION OF CRITICISM
REGARDING UPP
353
CONCLUSIONS
391
1. MULTIPLE LAYERS OF SURVEILLANCE IN "PACIFIED" FAVELAS
2. THE CONTINUITY OF THE "LIFE UNDER SIEGE" EXPERIENCE AFTER
"PACIFICATION"
3. FROM "EVERYTHING IS DOMINATED" TO "EVERYTHING IS MONITORED"
4. THE "MINEFIELD" REGIME
5. BETWEEN THE "CROSSFIRE" AND THE "MINEFIELD"
391
394
396
400
404
REFERENCES
409
APPENDIX
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229
231
247
257
262
267
269
272
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353
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360
368
376
Aos meus pais, Yanne e Diogo.
A três famílias que admiro muito e que fizeram eu me sentir em casa no Santa Marta e
na Cidade de Deus: a de Dona Francisca, a de Zé Baixinho e a de Gilcinei.
2 AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer aos meus orientadores. Luiz
Antonio Machado da Silva, desde o mestrado, sempre me apoiou, acreditou no meu
trabalho e me deu a liberdade que eu precisava para a realização desta tese. Admiro
muito a força e o entusiasmo de Machado e sou muito grata por tudo que aprendi com
ele ao longo dos últimos oito anos. Desejo vida longa à nossa interlocução.
Sou muito grata à Marjo por ter viabilizado minha ida à Vrije Universiteit
(VU) Amsterdam durante o doutorado sanduíche, por ter me recepcionado com tanta
atenção e carinho e ainda por ter me convidado a fazer uma co-tutela (ou doutorado
duplo) entre a UERJ e a VU. Marjo desde 2011 acompanha de perto a produção dessa
tese, assim como Kees Koonings, que ajudou muitíssimo no desenvolvimento dos
argumentos que apresento nesse trabalho. Agradeço aos dois pelas diversas reuniões
que tivemos em Amsterdam, em Bogotá, no Rio e via Skype.
Queria agradecer também à Bianca Freire-Medeiros por ser minha maior
incentivadora, parceira e interlocutora na academia. Foi por “culpa” dela que me
apaixonei por fazer trabalho de campo e resolvi dedicar-me integralmente às ciências
sociais. Bianca sempre me inspira a ser uma socióloga mais competente e uma pessoa
melhor. Os alunos da USP têm muita sorte por contar com ela como professora agora.
Agradeço muitíssimo à professora Patrícia Birman (que tanto admiro), à
professora Marcia Leite (que é uma referência importante para o meu trabalho) e aos
professores Gabriel Feltran e Michel Misse por, gentilmente, aceitarem compor a
banca da minha defesa de tese no Rio de Janeiro. Agradeço ao professor Adalberto
Cardoso e à professora Mariana Cavalcanti, que aceitaram ser suplentes da banca da
UERJ. Gostaria também de agradecer à professora Fiona Macaulaye e aos professores
Mattijs van de Port, Michiel Baud, Martijn Koster e Martijn Oosterbaan por aceitarem
compor a banca da minha defesa de tese em Amsterdam.
Expresso meus agradecimentos a CAPES e a FAPERJ que financiaram esta
pesquisa em diferentes momentos, bem como ao CNPq, que me concedeu um ano de
bolsa sanduíche. Assim como ao Drugs, Security and Democracy (DSD) Program, ao
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) e à Foundation for Urban
and Regional Studies (FURS), que financiaram diferentes partes da minha pesquisa de
doutorado.
3 Agradeço ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e ao Department of Social and Cultural Anthropology da
Vrije Universiteit Amsterdam, que me propiciaram excelentes condições de trabalho
para o desenvolvimento da tese. Não poderia deixar de agradecer à Annet, que tanto
me ajudou na VU, e a todos os funcionários do IESP, que sempre foram muito
solícitos e carinhosos comigo. Agradeço muitíssimo à Claudia Boccia por ter feito a
revisão dessa tese. Guardo enorme carinho por Florita, Bia, Angela, Lia, Simone,
Paulinha, Romário, Lula, Ricardinho, Márcio, Renato, e, em especial, Cristiana e
Carol – de quem tanto sinto falta.
Essa tese é resultado de muitas trocas. Sou imensamente grata aos moradores
do Santa Marta e da Cidade de Deus que se dispuseram a dividir suas histórias de vida
comigo. Agradeço especialmente à família da Natalia Urbina, que me alugou um
quarto no primeiro mês que morei no Santa Marta; à Dona Francisca, que me acolheu
como uma filha em sua casa e tornou-se um exemplo de garra para mim; à Simone,
com quem tive o privilégio de conviver de perto por muitos meses e que hoje se
tornou uma grande amiga; à Juliana, que também me acolheu sempre com um lindo
sorriso no rosto; ao Zé Baixinho, à Dona Laura, à Márcia, ao Mário, ao Marcelo, à
Marcelinha, ao Guilherme e à Sofia, que formam uma família que muito admiro. Sou
muito grata por todo o acolhimento que eles sempre me oferecem.
Queria agradecer também ao rapper Fiell, que confiou em mim e me abriu
tantas portas na favela. Sou especialmente grata ao Fiell e à Natália pela oportunidade
de ter participado da Rádio Santa Marta. Agradeço a todos companheiros de Rádio
por tudo que me ensinaram. Acompanhar diariamente o funcionamento da rádio foi
uma das experiências mais interessantes e prazerosas que tive em campo.
Sou grata também ao Itamar Silva, liderança tão importante dentro e fora do
Santa Marta, por todas as reuniões e eventos que tive a oportunidade de participar no
Grupo Eco. Agradeço também ao Juan e, especialmente, à Dorlene por sempre me
receberem com carinho no Eco. Fico muito feliz de saber que, em breve, Dornele será
minha colega de profissão. Sabemos que a academia precisa de mulheres
competentes, inteligentes e engajadas como ela, que contribuirão para a redução das
enormes desigualdades que ainda existem nesse país.
Agradeço à Sheila por toda interlocução, por tudo que aprendi e sempre
continuo aprendendo com ela que é turismóloga, guia, liderança, mãe, mulher e um
exemplo para mim. Admiro muito também Vitor Lira e desejo que ele e outros
4 moradores do Pico do Santa Marta consigam permanecer no alto do morro onde teve
início a história da favela. Como Vitor sempre defende, a luta do Pico deveria ser uma
luta não só dos moradores daquela área que corre o risco de ser removida pelo
Governo do Estado, mas de todo o Santa Marta e de toda a cidade do Rio de Janeiro.
Agradeço aos outros membros do Comitê de Turismo que sempre me ajudaram muito
em minha pesquisa: Gilson, Thiago, Salete e Verônica. E agradeço ainda ao Zé Mário
por ter conversado comigo tantas vezes ao longo do trabalho de campo. As várias
entrevistas que fiz com ele, em diferentes momentos da pesquisa, foram fundamentais
para o desenvolvimento dessa tese.
Na Cidade de Deus tive, a honra de ser acolhida pela família de Gilcinei.
Agradeço ao Gil por tudo que fez por Diogo e por mim ao longo dos últimos anos.
Agradeço também ao amigo Jonathan, por aceitar conversar comigo tantas vezes de
forma tão sincera e aberta. E também aos queridos Wallace, Lidiane, Rômulo,
Messias, Carlinhos, Beto e Ginha.
Agradeço aos policiais que se dispuseram a conversar comigo tanto no Santa
Marta, como na Cidade de Deus e no Parque Proletário. E não posso deixar de
expressar a minha enorme gratidão aos jovens envolvidos com tráfico, cujos nomes
não posso revelar, que aceitaram ser entrevistados e me contar suas histórias de vida.
Não podia deixar de agradecer ao Carlos Coutinho por ter autorizado que eu
usasse a incrível fotografia que estampa a capa deste trabalho. Desejo que esse
talentoso fotográfo continue usando sua câmera fotográfica como arma para fazer
política dentro e fora da favela.
Além das trocas feitas durante o trabalho de campo, eu não poderia deixar de
destacar a enorme importância da interlocução com outros pesquisadores que vêm
contribuindo para enriquecer o campo de estudos em que me encontro inserida.
Agradeço a todos os colegas do CEVIS: Luisinho, Marcia, Machado, Lia, Mariana,
Christina, Jussara, Wania, Cesar, Fabio, Carla, Juliana, Dinaldo, Claudia, Marcella,
Monique, Bruno, Frank e Wellington. As reuniões semanais do CEVIS foram
essenciais para a minha formação ao longo dos últimos anos e foram importantíssimas
para o desenvolvimento dessa tese.
Agradeço à professora Licia Valladares, que é uma importante referência para
mim, pela oportunidade de trabalhar no Urbandata. Sou muito grata às queridas
colegas com quem muito aprendi neste trabalho: Lidia Medeiros, Filippina Chinelli,
Claudia Cruz, Raíza Siqueira e Joice Campos. Gostaria de agradecer ainda ao
5 competentíssimo Alexandre Magalhães, com quem fiz graduação, mestrado,
doutorado, trabalhei no Urbandata e espero ter a oportunidade de voltar a trabalhar
junto em um futuro próximo.
Agradeço ao Professor Ricardo Benzaquen de Araújo e a todos colegas de
turma pelas contribuições dada para que eu começasse a desenhar minha pesquisa
durante o Seminário de Projeto de Tese que fiz em 2009. Sou muito grata ao professor
Adalberto Cardoso e às professoras Marcia Leite e Bianca Freire-Medeiros por todas
as contribuições que deram durante a qualificação dessa tese; posteriormente, José
Maurício Domingues e todos colegas que fizeram Seminário de Tese comigo por
contribuírem debatendo alguns capítulos deste trabalho.
No início do doutorado, Machado fez reuniões com todos os seus orientandos,
que foram muito proveitosas para mim. Agradeço aos colegas Rodrigo de Castro,
Alexis Cortés, Marília Silva e Roberta Pedrinha, que dividiram esse momento comigo.
No fim do ano passado, Machado voltou a organizar essas reuniões, dessa vez, junto
com os orientandos de Mariana Cavalcanti e integrantes do Laboratório de Estudos
Urbanos (LEU) da Fundação Getúlio Vargas. Sou muito grata por ter tido a
oportunidade de apresentar no grupo uma versão quase final dessa tese. As
contribuições de Machado, Mariana, Marcella Carvalho, Bruno Coutinho e de todos
os outros presentes foram muito importantes no momento de finalização desse
trabalho. Agradeço também ao Alexandre Werneck pelas referências goffmanianas.
Agradeço ao Marcio Grijó pela pesquisa realizada junto com Bianca sobre
turismo nas favelas “pacificadas”; à Diana Lima, à Wania Mesquita, à Fátima
Cecchetto e à Juliana Corrêa pelas conversas sobre o impacto das UPPs na vida dos
jovens do Santa Marta e do Complexo do Alemão; ao Rafael Soares Gonçalves por
ter me convidado a debater essa tese no LEUS; ao querido Nicolas Bautès e à Marie
Morelle por terem me convidado para participar das jornadas de estudo "Ville et
informalité politique au Brésil " em maio de 2014, em Paris. Agradeço a todos que
participaram das jornadas e, em especial, aos comentários de Géraldine Bugnon (que
foi minha debatedora) e de Caterine Reginensi. Sou grata também pelos comentários
de Gabriel Feltran e Carolina Grillo, que já eram importantes referências
bibliográficas para mim, mas que tive o grande prazer de conhecer em Paris.
Agradeço à querida Taniele Rui que conheci no México e me encantei por seu
talento e carisma; à Fraya Frehse e à Julia O'Donnell pelas contribuições que deram
ao meu trabalho no úlimo encontro da Anpocs. Queria agradecer à Lia Rocha pela
6 oportunidade de apresentar meu trabalho no Cidades. Foi muito importante para mim
apresentar alguns capítulos dessa tese nesse grupo que reúne tantos pesquisadores
talentosos. Agradeço especialmente ao Frank Davies, à Monique Carvalho, à Sara
Koenders e à Marcia Leite pelo incrível debate que tivemos sobre as UPPs em
dezembro de 2014 na UERJ. E também à queridíssima e super competente Carla
Mattos que participou desse debate e, como sempre, me deu excelentes ideias que
foram incorporadas à essa tese.
Agradeço a pessoas queridas que tive a oportunidade de conhecer entre o
mestrado e doutorado: ao admirável Carlos Pinho, ao divertido Thiago Nasser, ao
querido Tomas e ao saudoso amigo Fernando Randau. Sem falar nas meninas do meu
coração que o IUPERJ me deu e que nunca mais vou largar: Kelly Pedroza, Juliana
Baghdadi, Juliana Candian e também Laura e Dora que fazem nossos “muros” serem
menos de lamentação e mais de celebração.
Agradeço ainda aos amigos da UERJ que tanto admiro e quero sempre ter por
perto. À Mayra e ao Paulo Victor, que sinto tanta falta no meu dia a dia. À Rachel
Barros, pela visita em Amsterdam que nunca vou esquecer e por fazer eu sempre me
sentir tão bem quando ela está por perto. À Juliana Farias, por ser um exemplo para
todos nós e uma festa em pessoa. À belíssima Fabiene Gama, pelo iluminado e lindo
apartamento que me passou em Paris e por fazer parte da minha vida apesar da
distância. Ao Cesar Teixeira, amigo que desde a graduação admiro profundamente e
com quem sei que sempre posso contar.
Sou grata ainda às alegrias e aos amigos que Amsterdam me deu: Fabio, que
se tornou um irmão do coração para mim; Tiago e Yaron, que sempre me acolheram
com tanto amor e ainda me emprestaram a linda casa deles na Holanda, Stella, Letícia
e Karina, com quem compartilhei tantas descobertas e alegrias; mais uma vez Sara, a
holandesa mais brasileira que já conheci, sempre tão carinhosa e parceira; linda Maja,
com quem dividi sala, dúvidas, experiências e risadas; Joan, pelas visitas a nossa sala
que sempre alegravam nossos dias de trabalho na VU; Maaike Matelski, que teve
confiança para me deixar cuidar de sua casa e de seus gatos.
Agradeço às meninas queridas que tive a sorte de conhecer através de Bianca.
Tenho orgulho de dizer que depois de quase dez anos de convivência, Alyssa
Medeiros se tornou uma amiga que admiro muito e que quero ter por perto a vida toda.
Fernanda Nunes que, além de competente colega de trabalho, também é uma amiga
querida para mim. Queria agradecer à Fernanda e também à Gabriela pelo carinho de
7 sempre e por terem me ajudado muitíssimo nas transcrições das muitas entrevistas
que fiz ao longo dos últimos anos.
