LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários

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LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
LA 31 E OS LIMITES DA FORMA:
Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso
na narrativa argentina recente
RENATA DORNELES LIMA
Rio de Janeiro
2016
LA 31 E OS LIMITES DA FORMA:
Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso
na narrativa argentina recente
Por
Renata Dorneles Lima
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como quesito para a obtenção do
Título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Literários Neolatinos – Literaturas
Hispânicas).
Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
LA 31 E OS LIMITES DA FORMA:
Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso
na narrativa argentina recente
Renata Dorneles Lima
Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos quesitos necessários para a
obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos –
Literaturas Hispânicas).
Examinada por:
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Ary Pimentel (orientador)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. João Camillo Penna – UFRJ
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto Tonani do Patrocínio – UFRJ
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Victor Manuel Ramos Lemus – UFRJ, Suplente
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Renato Cordeiro Gomes – PUC, Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Lima, Renata Dorneles.
LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários urbanos, fragmentação e
inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente / Renata Dorneles
Lima. - Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2016.
xi, 97f.; 31 cm.
Orientador: Ary Pimentel
Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de
Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2016.
Referências Bibliográficas: f. 96-101
1. La 31, Ariel Magnus. 2. Território e representação. 3.
Fragmentação e imaginário. I. Pimentel, Ary. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em
Letras Neolatinas. III. Título.
Aos meus amigos.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Ary Pimentel pelo carinho e dedicação durante todo o percurso desde a
graduação, além da amizade que ultrapassa as portas da academia.
Aos amigos que estiveram presentes em cada momento de dificuldade e exaustão, oferecendome momentos de alegria e relaxamento.
A minha grande amiga Flavia Coutinho Ferreira Sampaio pela amizade de longa data e pelo
colo e apoio fundamentais no último ano para seguir o percurso.
Ao professor Paulo Roberto “Beto” Tonani do Patrocínio pelos diálogos tão enriquecedores e
fundamentais ao longo desses dois anos de curso.
A Ariel Magnus pela gentileza de conceder-me uma tarde encantadora de papos literários
apaixonados acompanhados de um bom café quente em Buenos Aires.
A todos os professores que contribuíram para esta pesquisa, orientando-me e indicando
possíveis caminhos.
Una ciudad siempre es heterogénea, entre otras razones,
porque hay muchos imaginarios que la habitan. Estos
imaginarios no corresponden mecánicamente ni a
condiciones de clase, ni al barrio en el que se vive, ni a
otras determinaciones objetivables. Aparecen aspectos
subjetivos, aunque a mí no me resulta muy convincente
reducir lo imaginario a lo subjetivo, porque también la
subjetividad está organizada socialmente. Pueden
hacerse muchas variaciones desde la perspectiva del
sujeto, pero siempre están condicionadas, existe un
horizonte de variabilidad que no es enteramente
arbitrario.
Néstor García Canclini
RESUMO
LIMA, Renata Dorneles. LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários urbanos,
fragmentação e inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente. Rio de Janeiro,
2016. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas. (Mestrado em Letras Neolatinas.
Área de Concentração: Estudos Literários Neolatinos.) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.
Esta pesquisa, que trata da fragmentação no romance La 31 (una novela precaria), de Ariel
Magnus, orienta-se no sentido de pensar em que medida as possibilidades encontradas pelo
autor para a representação do espaço urbano se inserem em um conjunto de produções (suas e
de outros autores) que problematizam determinadas fronteiras estabelecidas no campo
literário e nos levam ao questionamento da própria noção de romance a partir da noção de
inespecificidade, proposta por Florencia Garramuño. Outro ponto explorado é o diálogo que o
autor trava com o cânone, reivindicado de modo direto ou indireto a relação de pastiche ou
paródia com o estilo de autores e obras clássicas, sem endossar as grandes narrativas e o
modelo do romance tradicional. Em La 31 (una novela precaria), Magnus produz uma obra
fragmentada e plural não apenas na composição de narrativas descontínuas, mas também na
estrutura não linear e na linguagem em que lança mão de gêneros textuais diversos, como a
fábula, o relato curto, o discurso jornalístico e o texto teatral. O autor joga ainda com uma
profusão de vozes que operam nas narrativas como o burburinho ou os murmúrios de uma
comunidade popular, propondo um diálogo instigante entre território e fatura ficcional. São
narrativas fragmentadas que contam o cotidiano de sujeitos que vivem em um território
labiríntico que se esparrama pela cidade e a recebe dentro de si, levando à representação de
uma sociedade fragmentada tal qual a obra. Para a figuração de tal diversidade de sujeitos e
histórias, Ariel Magnus vale-se de uma radical experimentação narrativa, produzindo uma
espécie de romance-collage que permite aprofundar as discussões sobre os limites da
literatura e da concepção tradicional de romance.
Palavras-chave: Narrativa do contemporâneo; Território; Imaginário Urbano; Fragmentação;
Obra-mosaico
RESUMEN
LIMA, Renata Dorneles. LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários urbanos,
fragmentação e inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente. Rio de Janeiro,
2016. Tesis de Maestría en Literaturas Hispánicas. (Maestría en Letras Neolatinas. Área de
Concentración: Estudios Literarios Neolatinos.) – Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.
Esta investigación, que trata de la fragmentación de la novela La 31 (una novela precaria), de
Ariel Magnus, se orienta en el sentido de pensar de qué forma las posibilidades encontradas
por este narrador para la representación del espacio urbano se incluyen en un conjunto de
producciones (suyas y de otros autores) que problematizan determinadas fronteras
establecidas en el campo literario y nos hacen cuestionar la propia noción de novela a partir
de la noción de inespecificidad, propuesta por Florencia Garramuño. Otro punto
experimentado es el diálogo que el autor tiene con el canon, reivindicado de forma directa o
indirecta la relación de pastiche o parodia con el estilo de autores y obras clásicas, sin endosar
las grandes narrativas y el modelo de la novela tradicional. En La 31 (una novela precaria),
Magnus produce una obra fragmentada y plural no solo en la composición de narrativas
discontinuas, así como en la estructura no linear y en el lenguaje en que se vale de géneros
textuales diversos, como la fábula, el relato corto, el discurso periodístico y el texto teatral. El
autor juega aun con una profusión de voces que actúan en las narrativas como el bullicio o los
murmurios de una comunidad popular, proponiendo un diálogo estimulante entre territorio y
factura ficcional. Son narrativas fragmentadas que cuentan lo cotidiano de sujetos que viven
en un territorio laberíntico que se desparrama por la ciudad y la recibe dentro de sí, llevando a
la representación de una sociedad fragmentada tal como la obra. Para la figuración de esa
diversidad de sujetos e historias, Ariel Magnus produce una radical experimentación
narrativa, produciendo una especie de novela-collage que permite profundizar las discusiones
acerca de los límites de la literatura y de la percepción tradicional de novela.
Palabras-clave: Narrativa de
Fragmentación; Obra mosaico
lo
contemporáneo;
Territorio;
Imaginario
Urbano;
ABSTRACT
LIMA, Renata Dorneles. LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários urbanos,
fragmentação e inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente. Rio de Janeiro,
2016. Master's thesis in Hispanic Literatures. (Master Tesis in Hispanic Literatures.
Concentration Area: Neolatin Literary Studies.) – Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.
This research is about fragmentation in the novel La 31 (una novela precaria) by Ariel
Magnus. It analyzes how the alternatives found by the novel’s narrator to represent the urban
space compose along with other works (both by Magnus and by other writers) a set of
productions that problematize some of the frontiers established in the literary field and make
us question the form of the novelitself due to its unspecificity. This study also throws light on
the direct or indirect dialogues established by La 31 with the canon through pastiche or
parody, techniques that do not reinforce grand narratives or the traditional form of the novel.
In his book, Magnus produces a fragmented and plural work not only as to the composition of
independent narratives, but also toits non-linear structure and its blurring of genres – suchas
the fable, the short story and the language of the newspaper and the theater. The writer also
plays with a number of voices that function as whispers or murmurs of a popular community,
proposing an instigating dialogue between territory and fiction. These are fragmented
narratives that tell us of the everyday life of subjects that live in a labyrinthic territory that is
spread all over the city and that receives the city inside it, representing a society as
fragmented as the book. To the figuration of such a diverse amount of subjects and stories,
Ariel Magnus makes use of a radical narrative experimentation, producing a sort of novellacollage that allows the discussion over the limits of literature and the traditional idea of the
novel to be taken further.
Key-words: Contemporary narratives; Territory; Imaginary; Fragmentation
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11
2.
AS IMPOSSIBILIDADES DA FORMA NO ROMANCE PRECÁRIO.................................. 15
2.1. Experimentações estéticas na Villa 31 de Magnus .................................................... 43
3.
TERRITÓRIO EM MOVIMENTO: O FOCO SE DESLOCA PELA CIDADE....................... 52
4.
A
VIOLÊNCIA
INVISÍVEL
ECOA
NOS
DISCURSOS
DA
CIDADE............................................................................................................................. 75
5.
CONCLUSÕES ................................................................................................................. 94
6.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 96
11
1. INTRODUÇÃO
Diante do fenômeno contemporâneo da fragmentação do sujeito e do território urbano
que se reproduz por meio de fracionamentos e da segregação residencial, escritores latinoamericanos das últimas duas décadas produzem uma literatura que narra a cidade como um
espaço geográfico segmentado e não homogêneo, ou seja, uma literatura que não propõe a
urbe como uma unidade geográfica, mas como uma pluralidade de territórios fragmentados
que podem apagar ou rearticular as referências identitárias, atuando como lócus de
pertencimento de grupos ou tribos. A obra que é objeto desta pesquisa e base para pensar a
fragmentação da cidade de Buenos Aires é a ficção de Ariel Magnus La 31 (una novela
precaria), que narra um dos “microterritórios” da capital argentina – a villa miseria que dá
nome à obra – em contraponto a outras áreas da cidade. Pretende-se pensar aqui a
representação da villa e de seus moradores por meio da Babel de discursos e imagens que se
difundem a partir de e sobre a favela. Este trabalho propõe uma reflexão acerca do modo
como, mediante a fragmentação e a pluralidade de olhares, a ficção de Ariel Magnus
consegue representar a outridade e o território periférico “desde afuera”, mas sem o recurso ao
exotismo e ao essencialismo.
“Precaria pero no tanto”, conforme assinala o próprio autor, a estética narrativa
construída por Magnus pode ser vista como uma representação da precariedade do próprio
território narrado. O texto não se constrói por meio de uma estrutura linear nem apresenta
algo que se possa reconhecer como uma trama, tal qual se observa no que se convencionou
denominar romance. Ao contrário, buscando assemelha-se à estrutura da villa com suas
moradias visivelmente inacabadas e com suas ruas e becos labirínticos, a obra constitui-se de
fragmentos relativamente desarticulados e descontínuos. Em La 31 podemos constatar o que
Néstor García Canclini chamou de “una estética de la discontinuidad [que] se alía con la
experiencia de la fragmentación urbana” (2010, p. 137). A ideia de precariedade da narrativa
não deve ser vista como uma valoração negativa da obra. Trata-se de opção estética da qual
Magnus lança mão para escrever o presente de uma cidade e de uma sociedade de fragmentos.
O autor, valendo-se de combinações diversas de histórias fragmentadas, deixa claro o
objetivo da obra de representar essa nova sociedade, a qual produz sujeitos fragmentados
inseridos em uma nova forma de sociabilidade, e não mais uma identidade coesa, como
assinala Stuart Hall em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade (2005).
12
Ariel Magnus faz parte de um grupo de escritores argentinos que “nacieron después de
1960 y surgieron a partir de los años 90” (Drucaroff, 2011, p. 17), os quais produzem uma
narrativa que está na fronteira entre o real e o ficcional, ao mesmo tempo em que estabelecem
uma clara relação com as microgeografias da cidade de Buenos Aires. Os autores são
diversos: alguns narram o microterritório do qual fazem parte ou com o qual mantêm algum
tipo de relação afetiva; outros narram microterritórios com os quais não têm nenhuma relação
de proximidade, mas que se mostram como espaços com grande potencial para pensar
cidade/sociedade por meio da representação. Magnus insere-se no último grupo.
A discussão acerca da fragmentação dos sujeitos e da cidade é fundamental para essa
literatura que valoriza a narração das identidades locais, deixando explícita a crise dos relatos
nacionais e dos imaginários mais estreitamente relacionados às narrativas do Estado-Nação.
No ensaio Los prisioneros de la torre: política, relatos y jóvenes en la postdictadura
(2011), Elsa Drucaroff analisa essa literatura argentina recente, que foi nomeada como Nueva
Narrativa Argentina, ou NNA, por conceber-se como uma literatura estruturada dentro e fora
da literatura tradicional e com seus próprios recortes narrativos, em um processo em que a
realidade cotidiana passa a figurar como base para a narrativa.
Cuando hablo de “nueva” narrativa para la obra de las generaciones de postdictadura me
refiero a que encuentro en ella cierta entonación, ciertas “manchas temáticas” y ciertos
procedimientos que en general no aparecen así en otra parte, al menos no como tendencia
generalizada. Es esperable que lo “nuevo” (…) no aparezca sólo en las generaciones de
postdictadura, pero eso nuevo que intentaré describir y delimitar sí las caracteriza
particularmente a ellas, al menos como tendencia comprobable. (DRUCAROFF, 2011, p.
18)
Essa nova tendência literária argentina caracteriza-se por uma narrativa que pretende
“ficcionalizar” o presente, propondo narrativas que têm como tema o cotidiano dos sujeitos
desses microterritórios. Conquanto a elucidação de Elsa Drucaroff relacione essa nova
literatura à crise política, econômica e social ocorrida na Argentina em 2011, a autora também
aclara as características dos narradores que a produzem: são escritores da pós-ditadura que já
não necessitam das antigas estruturas de consagração e pertencimento para construir seu lugar
no campo literário. Por outro lado, tampouco essas narrativas denominadas “novas” por
Drucaroff são escritas inéditas, uma vez que muitas lançam mão de estéticas já utilizadas por
escritores do cânone, como veremos no capítulo a seguir.
Esta pesquisa que apresentamos parte da seguinte hipótese: uma parcela significativa
da produção literária argentina atual está configurando-se a partir de uma mancha temática,
como argumenta Drucaroff, relacionada a um novo olhar em direção aos diversos territórios
13
que compõem a cidade fragmentada de Buenos Aires, entre eles os territórios periféricos.
Ariel Magnus é um desses autores inseridos no grupo que escolhe trabalhar os territórios
como uma temática cara para sua produção literária. Propomos para o desenvolvimento deste
trabalho uma das obras do autor na qual o território, a fragmentação e a inespecificidade têm
um papel fundamental.
