Lina Bo Bardi - docomomo bahia

Transcrição

Lina Bo Bardi - docomomo bahia
Lina Bo Bardi: o encanto, o desenho e o tempo que inventa um lugar Bahia.
Thais de Bhanthumchinda Portela.
Pós-Doutoranda Júnior do CNPQ e Pesquisadora Associada ao
PPGAU/UFBA - Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo/Universidade Federal da Bahia.
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Lina Bo Bardi: o encanto, o desenho e o tempo que inventa um lugar Bahia
Resumo
Para as[os] arquitetas[os] o desenho é linguagem. Através deste sistema de representação,
elaborado ao longo de séculos de experimentações gráficas que se acumulam desde o tratado sobre
a arquitetura organizado por Vitruvius, as[os] arquitetas[os] comunicam e
informam sobre seus
pensamentos. Pelo desenho suas intenções realizam-se concretamente, as informações do mundo
das idéias fluem para o mundo da matéria. É uma linguagem que se realiza em diferentes modos de
expressão - modos que passam pelo sistema de representação do desenho de observação, do
desenho de apresentação e do desenho técnico. Com o domínio desta linguagem, a[o] arquiteta[o]
cria um diálogo pessoal com esses modos de expressão gráfica e isso define, para cada profissional,
um estilo iconográfico próprio. Entendemos que a iconografia de cada arquiteta[o] apresenta uma
determinada compreensão e uma determinada colocação sobre o espaço e sobre o mundo que o
constitui e, através deste instrumento- o desenho- a[o] arquiteta[o] cria uma apreensão e
compreensão muito própria do território, da geografia e da paisagem porque, a partir de suas
representações gráficas sobre o espaço, a[o] arquiteta[o] inventa o lugar. Como toda linguagem, o
desenho é um sistema de comunicação e de informação dialógico. Ao desenhar lugares a[o]
arquiteta[o] compreende o espaço, intervém sobre ele, mas esse lugar inventado também modifica
a[o] profissional. Podemos dizer que a[o] arquiteta[o] inventa o lugar e, a invenção do lugar re-inventa
a[o] arquiteta[o]. Este é um processo reflexivo a que damos o nome de encanto. Enquanto processo,
o encanto acontece no tempo, com o tempo e, portanto, envolve a transformação, tanto do lugar
como da[o] própria[o] arquiteta[o]. Na antropologia clássica este encanto é minuciosamente evitado.
Faz parte do método da disciplina o antropólogo manter-se a distância do nativo para não perder sua
imparcialidade científica. Na arquitetura este encantamento é necessário. Sem este processo
reflexivo o lugar não se inventa e as arquiteturas já nascem mortas, seja no mundo das idéias como
no mundo da matéria. Poucas[os] arquitetas[os] conseguiram realizar o encanto como Lina Bo Bardi.
Em um processo de encantamento com a iconografia da arquiteta, este texto realiza uma narrativa
exploratória sobre o encanto de Lina Bo Bardi, no tempo em que esta esteve na Bahia.
“A liberdade do artista foi sempre “individual”, mas a verdadeira
liberdade só pode ser coletiva.”
Lina Bo Bardi 1976.
Lina Bo Bardi: o encanto, o desenho e o tempo que inventa um lugar Bahia.
Este é um encontro para falarmos de Lina Bo Bardi. O que teria eu para dizer da Lina? Muito
pouco se consideramos que não sou uma especialista na sua obra. Mas tomo a liberdade
para escrever da Lina pelo encanto que sua obra realiza em mim, pelo tanto que esta
arquiteta cria, em mim, a arquiteta que sou. Desta feita me sinto legítima para falar algumas
coisas que a arquiteta Lina Bo Bardi.