Não poderia deixar de agradecer também à minha talentosa amiga Clarissa; à
Poliana, que desde a infância faz parte da família; à minha afilhada Kiane, que tanto
me dá orgulho; às amadas primas Mônica e Mirella, aos primos Mauro, Maurício,
Luizinho e Lucas; às primas lindinhas Bia, Olívia, Laura, Duda e Manu; ao João e à
Vallentina que ficarão para sempre em meu coração; às tias Maricy, Odete, Elciette,
Elza, Otília e Ruth; ao tio Edson e ao Gustavo, meu primo querido; à dindinha Julia,
que sempre é tão carinhosa comigo e ao meu padrinho Graciano; ao Radetic e à
Therezinha que sempre torcem por mim; às queridas Margot, Fátima, Daiane e
Hildeni que sempre cuidaram e ainda cuidam da nossa família com tanto carinho.
Queria expressar minha eterna gratidão pelos meus avós. À vó Zezé, que é
sempre tão animada, alegre e divertida; ao vó Murillo, que foi um ótimo avô e sempre
nos incentivou a viver cada momento ao máximo; à vó Salette, que é um exemplo de
força e que sempre me cobre de carinho. Tenho gratidão especial por ter tido a
oportunidade de compartilhar o resultado da defesa dessa tese no Rio de Janeiro com
meu vô Menezes. Aos 94 anos, ele me emocionou muito por ter passado o dia 30 de
março de 2015 torcendo por mim da casa dele. Quando liguei para ele contando que
tinha dado tudo certo, tive a grata surpresa de ouví-lo muito lúcido e orgulhoso
dizendo que a próxima etapa seria a defesa na Holanda. Infelizmente, não poderei
ligar para ele para contar o resultado dessa segunda defesa. Mas certamente vou
lembrar dele com muito carinho nesse e em muitos outros momentos importantes da
minha vida que ainda estão por vir.
Agradeço ao Diogo pela inestimável parceria ao longos dos últimos três anos e
à família dele que também passou a ser minha. Sempre serei grata à Célia, ao Paulo, à
Edir, ao Nelson, à Eliette, à Kátia, à Bia, ao Rodrigo, à Karina, ao Thiago, à Mimi, à
Gigi, ao Lukas, ao Bruno, ao Brian, ao Oliver e também ao Willy. Não poderia deixar
de dizer que sem o Diogo, a minha vida e essa tese não seriam as mesmas. Diogo
abriu portas para que eu fizesse trabalho de campo na Cidade de Deus e rapidamente
se tornou um ótimo companheiro de trabalho de campo. Além disso, quando nos
afastamos do campo para produzir nossas teses, ele tornou-se um excelente parceiro
de escrita. Muitas das ideias presentes nesse trabalho foram desenvolvidas a partir de
conversas que tivemos em St. Louis, em Amsterdam, em Paris e no Rio. Tenho
certeza que a nossa história não acaba com o fim de nossas teses.
8 Por fim, queria dedicar essa trabalho aos meus pais, Alfredo e Cyrene, por
sempre me incentivarem, me darem apoio em todos os sentidos e toda a liberdade do
mundo. Minha mãe é a pessoa mais carinhosa, sensível e doce que já conheci. Desde
pequena, ela sempre me incentivou a escrever, fotografar, criar e acreditar nos meus
sonhos. Meu pai, com seu jeito alegre, brincalhão e extrovertido, sempre nos ensinou
o valor do trabalho, dos estudos, sem deixar de repetir a cada encontro que “o
importante na vida é ser feliz”. Queria agradecer ainda aos meus pais pelo maior
presente que eles me deram na vida: Yanne, minha irmã, amiga que tanto amo e
admiro. Agradeço à Yanne por tudo que em ensina todos os dias, por toda paciência,
por todo o companheirismo, por me entender e me aceitar como eu sou. Tenho muito
orgulho da nossa família e essa tese, sem duvida, é resultado de todo o investimento
intelectual e emocional que, nas últimas três décadas, fizemos juntos.
9 10 INTRODUÇÃO
1. “Entrando em um grande túnel escuro”
Bom, eu vou ser breve, mas vou contar um pouquinho da história. Em
novembro de 2008 chegou um aparato policial muito grande aqui no Santa
Marta. Nós achávamos que era uma incursão (...). Aí eu fui procurar saber
o que estava acontecendo. Como presidente da associação, o pessoal vinha
me procurar. O secretário falou assim: “não, Zé Mário, isso aqui não é uma
incursão, não. Isso aqui foi a chegada da polícia para nunca mais sair daqui
do Santa Marta.” Aí eu cheguei para o governador e falei: “governador,
isso não é politicagem para a comunidade não, né?” Porque nós já
tínhamos sofrido em 1999 com o Bope uma ocupação também. Duraram
nove meses na comunidade e quando o Bope saiu do morro não falou nada
para ninguém. Saiu saindo, a comunidade ficou à mercê de invasões,
pessoas morreram, pessoas perderam casas. (Trecho de um discurso de Zé
Mário Hilário, presidente da Associação de Moradores do Santa Marta1)
Quando a UPP chegou, eu me lembro! Foi a maior correria! Nós não
sabíamos, não estávamos programados. Estávamos dormindo em casa com
fuzil. Perdemos amigos para caramba. Morreram uns 9 nesse dia (…). Nós
estávamos acostumados com a favela tranquila. Sempre amanhecia
arregadona. Então, nós chegávamos, deitava na cama, deixava o fuzil de
um lado, pistola do outro, e ia dormir. Acordava, tomava banho, escovava
o dente, botava o fuzil do lado, ligava a moto e saía para começar a colocar
a boca para funcionar. Quando eu fui fazer isso, vi o Caveirão e falei: “ih,
caralho”! Já desliguei a moto, fui pelo cantinho da parede, entrei em casa
de novo e já acordei meus parceiros e falei: “qual foi, mano? Os canas
estão aqui na favela”. (...) Papo vai, papo vem, liga para um, liga para
outro (…) e para tirar os negócios [armas e drogas] de dentro da casa?
Maior adrenalina doida, acordamos todo mundo. Moravam quatro
moleques comigo: “vambora, vambora. Liga para fulana de tal, cicrana,
mulher, prima, o que der para elas irem levando aos poucos”. Então, foi
assim: UPP entrou, vários amigos dormindo, os canas invadiram, viram o
fuzil do lado e nem esperou falar nada (…). No dia que a UPP chegou
morreram uns 9 (…). A gente achava que era uma operação policial
normal. (Trecho de entrevista com um traficante da Cidade de Deus)
A gente não sabia o que estava acontecendo. O dia que teve a invasão, eu
saí para trabalhar e vi vários policiais entrando. Eu pensei que fosse uma
incursão, uma blitz, só. Mas depois eu soube que foi na Cidade de Deus
toda. Via muitos carros do Bope, mas ninguém tinha ideia. [...]. Tanto que
os caras [envolvidos com a venda de drogas na favela] acreditavam que
eles [os policiais] não iam ficar. (...) Os caras só levaram fé naquilo ali
quase um mês depois. Os caras viram que não tinha mais jeito, que ela ia
ficar definitivamente. Ali eles acordaram... Mas no início, nem os policiais
sabiam, nem os caras da milícia sabiam. (Trecho de entrevista com
morador da Cidade de Deus)
1
Trecho do discurso feito por Zé Mário durante a inauguração do Projeto Rio Top Tour, realizada no
dia 30 de agosto de 2010 na Quadra da Escola de Samba Mocidade Unida do Santa Marta.
11 Em novembro de 2008, quando a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
ocupou a Cidade de Deus e o Morro Santa Marta, lideranças comunitárias, moradores
e jovens que atuam (ou atuavam) no comércio varejista de drogas ilegais pensaram
estar diante de apenas mais uma “operação policial normal”. A ação da polícia nesses
territórios, a princípio, parecia seguir o mesmo roteiro das incursões que há algumas
décadas vinham reiteradamente ocorrendo nas favelas cariocas.
Como de costume, policiais fortemente armados entraram nas duas favelas
contando com o fator surpresa e encontraram a resistência de traficantes. Trocaram
tiros – seguidos de mortes no caso da Cidade de Deus –, efetuaram prisões em
flagrante e apreenderam drogas e armas. Apenas o último elemento do roteiro “padrão”
das operações policiais de praxe nas favelas não fez parte da ação realizada em
novembro de 2008: dessa vez a polícia não se retirou dos territórios alguns dias após o
início da incursão.
Em um primeiro momento, ninguém entendeu muito bem o sentido da polícia
permanecer na favela. Os repertórios habituais de que dispunham os moradores dessas
localidades não auxiliavam nesse trabalho interpretativo. Não havia informações
oficiais disponíveis sobre o que estava ocorrendo ou iria ocorrer. Inicialmente, não
houve qualquer anúncio de que seriam inauguradas no Santa Marta e na Cidade de
Deus as duas primeiras Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) da cidade do Rio de
Janeiro – até porque, nesse momento, o nome UPP ainda nem sequer existia.
Logo, ninguém podia antecipar que naquele momento começava a ser
elaborado e testado um projeto que ganharia centralidade no debate sobre segurança
pública no Brasil. Era impossível – até mesmo para os policiais ou funcionários mais
otimistas do governo – prever que se tratava do início, nessas duas favelas, de uma
experiência que, posteriormente, seria classificada como se não a mais, certamente
uma das mais significativas em termos de segurança pública produzidas no Rio de
Janeiro nas últimas décadas. Como sintetizou o presidente da Associação de
Moradores do Santa Marta, no momento que o morro foi ocupado, a sensação de
grande parte da população da favela era a de estar “entrando num grande túnel escuro,
esperando chegar rapidamente do outro lado para ver muita luz”2.
2
Trecho de depoimento “Aprendendo com os erros”, dado por Zé Mário e publicado no jornal Extra,
em 28 de dezembro de 2008.
12 É possível dizer, portanto, que, em novembro de 2008, os moradores do Santa
Marta e da Cidade de Deus viveram plenamente o que o filósofo pragmatista John
Dewey definiu certa vez como uma situação indeterminada, ou seja, uma situação
“incômoda, problemática, ambígua, confusa, cheia de tendências conflitivas, obscura,
etc.”, uma situação na qual aqueles que estavam nela envolvidos a vivenciam como
“incerta porque a situação era inerentemente incerta” (1938, p.171).
Moradores e traficantes que atuavam nesses territórios não sabiam ao certo por
que a polícia tinha ocupado a favela em que residiam e até quando o contingente
policial ali permaneceria, muito menos como permaneceriam. Diante dessa situação
confusa e permeada de ambiguidades, diversos atores começaram a indagar a respeito
do que estava ocorrendo, mobilizando assim suas capacidades e competências
reflexivas com a finalidade de tornar inteligível aquela indeterminação.
Em um dos relatos citados, que servem de epígrafe à introdução, o presidente
da Associação de Moradores do Santa Marta descreve com riqueza de detalhes essa
experiência do trato com a nova indeterminação e narra como muitas pessoas o
procuraram para perguntar o que estava se passando na favela. Incapaz de dar uma
resposta, ele conta como procurou outros presidentes de associações de outras favelas
da Zona Sul para conversar e se reunir com o poder público, exigindo uma explicação
sobre o que estava acontecendo.
Os jovens envolvidos com o comércio varejista de drogas nessas duas favelas
também começaram a se perguntar e a tentar entender o que estava ocorrendo.
Acionaram os contatos que tinham e quando notaram que não estavam diante de uma
“operação policial normal”, não sabiam ao certo como agir. Por isso, tiveram que
improvisar. Ter informação, qualquer informação que fosse, naquele momento, era
essencial para que pudessem traçar estratégias minimamente seguras de ação. O que
fazer diante daquilo que não sabiam direito o que era? Como agir diante daquilo que
não se sabe bem ao certo o que é? Mesmo não sabendo nada a respeito do modo como
a polícia iria atuar na favela durante a ocupação, bastou a informação de que a partir
de agora a polícia ficaria na favela para que os traficantes improvisassem uma
estratégia de ação. Ainda que de modo precário e permeado de riscos, alguns
resolveram se esconder, outros (sobretudo aqueles de alta hierarquia) decidiram
escapar e fugir temporariamente para outras favelas não ocupadas pela polícia e,
13 portanto, mais seguras para eles3. Só alguns poucos traficantes de áreas específicas,
como o Karatê na Cidade de Deus, resolveram enfrentar diretamente a polícia em
meio à situação indeterminada.
Nesta tese analiso a chegada da polícia no Santa Marta e na Cidade de Deus
como uma crise ou momento crítico, ou seja, um evento capaz de produzir uma
ruptura com as formas habituais de ação, quebrando com as expectativas que os atores
possuem acerca de sua maneira rotineira de ser, de se comportar e de agir. Como
explica Shibutani (1966):
a crisis is any situation in which the previously established social
machinery breaks down, a point at which some kind of readjustment is
required. Crises are often provoked by environmental changes. (...) A crisis
is a crisis precisely because men cannot act effectively together. When
previously accepted norms prove inadequated as guides of conducts, a
situation becomes problematic, and some kind of emergency action is
required (1966, p.172).
Em poucas palavras, analiso na presente tese a ocupação policial que
promoveu o surgimento das UPP como uma desrotinização momentânea da vida
cotidiana da favela. Busco compreender como tal processo modificou e transformou
os modos de existência ou formas de vida locais, fazendo com que boa parte do que
era tomado como óbvio (taken for granted) pelos moradores e pelos traficantes
deixasse de sê-lo de maneira repentina. A UPP, nesse sentido, mais do que um
“experimento de desestabilização” (breaching experiment, Garfinkel, 1963), foi uma
experiência de desestabilização. Isto porque todos os atores afetados com sua chegada
foram obrigados a forjar novos repertórios sensíveis e cognitivos para lidar com a
nova situação. No entanto, antes de analisar essas mudanças geradas pela chegada das
primeiras UPPs, descreverei brevemente como se configuravam as rotinas nas favelas
cariocas nas últimas décadas, pois se o processo de “pacificação” trouxe novidades,
convém desenvolver o que havia antes de sua chegada.
2. As rotinas, os tiroteios e a “leitura do clima” das favelas
A percepção e a vivência da violência urbana4 na vida cotidiana talvez seja um
dos mais importantes fenômenos sociais deste início de século (BURGOS, 2008). Na
3
Beltrame afirma que, no caso do Santa Marta, a polícia recebeu informações de que traficantes “se
desarmaram, vestiram uma roupa melhor, lavaram bem as mãos – a polícia tem um spray que detecta
pólvora – e desceram caminhando tranquilamente” (2014, p.108).