Embora pareça assumir um aspecto inacabado ou imperfeito, a obra mantém uma
unidade narrativa baseada na representação de um território periférico, o assentamento
irregular que dá nome à obra, a Villa 31, localizada no bairro do Retiro. Essa articulação
imperfeita dos fragmentos narrativos, bem como dos fragmentos da cidade, é alcançada a
partir da forma como circulam os personagens da obra pelos diferentes espaços. Em vários
pontos da narrativa, é possível encontrar os mesmos personagens que, guiados por diferentes
motivações, vão se encontrando e se chocando com outros para construir uma teia de
micronarrativas a partir da qual é possível ter uma imagem da realidade e da cidade.
O livro divide-se em sessenta e dois fragmentos narrativos, que podem constituir uma
unidade em si mesmos, apresentar-se aos pares ou mesmo em blocos de três ou quatro, como
uma espécie de continuação do relato. A possibilidade de o leitor entrar em contato com a
obra a partir da escolha da continuidade dos relatos só ocorre ao final do livro quando, ao se
deparar com o índice, percebe que há uma estrutura por meio da qual o autor propõe um
caminho alternativo de leitura que une os diferentes fragmentos constitutivos dos 32 capítulos
do romance (31 capítulos + o capítulo 31 bis), que remete ao nome de uma das partes mais
recentes da Villa 31).
Em La 31, como em outras obras suas, Ariel Magnus propõe experimentações
estéticas bastante engenhosas não apenas na narrativa, afetando em particular a estrutura da
linguagem, que muitas vezes assume um lugar de protagonismo que suplanta qualquer
personagem, como ocorre na obra que estudamos.
Lançando outro olhar para a cidade e para o ato de narrar o presente, o autor inspira-se
na imagem dominante da precariedade do espaço para subverter as concepções estabelecidas
sobre o Outro e sobre a própria fatura narrativa. A estética do precário torna visível a
complexidade e a multiplicidade de facetas da favela, bem como a pobreza, e suas
representações centradas nos estigmas da violência e da miséria ou nas imagens da falta.
A obra apresenta, a partir de uma estratégia de representação focada no processo
fragmentação do território e do discurso, a villa miseria (favela) 31, como um objeto plural e
multifacetado. A estrutura de um texto que tem como lócus narrativo um território tão
complexo não poderia ser homogênea ou totalizadora. Em sua opção por buscar uma poética
14
narrativa que traduza o espaço (o que se observa também em outras obras do autor, como A
Luján), o autor investe na perspectiva da pluralidade lacunar dos fragmentos que, como um
enorme quebra-cabeças do qual faltam inúmeras peças, compõem a cidade e a villa miseria.
Objetivamos analisar a importância desse olhar que coloca em xeque a própria forma do
romance ao privilegiar o fragmento e a não linearidade em sua composição narrativa, em uma
textualização constituída por gêneros diversos. Colocamos como problema o modo como o
autor leva o leitor a ler a representação de uma realidade fragmentada por meio dessa obramosaico, que expande a discussão dos limites da literatura e da concepção tradicional de
romance, bem como a imagem uniforme que se tem do sujeito que habita o referido território.
Buscamos ler a obra de Ariel Magnus em diálogo com os textos teóricos e das categorias
propostas por Elsa Drucaroff (2011), Néstor García Canclini (2008), Josefina Ludmer (2010),
Jesús Martín-Barbero (2008), Beatriz Sarlo (2009), Teresa Pires do Rio Caldeira (2000),
Zygmunt Bauman (2005), entre outros.
Quanto à estrutura escolhida para escrever este trabalho, optamos por iniciar cada
capítulo com a tradução de fragmentos de La 31 (una novela precaria) mais relevantes para as
discussões propostas. Objetivamos, com essa forma de organização do texto, que o leitor
deste trabalho possa ter contato direto com a obra de Ariel Magnus sem que haja ruídos entre
nossas discussões e o corpus escolhido. Ao final de cada fragmento traduzido, colocamos o
relato completo, tal qual se encontra na obra, caso o leitor opte por lê-los no idioma original.
Em relação aos capítulos que compõem este trabalho, propomo-nos a escrever cada
um deles de forma autônoma, de modo que possam ser lidos de maneira independente embora
estejam interligados, formando uma unidade de discussão, tal qual a narrativa proposta em La
31 (una novela precaria).
15
2. AS IMPOSSIBILIDADES DA FORMA NO ROMANCE PRECÁRIO
Fragmento 1:
31 (Bis). O céu dos favelados
Fabricio T. aos 54 de cirrose, diziam que chupava até a água das jarras de flores se não fosse pelo
fato de a favela quase não ter flores; Eugenio Aníbal H. aos 16 anos por um tiro na cabeça, mais
especificamente na glândula pineal, aí onde segundo Descartes se unem o corpo e a alma; Olga
Úrsula V. aos 37 de câncer de mama, ela dizia ‘de mamãe’ e jogava a culpa nos desgostos que seus
filhos lhe haviam dado; Cinthia Jessica D. aos 25 atropelada por um ônibus, dizem que ela não estava
batendo bem da cabeça mas a verdade é que nunca a viram de outra forma; María Amalia F. aos 3 de
tuberculose, uma doença já erradicada no primeiro mundo mas que ainda se conserva no terceiro,
essa grande reserva natural para infecções em extinção; N. N. aos três ou quatro dias por asfixia,
embora a causa seja hipotética porque não lhe fizeram uma autópsia, tampouco lhe deram uma
sepultura, do contêiner passou ao caminhão e dali ao aterro sanitário, a única pessoa que o viu
preferiu permanecer anônima e voltou a cobri-lo; Manuel R. alcunha “o Frango” aos 15 anos como
consequência de uma surra, a polícia diz que foi na saída da discoteca mas seus amigos dizem que foi
dentro do camburão; Jessica S. também aos 15 mas em decorrência de um aborto clandestino, a
família diz que a culpa é do menino que a engravidou e o menino que a engravidou diz que a culpa é
da enfermeira que a atendeu, na realidade a culpa é do Estado e da Igreja mas isso ninguém diz.
[Ariel Magnus. La 31 (una novela precária)]1
Fragmento 2:
18. Favelalegoria
FAVELA: Meus muito estimados, eu os reuni para lhes pedir por favor que os senhores vão
embora daqui.
DOENÇA MAL TRATADA (surpresa): Mas, Dona Favela, a senhora não tem o direito de nos
pedir uma coisa dessas, muito menos com tão boas maneiras.
FOME (taxativa): A Doença Mal Tratada tem toda razão. Aqui não se trata de tratar-nos bem,
mas de combater-nos.
MORTE EVITÁVEL (irritada): Concordo com a Fome. E nem preciso dizer que, se elas não vão
embora, eu também não vou.
FAVELA (virando-se em direção ao Desemprego): Bom, então comecemos pelo senhor, senhor
Desemprego. O senhor não gostaria de ir trabalhar em outra parte?
“Fabricio T. a los 54 de cirrosis, diríase que se chupaba hasta el agua de los floreros si no fuera porque en la
villa no hay casi flores; Eugenio Aníbal H. a los 16 de un tiro en la cabeza, más específicamente en la glándula
pineal, ahí donde según Descartes se juntan el cuerpo y el alma; Olga Úrsula V. a los 37 de cáncer de mama, ella
decía ‘de mamá’ y le echaba la culpa a los disgustos que le habían dado sus hijos; Cinthia Jessica D. a los 25
atropellada por un colectivo, dicen que no estaba en sus cabales pero lo cierto es que nunca se le conocieron
otros; María Amalia F. a los 3 de tuberculosis, una enfermedad ya desaparecida en el primer mundo pero que aún
se conserva en el tercero, esa gran reserva natural para infecciones en extinción; N. N. a los tres o cuatro días por
asfixia, aunque la causa es hipotética porque no se le hizo una autopsia, tampoco se le dio sepultura, del
container pasó al camión y de ahí al relleno sanitario, la única persona que lo vio prefirió quedar igual de
anónima y volvió a cubrirlo; Manuel R. alias “el Pollo” a los 15 como consecuencia de una golpiza, la policía
dice que fue a la salida de un boliche bailable pero sus amigos dicen que fue adentro del patrullero; Jessica S.
también a los 15 pero como consecuencia de un aborto clandestino, la familia dice que la culpa es del chico que
la embarazó y el chico que la embarazó dice que la culpa es de la enfermera que la atendió, en realidad la culpa
es del Estado y de la Iglesia pero eso nadie lo dice.” (MAGNUS, 2012, p. 93)
1
16
DESEMPREGO (com voz fatigada, desenganada): Eu já trabalho em outras partes, senhora.
Trabalho em quase todos os lados. E aqui mais do que em nenhum outro. Pode acreditar que se fosse
por mim eu deixaria de fazer isso, mas não posso, é o meu trabalho.
SUJEIRA (quase ofendida): Todos nós também trabalhamos fora, embora seja verdade que
aqui somos mais produtivos.
ANALFABETISMO: Eu me vejo nessa mesma encruzilhada paradoxal que o Desemprego, só que
no meu caso não é preciso fazer grandes investimentos para me tirar daqui, apenas boa vontade. Na
verdade, a presença do senhor Desemprego deveria fazer com que eu não tenha mais trabalho, e meu
desaparecimento deveria por sua vez levar ao desaparecimento dele também. Mas bom, já sabemos
que há coisas que se interpõem entre nós.
DROGADIÇÃO (queixosa): Depois vão se ver comigo. Como se esquece fácil, senhor
Analfabetismo, de que no fundo eu sou uma consequência da ação aqui do senhor Desemprego e da
senhora Falta de Oportunidades, que pelo visto aproveitou a oportunidade para faltar.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: Quer dizer que eu sou apenas uma consequência da sua ação,
senhora Drogadição.
FAVELA: Mas então eu não entendo, por onde devo começar para poder mandá-los embora
daqui?
ANALFABETISMO: Pela Fome, naturalmente. Se ela não vai embora, é difícil que eu vá, e se eu
não vou, tampouco irá o Desemprego, nem a Drogadição, nem ninguém. E quando digo ninguém me
refiro a uns quantos, porque a Falta de Oportunidades não é a única ausente aqui.
FOME: Exatamente. Onde estão Desamparo Jurídico, Ausência Estatal, Amontoamento, Frio e
todos os outros companheiros?
FAVELA: Eu achei conveniente não marcar com todos ao mesmo tempo, pois tive medo de não
convencê-los. E já podem ver que não estou conseguindo nem mesmo com os senhores.
FOME: Já lhe disse que não tem que pedir amavelmente para a gente sair daqui, mas sim nos
combater.
ARMAMENTO ILEGAL: O problema é que ela não tem armas para fazê-lo.
FALTA DE PLANEJAMENTO: Que se arme então.
FAVELA: O verdadeiro problema é que não sei por onde começar.
MORTE EVITÁVEL: Por que não tenta começar pelo final e vai embora a senhora mesma?
RESIGNAÇÃO: É isso aí, e nós a seguimos. Somos Fuenteovejuna: ou vamos embora todas, ou
não vai nenhuma. [Ariel Magnus. La 31 (una novela precária)]2
“VILLA MISERIA: Mis muy estimados, los he reunido para pedirles por favor que se vayan de aquí.
ENFERMEDAD MAL TRATADA (sorprendida) Pero, Doña Villa Miseria, usted no tiene derecho a pedirnos algo
así, mucho menos de tan buenas maneras.
HAMBRE (taxativa): Enfermedad Mal Tratada tiene toda razón. Acá no se trata de tratarnos bien, sino de
combatirnos.
MUERTE EVITABLE (enojada): Adhiero a Hambre. Y de más está decir que si ellas no se van, yo tampoco.
VILLA MISERIA (girando hacia Desempleo): Bueno, entonces empecemos por usted, don Desempleo. ¿No quiere
irse a trabajar a otra parte?
DESEMPLEO (con voz cansina, desahuciada): Yo ya trabajo en otras partes, doña. Trabajo en casi todos lados. Y
acá más que en ninguno. Créame que si por mí fuera dejaría de hacerlo, pero no puedo, es mi trabajo.
MUGRE (casi ofendida): Todos trabajamos también fuera, aunque es verdad que acá somos más productivos.
ANALFABETISMO: Yo me encuentro en la misma paradoja encrucijada que Desempleo, solo que en mi caso no
harían falta grandes inversiones para echarme, sino apenas un poco de voluntad. En rigor, la presencia del señor
Desempleo debería favorecer que yo no tenga más trabajo, y que yo desaparezca debería a su vez favorecer a que
también lo hiciera él. Pero bueno, ya sabemos que hay cosas que se interponen entre nosotros.
DROGADICCIÓN (quejosa): Ya se la agarran conmigo de vuelta. Qué fácil se olvida usted, señor Analfabetismo,
de que en el fondo yo soy una consecuencia del accionar acá del señor Desempleo y de la señora Falta de
Oportunidades, que por lo visto aprovechó la oportunidad para faltar.
2
17
Iniciamos este capítulo com a reprodução de dois relatos que integram a complexa
estrutura de La 31 (una novela precaria) porque queremos compartilhar com o leitor
brasileiro o texto do romance e porque acreditamos que eles nos ajudam a pensar duas das
estratégias centrais de um projeto literário cujos contornos se definem a partir da
desmontagem da trama e da desestabilização da própria ideia de romance pela pluralização e
mistura de fragmentos. As duas estratégias a que nos referimos seriam: a) a utilização do
fragmento como elemento rector de um projeto romanesco que considera central a
descontinuidade da experiência urbana, e b) o tratamento dos personagens que povoam os
territórios fragmentados da cidade por meio da mescla de técnicas narrativas, recorrendo a
múltiplas estruturas que possibilitam contar a rede interminável de relatos que visibiliza
momentos de suas vidas.
O que nos interessa neste capítulo é discutir o modo como Ariel Magnus, por
intermédio de suas narrativas, trava um embate com o modelo de romance tradicional, sem,
contudo, negá-lo integralmente, mas pensando as diversas alternativas de escrita para
estruturar seus “romances” – romances aqui entre aspas porque é exatamente essa
denominação que se coloca em xeque diante de estruturas com tão pouca relação em comum
com o que se convencionou chamar de romance.
A ambição desse projeto narrativo é claramente distanciar-se de uma história (ou
relato) total. É importante ressaltar que o romance dialoga com uma obra central do cânone
nacional argentino que já lançara em 1963 o germe desse projeto. Rayuela, obra escrita por
Julio Cortázar em 1963, talvez seja o primeiro passo no questionamento desse modelo,
abrindo um caminho que levará a La 31. A produção do Novo Romance Hispano-americano
VIOLENCIA DOMÉSTICA: Entonces yo soy nada más que una consecuencia de su accionar, señora Drogadicción.
