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duzentas fantasias gráficas
textos: gateway profile 5.5
desenhos: toshiba satellite R15-S822
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Angela acredita em anjos sentados nas nuvens, em
todos os mistérios da igreja católica, em nenhum
de seus dogmas, na morte existencial de Deus, nas
abstinências e visões necessárias para atingir o nirvana,
em qualquer coisa que brilha. Seu passatempo
favorito é rir. Sua diversão principal, sonhar acordada.
O primeiro encontro foi propedêutico, o segundo
alucinante, no único bar da cidade que aceita
fumantes. Massagens nos pescoços e mordidas nas
orelhas enquanto ela lia, com voz rouca, versos de
Manuel Bandeira gravados no Palm Pilot. Em casa ela
estava vulcânica, até que, sem nenhum aviso prévio,
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sua boca me deu um banho de água gelada. Disse que
sentia muito, tinha feito o possível, mas não conseguia
tirar o ex da cabeça. Mais tarde fiquei lisonjeado de
ter sido usado como cobaia da volta por cima. Mas
naquele momento só senti a frustração do desejo
atravancado, como uma labareda extinta pela pinça
do polegar com o indicador. Foi então que ela fez uma
oferta inusitada: já que havia me levado àquele ponto,
poderíamos continuar e eu nunca mais a veria, ou ela
poderia ir embora e talvez nos víssemos novamente.
Foi por causa do talvez. Quantas vezes desejei reviver
aquele momento para escolher a segunda opção!
Aquela encruzilhada ainda me assombra, assim como
o contraste entre a paixão febril das primeiras horas
e o corpo inerte das últimas.
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Quando uma antiga beleza pré-rafaelita pelo meu corpo cobiçada
tornou-se disponível nas circunstâncias mais favoráveis
desencadeei a invasão de uma Tróia moderna
Com a força acumulada de mil navios, assaltei a cidadela geriátrica
mas, quando a terra prometida (inevitavelmente) faltou com o prometido
retirei-me apressadamente do campo de batalha
deixando o solo coberto de cinzas
Sob a luz cruel e indiscreta do sol
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sua pele enrugada parecia quebradiça
a superfície amassada como um pergaminho
Na ausência de intimidade
a idéia de acordar com essa cabeça repousando no ombro pareceu
asperamente invasiva
Envergonha-me constatar como, durante os segundos após o clímax
alcanço a maior lucidez
Por um tempo, muito pouco tempo
a hidra pensa e age monocéfala
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Meu nome é Manoel, moro em Niterói, tenho 1,80 metro de altura e peso 76 quilos.
Fiz 49 anos em abril, fui casado uma vez (por quinze anos) e tenho um filho,
Manuel Jr., que é o grande presente que a vida me deu. Freqüentei dezesseis
escolas antes de entrar para a faculdade porque meus pais viajavam muito.
Sempre precisei da aprovação deles, pois eram a única referência constante em
minha vida. Fui um filho obediente, sem rebeldias, sem drogas, sem sexo, apenas
muita música. Aos 40 anos, finalmente emagreci e comecei a cuidar do corpo, que
estava dando sinais de não ser eterno, mas antes disso sempre fui gordinho, fonte
de grande insegurança. Meu pai queria um filho atlético, corajoso. Se não um
machão, pelo menos um machinho. Talvez porque, quando ele tinha apenas meses
de idade, a irmãzinha de 2 anos dele morreu e a mãe, inconsolável, passou a vestilo com as roupas da menina morta. Como eu não correspondia ao que ele queria,
não entendia como ele me amava tanto. Mas algo dentro de mim percebeu que a
pessoa que ele amava era uma extensão de si próprio, semeando a carência que
carrego até hoje. Não agüento a idéia de estar sozinho, castigo que considero
cruel. Sei que essa situação vai continuar até que eu goste de quem sou.
Meu casamento acabou porque a curva senoidal de minhas emoções se atrofiou.
Sempre fui avesso à dor e, para não senti-la, consegui limitar a capacidade de
sofrer, sem entender que o preço da anestesia era reduzir a capacidade de amar.
Minha ex-mulher dizia que viver com alguém que nunca ficava deprimido fazia
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com que ela, que oscilava normalmente, se achasse uma louca. Quando ela estava
calma, tratava-me como seu marido, mas, quando estava nervosa, tratava-me como
seu pai, com quem tivera uma adolescência difícil. Quando eu protestava que não
me enxergava no que ela estava dizendo, ela respondia: Mas você é assim mesmo,
pergunte para qualquer um! O dia que ela pediu que nos separássemos, a carência
virou tão grande que nem me permiti sentir. A carência é um buraco infinito, e o
infinito não pode ser preenchido pelo finito: as coisas que acumulo, a comida que
mastigo tão rapidamente. Deus é infinito, mas não acredito nele. O amor por
Manoel Jr. é infinito, mas tão platônico quanto o amor por Deus.
A Internet parecia um mar aberto e convidativo, mas o entusiasmo com que
mergulhei nos sites de relacionamento não foi nada saudável. Encontrei mulheres
inteligentes e bem-sucedidas. Muitas pareciam interessantes por email ou pelo
telefone, mas a promessa raramente se cumpria ao vivo. Algumas foram de uma
sabedoria que não soube apreciar por manifestar-se em baixo relevo, pela
facilidade com que desistiram. Aconteceram alguns namoros, sempre curtos.
Os perfis permitem uma filtragem eficaz (poucas foram esquisitas), mas a
informação teria sido mais útil se eu me conhecesse melhor.
Continuei batendo nessa porta durante anos. A cada fracasso, não sabia se culpava
a ferramenta ou o operário. Se as personalidades mais compatíveis com a minha
fossem temperamentalmente avessas a esse sites, todo encontro estava fadado à
esterilidade, como o cruzamento entre um cavalo e um burro.
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A sensação inebriante de mergulhar no interior de outra pessoa é minha sensação favorita... Mas antes eu preciso perguntar se você
é realmente quem diz ser: 48 anos, divorciado, vivendo nesta cidade. A Internet tende a realçar os tons de cinza, e eu não acredito
em tons de cinza nas relações sentimentais.
Entendo. Já ouvi muitas histórias sobre homens casados fingindo ser solteiros e mostrando fotos antigas. Esse tipo de “dissimulação”
(para ser generoso) é completamente improdutivo. Se você não gostar de mim como sou, para que serve gostar de mim como não
sou. Fique descansada, porque tudo que escrevi é verdade ou fiel à minha auto-representação.
Eu poderia até perdoar uma foto antiga e uns quilinhos a mais, mas, se o encontro é fundamentado em uma mentira, não sei como
continuar. Confiar é fundamental num relacionamento. Como prosseguir se ficou claro que a pessoa é mentirosa?
O estrago da mentira é difícil de superar. Fica sempre a tentação de pensar: Se fez uma vez, pode fazer de novo. A oportunidade de
causar uma primeira impressão é única e, uma vez perdida (como a inocência), sempre perdida. É preciso preservar um espaço para
a absolvição, mas como é difícil! Sem confiança não pode haver intimidade, e sem intimidade aquela sensação deliciosa de mergulhar
no outro não pode virar aquela palavrinha de quatro letras que todo mundo quer.
Invejo sua aposentadoria precoce. Tenho uma firma que faz bolos sob encomenda. Surgiu por acaso. Não foi minha intenção entrar
nesse ramo, mas tem sido compensador. Digo a todos que minha casa “é o lar que o açúcar construiu”. Quando me perguntam o que
faço, às vezes respondo: “Manipulo açúcar e quebro ovos”. Odeio quando fazem essa pergunta porque realmente não me identifico
com minha profissão. É trabalho e não uma vocação. Mas que é um bom negócio, isso é. Há algo de maravilhoso em criar algo do
nada, inventando coisas bonitas para dias felizes.
Adorei receber sua mensagem, batida entre bolos de noiva e grinaldas de açúcar. O que quer que aconteça, seremos melhores por isso.
Cada passo em falso tem um lado bom, e cada passo bom tem um lado em falso. Além da chuva fina e de um céu azul, este dia trará:
— mais afirmativas suas
— impulsividade, com ou sem doces
— aventuras no desenvolvimento da confiança no outro
— aventuras no desenvolvimento da confiança em nós
Estou feliz porque nos vamos ver domingo, mas parece tão longe…
Impossivelmente longe... Você precisa me fazer esperar tanto?
De jeito nenhum! Só sugeri domingo porque achei que você não estaria livre antes por causa das crianças. Se quiser aproveitar meu
horário flexível e a mobilidade da minha bicicleta, diga: Venha.
As crianças ficam me perguntando o porquê desse sorriso de Mona Lisa... Como explicar que o que acende meu rosto é a lembrança
da pressão do seu? Brindemos a um sonho improvável. Será mesmo?
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A curvatura no seu lábio superior é divina (sem comédia), convidativamente saliente. Como o arco de um proscênio emoldurando
o aplauso, como a compulsão do cego em inspecionar o relevo. Fazia muito tempo que não tomava tanto vinho e hoje estou me
regando como uma planta para espantar essa ligeira ressaca e uma suave dor de cabeça. Quero que minhas freqüências mentais
gozem desimpedidas a memória da noite passada. Brindemos a um sonho provável!
Delicadamente segura me desloco entre as crianças, empurrando-as em direção ao sol, alisando-lhes as rugas de inquietação,
enfiando calmamente moedas de ouro em seus bolsos. Cochichando: “Sim”… Longe de mim deixá-lo carente! Sim, imaginei que
estava aguardando um bilhete meu, passado discretamente no corredor. Você está em meus pensamentos. Por que é tão fácil
mantê-lo perto? Entro em transe com o som de sua voz e quero saber mais. Gosto de você...
Enquanto espero, deixe-me massagear sua coxa, suas costas, seus ombros, com dedos firmes, traçando um ligeiro arabesco
com o arco da unha. Acho que devemos fazer o que queremos sem tarifas compensatórias. Afinal de contas, o que tememos?
Que abriremos as comportas de um hedonismo desenfreado? Que seremos soterrados por um furor de autopaparicação licenciosa?
Acho que sobreviveríamos.
Você tem razão na sua contabilidade da minha contabilidade; uma coisa sacrificada por outra. Mas vejo isso como sinal de equilíbrio.
Não me faltam tendências indulgentes, mas me abandonar a elas, verdadeira e plenamente, acho que não consigo. Só em alguns
aspectos, mas não com a devida freqüência.
O que houve?
Não estou procurando a perfeição, mas sinto que você está. Não posso aceitar a idéia de não corresponder a suas expectativas.
E sua presença diária na Internet confirma que está procurando alguém diferente de mim. Espero que encontre o que deseja.
Você tem sido maravilhoso. Obrigado por um começo brilhante para o ano-novo.
Também não procuro a perfeição. Eu não quero que você seja isso ou aquilo, ou faça isso ou aquilo. Mas quero sentir sintonia.
Estava presente na primeira vez, mas já não estava mais lá ontem. Era como se você tivesse fechado uma porta, ou recuado. Suas
palavras me garantiam que nada tinha mudado, mas a linguagem do corpo dizia outra coisa. Não consegui espantar essa sensação,
por isso meu coração estava sangrando. Quanto à minha atividade online, recebo cartas diariamente e sempre respondo. Desde que
a conheci, sempre respondi: Obrigado, mas não obrigado. Mas, cada vez que uma mensagem é transmitida pelo site, aparece como
atividade. Foi por causa disso que seu comportamento mudou? Antes de presumir, você deveria me perguntar. Hoje entrei no site
propriamente dito pela primeira vez desde que nos encontramos para ver o que você tinha escrito sobre Demonstrações Públicas
de Afeto. Para minha surpresa, você diz que gosta. Então o problema deve ser comigo.
Curioso você dizer que examinou meu perfil porque me desliguei do site há três dias. Eu gosto de Demonstrações Públicas de Afeto
mas não de Demonstrações Públicas de Intimidade. Com esta última não me sinto confortável. Admiro sua capacidade de afeto e
a aplaudo. Você tem razão sobre sintonia. Não estávamos dançando bem. Não posso concordar com o termo “recuar”, mas posso
entender como meu pisar mais leve poderia ser interpretado como tal. Também não entendo o “coração sangrando”: essa reação
é melodramática demais para meu gosto. Não gostei de precisar convencê-lo dos meus sentimentos, pois, ao fazê-lo, só aumentou
nossa distância. Você é maravilhoso, uma pessoa incrivelmente única. Admiro suas paixões; elas lhe abençoam. É louvável sua
dedicação à análise e ao crescimento interno, mas sugiro que não fique preso atrás da câmara e participe um pouco mais da festa.
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Não conseguia dormir e, distraindo-me com a Internet,
lá estava você, de perfil novo. Perguntei-me como e
onde estaria, o que teria vivido, sentido e aprendido
e como sobrevivera aos horrores do 11 de setembro.
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Comigo, tudo bem: divorciada formalmente, as crianças
saudáveis, o pai delas ainda vivo (e sóbrio há mais de
um ano). Mudei para um apartamento melhor, que mal
posso pagar, mas onde me sinto feliz. Continuo firme
no trabalho. Acabei me apaixonando por um homem
maravilhoso: um psicanalista, um pouco mais velho,
que conheci por intermédio de amigos comuns. Ele
se chama Pedro, e passamos temporadas em sua casa
de campo em Mauá, pescando, lendo, conversando
e andando pelos bosques. Recentemente começamos
a conviver com os filhos um do outro. Ainda me
surpreendo de ter encontrado aquilo que desejei
tanto — e perdera as esperanças de encontrar —
durante os anos longos e estéreis de meu casamento.
É uma conexão verdadeira, intimidade e paixão
misturadas com dedicação. Não só é possível, como
foi possível. Não que tivesse perdido completamente
as esperanças, mas parecia que estava dando murro
em ponta de faca.
Volta e meia penso em você, que se tornou, para mim,
inquilino permanente da estação da Siqueira Campos.
Sempre que passo por lá me lembro daquele interlúdio
estranho em que nossos caminhos se atravessaram.
Sua despedida meio abrupta me levou a aceitar ser
apresentada ao Pedro, momento decisivo em minha
vida. Portanto, você está fadado a ser um personagem
coadjuvante, mas definitivo, na história da Beth.
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Mãe trabalhadora, escritora de versos,
puladora de corda, bebedora de vinho,
moradora da Tijuca, procura um amante
de dunas de areia, de trutas de rio,
e de outras coisas originais, enxutas,
estranhas, malhadas e salpicadas.
Quando nos encontramos, disse que tinha
achado uma de suas poesias na Internet.
Ela ficou desconcertada porque versava
sobre os problemas entre os eles e as elas:
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Ele disse que não entendia minha lógica.
Por causa de meu problema com pronomes, ele disse.
Ele disse que se incomodava com o jeito como eu presumia
que ele saberia quem era o eu e o ele.
Será que eu espero que ele leia meus pensamentos?
Ele não quer saber de brincadeiras!
Ele já viu esse filme!
Ele disse que se incomodava com o jeito como eu presumia
que ele já estivera lá quando (claramente) não estivera.
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Ocupada demais, cansada de ser
ocupada demais e exigente demais.
Seu senso de humor é manhoso
e maroto, e, se eu me dispuser
a namorá-la já, ela incluirá no
enxoval um ditongo que me
deixará completamente zonzo.
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Cris prefere brancos,
especialmente judeus,
mas isso não a impede
de sair com outros.
Está convencida de que suas
preferências são culturais,
por isso não se envergonha.
Cris me achou culto, divertido
e financeiramente viável, mas o
fato de não ser judeu pesou mais
contra mim do que ela esperava.
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O.K., eu não deveria estar forçando tanto a barra. A esta altura, isso talvez faça você nunca
mais querer falar comigo. Mas, veja só, você foi agressivo no começo, por isso acho que tenho
o direito de comportar-me assim agora. Em primeiro lugar, não acredito que você tenha, de
repente, deixado de gostar de mim, ou, se tiver, não creio que seja algo que dure. Naquele
domingo infeliz, tenho certeza de que revelei alguns de meus defeitos (e.g., ser mandona e
teimosa). Mas todo mundo tem defeitos, e era cedo demais para você concluir que os meus
seriam inaceitáveis. Você precisa entender que passei todo o fim de semana do feriado
pensando em você. Era como se uma brasa estivesse queimando em meu peito (e em outros
lugares). Faz anos que um homem não me faz sentir assim. Cinco, para ser exata. Essa
descoberta foi assustadora e maravilhosa ao mesmo tempo. Falei de você para os amigos com
quem me hospedei. Um deles fez uma cara estranha e disse: Você está apaixonada por esse
cara! Loucura... Mas, quando voltei para casa, de repente parecia tudo “errado”. Tinha armado
as coisas para que fôssemos parar no seu apartamento, onde poderíamos estabelecer um grau
maior de intimidade. Mas, de repente, a velocidade, a urgência, a expectativa, era muita coisa
ao mesmo tempo. Pensei: Não posso dormir com ele esta noite, e deveria ter dito: Preciso andar
mais devagar, em vez de ter sido evasiva. Você provavelmente vai dizer que estou errada,
e aí vou me sentir uma idiota, mas hoje me arrependo de ter recusado seu convite. Não sou
psicanalista; não consigo participar e observar ao mesmo tempo. Nem interpreto minha atitude
como rejeição sexual. Estava apenas me protegendo, por sentir que não conhecia você muito
bem. Sou muito derretida (na intimidade) e adoro o contato físico. Mas não sou muito
competente em ir daqui (controle intelectual) até ali (me soltar). Fica mais difícil ainda se
percebo que gosto da pessoa. Muito do que você me escreveu me deixou incrivelmente feliz.
Já estou sozinha há um tempão e de vez em quando acho que meu coração (bem guardado, super
sensível) foi partido mais vezes do que merecia. Só conheci três homens nos últimos quinze
anos com quem me senti imediatamente confortável e desejada. Você foi o terceiro (e nem nos
conhecemos muito bem). Na realidade, quando nos encontramos na semana passada (para que
você pudesse terminar tudo), tive a impressão de estar apenas começando a te conhecer. Para
mim, o aspecto central da nossa relação vinha sendo a sensação de que era saudável e possível.
Em contraste com os outros dois, achei que seria viável construir uma relação. Noves fora?
Queria passar mais tempo juntos. Mas queria desarmar aquela ansiedade emocional, aquela
pressa, aquele tudo-ou-nada. Na realidade, desejo uma amizade com sexo. Por favor, não pense
que eu não quero transar. Seria bom aliviar logo esse tesão mútuo para que ele deixe de ser
uma questão. Seria também muito divertido. Outra conclusão possível é que você seria um
cafajeste manipulador... Isso me ocorreu hoje, de repente, depois que você recusou meus
convites para irmos ao cinema. Pensei: Que merda, caí nessa de novo! Aí vem outro homem
que me escreve as coisas mais emocionantes, que me induz a expor minha interioridade e de
repente fecha as portas. Um mentiroso emocional fluente, um mago do engodo. É como se você
estivesse morrendo de frio, alguém vem e lhe cobre com uma manta gostosa e quente. Você
começa a se acostumar, e, na hora em que relaxa, alguém a arranca. O.K., isso é um pouco
melodramático, mas foi a sensação que tive. É claro que todo mundo tem encontros que não
dão certo; isso é uma realidade da vida. O que me provoca uma sensação miserável é que justo
quando alguém me toca, oferece reconhecimento e valorização, tudo se revela uma mentira.
Não tenho nenhuma vontade de achar que você é um cafajeste manipulador e não creio que
você seja, mas NUNCA MAIS vou confiar em latinos. A terceira hipótese é que você acha que
quer intimidade intelectual, física e emocional, mas não tem abertura real para isso. Talvez
você seja assim e não vai mudar. Espero que não. Você disse que eu podia, pelo menos, ter
a satisfação de ter sido convidada a subir. Agora pode ter a satisfação de jogar fora esta
mensagem carente, emaranhada, confusa. Com certeza, vou me arrepender de mandar isso, mas
é melhor se arrepender do que se faz do que do contrário. Se você for capaz de entender o que
estou dizendo, agradeço. Por mais perturbadores que tenham sido os últimos dias, foi muito
estimulante conhecer você um pouco. Eu me senti viva.
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A incapacidade de investir mais
do que 10% em uma nova relação
é o traço mais marcante que
Daniela nota nos homens que
tem conhecido pela Internet.
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Quando descobrem que ela não
se encaixa perfeitamente num
ideal, saem correndo em direção
à próxima conquista. Vai em
frente que atrás vem gente.
Daniela ainda não perdeu as
esperanças, mas acha frustrante
conhecer tantos homens que
não têm garra para insistir
além da primeira tentativa.
Saímos duas vezes, e ela desistiu.
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Nosso encontro foi mágica pura. Se você sente uma
fração do que sinto, acho que precisamos explorar
isso até o fim. Que dia maravilhoso para estar diante
de uma página em branco.
Acabo de chegar ao escritório e encontrei um buquê
lindo, de flores cor de salmão. Obrigada, você tem um
gosto apuradíssimo. Me diverti muito ontem à noite.
Você aprecia as coisas como eu, inclusive as aparências.
Suponho que seja por isso que me dedico tanto à busca
do design perfeito. Sua proposta é tentadora, mas percebo
que ainda não sinto o que deveria sentir. Não estou onde
deveria estar para explorar nossas potencialidades.
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Agradeço sua resposta gentil e clara. Se não for penoso
demais, você poderia me contar quais são seus motivos?
Se for porque você não está pronta para qualquer pessoa,
eu posso esperar. Mas, se for algo a meu respeito, por
favor, seja franca.
São as duas coisas. Não posso corresponder ao que você
está sentindo por mim, e me envolver seria repetir erros
do passado. Quero você bem demais para fazer isso.
Espero não ter criado expectativas falsas, ou ter sido
desrespeitosa de alguma maneira.
Não tenho remédio senão aceitar sua posição, tão
contrária ao que minha intuição diz. Quando estamos
juntos, parece tudo tão justo e natural, como um pé
esquerdo e um pé direito. Sinto que sua cabeça me está
rejeitando enquanto seu corpo diz: Não liga para ela;
está assustada, mas você pode espantar esse medo.
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Érica era artista e administrava o departamento de artes
plásticas de uma universidade conhecida. Magra, bonita,
além de inteligente e culta, era amante da Itália e estava
interessada em mim. Nosso primeiro encontro foi ótimo e,
logo em seguida, marcamos uma visita a seu ateliê. Faltava
um mês para a inauguração de uma individual onde ela ia
expor uma série de pinturas baseadas em contos de fada.
Antes da visita, ela cometeu o erro (ou acerto) de me mandar
fotos digitais das ditas. Esquecendo que a humanidade se
acabaria se todos dissessem tudo o que pensam, comentei que
as pinturas revelavam muita habilidade, mas não eram o tipo
de coisa que costumava me interessar. Ela cancelou a visita,
alegando que a arte dela era parte essencial de sua pessoa.
Dois meses depois, ela ligou para se desculpar, dizendo que
a exposição tinha sido um sucesso. Tivemos um segundo
jantar, também ótimo, durante o qual fez alusões ao ocorrido.
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Escaldado e precavido, desviei-me do assunto. Mas, no meio
do terceiro jantar, ela começou a relacionar toda uma série de
motivos pelos quais eu poderia não ter gostado das pinturas.
As explicações foram ficando mais fantasiosas e eu mais
irritado, até que não agüentei e disse: E se eu não gostei
simplesmente porque são ruins? Rapidamente acrescentei:
Estou brincando, é claro. Devo ter imaginado que escaparia
com vida porque ninguém jamais diria uma coisa tão absurda
sem estar brincando. Mas ela percebeu minha sinceridade,
levou o comentário como um murro na cara, e desatou a
chorar. Exalando fumaça pelos olhos e orelhas, disse que eu
era a pessoa mais arrogante que jamais tinha conhecido e que
nós, ricos, achamos que somos melhores que os outros, mas
não somos; e achamos que sabemos mais que os outros, mas
não sabemos. Atirou o guardanapo na mesa com estardalhaço
e saiu batendo portas em pleno pato de Pequim. Às vezes
custo a acreditar nas coisas que saem da minha boca.
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Depois desses anos todos, sua terapia parece
não estar dando em nada. Você se comporta
como empregado de sua ex-mulher. Nossa
degustação foi mal porque você se preocupa
mais com ser correto do que com ser feliz.
Quando a gente ama, pouco importam as
aparências: se você rói as unhas, mastiga com
a boca aberta, pendura arte cafona na parede
ou mexe os lábios enquanto lê. É como a
Vênus de Milo, na qual as imperfeições são
parte da perfeição. Sempre fui da torcida dos
que queriam ver você mais forte, enxergando
mais, vivendo melhor, usando suas qualidades,
em vez de ficar para trás, como um espectador,
analisando os defeitos dos outros. E meu time
perdeu. Nossa, como apanhamos! Mas, como
sou boa perdedora, deixo o campo orgulhosa
de ter dado o melhor de mim, o meu tudo.
Claro que continuarei a torcer por você, a
distância. E a porta continua aberta. Lembre-se
que viver não significa encontrar defeitos no
mundo, mas se inspirar, vibrar e amar, tudo
até o limite, apesar dos limites. Você é tão
ligado em arte, no entanto esquece o que
importa: a arte de viver. Para cada não existe
um sim. Um sim, outro sim e outro sim...
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Será que o departamento celestial de
marketing combina o gene do cabelo
ruivo com o gene do gênio fogoso, ou
será mito a intensidade das ruivas
como Felícia?
Jamais conhecera alguém com tanta
ojeriza ao cigarro. Ela atravessava a
rua para não cruzar com alguém que
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estivesse vindo com o cigarro aceso
e evitava qualquer restaurante com
seção para fumantes. Felícia se dizia
hiperalérgica, mas a hostilidade ao
cigarro era ferina demais para ser só
isso. Não morro de amores por
fumaça, mas gosto menos ainda de
uma boca espumando de raiva.
Motoristas de táxi penduram avisos
de não fumar enquanto impregnam
o ar com desodorizantes vulgares.
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Uma tautologia é um argumento circular,
verdadeiro por definição.
A reificação ocorre quando elevamos um conceito
inventado pelo homem a um nível que aparenta
transcendê-lo e depois esquecemos que fomos nós
que o criamos.
1.0 todo juízo de valor se fundamenta na
moral ou na estética, duas tautologias
reificadas
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1.0.1 os juízos de valor decorrem da
luta pelo poder
1.0.2 os juízos de valor moral de uma
sociedade viram o código de conduta
1.0.3 os juízos de valor estético de uma
sociedade viram o gosto dominante
A linguagem é um sistema tautológico, um sistema
amigo. Posso manipular qualquer conceito a meu
favor. Nos namoros, comporto-me segundo a
moralidade que escolhi. Considero as pessoas
atraentes de acordo com a estética que adquiri.
Existe mágica quando faíscas não tautológicas
começam a voar, e nessas horas sinto uma tentação
desgraçada de reificar tudo o que não compreendo.
2.0 o mundo é a soma das tautologias reificadas
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Gerda é consumidora de psicanálise e
fornecedora de psicoterapia. Era gordinha,
e quando emagreceu as amigas se tornaram
competitivas e os homens se transformaram
em verdadeiros cavalheiros. Não há dúvida:
o mundo é mais generoso com os magros.
Durante boa parte da vida pesei entre
cinco e vinte quilos acima da média para
minha idade e altura. A gordura era um
escudo que me protegia do presente.
16
Podia adiar tudo para o dia em que virasse
“normal” e assim me acostumei a viver no
mundo do amanhã. Um belo dia, encontrei
um jeito de emagrecer e perdi o excesso de
bagagem. Mas a ânsia de tapar o buraco
foi apenas desviada. Desde que emagreci,
percebo como as pessoas me tratam
como uma pessoa bem resolvida. Até eu.
A ironia é que resolvi perder peso como
presente de dez anos de casamento para
minha mulher por haver aceito um marido
gordo. Foi justo aí que ela me deixou.
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Fiz poucas perguntas durante nosso encontro porque o pessoal do Departamento de
Intuição estava ocupado demais. O escritório deles fica num outro andar e eles nem
sempre vêem as coisas da mesma maneira que os colegas taxonômicos do departamento
de fatos. Mas o importante é que gostei de você e senti que você gostou de mim. Mas não
sei se gostou muito ou pouco, pois o maior elogio que você conseguiu puxar de dentro do
chapéu foi dizer que achou animador termos conversado por duas horas com tamanha
facilidade. Bem, mas isso é problema meu, pois você faz bem em ser cautelosa. Para que
você me conheça melhor, vou me abrir sobre duas coisas que me deixaram preocupado,
mesmo correndo o risco de pôr tudo a perder. Pouco antes de a gente se despedir, você
disse: Sou bastante inflexível quanto a passar os fins de semana em minha casa de
campo. Claro que isso é algo que poderemos algum dia fazer juntos, mas por enquanto
ainda não. Essa frase poderia ser interpretada como: Precisamos fazer as coisas à minha
maneira, quando eu achar certo. A outra coisa é que, durante o almoço, quando você
descreveu as duas relações mais importantes de sua vida, o fracasso foi sempre culpa
do outro. Talvez você considere prematuro baixar as defesas e me contar o que você
considera suas falhas nessas relações. Você não precisa responder; só queria poder
falar, ser compreendido. Acho que temos muito que apreender um com o outro, mas,
se você entender essas preocupações como críticas, dificilmente nos daremos bem.
Mas, se você as entender como uma aposta de que só podemos ter uma relação completa
se nos abrirmos, adoraria planejar a tal viagem de bicicleta pelo vale de Loire.
17
Não sei como responder. Muito do que você escreveu me provocou aquela ânsia de
querer me explicar. Sinto também uma angústia de você já estar apontando meus
defeitos. De positivo, no final do parágrafo você me lembrou o lado que eu mais gostava
no cara com quem tive minha última relação, por isso vou tentar responder sem ficar
na defensiva. Sobre ser autocrítica, passei décadas sendo assim. E ainda sou bastante
introspectiva. Tenho entrado e saído de análises, algumas úteis, outras não. Fiquei
deprimida do colegial até os 20 e tantos anos de idade, até me dar conta de que tinha de
assumir o controle de minha vida em vez de me culpar pela miséria do mundo. Sou mais
feliz hoje do que jamais fui. Talvez tenha perdido um pouco de minha capacidade de
questionamento e, você tem razão, às vezes sou um trator. Mas (e você talvez não goste
disso) decidi ser eu mesma. Com relação ao último namorado, meu analista me disse que
achava que ele era muito doente e que a relação continuaria difícil se ele não fizesse
análise. Estávamos destinados a falhar, menos por minha causa do que por ele. Por mais
de um ano depois do fim da relação me critiquei muito, absorvendo toda a culpa que ele
me jogou; e isso era incrivelmente doentio. Hoje sinto como se um peso tivesse sido
tirado de cima de meus ombros. Olhando para trás, não entendo como pude me
questionar tanto. Em alguns departamentos, sou flexível, espontânea e aberta. Estava
confessando minha obsessão — que venho tentando abrandar — por minha casa de
campo. Como proprietária, essa atenção tem também um lado prático — você nunca sabe
o que está acontecendo se não puser os pés lá (tem havido apagões e árvores e garagens
caindo por causa de ventos fortes etc.). Falei aquilo para você se sentir à vontade, para
não achar que a gente precisava se envolver logo. Bem, agora você sabe um pouco mais
sobre mim. Não estou dizendo: “Sou assim e acabou”. Estou disposta a trabalhar, mas não
gosto de começar tão cedo, mal conhecendo você. Gostei muito do que vi. Você tem
muitas qualidades que procuro. Considero uma proeza ter podido conversar com alguém
por tanto tempo, querendo escutar e debater, sem nenhum momento de estranheza.
Fluiu, foi natural, gostoso. Será que vou me sentir inadequada? Não sei, mas já estou
começando a me sentir assim, um pouco.
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os convidados
trouxeram presentes
de alguns ela gostou
apaga a luz
lá vem o bolo
tomou coragem
mirou soprou
Ivanoé
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beijos no rosto
beijos no ar
todos se foram
pia cheia
louça suja
até amanhã
querendo sentir
os ventos novos
lambeu a ponta
do indicador
mas o ar
parou
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Hiroko veio de Ourinhos com
Patrício, o filho de 8 anos, e
penou para aprender as regras da
cidade grande. Sente-se insegura
quando lida com gente que já
absorveu esses códigos. Algo nos
meus olhos fez com que Hiroko
se entregasse, mas ela não sabia
se estava confiando em mim ou
na projeção de seu desejo. É fácil
se enganar com pensamentos,
mais difícil com sentimentos.
Mas quem deseja muito querer e
ser querida nem sempre consegue
separar uma coisa da outra.
Hiroko ficou encantada comigo,
mas não agüentei a idéia
de virar tábua de salvação.
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Pessoa charmosa precisa de homem
calmo, sensual, ligeiramente irônico
e altamente inteligente para passear
pela cidade. Vamos ver aonde isso dá?
Sou tolerante com tudo menos com
egoísmos desenfreados e libidos
retraídas. Você precisa ser complexo
e interessante, o tipo de pessoa que
a gente leva um tempão para conhecer.
Você precisa ter amor-próprio para
que a vulnerabilidade seja humana
sem ser carente.
Fotos deslumbrantes, tiradas quando
ela era mais jovem, com cara e corpo
de modelo. Bela sombra de um belo
passado, ela parecia profunda, mas
nossa conversa oscilou entre o mundano
cansado do mundo e o palavreado
cansado do falatório. Houve momentos
intensos, mas o patrimônio líquido foi
menor do que a soma dos particípios.
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Só perguntei porque minha intuição estava captando
sinais ambíguos. Você se comporta de maneira agressiva,
mas qualquer conversa revela correntezas profundamente
femininas. Além da inteligência e da curiosidade, gostei
da sua doçura (sim, deu para reparar) e da vulnerabilidade
cautelosamente escondida. Essas suas partes valorizariam
o homem que eu gostaria de ser. Mas também me
pergunto se outras partes suas — o lado impetuoso,
intenso, impaciente — não se cansariam logo do homem
que sou hoje. Você é uma mistura dessas e de outras
coisas, e quando perguntei se você via alguma chance
eu estava perguntando, na realidade, que partes de seu
canteiro precisavam ser regadas. Será que são partes das
quais posso cuidar? Estou sendo retórico — nenhuma
resposta é possível. E essa linha de especulação vai
21
desaparecer sem deixar vestígios quando a mágica
acontecer, fantasiada de maneira imprevista.
Espero sinceramente não ter dado uma impressão errada
quando convidei você para subir até meu apartamento.
Como não posso esperar que leia meus pensamentos,
queria compartilhar o que penso sobre o sexo: como
não me interessa o sexo casual, preciso de tempo para
conhecer uma pessoa até nos tornarmos íntimos. Preciso
me sentir confortável e confiar que a relação tem potencial
para durar mais do que três semanas. E, quando meu
parceiro e eu damos esse passo, precisamos parar de sair
com outros para concentrar as energias na relação.
Não acredito na exploração de várias relações ao mesmo
tempo. Por isso, se brinco com você no sofá, só estou
brincando com você no sofá.