14 América Latina, tal fenômeno chama especial atenção, pois a região concentra os
mais altos níveis de violência urbana do mundo (KOENDERS; KOONINGS, 2012, p.
1)5. No Brasil, não são poucos os autores (ADORNO, 2002; ZALUAR; ALVITO,
2004; MISSE, 2006; MACHADO DA SILVA, 2008) que vêm estudando este
fenômeno e apontando que a violência tem sido percebida, com crescente intensidade
nos grandes centros urbanos. No Rio de Janeiro, especialmente, inúmeras pesquisas
indicam que a quantidade de crimes violentos praticados cresceu significativamente a
partir dos anos 1980.
Misse (2011) aponta que a taxa de roubos com violência registrada pela
polícia no Rio de Janeiro passou de 263 por 100 mil habitantes em 1980 para 830 por
100 mil habitantes em 2009. As taxas de homicídio também aumentaram
significativamente passando de dez por 100 mil na década de 1950 para 25 por 100
mil na década de 1970 e alcançaram 50 por 100 mil habitantes nos anos 1980. Entre
1980 e 2007, aproximadamente 200 mil pessoas foram assassinadas só no estado do
Rio. E, como aponta o autor, há “um consenso entre os especialistas de que parte
significativa desse aumento relaciona-se ao tráfico de drogas a varejo em favelas e
outras áreas urbanas de baixa renda” (MISSE, 2011, p.14).
A expansão da violência urbana no Rio de Janeiro parece estar umbilicalmente
ligada à economia internacional da droga, em particular da cocaína, que se juntou a já
4
Neste trabalho sigo a perspectiva proposta por Machado da Silva (2008, p. 35) de pensar a violência
urbana como uma representação coletiva, ou mais especificamente, uma representação de práticas –
ameaças de saque à propriedade privada e à integridade física – e de modelos de conduta
subjetivamente justificados. Assim como Machado da Silva, partirei da ideia de que a violência urbana
é uma construção simbólica que “constitui o que descreve”. Isto é, “uma categoria do entendimento do
senso comum que consolida e confere sentido à experiência vivida nas cidades”. Tal categoria orienta
instrumental e moralmente os cursos de ação que os moradores das cidades – como indivíduos isolados
ou em ações coletivas – consideram mais conveniente nas diversas situações em que atuam.
5
A violência urbana na América Latina tem provocado um debate teórico intenso. Pereira e Davis
(2000), Koonings (2001) e Briceno-Leon e Zubillaga (2002) vêm caracterizando as atuais
manifestações de violência em diversas cidades latino-americanas como uma “nova” violência, que já
não é mais causada por regimes autoritários e guerras civis. Segundo os atores, o que caracterizaria
essa violência “nova” é que ela tem lugar em sociedades democráticas, onde há estados consolidados e
que estão politicamente “em paz” e já não envolveria mais a disputa de poder politico ou de posições
ideológicas, centradas no Estado. Os autores acrescentam que a violência contemporânea latinoamericana é perpetrada por uma escala muito mais ampla de atores violentos que possuem interesses
diversos (KOONINGS; KRUIJT 2004, p. 8). Diferentes enfoques analíticos vêm enquadrando essa
violência como um problema de governança, um problema de unrule of law ou ainda um problema
ligado ao surgimento de poderes paralelos formado por atores armados que passam a disputar território
e poder. Alguns trabalhos como o de Arias (2006) vêm criticando, contudo, essa noção de poderes
paralelos argumentando que os atores armados que controlam territórios urbanos atualmente não
podem ser entendidos de modo isolado, uma vez que eles mantêm múltiplas ligações com o Estado,
com atores estatais e a política “legal”.
15 existente cadeia produtiva da maconha. A histórica segregação espacial das favelas
favoreceu que essa ponta do tráfico internacional, relacionada ao comércio de drogas
a varejo, tivesse um de seus principais canais concentrado nesses “territórios da
pobreza” (MACHADO DA SILVA, 2010). Assim, as favelas cariocas tornaram-se
uma espécie de base de operações do crime violento relacionado ao comércio de
drogas ilícitas.
Desde o seu surgimento, há mais de um século (VALLADARES, 2005;
ZALUAR; ALVITO, 2004), as favelas sempre foram vistas como uma espécie de
quisto que ameaçava a organização social da cidade (MACHADO DA SILVA, 2002).
No entanto, os atributos que compõem o conteúdo do que é definido como “o
problema favela” modificaram-se significativamente a partir dos anos 1980. A
“violência urbana” alterou o lugar das favelas no imaginário da cidade (MACHADO
DA SILVA, 2008). Com a expansão do tráfico de drogas, o aumento dos confrontos
armados entre diferentes facções criminosas e os conflitos entre esses grupos
criminosos e a polícia, houve uma superposição do “problema da segurança” com o
“problema das favelas”.
Como lembra Misse, as principais organizações criminosas do tráfico a varejo
no Rio de Janeiro – que surgiram dentro do sistema penitenciário durante a ditadura
militar – estabeleceram-se nos morros cariocas e passaram a disputar esses territórios.
Essa disputa levou a uma intensa “corrida armamentista” entre comandos:
A expectativa do Comando Vermelho era a de oligopolizar o mercado a
varejo das drogas em todo o estado do Rio de Janeiro, mas ainda em
meados dos anos 1980 surgiu outra organização, intitulada “Terceiro
Comando” (TC), que passou a disputar violentamente os territórios com o
CV. Iniciou-se, assim, uma corrida armamentista entre os dois comandos
pela posse das armas mais eficientes e letais, capazes de garantir seja a
manutenção do controle dos pontos de venda, seja sua expansão para
outras favelas. Com isso, estruturou-se, em paralelo, o tráfico de armas de
guerra (fuzis AK-47, AR-15, metralhadoras de uso reservado das Forças
Armadas, granadas, armas antiaéreas, bazucas etc.). Havia também os
traficantes que controlavam áreas que se consideravam “independentes”
dos dois comandos. Com o tempo, dissidências surgiram e criaram-se
novas facções a partir de meados dos anos 1990 (Comando Vermelho
Jovem (CVJ), Amigos dos Amigos (ADA) e Terceiro Comando Puro
(TCP), elevando a disputa com o Comando Vermelho (CV) a níveis de
violência inéditos na cidade). (2011, p. 19).
Misse lembra ainda que a reprodução dessas organizações criminosas foi
particularmente dependente de acordos e trocas políticas com agentes públicos, dos
16 quais policiais – que detêm o uso legal das armas e de informações estratégicas –
constituiriam um dos principais tipos. Como aponta o autor:
diferentemente do jogo do bicho, que pratica o “arreglo” (acordo
negociado) ou mesmo a cooptação de agentes públicos para sua folha de
pagamento, policiais do Rio passaram a praticar o “arrego” (extorsão)
sobre os traficantes de drogas, impondo trocas políticas assimétricas e
praticamente compulsórias. (...) Sem essas mercadorias políticas, torna-se
difícil compreender as relações entre violência, organizações criminosas e
lucros nos mercados ilegais brasileiros” (2011, p. 23).
Como as organizações criminosas se estabeleceram nas favelas cariocas e ali
se expandiram, esses territórios passaram a ser vistos “como o valhacouto de
criminosos que interrompem, real ou potencialmente, as rotinas que constituem a vida
ordinária na cidade” (MACHADO DA SILVA, 2010, p. 297). E as favelas deixaram,
consequentemente, de ser tematizadas na “linguagem dos direitos” e passaram a ser
processadas na “linguagem da violência urbana”. Ocorreu, assim, como sugere
Machado da Silva,
a simplificação e o reducionismo de uma linguagem que restringe o
tratamento dos problemas (no caso, a manutenção da ordem pública) a uma
guerra contra atividades que perturbam o prosseguimento rotineiro da vida
social. E que atribui a culpa a um segmento – os moradores dos territórios
da pobreza e, mais especificamente, os favelados –, o qual, a partir de sua
criminalização, torna-se o tipo ideal do Outro que precisa ser afastado a
qualquer preço. Em decorrência, convergem para os aparelhos policiais
demandas de recomposição de uma ordem social tida como ameaçada.
Cresce o clamor por uma ação “dura” – isto é, ilegal –, de modo que a
única possibilidade de evitar a contaminação moral de todo o sistema,
preservando os aspectos institucionalizados do conflito social, é deixar a
“dureza” da repressão ao arbítrio da polícia. (2010, p. 293).
Dessa forma, a ação policial “dura” passou a dirigir-se não tanto a grupos
sociais específicos e mais ao controle e segregação territorial de áreas urbanas tidas
como perigosas. Assim, como afirma Machado da Silva, fechou-se “o círculo de ferro
que redesenha o espaço da cidade, na formulação dominante, a partir da relação entre
violência urbana e ‘sociabilidade violenta’”6. E, em seu novo desenho, o Rio passou a
6
Machado da Silva define “sociabilidade violenta” como uma forma de vida singular na qual “a força
física, com ou sem instrumentos e tecnologias que a potencializam, deixa de ser um meio de ação
regulado por fins que se deseja atingir, para se transformar em um princípio de coordenação (um
‘regime de ação’) das práticas. Em outras palavras, no limite, a violência se libera da regulação
simbólica, isto é, de sua subordinação às restrições e condicionamentos representados pelos fins
materiais ou ideais a que, sob outras circunstâncias, serviria como meio para sua obtenção. Ela se torna
um fim em si mesma, inseparável de sua função instrumental como recurso para a ação. Em suma,
como, aliás, sugere o próprio sentido do termo “princípio”, ela é sua própria explicação e se
autorregula. (...) Ao menos no Rio de Janeiro, os ‘portadores’ da ‘sociabilidade violenta’ são,
17 ser representado como uma “cidade partida” (VENTURA, 1994) na qual, de um lado,
estão os bandos ligados ao varejo fixo de drogas, situados nas áreas de favela. Do lado
oposto estão os cidadãos7 e as organizações policiais impondo (por delegação8 dos
“cidadãos de bem”) a redefinição das favelas como “complexos” territoriais a serem
militarmente combatidos e confinados (MACHADO DA SILVA, 2010, p. 298).
Configurou-se, assim, especialmente, a partir dos anos 1990, a representação
do conflito social no Rio de Janeiro como uma guerra (LEITE, 2012), cujo
mecanismo central passou a ser as chamadas operações policiais realizadas em favelas
“dominadas” por traficantes de drogas. Diante do caráter sedentário das empresas
locais do varejo de drogas, as políticas estaduais de segurança pública, como apontam
Misse, Grillo, Teixeira e Neri (2013), tenderam a centralizar sua estratégia no
enfrentamento pontual ao tráfico, visando efetuar, com regularidade variável, prisões
e apreensões de armas, dinheiro e material entorpecente. Mesmo quando conduzidas
investigações baseadas em informantes e escutas telefônicas, são necessárias as
operações policiais de incursão em favelas para a execução dos mandados de busca e
apreensão. E quando essas operações têm início e a polícia entra no território da
favela, quase inevitavelmente, ocorrem confrontos entre policiais e traficantes.
Os confrontos entre policiais e traficantes geram frequentemente como
“efeitos colaterais” mortes nem sempre acidentais. Isso porque, nesse tipo de ação
policial, o extermínio acabou tornando-se uma das estratégias para a vitória do
inimigo, já que “com facilidade” é “admitido que situações excepcionais – de guerra –
“exigiam “medidas também excepcionais e estranhas à normalidade institucional e
democrática” (LEITE, 2012, p.379). É possível dizer, portanto, que, “a polícia passou
a adotar cada vez mais uma política de extermínio” (MISSE, 2011), na qual a morte
tipicamente (mas não exclusivamente), os bandos de traficantes responsáveis pelo funcionamento das
‘bocas’ tendencialmente localizadas nos ‘territórios da pobreza’” (2011, p. 286)
7
Como aponta Leite (2012, p. 379), geralmente, são considerados cidadãos, nesse contexto, aqueles
que são “trabalhadores, eleitores e contribuintes e, nesta qualidade, pessoas de bem, honradas, para
quem a segurança é condição primordial para viver, produzir, consumir”.
8
Leite indica que a operacionalização da promoção da “guerra” contra as favelas “envolve uma
modelação do mandato policial nesses territórios, que libera os agentes do Estado para irem além da
‘força comedida’ que é sua atribuição constitucional, ou seja, para a utilização da ‘força desmedida’
(Brodeur, 2004). Este dispositivo atribui ao agente policial “na ponta” a prerrogativa de decidir
quando, como e contra quem agir de forma extralegal, em um movimento discricionário que não se
submete à lei, ou melhor, que embaralha o legal e o ilegal, o legítimo e o ilegítimo (Telles, 2010), e que
é dependente das avaliações e julgamentos individuais do agente, fortemente influenciado pelo
contexto da ação e, neste sentido, pelos preconceitos associados à estigmatização das favelas e de seus
moradores” (2012, p. 380).
18 de traficantes por policiais durante operações realizadas em favelas é não só tolerada,
mas também desejada e premiada9.
A partir de toda essa configuração, a rotina das favelas cariocas, nas últimas
décadas, passou a constituir-se sobretudo, pela virtualidade de conflitos violentos que
pode irromper a qualquer momento nesses territórios. As manifestações violentas que
ameaçam a rotina da parcela da população que vive em favelas resultam da
contiguidade territorial inescapável com os bandos armados ligados ao comércio de
drogas ilegais e com a atuação pouco previsível e quase sempre violenta da polícia e
das milícias10. A proximidade entre esses atores provoca entre as populações que não
moram em favelas uma grande desconfiança em relação aos “favelados”.
Viver em tais circunstâncias gera o que Machado da Silva e Leite (2008)
chamam de “vida sob cerco”, isto é, uma experiência de confinamento socioterritorial
e político que provoca nos moradores de favelas uma intensa preocupação com
manifestações violentas que impediam o prosseguimento de suas rotinas diárias e
dificultavam a manifestação pública de suas demandas. Tal experiência é produzida
por uma série de “eventos fora de controle, em graus e intensidade muito maiores do
que aquela que atinge o conjunto da população da cidade, igualmente assoberbada por
episódios violentos que se repetiam sem cessar” (MACHADO DA SILVA; LEITE;
2008, p. 35). E um dos eventos pouco previsíveis que mais desestabiliza a rotina da
população carioca, de um modo geral, e a dos moradores de favelas, em especial, são
os tiroteios.
9
Entre 1995 e 2000, os policiais militares e civis do Estado do Rio de Janeiro que praticassem atos
considerados de bravura pelo comando da corporação − que resultavam, recorrentemente, na morte de
supostos criminosos – foram premiados com a chamada “gratificação faroeste”. Criado em novembro
de 1995 pelo general Nilton Cerqueira, secretário de segurança no governo do Rio de Janeiro de
Marcello Alencar, o encargo especial estimulou confrontos e mortes e só foi suspenso no ano 2000.