VILLA MISERIA: Pero entonces no entiendo, ¿por dónde tengo que empezar para poder echarlos?
ANALFABETISMO: Por Hambre, naturalmente. Si él no se va, difícil que vaya yo, y si yo no me voy, tampoco se
va Desempleo, ni Drogadicción, ni nadie. Y con nadie me refiero a unos cuantos, porque Falta de Oportunidades
no es la única ausente aquí.
HAMBRE: Eso. ¿Dónde están Desprotección Jurídica, Ninguneo Estatal, Hacimiento, Frío y todos los otros
compañeros?
VILLA MISERIA: Creí conveniente no citarlos a todos a la vez, pues temía no convencerlos. Y ya ven, no lo estoy
logrando ni con ustedes.
HAMBRE: Ya le dije que a nosotros no hay que pedirnos amablemente que nos vayamos, sino que hay que
combatirnos.
ARMAMENTO ILEGAL: El problema es que no tiene armas para hacerlo.
FALTA DE PLANIFICACIÓN: Que las arme, pues.
VILLA MISERIA: El verdadero problema es que no sé por dónde empezar.
MUERTE EVITABLE: ¿Y si prueba empezando por el final y se va usted misma?
RESIGNACIÓN: Eso, que nosotros la seguimos. Somos Fuenteovejuna: o nos vamos todas, o no se va ninguna.”
(MAGNUS, 2012, p. 47-49)
18
e, em particular, a de Julio Cortázar, com especial destaque para a obra citada, provocou
diversas discussões sobre os caminhos da escrita romanesca. Trabalhando sempre na tensão
com o modelo que se manteve em vigor até meados do século XX, Ariel Magnus incorpora
elementos de uma nova tradição que se afirma a partir de Rayuela e La casa verde (1966)3, de
Mario Vargas Llosa. Outros autores enfrentam problemas semelhantes. Trata-se de narradores
que compartilham elementos de uma poética do presente e em cujas obras se observam o
abandono da dimensão totalizadora, além de constantes referências ao cânone nos
procedimentos que adotam.
Em toda a obra de Ariel Magnus há uma fronteira bastante diluída entre a forma
tradicional do romance e outras formas de discurso. Na fatura de La 31, em particular,
observamos a experimentação com novas maneiras de narrar a cidade. São páginas compostas
por materiais heterogêneos – narrativas, dramas, descrições, passagens dialogadas – que se
distribuem pelo livro de modo absolutamente descontínuo. A fragmentação surge como uma
perspectiva do real que produz realidade; não é apenas o espaço urbano que se rompe, mas
também, e sobretudo, a linguagem, gerando uma profusão de enunciados desde distintos
lugares e em diferentes gêneros: relatos sem terminar, pedaços de histórias, personagens de
identidade indefinida, narrativas despedaçadas. Em alguns casos, a intriga propriamente dita é
quase nula de tão fragmentada ou prejudicada que é pela opção de gênero textual do autor.
O primeiro fragmento transcrito intitula-se, no texto original, “31 (bis). El cielo de los
villeros” e está estruturado a partir da proliferação de um modelo de gênero textual não
narrativo: o obituário. O gênero em questão registra alguns dados básicos para informar a
morte de um indivíduo particular. Geralmente, junto com um resumo de suas realizações em
vida, aparece o nome e a idade da pessoa falecida, bem como, em alguns casos mais raros, a
causa da morte. Apesar de se espelhar na estrutura desses simples comunicados publicados
nos diários, o texto de Magnus apresenta uma diferença significativa que salta aos olhos
quando o comparamos com os obituários tradicionais. O conjunto de informes de falecimento
reunidos no fragmento citado traz um elemento uniformizador: há uma voz narradora que
perpassa todas as notas de falecimento. O ponto que as une é o tom irônico que problematiza
a causa dessas mortes e faz eco, com uma inusitada virada crítica, do senso comum. Embora
não se tenha conhecimento de qualquer fato relativo à vida dessas pessoas, há um coro de
3
A obra La casa verde (1966), do escritor peruano Mario Vargas Llosa (1936- ), narra a história de um
prostíbulo montado em uma das regiões mais isoladas do Peru, entre as décadas de 20 e 40. O romance é
estruturado a partir de várias histórias que se entrecruzam e se complementam de modo temporal e espacial. A
complexidade da narrativa proposta do Vargas Llosa deve-se à narração da história de modo não cronológico,
mesclando passado e presente, além da fusão de vozes dos diversos personagens que compõem a obra.
19
vozes anônimas que colocam em circulação as experiências: vida e morte chegam-nos a partir
dos relatos de terceiros, como podemos observar no trecho citado; os testemunhos, ecos e
murmúrios chegam de todos os grupos sociais, de todos os cantos da cidade: “dicen que no
estaba en sus cabales (…); la policía dice que (…) pero sus amigos dicen que (…); la familia
dice que (…) el chico que la embarazó dice que (…), pero eso nadie lo dice.” (MAGNUS,
2012, p. 93).
Silviano Santiago, em seu livro Nas malhas da Letra (2002), dedica um capítulo para
discutir a importância do narrador na composição dos relatos e a diferença que há entre o
narrador exterior à ação concreta – caso exemplificado no parágrafo anterior – e o narrador
participante ativo, no que diz respeito à autenticidade do relato:
o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude
semelhante à de um repórter ou de espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que
assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar
ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante. (SANTIAGO, 2002, p. 45)
Na leitura dos relatos de La 31, fica perceptível que o narrador de Magnus não se
insere em nenhuma das duas classificações apresentadas por Silviano, assemelhando-se
apenas à ideia de narrador externo à ação. Como no exemplo citado, o narrador não é um
espectador interno da ação, mas uma voz não identificada que absorve informações de
terceiros para narrar a partir desse olhar externo que se forma com base nos dados que
chegam a ele, sem se importar com a autenticidade ou a proveniência de tais vivências. Por
meio de uma estratégia que abdica de qualquer caráter testemunhal, faz sobressair as marcas
de modulação desse narrador e desse lócus de enunciação.
Luís Miguel Cardoso, em seu texto “A problemática do narrador: da literatura ao
cinema” (2003, p. 59), discorre acerca dos tipos de narradores considerando os conceitos de
Gerard Genette. O teórico francês categoriza o narrador, dividindo-o em três tipos:
autodiegético, homodiegético e heterodiegético. O que nos interessa é o último tipo por se
aproximar mais do narrador escolhido por Magnus. Este tipo caracteriza-se por narrar a partir
de uma dimensão externa: não participa da história, nem fez parte dela em qualquer momento.
Magnus lança mão desse recurso para permitir que o narrador possa se distanciar e
brincar com uma realidade social muitas vezes dramática, e também atualizar, a partir da
ironia, duras críticas sociais que vão pontuando cada uma das mortes apresentadas. A
consciência das limitações desse lugar que não dá conta de narrar o real leva o narrador a
fazer eco às críticas de uma voz semicoletiva. Esse é o caminho encontrado por Ariel para
trazer de volta para o texto um conjunto de problemas sociais que marcam presença no
20
território narrado. Aborto clandestino, alcoolismo, doenças extintas em muitos países
considerados desenvolvidos ou violência policial ganham lugar na representação da villa por
meio das notas do obituário, assim como os outros problemas que se transformam em
personagens no fragmento dramatúrgico.
Já o segundo fragmento, intitulado “Alegoría miseria”, diferencia-se do primeiro
exemplo em um aspecto fundamental: o autor já não se vale de um formato típico da imprensa
escrita como os comunicados de falecimento publicados em jornais. O modelo, nesse caso, é o
gênero dramatúrgico, mais especificamente, as peças de teatro alegóricas que fizeram tradição
no teatro ibérico dos séculos XVI e XVII. Magnus, nesse fragmento, recorre ao cânone
literário espanhol do Siglo de Oro espanhol ao construir personagens que remetem às figuras
alegóricas de Pedro Calderón de La Barca (1600-1681) e Tirso de Molina (1579-1648).
Poderíamos dizer que tanto a Favela (“Villa Miseria”, no texto original) como os demais
interlocutores dessa cena são personagens alegóricos, um tipo de personagem simbólico que
encarna um conceito abstrato como a Morte, a Soberba, a Beleza ou a Culpa. A releitura da
tradição literária pode ser observada de duas formas: primeiro, na estrutura da obra teatral
com personagens abstratos que desencadeiam uma discussão sobre os problemas da favela, tal
qual Calderón de la Barca no auto sacramental A Dios por razón de Estado. Essa peça tem na
dimensão alegórica seu principio estruturador, o qual se explicita em particular na utilização
de personagens abstratos, como El Ingenio, El Pensamiento, La Gentilidad, El Ateísmo, La
Confirmación, La Penitencia, La Extremaunción, El Orden Sacerdotal, El Matrimonio, La
Ley Natural, La Ley Escrita y La Ley de Gracia.
Magnus elabora esse fragmento de sua narrativa a partir de um texto canônico,
servindo-se também de personagens alegóricos para estrutura um diálogo protagonizado por
alguns dos problemas mais concretos da villa. O fragmento inicia com o pedido da
personagem Villa Miseria para que os outros personagens configurados como problemas
sociais deixem esse território da “falta”, o que desencadeia uma discussão entre os
personagens para saber qual deles seria o mais nocivo para esse ambiente e qual seria o
primeiro a ser erradicado.
O elemento fundamental utilizado por Magnus nesse fragmento é o pastiche. Isso fica
claro em sua opção por recriar personagens relacionados ao espaço favela no imaginário
dominante, tomando como modelo um tipo de personagem que se destacou em obras do Siglo
de Oro como A dios por razón de estado, definido pelo autor, Calderón de la Barca, como
“auto sacramental alegórico”. Fredric Jameson, em um ensaio clássico, define o pastiche
como um dos dois traços mais características do pós-modernismo, sendo inclusive um dos
21
elementos que “nos brindarán una oportunidad de percibir la especificidad de la experiencia
posmodernista del espacio y el tiempo” (2002, p. 18).
Reciclando estilos do passado ou formas discursivas clássicas, Magnus abdica da
pretensão de originalidade, ao mesmo tempo em que introduz um dado novo com a
pluralidade de formas dos múltiplos fragmentos de seu “romance”. Fredric Jameson recordanos que, ao contrário dos modernistas que buscavam inventar um estilo pessoal e
inconfundível como uma impressão digital, nas obras dos artistas e escritores do período atual
o que impera é o pastiche, o diálogo reverente, a citação explícita ou implícita, a apropriação e
a releitura de estilos do passado:
De allí, una vez más, el pastiche: en un mundo en que la innovación estilística ya no es
posible, todo lo que queda es imitar estilos muertos, hablar a través de máscaras y con las
voces de los estilos del museo imaginario. Pero esto significa que el arte contemporáneo o
postmodernista va a referirse de un nuevo modo al arte mismo. (JAMESON, 2002, p. 22).
No entanto, como observado na citação, Jamenson faz ponderações bastante negativas
em relação a essa releitura e apropriação dos estilos do passado, argumentando que são
imitações aleatórias de estilos mortos. Linda Hutcheon, em sua obra Poética do pósmodernismo: história, teoria, ficção, também discorre acerca do uso desse passado estético,
observando nesse movimento de apropriação uma relação mais positiva. Segundo Hutcheon,
“a paródia é uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia
aquilo a que parodia. Ela também obriga a uma reconsideração da ideia de origem ou
originalidade, ideia compatível com outros questionamentos pós-modernos (...)” (1988, p.
28).
Outro diálogo com a tradição literária travado por Magnus, no mesmo fragmento, é
com a peça Fuenteovejuna (1619), de Lope de Veja (1562-1635). A obra, que se destaca no
teatro barroco espanhol, trata da história do povoado homônimo, durante o reinado dos Reis
Católicos, que se vê diante de um governante militar que usa seu poder para cometer abusos e
arbitrariedades com a população local. Em dado momento, esse militar é morto e nenhum dos
habitantes de Fuenteovejuna delata o assassino; ao contrário, quando questionados sobre o
autor do crime, todos gritam que o povoado é o culpado, em uma espécie de protagonismo
coletivo, desafiando os poderes instituídos.
JUEZ: A Fuente Ovejuna fui
de la suerte que has mandado,
y con especial cuidado
y diligencia asistí.
Haciendo averiguación
del cometido delito,
22
una hoja no se ha escrito
que sea en comprobación;
porque conformes a una,
con un valeroso pecho,
en pidiendo quién lo ha hecho,
responden: “Fuente Ovejuna.” (VEGA, 1980, p. 105)
No fragmento de La 31, não ocorre um crime cometido por um dos personagens de
forma individual, mas sim conjunto de crimes cometidos pelo que poderíamos chamar
“sistema” contra uma coletividade. Essa figura coletiva está ausente no fragmento de Magnus,
surgindo apenas à medida que são afetados pela ação de cada um dos personagens abstratos
que se nega a deixar o território. Pode-se ler, portanto, uma clara alusão à coletividade da obra
de Lope de Vega.
Na última fala da obra teatral estruturada por Magnus, ocorre essa clara referência à
obra de Lope de Vega: Resignación, uma das personagens nocivas à villa, cita o título da obra
de Lope, provocando um efeito de humor resultante da correspondência fonética entre os
vocábulos “Fuenteovejuna” e “ninguna”. Motivada pela possibilidade da rima, Resignación
diz que todas as personagens-problema são “Fuenteovejuna” e que, por isso, terão de sair do
território todas juntas:
VILLA MISERIA: El verdadero problema es que no sé por dónde empezar.
MUERTE EVITABLE: ¿Y si prueba empezando por el final y se va usted misma?
RESIGNACIÓN: Eso, que nosotros la seguimos. Somos Fuenteovejuna: o nos vamos todas, o
no se va ninguna. (MAGNUS, 2012, p. 49)
Nesse final do fragmento, após a discussão ocorrida entre todos os personagens
nocivos ao território e a própria Villa, a personagem Muerte Evitable propõe que Villa
Miseria resolva os problemas que acometem o território indo ela mesma embora. Desta forma,
sem que haja qualquer referência direta, aparece a discussão sobre a remoção de favelas como
combate à própria favela identificada não como um território onde existem problemas, mas
como um problema em si.
Ariel Magnus, em ambos os fragmentos traduzidos, opta por uma estrutura que
demonstra sintonia com uma atmosfera que transcende as fronteiras nacionais e tem a
intenção de dar conta de um cenário complexo que é ao mesmo tempo local e global.
