71 Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico

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71 Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico
Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca
Mayra Moreyra CARVALHO 1
RESUMO:
O artigo objetiva a investigação da postura do poeta Federico García
Lorca diante do fenômeno da modernidade. Elegemos a obra Poeta en
Nueva York, cujo cenário urbano evidencia a natureza da experiência
poética da modernidade, e alguns aspectos do problema moderno para
confrontar, dentre os quais o estatuto da poesia e do poeta num mundo
carente das condições de possibilidade para sua existência.
Perseguimos a ideia de que, frente à conjuntura do mundo moderno,
especialmente aquela das primeiras décadas do século 20, podemos
reconhecer uma linhagem de poetas que encontraram na revolta uma
forma de expressão, entendendo-a a partir das formulações de Albert
Camus (1951).
PALAVRAS-CHAVE:
Poesia moderna. Federico García Lorca. Poeta en Nueva York.
Revolta.
Introdução
Y hoy no tengo más espectáculo que una poesía amarga,
pero viva, que creo podrá abrir sus ojos
Federico García Lorca, na conferência sobre Poeta en Nueva York
Federico García Lorca, “artista entero”, “encarnación viva del arte” (RÍO, 1972, p.
239), nasceu em 5 de julho de 1898, em Fuente Vaqueros, Granada, sul da Espanha. Os anos
de 1927 a 1929 foram especialmente tumultuados em sua vida, devido à insistência em
vincular sua produção a temas andaluzes e gitanos, à indisposição com dois de seus melhores
amigos, Salvador Dalí e Luis Buñuel, e ao rompimento de um relacionamento duradouro com
o escultor Emilio Aladrén. Por estas razões, o convite de Fernando de los Ríos para que o
acompanhasse a Nova Iorque foi aceito com entusiasmo. Como descreve Gibson (1989),
García Lorca deixou a Espanha em 12 de junho de 1929 e desembarcou em Nova Iorque em
26 de junho de 1929. É certo que Lorca, embora nunca tivesse saído da Espanha, possuía,
como grande parte das pessoas da época, um imaginário do que fosse aquela metrópole antes
de chegar lá. Certamente conheceu Diario de un poeta recién casado, de Juan Ramón
1
.Graduanda em Letras, habilitações Português e Espanhol, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).
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Jiménez, por sua estreita relação com o autor. A visão que García Lorca imprimirá nos versos
de Poeta en Nueva York guarda muita semelhança também com o ensaio Límite del progreso
o la debida proporción, em que Jiménez (1982, p. 105-6) define a metrópole como a “ciudad
representativa de nuestra época”, “monstruosa y difícil, excesiva y magnífica”. Ele observa
com pesar a desnaturalização do mundo: “Yo no conozco lugar en donde se vea desaparecer
más vagamente al hombre cada día, en donde la vida de tanta gente sea tan inadvertida agonía
en pie” (JIMÉNEZ, 1982, p. 120). O importante é retermos que Nova Iorque era um emblema
mundial do modo de vida capitalista moderno e estadunidense e García Lorca não chegara à
cidade ignorante de sua realidade.
Os poemas compostos a partir dessa vivência não se publicam em livro antes da morte
do poeta. Somente em 1940 o livro é publicado, não sem polêmica. Os manuscritos deixados
com José Bergamín desapareceram e houve duas primeiras edições, diferentes entre si: a
edição bilíngue espanhol-inglês, publicada pela editora Norton em maio de 1940 em Nova
York, e a edição em espanhol da editora Séneca, de Bergamín, que sai um mês depois. A obra
foi diferentemente acolhida pela crítica. No entanto, é comum encontrarmos dizeres que
atestam a dificuldade de tomá-la para análise. Ángel del Río (1972, p. 251) diz que se trata da
“obra más extraña de Lorca y la que mayores problemas de interpretación presenta”. Para
Clementa Millán (2006, p. 61), esses poemas têm “un alto grado de complejidad literaria” e
“gran elaboración de su lenguaje poético”. Em Alienation in Lorca´s Poet in New York,
Loughran (1978, p. 164) afirma que uma interpretação definitiva da obra permanece
impossível dada a complexa elaboração de imagens surrealistas, por vezes, impenetráveis e
obscuras, que fazem com que Poeta en Nueva York se conserve “infinitely difficult”. Maurer
(2002) considera a obra um ponto de virada, porque foi a primeira que se inspira no ambiente
urbano, a primeira em que o poeta aborda mais diretamente a questão social e aquela de maior
inovação temática e formal. No esteio dessas considerações, também estão Josephs &
Caballero (2009, p. 15), para quem Poeta en Nueva York é “un libro desafiantemente moderno
e iconoclasta”.
Neste trabalho, interessam-nos especialmente alguns aspectos que apontam para a
possibilidade de refletir acerca da postura do poeta e do estatuto da poesia na modernidade.
Desejamos, assim, afastar-nos das considerações de cunho autobiográfico, que entendemos
como importantes, mas não determinantes para a compreensão. A dificuldade de interpretação
que a obra impõe é precisamente a forma que o poeta encontrou para transfigurar
esteticamente a experiência vivida na metrópole estadunidense. Como bem observa Michael
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Hamburger (2007, p. 283), “Nova Iorque e os Estados Unidos não eram nada menos do que a
experiência moderna, a confrontação com tudo o que a vida espanhola e a tradição espanhola
não eram. Gostasse ele ou não, Lorca tinha de haver-se com a consciência cosmopolita”.
O lugar do poeta no mundo torna-se um problema estético especialmente depois que
as revoluções levadas a cabo a partir de meados do século 18 na Europa alteraram radical e
profundamente a organização do mundo e o modo de vida dos seres humanos. Charles
Baudelaire se enfrenta com o tema da oposição do poeta em relação ao mundo em suas As
Flores do Mal2. O misto de admiração e desprezo pela cidade moderna faz com que o poeta –
alegoricamente representado pelo albatroz – se pergunte se é realmente possível fazer poesia
na modernidade, quando os valores artísticos absolutos e universais, que se podiam
reconhecer na arte clássica, apresentam-se corroídos. Franklin Leopoldo e Silva 3 debate esse
impasse baudelairiano e aponta que a poesia moderna encontrou os meios para se reinventar
ante a ausência do ideal, que é intrínseca e insuperável na modernidade. Esse sentido que
evocamos para o termo em questão certamente remete aos precisos apontamentos de Hugo
Friedrich, em Estrutura da Lírica Moderna, ao analisar a poesia de Baudelaire. O autor
observa que, embora sejam recorrentes as imagens de elevação e o movimento para o alto na
poética Baudelairiana, como em “Elevatión”, a chegada a um lugar elevado nunca se
concretiza deveras. Permanece apenas como aspiração e possibilidade, a qual “não lhe será
concedida pessoalmente”. Trata-se, portanto, de uma “idealidade vazia”, como denomina o
crítico (FRIEDRICH, 1978, p. 47-48).
Em linhas gerais, tanto formal quanto tematicamente, a poesia moderna nega os
preceitos positivos, a representação clara e pacífica, a tradição, já que reconhece o vazio da
idealização, e assume para si a instabilidade, a ausência de padrões, a crise e a tensão.