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A vida inteira acreditei que ser parte
de um casal era o estado natural das
coisas. Eu e ele éramos vistos como
um par perfeito. Aos poucos, passei
a ver nossos laços como inquebráveis,
quase simbióticos. Mergulhei minha
individualidade no todo, de bom
grado. Dei a ele diversos poderes,
especialmente a autoridade moral
de meus pais. Condecoração perigosa,
mas eu tinha pouca consciência
do que estava fazendo e pouca
consciência de que tinha pouca
consciência. Agora estou procurando
recuperar essa autoridade, como
quem puxa uma linha de pesca.
Preciso que ela more solidamente
dentro de mim, minha, somente
minha. Também estou começando a
lidar com o medo da solidão. Ainda
não declarei um armistício, mas há
terra no horizonte e gaivotas no ar.
Se meu filho é o maior presente que
recebi na vida, meu casamento é o
terceiro maior, e meu divórcio o
segundo.
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Faz bem a meu coração te ver tão feliz.
Pelo menos você parecia feliz ontem à noite.
Apesar de nossa relação não ter dado certo,
orgulho-me de continuarmos tão amigos,
e sua felicidade me enche de esperanças de
melhorar minha vida quando meu divórcio
sair e eu deixar esta casa. O medo da falta
de dinheiro e das despesas de morar sozinha
com minha filha me pesa nos ombros.
Quero ser mãe em tempo integral e ao
mesmo tempo quero ser artista. Por isso um
dos lados vai precisar ceder, talvez seja o
conforto de minha vida atual. Espero que
tudo termine bem. Sempre soube que o
interesse de meu marido por nossa filha é
mais teórico. Acho que ele a ama, mas não
sabe concebê-la como ser autônomo,
independente dele (típico do Narciso).
Por isso tenho plena consciência do peso
de ser a única provedora emocional.
Como proteger minha filha da negligência
emocional do pai? O que posso realmente
controlar? Apenas pensamentos passeando
soltos pela cabeça…
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Que coisa estranha conhecer na
cidade grande, por meio da Internet,
alguém de Mococa, minha cidade
natal. Iara trabalha num escritório
de arquitetura, numa daquelas
enormes fábricas reformadas onde
todos passam o dia olhando telas.
Nossa origem comum prometia, e
me fez lembrar como os casamentos
arranjados podem dar certo por
causa de crenças que os noivos têm
em comum. Judeus seculares que só
querem casar com seus similares
devem estar seguindo a filosofia
dos casamentos arranjados. Em
todo caso, nosso encontro acabou
não entusiasmando. Pensando
bem, talvez o argumento a favor
dos casamentos arranjados seja
pouco convincente.
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Juliana é uma anestesista que vai para o
trabalho todos os dias, como todo mundo.
Nosso primeiro encontro foi muito bom,
mas tenho dificuldade em lidar com o fato
de que ela passa as horas tentando impedir
as pessoas de sentirem dor, enquanto meu
emprego é tentar fazer os ricos ficarem mais
ricos. Todo mundo tem fantasias sobre a
vida dos outros, mas a rotina de um ator,
de uma modelo, de um artista, ou de um
25
músico é, de maneira geral, maçante, com
apenas alguns bons momentos. Juliana não
quer que eu a coloque num pedestal. O
trabalho é como o de um artesão altamente
qualificado em uma linha de montagem. Não
existe contradição entre tratar alguém como
um ser humano e, ao mesmo tempo, como
uma unidade que nunca viu e provavelmente
nunca mais verá. E, se suspeito que não
estou à altura de quem faz o que ela faz,
o problema é somente meu. E a anestesia
que ela usa não funciona para isso.
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Foi um jantar simpático, mas não
havia a menor chance. Apesar do
esforço de esquecê-lo, ela ainda
estava apaixonada por um conde
piemontês, vinte anos mais velho,
cujas filhas a haviam afastado do
lar ancestral da família. Uma
26
aventureira americana ameaçando
nossa herança. Nunca haviam visto
o conde tão feliz, mas não foi isso
que prevaleceu. Nossa conversa
não foi ideal para um primeiro
(ou último) encontro, mas foi
tocante ouvi-la contar como se
apaixonou à primeira vista, mesmo
ele podendo ser pai dela. Essas
histórias me fazem acreditar em
pieguices como “almas irmãs”,
como Papagenos e Papagenas.
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Katia se diz uma artista com os pés no chão,
uma combinação que considera rara. Está
em excelente forma, faz yoga todos os dias e
procura um homem que não fique na defensiva.
Considera cabeça raspada sexy e só gosta de
cabelo se for bastante e quase todo em cima
da cabeça. Quer pretendentes divertidos e
sensuais, mas que tenham, pelo amor de Deus,
um lado espiritual.
Tomamos um chá numa bela tarde de outono.
A conversa começou de maneira bastante
27
convencional. Aos poucos ficamos sem assunto,
e os silêncios cada vez mais incômodos.
Inquieta, Katia olhou para o relógio e disse que
tinha um compromisso. Minutos depois, cruzei
com ela na plataforma do metrô. Sorri e falei
qualquer coisa sobre coincidências. Ela retrucou
algo baixinho e saiu rapidamente da estação,
parecendo ansiosa. Será que exalei algum
feromônio venenoso? Fiquei perplexo e
incomodado com a repulsa de uma mulher que
se considerava tão antenada. Será que a axila
do meu ego estava fedendo? Será que numa
vida passada fui um sacerdote que a sacrificou?
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Quando Narciso morreu,
a lagoa onde ele se
olhava ficou tão triste
que as águas doces se
transformaram em
lágrimas salgadas.
As ninfas da floresta
vieram consolá-la,
dizendo-lhe: Não nos
surpreende que seu
luto seja tão profundo,
pois Narciso era lindo.
A lagoa respondeu:
Mas eu nem sabia
que ele era lindo.
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Laura parece durona, mas é só o
medo de sofrer. Nasceu em berço
de ouro, foi muito mimada, mas
não gosta de ostentação, nem de
falar de dinheiro. Casou-se com
um homem que parecia diferente
dos muitos casanovas que havia
namorado. Revelou-se um
satanás. Está recém-separada,
portanto não sabe se está pronta
para um novo relacionamento.
Para encantá-la, um homem
precisa ser carinhoso e
compreensivo. Não pode ser
impaciente ou mal-humorado.
Em troca, receberá uma mulher
linda e polivalente, que dá
trabalho, mas vale a pena.
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Entusiasmei-me cedo demais
com uma executiva loura
que (como eu) ama o sul
da França e (como eu)
tem muitos amigos gays,
ambos bons sinais. Depois
do jantar, declarei meu
entusiasmo e propus uma
porção de coisas. Ela nunca
mais retornou minhas
chamadas. O primeiro
encontro com a leveza
insuportável da etiqueta
virtual não foi o último
com a pressa derrapante
da ansiedade incontinente.
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Quando ocorre o face a face
surge às vezes um vazio tão
grande que engole as palavras.
Nesses casos não há o que fazer
senão agüentar firme até o fim
do jantar, pensando o tempo
todo: Por que diabo não
propus apenas um cafezinho?
Meu temperamento otimista
me faz esperar que cada
encontro seja o último.
Se eu fosse mais realista,
lembraria que raramente
tenho premonições ou
pressentimentos, mas,
nas poucas vezes que tenho,
invariavelmente dão errado.
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Peguei um ônibus até Arraial
do Cabo para conhecer uma
advogada russa, doce e sincera.
Monica era bonitona daquela
maneira rechonchuda que os
antipáticos chamam de fofa.
No final da conversa estava
claro que éramos muito
diferentes. E Arraial do Cabo
não fica exatamente na esquina.
Mas nada disso teria importado
se a química entre nós tivesse
cantado mais alta. Na semana
seguinte nos encontramos no
Rio. O contexto mudou, mas
não o texto. Pela primeira vez
empreguei a fórmula: Gosto de
você, mas não estou sentindo
o que precisaria sentir.
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Apesar da resposta tardia, não poderia de deixar de
responder a um homem que gostaria de assistir ao
programa da Xuxa ao lado de Lévy-Strauss. Mas a demora
não foi acidental. Ainda que você pareça muito divertido,
tenho a impressão que jamais consideraria a hipótese
de morar no exterior, longe do seu filho adorado. E não
posso comprometer-me a viver aqui. É pena que nossos
pendores geográficos pareçam tão opostos. Mas, se você
não tiver nada melhor para fazer, poderíamos tomar
um drinque, puramente na base da amizade. Você deve
saber que nós francesas acreditamos em fazer por fazer,
sem maiores objetivos. Assim como acreditamos no valor
dos encontros à toa. Mas se você, apesar da aparente
familiaridade com os hábitos femininos, tem o objetivo
de namorar, não ficarei ofendida se não me responder,
tal como autorizado pela não-etiqueta da Internet.
Fiquei feliz com sua resposta, mesmo com a demora
não-acidental. Não sou fã da tal não-etiqueta da Internet,
apesar de ter gente que prefere o silêncio a uma resposta
negativa. O silêncio me incomoda, como se o anonimato
revelasse a verdadeira natureza daqueles que só se
comportam com consideração no não-anonimato.
Eu, como bom escoteiro, sempre respondo, nem que seja
para dizer: Obrigado e boa sorte. Mas, voltando à sua
mensagem, acho que você colocou seu dedo gaulês no xis
do problema. Sou, de fato, bastante divertido, mas tenho
o rabo residencial preso. Puramente na base da amizade
soa ótimo. Vamos marcar nosso drinque?
Não era isso o que ela queria ouvir.
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Nara sorria muito e adorava dizer
aos amigos o quanto lhes queria
bem. Com um 1,5 metro de altura,
foi a mulher mais baixa com quem
saí. Admirei seu cabelo curto,
empinado como uma escovinha e
convidativo para o toque. O paladar
era refinado e o conhecimento de
vinho, profissional. Levei um bom
e velho borgonha para animar nosso
jantar. Por causa do vinho, Nara
insistiu em pagar a conta, novidade
desconfortável mas bem-vinda.
Minhas anotações: Macia e elegante,
com bom equilíbrio entre fruta
e acidez. Termina um pouco
prematuramente, mas deverá
envelhecer bem por vinte ou mais
anos. Infelizmente, a reação química
restringiu-se à fermentação.
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Deve ter ficado óbvio que eu
não estava à vontade com seu
radicalismo ideológico, por
isso ela achou que ia pôr tudo
a perder logo no primeiro
encontro. Então cometeu o erro
de sempre, como se sexo fosse
jeito de prender alguém. Na
manhã seguinte ela mandou um
email agradecendo o programa
da véspera. Quando não recebeu
resposta imediata, mandou
outro, furioso e despeitado.
Mas eu tinha passado o dia fora
da cidade e respondi, assim que
voltei, com uma censura branda.
Seu terceiro email pedia mil
desculpas, mas a essa altura
já estava tudo perdido.
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Odete tem a rapidez de São Paulo,
sem a ansiedade. É mais esperta
que muitos doutores que se vêem
por aí. Adora viajar. Voltar para
casa, mais ainda.
Quando nos encontramos, a primeira
coisa que me perguntou foi: Como
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foi seu dia? Surpreendendo ambos,
respondi que estava cansado da
artificialidade dessa pergunta.
Ela interpretou minha honestidade
como sinal de personalidade.
O passo em falso,
em vez de atrapalhar,
nos empurrou em direção à
intimidade sem seqüelas.
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A coisa mais atraente numa
pessoa é a paixão pela vida.
A minha é tolhida por um
aparato crítico que sempre
alimentei com grande
orgulho. Criei uma gélida
metralhadora que dispara
para tudo quanto é canto,
uma espécie de lente grossa
que distorce tudo e todos,
inclusive a mim mesmo.
Quanto mais julgo, mais
protegido me sinto. Quanto
mais julgo, menos chances
tenho de me surpreender.
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às vezes sou uma pessoa difícil,
mas quase sempre valho a pena;
personifico todos os elementos
contraditórios do fim do milênio:
idealismo, cinismo, romantismo,
ligeiro toque de niilismo, pretensões
budistas (mas não suporto insetos).
você se incomoda com essa ausência
de maiúsculas ou aprecia a sua
uniformidade democrática?
afinal de contas, quem é você
e por que está lendo isso?
Um sushi malfadado
com uma excêntrica brilhante
cujo comportamento arredio
me deixou pouco à vontade.
Intuiu a assimetria
de minhas maiúsculas
e não era boa de fingir.
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Uma referência casual a um
doutorado em filosofia política
foi a única pista de que esse
encontro seria o mais desafiador.
Desconcertantemente inteligente,
refrescantemente imprevisível,
Paula questionava tudo e todos.
Fascinado e intimidado, com
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a psique encharcada de vinho,
fui dormir como que marcado
por um ferro em brasa e me
retorci a noite inteira, embalado
pela trilha sonora do desejo
estancado. Mas Paula havia visto
na minha íris decente que eu
era careta demais e brilhante
de menos.
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A distinção entre o
ser humano
tal como é
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e
tal como se vê
Ao primeiro
temos acesso ilusório
ao segundo fragmentado
O espaço entre o ser e sua
auto-representação é a
arena onde nossas
tragicomédias se
desenrolam
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Com esta minha cara de gringo, fui chamado para ciceronear duas
psicanalistas americanas que vieram passar alguns dias no Rio. Elas eram de
Nova Jersey, estado que todo mundo em Nova York considera cafona. Tive logo
um bom entrosamento com uma delas, uma lourinha serelepe chamada Susan,
mas todas nossas conversas pareciam cair no mesmo lugar cerebrino e meio
estéril. Com a outra, uma morena sossegada chamada Rachel, tive conversas
menos estimulantes, mas ela me pareceu mais bem resolvida. Durante noites
sucessivas, levei as duas às gafieiras mais famosas da cidade, onde dançamos
até altas horas de maneira aleatória, a única que conheço (ninguém da minha
geração e classe social aprendeu a dançar de verdade; isso era considerado
coisa de gente suburbana). Aos poucos, fui me inclinando na direção de
Rachel, mas continuei me dividindo em duas faces, como manda a lei dos
bonzinhos. Certa tensão começou a cristalizar-se, mas a natureza da situação
impedia uma escolha. Durante as conversas com Susan, fui descobrindo grande
quantidade de preconceitos — geralmente conservadores — embutidos em
suas bases constituintes. Por trás da fachada sexy e do cacho pega-rapaz, ela
era surpreendentemente recalcada, o que explicaria sua história ininterrupta
de relações fracassadas (o fato de ter se especializado em terapia de casais
levanta questões que prefiro nem comentar). Rachel, por outro lado, apesar da
pouca curiosidade por questões teóricas, parecia ter intuição certeira e a
disposição de confiar nos instintos. Aí, de repente, aconteceu uma coisa que
me desorientou. Os três estávamos sentados, descansando no meio da segunda
noite, quando um rapaz moreno e gordinho de meia idade fez sinais para
Rachel do outro lado da sala perguntando se ela queria dançar. Ela se levantou
dizendo o equivalente em inglês a: Ele está olhando para mim há um tempão, e
eu saí na chuva para me molhar. A dupla sumiu durante toda a hora seguinte
(a gafieira tinha vários andares), e quando Susan e eu saímos atrás deles,
encontramos os dois rodopiando como loucos e suando em bicas. O homem,
que se chamava Clodomiro, não falava uma palavra de inglês, mas era alegre,
charmoso e entusiasmado e havia ensinado Rachel o suficiente (ela parecia
aprender muito rápido) para girarem com bastante desenvoltura. Clodomiro,
depois de perguntar se Rachel era minha mulher (cuméquepode?), pediu que
traduzisse que ele era de Bauru, trabalhava com informática, estava no Rio
visitando a família e há três anos estava tendo aulas de samba. Os dois
continuaram a dançar, encantados, enquanto Susan e eu nos recolhemos com o
rabo entre os cerebelos. Quando levei as duas de volta para o hotel, Rachel
estava em êxtase, silenciosa; e Susan excitada, por associação. Eu, por outro
lado, estava amargando a demonstração de como os corpos se comunicam sem
palavras. Senti-me humilhado, pois uma mulher que havia começado a me
interessar não tinha mais olhos para mim graças a um homem que eu jamais
teria considerado comparável, intelectualmente, culturalmente ou socialmente.
Nos dias seguintes, entendi que havia recebido uma lição de humildade, não
de humilhação. Uma que não poderia ignorar se quisesse continuar eliminando
os preconceitos embutidos em minhas bases constituintes.
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Fui grosseira ontem? Ou, muito pior,
uma CHATA??? Nossa, desconfio que sim.
Por que fui tomar DOIS martínis antes
de encontrar você? Antigamente, teria
agüentado dois martínis e um copo de
vinho sem nenhum problema. Ah, preciso
começar a encarar a vida de maneira
equilibrada e sóbria. Você me deu bons
conselhos. Pena que não me lembre
deles. Meu castigo é que toda quarta a
empregada chega às 8 da manhã, na
calada da madrugada. Portanto, nem posso
me recuperar da ressaca tranqüilamente
na cama. Em todo caso, desculpe se fiquei
falando, falando, falando, sem chegar
nunca aonde queria chegar. De minha
parte, resolvi NÃO passar a Páscoa com
minha família no México (touradas, ai
caramba!). Em vez disso, vou me divertir
com amigos queridos. Quase todos
músicos, meu tipo favorito de louco.
É isso mesmo o que vou fazer, e aí
a gente se encontra depois.
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Ah, o lamaceiro das diferenças
culturais. Filha de uma família
coreana e rica, Tina tinha senso
estético apurado e trabalhava
nos altos escalões da moda.
Combinando feminilidade
obsequiosa e temperamento
impetuoso, ela gostava de
escolher o restaurante, pedir a
comida e enfiá-la sugestivamente
em minha boca. Cheguei logo à
conclusão de que essa pujança
me interessava pouco, mas
continuei atraído pelo
comportamento sedutor.
Uma tentativa prematura de
precipitar o desejo levou à
morte caridosa essa investida
multicultural.
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Rashoschach. A vida se explica
juntando a história de Rashomon1
com a piada das manchas de
Rorschach2. Cada um vê à sua
maneira e cada um vê o que quer.
Filme de Kurosawa no qual três
testemunhas descrevem a mesma
cena de maneiras bastante diferentes.
2
Psicólogo (mostrando a primeira
mancha): o que o senhor está vendo?
Paciente: uma mulher pelada.
Psicólogo (mostrando a segunda
mancha): e agora, o que o senhor
está vendo?
Paciente: outra mulher pelada.
Psicólogo (mostrando a terceira
mancha): e agora, o que o senhor
está vendo?
Paciente: mais uma mulher pelada.
Psicólogo: o senhor só vê mulheres
peladas…
Paciente: é claro, o senhor só me
mostra mulheres peladas.
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Recém-saída de um relacionamento
complicado com um homem de idade
suficiente para ser pai dela, Ursula é liberal
para com os necessitados e conservadora
no âmbito econômico. Em boa forma física
e atenta à moda, prefere as trincheiras
do voluntariado aos eventos beneficentes.
Apesar da química insuficiente, continuei
batendo à sua porta por imaturidade
testosterônica graças à sua beleza
45
escultural. Para agradá-la, fiz uma
doação para a instituição de caridade
católica irlandesa onde ela atuava. Uma
bela noite, ela deu tudo por encerrado.
Eu estava usando uma camisa de que
não tinha certeza se gostava. Mais tarde,
comecei a suspeitar que a camisa dava azar
e tinha sido a responsável pela última ceia.
Ainda recebo todo ano uma carta de sua
instituição beneficente pedindo dinheiro.
No ano passado doei a tal camisa para seu
bazar de roupas de segunda mão.
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Sua mensagem me fez pensar; é verdade
que estou triste… Meu primeiro impulso
foi dizer que estou bem, saindo bastante
e me divertindo. Mas, se examino bem
meu estado de espírito, não posso dizer
que estou feliz, ou em paz comigo mesma.
Mas sinto que essa fase está terminando,
agora falta pouco. Também vejo que o
fim desse período coincide com uma
mudança importante em minha vida
(quem sabe…). Você sempre me faz
pensar, nem que seja como o advogado
do diabo. Já comi o chocolate com a
forma da Tate Gallery que você trouxe
de Londres. Estava delicioso. Todos no
escritório ficaram com inveja. Mas isso
é pouco, comparado com as outras
coisas que você me deu. Ontem sonhei
com você. Hoje de manhã me dei conta
que há vários dias não abro os emails, e
quando abri lá estava você. Nessas horas
tenho vontade de acreditar em telepatia.
Dá até medo.
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Vitória quer comentar um problema surgido
num relacionamento recente. Ela entende
que leva tempo para decidir se o interesse
é suficiente para estabelecer uma relação
exclusiva. Isso não a incomoda. No entanto,
quando uma relação se torna fisicamente
íntima, Vitória precisa de garantias
monogâmicas. Também precisa de fotos
(se você não quer incluir uma no perfil,
pode mandar uma por email; se você não
tem fotos digitais, a papelaria da esquina
pode escanear as fotos por bem pouco).
47
No fim da adolescência, essa bailarina
com futuro promissor mudou de rumo
e partiu em direção à física quântica.
Mais tarde, rendeu-se à matemática mais
fácil e lucrativa do setor financeiro.
Vitória considera o engajamento político
a qualidade mais atraente num homem
(ela trabalhou na campanha da Marta).
Seu banco de investimento acaba de
fundir-se com um banco maior e menos
exclusivo, e a indolência dos novos colegas
a está deixando desiludida. Apesar da
promessa inicial, a falta de engajamento
gerou indolência e desilusão.
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Ninguém jamais conseguiu definir
satisfatoriamente o que é arte por
um excelente motivo: arte não
existe. Que nem Papai Noel: existe
o conceito de Papai Noel mas não
existe o próprio; existe o conceito
de arte mas não existe arte. A única
coisa real nos chamados objetos de
arte é a matéria de que são feitos.
48
Eu tenho pena de você e de sua
concepção materialista da arte.
Que vida mais pobre e restrita.
Eu é que tenho pena de você. Sua
visão do mundo é doce e romântica,
mas é a ilusão de quem vê sombras
dançando na parede da caverna.
A busca quixotesca da verdade qualquer que seja o resultado é o impulso que me sustenta.
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Dizem que no
Oriente é polido
dizer que os filhos
se parecem com os
pais. Walkiria, pálida
como a neve, adotou
uma menina negra e
me contou que seu
tintureiro coreano
sempre comenta
como a menina é
parecida com ela.
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Sentado no banco de trás de um táxi
em Basel, correndo do aeroporto ao
hotel, a freqüência do pensamento
bruscamente alavancada pelo choque
de ar fresco que inundou meu
cérebro na escada do avião.
A civilização ocidental está em plena
ascensão. A sua decadência está
50
ameaçada de extinção. Mas ainda
restam esperanças de retrocesso,
pois resquícios de incivilidade
continuam em cartaz.
Alessandra uma neoclássica vestida
de contemporânea, portadora de uma
estética prevaricadora, fundamentada
em orelhadas promíscuas. Como tem
bom gosto mas não tem integridade,
seu bom gosto não tem integridade.
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Admiro Bia por dar aulas na escola pública de
um bairro tão perigoso. A tarefa não deve ser
fácil, ainda mais para uma mulher branquinha
e magrinha como ela. Acho o ensino uma grande
carreira e sinto que até teria jeito para a coisa.
Mas um palanque institucional reuniria minha
51
tropia pela didática com meu pendor pelo
detalhe, formando um todo harmonioso mas
pedante. Só o fascínio por detalhes singelos
poderia salvar-me (por exemplo, ainda me
encanta pensar que os líquidos giram em
direções diferentes dependendo do hemisfério
e que bolas de pesos diferentes chegam ao chão
ao mesmo tempo).
Que sacana! Tudo que ele queria era transar
comigo. E o pior é que eu topei! E logo no
primeiro encontro! Depois disso, inventou uma
história de que a ex-mulher estava querendo
voltar e que ele se sentia moralmente obrigado
a tentar. Como se houvesse qualquer coisa de
moral em seu comportamento! Duas semanas
depois, reparei que continuava ativo no site
e não me contive: mandei-lhe um email
superviolento. Lasquei bala em cima dele,
filho-da-puta!
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Minha beleza é do tipo que faz as pessoas olharem. Não é uma
beleza típica; mas natural, com estilo. É contida no dia-a-dia
mas, quando solto o cabelo e relaxo, dá gosto de ver. Então
o brilho realmente aparece.
Ela jantava com o filho pequeno num restaurante quando nos
conhecemos. Já estávamos começando a nos entender quando a
descoberta de uma paixão mútua pela Pina Bausch elevou nossa
freqüência hormonal. Ao levantar, perguntou se eu não queria
acompanhá-los a uma festa. Cada vez mais encantado, com o
passar das horas comecei a suspeitar que tivesse finalmente
encontrado quem eu procurava. No táxi, ela apertou minha
mão, sutilmente para que o filho não percebesse, e, a partir
daí, nos vimos todos os dias durante a semana seguinte.
52
Fora da cama é ela quem manda, mas na cama ela quer que eu
domine. Gritou para eu abrir os olhos enquanto transávamos,
senão parecia que eu não estava lá. Sua agressividade me
desconcertava, e isso me fazia querer agradá-la cada vez mais.
Mas no fim concluiu que eu não tinha garra o suficiente,
grrrrrrr.
Raiva. Será que confundo a potência da raiva com autoridade
moral? Será que respeito a raiva porque me amedronta? Será
que a raiva de uma mulher me atrai moralmente, enquanto
me repele sexualmente? Sua última mensagem dizia: Ah, estou
provando meu próprio veneno, e o gosto é horrível. Vou deixar
baixar a poeira... Nosso encontro mexeu muito comigo. Obrigada
pelo que me escreveu; é o que sinto também. Está tudo bem
comigo agora, mas ainda ando por aí tomando decisões
impulsivas... Desde domingo venho pensando que não consegui
realmente expressar direito o que desejo de um homem e de
um relacionamento. Quanto ao sexo, o que busco não é tanto
o domínio mas uma exploração apaixonada e também corajosa.
É só o que consigo dizer. É muito, muito difícil para mim
escrever sobre esse assunto, especialmente no email do trabalho.
Escreve de volta senão vou pular para dentro do ciberespaço de
tanta vergonha. Respondi, mas continuava me faltando garra.
Comecei a estudar capoeira.
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Carla teve um sonho em que todos
os homens usavam bonés apontados
para trás porque andavam muito
rápido. Acordou refrescada e saiu
em busca de croissants, mas
percebeu que já era tarde pelo
tamanho da fila na padaria,
ampulheta rudimentar mas eficaz.
Voltou para a cama e perguntou se
53
eu queria geléia em meu croissant.
Respondi que os prefiro sequinhos,
hábito adquirido durante muitos
anos passados entre um regime
fracassado e outro. Naquele
momento de recusa, ela se deu conta
de que quase tudo em mim era seco,
não só o croissant e o humor.
Resolveu então que queria um
homem com manteiga, geléia e mel.
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mais uma vez
o canto das sereias
me faz desrespeitar
a língua do mundo
escrita na testa
com letras garrafais
legíveis sob a luz
crepuscular dessa
gafieira ribeirinha
sem ajuda desses
óculos de camelô
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A eutanásia é ilegal no Brasil, terra do jeitinho.
Meu pai morreu de câncer, e seus últimos dias
foram passados sob doses crescentes de
morfina. A segunda mulher dele, uma libanesa
tenaz que já havia visto esse filme na França,
onde a eutanásia é permitida em casos
terminais, lutou como uma heroína para que
aumentassem a dose até o ponto onde se
precipitasse o óbito. Médicos e enfermeiros,
todos se recusaram a ajudar, dizendo que só
podiam aumentar se nós disséssemos que ele
continuava sofrendo. Ficamos bufando,
inconformados com o atraso de nossa
legislação, até que uma de minhas duas irmãs
teve uma luz e entendeu. Durante as próximas
horas, fomos pedindo que aumentassem a
dosagem, dizendo que meu pai continuava
sofrendo. Um monitor ao lado da cama
mostrava as funções vitais dele, traduzidas em
números. Sua morte foi uma morte numérica,
decretada no momento em que o último desses
indicadores se extinguiu. Meu pai morreu
segurando as mãos das quatro pessoas que
lhe eram mais queridas. Oito olhos alternando
entre seu rosto, cada vez mais inerte, e a tela
esverdeada, cada vez mais povoada de zeros.
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Como você, Débora também tem sangue real
húngaro, se bem que bastaria uma picada
para perdê-lo. Soube que vocês poderiam até
fazer um teste de DNA porque a mão
decepada de um desses reis magiares está
guardada num relicário em Budapeste. Mas
não se preocupe. Acho sua posição honrosa, o
que me fez pensar em MINHA total falta de
moralidade. Tudo o que você diz faz sentido.
Débora entende perfeitamente, apesar de
56
querer separar-se do marido mais do que
qualquer coisa no mundo. Eu talvez tenha
colocado as coisas de maneira meio grosseira.
Ela não está em busca de uma transa casual,
que deve ser como apresentei a coisa toda.
Está se sentindo supersozinha, aborrecida e
terrivelmente traída. Você se importa se ela
vier comigo no vernissage de sua amiga? Juro
que não é para apresentar vocês. Não estou
sendo malandra, é só para tirá-la de casa. Os
vernissages têm uma energia toda especial.
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Uma boa relação é aquela na qual meu
mishigas combina com seu mishigas.
Uma boa relação é um santuário mille-feuilles
em que as características individuais são menos
importantes do que a casa que se constrói.
Uma boa relação é aquela em que a paura
de parecer fraco não inibe a intimidade.
Uma boa relação é aquela na qual gostamos
mais de nosotros quando estamos com o outro.
57
Uma boa relação é como a seqüência das
Goldberg Variations número 4 e 30.
Uma boa relação é aquela em que a outra
pessoa ama você por quem você já é,
aujourd’hui.
Uma boa relação é aquela em que it’s o.k.
ceder sem ressentimento e aceitar sem martírio.
Uma boa relação é aquela em que não
se mente, mas também não se peca
por excesso de cinéma vérité.
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Sempre tive um fraco pela
Itália e pelas italianas, por
isso Elsa, uma neurologista
siciliana morena e sensual
parecia feita sob encomenda.
Mas nossas conversas fluíam
em direção ao cerebral, sua
58
especialidade. Apesar de
nossas freqüências mentais
estarem alinhadas, houve
pouca ressonância magnética.
Elsa ficou chateada quando
recusei dois convites em dias
consecutivos. Os motivos
eram legítimos, mas ela não
acreditou.
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Sempre tive um fraco pela França e pelas
francesas, por isso uma enófila parisiense
com olhos verdes soi-disant insuperáveis
e um cargo importante na Fundação Cartier
parecia feita sob encomenda. Françoise
pertence a uma categoria em extinção,
a do liberal clássico, bem diferente, senão
o oposto, do liberal moderno. Françoise foi
criada num paraíso tropical e se considera
exigente em matéria de areias brancas
e lagoas azuis. Por empatia, todo 7 de
setembro ela lê os discursos de Lafayette
e relê a declaração dos direitos humanos.
Françoise está à procura de uma cabeça
cuja grandeza não bloqueie a sensualidade.
Considera-se má candidata à psicanálise, mas
excelente candidata para um homem seguro.
Uma troca espirituosa de mensagens gerou
uma noite intensa, cheia de conversas
acaloradas em torno de um bordeaux antigo
e de queijos não pasteurizados. A operação
foi um sucesso, mas o paciente murchou.
Como estávamos jantando chez moi, ela
foi embora antes do ponto clássico de
hesitação conservadora para preservar o
decoro liberal clássico. Seguindo alguma
convenção curiosamente subentendida e
compartilhada, nunca mais nos falamos.
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palavras são esculturas gráficas
aprecio tanto a forma visual
quanto a forma sonora
a tonga da mironga do kabuletê
só faz sentido em nagô mas tem um gingado gostoso em português
faixa branca de judô serve
de fio dental para hipopótamo
faz mais sentido em português
mas é igualmente inútil
60
levados pelo som das palavras
sem ligar muito para o sentido
perambulamos pelos terrenos baldios da língua portuguesa
caro leitor
esse fascínio pela forma
é suficiente para manter sua atenção?
muitos dirão que não
mas o cultivo da forma
é uma espiritualidade secular
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Gabriela é uma designer premiada.
Formada na ESDI do Rio. Está à
procura de um homem carismático
e sagaz. Muito atraente, mas com
maneirismos excessivamente
sedutores. Não lido bem com as
promessas de desordem contidas
no excesso. Emprestei-lhe meu
61
lenço enquanto caminhávamos
de volta à sua casa. Esqueci
de recuperá-lo quando nos
despedimos na portaria do prédio.
Boa desculpa para voltar e me
despedir na porta do apartamento.
Não só não aproveitei como não
liguei. Ela deve ter estranhado.
Por que um homem atraído não
insiste?
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Odeio quando dizem que
penso demais. Fica parecendo
que sinto de menos. Como se
os pensamentos e as emoções
disputassem o mesmo espaço
dentro do corpo. Será que
minhas prioridades teriam
sido diferentes se o maldito
francês tivesse dito:
Sinto, logo sou?
Você também tem fama de
pensar demais? Ótimo, seria
um prazer pensar demais sobre
tudo, juntos; sentir demais
tudo, juntos; e aí rir demais de
tudo, juntos.
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Antiga dançarina, escritora frustrada e
mãe dedicada. Considera um homem mil
vezes mais atraente se ele sabe deixar uma
mulher se aproximar.
63
Meu segundo contato com a autoridade
moral. Asas de seda, ailerons de aço.
Heloisa desafia meus hábitos e minhas
racionalizações acumuladas. Pertence
à esquerda frugal, compra verduras na
cooperativa e acha estranho meu hábito
de comprar coisas em quantidade para
não precisar repô-las tão cedo.
Senti-me um grande-comportado
e um pequeno-burguês.
Heloisa foi a primeira a dizer que eu
parecia querer estar com alguém em
geral, em vez de com ela em particular.
Despediu-se com firmeza e tristeza, e,
de novo, esqueci de recuperar meu lenço.
Quando ofereceu enviá-lo por correio,
pedi que guardasse como lembrança.
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tínhamos o
mesmo gosto
o mesmo senso
estético
poderíamos
ter vivido
felizes para
sempre no
museu bauhaus
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Já visitei muitos países, mas nunca a Rússia.
Sua imensidão melancólica me amedronta,
como a bruxa malvada do leste. A Rússia
de minha imaginação é cavernosa, soturna —
como boa parte de sua literatura —, e a russa
de minhas fantasias é longilínea, pálida, de
ossatura facial pronunciada, espécie de
serpente do Bolshoi. Desconfio dessas russas
casamenteiras que permutam beleza eslava
escultórica pela assimilação conjugal ao
continente americano.