O encanto do qual falo é uma relação afetiva que produz um modo de conhecer e
compreender o tempo e o espaço que faz linhas de fuga com o racionalismo presente na
produção científica. O conhecimento produzido que indica o começo, o meio e o fim dos
processos, em que o tempo flui sem nunca mais voltar e que delimita o que é da
individualidade de cada um [como dizer: dois corpos não ocupam o mesmo lugar do
espaço]. O encanto é da ordem do tempo circular que conserva. Deleuze e Guatarri (1992,
p.213) dizem: “a moça[em uma pintura] guarda a pose que tinha há cinco mil anos, gesto
que não depende mais daquela que o fez. O ar guarda a agitação, o sopro e a luz que tinha,
tal dia do ano passado, e não depende mais de quem respirava naquela manhã.” Mas o
bloco de sensações desta criação mantém-se expressivamente, sólido e durável, e dali
extraímos percepções e afetos com os quais nos agenciamos ainda hoje- assim damos
voltas no tempo e realizamos o encantamento.
O encanto é da ordem dos corpos incorporados de reciprocidade [como dizer: carrego fulano
em meu peito, estou nele e ele em mim]. Nestes termos o encantamento rompe com os
princípios lógicos e simbólicos da História e cresce pela ordem de uma pequena fabulaçãode uma pessoa que compreende um outro porque este outro não para de espelhá-lo. Enfim,
não estou aqui buscando uma interpretação da História da obra e do pensamento de Lina,
estou aqui narrando como carrego Lina em mim.
Para começar Lina é mulher e isso reverbera. Não por questões feministas ou por pura
contabilidade de gênero, mas porque ser mulher leva a uma determinada condição de estar
no mundo, mundo esse em que as grandes obras de arquitetura e de urbanismo são
discutidas e realizadas majoritariamente por homens, a maioria ocidentais, a maioria
brancos e a maioria vindos dos países de economia hegemônica. Tal situação demarca um
jogo de forças que repercute na sensibilidade ética e estética da nossa sociedade e na
produção de tempos e espaços das arquiteturas e urbanismos, tanto modernos como
contemporâneos.
Para provar basta ver a qualidade da atuação de Lina como a “architetto” e o tão pouco que
construiu ou o quão pouco sua obra é conhecida e estudada, comparando-a à trajetória dos
grandes arquitetos homens. Mais, para além de Lina, quais são as nossas grandes
arquitetas modernas e contemporâneas? Mas não é isso que vou discutir aqui. Esse
parágrafo é para dizer que daqui para frente, vou irromper o uso estabelecido do artigo
masculino que se generaliza para homens e mulheres e usar o artigo feminino para indicar o
Homem, o ser humano. Esta escolha na construção do texto é uma homenagem à
“architetto” Lina Bo Bardi (era assim, no masculino, que ela se apresentava, desde a década
de 1940) e à sua enorme capacidade de irromper os limites, de vários tipos de ordem,
previamente estabelecidos.
O primeiro encantamento, de Lina em mim, que quero falar são seus desenhos e a liberdade
que estes contém. Para as arquitetas o desenho é uma linguagem. Através deste sistema de
representação, elaborado ao longo de séculos de experimentações gráficas acumulados
desde o tratado sobre a arquitetura organizado por Vitruvius (primeiro século d.C.), as
arquitetas comunicam e informam sobre seus pensamentos e estes
realizam-se
concretamente- o mundo flui para as ideias das arquitetas e estas fluem para o mundo da
matéria- seja num edifício, num texto ou até mesmo em um simples desenho.
É uma linguagem que se realiza em diferentes modos de expressão- modos que passam
pelo sistema de representação do desenho de observação, do desenho de apresentação e
do desenho técnico. Cada um desses momentos adequam-se a uma determinada situação
ou necessidade:
-#1: desenho de observação: na linguagem arquitetônica atual usa-se um sistema de
representação desenvolvido a partir da técnica do desenho naturalista e dos estudos dos
sistemas projetivos do Renascimento. Usado na arquitetura e no urbanismo para observar e
perceber as relações de um lugar [espaço físico cercado de relações materiais e imateriais]
com perspicácia [ capacidade de penetrar com sutileza no âmago das coisas e dos fatos,
capacidade de prever o desenrolar de uma situação/ sagacidade]. A partir deste desenho
ganha materialidade as primeiras idéias das arquitetas- são os croquis. É o momento mais
“livre”, o desenho é “solto” mas é quando fica mais visível a relação da arquiteta com o lugar.