Retomando Franklin Leopoldo e Silva, o filósofo constata que não se trata de uma escolha de
Baudelaire por uma nova poesia – a qual ele denomina “lírica crítica” –, mas essa é a
condição mesma de existência da poesia na modernidade, e assim se estabelecerá
definitivamente depois dele. Com efeito, falamos de uma “lírica moderna posterior a
Baudelaire” (BERARDINELLI, 2007, p. 63).
Entre os mundos de Baudelaire e Lorca, interpõem-se cerca de setenta anos. No que
tange à história, as primeiras décadas do século 20 trouxeram reconfigurações importantes
2
Os poemas que compõem as Flores do Mal começaram a ser publicados em 1846. A primeira edição reunida
da obra se deu em 1857. [N.E].
3
Ciclo de aulas que compõem o curso livre “Visões da modernidade: filosofia e intuição poética”, ministrado no
Centro Universitário Maria Antônia entre março e maio de 2011 e exibido posteriormente pela UnivespTV.
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para o mundo. A descrença na promessa moderna que já está na arte e no pensamento do
século 19 só se torna constatação para a grande massa com a Primeira Grande Guerra,
assinalando definitivamente o “colapso da civilização ocidental” (HOBSBAWM, 1998, p.
16). Nesse mesmo cenário de devastação, surgem os Estados Unidos como a nova Terra
Prometida, cuja capital simbólica é Nova Iorque, o estado-império 4 e a primeira megalópole
da história. É nesse panorama histórico, econômico e artístico complexo que desembarca
Federico García Lorca e, embora seu testemunho diste cerca de setenta anos de Baudelaire,
interpostas essas questões que sumariamente apontamos, consideramos o par Baudelaire-Paris
paradigmático para toda a lírica moderna posterior, tanto temática quanto formalmente. Por
essa razão, podemos reconhecer uma linhagem poética na modernidade. A lírica moderna a
partir de Baudelaire se marca pela dessacralização (BERMAN, 2007) – um fato que se abate
sobre todo poeta e se transfigura em poesia ora melancólica, ora trágica, ora ironicamente – e
pela despersonalização, na medida em que estão postas em questão a inteireza e a unidade do
sujeito ante o advento dos fenômenos da massa. No tocante à despersonalização, lembramos
que Friedrich (1978) já apontara o termo como definidor da poesia moderna, entendendo que
o abandono do lirismo confessional pôs em xeque a possibilidade de identificar-se o sujeito
lírico ao sujeito empírico. Julgamos que na linhagem de poetas que pensam a modernidade
nesses termos está Federico García Lorca e seu Poeta en Nueva York. Para investigarmos
como essa discussão se configura na obra, recolhemos alguns poemas que julgamos
representativos para a análise.
Poeta en Nueva York: modernidade e revolta
O poema de abertura do livro, “Vuelta de paseo”, é verdadeiramente um prólogo lírico
à obra. De volta das primeiras caminhadas pela metrópole estadunidense, a voz que fala aqui
já não é a de um sujeito que se reconhece existindo por inteiro. Com efeito, o contato com a
realidade urbana matou qualquer possibilidade de integridade daquele sujeito andaluz afeito à
vivência plena da natureza e das coisas do mundo. Não se trata de pensarmos essa voz como
ingênua, mas antes como um agudíssimo observador crítico que pode intuir desde o princípio
que algo muito importante na relação do homem com o mundo se perdera na avalanche de
estímulos e de novas realidades moderna.
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Empire State é o codinome do estado cuja capital é Nova York.
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VUELTA DE PASEO
Asesinado por el cielo.
Entre las formas que van hacia la sierpe
y las formas que buscan el cristal,
dejaré crecer mis cabellos.
Con el árbol de muñones que no canta
y el niño con el blanco rostro de huevo.
Con los animalitos de cabeza rota
y el agua harapienta de los pies secos.
Con todo que tiene cansancio sordomudo
y mariposa ahogada en el tintero.
Tropezando con mi rostro distinto de cada día.
¡Asesinado por elcielo!
(GARCIA LORCA, 1989, p. 414).
Circularmente arquitetado, o poema se abre e se fecha com o mesmo verso:
“Asesinado por elcielo”, com a diferença de que o último verso é marcado pelo uso de ponto
de exclamação. Do sabor de distanciamento de uma constatação na abertura, a pontuação final
sugere envolvimento de emoções dessa voz que enuncia. Inevitável vítima de uma situação
que reconhece como violenta – a estrutura passiva do verso reforça esse sentimento –, o
sujeito lírico declara, no entanto, que não impedirá o fluxo daquilo que nasce dele mesmo
depois de aniquilada sua existência anterior. Os cabelos que continuam a crescer mesmo
depois da morte são imagem de uma poesia que é ainda parte constitutiva de seu corpo; não a
parte mais nobre, que para a poesia tradicional seria identificada ao coração ou à alma, mas
algo que, embora exista independentemente de sua vontade, pode ser esteticamente
trabalhado. Consciente de que sua conjuntura é a da impossibilidade das formas perfeitas e
dos motivos poéticos íntegros, o sujeito se faz acompanhar por aquilo que seu olhar
panoramicamente recolhe. Os motivos chegam desfigurados, destituídos de sua integridade,
incompletos em sua forma, mimetizando o próprio sentimento do sujeito lírico anunciado no
primeiro verso.
Ainda desfilam no poema as mesmas coisas simples que sempre atraíram o olhar de
García Lorca: elementos da natureza – árvores, animais, água –, crianças e música. Porém,
todo o elenco de substantivos aparece insistentemente caracterizado por adjetivos ou locuções
adjetivas negativas, que não vêm para adornar ou atribuir particularidades. Ao contrário, os
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qualificativos marcam ausências e impossibilidades: a única figura humana não tem expressão
facial, não há música, não há sublime, não há beleza. As imagens sistematicamente encarnam
o processo de contaminação da pureza e destruição da vida, reiterado em insolúveis binômios
vida/morte.
Dessa forma, “Blanco rostro de huevo” evoca a lividez da morte, mas insinua uma
forma de vida incipiente guardada no ovo; “Mariposa ahogada en el tintero” traz o inseto
como signo de vida, delicadeza e beleza subjugado por um elemento sintético fabricado pelo
homem. No entanto, o tinteiro é também o lugar onde o poeta mergulha sua pena para compor
os versos, o que indicia que alguma beleza é recomposta pela palavra, mas se trata de uma
beleza já contaminada e impura. A repetição no início de três estrofes da conjunção “con”,
que sonoramente indicia obstáculos, é prenúncio da impossível fluidez que o poeta confessa
na última estrofe com o verbo “tropeçar”. No entanto, se o verbo aponta semanticamente para
a dificuldade de um discurso fluido, está empregado no gerúndio, forma que assinala a
insistência na continuidade.