65
Iolande penetrou minhas defesas tirando os
sapatos e dobrando as pernas em cima do meu
sofá. Não só os pés e as pernas me encantaram
como seu cuidado com o tecido. Seus
passatempos prediletos: dançar e desenhar nas
paredes. Suas leituras preferidas: metafísica,
histórias sufi e contos de fada. Achei cativante
esse coquetel de sensualidade misturado a
deferência, mas as divergências culturais (com
relação, por exemplo, ao grau de intimidade
necessário para um beijo na boca) foram se
acumulando até virar um sanfonado de batidas
e trombadas.
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Quando um casal vive junto muito tempo,
um vira espelho do outro e não só porque se
tornam uma unidade. Param de questionar se a
imagem espelhada é verdadeira porque param
de questionar a natureza do reflexo. Demorou
muito para que eu reparasse que o espelho tinha
ficado turvo. Quando tentei passar um pano,
meu marido disse que sentia muito, mas era
tarde demais. Nossa relação não era saudável.
Nenhum prato quebrado, nenhuma acusação
estridente. Éramos apolíneos demais para isso.
O comportamento civilizado era a tônica.
O que foi mais difícil aceitar e talvez explique
meu luto tão doloroso foi a decisão apresentada
como irrevogável e inquestionável. A maioria
dos homens simplesmente não entende a
necessidade do luto. Todas as atitudes sórdidas
que se seguiram à separação — comportamento
incoerente com dez anos de convívio respeitoso
e harmonioso — não passavam de barreiras
inventadas para obstruir qualquer tentativa de
resolver os problemas. O espelho apenas refletia
o aspecto exterior. Hoje me dou conta que nunca
o conheci realmente. O pior do meu luto é a
percepção tardia de que nossa relação nunca
foi verdadeira o suficiente para merecer um
luto de verdade.
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Joana é experiente e gosta
de visitar lugares pouco
conhecidos. Também gosta
de cuidar do ninho. Nossa
conversa esquentou por
email, ferveu por telefone
e pegou fogo pessoalmente.
A relação foi intensa, mas
terminou logo porque
esbarrou no meu vazio,
negro como mármore
belga. Ela ficou com o
coração chamuscado e
com uma cópia do meu
screen saver favorito.
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Minha aparência? Dois braços, duas
pernas e uma cabeça. Está bem,
vou respirar fundo e tentar de
novo: Sou tão maravilhosa quanto
modesta. Sem nenhum traço de
exagero ou retórica, lanço meu
olhar cauteloso, detalhista e, às
vezes, melancólico, para examinar
os momentos pungentes da vida
68
de meus homens. Nas histórias que
se desenrolam em minha sala de
estar, a carência afetiva, parte da
condição humana, é tratada com
o maior carinho. Você vai me achar
uma fonte de prazeres simples e
delicados, o equivalente corporal de
estar deitado, num dia de verão
sufocante, e descobrir que o outro
lado do travesseiro está fresquinho.
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Mandei flores para desejar boas-
vindas a Karina, recém-voltada da
Tailândia, mas o entusiasmo de nossa
correspondência murchou sob a lupa
impiedosa de uma refeição. Karina
está tomando aulas de boxe tailandês,
mas descobriu que tem pouco talento.
É uma bela flor que não espanca.
Não está pronta para uma relação
69
e diz que percebeu, pela minha
linguagem corporal, que eu não
aceitaria nada menos do que isso.
Ela acha que mereço o que desejo,
mas não é nela que vou encontrar.
Galeristas e curadoras se equiparam
a psicanalistas no primeiro time de
fantasias de salvação, mas até hoje
nenhuma cumpriu a promessa.
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Comi sushi com uma nissei.
Original.
Adoro comida japonesa.
Mas não sinto ganas de comê-la.
Só quando estou indisposto.
Talvez por ser tão saudável.
Não faço a barba há dias.
Será que a Mieko não gosta de barba?
Os japoneses têm pouco pêlo.
Talvez as japonesas não gostem de pêlo.
70
Ou não estejam acostumadas.
Estou deixando a barba crescer.
Para ver como é que fica.
Depois de décadas de cara lisa.
Minha barba é meio rala.
Não sei se vai dar certo.
Se a Mieko detesta barba.
Não me importaria tirá-la.
Será que devo perguntar antes?
Ou devo fazer o que quiser?
Tirei, mas devia ter deixado.
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Um belo dia acordei com a sensação de
que nossa relação já tinha dado o que
tinha que dar. Acontece muito: a cabeça
liga o piloto automático e anda num
trilho, até que o corpo vem atrás e dá
um tapinha no ombro. Tomamos um
café depois do expediente e sugeri que
atravessássemos o parque para conversar.
No caminho, contei o que estava sentindo,
e Luisa imediatamente se dividiu em
71
duas: a parte que sofre e a parte que
administra o sofrimento. Detesto crises,
e minha culpa de fazê-la sofrer estava
contando com a ajuda do estoicismo
britânico que ela herdara do pai, um
inglês típico. Quando estávamos
chegando do outro lado do parque, de
repente os olhos dela se iluminaram e ela
perguntou: Você sabe o que as mulheres
mais querem no mundo? Comecei a dizer
que não dava para generalizar, mas ela
me interrompeu, impaciente: Segurança.
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Passei o fim de semana louca de vontade de te ver (e me sentindo culpada
por sentir esse desejo durante seu tempo com seu filho). E querendo, de
fato, me mudar para a sua casa (acho curioso como você usou essa
expressão comigo mais de uma vez; é algo que você costuma dizer para
mostrar interesse?) e morar de alguma maneira dentro de você (ah, então
o tempo é mesmo inseparável do espaço). Sinto-me frustrada com nosso
processo, que me parece constantemente truncado: sua necessidade de
correr da cama, de ir para o trabalho, de ir até onde está seu filho, de
cumprir obrigações de um tipo ou de outro, de, em essência, fugir…
Nunca tive um começo de relação na qual não passasse manhãs inteiras,
ou mesmo boa parte de dias inteiros, na cama, fazendo amor, mas
principalmente estabelecendo o que considero o alicerce da intimidade:
um tempo e um espaço onde o mundo exterior deixa de existir por um
tempo. Tudo isso pontuado por intervalos intensos de estar-juntos-no-
mundo, por novas infusões de estímulos externos. Em nosso caso, tenho
a impressão que entramos com facilidade em breves momentos de
intimidade que, no entanto, terminam antes do tempo; e aí nos tornamos,
separadamente, um você-para-o-mundo e um eu-para-o-mundo
(a transformação que acontece de manhã, quando você abre a porta e
72
entra no espaço “público” de seu apartamento, ou mesmo quando você
vai para o banheiro preparar-se, é para mim bastante palpável). Será que
isso é inevitável, por causa das responsabilidades e da maneira como
você estruturou sua vida? E será que eu serei vista, inevitavelmente, como
uma egoísta horrível por causa desta ladainha toda? Outra experiência
me deixou perplexa: nosso passeio pelas galerias de arte. Um espaço seu
e não meu. De alguma maneira, não pertenço àquele mundo; sinto-me
excluída e fora de lugar (é verdade que sou boa nisso). E a necessidade,
mais uma vez, de sair correndo: uma viagem de táxi quando lutei,
silenciosa e inutilmente, para processar mais esse fracasso. Foi um
momento em que tive esperanças, talvez sem razão, de que você
compartilharia seu mundo comigo; foi o único momento em que me senti
abandonada. Volta meu sentimento de inadequação: Será que você não
se entrega porque eu faço muitas perguntas (burras)? Porque sou caipira
demais? Porque me faltam as bases culturais necessárias para circular em
seu universo? Porque não sou “naturalmente” emotiva e “naturalmente”
maternal? Porque sou diferente de sua ex ou parecida demais? Ou será
que não me dou porque acho que você não está se dando, por uma ou
por todas essas razões? Suspiro... Bem, agora preciso continuar corrigindo
minhas provas. Besos.
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Um movimento interno vem ganhando força para que eu te
mande justificativas e pedidos de desculpas, mesmo que atrasados.
Fiz você se sentir inadequada, o que lamento profundamente.
Tenho certeza de que você já superou essa triste lembrança, mas
mesmo assim gostaria de corrigir o registro histórico.
Começando com psicologia básica: desde a infância carrego um
vazio que tentei preencher com comida e colecionismo. Pensava
que o amor resolveria tudo, mas ao descobrir, depois de casar,
que o vazio continuava lá, voltei a engordar e a colecionar. Assim
que me separei, comecei a namorar na ânsia de repor o que havia
perdido. Não sabendo que vazio na alma só se enche por dentro,
a busca virou obsessão. Nenhuma mulher jamais esteve à altura
do inatingível, por isso os últimos anos trouxeram uma longa
série de decepções.
Você foi uma candidata natural, mas o fim já estava contido no
73
começo. Não entendia nada disso na época, por isso me fixei em
coisas que não eram impedimentos reais, apenas detalhes para
resolvermos juntos. Confesso que também tinha dificuldade
com sua dificuldade em gozar. Por mais que você me dissesse
que o orgasmo não era necessário para o prazer, sentia que
minha habilidade estava em jogo, e isso me perturbava. Me
senti inadequado e creio que, do velho e bom jeito, precisei
compartilhar essa sensação fazendo você sentir o mesmo.
Se eu não gostava do seu gosto em matéria de roupa, isso nunca
deveria ter sido um empecilho; conversando francamente, esse
tipo de coisa pode ser resolvido sem interferir no que faz um
relacionamento funcionar e durar.
Noves fora, agora sei que fiz você sentir-se mal quando o
problema maior era meu. Você não era inadequada; era talvez
até mais do que adequada. Mesmo que você nunca mais tenha
pensado no assunto, espero que me permita o consolo dessa
confissão tardia, de um ex-católico para outro.
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Melissa nunca pertenceu completamente a
lugar algum, mantendo sempre um pé em cada
continente. Melissa sempre foi muito inglesa
na repressão às reações espontâneas porém
inconseqüentes, como gritar Ai! quando a água
está pelando. Melissa detesta quando não gostam
dela, por isso se esforça em ser gentil, mesmo
quando não quer. Melissa acha difícil dar ordens
à empregada. Se o mundo tivesse achado Melissa
mais atraente quando pequena, talvez ela tivesse
desenvolvido a postura de que: Não me importo
se você não gosta de mim porque a próxima
pessoa vai gostar. Mas isso não aconteceu.
74
Melissa incomoda-se quando as pessoas ficam
olhando em volta enquanto conversam com ela.
Melissa detesta ser previsível, por isso suprime
a espontaneidade para não arriscar um lugar-
comum. Melissa tem dificuldade em ficar com
raiva dos que têm raiva dela se considera que não
houve má-fé. Melissa evita situações emocionais
complexas e pede pouco na esperança que peçam
pouco dela. Talvez por isso Melissa tem poucas
amizades e não respeita muito as que tem.
Mas ainda resta nela uma inquietude, uma fome
de ver o mundo antes que se canse dele.
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Quando sinto uma emoção forte,
ocorre uma cisão entre a parte
que sente e a parte que observa.
A cisão cria uma distância, e a
distância faz com que eu não
esteja inteiramente presente. No
sexo, se não estou inteiramente
presente, a inspiração míngua,
e a relação torna-se burocrática.
Primeiro isso, depois aquilo,
a caminho do meu orgasmo e,
se tiver sorte, do dela também.
Como se isso não bastasse, ainda
não superei o modelo que aprendi
na infância de como se manifesta
carinho: minha tendência é
expressá-lo como um pai ou
um filho. E quem quer isso,
a não ser meu filho e meu pai?
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Nora se sente mais feliz nos
momentos em que pára de
julgar, por isso ela topou
tomar um café comigo, apesar
de eu estar separado mas não
divorciado. Nora declarou, de
saída, que não achava certo
tomar um café com um homem
que, afinal de contas, ainda
estava casado. Fiquei surpreso
com esse escrúpulo. Forma
acima de essência. Mas o maior
problema de Nora é o relógio
biológico, que está batendo
com um tiquetaque implacável.
Se eu estivesse disponível, talvez
fosse um bom pai, mesmo sendo
racional demais. Se eu estivesse
disponível, talvez valesse a pena
tentar curar esse defeito.
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As coisas andam sempre melhor quando deixo a realidade
ditar a seqüência dos eventos, em vez de permitir que
fantasias e projeções preencham as lacunas. Gostei muito
de te conhecer e gostaria de explorar o ritmo natural das
nossas possibilidades.
Acho que a essência do que estou lendo é que você gostou
de mim. Você quer ser cauteloso, mas gostaria de me ver
de novo. Essa é minha posição também. Então, o que
sugere?
Vocês americanas sempre vão direto ao ponto, deixando
o monopólio da sutileza nas mãos do cinema europeu.
Você avaliou corretamente a minha posição, mas tem
77
uma sutileza que não vou deixar você pisotear: quero
que interprete a cautela como sinal de vontade de
acertar e não de ambivalência.
Gostaria que fosse mais fácil me abrir, ser eu mesma e
identificar meus pensamentos com mais precisão. Mas isso
nunca é fácil. Sei que preciso me conformar com a idéia
de colocar primeiro um pé no chão e só depois o outro,
sem saber o resultado. Talvez alguns telefonemas, emails,
um outro encontro, e aí vemos como ficam as coisas.
Obviamente me sinto confortável com você, senão não
teria contado histórias tão pessoais sem ter certeza de seu
interesse por mim. O tempo todo me perguntava se essas
dúvidas não seriam, elas próprias, fruto do que havia
plantado com aquela história de andar devagar.
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Olga é uma assistente social que
trabalha com pacientes terminais e suas
famílias. Ela sabe que presta um serviço
valioso. Seu treinamento inicial foi na
área de terapia sexual, e isso gerava
muita conversa em festas e jantares.
Olga gosta de sutileza e nuança, de um
cheiro bom e de olhos que brilham.
Quer conhecer um judeu disposto a
viver novas experiências, mas está
aberta a outras religiões. Olga se sente
especialmente atraída por homens que
gostam de mulheres e que as entendem.
Sentado no business center de um
hotel em Cingapura, envio mensagens
eloqüentes para uma mansão no
Alto de Pinheiros. Olga é dedicada
ao judaísmo e à educação religiosa
de seus quatro filhos. É surpreendente
que esteja disposta a namorar cristãos.
Mas a vida é injusta com as mães de
muitos filhos, que juntam o desgaste
diário às conseqüências físicas de
tantos partos. Olga parecia exausta.
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Você tem um sorriso lindo e não mencionou, uma vez sequer, o plebiscito das armas ou a mania de freqüentar academias. E você parece saber
bastante sobre si mesmo. Também procuro alguém que queira compartilhar valores, como honestidade e clareza em relação aos sentimentos.
Meu coração até acelerou um pouco quando li o que você escreveu. Não sou nenhuma artista, mas tenho minhas paixões e arroubos do que as
pessoas chamam de criatividade artística. De maneira geral, sou dedicada, curiosa, aberta e responsável. Às vezes até demais. De vez em
quando orgulhosa e um pouco medrosa no amor, mas disposta a ousar. Como é que você se protege? Ou, então, me convence de que não é
necessário… Tenho muitas idéias (alguns dias), sou capaz de pensamentos profundos (erraticamente) e tendo a me apaixonar por intelectuais
(um vício que tem sido pouco saudável para mim). Quase te escrevi ontem à noite depois que nos despedimos. Tinha muito que dizer, mas não
lembro mais o que era. Eram reflexões boas e algumas até interessantes, mas agora já se foram. Certamente vão ser substituídas por outras.
Sei que o email é considerado um meio preguiçoso, mas para uma pessoa impulsiva como eu, que fala antes de pensar, esse é um jeito de ir
mais devagar e dizer mais com menos. Mas não se preocupe. Neuroses, fogos de artifício e a força da gravidade são facilmente contidos pelo
prazer de conversar, conhecer alguém, jantar e acelerar o pulso.
Tomei banho e me dei conta que ainda sentia seu cheiro. Foi um prazer muito particular dormir enrolado nesse delicioso travesseiro comprido.
Como um dublê, só que com uma pele muito mais gostosa. Quero recarregar minhas narinas, tatear a extensão completa do seu corpo, pausar
sobre seus lábios, massagear suas costas, ombros e pescoço. Esse impulso de massagear deve ser recompensa pelas horas que você passa
ajudando os outros. E, como para me castigar, quero reviver a sensação de embaraço que senti quando confessei já ter saído com centenas de
mulheres. Quero reviver o desconforto de saber que, de agora em diante, você vai especular, sobre tudo o que eu disser ou fizer, se não foi dito
ou feito antes. Mas tenho certeza que esse fantasma vai desaparecer com a intimidade, e a intimidade vem com o conhecimento.
Que dia mais especial. Obrigada pela sua companhia, pelo seu toque, seus beijos doces, o prazer profundo, a sensação gostosa de confiar cada
vez mais. Estou me deliciando com seu jeito calmo e sábio. Pétalas de rosa cobrem minha mesa. É bom me sentir plena. Você está em meus
pensamentos e me sinto bem. As perguntas estão indo embora e, no entanto, você permanece. Reparo na feliz ausência de debate interno
entre confiar em você ou confiar em meus sentimentos. Vim correndo não porque estivesse atrasada, mas por outros motivos: uma saúde
redescoberta, uma tarde revigoradora, uma alegria infantil? Adoro as flores. Elas me chocam com o tamanho e a dramaticidade. Um pouco
como tem sido conhecer você. Os momentos que passamos juntos não são dramáticos de uma maneira negativa. Pelo contrário, são
surpreendentemente fáceis. Mas o fato de isso estar acontecendo comigo — o fato de conhecer alguém de quem realmente gosto — é uma
imensidão. Considero minhas experiências, em todos os campos, como únicas, mágicas e engrandecedoras (freqüentemente por meio da dor
e da tristeza). Há vezes em que procuro encontrar um contexto para essa criação contínua do eu. Não sou culta o suficiente para encontrá-lo
em algo convencional. Às vezes o encontro na imensidão dos meus amigos. Mas geralmente invento o contexto — nas emoções, no crescimento,
nas ações, em meus filhos — observando e sentindo o mundo à minha maneira. Será que foi uma mágica encontrar você? Meu contexto diria
que sim. Em todo caso, estou feliz, muito feliz.
Espero que vocês se tenham esbaldado na piscina, soprando gêiseres no ar, nadando até os dedos virarem ameixas, até os corpos brotarem
guelras.
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Não estou nem um pouco frustrada com sua libido errática. Você continua preocupado com isso? Meus pensamentos e emoções têm muito mais
a ver com a situação geral. Espero ainda ter muitas conversas com você, verticais e horizontais. Emails crípticos (principalmente os meus),
libidos erráticas, conforto indubitável, palavras não ditas, outras não ouvidas — interesse, curiosidade, experiência, uma solução rápida para
um dia de solidão. Horários estranhos, convivência, proximidade, desejo, química, psicanálise, fantasia, aceitação, verdade proustiana. Entender
alguém de verdade leva muito tempo e dedicação. Você “entende” isso que estou dizendo? Há coisas que me pergunto se deveria estar sentindo
para continuar nossa relação. Mas a antecipação e o conforto que estão tomando conta de mim neste instante me fazem apertar Enviar.
O retorno desse homem, dessa sombra do seu passado, é um problema que posso ajudá-la a resolver? Ou você precisa fazê-lo sozinha?
Se eu não for parte da solução, não quero ser parte do problema.
Sei que não há nada o que possa dizer que soaria direito, ou que ajudaria a mim ou a você. Estou escrevendo para te agradecer. Pela sua
capacidade de me entender, de nos entender, de entender a situação. Estou consciente da raridade e do valor dessa compreensão. Quero
também agradecer o presente da sua pessoa. Fui abençoada, honrada, agraciada por vivenciá-la. Nenhuma dessas palavras descreve o
cruzamento de nossos caminhos da maneira certa, mas são todas elas verdadeiras. Obrigada também pelo que você me ensinou, pela pessoa
que me permitiu ser, pela sabedoria, abertura, sensibilidade, humor, honestidade, beleza, sensualidade, desejo, força, profundidade, bondade
e realidade. Sei que não há nada a dizer neste momento. Sei que você não quer ouvir falar de dor surda, arrependimento, confusão,
autoflagelação, ódio-de-si, racionalização etc. Obrigada por ter sido parte da minha vida.
Não sei se você fez o melhor para sua felicidade, mas sei que você foi respeitosa consigo e comigo. Eu a respeito porque você continua se
respeitando e sei que posso continuar confiando em sua palavra.
Ainda bem que você escreveu. Tive um dia triste, doloroso. Sua maturidade, bom senso e doçura me ajudam, mas também tornam tudo mais
difícil. Se tivéssemos convivido mais tempo, talvez nunca tivesse feito isso (ou talvez teria sido até pior). Hoje me parece tão errado. Não sinto
nenhum alívio pela escolha que fiz. Ainda me sinto consumida pela tentativa de entender o que sinto por você. É um sentimento mais forte do
que havia percebido. Incomoda não ter como descobrir o que é o certo sem a influência desses últimos dias e semanas. Eu não sei, não posso
saber, mas estou tentando continuar a fazer a coisa certa. Preciso dizer, mais uma vez, que isso não tem nada a ver com você; e sinto sua falta.
Realmente, não há nada que possa ser dito. Todo dia sinto falta de você. Fico me perguntando se teria sido diferente se eu fosse mais passional
em vez de tão dedicado a entender, a dizer a coisa certa. Se teria sido diferente se tivesse podido dizer: Vou ficar puto da vida e nunca mais a
perdoarei! ou: Odeio esse canalha! Se tivesse sido mais amante e menos analista. Talvez fique me remoendo assim porque seria conveniente
demais aceitar que não poderia ter feito nada porque (como você diz) não era “sobre mim.” Só pode ter sido sobre mim. Mas a verdade é que
nunca lutei por nenhuma relação. Nem pelo meu casamento. O fato de não ter lutado diz pouco sobre a relação, mas diz muito sobre mim.
O que tem de errado comigo? Será excesso de orgulho? Será autoproteção dizer: Tudo bem, vê se me importo, não estou nem aí! Em todo caso,
sei que ficarei ressentido e nunca lhe perdoarei se você não resolver esse problema de vez. Ou você tem uma relação bem-sucedida para que
minha dor e perda não sejam em vão, ou você arranca esse homem de seu coração. Espero que você descubra que as palavras podem melhorar,
mas não a pessoa. Porque havia algo entre nós dois que era mágico e não tinha nada a ver com cultura ou razão.
Obrigada pela mensagem. Estou capengando por causa de minha fratura, lutando, tentando não pensar demais. Não posso responder-lhe
adequadamente agora. Será que poderei algum dia? Lavar roupas ou buscar as crianças, tudo agora demora o dobro. Nossa, como entendo
pouco, tanto de mim como do amor. Mas é um problema meu. Nós tivemos muito pouco tempo. Nós tínhamos ainda muito para descobrir.
Por favor, deixe de lado a dor do que poderia ter sido. Seja doce consigo mesmo. Nada de brigas.
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Jogando conversa fora, Patrícia
me perguntou o que eu achava
do Bush.
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É claro que as potências
econômicas, políticas e militares
do mundo moderno abusaram
longamente de uma superioridade
que era fruto da prioridade
histórica com que conceberam
uma filosofia pragmática que lhes
possibilitaria dirigir a curiosidade
humana da metafísica para a
ciência e extrair do conhecimento
científico os dados para a
construção tecnológica em que
fundaram seu progresso.
Patrícia só queria ser gentil.
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Sou paulista da cabeça aos pés. Vibro com a
pulsação e a diversidade desta cidade. Sou
judia não-praticante e moro em Higienópolis
— isso diz muito sobre quem sou eu.
Carregados de desejo e munidos de uma
carga mínima de compatibilidade, passamos
uma noite juntos. Nunca mais nos falamos.
81
Nos Jardins a trama urbana relaxa o punho,
e a cidade vira mais orgânica. Isso afeta
subliminarmente a psique. A topografia de
um bairro influencia o espírito dos moradores
da mesma maneira que a língua de uma
nação afeta a personalidade dos habitantes.
A maneira de ser de uma pessoa pode mudar
de acordo com a língua que estiver falando:
tenho uma amiga que é uma pessoa quando
fala inglês e outra quando fala português.
Mas se quem mora nos Jardins
desenvolve uma mentalidade sinuosa
e quem mora em Higienópolis
desenvolve uma mentalidade quadriculada
que é melancólico em um bairro
também é melancólico em outro
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Renata detesta homens pães-duros e os que
falam de ex-namoradas, principalmente no
primeiro encontro.
Renata prefere homens com mais cabelo na
cabeça que na orelha e com um Q.I. maior
do que os trocados no bolso.
Renata gosta de homens que riem de si
mesmos para poupar-se de rir deles.
82
Sentados num banco, olhando para a lagoa,
conversávamos com intimidade maior do que
nossa compatibilidade merecia. São grandes
nossas diferenças em educação e cultura.
Renata é doce, de uma beleza suave. Mas o
seu jeito meio hesitante faz com que me sinta
impetuoso. Não gosto dessa sensação, com
sabor de ansiedade. Tento me convencer
que a reciprocidade é o melhor afrodisíaco.
Talvez queira apenas um pouco de sexo,
libido afogando sabedoria.
Sua intuição anuncia que não haverá pote no
final desse arco-íris. Mesmo assim, ela me quer.
Mas já baixei do empíreo rançoso da fantasia
para a dureza adstringente da realidade. Leva
tempo sentir para onde sopra o vento.
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Um ano atrás, um homem sentado à minha frente num jantar
comentou que tinha terminado com uma namorada porque ela
não se interessava por seus objetivos psicanalíticos e não
poderia ajudá-lo a alcançá-los. Já tínhamos bebido bastante,
por isso perguntei se ele não achava essa postura instrumental
demais. Para minha surpresa, todos em volta da mesa tomaram
partido dele. Na época, atribuí o fato a uma sociedade cada vez
mais utilitária e pragmática, mas desde então me venho
aproximando cada vez mais da posição dele.
Entendo sua reação ao comentário do homem. Parece
pragmático, quase egoísta, típico de uma geração ensimesmada.
Mas considero importante conviver com um parceiro que apóia
minhas escolhas. Meu ex-marido responderia: “Mas, se você vê
que a escolha faz mal à pessoa amada, não é sua obrigação
83
intervir?” Numa situação de vida e morte, é claro que sim,
mas, na maioria dos casos, se um dos dois discorda, é porque
acredita pouco na capacidade do outro saber o que é melhor
para si. Sinto isso com grande convicção por ter vivido com
alguém que achava que sabia o que era melhor para ambos.
Esse tipo de narcisismo é difícil de detectar, pelo menos no
começo, porque parece voltado para o bem do outro. Mas é
voltado para o outro apenas enquanto extensão de si.
Acho muito interessante a idéia de um narcisismo voltado para
o outro. Será que somos suspeitos sempre que apoiamos uma
escolha que aprovamos? Será que é só quando discordamos que
o apoio realmente conta? O grande lingüista e ativista político
Noam Chomsky, ao ser criticado por apoiar o direito de um
crítico do holocausto expressar opiniões, perguntou: Qual é a
virtude de apoiar as liberdades democráticas daqueles com os
quais concordamos?
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Sua avó foi do
Sacre Coeur.
Sua mãe foi do
Sacre Coeur.
Sueli foi do
Sacre Coeur.
Rebeldia não foi uma opção.
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Uma anomia anódina
impregna o ar anoréxico
ao redor de nossos
x-búrgueres malpassados.
Será que os defeitos do
entrecruzamento genético
têm equivalentes
pedagógicos?
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Linda psicanalista,
com olhos de gazela,
pernas finas de cegonha,
nariz rampa de lançamento.
Certas fisionomias inspiram +
respeito que outras,
pelos traços aquilinos,
pontiagudos e marcantes.
85
Quando alguém com esses traços
trai a expectativa, presta um
desserviço a todos que têm
aparência semelhante.
Ela achou que eu tinha talento
para paciente, dos que moram
com ela e não pagam, dos que ela
já teve muitos e não quer.
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Ela é baixinha, mas não atarracada. Usa óculos de fundo de garrafa, mas não é feia. Seu príncipe encantado será assombrosamente
inteligente, mas nunca arrogante ou presunçoso. Ele terá ultrapassado a fase defensiva da vida e estará pronto para conversar e
escutar.
Aqui estou, de manhã, depois de uma noitada de vinhos, ligeiramente surpreso por não estar de ressaca, mas sem querer dar
muito crédito à moderação. Que bom que você achou charmoso o personagem que descrevi, mas me pergunto se esse personagem
corresponde de fato à realidade. Sou fã da verdade e tive uma decepção recente quando uma editora, que havia escrito um perfil
fascinante, cheio de verve e invenção, revelou-se pessoalmente prosaica. Mais tarde me perguntei se não teria sido timidez e se
o tempo não teria revelado as mesmas qualidades do texto, indomadas por uma tela mas domadas por um ser humano. Ou será
que um de seus clientes não teria escrito tudo, à Cyrano? Uma história que serve de advertência, mas com moral indeterminada.
Voltando à vaca-fria, creio que me represento com fidelidade. Sou mesmo aquele personagem, nem carrancudo nem insidioso.
Histórias de suspense são divertidas, apesar da agonia que provocam, mas não fazem meu gênero. Não existe mordomo, não existe
crime e não há ocorrência para que se pergunte: Quem fez? Sou apóstolo fiel do gordo-e-magro das convenções não-românticas:
verdade & comunicação. Nada noir, nada no ar, nenhum mistério, só aqueles que vêm da capacidade imperfeita de me conhecer.
Fico feliz em saber que você não é nem carrancudo nem insidioso. Sinto muito se você se decepcionou com sua pequena éditrice,
mas você não acha que é de esperar se você insiste em corresponder-se com moças que ficam boa parte do tempo sozinhas com um
dicionário? Na teoria, eu poderia passar semanas assim, sem falar com vivalma. Na prática, sinto-me sozinha demais e me arrasto
para fora de casa, à cata de alguém para brincar. Na verdadeira prática, no entanto, tudo isso é teórico, pois o semestre acaba de
começar, e meu péssimo hábito de adiar todos os preparativos até o momento-depois-do-que-deveria-ter-sido-o-último-momento
significa que não faço nada senão correr como uma louca desvairada organizando projetos e aulas e coisas desse tipo. Ah, o luxo
de ficar na cama de ressaca e aí poder descobrir que nem estou de ressaca. Mudando de assunto, o que faz um “investidor
particular”? Conheço um jogador profissional e, pensando bem, não sei tampouco o que ele faz, mas o vejo fazendo musculação
o dia inteiro. Você deve ser um músico sério, pelo seu canudo. Sinto dizer que sou a pior das amadoras e que não entendo nada
de vinho. Mas adoro beber, e minha irmã é compositora.
86
Sua mensagem, gestada no redemoinho do começo de semestre, me fez sorrir aquele sorriso que você chama de encantador.
Realmente faz sentido a idéia que muito tempo numa sala (fazendo qualquer coisa) gere tédio, mas não esperava que esse tédio
alimentasse fantasias que se materializariam de maneira tão hiperbólica na página, ou na tela, só para tropeçar no efeito impiedoso
da presença carnal. Deveria ser um sagrado dever de todos os participantes desse carrossel amoroso manter os balões da
imaginação firmemente ancorados no padrão corpóreo, para não provocar um exercício fútil de disseminação projetiva. Músico
sério? Bem, fui algo assim por dez anos, mas em determinada altura virei competente o suficiente para enxergar meus limites
musicais e pobre o suficiente para enxergar meus limites materiais. Aí larguei a guitarra e virei jogador profissional (na cabeça
de alguns) ou gestor de fundos (no bolso de outros). Agora declarei um período sabático, de duração indeterminada, após o qual
talvez faça alguma coisa mais “engajada”. Gosto de ensinar mas, sem um Ph.D., a única coisa que posso fazer é atazanar as faixas
mais baixas na academia de taekwondo. Se você adora vinho, nem precisa ser uma conhecedora, já está aprovada. Eu não entendia
nada do assunto até pouco tempo atrás. Agora entendo, portanto sou um HOMEM! Sei o que quero e vou atrás (ou peço ao garçom
que traga). Vini vidi vici.
Poderia ter escrito ao acordar, mas resolvi sair para respirar o ar molhado pela chuva que acabara de cair. Meus alunos e eu
estamos lendo uma história arrepiante, Der Sandmann, de E.T.A. Hoffmann, de onde Freud tirou a idéia do “estranhamente
familiar”. Li essa história alguns anos atrás, quando estava morando sozinha num porão na Lapa e descobri que não era um texto
ideal para ler à noite. Meu apartamento era revestido de linóleo preto, escuro como um túmulo, com barras de ferro protegendo
as poucas janelas por causa de um estupro que ocorrera no ano anterior. Mudando de assunto, você não acha que a gente deveria
sair para tomar um cafezinho simpático e desmistificador antes que as projeções mútuas nos afoguem? Em suas cartas, sinto
que estou virando uma princesa-gênio. Detesto admitir isso, mas ando com os pés firmemente plantados na terra, até meio
desajeitadamente. “Investidor particular” é um pouco alarmante para esta neta orgulhosa do proletariado, mas a verdade é
que estou mais fascinada do que alarmada.
Para que nos conhecermos se podemos continuar alimentando fantasias que nos satisfazem tanto? Vou tirar os óculos de fundo de
garrafa de seu rosto, olhar em seus olhos indefesos e comentar como são lindos enquanto você resmunga alguma coisa sobre não
estar vendo mais nada. Então, você é uma neta orgulhosa do proletariado! Eu, pelo contrário, sou filho (sem orgulho) da burguesia,
porém conformado de nunca ter trabalhado numa fábrica ou no campo. Também preciso confessar, em nome de veritas, que às
vezes sou elitista, mas nunca esnobe (uma palavra que remete a luvas batendo em rostos para provocar duelos).
Que história é essa de elitismo? Muitas definições me ocorrem agora, mas talvez essa conversa deva ser adiada até o cafezinho.
Na realidade, considero o elitismo intelectual uma espécie de equilíbrio mental. Mas o elitismo social me dá vontade de vomitar
e imagino que não seja desse tipo que você esteja falando. Em todo caso, estou cansada demais e posso parecer mais severa do
que seria bom para minha imagem. É quinta-feira, e minha cabeça já está fundindo. Depois de dar três aulas no mesmo dia, fico
incapaz de articular uma frase. É até engraçado, posso estar em meu escritório tentando explicar algo para um aluno, e ele ou ela
acabam me fornecendo todos os verbos. Meus deveres docentes não são tão cansativos assim, mas preferiria estar à beira de uma
piscina. Só que não há nenhuma por aqui, e está fazendo um frio desgraçado.
Obrigado por manter um canto da minha psique firme no inverno. Nas artes plásticas, minha ótica tende a ser formalista, portanto
o “estranhamente familiar” me fascina. Será ele resultado de determinadas constelações formais, ou de um pulo-do-gato poético
que não pode ser explicado por meio da forma? Depois de uma década de silêncio, resolvi escrever novamente sobre arte porque o
convite veio de um artista que desenvolveu um tipo de pintura estranhamente autoconsciente. Um de meus desafios será entender
se essa autoconsciência — uma piscadela estranhamente familiar de sabedoria e inocência perdida — se manifesta por meio de
uma operação formal ou vem de algo metafísico. Vou pesquisar muito para não chover no molhado, e o Dr. Freud será parte disso.