Nos desenhos de observação fica implícita a ética do estar aí de cada arquiteta.
#2: desenho de apresentação: é uma linguagem que hoje muito se aproxima da publicidade
e do marketing no que tange à necessidade da sedução dos “clientes”, mas que existe há
muito tempo e que vem sendo laboriosamente elaborada por cada arquiteta desde Vitruvius,
isto é, há muito tempo, antes do outro ser considerado “consumidor”. Hoje “vende-se” a
idéia. Neste momento da linguagem o estilo iconográfico de cada arquiteta incorpora todos
os recursos imagéticos da época: perspectivas, fotomontagem, quadrinhos, simulações
digitais...para convencer, para capturar a atenção do outro sobre sua idéia para o lugar.
#3: desenho técnico: é uma linguagem desenvolvida no e para o mundo industrializado,
cujas convenções vem sendo mundializadas desde a Segunda Guerra Mundial por
instituições internacionais e nacionais, com caráter de lei [ABNT, isso, por exemplo]. O
desenho é preciso e convencionado por normas ditadas pelas necessidades da produção,
da manufatura. Na linguagem do desenho da arquitetura e do urbanismo este é um
momento de conclusão, onde acordos já foram estabelecidos entre as arquitetas e o outro e
as idéias ganham detalhamentos e especificações em escala para serem materializados.
Com o domínio desta linguagem, cada arquiteta cria um diálogo pessoal com esses modos
de expressão gráfica e isso define, para cada profissional, um estilo iconográfico próprio.
Parece óbvio tudo que foi escrito acima mas não é. Este longo processo de constituição da
linguagem das arquitetas hoje é naturalizado nas escolas de arquitetura, como se o desenho
fosse um bloco cristalizado de procedimentos que permite categorizar: isto é um desenho de
arquiteta, isto não é!
Muitas vezes mostrei os desenhos de Lina para os estudantes e vi o encantamento em
curso. De pronto muitos já julgavam: este não é um desenho de arquiteta, e pasmem já ouvi
“Esta mulher nem sabe desenhar!”. Em alguns poucos eu via olhos brilhando: liberdade!!!
Lina mistura os modos de expressão, solta os traços, cria um devir-criança em algo tão
“sério” como um desenho de arquiteta! Sua liberdade torna-se então a liberdade de alguns
estudantes que perdem o medo de desenhar e de se colocar em seus desenhos “infantis”
e... lá vai Lina carregada no peito dos meninos.
Mais, ela usa de uma grande perspicácia para inventar lugares e seus desenhos estão
plenos da sua ética do estar aí. Entendemos que a iconografia de cada arquiteta apresenta
uma determinada compreensão e uma determinada colocação sobre o espaço físico e suas
relações materiais e imateriais, isto é, sobre os lugares. Através do desenho a arquiteta cria
uma apreensão e compreensão muito própria do território, da geografia e da paisagem
porque, a partir de suas representações gráficas, a arquiteta inventa um outro lugar.
O estar aí deste texto não é uma grande apreensão filosófica. É somente uma tentativa de
entender o segundo encanto de Lina em mim: seus lugares. Porque Lina não cria apenas
espaço, ela cria espaços e relações, ela inventa outras relações para os lugares. E as
pessoas apropriam-se desses lugares, eles nunca são estéreis. Muitas arquiteturas e
intervenções urbanísticas o são. Belos desenhos que quando materializados ficam
cheios...de vento. Para explicar a ética do estar aí que vejo em Lina tenho que dar uma volta
e contar sobre o terceiro encanto de Lina em mim: o tempo. Vamos às fabulações...
O que define uma arquiteta? Qual é a especificidade desta profissão?