Conforme Rosana Corrêa Lobo, essas “influências são tão globais que acabam criando um
novo tipo de artista” (2015, p. 29). Essa nova sensibilidade artística que surge em paralelo
com fenômenos globais será fundamental para construir sua narrativa como relato do
contemporâneo, expressão da pós-modernidade como crise da totalidade, ou, em outras
palavras, a crise do sujeito e dos relatos em tempos de fragmentação. A exemplo disso, vimos
23
no fragmento traduzido e reproduzido neste capítulo, que o autor se vale de um gênero textual
não literário para elaborar um dos fragmentos de sua obra, trazendo para o texto os ecos dos
meios massivos de comunicação e as vozes anônimas que constroem uma nebulosa de relatos
importantes para construir uma noção do urbano e da própria vida dos sujeitos que povoam a
cidade. Já no segundo fragmento, o autor lança mão do cânone tanto em sua estrutura como
na referência direta e indireta a obras clássicas da literatura espanhola.
Assim como observamos em autores como Pedro Juan Gutiérrez, com sua obra
Trilogía sucia de La Habana4, ou Junot Díaz, com sua obra Afogado5 – que têm em comum o
uso do fragmento como recurso formal ao ponto de alguns de seus livros ocuparem a fronteira
entre o romance e a coletânea de contos –, essa estratégia narrativa acaba por atuar em tensão
com a própria estrutura tradicional de romance, colocando a obra de Ariel Magnus no limite
do romanesco, embora ele a sublinhe na informação paratextual que figura na capa a
identificação de seu livro como romance. Essa necessidade de aclarar, no próprio título da
obra, que se trata de um romance [La 31 (una novela precaria)] já é por si só significativo da
sua condição deslizante ou da instabilidade desse status.
A condição de “não cabe de todo”, como diria Cortázar, no universo do que se
convencionou chamar romance no século XIX parece ser um exercício programático para
Ariel Magnus e muitos outros escritores contemporâneos. Não há, porém, a pretensão de
colocar o cânone em xeque, mas sim o desejo de repensar a estrutura linear, acabada e
fechada do romance, de modo a “brincar” com as (im)possibilidades da narrativa e abrir um
sem número de caminhos para narrar as tramas do cotidiano. Para ilustrar a importância dessa
discussão para toda uma geração de autores que enfrentam problemas semelhantes,
poderíamos recorrer à obra Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, publicada em 2001.
4
Pedro Juan Gutiérrez nasceu em 1950, em Matanzas, Cuba. Trabalhou em atividades diversas, como vendedor
de sorvetes, cortador de cana e jornalista; atualmente, é pintor, escultor e escritor. Escreveu diversas obras
reconhecidas e traduzidas em vários países, entre elas está Trilogía Sucia de La Habana, El Rey de La Habana y
El insaciable hombre araña. Trilogía sucia de La Habana é composto por um conjunto de três relatos: “Anclado
em Tierra de Nadie”, “Nada que hacer” e “Sabor a mí”. Todas essas narrativas ocorrem em um período da
sociedade cubana em que a economia e a política estavam em um de seus momentos mais preocupantes por
consequência do colapso da União Soviética. O resultado desse período foi narrado nesses textos autobiográficos
com a uma grande carga de sexo, rum e música. Gutiérrez coloca como centro de sua narrativa grupos marginais
da sociedade cubana a partir do olhar do narrador e protagonista dos relatos, propondo uma espécie de colagem
de fragmentos da capital miserável de Cuba.
5
Junot Díaz nasceu em Santo Domingo, República Dominicana, em 1968. Trabalha como professor e escritor
nos Estados Unidos, país em que está radicado desde os seis anos de idade. Ganhou, em 2008, o Prêmio Pulitzer
de Ficção pela obra A fantástica vida breve de Oscar Wao. Em Afogado, livro de estreia de Díaz, o autor narra
histórias de personagens que aparecem e reaparecem em fluxo narrativo que se baseia no cotidiano dos
dominicanos e que se interliga pela temática da imigração. Diaz não deixa claro se todas as histórias são ou não
narradas pelo mesmo personagem, lançando a possibilidade da polifonia narrativa da obra.
24
Em seu primeiro romance, Ruffato cria um texto super fragmentado que se estrutura a partir
de diversas composições textuais como uma espécie de experimento artístico baseado na
proliferação de “formas inespecíficas” (GARRAMUÑO, 2014).
Assim como ocorreria com Ariel Magnus perante a Villa 31, Luiz Ruffato já se
propusera, interpelado pela complexidade da cosmópolis de São Paulo, a problematizar a
construção da realidade em seu primeiro romance. No texto intitulado “Até aqui, tudo bem!
(como e por que sou romancista – versão século 21)”, o autor fala sobre os dilemas que lhe
propõe a busca de uma nova forma romanesca que dialogasse diretamente com o corpo da
cidade.
Esse romance nasceu da necessidade de tentar entender o que estava acontecendo à minha
volta – e para isso tomei a cidade de São Paulo como síntese da sociedade brasileira. Um
dia, caminhando pelos corredores de uma das bienais de arte de São Paulo, deparei com
uma curiosa instalação: um amontoado aparentemente aleatório de calçados abandonados
(tênis, chinelos de dedo, sapatos masculinos e femininos, infantis e adultos, botas,
sandálias, pantufas etc.), que me provocou uma série de reflexões. A sola daqueles calçados
percorrera o asfalto e a poeira das ruas, tomara chuva e sol, fora feliz e infeliz, enfim, nas
curvas deformadas pelo uso imprimira-se uma individualidade, que recolhida e rearranjada
tornara-se depoimento coletivo. Ali, de uma maneira singular e criativa, o artista
reconstruíra a História. (RUFFATO, 2008, p. 321)
Antes do livro, vêm as narrativas da cidade (os calçados que percorrem o texto do
urbano), as formas de produção e reprodução do urbano, nas quais a arquitetura popular ocupa
um papel espacial. Ao pensar a villa como um texto desordenado que se constrói pela
acumulação de fragmentos e objetos refugados, Ariel Magnus recorre também à imagem da
instalação que por sua vez remete à ideia da cidade – e suas partes – como texto:
Lo que no se puede negar, en todo caso, es la acumulación de cachivaches de origen
desconocido y fines inescrutables en las casas que cuentan con el beneficio de un patio
delantero (…). Y a la vez es eso – el tiempo de almacenamiento y de intemperie – lo que le
confiere a esa suma de objetos disímiles y aun incompatibles un aire de obra, de instalación
que aventaja a las que se exponen en los museos (…). (MAGNUS, 2012, p. 55)
Nesse trecho, como no anteriormente citado de Luiz Ruffato, podemos perceber que a
forma dos romances Eles eram muitos cavalos e La 31 (una novela precaria) se explica pelo
diálogo com o espaço urbano e com as artes plásticas. A estrutura fragmentária dessas obras
corresponde à visão dos objetos (sem nome e sem função aparente) “instalados” na frente das
casas e à reflexão provocada pelos calçados abandonados que circularam pela cidade e que
contam as histórias dos indivíduos que os usaram e dos espaços que percorreram. Magnus
parece adotar um projeto muito semelhante ao de Ruffato quando identifica o sentimento de
fragmentação como marco da criação narrativa contemporânea: “no hay nada que no sea un
25
fragmento, de ahí que tampoco haya nada que no sea un todo, no sé si me explico”
(MAGNUS, 2010, p. 84).
Percebemos, por conseguinte, mais uma característica que esteve presente na literatura
ao longo de boa parte do século XX: a referência ao processo de representação no interior da
própria obra. A crítica canadense Linda Hutcheon já sinalizou, em Uma teoria da paródia,
que esse discurso narrativo que se vira para si mesmo foi uma tendência dominante da arte
moderna, multiplicando as imagens especulares no interior de relatos nos quais se observa
uma profunda autoconsciência narrativa (Cf. HUTCHEON, 1989).
A obra, a partir da descontinuidade de espaços e histórias, promove uma reflexão
sobre a aparente incomunicabilidade da narração fragmentada e sobre a condição estanque das
“ilhas urbanas”. Isso faz com que os fragmentos textuais se identifiquem aos fragmentos da
cidade, surgindo uma espécie de arquipélago de ilhas narrativas, dentre as quais se
destacariam as que de algum modo se vinculam à Villa 31 criada por Ariel Magnus.
Assumidamente inspirado em obras cinematográficas, Ruffato privilegia a ideia de
montagem e remete o leitor a uma situação em que este deve lançar mão da edição de imagens
e cenas soltas para tentar construir alguma unidade imperfeita de relato e de cidade:
Eles eram muitos cavalos é uma proposta de reflexão sobre o meu tempo. Nele tento recriar
um dia na megalópole: uma visada panorâmica pela cidade, cujos atores, embora
reconhecíveis, são apresentados como fantasmagoria em capítulos estanques. A
deterioração das relações sociais emerge na precariedade formal do livro, que avança sem
avançar, que tartamudeia em espasmos, numa espiral de solidão, abandono e denegação,
ruínas, forma e conteúdo, apenas ruínas... (RUFFATO, 2008, p. 322. Grifo nosso.)
Inserindo-se numa linha de escritores contemporâneos que encaram a fragmentação
como parte de um projeto estético, Magnus faz também, de maneira bastante engenhosa,
experimentações estéticas que se assemelham à montagem de cinema, utilizando cenas soltas
nas quais o leitor, em dado momento, terá contato com uma continuação do que foi narrado –
embora alguns relatos ou personagens não apareçam novamente ao longo de toda a obra –,
construindo assim, uma precária unidade dos relatos a partir da trama formada pela trajetória
dos personagens.
Se considerarmos as informações presentes no “Índice”, concluiremos que o livro se
divide em 31 blocos que, por sua vez, são integrados por de um a quatro fragmentos. Cada
fragmento traz um pedaço de narrações incompletas, partes mínimas da vida de uma
pluralidade de sujeitos que, poucas vezes, têm uma ligação direta entre si. A reunião dos
fragmentos não resulta nunca em um relato ordenado e completo dos fatos. O romance, como
a própria Villa 31, está composto por segmentos que não chegam a formar um todo: são
26
apenas pedaços de histórias, como a do sobrevivente da crise de 2001 que abre uma
imobiliária na favela, a do catador de papel que acredita ter encontrado um projeto para
remoção da villa, a do travesti que resolve fazer ponto numa rua próxima e tantas outras.
Mais que uma solução narrativa que reflete a descontinuidade dos espaços da cidade e
da favela, a fragmentação é a própria condição de qualquer relato, como, por exemplo, o
relato de um crime. Isso é o que podemos concluir da fala do narrador de outro romance de
Ariel intitulado Doble crimen: “la reconstrucción de una vasija o de un manuscrito es lo
mismo que la reconstrucción de un crimen, son más los pedazos que se inventan que los
pedazos que se juntan y el todo termina diciendo menos que sus partes” (MAGNUS, 2010, p.
84).
Como peças parcialmente dispersas de um quebra-cabeça incompleto, vão
acumulando-se os componentes dessa obra de resumo impossível. Pode-se conjecturar que o
conjunto de relatos que compõem o “romance precário” pressupõe um leitor participativo que
se disponha a montar alguma trama ou tecido possível enquanto desfruta de uma atmosfera
que o convida ao humor como forma de deslocamento do olhar e à viagem de quem se
disponha a perder-se: perder-se no romance, na villa e na cidade.
Esta literatura, pensada por Ariel Magnus, que se vincula a algum território particular
da cidade para falar de seres abandonados e à deriva, como se pode constatar em suas obras
La 31 e A Luján, por exemplo, ou cujas identidades foram esfaceladas e se tornaram quase
indefinidas (La cuadratura de la redondez, Cazaviejas) responde a uma experiência e a uma
sensibilidade compartilhada por um conjunto de artistas que assumiram o desafio de
representar o contemporâneo. Em La 31, de modo particular, temos seres desterritorializados
que, apesar de tudo, não perderam a relação com seu espaço.
Por outro lado, romances como La 31, A Luján ou La cuadratura de la redondez
trazem à tona as tensões da narrativa recente com a forma de figurar os personagens e com a
maneira de construir a sequência das ações no romance tradicional. Essas obras não
apresentam mais uma unidade ou uniformidade de ação que permita associá-las ao gênero
romance, ficando os frouxos vínculos entre os personagens e as histórias a cargo do espaço ou
do território simbólico (no caso de La cuadratura de la redondez, as letras de Los Redondos).
A marca unitária do romance é desconstruída pela dispersão de formas diversas e
despedaçadas.
Essa estética que poderíamos caracterizar como pós-moderna tem como pilar a
indefinição de gêneros e a tradução em uma dimensão formal de aspectos relativos à
fragmentação sócio-espacial e ao descentramento do sujeito. Já não é possível pensar a cidade
27
como uma unidade sem que se perceba que essa pretensa totalidade está estruturada a partir de
fragmentos de territórios por onde o sujeito circula e a partir de textos que os representam e
dão realidade, permitindo que o sujeito entre em contato com esses lugares ainda que não os
frequente nunca.
A discussão sobre a crise da identidade na cultura pós-moderna insere-se com absoluta
pertinência na leitura da obra que Ariel Magnus vem construindo ao longo da última década.
A opção por narrar a partir dos fragmentos textuais dialoga com as questões propostas por
Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade (2005), obra na qual analisa a
mudança ocorrida no conceito de identidade ao longo da história. Para introduzir a discussão
acerca do que seria a identidade pós-moderna, o sociólogo traça o percurso histórico que
passa antes pelo perfil do sujeito iluminista e do sujeito sociológico.
Hall inicia sua obra descrevendo a concepção de sujeito iluminista, que estava baseada
na ideia do indivíduo “centrado, unificado” e dotado de razão (2011, p. 10). O centro
fundamental desse indivíduo era ele mesmo e isso derivava em uma concepção bastante
individualista da existência. Com a mudança nas sociedades modernas, a mentalidade também
se modificou. Surge, consequentemente, a ideia do sujeito sociológico, que já não se
caracteriza pelo sujeito autônomo e autossuficiente, mas sim pelo homem formado na relação
com outras pessoas, no diálogo com o “exterior”.
Embora as duas sejam concepções distintas do indivíduo atualizadas em momentos
diferentes, ambas sinalizam a busca por identidades fixas e estáveis. Hall argumenta que, no
momento que corresponderia ao que Jameson chama de “capitalismo tardio”, as formas
construídas de identidade estão fragmentadas, sendo, na prática, compostas de várias outras
identidades. Esse processo de fragmentação do indivíduo é o que produzirá o sujeito pósmoderno e que colocará em crise a ideia de identidade nacional forjada na modernidade.