Nosso cafezinho desmistificador correu bem, mas senti que o fato de ela ser baixinha, usar óculos fundo de garrafa e não ser muito
bonita diminuíram meu desejo de explorar a promessa de um terreno epistolar promissor.
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Teresa se formou em psicologia
e gosta de entender as pessoas.
Administra uma clínica para
desabrigados, e sua equipe virou
uma segunda família. Lá ela se
sente o máximo: competente e
confiante. Teresa tem grande
variedade de amigos e pensa
que eles representam diferentes
facetas da personalidade dela.
Quando nos encontramos,
Teresa procurou me entender.
Logo percebi que a atração
que eu sentia não era recíproca.
Tivemos uma conversa
agradável enquanto
rangíamos por dentro.
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Vademecum
Vademecum forense
Vademecum
Posologia
Posologia vide
Posologia vide bula
Posologia vide
Posologia
Non
Non bis
Non bis in
Non bis in idem
Non bis in
Non bis
Non
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Vera considera o mundo sua
ostra e inspira-se nas múltiplas
maravilhas que ele oferece.
Quer conhecer um homem que
respeite limites e compreenda
como é difícil relacionar-se com
outro ser humano. Não gosta de
perder tempo trocando mensagens
89
quando a prova está no corpo-acorpo. Prefere marcar logo um
encontro; depois é que se pergunta
se valeu a pena tentar.
Enveredamos por uma conversa
divertida e bem sintonizada, mas
a esgrima verbal não levou nem
ao corpo-a-corpo nem ao mente-
a-mente. Mas valeu a pena tentar.
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Depois de quatro dias de descompressão e relaxamento,
estou pronto para que estas férias durem para sempre.
Tem chovido todos os dias desde que chegamos. Talvez
seja o jeito de a natureza compensar a seca do ano passado,
que deixou as usinas hidrelétricas paradas e provocou
racionamento de energia. Quando pára de chover, as gotas
continuam penduradas no ar, sem pressa de ir embora, sem
nenhuma brisa de verão para secar a atmosfera e limpar o
céu. Estou com três gerações de mulheres da família — minha
mãe, minha irmã e minha filha — hospedadas numa casa
que herdei em Itaipava. A chuva nos impediu de sair, o que
poderia ter transformado a casa numa prisão, mas minha
filha é muito bem resolvida e fez o possível para tornar
minha vida mais fácil. Em homenagem aos racionamentos,
esqueci de trazer meu barbeador elétrico, por isso comecei
a usar uma lâmina. Parece uma metáfora para o abandono
dos hábitos de fora e a adoção dos locais. Metáfora ruim,
pois muita gente aqui usa barbeador elétrico. Sem falar que
poderia sair e comprar um se não estivesse tão empenhado
em me castigar pelo esquecimento. Aliás, também esqueci
minha escova de dentes elétrica. Já quebrei várias escovas
normais por causa do hábito de puxar a haste para trás e
soltar como se fosse uma catapulta para diminuir a umidade
que sobra na escova depois de enxaguada. Deve ser outra
metáfora. É inusitado para mim morar, pela primeira vez,
em uma casa que é só minha. É estranho pensar: Essa árvore
é minha, essa grama é minha, esses galhos são meus. E,
também: Essa goteira é minha, essa tinta descascando e esse
cupim são meus; essa caseira e esse jardineiro dependem
de mim para sobreviver. Cresci com a premissa de que as
coisas se resolviam sozinhas porque meus pais sempre
cuidavam de tudo. Apesar de cumprir o que é esperado de
um adulto, ainda sinto saudade do conforto da infância.
Minha transição para a maioridade não está completa.
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Linda documentarista negra, bantu budista,
esguia e óssea. Como todas as vegetarianas
que conheci, Wanda fez o possível para não
transmitir mais virtude do que os carnívoros,
mas toda restrição dietética de natureza ética
me deixa um pouco desconcertado. Talvez eu
pense, sorrateiramente, que os vegetarianos
devem ser menos sensuais, mais ascéticos,
só porque se negam a comer algo. Sem
trocadilho, devem ser menos carnais. As
vegetarianas que conheci diriam que não
se privam de nada — simplesmente não têm
vontade de comer essas coisas. Mas o que
relegou esse encontro aos anais foi o fato
de que Wanda também não bebia. Apesar
de ela não se importar se bebo álcool ou se
como carne, os jantares são menos divertidos
sem uma companheira gastronômica. No
fim, minha relutância só foi possível porque
a atração era insuficiente. Também não era
capaz de enfrentar as objeções introjetadas
de minha mãe preconceituosa. Saí dessa
experiência com a sensação de que não
sou suficientemente esclarecido (e não só
em relação à comida). Ao mesmo tempo,
aumentou minha preferência por mulheres
que bebem e comem de tudo, mesmo se
forem menos iluminadas.
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Muita gente se incomoda quando digo que não acredito em bom ou ruim.
Ou, melhor, muita gente se incomoda quando digo que não acredito que bom
ou ruim possam ser características imanentes dos objetos.
Ou, melhor, que as únicas características imanentes dos objetos são as formais;
ou seja, os materiais de que são feitos: peso, comprimento, altura, largura,
temperatura, dureza, freqüência etc.
Que bom ou ruim são construções culturais, projeções do sujeito sobre o objeto
e não dependem necessariamente de nenhuma característica do objeto.
Ou seja, que a superioridade dentro do panteão artístico de Cézanne e Matisse
sobre (digamos) Bouguereau e Caillebotte é resultado da presença maior dos
dois primeiros no gosto dominante.
Está certo que o gosto dominante não é nítido e constante — é um conjunto de
tendências, em evolução, que são absorvidas (ou não) de maneiras e em
tempos diferentes —, mas nem por isso deixa de ser o deus ex machina de
nosso gosto.
Esse gosto dominante, que inclui Cézanne e Matisse, não é dominante porque
92
inclui Cézanne e Matisse. Ele é dominante porque a corrente que inclui
Cézanne e Matisse ganhou a luta cultural pelo poder. Tudo é relação de poder,
os ingênuos que me perdoem.
A corrente que inclui Cézanne e Matisse ganhou a briga pelo discurso dos
agentes que formam o gosto dominante: críticos, historiadores, jornalistas,
curadores, galeristas e colecionadores.
A crença de que Cézanne e Matisse são superiores a Bouguereau e Caillebotte
resulta da reificação de uma subjetividade historicamente determinada de
natureza inteiramente cultural.
Eu, pessoalmente, prefiro Cézanne e Matisse a Bouguereau e Caillebotte, mas só
porque fui programado pelo gosto dominante, que absorvi numa vida inteira
em contato com os agentes principais desse gosto: os museus.
Noves fora, meu gosto é muito menos meu do que eu gostaria de pensar.
Só depois de convencer você disso tudo é que posso admitir que tenho minhas
dúvidas... O cheiro horrível de amônia nas narinas, o choque retiniano do
verde com o vermelho, as dissonâncias que certos intervalos geram nos
ouvidos, o sucesso da proporção áurea, tudo isso me faz especular se não
haveria algum substrato fisiológico, por menor que seja, nos juízos de valor.
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Professora na USP, Zoé se considera
bastante atraente, e muitos
concordariam. Tem um belo corpo,
em forma, um rosto bonito e cabelos
lindos. É saudável, sofisticada, cheia de
juventude e se veste com bom gosto, sem
ser vítima da moda. Zoé se considera um
excelente partido para um homem
aberto, um homem que dá valor à
exploração intelectual. É também muito
93
perspicaz, qualidade muito apreciada
por quem gosta da verdade.
Tivemos boas conversas, culturais,
políticas e psicológicas. Eu quis que as
coisas evoluíssem rapidamente, mas elas
estacionaram lateralmente, com aquela
recalcitrância frustrante que só é menos
frustrante do que sua ausência. Depois
de algum tempo, Zoé confessou que
ainda tinha uma questão em aberto
com um colega.
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Estou chegando de um almoço onde me comportei
como péssimo convidado, apático e ausente, do tipo
que não paga a comida com conversas animadas. Meus
pensamentos fugiam sempre em sua direção, mas, como
um bom menino que não quer decepcionar os outros,
sempre me arrastava de volta para as conversas.
94
Gostaria que já fosse amanhã, quando vou vê-lo. Não
consigo explicar como minhas defesas se dissolveram
tão rapidamente. A vulnerabilidade que sinto é ao
mesmo tempo maravilhosa e assustadora. Meu lado
prático está gritando para que eu mantenha as emoções
sob controle, pelo menos até você me conhecer o
suficiente para entender os altos e baixos. Não fui
muito bem-sucedida ontem. O que mais queria era
um abraço. Talvez possa ganhar dois amanhã.
De um poeta americano chamado Wendell Berry:
Mesmo na escuridão, o amor
Mostra a circunferência
Do mundo, iluminando
Palpitando nos horizontes
Nessa noite de verão.
Você me manda as coisas mais lindas. Mas são escritas
por outros. Saberei que você está vulnerável quando
vierem escritas por você.
Fomos longe demais, cedo demais. Seus telefonemas são
de um bom rapaz que não quer me decepcionar.
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Minha correspondência mais
divertida. O domínio que Amanda
exercia sobre a língua inspirou
arroubos que pareciam, no estado
encantado em que me encontrava,
da mais alta categoria.
Quando finalmente nos conhecemos,
achei seus dentes conspicuamente
95
desiguais e sua silhueta Michelin.
Fiel ao preconceito vitalício contra
os esféricos, não insisti.
Quando hoje olho no espelho e vejo
um corpo magro e musculoso, sem
nenhum traço de gordura — o corpo
que meu pai quis que eu tivesse —,
isso me satisfaz pouco, porque é o
que outra pessoa desejou para mim.
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A comida que mais me provoca sentimento de culpa?
É com certeza o filão de doce de leite que mora dentro
do sorvete Häagen Dazs de dulce de leche. Havia uma
lata enorme dessa tentação no congelador comercial
da mansão oficial onde meus pais moravam. Um cilindro
repleto de prazer, que me acenava tentadoramente
sempre que passava os fins de semana lá. Uma noite
voltei de madrugada, frustrado com algum assunto
sentimental. Ataquei a lata, escavando obsessivamente,
usando a colher como se fosse uma pá ou uma picareta,
arrancando os veios leitosos na calada da noite, como
um mineiro alucinado extraindo ouro das paredes de
um túnel subterrâneo. O cozinheiro deve ter ficado
96
atônito no dia em que abriu a lata de sorvete
vampirizado, mas não disse uma palavra porque eu era
o filho do patrão. Um dos pontos mais baixos de minha
vida, e agradeço a oportunidade de relembrar essa
pouca vergonha. Aliás, preciso confessar que não sou
fã dessa sua técnica de ficar enviando questionários.
As respostas que mandei para o primeiro podem não ter
sido brilhantes, mas, se você não vai nem comentá-las,
para que servem? Assim vira troca de monólogos em vez
de um diálogo. Acredito em seres humanos se olhando
no olho enquanto perguntam e respondem. Tantos
fatores — a expressão, o sorriso — podem comunicar
mais do que as palavras, ou alterar muito seu sentido.
Nossa, o menino rodou a baiana!
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Posso estar enganado, mas a América
portuguesa me parece tão diferente da
América espanhola quanto o fado do
flamenco (nas metrópoles) ou o samba
do tango (nas colônias). O espanhol
reage à opressão e à injustiça com rios
de sangue enquanto o português baixa
a cabeça, penitente, pensando nas
recompensas após a morte.
97
Bem produzida, Bárbara era uma
Barbie argentina, muito maquiada
e curadora num museu importante.
Não rolou nada com essa suave flor
dos pampas cisplatinos, os cabelos
cuidadosamente embrulhados num
caricato pompom Evita. A hora que
passamos juntos foi, aos poucos,
murchando, e com ela foram-se as
chances de uma Aladi particular.
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Passei uma semana delirante,
divertindo-me loucamente, mas
sempre morrendo de vontade de
voltar para junto do meu amor.
Você conhece o Copacabana
Palace? É muito legal! Ontem
passei o dia lá. Os enfeites de
Natal ainda estão no lugar, e as
pessoas parecem saídas de um
filme da década de 40. Estou de
ótimo humor. Depois de uma
semana feérica, voltei para casa
e encontrei um buquezão de
rosas e um milhão de recados
ardentes. Vamos festejar hoje
à noite em Vila Isabel. Com
certeza fomos arrancados da
mesma costela.
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Catarina diz que tem o poder de tornar minha
vida excitante.
Achei que ela possuía, de fato, esse poder, mas
eu tinha acabado de conhecer outra pessoa.
Depois de uma semana de indecisão agoniada,
optei pela ordem cronológica. Catarina ficou
decepcionada, mas, assim que a primeira não deu
certo, recomeçamos com a maior naturalidade.
Tudo nela me atraía. A combinação era tão natural
que o horizonte parecia cheio de promessas. Mas,
tão subitamente quanto me atraí, perdi o interesse.
99
Juro que não sei por quê. Não foi por nada que
ela fez. Talvez tenha sido por alguma coisa que
ela não fez, ou por alguém que ela não foi. Parti
para uma viagem de duas semanas. Pouco antes
de retornar, escrevi dizendo que estava adiando
a volta por mais duas semanas, mentira pura.
Morrendo de vergonha, dias depois escrevi
dizendo que achava nossa relação insuficiente.
Ela ficou indignada com meu jeito distante de
participar.
Um belo nadir, sem final feliz, sem moral
edificante, onde o mocinho perde a
dignidade após revelar-se um covarde.
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Caso alguém se interesse, os resultados de
minha pesquisa de encontros pela Internet
são impressionantemente estáveis e têm
implicações úteis para a auto-estima de todos:
Durante um período de  dias escrevi 
mensagens e recebi  respostas (,%).
No mesmo período, meu perfil foi visitado
 vezes, gerando  mensagens (1,1%).
100
Durante os  dias seguintes, escrevi mais
 mensagens e recebi  respostas (,%).
Meu perfil foi visitado  vezes, gerando
 mensagens (,%).
Suspeito que todos nós aceitaríamos melhor
as rejeições se assimilássemos a premissa de
que apenas % das pessoas disponíveis nos
acha atraentes o suficiente para iniciar um
contato, enquanto apenas % das pessoas
disponíveis seriam receptivas a uma
aproximação nossa. Os números podem variar
com a idade, o gênero e o gosto dominante,
mas a moral da história continuará a mesma:
é tudo questão de estatística.
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Mutável e passional demais para
ser facilmente classificada, Diana
é sexy, deliciosamente feminina,
divertida, bem-vestida, e tem
sensibilidade poética. Procura um
homem vulnerável que ela possa
beijar muito. Diz que, se eu a levar
à Lua, será minha para sempre.
101
Diana mora num andar muito alto
num apartamento com pé-direito
muito baixo onde ela montou um
hotel para bichos de estimação.
A paixão comum por Florença nos
conduziu ao sofá da sala. Em vez
de ficar por ali, embriagamo-nos
com chianti e passamos uma noite
sôfrega. A memória do vazio
subseqüente ainda me persegue.
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A tarefa fundamental dos pais é muito simples e está ao
alcance de todos: fazer os filhos sentirem-se amados por
quem são. Isso estabelece a base do amor-próprio, sem o
qual ninguém pode ser realmente feliz. Se, em vez disso,
os pais amam de tal forma que a criança percebe esse
amor como condicionado a um comportamento que
agrada aos pais, terão falhado nessa tarefa fundamental,
por mais que tenham sido bem-sucedidos nas tarefas
auxiliares, como estabelecer limites, dar boa educação,
102
ensinar bons modos e boa ética, expor a certo grau de
cultura e informação etc. Meus pais foram exemplares
nos departamentos auxiliares, mas falharam no
principal. Meu pai queria que eu fosse magro, atlético,
corajoso e viril, enquanto eu era um menino tímido,
introvertido, gordinho. Minha mãe tinha uma veneração
edipiana pela figura apolínea e carismática do pai dela e
queria que tanto marido como filho fossem como ele.
Ou seja, eu sentia que nem pai nem mãe me aceitavam
como eu era. No entanto me amavam imensamente.
Como podia uma criança entender essa contradição?
Hoje acredito que eu percebia, inconscientemente, que
eu era amado não tanto por minhas características
(apesar de ambos apreciarem muitas delas também)
mas por ser espelho deles, um reflexo da genética deles.
Vejo, em meu grupo de análise, como crianças com pais
terríveis têm menos dificuldade em se emancipar e fazer
uma transição completa para a condição de adultos.
Crianças com pais carinhosos têm mais dificuldade de
individuação porque o lar é um lugar aconchegante
e seguro enquanto o mundo exterior é perigoso e hostil.
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Se você estiver desempregado,
indisponível, encarcerado ou for
enjoativo a ponto de levar a sério
esta experiência toda, pode seguir
em frente.
Sentar na areia não é
meu passatempo favorito,
mas vadiagem criativa é.
103
Topo compartilhar minha lâmpada
de cabeceira, minha panela favorita,
até meu chiclete.
Considero gelatina roxa uma comida
legítima e prefiro passar férias em
lugares que exigem vacina.
Será que você agüenta meu passo?
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Em hebreu, o nome dela quer dizer
Deus Nosso Salvador. A aparência
exótica vem da mãe judia etíope e do
pai animista tupi. Escritora e designer,
o maior sonho de Elesha é ser atriz.
É voluntária numa pequena companhia
de produções cinematográficas na
esperança de que lhe dêem uma chance.
Nosso primeiro jantar correu bem,
apesar do tamanho de sua ambição me
deixar um pouco inquieto. Planejamos
um piquenique para alguns dias depois.
Preparei tudo, arrumei a cesta e fiquei
aguardando que telefonasse assim que
terminasse o expediente. Ela não ligou
porque as coisas demoraram mais do que
esperava e ficou com medo de causar má
impressão se usasse o celular para me
avisar. Quando me queixei, ela respondeu
que não tinha escrúpulos quanto a suas
prioridades: seu objetivo era melhorar a
qualidade de vida dos filhos, e nenhum
sacrifício era grande demais para isso.
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Sou ocupada demais para
conhecer a pessoa certa.
Dizem que tenho uma cara bonita.
Acho que tenho um corpo bonito.
Gostaria de conhecer um homem
que não fosse previsível, mas
que não suma de repente.
Confiável sem ser apagado.
Se você for esse homem,
posso oferecer um lar
105
saudável para
seus filhos.
Professora de literatura portuguesa, cantora de
música sertaneja, gata de botas de couro com
pontas de aço. No decorrer do jantar, senti-me
cada vez mais burguês. O meu lado bom menino
trava minhas relações com espíritos livres.
Tatuagens e piercings me fascinam, como se a
alteridade prometesse complementação.
A razão me diz que tal convívio seria difícil, mas
nunca tive oportunidade de testar tal lógica.
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Um brinde ao real e ao imaginário, à comunicação e à
autoridade moral, ao emocional e ao físico, ao acaso e ao
destino! A nossas crianças deliciosas! A contar as bênçãos
que recebemos!
106
Ainda estou no escritório. Sinto muito não ter conseguido
ligar mais cedo. Queria te ver depois do expediente, mas
trabalhei sem parar das 9 da manhã às 8:30 da noite.
Só fui interrompida por divagações sobre o quanto detesto a
professora do jardim-de-infância da minha filha
e por conversas tensas com meu ex-marido, que conseguiu
destruir o jipe na semana passada, depois de dois ou três
acidentes nos últimos anos, e agora acha que pode pegar
meu carro emprestado todos os dias. Ainda por cima, a
babá de reserva (a efetiva está de férias em Cambuquira
ou Lindóia, sei lá qual) fica ligando para me contar a novela
que é a vida dela e histórias sobre como meus filhos são
maravilhosos e brilhantes (as quais, evidentemente, não
me importo nem um pouco de ouvir). Estou tão cansada!
E isso não é da missa a metade... Por isso acho que devo
ir para casa logo, antes que as crianças durmam.
Fernanda falava bem inglês, língua do ex-marido, um
jamaicano rastafári, e pedia que eu dissesse coisas em
inglês enquanto transávamos. Já me pediram isso antes.
Um tempero oral, um fetiche. Não gosto, mas faço porque
quero agradar. Fernanda ainda estava amamentando a filha
menor, apesar de a menina já ter quase 3 anos. Às vezes
brotavam gotas de leite no bico de seus seios. Ela só foi
longe demais quando me deu um vidrinho de colônia
porque gosta de homem cheiroso. Meu perfume
favorito é o asseio, com leve aroma de sabão.
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Prefiro respostas tardias ao
silêncio, principalmente se vêm
com explicações. Sei que não sou
típico, mas sempre respondo em
24 horas, nem que seja para dizer:
“Obrigado, mas nein danke”.
É incrível quantos acham que não
precisam nem responder, como se
email fosse assobio de rua.
107
Não sei bem como reagir a suas
palavras. Sinto-me criticada.
Sua convenção de responder a
emails é exatamente isso: uma
convenção. Se você acha que
quem segue convenções diferentes
das suas tem menos consideração
do que você, não sei se nos
daríamos muito bem.
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Foi maravilhoso receber noticias suas e descobrir
que ainda está a caminho do Buda. E, mais
egoistamente, saber que você se lembra de
mim com carinho. As coisas terminaram tão
abruptamente entre nós que eu não sabia o que
você pensava de mim nem porque as coisas
acabaram. Mas espero que você não tenha
perdido muito tempo se sentindo mal porque
eu não passei muito tempo me sentindo ferida.
Eu compreendo como é complicado terminar
um casamento e encontrar um novo caminho
com clareza. Na hora, meu orgulho ficou ferido
e senti, por um ou dois dias, o peso das
imperfeições que, eu imaginava, você tinha
percebido em mim. Mas acabei não levando a
coisa pessoalmente. Afinal de contas, você mal
me conhecia. E minha vida estava prestes a sofrer
uma virada maravilhosa. Os saltos profundos se
acumulam tão devagar, não é mesmo? Tenho
certeza de que você está no meio de um deles,
mas só conseguirá perceber mais tarde. Espero
que isso aconteça comigo também. Sinto-me
exatamente a mesma, tão confusa e insegura
quanto antes, apesar de tudo na minha vida ter
mudado e parecer muito mais em sintonia com
meus ideais e com minha pessoa. Pergunto-me
quando será que o eu que existe em meus
pensamentos alcançará o eu mais sábio que, de
alguma maneira, me continuou protegendo esse
tempo todo, puramente na intuição e no coração.
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No início, Graça me achou
interessante porque
escrevo bem, adoro arte
moderna e coleciono vidro
italiano. Ela tinha vinte
anos menos do que eu e
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torcia para que o cupido
das edipianas fizesse com
que isso não importasse.
Mas meus olhos brilhavam
tanto que ela acabou
consciente demais dessa
diferença. Sem graça,
desejou-me tudo de bom.
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Todos temos medo do amor e nos
defendemos contra a dor, erguendo
barricadas em torno do coração.
Peço que não me procure se você não
tem certeza de que está pronto para
ser um guerreiro na batalha de ceder
ao desejo de dar e receber amor.
Outra grande atração,
outro grande entusiasmo.
110
Outra grande dor,
outro grande arrependimento.
Na mensagem de despedida ela
mencionou, pela primeira vez,
a comunhão diária com a esfera
paranormal. Quem esconde um
aspecto tão fundamental de sua
vida nunca pode estar inteiramente
presente. Vislumbrou-se, tarde demais,
um novo plano de possibilidades para
a relação.
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Henriqueta, poetisa deste mês, vê mais com um só
olho do que nós com todos os três. Se eu cativar
sua mente, o resto virá naturalmente.
Excitados, caminhamos de volta para a casa dela,
sentindo calor em pleno inverno. Quando pensei
alto, num arroubo prematuro, que sentia vontade
de comprometer-me, o reflexo dela foi dizer:
111
Oh, não! Reuni minhas tropas combalidas e insisti.
Tivemos um mês maravilhoso. Ela me apresentou
aos colegas de coral e do círculo de leituras.
Tornei-me objeto de seu jeito jeitoso com as
palavras. Ela sabia que poderia sair pelas
tangentes verbais mais absurdas que eu a
acompanharia. Como também sou avesso a gastar
pólvora em chimango, aproveitei para extravasar
as tangentes barrocas de minha ordem simbólica
em seu ouvido receptivo. Não me importei (nem
um pouco) quando ela me “confessou” que tinha
visitado a ilha de Lesbos, mas ela se importou
quando eu disse que já tive experiências sexuais
pagas. Quando finalmente me mostrou as poesias,
percebeu que gostei pouco. Uma discussão boba
desencadeou nosso fim. Terá sido por não
respeitar uma parte tão central de sua autorepresentação? Pela primeira vez me senti
coronariamente enrijecido.
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Reparei em seu uso da palavra humilde por
causa de meu interesse pelo seu (possível)
antônimo, o adjetivo pretensioso. Há quem
me chame de elitista (em arte, vinho,
comida etc.), e tenho certeza que querem
dizer pretensioso. Mas estou em paz com
minha criteriosidade se for uma maneira
de aproveitar melhor a vida e não de me
sentir superior. Além disso, a palavra
pretensioso tem outro sentido, mais literal:
112
quem pretende ser outro, quem veste
máscaras. Isso remete a outra palavra
interessante: integridade. A maioria usa
integridade no sentido de honestidade
material, mas a palavra se aplica também a
uma pessoa integral, ou integrada. Ou seja,
que tem uma cara só. Se você ainda me
estiver acompanhando (ele pensa demais
ou isso é pura libertinagem semântica), o
que quero dizer é que existe uma cadeia
interessante de associações que leva de
humildade até integridade. Algo assim.
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Se pudesse ser uma heroína, Ioná seria
a Mulher Maravilha. Na realidade,
Ioná já é a Mulher Maravilha. Ioná
prefere filmes sem explosões, mas
sabe tirar espinha de peixe, acender
uma fogueira sem fósforo e descartar
uma ratoeira (com vítima e tudo). Seu
sonho é pescar num barco de fundo
de vidro deslizando pela correnteza
113
morna e clara do Tocantins. Ioná foge
de falastrões e reclamões; procura
alguém que não tenha medo de atacar
uma lagosta com as mãos ou namorar
deitado na grama. Ioná prefere os
prazeres do usufruto aos da posse;
sente-se tão à vontade num banquete
para dignitários quanto trocando
piadas de baixo calão com roceiros e
peões. Eu também prefiro os prazeres
do usufruto aos da posse.
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Se o universo se expande e se contrai
numa série infinita que se estende
em direção ao passado e ao futuro,
como se o tempo se comportasse
como números negativos e positivos
(zero correspondendo ao presente),
e se a quantidade de matéria no
universo for finita, pode-se deduzir
que todas nossas vidas — essa exata
configuração de moléculas — já foram
vividas e serão revividas, numa série
infinita em ambas as direções.
Mais estarrecedora ainda é a idéia
de que, pela natureza de ∞, pode-se
deduzir o mesmo não só sobre nossas
vidas atuais, como sobre todas as
variações possíveis (cujo número
é inimaginavelmente grande, porém
finito, porque a quantidade de
matéria é finita). O diabo é que
a certeza dessa hipótese não teria
impacto nenhum sobre nossas
vidas (atuais).
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MULHER ALTA E FINA
PROCURA HOMEM ELEGANTE
COM CÉREBRO GORDO
E CORAÇÃO OBESO
(se você se amar, eu o amarei também)
Sou sofisticada e frívola, incapaz de
resumir minhas idiossincrasias para
fácil consumo. O ar salgado do oceano é
oxigênio para mim. Mostrarei a você o
lado bom de tudo o que é ruim. Procuro
um escoteiro com garra, gentil porém
determinado, um leitor assíduo que, de
preferência, não assista a novelas.
115
Você teria dificuldade em vislumbrar,
do alto de seu pé-direito, homens menos
dotados verticalmente que você? Será
que sua cabeça aceitaria, do ápice de
sua pirâmide, os 180 centímetros que a
contemplam? Pergunto porque detesto
usar palmilha, e salto alto, então, nem
pensar. Gostei do ziguezague de seu
vestido verde e branco, um belo exemplo
de arte Op celta.
Quem é tão verticalmente dotada quanto
eu
logo
se
acostuma
com
outros
encantos.
Alguns
homens
gostam
de
mulheres altas, outros querem gostar
mas não gostam, e há uns que nem
reparam. Química é química, o resto é
para quem não tem alma.
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Julieta chega aos lugares como se
fosse soprada por um vendaval.
Suas pinturas já foram expostas
mundo afora e estão em coleções
de vários museus. É considerada
linda pela mãe (por amor) e por
motoristas de táxi (pelas gorjetas).
O invólucro de um homem ajuda,
mas o que interessa é o conteúdo.
116
Podemos ser ou ter tudo que o outro
quer, mas sem a química da física
seremos apenas amigos. É também
preciso ter dedicação pelo trabalho
e respeito pelo dinheiro, pois é
necessário viver bem.
Conversamos pelo telefone, mas
fugimos um do outro como animais
pressentindo um desastre.
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Nasci ansioso e comilão, com
DNA de gordo. Minha mãe,
que só via saúde nos meus
quilos, dizia orgulhosa que eu
era o broto do berçário. Meu
pai desaprovou, pois queria
um filho atlético e masculino.
117
Meu pai me amava muito, mas,
como eu sabia que ele queria
que eu fosse diferente, sentiame um impostor. Introjetei
esse preconceito e passei a ter
dificuldade em respeitar os
gordos. Fujo de gordas, e a
possibilidade de qualidades
compensatórias nem sequer
me ocorre. Sei que o problema
é meu, mas ainda não consegui
superá-lo. Se a mulher que me
faria o mais feliz for gorda,
jamais a conhecerei.
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Através dos anos, a lâmina
da navalha vem perdendo
o fio. Hoje, Karla já admite
fazer concessões. Ela quer
alguém que não se importe
com poder, dinheiro ou
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sociedade. Alguém que não
se considere adulto e que
deteste (mas use) terno
e gravata. Karla quer ver
suor na testa e faz questão
de um enorme vocabulário.
Cortado pela navalha gasta.
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Precisamos nos conhecer! Nunca passei por uma
experiência assim e me sinto dividida entre a
excitação de colocar o intelecto a serviço da sedução
e a frustração de não poder trocar esse ritual por
algo mais háptico. A Internet acelera a entrega, mas
a eterna fantasia das cartas continua viva na dinâmica
das trocas. Infelizmente, esta tela não tem cheiro,
toque, sopro, calor ou som, e, como você não está
exatamente perto, vou tomar uma ducha fria e
continuar escrevendo. Sim, minha vida é uma estrada
cheia de curvas e buracos, cheia de caminhões
e ônibus atravessando as pistas. Os acidentes
acontecem a toda hora. Parte da minha luta vem por
aceitar muito mais do que posso dar conta. Sou uma
119
eterna otimista em relação a meu tempo. Acho que
é uma coisa crônica, pois sou assim desde a infância.
É quase uma patologia. Se não tenho o que fazer,
invento algo, e aí a coisa vira urgente. Desde o fim
do ano passado, sinto como se estivesse mergulhando
no mar, como quem não consegue passar das ondas
para poder nadar. As ondas continuam vindo, e cada
uma precisa ser conquistada. Antes que possa me
recuperar, vem outra e depois outra. A ansiedade
pode ser anestesiada com uma caixa de chocolates,
quatro colheradas de mousse de chocolate, dois
tragos de uísque e uma hora de malhação com
caneleiras de 3 quilos. Depois disso me dou conta
de que não resolvi absolutamente nada, mas pelo
menos amansei essa inquietude indescritível.
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Playboys, asiáticos, fãs de música
sertaneja e crédulos em vidas
passadas não devem candidatar-se
a namorar Ling Mei, formosa editora
euro-asiática que riu de nervoso
durante todo nosso jantar porque
o casal da mesa ao lado brigava
alucinadamente. Quando os dois se
levantaram, a mulher deu uma bronca
120
em Ling Mei, que se defendeu bem,
dizendo que eles é que tinham de ter
vergonha por tornar o ambiente tão
desagradável. Deixei Ling Mei se
defender sozinha e depois fiquei me
perguntando se ela esperava que eu
me envolvesse. A verdade é que fiquei
constrangido com seu riso nervoso,
mas também impressionado com sua
reação. Quando consultei as bases,
prevaleceu o constrangimento.
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Minha mãe pediu que seu corpo fosse
cremado. Ela foi velada na capela do
Hospital Pró-Cardíaco e depois levada
para o crematório do Caju, onde passou
a noite em uma gaveta, uma de muitas
dentro de uma enorme geladeira de
aço escovado. A família se reuniu no
dia seguinte para a despedida final,
e um funcionário da casa pediu que
um dos familiares o acompanhasse
até os bastidores para confirmar que
se tratava do corpo certo. Único varão,
fui eu. O caixão havia sido transferido
para cima de um carrinho de rodas e
estava com a tampa aberta. Aproximeime de minha origem e dobrei-me para
beijar sua testa. A emoção dilacerante
do momento foi golpeada pela sensação
de estar beijando um bloco de gelo
revestido de membrana mole. Chocado,
recolhi-me e voltei apressadamente
para junto de minhas irmãs, não sem
antes olhar para trás uma última vez.
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Magra e meiga Megan
me arrumou um lugar
numa disputada prova
de vinhos antigos.
Escolheu pessoalmente
uma dúzia de goles
gauleses para minha
lenta degustação.
Não quer saber de patrícios
espinhentos e exigentes,
nem de sorvedores
mandões e briguentos.
Exortou-me a dissimular
como um fidalgo e
saborear como um sibarita.
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Adoro seu sorriso e compartilho seu
interesse por filosofia. Alguns anos
atrás, submeti-me a uma palestra do
Jacques Derrida, memorável pelo
desespero com que lutei para não
perder a concentração e entender
o que ele estava falando. Odeio me
sentir tão burro. Se bem que no
documentário Derrida — aliás muito
divertido — o próprio também me
pareceu meio burro. Em determinada
altura ele diz alguma coisa — não
lembro mais o que é — que me fez
pensar: Puxa, esse cara devia ler um
pouco de Derrida. A desconstrução
mais elementar dessa frase revelaria
as tautologias lingüísticas presentes.
Como dizia Wittgenstein, a maioria
dos problemas da filosofia é
redutível a problemas de gramática.
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Nélida, ex-modelo doutora, tem todas as
qualidades que os homens querem,
como pele sedosa e 17% de gordura.
Um estilo que transcende questões de
status, e uma inteligência que ultrapassa
a educação. Apesar de ter vivido
momentos duros na vida, tanto
circunstanciais como sentimentais,
seu coração está no auge da forma.
Hoje em dia, a sede por estímulos vem
temperada pela busca da tranqüilidade.
Ela quer satisfazer alguém com
expectativas absurdamente altas.
Nélida compensava a falta de altura
com os saltos mais vertiginosos que já
vi, tão altos que lhe tornavam instável
o equilíbrio dentro do vestido cintilante
e barroco. Nélida declarou logo que
eu era muito bonito. O prazer de ouvir
isso ficou comprometido pela minha
dificuldade em retribuir. Talvez eu
devesse ter sido honesto e respondido
que sentia muito mas não podia dizer
o mesmo. Talvez aí ela tivesse retrucado:
Faça como eu, minta.
