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200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 1 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 2 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 3 duzentas fantasias gráficas textos: gateway profile 5.5 desenhos: toshiba satellite R15-S822 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 4 Esta página intencionalmente 1 deixada em branco 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 5 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 6 Angela acredita em anjos sentados nas nuvens, em todos os mistérios da igreja católica, em nenhum de seus dogmas, na morte existencial de Deus, nas abstinências e visões necessárias para atingir o nirvana, em qualquer coisa que brilha. Seu passatempo favorito é rir. Sua diversão principal, sonhar acordada. O primeiro encontro foi propedêutico, o segundo alucinante, no único bar da cidade que aceita fumantes. Massagens nos pescoços e mordidas nas orelhas enquanto ela lia, com voz rouca, versos de Manuel Bandeira gravados no Palm Pilot. Em casa ela estava vulcânica, até que, sem nenhum aviso prévio, 2 sua boca me deu um banho de água gelada. Disse que sentia muito, tinha feito o possível, mas não conseguia tirar o ex da cabeça. Mais tarde fiquei lisonjeado de ter sido usado como cobaia da volta por cima. Mas naquele momento só senti a frustração do desejo atravancado, como uma labareda extinta pela pinça do polegar com o indicador. Foi então que ela fez uma oferta inusitada: já que havia me levado àquele ponto, poderíamos continuar e eu nunca mais a veria, ou ela poderia ir embora e talvez nos víssemos novamente. Foi por causa do talvez. Quantas vezes desejei reviver aquele momento para escolher a segunda opção! Aquela encruzilhada ainda me assombra, assim como o contraste entre a paixão febril das primeiras horas e o corpo inerte das últimas. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 7 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 8 Quando uma antiga beleza pré-rafaelita pelo meu corpo cobiçada tornou-se disponível nas circunstâncias mais favoráveis desencadeei a invasão de uma Tróia moderna Com a força acumulada de mil navios, assaltei a cidadela geriátrica mas, quando a terra prometida (inevitavelmente) faltou com o prometido retirei-me apressadamente do campo de batalha deixando o solo coberto de cinzas Sob a luz cruel e indiscreta do sol 3 sua pele enrugada parecia quebradiça a superfície amassada como um pergaminho Na ausência de intimidade a idéia de acordar com essa cabeça repousando no ombro pareceu asperamente invasiva Envergonha-me constatar como, durante os segundos após o clímax alcanço a maior lucidez Por um tempo, muito pouco tempo a hidra pensa e age monocéfala 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 9 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 10 Meu nome é Manoel, moro em Niterói, tenho 1,80 metro de altura e peso 76 quilos. Fiz 49 anos em abril, fui casado uma vez (por quinze anos) e tenho um filho, Manuel Jr., que é o grande presente que a vida me deu. Freqüentei dezesseis escolas antes de entrar para a faculdade porque meus pais viajavam muito. Sempre precisei da aprovação deles, pois eram a única referência constante em minha vida. Fui um filho obediente, sem rebeldias, sem drogas, sem sexo, apenas muita música. Aos 40 anos, finalmente emagreci e comecei a cuidar do corpo, que estava dando sinais de não ser eterno, mas antes disso sempre fui gordinho, fonte de grande insegurança. Meu pai queria um filho atlético, corajoso. Se não um machão, pelo menos um machinho. Talvez porque, quando ele tinha apenas meses de idade, a irmãzinha de 2 anos dele morreu e a mãe, inconsolável, passou a vestilo com as roupas da menina morta. Como eu não correspondia ao que ele queria, não entendia como ele me amava tanto. Mas algo dentro de mim percebeu que a pessoa que ele amava era uma extensão de si próprio, semeando a carência que carrego até hoje. Não agüento a idéia de estar sozinho, castigo que considero cruel. Sei que essa situação vai continuar até que eu goste de quem sou. Meu casamento acabou porque a curva senoidal de minhas emoções se atrofiou. Sempre fui avesso à dor e, para não senti-la, consegui limitar a capacidade de sofrer, sem entender que o preço da anestesia era reduzir a capacidade de amar. Minha ex-mulher dizia que viver com alguém que nunca ficava deprimido fazia 4 com que ela, que oscilava normalmente, se achasse uma louca. Quando ela estava calma, tratava-me como seu marido, mas, quando estava nervosa, tratava-me como seu pai, com quem tivera uma adolescência difícil. Quando eu protestava que não me enxergava no que ela estava dizendo, ela respondia: Mas você é assim mesmo, pergunte para qualquer um! O dia que ela pediu que nos separássemos, a carência virou tão grande que nem me permiti sentir. A carência é um buraco infinito, e o infinito não pode ser preenchido pelo finito: as coisas que acumulo, a comida que mastigo tão rapidamente. Deus é infinito, mas não acredito nele. O amor por Manoel Jr. é infinito, mas tão platônico quanto o amor por Deus. A Internet parecia um mar aberto e convidativo, mas o entusiasmo com que mergulhei nos sites de relacionamento não foi nada saudável. Encontrei mulheres inteligentes e bem-sucedidas. Muitas pareciam interessantes por email ou pelo telefone, mas a promessa raramente se cumpria ao vivo. Algumas foram de uma sabedoria que não soube apreciar por manifestar-se em baixo relevo, pela facilidade com que desistiram. Aconteceram alguns namoros, sempre curtos. Os perfis permitem uma filtragem eficaz (poucas foram esquisitas), mas a informação teria sido mais útil se eu me conhecesse melhor. Continuei batendo nessa porta durante anos. A cada fracasso, não sabia se culpava a ferramenta ou o operário. Se as personalidades mais compatíveis com a minha fossem temperamentalmente avessas a esse sites, todo encontro estava fadado à esterilidade, como o cruzamento entre um cavalo e um burro. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 11 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 12 A sensação inebriante de mergulhar no interior de outra pessoa é minha sensação favorita... Mas antes eu preciso perguntar se você é realmente quem diz ser: 48 anos, divorciado, vivendo nesta cidade. A Internet tende a realçar os tons de cinza, e eu não acredito em tons de cinza nas relações sentimentais. Entendo. Já ouvi muitas histórias sobre homens casados fingindo ser solteiros e mostrando fotos antigas. Esse tipo de “dissimulação” (para ser generoso) é completamente improdutivo. Se você não gostar de mim como sou, para que serve gostar de mim como não sou. Fique descansada, porque tudo que escrevi é verdade ou fiel à minha auto-representação. Eu poderia até perdoar uma foto antiga e uns quilinhos a mais, mas, se o encontro é fundamentado em uma mentira, não sei como continuar. Confiar é fundamental num relacionamento. Como prosseguir se ficou claro que a pessoa é mentirosa? O estrago da mentira é difícil de superar. Fica sempre a tentação de pensar: Se fez uma vez, pode fazer de novo. A oportunidade de causar uma primeira impressão é única e, uma vez perdida (como a inocência), sempre perdida. É preciso preservar um espaço para a absolvição, mas como é difícil! Sem confiança não pode haver intimidade, e sem intimidade aquela sensação deliciosa de mergulhar no outro não pode virar aquela palavrinha de quatro letras que todo mundo quer. Invejo sua aposentadoria precoce. Tenho uma firma que faz bolos sob encomenda. Surgiu por acaso. Não foi minha intenção entrar nesse ramo, mas tem sido compensador. Digo a todos que minha casa “é o lar que o açúcar construiu”. Quando me perguntam o que faço, às vezes respondo: “Manipulo açúcar e quebro ovos”. Odeio quando fazem essa pergunta porque realmente não me identifico com minha profissão. É trabalho e não uma vocação. Mas que é um bom negócio, isso é. Há algo de maravilhoso em criar algo do nada, inventando coisas bonitas para dias felizes. Adorei receber sua mensagem, batida entre bolos de noiva e grinaldas de açúcar. O que quer que aconteça, seremos melhores por isso. Cada passo em falso tem um lado bom, e cada passo bom tem um lado em falso. Além da chuva fina e de um céu azul, este dia trará: — mais afirmativas suas — impulsividade, com ou sem doces — aventuras no desenvolvimento da confiança no outro — aventuras no desenvolvimento da confiança em nós Estou feliz porque nos vamos ver domingo, mas parece tão longe… Impossivelmente longe... Você precisa me fazer esperar tanto? De jeito nenhum! Só sugeri domingo porque achei que você não estaria livre antes por causa das crianças. Se quiser aproveitar meu horário flexível e a mobilidade da minha bicicleta, diga: Venha. As crianças ficam me perguntando o porquê desse sorriso de Mona Lisa... Como explicar que o que acende meu rosto é a lembrança da pressão do seu? Brindemos a um sonho improvável. Será mesmo? 5 A curvatura no seu lábio superior é divina (sem comédia), convidativamente saliente. Como o arco de um proscênio emoldurando o aplauso, como a compulsão do cego em inspecionar o relevo. Fazia muito tempo que não tomava tanto vinho e hoje estou me regando como uma planta para espantar essa ligeira ressaca e uma suave dor de cabeça. Quero que minhas freqüências mentais gozem desimpedidas a memória da noite passada. Brindemos a um sonho provável! Delicadamente segura me desloco entre as crianças, empurrando-as em direção ao sol, alisando-lhes as rugas de inquietação, enfiando calmamente moedas de ouro em seus bolsos. Cochichando: “Sim”… Longe de mim deixá-lo carente! Sim, imaginei que estava aguardando um bilhete meu, passado discretamente no corredor. Você está em meus pensamentos. Por que é tão fácil mantê-lo perto? Entro em transe com o som de sua voz e quero saber mais. Gosto de você... Enquanto espero, deixe-me massagear sua coxa, suas costas, seus ombros, com dedos firmes, traçando um ligeiro arabesco com o arco da unha. Acho que devemos fazer o que queremos sem tarifas compensatórias. Afinal de contas, o que tememos? Que abriremos as comportas de um hedonismo desenfreado? Que seremos soterrados por um furor de autopaparicação licenciosa? Acho que sobreviveríamos. Você tem razão na sua contabilidade da minha contabilidade; uma coisa sacrificada por outra. Mas vejo isso como sinal de equilíbrio. Não me faltam tendências indulgentes, mas me abandonar a elas, verdadeira e plenamente, acho que não consigo. Só em alguns aspectos, mas não com a devida freqüência. O que houve? Não estou procurando a perfeição, mas sinto que você está. Não posso aceitar a idéia de não corresponder a suas expectativas. E sua presença diária na Internet confirma que está procurando alguém diferente de mim. Espero que encontre o que deseja. Você tem sido maravilhoso. Obrigado por um começo brilhante para o ano-novo. Também não procuro a perfeição. Eu não quero que você seja isso ou aquilo, ou faça isso ou aquilo. Mas quero sentir sintonia. Estava presente na primeira vez, mas já não estava mais lá ontem. Era como se você tivesse fechado uma porta, ou recuado. Suas palavras me garantiam que nada tinha mudado, mas a linguagem do corpo dizia outra coisa. Não consegui espantar essa sensação, por isso meu coração estava sangrando. Quanto à minha atividade online, recebo cartas diariamente e sempre respondo. Desde que a conheci, sempre respondi: Obrigado, mas não obrigado. Mas, cada vez que uma mensagem é transmitida pelo site, aparece como atividade. Foi por causa disso que seu comportamento mudou? Antes de presumir, você deveria me perguntar. Hoje entrei no site propriamente dito pela primeira vez desde que nos encontramos para ver o que você tinha escrito sobre Demonstrações Públicas de Afeto. Para minha surpresa, você diz que gosta. Então o problema deve ser comigo. Curioso você dizer que examinou meu perfil porque me desliguei do site há três dias. Eu gosto de Demonstrações Públicas de Afeto mas não de Demonstrações Públicas de Intimidade. Com esta última não me sinto confortável. Admiro sua capacidade de afeto e a aplaudo. Você tem razão sobre sintonia. Não estávamos dançando bem. Não posso concordar com o termo “recuar”, mas posso entender como meu pisar mais leve poderia ser interpretado como tal. Também não entendo o “coração sangrando”: essa reação é melodramática demais para meu gosto. Não gostei de precisar convencê-lo dos meus sentimentos, pois, ao fazê-lo, só aumentou nossa distância. Você é maravilhoso, uma pessoa incrivelmente única. Admiro suas paixões; elas lhe abençoam. É louvável sua dedicação à análise e ao crescimento interno, mas sugiro que não fique preso atrás da câmara e participe um pouco mais da festa. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 13 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 14 Não conseguia dormir e, distraindo-me com a Internet, lá estava você, de perfil novo. Perguntei-me como e onde estaria, o que teria vivido, sentido e aprendido e como sobrevivera aos horrores do 11 de setembro. 6 Comigo, tudo bem: divorciada formalmente, as crianças saudáveis, o pai delas ainda vivo (e sóbrio há mais de um ano). Mudei para um apartamento melhor, que mal posso pagar, mas onde me sinto feliz. Continuo firme no trabalho. Acabei me apaixonando por um homem maravilhoso: um psicanalista, um pouco mais velho, que conheci por intermédio de amigos comuns. Ele se chama Pedro, e passamos temporadas em sua casa de campo em Mauá, pescando, lendo, conversando e andando pelos bosques. Recentemente começamos a conviver com os filhos um do outro. Ainda me surpreendo de ter encontrado aquilo que desejei tanto — e perdera as esperanças de encontrar — durante os anos longos e estéreis de meu casamento. É uma conexão verdadeira, intimidade e paixão misturadas com dedicação. Não só é possível, como foi possível. Não que tivesse perdido completamente as esperanças, mas parecia que estava dando murro em ponta de faca. Volta e meia penso em você, que se tornou, para mim, inquilino permanente da estação da Siqueira Campos. Sempre que passo por lá me lembro daquele interlúdio estranho em que nossos caminhos se atravessaram. Sua despedida meio abrupta me levou a aceitar ser apresentada ao Pedro, momento decisivo em minha vida. Portanto, você está fadado a ser um personagem coadjuvante, mas definitivo, na história da Beth. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 15 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 16 Mãe trabalhadora, escritora de versos, puladora de corda, bebedora de vinho, moradora da Tijuca, procura um amante de dunas de areia, de trutas de rio, e de outras coisas originais, enxutas, estranhas, malhadas e salpicadas. Quando nos encontramos, disse que tinha achado uma de suas poesias na Internet. Ela ficou desconcertada porque versava sobre os problemas entre os eles e as elas: 7 Ele disse que não entendia minha lógica. Por causa de meu problema com pronomes, ele disse. Ele disse que se incomodava com o jeito como eu presumia que ele saberia quem era o eu e o ele. Será que eu espero que ele leia meus pensamentos? Ele não quer saber de brincadeiras! Ele já viu esse filme! Ele disse que se incomodava com o jeito como eu presumia que ele já estivera lá quando (claramente) não estivera. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 17 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 18 Ocupada demais, cansada de ser ocupada demais e exigente demais. Seu senso de humor é manhoso e maroto, e, se eu me dispuser a namorá-la já, ela incluirá no enxoval um ditongo que me deixará completamente zonzo. 8 Cris prefere brancos, especialmente judeus, mas isso não a impede de sair com outros. Está convencida de que suas preferências são culturais, por isso não se envergonha. Cris me achou culto, divertido e financeiramente viável, mas o fato de não ser judeu pesou mais contra mim do que ela esperava. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 19 200fantasias 9 5/11/07 9:34 AM Page 20 O.K., eu não deveria estar forçando tanto a barra. A esta altura, isso talvez faça você nunca mais querer falar comigo. Mas, veja só, você foi agressivo no começo, por isso acho que tenho o direito de comportar-me assim agora. Em primeiro lugar, não acredito que você tenha, de repente, deixado de gostar de mim, ou, se tiver, não creio que seja algo que dure. Naquele domingo infeliz, tenho certeza de que revelei alguns de meus defeitos (e.g., ser mandona e teimosa). Mas todo mundo tem defeitos, e era cedo demais para você concluir que os meus seriam inaceitáveis. Você precisa entender que passei todo o fim de semana do feriado pensando em você. Era como se uma brasa estivesse queimando em meu peito (e em outros lugares). Faz anos que um homem não me faz sentir assim. Cinco, para ser exata. Essa descoberta foi assustadora e maravilhosa ao mesmo tempo. Falei de você para os amigos com quem me hospedei. Um deles fez uma cara estranha e disse: Você está apaixonada por esse cara! Loucura... Mas, quando voltei para casa, de repente parecia tudo “errado”. Tinha armado as coisas para que fôssemos parar no seu apartamento, onde poderíamos estabelecer um grau maior de intimidade. Mas, de repente, a velocidade, a urgência, a expectativa, era muita coisa ao mesmo tempo. Pensei: Não posso dormir com ele esta noite, e deveria ter dito: Preciso andar mais devagar, em vez de ter sido evasiva. Você provavelmente vai dizer que estou errada, e aí vou me sentir uma idiota, mas hoje me arrependo de ter recusado seu convite. Não sou psicanalista; não consigo participar e observar ao mesmo tempo. Nem interpreto minha atitude como rejeição sexual. Estava apenas me protegendo, por sentir que não conhecia você muito bem. Sou muito derretida (na intimidade) e adoro o contato físico. Mas não sou muito competente em ir daqui (controle intelectual) até ali (me soltar). Fica mais difícil ainda se percebo que gosto da pessoa. Muito do que você me escreveu me deixou incrivelmente feliz. Já estou sozinha há um tempão e de vez em quando acho que meu coração (bem guardado, super sensível) foi partido mais vezes do que merecia. Só conheci três homens nos últimos quinze anos com quem me senti imediatamente confortável e desejada. Você foi o terceiro (e nem nos conhecemos muito bem). Na realidade, quando nos encontramos na semana passada (para que você pudesse terminar tudo), tive a impressão de estar apenas começando a te conhecer. Para mim, o aspecto central da nossa relação vinha sendo a sensação de que era saudável e possível. Em contraste com os outros dois, achei que seria viável construir uma relação. Noves fora? Queria passar mais tempo juntos. Mas queria desarmar aquela ansiedade emocional, aquela pressa, aquele tudo-ou-nada. Na realidade, desejo uma amizade com sexo. Por favor, não pense que eu não quero transar. Seria bom aliviar logo esse tesão mútuo para que ele deixe de ser uma questão. Seria também muito divertido. Outra conclusão possível é que você seria um cafajeste manipulador... Isso me ocorreu hoje, de repente, depois que você recusou meus convites para irmos ao cinema. Pensei: Que merda, caí nessa de novo! Aí vem outro homem que me escreve as coisas mais emocionantes, que me induz a expor minha interioridade e de repente fecha as portas. Um mentiroso emocional fluente, um mago do engodo. É como se você estivesse morrendo de frio, alguém vem e lhe cobre com uma manta gostosa e quente. Você começa a se acostumar, e, na hora em que relaxa, alguém a arranca. O.K., isso é um pouco melodramático, mas foi a sensação que tive. É claro que todo mundo tem encontros que não dão certo; isso é uma realidade da vida. O que me provoca uma sensação miserável é que justo quando alguém me toca, oferece reconhecimento e valorização, tudo se revela uma mentira. Não tenho nenhuma vontade de achar que você é um cafajeste manipulador e não creio que você seja, mas NUNCA MAIS vou confiar em latinos. A terceira hipótese é que você acha que quer intimidade intelectual, física e emocional, mas não tem abertura real para isso. Talvez você seja assim e não vai mudar. Espero que não. Você disse que eu podia, pelo menos, ter a satisfação de ter sido convidada a subir. Agora pode ter a satisfação de jogar fora esta mensagem carente, emaranhada, confusa. Com certeza, vou me arrepender de mandar isso, mas é melhor se arrepender do que se faz do que do contrário. Se você for capaz de entender o que estou dizendo, agradeço. Por mais perturbadores que tenham sido os últimos dias, foi muito estimulante conhecer você um pouco. Eu me senti viva. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 21 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 22 A incapacidade de investir mais do que 10% em uma nova relação é o traço mais marcante que Daniela nota nos homens que tem conhecido pela Internet. 10 Quando descobrem que ela não se encaixa perfeitamente num ideal, saem correndo em direção à próxima conquista. Vai em frente que atrás vem gente. Daniela ainda não perdeu as esperanças, mas acha frustrante conhecer tantos homens que não têm garra para insistir além da primeira tentativa. Saímos duas vezes, e ela desistiu. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 23 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 24 Nosso encontro foi mágica pura. Se você sente uma fração do que sinto, acho que precisamos explorar isso até o fim. Que dia maravilhoso para estar diante de uma página em branco. Acabo de chegar ao escritório e encontrei um buquê lindo, de flores cor de salmão. Obrigada, você tem um gosto apuradíssimo. Me diverti muito ontem à noite. Você aprecia as coisas como eu, inclusive as aparências. Suponho que seja por isso que me dedico tanto à busca do design perfeito. Sua proposta é tentadora, mas percebo que ainda não sinto o que deveria sentir. Não estou onde deveria estar para explorar nossas potencialidades. 11 Agradeço sua resposta gentil e clara. Se não for penoso demais, você poderia me contar quais são seus motivos? Se for porque você não está pronta para qualquer pessoa, eu posso esperar. Mas, se for algo a meu respeito, por favor, seja franca. São as duas coisas. Não posso corresponder ao que você está sentindo por mim, e me envolver seria repetir erros do passado. Quero você bem demais para fazer isso. Espero não ter criado expectativas falsas, ou ter sido desrespeitosa de alguma maneira. Não tenho remédio senão aceitar sua posição, tão contrária ao que minha intuição diz. Quando estamos juntos, parece tudo tão justo e natural, como um pé esquerdo e um pé direito. Sinto que sua cabeça me está rejeitando enquanto seu corpo diz: Não liga para ela; está assustada, mas você pode espantar esse medo. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 25 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 26 Érica era artista e administrava o departamento de artes plásticas de uma universidade conhecida. Magra, bonita, além de inteligente e culta, era amante da Itália e estava interessada em mim. Nosso primeiro encontro foi ótimo e, logo em seguida, marcamos uma visita a seu ateliê. Faltava um mês para a inauguração de uma individual onde ela ia expor uma série de pinturas baseadas em contos de fada. Antes da visita, ela cometeu o erro (ou acerto) de me mandar fotos digitais das ditas. Esquecendo que a humanidade se acabaria se todos dissessem tudo o que pensam, comentei que as pinturas revelavam muita habilidade, mas não eram o tipo de coisa que costumava me interessar. Ela cancelou a visita, alegando que a arte dela era parte essencial de sua pessoa. Dois meses depois, ela ligou para se desculpar, dizendo que a exposição tinha sido um sucesso. Tivemos um segundo jantar, também ótimo, durante o qual fez alusões ao ocorrido. 12 Escaldado e precavido, desviei-me do assunto. Mas, no meio do terceiro jantar, ela começou a relacionar toda uma série de motivos pelos quais eu poderia não ter gostado das pinturas. As explicações foram ficando mais fantasiosas e eu mais irritado, até que não agüentei e disse: E se eu não gostei simplesmente porque são ruins? Rapidamente acrescentei: Estou brincando, é claro. Devo ter imaginado que escaparia com vida porque ninguém jamais diria uma coisa tão absurda sem estar brincando. Mas ela percebeu minha sinceridade, levou o comentário como um murro na cara, e desatou a chorar. Exalando fumaça pelos olhos e orelhas, disse que eu era a pessoa mais arrogante que jamais tinha conhecido e que nós, ricos, achamos que somos melhores que os outros, mas não somos; e achamos que sabemos mais que os outros, mas não sabemos. Atirou o guardanapo na mesa com estardalhaço e saiu batendo portas em pleno pato de Pequim. Às vezes custo a acreditar nas coisas que saem da minha boca. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 27 200fantasias 13 5/11/07 9:34 AM Page 28 Depois desses anos todos, sua terapia parece não estar dando em nada. Você se comporta como empregado de sua ex-mulher. Nossa degustação foi mal porque você se preocupa mais com ser correto do que com ser feliz. Quando a gente ama, pouco importam as aparências: se você rói as unhas, mastiga com a boca aberta, pendura arte cafona na parede ou mexe os lábios enquanto lê. É como a Vênus de Milo, na qual as imperfeições são parte da perfeição. Sempre fui da torcida dos que queriam ver você mais forte, enxergando mais, vivendo melhor, usando suas qualidades, em vez de ficar para trás, como um espectador, analisando os defeitos dos outros. E meu time perdeu. Nossa, como apanhamos! Mas, como sou boa perdedora, deixo o campo orgulhosa de ter dado o melhor de mim, o meu tudo. Claro que continuarei a torcer por você, a distância. E a porta continua aberta. Lembre-se que viver não significa encontrar defeitos no mundo, mas se inspirar, vibrar e amar, tudo até o limite, apesar dos limites. Você é tão ligado em arte, no entanto esquece o que importa: a arte de viver. Para cada não existe um sim. Um sim, outro sim e outro sim... 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 29 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 30 Será que o departamento celestial de marketing combina o gene do cabelo ruivo com o gene do gênio fogoso, ou será mito a intensidade das ruivas como Felícia? Jamais conhecera alguém com tanta ojeriza ao cigarro. Ela atravessava a rua para não cruzar com alguém que 14 estivesse vindo com o cigarro aceso e evitava qualquer restaurante com seção para fumantes. Felícia se dizia hiperalérgica, mas a hostilidade ao cigarro era ferina demais para ser só isso. Não morro de amores por fumaça, mas gosto menos ainda de uma boca espumando de raiva. Motoristas de táxi penduram avisos de não fumar enquanto impregnam o ar com desodorizantes vulgares. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 31 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 32 Uma tautologia é um argumento circular, verdadeiro por definição. A reificação ocorre quando elevamos um conceito inventado pelo homem a um nível que aparenta transcendê-lo e depois esquecemos que fomos nós que o criamos. 1.0 todo juízo de valor se fundamenta na moral ou na estética, duas tautologias reificadas 15 1.0.1 os juízos de valor decorrem da luta pelo poder 1.0.2 os juízos de valor moral de uma sociedade viram o código de conduta 1.0.3 os juízos de valor estético de uma sociedade viram o gosto dominante A linguagem é um sistema tautológico, um sistema amigo. Posso manipular qualquer conceito a meu favor. Nos namoros, comporto-me segundo a moralidade que escolhi. Considero as pessoas atraentes de acordo com a estética que adquiri. Existe mágica quando faíscas não tautológicas começam a voar, e nessas horas sinto uma tentação desgraçada de reificar tudo o que não compreendo. 2.0 o mundo é a soma das tautologias reificadas 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 33 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 34 Gerda é consumidora de psicanálise e fornecedora de psicoterapia. Era gordinha, e quando emagreceu as amigas se tornaram competitivas e os homens se transformaram em verdadeiros cavalheiros. Não há dúvida: o mundo é mais generoso com os magros. Durante boa parte da vida pesei entre cinco e vinte quilos acima da média para minha idade e altura. A gordura era um escudo que me protegia do presente. 16 Podia adiar tudo para o dia em que virasse “normal” e assim me acostumei a viver no mundo do amanhã. Um belo dia, encontrei um jeito de emagrecer e perdi o excesso de bagagem. Mas a ânsia de tapar o buraco foi apenas desviada. Desde que emagreci, percebo como as pessoas me tratam como uma pessoa bem resolvida. Até eu. A ironia é que resolvi perder peso como presente de dez anos de casamento para minha mulher por haver aceito um marido gordo. Foi justo aí que ela me deixou. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 35 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 36 Fiz poucas perguntas durante nosso encontro porque o pessoal do Departamento de Intuição estava ocupado demais. O escritório deles fica num outro andar e eles nem sempre vêem as coisas da mesma maneira que os colegas taxonômicos do departamento de fatos. Mas o importante é que gostei de você e senti que você gostou de mim. Mas não sei se gostou muito ou pouco, pois o maior elogio que você conseguiu puxar de dentro do chapéu foi dizer que achou animador termos conversado por duas horas com tamanha facilidade. Bem, mas isso é problema meu, pois você faz bem em ser cautelosa. Para que você me conheça melhor, vou me abrir sobre duas coisas que me deixaram preocupado, mesmo correndo o risco de pôr tudo a perder. Pouco antes de a gente se despedir, você disse: Sou bastante inflexível quanto a passar os fins de semana em minha casa de campo. Claro que isso é algo que poderemos algum dia fazer juntos, mas por enquanto ainda não. Essa frase poderia ser interpretada como: Precisamos fazer as coisas à minha maneira, quando eu achar certo. A outra coisa é que, durante o almoço, quando você descreveu as duas relações mais importantes de sua vida, o fracasso foi sempre culpa do outro. Talvez você considere prematuro baixar as defesas e me contar o que você considera suas falhas nessas relações. Você não precisa responder; só queria poder falar, ser compreendido. Acho que temos muito que apreender um com o outro, mas, se você entender essas preocupações como críticas, dificilmente nos daremos bem. Mas, se você as entender como uma aposta de que só podemos ter uma relação completa se nos abrirmos, adoraria planejar a tal viagem de bicicleta pelo vale de Loire. 17 Não sei como responder. Muito do que você escreveu me provocou aquela ânsia de querer me explicar. Sinto também uma angústia de você já estar apontando meus defeitos. De positivo, no final do parágrafo você me lembrou o lado que eu mais gostava no cara com quem tive minha última relação, por isso vou tentar responder sem ficar na defensiva. Sobre ser autocrítica, passei décadas sendo assim. E ainda sou bastante introspectiva. Tenho entrado e saído de análises, algumas úteis, outras não. Fiquei deprimida do colegial até os 20 e tantos anos de idade, até me dar conta de que tinha de assumir o controle de minha vida em vez de me culpar pela miséria do mundo. Sou mais feliz hoje do que jamais fui. Talvez tenha perdido um pouco de minha capacidade de questionamento e, você tem razão, às vezes sou um trator. Mas (e você talvez não goste disso) decidi ser eu mesma. Com relação ao último namorado, meu analista me disse que achava que ele era muito doente e que a relação continuaria difícil se ele não fizesse análise. Estávamos destinados a falhar, menos por minha causa do que por ele. Por mais de um ano depois do fim da relação me critiquei muito, absorvendo toda a culpa que ele me jogou; e isso era incrivelmente doentio. Hoje sinto como se um peso tivesse sido tirado de cima de meus ombros. Olhando para trás, não entendo como pude me questionar tanto. Em alguns departamentos, sou flexível, espontânea e aberta. Estava confessando minha obsessão — que venho tentando abrandar — por minha casa de campo. Como proprietária, essa atenção tem também um lado prático — você nunca sabe o que está acontecendo se não puser os pés lá (tem havido apagões e árvores e garagens caindo por causa de ventos fortes etc.). Falei aquilo para você se sentir à vontade, para não achar que a gente precisava se envolver logo. Bem, agora você sabe um pouco mais sobre mim. Não estou dizendo: “Sou assim e acabou”. Estou disposta a trabalhar, mas não gosto de começar tão cedo, mal conhecendo você. Gostei muito do que vi. Você tem muitas qualidades que procuro. Considero uma proeza ter podido conversar com alguém por tanto tempo, querendo escutar e debater, sem nenhum momento de estranheza. Fluiu, foi natural, gostoso. Será que vou me sentir inadequada? Não sei, mas já estou começando a me sentir assim, um pouco. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 37 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 38 os convidados trouxeram presentes de alguns ela gostou apaga a luz lá vem o bolo tomou coragem mirou soprou Ivanoé 18 beijos no rosto beijos no ar todos se foram pia cheia louça suja até amanhã querendo sentir os ventos novos lambeu a ponta do indicador mas o ar parou 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 39 200fantasias 19 5/11/07 9:34 AM Page 40 Hiroko veio de Ourinhos com Patrício, o filho de 8 anos, e penou para aprender as regras da cidade grande. Sente-se insegura quando lida com gente que já absorveu esses códigos. Algo nos meus olhos fez com que Hiroko se entregasse, mas ela não sabia se estava confiando em mim ou na projeção de seu desejo. É fácil se enganar com pensamentos, mais difícil com sentimentos. Mas quem deseja muito querer e ser querida nem sempre consegue separar uma coisa da outra. Hiroko ficou encantada comigo, mas não agüentei a idéia de virar tábua de salvação. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 41 200fantasias 20 5/11/07 9:34 AM Page 42 Pessoa charmosa precisa de homem calmo, sensual, ligeiramente irônico e altamente inteligente para passear pela cidade. Vamos ver aonde isso dá? Sou tolerante com tudo menos com egoísmos desenfreados e libidos retraídas. Você precisa ser complexo e interessante, o tipo de pessoa que a gente leva um tempão para conhecer. Você precisa ter amor-próprio para que a vulnerabilidade seja humana sem ser carente. Fotos deslumbrantes, tiradas quando ela era mais jovem, com cara e corpo de modelo. Bela sombra de um belo passado, ela parecia profunda, mas nossa conversa oscilou entre o mundano cansado do mundo e o palavreado cansado do falatório. Houve momentos intensos, mas o patrimônio líquido foi menor do que a soma dos particípios. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 43 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 44 Só perguntei porque minha intuição estava captando sinais ambíguos. Você se comporta de maneira agressiva, mas qualquer conversa revela correntezas profundamente femininas. Além da inteligência e da curiosidade, gostei da sua doçura (sim, deu para reparar) e da vulnerabilidade cautelosamente escondida. Essas suas partes valorizariam o homem que eu gostaria de ser. Mas também me pergunto se outras partes suas — o lado impetuoso, intenso, impaciente — não se cansariam logo do homem que sou hoje. Você é uma mistura dessas e de outras coisas, e quando perguntei se você via alguma chance eu estava perguntando, na realidade, que partes de seu canteiro precisavam ser regadas. Será que são partes das quais posso cuidar? Estou sendo retórico — nenhuma resposta é possível. E essa linha de especulação vai 21 desaparecer sem deixar vestígios quando a mágica acontecer, fantasiada de maneira imprevista. Espero sinceramente não ter dado uma impressão errada quando convidei você para subir até meu apartamento. Como não posso esperar que leia meus pensamentos, queria compartilhar o que penso sobre o sexo: como não me interessa o sexo casual, preciso de tempo para conhecer uma pessoa até nos tornarmos íntimos. Preciso me sentir confortável e confiar que a relação tem potencial para durar mais do que três semanas. E, quando meu parceiro e eu damos esse passo, precisamos parar de sair com outros para concentrar as energias na relação. Não acredito na exploração de várias relações ao mesmo tempo. Por isso, se brinco com você no sofá, só estou brincando com você no sofá. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 45 200fantasias 22 5/11/07 9:34 AM Page 46 A vida inteira acreditei que ser parte de um casal era o estado natural das coisas. Eu e ele éramos vistos como um par perfeito. Aos poucos, passei a ver nossos laços como inquebráveis, quase simbióticos. Mergulhei minha individualidade no todo, de bom grado. Dei a ele diversos poderes, especialmente a autoridade moral de meus pais. Condecoração perigosa, mas eu tinha pouca consciência do que estava fazendo e pouca consciência de que tinha pouca consciência. Agora estou procurando recuperar essa autoridade, como quem puxa uma linha de pesca. Preciso que ela more solidamente dentro de mim, minha, somente minha. Também estou começando a lidar com o medo da solidão. Ainda não declarei um armistício, mas há terra no horizonte e gaivotas no ar. Se meu filho é o maior presente que recebi na vida, meu casamento é o terceiro maior, e meu divórcio o segundo. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 47 200fantasias 23 5/11/07 9:34 AM Page 48 Faz bem a meu coração te ver tão feliz. Pelo menos você parecia feliz ontem à noite. Apesar de nossa relação não ter dado certo, orgulho-me de continuarmos tão amigos, e sua felicidade me enche de esperanças de melhorar minha vida quando meu divórcio sair e eu deixar esta casa. O medo da falta de dinheiro e das despesas de morar sozinha com minha filha me pesa nos ombros. Quero ser mãe em tempo integral e ao mesmo tempo quero ser artista. Por isso um dos lados vai precisar ceder, talvez seja o conforto de minha vida atual. Espero que tudo termine bem. Sempre soube que o interesse de meu marido por nossa filha é mais teórico. Acho que ele a ama, mas não sabe concebê-la como ser autônomo, independente dele (típico do Narciso). Por isso tenho plena consciência do peso de ser a única provedora emocional. Como proteger minha filha da negligência emocional do pai? O que posso realmente controlar? Apenas pensamentos passeando soltos pela cabeça… 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 49 200fantasias 24 5/11/07 9:34 AM Page 50 Que coisa estranha conhecer na cidade grande, por meio da Internet, alguém de Mococa, minha cidade natal. Iara trabalha num escritório de arquitetura, numa daquelas enormes fábricas reformadas onde todos passam o dia olhando telas. Nossa origem comum prometia, e me fez lembrar como os casamentos arranjados podem dar certo por causa de crenças que os noivos têm em comum. Judeus seculares que só querem casar com seus similares devem estar seguindo a filosofia dos casamentos arranjados. Em todo caso, nosso encontro acabou não entusiasmando. Pensando bem, talvez o argumento a favor dos casamentos arranjados seja pouco convincente. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 51 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 52 Juliana é uma anestesista que vai para o trabalho todos os dias, como todo mundo. Nosso primeiro encontro foi muito bom, mas tenho dificuldade em lidar com o fato de que ela passa as horas tentando impedir as pessoas de sentirem dor, enquanto meu emprego é tentar fazer os ricos ficarem mais ricos. Todo mundo tem fantasias sobre a vida dos outros, mas a rotina de um ator, de uma modelo, de um artista, ou de um 25 músico é, de maneira geral, maçante, com apenas alguns bons momentos. Juliana não quer que eu a coloque num pedestal. O trabalho é como o de um artesão altamente qualificado em uma linha de montagem. Não existe contradição entre tratar alguém como um ser humano e, ao mesmo tempo, como uma unidade que nunca viu e provavelmente nunca mais verá. E, se suspeito que não estou à altura de quem faz o que ela faz, o problema é somente meu. E a anestesia que ela usa não funciona para isso. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 53 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 54 Foi um jantar simpático, mas não havia a menor chance. Apesar do esforço de esquecê-lo, ela ainda estava apaixonada por um conde piemontês, vinte anos mais velho, cujas filhas a haviam afastado do lar ancestral da família. Uma 26 aventureira americana ameaçando nossa herança. Nunca haviam visto o conde tão feliz, mas não foi isso que prevaleceu. Nossa conversa não foi ideal para um primeiro (ou último) encontro, mas foi tocante ouvi-la contar como se apaixonou à primeira vista, mesmo ele podendo ser pai dela. Essas histórias me fazem acreditar em pieguices como “almas irmãs”, como Papagenos e Papagenas. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 55 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 56 Katia se diz uma artista com os pés no chão, uma combinação que considera rara. Está em excelente forma, faz yoga todos os dias e procura um homem que não fique na defensiva. Considera cabeça raspada sexy e só gosta de cabelo se for bastante e quase todo em cima da cabeça. Quer pretendentes divertidos e sensuais, mas que tenham, pelo amor de Deus, um lado espiritual. Tomamos um chá numa bela tarde de outono. A conversa começou de maneira bastante 27 convencional. Aos poucos ficamos sem assunto, e os silêncios cada vez mais incômodos. Inquieta, Katia olhou para o relógio e disse que tinha um compromisso. Minutos depois, cruzei com ela na plataforma do metrô. Sorri e falei qualquer coisa sobre coincidências. Ela retrucou algo baixinho e saiu rapidamente da estação, parecendo ansiosa. Será que exalei algum feromônio venenoso? Fiquei perplexo e incomodado com a repulsa de uma mulher que se considerava tão antenada. Será que a axila do meu ego estava fedendo? Será que numa vida passada fui um sacerdote que a sacrificou? 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 57 200fantasias 28 5/11/07 9:34 AM Page 58 Quando Narciso morreu, a lagoa onde ele se olhava ficou tão triste que as águas doces se transformaram em lágrimas salgadas. As ninfas da floresta vieram consolá-la, dizendo-lhe: Não nos surpreende que seu luto seja tão profundo, pois Narciso era lindo. A lagoa respondeu: Mas eu nem sabia que ele era lindo. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 59 200fantasias 29 5/11/07 9:34 AM Page 60 Laura parece durona, mas é só o medo de sofrer. Nasceu em berço de ouro, foi muito mimada, mas não gosta de ostentação, nem de falar de dinheiro. Casou-se com um homem que parecia diferente dos muitos casanovas que havia namorado. Revelou-se um satanás. Está recém-separada, portanto não sabe se está pronta para um novo relacionamento. Para encantá-la, um homem precisa ser carinhoso e compreensivo. Não pode ser impaciente ou mal-humorado. Em troca, receberá uma mulher linda e polivalente, que dá trabalho, mas vale a pena. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 61 200fantasias 30 5/11/07 9:34 AM Page 62 Entusiasmei-me cedo demais com uma executiva loura que (como eu) ama o sul da França e (como eu) tem muitos amigos gays, ambos bons sinais. Depois do jantar, declarei meu entusiasmo e propus uma porção de coisas. Ela nunca mais retornou minhas chamadas. O primeiro encontro com a leveza insuportável da etiqueta virtual não foi o último com a pressa derrapante da ansiedade incontinente. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 63 200fantasias 31 5/11/07 9:34 AM Page 64 Quando ocorre o face a face surge às vezes um vazio tão grande que engole as palavras. Nesses casos não há o que fazer senão agüentar firme até o fim do jantar, pensando o tempo todo: Por que diabo não propus apenas um cafezinho? Meu temperamento otimista me faz esperar que cada encontro seja o último. Se eu fosse mais realista, lembraria que raramente tenho premonições ou pressentimentos, mas, nas poucas vezes que tenho, invariavelmente dão errado. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 65 200fantasias 32 5/11/07 9:34 AM Page 66 Peguei um ônibus até Arraial do Cabo para conhecer uma advogada russa, doce e sincera. Monica era bonitona daquela maneira rechonchuda que os antipáticos chamam de fofa. No final da conversa estava claro que éramos muito diferentes. E Arraial do Cabo não fica exatamente na esquina. Mas nada disso teria importado se a química entre nós tivesse cantado mais alta. Na semana seguinte nos encontramos no Rio. O contexto mudou, mas não o texto. Pela primeira vez empreguei a fórmula: Gosto de você, mas não estou sentindo o que precisaria sentir. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 67 200fantasias 33 5/11/07 9:34 AM Page 68 Apesar da resposta tardia, não poderia de deixar de responder a um homem que gostaria de assistir ao programa da Xuxa ao lado de Lévy-Strauss. Mas a demora não foi acidental. Ainda que você pareça muito divertido, tenho a impressão que jamais consideraria a hipótese de morar no exterior, longe do seu filho adorado. E não posso comprometer-me a viver aqui. É pena que nossos pendores geográficos pareçam tão opostos. Mas, se você não tiver nada melhor para fazer, poderíamos tomar um drinque, puramente na base da amizade. Você deve saber que nós francesas acreditamos em fazer por fazer, sem maiores objetivos. Assim como acreditamos no valor dos encontros à toa. Mas se você, apesar da aparente familiaridade com os hábitos femininos, tem o objetivo de namorar, não ficarei ofendida se não me responder, tal como autorizado pela não-etiqueta da Internet. Fiquei feliz com sua resposta, mesmo com a demora não-acidental. Não sou fã da tal não-etiqueta da Internet, apesar de ter gente que prefere o silêncio a uma resposta negativa. O silêncio me incomoda, como se o anonimato revelasse a verdadeira natureza daqueles que só se comportam com consideração no não-anonimato. Eu, como bom escoteiro, sempre respondo, nem que seja para dizer: Obrigado e boa sorte. Mas, voltando à sua mensagem, acho que você colocou seu dedo gaulês no xis do problema. Sou, de fato, bastante divertido, mas tenho o rabo residencial preso. Puramente na base da amizade soa ótimo. Vamos marcar nosso drinque? Não era isso o que ela queria ouvir. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 69 200fantasias 34 5/11/07 9:34 AM Page 70 Nara sorria muito e adorava dizer aos amigos o quanto lhes queria bem. Com um 1,5 metro de altura, foi a mulher mais baixa com quem saí. Admirei seu cabelo curto, empinado como uma escovinha e convidativo para o toque. O paladar era refinado e o conhecimento de vinho, profissional. Levei um bom e velho borgonha para animar nosso jantar. Por causa do vinho, Nara insistiu em pagar a conta, novidade desconfortável mas bem-vinda. Minhas anotações: Macia e elegante, com bom equilíbrio entre fruta e acidez. Termina um pouco prematuramente, mas deverá envelhecer bem por vinte ou mais anos. Infelizmente, a reação química restringiu-se à fermentação. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 71 200fantasias 35 5/11/07 9:34 AM Page 72 Deve ter ficado óbvio que eu não estava à vontade com seu radicalismo ideológico, por isso ela achou que ia pôr tudo a perder logo no primeiro encontro. Então cometeu o erro de sempre, como se sexo fosse jeito de prender alguém. Na manhã seguinte ela mandou um email agradecendo o programa da véspera. Quando não recebeu resposta imediata, mandou outro, furioso e despeitado. Mas eu tinha passado o dia fora da cidade e respondi, assim que voltei, com uma censura branda. Seu terceiro email pedia mil desculpas, mas a essa altura já estava tudo perdido. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 73 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 74 Odete tem a rapidez de São Paulo, sem a ansiedade. É mais esperta que muitos doutores que se vêem por aí. Adora viajar. Voltar para casa, mais ainda. Quando nos encontramos, a primeira coisa que me perguntou foi: Como 36 foi seu dia? Surpreendendo ambos, respondi que estava cansado da artificialidade dessa pergunta. Ela interpretou minha honestidade como sinal de personalidade. O passo em falso, em vez de atrapalhar, nos empurrou em direção à intimidade sem seqüelas. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 75 200fantasias 37 5/11/07 9:34 AM Page 76 A coisa mais atraente numa pessoa é a paixão pela vida. A minha é tolhida por um aparato crítico que sempre alimentei com grande orgulho. Criei uma gélida metralhadora que dispara para tudo quanto é canto, uma espécie de lente grossa que distorce tudo e todos, inclusive a mim mesmo. Quanto mais julgo, mais protegido me sinto. Quanto mais julgo, menos chances tenho de me surpreender. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 77 200fantasias 38 5/11/07 9:34 AM Page 78 às vezes sou uma pessoa difícil, mas quase sempre valho a pena; personifico todos os elementos contraditórios do fim do milênio: idealismo, cinismo, romantismo, ligeiro toque de niilismo, pretensões budistas (mas não suporto insetos). você se incomoda com essa ausência de maiúsculas ou aprecia a sua uniformidade democrática? afinal de contas, quem é você e por que está lendo isso? Um sushi malfadado com uma excêntrica brilhante cujo comportamento arredio me deixou pouco à vontade. Intuiu a assimetria de minhas maiúsculas e não era boa de fingir. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 79 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 80 Uma referência casual a um doutorado em filosofia política foi a única pista de que esse encontro seria o mais desafiador. Desconcertantemente inteligente, refrescantemente imprevisível, Paula questionava tudo e todos. Fascinado e intimidado, com 39 a psique encharcada de vinho, fui dormir como que marcado por um ferro em brasa e me retorci a noite inteira, embalado pela trilha sonora do desejo estancado. Mas Paula havia visto na minha íris decente que eu era careta demais e brilhante de menos. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 81 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 82 A distinção entre o ser humano tal como é 40 e tal como se vê Ao primeiro temos acesso ilusório ao segundo fragmentado O espaço entre o ser e sua auto-representação é a arena onde nossas tragicomédias se desenrolam 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 83 200fantasias 41 5/11/07 9:34 AM Page 84 Com esta minha cara de gringo, fui chamado para ciceronear duas psicanalistas americanas que vieram passar alguns dias no Rio. Elas eram de Nova Jersey, estado que todo mundo em Nova York considera cafona. Tive logo um bom entrosamento com uma delas, uma lourinha serelepe chamada Susan, mas todas nossas conversas pareciam cair no mesmo lugar cerebrino e meio estéril. Com a outra, uma morena sossegada chamada Rachel, tive conversas menos estimulantes, mas ela me pareceu mais bem resolvida. Durante noites sucessivas, levei as duas às gafieiras mais famosas da cidade, onde dançamos até altas horas de maneira aleatória, a única que conheço (ninguém da minha geração e classe social aprendeu a dançar de verdade; isso era considerado coisa de gente suburbana). Aos poucos, fui me inclinando na direção de Rachel, mas continuei me dividindo em duas faces, como manda a lei dos bonzinhos. Certa tensão começou a cristalizar-se, mas a natureza da situação impedia uma escolha. Durante as conversas com Susan, fui descobrindo grande quantidade de preconceitos — geralmente conservadores — embutidos em suas bases constituintes. Por trás da fachada sexy e do cacho pega-rapaz, ela era surpreendentemente recalcada, o que explicaria sua história ininterrupta de relações fracassadas (o fato de ter se especializado em terapia de casais levanta questões que prefiro nem comentar). Rachel, por outro lado, apesar da pouca curiosidade por questões teóricas, parecia ter intuição certeira e a disposição de confiar nos instintos. Aí, de repente, aconteceu uma coisa que me desorientou. Os três estávamos sentados, descansando no meio da segunda noite, quando um rapaz moreno e gordinho de meia idade fez sinais para Rachel do outro lado da sala perguntando se ela queria dançar. Ela se levantou dizendo o equivalente em inglês a: Ele está olhando para mim há um tempão, e eu saí na chuva para me molhar. A dupla sumiu durante toda a hora seguinte (a gafieira tinha vários andares), e quando Susan e eu saímos atrás deles, encontramos os dois rodopiando como loucos e suando em bicas. O homem, que se chamava Clodomiro, não falava uma palavra de inglês, mas era alegre, charmoso e entusiasmado e havia ensinado Rachel o suficiente (ela parecia aprender muito rápido) para girarem com bastante desenvoltura. Clodomiro, depois de perguntar se Rachel era minha mulher (cuméquepode?), pediu que traduzisse que ele era de Bauru, trabalhava com informática, estava no Rio visitando a família e há três anos estava tendo aulas de samba. Os dois continuaram a dançar, encantados, enquanto Susan e eu nos recolhemos com o rabo entre os cerebelos. Quando levei as duas de volta para o hotel, Rachel estava em êxtase, silenciosa; e Susan excitada, por associação. Eu, por outro lado, estava amargando a demonstração de como os corpos se comunicam sem palavras. Senti-me humilhado, pois uma mulher que havia começado a me interessar não tinha mais olhos para mim graças a um homem que eu jamais teria considerado comparável, intelectualmente, culturalmente ou socialmente. Nos dias seguintes, entendi que havia recebido uma lição de humildade, não de humilhação. Uma que não poderia ignorar se quisesse continuar eliminando os preconceitos embutidos em minhas bases constituintes. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 85 200fantasias 42 5/11/07 9:34 AM Page 86 Fui grosseira ontem? Ou, muito pior, uma CHATA??? Nossa, desconfio que sim. Por que fui tomar DOIS martínis antes de encontrar você? Antigamente, teria agüentado dois martínis e um copo de vinho sem nenhum problema. Ah, preciso começar a encarar a vida de maneira equilibrada e sóbria. Você me deu bons conselhos. Pena que não me lembre deles. Meu castigo é que toda quarta a empregada chega às 8 da manhã, na calada da madrugada. Portanto, nem posso me recuperar da ressaca tranqüilamente na cama. Em todo caso, desculpe se fiquei falando, falando, falando, sem chegar nunca aonde queria chegar. De minha parte, resolvi NÃO passar a Páscoa com minha família no México (touradas, ai caramba!). Em vez disso, vou me divertir com amigos queridos. Quase todos músicos, meu tipo favorito de louco. É isso mesmo o que vou fazer, e aí a gente se encontra depois. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 87 200fantasias 43 5/11/07 9:34 AM Page 88 Ah, o lamaceiro das diferenças culturais. Filha de uma família coreana e rica, Tina tinha senso estético apurado e trabalhava nos altos escalões da moda. Combinando feminilidade obsequiosa e temperamento impetuoso, ela gostava de escolher o restaurante, pedir a comida e enfiá-la sugestivamente em minha boca. Cheguei logo à conclusão de que essa pujança me interessava pouco, mas continuei atraído pelo comportamento sedutor. Uma tentativa prematura de precipitar o desejo levou à morte caridosa essa investida multicultural. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 89 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 90 Rashoschach. A vida se explica juntando a história de Rashomon1 com a piada das manchas de Rorschach2. Cada um vê à sua maneira e cada um vê o que quer. Filme de Kurosawa no qual três testemunhas descrevem a mesma cena de maneiras bastante diferentes. 2 Psicólogo (mostrando a primeira mancha): o que o senhor está vendo? Paciente: uma mulher pelada. Psicólogo (mostrando a segunda mancha): e agora, o que o senhor está vendo? Paciente: outra mulher pelada. Psicólogo (mostrando a terceira mancha): e agora, o que o senhor está vendo? Paciente: mais uma mulher pelada. Psicólogo: o senhor só vê mulheres peladas… Paciente: é claro, o senhor só me mostra mulheres peladas. 1 44 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 91 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 92 Recém-saída de um relacionamento complicado com um homem de idade suficiente para ser pai dela, Ursula é liberal para com os necessitados e conservadora no âmbito econômico. Em boa forma física e atenta à moda, prefere as trincheiras do voluntariado aos eventos beneficentes. Apesar da química insuficiente, continuei batendo à sua porta por imaturidade testosterônica graças à sua beleza 45 escultural. Para agradá-la, fiz uma doação para a instituição de caridade católica irlandesa onde ela atuava. Uma bela noite, ela deu tudo por encerrado. Eu estava usando uma camisa de que não tinha certeza se gostava. Mais tarde, comecei a suspeitar que a camisa dava azar e tinha sido a responsável pela última ceia. Ainda recebo todo ano uma carta de sua instituição beneficente pedindo dinheiro. No ano passado doei a tal camisa para seu bazar de roupas de segunda mão. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 93 200fantasias 46 5/11/07 9:34 AM Page 94 Sua mensagem me fez pensar; é verdade que estou triste… Meu primeiro impulso foi dizer que estou bem, saindo bastante e me divertindo. Mas, se examino bem meu estado de espírito, não posso dizer que estou feliz, ou em paz comigo mesma. Mas sinto que essa fase está terminando, agora falta pouco. Também vejo que o fim desse período coincide com uma mudança importante em minha vida (quem sabe…). Você sempre me faz pensar, nem que seja como o advogado do diabo. Já comi o chocolate com a forma da Tate Gallery que você trouxe de Londres. Estava delicioso. Todos no escritório ficaram com inveja. Mas isso é pouco, comparado com as outras coisas que você me deu. Ontem sonhei com você. Hoje de manhã me dei conta que há vários dias não abro os emails, e quando abri lá estava você. Nessas horas tenho vontade de acreditar em telepatia. Dá até medo. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 95 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 96 Vitória quer comentar um problema surgido num relacionamento recente. Ela entende que leva tempo para decidir se o interesse é suficiente para estabelecer uma relação exclusiva. Isso não a incomoda. No entanto, quando uma relação se torna fisicamente íntima, Vitória precisa de garantias monogâmicas. Também precisa de fotos (se você não quer incluir uma no perfil, pode mandar uma por email; se você não tem fotos digitais, a papelaria da esquina pode escanear as fotos por bem pouco). 47 No fim da adolescência, essa bailarina com futuro promissor mudou de rumo e partiu em direção à física quântica. Mais tarde, rendeu-se à matemática mais fácil e lucrativa do setor financeiro. Vitória considera o engajamento político a qualidade mais atraente num homem (ela trabalhou na campanha da Marta). Seu banco de investimento acaba de fundir-se com um banco maior e menos exclusivo, e a indolência dos novos colegas a está deixando desiludida. Apesar da promessa inicial, a falta de engajamento gerou indolência e desilusão. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 97 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 98 Ninguém jamais conseguiu definir satisfatoriamente o que é arte por um excelente motivo: arte não existe. Que nem Papai Noel: existe o conceito de Papai Noel mas não existe o próprio; existe o conceito de arte mas não existe arte. A única coisa real nos chamados objetos de arte é a matéria de que são feitos. 48 Eu tenho pena de você e de sua concepção materialista da arte. Que vida mais pobre e restrita. Eu é que tenho pena de você. Sua visão do mundo é doce e romântica, mas é a ilusão de quem vê sombras dançando na parede da caverna. A busca quixotesca da verdade qualquer que seja o resultado é o impulso que me sustenta. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 99 200fantasias 49 5/11/07 9:34 AM Page 100 Dizem que no Oriente é polido dizer que os filhos se parecem com os pais. Walkiria, pálida como a neve, adotou uma menina negra e me contou que seu tintureiro coreano sempre comenta como a menina é parecida com ela. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 101 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 102 Sentado no banco de trás de um táxi em Basel, correndo do aeroporto ao hotel, a freqüência do pensamento bruscamente alavancada pelo choque de ar fresco que inundou meu cérebro na escada do avião. A civilização ocidental está em plena ascensão. A sua decadência está 50 ameaçada de extinção. Mas ainda restam esperanças de retrocesso, pois resquícios de incivilidade continuam em cartaz. Alessandra uma neoclássica vestida de contemporânea, portadora de uma estética prevaricadora, fundamentada em orelhadas promíscuas. Como tem bom gosto mas não tem integridade, seu bom gosto não tem integridade. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 103 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 104 Admiro Bia por dar aulas na escola pública de um bairro tão perigoso. A tarefa não deve ser fácil, ainda mais para uma mulher branquinha e magrinha como ela. Acho o ensino uma grande carreira e sinto que até teria jeito para a coisa. Mas um palanque institucional reuniria minha 51 tropia pela didática com meu pendor pelo detalhe, formando um todo harmonioso mas pedante. Só o fascínio por detalhes singelos poderia salvar-me (por exemplo, ainda me encanta pensar que os líquidos giram em direções diferentes dependendo do hemisfério e que bolas de pesos diferentes chegam ao chão ao mesmo tempo). Que sacana! Tudo que ele queria era transar comigo. E o pior é que eu topei! E logo no primeiro encontro! Depois disso, inventou uma história de que a ex-mulher estava querendo voltar e que ele se sentia moralmente obrigado a tentar. Como se houvesse qualquer coisa de moral em seu comportamento! Duas semanas depois, reparei que continuava ativo no site e não me contive: mandei-lhe um email superviolento. Lasquei bala em cima dele, filho-da-puta! 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 105 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 106 Minha beleza é do tipo que faz as pessoas olharem. Não é uma beleza típica; mas natural, com estilo. É contida no dia-a-dia mas, quando solto o cabelo e relaxo, dá gosto de ver. Então o brilho realmente aparece. Ela jantava com o filho pequeno num restaurante quando nos conhecemos. Já estávamos começando a nos entender quando a descoberta de uma paixão mútua pela Pina Bausch elevou nossa freqüência hormonal. Ao levantar, perguntou se eu não queria acompanhá-los a uma festa. Cada vez mais encantado, com o passar das horas comecei a suspeitar que tivesse finalmente encontrado quem eu procurava. No táxi, ela apertou minha mão, sutilmente para que o filho não percebesse, e, a partir daí, nos vimos todos os dias durante a semana seguinte. 52 Fora da cama é ela quem manda, mas na cama ela quer que eu domine. Gritou para eu abrir os olhos enquanto transávamos, senão parecia que eu não estava lá. Sua agressividade me desconcertava, e isso me fazia querer agradá-la cada vez mais. Mas no fim concluiu que eu não tinha garra o suficiente, grrrrrrr. Raiva. Será que confundo a potência da raiva com autoridade moral? Será que respeito a raiva porque me amedronta? Será que a raiva de uma mulher me atrai moralmente, enquanto me repele sexualmente? Sua última mensagem dizia: Ah, estou provando meu próprio veneno, e o gosto é horrível. Vou deixar baixar a poeira... Nosso encontro mexeu muito comigo. Obrigada pelo que me escreveu; é o que sinto também. Está tudo bem comigo agora, mas ainda ando por aí tomando decisões impulsivas... Desde domingo venho pensando que não consegui realmente expressar direito o que desejo de um homem e de um relacionamento. Quanto ao sexo, o que busco não é tanto o domínio mas uma exploração apaixonada e também corajosa. É só o que consigo dizer. É muito, muito difícil para mim escrever sobre esse assunto, especialmente no email do trabalho. Escreve de volta senão vou pular para dentro do ciberespaço de tanta vergonha. Respondi, mas continuava me faltando garra. Comecei a estudar capoeira. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 107 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 108 Carla teve um sonho em que todos os homens usavam bonés apontados para trás porque andavam muito rápido. Acordou refrescada e saiu em busca de croissants, mas percebeu que já era tarde pelo tamanho da fila na padaria, ampulheta rudimentar mas eficaz. Voltou para a cama e perguntou se 53 eu queria geléia em meu croissant. Respondi que os prefiro sequinhos, hábito adquirido durante muitos anos passados entre um regime fracassado e outro. Naquele momento de recusa, ela se deu conta de que quase tudo em mim era seco, não só o croissant e o humor. Resolveu então que queria um homem com manteiga, geléia e mel. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 109 200fantasias 54 5/11/07 9:34 AM Page 110 mais uma vez o canto das sereias me faz desrespeitar a língua do mundo escrita na testa com letras garrafais legíveis sob a luz crepuscular dessa gafieira ribeirinha sem ajuda desses óculos de camelô 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 111 200fantasias 55 5/11/07 9:34 AM Page 112 A eutanásia é ilegal no Brasil, terra do jeitinho. Meu pai morreu de câncer, e seus últimos dias foram passados sob doses crescentes de morfina. A segunda mulher dele, uma libanesa tenaz que já havia visto esse filme na França, onde a eutanásia é permitida em casos terminais, lutou como uma heroína para que aumentassem a dose até o ponto onde se precipitasse o óbito. Médicos e enfermeiros, todos se recusaram a ajudar, dizendo que só podiam aumentar se nós disséssemos que ele continuava sofrendo. Ficamos bufando, inconformados com o atraso de nossa legislação, até que uma de minhas duas irmãs teve uma luz e entendeu. Durante as próximas horas, fomos pedindo que aumentassem a dosagem, dizendo que meu pai continuava sofrendo. Um monitor ao lado da cama mostrava as funções vitais dele, traduzidas em números. Sua morte foi uma morte numérica, decretada no momento em que o último desses indicadores se extinguiu. Meu pai morreu segurando as mãos das quatro pessoas que lhe eram mais queridas. Oito olhos alternando entre seu rosto, cada vez mais inerte, e a tela esverdeada, cada vez mais povoada de zeros. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 113 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 114 Como você, Débora também tem sangue real húngaro, se bem que bastaria uma picada para perdê-lo. Soube que vocês poderiam até fazer um teste de DNA porque a mão decepada de um desses reis magiares está guardada num relicário em Budapeste. Mas não se preocupe. Acho sua posição honrosa, o que me fez pensar em MINHA total falta de moralidade. Tudo o que você diz faz sentido. Débora entende perfeitamente, apesar de 56 querer separar-se do marido mais do que qualquer coisa no mundo. Eu talvez tenha colocado as coisas de maneira meio grosseira. Ela não está em busca de uma transa casual, que deve ser como apresentei a coisa toda. Está se sentindo supersozinha, aborrecida e terrivelmente traída. Você se importa se ela vier comigo no vernissage de sua amiga? Juro que não é para apresentar vocês. Não estou sendo malandra, é só para tirá-la de casa. Os vernissages têm uma energia toda especial. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 115 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 116 Uma boa relação é aquela na qual meu mishigas combina com seu mishigas. Uma boa relação é um santuário mille-feuilles em que as características individuais são menos importantes do que a casa que se constrói. Uma boa relação é aquela em que a paura de parecer fraco não inibe a intimidade. Uma boa relação é aquela na qual gostamos mais de nosotros quando estamos com o outro. 57 Uma boa relação é como a seqüência das Goldberg Variations número 4 e 30. Uma boa relação é aquela em que a outra pessoa ama você por quem você já é, aujourd’hui. Uma boa relação é aquela em que it’s o.k. ceder sem ressentimento e aceitar sem martírio. Uma boa relação é aquela em que não se mente, mas também não se peca por excesso de cinéma vérité. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 117 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 118 Sempre tive um fraco pela Itália e pelas italianas, por isso Elsa, uma neurologista siciliana morena e sensual parecia feita sob encomenda. Mas nossas conversas fluíam em direção ao cerebral, sua 58 especialidade. Apesar de nossas freqüências mentais estarem alinhadas, houve pouca ressonância magnética. Elsa ficou chateada quando recusei dois convites em dias consecutivos. Os motivos eram legítimos, mas ela não acreditou. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 119 200fantasias 59 5/11/07 9:34 AM Page 120 Sempre tive um fraco pela França e pelas francesas, por isso uma enófila parisiense com olhos verdes soi-disant insuperáveis e um cargo importante na Fundação Cartier parecia feita sob encomenda. Françoise pertence a uma categoria em extinção, a do liberal clássico, bem diferente, senão o oposto, do liberal moderno. Françoise foi criada num paraíso tropical e se considera exigente em matéria de areias brancas e lagoas azuis. Por empatia, todo 7 de setembro ela lê os discursos de Lafayette e relê a declaração dos direitos humanos. Françoise está à procura de uma cabeça cuja grandeza não bloqueie a sensualidade. Considera-se má candidata à psicanálise, mas excelente candidata para um homem seguro. Uma troca espirituosa de mensagens gerou uma noite intensa, cheia de conversas acaloradas em torno de um bordeaux antigo e de queijos não pasteurizados. A operação foi um sucesso, mas o paciente murchou. Como estávamos jantando chez moi, ela foi embora antes do ponto clássico de hesitação conservadora para preservar o decoro liberal clássico. Seguindo alguma convenção curiosamente subentendida e compartilhada, nunca mais nos falamos. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 121 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 122 palavras são esculturas gráficas aprecio tanto a forma visual quanto a forma sonora a tonga da mironga do kabuletê só faz sentido em nagô mas tem um gingado gostoso em português faixa branca de judô serve de fio dental para hipopótamo faz mais sentido em português mas é igualmente inútil 60 levados pelo som das palavras sem ligar muito para o sentido perambulamos pelos terrenos baldios da língua portuguesa caro leitor esse fascínio pela forma é suficiente para manter sua atenção? muitos dirão que não mas o cultivo da forma é uma espiritualidade secular 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 123 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 124 Gabriela é uma designer premiada. Formada na ESDI do Rio. Está à procura de um homem carismático e sagaz. Muito atraente, mas com maneirismos excessivamente sedutores. Não lido bem com as promessas de desordem contidas no excesso. Emprestei-lhe meu 61 lenço enquanto caminhávamos de volta à sua casa. Esqueci de recuperá-lo quando nos despedimos na portaria do prédio. Boa desculpa para voltar e me despedir na porta do apartamento. Não só não aproveitei como não liguei. Ela deve ter estranhado. Por que um homem atraído não insiste? 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 125 200fantasias 62 5/11/07 9:34 AM Page 126 Odeio quando dizem que penso demais. Fica parecendo que sinto de menos. Como se os pensamentos e as emoções disputassem o mesmo espaço dentro do corpo. Será que minhas prioridades teriam sido diferentes se o maldito francês tivesse dito: Sinto, logo sou? Você também tem fama de pensar demais? Ótimo, seria um prazer pensar demais sobre tudo, juntos; sentir demais tudo, juntos; e aí rir demais de tudo, juntos. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 127 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 128 Antiga dançarina, escritora frustrada e mãe dedicada. Considera um homem mil vezes mais atraente se ele sabe deixar uma mulher se aproximar. 63 Meu segundo contato com a autoridade moral. Asas de seda, ailerons de aço. Heloisa desafia meus hábitos e minhas racionalizações acumuladas. Pertence à esquerda frugal, compra verduras na cooperativa e acha estranho meu hábito de comprar coisas em quantidade para não precisar repô-las tão cedo. Senti-me um grande-comportado e um pequeno-burguês. Heloisa foi a primeira a dizer que eu parecia querer estar com alguém em geral, em vez de com ela em particular. Despediu-se com firmeza e tristeza, e, de novo, esqueci de recuperar meu lenço. Quando ofereceu enviá-lo por correio, pedi que guardasse como lembrança. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 129 200fantasias 64 5/11/07 9:34 AM Page 130 tínhamos o mesmo gosto o mesmo senso estético poderíamos ter vivido felizes para sempre no museu bauhaus 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 131 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 132 Já visitei muitos países, mas nunca a Rússia. Sua imensidão melancólica me amedronta, como a bruxa malvada do leste. A Rússia de minha imaginação é cavernosa, soturna — como boa parte de sua literatura —, e a russa de minhas fantasias é longilínea, pálida, de ossatura facial pronunciada, espécie de serpente do Bolshoi. Desconfio dessas russas casamenteiras que permutam beleza eslava escultórica pela assimilação conjugal ao continente americano. 65 Iolande penetrou minhas defesas tirando os sapatos e dobrando as pernas em cima do meu sofá. Não só os pés e as pernas me encantaram como seu cuidado com o tecido. Seus passatempos prediletos: dançar e desenhar nas paredes. Suas leituras preferidas: metafísica, histórias sufi e contos de fada. Achei cativante esse coquetel de sensualidade misturado a deferência, mas as divergências culturais (com relação, por exemplo, ao grau de intimidade necessário para um beijo na boca) foram se acumulando até virar um sanfonado de batidas e trombadas. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 133 200fantasias 66 5/11/07 9:34 AM Page 134 Quando um casal vive junto muito tempo, um vira espelho do outro e não só porque se tornam uma unidade. Param de questionar se a imagem espelhada é verdadeira porque param de questionar a natureza do reflexo. Demorou muito para que eu reparasse que o espelho tinha ficado turvo. Quando tentei passar um pano, meu marido disse que sentia muito, mas era tarde demais. Nossa relação não era saudável. Nenhum prato quebrado, nenhuma acusação estridente. Éramos apolíneos demais para isso. O comportamento civilizado era a tônica. O que foi mais difícil aceitar e talvez explique meu luto tão doloroso foi a decisão apresentada como irrevogável e inquestionável. A maioria dos homens simplesmente não entende a necessidade do luto. Todas as atitudes sórdidas que se seguiram à separação — comportamento incoerente com dez anos de convívio respeitoso e harmonioso — não passavam de barreiras inventadas para obstruir qualquer tentativa de resolver os problemas. O espelho apenas refletia o aspecto exterior. Hoje me dou conta que nunca o conheci realmente. O pior do meu luto é a percepção tardia de que nossa relação nunca foi verdadeira o suficiente para merecer um luto de verdade. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 135 200fantasias 67 5/11/07 9:34 AM Page 136 Joana é experiente e gosta de visitar lugares pouco conhecidos. Também gosta de cuidar do ninho. Nossa conversa esquentou por email, ferveu por telefone e pegou fogo pessoalmente. A relação foi intensa, mas terminou logo porque esbarrou no meu vazio, negro como mármore belga. Ela ficou com o coração chamuscado e com uma cópia do meu screen saver favorito. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 137 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 138 Minha aparência? Dois braços, duas pernas e uma cabeça. Está bem, vou respirar fundo e tentar de novo: Sou tão maravilhosa quanto modesta. Sem nenhum traço de exagero ou retórica, lanço meu olhar cauteloso, detalhista e, às vezes, melancólico, para examinar os momentos pungentes da vida 68 de meus homens. Nas histórias que se desenrolam em minha sala de estar, a carência afetiva, parte da condição humana, é tratada com o maior carinho. Você vai me achar uma fonte de prazeres simples e delicados, o equivalente corporal de estar deitado, num dia de verão sufocante, e descobrir que o outro lado do travesseiro está fresquinho. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 139 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 140 Mandei flores para desejar boas- vindas a Karina, recém-voltada da Tailândia, mas o entusiasmo de nossa correspondência murchou sob a lupa impiedosa de uma refeição. Karina está tomando aulas de boxe tailandês, mas descobriu que tem pouco talento. É uma bela flor que não espanca. Não está pronta para uma relação 69 e diz que percebeu, pela minha linguagem corporal, que eu não aceitaria nada menos do que isso. Ela acha que mereço o que desejo, mas não é nela que vou encontrar. Galeristas e curadoras se equiparam a psicanalistas no primeiro time de fantasias de salvação, mas até hoje nenhuma cumpriu a promessa. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 141 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 142 Comi sushi com uma nissei. Original. Adoro comida japonesa. Mas não sinto ganas de comê-la. Só quando estou indisposto. Talvez por ser tão saudável. Não faço a barba há dias. Será que a Mieko não gosta de barba? Os japoneses têm pouco pêlo. Talvez as japonesas não gostem de pêlo. 70 Ou não estejam acostumadas. Estou deixando a barba crescer. Para ver como é que fica. Depois de décadas de cara lisa. Minha barba é meio rala. Não sei se vai dar certo. Se a Mieko detesta barba. Não me importaria tirá-la. Será que devo perguntar antes? Ou devo fazer o que quiser? Tirei, mas devia ter deixado. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 143 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 144 Um belo dia acordei com a sensação de que nossa relação já tinha dado o que tinha que dar. Acontece muito: a cabeça liga o piloto automático e anda num trilho, até que o corpo vem atrás e dá um tapinha no ombro. Tomamos um café depois do expediente e sugeri que atravessássemos o parque para conversar. No caminho, contei o que estava sentindo, e Luisa imediatamente se dividiu em 71 duas: a parte que sofre e a parte que administra o sofrimento. Detesto crises, e minha culpa de fazê-la sofrer estava contando com a ajuda do estoicismo britânico que ela herdara do pai, um inglês típico. Quando estávamos chegando do outro lado do parque, de repente os olhos dela se iluminaram e ela perguntou: Você sabe o que as mulheres mais querem no mundo? Comecei a dizer que não dava para generalizar, mas ela me interrompeu, impaciente: Segurança. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 145 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 146 Passei o fim de semana louca de vontade de te ver (e me sentindo culpada por sentir esse desejo durante seu tempo com seu filho). E querendo, de fato, me mudar para a sua casa (acho curioso como você usou essa expressão comigo mais de uma vez; é algo que você costuma dizer para mostrar interesse?) e morar de alguma maneira dentro de você (ah, então o tempo é mesmo inseparável do espaço). Sinto-me frustrada com nosso processo, que me parece constantemente truncado: sua necessidade de correr da cama, de ir para o trabalho, de ir até onde está seu filho, de cumprir obrigações de um tipo ou de outro, de, em essência, fugir… Nunca tive um começo de relação na qual não passasse manhãs inteiras, ou mesmo boa parte de dias inteiros, na cama, fazendo amor, mas principalmente estabelecendo o que considero o alicerce da intimidade: um tempo e um espaço onde o mundo exterior deixa de existir por um tempo. Tudo isso pontuado por intervalos intensos de estar-juntos-no- mundo, por novas infusões de estímulos externos. Em nosso caso, tenho a impressão que entramos com facilidade em breves momentos de intimidade que, no entanto, terminam antes do tempo; e aí nos tornamos, separadamente, um você-para-o-mundo e um eu-para-o-mundo (a transformação que acontece de manhã, quando você abre a porta e 72 entra no espaço “público” de seu apartamento, ou mesmo quando você vai para o banheiro preparar-se, é para mim bastante palpável). Será que isso é inevitável, por causa das responsabilidades e da maneira como você estruturou sua vida? E será que eu serei vista, inevitavelmente, como uma egoísta horrível por causa desta ladainha toda? Outra experiência me deixou perplexa: nosso passeio pelas galerias de arte. Um espaço seu e não meu. De alguma maneira, não pertenço àquele mundo; sinto-me excluída e fora de lugar (é verdade que sou boa nisso). E a necessidade, mais uma vez, de sair correndo: uma viagem de táxi quando lutei, silenciosa e inutilmente, para processar mais esse fracasso. Foi um momento em que tive esperanças, talvez sem razão, de que você compartilharia seu mundo comigo; foi o único momento em que me senti abandonada. Volta meu sentimento de inadequação: Será que você não se entrega porque eu faço muitas perguntas (burras)? Porque sou caipira demais? Porque me faltam as bases culturais necessárias para circular em seu universo? Porque não sou “naturalmente” emotiva e “naturalmente” maternal? Porque sou diferente de sua ex ou parecida demais? Ou será que não me dou porque acho que você não está se dando, por uma ou por todas essas razões? Suspiro... Bem, agora preciso continuar corrigindo minhas provas. Besos. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 147 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 148 Um movimento interno vem ganhando força para que eu te mande justificativas e pedidos de desculpas, mesmo que atrasados. Fiz você se sentir inadequada, o que lamento profundamente. Tenho certeza de que você já superou essa triste lembrança, mas mesmo assim gostaria de corrigir o registro histórico. Começando com psicologia básica: desde a infância carrego um vazio que tentei preencher com comida e colecionismo. Pensava que o amor resolveria tudo, mas ao descobrir, depois de casar, que o vazio continuava lá, voltei a engordar e a colecionar. Assim que me separei, comecei a namorar na ânsia de repor o que havia perdido. Não sabendo que vazio na alma só se enche por dentro, a busca virou obsessão. Nenhuma mulher jamais esteve à altura do inatingível, por isso os últimos anos trouxeram uma longa série de decepções. Você foi uma candidata natural, mas o fim já estava contido no 73 começo. Não entendia nada disso na época, por isso me fixei em coisas que não eram impedimentos reais, apenas detalhes para resolvermos juntos. Confesso que também tinha dificuldade com sua dificuldade em gozar. Por mais que você me dissesse que o orgasmo não era necessário para o prazer, sentia que minha habilidade estava em jogo, e isso me perturbava. Me senti inadequado e creio que, do velho e bom jeito, precisei compartilhar essa sensação fazendo você sentir o mesmo. Se eu não gostava do seu gosto em matéria de roupa, isso nunca deveria ter sido um empecilho; conversando francamente, esse tipo de coisa pode ser resolvido sem interferir no que faz um relacionamento funcionar e durar. Noves fora, agora sei que fiz você sentir-se mal quando o problema maior era meu. Você não era inadequada; era talvez até mais do que adequada. Mesmo que você nunca mais tenha pensado no assunto, espero que me permita o consolo dessa confissão tardia, de um ex-católico para outro. 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 149 200fantasias 5/11/07 9:34 AM Page 150 Melissa nunca pertenceu completamente a lugar algum, mantendo sempre um pé em cada continente. Melissa sempre foi muito inglesa na repressão às reações espontâneas porém inconseqüentes, como gritar Ai! quando a água está pelando. Melissa detesta quando não gostam dela, por isso se esforça em ser gentil, mesmo quando não quer. Melissa acha difícil dar ordens à empregada. Se o mundo tivesse achado Melissa mais atraente quando pequena, talvez ela tivesse desenvolvido a postura de que: Não me importo se você não gosta de mim porque a próxima pessoa vai gostar. Mas isso não aconteceu. 74 Melissa incomoda-se quando as pessoas ficam olhando em volta enquanto conversam com ela. Melissa detesta ser previsível, por isso suprime a espontaneidade para não arriscar um lugar- comum. Melissa tem dificuldade em ficar com raiva dos que têm raiva dela se considera que não houve má-fé. Melissa evita situações emocionais complexas e pede pouco na esperança que peçam pouco dela. Talvez por isso Melissa tem poucas amizades e não respeita muito as que tem. Mas ainda resta nela uma inquietude, uma fome de ver o mundo antes que se canse dele. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 151 200fantasias 75 5/11/07 9:35 AM Page 152 Quando sinto uma emoção forte, ocorre uma cisão entre a parte que sente e a parte que observa. A cisão cria uma distância, e a distância faz com que eu não esteja inteiramente presente. No sexo, se não estou inteiramente presente, a inspiração míngua, e a relação torna-se burocrática. Primeiro isso, depois aquilo, a caminho do meu orgasmo e, se tiver sorte, do dela também. Como se isso não bastasse, ainda não superei o modelo que aprendi na infância de como se manifesta carinho: minha tendência é expressá-lo como um pai ou um filho. E quem quer isso, a não ser meu filho e meu pai? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 153 200fantasias 76 5/11/07 9:35 AM Page 154 Nora se sente mais feliz nos momentos em que pára de julgar, por isso ela topou tomar um café comigo, apesar de eu estar separado mas não divorciado. Nora declarou, de saída, que não achava certo tomar um café com um homem que, afinal de contas, ainda estava casado. Fiquei surpreso com esse escrúpulo. Forma acima de essência. Mas o maior problema de Nora é o relógio biológico, que está batendo com um tiquetaque implacável. Se eu estivesse disponível, talvez fosse um bom pai, mesmo sendo racional demais. Se eu estivesse disponível, talvez valesse a pena tentar curar esse defeito. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 155 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 156 As coisas andam sempre melhor quando deixo a realidade ditar a seqüência dos eventos, em vez de permitir que fantasias e projeções preencham as lacunas. Gostei muito de te conhecer e gostaria de explorar o ritmo natural das nossas possibilidades. Acho que a essência do que estou lendo é que você gostou de mim. Você quer ser cauteloso, mas gostaria de me ver de novo. Essa é minha posição também. Então, o que sugere? Vocês americanas sempre vão direto ao ponto, deixando o monopólio da sutileza nas mãos do cinema europeu. Você avaliou corretamente a minha posição, mas tem 77 uma sutileza que não vou deixar você pisotear: quero que interprete a cautela como sinal de vontade de acertar e não de ambivalência. Gostaria que fosse mais fácil me abrir, ser eu mesma e identificar meus pensamentos com mais precisão. Mas isso nunca é fácil. Sei que preciso me conformar com a idéia de colocar primeiro um pé no chão e só depois o outro, sem saber o resultado. Talvez alguns telefonemas, emails, um outro encontro, e aí vemos como ficam as coisas. Obviamente me sinto confortável com você, senão não teria contado histórias tão pessoais sem ter certeza de seu interesse por mim. O tempo todo me perguntava se essas dúvidas não seriam, elas próprias, fruto do que havia plantado com aquela história de andar devagar. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 157 200fantasias 78 5/11/07 9:35 AM Page 158 Olga é uma assistente social que trabalha com pacientes terminais e suas famílias. Ela sabe que presta um serviço valioso. Seu treinamento inicial foi na área de terapia sexual, e isso gerava muita conversa em festas e jantares. Olga gosta de sutileza e nuança, de um cheiro bom e de olhos que brilham. Quer conhecer um judeu disposto a viver novas experiências, mas está aberta a outras religiões. Olga se sente especialmente atraída por homens que gostam de mulheres e que as entendem. Sentado no business center de um hotel em Cingapura, envio mensagens eloqüentes para uma mansão no Alto de Pinheiros. Olga é dedicada ao judaísmo e à educação religiosa de seus quatro filhos. É surpreendente que esteja disposta a namorar cristãos. Mas a vida é injusta com as mães de muitos filhos, que juntam o desgaste diário às conseqüências físicas de tantos partos. Olga parecia exausta. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 159 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 160 Você tem um sorriso lindo e não mencionou, uma vez sequer, o plebiscito das armas ou a mania de freqüentar academias. E você parece saber bastante sobre si mesmo. Também procuro alguém que queira compartilhar valores, como honestidade e clareza em relação aos sentimentos. Meu coração até acelerou um pouco quando li o que você escreveu. Não sou nenhuma artista, mas tenho minhas paixões e arroubos do que as pessoas chamam de criatividade artística. De maneira geral, sou dedicada, curiosa, aberta e responsável. Às vezes até demais. De vez em quando orgulhosa e um pouco medrosa no amor, mas disposta a ousar. Como é que você se protege? Ou, então, me convence de que não é necessário… Tenho muitas idéias (alguns dias), sou capaz de pensamentos profundos (erraticamente) e tendo a me apaixonar por intelectuais (um vício que tem sido pouco saudável para mim). Quase te escrevi ontem à noite depois que nos despedimos. Tinha muito que dizer, mas não lembro mais o que era. Eram reflexões boas e algumas até interessantes, mas agora já se foram. Certamente vão ser substituídas por outras. Sei que o email é considerado um meio preguiçoso, mas para uma pessoa impulsiva como eu, que fala antes de pensar, esse é um jeito de ir mais devagar e dizer mais com menos. Mas não se preocupe. Neuroses, fogos de artifício e a força da gravidade são facilmente contidos pelo prazer de conversar, conhecer alguém, jantar e acelerar o pulso. Tomei banho e me dei conta que ainda sentia seu cheiro. Foi um prazer muito particular dormir enrolado nesse delicioso travesseiro comprido. Como um dublê, só que com uma pele muito mais gostosa. Quero recarregar minhas narinas, tatear a extensão completa do seu corpo, pausar sobre seus lábios, massagear suas costas, ombros e pescoço. Esse impulso de massagear deve ser recompensa pelas horas que você passa ajudando os outros. E, como para me castigar, quero reviver a sensação de embaraço que senti quando confessei já ter saído com centenas de mulheres. Quero reviver o desconforto de saber que, de agora em diante, você vai especular, sobre tudo o que eu disser ou fizer, se não foi dito ou feito antes. Mas tenho certeza que esse fantasma vai desaparecer com a intimidade, e a intimidade vem com o conhecimento. Que dia mais especial. Obrigada pela sua companhia, pelo seu toque, seus beijos doces, o prazer profundo, a sensação gostosa de confiar cada vez mais. Estou me deliciando com seu jeito calmo e sábio. Pétalas de rosa cobrem minha mesa. É bom me sentir plena. Você está em meus pensamentos e me sinto bem. As perguntas estão indo embora e, no entanto, você permanece. Reparo na feliz ausência de debate interno entre confiar em você ou confiar em meus sentimentos. Vim correndo não porque estivesse atrasada, mas por outros motivos: uma saúde redescoberta, uma tarde revigoradora, uma alegria infantil? Adoro as flores. Elas me chocam com o tamanho e a dramaticidade. Um pouco como tem sido conhecer você. Os momentos que passamos juntos não são dramáticos de uma maneira negativa. Pelo contrário, são surpreendentemente fáceis. Mas o fato de isso estar acontecendo comigo — o fato de conhecer alguém de quem realmente gosto — é uma imensidão. Considero minhas experiências, em todos os campos, como únicas, mágicas e engrandecedoras (freqüentemente por meio da dor e da tristeza). Há vezes em que procuro encontrar um contexto para essa criação contínua do eu. Não sou culta o suficiente para encontrá-lo em algo convencional. Às vezes o encontro na imensidão dos meus amigos. Mas geralmente invento o contexto — nas emoções, no crescimento, nas ações, em meus filhos — observando e sentindo o mundo à minha maneira. Será que foi uma mágica encontrar você? Meu contexto diria que sim. Em todo caso, estou feliz, muito feliz. Espero que vocês se tenham esbaldado na piscina, soprando gêiseres no ar, nadando até os dedos virarem ameixas, até os corpos brotarem guelras. 79 Não estou nem um pouco frustrada com sua libido errática. Você continua preocupado com isso? Meus pensamentos e emoções têm muito mais a ver com a situação geral. Espero ainda ter muitas conversas com você, verticais e horizontais. Emails crípticos (principalmente os meus), libidos erráticas, conforto indubitável, palavras não ditas, outras não ouvidas — interesse, curiosidade, experiência, uma solução rápida para um dia de solidão. Horários estranhos, convivência, proximidade, desejo, química, psicanálise, fantasia, aceitação, verdade proustiana. Entender alguém de verdade leva muito tempo e dedicação. Você “entende” isso que estou dizendo? Há coisas que me pergunto se deveria estar sentindo para continuar nossa relação. Mas a antecipação e o conforto que estão tomando conta de mim neste instante me fazem apertar Enviar. O retorno desse homem, dessa sombra do seu passado, é um problema que posso ajudá-la a resolver? Ou você precisa fazê-lo sozinha? Se eu não for parte da solução, não quero ser parte do problema. Sei que não há nada o que possa dizer que soaria direito, ou que ajudaria a mim ou a você. Estou escrevendo para te agradecer. Pela sua capacidade de me entender, de nos entender, de entender a situação. Estou consciente da raridade e do valor dessa compreensão. Quero também agradecer o presente da sua pessoa. Fui abençoada, honrada, agraciada por vivenciá-la. Nenhuma dessas palavras descreve o cruzamento de nossos caminhos da maneira certa, mas são todas elas verdadeiras. Obrigada também pelo que você me ensinou, pela pessoa que me permitiu ser, pela sabedoria, abertura, sensibilidade, humor, honestidade, beleza, sensualidade, desejo, força, profundidade, bondade e realidade. Sei que não há nada a dizer neste momento. Sei que você não quer ouvir falar de dor surda, arrependimento, confusão, autoflagelação, ódio-de-si, racionalização etc. Obrigada por ter sido parte da minha vida. Não sei se você fez o melhor para sua felicidade, mas sei que você foi respeitosa consigo e comigo. Eu a respeito porque você continua se respeitando e sei que posso continuar confiando em sua palavra. Ainda bem que você escreveu. Tive um dia triste, doloroso. Sua maturidade, bom senso e doçura me ajudam, mas também tornam tudo mais difícil. Se tivéssemos convivido mais tempo, talvez nunca tivesse feito isso (ou talvez teria sido até pior). Hoje me parece tão errado. Não sinto nenhum alívio pela escolha que fiz. Ainda me sinto consumida pela tentativa de entender o que sinto por você. É um sentimento mais forte do que havia percebido. Incomoda não ter como descobrir o que é o certo sem a influência desses últimos dias e semanas. Eu não sei, não posso saber, mas estou tentando continuar a fazer a coisa certa. Preciso dizer, mais uma vez, que isso não tem nada a ver com você; e sinto sua falta. Realmente, não há nada que possa ser dito. Todo dia sinto falta de você. Fico me perguntando se teria sido diferente se eu fosse mais passional em vez de tão dedicado a entender, a dizer a coisa certa. Se teria sido diferente se tivesse podido dizer: Vou ficar puto da vida e nunca mais a perdoarei! ou: Odeio esse canalha! Se tivesse sido mais amante e menos analista. Talvez fique me remoendo assim porque seria conveniente demais aceitar que não poderia ter feito nada porque (como você diz) não era “sobre mim.” Só pode ter sido sobre mim. Mas a verdade é que nunca lutei por nenhuma relação. Nem pelo meu casamento. O fato de não ter lutado diz pouco sobre a relação, mas diz muito sobre mim. O que tem de errado comigo? Será excesso de orgulho? Será autoproteção dizer: Tudo bem, vê se me importo, não estou nem aí! Em todo caso, sei que ficarei ressentido e nunca lhe perdoarei se você não resolver esse problema de vez. Ou você tem uma relação bem-sucedida para que minha dor e perda não sejam em vão, ou você arranca esse homem de seu coração. Espero que você descubra que as palavras podem melhorar, mas não a pessoa. Porque havia algo entre nós dois que era mágico e não tinha nada a ver com cultura ou razão. Obrigada pela mensagem. Estou capengando por causa de minha fratura, lutando, tentando não pensar demais. Não posso responder-lhe adequadamente agora. Será que poderei algum dia? Lavar roupas ou buscar as crianças, tudo agora demora o dobro. Nossa, como entendo pouco, tanto de mim como do amor. Mas é um problema meu. Nós tivemos muito pouco tempo. Nós tínhamos ainda muito para descobrir. Por favor, deixe de lado a dor do que poderia ter sido. Seja doce consigo mesmo. Nada de brigas. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 161 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 162 Jogando conversa fora, Patrícia me perguntou o que eu achava do Bush. 80 É claro que as potências econômicas, políticas e militares do mundo moderno abusaram longamente de uma superioridade que era fruto da prioridade histórica com que conceberam uma filosofia pragmática que lhes possibilitaria dirigir a curiosidade humana da metafísica para a ciência e extrair do conhecimento científico os dados para a construção tecnológica em que fundaram seu progresso. Patrícia só queria ser gentil. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 163 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 164 Sou paulista da cabeça aos pés. Vibro com a pulsação e a diversidade desta cidade. Sou judia não-praticante e moro em Higienópolis — isso diz muito sobre quem sou eu. Carregados de desejo e munidos de uma carga mínima de compatibilidade, passamos uma noite juntos. Nunca mais nos falamos. 81 Nos Jardins a trama urbana relaxa o punho, e a cidade vira mais orgânica. Isso afeta subliminarmente a psique. A topografia de um bairro influencia o espírito dos moradores da mesma maneira que a língua de uma nação afeta a personalidade dos habitantes. A maneira de ser de uma pessoa pode mudar de acordo com a língua que estiver falando: tenho uma amiga que é uma pessoa quando fala inglês e outra quando fala português. Mas se quem mora nos Jardins desenvolve uma mentalidade sinuosa e quem mora em Higienópolis desenvolve uma mentalidade quadriculada que é melancólico em um bairro também é melancólico em outro 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 165 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 166 Renata detesta homens pães-duros e os que falam de ex-namoradas, principalmente no primeiro encontro. Renata prefere homens com mais cabelo na cabeça que na orelha e com um Q.I. maior do que os trocados no bolso. Renata gosta de homens que riem de si mesmos para poupar-se de rir deles. 82 Sentados num banco, olhando para a lagoa, conversávamos com intimidade maior do que nossa compatibilidade merecia. São grandes nossas diferenças em educação e cultura. Renata é doce, de uma beleza suave. Mas o seu jeito meio hesitante faz com que me sinta impetuoso. Não gosto dessa sensação, com sabor de ansiedade. Tento me convencer que a reciprocidade é o melhor afrodisíaco. Talvez queira apenas um pouco de sexo, libido afogando sabedoria. Sua intuição anuncia que não haverá pote no final desse arco-íris. Mesmo assim, ela me quer. Mas já baixei do empíreo rançoso da fantasia para a dureza adstringente da realidade. Leva tempo sentir para onde sopra o vento. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 167 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 168 Um ano atrás, um homem sentado à minha frente num jantar comentou que tinha terminado com uma namorada porque ela não se interessava por seus objetivos psicanalíticos e não poderia ajudá-lo a alcançá-los. Já tínhamos bebido bastante, por isso perguntei se ele não achava essa postura instrumental demais. Para minha surpresa, todos em volta da mesa tomaram partido dele. Na época, atribuí o fato a uma sociedade cada vez mais utilitária e pragmática, mas desde então me venho aproximando cada vez mais da posição dele. Entendo sua reação ao comentário do homem. Parece pragmático, quase egoísta, típico de uma geração ensimesmada. Mas considero importante conviver com um parceiro que apóia minhas escolhas. Meu ex-marido responderia: “Mas, se você vê que a escolha faz mal à pessoa amada, não é sua obrigação 83 intervir?” Numa situação de vida e morte, é claro que sim, mas, na maioria dos casos, se um dos dois discorda, é porque acredita pouco na capacidade do outro saber o que é melhor para si. Sinto isso com grande convicção por ter vivido com alguém que achava que sabia o que era melhor para ambos. Esse tipo de narcisismo é difícil de detectar, pelo menos no começo, porque parece voltado para o bem do outro. Mas é voltado para o outro apenas enquanto extensão de si. Acho muito interessante a idéia de um narcisismo voltado para o outro. Será que somos suspeitos sempre que apoiamos uma escolha que aprovamos? Será que é só quando discordamos que o apoio realmente conta? O grande lingüista e ativista político Noam Chomsky, ao ser criticado por apoiar o direito de um crítico do holocausto expressar opiniões, perguntou: Qual é a virtude de apoiar as liberdades democráticas daqueles com os quais concordamos? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 169 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 170 Sua avó foi do Sacre Coeur. Sua mãe foi do Sacre Coeur. Sueli foi do Sacre Coeur. Rebeldia não foi uma opção. 84 Uma anomia anódina impregna o ar anoréxico ao redor de nossos x-búrgueres malpassados. Será que os defeitos do entrecruzamento genético têm equivalentes pedagógicos? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 171 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 172 Linda psicanalista, com olhos de gazela, pernas finas de cegonha, nariz rampa de lançamento. Certas fisionomias inspiram + respeito que outras, pelos traços aquilinos, pontiagudos e marcantes. 85 Quando alguém com esses traços trai a expectativa, presta um desserviço a todos que têm aparência semelhante. Ela achou que eu tinha talento para paciente, dos que moram com ela e não pagam, dos que ela já teve muitos e não quer. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 173 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 174 Ela é baixinha, mas não atarracada. Usa óculos de fundo de garrafa, mas não é feia. Seu príncipe encantado será assombrosamente inteligente, mas nunca arrogante ou presunçoso. Ele terá ultrapassado a fase defensiva da vida e estará pronto para conversar e escutar. Aqui estou, de manhã, depois de uma noitada de vinhos, ligeiramente surpreso por não estar de ressaca, mas sem querer dar muito crédito à moderação. Que bom que você achou charmoso o personagem que descrevi, mas me pergunto se esse personagem corresponde de fato à realidade. Sou fã da verdade e tive uma decepção recente quando uma editora, que havia escrito um perfil fascinante, cheio de verve e invenção, revelou-se pessoalmente prosaica. Mais tarde me perguntei se não teria sido timidez e se o tempo não teria revelado as mesmas qualidades do texto, indomadas por uma tela mas domadas por um ser humano. Ou será que um de seus clientes não teria escrito tudo, à Cyrano? Uma história que serve de advertência, mas com moral indeterminada. Voltando à vaca-fria, creio que me represento com fidelidade. Sou mesmo aquele personagem, nem carrancudo nem insidioso. Histórias de suspense são divertidas, apesar da agonia que provocam, mas não fazem meu gênero. Não existe mordomo, não existe crime e não há ocorrência para que se pergunte: Quem fez? Sou apóstolo fiel do gordo-e-magro das convenções não-românticas: verdade & comunicação. Nada noir, nada no ar, nenhum mistério, só aqueles que vêm da capacidade imperfeita de me conhecer. Fico feliz em saber que você não é nem carrancudo nem insidioso. Sinto muito se você se decepcionou com sua pequena éditrice, mas você não acha que é de esperar se você insiste em corresponder-se com moças que ficam boa parte do tempo sozinhas com um dicionário? Na teoria, eu poderia passar semanas assim, sem falar com vivalma. Na prática, sinto-me sozinha demais e me arrasto para fora de casa, à cata de alguém para brincar. Na verdadeira prática, no entanto, tudo isso é teórico, pois o semestre acaba de começar, e meu péssimo hábito de adiar todos os preparativos até o momento-depois-do-que-deveria-ter-sido-o-último-momento significa que não faço nada senão correr como uma louca desvairada organizando projetos e aulas e coisas desse tipo. Ah, o luxo de ficar na cama de ressaca e aí poder descobrir que nem estou de ressaca. Mudando de assunto, o que faz um “investidor particular”? Conheço um jogador profissional e, pensando bem, não sei tampouco o que ele faz, mas o vejo fazendo musculação o dia inteiro. Você deve ser um músico sério, pelo seu canudo. Sinto dizer que sou a pior das amadoras e que não entendo nada de vinho. Mas adoro beber, e minha irmã é compositora. 86 Sua mensagem, gestada no redemoinho do começo de semestre, me fez sorrir aquele sorriso que você chama de encantador. Realmente faz sentido a idéia que muito tempo numa sala (fazendo qualquer coisa) gere tédio, mas não esperava que esse tédio alimentasse fantasias que se materializariam de maneira tão hiperbólica na página, ou na tela, só para tropeçar no efeito impiedoso da presença carnal. Deveria ser um sagrado dever de todos os participantes desse carrossel amoroso manter os balões da imaginação firmemente ancorados no padrão corpóreo, para não provocar um exercício fútil de disseminação projetiva. Músico sério? Bem, fui algo assim por dez anos, mas em determinada altura virei competente o suficiente para enxergar meus limites musicais e pobre o suficiente para enxergar meus limites materiais. Aí larguei a guitarra e virei jogador profissional (na cabeça de alguns) ou gestor de fundos (no bolso de outros). Agora declarei um período sabático, de duração indeterminada, após o qual talvez faça alguma coisa mais “engajada”. Gosto de ensinar mas, sem um Ph.D., a única coisa que posso fazer é atazanar as faixas mais baixas na academia de taekwondo. Se você adora vinho, nem precisa ser uma conhecedora, já está aprovada. Eu não entendia nada do assunto até pouco tempo atrás. Agora entendo, portanto sou um HOMEM! Sei o que quero e vou atrás (ou peço ao garçom que traga). Vini vidi vici. Poderia ter escrito ao acordar, mas resolvi sair para respirar o ar molhado pela chuva que acabara de cair. Meus alunos e eu estamos lendo uma história arrepiante, Der Sandmann, de E.T.A. Hoffmann, de onde Freud tirou a idéia do “estranhamente familiar”. Li essa história alguns anos atrás, quando estava morando sozinha num porão na Lapa e descobri que não era um texto ideal para ler à noite. Meu apartamento era revestido de linóleo preto, escuro como um túmulo, com barras de ferro protegendo as poucas janelas por causa de um estupro que ocorrera no ano anterior. Mudando de assunto, você não acha que a gente deveria sair para tomar um cafezinho simpático e desmistificador antes que as projeções mútuas nos afoguem? Em suas cartas, sinto que estou virando uma princesa-gênio. Detesto admitir isso, mas ando com os pés firmemente plantados na terra, até meio desajeitadamente. “Investidor particular” é um pouco alarmante para esta neta orgulhosa do proletariado, mas a verdade é que estou mais fascinada do que alarmada. Para que nos conhecermos se podemos continuar alimentando fantasias que nos satisfazem tanto? Vou tirar os óculos de fundo de garrafa de seu rosto, olhar em seus olhos indefesos e comentar como são lindos enquanto você resmunga alguma coisa sobre não estar vendo mais nada. Então, você é uma neta orgulhosa do proletariado! Eu, pelo contrário, sou filho (sem orgulho) da burguesia, porém conformado de nunca ter trabalhado numa fábrica ou no campo. Também preciso confessar, em nome de veritas, que às vezes sou elitista, mas nunca esnobe (uma palavra que remete a luvas batendo em rostos para provocar duelos). Que história é essa de elitismo? Muitas definições me ocorrem agora, mas talvez essa conversa deva ser adiada até o cafezinho. Na realidade, considero o elitismo intelectual uma espécie de equilíbrio mental. Mas o elitismo social me dá vontade de vomitar e imagino que não seja desse tipo que você esteja falando. Em todo caso, estou cansada demais e posso parecer mais severa do que seria bom para minha imagem. É quinta-feira, e minha cabeça já está fundindo. Depois de dar três aulas no mesmo dia, fico incapaz de articular uma frase. É até engraçado, posso estar em meu escritório tentando explicar algo para um aluno, e ele ou ela acabam me fornecendo todos os verbos. Meus deveres docentes não são tão cansativos assim, mas preferiria estar à beira de uma piscina. Só que não há nenhuma por aqui, e está fazendo um frio desgraçado. Obrigado por manter um canto da minha psique firme no inverno. Nas artes plásticas, minha ótica tende a ser formalista, portanto o “estranhamente familiar” me fascina. Será ele resultado de determinadas constelações formais, ou de um pulo-do-gato poético que não pode ser explicado por meio da forma? Depois de uma década de silêncio, resolvi escrever novamente sobre arte porque o convite veio de um artista que desenvolveu um tipo de pintura estranhamente autoconsciente. Um de meus desafios será entender se essa autoconsciência — uma piscadela estranhamente familiar de sabedoria e inocência perdida — se manifesta por meio de uma operação formal ou vem de algo metafísico. Vou pesquisar muito para não chover no molhado, e o Dr. Freud será parte disso. Nosso cafezinho desmistificador correu bem, mas senti que o fato de ela ser baixinha, usar óculos fundo de garrafa e não ser muito bonita diminuíram meu desejo de explorar a promessa de um terreno epistolar promissor. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 175 200fantasias 87 5/11/07 9:35 AM Page 176 Teresa se formou em psicologia e gosta de entender as pessoas. Administra uma clínica para desabrigados, e sua equipe virou uma segunda família. Lá ela se sente o máximo: competente e confiante. Teresa tem grande variedade de amigos e pensa que eles representam diferentes facetas da personalidade dela. Quando nos encontramos, Teresa procurou me entender. Logo percebi que a atração que eu sentia não era recíproca. Tivemos uma conversa agradável enquanto rangíamos por dentro. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 177 200fantasias 88 5/11/07 9:35 AM Page 178 Vademecum Vademecum forense Vademecum Posologia Posologia vide Posologia vide bula Posologia vide Posologia Non Non bis Non bis in Non bis in idem Non bis in Non bis Non 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 179 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 180 Vera considera o mundo sua ostra e inspira-se nas múltiplas maravilhas que ele oferece. Quer conhecer um homem que respeite limites e compreenda como é difícil relacionar-se com outro ser humano. Não gosta de perder tempo trocando mensagens 89 quando a prova está no corpo-acorpo. Prefere marcar logo um encontro; depois é que se pergunta se valeu a pena tentar. Enveredamos por uma conversa divertida e bem sintonizada, mas a esgrima verbal não levou nem ao corpo-a-corpo nem ao mente- a-mente. Mas valeu a pena tentar. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 181 200fantasias 90 5/11/07 9:35 AM Page 182 Depois de quatro dias de descompressão e relaxamento, estou pronto para que estas férias durem para sempre. Tem chovido todos os dias desde que chegamos. Talvez seja o jeito de a natureza compensar a seca do ano passado, que deixou as usinas hidrelétricas paradas e provocou racionamento de energia. Quando pára de chover, as gotas continuam penduradas no ar, sem pressa de ir embora, sem nenhuma brisa de verão para secar a atmosfera e limpar o céu. Estou com três gerações de mulheres da família — minha mãe, minha irmã e minha filha — hospedadas numa casa que herdei em Itaipava. A chuva nos impediu de sair, o que poderia ter transformado a casa numa prisão, mas minha filha é muito bem resolvida e fez o possível para tornar minha vida mais fácil. Em homenagem aos racionamentos, esqueci de trazer meu barbeador elétrico, por isso comecei a usar uma lâmina. Parece uma metáfora para o abandono dos hábitos de fora e a adoção dos locais. Metáfora ruim, pois muita gente aqui usa barbeador elétrico. Sem falar que poderia sair e comprar um se não estivesse tão empenhado em me castigar pelo esquecimento. Aliás, também esqueci minha escova de dentes elétrica. Já quebrei várias escovas normais por causa do hábito de puxar a haste para trás e soltar como se fosse uma catapulta para diminuir a umidade que sobra na escova depois de enxaguada. Deve ser outra metáfora. É inusitado para mim morar, pela primeira vez, em uma casa que é só minha. É estranho pensar: Essa árvore é minha, essa grama é minha, esses galhos são meus. E, também: Essa goteira é minha, essa tinta descascando e esse cupim são meus; essa caseira e esse jardineiro dependem de mim para sobreviver. Cresci com a premissa de que as coisas se resolviam sozinhas porque meus pais sempre cuidavam de tudo. Apesar de cumprir o que é esperado de um adulto, ainda sinto saudade do conforto da infância. Minha transição para a maioridade não está completa. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 183 200fantasias 91 5/11/07 9:35 AM Page 184 Linda documentarista negra, bantu budista, esguia e óssea. Como todas as vegetarianas que conheci, Wanda fez o possível para não transmitir mais virtude do que os carnívoros, mas toda restrição dietética de natureza ética me deixa um pouco desconcertado. Talvez eu pense, sorrateiramente, que os vegetarianos devem ser menos sensuais, mais ascéticos, só porque se negam a comer algo. Sem trocadilho, devem ser menos carnais. As vegetarianas que conheci diriam que não se privam de nada — simplesmente não têm vontade de comer essas coisas. Mas o que relegou esse encontro aos anais foi o fato de que Wanda também não bebia. Apesar de ela não se importar se bebo álcool ou se como carne, os jantares são menos divertidos sem uma companheira gastronômica. No fim, minha relutância só foi possível porque a atração era insuficiente. Também não era capaz de enfrentar as objeções introjetadas de minha mãe preconceituosa. Saí dessa experiência com a sensação de que não sou suficientemente esclarecido (e não só em relação à comida). Ao mesmo tempo, aumentou minha preferência por mulheres que bebem e comem de tudo, mesmo se forem menos iluminadas. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 185 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 186 Muita gente se incomoda quando digo que não acredito em bom ou ruim. Ou, melhor, muita gente se incomoda quando digo que não acredito que bom ou ruim possam ser características imanentes dos objetos. Ou, melhor, que as únicas características imanentes dos objetos são as formais; ou seja, os materiais de que são feitos: peso, comprimento, altura, largura, temperatura, dureza, freqüência etc. Que bom ou ruim são construções culturais, projeções do sujeito sobre o objeto e não dependem necessariamente de nenhuma característica do objeto. Ou seja, que a superioridade dentro do panteão artístico de Cézanne e Matisse sobre (digamos) Bouguereau e Caillebotte é resultado da presença maior dos dois primeiros no gosto dominante. Está certo que o gosto dominante não é nítido e constante — é um conjunto de tendências, em evolução, que são absorvidas (ou não) de maneiras e em tempos diferentes —, mas nem por isso deixa de ser o deus ex machina de nosso gosto. Esse gosto dominante, que inclui Cézanne e Matisse, não é dominante porque 92 inclui Cézanne e Matisse. Ele é dominante porque a corrente que inclui Cézanne e Matisse ganhou a luta cultural pelo poder. Tudo é relação de poder, os ingênuos que me perdoem. A corrente que inclui Cézanne e Matisse ganhou a briga pelo discurso dos agentes que formam o gosto dominante: críticos, historiadores, jornalistas, curadores, galeristas e colecionadores. A crença de que Cézanne e Matisse são superiores a Bouguereau e Caillebotte resulta da reificação de uma subjetividade historicamente determinada de natureza inteiramente cultural. Eu, pessoalmente, prefiro Cézanne e Matisse a Bouguereau e Caillebotte, mas só porque fui programado pelo gosto dominante, que absorvi numa vida inteira em contato com os agentes principais desse gosto: os museus. Noves fora, meu gosto é muito menos meu do que eu gostaria de pensar. Só depois de convencer você disso tudo é que posso admitir que tenho minhas dúvidas... O cheiro horrível de amônia nas narinas, o choque retiniano do verde com o vermelho, as dissonâncias que certos intervalos geram nos ouvidos, o sucesso da proporção áurea, tudo isso me faz especular se não haveria algum substrato fisiológico, por menor que seja, nos juízos de valor. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 187 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 188 Professora na USP, Zoé se considera bastante atraente, e muitos concordariam. Tem um belo corpo, em forma, um rosto bonito e cabelos lindos. É saudável, sofisticada, cheia de juventude e se veste com bom gosto, sem ser vítima da moda. Zoé se considera um excelente partido para um homem aberto, um homem que dá valor à exploração intelectual. É também muito 93 perspicaz, qualidade muito apreciada por quem gosta da verdade. Tivemos boas conversas, culturais, políticas e psicológicas. Eu quis que as coisas evoluíssem rapidamente, mas elas estacionaram lateralmente, com aquela recalcitrância frustrante que só é menos frustrante do que sua ausência. Depois de algum tempo, Zoé confessou que ainda tinha uma questão em aberto com um colega. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 189 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 190 Estou chegando de um almoço onde me comportei como péssimo convidado, apático e ausente, do tipo que não paga a comida com conversas animadas. Meus pensamentos fugiam sempre em sua direção, mas, como um bom menino que não quer decepcionar os outros, sempre me arrastava de volta para as conversas. 94 Gostaria que já fosse amanhã, quando vou vê-lo. Não consigo explicar como minhas defesas se dissolveram tão rapidamente. A vulnerabilidade que sinto é ao mesmo tempo maravilhosa e assustadora. Meu lado prático está gritando para que eu mantenha as emoções sob controle, pelo menos até você me conhecer o suficiente para entender os altos e baixos. Não fui muito bem-sucedida ontem. O que mais queria era um abraço. Talvez possa ganhar dois amanhã. De um poeta americano chamado Wendell Berry: Mesmo na escuridão, o amor Mostra a circunferência Do mundo, iluminando Palpitando nos horizontes Nessa noite de verão. Você me manda as coisas mais lindas. Mas são escritas por outros. Saberei que você está vulnerável quando vierem escritas por você. Fomos longe demais, cedo demais. Seus telefonemas são de um bom rapaz que não quer me decepcionar. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 191 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 192 Minha correspondência mais divertida. O domínio que Amanda exercia sobre a língua inspirou arroubos que pareciam, no estado encantado em que me encontrava, da mais alta categoria. Quando finalmente nos conhecemos, achei seus dentes conspicuamente 95 desiguais e sua silhueta Michelin. Fiel ao preconceito vitalício contra os esféricos, não insisti. Quando hoje olho no espelho e vejo um corpo magro e musculoso, sem nenhum traço de gordura — o corpo que meu pai quis que eu tivesse —, isso me satisfaz pouco, porque é o que outra pessoa desejou para mim. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 193 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 194 A comida que mais me provoca sentimento de culpa? É com certeza o filão de doce de leite que mora dentro do sorvete Häagen Dazs de dulce de leche. Havia uma lata enorme dessa tentação no congelador comercial da mansão oficial onde meus pais moravam. Um cilindro repleto de prazer, que me acenava tentadoramente sempre que passava os fins de semana lá. Uma noite voltei de madrugada, frustrado com algum assunto sentimental. Ataquei a lata, escavando obsessivamente, usando a colher como se fosse uma pá ou uma picareta, arrancando os veios leitosos na calada da noite, como um mineiro alucinado extraindo ouro das paredes de um túnel subterrâneo. O cozinheiro deve ter ficado 96 atônito no dia em que abriu a lata de sorvete vampirizado, mas não disse uma palavra porque eu era o filho do patrão. Um dos pontos mais baixos de minha vida, e agradeço a oportunidade de relembrar essa pouca vergonha. Aliás, preciso confessar que não sou fã dessa sua técnica de ficar enviando questionários. As respostas que mandei para o primeiro podem não ter sido brilhantes, mas, se você não vai nem comentá-las, para que servem? Assim vira troca de monólogos em vez de um diálogo. Acredito em seres humanos se olhando no olho enquanto perguntam e respondem. Tantos fatores — a expressão, o sorriso — podem comunicar mais do que as palavras, ou alterar muito seu sentido. Nossa, o menino rodou a baiana! 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 195 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 196 Posso estar enganado, mas a América portuguesa me parece tão diferente da América espanhola quanto o fado do flamenco (nas metrópoles) ou o samba do tango (nas colônias). O espanhol reage à opressão e à injustiça com rios de sangue enquanto o português baixa a cabeça, penitente, pensando nas recompensas após a morte. 97 Bem produzida, Bárbara era uma Barbie argentina, muito maquiada e curadora num museu importante. Não rolou nada com essa suave flor dos pampas cisplatinos, os cabelos cuidadosamente embrulhados num caricato pompom Evita. A hora que passamos juntos foi, aos poucos, murchando, e com ela foram-se as chances de uma Aladi particular. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 197 200fantasias 98 5/11/07 9:35 AM Page 198 Passei uma semana delirante, divertindo-me loucamente, mas sempre morrendo de vontade de voltar para junto do meu amor. Você conhece o Copacabana Palace? É muito legal! Ontem passei o dia lá. Os enfeites de Natal ainda estão no lugar, e as pessoas parecem saídas de um filme da década de 40. Estou de ótimo humor. Depois de uma semana feérica, voltei para casa e encontrei um buquezão de rosas e um milhão de recados ardentes. Vamos festejar hoje à noite em Vila Isabel. Com certeza fomos arrancados da mesma costela. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 199 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 200 Catarina diz que tem o poder de tornar minha vida excitante. Achei que ela possuía, de fato, esse poder, mas eu tinha acabado de conhecer outra pessoa. Depois de uma semana de indecisão agoniada, optei pela ordem cronológica. Catarina ficou decepcionada, mas, assim que a primeira não deu certo, recomeçamos com a maior naturalidade. Tudo nela me atraía. A combinação era tão natural que o horizonte parecia cheio de promessas. Mas, tão subitamente quanto me atraí, perdi o interesse. 99 Juro que não sei por quê. Não foi por nada que ela fez. Talvez tenha sido por alguma coisa que ela não fez, ou por alguém que ela não foi. Parti para uma viagem de duas semanas. Pouco antes de retornar, escrevi dizendo que estava adiando a volta por mais duas semanas, mentira pura. Morrendo de vergonha, dias depois escrevi dizendo que achava nossa relação insuficiente. Ela ficou indignada com meu jeito distante de participar. Um belo nadir, sem final feliz, sem moral edificante, onde o mocinho perde a dignidade após revelar-se um covarde. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 201 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 202 Caso alguém se interesse, os resultados de minha pesquisa de encontros pela Internet são impressionantemente estáveis e têm implicações úteis para a auto-estima de todos: Durante um período de dias escrevi mensagens e recebi respostas (,%). No mesmo período, meu perfil foi visitado vezes, gerando mensagens (1,1%). 100 Durante os dias seguintes, escrevi mais mensagens e recebi respostas (,%). Meu perfil foi visitado vezes, gerando mensagens (,%). Suspeito que todos nós aceitaríamos melhor as rejeições se assimilássemos a premissa de que apenas % das pessoas disponíveis nos acha atraentes o suficiente para iniciar um contato, enquanto apenas % das pessoas disponíveis seriam receptivas a uma aproximação nossa. Os números podem variar com a idade, o gênero e o gosto dominante, mas a moral da história continuará a mesma: é tudo questão de estatística. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 203 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 204 Mutável e passional demais para ser facilmente classificada, Diana é sexy, deliciosamente feminina, divertida, bem-vestida, e tem sensibilidade poética. Procura um homem vulnerável que ela possa beijar muito. Diz que, se eu a levar à Lua, será minha para sempre. 101 Diana mora num andar muito alto num apartamento com pé-direito muito baixo onde ela montou um hotel para bichos de estimação. A paixão comum por Florença nos conduziu ao sofá da sala. Em vez de ficar por ali, embriagamo-nos com chianti e passamos uma noite sôfrega. A memória do vazio subseqüente ainda me persegue. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 205 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 206 A tarefa fundamental dos pais é muito simples e está ao alcance de todos: fazer os filhos sentirem-se amados por quem são. Isso estabelece a base do amor-próprio, sem o qual ninguém pode ser realmente feliz. Se, em vez disso, os pais amam de tal forma que a criança percebe esse amor como condicionado a um comportamento que agrada aos pais, terão falhado nessa tarefa fundamental, por mais que tenham sido bem-sucedidos nas tarefas auxiliares, como estabelecer limites, dar boa educação, 102 ensinar bons modos e boa ética, expor a certo grau de cultura e informação etc. Meus pais foram exemplares nos departamentos auxiliares, mas falharam no principal. Meu pai queria que eu fosse magro, atlético, corajoso e viril, enquanto eu era um menino tímido, introvertido, gordinho. Minha mãe tinha uma veneração edipiana pela figura apolínea e carismática do pai dela e queria que tanto marido como filho fossem como ele. Ou seja, eu sentia que nem pai nem mãe me aceitavam como eu era. No entanto me amavam imensamente. Como podia uma criança entender essa contradição? Hoje acredito que eu percebia, inconscientemente, que eu era amado não tanto por minhas características (apesar de ambos apreciarem muitas delas também) mas por ser espelho deles, um reflexo da genética deles. Vejo, em meu grupo de análise, como crianças com pais terríveis têm menos dificuldade em se emancipar e fazer uma transição completa para a condição de adultos. Crianças com pais carinhosos têm mais dificuldade de individuação porque o lar é um lugar aconchegante e seguro enquanto o mundo exterior é perigoso e hostil. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 207 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 208 Se você estiver desempregado, indisponível, encarcerado ou for enjoativo a ponto de levar a sério esta experiência toda, pode seguir em frente. Sentar na areia não é meu passatempo favorito, mas vadiagem criativa é. 103 Topo compartilhar minha lâmpada de cabeceira, minha panela favorita, até meu chiclete. Considero gelatina roxa uma comida legítima e prefiro passar férias em lugares que exigem vacina. Será que você agüenta meu passo? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 209 200fantasias 104 5/11/07 9:35 AM Page 210 Em hebreu, o nome dela quer dizer Deus Nosso Salvador. A aparência exótica vem da mãe judia etíope e do pai animista tupi. Escritora e designer, o maior sonho de Elesha é ser atriz. É voluntária numa pequena companhia de produções cinematográficas na esperança de que lhe dêem uma chance. Nosso primeiro jantar correu bem, apesar do tamanho de sua ambição me deixar um pouco inquieto. Planejamos um piquenique para alguns dias depois. Preparei tudo, arrumei a cesta e fiquei aguardando que telefonasse assim que terminasse o expediente. Ela não ligou porque as coisas demoraram mais do que esperava e ficou com medo de causar má impressão se usasse o celular para me avisar. Quando me queixei, ela respondeu que não tinha escrúpulos quanto a suas prioridades: seu objetivo era melhorar a qualidade de vida dos filhos, e nenhum sacrifício era grande demais para isso. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 211 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 212 Sou ocupada demais para conhecer a pessoa certa. Dizem que tenho uma cara bonita. Acho que tenho um corpo bonito. Gostaria de conhecer um homem que não fosse previsível, mas que não suma de repente. Confiável sem ser apagado. Se você for esse homem, posso oferecer um lar 105 saudável para seus filhos. Professora de literatura portuguesa, cantora de música sertaneja, gata de botas de couro com pontas de aço. No decorrer do jantar, senti-me cada vez mais burguês. O meu lado bom menino trava minhas relações com espíritos livres. Tatuagens e piercings me fascinam, como se a alteridade prometesse complementação. A razão me diz que tal convívio seria difícil, mas nunca tive oportunidade de testar tal lógica. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 213 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 214 Um brinde ao real e ao imaginário, à comunicação e à autoridade moral, ao emocional e ao físico, ao acaso e ao destino! A nossas crianças deliciosas! A contar as bênçãos que recebemos! 106 Ainda estou no escritório. Sinto muito não ter conseguido ligar mais cedo. Queria te ver depois do expediente, mas trabalhei sem parar das 9 da manhã às 8:30 da noite. Só fui interrompida por divagações sobre o quanto detesto a professora do jardim-de-infância da minha filha e por conversas tensas com meu ex-marido, que conseguiu destruir o jipe na semana passada, depois de dois ou três acidentes nos últimos anos, e agora acha que pode pegar meu carro emprestado todos os dias. Ainda por cima, a babá de reserva (a efetiva está de férias em Cambuquira ou Lindóia, sei lá qual) fica ligando para me contar a novela que é a vida dela e histórias sobre como meus filhos são maravilhosos e brilhantes (as quais, evidentemente, não me importo nem um pouco de ouvir). Estou tão cansada! E isso não é da missa a metade... Por isso acho que devo ir para casa logo, antes que as crianças durmam. Fernanda falava bem inglês, língua do ex-marido, um jamaicano rastafári, e pedia que eu dissesse coisas em inglês enquanto transávamos. Já me pediram isso antes. Um tempero oral, um fetiche. Não gosto, mas faço porque quero agradar. Fernanda ainda estava amamentando a filha menor, apesar de a menina já ter quase 3 anos. Às vezes brotavam gotas de leite no bico de seus seios. Ela só foi longe demais quando me deu um vidrinho de colônia porque gosta de homem cheiroso. Meu perfume favorito é o asseio, com leve aroma de sabão. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 215 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 216 Prefiro respostas tardias ao silêncio, principalmente se vêm com explicações. Sei que não sou típico, mas sempre respondo em 24 horas, nem que seja para dizer: “Obrigado, mas nein danke”. É incrível quantos acham que não precisam nem responder, como se email fosse assobio de rua. 107 Não sei bem como reagir a suas palavras. Sinto-me criticada. Sua convenção de responder a emails é exatamente isso: uma convenção. Se você acha que quem segue convenções diferentes das suas tem menos consideração do que você, não sei se nos daríamos muito bem. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 217 200fantasias 108 5/11/07 9:35 AM Page 218 Foi maravilhoso receber noticias suas e descobrir que ainda está a caminho do Buda. E, mais egoistamente, saber que você se lembra de mim com carinho. As coisas terminaram tão abruptamente entre nós que eu não sabia o que você pensava de mim nem porque as coisas acabaram. Mas espero que você não tenha perdido muito tempo se sentindo mal porque eu não passei muito tempo me sentindo ferida. Eu compreendo como é complicado terminar um casamento e encontrar um novo caminho com clareza. Na hora, meu orgulho ficou ferido e senti, por um ou dois dias, o peso das imperfeições que, eu imaginava, você tinha percebido em mim. Mas acabei não levando a coisa pessoalmente. Afinal de contas, você mal me conhecia. E minha vida estava prestes a sofrer uma virada maravilhosa. Os saltos profundos se acumulam tão devagar, não é mesmo? Tenho certeza de que você está no meio de um deles, mas só conseguirá perceber mais tarde. Espero que isso aconteça comigo também. Sinto-me exatamente a mesma, tão confusa e insegura quanto antes, apesar de tudo na minha vida ter mudado e parecer muito mais em sintonia com meus ideais e com minha pessoa. Pergunto-me quando será que o eu que existe em meus pensamentos alcançará o eu mais sábio que, de alguma maneira, me continuou protegendo esse tempo todo, puramente na intuição e no coração. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 219 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 220 No início, Graça me achou interessante porque escrevo bem, adoro arte moderna e coleciono vidro italiano. Ela tinha vinte anos menos do que eu e 109 torcia para que o cupido das edipianas fizesse com que isso não importasse. Mas meus olhos brilhavam tanto que ela acabou consciente demais dessa diferença. Sem graça, desejou-me tudo de bom. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 221 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 222 Todos temos medo do amor e nos defendemos contra a dor, erguendo barricadas em torno do coração. Peço que não me procure se você não tem certeza de que está pronto para ser um guerreiro na batalha de ceder ao desejo de dar e receber amor. Outra grande atração, outro grande entusiasmo. 110 Outra grande dor, outro grande arrependimento. Na mensagem de despedida ela mencionou, pela primeira vez, a comunhão diária com a esfera paranormal. Quem esconde um aspecto tão fundamental de sua vida nunca pode estar inteiramente presente. Vislumbrou-se, tarde demais, um novo plano de possibilidades para a relação. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 223 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 224 Henriqueta, poetisa deste mês, vê mais com um só olho do que nós com todos os três. Se eu cativar sua mente, o resto virá naturalmente. Excitados, caminhamos de volta para a casa dela, sentindo calor em pleno inverno. Quando pensei alto, num arroubo prematuro, que sentia vontade de comprometer-me, o reflexo dela foi dizer: 111 Oh, não! Reuni minhas tropas combalidas e insisti. Tivemos um mês maravilhoso. Ela me apresentou aos colegas de coral e do círculo de leituras. Tornei-me objeto de seu jeito jeitoso com as palavras. Ela sabia que poderia sair pelas tangentes verbais mais absurdas que eu a acompanharia. Como também sou avesso a gastar pólvora em chimango, aproveitei para extravasar as tangentes barrocas de minha ordem simbólica em seu ouvido receptivo. Não me importei (nem um pouco) quando ela me “confessou” que tinha visitado a ilha de Lesbos, mas ela se importou quando eu disse que já tive experiências sexuais pagas. Quando finalmente me mostrou as poesias, percebeu que gostei pouco. Uma discussão boba desencadeou nosso fim. Terá sido por não respeitar uma parte tão central de sua autorepresentação? Pela primeira vez me senti coronariamente enrijecido. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 225 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 226 Reparei em seu uso da palavra humilde por causa de meu interesse pelo seu (possível) antônimo, o adjetivo pretensioso. Há quem me chame de elitista (em arte, vinho, comida etc.), e tenho certeza que querem dizer pretensioso. Mas estou em paz com minha criteriosidade se for uma maneira de aproveitar melhor a vida e não de me sentir superior. Além disso, a palavra pretensioso tem outro sentido, mais literal: 112 quem pretende ser outro, quem veste máscaras. Isso remete a outra palavra interessante: integridade. A maioria usa integridade no sentido de honestidade material, mas a palavra se aplica também a uma pessoa integral, ou integrada. Ou seja, que tem uma cara só. Se você ainda me estiver acompanhando (ele pensa demais ou isso é pura libertinagem semântica), o que quero dizer é que existe uma cadeia interessante de associações que leva de humildade até integridade. Algo assim. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 227 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 228 Se pudesse ser uma heroína, Ioná seria a Mulher Maravilha. Na realidade, Ioná já é a Mulher Maravilha. Ioná prefere filmes sem explosões, mas sabe tirar espinha de peixe, acender uma fogueira sem fósforo e descartar uma ratoeira (com vítima e tudo). Seu sonho é pescar num barco de fundo de vidro deslizando pela correnteza 113 morna e clara do Tocantins. Ioná foge de falastrões e reclamões; procura alguém que não tenha medo de atacar uma lagosta com as mãos ou namorar deitado na grama. Ioná prefere os prazeres do usufruto aos da posse; sente-se tão à vontade num banquete para dignitários quanto trocando piadas de baixo calão com roceiros e peões. Eu também prefiro os prazeres do usufruto aos da posse. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 229 200fantasias 114 5/11/07 9:35 AM Page 230 Se o universo se expande e se contrai numa série infinita que se estende em direção ao passado e ao futuro, como se o tempo se comportasse como números negativos e positivos (zero correspondendo ao presente), e se a quantidade de matéria no universo for finita, pode-se deduzir que todas nossas vidas — essa exata configuração de moléculas — já foram vividas e serão revividas, numa série infinita em ambas as direções. Mais estarrecedora ainda é a idéia de que, pela natureza de ∞, pode-se deduzir o mesmo não só sobre nossas vidas atuais, como sobre todas as variações possíveis (cujo número é inimaginavelmente grande, porém finito, porque a quantidade de matéria é finita). O diabo é que a certeza dessa hipótese não teria impacto nenhum sobre nossas vidas (atuais). 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 231 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 232 MULHER ALTA E FINA PROCURA HOMEM ELEGANTE COM CÉREBRO GORDO E CORAÇÃO OBESO (se você se amar, eu o amarei também) Sou sofisticada e frívola, incapaz de resumir minhas idiossincrasias para fácil consumo. O ar salgado do oceano é oxigênio para mim. Mostrarei a você o lado bom de tudo o que é ruim. Procuro um escoteiro com garra, gentil porém determinado, um leitor assíduo que, de preferência, não assista a novelas. 115 Você teria dificuldade em vislumbrar, do alto de seu pé-direito, homens menos dotados verticalmente que você? Será que sua cabeça aceitaria, do ápice de sua pirâmide, os 180 centímetros que a contemplam? Pergunto porque detesto usar palmilha, e salto alto, então, nem pensar. Gostei do ziguezague de seu vestido verde e branco, um belo exemplo de arte Op celta. Quem é tão verticalmente dotada quanto eu logo se acostuma com outros encantos. Alguns homens gostam de mulheres altas, outros querem gostar mas não gostam, e há uns que nem reparam. Química é química, o resto é para quem não tem alma. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 233 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 234 Julieta chega aos lugares como se fosse soprada por um vendaval. Suas pinturas já foram expostas mundo afora e estão em coleções de vários museus. É considerada linda pela mãe (por amor) e por motoristas de táxi (pelas gorjetas). O invólucro de um homem ajuda, mas o que interessa é o conteúdo. 116 Podemos ser ou ter tudo que o outro quer, mas sem a química da física seremos apenas amigos. É também preciso ter dedicação pelo trabalho e respeito pelo dinheiro, pois é necessário viver bem. Conversamos pelo telefone, mas fugimos um do outro como animais pressentindo um desastre. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 235 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 236 Nasci ansioso e comilão, com DNA de gordo. Minha mãe, que só via saúde nos meus quilos, dizia orgulhosa que eu era o broto do berçário. Meu pai desaprovou, pois queria um filho atlético e masculino. 117 Meu pai me amava muito, mas, como eu sabia que ele queria que eu fosse diferente, sentiame um impostor. Introjetei esse preconceito e passei a ter dificuldade em respeitar os gordos. Fujo de gordas, e a possibilidade de qualidades compensatórias nem sequer me ocorre. Sei que o problema é meu, mas ainda não consegui superá-lo. Se a mulher que me faria o mais feliz for gorda, jamais a conhecerei. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 237 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 238 Através dos anos, a lâmina da navalha vem perdendo o fio. Hoje, Karla já admite fazer concessões. Ela quer alguém que não se importe com poder, dinheiro ou 118 sociedade. Alguém que não se considere adulto e que deteste (mas use) terno e gravata. Karla quer ver suor na testa e faz questão de um enorme vocabulário. Cortado pela navalha gasta. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 239 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 240 Precisamos nos conhecer! Nunca passei por uma experiência assim e me sinto dividida entre a excitação de colocar o intelecto a serviço da sedução e a frustração de não poder trocar esse ritual por algo mais háptico. A Internet acelera a entrega, mas a eterna fantasia das cartas continua viva na dinâmica das trocas. Infelizmente, esta tela não tem cheiro, toque, sopro, calor ou som, e, como você não está exatamente perto, vou tomar uma ducha fria e continuar escrevendo. Sim, minha vida é uma estrada cheia de curvas e buracos, cheia de caminhões e ônibus atravessando as pistas. Os acidentes acontecem a toda hora. Parte da minha luta vem por aceitar muito mais do que posso dar conta. Sou uma 119 eterna otimista em relação a meu tempo. Acho que é uma coisa crônica, pois sou assim desde a infância. É quase uma patologia. Se não tenho o que fazer, invento algo, e aí a coisa vira urgente. Desde o fim do ano passado, sinto como se estivesse mergulhando no mar, como quem não consegue passar das ondas para poder nadar. As ondas continuam vindo, e cada uma precisa ser conquistada. Antes que possa me recuperar, vem outra e depois outra. A ansiedade pode ser anestesiada com uma caixa de chocolates, quatro colheradas de mousse de chocolate, dois tragos de uísque e uma hora de malhação com caneleiras de 3 quilos. Depois disso me dou conta de que não resolvi absolutamente nada, mas pelo menos amansei essa inquietude indescritível. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 241 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 242 Playboys, asiáticos, fãs de música sertaneja e crédulos em vidas passadas não devem candidatar-se a namorar Ling Mei, formosa editora euro-asiática que riu de nervoso durante todo nosso jantar porque o casal da mesa ao lado brigava alucinadamente. Quando os dois se levantaram, a mulher deu uma bronca 120 em Ling Mei, que se defendeu bem, dizendo que eles é que tinham de ter vergonha por tornar o ambiente tão desagradável. Deixei Ling Mei se defender sozinha e depois fiquei me perguntando se ela esperava que eu me envolvesse. A verdade é que fiquei constrangido com seu riso nervoso, mas também impressionado com sua reação. Quando consultei as bases, prevaleceu o constrangimento. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 243 200fantasias 121 5/11/07 9:35 AM Page 244 Minha mãe pediu que seu corpo fosse cremado. Ela foi velada na capela do Hospital Pró-Cardíaco e depois levada para o crematório do Caju, onde passou a noite em uma gaveta, uma de muitas dentro de uma enorme geladeira de aço escovado. A família se reuniu no dia seguinte para a despedida final, e um funcionário da casa pediu que um dos familiares o acompanhasse até os bastidores para confirmar que se tratava do corpo certo. Único varão, fui eu. O caixão havia sido transferido para cima de um carrinho de rodas e estava com a tampa aberta. Aproximeime de minha origem e dobrei-me para beijar sua testa. A emoção dilacerante do momento foi golpeada pela sensação de estar beijando um bloco de gelo revestido de membrana mole. Chocado, recolhi-me e voltei apressadamente para junto de minhas irmãs, não sem antes olhar para trás uma última vez. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 245 200fantasias 122 5/11/07 9:35 AM Page 246 Magra e meiga Megan me arrumou um lugar numa disputada prova de vinhos antigos. Escolheu pessoalmente uma dúzia de goles gauleses para minha lenta degustação. Não quer saber de patrícios espinhentos e exigentes, nem de sorvedores mandões e briguentos. Exortou-me a dissimular como um fidalgo e saborear como um sibarita. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 247 200fantasias 123 5/11/07 9:35 AM Page 248 Adoro seu sorriso e compartilho seu interesse por filosofia. Alguns anos atrás, submeti-me a uma palestra do Jacques Derrida, memorável pelo desespero com que lutei para não perder a concentração e entender o que ele estava falando. Odeio me sentir tão burro. Se bem que no documentário Derrida — aliás muito divertido — o próprio também me pareceu meio burro. Em determinada altura ele diz alguma coisa — não lembro mais o que é — que me fez pensar: Puxa, esse cara devia ler um pouco de Derrida. A desconstrução mais elementar dessa frase revelaria as tautologias lingüísticas presentes. Como dizia Wittgenstein, a maioria dos problemas da filosofia é redutível a problemas de gramática. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 249 200fantasias 124 5/11/07 9:35 AM Page 250 Nélida, ex-modelo doutora, tem todas as qualidades que os homens querem, como pele sedosa e 17% de gordura. Um estilo que transcende questões de status, e uma inteligência que ultrapassa a educação. Apesar de ter vivido momentos duros na vida, tanto circunstanciais como sentimentais, seu coração está no auge da forma. Hoje em dia, a sede por estímulos vem temperada pela busca da tranqüilidade. Ela quer satisfazer alguém com expectativas absurdamente altas. Nélida compensava a falta de altura com os saltos mais vertiginosos que já vi, tão altos que lhe tornavam instável o equilíbrio dentro do vestido cintilante e barroco. Nélida declarou logo que eu era muito bonito. O prazer de ouvir isso ficou comprometido pela minha dificuldade em retribuir. Talvez eu devesse ter sido honesto e respondido que sentia muito mas não podia dizer o mesmo. Talvez aí ela tivesse retrucado: Faça como eu, minta. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 251 200fantasias 125 5/11/07 9:35 AM Page 252 Quero visitar a terra de meu bisavô paterno, um poeta maranhense. Na década de 60, um senador de São Luís olhou para meu pai e exclamou: Vejam como ele tem a palidez dos homens do Vale do Mearim! Herdei essa palidez e nunca esqueci a cadência assombrosa dessa frase. Quero subir o Mearim de barco e conhecer esse povo ribeirinho. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 253 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 254 Seus melhores traços são criatividade, generosidade e disciplina. Os piores são os mesmos, levados ao extremo. Odile era francesa, elegante, uma severa professora secundária. Gostei da postura de tábua e do nariz gaulês de provadora de vinho. Uma tarde fomos ao cinema, 126 e as horas com o estômago vazio transformaram seu hálito num desafio. Minha dificuldade em aspirar era, é claro, sintomática de distúrbios mais generalizados no ecossistema psíquico. Depois de alguns dias eu disse que simplesmente não queria continuar. Odile ficou severamente furiosa. Gostaria de ser frio e cruel para não deixar resquícios de vontade. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 255 200fantasias 127 5/11/07 9:35 AM Page 256 Reclamei, brincando, que a foto dela não era suficientemente reveladora, e isso foi interpretado como querendo dizer insuficientemente nua. O fato de não conhecer essa moça não me impede de querer que ela me entenda corretamente. Teria preferido que ela me tivesse dado o benefício da dúvida, mas esse privilégio precisa ser conquistado. É curioso pensar que nossas confusões epistolares estão sendo armazenadas nos HDs de internautas adolescentes em Bangalore que mais tarde se tornarão roteiristas de Bollywood. Algum dia, quem sabe, nossa correspondência maladroit se tornará lendária em alguma subcultura alienígena. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 257 200fantasias 128 5/11/07 9:35 AM Page 258 Foi divertido para mim também. Quanto à franqueza, não vejo o menor sentido em jogar conversa fora. Não é divertido, e me sinto como personagem de história em quadrinhos, uma nuvem sobre a cabeça dizendo: “O que está realmente acontecendo aqui?” Sinto que você está no meio de uma “viagem” (adoro a conotação new age dessa palavra), enquanto eu estou abrindo um parêntese para realizar um grande sonho: ser uma autora publicada. Isso significa me concentrar nas palavras e não em assuntos do coração. Definitivamente não basta ser jornalista. Eu quero um LIVRO. Uma porção de páginas entre capas duras. O mundo editorial é incrivelmente desencorajador. A esperança, quando aparece — coisa rara hoje em dia — é sempre uma surpresa. Por mais que goste de sua companhia, não quero dar falsa impressão. Armei um triângulo quase-romântico (e pouco gratificante), posicionando meu cabeleireiro e meu ex-marido como balizas. Não quero investir, e aí a coisa não dá certo. A dor e a recuperação são desgastantes e tomam tempo demais. Concordo que é fraqueza evitar a intimidade, mas é seguro. Passo muito tempo sozinha porque é essencial para meu trabalho. Gosto de não ter compromissos para poder escrever até as 3 da manhã e acordar à hora que quiser. Se tenho um prazo para cumprir, ou estou no meio de um capítulo, não hesito em cancelar compromissos no último minuto. Não me importo se isso incomoda as pessoas. Até meu filho precisa adaptar-se a meus horários. Não sinto a menor vontade de pedir desculpas por meus hábitos. Passo por cima de tudo (inclusive do amor) e de todos (menos de meu filho) para fazer o que preciso fazer, que é escrever. Portanto, sinto muito manter a guarda. Tenho muito a perder. Não quero sofrer, nem interferência em meu trabalho. Será que estou sendo honesta, ou apenas falando aos borbotões? Nossa, você mirou um jato de água fria bem na central de comando das possibilidades românticas. Às vezes é fácil separar romance de amizade, às vezes não. Às vezes é fácil construir uma amizade depois de uma relação, às vezes não. Cada relação desenvolve um conjunto de regras, por isso não saberia dizer se uma amizade entre nós daria certo, com a devida separação entre igreja e estado. Mas gosto de sua companhia, e sua franqueza é um spa sensorial, adstringente mas refrescante. Bem, espero não ter jogado uma ducha fria em nossa amizade. Senti medo porque ainda não estou pronta para “conhecer” alguém. Enfiei-me em minha toca e não esperava que me chamassem para brincar. Não quero dizer que esteja completamente fechada às possibilidades sentimentais. Apenas receosa. Espero que a gente possa desfrutar a companhia um do outro. Está sendo muito bom te conhecer. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 259 200fantasias 129 5/11/07 9:35 AM Page 260 Priscila edita uma revista feminina. Começou no emprego há pouco tempo e trabalha rodeada de mulheres. Na primeira semana, ela pensou que estava presa num ventre e ia enlouquecer. Mas teve sorte, e o ambiente acabou tornando-se estável e acolhedor. Priscila se considera divertida e sensual, se puder falar em causa própria (e por que não, afinal de contas isso não é propaganda?). Ficou viúva cedo, depois de um casamento maravilhoso de dez anos. Portanto sabe que é competente na arte de sustentar uma relação. Priscila gosta muito de comida, cachorro e sexo, mas se queixa da falta dos últimos dois. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 261 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 262 Apesar de querer me apresentar da maneira mais atraente possível, prefiro ser sincera e revelar minha bagagem emocional (se você tiver problemas parecidos, seria bárbaro se pudéssemos enfrentá-los juntos): Em vez de ser eu mesma, tento ser a mulher que imagino que você queira; mas, se você gosta desta máscara, não fico feliz porque não é de mim que você está gostando. Não fico com raiva se você me maltrata porque meu pai maltratava minha mãe, apesar dela procurar agradá-lo constantemente. Só respeito quem se impõe porque minha mãe era fraca e carente. 130 Quanto menos você gostar de mim, mais eu vou gostar de você, porque isso significa que você me conhece. Acho que muita gente sofre desses problemas, mas a maioria não se dá conta ou jamais admitiria. Quero que saiba tudo, porque, se você continuar interessado em mim depois disso, saberei que não preciso esconder mais nada. Se você me ajudar a vencer esses obstáculos, uma mulher carinhosa, dedicada, divertida e inteligente será sua para sempre. Não tinha certeza se queria fazer o papel de divã, mas a foto era tão atraente que não dei ouvidos à intuição e resolvi conhecê-la. Nos encontramos numa doceria, mas, a partir do momento em que a palavra bajuladora apareceu na testa dela, lembrei que não nasci para ser enfermeiro, especialmente enquanto não me curar de problemas parecidos. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 263 200fantasias 131 5/11/07 9:35 AM Page 264 As namoradas que se tornam amigas costumam me fazer confidências. Rafaela lamenta a forma como sempre correu, da maneira mais patética do mundo, atrás dos homens mais deploráveis do planeta (exceto você, ela consertou rapidamente). Há uma infinidade de detalhes que torna seu último melodrama especialmente notável, e os dias que se seguiram ao desfecho foram cheios de desespero. Faço o possível para acalmá-la. Boa parte da minha atenção inicial é dedicada a adivinhar o que ela espera de mim. Devo ser aquele ombro amigo que concorda com tudo? Devo bancar o analista? Quando tenho suficiente presença de espírito, pergunto como posso ajudar? Mas é preciso que seja com uma voz cuidadosamente modulada para não parecer telefonista ou vendedor. Como cavalheiro, paguei a conta. Sai caro ser bom amigo; ser mau amigo ainda sai de graça. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 265 200fantasias 132 5/11/07 9:35 AM Page 266 A mistura do saxão com o latino é parte do que me define. Adapteime demais à Inglaterra, e minhas emoções pagaram o preço. Quando não agüentava mais contê-las, voltei para o Brasil, mas nunca recuperei completamente a latinidade. Durante muito tempo pensei que estar em contato com as emoções era a mesma coisa que expressá-las, por isso raramente me permitia esse contato. Sabe lá que violência poderia acontecer? Estou aprendendo que posso (e devo) desmembrar: primeiro, sinto a emoção; segundo, lido com ela, idealmente de maneira ponderada. O importante é não suprimir a primeira etapa por não saber lidar com a segunda. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 267 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 268 Sylvia se diz diferente de todas as mulheres que eu já conheci. Recém-transferida para cá, seu português deixa a desejar, mas ela já considera os amigos paulistas os melhores do mundo. Como eu, adora jogar azeite de trufas em cima de qualquer coisa. Ama comida fina e gosta de cozinhar usando manteiga e alho. Tem opiniões liberais e só consegue conviver com gente assim. Por algum motivo, os conservadores morrem de amores por ela. Os paulistas realmente são, como você diz, os melhores amigos. A cidade tem pouco a oferecer em matéria de natureza, por isso gira em torno das pessoas. Os conservadores ficam encantados porque o retrato que você colocou no perfil mostra uma dama de sociedade extremamente elegante, vestida para um evento de gala. Como a foto é um pouco fora de foco, vira terreno fértil para projeções. E tem um negócio peludo deitado no seu braço que parece um casaco de vison. Será que é? O objeto peludo na foto era de fato pele, mas pele viva. É uma cachorrinha adorável que fica comigo sempre que os donos viajam. Eles a salvaram de um abrigo para animais abandonados, onde seria seu fim. E, quanto às peles que não estão vivas, devo dizer que tenho muitas. Gosto de vestir pele, tenho um tapete de pele de vaca na minha sala de visitas, uma cadeira revestida de pele de pônei e um tapete lindo de pele de cabra. O que dizer? Usei pele até quando protestei contra a invasão do Iraque. Os radicais com quem convivi na marcha não tinham a menor idéia de como lidar com uma moça de vison. Eu era tão trabalhadora e ao mesmo tempo tão chique que todo mundo ficou confuso. Foi muito engraçado. Ah, tenho mais uma novidade: acabo de parir uma filha de 22 anos. Minha sobrinha (e afilhada) veio morar comigo para começar a carreira numa cidade grande. Estou aprendendo a viver com uma 133 menina em tempo integral. Ela é muito bacana, e a experiência está sendo mais divertida do que eu esperava. Ela é loura e está fazendo o maior sucesso. Como eu na idade dela, só que ela quer casar-se com alguém com mucho diñero, mucho! Quanto às peles, bem, certamente não fazem meu gênero, mas acho que não me poderia opor coerentemente a elas sem virar vegetariano, coisa que não está em meus planos. A verdade é que acho lindo tapete de pele de vaca e cadeira revestida de pele. Fiquei impressionado com seu milagre de parir uma menina dessa idade: o parto deve ter sido excepcionalmente doloroso (ainda bem que inventaram as peridurais), mas tenho certeza que valeu a pena pelo que você economizou em matrículas escolares, enxovais, terapeutas, Suzuki e equitação. Tendo economizado tanto na educação dela, você pode oferecer um dote bem polpudo para que ela possa casar com um filósofo com poco diñero, mas brilhante e bondoso. Estava brincando sobre o dinheiro! Um pouco de frivolidade, por favor... Sou a pessoa mais auto-suficiente do planeta. Tenho uma irmã que depende do marido para tudo, e, por isso mesmo, existe um desequilíbrio gritante na relação entre eles. É triste, mas ela optou por essa prisão. Eu tenho tudo que preciso: uma família que me apóia, amigos maravilhosos e casa própria. Uma fazenda de cavalos está nos sonhos, mas por enquanto é melhor que fique lá. Linda, elegante, bem-cuidada e editora da versão brasileira de uma revista de prestígio mundial, como podia Sylvia nunca ter ouvido falar em Glenn Gould ou Martin Heidegger? É verdade que quase ninguém entende o que Heidegger escreveu, mas se você nem sequer ouviu falar nele, o que diz isso sobre o seu estar-no-mundo? Provavelmente nada, mas parecia importante para mim. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 269 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 270 Depois do primeiro encontro é comum um tipo de blefe que mistura defesa contra rejeição com convite à discordância: 134 Obrigado pelo jantar delicioso. Foi realmente um prazer. Temos muito em comum , mas não sei se somos a combinação ideal. Adoraria saber o que você pensa. Se concordo, apenas confirmo a suspeita. Se insisto, pelo menos ela teve essa satisfação. Esse tipo de jogo duplo duplo me irrita, por isso sempre concordo. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 271 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 272 A ambição de Tatiana é encontrar um homem livre de clichês, que não queira assistir ao pôr-do-sol de mãos dadas. Um homem que não atribua sua razão de viver aos amigos e à família. Tatiana se pergunta o significado de eufemismos que recorrem nos perfis. Pé-no-chão, por exemplo, quer dizer sem fantasias? Gosta 135 de se divertir é para diferenciar de quem não gosta? Independente quer dizer rico (ou rica)? E que tal: Não levo a vida a sério? Se não levarmos a vida a sério, que outras coisas levaremos? Detesta Não me interesso por política ou acho política uma coisa chata. Não sabem que a apatia, ou mesmo a neutralidade, tem conseqüências políticas? Como podem ter auto-estima se estão pegando carona no engajamento alheio? Finalmente, muita gente declara que parece muito mais jovem. Segundo Tatiana, as rugas são o carbono 14 das suas opções. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 273 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 274 Vejo que você está nesse site há um bom tempo. A esta altura, imagino que já se tenha desiludido, mas isso talvez seja projeção minha. Comecei minhas atividades um ano e meio atrás. Depois parei, decepcionado com a instrumentalidade desse tipo de abordagem. Mas o maior problema, na realidade, era minha própria instrumentalidade: queria repor, o mais rápido possível, o casamento que havia perdido. Talvez eu ainda não tenha me recomposto, pois considero, emocionalmente, que estar sozinho é uma pequena morte. 136 Obrigada por sua mensagem e, especialmente, pela sua franqueza em relação a esse estranho processo de conhecer pessoas. É verdade: entrei, saí, entrei de novo, movida por sabe lá o quê, tanto no entrar como no sair. A vida é complexa, assim como os caminhos para conhecer pessoas. Em todo caso, delicieime lendo seu perfil. Você tem o dom da expressão, e cada frase me pegou de surpresa. Passei boa parte da vida mergulhada em livros (tanto lendo como escrevendo), por isso me identifiquei com seu esforço de evitar o prosaico e o banal, de encontrar palavras que tocam o coração. Até me vejo hesitando ao escrever isto, pois imagino sua percepção aguda lendo as entrelinhas. Antes do jantar, já suspeitava que tínhamos denominadores comuns, mas foi surpreendente ver os incomuns se desdobrando, como as camadas de uma cebola. Uma resposta atrasada. Tive de sair da cidade, parar de viajar, aproveitar visitas de família e entrar na rotina de verão antes de encontrar a energia para responder a sua mensagem tão atenciosa. Ou de encontrar a inclinação, talvez? O “fim do nosso começo” me deixou um pouco desnorteada e, creio, ressentida. Achei que você desistiu de mim, resfriada como estava, no meio do inverno. Em vez de expressar isso na época, apenas me recolhi, frustrada, em silêncio. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 275 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 276 Seu perfil burlou meus seguranças e caiu nas boas graças da minha intuição. Ocorrência tão rara nessas circunstâncias artificiais que prefiro escrever antes e questionar depois. Obrigado pelo seu alô cauteloso, mas bem articulado. Seria um prazer corresponder. Fique à vontade para perguntar o que quiser. Conte-me um pouco sobre seu filho, que você quase não menciona no perfil. Você mora a que distância do Rio? Como cardiologista, você acredita que um copo de vinho diário faz bem à saúde? Adotei meu filho no ano 2000; achei o máximo ter uma criança do milênio. Ele tem uma importância gigantesca em minha vida, mas, já que estou procurando uma relação com um outro adulto, acho melhor deixar meu filho de fora, pelo menos no começo. Por outro lado, não me importo se ele servir de filtro, excluindo os que não querem mulher com criança — imagino que esses sejam uns tipos meio Peter Pan, sem coração. Minha distância do Rio é, espero, temporária. Morei no Rio quando era criança e depois de novo após a faculdade. Estou morando em Paraty enquanto não decido se quero morar no Rio ou em São Paulo. Os bons bairros do Rio estão muito caros, e ainda não vendi minha casa de Friburgo. Enquanto isso, vou ao Rio quase toda semana para ver amigos. Recentemente passei a conhecer melhor e apreciar a Tijuca, que hoje em dia até prefiro aos bairros de praia. O.k., sua terceira pergunta: um copo de vinho por dia é sem dúvida bom para muita gente (principalmente para quem tem problemas coronários, mas não se for predisposto a cânceres hormonais). No entanto, raramente bebo álcool, a não ser que alguém me induza. Acho que tenho o gene antiálcool, mas nada contra, ideologicamente falando. É corajoso e admirável adotar uma criança. Imagino que você esteja cansada de ouvir esses encômios, mas merecem repetição. Você tinha um companheiro na época, ou resolveu enfrentar o desafio sozinha? Que impacto essa mistura de judaísmo com cristianismo em sua família teve 137 sobre sua identidade? Fiz a adoção completamente sozinha. Tinha acabado seis anos duros de faculdade e estava pronta para uma mudança radical de vida. A questão judeu-cristã tem sido interessante para mim, especialmente agora que estou perto do Rio e de São Paulo, onde há mais judeus do que em Friburgo. Apesar de a maioria de meus amigos serem judeus, não sinto afinidade nem pelo judaísmo nem pelas suas tradições (talvez tenha até uma ligeira aversão). Também não me atrai o cristianismo, apesar de me emocionar, curiosamente, quando ouço canções natalinas e vejo presépios. Minha avó do lado cristão foi muito mais influente do que os avós do outro lado, mas prefiro meus primos judeus, que são mais cultos do que meus primos protestantes. Passei parte da vida querendo ser católica, mas, agora que estou trabalhando no Hospital Santa Maria da Misericórdia, me parece absurda a idéia. Fui protestante por dois anos e depois me interessei por budismo e por filosofia indiana e chinesa. Achei divertido nosso café; pena que tenha ficado claro que não passaria de um café. Foi bastante inusitado podemos falar disso, abertamente e sem nenhum constrangimento. Coisa de adulto esclarecido (daqueles que se dão um tapinha nas costas). É interessante como a química, sobreposta à compatibilidade básica, parece ser o fator decisivo na escolha daquele com quem desejamos uma relação íntima. Parece quase impossível desprezar os feromônios, ou certos arquétipos que nos atraem, mesmo sabendo que o outro é uma pessoa boa e cheia de qualidades. Como é difícil encontrar bons homens, pergunto se você teria abertura para conhecer uma amiga minha, uma moça muito atraente. Em geral não dá certo quando amigos me apresentam alguém, mas neste ano houve uma exceção. Então, quem sabe? Obrigado por me apresentar sua amiga, que estava plenamente à altura da propaganda que você fez. Mesmo sendo ambos pessoas boas e cheias de qualidades, não sentimos aquela quimera fugaz. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 277 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 278 Uma resposta de oito linhas nunca poderia ser considerada verborrágica. Detesto como as correspondências de hoje, principalmente eletrônicas, tornaram-se utilitárias. Uma discussão que não leva a resultados concretos é considerada perda de tempo. Já foi difícil para Proust ser publicado cem anos atrás; hoje ele não teria a menor chance. Divagar numa reunião de negócios é 138 impróprio, mas pode ser delicioso numa situação social. Conversar pelo puro amor à palavra, pelo prazer de manusear a língua. Talvez tenha ficado osmótica demais a relação entre a esfera dos negócios e a íntima. Tudo isso para dizer que você pode divagar à vontade. Suas associações livres serão sempre bem-vindas, por mais inconseqüentes que sejam. Aquelas oito linhas foram as últimas. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 279 200fantasias 139 5/11/07 9:35 AM Page 280 Verônica tem os traços típicos de uma garota-propaganda. É bonita o suficiente para deixar meus amigos invejosos e educada o suficiente para encantar minha mãe. Ela nos imagina deitados na praia, uma brisa atravessando as palmeiras. Ponho de lado meu livro para pedir uma bebida e começo a passar bronzeador em suas costas. Ela levanta de repente, surpresa: minhas mãos estão geladas. Eu sorrio. Ela relaxa. Ficamos em silêncio, escutando as ondas. De volta ao quarto, vestimos nossos robes de seda e ela cruza os pés sobre meu colo. Não conversamos porque nossas cabeças estão enterradas no jornal de domingo. Consigo terminar as palavras cruzadas porque ela me ajuda com os termos de medicina. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 281 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 282 Você sabe dançar? Muito do que você escreveu fez ding, ding, ding, como uma bola de prata ricocheteando numa máquina de fliperama. História da arte, filha da idade do meu filho, ser temida pelos alunos menos aplicados, nunca ter passado férias no Caribe... Da lista de traços que considera indesejáveis num homem, preciso confessar que sou perfeccionista. Se por dançar você quer dizer movimentos sistemáticos, ritualizados, semicoreografados, suspiro fundo e respondo: Não. Mas grito: Sim, sim, sim se você quer dizer oscilações rítmicas aleatórias. Tenho bom senso de ritmo, por isso a matéria-prima é promissora para uma mulher venial a ponto de me querer pelo meu dançarino latente. 140 Gostei dos seus dings. Quer jantar comigo? Apesar da barulheira e do calor, eu estava feliz. Divagando, circulando as caravanas, cruzando antenas, dançando um pas-de-deux verbal. Ambos fomos feridos por experiências anteriores e precisamos pensar nos filhos e tomar cuidado para não “falhar” de novo, não é mesmo? Mas nossos passos combinam enquanto caminhamos. E tenho a impressão de que minha mal pesquisada teoria sobre como a vitória dos gibelinos promoveu a arte figurativa em prejuízo da decorativa atingiu meus objetivos antipedestalizantes. Você tem tendências pedestalizantes? Achei que você estava se divertindo, testando diversas teorias. Também gostei muito de nosso jantar. Gosto muito de andar de braço dado (e de dançar assim também). Podemos pensar em pas-de-deux futuros? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 283 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 284 Imprimi sua mensagem, guardei no bolso de trás e desdobrei a folha amassada em momentos de tranqüilidade para decifrar e degustar o conteúdo, como se fosse uma caixa de bombons. O que representam os nomes próprios? Se você tivesse dado a seus filhos nomes como Romário, Iranir ou Radamés, eu diria que são nomes perfeitamente aceitáveis para quem os acha perfeitamente aceitáveis, mas sugerem traços culturais que têm pouco a ver comigo. Portanto, gostar dos nomes que você escolheu para os filhos quer dizer mais do que apenas isso. Mas seu nome, Ana, consegue ultrapassar até Maria em matéria de simplicidade cristalina. À primeira vista, Aza poderia parecer mais rico do que Ana, pois vai de A a Z e volta. Mas ir até Z antes de voltar não aumentaria sua reputação de iconoclasta. Não é preciso pensar muito no assunto para perceber a superioridade metafórica de Ana sobre Aza. Indo até quase o meio do alfabeto, Ana delicadamente não o ultrapassa, evitando assim o equilíbrio maçante e a simetria previsível do corte exato, ao mesmo tempo em que manda um recado rejuvenecedor: após a meia-idade, cada aniversário traz consigo um ano a menos. O ímpeto de confessar é uma bomba-relógio católica, tiquetaqueando subliminarmente desde a infância. Essa vontade de falar tudo que passa pela cabeça surgiu da alegria de ouvir você dizer que foi você que saiu à minha procura. Na realidade, tudo o que fiz foi recolher o lenço. Sua mensagem me encheu de esperança e provocou uma pequena dor, a dor do talvez. Uma dor mais próxima da saudade do que da ferida. Sinto um impulso de revelar todos meus defeitos para que você possa escolher logo entre um sinto muito, assim não vai dar e um você chama isso de um problema? Mas certas coisas exigem a companhia de um sorriso e terão de esperar o momento oportuno. 141 Sinto sua falta em minha tela diária, mesmo já tendo colado você na idéia de você. A triste tentativa de suspirar no meio da barulheira infernal de ontem está retrocedendo gradualmente para o plano da memória. Me pergunto o que dizer para você se sentir segura e capaz de se expor. O que fazer para abaixar essa guarda dura. A guarda tem motivos, mas por que dura, me pergunto... A única estratégia que me ocorre é baixar minha própria guarda, o que venho fazendo com atos e pensamentos. Mas não com emoções, a não ser naquele único momento em que disse que queria tocar sua mão e fui recebido com uma enxurrada de palavras-pensamento. Seria perigoso demais? Passei os últimos dois dias tentando organizar meus pensamentos e encontrar as palavras certas. Estou indo mal em ambas as tarefas e só posso esperar que você me ajude, entendendo e preenchendo as lacunas. Não consigo encontrar uma maneira fácil de simplesmente largar essas representações de nós dois. Mas preciso fazer isso. Foi uma esperança enorme, um sonho que não se traduziu em realidade. Meus passos tímidos me impediram de chegar lá. Não há uma só palavra de nossa aventura epistolar (ou gritada sobre os Bellinis) que não tenha sido sincera. Espero que você saiba disso. Realmente foi um enorme prazer conhecê-lo, uma mensagem após outra. Espero que você saiba disso. Não quero que esta seja uma longa “page d’écriture”. Se tivesse encontrado as palavras certas, seriam tristes, na maioria. Podemos culpar os passos tímidos, a guarda dura e outros empecilhos. Talvez isso seja querer demais, mas não poderíamos, simplesmente, concordar em seguir cada um seu rumo? Você me permitiria isso sem sofrimento ou decepção? Não é tão simples quanto nadar ou afundar. Entre eles existe o vagar pelo palco. Um dos atores está fazendo uma reverência de despedida. Você me deixa fazer isso? Você me perdoa? Penso que sim, espero que sim. Talvez, provavelmente. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 285 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 286 Nas últimas vezes em que visitei minha mãe enferma, impressionou-me como é enraizado seu senso estético. A arteriosclerose vinha reduzindo cada vez mais sua percepção do mundo, mas ela sempre comentava como isso era bonito e aquilo feio. Minha mãe não tinha mais memória, nem do que havia acontecido segundos atrás, por isso 142 podia dizer muitas vezes que achava bonito o seu vestido, produzindo uma gargalhada gostosa de prazer, sempre como se fosse a primeira vez. Mas, neste ponto solsticial da minha vida, quando mãe e filha usam fraldas, pergunto-me de que maneira esse penchant estético, que julga tudo e todos, me condicionou na infância. Será por isso que tem sido difícil encontrar uma parceira? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 287 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 288 Não tenho o hábito de insistir, especialmente com base em aparências, mas seu rosto não me é estranho. Se acreditasse em vidas passadas, diria que é isso que me faz escrever de novo. A vivência das pessoas — escolhas, caráter — está talhada no rosto, nas linhas e entrelinhas. Posso responder a suas perguntas, mandar mais fotos, falar de música, conversar pelo telefone, até trocar cartões-postais. Sei que não é sua função me ajudar a investigar intuições, mas o desequilíbrio entre o que se pode perder e o que se pode ganhar é simplesmente grande demais para você me deixar no silêncio. 143 Não se preocupe, eu já ia responder! Mas estou me apressando para poupá-lo dessa agonia (rss). O que você disse é, no meu entender, possível. Já respondi a tantos anúncios que acabei desenvolvendo um alto grau de ceticismo em relação à primeira impressão. Talvez você se decepcione, mas tenho certeza de que pensou nessa possibilidade. Como você disse, vale a pena tentar. Um primeiro encontro absolutamente delicioso engendrou um vôo impetuoso e arrebatado para o empíreo da paixão. Uma resistência suave ao contato diário foi suficiente para me devolver à terra. Triste dizer, mas o poder da auto-sugestão não pode ser superestimado. E a primeira impressão merece todo o ceticismo que lhe é de direito. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 289 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 290 Bruna se considera esguia, esbelta, bonita, calorosa, sensual, sofisticada e emocionalmente profunda. Mas o que realmente me atraiu foi o fato de ela ser sócia de um clube de enófilos. Marcamos de almoçar, e ela chegou atrasada, cambaleante por causa de um salto descolado, quase maltrapilha, vestida no limite do revelador e do 144 embaraçoso. Irrequieta durante o almoço, parecia estar escondendo alguma coisa. Uma dependência química? Uma depressão? Mas não havia sinal de vulnerabilidade em sua conduta, nada que inspirasse compaixão. Minha vontade era de fugir, mas agüentei firme, me remoendo subcutaneamente. Só me despedi quando pude levantar com um mínimo de decoro. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 291 200fantasias 145 5/11/07 9:35 AM Page 292 Despertando para os prazeres do cultivo físico, deparei-me com décadas de tensões encalacradas nos músculos, com a inflexibilidade acumulada do corpo e com a descoberta de que minhas pernas são desproporcionalmente mais compridas que os braços, tornando mais difíceis certas posições de yoga. A velhice vem cheia da dor do que poderia ter sido. Essa dor vem misturada com a alegria do que é. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 293 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 294 Escrevi para Carlota, uma portuguesa mais velha. A foto era atraente, e gostei da sua escolha de palavras — em forma e ainda agüentando firme. Um acidente com a filha adiou nosso primeiro encontro, aumentando a expectativa. Carlota revelou-se agradável, apesar de visivelmente ansiosa sob a fina compostura. 146 Tropeçou algumas vezes e derramou vinho sobre o vestido. Tentei tranquilizá-la, mas a transparência da inquietude a deixou cada vez mais aflita. Não era suficiente a nossa compatibilidade, mas me parabenizei, como um idiota, por ter saído com uma mulher mais velha. Lacan diria que foi desejo incestuoso pela pátria mãe. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 295 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 296 Fiquei emocionado com sua companhia ontem à noite. Foi um prazer profundo sentar a seu lado no teatro, um encantamento degustado em silêncio. A explicação da cautela com a qual você trata meus convites foi imensamente bem-vinda. Hoje de manhã, sinto-me como o salmão que comemos, grelhado na brasa, marinado em vouvray. Você falou de como, todo dia, precisamos renovar o esforço de viver com amor-próprio. Isso é tão verdadeiro quanto difícil. O bom é que, depois de um lapso, podemos sempre recomeçar no dia seguinte. Como no catolicismo, onde a salvação está sempre disponível para quem se arrepende. Mas o catolicismo já cometeu estragos 147 demais em troca desse consolo (e nem estou pensando na Inquisição). Na História da Sexualidade, Foucault descreve como gregos e romanos pré- cristãos consideravam o “cuidar de si” (cura sui) como a vocação suprema da humanidade até que a cristandade redirecionou essa energia incalculável em direção ao “cuidar de deus” (cura dei). Ah, mas o cuidar de si em relação ao espírito, não ao ego. É aí que as coisas freqüentemente ficam confusas. Falando em cuidar de si, estes dias não só renovaram meu corpo como também meu espírito. Cheguei ao trabalho hoje com vontade de escrever uma nova peça e encontrei sua mensagem. Cura sui. Um bom começo. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 297 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 298 Dharma é uma dramaturga que gosta de férias sem itinerário fixo, sem café descafeinado e sem umidade maciça. Dharma acredita que, quando seres independentes sublimam a vibração da atração física, cada dia pode ser um primeiro encontro sem nervosismo e pode haver otimismo sem pieguice. 148 Aprendi que uma dramaturga dá consultoria a diretores de teatro, argumentando a favor das intenções do autor. Dharma afirmou que nenhuma relação pode sobreviver sem brigas, sem seu estímulo revitalizador. Mesmo assim me senti atraído, como uma mariposa pelo fogo, mas ela argumentou contra as intenções desse autor. Ninguém melhor qualificada para interpretá-las corretamente. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 299 200fantasias 149 5/11/07 9:35 AM Page 300 Comecei a tocar guitarra porque morava em Londres e assistia aos melhores conjuntos de rock tocando nos clubes da cidade. Meu ouvido musical era fraco e o talento medíocre, mas, como as meninas se encantavam com os solistas, insisti e alcancei um nível razoável de competência. Depois de terminar a faculdade de economia, sem a mínima disposição para me alistar na brigada do terno & gravata, investi contra os moinhos por quase dez anos, tentando ganhar a vida como guitarrista. Não me saí bem, mas pude cobrir meus déficits anuais com a erosão gradual de uma modesta herança. O pouco que ganhava vinha das aulas particulares, já que a vida nas bandas de rock era mais divertida do que rentável. Quando completei 30 anos, a herança finalmente acabou, e fui exonerado pela minha namorada por falta de perspectivas. O princípio da realidade bateu firme. Percebi que essa tangente musical tinha sido uma maneira de prolongar minha adolescência. Mudei de rota e entrei para o programa de treinamento de um banco para aumentar minha credibilidade e adquirir as ferramentas necessárias para perseguir um novo sonho: um museu de arte contemporânea brasileira, a ser instalado em um armazém abandonado em algum bairro esquecido. O museu seria a peça-chave de um plano de recuperação imobiliária e seria financiado por contribuições dos espaços comerciais que ocupariam os armazéns vizinhos. Esses espaços, por sua vez, se valorizariam graças ao pólo de atração que seria o museu. Aos poucos, com o sucesso crescente da nova carreira, fui deixando de lado meu projeto, mas o fim do casamento e a conseqüente recuperação das tendências sonhadoras ressuscitaram a noção de que essa era a missão de minha vida. Todo mundo adora essa história, mas é pura mentira. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 301 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 302 O paraíso manda lembranças! Pena não ter viajado pela Itália acompanhado por você, pois surgem os pensamentos mais curiosos assim que a gente deixa para trás o efeito anestesiante do cotidiano. Eu estava louco para compartilhá-los com a pessoa que não estava a meu lado. Dirigindo sozinho, não podia culpar o navegador pelas viradas erradas; quando elas aconteciam, só podia trocar insultos comigo mesmo. Até que percebi que em todo cruzamento, em meio a um emaranhado de setas apontando para todos os lados, há sempre uma única que diz: TUTTE LE DIREZIONI. Parei de me perguntar para que servem as outras e passei a seguir esta seta. Sempre cheguei aonde queria. Descobri que todos os caminhos levam a Roma porque todos os caminhos levam a todos os lugares. Nessa viagem, pela primeira vez não trouxe minha câmara. Ela afeta meu grau de presença, me desligando do momento e me projetando para um futuro prematuramente retrospectivo. Escutei muita música no carro, principalmente clássica. Antes de viajar, telefonei para a locadora em Palermo para perguntar se poderia escutar CDs no carro. Responderam: Só fitas, nós não somos tão avançados assim. Desencavei uma dúzia de relíquias, levei, e é claro que o aparelho só tocava CDs. Louco para escutar um pouco de Glenn Gould, procurei me equipar em San Gimignano (pop. 7.000), mas não havia um só lugar onde pudesse comprar CDs clássicos. Só fui encontrar alguns em Arezzo (pop. 92.000), 150 numa pequena loja no centro da cidade. Qual será a população necessária para sustentar o comércio de CDs clássicos? Assim como San Gimignano, muitas cidades medievais foram construídas no alto de colinas. É difícil, hoje, entender como era sanguinária a Idade Média. Sem um governo federal forte, a população vivia à mercê das autoridades locais e se expunha a assaltantes sempre que deixava a proteção das muralhas de pedra. A maioria se deslocava a pé, e as fortalezas ficavam a mais de 300 metros de altura, por isso o preço da segurança se media em calos. Estou agora em Cortona, depois de passar por Arezzo, Sansepolcro e Monterchi. Não achei as últimas interessantes, pelo menos não em comparação a Veneza ou Siena, ou mesmo Mantova, uma favorita particular. Ainda vou passar em Gubbio, onde cometerei uma baita barbeiragem, arranhando a lateral do carro contra um muro de pedra. Mas lá farei uma das refeições mais memoráveis de minha vida: sentado na muralha da cidade, a planície da Úmbria se espraiando castanha sob os olhos esverdeados, encontrarei a felicidade, fantasiada de sanduíche de prosciutto e provolone e um modesto vinho rosé servido num copo de plástico. É curioso como certas cidades vibram com nossa freqüência enquanto outras não, por mais magníficas que sejam. Pode-se dizer o mesmo das pessoas e das refeições. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 303 200fantasias 151 5/11/07 9:35 AM Page 304 Durante o almoço, Elisa descreveu a viagem que ela, as irmãs e as sobrinhas fizeram a Veneza para jogar as cinzas da mãe no Grão Canal. No testamento, a mãe havia separado uma quantia para que a família pudesse fazer junta a alquimia de converter tristeza em alegria. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 305 200fantasias 152 5/11/07 9:35 AM Page 306 Com quantos paus se faz uma canoa? Um 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 307 200fantasias 153 5/11/07 9:35 AM Page 308 Fabiana era excêntrica, esperta e cheia de dotes artísticos. Nossas negociações sentimentais evoluíram rapidamente até que uma mosca caiu na sopa. Fabiana era aventurosa em todas as áreas menos no sexo oral, que ela considerava rua de mão única. Criou-se assim uma situação desconcertante para um navegador neófito como eu. [Me surpreende como cada pessoa é tão diferente em relação ao toque: um gosta disso, outro daquilo; esses botões funcionam nesta, mas não naquela. A variedade seria mais estimulante se não gerasse perplexidade performática. Uma relação precisa durar para que se acumule certo grau de conhecimento. Senão impera a dúvida. A diversidade é estimulada, ou no mínimo preservada, pela reticência social em discutir assuntos dessa natureza. Isso leva à disseminação imperfeita de informação, permitindo a sobrevivência de idiossincrasias. O cinema e a televisão padronizaram o senso de humor global, mas o mesmo ainda não foi feito com os detalhes performáticos do sexo.] Voltando a Fabiana, coisas que antes aceitava melhor, como o mau hálito, tornaram-se fonte de preocupação. Pensei em levantar a questão, mas fiquei com medo de machucá-la. Pedi conselhos a uma amiga, que perguntou: Se ela solucionasse o problema do hálito, você continuaria interessado? Percebi que a resposta era não. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 309 200fantasias 154 5/11/07 9:35 AM Page 310 Como funciona a cabeça de um solteiro? Ele avalia cada mulher que encontra e decide se ela é atraente ou não. Se for, o próximo passo é descobrir qual mão é a esquerda e verificar se tem aliança. Se não tiver, o passo seguinte é pensar em alguma maneira de puxar conversa. Depois do carpe diem, alea jacta est e caveat emptor. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 311 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 312 O temperamento de Gilda nada tem de executivo, legislativo ou judiciário. Ela é sofisticada, complexa e tem as antenas ligadas em todos os cantos da vida. Seus amigos são ecléticos e sensíveis, nunca arrogantes. Eles julgam menos e aproveitam mais. Gilda acha que cada momento abre uma série de portas. Já viajou pelo mundo inteiro, mas conhece melhor as geografias internas. 155 Depois do encontro, Gilda me pediu um retorno. Como não foi 100% positivo, ela nunca mais falou comigo. Uma de minhas ingenuidades é achar que as pessoas vão me entender exatamente como pretendo. Por isso escolho as palavras com tanto cuidado. Por isso procuro a maior precisão possível. Em vão. Sempre achei que raiva era raiva, mas uma amiga me mostrou que existe um abismo categórico entre chamar alguém de alguma coisa e mandar alguém para algum lugar. Nunca diferenciei essas manifestações por achar que vêm do mesmo lugar — a raiva —, mas ela argumentou que a pessoa alvejada diferencia. Chamar alguém de alguma coisa é um juízo, o que machuca muito mais do que mandar alguém à pqp, uma porrada oral sem conteúdo judiciário. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 313 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 314 Homem que teve mãe forte cresce com a premissa de que toda mulher é forte. 156 Se uma mulher o ataca, dificilmente pensa que o ataque vem da vulnerabilidade. A pior defesa é a defesa. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 315 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 316 Hortensia diz que se veste e se despe muito bem. É intensa quando está apaixonada por algo ou por alguém, mas a intensidade vem de boas intenções e do desejo de somar, não de competir. Sua natureza é extremamente independente, mas o homem certo revelará o lado dependente. Que bom que meu perfil encontrou eco; o seu parece tão perfeito. E basta olhar o site de sua microempresa para entender melhor o porquê: o projeto de ensinar às crianças a cozinhar junto com a família é uma contribuição admirável. É interessante como tudo começou quando você pediu que seu filho colhesse um punhado de manjericão. Curioso como idéias que mudam nossas vidas podem ter origens as mais prosaicas. Minha banheira de Arquimedes é meu chuveiro: não preciso mais trabalhar por conta de uma idéia que me 157 ocorreu debaixo d’água. Muitas das idéias de meu primeiro livro também foram chocadas lá. É um lugar tão produtivo que é um milagre que eu saia de lá. Mas cozinhar, preciso confessar, é estressante demais para meu temperamento delicado. Em vez disso, organizo provas de vinho. Sirvo sempre uma seqüência de três vinhos e três queijos, com pão e uma salada temperada com azeite trufado, sal e amêndoas torradas. É de minha natureza misturar o sensual com o didático; por isso os vinhos seguem um tema, e os queijos são de leite de cabra, ovelha e vaca (quando possível, da mesma região que os vinhos). Você gosta de grapa? Não sabia que era tão armada e perigosa. Não sei nada sobre grapa, pois caio fora sempre que o teor alcoólico sobe acima de 15%. Mas, da última vez que voltei de Minas, trouxe comigo várias cachaças artesanais. Talvez a gente possa reunir nossos inimigos para uma prova conjunta de cachaça e grapa. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 317 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 318 Gostei muito do que você escreveu sobre si e também de seu sorriso. Minha foto mal mostra meu rosto, apesar de revelar a feminilidade do meu ombro (tenho bons ombros, segundo padrões século XX). Mas não vou atualizar minha foto porque os encontros via Internet têm sido meio angustiantes, principalmente pela necessidade de codificar e decodificar tantas autopromoções abreviadas. E me falta sutileza na hora de interpretar as pessoas. Precisei do divórcio para chegar a esse ponto, mas cheguei. Levo uma vida bastante complicada. Meu trabalho me obriga freqüentemente a ir à Brasília e a outros lugares, mas moro em Corrêas. Passo a maioria dos fins de semana no Rio. Leio bastante. Vivi muitos anos na Europa. Música é uma das coisas mais importantes para mim. Tenho uma coleção muito modesta de objetos de vidro. Adoro a natureza, tanto na cidade como no campo. Mas a verdade é que quase qualquer coisa me interessa. Ontem almocei com uma colega que me impressionou com histórias fantásticas sobre cogumelos. Se você responder, eu conto. Obrigado pela mensagem encantadora. Eu seria a última pessoa a dar as costas a um bom ombro, especialmente quando precisei de um divórcio para entender como essa parte da anatomia é fundamental. Minha ex-mulher ficava irritada quando me contava os problemas e eu respondia com sugestões. Ela era esperta o suficiente para encontrar as próprias soluções, queria apenas um velho e bom consolo. Minha falta de perspicácia era típica de um solucionador profissional, para quem toda questão em aberto é um convite à ação. Minha falta de empatia era típica de um inseguro amador, para quem toda questão em aberto é um convite à angústia. É triste como aprendi tarde certas coisas elementares. Estou escrevendo de Florianópolis, a caminho de Joinville. Sempre recorro ao pragmatismo 158 quando não sei o que fazer. O pragmatismo me serve quando me sinto alienada no trabalho. Mas não funciona em casa e, especialmente, com as crianças, que estão tentando encontrar as próprias soluções. Meu ex-marido é escritor, e seu trabalho e sua identidade são inseparáveis. Levei anos para perceber que, quando ele me pedia uma opinião, essa era a última coisa que ele queria. Mas acabei aprendendo. Me liga de Joinville. Quero ouvir sua voz e conhecer tudo o que você sabe sobre cogumelos, interesse que combina com seu amor à música: um primo querido me contou que John Cage virou entendedor de cogumelos porque, nas enciclopédias, o verbete mushroom vem logo antes do verbete music. Coisa de gente obsessiva, sistemática e serial. Sinto muito ter sumido da face da terra. Ando enlouquecida e, francamente, me senti tão desanimada por estar sobrecarregada e não ter escrito antes que bati em retirada. E, se puder ser realmente sincera, seu convite para telefonar me assustou. Agora você sabe que eu sou uma medrosa, uma sobrecarregada e uma ansiosa. A face da terra ficou feliz com sua volta, e é preciso coragem para admitir o medo. Uma mãe que mora em Corrêas e trabalha em Brasília só merece compaixão por estar tão ocupada. Bastava dizer que meu convite era assustador. Eu não teria mordido. Você precisa me dar algum crédito, eu já vi esse filme. O medo faz parte de nossa miséria cotidiana e tem o grande mérito de prolongar nossas vidas. Encontramo-nos num bar, e a conversa foi desajeitada. Nenhum sinal da pessoa que escreveu o primeiro parágrafo. Gostaria que o resultado tivesse sido outro, pois do fundo do seu ennui, ela exalava uma escuridão carismática, perigosa como uma lâmina de papel. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 319 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 320 Íris é graciosa e audaciosa Feminina, mas não caprichosa Ontem mesmo disseram que sua pele era deliciosa Íris quer independência & interdependência 159 Sua maior virtude: a honestidade Seu maior defeito: a honestidade Íris é esperta e calorosa Suas maiores armas são a retórica e a persuasão O arco dessa íris foi meteórico na arrebentação 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 321 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 322 A perspectiva de nos encontrarmos me deixa tímida. Ficamos tão próximos através das cartas. Alguns achariam isso artificial, mas não foi em nosso caso porque somos escritores, descascando lentamente as almas. Tenho a dolorosa consciência de que eu talvez não me encaixe no seu tipo ideal, mas não há muito que fazer. Eu talvez nem me sinta atraída por você. A atração é um fenômeno tão imprevisível, e gosto não se discute. Sinto-me mais uma vez “disponível”, procurando uma relação maravilhosa, pronta para me comprometer com a pessoa certa. Se eu e você não fomos feitos um para o outro, talvez possamos ter maturidade suficiente para desenvolver a amizade que começamos a construir nesses meses de correspondência. Talvez não seja possível, quem sabe? Minha preocupação de não ter a aparência “certa” para você é espelhada pelo fato de sua foto não mostrar meu “tipo”. Mas o que quer dizer “tipo”? Você precisa parecer o Daniel Day-Lewis? Isso seria muito maduro de minha parte. Com certeza, estou ansiosa para te conhecer, pois acho você um ser humano incrível, além de um belo escritor. Estou adorando estas semanas em Veneza. Se você estivesse aqui, poderíamos estar fazendo amor neste exato instante. Por que não vem? Você está me provocando! Que diabo, onde estão as fotos que você prometeu? Só vi uma até agora e cuidadosamente escolhida. Uma não basta. Para que eu saia correndo até aí, vou precisar de um punhado de fotos pouco atraentes de você dando comida para os pombos na Piazza San Marco, talvez até com cocô de pomba no cabelo, para que possa montar uma colagem fidedigna. Se bem que sua personalidade já é bastante tentadora. Veja só, a boa noticia é que mesmo que você veja umas fotos (já que está tão obcecado por isso) e descubra que sou baixinha, gorda e careca, podemos continuar amigos, pois você é uma delícia no papel. A outra boa noticia é que tenho uma altura no mínimo mediana e muitas outras características “apetitosas”. O.k., não gosto de parecer “tão obcecado” com as fotos porque meu lado idealista gostaria de achar atraentes todas as mulheres maravilhosas. Mas também sei, baseado na experiência, que não é bem assim. Posso achar uma pessoa linda e não sentir atração; assim como posso, com menos facilidade, sentir atração e não achar a pessoa linda. Meu desejo me parece excessivamente preso a meu gosto (influenciado, é claro, pelos arquétipos da época). Sou tão ligado ao design e às aparências que isso impregna meu jeito de ver as pessoas. Mas posso dizer que a altura não é uma questão tão importante para mim. Por outro lado, poucas vezes senti atração por mulheres que não fossem magras (suspeito que as exceções tinham o carisma que vem de uma enorme auto-estima). A gordura foi sempre meu maior “problema”, e a consciência de que o preconceito vem da infância ainda não bastou para vencê-lo. Não gosto de ser assim, mas é parte de quem ainda sou. Apesar de ter conseguido acabar com a própria gordura, minha relação com comida — tanto a quantidade quanto a rapidez com que como — continua sendo a de um gordo. Não tenho nada a dizer sobre sua última mensagem. Fiquei tão decepcionada que pensei em muitas respostas mas 160 francamente não tenho nenhuma. Será que minha aparência importa tanto que você não gostaria de fazer amor comigo? Com meu coração e minha alma? A verdade é que eu tenho um corpo esplêndido, apesar de não ser tão esbelta e perfeita quanto você deseja. C’ést la vie. Cá estou, estonteada com a beleza de Veneza, mas já não quero compartilhar isso com você. Acabamos de visitar a Praça São Marcos de novo. Fiquei parada, lágrimas correndo dos olhos, assombrada com o tamanho do esplendor. Os mosaicos, as fachadas, a cor da água, as gôndolas. Onde quer que eu olhe, fico pasma. Nunca vi tanta beleza em minha vida inteira. Pois então, fique bem. Encontre alguém que corresponda à sua imagem da mulher perfeita. Meu corpo é maculado pela experiência, e é assim que deve ser. Já vivi muitas vidas e estou começando uma nova neste preciso instante. Vejo que fui julgado, condenado e enforcado in absentia. Mas sinto muito se te machuquei. Aproveite Veneza e tenha uma vida maravilhosa. Por favor, não me interprete mal. Aprecio muito sua honestidade. E, por favor, não se sinta julgado. Certamente nunca o julguei ou condenei. Não sou esse tipo de pessoa. Apenas me senti mal porque você deixou claro que eu precisaria corresponder a um certo tipo para que você pudesse gostar de mim. A maior ironia é que eu sou muito atraente e nada gorda. É por isso que as pessoas deveriam encontrar-se logo depois de se conhecer pela Internet. Assim, evitam-se as ilusões, e dá para testar imediatamente se existe química ou não. Se você reler sua mensagem, acho que entenderá como uma mulher imperfeita, lendo uma coisa dessas, não poderia deixar de sentir-se deficiente. No entanto, gostaria de dizer que sempre apreciei sua franqueza. É uma pena você não ter aceitado meu convite para voar até aqui. Poderíamos estar na cama agora. Agradeço suas palavras, mas continuo com raiva. Reli, com muito cuidado, a mensagem tão ofensiva e me parece claro que ela só fala de mim, enquanto você reagiu como se ela falasse de você. Se minha mensagem trouxe à tona questões mal resolvidas ou decepções anteriores, cabe a você tratar disso intimamente em vez de projetar-se sobre mim. Você diz: Por favor, não se sinta julgado, mas o fato é que fui julgado, sem nenhum benefício do crédito acumulado durante nossa correspondência. Também preciso esclarecer uma coisa: não tenho nenhum “tipo” específico. Pouco me importa se você é loura ou morena, alta ou baixa, malhada ou não, com cabelos lisos ou encaracolados. Nada disso me interessa. Mas acho gordura uma coisa feia e reconheço que esse é um problema que preciso resolver. Não disse, em momento algum, nada sobre você. Seria uma idiotice procurar a perfeição. Como você pode me acusar disso (mesmo com licença retórica)? Realmente lamento muito esse constrangimento entre nós. Não deveria existir, definitivamente. Podemos continuar amigos, ou terminamos aqui? Acho que a simpatia e o interesse de nossa correspondência indicam que temos muito em comum e gostaríamos de nos conhecer. À bientôt? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 323 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 324 Aos 17 anos, Jacqueline descobriu Chomsky e achou que havia encontrado alguém que entendia o mundo. Aos 37, ela procura um bobo sagaz. 161 Tomamos café na orla da Lagoa, olhando as marolas mansas dos remadores que treinavam. Conversamos muitas horas, contando nossas histórias, até que o fim do dia pesou sobre o horizonte como um diafragma escarlate separando o céu da terra. Minha insegurança foi aumentando diante da natureza intransigente da inteligência de Jacqueline. Por não precisar de minha aprovação, ela pôde fazer perguntas pontiagudas sobre minhas escolhas existenciais. Os chavões e as fórmulas que me serviram no passado resvalavam nela. Quanto mais ela me colocava na defensiva, mais eu a respeitava. E quanto mais eu a respeitava, mais eu a queria. Ela deve ter sentido que eu estava começando a colocá-la num pedestal. Pior, ela deve ter intuído que eu tenho essa necessidade. Dizem que quando o aluno está pronto o professor aparece. Até agora, nenhum sinal dele. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 325 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 326 Depois de anos de errância no deserto, finalmente matei a charada (mas cuidado com as palavras): Paixão nada tem a ver com amor É fácil se apaixonar. Dá trabalho amar. Tanto filhos quanto parceiros. 162 Os pais naturalmente sentem paixão pelos filhos porque os filhos são extensão dos pais. Questão de genética, seleção natural, sobrevivência da espécie. Os filhos, por sua vez, intuem que essa paixão é dirigida a uma projeção dos pais e não se sentem amados. O amor, por outro lado, reconhece a alteridade dos filhos. Os pais amam os filhos do jeito que os filhos são, não do jeito que gostariam que fossem. Os filhos que são amados se sentem aceitos do jeito que são, criando uma base de auto-estima que os acompanhará vida afora. Quem recebe paixão, em vez de amor, viverá sempre com um buraco na alma por intuir que não foi amado. Um adulto sente paixão por outro porque procura a felicidade através da fusão de egos. Questão de genética, seleção natural, sobrevivência da espécie. O outro intui que a paixão é dirigida a uma projeção, mas está se divertindo demais para questionar. O amor, em vez disso, reconhece a alteridade. Um adulto ama outro do jeito que o outro é, não do jeito que gostaria que fosse. Adultos que se amam estabelecem uma confiança mútua que pode sobreviver depois da relação terminar. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 327 200fantasias 163 5/11/07 9:35 AM Page 328 Bem, foram-se algumas semanas, e me dei conta que deixamos de nos falar sem passar recibo. De minha parte, comecei a me sentir dispersa demais. Na época em que procurei você, estava atravessando uma fase disponível e, por isso mesmo, de uma hora para outra, passei a ter homens em minha vida. Rapidamente passei a sentir-me sobrecarregada, por falta de tempo e pouca disponibilidade emocional. Entendi que precisava concentrar-me. Conheci alguém com quem comecei a desenvolver uma ligação forte e achei que precisava deixar isso acontecer. Também senti uma ligação forte com você, apesar de, como você mesmo notou, deslizarmos com facilidade na direção do cerebral. Mas sei que, para nós dois, esse pode ser um lugar intensamente pessoal, íntimo e apaixonante. Achei você doce, profundo e atencioso. Lamento que minha falta de disponibilidade não me permita cultivar as pessoas especiais que encontro na vida. Mas queria pelo menos que você soubesse que realmente gostei de te conhecer e que talvez faça sentido explorar, no futuro, pelo menos uma amizade. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 329 200fantasias 164 5/11/07 9:35 AM Page 330 O encantamento sociobiológico passou rapidamente para beijos e abraços numa espiral ansiosa que levou estranhos a confundirem salivação com salvação. Keila era insinuante, inteligente e vibrante. Ela me deu uma carona em seu conversível vermelho-metálico, e, enquanto contornávamos a praia naquela carruagem flamejante, eu não parava de pensar como aquilo não era minha cara. Seguindo a tradição milenar dos que têm pouca medida, perguntei se ela queria subir. Seu corpo generoso não se encaixava bem no meu, mas nossos pudores pareciam velhos amigos. O sutiã e a calcinha — de renda fina, do tipo fino que fica guardado esperando uma ocasião especial — eram clara indicação de que ela estava pronta para qualquer eventualidade. Mas um velho anjo protestante soprava no seu ombro que seria impróprio fazer tais coisas na primeira noite. Ficamos então tateando no escuro, ainda meio vestidos, e o vai-não-vai tornou-se frustrante. Ao mesmo tempo, eu sabia que no dia seguinte o resíduo desse débacle seria uma lembrança estupidamente vazia. Instaurou-se assim uma guerra civil entre o desejo e o amor-próprio. Esqueci meu capacete no corcel de fogo, e quando Keila ligou uns dias depois para perguntar se eu não queria ir pegá-lo, agradeci e disse que já havia comprado outro. Segundos depois ela telefonou de novo com a verdadeira pergunta: Por que você não me ligou? Disse que tinha sido um prazer, mas que a relação não me parecia ter futuro, infelizmente. Gostaria de ter dito que não gosto de gente dividida entre o que quer e o que pensa que deve querer. Faça o que quer porque quer e não faça o que não quer porque não quer, mas não se guie pelo que os outros vão pensar. E, se fizer algo do qual poderá arrepender-se mais tarde, que o faça com garra, sem combinar hesitação e erro. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 331 200fantasias 165 5/11/07 9:35 AM Page 332 Passei minha primeira noite na Toscana no hotel-fazenda novinho em folha de uma condessa, mãe de um velho amigo, metade brasileiro, metade italiano. No dia seguinte, visitei uma vinícola famosa e antiquíssima de um primo da condessa, um barão. Ridículo pensar que me impressionava com títulos nobiliárquicos quando eu era jovem. Hoje, só me importa se a pessoa fez análise ou não, se pertence, digamos assim, à aristocracia do divã. No dia em que cheguei ao hotel-fazenda, a condessa estava dando uma festa de inauguração, e o prefeito comunista de Manciano, a cidade mais próxima, veio prestigiar. A condessa me puxou de lado e comentou, rindo, que todo mundo na Toscana é milionário e comunista. Quase respondi que Marx & Engels certamente não queriam que todo mundo fosse pobre, mas preferi meditar sobre como as palavras rico e pobre perderiam a função, até o sentido, se todas as pessoas fossem uma coisa ou outra. Mas, voltando à vinícola, o barão me recebeu de maneira muito afável, nas terras que sua família cultiva (declarou orgulhosamente) desde o ano de 1300. Sim, senhor, mille e tré. Mas não sem antes me examinar da cabeça aos pés e fazer algumas perguntas enológicas para avaliar quanto tempo deveria perder. Afinal de contas, a condessa, uma ex-miss Itália, havia entrado para a família por via matrimonial e devia ser vista com certa reserva. Mas correu tudo a contento, e provei líquidos deliciosos. Voltando à festa, enquanto conversava com o prefeito de Manciano, uma loura “atraente” juntou-se a nós. A palavra atraente está entre aspas porque as italianas na Toscana são meio vamp, os cabelos exageradamente pintados de louro, com corte (de roupa e de cabelo) brega-chique. Voltando ao prefeito, com a loura na frente, baixou um santo diferente. Abriu-se um manancial de sensualidade masculina, um charme fácil e envolvente, um carisma fundado em milênios de seleção natural. Os italianos são os homens mais bem-vestidos da terra, mas ainda não me acostumei com a mistura de sapato bege e terno marrom. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 333 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 334 Gostei do que você escreveu e acho que teríamos muito que conversar. Quando puder, por favor, dê uma olhada em meu perfil. Acabo de me mudar para São Paulo, e essa história de bater na porta virtual de homens desconhecidos me parece deliciosa e, ao mesmo tempo, misteriosa. Sempre alerta e obediente, examinei seu perfil e, apesar de você ter dito apenas que gostou do que escrevi, prefiro alimentar sua vaidade dizendo que também gostei de sua foto. O fato de você ter estudado arquitetura em Los Angeles disparou um neurônio tangencial contendo memórias afetuosas de um dos amigos mais loucos que já tive, um francês bigodudo chamado Claude. Quando morei em Los Angeles no começo dos anos 80, Claude estava fazendo Ph.D. na SciArc. Ele dirigia um pré-histórico Deux Chevaux amarelo-canário e ficou famoso entre os amigos por ter sido o único motorista na história da cidade a ser parado pela polícia rodoviária por andar abaixo da velocidade permitida. Rolávamos de rir enquanto ele encenava, gesticulando teatralmente, as tentativas de explicar aos guardas, com sotaque francês fortíssimo, que um Deux Chevaux simplesmente não andava mais rápido. 166 (...) Obrigado por dividir comigo o fato de que estou lhe sobrecarregando. Acho que podemos pensar e sentir nossos caminhos, e também sei que você nos pode guiar, com esse seu jeito doce. Acredito que isso já esteja acontecendo, de uma maneira muito bonita. Não quero que você se sinta sobrecarregado. Tenho muita esperança no nosso futuro. Você me faz sentir e pensar profundamente. Também quero honestidade absoluta nas relações. Creio que somos capazes disso. Temos sorte e devemos agarrar essa chance. O que você chamou de fantasia é ainda mais complexo quando tem fundamento. Se continuarmos abertos a essa possibilidade, acho que isso é algo que poderemos compartilhar. Preferiria estar dizendo isto tudo em seus braços, mas não posso esperar tanto. Estou ansiosa para revê-lo. Agradeço a mensagem carinhosa e o relato de ontem sobre seu passado difícil. Respeito e admiro você, e não tenho dúvidas de que poderíamos desenvolver sentimentos mais profundos. Meu receio, saindo de um casamento onde havia muito amor e pouca paixão, é de me encontrar de novo nessa situação. Quero paixão e não quero esperar. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 335 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 336 Cresci cantando canções pacifistas numa colônia de férias vegetariana. Ando de sandálias, mas sei me arrumar para uma noite de gala. Pedi depoimentos aos amigos para incluir neste perfil, e um deles disse que eu lembrava o “Bernardo”, seu beagle favorito. A primeira vez que li o perfil de Clarice, embarquei numa viagem-solo e mandei-lhe o equivalente a um cartão de visita, entregue numa bandeja por um mordomo virtual. Sua resposta tardia me poupou da dúvida atroz: insistir é importunar? Aliviado, disse-lhe que tinha quase escrito: “Estou tentando de novo caso uma pane na Patagônia tenha causado um blecaute temporário nas redes elétricas no momento exato em que minha primeira mensagem entrou em seu computador”. Fiquei contente de lhe poupar o esforço de checar os distúrbios meteorológicos na Patagônia (aliás, um de meus lugares favoritos). Quero saber mais sobre você. Em nome da fidedignidade, Clarice é apenas meu nom de plume, uma homenagem a Lispector. No que se costuma chamar de vida real, meu nome é Leila. Seu perfil é delicadamente calibrado entre o humor e a seriedade, o cerebral e o sensual. Você até escreveu a palavra décolletage errado, na tradição dos mestres japoneses que dão uma borradinha no acabamento das peças para que os deuses não os acusem de hubris. Não estou nem um pouco preocupada com hubris. Eu sou o produto de uma educação progressista baseada na idéia que somos todos tão bem-dotados que não precisamos nos preocupar com algo tão prosaico quanto ortografia. Em minha primeira prova de literatura inglesa, tive a nota rebaixada por escrever ângulos em vez de anjos em os ângulos caídos do Paraíso Perdido de Milton. Pelo visto, eu também não era boa em geometria... Como você já deve ter adivinhado, sou parte húngara (metade), e aqueles húngaros viajaram bastante. Minha avó tinha cara de quem vinha da Mongólia, e, como somos judeus, é impossível saber que espécie de integração noturna gerou minha genética. 167 Húngara? Pesquisei minha ascendência e fui parar numa nobre escocesa que, de acordo com o dicionário de biografias que consultei, era descendente de Estêvão I e Estêvão II, os primeiros reis dos magiares. É ridículo, mas me orgulha o fato de 1% de meus corpúsculos serem nobres. Visitei Budapeste uns quatro anos atrás e minha concepção do mundo ficou alterada com a descoberta de que Buda e Peste são cidades diferentes. Adorei jantar no tradicional restaurante Gundel, saboreando patê ao som de violinistas ciganos de fraque e gravata-borboleta. Bem, agora vou cuidar de meus hóspedes, que acabaram de chegar. Parabéns pela ascendência real húngara. Rei Istvan, seu antepassado, foi o primeiro a adotar o cristianismo. Sua coroa, doada pelo papa, tem uma cruz torta em cima, e é uma grande fonte de orgulho e nacionalismo para os húngaros. Sua mão direita, preservada na Basílica, é o carro-chefe de uma procissão solene que desfila por Budapeste todo mês de agosto. Espero que você aproveite bem os hóspedes. Recomendo a exposição de borboletas do Museu de História Natural, apesar de só conhecê-la pela descrição feita por um sobrinho de 3 anos, pois morro de medo de borboletas. Ratos, cobras, cães raivosos, nada disso me faz pestanejar, mas tenho medo de machucar as borboletas. Devem ter me dito, em algum ponto sensível de minha infância, que, se as tocamos, elas não podem mais voar e traçar as delicadas caligrafias aéreas. E daí? disse a mãe do menino, a vida delas é tão curta que não faz diferença. Talvez seja um resíduo de minha colônia de férias vegetariana (nossa, que vontade eu tinha de comer salsicha). Fiquei impressionado com a delicadeza de sua aversão a borboletas. Não podemos deixar a extensão curta de suas vidas impactar a extensão curta de suas asas. A cruz torta da coroa de Istvan, inclinada num dos ângulos de Milton, me fez pensar em como tudo é interligado. Tivemos um piquenique agradável, agraciado por um excelente Tokai húngaro que o rapaz trouxe em minha homenagem. Com esse vinho doce (de 6 Puttonyos), saboreamos amargamente a curta extensão da nossa atração. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 337 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 338 Você foi tão generosa com as palavras, enquanto eu fui tão econômico. É porque achei seu perfil de tal modo ideal que qualquer coisa que eu dissesse pareceria redundante; bastava aparecer em sua porta virtual e tocar a campainha. Também tenho opiniões fortes, mas só depois de fazer o dever de casa. Uma de minhas resoluções para o ano novo é controlar meu impulso de julgar — o mundo precisa de menos adjetivos e mais substantivos. Também 168 gostaria de abrandar meu jeito de expressar opiniões. Quando era mais jovem, meu jeito categórico impressionava as pessoas, mas só aquelas que não sabiam a diferença entre força e firmeza. Também fui contra a Guerra do Golfo, não apenas pelos motivos liberais de costume, mas porque detesto qualquer tipo de violência, como boxe, brigas de galo e touradas. Por outro lado, sou carnívoro e gosto de filme de pancadaria. Será que a incoerência de minhas posições quer dizer que eu não fiz o dever de casa? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 339 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 340 Admiro a profissão de Maria mais do que a maioria das profissões. Tenho pouco talento e paciência para o detalhismo exigido pela arquitetura, mas aprecio a combinação do prático e do estético. O estético é tão importante para mim que alguns de meus encontros naufragaram por causa de alguma ressalva em relação ao gosto da pessoa. Isso me constrange, pois parece um motivo superficial e impróprio, mas talvez aponte para uma necessidade mais substancial. Adoro visitar aqueles museus bolorentos que têm vitrines enormes cheias de pequenos objetos classificados por tipos. Posso admirar 45 anéis celtas, 26 ânforas gregas e 19 crucifixos de marfim. Em geral, não há ninguém em volta. Esse monte de tesouros me dá o consolo de pensar que a humanidade tem mais talento para o bem do que para o mal. 169 Maria e eu saímos para explorar espeluncas, cavernas subterrâneas com abóbadas gigantes e dramáticas. A claustrofobia de Maria gerou oportunidades de consolação. Jantamos à beira-mar, banhados primeiro pela luz vermelha do pôr-do-sol e depois pela luz mágica e intermitente de uma hoste de vaga-lumes. Na noite seguinte, tivemos um jantar menos agradável com um de seus clientes, um banqueiro inglês que acabara de comprar uma antiga fazenda de café no interior de São Paulo. Maria disse, meio brincando, que minha missão era impressioná-lo com meu cosmopolitismo, elevando assim o status dela para que ele a contratasse para reformar a fazenda. Por ostentação, nosso anfitrião pediu dois magnums de um supertoscano medíocre, produzido por uma vinícola caríssima, famosa apenas pelo brunello. Que desperdício de poder de fogo. Meu cosmopolitismo se manifestou através do silêncio, que exigiu toda minha disciplina. Maria ficou grata pela companhia, e eu pela hospedagem. Passamos de conhecidos a amigos e lá ficamos. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 341 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 342 Nunca sou assim, exceto agora, por isso me pergunto: que feitiço é esse que faz minhas linhas fluírem de maneira tão floreada em direção a Vossa S.ª? Mas por que especular se você pode averiguar em pessoa se minha mira é certa? Quem é você (exceto agora)? Talvez eu descubra daqui a uma semana. Já que você está decidida a adiar o resto de sua vida por uma semana inteira, a aniquilar 168 horas de felicidade por causa de uma obrigação de família, não tenho remédio senão dizer: Ars Longa Dolce Vita Brevis. Aqui vai a citação do dia: “A obra de vanguarda nunca é historicamente eficaz ou plenamente significativa nos momentos iniciais. Não poderia ser porque é traumática: abre um buraco na ordem simbólica de sua época, que não está pronta para recebê-la, que não é capaz de recebê-la, pelo menos não imediatamente, pelo menos não sem mudanças estruturais”. (Esse é outro aspecto da arte que os críticos e historiadores precisam registrar: não apenas as desconexões simbólicas, mas a incapacidade de significar.) Adoro a expressão incapacidade de significar. 170 Ah, essas incapacidades de significar... E o termo favorito do escritor preguiçoso: significador. Talvez eu esteja de mau humor, mas você também não sente impaciência com escritores que precisam prolongar-se de um jeito tão rebuscado, misturando metáforas e pontos de referência, para transmitir idéias? Ainda por cima, idéias relativamente simples. Não concordo que um trabalho de vanguarda nunca seja eficiente ou significativo no momento em que aparece. Muitos trabalhos chocaram e ofenderam o público, forçando-o a reexaminar o que é a arte. Quanto a uma obra de arte ser historicamente eficaz ou significativa nos momentos iniciais, bem, tenho certeza de que você percebe a contradição interna. Nervosinha, hem? Significador e significado não são termos de escritores preguiçosos, assim como x, y e z não são termos de matemáticos preguiçosos. Permitem conversas abstratas sem referência constante a exemplos concretos. Mas, acima de tudo, adoro o ponto da citação e adoro como foi colocado. Enquanto muitos trabalhos de vanguarda de fato chocaram e ofenderam quando mostrados, eles raramente fizeram os filisteus reexaminar, em tempo real, a idéia do que é arte. Essa reavaliação costuma vir mais tarde, às vezes muito mais tarde, quando a ruptura no tecido cultural teve tempo de ser absorvida pelas elites que determinam o gosto vigente. Finalmente, não vejo contradição em uma obra ser historicamente eficaz ou significativa nos momentos iniciais. Por favor, ilumine-me. Entendo e aceito seu ponto de vista, mas minha perspectiva é ligeiramente diferente (é bom trocar figurinhas). Lembre-se que, segundo Virginia Woolf, depois da exposição de Cézanne em Londres em 1911, o cunhado dela, Clive Bell, declarou que o mundo acabava de mudar. E, realmente, Cézanne mudou a maneira de os pintores verem e pintarem. Para cada inovação, há sempre um punhado de intelectuais prescientes que “entendem”, mas são justamente as exceções que confirmam as regras. E você precisa admitir que 1911 é relativamente tarde para intelectuais soi-disant ligados no zeitgeist descobrirem Cézanne. Mas esses Bloomsburies eram mesmo meio atrasados. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 343 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 344 Neide pertence à organização chamada raça humana. Todos aqui pertencem a essa organização, mas poucos acreditam nela. Neide gosta de homens que prestam atenção nos detalhes. Nas conversas, nos relacionamentos, no trabalho e na aparência. Quando Neide está com um homem, quer que ele concentre toda atenção sobre os dois. 171 Minha curiosidade aumentou quando ela disse que a terapia de grupo tinha sido a melhor coisa que aconteceu em sua vida. As colegas gostavam tanto umas das outras que se encontravam uma segunda vez por semana fora do consultório. Neide disse que todos se conheciam como a palma da mão e se ajudavam com os problemas. A amizade entre eles se tornou forte; consolo e comunidade, tudo junto. Ela ficou incomodada porque eu parecia mais interessado no grupo do que nela. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 345 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 346 Seu perfil tem muitas coisas interessantes. Altamente interessantes! Azeite trufado e honestidade são duas coisas que prezo. “Burguesa pouco convencional” parece uma contradição divertida. A morte da pintura é um assunto penoso para mim. Paul Éluard escreveu uma poesia sobre como não existe certeza. É a única poesia que me dei ao trabalho de memorizar: Façam sorrir a certeza. Ela é de pedra? Ela derreterá. Obrigado pela poesia do Éluard. Falando em certeza, ontem fui assistir a um debate sobre o Goeldi e, no final, alguém da platéia perguntou: Vocês não acham que Lívio Abramo é um artista mais interessante? Rodrigo Naves, um dos participantes, respondeu: Lívio Abramo foi importante, mas, para ser bem sincero, acho que ele tinha certeza demais. Isso ressoou tanto em mim. Quanto à morte da pintura, das duas uma: ou é uma falsa questão, ou é uma questão pertinente apenas em relação à vanguarda. Mas, como muita gente acreditou que a pintura havia, de fato, morrido, a questão teve impacto inegável, seja verdade ou não. Também amo o Mediterrâneo. Se pudesse ter a casa de férias de meus sonhos, seria em Veneza ou numa cidadezinha chamada Haut-de-Cagnes, no alto de uma montanha perto de Nice. Achei St. Paul de Vence turística demais, uma espécie de San Gimignano francesa, mas gostei de visitar a Fundação Maeght e almoçar naquele restaurante famoso cujo nome me escapa, cheio de arte de segunda feita por artistas de primeira. Que bom que você gostou da poesia. Que idéia lírica essa de fazer a certeza sorrir... Você conhece a estética de Hegel? Ele descreveu a arte como o percurso de uma idéia manifestada materialmente e previu que seu futuro seria o Capricho. E não é que aconteceu mesmo! Mais do que a morte da pintura, aconteceu a morte da seriedade, do detalhe, das considerações meticulosas. Tudo está andando rápido demais. Hoje em dia, tudo é Capricho. Aquele velho Hegel, que previsão magnífica... O Warhol é o pai do Capricho; Pollock e os expressionistas abstratos viveram uma espécie de febre, um transe semi-religioso de busca e gesticulação louca que marcou o fim da pintura ligada ao mundo natural — cheia de sangue, Deus, vida, natureza e todo esse tipo de coisa — uma doce apoplexia. Aí, então, entra em cena o Capricho, na forma de uma lata de sopa Campbell’s. Sempre achei que a arte, depois de Warhol, deveria ter outro nome. Virou outra coisa. Cézanne e Warhol tinham métiers diferentes. Como um médico e um mágico. Como um rio que bifurcou. Quanto à sua cidadezinha numa montanha perto de Nice, já me senti bem em lugares diferentes e de maneiras diferentes, mas a felicidade que senti no sul da França pertence a outra dimensão. Durante minha primeira visita a Provence, saí andando sozinha para absorver a paisagem e comecei a chorar, como se estivesse finalmente chegado em casa. É toda a região: os morros, os pinheiros, a lavanda, as cidadezinhas medievais, as oliveiras, o vinho rosé; e tudo voltado para o horizonte do mar. Visitei Veneza apenas rapidamente, mas amei, é claro. Gostei de todos os vinhos que provei, e da casa da Peggy Guggenheim, com aquele cemitério dos cachorrinhos. Mas me conta um pouco de sua paixão por vidro. Falar em tomar vinho em Veneza é acertar em cheio na jugular epicurista. Um final de tarde, no verão passado, sentei à beira do Grão Canal em frente ao museu Accademia com uma bisnaga de pão, um pote de manteiga trufada e uma garrafa de vinho branco siciliano. Fiquei comendo, bebendo e olhando os turistas, os nativos, as gôndolas e os pássaros, todos seguindo seu roteiro. Até a espuma suja que se formava onde a água batia no lodo das pedras parecia uma escória excelsa. Sim, amo o vidro, de maneira quase atávica. O vidro é para os materiais o que o ovo é para a cozinha, algo entre a alquimia e a mágica. É incrível pensar que o vidro não é um sólido. Basta ver as vidraças nas janelas de castelos e igrejas medievais, que vão ficando grávidas com os séculos à medida que o vidro escorre lentamente, como um mel gelado. Quanto ao Hegel, acho que você está sendo generosa demais (não que a generosidade seja uma qualidade que eu queira desencorajar). Admiro Warhol tanto quanto Cézanne; talvez Warhol esteja para a diversão assim como Cézanne para o prazer. Nossa, obrigada pelo buquê de fotos, que presente virtual mais esplêndido nesta quarta-feira de outono. Você acaba de curar a exposição dos sonhos, só que numa escala pequena e digital. Diversão e prazer. Eu não conhecia Zurbarán e fiquei encantada de conhecê-lo. Chardin é um velho amigo que adorei rever. E Morandi, sempre uma bênção. Não sei se meu coração acelera ou pára. A primeira metade de minha viagem à Itália foi um passeio de carro alugado. Fiz o tal “roteiro de Piero della Francesca”: Arezzo, Sansepolcro e Monterchi. Achei Piero tão moderno quanto Mantegna. Em um registro diferente (mas na mesma sinfonia), encontrei uma citação cuja precocidade você certamente vai apreciar: 172 Charles Baudelaire a Édouard Manet (1865) (...) vous n’êtes que le premier dans la décrépitude de votre art. Nossa mãe do céu, será que o Baudelaire disse isso mesmo? E olha que eu nem sou do tipo cético. Mas é tão em cima! Aquele velho biruta francês. É gozado pensar no Manet como um radical. Quanto a Piero, nossas coincidências estão ficando demais. Piero della Francesca é simplesmente o motivo pelo qual fui parar na Itália. Para dizer a verdade, minha vida gira em torno da paleta de Piero. Fiz peregrinações a todos os lugares de seu roteiro. A Madonna del Parto é minha pintura favorita. Não acredito que tenha sido removida da capela de Monterchi. Pode ficar tranqüila que a Madonna del Parto está muito bem exposta, numa vitrine climatizada, ainda dentro da capela do cemitério. Adoro os tons pastéis de Piero e também sua planaridade. Acho que ele fez pesquisas de perspectiva porque precisava ser de sua época, mas o coração dele pertencia à cor. Ele não queria saber do novo estilo, anatomicamente saliente, que logo se tornaria dominante (apesar da restauração da Capela Sistina revelar como os tons pastéis de Michelangelo não eram muito diferentes dos de Piero). O grito cromático tem um quê de eros, assim como a austeridade tem um quê de tânatos. Esse é o calcanhar-de-aquíles da Bauhaus, a matriz do meu gosto moderno. Mudando de assunto, quando vamos nos encontrar? Você está fazendo papel de tímida? Curioso o que você disse sobre o coração do Piero não estar no estudo da perspectiva — nunca prestei atenção nisso porque a perspectiva não me interessa, mas nunca me ocorreu que ele pudesse sentir o mesmo. Adoro essa idéia! E papel de tímida é para adolescentes, para meninas com tempo a perder. Estou brincando, acho que a busca de um bom parceiro está em nossos genes. E o caçador sempre espera, e se diverte, com uma boa caça. Ele se decepciona se ela não ocorre e não corre. E correr do caçador é instintivo. A resistência só atiça as chamas da paixão porque a paixão nasce da projeção. Ela tem o efeito oposto sobre o afeto, que se baseia em empatia. Não gosto de caçar, de ser caçado, da emoção da caça, da emoção de ser caçado, de estratégias, papéis, falsa modéstia, falsa timidez... Não me decepciono, muito pelo contrário, se nada disso acontece. Quero intuir logo a possibilidade de uma ligação profunda. Hosana para tudo o que você disse. Intuição é a palavra chave aqui. Intuição, instinto. Siga seu coração, ouça seu estômago. Acabam de descobrir que existe tecido neurológico no estômago, resquício da época em que nossa vida dependia da intuição do perigo antes que ele ocorresse. Que loucura! Ainda somos mamíferos, portadores de mecanismos atávicos. Vou passar as próximas duas horas e 45 minutos sem pensar DE JEITO NENHUM em ligar para você e aí, às 10, simplesmente voupegarotelefoneeligar. Poderia estar ligando agora, mas estou com vergonha. Bauhaus, hein? Acabo de reler o que escreveu e fiquei aliviada de saber que você consegue reconhecer o aspecto tânatos da sua matriz de gosto. Ainda bem que discordamos em alguma coisa. Então na nossa casa eu terei meu escritório estilo Bauhaus, e você terá um boudoir florido no estilo não-Bauhaus. O que houve? Parecia que você estava procurando sinais de que nosso encontro não estava indo bem enquanto ele acontecia. Que você havia decidido, em algum nível, que ele não seria bom. Posso estar enganada. Não sou boa de analisar as coisas no calor do momento. Bem ou mal, vivo muito no presente, só posso analisar depois da experiência. Em todo caso, percebi que você estava incomodado e eu não sabia com o quê. Por causa disso, também me senti desconfortável. Espero que não esteja sendo injusta, como quem tenta botar a culpa nos outros. Simplesmente não entendo o que aconteceu. A divergência sobre Duchamp gerou um mal-estar, e isso criou distância entre nós. Pensei: Será que temos a ver um com o outro? Mas em vez de fazer o que costumo fazer, que é varrer as preocupações para baixo do tapete, quis conversar sobre o mal-estar. Achei que, se puséssemos tudo às claras, se falássemos abertamente do problema, isso poderia até aproximar-nos. Certamente não quis ser analítico e gostaria que você me desse um puxão de orelha sempre que eu for assim. Estou entrando em pânico, tentando repintar esse arranjo #$%&#$ de romãs enquanto tento decifrar nosso encontro, enquanto tento decifrar nossa tentativa de decifrar nosso encontro. Está sendo impossível, pois não sou boa malabarista. Você me perdoa se eu alegar falta de tempo? Prefiro me encontrar com você na volta do que responder sem a devida consideração. Estou distraída demais e preciso me acalmar. O táxi chega daqui a uma hora. Escrevo quando voltar de Paris. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 347 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 348 Queria expressar o alívio que sinto ao descobrir que eu não sou a pessoa mais maluca que você conhece, NEM DE LONGE! Diverti-me à beça no seu aniversário e adorei todas as pessoas, suficientemente cosmopolitas e, nem preciso dizer, pouco convencionais. Apaixonei-me loucamente (platonicamente falando) por sua amiga advogada. O cartão dela ficou em algum lugar em minha bolsa. Quero comprar 173 para você uma estatueta de porcelana decorativa — uma pastora e duas ovelhas — que vi anunciada na Sertão Vogue!!! Ai, é duro escolher um presente para um homem que, por um lado, tem tudo, e, por outro lado, é um minimalista. Eu sei, eu sei... Eu também fico pela hora da morte quando minhas amigas me dão vasos barrocos, esse tipo de coisa. Aí sempre que elas vêm tomar chá eu não só tenho de resgatar os objetos como lembrar em que diabo de lugar eu escondi. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 349 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 350 Segundo Olympia, há muita gente por aí com medo de intimidade. As pessoas se encontram mas ficam na superfície, sem mostrar quem realmente são. Os homens escolhem mulheres com quem se sentem à vontade, mas o que eles querem mesmo é uma paixão profunda. Afinal de contas, quem liga se a tampa da privada fica levantada ou abaixada? Esse tipo de coisa se resolve, mas atração não se fabrica. Achei uma delícia sua mensagem. Que jeito interessante de se apresentar a alguém, por meio de acordes RRR. Infelizmente, não sou boa o suficiente para tocá-los, mas gostaria que você me fizesse uma demonstração. Mas antes uma ressalva: tenho medo de homens com mais de 40 anos porque todos os que namorei nessa faixa me acabaram machucando. Um homem dessa idade deveria conhecer-se e saber o valor de ter uma mulher em sua vida. O primeiro me tratou como um objeto; o segundo falava de amor apenas como uma tática de sedução; e o terceiro era um doce quando tinha trinta e tantos anos, mas depois ficou tão infeliz com tudo que não possuía que descarregava a frustração na única coisa boa que tinha na vida. E olha que cada um deles parecia bem resolvido. Portanto espero que você entenda minha hesitação. 174 Sinto muito que você tenha passado por essas experiências com homens de 40 anos. Não faria sentido lançar uma defesa geral da categoria, pois não tenho nenhum interesse nela enquanto categoria. Poderia até falar de falácias estatísticas, mas duvido que você se interessasse, porque sua precaução é resultado da vivência. Imagino que a maioria dos homens não daria certo com você, assim como a maioria das mulheres não daria certo comigo, mas não creio que isso seja devido à idade mais do que a qualquer outra variável, como classe social, educação, profissão, nacionalidade, histórico emocional, traumas de infância etc. Suponho que não seja tanto uma questão de idade, não é? Ou mesmo as estatísticas às quais se refere, mas a intenção por trás do que a pessoa faz e a capacidade de comunicá-la. As intenções podem começar puras para os jovens, tornando-se turvas mais tarde. Acredito que seja na infância e não mais tarde que ficamos turvos. Nossas matrizes fundamentais são formadas muito cedo e nos condicionam tão completamente que nem temos consciência delas. Dizemos que elas são simplesmente nossa maneira de ser. Com certeza existem diferenças entre natureza e cultura, mas me parece impossível, na prática, distinguir uma coisa da outra. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 351 200fantasias 175 5/11/07 9:35 AM Page 352 Ontem fui até a praia catar conchas. Havia umas pessoas andando a cavalo na beira do mar, e uma excelente amazona estava galopando para cima e para baixo em alta velocidade sobre um cavalo preto magnífico. Foi emocionante ver aquele animal musculoso, correndo na maior vibração, as narinas ofegantes, o corpo brilhando de suor. Quando eu era menina, andei muito a cavalo na fazenda onde cresci. Com o dinheiro que ganhei da venda de umas ovelhas, comprei um cavalo que se revelou um saltador sensacional, mas tive de vendê-lo quando voltamos para a cidade. Eu assobiava para os animais da janela do segundo andar da casa onde morava, e, enquanto corria por uma estradinha de terra que levava às cocheiras, os cavalos e as ovelhas vinham me encontrar no ponto onde duas cercas se juntavam no fundo de um campo aberto. Lá eu pulava para cima do meu cavalo, e saíamos correndo, sem sela nem estribo. Ele nos fazia voar sobre cercas de arame com mais de 1,5 metro de altura. Rapidamente aprendi a agarrá-lo com grande firmeza. Eu tinha dez anos de idade... No caminho de volta da praia, perdi-me andando pelas dunas e fui parar numa floresta. Fiquei completamente encantada. Por mais que aprecie as grandes cidades e tudo que elas oferecem, delicio-me com os cheiros e os sons da floresta, com um bom pedaço de areia, com um caminho de montanha ou um campo aberto de papoulas, lavandas ou girassóis. Não conseguiria jamais viver em São Paulo se não houvesse o parque Ibirapuera ao lado. Sinto-me com um pé em cada mundo. O que me conforta é saber que consigo extrair energia de muitas fontes e que aproveito cada momento, onde estiver, adaptando-me às situações, aos lugares e às maneiras de pensar. Minha terapia tem sido uma viagem maravilhosa de autodescoberta e reinvenção. Várias idéias e conceitos se tornaram bons amigos, apesar de ainda precisarem ser decantados, expressos e reiterados até se integrarem ao corpo. O analista favorito de minha mãe era Otto Rank, em boa parte porque ela se identificava com a necessidade de separação e individuação entre a criança e a mãe. Que ironia que ela não tenha conseguido fazer isso comigo. Mas faz sentido. O que mais nos atrai é sempre aquilo que não conseguimos controlar. Minha mãe freqüentemente não seguia os próprios ensinamentos, e isso lançou marolas psíquicas em direção a meu futuro. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 353 200fantasias 176 5/11/07 9:35 AM Page 354 Pilar me contou a verdade sobre como a filha havia morrido. Eu tinha ouvido uma versão até mais triste, aumentada pela lei natural dos rumores. Apesar dessa conversa sombria, passamos uma tarde agradável, com o filho dela ao lado. Montamos uma árvore de Natal, do tipo inflável, fizemos uma colagem que inundou de cola branca sua mesa Saarinen e ensaiamos um teatrinho para os bichos empalhados do menino. O telefone não parava de tocar, e, sempre que ela atendia, começava o alvoroço. O filho sabia que, enquanto o gato estava ao telefone, os ratos podiam correr soltos. Falando em gatos, ontem gritei com Ágata, minha gata, porque ela derrubou um vaso. O tamanho do grito foi tão inusitado na história de minha repressão que fiquei surpreso. É para isso que estou fazendo análise, para entrar em contato com minhas emoções e aí perder o controle delas? Você não deve sentir-se mal por gritar com a gata. Perder o controle pode ser bom e permite que exerça o que o faz humano, que é recuperar o controle perdido. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 355 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 356 Espero que você não tenha alergia a gatos porque eu tenho três (gatos, não alergias). Muito tempo atrás, quando eu ainda era casado, ratinhos começaram a aparecer em nosso apartamento. Alguém nos disse que cheiro de gato espanta rato, por isso pedimos um siamês emprestado de uma criadora que trabalhava em meu escritório. Não tive bichos na infância porque minha mãe tinha medo que eles mijassem nas cortinas. Não tendo sido, portanto, vacinado contra esse tipo de amor, fiquei apaixonado pela gata emprestada, cujo nome era Desilú. Os ratinhos prontamente sumiram, mas a gata foi ficando. Como ela era de altíssimo pedigree, um belo dia a criadora a levou embora para cruzar com um garanhão bigodudo que morava em outro estado. Ela voltou grávida (a Desilú, não a criadora), e alguns meses depois nasceu a primeira ninhada no pronto-socorro do nosso banheiro. Cumpri ansiosamente o papel de parteiro, tendo 177 memorizado o capítulo relevante do manual de instruções. Tive de cortar cinco cordões umbilicais com uma tesoura, pois Desilú era uma toupeira completa nesse departamento (os instintos vão se perdendo nos puros-sangues). Um dos pequeninos nasceu morto. Tentei em vão ressuscitá-lo com respiração boca-a-boca, conforme sugeria o livro. Cuidei meticulosamente dos sobreviventes, pesando-os todos os dias até passar o perigo maior, conforme sugeria o livro. Durante os seis meses seguintes, a criadora foi vendendo os quatro, um por um, para colegas em Boston, Toronto, Helsinque e Tóquio. Quatro vezes nosso coração se partiu. Pedimos para ficar com dois da ninhada seguinte. Desilú fez outra viagem e, pouco tempo depois, presidi mais um parto, de quatro filhotes. Os pequenos desabrocharam, e queríamos ficar com todos. Mas um teve de ir para os donos do pai. Ficamos com os outros três e devolvemos a valorosa mãe para a dona. Anos mais tarde, quando nosso casamento acabou, minha mulher ficou com o filho e eu fiquei com os gatos. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 357 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 358 Como algumas baianas que conheci, Regina parece distraída, mas é fogosa e tem opiniões fortes. Seu senso de humor é irreverente e ela bufa quando ri. Regina adora dançar até o sol nascer — melhor do que qualquer análise, diz ela (e ói que ela é terapeuta). A mensagem dela não era típica de um primeiro contato, mas ela justificou-se dizendo que meu perfil também não era típico. 178 Além de terapeuta, Regina era pastora, mas (felizmente) nada missionária. Almoçamos em meu restaurante mexicano favorito, e sua companhia apimentada foi um prazer. Regina falou do namoro mais recente, com um homem cuja filha não conseguia desgarrar-se do pai, apesar de a garota já estar na faculdade. Quando Regina e o homem se encontravam, às vezes ele trazia a filha. Esse foi um bom aviso aos navegantes: se você enche uma criança de um tipo de afeto que inibe a auto-suficiência, isso lhe retarda o amadurecimento. Quanto a nosso encontro, constatei, apesar do prazer que me deu, que os bufos depreciam os bufantes, da mesma maneira que quem masca chiclete me remete a camelos & dromedários. Como não sei a diferença entre um e outro, isso, por sua vez, me faz pensar em golfinhos & botos, jacarés & crocodilos... 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 359 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 360 Algumas mulheres declaram, nos perfis, que procuram homens que têm boas relações com as mães. Sempre achei isso curioso porque a rivalidade entre esposas e sogras é uma tradição. Pela lógica da emoção, as mulheres deveriam querer o contrário. A ficha só caiu no dia em que uma falou que não queria continuar saindo comigo porque eu parecia demais com o pai. Ela disse que tinha acordado para o fato de que procurava homens como ele para continuar revisitando o drama 179 da infância. Quando eu despertava essa memória, ela se punha na defensiva e, como a melhor defesa é o ataque, desferia uma fubecada sem que eu soubesse por quê. Entendo que é por isso que, conscientemente ou não, algumas mulheres querem homens que têm carinho pelas mães. Caso contrário, poderão ser vítimas de uma reencenação, daquelas que se repete como farsa. O perigo é saltar da frigideira dos matrifóbicos e cair no fogo dos edipianos. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 361 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 362 Sandra é uma acadêmica de esquerda que fala muito com as mãos e ri dos próprios erros. Mesmo tardia, sua resposta me deixou feliz porque estava tentando bolar alguma maneira de insistir. Uma vozinha em meu ouvido dizia: Você não se manca que ela não respondeu?, mas as campainhas que soaram quando li seu perfil tinham sido eloqüentes demais para desistir sem uma segunda tentativa. Vou começar com uma confissão: sintome ameaçado pelas suas raízes operárias. Apesar de contarem com minhas simpatias intelectuais, elas representam uma espécie de alteridade hostil à minha formação burguesa. Ambos os lados de minha família estão no Brasil desde o século XVII, o que me faz carregar uma pátina de boas maneiras e de noblesse oblige. Temo que o cerne oco e hipócrita dessa pátina seja exposto pelo contato com o ressentimento proletário. Mas, em minha defesa, permita-me dizer que, depois de vinte anos operando na modalidade “ascensão do homem de negócios,” chutei o balde. Vivo dos frutos de minha própria mais-valia e não exploro nenhum trabalho alienado. Com relação a seu otimismo, também sou assim, mas comigo isso talvez seja um mecanismo de defesa. Identifico-me com o protagonista de A Consciência de Zeno, de Ítalo Svevo, que transforma toda rejeição em sinal de progresso. Voltando ao que você escreveu, não posso gabar-me de ser humilde. Sempre fui cheio de opiniões e orgulhoso de meus juízos estéticos. Minha tendência à arrogância só é temperada pelo desejo de ser amado. Ultimamente me dei conta de como é nocivo o salto entre eu não gosto disso e isso não é bom. É uma manobra defensiva que precisa ser desarmada. 180 Nossa! Sinto-me lisonjeada por receber uma resposta tão detalhada. Reli seu perfil e invejo seu status de rentier. É bom (e corajoso) pular fora de tempo em tempo. Também parei de trabalhar alguns anos atrás, e isso permitiu que eu estivesse no lugar certo na hora em que apareceu meu emprego atual. Apesar de ter mencionado raízes operárias, hoje em dia sou tudo menos isso. Meu irmão, que é banqueiro, diz que sou uma “liberal de limusine” e, tirando o fato de não ter aucune limusine, a descrição acerta em cheio. Só mencionei as raízes porque este site parece ter bastante gente de classe média-alta, e não me queria apresentar de maneira falsa. Cresci no interior (mas não tenho sotaque de intériorrr), meu pai foi bombeiro e tenho dois irmãos bombeiros. Acho que a nobreza é muito mais uma qualidade da alma do que do sangue (apesar de ambas poderem coexistir). Atualmente dou aulas numa faculdade e, quando não estou exausta (25 anos de cortes orçamentários significam mais trabalho para os felizardos que são professores titulares), orgulho-me de fazer um trabalho que considero significativo. O corpo discente é tão variado quanto as Nações Unidas. Além disso, muitos de meus alunos são, como eu, universitários de primeira geração. Vivo para aquele momento em que vejo nos olhos deles a luz de uma nova idéia (não é todo dia que acontece, mas acontece). Gostei de seu comentário sobre ser uma obra em desenvolvimento. Você já leu Proust? Atualmente estou relendo e dando aulas sobre os sete volumes. Sua essência é a natureza mutável de tudo o que é humano (personalidade, percepção física, valores sociais/estéticos/morais, aparência). Adoraria ver com você o documentário sobre o Derrida. Estava justamente tentando pensar em quem gostaria de ver um filme desses comigo porque, apesar de ter muitos amigos intelectuais, é preciso um tipo específico de personalidade para se interessar por esse tipo de coisa. Desqualifiquei meus colegas porque não queria ter de bancar a inteligente. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 363 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 364 Obrigado pela linda mensagem. Você pode me mandar seu número de telefone? Seria bom conversarmos e nos conhecermos um pouco mais. Gosto de suas fotos — sorriso aceso e olhos cintilantes. Quando você ligou, estava com meu filho, por isso não estava inteiramente presente. Você deve ter algum dom porque, mesmo assim, a conversa fluiu tão solta que eu não queria desligar. Eu nunca teria adivinhado, o que me faz apreciar sua explicação mais ainda. Como está seu sábado? Vou correr no parque de manhã com meu clube de corredores, mas à tarde estou livre. Obrigado por deixar um recado com todos os horários possíveis em minha secretária eletrônica. Assim a gente consegue combinar alguma coisa logo em vez de ficar trocando recados. Agora vou ao cabeleireiro cortar o cabelo. Sábado seria perfeito, se você não for celebrar com seus colegas ébrios de endorfinas. Espero que seu corte tenha ficado bom; a lua está na fase certa? 181 Foi um excelente dia, capilarmente falando. Estava passeando, exibindo o cabelo recém-cortado, cheio de mechas douradas, quando passei por um balcão que vendia bilhetes de teatro pela metade do preço. Estava um frio desgraçado, não havia fila, e me perguntei: “Por que não?” Não ia ao teatro há séculos, e foi um grande prazer. Uma peça bem escrita e estimulante, com muita nudez masculina. Fico feliz em saber que você gostou da peça, mas essa história de nudez masculina, não sei não... Mortifica-me pensar que você foi exposta a tal coisa. Entre suas sugestões, a retrospectiva do Rosenquist é que me interessa mais, especialmente se você gosta do trabalho dele, porque aí talvez eu possa aprender alguma coisa. Sempre encarei a obra dele como um samba de uma nota só, mas estou disposta a mudar de opinião. Nunca fui muito fã do Rosenquist também, mas uma retrospectiva é sempre uma oportunidade de confirmar, ou mudar, conceitos e preconceitos. Vamos ver se esse sambista tem mais notas no repertório? Na pior das hipóteses, sentiremos a mágica daquele vão central do Niemeyer. Só para dizer que achei muito divertido confirmar meus preconceitos sobre o Rosenquist em sua companhia. Gostaria de fazer outros programas com você. Quem sabe depois das festas? R — foxtrote de uma nota só. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 365 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 366 A gente é mais feliz com alguém do que sozinho, mas a gente só pode ser feliz com alguém se a gente for feliz sozinho. Parece um paradoxo, mas não é, 182 como demonstra uma análise combinatória: infeliz sozinho feliz sozinho { { infeliz com alguém feliz com alguém infeliz com alguém feliz com alguém comum pode durar ilusório pode durar possível não pode durar ideal pode durar 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 367 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 368 Venho montando uma coleção de arte desde a adolescência e gostaria de namorar uma conservadora para restaurar os estragos sem ônus. Mas talvez sejamos incompatíveis, pois eu gosto mais de Veneza e você de Florença. Bem, veja só, essa relação não vai dar certo porque minha especialidade é tapeçaria européia, assim não poderia restaurar nada de sua coleção. E aí tem essa história de Veneza versus Florença. Mas, já que Veneza está afundando, talvez você tenha de trocar de preferência (dito com um sorriso). Mudando de assunto, seu e-mail não foi exatamente... ah, qual é a palavra? Simpático? Deixe para lá, considere um sinal de que sou realmente generosa e curiosa. Você começou a colecionar arte na adolescência? Eu também. Depois mudei para livros raros. Agora só coleciono coisas que encontro pelas minhas andanças. Mas me conta um pouco de sua história. Prometo fazer o mesmo. Golpe baixo dizer que Veneza vai afundar! Já reparei que você é perfeitamente capaz de dar um chute abaixo da cintura, por isso vou revidar dizendo que sua preferência por tapeçarias européias bolorentas, rançosas, comidas por traças é tão, como posso dizer, desligada de nosso tempo. Pense bem e coloque-se em minha posição: teria de vender toda minha coleção de arte, aprender tudo sobre tapeçaria européia e montar uma coleção dessa tralha só para economizar nas restaurações. E quanto à sua querida Florença, quando os guelfos florentinos, um bando de toscos, conseguiram derrotar os refinados gibelinos sienenses, venceu a força bruta, permitindo que o estilo anatomicamente obcecado e humanisticamente cansativo de Signorelli e Michelangelo ganhasse a guerra contra a estética bizantina de Siena e Veneza. Em outras palavras, foi politicagem pura. E por que você não venderia sua coleção e começaria de novo com tapeçaria européia? Claramente, você não percebe como esta forma artística é superior. Pergunto-me que tipo de pessoa você é se não começou colecionando tapeçaria. Por que escolher arte contemporânea se você pode pendurar tapeçarias lindas, cheias de fios dourados, nas paredes? O problema de sua teoria sobre a mudança dos rumos da arte renascentista é que você está esquecendo a influência de Roma. A verdade é que existe uma estátua de Moisés no túmulo de Júlio II porque Júlio II assim o quis. Idem para o tema da Capela Sistina. Passando agora para minha história pessoal: nasci em Campinas (mas não uso cabelo bufante), cresci e estudei lá. Comecei a trabalhar na Biblioteca Nacional com 17 anos. Minha primeira idéia era virar curadora de manuscritos iluminados, mas mudei quando vi o que fazia a equipe de restauração. Todos repararam em minha habilidade com a agulha e sugeriram que eu trabalhasse com têxteis. Depois de me formar, fiz estágio e trabalhei na Itália. A seguir, mudei-me para São Paulo, onde vivo desde o começo dos anos 90. Não era minha intenção ficar por aqui, mas hoje em dia adoro. Dou aulas e montei um pequeno programa que ensina restauração. Faço consultoria para uma vila em Florença, daí minhas aventuras italianas. Mudando de assunto, amanhã vou ao dentista tirar um siso. Vai ser bem divertido. 