10
Na última década, as milícias ganharam uma grande notoriedade no debate sobre segurança pública
na cidade do Rio de Janeiro. Embora não seja possível precisar exatamente quando e como o fenômeno
teve origem, Cano e Duarte (2012) sugerem que o termo milícia foi cunhado, por volta de 2006, para
descrever grupos de agentes armados do Estado (policiais, bombeiros e agentes penitenciários) que
controlavam favelas e loteamentos e tinham o controle monopolístico sobre diversas atividades
econômicas exercidas nestes territórios. Algumas dessas atividades são a venda de gás, o transporte
alternativo e o serviço clandestino de TV a cabo e de Internet. A partir do domínio territorial armado de
certos territórios da cidade, esses grupos, além de vender os serviços listados acima, também vendiam
“proteção” em troca de taxas que comerciantes e residentes eram obrigados a pagar mensalmente.
Quem ousava não pagar essas taxas era duramente coagido (podendo apanhar, ser expulso da favela ou
até morrer). Essa atuação da milícia, até pouco tempo atrás, era legitimada pelo discurso de que os
milicianos estariam libertando os moradores dos traficantes de drogas e estariam instaurando uma
ordem protetora nos territórios antes dominados pelo tráfico. E mesmo nos territórios onde antes não
havia uma forte presença do tráfico no passado, a atuação da milícia era apresentada como uma forma
legítima de prevenção que impedia que traficantes viessem a dominar o território futuramente.
19 Como sugere Cavalcanti, a possibilidade constante de irrupção de tiroteios
constituiu-se como um dos princípios estruturantes da fenomenologia da vida
cotidiana nas favelas. Isso porque, a expectativa do fogo cruzado, gera pelo menos
três efeitos: a) gera uma constante preocupação entre os moradores de favelas; b)
afeta em larga medida a mobilidade dessa parcela da população11; e c) impacta
também o próprio espaço construído da favela, por meio de esforços constantes de
assegurar lugares seguros (CAVALCANTI, 2008, p. 37). É possível dizer, portanto,
que as potenciais trocas de tiros tiveram, nas últimas décadas, um papel central no
modo como o medo e a incerteza relacionados à “violência urbana” foram
vivenciados pelos moradores de favelas do Rio de Janeiro. Nas palavras de
Cavalcanti:
a constante iminência de tiroteios produz uma temporalidade
concretamente experimentada como uma antecipação, como uma quase
espera pela próxima ocorrência, engendrando uma série de rotinas de
evitar e avaliar riscos. O tiroteio, assim, constitui-se tanto como objeto de
investigação em si quanto como uma lente através da qual é possível
vislumbrar outras rotinas e mapas mentais produzidas pela duração – no
tempo e no espaço – da dita crise de segurança pública, e sua incorporação
a outras temporalidades e espacialidades da vida cotidiana. (2008, p. 37)
Cavalcanti ressalta que essa temporalidade antecipatória não é prerrogativa
exclusiva dos cariocas – moradores de favelas ou não – visto que tende a ser
característica da vida em lugares nos quais o cotidiano é atravessado por constantes
confrontos ou guerras. Como lembram Koenders e Koonings, quem mora nesses
lugares precisa quase inevitavelmente adotar estratégias (coping strategies) para lidar
com possíveis interrupções das rotinas cotidianas:
As violence has become an integral part of everyday life for many,
researchers increasingly focus on so-called coping strategies to deal with
violence, fear and insecurity (Scheper-Hughes & Bourgois 2004; Goldstein
2003). Showing forms of “everyday resilience” (Scheper-Hughes 2008)
people navigate precarious contexts in different ways, varying from
avoidance and conciliation to resistance and confrontation (Moser &
McIlwaine 2004). Resilience refers to the capacity to “bounce back” in the
face of disruptions of social life. Urban violence and insecurity disrupt not
only the conditions of immediate physical and psychological wellbeing of
residents, but also their everyday routines, their ability to make use of
urban space, their ability to sustain social relations, and their ability to
engage in livelihood strategies (Koonings & Kruijt 2007). However
serious these disruptions may be, many urban communities under
11
A ocorrência de tiroteios afeta não só a população das favelas, mas também os moradores que
habitam o entorno desses territórios. Quando ocorrem tiroteios na Rocinha, por exemplo, o túnel Zuzu
Angel costuma ser fechado paralisando o trânsito entre a Gávea e São Conrado.
20 conditions of (chronic) violence have generated know-how that allows
residents to pursue strategies seeking a certain level of normalcy and
sociability (2012, p.3).
Para pensar, sobre a temporalidade antecipatória – composta por estratégias
rotineiras de evitação e de avaliação de riscos –, vivenciada, especialmente, pelos
moradores de morros cariocas, Cavalcanti apresenta uma interessante discussão sobre
a leitura do “clima nas favelas”. Segundo a autora,
a “leitura” constante “do clima” ou “das coisas” constituía uma atividade
hermenêutica incessante, baseada em códigos tácitos, porém
compartilhados e altamente sensórios, que combinam elementos
significantes visuais e sonoros, jogos de presenças e ausências,
performances quase ritualizadas, os ritmos da vida cotidiana e, é claro, o
fluxo constante de rumores, fofocas e informações em geral. Essa leitura
constante do “clima” se dá através da comparação de uma certa imagem
mental em parte abstrata, em parte “normativa” (no sentido de ser “ideal”
dentro do que se conhece como possível) de como as “coisas” são quando
está tudo “tranquilo” – o que por si só leva em consideração uma série de
variáveis, tais como a hora do dia e a memória do passado recente – e a
confrontar com a paisagem da favela em um dado momento qualquer.
(2008, p.39)
A “leitura” constante “do clima” é uma atividade interpretativa que envolve a
lembrança de momentos passados que emolduravam a leitura do momento presente na
tentativa de prever episódios que ainda estavam por vir. Cavalcanti explica, por
exemplo, que “levar um guarda-chuva, ler a previsão, equivaliam a dar um telefonema
para assegurar-se da situação na favela, uma pausa mais detida para avaliar a
‘situação’” (2008, p. 40). Esta avaliação da situação dependia da existência de pontos
de ancoragem que possibilitam a leitura do “clima da favela”:
Quem está à vista? Os moto-táxis fornecem as pistas mais confiáveis. Se
estão presentes, tranqüilos e relaxados, rodando constantemente, é possível
baixar a guarda de imediato. Ainda assim, o olhar inevitavelmente passa,
sem necessariamente repousar, por outros elementos da paisagem – não só
visuais, mas também sonoros e mesmo olfativos (afinal, dificilmente um
churrasquinho ser grelhado em momentos de tensão). Há música tocando?
Os vendedores ambulantes, camelôs, e o comércio local estão abertos?
Seus ocupantes estão tranqüilos? E os presumíveis olheiros? E a boca, está
lá? O semblante dos “meninos”? Há crianças na rua? O comércio está
aberto? Já houve “tirinhos” hoje? Caso afirmativo, com alguma
freqüência? Houve tiroteio ontem? (...) As respostas a tais perguntas
variam de acordo com a hora do dia, o dia da semana e a memória do
próprio “clima” recente – e normalmente só são registradas
conscientemente se negativas. (CAVALCANTI, 2008, p.46)
A descrição de Cavalcanti exemplifica bem como essa atividade de avaliação
da situação presente e a antecipação de eventos futuros não envolve apenas um
21 cálculo racional, mas também toda uma “ecologia do sensível” da favela, isto é, o que
o antropólogo Tim Ingold define como “modo de sentir constituído pelas capacidades,
sensibilidades e orientações desenvolvidas [pelos moradores, traficantes e policiais]
em uma longa experiência de vida em um ambiente particular” (2013, p. 37).
O ambiente da favela, descrito e analisado por Cavalcanti (2008), Machado da
Silva e Leite (2008), contudo, sofreu significativas alterações desde o final de 2008. A
“ecologia do sensível” da favela foi drasticamente alterada com a chegada da polícia
no Santa Marta e na Cidade de Deus, o anúncio de que a ocupação seria permanente e,
em seguida, a inauguração das duas primeiras Unidades de Polícia Pacificadora do
estado do Rio de Janeiro.
3. A UPP como objeto de investigação de diversos atores
A ocupação policial permanente do Santa Marta e da Cidade de Deus
reconfigurou o ambiente rotineiro com o qual os atores que ali habitavam estavam
habituados. Quando isso ocorreu, os primeiros territórios “pacificados” tornaram-se,
momentaneamente, paisagens desconhecidas para os próprios moradores que ali
residiam e para os traficantes que atuavam ali há anos. Essas novas paisagens
instituíram-se como verdadeiros centros de indeterminação com os quais os
moradores – assim como integrantes de grupos armados ligados ao comércio de
drogas ilícitas que atuavam nessas localidades – não sabiam exatamente como lidar, já
que não dispunham mais dos repertórios e dispositivos necessários para avaliar a
situação e, para retomar a expressão de Cavalcanti, “medir o clima” da favela.
Os antigos repertórios e formas tácitas, habituais e espontâneas de avaliação
da atmosfera local que os atores dispunham não eram mais capazes de dar conta da
nova situação. As pequenas “pistas”, os pequenos marcos sensórios disponíveis na
favela como os fogos, a movimentação dos mototáxis, o churrasquinho grelhado, a
localização da boca de fumo, a posição dos “atividade” ou “contenção”, a
frequentação das biroscas já não serviam mais para auferir o clima. Daí porque houve
uma alteração de sensível e cognitiva, já que um novo repertório sensível (INGOLD,
2013, p. 34) e novos “mapas mentais” (GELL, 1985) precisaram ser forjados.
22 Uma nova fenomenologia do tempo e do espaço foi introduzida no universo
potencial próprio ao contexto prático de ação dos atores. E as “pistas” 12 antes
rotinizadas não apenas para antever potenciais riscos relativos aos tiroteios, mas para
orientar a ação no trato cotidiano com os traficantes e policiais, foram fortemente
alteradas. Daí porque uma nova “educação da atenção” (GIBSON, 1979; INGOLD,
2000) foi requisitada, isto é, uma nova modalidade de afinação do sistema perceptivo
dos residentes com o ambiente foi necessária para navegar na ecologia sensível da
favela pós-“pacificação”.
Podemos aproximar o que Ingold (2013) chama de “pistas” e Cavalcanti
(2008) chama “códigos tácitos, porém compartilhados e altamente sensórios”. Para a
antropóloga o conjunto desses códigos e de sua leitura podem ser pensados como o
“aspecto de legibilidade do espaço da favela que emerge de modo coletivo pela
própria naturalização do conflito”13. Nesse sentido, é possível pensar que quanto
maior o número de “pistas” compartilhadas, maior será o aspecto de legibilidade do
espaço da favela e maior será a facilidade para “navegar” no ambiente (VIGH, 2009).
Ou, pelo contrário, quanto menor o número de “pontos de ancoragem” disponíveis,
menor será a possibilidade de ler o “clima da favela”.
Sugiro que com a chegada da UPP, os códigos perderam sua
operacionalidade momentaneamente. Assim, para os atores tornou-se mais difícil a
medição do “clima” ou, para ser mais precisa, “a legibilidade do espaço da favela”.
Como houve essa disrupção temporária e radical dos elementos que permitiam ler o
“clima da favela”, os atores tiveram que buscar novos elementos que os auxiliassem a
lidar com a nova situação. Diante da zona de indeterminação que se impunha com a
chegada da UPP, os residentes se perguntavam e buscavam elementos para entender o
que estava acontecendo. Ou seja, era necessário que fosse realizado um “processo de
investigação” no sentido do filósofo pragmatista John Dewey14, isto é, uma atividade
12
Segundo Ingold uma “pista” é um ponto de localização que concentra os elementos díspares da
experiência em uma orientação unificada que, por sua vez, abre o mundo a uma experiência de maior
clareza e de maior profundidade. Nesse sentido, “as pistas são chaves que abrem as portas da
percepção: quanto maior o número de chaves, um maior número de portas você pode abrir, e mais o
mundo se abre a você” (2013,p. 32).
13
Vale lembrar aqui que embora exista uma “incessante procura de sinais, a constante reatualização
dessa gramática tácita de segurança e ameaças mostra-se, no mais das vezes, inútil. O fato é que
quando os tiroteios irrompem, inevitavelmente pegam a maior parte dos moradores de surpresa”.
(CAVALCANTI, 2008, p. 40)
14
A noção de investigação utilizada por John Dewey tem sua história vinculada às reflexões de Charle
Sanders Peirce a respeito do estado de dúvida e de crença. No texto “How to make Our Ideas Clear”,
23 que visa “a transformação controlada ou dirigida de uma situação indeterminada em
uma situação que é de tal modo determinada em suas distinções e relações
constitutivas que ela converte os elementos da situação original em um todo
unificado”15 (1939, p. 104-5).
Meu objetivo nessa tese é, portanto, apresentar e descrever como, na prática,
os atores, diante das situações indeterminadas geradas pela chegada e manutenção da
presença das UPPs, se esforçaram para produzir uma “transformação controlada” da
“situação indeterminada” em uma situação estável. Ou seja, a ideia é passar de uma
filosofia das formas elementares da investigação humana, como fez Dewey em seu
opus magnum sobre a Lógica, para uma sociologia das investigações dos atores.
Trata-se, pois, do processo por meio do qual as pessoas, ao depararem-se com
uma situação cujos elementos constitutivos mostram-se indeterminados, indefinidos,
confusos, não integrados e em conflitos uns com os outros, esforça-se para conferirlhes inteligibilidade, bem como para tornar o seu curso de ação controlado e ajustado.