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Quero visitar a terra de
meu bisavô paterno, um
poeta maranhense. Na
década de 60, um senador
de São Luís olhou para
meu pai e exclamou:
Vejam como ele tem
a palidez dos homens
do Vale do Mearim!
Herdei essa palidez e
nunca esqueci a cadência
assombrosa dessa frase.
Quero subir o Mearim
de barco e conhecer
esse povo ribeirinho.
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Seus melhores traços são criatividade,
generosidade e disciplina. Os piores
são os mesmos, levados ao extremo.
Odile era francesa, elegante, uma
severa professora secundária.
Gostei da postura de tábua e do
nariz gaulês de provadora de vinho.
Uma tarde fomos ao cinema,
126
e as horas com o estômago vazio
transformaram seu hálito num
desafio. Minha dificuldade em aspirar
era, é claro, sintomática de distúrbios
mais generalizados no ecossistema
psíquico. Depois de alguns dias eu
disse que simplesmente não queria
continuar. Odile ficou severamente
furiosa. Gostaria de ser frio e cruel
para não deixar resquícios de
vontade.
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Reclamei, brincando, que a foto dela
não era suficientemente reveladora,
e isso foi interpretado como
querendo dizer insuficientemente
nua. O fato de não conhecer essa
moça não me impede de querer que
ela me entenda corretamente. Teria
preferido que ela me tivesse dado o
benefício da dúvida, mas esse
privilégio precisa ser conquistado.
É curioso pensar que nossas
confusões epistolares estão sendo
armazenadas nos HDs de internautas
adolescentes em Bangalore que mais
tarde se tornarão roteiristas de
Bollywood. Algum dia, quem sabe,
nossa correspondência maladroit
se tornará lendária em alguma
subcultura alienígena.
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Foi divertido para mim também. Quanto à franqueza, não vejo o menor
sentido em jogar conversa fora. Não é divertido, e me sinto como personagem
de história em quadrinhos, uma nuvem sobre a cabeça dizendo: “O que está
realmente acontecendo aqui?” Sinto que você está no meio de uma “viagem”
(adoro a conotação new age dessa palavra), enquanto eu estou abrindo
um parêntese para realizar um grande sonho: ser uma autora publicada.
Isso significa me concentrar nas palavras e não em assuntos do coração.
Definitivamente não basta ser jornalista. Eu quero um LIVRO. Uma
porção de páginas entre capas duras. O mundo editorial é incrivelmente
desencorajador. A esperança, quando aparece — coisa rara hoje em dia —
é sempre uma surpresa. Por mais que goste de sua companhia, não quero dar
falsa impressão. Armei um triângulo quase-romântico (e pouco gratificante),
posicionando meu cabeleireiro e meu ex-marido como balizas. Não quero
investir, e aí a coisa não dá certo. A dor e a recuperação são desgastantes
e tomam tempo demais. Concordo que é fraqueza evitar a intimidade, mas
é seguro. Passo muito tempo sozinha porque é essencial para meu trabalho.
Gosto de não ter compromissos para poder escrever até as 3 da manhã e
acordar à hora que quiser. Se tenho um prazo para cumprir, ou estou no
meio de um capítulo, não hesito em cancelar compromissos no último
minuto. Não me importo se isso incomoda as pessoas. Até meu filho precisa
adaptar-se a meus horários. Não sinto a menor vontade de pedir desculpas
por meus hábitos. Passo por cima de tudo (inclusive do amor) e de todos
(menos de meu filho) para fazer o que preciso fazer, que é escrever.
Portanto, sinto muito manter a guarda. Tenho muito a perder. Não quero
sofrer, nem interferência em meu trabalho. Será que estou sendo honesta,
ou apenas falando aos borbotões?
Nossa, você mirou um jato de água fria bem na central de comando das
possibilidades românticas. Às vezes é fácil separar romance de amizade,
às vezes não. Às vezes é fácil construir uma amizade depois de uma relação,
às vezes não. Cada relação desenvolve um conjunto de regras, por isso não
saberia dizer se uma amizade entre nós daria certo, com a devida separação
entre igreja e estado. Mas gosto de sua companhia, e sua franqueza é um
spa sensorial, adstringente mas refrescante.
Bem, espero não ter jogado uma ducha fria em nossa amizade. Senti medo
porque ainda não estou pronta para “conhecer” alguém. Enfiei-me em
minha toca e não esperava que me chamassem para brincar. Não quero
dizer que esteja completamente fechada às possibilidades sentimentais.
Apenas receosa. Espero que a gente possa desfrutar a companhia um do
outro. Está sendo muito bom te conhecer.
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Priscila edita uma revista feminina.
Começou no emprego há pouco
tempo e trabalha rodeada de
mulheres. Na primeira semana,
ela pensou que estava presa num
ventre e ia enlouquecer. Mas
teve sorte, e o ambiente acabou
tornando-se estável e acolhedor.
Priscila se considera divertida e
sensual, se puder falar em causa
própria (e por que não, afinal de
contas isso não é propaganda?).
Ficou viúva cedo, depois de
um casamento maravilhoso de
dez anos. Portanto sabe que é
competente na arte de sustentar
uma relação. Priscila gosta muito
de comida, cachorro e sexo, mas
se queixa da falta dos últimos dois.
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Apesar de querer me apresentar da maneira mais atraente
possível, prefiro ser sincera e revelar minha bagagem
emocional (se você tiver problemas parecidos, seria bárbaro
se pudéssemos enfrentá-los juntos):
Em vez de ser eu mesma, tento ser a mulher que imagino
que você queira; mas, se você gosta desta máscara, não
fico feliz porque não é de mim que você está gostando.
Não fico com raiva se você me maltrata porque meu
pai maltratava minha mãe, apesar dela procurar
agradá-lo constantemente.
Só respeito quem se impõe porque minha mãe era
fraca e carente.
130
Quanto menos você gostar de mim, mais eu vou gostar
de você, porque isso significa que você me conhece.
Acho que muita gente sofre desses problemas, mas a maioria
não se dá conta ou jamais admitiria. Quero que saiba tudo,
porque, se você continuar interessado em mim depois disso,
saberei que não preciso esconder mais nada. Se você me
ajudar a vencer esses obstáculos, uma mulher carinhosa,
dedicada, divertida e inteligente será sua para sempre.
Não tinha certeza se queria fazer o papel de divã, mas a foto
era tão atraente que não dei ouvidos à intuição e resolvi
conhecê-la. Nos encontramos numa doceria, mas, a partir do
momento em que a palavra bajuladora apareceu na testa dela,
lembrei que não nasci para ser enfermeiro, especialmente
enquanto não me curar de problemas parecidos.
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As namoradas que se tornam amigas
costumam me fazer confidências.
Rafaela lamenta a forma como
sempre correu, da maneira mais
patética do mundo, atrás dos
homens mais deploráveis do
planeta (exceto você, ela consertou
rapidamente). Há uma infinidade
de detalhes que torna seu último
melodrama especialmente notável, e
os dias que se seguiram ao desfecho
foram cheios de desespero. Faço o
possível para acalmá-la. Boa parte
da minha atenção inicial é dedicada
a adivinhar o que ela espera de
mim. Devo ser aquele ombro amigo
que concorda com tudo? Devo
bancar o analista? Quando tenho
suficiente presença de espírito,
pergunto como posso ajudar? Mas
é preciso que seja com uma voz
cuidadosamente modulada para
não parecer telefonista ou vendedor.
Como cavalheiro, paguei a conta.
Sai caro ser bom amigo; ser mau
amigo ainda sai de graça.
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A mistura do saxão com o latino é
parte do que me define. Adapteime demais à Inglaterra, e minhas
emoções pagaram o preço. Quando
não agüentava mais contê-las,
voltei para o Brasil, mas nunca
recuperei completamente a
latinidade. Durante muito tempo
pensei que estar em contato com
as emoções era a mesma coisa que
expressá-las, por isso raramente
me permitia esse contato. Sabe lá
que violência poderia acontecer?
Estou aprendendo que posso (e
devo) desmembrar: primeiro, sinto
a emoção; segundo, lido com ela,
idealmente de maneira ponderada.
O importante é não suprimir a
primeira etapa por não saber
lidar com a segunda.
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Sylvia se diz diferente de todas as mulheres que eu já conheci. Recém-transferida para cá,
seu português deixa a desejar, mas ela já considera os amigos paulistas os melhores do
mundo. Como eu, adora jogar azeite de trufas em cima de qualquer coisa. Ama comida fina
e gosta de cozinhar usando manteiga e alho. Tem opiniões liberais e só consegue conviver
com gente assim. Por algum motivo, os conservadores morrem de amores por ela.
Os paulistas realmente são, como você diz, os melhores amigos. A cidade tem pouco a
oferecer em matéria de natureza, por isso gira em torno das pessoas. Os conservadores
ficam encantados porque o retrato que você colocou no perfil mostra uma dama de sociedade
extremamente elegante, vestida para um evento de gala. Como a foto é um pouco fora de foco,
vira terreno fértil para projeções. E tem um negócio peludo deitado no seu braço que parece
um casaco de vison. Será que é?
O objeto peludo na foto era de fato pele, mas pele viva. É uma cachorrinha adorável que fica
comigo sempre que os donos viajam. Eles a salvaram de um abrigo para animais abandonados,
onde seria seu fim. E, quanto às peles que não estão vivas, devo dizer que tenho muitas.
Gosto de vestir pele, tenho um tapete de pele de vaca na minha sala de visitas, uma cadeira
revestida de pele de pônei e um tapete lindo de pele de cabra. O que dizer? Usei pele até
quando protestei contra a invasão do Iraque. Os radicais com quem convivi na marcha não
tinham a menor idéia de como lidar com uma moça de vison. Eu era tão trabalhadora e ao
mesmo tempo tão chique que todo mundo ficou confuso. Foi muito engraçado. Ah, tenho mais
uma novidade: acabo de parir uma filha de 22 anos. Minha sobrinha (e afilhada) veio morar
comigo para começar a carreira numa cidade grande. Estou aprendendo a viver com uma
133
menina em tempo integral. Ela é muito bacana, e a experiência está sendo mais divertida do
que eu esperava. Ela é loura e está fazendo o maior sucesso. Como eu na idade dela, só que
ela quer casar-se com alguém com mucho diñero, mucho!
Quanto às peles, bem, certamente não fazem meu gênero, mas acho que não me poderia opor
coerentemente a elas sem virar vegetariano, coisa que não está em meus planos. A verdade
é que acho lindo tapete de pele de vaca e cadeira revestida de pele. Fiquei impressionado
com seu milagre de parir uma menina dessa idade: o parto deve ter sido excepcionalmente
doloroso (ainda bem que inventaram as peridurais), mas tenho certeza que valeu a pena
pelo que você economizou em matrículas escolares, enxovais, terapeutas, Suzuki e equitação.
Tendo economizado tanto na educação dela, você pode oferecer um dote bem polpudo para
que ela possa casar com um filósofo com poco diñero, mas brilhante e bondoso.
Estava brincando sobre o dinheiro! Um pouco de frivolidade, por favor... Sou a pessoa mais
auto-suficiente do planeta. Tenho uma irmã que depende do marido para tudo, e, por isso
mesmo, existe um desequilíbrio gritante na relação entre eles. É triste, mas ela optou por
essa prisão. Eu tenho tudo que preciso: uma família que me apóia, amigos maravilhosos e casa
própria. Uma fazenda de cavalos está nos sonhos, mas por enquanto é melhor que fique lá.
Linda, elegante, bem-cuidada e editora da versão brasileira de uma revista de prestígio
mundial, como podia Sylvia nunca ter ouvido falar em Glenn Gould ou Martin Heidegger?
É verdade que quase ninguém entende o que Heidegger escreveu, mas se você nem sequer
ouviu falar nele, o que diz isso sobre o seu estar-no-mundo? Provavelmente nada, mas
parecia importante para mim.
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Depois do primeiro encontro
é comum um tipo de blefe
que mistura
defesa contra rejeição
com
convite à discordância:
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Obrigado pelo jantar delicioso.
Foi realmente um prazer.
Temos muito em comum
, mas não sei se somos
a combinação ideal.
Adoraria saber o
que você pensa.
Se concordo,
apenas confirmo a suspeita.
Se insisto,
pelo menos ela teve essa satisfação.
Esse tipo de jogo duplo
duplo me irrita,
por isso sempre concordo.
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A ambição de Tatiana é encontrar um
homem livre de clichês, que não queira
assistir ao pôr-do-sol de mãos dadas.
Um homem que não atribua sua razão
de viver aos amigos e à família. Tatiana
se pergunta o significado de eufemismos
que recorrem nos perfis. Pé-no-chão, por
exemplo, quer dizer sem fantasias? Gosta
135
de se divertir é para diferenciar de quem
não gosta? Independente quer dizer rico
(ou rica)? E que tal: Não levo a vida a
sério? Se não levarmos a vida a sério,
que outras coisas levaremos? Detesta
Não me interesso por política ou acho
política uma coisa chata. Não sabem que
a apatia, ou mesmo a neutralidade, tem
conseqüências políticas? Como podem
ter auto-estima se estão pegando carona
no engajamento alheio? Finalmente,
muita gente declara que parece muito
mais jovem. Segundo Tatiana, as rugas
são o carbono 14 das suas opções.
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Vejo que você está nesse site há um bom tempo. A esta altura,
imagino que já se tenha desiludido, mas isso talvez seja projeção
minha. Comecei minhas atividades um ano e meio atrás. Depois
parei, decepcionado com a instrumentalidade desse tipo de
abordagem. Mas o maior problema, na realidade, era minha
própria instrumentalidade: queria repor, o mais rápido possível,
o casamento que havia perdido. Talvez eu ainda não tenha me
recomposto, pois considero, emocionalmente, que estar sozinho
é uma pequena morte.
136
Obrigada por sua mensagem e, especialmente, pela sua
franqueza em relação a esse estranho processo de conhecer
pessoas. É verdade: entrei, saí, entrei de novo, movida por sabe
lá o quê, tanto no entrar como no sair. A vida é complexa, assim
como os caminhos para conhecer pessoas. Em todo caso, delicieime lendo seu perfil. Você tem o dom da expressão, e cada frase
me pegou de surpresa. Passei boa parte da vida mergulhada em
livros (tanto lendo como escrevendo), por isso me identifiquei
com seu esforço de evitar o prosaico e o banal, de encontrar
palavras que tocam o coração. Até me vejo hesitando ao escrever
isto, pois imagino sua percepção aguda lendo as entrelinhas.
Antes do jantar, já suspeitava que tínhamos denominadores
comuns, mas foi surpreendente ver os incomuns se
desdobrando, como as camadas de uma cebola.
Uma resposta atrasada. Tive de sair da cidade, parar de viajar,
aproveitar visitas de família e entrar na rotina de verão antes
de encontrar a energia para responder a sua mensagem tão
atenciosa. Ou de encontrar a inclinação, talvez? O “fim do nosso
começo” me deixou um pouco desnorteada e, creio, ressentida.
Achei que você desistiu de mim, resfriada como estava,
no meio do inverno. Em vez de expressar isso na época,
apenas me recolhi, frustrada, em silêncio.
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Seu perfil burlou meus seguranças e caiu nas boas graças da minha intuição. Ocorrência tão
rara nessas circunstâncias artificiais que prefiro escrever antes e questionar depois.
Obrigado pelo seu alô cauteloso, mas bem articulado. Seria um prazer corresponder. Fique à
vontade para perguntar o que quiser.
Conte-me um pouco sobre seu filho, que você quase não menciona no perfil. Você mora a que
distância do Rio? Como cardiologista, você acredita que um copo de vinho diário faz bem à saúde?
Adotei meu filho no ano 2000; achei o máximo ter uma criança do milênio. Ele tem uma
importância gigantesca em minha vida, mas, já que estou procurando uma relação com um outro
adulto, acho melhor deixar meu filho de fora, pelo menos no começo. Por outro lado, não me importo
se ele servir de filtro, excluindo os que não querem mulher com criança — imagino que esses sejam
uns tipos meio Peter Pan, sem coração. Minha distância do Rio é, espero, temporária. Morei no Rio
quando era criança e depois de novo após a faculdade. Estou morando em Paraty enquanto não
decido se quero morar no Rio ou em São Paulo. Os bons bairros do Rio estão muito caros, e ainda
não vendi minha casa de Friburgo. Enquanto isso, vou ao Rio quase toda semana para ver amigos.
Recentemente passei a conhecer melhor e apreciar a Tijuca, que hoje em dia até prefiro aos bairros
de praia. O.k., sua terceira pergunta: um copo de vinho por dia é sem dúvida bom para muita gente
(principalmente para quem tem problemas coronários, mas não se for predisposto a cânceres
hormonais). No entanto, raramente bebo álcool, a não ser que alguém me induza. Acho que tenho o
gene antiálcool, mas nada contra, ideologicamente falando.
É corajoso e admirável adotar uma criança. Imagino que você esteja cansada de ouvir esses
encômios, mas merecem repetição. Você tinha um companheiro na época, ou resolveu enfrentar
o desafio sozinha? Que impacto essa mistura de judaísmo com cristianismo em sua família teve
137
sobre sua identidade?
Fiz a adoção completamente sozinha. Tinha acabado seis anos duros de faculdade e estava
pronta para uma mudança radical de vida. A questão judeu-cristã tem sido interessante para
mim, especialmente agora que estou perto do Rio e de São Paulo, onde há mais judeus do que
em Friburgo. Apesar de a maioria de meus amigos serem judeus, não sinto afinidade nem pelo
judaísmo nem pelas suas tradições (talvez tenha até uma ligeira aversão). Também não me atrai
o cristianismo, apesar de me emocionar, curiosamente, quando ouço canções natalinas e vejo
presépios. Minha avó do lado cristão foi muito mais influente do que os avós do outro lado, mas
prefiro meus primos judeus, que são mais cultos do que meus primos protestantes. Passei parte
da vida querendo ser católica, mas, agora que estou trabalhando no Hospital Santa Maria da
Misericórdia, me parece absurda a idéia. Fui protestante por dois anos e depois me interessei
por budismo e por filosofia indiana e chinesa.
Achei divertido nosso café; pena que tenha ficado claro que não passaria de um café.
Foi bastante inusitado podemos falar disso, abertamente e sem nenhum constrangimento.
Coisa de adulto esclarecido (daqueles que se dão um tapinha nas costas).
É interessante como a química, sobreposta à compatibilidade básica, parece ser o fator decisivo
na escolha daquele com quem desejamos uma relação íntima. Parece quase impossível desprezar
os feromônios, ou certos arquétipos que nos atraem, mesmo sabendo que o outro é uma pessoa boa
e cheia de qualidades. Como é difícil encontrar bons homens, pergunto se você teria abertura para
conhecer uma amiga minha, uma moça muito atraente. Em geral não dá certo quando amigos me
apresentam alguém, mas neste ano houve uma exceção. Então, quem sabe?
Obrigado por me apresentar sua amiga, que estava plenamente à altura da propaganda que você
fez. Mesmo sendo ambos pessoas boas e cheias de qualidades, não sentimos aquela quimera fugaz.
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Uma resposta de oito linhas nunca
poderia ser considerada verborrágica.
Detesto como as correspondências
de hoje, principalmente eletrônicas,
tornaram-se utilitárias. Uma discussão
que não leva a resultados concretos é
considerada perda de tempo. Já foi difícil
para Proust ser publicado cem anos
atrás; hoje ele não teria a menor chance.
Divagar numa reunião de negócios é
138
impróprio, mas pode ser delicioso numa
situação social. Conversar pelo puro
amor à palavra, pelo prazer de manusear
a língua. Talvez tenha ficado osmótica
demais a relação entre a esfera dos
negócios e a íntima. Tudo isso para
dizer que você pode divagar à vontade.
Suas associações livres serão sempre
bem-vindas, por mais inconseqüentes
que sejam.
Aquelas oito linhas foram as últimas.
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Verônica tem os traços típicos de
uma garota-propaganda. É bonita o
suficiente para deixar meus amigos
invejosos e educada o suficiente
para encantar minha mãe. Ela nos
imagina deitados na praia, uma brisa
atravessando as palmeiras. Ponho de
lado meu livro para pedir uma bebida
e começo a passar bronzeador em
suas costas. Ela levanta de repente,
surpresa: minhas mãos estão geladas.
Eu sorrio. Ela relaxa. Ficamos em
silêncio, escutando as ondas. De volta
ao quarto, vestimos nossos robes de
seda e ela cruza os pés sobre meu
colo. Não conversamos porque
nossas cabeças estão enterradas no
jornal de domingo. Consigo terminar
as palavras cruzadas porque ela me
ajuda com os termos de medicina.
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Você sabe dançar?
Muito do que você escreveu fez ding, ding, ding, como uma
bola de prata ricocheteando numa máquina de fliperama.
História da arte, filha da idade do meu filho, ser temida
pelos alunos menos aplicados, nunca ter passado férias
no Caribe... Da lista de traços que considera indesejáveis
num homem, preciso confessar que sou perfeccionista.
Se por dançar você quer dizer movimentos sistemáticos,
ritualizados, semicoreografados, suspiro fundo e respondo:
Não. Mas grito: Sim, sim, sim se você quer dizer oscilações
rítmicas aleatórias. Tenho bom senso de ritmo, por isso
a matéria-prima é promissora para uma mulher venial
a ponto de me querer pelo meu dançarino latente.
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Gostei dos seus dings. Quer jantar comigo?
Apesar da barulheira e do calor, eu estava feliz. Divagando,
circulando as caravanas, cruzando antenas, dançando um
pas-de-deux verbal. Ambos fomos feridos por experiências
anteriores e precisamos pensar nos filhos e tomar cuidado
para não “falhar” de novo, não é mesmo? Mas nossos passos
combinam enquanto caminhamos. E tenho a impressão
de que minha mal pesquisada teoria sobre como a vitória
dos gibelinos promoveu a arte figurativa em prejuízo da
decorativa atingiu meus objetivos antipedestalizantes.
Você tem tendências pedestalizantes? Achei que você estava
se divertindo, testando diversas teorias. Também gostei
muito de nosso jantar. Gosto muito de andar de braço
dado (e de dançar assim também). Podemos pensar
em pas-de-deux futuros?
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Imprimi sua mensagem, guardei no bolso de trás e desdobrei a folha amassada em
momentos de tranqüilidade para decifrar e degustar o conteúdo, como se fosse uma caixa
de bombons. O que representam os nomes próprios? Se você tivesse dado a seus filhos
nomes como Romário, Iranir ou Radamés, eu diria que são nomes perfeitamente
aceitáveis para quem os acha perfeitamente aceitáveis, mas sugerem traços culturais
que têm pouco a ver comigo. Portanto, gostar dos nomes que você escolheu para os filhos
quer dizer mais do que apenas isso. Mas seu nome, Ana, consegue ultrapassar até Maria
em matéria de simplicidade cristalina. À primeira vista, Aza poderia parecer mais rico
do que Ana, pois vai de A a Z e volta. Mas ir até Z antes de voltar não aumentaria sua
reputação de iconoclasta. Não é preciso pensar muito no assunto para perceber a
superioridade metafórica de Ana sobre Aza. Indo até quase o meio do alfabeto, Ana
delicadamente não o ultrapassa, evitando assim o equilíbrio maçante e a simetria
previsível do corte exato, ao mesmo tempo em que manda um recado rejuvenecedor:
após a meia-idade, cada aniversário traz consigo um ano a menos.
O ímpeto de confessar é uma bomba-relógio católica, tiquetaqueando subliminarmente
desde a infância. Essa vontade de falar tudo que passa pela cabeça surgiu da alegria de
ouvir você dizer que foi você que saiu à minha procura. Na realidade, tudo o que fiz foi
recolher o lenço. Sua mensagem me encheu de esperança e provocou uma pequena dor,
a dor do talvez. Uma dor mais próxima da saudade do que da ferida. Sinto um impulso de
revelar todos meus defeitos para que você possa escolher logo entre um sinto muito,
assim não vai dar e um você chama isso de um problema? Mas certas coisas exigem a
companhia de um sorriso e terão de esperar o momento oportuno.
141
Sinto sua falta em minha tela diária, mesmo já tendo colado você na idéia de você. A
triste tentativa de suspirar no meio da barulheira infernal de ontem está retrocedendo
gradualmente para o plano da memória. Me pergunto o que dizer para você se sentir
segura e capaz de se expor. O que fazer para abaixar essa guarda dura. A guarda tem
motivos, mas por que dura, me pergunto... A única estratégia que me ocorre é baixar
minha própria guarda, o que venho fazendo com atos e pensamentos. Mas não com
emoções, a não ser naquele único momento em que disse que queria tocar sua mão e
fui recebido com uma enxurrada de palavras-pensamento. Seria perigoso demais?
Passei os últimos dois dias tentando organizar meus pensamentos e encontrar as
palavras certas. Estou indo mal em ambas as tarefas e só posso esperar que você me
ajude, entendendo e preenchendo as lacunas. Não consigo encontrar uma maneira fácil
de simplesmente largar essas representações de nós dois. Mas preciso fazer isso. Foi uma
esperança enorme, um sonho que não se traduziu em realidade. Meus passos tímidos me
impediram de chegar lá. Não há uma só palavra de nossa aventura epistolar (ou gritada
sobre os Bellinis) que não tenha sido sincera. Espero que você saiba disso. Realmente foi
um enorme prazer conhecê-lo, uma mensagem após outra. Espero que você saiba disso.
Não quero que esta seja uma longa “page d’écriture”. Se tivesse encontrado as palavras
certas, seriam tristes, na maioria. Podemos culpar os passos tímidos, a guarda dura e
outros empecilhos. Talvez isso seja querer demais, mas não poderíamos, simplesmente,
concordar em seguir cada um seu rumo? Você me permitiria isso sem sofrimento ou
decepção? Não é tão simples quanto nadar ou afundar. Entre eles existe o vagar pelo
palco. Um dos atores está fazendo uma reverência de despedida. Você me deixa fazer isso?
Você me perdoa? Penso que sim, espero que sim. Talvez, provavelmente.
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Nas últimas vezes em que visitei
minha mãe enferma, impressionou-me
como é enraizado seu senso estético.
A arteriosclerose vinha reduzindo cada
vez mais sua percepção do mundo, mas
ela sempre comentava como isso era
bonito e aquilo feio. Minha mãe não
tinha mais memória, nem do que havia
acontecido segundos atrás, por isso
142
podia dizer muitas vezes que achava
bonito o seu vestido, produzindo uma
gargalhada gostosa de prazer, sempre
como se fosse a primeira vez. Mas,
neste ponto solsticial da minha vida,
quando mãe e filha usam fraldas,
pergunto-me de que maneira esse
penchant estético, que julga tudo e
todos, me condicionou na infância.
Será por isso que tem sido difícil
encontrar uma parceira?
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Não tenho o hábito de insistir, especialmente com
base em aparências, mas seu rosto não me é estranho.
Se acreditasse em vidas passadas, diria que é isso que
me faz escrever de novo. A vivência das pessoas —
escolhas, caráter — está talhada no rosto, nas linhas
e entrelinhas. Posso responder a suas perguntas,
mandar mais fotos, falar de música, conversar pelo
telefone, até trocar cartões-postais. Sei que não é
sua função me ajudar a investigar intuições, mas o
desequilíbrio entre o que se pode perder e o que se
pode ganhar é simplesmente grande demais para
você me deixar no silêncio.
143
Não se preocupe, eu já ia responder! Mas estou me
apressando para poupá-lo dessa agonia (rss). O que
você disse é, no meu entender, possível. Já respondi
a tantos anúncios que acabei desenvolvendo um alto
grau de ceticismo em relação à primeira impressão.
Talvez você se decepcione, mas tenho certeza de
que pensou nessa possibilidade. Como você disse,
vale a pena tentar.
Um primeiro encontro absolutamente delicioso
engendrou um vôo impetuoso e arrebatado para o
empíreo da paixão. Uma resistência suave ao contato
diário foi suficiente para me devolver à terra. Triste
dizer, mas o poder da auto-sugestão não pode ser
superestimado. E a primeira impressão merece todo
o ceticismo que lhe é de direito.
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Bruna se considera esguia, esbelta,
bonita, calorosa, sensual, sofisticada
e emocionalmente profunda. Mas o
que realmente me atraiu foi o fato de
ela ser sócia de um clube de enófilos.
Marcamos de almoçar, e ela chegou
atrasada, cambaleante por causa de
um salto descolado, quase maltrapilha,
vestida no limite do revelador e do
144
embaraçoso. Irrequieta durante o
almoço, parecia estar escondendo
alguma coisa. Uma dependência
química? Uma depressão? Mas não
havia sinal de vulnerabilidade em
sua conduta, nada que inspirasse
compaixão. Minha vontade era
de fugir, mas agüentei firme,
me remoendo subcutaneamente.
Só me despedi quando pude
levantar com um mínimo de decoro.
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Despertando para os
prazeres do cultivo
físico, deparei-me
com décadas de
tensões encalacradas
nos músculos, com
a inflexibilidade
acumulada do corpo
e com a descoberta de
que minhas pernas são
desproporcionalmente
mais compridas que os
braços, tornando mais
difíceis certas posições
de yoga. A velhice vem
cheia da dor do que
poderia ter sido. Essa
dor vem misturada
com a alegria do que é.
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Escrevi para Carlota, uma portuguesa
mais velha. A foto era atraente, e
gostei da sua escolha de palavras —
em forma e ainda agüentando firme.
Um acidente com a filha adiou nosso
primeiro encontro, aumentando a
expectativa. Carlota revelou-se
agradável, apesar de visivelmente
ansiosa sob a fina compostura.
146
Tropeçou algumas vezes e derramou
vinho sobre o vestido. Tentei
tranquilizá-la, mas a transparência
da inquietude a deixou cada vez
mais aflita. Não era suficiente a
nossa compatibilidade, mas me
parabenizei, como um idiota, por ter
saído com uma mulher mais velha.
Lacan diria que foi desejo incestuoso
pela pátria mãe.
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Fiquei emocionado com sua companhia ontem à
noite. Foi um prazer profundo sentar a seu lado no
teatro, um encantamento degustado em silêncio.
A explicação da cautela com a qual você trata meus
convites foi imensamente bem-vinda. Hoje de manhã,
sinto-me como o salmão que comemos, grelhado na
brasa, marinado em vouvray. Você falou de como,
todo dia, precisamos renovar o esforço de viver com
amor-próprio. Isso é tão verdadeiro quanto difícil.
O bom é que, depois de um lapso, podemos sempre
recomeçar no dia seguinte. Como no catolicismo,
onde a salvação está sempre disponível para quem
se arrepende. Mas o catolicismo já cometeu estragos
147
demais em troca desse consolo (e nem estou
pensando na Inquisição). Na História da Sexualidade,
Foucault descreve como gregos e romanos pré-
cristãos consideravam o “cuidar de si” (cura sui)
como a vocação suprema da humanidade até que a
cristandade redirecionou essa energia incalculável
em direção ao “cuidar de deus” (cura dei).
Ah, mas o cuidar de si em relação ao espírito, não ao
ego. É aí que as coisas freqüentemente ficam
confusas. Falando em cuidar de si, estes dias não só
renovaram meu corpo como também meu espírito.
Cheguei ao trabalho hoje com vontade de escrever
uma nova peça e encontrei sua mensagem. Cura sui.
Um bom começo.
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Dharma é uma dramaturga que gosta
de férias sem itinerário fixo, sem café
descafeinado e sem umidade maciça.
Dharma acredita que, quando seres
independentes sublimam a vibração
da atração física, cada dia pode ser
um primeiro encontro sem nervosismo
e pode haver otimismo sem pieguice.
148
Aprendi que uma dramaturga dá
consultoria a diretores de teatro,
argumentando a favor das intenções
do autor. Dharma afirmou que
nenhuma relação pode sobreviver sem
brigas, sem seu estímulo revitalizador.
Mesmo assim me senti atraído, como
uma mariposa pelo fogo, mas ela
argumentou contra as intenções desse
autor. Ninguém melhor qualificada
para interpretá-las corretamente.
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Comecei a tocar guitarra porque morava em Londres e
assistia aos melhores conjuntos de rock tocando nos
clubes da cidade. Meu ouvido musical era fraco e o
talento medíocre, mas, como as meninas se encantavam
com os solistas, insisti e alcancei um nível razoável de
competência. Depois de terminar a faculdade de
economia, sem a mínima disposição para me alistar na
brigada do terno & gravata, investi contra os moinhos
por quase dez anos, tentando ganhar a vida como
guitarrista. Não me saí bem, mas pude cobrir meus
déficits anuais com a erosão gradual de uma modesta
herança. O pouco que ganhava vinha das aulas
particulares, já que a vida nas bandas de rock era mais
divertida do que rentável. Quando completei 30 anos,
a herança finalmente acabou, e fui exonerado pela
minha namorada por falta de perspectivas. O princípio
da realidade bateu firme. Percebi que essa tangente
musical tinha sido uma maneira de prolongar minha
adolescência. Mudei de rota e entrei para o programa
de treinamento de um banco para aumentar minha
credibilidade e adquirir as ferramentas necessárias para
perseguir um novo sonho: um museu de arte
contemporânea brasileira, a ser instalado em um
armazém abandonado em algum bairro esquecido.
O museu seria a peça-chave de um plano de recuperação
imobiliária e seria financiado por contribuições dos
espaços comerciais que ocupariam os armazéns vizinhos.
Esses espaços, por sua vez, se valorizariam graças ao
pólo de atração que seria o museu. Aos poucos, com o
sucesso crescente da nova carreira, fui deixando de lado
meu projeto, mas o fim do casamento e a conseqüente
recuperação das tendências sonhadoras ressuscitaram a
noção de que essa era a missão de minha vida. Todo
mundo adora essa história, mas é pura mentira.
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O paraíso manda lembranças! Pena não ter viajado pela Itália acompanhado por
você, pois surgem os pensamentos mais curiosos assim que a gente deixa para
trás o efeito anestesiante do cotidiano. Eu estava louco para compartilhá-los com
a pessoa que não estava a meu lado. Dirigindo sozinho, não podia culpar o
navegador pelas viradas erradas; quando elas aconteciam, só podia trocar
insultos comigo mesmo. Até que percebi que em todo cruzamento, em meio a
um emaranhado de setas apontando para todos os lados, há sempre uma única
que diz: TUTTE LE DIREZIONI. Parei de me perguntar para que servem as outras
e passei a seguir esta seta. Sempre cheguei aonde queria. Descobri que todos os
caminhos levam a Roma porque todos os caminhos levam a todos os lugares.