Se na realidade os motivos poéticos tradicionais – a natureza, a criança, o eu – se
apresentam desfigurados, contaminados e incompletos, ele fará poesia com aquilo de que
dispõe: “animalitos de cabeza rota”, “agua harapienta”. Diríamos poesia impura tal como
formula Pablo Neruda5: que a poesia tenha existência tão orgânica quanto a realidade em que
ela se inspira. De fato, todo e qualquer signo de pureza aparece contaminado em alguma
medida. O poema anuncia o compromisso dessa poética (daí ser o primeiro do conjunto), que
se reconhece privada do lirismo tradicional, marcada pela morte, mas que acontecerá,
extraindo do real o lirismo possível. A aparente frieza da constatação de morte inicial se
transfigura, à medida que o poema – e o poeta – caminha(m), e deixa(m) entrever, pelo
emprego da pontuação exclamativa no último verso, que uma subjetividade resiste.
Permanece a consciência crítica assinalada pelo acréscimo de uma exclamação à constatação,
elemento que atesta o movimento irônico daquele que é capaz de voltar-se à reflexão do
próprio infortúnio.
À impessoalidade do mundo, ele responde com a resistência do olhar, um elemento
que se faz cada vez mais importante na afirmação da subjetividade ao longo da obra, como
uma instância que resiste à massificação alienante. Embora o sujeito lírico esteja envolto pela
5
A dicção de Poeta en Nueva York também é tributária das ideias da “poesíasin pureza” de Pablo Neruda, as
quais, embora tenham vindo à luz em 1935 no periódico Caballo verde para la poesía, circulavam no âmbito
artístico espanhol e eram compartilhadas por Lorca, como anota Millán (2006, p. 90). Os textos que veiculam os
pressupostos da poesia impura, “Sobre una poesíasin pureza” e “Conducta y poesía”, estão em Lechner (2008, p.
449-50).
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realidade nova-iorquina, nunca se abstém de considerá-la criticamente. No entanto, se seu
olhar não comunga do que vê, o fato de que insiste em voltar-se à observação indica que o
sujeito lírico não é indiferente. O poema “Paisaje de la multitud que vomita” é central para
essa questão de uma poética do olhar. Depois de manifestar três vezes o sentimento doloroso
e aflito com relação a sua própria condição – “¡Ay de mí! ¡Ay de mí! ¡Ay de mí!” –, o sujeito
lírico dá a conhecer a complexidade da constituição de seu novo olhar: “Esta mirada mia
fuemía, pero ya no esmía”.
Se o olhar poético sobre a realidade um dia foi só do indivíduo, a experiência da
modernidade na metrópole tornou-o inviável, pois desde o primeiro contato o sujeito já sabe
aniquilada sua integridade. Ele não existe integralmente dado esse contato com o outro
radicalmente distinto de si, que o força a reconfigurar-se, esforço a que se dedica desde o
primeiro poema, “Vuelta de paseo”. Desse processo resulta que o olhar continua sendo seu,
mas o é mais verdadeiramente à medida que incorpora a realidade de outrem. Esse é o
trabalho do poeta, ofício confesso do sujeito lírico desse poema. O que ele verte em palavras é
a apreensão poética da realidade que seu olhar recolhe, “uma transformação desse real pela
imaginação e pela criação artística” (COLI, 2005, p. 302), a que García Lorca (1976)
denomina “reacción lírica” na conferência sobre Poeta en Nueva York.
PAISAJE DE LA MULTITUD QUE VOMITA
(ANOCHECER DE CONEY ISLAND)
La mujer gorda venía delante
arrancando las raíces y mojando el pergamino de los tambores;
la mujer gorda,
que vuelve del revés los pulpos agonizantes.
La mujer gorda, enemiga de la luna,
corría por las calles y los pisos deshabitados
y dejaba por los rincones pequeñas calaveras de paloma
y levantaba las furias de los banquetes de los siglos últimos
y llamaba al demonio del pan por la Colinas del cielo barrido
y filtraba un ansia de luz en las circulaciones subterráneas.
Son los cementerios. Lo sé. Son los cementerios
y el dolor de las cocinas enterradas bajo la arena.
Son los muertos, los faisanes y las manzanas de otra hora
los que nos empujan en la garganta.
Llegaban los rumores de la selva del vómito
con las mujeres vacías, con niños de cera caliente
con árboles fermentados y camareros incansables
que sirven platos de sal bajo las arpas de la saliva.
Sin remedio, hijo mío, ¡vomita! No hay remedio.
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No es el vómito de los húsares sobre los pechos de la prostituta,
ni el vómito del gato que se tragó la rana por descuido.
Son los muertos que arañan con sus manos de tierra
las puertas de pedernal donde se pudren nublos y postres.
La mujer gorda venía delante
con las gentes de los barcos, de las tabernas y de los jardines.
El vómito agitaba delicadamente sus tambores
entre algunas niñas de sangre
que pedían protección a la luna.
¡Ay de mí! ¡Ay de mí! ¡Ay de mí!
Esta mirada mía fue mía, pero ya no es mía.
Esta mirada que tiembla desnuda por el alcohol
y despide barcos increíbles
por las anémonas de los muelles.
Me defiendo con esta mirada
que mana de las ondas por donde el alba no se atreve.
Yo, poeta sin brazos, perdido
entre la multitud que vomita,
sin caballo efusivo que corte
los espesos musgos de mis sienes.
Pero la mujer gorda seguía delante
y la gente buscaba las farmacias
donde el amargo trópico se fija.
Sólo cuando izaron la bandera y llegaron los primeros canes
la ciudad entera se agolpó en las barandillas del embarcadero.
(GARCIA LORCA, 1989, p. 438).
A personagem da mulher que abre os versos e o caminho dessa multidão é a
desconstrução da imagem lírica do feminino. Ela é verdadeiramente grotesca, capaz de atos
destruidores e impiedosos que se sucedem ininterruptamente na primeira estrofe. A repetição
da conjunção aditiva “y” em quatro versos consecutivos – “y dejaba/ y levantaba/ y llamaba/ y
filtraba” – denota que suas ações se somam umas às outras mecanicamente, já que não há uma
relação lógica de causa e efeito entre elas. A mera adição das ações violentas atesta a
banalização e naturalização com que esses fatos são apreendidos pela multidão, que não os
contesta, não se manifesta porque é inconsciente.
Com efeito, as pessoas que compõem a multidão anunciada no título não aparecem no
poema, indício de que sua existência autêntica está posta em xeque. “La mujer gorda venía
delante” é um verso que se repete três vezes ao longo do poema e, quando aparece pela última
vez, vem significativamente alterado: “Pero la mujer gorda seguia delante”. A despeito da
atmosfera de morte e alienação que causa incômodo a ponto de provocar ânsia – adversidade
marcada na conjunção –, a mulher segue seu itinerário indiferente e violento, ou seja, as ações
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grotescas do início tendem a permanecer. Essa ideia de permanência, alcançada pelo emprego
dos verbos no gerúndio e pretérito imperfeito, pela adição mecânica das ações, pela repetição
dos versos em momentos distintos do poema e pelo verbo “seguir” na última vez em que o
verso é retomado, permite-nos pensar que o movimento da mulher se torna, por sua
constância e repetição, sem sentido.
Se pensarmos em termos de Física, encontramos nos conceitos newtonianos um
interessante apoio. A primeira lei de Newton enuncia que quando as forças atuantes em um
corpo se anulam, ele permanecerá em repouso ou em movimento retilíneo uniforme. Em
última instância, o equilíbrio dinâmico – o movimento uniforme – e o equilíbrio estático – o
repouso – têm em comum o fato de que em ambos os casos as forças que atuam sobre o corpo
se anulam, razão pela qual um dado estado permanece. Ora, o movimento sem sentido da
mulher gorda, que tende a repetir-se indefinidamente, assemelha-se a uma situação estática.