A investigação, portanto, é um processo cuja temporalidade ou cujos desdobramentos
podem analiticamente ser definidos em etapas. Ogien e Queré assim definem as
etapas do processo de investigação:
[primeiro,] uma situação indeterminada bloqueia a organização da
conduta; a redução de sua indeterminação se faz na e pela investigação que
a problematiza; a investigação determina progressivamente o problema
através da exploração de suas soluções possíveis. A definição do problema
é, portanto, o momento chave da investigação. O ponto de partida é a
existência de uma situação problemática, instável ou incerta – ou ainda
obscura, confusa, contraditória, conflituosa, enfim, uma situação cujos
Peirce (1878, p.3-5) sustenta que os homens buscam permanentemente o estado de crença, sempre
mobilizando esforços para sair do estado de dúvida. Essa última sendo vista por Peirce como um
incômodo, uma “coceira” de que o homem tenta se livrar. Existe, portanto, uma ligação genética entre
a noção de dúvida de Peirce e a noção de indeterminação de Dewey. A investigação aqui sendo, no
caso do primeiro, aquilo que permite passar do estado de dúvida para o de crença, ao passo que para o
segundo seria o que permite passar da situação indeterminada para a situação resolvida. Tal noção,
iniciada na filosofia pragmatista, é posteriormente estendida para a sociologia pelos autores da Escola
de Chicago e interacionistas como Shibutani, Faris, Strauss e Becker. Mais recentemente, a sociologia
pragmática francesa em autores como Bruno Latour, Luc Boltanski, Laurent Thévenot, Francis
Chateauraynaud, Daniel Cefaï transpuseram a filosofia das formas elementares da investigação de
Dewey para uma sociologia das investigações (axiológicas ou ontológicas) dos atores (Ver Corrêa,
2014; De Castro e Corrêa, mimeo).
15
Segue a passagem no original em inglês: “Inquiry is the controlled or directed transformation of an
indeterminate situation into one that is so determinate in its constituent distinctions and relations as to
convert the elements of the original situation into a unified whole. The original indeterminate situation
is not only ‘open’ to inquiry, but it is open in the sense that its constituents do not hang together. The
determinate situation on the other hand, qua outcome of inquiry, is a closed and, as it were, finished
situation or ‘universe’ of experience.”
24 elementos constitutivos não se mantêm integrados, ou encontram-se em
conflito uns com os outros, o que entrava o prosseguimento da conduta. O
ponto de chegada é a organização de uma conduta ajustada: a investigação
termina de fato quando uma situação integrada ou ordenada pode ser
estabelecida, isto é, quando os elementos de confusão e de conflito
puderam ser reduzidos ou eliminados de modo que uma orientação da ação
possa ser definida. (2006, p. 42-43)
INDETERMI
NAÇÃO
PROBLEMATI
ZAÇÃO
TESTES
ESTABILI
ZAÇÃO
Nesse sentido mais amplo, a tese tem como hipótese básica o fato de que a
UPP, desde sua chegada, não foi outra coisa senão um objeto constante de
investigação dos atores por ela direta ou indiretamente afetados. Tal Investigação foi
um processo reflexivo e experimental de reengajamento no “novo” ambiente da favela.
Em suma, tratou-se de uma busca, por parte dos atores que residiam na favela, por
uma nova “ação que convém” (THÉVENOT, 1986). A UPP, seja como um objeto
indeterminado no início, quando ainda sequer tinha um nome, seja depois como um
objeto problemático, já que dotada de uma individualidade e concretude que impunha
problemas e questões específicas aos moradores e traficantes da favela a partir de sua
presença, nunca deixou de ser – e ao mesmo tempo constituir-se como – objeto da
investigação dos atores.
Para tornar a apresentação do processo da implementação da UPP mais
inteligível e ordenado, sigo a estrutura linear das fases da lógica da investigação de
Dewey para organizar a tese. Deixo claro, contudo, que, na prática, penso muito mais
em uma circularidade constante das fases na qual cada uma está contida em todas as
outras. Ou seja, penso que a indeterminação, ainda que em intensidades variadas, está
presente em todas as etapas do processo da UPP; assim como a problematização, os
testes e as estabilizações. Por isso, na prática, entendo que ao invés de um
sequenciamento teleológico que parte sempre da indeterminação e chega à
estabilização, considero que a UPP, na verdade, é um problema contínuo, uma
evolução permanente de estabilidade e instabilidades cujas investigações e ações dos
atores estão lidando ao longo do tempo. Daí porque essa estrutura linear que
apresento adiante de situação indeterminada, problemática, fase de testes e hipóteses e,
enfim, uma solução estável, é meramente analítica e nos ajuda a pensar o fenômeno
em uma escala mais geral.
25 INDETERMINAÇÃO
ESTABILIZAÇÃO
PROBLEMATIZAÇÃO
TESTES
Apresentei, no fim da introdução, a forma como esse trabalho foi estruturado a
partir da passagem dessas fases do processo de investigação. Escolhi seguir tal roteiro
porque o objeto dessa tese foi menos a UPP em si, e mais a UPP enquanto problema,
ou seja, enquanto um objeto que foi investigado por aqueles que a vivenciaram,
digamos, “na pele”. Nesse sentido, a tese é o resultado de um acompanhamento da
investigação dos próprios atores que ao mesmo tempo em que a experimentaram
diretamente a constituíram e a definiram progressivamente. No entanto, fazer esse
acompanhamento nada tem de óbvio, sobretudo se considerarmos que, no início da
minha pesquisa, as pessoas sistematicamente evitavam ou se recusavam a falar sobre
as UPPs. Mostro, portanto, os caminhos que segui ao longo da minha pesquisa e os
desafios que o trabalho de campo me apresentou.
4. Caminhos e dilemas do campo
Desviar do caminho batido talvez não seja uma grande metodologia, mas
cria a possibilidade de se apreciar alguns pontos de vista incomuns, que
podem ser os mais reveladores (DARNTON, 2011, p.17).
Em outubro de 2009, quase um ano após o início da ocupação policial do
Santa Marta, comecei um trabalho de campo no morro situado em Botafogo. Meu
objetivo era tentar entender os impactos que a chegada da UPP tinha gerado na rotina,
na sociabilidade local e na experiência de “vida sob cerco” (MACHADO DA SIVA e
LEITE, 2008) vivenciada pelos moradores da favela. No entanto, não sabia
exatamente como começar a pesquisa, pois não tinha um contato para me ajudar na
“entrada” no campo.
Nesse período no qual estava pensando na melhor forma para começar o
trabalho de campo, por sorte, uma amiga me encaminhou um e-mail divulgando
26 reuniões que estavam sendo organizadas quinzenalmente no grupo Eco 16 , uma
importante instituição do Santa Marta 17 . Comecei, então, o trabalho de campo
acompanhando essas reuniões. Mas, logo de início, fiquei um tanto surpresa ao notar
que, embora esses encontros tivessem sido criados para debater as mudanças que
estavam ocorrendo na favela, quase ninguém queria falar sobre a UPP, especialmente,
com pesquisadores18.
As lideranças comunitárias presentes no encontro justificavam essa recusa em
tematizar a UPP por considerarem errada a visão passada pela grande mídia de que
depois da “pacificação” tudo mudou na favela. Eles ressaltavam que a UPP não foi o
“marco zero na vida na favela”, como a mídia queria mostrar naquele momento. De
forma irônica, uma moradora me disse, por exemplo, que não aguentava mais pessoas
“deslumbradas” falando “olha só o favelado agora bebe água gelada porque agora
geladeiras foram distribuídas pós-UPP! Agora todos acessam a internet de graça,
todos têm a casa pintada, têm segurança”. Irritada, ela condenava as falas que
apontavam “que os policiais estavam resgatando a cidadania da favela só porque no
dia das crianças estavam distribuindo brinquedo e fazendo uma brincadeirazinha com
a molecada”. Essa moradora, assim como muitos outros, repudiava o discurso de que
todos os serviços da favela haviam chegado após a “pacificação19”. Para os moradores
esse discurso era muito perigoso porque não levava em consideração os anos de luta,
de resistência que os moradores do Santa Marta precisaram enfrentar para permanecer
no morro e obter melhorias para a qualidade de vida na favela.
Ao perceber a desconfiança de muitos moradores e o desconforto em falar
sobre as UPPs, concluí que seria importante fazer, inicialmente, mais observação do
que entrevistas. Comecei, então, a intensificar minhas idas à favela e, depois de
16
O Grupo Eco é uma organização que atua na favela desde 1976. “É uma entidade sem fins lucrativos
de caráter educacional e cultural e destinada a promover e apoiar na Favela Santa Marta e,
eventualmente, fora dela, atividades e iniciativas que visem o desenvolvimento humano integral das
pessoas e da comunidade, com atenção especial às crianças, adolescentes e jovens (...) Hoje é formado
por aproximadamente 100 pessoas que se constituem no corpo de associados da entidade”. (Fonte:
http://www.grupoeco.org.br/html/santa_marta.html Acessado em 05/01/2011)
17
No terceiro capítulo descrevo detalhadamente uma dessas reuniões.
18
Uma liderança comunitária do Santa Marta me disse, logo em minha primeira ida a campo, que havia
uma grande quantidade de pesquisadores que estava fazendo pesquisas no morro e os moradores já
estavam cansados da falta de comprometimento deles, que chegavam na favela fazendo um monte de
perguntas, querendo entrevistas e depois não voltavam para expor os resultados das pesquisas e dar
algum retorno para a população do morro.
19
Segue uma outra fala da moradora: “Agora mudou? Que agora o quê?! (...) Não aguento mais ouvir
falar que agora tudo mudou, vou abolir a palavra agora do meu dicionário”.
27 alguns meses, resolvi procurar uma casa para morar no morro. No início de março de
2010 consegui enfim me mudar para a favela, intensificando assim o meu trabalho
etnográfico. Primeiramente aluguei por um mês um quarto na casa de uma família de
chilenos que moravam na favela e, depois, consegui alugar um quarto na casa de uma
antiga moradora da favela, onde permaneci por quase um ano.
Ao longo do trabalho de campo acompanhei atividades muito variadas no
Santa Marta como: reuniões promovidas pela associação de moradores e outras
organizações associativas da favela; encontros promovidos pelos representantes do
poder público e pela polícia; filmagens de novelas e gravações de filmes e
reportagens; cultos religiosos; visita de turistas e pessoas famosas à favela; eventos
culturais e festas; cursos e aulas diversas oferecidas aos moradores (por exemplo:
curso de turismo; de prevenção às drogas; aula de yoga); a inauguração e o
funcionamento da Rádio Comunitária Santa Marta20, entre outros.
Na maior parte dessas atividades, assim como no cotidiano da favela, quase
ninguém falava abertamente e de forma espontânea sobre as UPPs. E mesmo quando
eu perguntava sobre o tema, tinha a sensação de que as pessoas preferiam mudar de
assunto ou delicadamente apresentavam-me alguma desculpa para não falar sobre o
tema. Isso apareceu de forma ainda mais enfática em uma das primeiras entrevistas
que fiz no Santa Marta. Tal entrevista foi realizada com um morador de mais de 30
anos de idade com quem eu já havia conversado algumas vezes. No início da
entrevista, tudo transcorria bem e ele até falava com bastante empolgação sobre a sua
história de vida e algumas de suas percepções sobre a vida na favela. Ele chegou a
comparar o Santa Marta com outras favelas, contando sobre uma namorada que
morava no Morro da Providência, razão pela qual ele teria frequentado o tal morro por
20
A partir de um convite da historiadora Natalia Urbina, que fazia parte da Rádio, passei a integrar a
equipe do programa Noticiário Latino-Americano. A ideia do programa idealizado por Natalia – que é
chilena e morava há alguns anos na favela – era estabelecer pontes entre a realidade vivenciada no
Morro Santa Marta e outras experiências vividas em outros países da América Latina. Uma das partes
do programa que mais me interessava era a que realizávamos ao vivo entrevistas com moradores de
diferentes partes do morro tentando recuperar a “memória do morro” e ao mesmo tempo debater as
mudanças que vinham ocorrendo, a partir dessas falas. Além de participar do Noticiário, também atuei
como secretária da Rádio, atendendo telefonemas dos ouvintes, fazendo atas durante as reuniões
internas, ajudando a organizar a documentação para a legalização da emissora, entre outras atividades
burocráticas. Tal experiência foi muito importante para a minha pesquisa, pois conheci muitos
moradores – e muitos também passaram a saber quem eu era por causa da Rádio – e pude ter uma
convivência quase cotidiana com a maior parte das lideranças da favela que tinham programas na
emissora ou participavam de forma atuante em programas de outras pessoas e, por isso, visitavam com
frequência a sede da Rádio. Durante os oito meses que esteve funcionando, a Rádio acabou tornando-se
um importante espaço de debate e de sociabilidade na favela. E, consequentemente, tornou-se para
mim um espaço privilegiado de observação participante.
28 dois anos. No entanto, segundo ele, o Santa Marta era bem melhor que a Providência.
Aproveitei então a deixa da comparação dos morros para lhe perguntar se na época
em que ele frequentava a Providência já tinha UPP no Santa Marta. Uma imediata
mudança em seu semblante se impôs, o tom de voz também se alterou e o ritmo da
conversa se perdeu. Toda empolgação foi abruptamente dissipada e, em um tom
bastante enfático, o entrevistado respondeu: “sobre isso eu não falo, não gosto de falar
sobre o tema”.
Confesso que levei um susto com a resposta tão seca e, quase instintivamente,
perguntei por que ele não gostava de falar sobre a UPP. Ele respondeu
enigmaticamente: “Porque o importante é que tem emprego, entendeu? Não gosto de
falar, não”. Ainda insisti perguntando se ele não gostava do projeto e ele respondeu
apenas de modo ríspido: “não gosto”. Como o desconforto que ele estava sentindo era
nítido e ele não parecia fazer nenhuma questão de disfarçar, tentei mudar de tema e
perguntar sobre os possíveis impactos da polícia de uma outra forma, mas não tive
sucesso. Perguntei, então, se ele achava que agora tinha mais gente de fora
frequentando a favela e ele respondeu que com a UPP ou sem a UPP vinha gente para
o Santa Marta e que o essencial, agora, estavam nos projetos que estavam melhorando.
Tentei achar outro caminho para a entrevista, perguntar sobre outros assuntos,
mas um clima de desconfiança já estava instaurado. O seu rosto demonstrava tensão e
desconforto; o seu olhar já não mais se fixava em mim, mas percorria o entorno,
mapeando quem estava por perto, quem poderia estar ouvindo o que falávamos
durante a entrevista. Eu tentava prosseguir, tentando destensionar um pouco o clima,
mas ele não parecia mais disposto a interagir como antes. Quando eu fazia uma
pergunta ou apresentava um comentário, ele pedia apenas para eu falar mais baixo.
Apesar de abaixar o tom de voz, a reclamação permanecia e ele insistia que eu estava
falando alto demais, expondo – agora de modo aberto – que não queria que outras
pessoas ouvissem nossa conversa. Como achava que, de certa forma, a entrevista já
estava “perdida”, antes de a conversa acabar resolvi perguntar a opinião dele sobre a
relação dos moradores com os policiais que atuavam na favela. Foi, então, que ele
repetiu insistentemente que não queria falar:
Olha, posso falar uma coisa para você? Nessas coisas eu não me meto. (...)