Nessa viagem, pela primeira vez não trouxe minha câmara. Ela afeta meu
grau de presença, me desligando do momento e me projetando para um futuro
prematuramente retrospectivo. Escutei muita música no carro, principalmente
clássica. Antes de viajar, telefonei para a locadora em Palermo para perguntar
se poderia escutar CDs no carro. Responderam: Só fitas, nós não somos tão
avançados assim. Desencavei uma dúzia de relíquias, levei, e é claro que o
aparelho só tocava CDs. Louco para escutar um pouco de Glenn Gould, procurei
me equipar em San Gimignano (pop. 7.000), mas não havia um só lugar onde
pudesse comprar CDs clássicos. Só fui encontrar alguns em Arezzo (pop. 92.000),
150
numa pequena loja no centro da cidade. Qual será a população necessária para
sustentar o comércio de CDs clássicos?
Assim como San Gimignano, muitas cidades medievais foram construídas no alto
de colinas. É difícil, hoje, entender como era sanguinária a Idade Média. Sem um
governo federal forte, a população vivia à mercê das autoridades locais e se
expunha a assaltantes sempre que deixava a proteção das muralhas de pedra.
A maioria se deslocava a pé, e as fortalezas ficavam a mais de 300 metros de
altura, por isso o preço da segurança se media em calos.
Estou agora em Cortona, depois de passar por Arezzo, Sansepolcro e Monterchi.
Não achei as últimas interessantes, pelo menos não em comparação a Veneza ou
Siena, ou mesmo Mantova, uma favorita particular. Ainda vou passar em Gubbio,
onde cometerei uma baita barbeiragem, arranhando a lateral do carro contra um
muro de pedra. Mas lá farei uma das refeições mais memoráveis de minha vida:
sentado na muralha da cidade, a planície da Úmbria se espraiando castanha
sob os olhos esverdeados, encontrarei a felicidade, fantasiada de sanduíche de
prosciutto e provolone e um modesto vinho rosé servido num copo de plástico.
É curioso como certas cidades vibram com nossa freqüência enquanto outras não,
por mais magníficas que sejam. Pode-se dizer o mesmo das pessoas e das refeições.
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Durante o almoço,
Elisa descreveu a
viagem que ela, as
irmãs e as sobrinhas
fizeram a Veneza para
jogar as cinzas da
mãe no Grão Canal.
No testamento, a mãe
havia separado uma
quantia para que a
família pudesse fazer
junta a alquimia de
converter tristeza em
alegria.
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Com
quantos
paus se faz
uma canoa?
Um
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Fabiana era excêntrica, esperta e cheia de dotes
artísticos. Nossas negociações sentimentais
evoluíram rapidamente até que uma mosca caiu
na sopa. Fabiana era aventurosa em todas as
áreas menos no sexo oral, que ela considerava
rua de mão única. Criou-se assim uma situação
desconcertante para um navegador neófito
como eu. [Me surpreende como cada pessoa é
tão diferente em relação ao toque: um gosta
disso, outro daquilo; esses botões funcionam
nesta, mas não naquela. A variedade seria mais
estimulante se não gerasse perplexidade
performática. Uma relação precisa durar para
que se acumule certo grau de conhecimento.
Senão impera a dúvida. A diversidade é
estimulada, ou no mínimo preservada, pela
reticência social em discutir assuntos dessa
natureza. Isso leva à disseminação imperfeita
de informação, permitindo a sobrevivência
de idiossincrasias. O cinema e a televisão
padronizaram o senso de humor global, mas
o mesmo ainda não foi feito com os detalhes
performáticos do sexo.] Voltando a Fabiana,
coisas que antes aceitava melhor, como o
mau hálito, tornaram-se fonte de preocupação.
Pensei em levantar a questão, mas fiquei com
medo de machucá-la. Pedi conselhos a uma
amiga, que perguntou: Se ela solucionasse
o problema do hálito, você continuaria
interessado? Percebi que a resposta era não.
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Como funciona a cabeça
de um solteiro? Ele
avalia cada mulher que
encontra e decide se ela
é atraente ou não. Se
for, o próximo passo é
descobrir qual mão é a
esquerda e verificar se
tem aliança. Se não tiver,
o passo seguinte é pensar
em alguma maneira de
puxar conversa. Depois
do carpe diem, alea jacta
est e caveat emptor.
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O temperamento de Gilda nada tem de
executivo, legislativo ou judiciário. Ela é
sofisticada, complexa e tem as antenas ligadas
em todos os cantos da vida. Seus amigos são
ecléticos e sensíveis, nunca arrogantes. Eles
julgam menos e aproveitam mais. Gilda acha
que cada momento abre uma série de portas.
Já viajou pelo mundo inteiro, mas conhece
melhor as geografias internas.
155
Depois do encontro, Gilda me pediu um
retorno. Como não foi 100% positivo, ela
nunca mais falou comigo. Uma de minhas
ingenuidades é achar que as pessoas vão me
entender exatamente como pretendo. Por isso
escolho as palavras com tanto cuidado. Por
isso procuro a maior precisão possível. Em vão.
Sempre achei que raiva era raiva, mas uma
amiga me mostrou que existe um abismo
categórico entre chamar alguém de alguma
coisa e mandar alguém para algum lugar.
Nunca diferenciei essas manifestações por
achar que vêm do mesmo lugar — a raiva —,
mas ela argumentou que a pessoa alvejada
diferencia. Chamar alguém de alguma coisa é
um juízo, o que machuca muito mais do que
mandar alguém à pqp, uma porrada oral sem
conteúdo judiciário.
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Homem que teve mãe
forte cresce com a
premissa de que toda
mulher é forte.
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Se uma mulher o ataca,
dificilmente pensa
que o ataque vem
da vulnerabilidade.
A pior defesa é a defesa.
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Hortensia diz que se veste e se despe muito bem. É intensa
quando está apaixonada por algo ou por alguém, mas a
intensidade vem de boas intenções e do desejo de somar,
não de competir. Sua natureza é extremamente independente,
mas o homem certo revelará o lado dependente.
Que bom que meu perfil encontrou eco; o seu parece tão
perfeito. E basta olhar o site de sua microempresa para
entender melhor o porquê: o projeto de ensinar às crianças
a cozinhar junto com a família é uma contribuição admirável.
É interessante como tudo começou quando você pediu que
seu filho colhesse um punhado de manjericão. Curioso como
idéias que mudam nossas vidas podem ter origens as mais
prosaicas. Minha banheira de Arquimedes é meu chuveiro:
não preciso mais trabalhar por conta de uma idéia que me
157
ocorreu debaixo d’água. Muitas das idéias de meu primeiro
livro também foram chocadas lá. É um lugar tão produtivo
que é um milagre que eu saia de lá. Mas cozinhar, preciso
confessar, é estressante demais para meu temperamento
delicado. Em vez disso, organizo provas de vinho. Sirvo
sempre uma seqüência de três vinhos e três queijos, com pão
e uma salada temperada com azeite trufado, sal e amêndoas
torradas. É de minha natureza misturar o sensual com o
didático; por isso os vinhos seguem um tema, e os queijos são
de leite de cabra, ovelha e vaca (quando possível, da mesma
região que os vinhos). Você gosta de grapa? Não sabia que era
tão armada e perigosa. Não sei nada sobre grapa, pois caio
fora sempre que o teor alcoólico sobe acima de 15%. Mas, da
última vez que voltei de Minas, trouxe comigo várias cachaças
artesanais. Talvez a gente possa reunir nossos inimigos para
uma prova conjunta de cachaça e grapa.
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Gostei muito do que você escreveu sobre si e também de seu sorriso. Minha foto mal mostra
meu rosto, apesar de revelar a feminilidade do meu ombro (tenho bons ombros, segundo
padrões século XX). Mas não vou atualizar minha foto porque os encontros via Internet têm
sido meio angustiantes, principalmente pela necessidade de codificar e decodificar tantas
autopromoções abreviadas. E me falta sutileza na hora de interpretar as pessoas. Precisei
do divórcio para chegar a esse ponto, mas cheguei. Levo uma vida bastante complicada.
Meu trabalho me obriga freqüentemente a ir à Brasília e a outros lugares, mas moro em
Corrêas. Passo a maioria dos fins de semana no Rio. Leio bastante. Vivi muitos anos na
Europa. Música é uma das coisas mais importantes para mim. Tenho uma coleção muito
modesta de objetos de vidro. Adoro a natureza, tanto na cidade como no campo. Mas a
verdade é que quase qualquer coisa me interessa. Ontem almocei com uma colega que
me impressionou com histórias fantásticas sobre cogumelos. Se você responder, eu conto.
Obrigado pela mensagem encantadora. Eu seria a última pessoa a dar as costas a um bom
ombro, especialmente quando precisei de um divórcio para entender como essa parte da
anatomia é fundamental. Minha ex-mulher ficava irritada quando me contava os problemas
e eu respondia com sugestões. Ela era esperta o suficiente para encontrar as próprias
soluções, queria apenas um velho e bom consolo. Minha falta de perspicácia era típica
de um solucionador profissional, para quem toda questão em aberto é um convite à ação.
Minha falta de empatia era típica de um inseguro amador, para quem toda questão em aberto
é um convite à angústia. É triste como aprendi tarde certas coisas elementares.
Estou escrevendo de Florianópolis, a caminho de Joinville. Sempre recorro ao pragmatismo
158
quando não sei o que fazer. O pragmatismo me serve quando me sinto alienada no trabalho.
Mas não funciona em casa e, especialmente, com as crianças, que estão tentando encontrar
as próprias soluções. Meu ex-marido é escritor, e seu trabalho e sua identidade são
inseparáveis. Levei anos para perceber que, quando ele me pedia uma opinião, essa era a
última coisa que ele queria. Mas acabei aprendendo.
Me liga de Joinville. Quero ouvir sua voz e conhecer tudo o que você sabe sobre cogumelos,
interesse que combina com seu amor à música: um primo querido me contou que John Cage
virou entendedor de cogumelos porque, nas enciclopédias, o verbete mushroom vem logo
antes do verbete music. Coisa de gente obsessiva, sistemática e serial.
Sinto muito ter sumido da face da terra. Ando enlouquecida e, francamente, me senti tão
desanimada por estar sobrecarregada e não ter escrito antes que bati em retirada. E, se
puder ser realmente sincera, seu convite para telefonar me assustou. Agora você sabe que
eu sou uma medrosa, uma sobrecarregada e uma ansiosa.
A face da terra ficou feliz com sua volta, e é preciso coragem para admitir o medo. Uma
mãe que mora em Corrêas e trabalha em Brasília só merece compaixão por estar tão ocupada.
Bastava dizer que meu convite era assustador. Eu não teria mordido. Você precisa me dar
algum crédito, eu já vi esse filme. O medo faz parte de nossa miséria cotidiana e tem o
grande mérito de prolongar nossas vidas.
Encontramo-nos num bar, e a conversa foi desajeitada. Nenhum sinal da pessoa que escreveu
o primeiro parágrafo. Gostaria que o resultado tivesse sido outro, pois do fundo do seu ennui,
ela exalava uma escuridão carismática, perigosa como uma lâmina de papel.
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Íris é graciosa e audaciosa
Feminina, mas não caprichosa
Ontem mesmo disseram
que sua pele era deliciosa
Íris quer independência
& interdependência
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Sua maior virtude: a honestidade
Seu maior defeito: a honestidade
Íris é esperta e calorosa
Suas maiores armas são
a retórica e a persuasão
O arco dessa íris foi
meteórico na arrebentação
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A perspectiva de nos encontrarmos me deixa tímida. Ficamos tão próximos através das cartas. Alguns achariam isso
artificial, mas não foi em nosso caso porque somos escritores, descascando lentamente as almas. Tenho a dolorosa
consciência de que eu talvez não me encaixe no seu tipo ideal, mas não há muito que fazer. Eu talvez nem me sinta
atraída por você. A atração é um fenômeno tão imprevisível, e gosto não se discute. Sinto-me mais uma vez “disponível”,
procurando uma relação maravilhosa, pronta para me comprometer com a pessoa certa. Se eu e você não fomos feitos
um para o outro, talvez possamos ter maturidade suficiente para desenvolver a amizade que começamos a construir
nesses meses de correspondência. Talvez não seja possível, quem sabe? Minha preocupação de não ter a aparência
“certa” para você é espelhada pelo fato de sua foto não mostrar meu “tipo”. Mas o que quer dizer “tipo”? Você precisa
parecer o Daniel Day-Lewis? Isso seria muito maduro de minha parte. Com certeza, estou ansiosa para te conhecer,
pois acho você um ser humano incrível, além de um belo escritor. Estou adorando estas semanas em Veneza.
Se você estivesse aqui, poderíamos estar fazendo amor neste exato instante. Por que não vem?
Você está me provocando! Que diabo, onde estão as fotos que você prometeu? Só vi uma até agora e cuidadosamente
escolhida. Uma não basta. Para que eu saia correndo até aí, vou precisar de um punhado de fotos pouco atraentes
de você dando comida para os pombos na Piazza San Marco, talvez até com cocô de pomba no cabelo, para que
possa montar uma colagem fidedigna. Se bem que sua personalidade já é bastante tentadora.
Veja só, a boa noticia é que mesmo que você veja umas fotos (já que está tão obcecado por isso) e descubra que sou
baixinha, gorda e careca, podemos continuar amigos, pois você é uma delícia no papel. A outra boa noticia é que
tenho uma altura no mínimo mediana e muitas outras características “apetitosas”.
O.k., não gosto de parecer “tão obcecado” com as fotos porque meu lado idealista gostaria de achar atraentes todas as
mulheres maravilhosas. Mas também sei, baseado na experiência, que não é bem assim. Posso achar uma pessoa linda
e não sentir atração; assim como posso, com menos facilidade, sentir atração e não achar a pessoa linda. Meu desejo
me parece excessivamente preso a meu gosto (influenciado, é claro, pelos arquétipos da época). Sou tão ligado ao
design e às aparências que isso impregna meu jeito de ver as pessoas. Mas posso dizer que a altura não é uma questão
tão importante para mim. Por outro lado, poucas vezes senti atração por mulheres que não fossem magras (suspeito
que as exceções tinham o carisma que vem de uma enorme auto-estima). A gordura foi sempre meu maior “problema”,
e a consciência de que o preconceito vem da infância ainda não bastou para vencê-lo. Não gosto de ser assim, mas é
parte de quem ainda sou. Apesar de ter conseguido acabar com a própria gordura, minha relação com comida — tanto
a quantidade quanto a rapidez com que como — continua sendo a de um gordo.
Não tenho nada a dizer sobre sua última mensagem. Fiquei tão decepcionada que pensei em muitas respostas mas
160
francamente não tenho nenhuma. Será que minha aparência importa tanto que você não gostaria de fazer amor comigo?
Com meu coração e minha alma? A verdade é que eu tenho um corpo esplêndido, apesar de não ser tão esbelta e perfeita
quanto você deseja. C’ést la vie. Cá estou, estonteada com a beleza de Veneza, mas já não quero compartilhar isso com
você. Acabamos de visitar a Praça São Marcos de novo. Fiquei parada, lágrimas correndo dos olhos, assombrada com o
tamanho do esplendor. Os mosaicos, as fachadas, a cor da água, as gôndolas. Onde quer que eu olhe, fico pasma. Nunca
vi tanta beleza em minha vida inteira. Pois então, fique bem. Encontre alguém que corresponda à sua imagem da mulher
perfeita. Meu corpo é maculado pela experiência, e é assim que deve ser. Já vivi muitas vidas e estou começando uma
nova neste preciso instante.
Vejo que fui julgado, condenado e enforcado in absentia. Mas sinto muito se te machuquei. Aproveite Veneza e tenha
uma vida maravilhosa.
Por favor, não me interprete mal. Aprecio muito sua honestidade. E, por favor, não se sinta julgado. Certamente nunca
o julguei ou condenei. Não sou esse tipo de pessoa. Apenas me senti mal porque você deixou claro que eu precisaria
corresponder a um certo tipo para que você pudesse gostar de mim. A maior ironia é que eu sou muito atraente e nada
gorda. É por isso que as pessoas deveriam encontrar-se logo depois de se conhecer pela Internet. Assim, evitam-se as
ilusões, e dá para testar imediatamente se existe química ou não. Se você reler sua mensagem, acho que entenderá como
uma mulher imperfeita, lendo uma coisa dessas, não poderia deixar de sentir-se deficiente. No entanto, gostaria de dizer
que sempre apreciei sua franqueza. É uma pena você não ter aceitado meu convite para voar até aqui. Poderíamos estar
na cama agora.
Agradeço suas palavras, mas continuo com raiva. Reli, com muito cuidado, a mensagem tão ofensiva e me parece claro
que ela só fala de mim, enquanto você reagiu como se ela falasse de você. Se minha mensagem trouxe à tona questões
mal resolvidas ou decepções anteriores, cabe a você tratar disso intimamente em vez de projetar-se sobre mim. Você
diz: Por favor, não se sinta julgado, mas o fato é que fui julgado, sem nenhum benefício do crédito acumulado durante
nossa correspondência. Também preciso esclarecer uma coisa: não tenho nenhum “tipo” específico. Pouco me importa
se você é loura ou morena, alta ou baixa, malhada ou não, com cabelos lisos ou encaracolados. Nada disso me interessa.
Mas acho gordura uma coisa feia e reconheço que esse é um problema que preciso resolver. Não disse, em momento
algum, nada sobre você. Seria uma idiotice procurar a perfeição. Como você pode me acusar disso (mesmo com licença
retórica)?
Realmente lamento muito esse constrangimento entre nós. Não deveria existir, definitivamente. Podemos continuar
amigos, ou terminamos aqui? Acho que a simpatia e o interesse de nossa correspondência indicam que temos muito
em comum e gostaríamos de nos conhecer. À bientôt?
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Aos 17 anos, Jacqueline descobriu
Chomsky e achou que havia encontrado
alguém que entendia o mundo. Aos 37,
ela procura um bobo sagaz.
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Tomamos café na orla da Lagoa, olhando
as marolas mansas dos remadores que
treinavam. Conversamos muitas horas,
contando nossas histórias, até que o fim
do dia pesou sobre o horizonte como um
diafragma escarlate separando o céu da
terra. Minha insegurança foi aumentando
diante da natureza intransigente da
inteligência de Jacqueline. Por não
precisar de minha aprovação, ela pôde
fazer perguntas pontiagudas sobre
minhas escolhas existenciais. Os chavões
e as fórmulas que me serviram no
passado resvalavam nela. Quanto mais
ela me colocava na defensiva, mais eu a
respeitava. E quanto mais eu a respeitava,
mais eu a queria. Ela deve ter sentido que
eu estava começando a colocá-la num
pedestal. Pior, ela deve ter intuído que
eu tenho essa necessidade. Dizem que
quando o aluno está pronto o professor
aparece. Até agora, nenhum sinal dele.
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Depois de anos de errância no deserto, finalmente
matei a charada (mas cuidado com as palavras):
Paixão nada tem a ver com amor
É fácil se apaixonar. Dá trabalho amar.
Tanto filhos quanto parceiros.
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Os pais naturalmente sentem paixão pelos filhos porque
os filhos são extensão dos pais. Questão de genética,
seleção natural, sobrevivência da espécie. Os filhos,
por sua vez, intuem que essa paixão é dirigida a uma
projeção dos pais e não se sentem amados. O amor,
por outro lado, reconhece a alteridade dos filhos.
Os pais amam os filhos do jeito que os filhos são, não
do jeito que gostariam que fossem. Os filhos que são
amados se sentem aceitos do jeito que são, criando uma
base de auto-estima que os acompanhará vida afora.
Quem recebe paixão, em vez de amor, viverá sempre
com um buraco na alma por intuir que não foi amado.
Um adulto sente paixão por outro porque procura a
felicidade através da fusão de egos. Questão de genética,
seleção natural, sobrevivência da espécie. O outro intui
que a paixão é dirigida a uma projeção, mas está se
divertindo demais para questionar. O amor, em vez
disso, reconhece a alteridade. Um adulto ama outro do
jeito que o outro é, não do jeito que gostaria que fosse.
Adultos que se amam estabelecem uma confiança
mútua que pode sobreviver depois da relação terminar.
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Bem, foram-se algumas semanas, e me dei
conta que deixamos de nos falar sem passar
recibo. De minha parte, comecei a me sentir
dispersa demais. Na época em que procurei
você, estava atravessando uma fase
disponível e, por isso mesmo, de uma hora
para outra, passei a ter homens em minha
vida. Rapidamente passei a sentir-me
sobrecarregada, por falta de tempo e pouca
disponibilidade emocional. Entendi que
precisava concentrar-me. Conheci alguém
com quem comecei a desenvolver uma
ligação forte e achei que precisava deixar
isso acontecer. Também senti uma ligação
forte com você, apesar de, como você mesmo
notou, deslizarmos com facilidade na direção
do cerebral. Mas sei que, para nós dois, esse
pode ser um lugar intensamente pessoal,
íntimo e apaixonante. Achei você doce,
profundo e atencioso. Lamento que minha
falta de disponibilidade não me permita
cultivar as pessoas especiais que encontro
na vida. Mas queria pelo menos que você
soubesse que realmente gostei de te
conhecer e que talvez faça sentido explorar,
no futuro, pelo menos uma amizade.
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O encantamento sociobiológico passou rapidamente para
beijos e abraços numa espiral ansiosa que levou estranhos
a confundirem salivação com salvação. Keila era insinuante,
inteligente e vibrante. Ela me deu uma carona em seu
conversível vermelho-metálico, e, enquanto contornávamos
a praia naquela carruagem flamejante, eu não parava de
pensar como aquilo não era minha cara. Seguindo a tradição
milenar dos que têm pouca medida, perguntei se ela queria
subir. Seu corpo generoso não se encaixava bem no meu,
mas nossos pudores pareciam velhos amigos. O sutiã e a
calcinha — de renda fina, do tipo fino que fica guardado
esperando uma ocasião especial — eram clara indicação
de que ela estava pronta para qualquer eventualidade. Mas
um velho anjo protestante soprava no seu ombro que seria
impróprio fazer tais coisas na primeira noite. Ficamos então
tateando no escuro, ainda meio vestidos, e o vai-não-vai
tornou-se frustrante. Ao mesmo tempo, eu sabia que no
dia seguinte o resíduo desse débacle seria uma lembrança
estupidamente vazia. Instaurou-se assim uma guerra civil
entre o desejo e o amor-próprio.
Esqueci meu capacete no corcel de fogo, e quando Keila
ligou uns dias depois para perguntar se eu não queria ir
pegá-lo, agradeci e disse que já havia comprado outro.
Segundos depois ela telefonou de novo com a verdadeira
pergunta: Por que você não me ligou? Disse que tinha sido
um prazer, mas que a relação não me parecia ter futuro,
infelizmente. Gostaria de ter dito que não gosto de gente
dividida entre o que quer e o que pensa que deve querer.
Faça o que quer porque quer e não faça o que não quer
porque não quer, mas não se guie pelo que os outros vão
pensar. E, se fizer algo do qual poderá arrepender-se mais
tarde, que o faça com garra, sem combinar hesitação e erro.
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Passei minha primeira noite na Toscana no hotel-fazenda
novinho em folha de uma condessa, mãe de um velho
amigo, metade brasileiro, metade italiano. No dia
seguinte, visitei uma vinícola famosa e antiquíssima de
um primo da condessa, um barão. Ridículo pensar que
me impressionava com títulos nobiliárquicos quando eu
era jovem. Hoje, só me importa se a pessoa fez análise ou
não, se pertence, digamos assim, à aristocracia do divã.
No dia em que cheguei ao hotel-fazenda, a condessa
estava dando uma festa de inauguração, e o prefeito
comunista de Manciano, a cidade mais próxima, veio
prestigiar. A condessa me puxou de lado e comentou,
rindo, que todo mundo na Toscana é milionário e
comunista. Quase respondi que Marx & Engels
certamente não queriam que todo mundo fosse pobre,
mas preferi meditar sobre como as palavras rico e pobre
perderiam a função, até o sentido, se todas as pessoas
fossem uma coisa ou outra. Mas, voltando à vinícola, o
barão me recebeu de maneira muito afável, nas terras
que sua família cultiva (declarou orgulhosamente) desde
o ano de 1300. Sim, senhor, mille e tré. Mas não sem
antes me examinar da cabeça aos pés e fazer algumas
perguntas enológicas para avaliar quanto tempo deveria
perder. Afinal de contas, a condessa, uma ex-miss Itália,
havia entrado para a família por via matrimonial e devia
ser vista com certa reserva. Mas correu tudo a contento,
e provei líquidos deliciosos. Voltando à festa, enquanto
conversava com o prefeito de Manciano, uma loura
“atraente” juntou-se a nós. A palavra atraente está entre
aspas porque as italianas na Toscana são meio vamp, os
cabelos exageradamente pintados de louro, com corte
(de roupa e de cabelo) brega-chique. Voltando ao
prefeito, com a loura na frente, baixou um santo
diferente. Abriu-se um manancial de sensualidade
masculina, um charme fácil e envolvente, um carisma
fundado em milênios de seleção natural. Os italianos são
os homens mais bem-vestidos da terra, mas ainda não me
acostumei com a mistura de sapato bege e terno marrom.
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Gostei do que você escreveu e acho que teríamos muito que conversar.
Quando puder, por favor, dê uma olhada em meu perfil. Acabo de me
mudar para São Paulo, e essa história de bater na porta virtual de homens
desconhecidos me parece deliciosa e, ao mesmo tempo, misteriosa.
Sempre alerta e obediente, examinei seu perfil e, apesar de você ter dito
apenas que gostou do que escrevi, prefiro alimentar sua vaidade dizendo
que também gostei de sua foto. O fato de você ter estudado arquitetura
em Los Angeles disparou um neurônio tangencial contendo memórias
afetuosas de um dos amigos mais loucos que já tive, um francês bigodudo
chamado Claude. Quando morei em Los Angeles no começo dos anos 80,
Claude estava fazendo Ph.D. na SciArc. Ele dirigia um pré-histórico Deux
Chevaux amarelo-canário e ficou famoso entre os amigos por ter sido o
único motorista na história da cidade a ser parado pela polícia rodoviária
por andar abaixo da velocidade permitida. Rolávamos de rir enquanto ele
encenava, gesticulando teatralmente, as tentativas de explicar aos
guardas, com sotaque francês fortíssimo, que um Deux Chevaux
simplesmente não andava mais rápido.
166
(...)
Obrigado por dividir comigo o fato de que estou lhe sobrecarregando.
Acho que podemos pensar e sentir nossos caminhos, e também sei que
você nos pode guiar, com esse seu jeito doce. Acredito que isso já esteja
acontecendo, de uma maneira muito bonita. Não quero que você se sinta
sobrecarregado. Tenho muita esperança no nosso futuro. Você me faz
sentir e pensar profundamente. Também quero honestidade absoluta nas
relações. Creio que somos capazes disso. Temos sorte e devemos agarrar
essa chance. O que você chamou de fantasia é ainda mais complexo
quando tem fundamento. Se continuarmos abertos a essa possibilidade,
acho que isso é algo que poderemos compartilhar. Preferiria estar
dizendo isto tudo em seus braços, mas não posso esperar tanto.
Estou ansiosa para revê-lo.
Agradeço a mensagem carinhosa e o relato de ontem sobre seu passado
difícil. Respeito e admiro você, e não tenho dúvidas de que poderíamos
desenvolver sentimentos mais profundos. Meu receio, saindo de um
casamento onde havia muito amor e pouca paixão, é de me encontrar
de novo nessa situação. Quero paixão e não quero esperar.
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Cresci cantando canções pacifistas numa colônia de férias vegetariana. Ando de sandálias, mas sei me
arrumar para uma noite de gala. Pedi depoimentos aos amigos para incluir neste perfil, e um deles disse
que eu lembrava o “Bernardo”, seu beagle favorito.
A primeira vez que li o perfil de Clarice, embarquei numa viagem-solo e mandei-lhe o equivalente a um
cartão de visita, entregue numa bandeja por um mordomo virtual. Sua resposta tardia me poupou da
dúvida atroz: insistir é importunar? Aliviado, disse-lhe que tinha quase escrito: “Estou tentando de novo
caso uma pane na Patagônia tenha causado um blecaute temporário nas redes elétricas no momento exato
em que minha primeira mensagem entrou em seu computador”.
Fiquei contente de lhe poupar o esforço de checar os distúrbios meteorológicos na Patagônia (aliás, um
de meus lugares favoritos). Quero saber mais sobre você. Em nome da fidedignidade, Clarice é apenas meu
nom de plume, uma homenagem a Lispector. No que se costuma chamar de vida real, meu nome é Leila.
Seu perfil é delicadamente calibrado entre o humor e a seriedade, o cerebral e o sensual.
Você até escreveu a palavra décolletage errado, na tradição dos mestres japoneses que dão
uma borradinha no acabamento das peças para que os deuses não os acusem de hubris.
Não estou nem um pouco preocupada com hubris. Eu sou o produto de uma educação progressista baseada
na idéia que somos todos tão bem-dotados que não precisamos nos preocupar com algo tão prosaico quanto
ortografia. Em minha primeira prova de literatura inglesa, tive a nota rebaixada por escrever ângulos em
vez de anjos em os ângulos caídos do Paraíso Perdido de Milton. Pelo visto, eu também não era boa em
geometria... Como você já deve ter adivinhado, sou parte húngara (metade), e aqueles húngaros viajaram
bastante. Minha avó tinha cara de quem vinha da Mongólia, e, como somos judeus, é impossível saber que
espécie de integração noturna gerou minha genética.
167
Húngara? Pesquisei minha ascendência e fui parar numa nobre escocesa que, de acordo com o dicionário
de biografias que consultei, era descendente de Estêvão I e Estêvão II, os primeiros reis dos magiares.
É ridículo, mas me orgulha o fato de 1% de meus corpúsculos serem nobres. Visitei Budapeste uns quatro
anos atrás e minha concepção do mundo ficou alterada com a descoberta de que Buda e Peste são cidades
diferentes. Adorei jantar no tradicional restaurante Gundel, saboreando patê ao som de violinistas ciganos
de fraque e gravata-borboleta. Bem, agora vou cuidar de meus hóspedes, que acabaram de chegar.
Parabéns pela ascendência real húngara. Rei Istvan, seu antepassado, foi o primeiro a adotar o cristianismo.
Sua coroa, doada pelo papa, tem uma cruz torta em cima, e é uma grande fonte de orgulho e nacionalismo
para os húngaros. Sua mão direita, preservada na Basílica, é o carro-chefe de uma procissão solene que
desfila por Budapeste todo mês de agosto. Espero que você aproveite bem os hóspedes. Recomendo a
exposição de borboletas do Museu de História Natural, apesar de só conhecê-la pela descrição feita por
um sobrinho de 3 anos, pois morro de medo de borboletas. Ratos, cobras, cães raivosos, nada disso me
faz pestanejar, mas tenho medo de machucar as borboletas. Devem ter me dito, em algum ponto sensível
de minha infância, que, se as tocamos, elas não podem mais voar e traçar as delicadas caligrafias aéreas.
E daí? disse a mãe do menino, a vida delas é tão curta que não faz diferença. Talvez seja um resíduo de
minha colônia de férias vegetariana (nossa, que vontade eu tinha de comer salsicha).
Fiquei impressionado com a delicadeza de sua aversão a borboletas. Não podemos deixar a extensão curta
de suas vidas impactar a extensão curta de suas asas. A cruz torta da coroa de Istvan, inclinada num dos
ângulos de Milton, me fez pensar em como tudo é interligado.
Tivemos um piquenique agradável, agraciado por um excelente Tokai húngaro que o rapaz trouxe em
minha homenagem. Com esse vinho doce (de 6 Puttonyos), saboreamos amargamente a curta extensão
da nossa atração.
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Você foi tão generosa com as palavras,
enquanto eu fui tão econômico. É porque
achei seu perfil de tal modo ideal que
qualquer coisa que eu dissesse pareceria
redundante; bastava aparecer em sua porta
virtual e tocar a campainha. Também tenho
opiniões fortes, mas só depois de fazer o
dever de casa. Uma de minhas resoluções
para o ano novo é controlar meu impulso
de julgar — o mundo precisa de menos
adjetivos e mais substantivos. Também
168
gostaria de abrandar meu jeito de expressar
opiniões. Quando era mais jovem, meu jeito
categórico impressionava as pessoas, mas
só aquelas que não sabiam a diferença entre
força e firmeza. Também fui contra a Guerra
do Golfo, não apenas pelos motivos liberais
de costume, mas porque detesto qualquer
tipo de violência, como boxe, brigas de galo
e touradas. Por outro lado, sou carnívoro e
gosto de filme de pancadaria. Será que a
incoerência de minhas posições quer dizer
que eu não fiz o dever de casa?
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Admiro a profissão de Maria mais do que a maioria
das profissões. Tenho pouco talento e paciência para
o detalhismo exigido pela arquitetura, mas aprecio a
combinação do prático e do estético. O estético é tão
importante para mim que alguns de meus encontros
naufragaram por causa de alguma ressalva em relação
ao gosto da pessoa. Isso me constrange, pois parece
um motivo superficial e impróprio, mas talvez aponte
para uma necessidade mais substancial. Adoro visitar
aqueles museus bolorentos que têm vitrines enormes
cheias de pequenos objetos classificados por tipos.
Posso admirar 45 anéis celtas, 26 ânforas gregas e
19 crucifixos de marfim. Em geral, não há ninguém
em volta. Esse monte de tesouros me dá o consolo
de pensar que a humanidade tem mais talento para
o bem do que para o mal.
169
Maria e eu saímos para explorar espeluncas, cavernas
subterrâneas com abóbadas gigantes e dramáticas.
A claustrofobia de Maria gerou oportunidades de
consolação. Jantamos à beira-mar, banhados primeiro
pela luz vermelha do pôr-do-sol e depois pela luz
mágica e intermitente de uma hoste de vaga-lumes.
Na noite seguinte, tivemos um jantar menos agradável
com um de seus clientes, um banqueiro inglês que
acabara de comprar uma antiga fazenda de café no
interior de São Paulo. Maria disse, meio brincando,
que minha missão era impressioná-lo com meu
cosmopolitismo, elevando assim o status dela para
que ele a contratasse para reformar a fazenda. Por
ostentação, nosso anfitrião pediu dois magnums
de um supertoscano medíocre, produzido por uma
vinícola caríssima, famosa apenas pelo brunello. Que
desperdício de poder de fogo. Meu cosmopolitismo
se manifestou através do silêncio, que exigiu toda
minha disciplina. Maria ficou grata pela companhia,
e eu pela hospedagem. Passamos de conhecidos a
amigos e lá ficamos.
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Nunca sou assim, exceto agora, por isso me pergunto: que feitiço é esse que faz minhas
linhas fluírem de maneira tão floreada em direção a Vossa S.ª? Mas por que especular
se você pode averiguar em pessoa se minha mira é certa?
Quem é você (exceto agora)? Talvez eu descubra daqui a uma semana.
Já que você está decidida a adiar o resto de sua vida por uma semana inteira, a aniquilar
168 horas de felicidade por causa de uma obrigação de família, não tenho remédio senão
dizer: Ars Longa Dolce Vita Brevis. Aqui vai a citação do dia: “A obra de vanguarda
nunca é historicamente eficaz ou plenamente significativa nos momentos iniciais.