Era essa a grande dúvida que me acompanhava, quando vi pela primeira e última vez a
arquiteta Lina Bo Bardi, falando para milhares de estudantes de arquitetura no Encontro
Nacional dos Estudantes de Arquitetura em São Paulo. Logo depois ela viria a falecer, então
era por volta de 1992. Ali eu era uma das estudantes que viu uma mesa formada por
importantes nomes da arquitetura brasileira e Lina ali no meio dizendo algo que me marcou
profundamente: uma arquiteta se forma com o tempo, na vida e não quando recebe um
diploma da faculdade. Lá pelos quarenta, cinquenta anos, depois de trabalhar muito é que
se chega a alguma compreensão da arquitetura e, somente a partir daí, podemos nos
chamar de arquiteta. Lembro do desconforto dos meus colegas ao ouvir aquilo e tenho na
minha memória corporal a sensação de liberdade que me atravessou ao ouvir aquilo. Desde
então perdi a pressa de me fazer arquiteta e até hoje, já chegando aos quarenta, ainda me
dou ao luxo de dizer que ainda estou me formando.
Esta relação com o tempo não foi o primeiro encanto de Lina abordado no texto mas foi o
primeiro que aconteceu em mim. Este encanto me permitiu assumir uma postura de escuta
em todos os meus trabalhos. Se ainda sou uma aprendiz de arquiteta tenho todo direito de
falar que não sei, que quero mais explicações, que não tenho proposições prévias para
nenhum trabalho. Posso construir um projeto, um plano ou um texto perguntando para as
pessoas o que elas acham, como este deveria ser, qual o melhor modo de ele acontecer.
Posso também anunciar o nome das pessoas, deixar suas marcas, marcar seus rastros e
criar
um processo de produção que é coletivo. Não me faço “artista” no processo do
trabalho, me faço bando, ao invés, perco a individualidade para ganhar a liberdade.
Sem grandes considerações sobre o assunto, mais por falta de pressa em me assumir como
arquiteta do que por uma postura ética corporificada, fiz linhas de fuga com a postura
ensinada na escola de que a profissional deve “saber melhor” do que qualquer habitante o
que é adequado para sua casa/rua/cidade. A escuta ao outro não era um ensinamento, ou
quando muito era ensinada quase que como uma concessão, uma elegância no trato com o
outro, porque quem tinha a obrigação de definir quais qualidades estéticas deveriam moldar
o tempo e o espaço do outro, era a arquiteta. E, hoje, ao me debruçar sobre a História de
Lina, descubro que a relação com o tempo foi, também para ela, um aprendizado, mas de
uma profundidade muito maior do que eu poderia supor ao ouvir aquelas suas palavras na
década de 1990.
Ao chegar ao Brasil na década de 1940 ela era uma arquiteta moderna, cheia de um
pragmatismo racional funcionalista e um ideal progressista que a fazia escrever: “Como
deverão ser os interiores dos apartamentos para que esta aderência entre forma e vida se
manifeste e seja coerente?” A esta pergunta seguia todo um receituário moderno para a
disposição dos ambientes internos(BO BARDI, 1944). Mas Bierrenbach (2006/2007) conta
que o Brasil ofereceu a Lina a amarga experiência de vivenciar os descaminhos do
progresso...
“A tomada de consciência coletiva de mais de um quarto da
população mundial, aquela que acreditou no progresso ilimitado, já
começou. [...] A regeneração através da arte, credo da Bauhaus,
revelou-se mera utopia, equivoco cultural ou tranqüilizante das
consciências.” (BO BARDI, apud Bierrenbach, 2006/2007)
...e o tempo linear da arquiteta modernista dobrou sobre si mesmo. Lina abandonou “por
completo o entendimento do tempo exterior ao pensamento, que fixa os eventos em uma
linha reta e abstrata, e o substituiu por um tempo interior à consciência, que encaixa os
acontecimentos em novas e dinâmicas relações”, aponta Bierrenbach. Esta outra relação
com o tempo, Lina chamou de presente histórico (BIERRENBACH,2006/2007) .
“É preciso se liberar das “amarras”, não jogar fora simplesmente o
passado e toda a sua história; o que é preciso é considerar o passado
como presente histórico. O passado, visto como presente histórico, é
ainda vivo, é um presente que ajuda a evitar as arapucas... Frente ao
presente histórico, nossa tarefa é forjar outro presente, “verdadeiro”, e
para isso não é necessário um conhecimento profundo de
especialista, mas uma capacidade de entender historicamente o
passado, saber distinguir o que irá servir para novas situações de
hoje que se apresentam a vocês e tudo isso não se aprende somente
nos livros. [...] Na prática, não existe o passado, o que existe é o
presente histórico.” (BO BARDI, 1992, p. 61-62).