Não falo por que... Vou falar o quê? Não tem nada o que falar. Vou falar o
quê? (...) Se não tenho nada para falar? Por que motivo eu vou falar? Falar
o quê? Não tenho motivo para falar. (...) Não tenho nada contra ninguém.
Vou falar o quê? Cada um com seu cada um. Agora, se as outras pessoas
29 querem falar, que elas falem. Se elas acham que têm desejo de falar, que
elas falem. Se elas acham que têm necessidade de falar, que elas falem.
Cada um toma conta de si. Eu tomo conta de mim. (Trecho de entrevista
com um morador do Santa Marta)
A fala do morador deixava muito claro que ele resistia em tematizar a questão
das UPPs e até mesmo a estabelecer qualquer tipo de explicitação sobre temas que
fossem associados ao aparato policial recém-chegado. Da pior maneira possível,
aprendi que muito frequentemente a palavra UPP, para algumas pessoas, podia
mesmo soar como algo congênere a um palavrão.
Confesso que, inicialmente, atribuí o insucesso das minhas primeiras
tentativas de abordar o tema exclusivamente aos “erros” que eu poderia ter cometido21.
Com o passar do tempo, contudo, fui notando que o “problema” não parecia estar
apenas na minha dificuldade de conduzir entrevistas sobre o tema. Pude perceber que
muitos moradores evitavam falar sobre as UPP não apenas comigo – em situações de
entrevistas formais ou mesmo conversas casuais –, mas também com outras pessoas e
em situações mais informais. Aos poucos fui observando que os moradores evitavam
falar abertamente tanto sobre a polícia como sobre o tráfico em inúmeras outras
ocasiões. Tudo parecia depender de onde, quando, como e com quem estivessem,
caso contrário a explicitação desse tema parecia ser um tabu.
Por isso, a questão: como tratar de um tema lidando com atores que se
recusam a falar explicitamente sobre ele ou, quando falam, me tomam como inimiga,
ou seja, como alguém que parece necessariamente comprar um discurso simplista e
triunfalista das UPPs? É verdade que, naquele momento inicial do campo, eu não era
ainda capaz de entender as razões disso. Depois, bem mais tarde, como expresso na
conclusão da tese, consegui elaborar uma resposta para essa questão que, a princípio,
parecia-me enigmática. A noção de campo minado, que desenvolvo ao longo desse
trabalho, não deixa de ser uma resultante de um esforço reflexivo baseado em
experiências vividas de frustração das minhas intenções etnográficas iniciais.
Diante do silêncio e da evitação, resolvi eu mesma evitar fazer perguntas, pelo
menos, por um tempo. Resolvi questionar menos e me concentrar no esforço para
21
Na época fiquei me questionando se eu não deveria ter esperado um pouco mais para realizar a
entrevista, quando já tivesse estabelecido uma relação de maior proximidade e confiança com o
entrevistado. Julgava que seria melhor não ter usado o gravador ou ter escolhido um local menos
movimentado para realizar a conversa. Imaginava que talvez o morador não tivesse “travado” e tivesse
ficado tão irritado se eu tivesse apresentado as perguntas de outra maneira, dando mais “voltas” e
fazendo mais mediações para introduzir o tema das UPPs.
30 entender por que as pessoas preferiam não falar sobre os temas que eu abordava.
Pouco a pouco fui educando minha atenção para ouvir as narrativas que ecoavam
pelos becos, vielas e esquinas da favela. O tempo foi passando e dia após dia fui
anotando os pequenos relatos cotidianos que ouvia. Inicialmente, para ser bem sincera
eles não me revelavam muita coisa. Eles pareciam peças soltas de um quebra-cabeça
cujo desenho final eu estava muito longe de imaginar qual seria.
Assim, com o passar do tempo, percebi que os rumores poderiam ser uma
primeira forma de adentrar no universo nativo sem tantas resistências. Sua circulação
impessoalizada (“ouvi dizer que...”; “estão dizendo por aí que...”), impregnada de um
discurso indireto (“disseram-me que...”; “alguém disse que...”), facilitava e muito o
acesso. E isso porque o acesso às narrativas que circulavam como rumor não dependia
da entrada em um contexto de confiança, mas sim e tão somente da participação direta
nos fluxos comunicativos do ambiente da favela. Estar ali, viver junto, participar de
eventos corriqueiros bastava-me para acessá-los. Enquanto o convívio reiterado me
permitia, pouco a pouco, conquistar a confiança das pessoas e “desarmá-las” da
desconfiança a priori para comigo – no caso, uma estranha e recém-chegada à favela
– para tratar do tema das UPPs, eu coletava alguns dos inúmeros rumores que
circulavam pela favela.
Progressivamente, fui me dando conta de que essas informações impessoais
que transitavam pela favela poderiam ser heuristicamente válidos para refletir acerca
dos impactos gerados pela implementação da UPP por dois motivos. Primeiro, porque
os rumores – que são pensados nessa tese como “notícias improvisadas”
(SHIBUTANI, 1966), como explicarei no capítulo 2 – foram senão o principal,
decerto um dos mais importantes dispositivos de troca de informações disponíveis
para lidar com a incerteza e a indeterminação. Essas narrativas indiretas tiveram um
papel fundamental nesse processo de investigação, pois faziam circular casos e
histórias ocorridas desde o início da ocupação policial que ajudavam os moradores a
conhecer e mapear o novo ambiente da favela no contexto pós-“pacificação”.
Em segundo lugar, notei que os rumores eram interessantes porque serviam
como uma porta de entrada para entender esse processo de investigação empreendido
por múltiplos atores. Descobri que ao acompanhá-los podia me auxiliar no
mapeamento das preocupações dos moradores, que foram mudando com o passar das
semanas, meses e anos que a favela foi pacificada. Eles me permitiam acompanhar o
31 processo in the making. Comecei a mapear, então, todos os rumores que circulavam
no Santa Marta desde a chegada da UPP.
Depois de dois anos de campo no Santa Marta, comecei a namorar um
pesquisador que fazia pesquisa na Cidade de Deus. E para acompanhá-lo comecei a
frequentar a aludida favela no fim de 2012. Nessas visitas era impossível não notar as
semelhanças e diferenças entre os processos de “pacificação” das duas favelas e
ignorar que nas duas localidades circulavam rumores muito semelhantes. Resolvi,
então, realizar um desdobramento da minha pesquisa na Cidade de Deus. Isso foi
possível a partir da ajuda de Diogo, que me abriu portas e indicou caminhos. Graças
aos seus contatos consegui entrevistar diversos moradores e também alguns
traficantes e ex-traficantes, o que me permitiu entender os impactos da UPP a partir
de um ponto de vista que não consegui acessar diretamente no Santa Marta.
Uma outra dimensão importante do meu trabalho de campo foram as
entrevistas com policiais. Fiz entrevistas com comandantes e outros agentes da UPP
no Santa Marta22, na Cidade de Deus23 e também no Parque Proletário. A pesquisa
nessa terceira favela foi bem mais curta e pontual do que nas duas anteriores, mas foi
motivada por meu desejo de observar os impactos da UPP em uma favela que tivesse
sido “pacificada” há menos tempo.
A pesquisa no Parque Proletário foi bem diferente dos casos anteriores.
Primeiramente porque a favela é considerada, pelos próprios PMs, como um dos
casos mais complicados entre os territórios "pacificados". Frequentemente aparecem
22
A maior parte das entrevistas que fiz com policiais do Santa Marta ocorreram em meados de 2013,
enquanto o capitão Rocha estava à frente da UPP. Fiz uma longa entrevista com ele que, em seguida,
liberou que policiais conversassem comigo. As entrevistas aconteciam dentro da sede da UPP, na parte
alta do morro. Quase todos os dias, quando eu chegava na sede da UPP, o comandante escolhia os
policiais que estavam disponíveis para falar comigo. Isso, de certa forma, facilitava o meu trabalho,
visto que era garantido que eu teria policiais disponíveis para entrevistar toda vez que eu fosse à favela.
Mas, por outro lado, o fato de as entrevistas serem uma “obrigação” – já que eram um pedido do
comandante e como os policiais mesmo afirmam “dentro do militarismo não há pedido mas sim
ordem” –, somado ao fato de serem realizadas durante o horário de trabalho e na própria sede da UPP,
em alguns casos, acabou gerando um desconforto/desconfiança em alguns policiais. Ainda que eles não
falassem explicitamente, era nítido que não estavam se sentindo muito à vontade naquela circunstância
para fazer críticas ao comando e ao projeto das UPPs. Por isso, além de fazer entrevistas mais formais,
resolvi também realizar algumas conversas informais com os policiais sem a presença potencialmente
intimidadora do gravador. Algumas dessas conversas aconteceram fora da sede da UPP. Durante esses
bate-papos, os policiais se mostravam menos receosos em falar sobre o projeto das UPPs e a relação
deles com outros policiais (incluindo o comandante), com os moradores do Santa Marta e os traficantes
que ainda atuam na favela.
23
Na Cidade de Deus também realizei entrevistas com policiais dentro de um dos prédios da UPP na
favela. Assim como no Santa Marta, o comandante da UPP da Cidade de Deus foi entrevistado e ele
escolheu os outros policiais que entrevistei nos dias posteriores.
32 na mídia relatos da ocorrência de tiroteios no local24. E, especialmente, no momento
em começava a estabelecer contatos na favela ocorreu um episódio violento que gerou
grande repercussão: o ataque feito por traficantes ao prédio da ONG AfroReggae na
favela25. Por isso, o clima estava bem tenso. As primeiras entrevistas foram realizadas
na sede da UPP. Para chegar até lá um policial me pegava de viatura e depois me
deixava fora da favela. Vale ressaltar que isso não acontecia nem na Cidade de Deus,
nem no Santa Marta, onde nunca precisei que alguém me acompanhasse para entrar
ou sair da favela.
Em uma de minhas idas ao Parque Proletário26, quando entrei na viatura da
PM, um policial da UPP me deu uma arma e disse em tom de brincadeira “segura aí
essa pistola, porque o bicho está pegando aqui. Agora pouco tacaram pedras na nossa
viatura!”. Esse clima de tensão era constantemente narrado pelos policiais que durante
as entrevistas27 sempre afirmavam que quase nenhum morador da favela falava com
eles e que a aproximação entre a UPP e a população ali era muito difícil. A partir das
narrativas dos policiais, parecia evidente para mim, portanto, que não seria fácil me
aproximar dos moradores depois de muitas pessoas já terem me visto conversando
com policiais e circulando pelo morro dentro de viaturas da PM. Por isso, acabei
optando por fazer entrevistas somente com policiais nessa favela.
24
Alguns moradores chegam até mesmo a dizer que, naquela localidade, a UPP não trouxe a paz, mas a
guerra, já que a proximidade espacial entre polícia e tráfico teria gerado tiroteios com mais recorrência
do que no período anterior à chegada da UPP
25
Na época a Coordenadoria de Polícia Pacificadora divulgou uma nota comentando o ocorrido:
“Policiais da UPP Parque Proletário trocaram tiros agora há pouco com criminosos que passaram de
moto atirando contra o prédio da ONG AfroReggae (...) A fachada do prédio foi alvejada por diversos
tiros mas ninguém ficou ferido. (...) Vale lembrar que, logo após os disparos, começaram a surgir
denúncias de que o ataque ao AfroReaggae teria acontecido a partir de ordens de um pastor e de chefes
presos da facção Comando Vermelho” (Trecho de uma reportagem divulgado pelo jornal O Dia em 01
de agosto de 2013).
26
A UPP do Parque Proletário atende a mais de 19 mil moradores (Fonte: Instituto Pereira Passos, com
base no Censo 2010 do IBGE) em toda a região de 301.588 m² e faz parte do Complexo da Penha,
situada no bairro da Penha, Zona Norte do Rio. Com mais de 3,5 mil habitantes e 400 domicílios, a
comunidade do Parque Proletário tem ligações diretas com os bairros de Engenho da Rainha, Olaria e
Penha Circular. A iniciativa para instalação de uma UPP no local – juntamente com a da Vila Cruzeiro,
inaugurada no mesmo dia – completou o que o Governo chama de “cinturão de segurança” previsto
para os complexos da Penha e do Alemão.
27
As primeiras entrevistas que fiz com policiais aconteceram na sede da UPP do Parque Proletário. As
entrevistas aconteciam, por sugestão do comandante, na cozinha da casa que antes da chegada da
polícia era residência de um famoso traficante do morro. Como a tal cozinha ficava perto da sala do
comandante e, muitas vezes, diversas pessoas ficavam entrando e saindo do local para pegar alguma
coisa – como água na geladeira, comida no forno etc. – diversos PMs não demonstravam estar muito à
vontade para fazer críticas ao projeto da UPP e ao comandando local. Quando fiz entrevistas fora da
sede, como por exemplo, perto de um dos contêineres da UPP na favela, os policiais se mostraram bem
mais à vontade para criticar o projeto e falar sobre as dificuldades do trabalho na favela.
33 Desde o início do trabalho de campo, a aproximação com policiais já tinha
sido vivenciada por mim como uma questão problemática, pois sabia que ela poderia
me “contaminar”. Eu notava em campo que os moradores comentavam quando
alguém falava com algum PM e especulavam por que tal contato estava ocorrendo.
Por isso, eu nunca sabia ao certo quando deveria ou não falar com os policiais.
Quando conversei sobre esse dilema com alguns moradores, uns me diziam
que eu podia falar com os policiais e participar das atividades promovidas pela UPP,
desde que eu fizesse isso sempre a partir da intermediação de uma pessoa que mora na
favela. A intermediação de uma pessoa local serviria para “legitimar” meu contato
com a polícia e assim evitar a desconfiança por parte dos outros moradores. Outras
pessoas diziam que não era um problema eu falar com policiais, porque eu era “de
fora”, razão pela qual todos saberiam que não entendo os códigos locais. Depois de
pensar muito sobre o assunto, acabei resolvendo seguir o primeiro conselho. Decidi
que só me aproximaria da comandante e de outros policiais – pelo menos na fase
inicial da pesquisa – em situações nas quais algum morador me convidasse para
participar de um evento ou de uma atividade organizada pela polícia. Mesmo assim,
quando esses convites aconteciam, eu ainda ficava um pouco receosa.
Em novembro de 2010, por exemplo, fui convidada por Fabiano, um morador
do Santa Marta, para participar de um curso de escoteiros que a UPP estava
organizando. Fabiano me contou que estava ajudando a comandante Priscilla Azevedo
a recrutar pessoas para se tornarem monitores que futuramente formarão um grupo de
escoteiros no Santa Marta. O primeiro treinamento ocorreria no Morro Azul. Achei
que acompanhar o curso poderia ser uma boa oportunidade para observar a interação
entre policiais e moradores em um ambiente fora do Santa Marta, mas confesso que
fiquei receosa pois o fato poderia chegar ao conhecimento de outras pessoas. Mas
como Fabiano insistiu para eu ir, resolvi participar.