Não por acaso, o poeta intitula o poema como “paisaje”, que é de fato uma representação
estática de um cenário. Toda vez que olhamos para a paisagem descrita ou pintada, vemos o
mesmo quadro. Segundo essa perspectiva, as ações atribuídas à mulher estão destituídas
daquilo que as constitui e justifica. Agir implica a existência de um sujeito, “operação de uma
agente”, na definição dicionarizada. Portanto, a ação exige que um sujeito efetivamente se
mova, exerça uma força, envolva-se. A subjetividade implicada em qualquer ação está ausente
na mulher gorda, que, como vimos, as repete mecânica e inconscientemente.
A multidão que o poeta “sin brazos” observa também não exerce efetivamente
qualquer ação. Na verdade, o poema se ocupa não da ação da multidão, mas da falta dela. O
vômito, que caracteriza a multidão desde o título, não é propriamente uma ação sobre a qual
se tenha controle. Trata-se de um ato elementar, que traz implicada a existência de um
incômodo desde dentro e que precisa ser expelido. De fato, ele se configura no poema como
um desconforto profundo resultado da supressão de uma vida autêntica, dado que os signos de
natureza e vitalidade aparecem subjugados. “Las cocinas”, imagem daquilo que produz
alimento, estão enterradas, assim como os elementos naturais faisões e maçãs, fazendo
prevalecer uma atmosfera de morte que os homens são forçosamente obrigados a tragar.
Ademais, ocupam a cena os cemitérios, campos que acumulam mortes, cuja organização e
funcionamento remetem à ideia de descenso, aniquilação e irrecuperabilidade, categorias que
contaminam essa poesia. Essas mortes impostas provocam o incômodo – “Son los muertos
que arañan con sus manos de tierra” – até que ele se adense e seja expelido como vômito, a
única solução para o desconforto. Essa única ação que a multidão observada pelo sujeito lírico
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pratica, mesmo sendo um traço humano remanescente, ainda não a livra da inconsciência,
dado que o vômito, como dissemos, não é uma ação completamente voluntária que esteja sob
o controle do indivíduo.
É interessante notarmos quem é essa massa de pessoas a qual o sujeito lírico analisa. O
subtítulo do poema – “Anochecer de Coney Island” – indica um lugar importante para os
nova-iorquinos na primeira metade do século 20. Desde meados do século 19, essa área de
praias banhadas pelo oceano Atlântico ao sul da cidade foi um destino turístico para os
habitantes, mas era um território acessível somente àqueles que detinham alto poder
aquisitivo. No início do século 20, as praias deixaram de ser privativas e foram construídos
acessos por trem ou metrô partindo de vários pontos da cidade que levavam grande parte da
população até Coney Island por cinco centavos de dólar. Nas décadas de 1920 e 1930, o lugar
passou a ser conhecido então por Nickel Empire, já que se tratava de uma diversão barata e
acessível para a massa. Cabe observar que denominação encarna em si uma ironia, já que se
trata de um império, vocábulo que remete a poder e grandiosidade, feito de um signo que é o
contrário disto, uma vez que níquel lembra pobreza e poucos recursos. Esse é um império que
se constitui do seu contrário e também imagem paradoxal da própria ideia que se tinha de
Nova Ioque, cujo apodo Empire State pretendia dar a medida do poderio dessa metrópole.
Além das praias, que ficavam completamente tomadas, havia os grandiosos parques de
diversões, com gigantescas montanhas-russas e rodas-gigantes, e comida barata, razões pelas
quais o lugar se converte em um complexo de entretenimento popular, que, nos verões,
chegou a receber cerca de um milhão de pessoas por dia.
Esses dados sobre o local onde o poeta situa sua paisagem revelam que não só ele está
incorporando a sua poética a multidão como um fenômeno moderno, como se trata de uma
dada multidão, aquela composta pela massa trabalhadora da Nova Iorque dos anos 1920 e
1930, que marcha nos fins de semana e férias a um lugar de diversão barata. Segundo
apreende o sujeito lírico, o entretenimento fácil proporcionado a essa população encobre uma
realidade de opressão e dor, a artificialidade da vida metropolitana que aniquilou a existência
autêntica. Contudo, mesmo protagonista dessa complexa situação, a multidão segue como
massa amorfa, sem impor-se subjetivamente.
Quanto ao sujeito lírico, ele está na multidão, mas, como observador crítico, toma o
olhar como mecanismo de defesa, portanto, instância de resistência da subjetividade: “Me
defendo con esta mirada”. Essa reação não significa indiferença, já que a fuga dessa condição
amarga não se apresenta como opção: “sin caballo efusivo que corte/ los espesos musgos de
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Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca
mis sienes”. O poeta se sabe um ser completamente estranho à paisagem que pinta, porém sua
escrita não só censura e critica a alienação da massa, mas atesta que ele se importa, e é
positiva nesse sentido. É na tensão permanente entre a negatividade daquele que constata que
“no hay remedio” e a positividade característica daquele que insiste na palavra poética que se
constrói o sujeito lírico de “Paisaje de la multitud que vomita”, o “poeta sin brazos”.
Nesse sentido, entendemos que a reação lírica de García Lorca à experiência da
modernidade em Nova Iorque configura-se como um movimento de revolta, pensando nas
reflexões de Albert Camus (1951) em O Homem Revoltado. A objetiva definição camusiana
esclarece a aproximação que aqui propomos: “Que é um homem revoltado? Um homem que
diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu
primeiro movimento” (CAMUS, 2010, p. 25). Essas formulações aparecem como contraponto
das obras anteriores, que compunham o que Camus denominou Ciclo do Absurdo (O
Estrangeiro, O mito de Sísifo, Calígula). O Ciclo da Revolta, composto pela tríade A Peste, O
Homem Revoltado e Os Justos, questiona a perspectiva niilista absoluta. É precisamente na
criação artística verdadeira que Albert Camus vê a máxima expressão da revolta, é o terreno
onde ela se completa e perpetua, já que, tal como a revolta, a arte é, a um só tempo, exaltação
e negação da realidade: o artista recolhe do real os elementos, as impressões, os motivos e os
transfigura por meio de uma linguagem artística própria. Camus estabelece um princípio
relacional entre revolta e arte porque ambas se constroem nesse campo tenso de recusa e
aceitação do mundo.
Segundo essa perspectiva, Poeta en Nova York apresenta-se para nós em vários níveis
como uma poética da revolta. É, como o próprio poeta nos diz, a sua reação lírica à
experiência na metrópole estadunidense, reação esta que se faz por meio da linguagem.