O fenômeno da globalização é, segundo Stuart Hall, um ponto fundamental para
compreender a ideia de “deslocamento” de identidades, uma vez que possibilita ao indivíduo
reforçar outras relações de lealdade cultural para além daquela que se estabelecia, antes de
modo exclusivo, com a cultura nacional. Ganham força, nesse âmbito, as identidades locais e
grupais, como as das diferentes tribos urbanas. Esse movimento ocorre na medida em que,
com a globalização, as culturas nacionais recebem profundas influências externas, diminuindo
sua força de conservação. Hall detalha o modo como se configura o sujeito pós-moderno a
partir desse “deslocamento” de identidades:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas
28
vezes contraditórias ou não resolvidas. (...) Esse processo produz o sujeito pós-moderno,
conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A
identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais
que nos rodeiam. (HALL, 2011, p. 12-13)
Essa discussão proposta por Hall acerca da concepção do sujeito fragmentado da pósmodernidade é de suma importância para compreender a estrutura narrativa escolhida por
Ariel Magnus para tratar de um território também resultante de um processo de fragmentação,
sendo, nesse caso, a fragmentação socioespacial.
Ponderando a discussão proposta por Hall no âmbito das realidades das megalópoles
latino-americanas, essa concepção de fragmentação do homem pós-moderno pode ser
apreciada por meio da obra Culturas híbridas, de Néstor García Canclini. O antropólogo
argentino vale-se da ideia de “hibridação cultural” – ideia essa que nega o caráter absoluto da
concepção de identidades “puras” – para pensar um processo verificado durante a decadência
dos projetos nacionais de modernização na América Latina.
Para Canclini, não somente o processo de globalização – em uma esfera social mais
ampla – explicaria a origem da hibridação e, por conseguinte, da fragmentação do sujeito, mas
o próprio processo de expansão urbana ocorrido na capital argentina. Durante o processo de
expansão no início do século XX, ocorreu a formação de bairros populares em Buenos Aires,
resultando em uma mobilização social profundamente fragmentada em suas demandas e nas
experiências vivenciadas pelos moradores:
Os estudos sobre a formação de bairros populares em Buenos Aires, na primeira metade do
século, registraram que as estruturas microssociais da urbanidade – o clube, o café, a
associação de vizinhos, a biblioteca, o comitê político – organizavam a identidade dos
migrantes e dos criollos, interligando a vida imediata com as transformações globais que
buscavam na sociedade e no Estado. (GARCÍA CANCLINI, 2013, p. 286-287)
A estética narrativa adotada por Magnus pode ser vista como uma estrutura que
apresenta a mesma fragmentação do sujeito pós-moderno em sua existência social marcada
por práticas e dinâmicas espaciais de mobilidade e deslocamento, dentro e fora da urbe. É a
condição de descontinuidade que também afeta a cidade e, no limite, a própria villa. A obra
não é construída de forma linear tradicional. Ao contrário: assemelha-se à própria estrutura da
villa 31 – a real e a da narrativa de Magnus –, com suas moradias visivelmente inacabadas e
com seus corredores e becos labirínticos.
A ideia de precariedade da narrativa não deve ser vista desde uma perspectiva de
valor. Na verdade, é apenas o resultado de uma opção estética do autor, que adota uma escrita
que corresponde ao lócus narrativo. Como informado anteriormente, a obra divide-se em
29
trinta e dois capítulos, com as mais variadas estruturas e gêneros textuais – dois deles
exemplificados no início deste capítulo –, que podem se desdobrar em até quatro fragmentos,
como uma forma de continuação de uma mesma história, totalizando 62 fragmentos. Ariel,
em uma entrevista que nos concedeu em agosto de 2015, sublinhava o papel da estrutura em
sua obra:
Cada libro tiene una estructura distinta. Es una especie de negociación entre lo que yo
quiero hacer y lo que después termina pidiendo el libro. La 31 yo quería hacer 31 historias
que nunca se cruzaran y percibo que no se sostenían y empiezan a imbricar un poquito. Si
no, no se sostiene. Es una negociación, un regateo. Hay una estructura matemática. Pero,
incluso ese orden se rompe. (A. Magnus, entrevista pessoal, 29 de agosto de 2015)
O romance La 31 é composto, portanto, a partir de episódios fragmentários e armada
sem muita preocupação com a construção de uma trama global, embora alguns fragmentos se
reúnam sob um mesmo título em blocos de dois ou três. Aparecem, contudo, dispersos ao
longo do livro, mantendo, apesar disso, a sequência cronológica dos acontecimentos. Isso
obriga o leitor a estar atento a todo instante para retomar o ponto em que ficaram os fatos no
fragmento anterior. O que parece conduzir esse desenho como verdadeiros fios que
possibilitam alguns nós necessários à construção de uma trama são os personagens. A
articulação entre as diferentes histórias é construída a partir do movimento dos personagens
pelo corpo da cidade, dando coesão a um conjunto de pequenas trajetórias que, em um
primeiro momento, pareciam isoladas. Soltas e desarticuladas, aparecem as histórias de
Agustina, a colaboradora da ONG que se perde na Villa e o episódio do Dr. Aldo, cuja
empregada joga no lixo um roteiro de filme de propaganda. Temos ainda o diálogo dos
“violadores recolectos”, a visita dos turistas no fragmento “Villa tour” e a história do catador
de papel. À medida que esses personagens se deslocam pela cidade, o leitor percebe que todas
essas histórias vão se cruzando, embora nunca se chegue a uma história maior que as
congregue e dê um sentido unívoco.
A interação entre os fragmentos de histórias e os fragmentos da cidade demonstram,
por um lado, a impossibilidade das identidades fixas, e, por outro, os limites de um modelo de
romance que entrou em crise. Este projeto concretiza-se nos deslocamentos constantes dos
sujeitos entre as ilhas que integram a cidade. O catador de papelão sai da villa do Retiro e
circula pelo bairro da Recoleta; a moradora da Recoleta vai visitar a ONG na villa 31; “la
chica que limpia” trabalha em um bairro abastado, enquanto o cabo Martínez é lotado no
posto policial que existe no interior da favela. São os personagens que têm o papel de ligar os
diferentes lugares da capital portenha.
30
O mesmo sucede com os personagem Juan Manuel Baigorria e Cirilo Sánchez, de A
Luján (una novela peregrina), de 2013. O primeiro tem seu tênis roubado pelo segundo em
um momento que antecede à peregrinação religiosa. Baigorria lastima ter que pagar sua
promessa com um par de tênis novos, enquanto não muito longe dali Sánchez caminha com os
tênis roubados. O que une as duas histórias não é o encontro anterior na condição de vítima e
criminoso, mas o fato de compartilharem o território: ambos percorrem a mesma rota de
peregrinação sem ao menos encontrar-se. O que dá sentido à trama é o deslocamento dos
personagens que se cruzam em um dado território, mas que não necessariamente mantêm
qualquer tipo de relação. É um movimento que se dá entre um sem número de personagens,
sendo priorizado como fundamental na narrativa esse território de deslocamento.
Cirilo Sanchéz camina a Luján con zapatillas robadas y Juan Manuel Baigorria camina con
las nuevas zapatillas que se compró luego de que Cirilo le robara las suyas, en cambio
Eustaquio Comodoro Álvez marcha descalzo y Herminio Piccio marcha doblemente
calzado, en los pies unas 43 y en el cinto un 38, Eustaquio dice que si lo dejaran
peregrinaría desnudo para presentarse a la Virgen tal como vino al mundo (…).
(MAGNUS, 2013, p. 13)
Não encontramos, portanto, na narrativa de Magnus, nenhuma visão totalizante de
mundo; ao contrário, em cada fragmento temos apenas um pequeno pedaço de mundo. Em La
31 (una novela precaria), o autor aborda sempre um aspecto da realidade a partir de um
recorte de tempo muito pontual que oferece ao leitor situações enxergadas de um ponto de
vista bastante circunscrito no tempo e no espaço. Em lugar de um “escritor-Deus”6 onipotente
e onisciente, temos um narrador precário que não conta com os requisitos básicos para montar
a trama total que envolveria a trajetória das personagens. O narrador onisciente e onipotente
que emerge no microcosmo das narrativas romanescas mais tradicionais é substituído por um
“eu” narrador “incompetente”, que domina apenas um recorte muito restrito da realidade e
não tem controle sobre a vida dos personagens. O narrador nunca domina os fatos, nunca sabe
completamente, conseguindo, no máximo, iluminar um momento específico na vida desses
sujeitos, situando-os no tempo e no espaço. Cada fragmento narrativo oferecido por esse
narrador é uma espécie de flash que ilumina o recorte particular da realidade do qual emerge o
personagem, ou seja, ilumina apenas um único momento quase sempre desarticulado de um
“antes” e de um “depois”, e também dos outros fragmentos.
“Escritor-Deus” é como refere-se Severo Sarduy a esse narrador que tudo vê e tudo sabe no âmbito da história
narrada. Em De dónde son los cantantes, as personagens Auxilio e Socorro interrompem o narrador com a
seguinte observação: “!Vaya! Lo único que faltaba: !el escritor Dios, el que lo ve todo y lo sabe todo antes que
nadie, el que da consejos y mete la nariz en todas partes menos donde debe!” (SARDUY, 1997, p. 114)
6
31
A estrutura desta obra articula-se com a concepção desse narrador, e ambas são
análogas à estrutura precária do território narrado. Também dialogam com a reconfiguração
da cidade em sua estrutura contemporânea: uma cidade marcada pela fragmentação
socioespacial. Josefina Ludmer, em sua obra Aquí América Latina (2010), argumenta que a
produção do campo literário no momento presente acaba por caracterizar-se pelo que ela
denomina “literatura pós-autônoma”. Essa forma do fazer literário estaria baseada em uma
escrita de territórios do presente e se constrói a partir de narrativas do cotidiano, cruzando a
fronteira do que se convencionou chamar “literatura”. A discussão proposta por Ludmer ajuda
a elucidar essas novas estruturas textuais encontradas em textos de Ariel Magnus e de outros
escritores, como Luiz Ruffato, citado anteriormente. Segundo a pesquisadora,
estas escrituras diaspóricas no solo atraviesan la frontera de “la literatura” sino también la
de “la ficción”, y quedan afuera-adentro en las fronteras. Y esto ocurre porque reformulan
la categoría de realidad: no se las puede leer como mero realismo, en relaciones
referenciales o verosimilizantes. Toman la forma del testimonio, la autobiografía, el
reportaje periodístico, la crónica, el diario íntimo, y hasta de la etnografía (muchas veces
con algún “género literario” injertado en su interior: policial o ciencia ficción, por ejemplo).
(…) Fabrican presente con la realidad cotidiana y esa es una de sus políticas. (LUDMER,
2010, p. 151)
De acordo com Ludmer, essa forma de narrar já não distingue a realidade da ficção e
estaria baseada na narração do presente de uma sociedade que não se estrutura mais de
maneira uniforme, da mesma maneira que não se apresenta mais uma polarização entre o
campo e a cidade. A narrativa de Magnus constrói-se em um dos territórios do presente em
que os sujeitos se “desdiferencian” (LUDMER, 2010), ou seja, têm anulada, de algum modo,
a divisão social que a cidade – externa à ilha – lhes impõe. É o que Josefina Ludmer
denomina, na obra citada, “islas urbanas”. Para Ludmer,
la isla urbana es una construcción precisa: un adentroafuera verbal y narrativo, y no
solamente social y humano. La subjetividad central aparece, desde el punto de vista social,
como interna-externa a ella misma, que repite perpetuamente el mecanismo de la isla. (...
En el interior de la literatura ligan, entre otras, las formas de narrar – de la tv, del
periodismo del documentalismo y del melodrama. Y son una de las formas narrativas
dominantes de los años 2000). (LUDMER, 2010, p. 134)
Se durante muito tempo a literatura argentina deu atenção a temas relacionados à
dicotomia urbano / rural – romances pertencentes ao boom latino-americano são exemplos
dessa afirmativa –, o que se vê nas obras produzidas recentemente são narrativas de territórios
fragmentados dessa nação em oposição a um projeto de identidade que perde sua relevância.
O que há, posteriormente ao enfraquecimento desse projeto, é o agrupamento em “ilhas
32
urbanas” de sujeitos que fazem parte de uma comunidade que se reconhece por semelhanças e
estratégias afetivas englobadoras de todas as categorias sociais.
A partir dessa realidade social, aparecem obras que propõem novas representações dos
vários territórios que compõem a cidade, entre eles os territórios da alteridade, como a villa
31. Ludmer define essas representações territoriais da seguinte forma:
Desde una posición afuera-adentro (de la ciudad, de la clase social, de la familia o de la
nación), la narración delimita la topología exacta del territorio y su régimen de
significación, y pone en escena los sujetos de la isla urbana. (…) Si la isla urbana en
América Latina es la ficción de un territorio que se puede desterritorializar, abandonar y
destruir, la literatura ya no es una manifestación de identidad nacional. Se trata de una
forma de territorialización que es el sitio y el escenario de otras subjetividades o
identidades y de otras políticas. (LUDMER, 2010, p. 135)
A obra de Magnus afina-se a essa ideia de “escritura diaspórica” e lança mão de
estruturas textuais diversificadas, tal qual argumenta Ludmer. No entanto, o autor, durante
uma entrevista conosco em Buenos Aires, garante que a eleição de gêneros textuais distintos
não é algo pensado previamente ao projeto da obra. O gênero textual fábula (estrutura
utilizada no relato intitulado “Fábulas de favela”), por exemplo, passa a compor a obra em
consequência da visita de Magnus à Villa 31 real (já depois de iniciada a escritura do livro),
partindo da percepção do autor de um número alto de animais nesse território, além da sujeira
que ele encontrou nesse território. Em “Fábulas de favela” lê- se:
Cuando alguien está muy contento se dice que está como un perro de dos colas, pero lo
cierto es que el perro Pedro tenía dos colas y no sabía cuál atender y más que contento
parecía bastante enculado. Cada vez que quería perseguirse a sí mismo (su juego preferido)
no sabía si girar para la derecha o girar para la izquierda. Como buen perro lleno de peros a
veces giraba hacia la izquierda y a veces hacia a la derecha, o a veces hacia la izquierda y
enseguida hacia la derecha (…)
Hasta que un día vino la culebra Eva, que trabajaba de puntera a dos puntas en las
manzanas 2 y 3, y le propuso afiliarse al Partido.
–¿Qué Partido?– le preguntó inocentemente el perro Pedro.
-El Partido partido – contestó la culebra Eva-. Parte hacia la izquierda y parte hacia la
derecha.
–¿Y adónde llega?
–No llega. Va y viene y va y viene.
Convencido así de las ventajas de poder girar hacia cualquier lado sin contradecirse (o de
contradecirse sin que eso fuera considerado un giro, ni aun una desventaja) Pedro se afilió.