No sábado, dia 13 de novembro de 2010, acordei atrasada e desci correndo
para a Praça Corumbá. Eu tinha combinado de encontrar com Fabiano às oito e meia
da manhã em um ponto na pracinha, mas chegando lá não achei ninguém. Fiquei
conversando um pouco com uma moradora que trabalhava na feira de artesanato que
estava sendo realizada ali, até ver um gol preto com os vidros bem escuros chegar.
Desconfiei que poderia ser o carro da Priscilla, pois já sabia que ela não andava em
uma viatura policial para evitar ser identificada. Fiquei olhando e ela logo abaixou o
vidro para falar comigo. Cheguei perto do carro, ela falou que o pessoal já estava
34 chegando, que ela estava ligando para as pessoas. Assim que ela acabou de falar,
afastei-me do carro e fiquei na praça, longe dos policiais, à espera de Fabiano. Na
verdade, estava com medo que alguém passasse e me visse falando com ela. E foi só
eu pensar nisso e logo passou por ali uma das principais lideranças da favela, que se
me visse falando com Priscilla, certamente eu me sentiria obrigada, posteriormente, a
explicar porque eu estava ali falando com a comandante naquela situação.
Quando Fabiano e Anderson chegaram à Praça senti que o desconforto do
contato com os PMs não era só meu. Anderson estava nitidamente tenso e Fabiano
tentava acalmá-lo. Anderson perguntou várias vezes como íamos para o Morro Azul,
deixando claro que não aceitaria ir na viatura policial. Ele repetia insistentemente que
queria ir no carro dele. Fabiano mandava Anderson deixar de ser bobo, porque era
besteira gastar gasolina se podia ter carona.
Ficamos conversando um pouco mais até Priscilla nos chamar. Confesso que
ao entrar no banco de trás do gol preto fiquei tensa28. Mas quando chegamos ao
Morro Azul, Fabiano, Anderson e eu, relaxamos um pouco. O clima ficou mais leve e
tudo transcorreu sem tensão durante o curso. Na volta para o Santa Marta, ao
chegarmos à entrada da favela, Priscilla perguntou se queríamos que eles nos
deixassem de carro lá em cima. Eu não disse nada, mas não queria, para evitar que
outras pessoas me vissem saindo do carro da polícia. Mas como Fabio e Anderson
também não falaram nada, então não teve jeito, tivemos que sair do carro no pé da
escada, que estava cheio de gente. Logo depois que saímos do carro e nos despedimos
de Priscilla, fui falar com um morador que me perguntou em tom crítico se eu tinha
ido ao curso de escoteiro. Falei que sim e ele ficou debochando dizendo que agora eu
estava “amiguinha da Priscilla”. Tentei explicar que para minha pesquisa era
importante acompanhar esse tipo de atividade e ele falou que no meu caso ele até
entendia, mas que achava ridículo o Fabiano ficar de papo com a Priscilla.
Esse episódio ilustra como o contato com policiais na favela tem um potencial
“poluidor” (mesmo para pessoas “de fora” como eu). Ser considerada “amiguinha da
Priscilla”, ou de qualquer outro policial, é uma categoria de acusação, que rotula o
28
Vi Priscilla tirando a arma que estava em cima do banco. E fiquei ainda mais tensa quando o carro
saiu e vi que uma viatura cheia de policiais (uma blazer com identificação da UPP Santa Marta) seguianos logo atrás, escoltando o gol preto. O motorista perguntou quem sabia qual era o caminho e Fabiano
foi explicando. Enquanto isso, Priscilla ligou para um dos policiais que estava no carro de trás e disse:
“a princípio lá está tudo tranquilo, não precisa chegar igual você chegou em Manguinhos aquele dia lá,
no pá, pá, pá, pá, pá” (imitando o som de tiros).
35 outro como um possível delator. E um fato curioso é que enquanto alguns moradores,
em tom de brincadeira, me acusaram de ser “amiguinha da Priscilla”, também com o
tom de quem estava brincando, Priscilla me acusou de ser X9. Isso aconteceu alguns
meses depois de a policial ter deixado o comando da UPP.
Para explicar melhor, preciso ressaltar que, no início da minha pesquisa me
apresentei para Priscilla dizendo que era pesquisadora. Mas como, posteriormente, eu
sempre frequentava eventos da UPP acompanhada de moradores e na época eu
também estava morando na favela, ela parece ter esquecido do fato de que eu era
pesquisadora. Só notei que isso aconteceu em um dia que eu estava em um evento no
qual eram apresentados os resultados de uma pesquisa sobre as UPPs.
No evento realizado no centro da cidade só havia PMs e pesquisadores –
moradores de favelas não foram convidados para o tal seminário. Eu estava sentada
na plateia, esperando a apresentação começar quando notei que Priscilla tinha
chegado ao local. Ela me olhou de um jeito estranho, com um olho arregalado e na
hora não entendi bem o que estava acontecendo. No intervalo da apresentação, ela em
tom de brincadeira disse “ah, agora descobri que você é X9, fingia que era moradora
do Santa Marta mas na verdade é pesquisadora, né?”. Expliquei que, de fato, eu morei
na favela por quase um ano, mas que nunca escondi de ninguém que era pesquisadora.
Em tom de brincadeira ela disse que estava doida para ler os resultados da minha
pesquisa. E eu disse que ainda não tinha terminado a tese, mas que assim que
terminasse, ela seria disponibilizada para todos que tivessem interesse.
Embora a conversa tenha sido bem rápida e sem consequências posteriores,
confesso que fiquei impressionada por Priscilla ter me chamado de X9. O fato de ter
considerado que eu era uma possível “delatora” reforçou algo que eu já havia notado
anteriormente: os policiais da UPP, assim como os traficantes que atuam em áreas
“pacificadas”, também sentem-se vigiados na favela e, em alguma medida, também se
preocupam com delações e denúncias que possam ser feitas contra eles.
Para completar o relato da minha experiência pessoal, gostaria de ressaltar que
assim como tive medo que moradores me vissem com policiais durante o trabalho de
campo, também tive medo que policiais me vissem conversando com traficantes. Por
isso, evitei falar com traficantes no Santa Marta que é uma favela muito pequena,
onde eu achava que seria impossível estabelecer qualquer contato sem que as pessoas
observassem com quem eu estava falando. No caso da Cidade de Deus, como a favela
é muito maior e eu conhecia um número menor de moradores, eu me sentia menos
36 vigiada. Mas, ainda assim, quando tive a oportunidade de entrevistar traficantes,
fiquei com medo de ser vista por policiais conversando com os “meninos”. Embora eu
não achasse que seria rotulada como “envolvida” ou “conivente” com o “mundo do
crime” – como um morador da favela, certamente, seria se fosse visto por policiais
tendo contato com traficantes – tinha medo de que o contato pudesse causar um
estranhamento entre os policiais com quem eu já havia conversado. Tinha medo
basicamente que eles achassem que eu pudesse “soltar” para traficantes informações
que ouvi dentro da UPP. Do mesmo modo, também tinha receio de que os traficantes
com quem conversei achassem que eu pudesse contar para os policiais as informações
que me passaram. Além disso, eu temia ainda que os moradores me vissem como
alguém que estava fazendo circular para a polícia ou para o tráfico as informações que
me contavam.
Em resumo, ainda que ninguém prestasse atenção no que eu estava fazendo e
observasse com quem eu estava falando, eu me sentia vigiada durante meu trabalho
de campo. E, com o passar do tempo pude perceber que isso não era uma paranoia ou
“neurose” minha. Notei que estava apenas experimentando sensações semelhantes
àquelas que os moradores experimentam ao viver em um território que é
constantemente monitorado tanto por traficantes como por policiais. Considero que
talvez o fato de ter experimentado tais sensações – e ter aprendido, de certo modo, a
fazer os mesmos raciocínios antecipatórios e usar os mesmos mecanismos que os
moradores para evitar contaminações – tenha me tornado mais sensível para entender
o regime territorial que chamo de “campo minado”.
5. Investigando os “processos de investigação” da UPP: roteiro da tese
Nesta tese analiso, portanto, o processo de “pacificação” de favelas cariocas a
partir das pesquisas que fiz entre 2009 e 201429 no Morro Santa Marta (localizado em
29
Minha pesquisa estendeu-se entre 2009 e 2014. Mas durante esses seis anos tive períodos de
afastamento e de reaproximação do campo. Em outubro de 2009, comecei o trabalho de campo no
Santa Marta. No início de 2010 me mudei para a favela, onde morei por quase um ano. Como recebi
uma bolsa de doutorado sanduíche para estudar por um ano na Vrije Universiteit Amsterdam, entre
junho de 2011 e junho de 2012, fiquei afastada do campo. Nesse período, mantive contato com meus
interlocutores por e-mail, pelas redes sociais e por telefone. O afastamento do campo nesse momento
foi importante para reler e organizar todos os meus diários de campo, além de transcrever, analisar as
entrevistas e começar a rascunhar o desenho da tese. No segundo semestre de 2012, quando voltei para
o Rio, retomei o trabalho de campo no Santa Marta. Comecei outra parte da pesquisa na Cidade de
Deus no final desse mesmo ano. Em 2013, com um financiamento da CLACSO, fiz novas entrevistas
no Santa Marta e na Cidade de Deus e ainda no Parque Proletário. Entre setembro de 2013 e agosto de
37 Botafogo na Zona Sul), na Cidade de Deus (localizada em Jacarepaguá na Zona
Oeste) e no Parque Proletário (que faz parte do Complexo da Penha localizado na
Zona Norte). Segue, abaixo, um mapa da cidade do Rio de Janeiro com a localização
dessas e de outras favelas “pacificadas”:
Fonte: http://www.riomaissocial.org/territorios/ (Acessado em 15 de março de 2015)
No Santa Marta e na Cidade de Deus, além do trabalho de campo, entrevistei
moradores com perfis bem variados. As entrevistas foram realizadas, por exemplo,
com crianças, jovens, idosos, adultos, trabalhadores, estudantes, lideranças
comunitárias, lideranças religiosas, entre outros. Além de moradores, nas três favelas
2014, passei mais um período fora do Brasil e escrevi grande parte dessa tese entre Saint Louis, Paris e
Amsterdam. Ao retornar ao Rio de Janeiro fui algumas vezes ao Santa Marta e à Cidade de Deus para
matar as saudades de muitos dos meus interlocutores que acabaram se tornando meus amigos. Tive,
então, a oportunidade de conversar sobre o que tinha mudado nessas favelas durante o período em que
estive fora do Brasil e apresentar para eles as ideias que estava elaborando na tese.
38 pesquisadas, fiz entrevistas semiestruturadas com policiais recém-formados, agentes
mais antigos, praças e oficiais. Entrevistei homens e mulheres policiais com idades
variadas, com diferentes graus de escolaridade, com variados locais de moradia –
muitos eram de outras cidades do Estado do Rio de Janeiro – e trabalhavam nos mais
variados setores das UPPs, excercendo tanto funções burocráticas como operacionais.
Por fim, entrevistei traficantes da Cidade de Deus. Como era mais difícil conseguir
entrevistar pessoas envolvidas no “mundo do crime”, o perfil dos entrevistados não
foi tão variado. Mas ainda assim consegui conversar com um gerente, com vapores e
jovens que tinham saído há pouco tempo “do crime”.
Vale ressaltar que, ao longo dessa tese, não identifico meus entrevistados, com
exceção de figuras públicas, como comandantes de UPP e lideranças comunitárias.
Não adiantaria eu mudar o nome dessas pessoas, pois ainda assim seria muito fácil
identifica-las. Mas todos os outros entrevistados tiveram seus nomes, assim como
seus perfis e suas trajetórias de vida omitidas para que o anonimato dessas pessoas
fosse garantido.
Gostaria de esclarecer ainda que o material que tenho do Santa Marta, da
Cidade de Deus e do Parque Proletário é bastante desigual, pois o tempo de pesquisa
em cada localidade variou bastante. Fiz trabalho de campo por muito mais tempo na
favela de Botafogo, aonde cheguei a morar por um ano. Na favela de Jacarepaguá,
embora tenha feito a pesquisa por um período de tempo mais curto, me beneficiei das
redes de contato do meu namorado que já fazia trabalho de campo na favela. No
Complexo da Penha, fiz apenas algumas entrevistas com policiais. Deixo claro,
portanto, que muito embora, em diversos momentos da tese, eu compare essas três
favelas, meu objetivo não era fazer uma comparação sistemática e exaustiva entre elas.
E isso pode ser notado no desenho dessa tese.
Ao invés de organizar a tese a partir das diferenças ou semelhanças entre as
favelas nas quais fiz trabalho de campo, preferi focalizar no processo de investigação
que os atores dessas localidades empreenderam a partir da “pacificação”. Ou seja,
foram as etapas desse processo que escolhi para estruturar e apresentar o ponto de
vista das pessoas diretamente afetadas pelo processo de “pacificação” 30. Esta tese está
dividida, portanto, em cinco partes, cada qual com dois capítulos.
30
Gostaria de enfatizar que não sugiro que todas as outras favelas que posteriormente foram ou ainda
serão “pacificadas” passaram ou ainda vão passar pelo mesmo processo de investigação observado no
Santa Marta e na Cidade de Deus, até porque houve um processo cumulativo no qual o próprio projeto
39 Na primeira parte da introdução, mostrei como a chegada daquilo que sequer
tinha o nome UPP foi vivido tanto pelos moradores da favela quanto pelos agentes do
governo como uma situação indeterminada. Ninguém, naquele momento, sabia ao
certo do que se tratava. Na parte I da tese, avanço e apresento como, por meio de suas
investigações iniciais, os próprios atores envolvidos no processo transformaram
alguns aspectos da indeterminação inicial em uma situação problemática, isto é, uma
situação cuja indeterminação passou a ser experimentada, no caso, em vista de novas
formas de produção de rotinas. Mostro como a investigação dos atores foi um esforço
individual e coletivo para definir a situação e produzir um diagnóstico a respeito do
que estava acontecendo.
No capítulo 1, foco-me no ponto de vista dos “invasores”, ou seja, a
perspectiva dos não residentes que chegaram à favela. Como as UPPs nasceram como
um projeto que “foi se conformando a partir da experiência prática, sem estruturação
prévia” (CANO; BORGES; RIBEIRO; 2012, p. 29), analiso como elas foram
experimentadas e testadas pelos agentes da Secretaria de Segurança que trabalharam
na sua elaboração. Além disso, mostro também como o projeto foi experimentado
pelos primeiros comandantes de UPPs e pelos PMs que atuaram no início do projeto.