183 Sua preferência precoce por tapeçarias, livros e manuscritos sugere um temperamento diferente do meu. Seguramente a seu favor, pois são tesouros calmos e íntimos, comparados com o exibicionismo crasso da pintura e da escultura contemporânea. Numa raia diferente (mas talvez relacionada), também me pergunto se você se sente confortável com a modernidade, pois esses interesses falam de um tempo anterior, de um tempo de música de câmara, ao passo que me sinto intensamente em casa na modernidade cacofônica (ainda que do meu jeito calmo). A influência de Roma e o clientelismo do Papa só reforçam meu argumento. Roma tomou o partido de Florença, exaltando o lugar do homem no mundo (humanismo, saca?) contra a corrente escolástica, obscurantista. Na Montanha Mágica há um debate genial entre as duas vertentes, encarnadas em dois personagens inesquecíveis. Achei divertido o comentário sobre o cabelo bufante. Engraçado como o cabelo pode separar o urbano do suburbano. As pessoas de certas partes do país realmente parecem ter penteados mais kitsch. No filme Working Girl, a transformação do personagem principal (interpretado por Melanie Griffith) de secretária em banqueira é sinalizada por mudanças no penteado. Também diria que a perda de seu siso é uma metáfora, já que você prefere Florença a Veneza. Mas chega de provocação, especialmente com alguém que deve estar com a mandíbula adormecida. Isso mesmo, chute uma moça quando ela está combalida, ou com um dente a menos. Sabe de uma coisa, você não está acumulando muitos pontos. Mas, veja só, pintura e escultura são isso mesmo: moda. E quem quer seguir a manada? As pessoas não sabem como reagir quando você declara: “Tenho algumas iluminuras medievais e primeiras edições de Guimarães Rosa”. É que nem usar branco no verão: não uso porque todo mundo usa. Mas eu conto a história da minha vida, e a única coisa que você se digna a comentar é meu parênteses sobre cabelo? A maioria das pessoas se impressiona com o fato de eu ter começado a trabalhar numa instituição importante aos 17 anos. Hum, vide comentário sobre acumular pontos… Você precisa ser mais generosa porque sou novato nesse jogo de seduzir por irritação, embora me sensibilizem suas tentativas de me fazer sentir competente. Posso ser um chato com você, mas também posso ser sutil. Não só já havia prestado homenagens à sua admirável “contrariedade”, como também já havia admirado sua precocidade, apenas não de maneira óbvia (tipo: putz grila, com 17 anos de idade!), que nem os outros sortudos que você anda conhecendo por aí. E você tem poucos direito de reclamar da abrangência de meu comentário sobre sua vida quando você não disse uma palavra sequer sobre a minha e, em vez disso, dedicou todas as energias a contestar minhas teorias mal cozidas, porém sábias, sobre a cultura ocidental. Espero que seu incômodo dental esteja mais brando e que os dotes culinários de sua mãe sejam um belo curativo. Passado o feriado, gostaria de expandir nossas hostilidades, deflagrando uma bela guerra de pastelão. Se você fosse uma moça normal e usasse branco no verão, um bolo de chocolate serviria muito bem, mas, como não usa, vai ter de ser um bolo de baunilha. Claro que não ia comentar sobre sua vida pessoal. Faz parte do mantra: “Sou mulher e tenho de ser recatada e fazer jogo duro”. Você esperava que eu comentasse e, por não corresponder à sua expectativa, aticei seu interesse. É o que as revistas de mulher recomendam. De qualquer jeito, não posso escrever mais. Ainda tenho algumas coisas a fazer antes de pôr o pé na estrada junto com a massa da população. Tenha um excelente feriado, e vamos deflagrar essa guerra quando eu voltar. (...) Queria agradecer o encontro de ontem. Foi muito divertido. Foi bom conversarmos pessoalmente sem que uma nova guerra entre guelfos e gibelinos eclodisse. Gostaria de repetir a dose. Me dá um alô quando tiver uma chance. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 369 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 370 Tania quer um encontro que misture textos semióticos com bons vinhos, apesar de não se achar a pessoa ideal para destrinchar o jargão de ambos. Na faculdade, leu teoria semiótica de maneira quase turística: em vez de mergulhar no assunto, pinçou apenas o que queria. Sua mensagem dizia: 184 “Obrigado pela interessantíssima citação sobre como a historicidade determina o impacto da experiência. Adoro a imagem do buraco na ordem simbólica que é gerado pela incapacidade de significar. Acho que você gostaria de ler o Thomas Ogden. Ele é conhecido como intérprete da Melanie Klein e das teorias de relações objetais e já escreveu sobre Freud, Bion, Winnicott etc. Escreve maravilhosamente bem e é especialmente fascinante a respeito da subjetividade. Fiquei me perguntando o que Ogden diria sobre historicidade... Concordo que a perspectiva linear de causa-e-efeito do modernismo gera uma visão limitada dos movimentos culturais, políticos e artísticos. Para os teóricos das relações objetais, a ascensão à subjetividade (frouxamente associada à entrada na ordem simbólica de Lacan) implica o começo da historicidade — a experiência do tempo — e da existência do eu, do outro e das relações evoluindo no tempo. A importância central da historicidade situa-se na percepção do eu como algo separado do objeto (mãe). A construção da subjetividade pressupõe um entendimento de nossa capacidade de machucar o outro (mãe) sem destruí-lo; de tolerar uma mistura de amor e ódio (ambivalência) pelo objeto. A noção de causa-e-efeito informa um pouco essa concepção, e, no entanto, do ponto de vista das relações objetais, as emoções intensas freqüentemente levam à psicose. Todos vivenciamos momentos psicóticos quando o objeto se torna mau ou imperfeito, ou quando a coisa se transforma em si própria, querendo dizer que a capacidade de interpretar (simbolizar) desaparece. Algumas pessoas vivenciam mais do que apenas alguns momentos, é claro. Acredito que, durante os estados mentais criativos, vigora um tipo de consciência mais primitiva. Os teóricos das relações objetais chamam esse estado de posição paranóico-esquizóide (mais primitiva — anterior à subjetividade) ou posição depressiva. Ironicamente, a posição depressiva é associada a maior maturidade. Voltando ao que você escreveu, não sei bem como essas idéias se relacionam à idéia da evolução histórica como uma espiral, mas imagino que dê para enxergar as constantes oscilações entre estados ou posições como um tipo de espiral (seja bondoso comigo, estou viajando)”. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 371 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 372 Não compartilho sua paixão por climas frios, mas achei incrível você ter saltado de pára-quedas enquanto rodava um filme na Bolívia. E gostei do jeito como escreveu Ser com S maiúsculo. Uma heideggeriana, com certeza. Falando em filosofia, gostaria de entender melhor seu conterrâneo Wittgenstein. Interessam-me as reflexões dele sobre a natureza tautológica da linguagem e as armadilhas nas quais tropeçamos com nossas construções gramaticais. Quanto à metafísica, gostaria de acreditar em sua existência, mas precisaria de provas ou intuições convincentes. 185 O frio me estimula e revigora, ao mesmo tempo em que me nutre e me centra. Mas tenho de admitir que poucos são assim. Sendo de um país tropical, você prefere o calor? Ou isso é um clichê? Saltar de um avião não é tão difícil assim. Juro! Adoraria discutir metafísica com você, mas será que é necessário ter provas para ter fé? Um artista tem fé em sua capacidade antes de se afirmar no mundo, não? Durante o almoço, ela foi fria como o inverno, nada estimulante ou revigorante. A explicação mais plausível é que decidiu de cara que eu não era seu tipo (jamais saltaria de um avião). De minha parte, mesmo quando não acho uma pessoa atraente, faço o possível para ser boa companhia. Estarei sendo falso? Será que a austríaca foi autêntica, como teria sido seu (notoriamente honesto) conterrâneo? Ou será que tenho boas maneiras e ela não? Ou será que minhas boas maneiras acobertam o medo de que não gostem de mim? Ou será que todas essas perguntas retóricas (inclusive esta) são armadilhas lógicas em que caem minhas construções gramaticais? Pelo menos rachamos a conta. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 373 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 374 Depois de tomar alguns copos, as histórias que Ula conta do mundo italiano da moda recuperam memórias perdidas e já fizeram homens crescidos bater na mesa de tanto rir. Eu também tenho histórias, mas bem menos fascinantes do que as de Jumpha Lahiri, sua escritora favorita. Vamos trocar histórias? Sempre admirei a moda italiana, por isso me surpreende ver como muitas italianas — mesmo com 2.000 anos de acesso subliminar ao gosto mais requintado da civilização ocidental — ostentam cortes de cabelo provincianos e usam roupas que devem enrubescer os seus notáveis costureiros. Os italianos, por outro lado, usam ternos alinhados, bem justinhos, que fedem a acqua di gigolo. Sua experiência deve ter sido diferente, claro, pois você é do ramo. As pessoas que você conheceu deviam saber muito bem o que faziam. Um amigo me convidou para jantar na casa dele ontem à noite, e havia um romano entre os convidados. Naturalmente, a conversa chegou à moda. Ele disse que os italianos começam olhando para os pés. Se os sapatos passam no teste, você é considerado digno de maior inspeção, e os olhos se levantam para examinar a roupa. O visitante também comentou que os italianos não hesitariam em virar sua gravata para olhar a etiqueta. Acqua di gigolo, 186 conheço esse cheiro. Terno verde-oliva apertado e sapatos de couro amarelado. Passa-se por um tipo desses na rua, e a água de colônia fica horas nas suas narinas. E qualquer contato físico faz você acordar na manhã seguinte jurando que o homem passou a noite em sua cama, tão forte o perfume. Quanto ao pessoal do mundo de moda italiano, ou estão altamente arrumados e cheirosos, ou adotam um visual cuidadosamente informal. Tipo jeans chique surrado e barba malfeita, tudo na medida certa. Eu tive um chefe que era meticuloso com os sapatos. Um dia declarou que a maneira de tratar os sapatos era a medida do caráter de um homem. Como eu prestava pouca atenção aos meus, quis responder que essa era apenas a medida de como um homem tratava os sapatos. Mas fiquei quieto, é claro. Mudando de assunto, hoje visitei uma vidente que uma amiga tinha achado fantástica. Não costumo fazer isso, mas volta e meia procuro testar meu ceticismo. Nada inacreditável aconteceu, por isso continuo cético. Mas não custa nada (bem, R$300,00) investigar essas coisas de vez em quando. Tenho muitos amigos que acreditam em videntes. Eu acredito em videntes também, mas prefiro não saber de nada. Não quero tratar cada acontecimento como um “sinal”; prefiro me surpreender. Nisso eu me conheço: se meu futuro estivesse escrito, eu atribuiria significado a tudo. As mulheres já não são assim? 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 375 200fantasias 187 5/11/07 9:35 AM Page 376 Hoje de manhã Papai Noel passou lá em casa no meio de uma chuva fina, usando bermudas (o uniforme do Sedex) e tremendo de frio. O cartão dentro da caixa dizia: Mais uma pedra rolando ladeira abaixo, uma que você conseguiu agarrar, mesmo coberta de graxa. A subida foi íngreme, mas a vista fez valer a pena. Ser uma sonhadora, uma construtora e uma mãe é uma trindade digna de canonização. Aos 40 você é a pessoa linda de sempre, com as mesmas rugas de ontem, provocando mais desejo do que nunca. A verdade é que não me sinto tão infeliz na virada dos 40. Há poucas opções de consolo quando não se tem dinheiro, senão daria para afogar a (pouca) tristeza no shopping. Mas sei que o alívio seria apenas temporário. O que espanta a essência natural e orgânica da amargura é lembrar que estou dando o melhor de mim, o que tenho e o que não tenho, de modo coerente com as minhas posturas. Pena você estar aí e eu aqui, a dez horas de distância. Se vivêssemos na mesma cidade, isso poderia dar em alguma coisa. Mas precisamos nos contentar com essa amizade, uma bênção. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 377 200fantasias 188 5/11/07 9:35 AM Page 378 Minha filha ri com o corpo inteiro. Ela corresponde às minhas fantasias de salvação, cada vez menos por ser minha filha e cada vez mais por ser quem ela é. Muito cedo, revelou fascinação por balé e ópera, interesses que eu não havia desenvolvido. Antes de dormir, assistimos sempre a um ou a outro, eu pegando carona, nós aprendendo juntos, consolidando esse filão antes que a Disney tome conta. Não pense que sou elitista; amo cultura popular, apenas sei que não preciso promovê-la, posso confiar no mercado. Minha filha não foi batizada porque os pais são agnósticos. Mas me pergunto se ela não deveria receber uma educação religiosa para ter mais informações e chegar às próprias conclusões. Só assim ela estará vacinada e criará anticorpos contra as promessas de redenção eterna. A salvação é uma tentação que não se pode subestimar. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 379 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 380 Viviane acha que os perfis oferecem um palco para nosso lado egocêntrico declamar virtudes e façanhas. Fiquei interessado em sua ascendência cubana, mas também com medo que você fosse uma dessas anticastristas raivosas que existem aos montes em Miami. Não que eu seja especialmente fã do Fidel, mas a ideologia é um elemento importante da nossa auto-representação, e eu prefiro manter distância de qualquer postura radical (de ambos os lados). Então congelei como uma marguerita quando li que você se considerava “conservadora”, mas aí pensei: Bem, ninguém é perfeito (eu certamente não sou, embora seja quase). Tenho um pressentimento bom sobre você, uma intuição de que não teremos de nos defender um do outro. Bem, meu amigo “liberal”, se você pensa que pode escapar das repercussões de seus comentários tipicamente esquerdistas, baseados em distorções divulgadas pelos meios de comunicação, está muito enganado! Apesar de suas afinidades políticas com a esquerda liberal, fiquei curiosa em te conhecer por causa da (aparente) inteligência. Afinal, todo mundo tem direito a uma ou duas opiniões politicamente incorretas. Podemos todos 189 viver juntos e, o que é mais importante, beber juntos. O meu latido cubano é bem alto quando me atiçam, mas prometo não provocar hidrofobia. Ainda bem que você não deixou escapar meu comentário tipicamente humanitário e anti-reacionário sobre os cubanos da Florida, coitadinhos, tão maltratados pelos meios de comunicação. Acho que vamos nos dar bem porque dizemos o que pensamos (sem embargo). Só para lhe mostrar que eu nem sou festivo nem sigo a legenda de algum partido, podemos discordar sobre o aborto (estou indeciso) e sobre o embargo cubano (sou contra, mas aceitaria que você fosse a favor). Mas você vai ter de ser para lá de charmosa se for a favor da pena de morte ou da Guerra do Iraque. E vai ter de ser capaz de ressuscitar os mortos se for homofóbica ou racista. Caso contrário, não lata, señorita, que eu sou um cordeiro vestido de lobo. Ainda estou perplexa... Jamais imaginaria que você fosse racista ou intolerante só porque é liberal — por que você suporia esses defeitos em mim? Como poderia eu supor QUALQUER defeito em você? Minha premissa, baseada nas pistas disponíveis, é que você é simplesmente adorável. Acredito nisso piamente enquanto faço troça de seu lado conservador. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 381 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 382 em Roma não deixe de visitar o Ara Pacis Augustæ o rapto das sabinas pelas aves de rapina 190 nas colinas os centauros sabem do rapto das sabinas as colinas sabem dos centauros o rapto das sabinas 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 383 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 384 Wilma quer saber se eu ainda estou à disposição. Disse que não. Ela me pergunta se tenho certeza. 191 Você deve estar no ar agora, e espero que seu vôo seja sereno. Meu maior desejo é estar à disposição de alguém. Eu e você tentamos chegar lá, em vão. Se tenho certeza absoluta? Só relativa. A única certeza que podemos ter é que não podemos ter certeza de nada. Como ter certeza disso? Só dentro da lógica da linguagem. Não estou sendo niilista, mas não quero confundir o que queremos saber com o que é sabível. Precisamos de padrões para uso diário, e estes podem até funcionar como se fossem absolutos. Mas não são. Achei-o exagerado, afetado, barroco, excessivo. Minha alergia a esse jeito de escrever vem da comunhão diária com a língua inglesa, tão calvinista e adstringente. Há quem escreva com eloqüência, mas tem pouco a dizer, pois a verdade é que forma e conteúdo andam em trilhos diferentes. Ao contrário do que afirmou Mies, a forma não segue a função. Ao contrário do que afirmou McLuhan, o meio não é a mensagem. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 385 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 386 Se por bom guitarrista você quer dizer Joe Pass ou Jim Hall, prepare-se para algo completamente diferente. Mike Stern inventou uma espécie de heavy 192 metal bebop quando Miles o mandou juntar Parker e Hendrix. Mike mais tarde tocou com os Irmãos Brecker e teve um trio de punk-jazz com o lendário Jaco Pastorius. Os jovens virtuosos e puristas (como Wynton Marsalis) não aprovam a hibridez de Stern, mas eu adoro o jeito como ele mistura sofisticação harmônica com intensidade elétrica. Adoro também como suas melodias dançam no envelope dos acordes, traçando filigranas cromáticas, sempre à beira da dissonância, mas invariavelmente resolvendo (ou quase). Concordamos sobre música. Mas, em artes plásticas, a gente discordou. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 387 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 388 Gostei muito de seu perfil e de suas fotos. Deram-me um bom pressentimento. Mas o que mais me impressionou foi sua ênfase nas palavras e o humor inteligente. Boa combinação. Você gosta de linguagem e de comunicação, eu também. Você está procurando uma mulher informada e bem formada. Por incrível que pareça, poucos homens querem isso. Foi um prazer receber sua mensagem. Não lamento o atraso emocional de meus competidores, mas concordo que é surpreendente. A explicação mais óbvia é a insegurança, o desejo de não ver desafiada a posição de senhor do castelo, mas as recompensas de uma troca profunda me parecem tão maiores. Tais homens poderiam argumentar que uma troca profunda não requer igualdade, e isso parece até verdade com nossos filhos. Mas esses homens talvez estejam procurando relações conjugais com inflexões paternalistas. Não era minha intenção responder com uma livre associação, mas foi o que me veio à cabeça. Então, como posso conhecê-la, de preferência sem lidar com a mulher controlada e profissional que você descreve no perfil? Não sou tão controlada assim. É só uma fachada para ser vencida. Você está à altura do desafio? Em homenagem a seu pressentimento, gostaria de marcar um encontro. Foi bom conhecê-lo hoje de manhã. Mas tive a impressão de que alguma coisa o incomodou... Se eu fosse projetar-me para uma relação hipotética com você, o fato de sua separação ser tão recente me preocuparia. Parece haver pouco impulso para transformá-la em divórcio, e também me parece delicado o fato de você não ter noites livres prefixadas. Não quero ser responsável por seus filhos passarem noites fora de casa. Obrigado pela franqueza. Posso responder às suas preocupações? Em primeiro lugar, estou mais do que pronta para uma relação íntima e exclusiva. Não entramos nos detalhes de meu casamento, mas a verdade é que eu nunca tive a relação que tanto desejo. Separamos-nos porque eu quero isso em minha vida. 193 Em segundo lugar, se as coisas dessem certo entre nós, poderíamos escolher determinadas noites, se é isso o que você quer, para estar juntos. Essa seria, então, a rotina das crianças. Eu também poderia dormir na sua casa (me adiantando, de novo) e as crianças poderiam dormir na casa delas com o pai. Se eu e você estivéssemos realmente juntos, imagino que, em algum ponto, seria possível você dormir aqui, mesmo com eles presentes. Minha vida pessoal não precisa ser sempre separada da deles. Minha situação é transitória. Passei o primeiro ano da separação com um determinado arranjo e se eu começar uma relação com um homem, isso vai provocar mudanças na rotina da casa. Você não deveria sentir-se responsável por isso. Seria apenas minha evolução para o estágio seguinte, da mesma maneira como a minha situação atual pode evoluir para um divórcio. Embora seu raciocínio seja perfeitamente razoável (não esperaria menos) e a perspectiva de passar noites com você, em qualquer lugar, seja muito atraente, cheguei à conclusão, depois de consultar as bases, que não quero ser responsável por uma mudança nas regras de sua separação. Por mais que você argumente o contrário, eu me veria como o catalisador de algo que deveria ter acontecido à minha revelia. Claro que não me sentiria pessoalmente responsável — sei que seria a mesma coisa para qualquer homem que se encontrasse nessa posição —, mas, mesmo assim, não quero o papel. Bem, você precisa fazer o que acha certo, mas não quero pedir a meus filhos que passem certas noites toda semana na casa do pai. Esta é, afinal, a casa deles também. Em vez disso, eu me sentiria mais confortável, e eles também, se eu passasse algumas noites por semana na casa de meu namorado, ou se o recebesse aqui, mesmo com eles em casa. Se eu quisesse mais privacidade, sempre poderia pedir que eles dormissem na casa do pai, e tenho certeza que iriam, mas isso é bem diferente de tirá-los de casa algumas noites por semana, não importa o que aconteça, sem uma necessidade específica. Preciso encontrar alguém que esteja aberto a isso e que possa compreender e respeitar quem eu sou e quem meus filhos são. Eu entendo que você não pode e que precisa que as coisas sejam feitas da maneira habitual. Mas você pode sempre mudar de idéia… Ela simplesmente não queria entender. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 389 200fantasias 194 5/11/07 9:35 AM Page 390 O medo de deixar o cachorroquente cair no chão, depois do qual não poderia mais ser comido, fez com que a pequena apertasse os dedinhos com um pouco mais de força. Para limpar o ketchup da boca, ela esfregou os lábios num daqueles guardanapos lustrosos e impermeáveis que são a contribuição da lanchonete brasileira para o mundo. Pela janela do carro, via-se uma dúzia de pássaros voando alto. Os pequenos vultos eram grandes demais para ser outra coisa senão urubus querendo as sobras da festa da pequena. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 391 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 392 Zenaide está ansiosa para subir o rio Amazonas. Também nunca fui à Amazônia, vamos juntos? Posso fazer as reservas e correr até a Timberland para comprar o que precisamos de equipamento. Você já viu o filme As Três Noites de Eva, um clássico com Barbara Stanwyck e Henry Fonda? Não quero insistir demais no tema ribeirinho, mas um eufemismo recorrente no filme é sobre o que acontece com os homens que retornam à civilização depois de passar meses no rio Amazonas. Interessaria muito continuar nossa conversa e, por conta de nossa natureza pensante, pensar sobre se deveríamos falar sobre o que tudo isso significa, se é que significa alguma coisa. Ou, então, em deferência a nossas partes não-pensantes, não deveríamos pensar sobre nada e simplesmente ver até onde isso vai, se é que vai para algum lugar. Como foi seu dia? 195 Sempre levo essa pergunta a sério e respondo com mais detalhes do que a pessoa que perguntou está interessada em ouvir. Diria que é a marca registrada do chato, se não soubesse que sou uma pessoa fascinante. Bem, vamos lá. Foi um dia interessante, andei muito de bicicleta, apesar do vento e do frio, graças a um lenço protegendo o rosto, parecendo um Jesse James benigno. De manhã eu não conseguia encontrar o celular e passei minutos febris à sua procura. A alegria que senti quando ele finalmente apareceu foi tamanha que me deu vontade de perdê-lo de novo, mas aí voltei do planeta emoção para o planeta razão. Isso me lembrou a velha piada do sujeito que instalou duas cabras na sala de visitas só para sentir o alívio de remover uma. Finalmente consegui desfazer-me de um conjunto de sal e pimenta de faux-marbre que ganhei de Natal. Troquei-o por um jarro bem bonito, anos 50, de aço inox escovado. Na terapia, debatemos se devemos assumir posições a priori contra comportamentos reprováveis (como mentira, hipocrisia). A alternativa seria nos perguntar: incomoda? funciona? No final da tarde fui com minha filhota no lançamento de um livro de um primo meu, cheguei em casa cansado, as costas doendo de tanto carregá-la. E como foi o seu dia? Desta vez você não escapa de responder com menos palavras do que eu… Bem, meu dia não foi nem de longe tão interessante quanto o seu. Passei horas em reuniões maçantes resolvendo disputas domésticas entre a babá e a governanta, depois levei a menina de 8 anos ao dentista e tomei conta da irmã dela de 6 anos, que estava em casa resfriada. Ela gosta de ver televisão sentada em meu colo, e aproveito esses momentos para descansar do tédio de pesquisar que jatinho meu chefe deve comprar. O mais importante: consegui tirar um tempinho para preencher alguns pedidos de bolsas de estudos. Hoje à noite vou dar uma boa corrida para exorcizar os demônios do trabalho. Será que já acumulei palavras o suficiente? Gostei de você e estou interessado em explorar. Mas sinto que você tem pouco tempo livre, e seu entusiasmo não comporta as façanhas de prestidigitação necessárias para criar tempo e espaço. Não tenho pressa se sinto entusiasmo, mesmo se for apenas por uma possibilidade. Desculpe a franqueza, mas estou cansado da disponibilidade desgastante que caracteriza a vida online. Gente escrevendo, gente chamando e aquela tabuleta pregada na testa declarando “disponível” 24 horas por dia, sete dias por semana. Nada me daria mais prazer do que deixar isso para trás e me concentrar em uma pessoa. Se você estiver interessada, estou aqui. Existe entusiasmo por possibilidades futuras. O problema do tempo, infelizmente, é de difícil solução. Além de minha carreira artística e do ganha-pão diário, tenho ido freqüentemente a Vitória porque meu pai está muito doente. Neste momento não posso assumir compromissos, mas uma das conquistas do feminismo foi libertar as mulheres daquela dualidade segundo a qual os homens querem espalhar o DNA pelos quatro ventos enquanto as mulheres buscam uma relação profunda na qual os filhos possam crescer seguros. Zenaide e eu tentamos espalhar DNA pelos quatro ventos, experiência eólica tão pobre que soprei a vela. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 393 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 394 O teste diz que não somos compatíveis. Seria divertido provar que esse teste é furado. Vamos dar uma lição nesse software? 196 Você parece caloroso, inteligente e divertido. O teste diz que não somos compatíveis? O verdadeiro teste é um drinque. O idiota do teste tinha razão. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 395 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 396 Fiquei bastante tocado com seu comentário sobre a dor que sente quando vê gente sofrendo. Evitei tanto a dor durante a vida que minha disponibilidade emocional para a dor alheia se reduziu bastante. Não sabia que não é possível diminuir a capacidade de sentir dor sem afetar a capacidade de sentir alegria. Hoje entendo que preciso cultivar a empatia em vez de sair correndo. A legenda de seu perfil pergunta: Você tem medo de amar ou ser amado? Eu responderia, como a maioria dos homens: Claro que não! Mas você deve estar falando de um tipo mais profundo de amor, um tipo que só acontece com quem se deixa aberto à possibilidade de ser ferido. Isso exige alto nível de confiança no outro (em si também, pois nossas relações com o mundo espelham as relações internas). Gosto também de suas inclinações olfativas. O primeiro dia da primavera tem um aroma delicioso. As emoções são misteriosas, não? É interessante como nós, humanos, erguemos defesas contra as sensações. Só a autoconsciência pode superar isso, se estivermos abertos. Essa é uma dificuldade que encontrei nos relacionamentos anteriores, daí a pergunta no meu perfil. Um relacionamento só pode vingar se ambos forem, acima de tudo, honestos consigo mesmos para que possam ser honestos um com o outro. O nariz é sempre honesto. Um fósforo recém-aceso tem um cheiro maravilhoso. Está na mesma categoria que a grama recém-cortada, as folhas secas no outono e a madeira recém-lixada. Não bebo café nem fumo cachimbo, mas adoro os aromas. 197 Eu tomo café, mas prefiro o cheiro ao gosto. Também gosto do cheiro de cachimbo, apesar de nunca ter fumado. Como o paladar também é olfativo, pensei num hors d’oeuvre que me entusiasmou recentemente: meia noz coberta por meia bola de pasta feita de manteiga, queijo parmesão e tomilho. Simples e sensacional. Você é muito poético. Isso me desafia. Sou diretora de arte, portanto mais inclinada para o visual. Já tive alguns sócios que escreviam bem, por isso aprecio alguém que sabe mexer com as palavras. Espero que você se sinta desafiada de maneira agradável. A justaposição entre talento poético e visual fez com que me perguntasse: onde me situo? Sempre me considerei mais visual porque amo tanto a arte, mas a verdade é que freqüentemente não observo o que vejo. Eu seria péssimo em descrever a cara de um criminoso para que a polícia pudesse fazer um daqueles retratos falados. Tenho uma memória visual muito detalhada. Dificilmente lembro nomes, mas posso dizer como alguém estava vestido. Sempre reparo se alguém muda a posição de alguma coisa. Fico louca quando a moça que faz a limpeza de casa muda as coisas de lugar. Sempre achei que seria uma boa detetive particular. Esse clima instável está deixando minhas plantas confusas. Estou vendo nascer botões que só eram para brotar daqui a dois meses. Eles vão levar um choque com o frio que vai fazer neste fim de semana. Espero que você tenha cuidado com a bicicleta. Existe uma sujeira escorregadia que é difícil de ver, especialmente depois do anoitecer. Muitas promessas escorregam nesse gelo escuro que se forma depois do anoitecer. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 397 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 398 Ada-ama e Ada-adora Ada-odeia e Ada-detesta Ada-ama aquele momento em que o céu da noite passa do romântico ao barroco Ada-adora o gingado e o poder sugestivo de poucas palavras bem escolhidas 198 Ada-odeia quando a consideram generosa Ada-detesta viver só mas se não for feliz assim não será de outra maneira Ada sabe que se morrer solteira morrer é como dormir o resto da vida e mais um pouco 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 399 200fantasias 199 5/11/07 9:35 AM Page 400 Uma colega de taekwondo, uma jornalista e autora bem-sucedida, magra como um palito, disse-me que nem ela nem o ex-marido gostavam de comida, mas que o filho só assistia a programas de culinária. Fomos tomar café um dia depois da aula, e ela me contou que queria casar de novo. Com um homem rico e poderoso, de personalidade forte. Pouco lhe importava se fosse baixo, feio, gordo e fumasse charuto, ela queria mesmo era andar com chofer e limusine, ir a festas milionárias e conviver com gente famosa. Fiquei atônito com tamanha ausência de pudor, tanta falta de idealismo. Ou será o dela apenas um tipo diferente de idealismo? Nunca mais consegui ver A Bela e a Fera sem pensar que a Fera tinha um castelo, era rico e poderoso e tinha uma personalidade dominadora. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 401 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 402 Era uma vez um homem que conheceu mil e uma mulheres. Novecentos e tantos desses encontros não produziram seqüelas, mas os outros foram terrenos férteis para fantasias. As paixões brotaram como erva daninha porque a imaginação do homem preenchia os vazios a seu favor. Esperava que as paixões virassem amor, mas o conhecimento invariavelmente trazia decepção. Quanto mais isso acontecia, mais o homem entendia que a paixão não era pelas mulheres mas por projeções de seu desejo. Lara, a última que ele conheceu, era simples. Estranhamente, não houve paixão. Talvez porque o terreno fosse pouco propício. Ela não correspondia a seu tipo ideal. Não era divorciada e parecia não ter nenhuma intenção de desembaraçar a rotina dos filhos da rotina do ex-marido. Sobretudo, ela era diferente de todas as outras, de um jeito que estava além de sua capacidade de analisar. As outras mulheres também tinham sido singulares, mas Lara era mais singular do que as outras. Será que o aspecto inusitado dessa atração se devia a uma nova abertura para alguém diferente do que sempre idealizara? Pouco provável. Será que ele descobrira o potencial que existe em todas as mulheres? Ainda menos provável. Vinha fazendo um grande esforço para tornar-se menos crítico, mas ainda faltava muito para vencer a batalha. Não havia sido mérito seu; simplesmente aconteceu. O homem deliciou-se com a leveza que surge quando se perde o controle. A relação cresceu, cautelosa. O território era novo para ambos. Quando se amavam, o homem sentia que Lara era seu espelho, mas um espelho d’água nunca navegado. Quando escutava o que os olhos dela diziam, visitava lugares nunca vistos. Pela 200 primeira vez em sua experiência, o lado táctil levava vantagem sobre o mental. Até o equilíbrio de poder, um recife insidioso, parecia correto. O equilíbrio entre pensar e sentir também parecia correto. Ele podia ser exatamente quem ele era, sem medo de pensar ou analisar demais. Ela era inteligente de uma maneira que o desafiava, mas sem intimidar. Volta e meia, Lara o surpreendia com as perguntas mais loucas, e ele respondia com doçura. Ele queria que ela se sentisse segura, que tivesse um lugar para descarregar, para compartilhar. Ela ainda tinha um pé atrás por causa das mil mulheres que vieram antes dela. Como podia ter certeza de que ele não estava acumulando mais uma? Será que a multiplicidade era parte de sua natureza? Mas as semanas foram passando, e a confiança crescendo. A sintonia se aprofundando, cada vez mais íntima. Os dois eram como luvas assimétricas, diferentes, mas feitas para estar juntas. Tinham até a mesma altura, o que realçava a sensação de duplicação. Mas toda história terminaria logo se não surgisse um porém. Lara tinha uma pendência do passado que reapareceu, insistente. As coisas inacabadas a deixavam insatisfeita. Ela sempre acreditara que os amores precisam ser levados até o fim. Era sua maneira de ser, parte de quem era. O homem tentou compreender e afogou a decepção na fortaleza da razão. Era sua maneira de ser, parte da muralha que havia erguido. Ele pediu que ela fosse resolver logo a pendência. Ela foi. Voltou para um conforto, para uma relação que, dizia ela, não a desafiava mais do que ela pensava que podia agüentar. Mesmo que ela não volte, o homem é mais feliz por saber que é capaz de amar uma mulher por quem ela é e não por quem ele é. Mesmo que sejam necessários mais mil e um encontros. A sensação de afinação precisa vir de dentro, livre e clara, eletrificando o cérebro e os instintos. 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 403 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 404 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 405 concepção gráfica e textos oswaldo corrêa da costa desenhos paulo monteiro design fábio miguez revisões angela dias fernanda peixoto pedro adão agradecimentos alexandre martins fontes claudio ferlauto diego abrahão geraldo alves rodrigo naves suzano papel e celulose yangraf gráfica e editora 600 300 200 100 exemplares capa mole exemplares capa dura numerados exemplares capa dura numerados com desenho exemplares hors commerce qualquer coincidência entre realidade e ficção é intencional ou falta de imaginação catalogação na fonte do departamento nacional do livro [fundação biblioteca nacional] duzentas fantasias gráficas textos oswaldo corrêa da costa desenhos paulo monteiro são paulo, 2007 ISBN 978-85-907096-0-2 1. 2. 3. 4. 5. artes plásticas artistas plásticos – brasil ficção autobiográfica corrêa da costa, oswaldo monteiro, paulo índices para catalogo sistemático 1. 700 – artes 2. 740 – desenho e artes decorativas 3. 760 – artes gráficas, gravuras 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 406 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 407 200fantasias 5/11/07 9:35 AM Page 408