Desde ese día es un perro peronista y está contento como hombre que no tiene que hacer la
cola. (MAGNUS, 2012, p. 117-118)
O recurso ao pastiche novamente é utilizado por Magnus ao lançar mão da estrutura
textual da fábula, mas sem que haja um caráter moralizador ou pedagógico no final da
narrativa. Em lugar de uma postura moralizante, o autor aproveita o gênero em questão para
elaborar uma espécie de metáfora social e política, recorrendo à ironia como recurso que
desconcerta e desloca o leitor de um lugar de conforto.
33
Em alguns desses territórios em que se agrupam outras subjetividades e identidades
estão os novos excluídos da sociedade argentina; são assim definidos porque muitos aparecem
como resultado da crise ocorrida no país em 2001. Beatriz Sarlo, no processo de escrita de sua
obra La ciudad vista, de 2009, cruza os diferentes territórios da cidade de Buenos Aires com
um olhar de pesquisadora e leitora do real para relatar a forma como está estruturada a capital,
produzida e reproduzida em espaços de consumo, espaços de moradia abastada, enclaves
periféricos e discursos que narram a experiência social na imprensa, no cinema ou na
literatura.
Sarlo, em um dos capítulos da obra, analisa a construção precária das moradias
localizadas nas villas argentinas, o que, de alguma forma, nos remete de volta à concepção de
narrativa dominante na obra de Magnus. Segundo Sarlo,
Lo precario es efecto de su carácter inconcluso, pero no de una inconclusión que mañana
dejará de serlo, sino de una inconclusión definitiva. Así impresionan todas las
construcciones precarias, en chapa, madera, cartón, plástico. (…) recuerdo una frase “las
casas de los pobres siempre están construyéndose” (palabras de un militante político para
explicar su ausencia en las movilizaciones). Es cierto: no hay final de obra, aunque después
de techar se haga un asado, se plante una antena o un trapo rojo de la buena suerte en la
cruz del techo. (SARLO, 2009, p. 73. Grifo nosso.)
A constatação do caráter inconclusivo e precário das moradias é, ao longo de muitas
histórias da obra de Magnus, retomado, seja como uma simples corroboração dessa realidade,
seja como forma de criticá-la por meio da representação literária. Para ilustrar o diálogo desse
aspecto da obra de Magnus com a afirmação de Sarlo, escolhemos uma parte do relato
número 9 intitulado “Teorías y análisis de la villa: La differance de la mismidad”, no qual o
narrador precário descreve hábitos semelhantes observados entre pobres e ricos, mas
sublinhando, de forma crítica, que a classe social diferencia a forma como são adquiridos
esses hábitos bem como o sentido que se dá ao uso dos materiais de construção:
Ciertamente, los ladrillos que se dejan a la vista en las casas de mal gusto son un tipo
diferente a los que en la villa quedan expuestos por falta de material, pero eso no quita que
la equivalencia sirva para subrayar una paradoja muy documentada entre ricos y pobres, a
saber, que el rico muchas veces elige por capricho lo mismo o casi lo mismo que el pobre
padece por falta de recursos. (MAGNUS, 2012, p. 26)
A observação feita pelo narrador comprova a ideia de que o indivíduo desse território
marginalizado não tem o necessário para sua sobrevivência e reside no território – ou “ilha
urbana” – renegado como espaço de moradia pelas classes médias e altas da cidade, ou dito de
outra forma, na parte da cidade que não serve para habitação do cidadão portenho.
34
Na obra Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Helio Oiticica,
Paola Berenstein Jacques investiga o território periférico e a forma como esse se estrutura. O
livro objetiva ser uma obra de arquitetura, apesar de se constituir em uma discussão acerca da
forma como as favelas no Rio de Janeiro se constroem sob uma ótica peculiar e não planejada,
confrontando as estruturas formais das construções estudadas nas faculdades de arquitetura.
Paola Jacques define, portanto, as favelas como produto de uma “não arquitetura” (2011, p.
15).
Conquanto a discussão na obra de Paola Jacques esteja diretamente relacionada a uma
favela carioca, os argumentos e teorias expostos pela autora podem ser base para pensar
outras favelas latino-americanas por suas semelhanças em muitos aspectos, incluindo sua
estrutura de construção fragmentária e dinâmica – em permanente transformação –, bem como
a classe social a qual pertencem seus habitantes, que Jacques denomina “arquitetos-favelados”
(p. 28), em um claro diálogo com posições como as defendidas por Beatriz Sarlo em La
ciudad vista.
Com base na discussão acerca da construção das moradias no território mencionado, a
professora de Arquitetura analisa a ideia de fragmento pensando a sociedade contemporânea,
embora não se limite a uma análise puramente sociológica. A autora discute a lógica do
fragmento que pode ser pensado como algo independente, incompleto, ocasional e que,
normalmente, não se une a nada com a pretensão de tornar-se uma unidade:
O acaso é parte integrante da ideia de bricolagem; é o incidente, ou seja, o pequeno
acontecimento imprevisto, o “microevento”, que está na origem do movimento. Bricolar é,
então, ricochetear, enviesar, ziguezaguear, contornar. O bricoleur, ao contrário do homem
das artes (no caso, o arquiteto), jamais vai diretamente a um objetivo ou em uma direção à
totalidade: ele age segundo uma prática fragmentária, dando voltas e contornos, numa
atividade não planificada e empírica. A construção com pedaços de todas proveniências, a
bricolagem, será, portanto, uma arquitetura do acaso, do lance de dados, uma arquitetura
sem projeto. (JACQUES, 2011, p. 28)
Se por um lado a concepção de não completude e independência do fragmento se
adéqua à ideia proposta por Ariel Magnus na estrutura narrativa de La 31, por outro lado, a
vertente que argumenta de forma absolutamente contrária à noção de unidade não
corresponde ao projeto da obra.
La 31 (una novela precaria) estrutura-se em narrativas curtas – ou fragmentos do
cotidiano da villa –, constituída como um “caleidoscópio narrativo” no qual se leem
combinações diversas de histórias fragmentadas, sinalizando um dos objetivos da obra de
representar a nova sociedade. Ariel assume, sem reservas, o vínculo entre forma do romance e
território. De acordo com ele, a opção pela estrutura fragmentária é previa à sua visita ao
35
território, mas, ao ir à Villa 31, constata a precariedade e o caos, que, de algum modo,
estavam já no germe original do romance, o qual vem de um diálogo intertextual com La
colmena, obra do escritor espanhol Camilo José Cela7. A ideia original de Magnus parece que
estava centrada na pluralidade de discursos, na confusão de vozes da colmeia – tal qual a obra
de Camilo José Cela, com seus inúmeros personagens sem destaque para um protagonista –, o
que de certa forma é ratificado pela articulação entre estrutura descontínua e território que
surge como produto da fragmentação socioespacial.
La estructura fragmentada es algo previo al territorio. Igual el territorio me lo confirmó. La
idea es reproducir en la estructura del libro el caos de una villa, aprovechando que se llama
31 (…). El modelo previo que tenía es La colmena, de [Camilo José] Cela, que es un libro
que no me gustó. Pero yo quería reproducir ese bullicio de gente. Luego, juego con el
número treinta y uno. Son treinta y una historias, treinta y un close-ups. Porque no vas a
hacer una cosa ordenada; había que ser una cosa precaria como la villa misma. Así que es
previo. Yo empecé a escribir antes de ir. Después conseguí ir. (A. Magnus, entrevista
pessoal, 29 de agosto de 2015)
Interessa-nos pensar, a partir de sua fala na entrevista, que a estrutura proposta por
Magnus é a dessa não-linearidade de que nos fala Jacques. A anulação do “antes” e do
“depois” ocorre por não haver, nos fragmentos arquitetados na obra, uma estrutura de
narrativa tradicional em que se possa ler uma história baseada no início, no desenvolvimento
da trama, no clímax e no desenlace esperado pelo leitor comum. Na verdade, o narrador
precário construído por Magnus coloca esse leitor na condição de sujeito que terá de montar a
narrativa a partir dos fragmentos oferecidos, tal qual o leitor de Rayuela, de Julio Cortázar,
obra na qual já aparece a tensão com a forma do relato romanesco tradicional que talvez tenha
sido explorada mais radicalmente na narrativa cinematográfica. O leitor da obra de Magnus
acaba por atuar tal qual um expectador do cinema contemporâneo: precisa montar a narrativa
proposta a partir dos fragmentos que lhes são apresentados para formar um arquipélago de
sentidos, pois esses blocos descontínuos podem ser considerados “ilhas narrativas”.
Cada “ilha narrativa” de Ariel possui autonomia em relação aos demais fragmentos –
embora alguns deles tenham continuidade –, mostrando que o território produzido pelo autor
não é único, isto é, não pode ser lido como um território uniforme e totalizante, mas sim um
território polifacético que tem em sua base múltiplos outros territórios.
7
O escritor e acadêmico Camilo José Cela Trulock nasceu em Iria Flavia, A Coruña, em 11 de maio de 1916 e
faleceu em Madrid, em 17 de janeiro de 2002. Escreveu grandes obras, como La familia de Pascual Duarte, de
1941 e La colmena, publicada em 1951 em Buenos Aires e proibida na Espanha. Entre os prêmios recebidos por
sua obra estão o Prêmio Nobel de Literatura, em 1989, e o Príncipe de Asturias de las Letras, em 1987.
(http://www.cervantes.es/bibliotecas_documentacion_espanol/biografias/tel_aviv_camilo_jose_cela.htm).
36
Percebemos, a partir dessa discussão, que o projeto de La 31 dialoga diretamente com
algumas outras obras, como a de Luiz Ruffato. Catia Valério Ferreira Barbosa, em um texto
no qual analisa Eles eram muitos cavalos, comenta como se dá essa estrutura narrativa na
obra de Ruffato:
Em termos objetivos, em Eles eram muitos cavalos, algumas formas de gênero narrativo
(conto, romance) encontram-se tão diluídas que o autor chega a propor uma nova
classificação para sua escrita: o romance-mosaico. Sob esse rótulo, estariam justamente
aqueles textos que, para alguns integrariam um conjunto de contos intensamente
relacionados por um tópico narrativo; mas, para outros, corresponderiam apenas a partes de
um romance fortemente fragmentado. (BARBOSA, 2013, p. 152)
A ideia de “romance-mosaico” proposta por Ruffato para definir seu livro poderia ser
facilmente utilizada para classificar a obra de Magnus. Usando o fragmento como estratégia
discursiva dominante, em sua enunciação aos pedaços, Ariel evidencia a impossibilidade de
narrar a partir da experiência de percorrer, explorar e viver em uma “cidade poliédrica”
(CRUCES, 2012, p. 100). Em seu ensaio “Hacia Cosmópolis”, Francisco Cruces conclui que
“ahora la ciudad es como un videoclip: montaje de imágenes discontinúas” (2012, p. 100), tal
qual a linguagem cinematográfica.
A característica principal da narrativa cinematográfica de Alejandro González Iñárritu,
baseada na fragmentação de histórias iniciada com o filme mexicano Amores perros, de 2000
– que o lançaria como diretor de grandes produções do cinema norte-americano – irá dialogar
com diferentes obras do projeto romanesco de Ariel Magnus nas quais emergem espaços e
sujeitos fragmentados, desmanchados, como se pode constatar na obra El hombre sentado, de
2010. Posteriormente, em produção similar ao filme citado, Iñárritu, obtém com Babel, de
2006, grande êxito de público e crítica.
Assim como La 31(una novela precaria), El hombre sentado integra um corpus que
entra em conflito com a noção de história ou trama em um sentido mais tradicional da
estrutura narrativa, e que só poderia ser recuperada “precariamente” a partir do diálogo entre
os fragmentos. Constituído a partir do filme “Canciones del segundo piso” (2000), do cineasta
sueco Roy Andersson, nesse “romance” Magnus elabora uma obra composta de microrrelatos
conectados frouxamente entre si. Todos são passados em Estocolmo e assinalam aspectos
morais de uma galeria de personagens constituída por homens desiludidos e corrompidos. A
obra de Magnus não apenas se constrói a partir de uma obra cinematográfica, como apresenta
uma estrutura muito semelhante a de alguns filmes contemporâneos, como os de Iñárritu
citados anteriormente.
37
Na construção de um projeto de narrativa romanesca que se desenvolve com a
publicação de distintos títulos, há uma necessidade de Ariel Magnus de ancorar a narrativa em
um espaço concreto. O autor admite essa característica de seu projeto que aparece em La 31
(una novela precaria), A Luján (una novela peregrina), de 2013, e Chester im Paradies, de
2011. Ariel, novamente durante a entrevista que nos concedeu, fala de seu objetivo de
trabalhar com os espaços, citando algumas de suas obras como exemplo:
La villa semeja también con lo que viene en Un chino en bicicleta, que es trabajar con un
lugar. Esto aparece también en Sandra, que ocurre en barrio de Once. A mí me gusta
trabajar en lugares. Delimito un lugar y trabajo ahí. Y cada libro te pide como escribirlo. La
peregrinación puede ser un lugar. (A. Magnus, entrevista pessoal, 29 de agosto de 2015)
Em Chester im Paradies, escrito em alemão, o autor situa toda a ação em um parque
temático tropical construído em um velho hangar para dirigíveis nas cercanias de Berlim.
Piscinas de água quente, uma pequena selva com árvores trazidas de longe e imitações de
templo constituem o cenário fake dessa atração turística.
Em A Luján (una novela peregrina), o espaço no qual ocorre a narrativa também é de
suma importância posto que é do trajeto da peregrinação religiosa que emergem os
personagens com os quais o leitor entra em contato, além de observar a pluralidade de
pequenas tramas das quais se conhece apenas o fragmento que se relaciona diretamente com o
espaço, na medida em que remetem ao pagamento de promessas ou ao pedido de graças. Cada
capítulo traz de volta momentos do passado de personagens que caminham para Luján.
A mescla insistente de estruturas textuais diversas e de fragmentos narrativos que se
“embaralham” é marcante na obra de Magnus. Outra estratégia da qual lança mão o autor em
alguns de seus romances é o uso simultâneo do espanhol e de português, passando de uma
língua para a outra, em um jogo que lembra a dissolução dos limites entre os idiomas que se
amalgamam presente na obra cinematográfica Blade Runner (1982), de Ridley Scott:
Hay quien empezó desde antes y ni se detiene a esperar que aparezca la Virgen, detenerse
no es recomendable por entumece los músculos, contra el entumecimiento nada mejor que
jugo de naranjas recién exprimidas y bananas no demasiado maduras, si no hay naranjas
entonces pomelos o en última instancia limón, en cierto sentido la Virgen é brasileira
porque está feita de terracota da Paraíba, boa cachaça e melhores meninas, el licenciado
Romualdo Lucio Sozinho quiere saber es cómo se las arregla la Virgen de Luján para atraer
tanta gente, en el fondo le duele que la marcha no sea en Brasil, o país mais religioso do
mundo, hace semanas que la gente se viene anotando en las parroquias de sus barrios para
marchar a Luján (…). (MAGNUS, 2013, p. 11. Grifo nosso.)