Isso é importante, pois como indica o secretário de Segurança doestado do Rio de
Janeiro, José Mariano Beltrame, o novo modelo de policiamento foi “um desafio para
o próprio policial, que também experimentou um aprendizado sobre como agir
naquela circunstância” (2014, p. 166). Utilizo como fontes empíricas para essa análise
matérias publicadas em jornais, depoimentos públicos de funcionários do governo
feitos durante seminários cuja temática central eram as UPPs, além de entrevistas
realizadas com comandantes e policiais que atuam em áreas “pacificadas”.
Em seguida, meu enfoque se dá a partir dos “invadidos”, ou seja, aqueles que
residiam no território da favela, que são os moradores e os traficantes. No capítulo 2,
foi sendo testado, elaborado e modificado. Portanto, os processos de investigação que têm início
quando uma favela é “pacificada” podem envolver características distintas que não abordo aqui e,
mesmo se quisesse, não teria condições de fazê-lo, já que, embora tenha circulado por outras favelas,
fiz trabalho de campo por mais tempo apenas nas duas primeiras favelas “pacificadas”. Mas vale notar
que embora minha análise não possa ser utilizada de forma mecânica no estudo de outros casos, isso
não significa que não existam traços comuns nas experiências de “pacificação” que não possam ser
analisados a partir de cruzamentos de diferentes pesquisas. Ou seja, sustento que o que aqui apresento
não é suficientemente amplo espaço-temporalmente para ser generalizável para toda e qualquer favela
posteriormente pacificada, nem é demasiado particular para que tudo seja redutível às duas primeiras
favelas pacificadas. Em todo o caso, o que é generalizável ou não deve ser sempre uma questão a ser
explicada à luz de cada nova pesquisa comparativa sobre o processo e pacificação.
40 portanto, mudo o ponto de vista e apresento como a indeterminação gerada pelo início
da ocupação permanente do Santa Marta e da Cidade de Deus foi vivenciada por
quem morava e/ou trabalhava nessas favelas. Analiso o processo de investigação
realizado por esses atores com base nos depoimentos dados em entrevista, mas
também a partir da análise dos rumores que circularam pelas primeiras favelas
“pacificadas”. Indico que o mapeamento dos “rumores da pacificação” abriu portas
para que eu acompanhasse algumas das principais mudanças nos “problemas públicos”
(ou seja, problemas prático-concretos, definidos e percebidos como parte da
experiência vivida) ocorridos nas favelas com UPP ao longo dos últimos seis anos.
A parte II da tese enfatiza a passagem das problematizações aos testes com
base nos primeiros resultados da instalação do aparato policial. Examino, no capítulo
3, os ordenamentos produzidos e as resistências forjadas a partir das primeiras
medidas repressivas da UPP. As câmeras, as duras, a regulação dos serviços e da vida
cultural e as reações dos moradores são aqui enfocadas como os primeiros testes do
dispositivo policial que tanto definem os limites de ambos os lados – dos invadidos e
dos invasores – quanto permitem apontar caminhos para novas formas de rotinização
do espaço tensionado pela presença permanente do aparelho policial. Indico, portanto,
como o início do processo de “pacificação” gerou mudanças nas modalidades de
presença do tráfico e da polícia nas áreas com UPP.
No capítulo 4, apresento os testes ou simplesmente as tentativas da polícia
pacificadora para tornar possível e factível uma aproximação entre policiais e
moradores no novo regime de intensa proximidade territorial. Traumas passados,
incertezas em relação à permanência da polícia na favela, além da descrição de
ferramentas de aproximação e do caso exemplar da primeira comandante da UPP, a
major Priscilla Azevedo, são mobilizados para mostrar a complexidade que tais testes
envolviam. O ponto nesse quarto capítulo é mostrar como as ações da polícia nas
favelas “pacificadas” não estavam baseadas apenas na repressão de crimes e no
ordenamento do espaço – como evidencio no capítulo 3 – mas que também
envolveram uma dimensão mais preventiva, baseada na aproximação.
Na parte III, dedico-me a apresentar a passagem dos testes à rotinização31.
Para tanto mostro, primeiramente, no capítulo 5, como o contato entre a polícia e os
31
O que chamo aqui de rotinização seria o equivalente deweyano da situação estável – ou, o que talvez
seja mais preciso dizer, instabilidade tolerável. Em termos mais concretos, meu objetivo é mostrar
como e sob quais bases aconteceu, ainda que momentaneamente, a rotinização da UPP na favela.
41 traficantes nas áreas “pacificadas” deixou de basear-se centralmente no confronto e
passou a ter como elemento central as antecipações e as armadilhas que fazem parte
do que os próprios atores chamam de “jogo de gato e rato”. Aponto que, grande parte
dos moradores, embora desejasse manter-se em uma posição neutra, sem aderir a
qualquer um dos lados, também foi afetada por esse jogo, já que passou a viver
constantemente preocupada com os riscos que poderiam ser trazidos por possíveis
“contaminações” geradas pelos contatos tanto com traficantes quanto com policiais.
Em seguida, no capítulo 6, apresento como a partir de uma vigilância
constante moradores aprenderam a mapear traficantes e policiais (assim como
policiais aprenderam a mapear moradores e traficantes, traficantes também
aprenderam a mapear moradores e policiais). Mostro que com base nesses
mapeamentos, o potencial conflitivo nos territórios das favelas com UPP diminuiu.
Dito de outro modo, mostro que a partir de um reaprendizado cognitivo e corpóreo,
policiais, traficantes e moradores passaram a ter uma atenção sensível às novas “pistas”
(INGOLD, 2013) e variações ambientais capazes de ajudar na “medição do clima” da
favela em seu novo contexto. Com isso, deu-se um processo de rotinização das UPPs
cujo corolário imediato foi uma acomodação dos conflitos e um destensionamento
momentâneo das relações nas áreas “pacificadas”.
Na parte IV o objetivo é examinar como essa “acomodoção”, que ocorreu
entre 2010 e 2011, no entanto, foi temporária e outras indeterminações passaram a
emergir como consequência da chegada da UPP. No capítulo 7, não tomo mais a UPP
como indeterminação, mas, sobretudo, o projeto como fonte de novas oportunidades e
preocupações tais como a elevação do custo de vida, o aumento da presença de
turistas e do mercado na favela.
No capítulo 8, trato de novas inseguranças que surgem em “tempos de paz”.
Abordo alguns casos de estupro e furtos ocorridos no Santa Marta e na Cidade de
Deus. Mostro como o aumento de crimes não letais em áreas com UPP que,
inicialmente, era menosprezado pela polícia, com o passar do tempo, é
estatisticamente comprovado e essa comprovação passa a ser utilizada como subsídio
para a elaboração de uma crítica à prática policial implementada pela UPP nas favelas.
Na parte V, mostro como o surgimento de novas indeterminações levou os
atores a terem que empreender novos processos de investigação em territórios
“pacificados”. No capítulo 9, atenho-me à investigação dos impactos gerados pelo
enfraquecimento progressivo das UPPs. Inicialmente analiso como os moradores
42 especulam que tal enfraquecimento pode acabar levando a UPP a se transformar em
uma milícia. Em seguida avalio como as soluções trazidas pelo “milagre” das UPPs
vão se desfazendo e, pouco a pouco, os moradores vão tendo a sensação de que está
havendo uma “volta da corrupção policial”, um (re)fortalecimento do tráfico e que,
por fim, “tudo está voltando a ser como era antes da UPP”. A volta da presença dos
“radinhos”, dos sofás e troncos de árvore no meio da rua, das pistolas na rua etc., são
apresentados como pequenos indícios que configuram, para boa parte dos moradores,
um retorno à situação pré-“pacificação”. Sugiro que essas novas dinâmicas geraram
um retensionamento do clima nas favelas “pacificadas”.
Aproveitando o ensejo das críticas que apontam para o enfraquecimento do
aparato policial permanente, no capítulo 10 apresento o esboço de uma sociologia da
crítica das UPPs. Trata-se, de um lado, de um primeiro esforço de formalização das
críticas endereçadas à UPP nos seis últimos anos e, de outro, da tentativa de elaborar,
de maneira mais sistemática, sintética e inteligível, uma breve história, tipologizada
em fases, desses anos de “pacificação”.
Em um primeiro momento, arrisco uma resposta possível para a formação do
consenso em torno das UPPs, consenso esse seguido de um desarmamento, ainda que
temporário, da crítica em relação à política de segurança, pautada pela lógica das
incursões violentas intermitentes, que vinha sendo praticada no Rio de Janeiro até
então. Em um segundo momento, tento mostrar como, a partir de 2011, ocorre uma
quebra do consenso em torno das UPPs, cujo corolário é um progressivo reamarmento
da crítica. Argumento que o rearmamento se consolida, em definitivo, a partir das
Jornadas de Junho de 2013, mais precisamente com o caso do desaparecimento do
pedreiro Amarildo. Sustento, então, que, a partir desse caso, o antigo consenso se
bifurca em duas outras posições. De um lado alguns críticos passam a sustentar que a
UPP é, para fazer alusão à famosa frase de Churchill sobre a democracia, a pior
política de segurança, exceto todas as outras, razão pela qual é preciso fortalecê-la. De
outro, há os que defendem, sob o lema do “Fim das UPPs!”, que todo o projeto de
segurança que deve ser trocado, uma vez que a “pacificação” nada seria além do que a
reprodução das políticas repressivas de Estado vigentes há tantos anos.
Por fim, nas considerações finais tento dar uma resposta à pergunta inicial que
sempre esteve presente ao longo de toda a trajetória etnográfica dessa tese:
continuariam os moradores dos territórios favelados confinados à “vida sob o cerco”
(MACHADO DA SILVA; LEITE, 2008)? Argumento que sim, essa experiência
43 subsiste na nova situação pós-pacificação. Contudo, isso não quer dizer que ela não
tenha sofrido transformações qualitativas relevantes cuja explicitação se faz mais do
que necessária. E, assim, termino a tese com um esforço para descrever essa nova
fenomenologia do habitar que emerge a partir do contexto pós-UPPs.
Meu argumento é que uma configuração socioterritorial cujo aumento do
tensionamento emerge a partir da coabitação e da proximidade espacial permanente
entre o tráfico e a polícia nas favelas, acaba gerando lógicas de comportamento
baseadas na intensificação do monitoramento do outro e de si. Meu ponto é que se
antes, na experiência de “vida sob cerco” anterior à “pacificação”, temia-se sobretudo
os tiroteios e as possíveis “balas perdidas”, já agora o medo estaria calcado na
antecipação de possíveis contaminações geradas pelo contato ou com o tráfico ou com
a polícia. O que chamo de regime de “campo minado” é justamente essa dinâmica,
mais psicológica e interiorizada, de evitações, cálculos e cuidados cujo objetivo final
é evitar ser visto em situação comprometedora – por exemplo, ser visto junto dos
bandidos pelos policiais ou junto dos policiais pelos bandidos. Nesse contexto no qual
a continuidade das rotinas tem um menor risco de ser interrompida pela irrupção de
tiroteios, a vida dos moradores não se torna por isso, digamos, mais “pacífica” e
“tranquila”. As ações violentas potenciais continuam presentes e o esforço da maior
parte dos moradores consiste em antecipar e evitar movimentos, contatos e situações
que possam sugerir que eles “fecham” com a polícia ou com o tráfico (ou seja,
apoiam um dos lados).
Por fim, antes de iniciar o primeiro capítulo, gostaria de explicitar, desde já,
que ao longo da tese faço um esforço para analisar o fenômeno das UPPs a partir de
suas consequências que, por definição, não podem ser caracterizadas a priori como
boas ou más. Por isso, faço um duplo afastamento: de um lado, refuto as análises,
comumente propaladas pela mídia, que enquadram as UPPs sempre como política
pública de impactos milagrosos, como um marco que reconfigurou por completo os
territórios favelados. Nessa acepção, com a qual não me identifico, os problemas e
efeitos maléficos são vistos como acidentes, pequenos desvios de percurso de uma
trajetória inabalavelmente de melhorias incontestes. Por outro lado, também não
considero a UPP simplesmente como “uma reprodução do mesmo”.
O filósofo William James, em sua famosa conferência sobre o pragmatismo,
definiu que o sentido de um ideia ou de um conceito só pode ser auferido e
mensurado pelas consequências práticas e concretas que ele produz. Ou seja: seu
44 sentido está na frente e é prioritariamente definido pelo modo como afeta o universo
da experiência das pessoas no mundo. E é assim que procuro olhar o projeto das UPPs,
a saber, a partir dos efeitos e consequências práticas que ela teve na vida dos
moradores e atores diretamente concernidos e afetados pelo projeto.
Como disse anteriormente, importa-me apurar as investigações desses sujeitos
diretamente concernidos pela chegada do aparato policial permanente. E se a UPP,
ainda para falar como James, foi uma “diferença que fez diferença”, não me cabe
definir se foi boa ou não. Meu objetivo não é definir o sentido do que seja a UPP, seja
através de críticas ou de elogios, mas deixar esse trabalho ao encargo dos próprios
atores. São eles, mediante as descrições que produzem sobre o modo como foram
afetados (ou seja, que diferenças reais o projeto fez na vida deles) por essa política de
segurança, que devem compor o quadro geral do que seja a UPP.
As UPPs, nesse sentido, são, como diria Bruno Latour (1995, p.21), um “objeto
cabeludo”, um fenômeno complexo, heterogêneo, multifacetado, e que por isso
necessita de um trabalho detalhado, infinitesimal, capilar, como diria Foucault (1975,
p.161), cujo sentido deve ser buscado nas consequências e experiências efetivas que
ele engendrou sobre a população afetada. Não tenho o objetivo, portanto, de descrever
um sentido maior do projeto e dizer no lugar dos que “viveram e o sentiram na pele” o
que é a UPP. Ao contrário, levar os atores a sério implica em segui-los em suas
descrições do fenômeno, independentemente de onde isso leve. Portanto, tentarei, ao
longo da tese, apresentar a UPP não como objeto, mas como problema, problema esse
que teve impactos múltiplos, cujos sentidos, como diz o método pragmatista (JAMES,
2007, p.112-113), deve ser definido por suas consequências práticas e concretas, ou
seja, pela diferença que ela produziu e fez na vida dos policiais, dos traficantes e,
especialmente, dos moradores de favelas “pacificadas”.
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