Não poderia ser porque é traumática: abre um buraco na ordem simbólica de sua
época, que não está pronta para recebê-la, que não é capaz de recebê-la, pelo menos
não imediatamente, pelo menos não sem mudanças estruturais”. (Esse é outro aspecto
da arte que os críticos e historiadores precisam registrar: não apenas as desconexões
simbólicas, mas a incapacidade de significar.) Adoro a expressão incapacidade de
significar.
170
Ah, essas incapacidades de significar... E o termo favorito do escritor preguiçoso:
significador. Talvez eu esteja de mau humor, mas você também não sente impaciência
com escritores que precisam prolongar-se de um jeito tão rebuscado, misturando
metáforas e pontos de referência, para transmitir idéias? Ainda por cima, idéias
relativamente simples. Não concordo que um trabalho de vanguarda nunca seja
eficiente ou significativo no momento em que aparece. Muitos trabalhos chocaram
e ofenderam o público, forçando-o a reexaminar o que é a arte. Quanto a uma obra
de arte ser historicamente eficaz ou significativa nos momentos iniciais, bem,
tenho certeza de que você percebe a contradição interna.
Nervosinha, hem? Significador e significado não são termos de escritores preguiçosos,
assim como x, y e z não são termos de matemáticos preguiçosos. Permitem conversas
abstratas sem referência constante a exemplos concretos. Mas, acima de tudo, adoro
o ponto da citação e adoro como foi colocado. Enquanto muitos trabalhos de vanguarda
de fato chocaram e ofenderam quando mostrados, eles raramente fizeram os filisteus
reexaminar, em tempo real, a idéia do que é arte. Essa reavaliação costuma vir mais
tarde, às vezes muito mais tarde, quando a ruptura no tecido cultural teve tempo
de ser absorvida pelas elites que determinam o gosto vigente. Finalmente, não vejo
contradição em uma obra ser historicamente eficaz ou significativa nos momentos
iniciais. Por favor, ilumine-me.
Entendo e aceito seu ponto de vista, mas minha perspectiva é ligeiramente diferente
(é bom trocar figurinhas). Lembre-se que, segundo Virginia Woolf, depois da
exposição de Cézanne em Londres em 1911, o cunhado dela, Clive Bell, declarou que
o mundo acabava de mudar. E, realmente, Cézanne mudou a maneira de os pintores
verem e pintarem.
Para cada inovação, há sempre um punhado de intelectuais prescientes que “entendem”,
mas são justamente as exceções que confirmam as regras. E você precisa admitir que
1911 é relativamente tarde para intelectuais soi-disant ligados no zeitgeist descobrirem
Cézanne. Mas esses Bloomsburies eram mesmo meio atrasados.
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Neide pertence à organização chamada
raça humana. Todos aqui pertencem a
essa organização, mas poucos acreditam
nela. Neide gosta de homens que prestam
atenção nos detalhes. Nas conversas,
nos relacionamentos, no trabalho e na
aparência. Quando Neide está com um
homem, quer que ele concentre toda
atenção sobre os dois.
171
Minha curiosidade aumentou quando
ela disse que a terapia de grupo tinha
sido a melhor coisa que aconteceu em
sua vida. As colegas gostavam tanto
umas das outras que se encontravam
uma segunda vez por semana fora do
consultório. Neide disse que todos se
conheciam como a palma da mão e se
ajudavam com os problemas. A amizade
entre eles se tornou forte; consolo e
comunidade, tudo junto. Ela ficou
incomodada porque eu parecia mais
interessado no grupo do que nela.
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Seu perfil tem muitas coisas interessantes. Altamente interessantes! Azeite trufado e honestidade são duas coisas que prezo. “Burguesa pouco
convencional” parece uma contradição divertida. A morte da pintura é um assunto penoso para mim. Paul Éluard escreveu uma poesia sobre
como não existe certeza. É a única poesia que me dei ao trabalho de memorizar:
Façam sorrir a certeza.
Ela é de pedra?
Ela derreterá.
Obrigado pela poesia do Éluard. Falando em certeza, ontem fui assistir a um debate sobre o Goeldi e, no final, alguém da platéia perguntou:
Vocês não acham que Lívio Abramo é um artista mais interessante? Rodrigo Naves, um dos participantes, respondeu: Lívio Abramo foi
importante, mas, para ser bem sincero, acho que ele tinha certeza demais. Isso ressoou tanto em mim. Quanto à morte da pintura, das duas
uma: ou é uma falsa questão, ou é uma questão pertinente apenas em relação à vanguarda. Mas, como muita gente acreditou que a pintura
havia, de fato, morrido, a questão teve impacto inegável, seja verdade ou não. Também amo o Mediterrâneo. Se pudesse ter a casa de férias
de meus sonhos, seria em Veneza ou numa cidadezinha chamada Haut-de-Cagnes, no alto de uma montanha perto de Nice. Achei St. Paul de
Vence turística demais, uma espécie de San Gimignano francesa, mas gostei de visitar a Fundação Maeght e almoçar naquele restaurante
famoso cujo nome me escapa, cheio de arte de segunda feita por artistas de primeira.
Que bom que você gostou da poesia. Que idéia lírica essa de fazer a certeza sorrir... Você conhece a estética de Hegel? Ele descreveu a arte como
o percurso de uma idéia manifestada materialmente e previu que seu futuro seria o Capricho. E não é que aconteceu mesmo! Mais do que a morte
da pintura, aconteceu a morte da seriedade, do detalhe, das considerações meticulosas. Tudo está andando rápido demais. Hoje em dia, tudo é
Capricho. Aquele velho Hegel, que previsão magnífica... O Warhol é o pai do Capricho; Pollock e os expressionistas abstratos viveram uma espécie
de febre, um transe semi-religioso de busca e gesticulação louca que marcou o fim da pintura ligada ao mundo natural — cheia de sangue, Deus,
vida, natureza e todo esse tipo de coisa — uma doce apoplexia. Aí, então, entra em cena o Capricho, na forma de uma lata de sopa Campbell’s.
Sempre achei que a arte, depois de Warhol, deveria ter outro nome. Virou outra coisa. Cézanne e Warhol tinham métiers diferentes. Como um
médico e um mágico. Como um rio que bifurcou. Quanto à sua cidadezinha numa montanha perto de Nice, já me senti bem em lugares diferentes
e de maneiras diferentes, mas a felicidade que senti no sul da França pertence a outra dimensão. Durante minha primeira visita a Provence,
saí andando sozinha para absorver a paisagem e comecei a chorar, como se estivesse finalmente chegado em casa. É toda a região: os morros,
os pinheiros, a lavanda, as cidadezinhas medievais, as oliveiras, o vinho rosé; e tudo voltado para o horizonte do mar. Visitei Veneza apenas
rapidamente, mas amei, é claro. Gostei de todos os vinhos que provei, e da casa da Peggy Guggenheim, com aquele cemitério dos cachorrinhos.
Mas me conta um pouco de sua paixão por vidro.
Falar em tomar vinho em Veneza é acertar em cheio na jugular epicurista. Um final de tarde, no verão passado, sentei à beira do Grão Canal
em frente ao museu Accademia com uma bisnaga de pão, um pote de manteiga trufada e uma garrafa de vinho branco siciliano. Fiquei comendo,
bebendo e olhando os turistas, os nativos, as gôndolas e os pássaros, todos seguindo seu roteiro. Até a espuma suja que se formava onde a água
batia no lodo das pedras parecia uma escória excelsa. Sim, amo o vidro, de maneira quase atávica. O vidro é para os materiais o que o ovo é para
a cozinha, algo entre a alquimia e a mágica. É incrível pensar que o vidro não é um sólido. Basta ver as vidraças nas janelas de castelos e igrejas
medievais, que vão ficando grávidas com os séculos à medida que o vidro escorre lentamente, como um mel gelado. Quanto ao Hegel, acho que
você está sendo generosa demais (não que a generosidade seja uma qualidade que eu queira desencorajar). Admiro Warhol tanto quanto
Cézanne; talvez Warhol esteja para a diversão assim como Cézanne para o prazer.
Nossa, obrigada pelo buquê de fotos, que presente virtual mais esplêndido nesta quarta-feira de outono. Você acaba de curar a exposição dos
sonhos, só que numa escala pequena e digital. Diversão e prazer. Eu não conhecia Zurbarán e fiquei encantada de conhecê-lo. Chardin é um
velho amigo que adorei rever. E Morandi, sempre uma bênção. Não sei se meu coração acelera ou pára.
A primeira metade de minha viagem à Itália foi um passeio de carro alugado. Fiz o tal “roteiro de Piero della Francesca”: Arezzo, Sansepolcro
e Monterchi. Achei Piero tão moderno quanto Mantegna. Em um registro diferente (mas na mesma sinfonia), encontrei uma citação cuja
precocidade você certamente vai apreciar:
172
Charles Baudelaire a Édouard Manet (1865)
(...) vous n’êtes que le premier
dans la décrépitude de votre art.
Nossa mãe do céu, será que o Baudelaire disse isso mesmo? E olha que eu nem sou do tipo cético. Mas é tão em cima! Aquele velho biruta francês.
É gozado pensar no Manet como um radical. Quanto a Piero, nossas coincidências estão ficando demais. Piero della Francesca é simplesmente o
motivo pelo qual fui parar na Itália. Para dizer a verdade, minha vida gira em torno da paleta de Piero. Fiz peregrinações a todos os lugares de
seu roteiro. A Madonna del Parto é minha pintura favorita. Não acredito que tenha sido removida da capela de Monterchi.
Pode ficar tranqüila que a Madonna del Parto está muito bem exposta, numa vitrine climatizada, ainda dentro da capela do cemitério. Adoro os
tons pastéis de Piero e também sua planaridade. Acho que ele fez pesquisas de perspectiva porque precisava ser de sua época, mas o coração dele
pertencia à cor. Ele não queria saber do novo estilo, anatomicamente saliente, que logo se tornaria dominante (apesar da restauração da Capela
Sistina revelar como os tons pastéis de Michelangelo não eram muito diferentes dos de Piero). O grito cromático tem um quê de eros, assim como
a austeridade tem um quê de tânatos. Esse é o calcanhar-de-aquíles da Bauhaus, a matriz do meu gosto moderno. Mudando de assunto, quando
vamos nos encontrar? Você está fazendo papel de tímida?
Curioso o que você disse sobre o coração do Piero não estar no estudo da perspectiva — nunca prestei atenção nisso porque a perspectiva não
me interessa, mas nunca me ocorreu que ele pudesse sentir o mesmo. Adoro essa idéia! E papel de tímida é para adolescentes, para meninas com
tempo a perder. Estou brincando, acho que a busca de um bom parceiro está em nossos genes. E o caçador sempre espera, e se diverte, com uma
boa caça. Ele se decepciona se ela não ocorre e não corre. E correr do caçador é instintivo.
A resistência só atiça as chamas da paixão porque a paixão nasce da projeção. Ela tem o efeito oposto sobre o afeto, que se baseia em empatia.
Não gosto de caçar, de ser caçado, da emoção da caça, da emoção de ser caçado, de estratégias, papéis, falsa modéstia, falsa timidez... Não me
decepciono, muito pelo contrário, se nada disso acontece. Quero intuir logo a possibilidade de uma ligação profunda.
Hosana para tudo o que você disse. Intuição é a palavra chave aqui. Intuição, instinto. Siga seu coração, ouça seu estômago. Acabam de descobrir
que existe tecido neurológico no estômago, resquício da época em que nossa vida dependia da intuição do perigo antes que ele ocorresse. Que
loucura! Ainda somos mamíferos, portadores de mecanismos atávicos. Vou passar as próximas duas horas e 45 minutos sem pensar DE JEITO
NENHUM em ligar para você e aí, às 10, simplesmente voupegarotelefoneeligar. Poderia estar ligando agora, mas estou com vergonha. Bauhaus,
hein? Acabo de reler o que escreveu e fiquei aliviada de saber que você consegue reconhecer o aspecto tânatos da sua matriz de gosto. Ainda
bem que discordamos em alguma coisa. Então na nossa casa eu terei meu escritório estilo Bauhaus, e você terá um boudoir florido no estilo
não-Bauhaus.
O que houve? Parecia que você estava procurando sinais de que nosso encontro não estava indo bem enquanto ele acontecia. Que você havia
decidido, em algum nível, que ele não seria bom. Posso estar enganada. Não sou boa de analisar as coisas no calor do momento. Bem ou mal,
vivo muito no presente, só posso analisar depois da experiência. Em todo caso, percebi que você estava incomodado e eu não sabia com o quê.
Por causa disso, também me senti desconfortável. Espero que não esteja sendo injusta, como quem tenta botar a culpa nos outros. Simplesmente
não entendo o que aconteceu.
A divergência sobre Duchamp gerou um mal-estar, e isso criou distância entre nós. Pensei: Será que temos a ver um com o outro? Mas em vez de
fazer o que costumo fazer, que é varrer as preocupações para baixo do tapete, quis conversar sobre o mal-estar. Achei que, se puséssemos tudo
às claras, se falássemos abertamente do problema, isso poderia até aproximar-nos. Certamente não quis ser analítico e gostaria que você me
desse um puxão de orelha sempre que eu for assim.
Estou entrando em pânico, tentando repintar esse arranjo #$%&#$ de romãs enquanto tento decifrar nosso encontro, enquanto tento decifrar
nossa tentativa de decifrar nosso encontro. Está sendo impossível, pois não sou boa malabarista. Você me perdoa se eu alegar falta de tempo?
Prefiro me encontrar com você na volta do que responder sem a devida consideração. Estou distraída demais e preciso me acalmar. O táxi
chega daqui a uma hora. Escrevo quando voltar de Paris.
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Queria expressar o alívio que sinto ao
descobrir que eu não sou a pessoa mais
maluca que você conhece, NEM DE LONGE!
Diverti-me à beça no seu aniversário e
adorei todas as pessoas, suficientemente
cosmopolitas e, nem preciso dizer, pouco
convencionais. Apaixonei-me loucamente
(platonicamente falando) por sua amiga
advogada. O cartão dela ficou em algum
lugar em minha bolsa. Quero comprar
173
para você uma estatueta de porcelana
decorativa — uma pastora e duas ovelhas
— que vi anunciada na Sertão Vogue!!!
Ai, é duro escolher um presente para um
homem que, por um lado, tem tudo, e, por
outro lado, é um minimalista. Eu sei, eu
sei... Eu também fico pela hora da morte
quando minhas amigas me dão vasos
barrocos, esse tipo de coisa. Aí sempre
que elas vêm tomar chá eu não só tenho
de resgatar os objetos como lembrar em
que diabo de lugar eu escondi.
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Segundo Olympia, há muita gente por aí com medo de intimidade.
As pessoas se encontram mas ficam na superfície, sem mostrar quem
realmente são. Os homens escolhem mulheres com quem se sentem à
vontade, mas o que eles querem mesmo é uma paixão profunda. Afinal
de contas, quem liga se a tampa da privada fica levantada ou abaixada?
Esse tipo de coisa se resolve, mas atração não se fabrica.
Achei uma delícia sua mensagem. Que jeito interessante de se
apresentar a alguém, por meio de acordes
RRR. Infelizmente, não sou
boa o suficiente para tocá-los, mas gostaria que você me fizesse uma
demonstração. Mas antes uma ressalva: tenho medo de homens com
mais de 40 anos porque todos os que namorei nessa faixa me acabaram
machucando. Um homem dessa idade deveria conhecer-se e saber o
valor de ter uma mulher em sua vida. O primeiro me tratou como um
objeto; o segundo falava de amor apenas como uma tática de sedução;
e o terceiro era um doce quando tinha trinta e tantos anos, mas depois
ficou tão infeliz com tudo que não possuía que descarregava a
frustração na única coisa boa que tinha na vida. E olha que cada
um deles parecia bem resolvido. Portanto espero que você entenda
minha hesitação.
174
Sinto muito que você tenha passado por essas experiências com homens
de 40 anos. Não faria sentido lançar uma defesa geral da categoria, pois
não tenho nenhum interesse nela enquanto categoria. Poderia até falar
de falácias estatísticas, mas duvido que você se interessasse, porque sua
precaução é resultado da vivência. Imagino que a maioria dos homens
não daria certo com você, assim como a maioria das mulheres não daria
certo comigo, mas não creio que isso seja devido à idade mais do que a
qualquer outra variável, como classe social, educação, profissão,
nacionalidade, histórico emocional, traumas de infância etc.
Suponho que não seja tanto uma questão de idade, não é? Ou mesmo as
estatísticas às quais se refere, mas a intenção por trás do que a pessoa
faz e a capacidade de comunicá-la. As intenções podem começar puras
para os jovens, tornando-se turvas mais tarde.
Acredito que seja na infância e não mais tarde que ficamos turvos.
Nossas matrizes fundamentais são formadas muito cedo e nos
condicionam tão completamente que nem temos consciência delas.
Dizemos que elas são simplesmente nossa maneira de ser. Com certeza
existem diferenças entre natureza e cultura, mas me parece impossível,
na prática, distinguir uma coisa da outra.
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Ontem fui até a praia catar conchas. Havia umas pessoas andando a
cavalo na beira do mar, e uma excelente amazona estava galopando
para cima e para baixo em alta velocidade sobre um cavalo preto
magnífico. Foi emocionante ver aquele animal musculoso, correndo
na maior vibração, as narinas ofegantes, o corpo brilhando de suor.
Quando eu era menina, andei muito a cavalo na fazenda onde cresci.
Com o dinheiro que ganhei da venda de umas ovelhas, comprei um
cavalo que se revelou um saltador sensacional, mas tive de vendê-lo
quando voltamos para a cidade. Eu assobiava para os animais da
janela do segundo andar da casa onde morava, e, enquanto corria
por uma estradinha de terra que levava às cocheiras, os cavalos e as
ovelhas vinham me encontrar no ponto onde duas cercas se
juntavam no fundo de um campo aberto. Lá eu pulava para cima do
meu cavalo, e saíamos correndo, sem sela nem estribo. Ele nos fazia
voar sobre cercas de arame com mais de 1,5 metro de altura.
Rapidamente aprendi a agarrá-lo com grande firmeza. Eu tinha dez
anos de idade... No caminho de volta da praia, perdi-me andando
pelas dunas e fui parar numa floresta. Fiquei completamente
encantada. Por mais que aprecie as grandes cidades e tudo que elas
oferecem, delicio-me com os cheiros e os sons da floresta, com um
bom pedaço de areia, com um caminho de montanha ou um campo
aberto de papoulas, lavandas ou girassóis. Não conseguiria jamais
viver em São Paulo se não houvesse o parque Ibirapuera ao lado.
Sinto-me com um pé em cada mundo. O que me conforta é saber
que consigo extrair energia de muitas fontes e que aproveito cada
momento, onde estiver, adaptando-me às situações, aos lugares
e às maneiras de pensar. Minha terapia tem sido uma viagem
maravilhosa de autodescoberta e reinvenção. Várias idéias e
conceitos se tornaram bons amigos, apesar de ainda precisarem
ser decantados, expressos e reiterados até se integrarem ao corpo.
O analista favorito de minha mãe era Otto Rank, em boa parte
porque ela se identificava com a necessidade de separação e
individuação entre a criança e a mãe. Que ironia que ela não
tenha conseguido fazer isso comigo. Mas faz sentido. O que
mais nos atrai é sempre aquilo que não conseguimos controlar.
Minha mãe freqüentemente não seguia os próprios ensinamentos,
e isso lançou marolas psíquicas em direção a meu futuro.
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Pilar me contou a verdade sobre como a filha
havia morrido. Eu tinha ouvido uma versão
até mais triste, aumentada pela lei natural
dos rumores. Apesar dessa conversa sombria,
passamos uma tarde agradável, com o filho
dela ao lado. Montamos uma árvore de Natal,
do tipo inflável, fizemos uma colagem que
inundou de cola branca sua mesa Saarinen
e ensaiamos um teatrinho para os bichos
empalhados do menino. O telefone não parava
de tocar, e, sempre que ela atendia, começava
o alvoroço. O filho sabia que, enquanto o gato
estava ao telefone, os ratos podiam correr
soltos. Falando em gatos, ontem gritei com
Ágata, minha gata, porque ela derrubou um
vaso. O tamanho do grito foi tão inusitado na
história de minha repressão que fiquei
surpreso. É para isso que estou fazendo
análise, para entrar em contato com minhas
emoções e aí perder o controle delas?
Você não deve sentir-se mal por gritar com
a gata. Perder o controle pode ser bom e
permite que exerça o que o faz humano,
que é recuperar o controle perdido.
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Espero que você não tenha alergia a gatos porque eu tenho três
(gatos, não alergias). Muito tempo atrás, quando eu ainda era
casado, ratinhos começaram a aparecer em nosso apartamento.
Alguém nos disse que cheiro de gato espanta rato, por isso
pedimos um siamês emprestado de uma criadora que trabalhava
em meu escritório. Não tive bichos na infância porque minha
mãe tinha medo que eles mijassem nas cortinas. Não tendo sido,
portanto, vacinado contra esse tipo de amor, fiquei apaixonado
pela gata emprestada, cujo nome era Desilú. Os ratinhos
prontamente sumiram, mas a gata foi ficando. Como ela era de
altíssimo pedigree, um belo dia a criadora a levou embora para
cruzar com um garanhão bigodudo que morava em outro estado.
Ela voltou grávida (a Desilú, não a criadora), e alguns meses
depois nasceu a primeira ninhada no pronto-socorro do nosso
banheiro. Cumpri ansiosamente o papel de parteiro, tendo
177
memorizado o capítulo relevante do manual de instruções. Tive
de cortar cinco cordões umbilicais com uma tesoura, pois Desilú
era uma toupeira completa nesse departamento (os instintos vão
se perdendo nos puros-sangues). Um dos pequeninos nasceu
morto. Tentei em vão ressuscitá-lo com respiração boca-a-boca,
conforme sugeria o livro. Cuidei meticulosamente dos
sobreviventes, pesando-os todos os dias até passar o perigo
maior, conforme sugeria o livro. Durante os seis meses seguintes,
a criadora foi vendendo os quatro, um por um, para colegas em
Boston, Toronto, Helsinque e Tóquio. Quatro vezes nosso coração
se partiu. Pedimos para ficar com dois da ninhada seguinte.
Desilú fez outra viagem e, pouco tempo depois, presidi mais um
parto, de quatro filhotes. Os pequenos desabrocharam, e
queríamos ficar com todos. Mas um teve de ir para os donos do
pai. Ficamos com os outros três e devolvemos a valorosa mãe
para a dona. Anos mais tarde, quando nosso casamento acabou,
minha mulher ficou com o filho e eu fiquei com os gatos.
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Como algumas baianas que conheci, Regina
parece distraída, mas é fogosa e tem opiniões
fortes. Seu senso de humor é irreverente e ela
bufa quando ri. Regina adora dançar até o sol
nascer — melhor do que qualquer análise, diz
ela (e ói que ela é terapeuta). A mensagem dela
não era típica de um primeiro contato, mas ela
justificou-se dizendo que meu perfil também
não era típico.
178
Além de terapeuta, Regina era pastora, mas
(felizmente) nada missionária. Almoçamos em
meu restaurante mexicano favorito, e sua
companhia apimentada foi um prazer. Regina
falou do namoro mais recente, com um homem
cuja filha não conseguia desgarrar-se do pai,
apesar de a garota já estar na faculdade.
Quando Regina e o homem se encontravam, às
vezes ele trazia a filha. Esse foi um bom aviso
aos navegantes: se você enche uma criança de
um tipo de afeto que inibe a auto-suficiência,
isso lhe retarda o amadurecimento. Quanto a
nosso encontro, constatei, apesar do prazer
que me deu, que os bufos depreciam os
bufantes, da mesma maneira que quem masca
chiclete me remete a camelos & dromedários.
Como não sei a diferença entre um e outro,
isso, por sua vez, me faz pensar em golfinhos &
botos, jacarés & crocodilos...
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Algumas mulheres declaram, nos perfis,
que procuram homens que têm boas relações
com as mães. Sempre achei isso curioso porque
a rivalidade entre esposas e sogras é uma
tradição. Pela lógica da emoção, as mulheres
deveriam querer o contrário.
A ficha só caiu no dia em que uma falou que
não queria continuar saindo comigo porque eu
parecia demais com o pai. Ela disse que tinha
acordado para o fato de que procurava homens
como ele para continuar revisitando o drama
179
da infância. Quando eu despertava essa
memória, ela se punha na defensiva e, como
a melhor defesa é o ataque, desferia uma
fubecada sem que eu soubesse por quê.
Entendo que é por isso que, conscientemente
ou não, algumas mulheres querem homens
que têm carinho pelas mães. Caso contrário,
poderão ser vítimas de uma reencenação,
daquelas que se repete como farsa.
O perigo é saltar da frigideira dos matrifóbicos
e cair no fogo dos edipianos.
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Sandra é uma acadêmica de esquerda que fala muito com as mãos e ri dos próprios erros.
Mesmo tardia, sua resposta me deixou feliz porque estava tentando bolar alguma
maneira de insistir. Uma vozinha em meu ouvido dizia: Você não se manca que ela não
respondeu?, mas as campainhas que soaram quando li seu perfil tinham sido eloqüentes
demais para desistir sem uma segunda tentativa. Vou começar com uma confissão: sintome ameaçado pelas suas raízes operárias. Apesar de contarem com minhas simpatias
intelectuais, elas representam uma espécie de alteridade hostil à minha formação
burguesa. Ambos os lados de minha família estão no Brasil desde o século XVII, o que
me faz carregar uma pátina de boas maneiras e de noblesse oblige. Temo que o cerne
oco e hipócrita dessa pátina seja exposto pelo contato com o ressentimento proletário.
Mas, em minha defesa, permita-me dizer que, depois de vinte anos operando na
modalidade “ascensão do homem de negócios,” chutei o balde. Vivo dos frutos de
minha própria mais-valia e não exploro nenhum trabalho alienado. Com relação
a seu otimismo, também sou assim, mas comigo isso talvez seja um mecanismo de
defesa. Identifico-me com o protagonista de A Consciência de Zeno, de Ítalo Svevo,
que transforma toda rejeição em sinal de progresso. Voltando ao que você escreveu,
não posso gabar-me de ser humilde. Sempre fui cheio de opiniões e orgulhoso de meus
juízos estéticos. Minha tendência à arrogância só é temperada pelo desejo de ser amado.
Ultimamente me dei conta de como é nocivo o salto entre eu não gosto disso e isso não é
bom. É uma manobra defensiva que precisa ser desarmada.
180
Nossa! Sinto-me lisonjeada por receber uma resposta tão detalhada. Reli seu perfil e
invejo seu status de rentier. É bom (e corajoso) pular fora de tempo em tempo. Também
parei de trabalhar alguns anos atrás, e isso permitiu que eu estivesse no lugar certo na
hora em que apareceu meu emprego atual. Apesar de ter mencionado raízes operárias,
hoje em dia sou tudo menos isso. Meu irmão, que é banqueiro, diz que sou uma “liberal
de limusine” e, tirando o fato de não ter aucune limusine, a descrição acerta em cheio.
Só mencionei as raízes porque este site parece ter bastante gente de classe média-alta,
e não me queria apresentar de maneira falsa. Cresci no interior (mas não tenho
sotaque de intériorrr), meu pai foi bombeiro e tenho dois irmãos bombeiros. Acho
que a nobreza é muito mais uma qualidade da alma do que do sangue (apesar de ambas
poderem coexistir). Atualmente dou aulas numa faculdade e, quando não estou exausta
(25 anos de cortes orçamentários significam mais trabalho para os felizardos que são
professores titulares), orgulho-me de fazer um trabalho que considero significativo.
O corpo discente é tão variado quanto as Nações Unidas. Além disso, muitos de meus
alunos são, como eu, universitários de primeira geração. Vivo para aquele momento
em que vejo nos olhos deles a luz de uma nova idéia (não é todo dia que acontece, mas
acontece). Gostei de seu comentário sobre ser uma obra em desenvolvimento. Você já
leu Proust? Atualmente estou relendo e dando aulas sobre os sete volumes. Sua essência
é a natureza mutável de tudo o que é humano (personalidade, percepção física, valores
sociais/estéticos/morais, aparência). Adoraria ver com você o documentário sobre o
Derrida. Estava justamente tentando pensar em quem gostaria de ver um filme desses
comigo porque, apesar de ter muitos amigos intelectuais, é preciso um tipo específico
de personalidade para se interessar por esse tipo de coisa. Desqualifiquei meus colegas
porque não queria ter de bancar a inteligente.
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Obrigado pela linda mensagem. Você pode me mandar seu número de
telefone? Seria bom conversarmos e nos conhecermos um pouco mais.
Gosto de suas fotos — sorriso aceso e olhos cintilantes.
Quando você ligou, estava com meu filho, por isso não estava inteiramente
presente. Você deve ter algum dom porque, mesmo assim, a conversa fluiu
tão solta que eu não queria desligar.
Eu nunca teria adivinhado, o que me faz apreciar sua explicação mais
ainda. Como está seu sábado? Vou correr no parque de manhã com meu
clube de corredores, mas à tarde estou livre. Obrigado por deixar um
recado com todos os horários possíveis em minha secretária eletrônica.
Assim a gente consegue combinar alguma coisa logo em vez de ficar
trocando recados. Agora vou ao cabeleireiro cortar o cabelo.
Sábado seria perfeito, se você não for celebrar com seus colegas ébrios de
endorfinas. Espero que seu corte tenha ficado bom; a lua está na fase certa?
181
Foi um excelente dia, capilarmente falando. Estava passeando, exibindo o
cabelo recém-cortado, cheio de mechas douradas, quando passei por um
balcão que vendia bilhetes de teatro pela metade do preço. Estava um frio
desgraçado, não havia fila, e me perguntei: “Por que não?” Não ia ao teatro
há séculos, e foi um grande prazer. Uma peça bem escrita e estimulante,
com muita nudez masculina.
Fico feliz em saber que você gostou da peça, mas essa história de nudez
masculina, não sei não... Mortifica-me pensar que você foi exposta a tal
coisa.
Entre suas sugestões, a retrospectiva do Rosenquist é que me interessa mais,
especialmente se você gosta do trabalho dele, porque aí talvez eu possa
aprender alguma coisa. Sempre encarei a obra dele como um samba de
uma nota só, mas estou disposta a mudar de opinião.
Nunca fui muito fã do Rosenquist também, mas uma retrospectiva é sempre
uma oportunidade de confirmar, ou mudar, conceitos e preconceitos.
Vamos ver se esse sambista tem mais notas no repertório? Na pior das
hipóteses, sentiremos a mágica daquele vão central do Niemeyer.
Só para dizer que achei muito divertido confirmar meus preconceitos sobre
o Rosenquist em sua companhia. Gostaria de fazer outros programas com
você. Quem sabe depois das festas?
R
— foxtrote de uma nota só.
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A gente é mais feliz com
alguém do que sozinho,
mas a gente só pode
ser feliz com alguém
se a gente for feliz sozinho.
Parece um paradoxo,
mas não é,
182
como demonstra uma
análise combinatória:
infeliz sozinho
feliz sozinho
{
{
infeliz com alguém
feliz com alguém
infeliz com alguém
feliz com alguém
comum
pode durar
ilusório
pode durar
possível
não pode durar
ideal
pode durar
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Venho montando uma coleção de arte desde a adolescência e gostaria de namorar uma conservadora para restaurar
os estragos sem ônus. Mas talvez sejamos incompatíveis, pois eu gosto mais de Veneza e você de Florença.
Bem, veja só, essa relação não vai dar certo porque minha especialidade é tapeçaria européia, assim não poderia restaurar
nada de sua coleção. E aí tem essa história de Veneza versus Florença. Mas, já que Veneza está afundando, talvez você tenha
de trocar de preferência (dito com um sorriso). Mudando de assunto, seu e-mail não foi exatamente... ah, qual é a palavra?
Simpático? Deixe para lá, considere um sinal de que sou realmente generosa e curiosa. Você começou a colecionar arte na
adolescência? Eu também. Depois mudei para livros raros. Agora só coleciono coisas que encontro pelas minhas andanças.
Mas me conta um pouco de sua história. Prometo fazer o mesmo.
Golpe baixo dizer que Veneza vai afundar! Já reparei que você é perfeitamente capaz de dar um chute abaixo da cintura, por
isso vou revidar dizendo que sua preferência por tapeçarias européias bolorentas, rançosas, comidas por traças é tão, como
posso dizer, desligada de nosso tempo. Pense bem e coloque-se em minha posição: teria de vender toda minha coleção de arte,
aprender tudo sobre tapeçaria européia e montar uma coleção dessa tralha só para economizar nas restaurações. E quanto
à sua querida Florença, quando os guelfos florentinos, um bando de toscos, conseguiram derrotar os refinados gibelinos
sienenses, venceu a força bruta, permitindo que o estilo anatomicamente obcecado e humanisticamente cansativo de Signorelli
e Michelangelo ganhasse a guerra contra a estética bizantina de Siena e Veneza. Em outras palavras, foi politicagem pura.
E por que você não venderia sua coleção e começaria de novo com tapeçaria européia? Claramente, você não percebe como
esta forma artística é superior. Pergunto-me que tipo de pessoa você é se não começou colecionando tapeçaria. Por que
escolher arte contemporânea se você pode pendurar tapeçarias lindas, cheias de fios dourados, nas paredes? O problema
de sua teoria sobre a mudança dos rumos da arte renascentista é que você está esquecendo a influência de Roma. A verdade
é que existe uma estátua de Moisés no túmulo de Júlio II porque Júlio II assim o quis. Idem para o tema da Capela Sistina.
Passando agora para minha história pessoal: nasci em Campinas (mas não uso cabelo bufante), cresci e estudei lá. Comecei
a trabalhar na Biblioteca Nacional com 17 anos. Minha primeira idéia era virar curadora de manuscritos iluminados, mas
mudei quando vi o que fazia a equipe de restauração. Todos repararam em minha habilidade com a agulha e sugeriram que
eu trabalhasse com têxteis. Depois de me formar, fiz estágio e trabalhei na Itália. A seguir, mudei-me para São Paulo, onde
vivo desde o começo dos anos 90. Não era minha intenção ficar por aqui, mas hoje em dia adoro. Dou aulas e montei um
pequeno programa que ensina restauração. Faço consultoria para uma vila em Florença, daí minhas aventuras italianas.
Mudando de assunto, amanhã vou ao dentista tirar um siso. Vai ser bem divertido.
183
Sua preferência precoce por tapeçarias, livros e manuscritos sugere um temperamento diferente do meu. Seguramente a seu
favor, pois são tesouros calmos e íntimos, comparados com o exibicionismo crasso da pintura e da escultura contemporânea.