A atitude de forjar outro presente reterritorializa o tempo de modo singular no espaço. Essa
reterritorialização cria o lugar, mas de um modo muito distinto do teorizado por NorbergSchulz, na idéia do genius loci (idéia que permeia a maioria das intervenções nos bens
materiais patrimonializados e que é amplamente conhecida pelas arquitetas). Para esse
autor o lugar é um espaço particular que o tempo marca com uma expressão própria e
reconhecível. O lugar possui marcas distintas e à arquiteta cabe identificar e revelar este
caráter único, este “espírito do lugar”, em suas intervenções.
Com o presente histórico a noção do genius loci - do tempo que deve ser preservado porque
ainda “fala” em um espaço particular e que deve ser revelado por um especialista, a
arquiteta - perde consistência. O tempo passado não contém uma verdade a ser revelada,
ele é um instante a ser escolhido, de acordo com as necessidades do presente, e esta
escolha deve permitir a invenção de soluções para o espaço. Portanto, à arquiteta não deve
ser a especialista que revela e dá sentido ao lugar, a arquiteta deve ser aquela pessoa,
como qualquer outra, que sabe escolher aquilo que serve para as novas situações.
“O tempo linear é uma invenção do ocidente, o tempo não é linear, é
um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser
escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim.” (BO
BARDI, apud Ferraz, 1993, p. 327)
Podemos dizer que ao dobrar o tempo com o presente histórico Lina inventou lugares. Mas
os lugares também re-inventaram Lina, e o estar aí da arquiteta fica evidente. Lina buscava
compreender as necessidades, implicava-se com elas, comprometia-se com elas. Suas
atitudes estavam bem longe do ideal platônico praticado por tantas arquitetas que conhecem
o lugar sem deixar-se envolver pelos sentidos, que não buscam as experimentações como
forma de conhecer. Hoje então, com as imagens de satélite disponíveis nos meios de
comunicação e informação, arquitetas tendem a achar que conhecem o lugar porque deram
um espiada no site que bisbilhota o globo terrestre para o governo norte-americano. Mais
platônico e descomprometido que isso só o amor dos adolescentes pelas celebridades
globais.
O estar aí de Lina produzia o encanto. Enquanto processo, o encanto acontece no tempo,
com o tempo e envolve a transformação, tanto do lugar como da própria arquiteta Lina. É um
processo reflexivo. O encanto também funciona entre eu e Lina. Trago para mim a arquiteta,
com o presente histórico, escolho o instante de Lina que serve as minhas necessidades e
deixo que ela me transforme ao mesmo tempo que termino por transformar a própria Lina,
ou aquilo que dela me serve, hoje. Parece complicado, mas não é. Para uma arquiteta
moderna, cujo pensamento constituía-se por fragmentos [tempo e espaço distintos para
circular, habitar, recrear, trabalhar]
tal relação com o tempo talvez fosse até mesmo
impensável [então este é outro limite estabelecido que foi irrompido por Lina]
mas no
contemporâneo, com a difusão da idéia do pensamento em rede, da complexidade e do
caos, dos princípios da sustentabilidade, com o desenho apresentado pelas conexões dos
sistemas de comunicação e informação, entender a reflexividade é olhar para o mundo que
aí está.
Mas o saber sobre a reflexividade, sobre o encanto, há muito tempo é conhecido. Na
antropologia clássica os “perigos” deste encanto, que o tempo e o espaço compartilhado
criam, entre o cientista e o nativo, eram[ou são] conhecidos e minuciosamente evitados. Faz
parte do método desta disciplina, da antropologia clássica, manter-se a distância do nativo
para não perder sua imparcialidade científica. Produz-se uma neutralidade a partir de um
exercício de não envolvimento para que a realidade seja compreendida.