Como em outros livros, Magnus convoca seu leitor a participar ativamente da
narrativa, dialogando com este em certos momentos da obra, como no fragmento citado, ao
38
dar conselhos de como resolver problemas físicos no decorrer da peregrinação. Além disso,
recorre com frequência ao jogo de palavras, explorando esse potencial poético da linguagem
como um disparador para certos momentos da narrativa. Os jogos com a linguagem e a ironia
são estratégias que reaparecem em várias de suas obras e chegam a ocupar um lugar central,
como em La 31 (una novela precaria) e em La cuadratura de la redondez: interpretación
anotada de las canciones, demonstrando a intenção do autor de usar a carpintaria dos relatos
como uma espécie de “cancha para jugar con la lengua”, segundo reconhece Magnus na
entrevista já citada.
Em outro momento de A Luján podemos ler:
Amelia Constantina Ludubrich la contadora asesinó a su marido y nadie se enteró, todos los
años Amelia marcha a Luján para pedir a la Virgen que tampoco este año alguien se entere,
tanto tiempo ya pasó por qué no puede pasar un tiempito más reza Amalia (sic) y por hora
la Virgen no le falla, la avenida Rivadavia divide la ciudad en norte y sur, en ella mueren
las calles de un nombre y resucitan con otro, de Virgilio nace Dante y de Homero nace
Cervantes, Piedras se transforma en Esmeralda y Defensa en Reconquista, esto es de
público conocimiento entre los locales pero lo aclaramos para los lectores del interior y aun
del extranjero que nos acompañan en esta marcha de la fe, que no siempre fue así un día de
sol radiante y temperatura moderada, en 1997 por ejemplo llovió desde las dos de la tarde
hasta poco antes de la misa a las siete de la mañana, Dios aprieta pero no ahoga, caminar
produce endorfinas u hormonas de la felicidad, también agiliza la circulación sanguínea y la
actividad craneana (MAGNUS, 2013, p. 13).
No trecho citado, observamos que Magnus formula esta obra com poucos pontos
finais, em uma continuidade de narrativas e informações científicas, históricas e médicas tal
qual a própria caminhada dos peregrinos. A estrutura textual utilizada não é uma novidade em
textos literários, tendo sido utilizada por autores como José Saramago8, por exemplo.
Todavia, no caso de A Luján (una novela peregrina), a narrativa não se propõe a assemelharse à oralidade, como nas narrativas de Saramago, mas a dialogar com o território – ou
territórios por onde passam os peregrinos – que está sendo narrado e produzido a partir do
constante movimento. O autor também fornece informações a respeito da cidade por meio de
exemplos dos nomes das ruas, posicionando uma vez mais seu leitor na condição de sujeito
que precisa ter algum conhecimento de história e literatura para compreender as
8
José Saramago (1922-2010), escritor português, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1998. O escritor é
reconhecido pela técnica de pontuação utilizada em suas obras, aproximando sua narrativa à linguagem oral,
dando-lhe um ritmo semelhante à fala real. Exemplificaremos com um trecho de sua obra O homem duplicado,
de 2002. “Três dias depois, a meio da manhã, o telefone de Tertuliano Máximo Afonso tocou. Não era a mãe por
causa das saudades, não era Maria da Paz por causa do amor, não era o professor de Matemática por causa da
amizade, e também não era o director da escola a querer saber como ia o trabalho. Fala António Claro, foi o que
disseram de lá, Bons dias, Talvez esteja a ligar demasiado cedo, Não se preocupe, já estou levantado e a
trabalhar, Se vim interromper, telefonarei mais tarde, O que estava a fazer pode esperar uma hora, não há perigo
de lhe perder o fio, Indo direto ao assunto, pensei muito seriamente durante estes dias e cheguei à conclusão de
que nos deveríamos encontrar (...). (SARAMAGO, 2002, p. 195.)
39
“brincadeiras” feitas por Magnus, participando ativamente dos jogos de palavras propostos
pelo autor e completando a informação com um conhecimento que vem de fora do texto.
Em outra de suas experiências literárias que nos permite pensar a fundo La 31 (una
novela precaria), Ariel Magnus transita entre o pastiche e a paródia: se em La 31 vimos o
pastiche no claro diálogo com o cânone espanhol, desta vez, a paródia dá-se a partir dos
discursos da academia. Em La cuadratura de la redondez: interpretación anotada de las
canciones de Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota – obra de título incomum publicada em
2013 –, a trama delineada e a construção dos personagens precisam ser desentranhadas do
texto pelo leitor, pois subjazem às análises das letras das canções de Patricio Rey e seus
Redonditos de Ricota9. Nesse livro, Ariel propõe novamente que seu leitor seja agente da
escrita e se aproprie do texto:
Escribí como si fuera un trabajo académico, aunque el marco sigue siendo de ficción.
Quedó un libro raro, difícil de clasificar. Es una sátira y también un homenaje a las letras
del Indio Solari y a la música del grupo, que escuchaba con ardor en la adolescencia y que
sigo escuchando aún hoy. Claro que preferiría saber tocar la guitarra y cantar, pero, como
no es el caso, ésta es mi forma de hacer covers de sus canciones.10
Ariel Magnus, durante uma entrevista concedida a La Nación, explica em que consiste
a obra, aclarando essa quebra de fronteira – à qual se refere Ludmer em Aquí América Latina
– entre as estruturas textuais diversas e entre os textos de ficção e não ficção. O autor escreve
sua obra como se fosse um trabalho acadêmico, mas o resultado final é uma ficção inusitada,
como ele mesmo explica. O livro inicia situando o leitor em relação à história que será
narrada: o amor do professor Átila Schwarzman por sua aluna, contada por outros alunos do
docente, e o papel da ruptura desse relacionamento como motivador de seu estudo das letras
de Patricio Rey y Los Redonditos de Ricota. Contudo, a narrativa está estruturada não no
texto principal, que consiste nas análises da obra do grupo musical feitas pelo professor
Schwarzman, mas nas notas de rodapé da obra, nas quais encontramos a configuração dos
personagens que participam da trama, as histórias paralelas desses personagens, além de
comentários dos alunos acerca do estudo feito pelo professor. Essa estrutura narrativa
utilizada por Magnus pode causar certo estranhamento durante a primeira leitura ao leitor
desavisado.
9
Los Redonditos de Ricota foi uma banda argentina de rock, proveniente da cidade de La Plata e liderada por
Carlos Alberto “Indio” Solari. É considerada uma das bandas mais importantes do rock argentino e uma das mais
influentes do rock em língua espanhola.
10
MAGNUS, Ariel. In: OLMEDO-WEHITT, Luciana. La novela alemana de Ariel Magnus. La Nación / ADN
Cultura. Buenos Aires, 18 de março de 2011. Disponível em: http://www.lanacion.com.ar/1357959-la-novelaalemana-de-ariel-magnus.
40
O autor recorre à produção do grupo musical para realizar uma sátira à análise
acadêmica, feita pelo personagem com suas técnicas e interpretações hiperbólicas, explorando
as notas de rodapé para montar uma narrativa paralela; o que transforma a obra em um
romance incomum, inclusive no aspecto visual. O autor radicaliza na “brincadeira”,
colocando em xeque não apenas a estrutura do romance tradicional – misturando tramas
fragmentadas –, como o próprio desenquadramento de gênero da escritura, configurando mais
uma de suas obras no que Florencia Garramuño chamou de “inespecificidade”. Magnus
incorpora ao procedimento ficcional elementos heterogêneos, derivando em um “textoinstalação” que seria “um texto composto de fragmentos diversos que se incorporam ao
espaço do livro enquanto materialidades heterogêneas” (GARRAMUÑO, 2014, p. 20).
Garramuño aponta essa “inespecificidade” como uma das possibilidades mais importantes das
práticas artísticas contemporâneas. Segundo ela,
Essa aposta no inespecífico seria um modo de elaborar uma linguagem do comum que
propiciasse modos diversos do não pertencimento à especificidade de uma arte em
particular, mas também, e sobretudo, não pertencimento a uma ideia de arte como
específica. (GARRAMUÑO, 2014, p. 16)
A produção de Ariel Magnus explora justamente essa dimensão de trânsito entre
formas e discursos que acaba por abalar a ideia de uma especificidade do literário ou do
romance como gênero. La cuadratura de la redondez é um ótimo exemplo dessa
inespecificidade por apresentar-se como uma obra de crítica musical que traria em cada
capítulo uma proposta de leitura formulada pelo filólogo Átila Schwarzman para uma seleção
de trinta e sete letras compostas Carlos “Indio” Solari para a banda Los Redondos. De fato,
trata-se de uma das experimentações mais radicais da literatura argentina recente, que
incorpora outras formulações discursivas à forma romanesca. A fatura da obra questiona o
pertencimento não só ao gênero romance, mas ao próprio universo da literatura de ficção. A
estrutura dessa obra, que reconfigura a estrutura da narrativa tradicional, dificulta inclusive
sua acomodação nas livrarias de Buenos Aires, como pudemos constatar em caminhadas pelo
mercado livreiro local. É possível encontrá-la tanto nas estantes de Literatura Argentina como
nas seções dedicadas à crítica musical, o que confirma a impossibilidade de caracterizar de
forma fechada e definitiva a obra.
Ariel Magnus explora em suas obras, por meio da diversidade de seus registros e da
estrutura fragmentada, os limites das possibilidades de construir-se uma linguagem que
corresponda à sociedade e à cidade do presente. Insiste, de forma sintomática, em formas
alternativas aos modelos narrativos tradicionais, sem, necessariamente, negá-lo de todo, mas
41
infringindo de modo programático os limites genéricos. David Harvey, em sua obra Condição
pós-moderna, argumenta em favor da busca de uma nova linguagem para narrar o mundo
atual, obtendo, dessa forma, uma narrativa que dialoga com o discurso pós-moderno, visto
que
privilegia a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do
discurso cultural. A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os
discursos universais ou (para usar um termo favorito) “totalizantes” são marcos do
pensamento pós-moderno, algo visualizado em parte dessa produção literária. (HARVEY,
2001, p. 19)
A estratégia de construção do discurso literário fragmentado, como argumenta Harvey,
passaria pela ideia de incompletude, conforme vimos da mesma forma no discurso da
arquiteta Paola B. Jacques mencionado anteriormente. Tal condição assume um lugar central
em La 31 (una novela precaria) com sua escritura transgressora, que se fragmenta e torna
“inespecífico” (GARRAMUÑO, 2014) o discurso romanesco. Pode-se dizer que, em seu caso,
o romance assume a forma do território e representa o contato que o habitante da cidade e da
Villa 31 pode estabelecer com o espaço em suas experiências cotidianas: um conjunto de
peças imperfeitas que quase nunca se encaixam em outras para formar uma figura acabada.
Pode-se afirmar ainda que La 31 (una novela precaria) é um dos grandes exemplos de
uma literatura que transita entre formas sem se decidir por nenhuma delas. Florencia
Garramuño salienta que essa porosidade é marca escritural em obras como Eles eram muitos
cavalos, à qual podemos somar La 31 (una novela precaria):
No interior da linguagem literária, vários tipos de especificidade – nacional, pessoal,
genérica, literária – são dissolvidos num número cada vez mais importante de textos que
exibem uma intensa porosidade de fronteiras. Na literatura mais recente (...) o que estou
chamando de “aposta no inespecífico” pode percorrer lugares heterogêneos e diversos. Eles
eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, compõem-se de fragmentos heterogêneos, tanto no
que diz respeito ao formato quanto aos personagens, que figuram como mosaico de
histórias, sentimentos e afetos. (GARAMUÑO, 2014, p. 16-17)
A porosidade da qual trata Florencia Garramuño dialoga exatamente com essa
dispersão de formas diversas e em pedaços encontradas nas obras de Ariel Magnus, o que
atravessa a fronteira da marca unitária do romance tradicional, compondo-se de um sem
número de possibilidades narrativas. De alguma forma, mesmo sem objetivar um rechaço da
estrutura do romance tradicional, Magnus deixa abalada a estrutura do gênero a cada obra que
lança, inserindo-se no gênero de modo questionador ao elevar as possibilidades de reestruturálo. Para que fique claro ao leitor que suas narrativas se inserem no gênero romance, embora
42
utilize a precariedade como estética narrativa em suas obras, Ariel coloca em pelo menos dois
de seus livros o subtítulo “romance” (“novela”, nos títulos originais).
O “inespecífico” é o que tenta fazer frente às impossibilidades de narrar territórios de
uma cidade que já não se encontra visivelmente construída de forma homogênea. É o diálogo
com o fragmento social e geográfico, bem como com as várias identidades multiplamente
cindidas que circulam por essa cidade, que, esboçando um relato precário, se projeta a
constatação da impossibilidade de narrar de forma única a diversidade dessa “ciudad vista”.
Josefina Ludmer já apontava em Aquí América Latina que
en algunas escrituras del presente que han atravesado la frontera literaria (y que llamamos
posautónomas) puede verse nítidamente el proceso de pérdida de autonomía de la literatura
y las transformaciones que produce. Se terminan formalmente las clasificaciones literarias;
es el fin de las guerras, divisiones y oposiciones tradicionales entre formas nacionales y
cosmopolitas, formas del realismo o de la vanguardia, de la “literatura pura” o la “literatura
social” o comprometida, de la literatura rural y la urbana, y también se termina la
diferenciación literaria entre realidad (histórica) y ficción. No se pueden leer estas
escrituras con o en esos términos; son las dos cosas, oscilan entre las dos o las
desdiferencian. (LUDMER, 2010, p. 153-154)
Ariel Magnus transita, portanto, nessa fronteira literária descrita por Josefina Ludmer,
visto que a forma do romance em sua estrutura narrativa totalizadora já não cabe na proposta
literária de Magnus.
“As villas miseria são o território do medo”, dirão alguns. “É o espaço da pobreza”,
dirão outros. Magnus acredita que a villa miseria pode ser um território plural e, assim sendo,
não é possível narrá-lo sob um ou outro aspecto estanque ou a partir de um texto homogêneo e
totalizador. Em La 31 (una novela precaria), Magnus produz uma obra fragmentada não
apenas em sua composição de narrativas não lineares, mas também na linguagem e na
estrutura narrativa híbrida, contrariando a estrutura linear do romance tradicional e
conseguindo, com essa estratégia, dialogar com essa sociedade fragmentada e seus sujeitos de
identidades líquidas e existências negadas.