Numa raia diferente (mas talvez relacionada), também me pergunto se você se sente confortável com a modernidade, pois
esses interesses falam de um tempo anterior, de um tempo de música de câmara, ao passo que me sinto intensamente em
casa na modernidade cacofônica (ainda que do meu jeito calmo). A influência de Roma e o clientelismo do Papa só reforçam
meu argumento. Roma tomou o partido de Florença, exaltando o lugar do homem no mundo (humanismo, saca?) contra
a corrente escolástica, obscurantista. Na Montanha Mágica há um debate genial entre as duas vertentes, encarnadas em dois
personagens inesquecíveis. Achei divertido o comentário sobre o cabelo bufante. Engraçado como o cabelo pode separar o
urbano do suburbano. As pessoas de certas partes do país realmente parecem ter penteados mais kitsch. No filme Working
Girl, a transformação do personagem principal (interpretado por Melanie Griffith) de secretária em banqueira é sinalizada
por mudanças no penteado. Também diria que a perda de seu siso é uma metáfora, já que você prefere Florença a Veneza.
Mas chega de provocação, especialmente com alguém que deve estar com a mandíbula adormecida.
Isso mesmo, chute uma moça quando ela está combalida, ou com um dente a menos. Sabe de uma coisa, você não está
acumulando muitos pontos. Mas, veja só, pintura e escultura são isso mesmo: moda. E quem quer seguir a manada?
As pessoas não sabem como reagir quando você declara: “Tenho algumas iluminuras medievais e primeiras edições de
Guimarães Rosa”. É que nem usar branco no verão: não uso porque todo mundo usa. Mas eu conto a história da minha vida,
e a única coisa que você se digna a comentar é meu parênteses sobre cabelo? A maioria das pessoas se impressiona com o
fato de eu ter começado a trabalhar numa instituição importante aos 17 anos. Hum, vide comentário sobre acumular pontos…
Você precisa ser mais generosa porque sou novato nesse jogo de seduzir por irritação, embora me sensibilizem suas
tentativas de me fazer sentir competente. Posso ser um chato com você, mas também posso ser sutil. Não só já havia prestado
homenagens à sua admirável “contrariedade”, como também já havia admirado sua precocidade, apenas não de maneira
óbvia (tipo: putz grila, com 17 anos de idade!), que nem os outros sortudos que você anda conhecendo por aí. E você tem
poucos direito de reclamar da abrangência de meu comentário sobre sua vida quando você não disse uma palavra sequer
sobre a minha e, em vez disso, dedicou todas as energias a contestar minhas teorias mal cozidas, porém sábias, sobre a cultura
ocidental. Espero que seu incômodo dental esteja mais brando e que os dotes culinários de sua mãe sejam um belo curativo.
Passado o feriado, gostaria de expandir nossas hostilidades, deflagrando uma bela guerra de pastelão. Se você fosse uma moça
normal e usasse branco no verão, um bolo de chocolate serviria muito bem, mas, como não usa, vai ter de ser um bolo de
baunilha.
Claro que não ia comentar sobre sua vida pessoal. Faz parte do mantra: “Sou mulher e tenho de ser recatada e fazer jogo duro”.
Você esperava que eu comentasse e, por não corresponder à sua expectativa, aticei seu interesse. É o que as revistas de mulher
recomendam. De qualquer jeito, não posso escrever mais. Ainda tenho algumas coisas a fazer antes de pôr o pé na estrada
junto com a massa da população. Tenha um excelente feriado, e vamos deflagrar essa guerra quando eu voltar. (...)
Queria agradecer o encontro de ontem. Foi muito divertido. Foi bom conversarmos pessoalmente sem que uma nova guerra
entre guelfos e gibelinos eclodisse. Gostaria de repetir a dose. Me dá um alô quando tiver uma chance.
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Tania quer um encontro que misture textos semióticos com bons
vinhos, apesar de não se achar a pessoa ideal para destrinchar o
jargão de ambos. Na faculdade, leu teoria semiótica de maneira
quase turística: em vez de mergulhar no assunto, pinçou apenas
o que queria. Sua mensagem dizia:
184
“Obrigado pela interessantíssima citação sobre como a historicidade
determina o impacto da experiência. Adoro a imagem do buraco na
ordem simbólica que é gerado pela incapacidade de significar. Acho
que você gostaria de ler o Thomas Ogden. Ele é conhecido como
intérprete da Melanie Klein e das teorias de relações objetais e já
escreveu sobre Freud, Bion, Winnicott etc. Escreve maravilhosamente
bem e é especialmente fascinante a respeito da subjetividade. Fiquei
me perguntando o que Ogden diria sobre historicidade... Concordo
que a perspectiva linear de causa-e-efeito do modernismo gera
uma visão limitada dos movimentos culturais, políticos e artísticos.
Para os teóricos das relações objetais, a ascensão à subjetividade
(frouxamente associada à entrada na ordem simbólica de Lacan)
implica o começo da historicidade — a experiência do tempo —
e da existência do eu, do outro e das relações evoluindo no tempo.
A importância central da historicidade situa-se na percepção do eu
como algo separado do objeto (mãe). A construção da subjetividade
pressupõe um entendimento de nossa capacidade de machucar o
outro (mãe) sem destruí-lo; de tolerar uma mistura de amor e ódio
(ambivalência) pelo objeto. A noção de causa-e-efeito informa um
pouco essa concepção, e, no entanto, do ponto de vista das relações
objetais, as emoções intensas freqüentemente levam à psicose.
Todos vivenciamos momentos psicóticos quando o objeto se torna
mau ou imperfeito, ou quando a coisa se transforma em si própria,
querendo dizer que a capacidade de interpretar (simbolizar)
desaparece. Algumas pessoas vivenciam mais do que apenas
alguns momentos, é claro. Acredito que, durante os estados
mentais criativos, vigora um tipo de consciência mais primitiva.
Os teóricos das relações objetais chamam esse estado de posição
paranóico-esquizóide (mais primitiva — anterior à subjetividade)
ou posição depressiva. Ironicamente, a posição depressiva é
associada a maior maturidade. Voltando ao que você escreveu,
não sei bem como essas idéias se relacionam à idéia da evolução
histórica como uma espiral, mas imagino que dê para enxergar
as constantes oscilações entre estados ou posições como um tipo
de espiral (seja bondoso comigo, estou viajando)”.
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Não compartilho sua paixão por climas frios, mas achei
incrível você ter saltado de pára-quedas enquanto rodava
um filme na Bolívia. E gostei do jeito como escreveu
Ser com S maiúsculo. Uma heideggeriana, com certeza.
Falando em filosofia, gostaria de entender melhor seu
conterrâneo Wittgenstein. Interessam-me as reflexões dele
sobre a natureza tautológica da linguagem e as armadilhas
nas quais tropeçamos com nossas construções gramaticais.
Quanto à metafísica, gostaria de acreditar em sua
existência, mas precisaria de provas ou intuições
convincentes.
185
O frio me estimula e revigora, ao mesmo tempo em que
me nutre e me centra. Mas tenho de admitir que poucos
são assim. Sendo de um país tropical, você prefere o calor?
Ou isso é um clichê? Saltar de um avião não é tão difícil
assim. Juro! Adoraria discutir metafísica com você, mas
será que é necessário ter provas para ter fé? Um artista tem
fé em sua capacidade antes de se afirmar no mundo, não?
Durante o almoço, ela foi fria como o inverno, nada
estimulante ou revigorante. A explicação mais plausível
é que decidiu de cara que eu não era seu tipo (jamais
saltaria de um avião). De minha parte, mesmo quando
não acho uma pessoa atraente, faço o possível para ser boa
companhia. Estarei sendo falso? Será que a austríaca foi
autêntica, como teria sido seu (notoriamente honesto)
conterrâneo? Ou será que tenho boas maneiras e ela não?
Ou será que minhas boas maneiras acobertam o medo
de que não gostem de mim? Ou será que todas essas
perguntas retóricas (inclusive esta) são armadilhas
lógicas em que caem minhas construções gramaticais?
Pelo menos rachamos a conta.
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Depois de tomar alguns copos, as histórias que Ula conta do mundo italiano
da moda recuperam memórias perdidas e já fizeram homens crescidos bater na
mesa de tanto rir.
Eu também tenho histórias, mas bem menos fascinantes do que as de Jumpha
Lahiri, sua escritora favorita. Vamos trocar histórias? Sempre admirei a moda
italiana, por isso me surpreende ver como muitas italianas — mesmo com 2.000
anos de acesso subliminar ao gosto mais requintado da civilização ocidental —
ostentam cortes de cabelo provincianos e usam roupas que devem enrubescer
os seus notáveis costureiros. Os italianos, por outro lado, usam ternos
alinhados, bem justinhos, que fedem a acqua di gigolo. Sua experiência deve ter
sido diferente, claro, pois você é do ramo. As pessoas que você conheceu
deviam saber muito bem o que faziam.
Um amigo me convidou para jantar na casa dele ontem à noite, e havia um
romano entre os convidados. Naturalmente, a conversa chegou à moda.
Ele disse que os italianos começam olhando para os pés. Se os sapatos passam
no teste, você é considerado digno de maior inspeção, e os olhos se levantam
para examinar a roupa. O visitante também comentou que os italianos não
hesitariam em virar sua gravata para olhar a etiqueta. Acqua di gigolo,
186
conheço esse cheiro. Terno verde-oliva apertado e sapatos de couro amarelado.
Passa-se por um tipo desses na rua, e a água de colônia fica horas nas suas
narinas. E qualquer contato físico faz você acordar na manhã seguinte jurando
que o homem passou a noite em sua cama, tão forte o perfume. Quanto ao
pessoal do mundo de moda italiano, ou estão altamente arrumados e cheirosos,
ou adotam um visual cuidadosamente informal. Tipo jeans chique surrado e
barba malfeita, tudo na medida certa.
Eu tive um chefe que era meticuloso com os sapatos. Um dia declarou que a
maneira de tratar os sapatos era a medida do caráter de um homem. Como eu
prestava pouca atenção aos meus, quis responder que essa era apenas a medida
de como um homem tratava os sapatos. Mas fiquei quieto, é claro. Mudando de
assunto, hoje visitei uma vidente que uma amiga tinha achado fantástica. Não
costumo fazer isso, mas volta e meia procuro testar meu ceticismo. Nada
inacreditável aconteceu, por isso continuo cético. Mas não custa nada (bem,
R$300,00) investigar essas coisas de vez em quando.
Tenho muitos amigos que acreditam em videntes. Eu acredito em videntes
também, mas prefiro não saber de nada. Não quero tratar cada acontecimento
como um “sinal”; prefiro me surpreender. Nisso eu me conheço: se meu futuro
estivesse escrito, eu atribuiria significado a tudo. As mulheres já não são assim?
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Hoje de manhã Papai Noel passou lá em
casa no meio de uma chuva fina, usando
bermudas (o uniforme do Sedex) e
tremendo de frio. O cartão dentro da
caixa dizia: Mais uma pedra rolando
ladeira abaixo, uma que você conseguiu
agarrar, mesmo coberta de graxa. A subida
foi íngreme, mas a vista fez valer a pena.
Ser uma sonhadora, uma construtora e uma
mãe é uma trindade digna de canonização.
Aos 40 você é a pessoa linda de sempre,
com as mesmas rugas de ontem, provocando
mais desejo do que nunca. A verdade é que
não me sinto tão infeliz na virada dos 40.
Há poucas opções de consolo quando não
se tem dinheiro, senão daria para afogar
a (pouca) tristeza no shopping. Mas sei
que o alívio seria apenas temporário. O
que espanta a essência natural e orgânica
da amargura é lembrar que estou dando
o melhor de mim, o que tenho e o que
não tenho, de modo coerente com as
minhas posturas. Pena você estar aí e
eu aqui, a dez horas de distância. Se
vivêssemos na mesma cidade, isso poderia
dar em alguma coisa. Mas precisamos nos
contentar com essa amizade, uma bênção.
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Minha filha ri com o corpo inteiro.
Ela corresponde às minhas fantasias de
salvação, cada vez menos por ser minha
filha e cada vez mais por ser quem ela
é. Muito cedo, revelou fascinação por
balé e ópera, interesses que eu não
havia desenvolvido. Antes de dormir,
assistimos sempre a um ou a outro,
eu pegando carona, nós aprendendo
juntos, consolidando esse filão antes
que a Disney tome conta. Não pense
que sou elitista; amo cultura popular,
apenas sei que não preciso promovê-la,
posso confiar no mercado.
Minha filha não foi batizada porque
os pais são agnósticos. Mas me
pergunto se ela não deveria receber
uma educação religiosa para ter mais
informações e chegar às próprias
conclusões. Só assim ela estará vacinada
e criará anticorpos contra as promessas
de redenção eterna. A salvação é uma
tentação que não se pode subestimar.
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Viviane acha que os perfis oferecem um palco para nosso lado egocêntrico
declamar virtudes e façanhas.
Fiquei interessado em sua ascendência cubana, mas também com medo
que você fosse uma dessas anticastristas raivosas que existem aos montes
em Miami. Não que eu seja especialmente fã do Fidel, mas a ideologia é
um elemento importante da nossa auto-representação, e eu prefiro manter
distância de qualquer postura radical (de ambos os lados). Então congelei
como uma marguerita quando li que você se considerava “conservadora”,
mas aí pensei: Bem, ninguém é perfeito (eu certamente não sou, embora
seja quase). Tenho um pressentimento bom sobre você, uma intuição de
que não teremos de nos defender um do outro.
Bem, meu amigo “liberal”, se você pensa que pode escapar das repercussões
de seus comentários tipicamente esquerdistas, baseados em distorções
divulgadas pelos meios de comunicação, está muito enganado! Apesar
de suas afinidades políticas com a esquerda liberal, fiquei curiosa em te
conhecer por causa da (aparente) inteligência. Afinal, todo mundo tem
direito a uma ou duas opiniões politicamente incorretas. Podemos todos
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viver juntos e, o que é mais importante, beber juntos. O meu latido cubano é
bem alto quando me atiçam, mas prometo não provocar hidrofobia.
Ainda bem que você não deixou escapar meu comentário tipicamente
humanitário e anti-reacionário sobre os cubanos da Florida, coitadinhos,
tão maltratados pelos meios de comunicação. Acho que vamos nos dar
bem porque dizemos o que pensamos (sem embargo). Só para lhe mostrar
que eu nem sou festivo nem sigo a legenda de algum partido, podemos
discordar sobre o aborto (estou indeciso) e sobre o embargo cubano (sou
contra, mas aceitaria que você fosse a favor). Mas você vai ter de ser para
lá de charmosa se for a favor da pena de morte ou da Guerra do Iraque.
E vai ter de ser capaz de ressuscitar os mortos se for homofóbica ou racista.
Caso contrário, não lata, señorita, que eu sou um cordeiro vestido de lobo.
Ainda estou perplexa... Jamais imaginaria que você fosse racista ou
intolerante só porque é liberal — por que você suporia esses defeitos
em mim?
Como poderia eu supor QUALQUER defeito em você? Minha premissa,
baseada nas pistas disponíveis, é que você é simplesmente adorável.
Acredito nisso piamente enquanto faço troça de seu lado conservador.
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em Roma
não deixe de visitar
o Ara Pacis Augustæ
o rapto das sabinas
pelas aves de rapina
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nas colinas
os centauros sabem
do rapto das sabinas
as colinas
sabem dos centauros
o rapto das sabinas
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Wilma quer saber se eu ainda estou à
disposição. Disse que não. Ela me pergunta
se tenho certeza.
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Você deve estar no ar agora, e espero que seu
vôo seja sereno. Meu maior desejo é estar à
disposição de alguém. Eu e você tentamos
chegar lá, em vão. Se tenho certeza absoluta?
Só relativa. A única certeza que podemos ter
é que não podemos ter certeza de nada.
Como ter certeza disso? Só dentro da lógica
da linguagem. Não estou sendo niilista, mas
não quero confundir o que queremos saber
com o que é sabível. Precisamos de padrões
para uso diário, e estes podem até funcionar
como se fossem absolutos. Mas não são.
Achei-o exagerado, afetado, barroco,
excessivo. Minha alergia a esse jeito de
escrever vem da comunhão diária com a
língua inglesa, tão calvinista e adstringente.
Há quem escreva com eloqüência, mas tem
pouco a dizer, pois a verdade é que forma
e conteúdo andam em trilhos diferentes.
Ao contrário do que afirmou Mies, a forma
não segue a função. Ao contrário do que
afirmou McLuhan, o meio não é a mensagem.
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Se por bom guitarrista você quer dizer
Joe Pass ou Jim Hall, prepare-se para
algo completamente diferente. Mike
Stern inventou uma espécie de heavy
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metal bebop quando Miles o mandou
juntar Parker e Hendrix. Mike mais
tarde tocou com os Irmãos Brecker
e teve um trio de punk-jazz com o
lendário Jaco Pastorius. Os jovens
virtuosos e puristas (como Wynton
Marsalis) não aprovam a hibridez
de Stern, mas eu adoro o jeito como
ele mistura sofisticação harmônica
com intensidade elétrica. Adoro
também como suas melodias dançam
no envelope dos acordes, traçando
filigranas cromáticas, sempre à beira
da dissonância, mas invariavelmente
resolvendo (ou quase).
Concordamos sobre música. Mas, em
artes plásticas, a gente discordou.
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Gostei muito de seu perfil e de suas fotos. Deram-me um bom pressentimento. Mas o que mais me
impressionou foi sua ênfase nas palavras e o humor inteligente. Boa combinação. Você gosta de linguagem
e de comunicação, eu também. Você está procurando uma mulher informada e bem formada. Por incrível
que pareça, poucos homens querem isso.
Foi um prazer receber sua mensagem. Não lamento o atraso emocional de meus competidores, mas
concordo que é surpreendente. A explicação mais óbvia é a insegurança, o desejo de não ver desafiada
a posição de senhor do castelo, mas as recompensas de uma troca profunda me parecem tão maiores.
Tais homens poderiam argumentar que uma troca profunda não requer igualdade, e isso parece até
verdade com nossos filhos. Mas esses homens talvez estejam procurando relações conjugais com inflexões
paternalistas. Não era minha intenção responder com uma livre associação, mas foi o que me veio à
cabeça. Então, como posso conhecê-la, de preferência sem lidar com a mulher controlada e profissional
que você descreve no perfil?
Não sou tão controlada assim. É só uma fachada para ser vencida. Você está à altura do desafio?
Em homenagem a seu pressentimento, gostaria de marcar um encontro.
Foi bom conhecê-lo hoje de manhã. Mas tive a impressão de que alguma coisa o incomodou...
Se eu fosse projetar-me para uma relação hipotética com você, o fato de sua separação ser tão recente
me preocuparia. Parece haver pouco impulso para transformá-la em divórcio, e também me parece
delicado o fato de você não ter noites livres prefixadas. Não quero ser responsável por seus filhos
passarem noites fora de casa.
Obrigado pela franqueza. Posso responder às suas preocupações? Em primeiro lugar, estou mais do que
pronta para uma relação íntima e exclusiva. Não entramos nos detalhes de meu casamento, mas a verdade
é que eu nunca tive a relação que tanto desejo. Separamos-nos porque eu quero isso em minha vida.
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Em segundo lugar, se as coisas dessem certo entre nós, poderíamos escolher determinadas noites, se é
isso o que você quer, para estar juntos. Essa seria, então, a rotina das crianças. Eu também poderia dormir
na sua casa (me adiantando, de novo) e as crianças poderiam dormir na casa delas com o pai. Se eu e você
estivéssemos realmente juntos, imagino que, em algum ponto, seria possível você dormir aqui, mesmo com
eles presentes. Minha vida pessoal não precisa ser sempre separada da deles. Minha situação é transitória.
Passei o primeiro ano da separação com um determinado arranjo e se eu começar uma relação com um
homem, isso vai provocar mudanças na rotina da casa. Você não deveria sentir-se responsável por isso.
Seria apenas minha evolução para o estágio seguinte, da mesma maneira como a minha situação atual
pode evoluir para um divórcio.
Embora seu raciocínio seja perfeitamente razoável (não esperaria menos) e a perspectiva de passar noites
com você, em qualquer lugar, seja muito atraente, cheguei à conclusão, depois de consultar as bases, que
não quero ser responsável por uma mudança nas regras de sua separação. Por mais que você argumente o
contrário, eu me veria como o catalisador de algo que deveria ter acontecido à minha revelia. Claro que
não me sentiria pessoalmente responsável — sei que seria a mesma coisa para qualquer homem que se
encontrasse nessa posição —, mas, mesmo assim, não quero o papel.
Bem, você precisa fazer o que acha certo, mas não quero pedir a meus filhos que passem certas noites toda
semana na casa do pai. Esta é, afinal, a casa deles também. Em vez disso, eu me sentiria mais confortável,
e eles também, se eu passasse algumas noites por semana na casa de meu namorado, ou se o recebesse
aqui, mesmo com eles em casa. Se eu quisesse mais privacidade, sempre poderia pedir que eles dormissem
na casa do pai, e tenho certeza que iriam, mas isso é bem diferente de tirá-los de casa algumas noites por
semana, não importa o que aconteça, sem uma necessidade específica. Preciso encontrar alguém que esteja
aberto a isso e que possa compreender e respeitar quem eu sou e quem meus filhos são. Eu entendo que
você não pode e que precisa que as coisas sejam feitas da maneira habitual. Mas você pode sempre mudar
de idéia…
Ela simplesmente não queria entender.
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O medo de deixar o cachorroquente cair no chão, depois
do qual não poderia mais ser
comido, fez com que a pequena
apertasse os dedinhos com
um pouco mais de força.
Para limpar o ketchup da boca,
ela esfregou os lábios num
daqueles guardanapos lustrosos
e impermeáveis que são a
contribuição da lanchonete
brasileira para o mundo.
Pela janela do carro, via-se
uma dúzia de pássaros voando
alto. Os pequenos vultos eram
grandes demais para ser outra
coisa senão urubus querendo
as sobras da festa da pequena.
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Zenaide está ansiosa para subir o rio Amazonas.
Também nunca fui à Amazônia, vamos juntos? Posso fazer as reservas e correr até a Timberland
para comprar o que precisamos de equipamento. Você já viu o filme As Três Noites de Eva, um
clássico com Barbara Stanwyck e Henry Fonda? Não quero insistir demais no tema ribeirinho,
mas um eufemismo recorrente no filme é sobre o que acontece com os homens que retornam à
civilização depois de passar meses no rio Amazonas.
Interessaria muito continuar nossa conversa e, por conta de nossa natureza pensante, pensar
sobre se deveríamos falar sobre o que tudo isso significa, se é que significa alguma coisa.
Ou, então, em deferência a nossas partes não-pensantes, não deveríamos pensar sobre nada
e simplesmente ver até onde isso vai, se é que vai para algum lugar. Como foi seu dia?
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Sempre levo essa pergunta a sério e respondo com mais detalhes do que a pessoa que perguntou
está interessada em ouvir. Diria que é a marca registrada do chato, se não soubesse que sou
uma pessoa fascinante. Bem, vamos lá. Foi um dia interessante, andei muito de bicicleta, apesar
do vento e do frio, graças a um lenço protegendo o rosto, parecendo um Jesse James benigno.
De manhã eu não conseguia encontrar o celular e passei minutos febris à sua procura. A alegria
que senti quando ele finalmente apareceu foi tamanha que me deu vontade de perdê-lo de novo,
mas aí voltei do planeta emoção para o planeta razão. Isso me lembrou a velha piada do sujeito
que instalou duas cabras na sala de visitas só para sentir o alívio de remover uma. Finalmente
consegui desfazer-me de um conjunto de sal e pimenta de faux-marbre que ganhei de Natal.
Troquei-o por um jarro bem bonito, anos 50, de aço inox escovado. Na terapia, debatemos
se devemos assumir posições a priori contra comportamentos reprováveis (como mentira,
hipocrisia). A alternativa seria nos perguntar: incomoda? funciona? No final da tarde fui
com minha filhota no lançamento de um livro de um primo meu, cheguei em casa cansado,
as costas doendo de tanto carregá-la. E como foi o seu dia? Desta vez você não escapa de
responder com menos palavras do que eu…
Bem, meu dia não foi nem de longe tão interessante quanto o seu. Passei horas em reuniões
maçantes resolvendo disputas domésticas entre a babá e a governanta, depois levei a menina
de 8 anos ao dentista e tomei conta da irmã dela de 6 anos, que estava em casa resfriada. Ela
gosta de ver televisão sentada em meu colo, e aproveito esses momentos para descansar do
tédio de pesquisar que jatinho meu chefe deve comprar. O mais importante: consegui tirar
um tempinho para preencher alguns pedidos de bolsas de estudos. Hoje à noite vou dar uma
boa corrida para exorcizar os demônios do trabalho. Será que já acumulei palavras o suficiente?
Gostei de você e estou interessado em explorar. Mas sinto que você tem pouco tempo livre, e seu
entusiasmo não comporta as façanhas de prestidigitação necessárias para criar tempo e espaço.
Não tenho pressa se sinto entusiasmo, mesmo se for apenas por uma possibilidade. Desculpe a
franqueza, mas estou cansado da disponibilidade desgastante que caracteriza a vida online.
Gente escrevendo, gente chamando e aquela tabuleta pregada na testa declarando “disponível”
24 horas por dia, sete dias por semana. Nada me daria mais prazer do que deixar isso para trás
e me concentrar em uma pessoa. Se você estiver interessada, estou aqui.
Existe entusiasmo por possibilidades futuras. O problema do tempo, infelizmente, é de difícil
solução. Além de minha carreira artística e do ganha-pão diário, tenho ido freqüentemente a
Vitória porque meu pai está muito doente. Neste momento não posso assumir compromissos,
mas uma das conquistas do feminismo foi libertar as mulheres daquela dualidade segundo
a qual os homens querem espalhar o DNA pelos quatro ventos enquanto as mulheres buscam
uma relação profunda na qual os filhos possam crescer seguros.
Zenaide e eu tentamos espalhar DNA pelos quatro ventos, experiência eólica tão pobre que
soprei a vela.
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O teste diz que não
somos compatíveis.
Seria divertido provar
que esse teste é furado.
Vamos dar uma lição
nesse software?
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Você parece caloroso,
inteligente e divertido.
O teste diz que não
somos compatíveis?
O verdadeiro teste
é um drinque.
O idiota do teste tinha razão.
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Fiquei bastante tocado com seu comentário sobre a dor que sente quando vê gente
sofrendo. Evitei tanto a dor durante a vida que minha disponibilidade emocional para
a dor alheia se reduziu bastante. Não sabia que não é possível diminuir a capacidade
de sentir dor sem afetar a capacidade de sentir alegria. Hoje entendo que preciso
cultivar a empatia em vez de sair correndo. A legenda de seu perfil pergunta: Você tem
medo de amar ou ser amado? Eu responderia, como a maioria dos homens: Claro que
não! Mas você deve estar falando de um tipo mais profundo de amor, um tipo que só
acontece com quem se deixa aberto à possibilidade de ser ferido. Isso exige alto nível
de confiança no outro (em si também, pois nossas relações com o mundo espelham
as relações internas). Gosto também de suas inclinações olfativas. O primeiro dia da
primavera tem um aroma delicioso.
As emoções são misteriosas, não? É interessante como nós, humanos, erguemos
defesas contra as sensações. Só a autoconsciência pode superar isso, se estivermos
abertos. Essa é uma dificuldade que encontrei nos relacionamentos anteriores, daí
a pergunta no meu perfil. Um relacionamento só pode vingar se ambos forem, acima
de tudo, honestos consigo mesmos para que possam ser honestos um com o outro.
O nariz é sempre honesto. Um fósforo recém-aceso tem um cheiro maravilhoso.
Está na mesma categoria que a grama recém-cortada, as folhas secas no outono e
a madeira recém-lixada. Não bebo café nem fumo cachimbo, mas adoro os aromas.
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Eu tomo café, mas prefiro o cheiro ao gosto. Também gosto do cheiro de cachimbo,
apesar de nunca ter fumado. Como o paladar também é olfativo, pensei num hors
d’oeuvre que me entusiasmou recentemente: meia noz coberta por meia bola de
pasta feita de manteiga, queijo parmesão e tomilho. Simples e sensacional.
Você é muito poético. Isso me desafia. Sou diretora de arte, portanto mais inclinada
para o visual. Já tive alguns sócios que escreviam bem, por isso aprecio alguém que
sabe mexer com as palavras.
Espero que você se sinta desafiada de maneira agradável. A justaposição entre talento
poético e visual fez com que me perguntasse: onde me situo? Sempre me considerei
mais visual porque amo tanto a arte, mas a verdade é que freqüentemente não observo
o que vejo. Eu seria péssimo em descrever a cara de um criminoso para que a polícia
pudesse fazer um daqueles retratos falados.
Tenho uma memória visual muito detalhada. Dificilmente lembro nomes, mas posso
dizer como alguém estava vestido. Sempre reparo se alguém muda a posição de
alguma coisa. Fico louca quando a moça que faz a limpeza de casa muda as coisas
de lugar. Sempre achei que seria uma boa detetive particular. Esse clima instável
está deixando minhas plantas confusas. Estou vendo nascer botões que só eram
para brotar daqui a dois meses. Eles vão levar um choque com o frio que vai fazer
neste fim de semana. Espero que você tenha cuidado com a bicicleta. Existe uma
sujeira escorregadia que é difícil de ver, especialmente depois do anoitecer.
Muitas promessas escorregam nesse gelo escuro que se forma depois do anoitecer.
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Ada-ama e Ada-adora
Ada-odeia e Ada-detesta
Ada-ama aquele momento
em que o céu da noite passa
do romântico ao barroco
Ada-adora o gingado e o
poder sugestivo de poucas
palavras bem escolhidas
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Ada-odeia
quando a consideram generosa
Ada-detesta viver só
mas se não for feliz assim
não será de outra maneira
Ada sabe que se morrer solteira
morrer é como dormir o resto da vida
e mais um pouco
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Uma colega de taekwondo, uma
jornalista e autora bem-sucedida,
magra como um palito, disse-me que
nem ela nem o ex-marido gostavam
de comida, mas que o filho só assistia
a programas de culinária. Fomos
tomar café um dia depois da aula,
e ela me contou que queria casar de
novo. Com um homem rico e poderoso,
de personalidade forte. Pouco lhe
importava se fosse baixo, feio, gordo
e fumasse charuto, ela queria mesmo
era andar com chofer e limusine,
ir a festas milionárias e conviver
com gente famosa. Fiquei atônito
com tamanha ausência de pudor,
tanta falta de idealismo. Ou será
o dela apenas um tipo diferente
de idealismo? Nunca mais consegui
ver A Bela e a Fera sem pensar que
a Fera tinha um castelo, era rico e
poderoso e tinha uma personalidade
dominadora.
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Era uma vez um homem que conheceu mil e uma mulheres. Novecentos e tantos
desses encontros não produziram seqüelas, mas os outros foram terrenos férteis
para fantasias. As paixões brotaram como erva daninha porque a imaginação do
homem preenchia os vazios a seu favor. Esperava que as paixões virassem amor,
mas o conhecimento invariavelmente trazia decepção. Quanto mais isso acontecia,
mais o homem entendia que a paixão não era pelas mulheres mas por projeções de
seu desejo.
Lara, a última que ele conheceu, era simples. Estranhamente, não houve paixão.
Talvez porque o terreno fosse pouco propício. Ela não correspondia a seu tipo ideal.
Não era divorciada e parecia não ter nenhuma intenção de desembaraçar a rotina
dos filhos da rotina do ex-marido. Sobretudo, ela era diferente de todas as outras,
de um jeito que estava além de sua capacidade de analisar. As outras mulheres
também tinham sido singulares, mas Lara era mais singular do que as outras. Será que
o aspecto inusitado dessa atração se devia a uma nova abertura para alguém diferente
do que sempre idealizara? Pouco provável. Será que ele descobrira o potencial que existe
em todas as mulheres? Ainda menos provável. Vinha fazendo um grande esforço para
tornar-se menos crítico, mas ainda faltava muito para vencer a batalha. Não havia sido
mérito seu; simplesmente aconteceu. O homem deliciou-se com a leveza que surge
quando se perde o controle.
A relação cresceu, cautelosa. O território era novo para ambos. Quando se amavam,
o homem sentia que Lara era seu espelho, mas um espelho d’água nunca navegado.
Quando escutava o que os olhos dela diziam, visitava lugares nunca vistos. Pela
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primeira vez em sua experiência, o lado táctil levava vantagem sobre o mental.
Até o equilíbrio de poder, um recife insidioso, parecia correto. O equilíbrio entre
pensar e sentir também parecia correto. Ele podia ser exatamente quem ele era,
sem medo de pensar ou analisar demais. Ela era inteligente de uma maneira que o
desafiava, mas sem intimidar. Volta e meia, Lara o surpreendia com as perguntas
mais loucas, e ele respondia com doçura. Ele queria que ela se sentisse segura,
que tivesse um lugar para descarregar, para compartilhar. Ela ainda tinha um pé
atrás por causa das mil mulheres que vieram antes dela. Como podia ter certeza
de que ele não estava acumulando mais uma? Será que a multiplicidade era parte
de sua natureza? Mas as semanas foram passando, e a confiança crescendo.
A sintonia se aprofundando, cada vez mais íntima. Os dois eram como luvas
assimétricas, diferentes, mas feitas para estar juntas. Tinham até a mesma
altura, o que realçava a sensação de duplicação.
Mas toda história terminaria logo se não surgisse um porém. Lara tinha uma pendência
do passado que reapareceu, insistente. As coisas inacabadas a deixavam insatisfeita.
Ela sempre acreditara que os amores precisam ser levados até o fim. Era sua maneira
de ser, parte de quem era. O homem tentou compreender e afogou a decepção na
fortaleza da razão. Era sua maneira de ser, parte da muralha que havia erguido.
Ele pediu que ela fosse resolver logo a pendência. Ela foi. Voltou para um conforto,
para uma relação que, dizia ela, não a desafiava mais do que ela pensava que podia
agüentar. Mesmo que ela não volte, o homem é mais feliz por saber que é capaz de amar
uma mulher por quem ela é e não por quem ele é. Mesmo que sejam necessários mais mil
e um encontros. A sensação de afinação precisa vir de dentro, livre e clara, eletrificando
o cérebro e os instintos.
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concepção gráfica e textos
oswaldo corrêa da costa
desenhos
paulo monteiro
design
fábio miguez
revisões
angela dias
fernanda peixoto
pedro adão
agradecimentos
alexandre martins fontes
claudio ferlauto
diego abrahão
geraldo alves
rodrigo naves
suzano papel e celulose
yangraf gráfica e editora
600
300
200
100
exemplares capa mole
exemplares capa dura numerados
exemplares capa dura numerados com desenho
exemplares hors commerce
qualquer coincidência entre realidade e ficção
é intencional ou falta de imaginação
catalogação na fonte do departamento nacional do livro
[fundação biblioteca nacional]
duzentas fantasias gráficas
textos oswaldo corrêa da costa
desenhos paulo monteiro
são paulo, 2007
ISBN 978-85-907096-0-2
1.
2.
3.
4.
5.
artes plásticas
artistas plásticos – brasil
ficção autobiográfica
corrêa da costa, oswaldo
monteiro, paulo
índices para catalogo sistemático
1. 700 – artes
2. 740 – desenho e artes decorativas
3. 760 – artes gráficas, gravuras
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