Apesar desta atitude ética ser compartilhada por muitas arquitetas, na arquitetura e no
urbanismo este encantamento que toma partido e se envolve a ponto de re-inventar lugares
e arquitetas, é necessário. Sem este processo reflexivo o lugar não se inventa e as
arquiteturas já nascem mortas, seja no mundo das idéias como no mundo da matéria. Volta
aqui aquela idéia dos belos espaços preenchidos de vento. Em todos as intervenções de
Lina vemos pessoas ocupando seus espaços, até mesmo aqueles mais mau conservados,
como seus espaços inventados na Ladeira da Misericórdia, em Salvador. O encanto de Lina
é presente, até hoje.
Lina usou do estar aí, do implicar-se com os espaços e com todas as suas relações
materiais e imaterias para ganhar a perspicácia necessária que a permitiu criar processos de
encantamento com/para os lugares. Esta conclusão é a tentativa que faço para compreender
porque os espaços desenhados de Lina são tão ocupados por gente, muita gente. Esta
dobra no tempo que levou Lina a uma compreensão profunda da cultura popular e o partido
que tomou nas questões culturais brasileiras [“civilização é o aspecto prático da cultura, é a
vida dos homens em todos os instantes”(BO BARDI, apud Ferraz, 1993, p. 158)], aconteceu
durante toda sua vida no país, mas de modo mais intenso durante sua vivência Nordestina e
no tempo em que viveu na Bahia, entre os anos de 1958 a 1964.
“Importante na minha vida foi a minha viagem ao Nordeste e o
trabalho que eu desenvolvi em todo o Polígono da Seca. Aí eu vi a
liberdade. A não importância da beleza, da proporção, dessas coisas,
mas a de um outro sentido profundo, que eu aprendi com a
arquitetura, especialmente as arquiteturas dos fortes, ou primitivas,
populares, em todo o Nordeste do Brasil.” (BO BARDI, apud
Ferraz, 1993, p. 153).
Aqui, em suas nordestanças- seu reterritorializar nordeste - seu desenho incorporou a
experiência das relações da gente do lugar. Encantou-se e transformou a modernidade da
arquiteta, que deixou de ter as receitas para o viver adequado ao homem moderno. Ao
invés disso Lina aprendeu com a gente do lugar a sua própria arquitetura. Exemplo disso é a
famosa escada do Solar do Unhão. A velha escada de degraus corridos foi substituída por
uma estrutura com pilar central em madeira pau d´arco e piso em ipê amarelo em um
sistema de encaixes que Lina aprendeu observando os carros de boi. O lugar inventando a
arquitetura de Lina. E aqui na Bahia, caminhando e vivendo os lugares de Lina reencontrei o
encanto, o desenho e o tempo de Lina em em mim. Cada vez que subo aqueles degraus da
“escada da Lina”, em várias exposições vejo gente esquecendo de
admirar a arte ali
exposta para ficar “namorando” sua escada e, eu encantada com o encantamento delas,
chego a ouvir a voz rasgada da “architetto”: “as necessidades humanas, começam onde
acabam a limpeza, a ordem, o mínimo necessário a que todos têm direito” (BO
BARDI,1958). Pura reflexividade.
Bibliografia
BIERRENBACH, Ana Carolina de Souza. Lina Bo Bardi: tempo, história e restauro. Revista CPC, São
Paulo, n. 3, p. 6-32, nov. 2006/abr. 2007
BO BARDI, Lina. “Sistemazione degli interni”. Domus, Milão, n.198, jun.1944. In: RUBINO, Silvan a e
GRINOVER, Marina. Lina por escrito. Textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naif,
2009.
BO BARDI, Lina. Página Dominical. Diário de Notícias, 1958. Salvador. Bahia.In: FERRAZ, Marcelo
C. (Org). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo Bardi e Pietro M. Bardi, 1993.
BO BARDI, Lina. “Catálogo de exposição inaugural do Museu de Arte Popular do Unhão, Bahia.” 1963
. In: RUBINO, Silvana e GRINOVER, Marina. Lina por escrito. Textos escolhidos de Lina Bo Bardi.
São Paulo: Cosac Naif, 2009.
DELEUZE, Gilles, GUATARRI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.
NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius loci: Towards a phenomenology of architecture. New York:
Rizzoli, 1980.