Formalmente, as imagens desconcertantes e surpreendentes, o ritmo caudaloso e intenso, tudo
empregado excessiva e repetidamente para garantir o sentido de acumulação, dão corpo ao
sentimento revoltado porque já são resultado da distorção do olhar do sujeito lírico. Os
procedimentos evidenciam o que a experiência cotidiana repetitiva não deixa ver: a dor, a
desumanização, a corrosão da subjetividade, a massificação, a alienação. Por fim, no nível do
discurso, o próprio sujeito lírico se constitui e enuncia a partir de um lugar de revolta. Essa
constituição tensa do ser poético observamos em “Paisaje de la multitud que orina”:
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Mayra Moreyra Carvalho
PAISAJE DE LA MULTITUD QUE ORINA
(NOCTURNO DE BATTERY PLACE)
Se quedaron solos:
Aguardaban la velocidad de las últimas bicicletas.
Se quedaron solas:
Esperaban la muerte de un niño en el velero japonés.
Se quedaron solos y solas,
soñando con los picos abiertos de los pájaros agonizantes,
con el agudo quitasol que pincha
al sapo recién aplastado,
bajo un silencio con mil orejas
y diminutas bocas de agua
en los desfiladeros que resisten
el ataque violento de la luna.
Lloraba el niño del velero y se quebraban los corazones
angustiados por el testigo y la vigilia de todas las cosas
y porque todavía en el suelo celeste de negras huellas
gritaban nombres oscuros, salivas y radios de níquel.
No importa que el niño calle cuando le claven el último alfiler.
No importa la derrota de la brisa en la corola del algodón.
Porque hay un mundo de la muerte con marineros definitivos
que se asomarán a los arcos y os helarán por detrás de los árboles.
Es inútil buscar el recodo
donde la noche olvida su viaje
y acechar un silencio que no tenga
trajes rotos y cáscaras y llanto,
porque tan sólo el diminuto banquete de la araña
basta para romper el equilibrio de todo el cielo.
No hay remedio para el gemido del velero japonés,
ni para estas gentes ocultas que tropiezan con la esquinas.
El campo se muerde la cola para unir las raíces en un punto
y el ovillo busca por la grama su ansia de longitud insatisfecha.
¡La luna! ¡Los policías! ¡Las sirenas de los transatlánticos!
Fachadas de orín, de humo, anemonas, guantes de goma.
Todo está roto por la noche,
abierta de piernas sobre las terrazas.
Todo está roto por los tibios caños
de una terrible fuente silenciosa.
¡Oh gentes! ¡Oh mujercillas! ¡Oh soldados!
Será preciso viajar por los ojos de los idiotas,
campos libres donde silban las mansas cobras deslumbradas,
paisajes llenos de sepulcros que producen fresquísimas manzanas,
para que venga la luz desmedida
que temen los ricos detrás de sus lupas,
el olor de un solo cuerpo con la doble vertiente de lis y rata
y para que se quemen estas gentes que pueden orinar alrededor de un
[gemido
o en los cristales donde se comprenden las olas nunca repetidas.
(GARCIA LORCA, 1989, p. 440-42).
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Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca
Se em “Paisaje de la multitud que vomita” vimos que não chegam a se configurar os
contornos humanos dos seres que fazem parte da multidão justamente para dar o sentido da
alienação em que esse fenômeno tipicamente moderno implica, nessa outra paisagem,
insinuam-se traços de humanidade ainda que as subjetividades não cheguem a impor-se
efetivamente. O sentimento de impossibilidade geral que está em toda a obra permanece aqui,
acentuado pelas expressões negativas reiteradas: “No importa”, “Es inútil buscar el recodo”,
“No hay remedio”, “Todo está roto”, e também pela situação dolorosa apresentada logo no
início, a iminência da morte de uma criança, que chora e é velada por uma multidão. Ao
aglomerado de pessoas, só é possível um sonho que reproduz a realidade de morte, aqui
representada por elementos naturais subjugados.
Paradoxalmente, a situação de vigília, se decreta a impossibilidade do sonho, indicia
que ainda há gentes que se compadecem da dor do outro, traço até então ausente das
percepções do sujeito lírico: “Lloraba el niño del velero y se quebraban los corazones/
angustiados por el testigo y la vigilia de todas las cosas”. Nessas gentes, ele reconhece
corações, angústia e testemunho, esboços de uma humanidade que ele ainda não havia
vislumbrado e, embora passivos e silenciosos, consegue vê-los em certa medida como
indivíduos, já que a condição de solidão aparece lexicalmente individualizada: “Se quedaron
solos y solas”. A paisagem apresenta verdadeiramente um “mundo de la muerte” em que se
sobrepõem os signos negativos: uma noite eterna, porque “olvida su viaje”, um silêncio
imposto que encobre dor e choro, a fragilidade da organização do mundo, capaz de ser
abalada pelo movimento diminuto de uma aranha, o poder institucional e violento (policías), a
poluição (humo), a artificialidade e insipidez da vida moderna (guantes de goma). A dor e
tristeza também estão no subtítulo, já que noturno designa uma composição musical cujo tom
representa esses sentimentos. No entanto, a melodia não só reforça a negatividade do poema,
mas sutilmente aponta para o resquício de humanidade que o olhar do sujeito lírico conseguirá
resgatar na paisagem que contempla. Ainda que melancólica, é uma musicalidade possível,
que se opõe ao “definitivo silencio del corcho” instaurado em um poema anterior, “1910
(Intermedio)”. Oportunamente, convém mencionarmos que o “intermedio” do título também
guarda relação com o universo musical. Em uma de suas acepções, o vocábulo indica o
espaço de tempo que marca o intervalo entre a execução dos atos de uma ópera ou concerto.
Assinala, portanto, um período de silêncio, mas que é destinado a ter fim e vai dar lugar a uma
nova melodia. Para o sujeito lírico, o noturno é a melodia possível que se pode compor nesse
cenário do qual não podemos escapar. A musicalidade traz à tona a dor sem pretender que ela
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Mayra Moreyra Carvalho
possa ser deglutida, pois já sabemos que a dor forçosamente esquecida vai se insinuar, cedo
ou tarde, como o vômito que acometeu a outra multidão.
A tensão entre constatar o “mundo de la muerte” e vislumbrar um resquício de
humanidade possível, o que promoveria um movimento de aproximação por parte do sujeito
lírico, adensa-se nos versos: “No hay remedio para el gemido del velero japonés,/ ni para estas
gentes ocultas que tropiezan con las esquinas”. Novamente, está posta a impossibilidade e
patente a despersonalização, pois o gemido, que seria expressão humana, passa por operação
metonímica a um objeto inanimado. No entanto, o sujeito lírico se encontra no meio da
multidão – ou, ao menos, é assim que ele se sente – pelo emprego do pronome demonstrativo
“estas”. Ademais, as pessoas sobre as quais ele fala agora tropeçam nas esquinas, perfazendo
uma ação que anteriormente fora desse sujeito lírico, lembrando os versos de “Vuelta de
paseo” (Tropezandocon mi rostro distinto de cada día) e “1910 (Intermedio)” (En el sitio
donde el sueño tropezaba com surealidad). O verbo “tropezar” indicava o sentimento da
impossível fluidez e inteireza que o sujeito lírico experimentava na realidade diversa e
confusa da metrópole.
Ora, dessa feita, esse sentimento é atribuído aos componentes da multidão – eles são
os que tropeçam com a arquitetura da cidade que se impõe sobre os seres humanos indiferente
as suas necessidades e verdadeira natureza. Ao atribuir aos outros uma ação que já fora sua, e
muito significativa, o sujeito lírico está de fato se aproximando da multidão. Essa
identificação é um pressuposto da atitude revoltada, já que a revolta não tem que partir
necessariamente daquele que é oprimido. Ela exige antes a tomada de consciência, “podendo
também nascer do espetáculo da opressão cuja vítima é o outro”. O homem revoltado “luta
pela integridade de uma parte de seu ser”, que em Poeta en Nueva York se dá como a
resistência do olhar (“Me defendo con esta mirada”), ao mesmo tempo em que está compelido
“à defesa de uma dignidade comum a todos os homens” (CAMUS, 2010, p. 29-31). Ao
contrário da experiência do absurdo, existe aqui a consciência de que o sofrimento é coletivo,
sentimento que vemos apoderar-se do sujeito lírico.
Entre a “Paisaje de la multitud que vomita” e a “Paisaje de la multitud que orina”,
notamos que o “poeta sin brazos” caminhou sutilmente, pelo reconhecimento de traços de
humanidade na massa de pessoas, a um movimento de aproximação e identificação com o
outro. As ações que diferem nos dois títulos acompanham essa mudança de perspectiva, pois
parte da ação menos voluntária, a única possível que ele encontrou para a multidão
inconsciente, para uma ação mais voluntária. Como em poemas anteriores, os versos finais de
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Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca
“Paisaje de la multitud que orina” trazem exclamações que mostram um grau de envolvimento
do sujeito lírico. Aqui, ao exclamar “¡Oh gentes! ¡Oh mujercillas! ¡Oh soldados!”,
encontramos seu lamento compadecido diante da situação de dor, morte, impossibilidade,
angústia, silêncio e solidão. Mas esse grito permite a projeção futura de uma “solução”. É
necessário que passemos a pensar a partir de outra lógica e o sujeito lírico eleja a liberdade de
pensamento e a imaginação prodigiosa dos loucos para descrever esse caminho.
Mais do que uma nova lógica, é preciso assumir o olhar dos loucos, apreender o
mundo com os olhos daqueles que estão à margem daquilo que é socialmente organizado e
aceito. Segundo esse olhar, é possível que o “mundo de la muerte”, paisagem terrível pintada
no poema, seja capaz de produzir “fresquísimas manzanas”, ou seja, de alguma forma
podemos entrever uma fecundidade na morte, já que está inserido em seu terreno o fruto que
alude ao conhecimento e ao desejo 6. Trata-se de outro sentido da morte que não o da
aniquilação total e irreversível. Esse novo olhar também é o da liberdade, em que o signo do
natural e selvagem se amansa porque não está tolhido, mas em plenitude. O pensamento livre
e produtivo é capaz de proporcionar “la luz desmedida”, a existência de um corpo que
incorpore o belo e o feio, e o fogo que pode consumir aqueles que são indiferentes à dor e à
beleza. Em outras palavras, a “saída” proposta é a de um olhar não convencional que permita
incorporar as ambiguidades, dê lugar à expressão da subjetividade, à desmesura. Um olhar
que humanize.
Essa proposta de humanização não deve ser entendida como tornar mais humano, no
sentido de compadecimento ou da afabilidade. Tampouco significa aqui imprimir um toque
pessoal. Sujeito empírico e sujeito poético estão irremediavelmente cindidos na poesia
moderna, como já mencionamos que é observado por Friedrich (1978) e Berman (2007).
Assim também acontece em Poeta en Nueva York. Trata-se, na verdade, de defendermos uma
humanização autêntica: que recusa a convenção e a arbitrariedade; que não se dá ao
maniqueísmo ou às soluções simples, justamente porque questiona, critica e convoca para si
tudo o que é genuinamente humano, a saber, contradições, incertezas, imperfeições; que se
opõe ao espírito positivista, prático e maquinal que o sujeito lírico sabe que impera na
metrópole. Nesse sentido, é possível humanizar-se pela poesia.
No entanto, a projeção futura que o sujeito lírico propõe não deve ser entendida como
crença ingênua numa alternativa que tudo resolverá. O olhar poético não pretende dar
6
Aludimos aqui às representações da história humana: narrativa de Adão e Eva e sua relação com a serpente, a
maçã como fruto proibido, que, uma vez acessado, condenou o homem à expulsão do paraíso, à dor e ao
trabalho, mas também assinalou a possibilidade de conhecimento, a consciência e a realização do desejo.
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respostas, “resolver” problemas e apaziguar tensões, mesmo porque a poesia é re-criação da
realidade por meio da linguagem e não explicação dela. Com efeito, o olhar que o sujeito
lírico propõe instaura a tensão permanente, porque é eminentemente crítico, e oferece o poder
da expressão pela linguagem e a experiência da liberdade de observar e pensar criticamente.
Expressar-se pela linguagem poética também revela a atitude revoltada na proposta desse
sujeito lírico precisamente porque a revolta não cala. “Falar repara” (CAMUS, 2010, p. 19).
“Calar-se é deixar que acreditem que não se julga nem se deseja nada [...] Mas, a partir do
momento em que fala, mesmo dizendo não, ele deseja e julga” (CAMUS, 2010, p. 26). A
subjetividade resiste à alienação imposta pelo fenômeno das paisagens das multidões e o faz
pela linguagem.
“Nueva York (Oficina y denuncia)”, que abre a seção “Vuelta a la ciudad”, quando o
poeta retorna a Nova Iorque depois de uma temporada no interior dos Estados Unidos, pode
ser pensado como uma composição que concentra as questões que perseguimos até aqui.
Trata-se de um poema em que as impressões de choque do primeiro contato já decantaram,
assim como se consolidou a opção pela instância do olhar observador como mecanismo de
resistência. O sujeito lírico deixou a dicção de surpresa diante de uma experiência nova e fala
com a voz daquele que conhece essa realidade, o que significa que percebe o fenômeno e fala
dele com propriedade. O poema plasma esse processo: o movimento anunciado no título
implica assumir o lugar do fazer poético ( OFICINA – oficcium, facere = fazer) com toda a carga
pessimista, apocalíptica e agônica desse cenário e trazer à tona, por meio da palavra poética,
aquilo que está encoberto (DENÚNCIA – nuntius = o mensageiro):
NUEVA YORK (OFICINA Y DENUNCIA)
A Fernando Vela
Debajo de las multiplicaciones
hay una gota de sangre de pato;
debajo de las divisiones
hay una gota de sangre de marinero;
debajo de las sumas, un río de sangre tierna.
Un río que viene cantando
por los dormitorios de los arrabales,
y es plata, cemento o briso
en el alba mentida de New York.
Existen las montañas. Lo sé.
Y los anteojos para la sabiduría.
Lo sé. Pero yo no he venido a ver el cielo.
He venido para ver la turbia sangre,
la sangre que lleva las máquinas a las cataratas
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Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca
y el espíritu a la lengua de la cobra.
Todos los días se matan en New York
cuatro millones de patos,
cinco millones de cerdos,
dos mil palomas para el gusto de los agonizantes,
un millón de vacas,
un millón de corderos
y dos millones de gallos
que dejan los cielos hechos añicos.
Más vale sollozar afilando la navaja
o asesinar a los perros en las alucinantes cacerías,
que resistir en la madrugada
los interminables trenes de leche
los interminables trenes de sangre
y los trenes de rosas maniatadas
por los comerciantes de perfumes.
Los patos y las palomas
y los cerdos y los corderos
ponen sus gotas de sangre
debajo de las multiplicaciones,
y los terribles alaridos de las vacas estrujadas
llenan de dolor el valle
donde el Hudson se emborracha con aceite.
Yo denuncio a toda la gente
que ignora la otra mitad
la mitad irredimible
que levanta sus montes de cemento
donde laten los corazones
de los animalitos que se olvidan
y donde caeremos todos
en la última fiesta de los taladros.
Os escupo en la cara.
La otra mitad escucha
devorando, orinando, volando en su pureza
como los niños de las porterías
que llevan frágiles palitos a los huecos donde se oxidan
las antenas de los insectos.
No es el infierno, es la calle.
No es la muerte. Es la tienda de frutas.
Hay un mundo de ríos quebrados y distancias inasibles
en la patita de ese gato quebrada por un automóvil,
y yo oigo el canto de la lombriz
en el corazón de muchas niñas.
Óxido, fermento, tierra estremecida.
Tierra tú mismo que nadas por los números de la oficina.
¿Qué voy a hacer? ¿Ordenar los paisajes?
¿Ordenar los amores que luego son fotografías,
que luego son pedazos de maderas y bocanadas de sangre?
No, no; yo denuncio.
Yo denuncio la conjura
de estas desiertas oficinas
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que no radian las agonías
que borran los programas de la selva,
y me ofrezco a ser comido por las vacas estrujadas
cuando sus gritos llenan el valle
donde el Hudson se emborracha con aceite.
(GARCIA LORCA, 1989, p. 476-80).
Os versos iniciais do poema nos dizem das mortes encobertas por três operações
matemáticas, precisamente aquelas de que a lógica do capitalismo se serve para garantir seu
preceito mais importante que é o da acumulação do capital. Para sobreviver, o sistema visa à
multiplicação do mercado consumidor e à soma de bens e riquezas. A divisão fica para a força
de trabalho, já que a produção em série e a compartimentação de tarefas garantem a oferta de
produtos de forma mais barata e capaz de atender à demanda de consumo. O que não está
previsto e permanece encoberto são as vidas subtraídas para que esse processo continue
funcionando perfeitamente. A subtração é propositalmente extraída do poema para dizer que o
sistema está organizado para ignorar um modo de vida autêntico e pleno. Mas, como a
ausência é marca de presença, Lorca dá conta de que as gotas de sangue das vidas subtraídas
pela lógica do capital se agrupem para ganhar uma nova existência e se fazer notar, e forja a
forte imagem do “río de sangre tierna”, que congrega de maneira indissolúvel elementos de
vida e morte.
Um rio de sangue não é imagem nova na poesia lorquiana. Já no poema de abertura de
Poema del cante jondo, “Baladilla de los tres ríos”, podemos encontrá-la: “El río
Guadalquivir/ tiene las barbas granates./ Los dos ríos de Granada, /uno llanto y otro sangre”.
A visão dos elementos naturais nunca foi simples e pacífica, mas sempre complexa. Passa-nos
que o sangue do rio espanhol é signo de outro sentido de morte, um sentido que a concebe
como parte da vida e constitutiva do ser andaluz. O também poeta espanhol Pedro Salinas 7
argumenta que o “sentir a morte” não é algo que García Lorca teve que inventar, pois se trata
mesmo de uma cultura secular do povo espanhol, a que ele denomina “cultura de lamuerte”,
que fica clara em manifestações populares como as festas de touros ou as encenações da
Paixão de Cristo. Em contrapartida, o sangue que forma o rio nova-iorquino é antes índice da
artificialidade da vida na metrópole, porque está contaminado e desfigurado pela modernidade
urbana, que subjuga, haja vista a reincidência do advérbio “debajo”, e é aqui representada
7
No ensaio “García Lorca y la cultura de lamuerte” a que fazem referencia Caballero & Josephs (2009, p. 47)
na introdução a Poema del Cante Jondo/RomanceroGitano.
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Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca
pela “plata” e “cemento” e os elementos contaminados, “el alba mentida” e o rio Hudson que
“se emborracha con aceite”.
Novamente, como já enumerara no prólogo lírico “Vuelta de paseo”, os motivos de
poesia estão desfigurados e destituídos de uma existência íntegra e figuram nos versos
invariavelmente contaminados por impurezas de toda ordem. Mas o sujeito lírico declara que
não veio para exercer a contemplação, cabe-lhe precisamente enfrentar-se com a realidade, o
que ele faz sempre pela via do olhar crítico: “He venido para ver”. E o que ele vê aparece
caudalosamente enumerado no poema, num procedimento repetitivo que dá o sentido da
acumulação sem precedentes em que se funda e fortalece o capitalismo. O mecanismo lembra
a famosa formulação a que Leo Spitzer (1945) chegou analisando Walt Whitman; trata-se da
“enumeração caótica”8. Exposto à gama quase infinita de estímulos da metrópole nova-iorquina e sensível à acumulação do capital, o sujeito lírico encontra nesse procedimento a
melhor forma para plasmar suas impressões. Assim aparecem enumerados em uma dicção que
testa o fôlego: perros, interminables trenes de leche, interminables trenes de sangre, rosas
maniatadas, perfume, montes de cemento, animalitos, taladros, niños, palitos, insectos, ríos,
gato, automóvil, óxido, fermento, tierra, amores, fotografias, oficinas; elementos de mundos
diversos, aparentemente distantes, mas que o olhar do poeta consegue reconhecer convivendo
na profusa existência da metrópole.
De fato, Lorca não só enumera caoticamente, mas sofistica o procedimento, pintando-o com tons surrealistas, quando se dispõe a relacionar elementos surpreendentes, sobretudo
nas comparações e nas adjetivações. A essa abundância de objetos e seres, somam-se os
animais domesticados pelo homem e mortos aos milhões: cuatro millones de patos, /cinco
millones de cerdos, /dos mil palomas para el gusto de los agonizantes,/um millón de vacas,
/um millón de corderos/ y dos millones de galos. A sequência alude ao processo de
industrialização de carne9, que começa a se consolidar nessa época como uma iniciativa para
garantir a expansão do mercado, viabilizando a chegada da carne à maior quantidade de
consumidores possível. Também nessa sequência reforça-se o controle do humano sobre o
natural, subjugado para dar lugar à artificialidade. Desse processo, igualmente representativa
8
“Si puede decirse que Walt Whitman introduce la enumeración en que se mezclan las cosas materiales y las
abstracciones, hay que decir también que el “estilo bazar”, donde se confunden toda clase de objetos o seres
pertenecientes a un mismo orden de ideas, se había inventado ya en Europa. En Balzac, este procedimiento
continúa espontáneamente la enumeración a lo Rabelais”. SPITZER (1945, p. 27-8).
9
Como explica o economista Robert Hessen no verbete “Capitalism”, da The concise encyclopedia of
economics, sobre as iniciativas agressivas e inovadoras dos industriais norte-americanos para aumentar o lucro e
cortar custos, citando o caso de Gustavus Swift, pioneiro no processamento de carne. Disponível em:
<http://www.econlib.org/library/Enc/Capitalism.html>. Acesso em: 17 abr. 2012.
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é a imagem das “rosas maniatadas/ por los comerciantes de perfumes” e toda a cadeia de
vocábulos que remetem ao esmagamento: estrujar, cielos hechos añicos, taladros.
Diante do cenário em que se acumulam os signos de morte, chegando ao extremo de
constatar que vivemos em um inferno sobre a terra, dado que a morte e a destruição se dão
onipresentemente até nos elementos mais cotidianos e banais – “No es el infierno, es la calle./
No es la muerte. Es la tienda de frutas” – o sujeito lírico elege o poder da palavra de trazer à
tona e fazer saber. É o momento em que enuncia com todas as letras: “Yo denuncio”. Em
meio à realidade urbana em que podemos experimentar o inferno e a morte, ele consegue
recolher um valor de vida numa cena absolutamente banal do atropelamento de um gato:
“Hay un mundo de ríos quebrados y distancias inasibles /em la patita de ese gato quebrada por
um automóvil”, o que revela um amor a tudo, pois entende que tudo está em cada coisa e cada
coisa contém o tudo. Nas palavras de Martínez Nadal (1970 apud Caballeros & Josephs,
2009, p. 44), García Lorca se move por um “verdadero sentido panteísta”10 expresso no
tratamento amoroso que dispensa a tudo que convoca para sua poesia. Esse sentimento o
poeta compartilha com Walt Whitman, não por acaso lhe dedica uma Ode em Poeta en Nueva
York. Em “Leaves of Grass”, encontramos o sentido panteísta que toma Lorca em um verso
como “I believe a leaf of grass is no less than the journey-work of the stars”.
Se o sujeito lírico chegou à expressão máxima do ódio com o gesto escatológico de
cuspir, isso não contradiz um valor de vida, ainda que incipiente, que ele é capaz de detectar
no cenário mais adverso. Por essa razão, seu derradeiro ato não pode ser o cuspe. Ao se
perguntar como quem gritasse pelo caminho possível a tomar diante da paisagem de
impossibilidade e morte – “¿Qué voy a hacer? ¿Ordenar los paisajes? /¿Ordenar los amores
que luego son fotografías, /que luego son pedazos de maderas y bocanadas de sangre?”– a
resposta é sonoramente negativa. A única opção é o enfrentamento. O que se impõe é a via da
denúncia, ato cuja etimologia pressente a responsabilidade do mensageiro que deve fazer
saber. Esse ser que encarna o desprezo pelo real, expresso pelo ato de cuspir, e a adesão a esse
mesmo real, que o leva a denunciar um estado de coisas, tem precisamente o caráter do
homem revoltado:
Exige-se que seja levado em conta aquilo que, no homem, não pode
ficar limitado a uma ideia, esta parte ardorosa que não serve para nada a
não ser para existir. [...] Aparentemente negativa, já que nada cria, a
10
NADAL, Michel. El público. Amor, teatro y caballos en la obra de Federico García Lorca. Oxford: The
Dolphin Book Co. Ltd., 1970.
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Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca
revolta é profundamente positiva porque revela aquilo que no homem
sempre deve ser defendido. (CAMUS, 2010, p. 31-2).
O sujeito lírico se propõe a trazer à tona aquilo que está encoberto por uma opção de
organização social que se oferece aparentemente harmoniosa, saudável e feliz e sua maneira
de fazê-lo é pela via da palavra poética. No contexto da modernidade, em que, como vimos,
estão ausentes as condições de possibilidade para a existência do poeta, a escolha por essa
atitude implica um verdadeiro sacrifício: “me ofrezco a ser comido por las vacas estrujadas”.
Longe de assinalar o fim da questão, esse gesto de sacrifício instaura outra tensão. Ele não
soluciona a situação de inconsciência, desumanização e impossibilidade, mas dá mostras da
permanência da consciência crítica e da sobrevivência da poesia. A lírica que nasce nos
tempos adversos da modernidade só pode ser aquela que, servindo-se dos elementos do real
que despreza e reprova, erige-se como campo possível da expressão da subjetividade,
fazendo-a ainda bela e dolorosa como sempre coube ao lirismo. É reduto da consciência e do
sujeito num mundo fadado à alienação e à destruição e se constrói desconstruindo as bases em
que esse mundo se funda.
Considerações finais
Foi possível constatar que as relações propostas ao longo do trabalho se revelaram
pertinentes e profícuas. Ao contrário do que certo tipo de crítica pode considerar, a confusão,
a desorientação, a violência, o sentimento de impossibilidade que povoam Poeta en Nueva
York não são reflexo de uma fase conturbada na vida pessoal do poeta ou simples reação de
um homem acostumado ao peculiar cenário andaluz. Os versos desse poemario
verdadeiramente recompõem uma visão lúcida e crítica da modernidade histórica,
entendendo-a aqui como o período que corresponde às primeiras décadas do século 20.
Ademais, e sobretudo, esses poemas nos dizem da natureza mesma do trabalho da poesia
enquanto corpo feito de linguagem.
Assim, as características formais da composição evidenciam o encontro-confronto de
García Lorca com a modernidade na metrópole nova-iorquina. Todos os elementos estão
engendrados de maneira rigorosíssima por esse poeta que é sabidamente sofisticado, exigente
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e consciente do trabalho que está realizando. Como indica o próprio título da obra, Poeta en
Nova York problematiza a posição do poeta nesse cenário urbano.
É belíssimo constatarmos que a poesia se apresenta mesmo como resistência, forjada a
partir de um olhar que consciente e criticamente não cessa de observar a realidade que o
circunda. Também constatamos que a expressão pela palavra se conserva como instância
poderosa de reposição de algo que, por vezes, parece desaparecido. Dir-se-ia que tal
sentimento é exacerbado ou utópico. Porém a experiência autêntica da poesia desmente a
reticência. A existência mesma da poesia afirma seu poder de recusa, seu lugar de revolta.
RESUMEN:
El artículo investiga la postura del poeta Federico García Lorca frente
al fenómeno de la modernidad. Elegimos confrontar la obra Poeta en
Nueva York, por su escenario urbano que pone en evidencia la
experiencia poética de la modernidad, a algunos aspectos del problema
moderno, como el lugar de la poesía y del poeta en un mundo que
carece de las condiciones de posibilidad para su existencia. En relación
al mundo moderno de las primeras décadas del siglo XX, creemos que
se puede reconocer un linaje de poetas que buscan en la rebeldía una
forma de expresión, entendiéndola según el pensamiento de Albert
Camus (1951)
PALABRAS-CLAVE:
Poesía moderna. Federico García Lorca. Poeta en Nueva York.
Rebeldía.
Referências
BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Trad. de Carlos Felipe Moisés e
Ana Maria Ioratti. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
CABALLERO, Juan; JOSEPHS, Allen. Breve panorama de la poesía lorquiana. In: GARCÍA
LORCA, Federico. Poema del Cante Jondo/ Romancero Gitano. Barcelona: Cátedra, 2009.
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad. De Valerie Rumjanek. 8. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2010.
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Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca
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