A intenção do autor em seu décimo romance parece ser narrar o presente de uma
cidade com unidade geográfica formal, mas que se reconfigura em sua pluralidade de
microterritórios. As variantes culturais identificadas nessa multiplicidade de “ilhas urbanas”
que formam a cidade de Buenos Aires ocupam lugar de relevância nessas novas narrativas do
presente em um claro diálogo entre a literatura e a produção do espaço social.
43
2.1 EXPERIMENTAÇÕES ESTÉTICAS NA VILLA 31 DE MAGNUS
Experimentação estética e diálogo com a tradição literária são duas estratégias
narrativas que caminham juntas em La 31 (una novela precaria), como vimos na primeira
parte deste capítulo. Seria esse um modo de dialogar com a poética da narrativa pós-moderna?
Ariel Magnus propõe no romance um modelo de narrativa em que a voz da tradição literária
move-se paralelamente a experimentos estéticos tais quais os personagens de sua obra se
movem na cidade narrada.
Esdras do Nascimento, em A dança dos desejos, opus 13, utiliza a voz de um de seus
personagens para iniciar uma discussão acerca da forma como deve está composto um
romance: “Para mim romance tem que ter história. História e personagem. Romance sem
história e sem personagem, já pensou? Coisa de professor universitário metido a besta.
Enrolação. Embromática pura” (2006, p. 21). Com uma visão tradicional do gênero romance,
o personagem opina a respeito da importância da história e da composição dos personagens
para a obra literária. A constituição das histórias e personagens em La 31 mostra-se como um
contraponto à ideia do romancista citado por Esdras do Nascimento, uma vez que a estrutura
utilizada por Magnus é precária justamente porque não temos acesso a uma história ou a
personagens com trajetórias complexas e articuladas entre si; são-nos dados apenas cortes
temporais circunstanciais, ou seja, somente cortes narrativos estanques são oferecidos ao
leitor da obra.
No contraponto ao argumento do personagem de Esdras do Nascimento, o romancista
colombiano Juan Gabriel Vázquez, por meio do narrador de Historia secreta de Costaguana,
problematiza a própria ideia de romance a partir de uma ótica semelhante à de Magnus, para
quem o gênero pode ser composto por “pequenas histórias”, ou seja, histórias comuns, em um
espaço de tempo não linear e que apenas se tocam, sinalizando nessa visão a impossibilidade
de narrar de forma contínua e totalizante uma trama:
Verán ustedes, con el paso de los años y la reflexión sobre los temas de este libro que ahora
escribo, he comprobado lo que sin duda no es sorpresa para nadie: que en el mundo las
historias, todas las historia que se saben y se narran y se recuerdan, todas esas pequeñas
historias que por alguna razón nos importan a los hombres y que van componiendo sin que
uno se dé cuenta el temible fresco de la Gran Historia, se yuxtaponen, se tocan, se cruzan:
ninguna existe por su cuenta. ¿Cómo lidiar con eso en un relato lineal? Es imposible, me
temo. (VÁSQUEZ, 2007, p. 86.)
Os personagens de Magnus, assim como propõe José Altamirano, personagem e
narrador de Historia secreta de Costaguana, apenas se tocam ao cruzarem-se na cidade, palco
44
da galeria de “pequenas histórias” narradas em La 31. São personagens que se concretizam
durante sua narrativa, sem qualquer menção prévia de sua vida anterior. O que interessa nessa
ficção idealizada pelo autor é narrar o cotidiano de sujeitos pertencentes ao território
periférico e dos que vivem na cidade formal, pensando como se dá o contato entre eles.
As estratégias estéticas utilizadas ao longo das narrativas da obra para estruturar os
diferentes personagens são variações de experimentos discursivos que apresentam um
propósito maior: tentar utilizar um tom de humor em uma narrativa que não somente discorre
sobre a fragmentação de uma cidade, mas também sobre a precariedade de um território que
faz parte do universo marginal e subalterno da capital portenha. Magnus, durante nossa
entrevista, confirma que o tom humorístico dado à obra fazia parte do objetivo inicial do
projeto; no entanto, a ideia perdeu certa força à medida que visitava a Villa 31. Conquanto a
proposta da obra seja anterior ao contato do autor com a favela, suas incursões pelo território
o fizeram repensar o projeto ao dar-se conta de que a precariedade do lugar assumia uma
espécie de antinomia em relação do tom humorístico.
Yo ya había empezado a escribir cuando fui dos o tres veces y decidí dejar de ir. Además
porque el objetivo primigenio era escribir un libro de humor sobre la villa. Me pareció
imposible. La idea es que sea un humor distinto. Es que sea un libro como feliz, como
lindo, como que produzca una sensación que no te produce la villa. Después de la tercera
vez que fui, me dije: si sigo viniendo acá, no voy a poder seguir con ese tono porque la
gente vive mal y te vas angustiado. Y yo quería mantener el tono porque quería pensar ese
territorio desde otro lugar. Un lugar humorístico, los juegos de palabras, la ironía, que los
personajes sean graciosos, que te rías con un tema del que no te puedes reír. Ese era el
desafío. Y después lo fragmentario tiene que ver con eso. Fueron como dos ideas que son
previas. (A. Magnus, entrevista pessoal, 29 de agosto de 2015)
Como relata Magnus, nesse trecho da entrevista, a obra segue com seu tom
humorístico, ainda que não seja esse o único cerne das narrativas. Todo o processo de escrita
da obra está vinculado a uma estética que não se subordina ao efeito humorístico –
normalmente calcado em hipérboles e deslocamentos de sentidos – ou irônico, mas em outras
estratégias, tais como o jogo de palavras, a construção prototípica dos personagens baseada na
fragmentação e o ritmo narrativo que assume a condição de fluxo e soluções de continuidade,
a partir do uso pouco ortodoxo e extremamente econômico da pontuação.
Uma das estratégias utilizadas por Magnus para realizar o humor com temas e
personagens mais afeitos ao drama é a hipérbole, algumas vezes utilizada para constituir
certos momentos de um relato, elevando essa característica, em diversos momentos, ao limite
do inverossímil. O próprio autor reconhecer que a “hipérbole te permite ver las cosas, al
agrandarlas con lupa” (A. Magnus, entrevista pessoal, 29 de agosto de 2015).
45
No fragmento “El mendiego” – título formado a partir do nome do personagem
principal e sua condição social –, Diego, analisando a estrutura geográfica e social da favela, a
partir de um falso silogismo que leu em um livro que dedicava certa atenção à figura dos
pedintes relacionando-os às comunidades populares, decidiu que se tornaria mendigo para que
a favela tivesse um perfil mais próximo ao imaginário da precariedade acerca desse território.
Além disso, conseguiria igualar seu local de moradia à cidade formal, uma vez que há
mendigos inclusive nos bairros ricos, segundo argumenta o personagem.
Diego había llegado por sus propios medios a la conclusión de que si no había ni un
mendigo en toda la villa, convertirse en el primero no podía ser una idea tan mala. (…) Su
presencia se convertiría así en el primer paso hacia una urbanización amplia y sincera, en el
sentido de que ya contemplaba hasta lo indeseable de la urbanización misma. (MAGNUS,
2012, p. 56)
No fragmento citado, a elaboração do personagem dá-se por meio de seu objetivo
declarado, destacando o caráter absurdo da história. O narrador também destaca uma
deficiência física do personagem: Diego é cego, embora parecesse ler o livro que o fazia
pensar no problema da falta de mendigos na favela, corroborando assim, o tom absurdo da
narração: “En el libro que Diego parecía leer con suma atención (...). Ajeno a este silogismo
impecable por razones de privado conocimiento (era ciego)”.
A hipérbole destaca-se em muitos fragmentos da obra, ora sendo usada para estruturar
um aspecto no perfil de um personagem, ora para dar um tom despropositado a alguma
situação. Para exemplificar essa estratégia utilizada para narrar um acontecimento, recorremos
ao fragmento intitulado “Ab villa condita”. O relato narrado em duas partes inicia
descrevendo Doña Lanzotti, ou Nona (como essa senhora era conhecida na favela),
personagem principal do fragmento; em seguida, o narrador discorre sobre a paixão da
personagem pela erva mate El Misionero, produzida em Corrientes. Em dado momento, ao
perceber a escassez da erva, Nona recorre a seu estoque e se dá conta que as traças destruíram
sua reserva e, para se vingar dos insetos, utiliza um revólver, descarregando-o todo sobre os
ínfimos seres:
Había creído tener aún la yerba suficiente como para seguir dilatando la solución definitiva
a su escasez, pero al buscar el próximo paquete en su alacena comprobó que las polillas se
le habían adelantado. Tras unos segundos de estupefacción, la Nona sacó el revólver y
vació el cargador sobre los animalitos que se habían devorado el último cargamento
remitido desde Corrientes. (MAGNUS, 2012, p. 56)
O autor alcança de modo mais efetivo seu objetivo de construir uma narrativa de
humor quando o ato de vingança de Doña Nona assume uma dimensão desproporcional e se
eleva ao nível do ridículo ou do absurdo.
46
Além das hipérboles das quais o autor lança mão ao longo da obra, a ironia é
recorrente em praticamente todos os fragmentos. Relacionando-se com temas diversos, como
política e sociedade, por exemplo, essa estratégia estética mostra-se marcante na narrativa de
Magnus. Em uma sequência do capítulo “31 (bis). El cielo de los villeros”, podemos ler:
Milcíades Arístides X. a los 76 de viejo, una causa de muerte casi desconocida en la villa,
algunas ventajas tiene vivir aquí; Felipe Quinto A. a los 14 de un tiro en la nuca, el calibre
coincide con el de las armas de la policía pero como no se sabe si fue disparada por un
policía de uniforme o de civil, hombre o mujer, el caso quedó caratulado como muerte
natural, natural a la villa se sobreentiende; (…) Delia Alejandra R. a los 38 de varias
puñaladas, el autor material fue su marido, el intelectual el que inventó el matrimonio; (…)
Sergio Luis S. a los 8 por intoxicación, “Quería matar el hambre y se le fue la mano –
bromeaba un tío en el entierro –. Yo siempre digo que mejor estar con hambre que con un
arroz mal acompañado”. (MAGNUS, 2012, p. 123)
Assim como o primeiro fragmento deste capítulo, a segunda parte do relato também
serve para exemplificar o uso da ironia em La 31. Magnus traz à cena, com uma irreverência
desconcertante, alguns problemas sociais encontrados na representação de sua villa: violência
doméstica, violência policial e problemas econômicos. O autor ironiza a morte natural –
poucas vezes encontrada na villa –, o assassinato (sem autor aparente) de adolescentes
cometido por policiais – tema já mencionado na primeira parte desse fragmento –, a violência
doméstica, criticando, nitidamente, o casamento enquanto instituição social e, por último, a
morte por envenenamento de uma criança faminta, contrastada com a fala sarcástica de seu tio
durante o enterro.
Outro fragmento que podemos destacar para exemplificar a ironia na obra intitula-se
“Bienvevilla”. O título é um neologismo formado pela fusão dos vocábulos “Bienvenidos” y
“villa”, indicando que se trata de um discurso feito para das as boas-vindas aos novos
moradores de um lugar pelo qual nenhum dos recém-chegados teria optado se pudesse fazêlo. Pobres entre os pobres, mas, ironicamente, com acesso à Internet, conforme sugere a
substituição da vogal marcadora de gênero pelo símbolo arroba (@):
¡Hola, hola, querid@s vecin@s! Hoy queremos darle entre todos una calurosa bienvenida
(¡otra no nos queda con el calor que está haciendo!) a la familia Suárez. Los Suárez acaban
de arribar de la querida provincia de La Pampa, previo paso por la fábrica abandonada en
donde les habían dicho que funcionaba un hotel (…) Los Suárez firmaron algunos papeles y
entregaron todo lo que tenían allá en su tierra a cambio de que los trajeran hasta acá. A la
familia la integran (…) la señora Marisa Anabela Castillo de Suárez, 24, ama de casa (como
se dice, aunque casa, así lo que se dice casa, nunca tuvo, y ama no ha sido nunca ni de su
propio cuerpo), y sus hijos Matías, Leonora, Luisito, Lisandra y Pablito. (…) las chiquitas
tienen esa cosa con los pulmoncitos, en tanto que Matías es diabético, lo cual sería un
problema serio si tuviera dinero para comprarse algún dulce. ¡Dios podrá darle pan al que
no tiene dientes, pero también sabe quitarle los caramelos a quien no tolera el azúcar! (…)
Ya han conseguido algunas chapas y cartones, bolsas de nylon resistente, algunas maderas
y clavos. ¡Por algo se empieza, también una pieza! Les deseamos una feliz estadía, y
gracias por elegirnos. (MAGNUS, 2012, p. 32-33)
47
A própria estrutura do texto “Bienvevilla” denota a zombaria programática, ao
deslocar o discurso formal de boas-vindas de sua finalidade costumeira, aplicando-o agora ao
caso de uma família que chega para morar na favela. O narrador – que, nesse fragmento,
parece pertencer ao território por falar a partir de um sujeito coletivo externado pela primeira
pessoa do plural – faz uma pequena descrição da vida da família Suárez, convertendo as
carências em pontos positivos devidos a sua nova condição de favelados.
Concomitantemente ao uso da ironia, Magnus lança mão dos jogos de palavras que lhe
são tão caros ao longo de toda a obra. A descrição da personagem Marisa Anabela Castillo de
Suárez é toda baseada em um jogo de palavras com os vocábulos “ama” e “casa”, partindo de
sua ocupação de ama de casa, ou “dona de casa”, traduzido ao português. O narrador analisa,
inicialmente, a palavra casa, observando que, embora faça parte de sua ocupação, ela nunca
possuiu um lugar próprio de moradia, tendo vivido, inclusive, em uma fábrica abandonada.
Em seguida, o narrador explora o vocábulo ama que significaria, em português, “dona”,
argumentando que, ainda que a palavra componha o nome de sua ocupação, ama a senhora
Marisa nunca o foi, uma vez que nem mesmo de seu corpo ela é proprietária.
O jogo de palavras aparece como uma constante da obra, ocorrendo tanto nos títulos
dos fragmentos quanto no corpo do texto. Em “Agustina (o la fortuna de la maldad)”,
Magnus dialoga novamente com outro clássico da literatura, Justine ou os infortúnios da
virtude, do Marquês de Sade. O autor faz uma inversão de palavras do título original para
formar o subtítulo do fragmento, possivelmente com o propósito de sugerir a configuração de
uma imagem de Agustina diferente da de Justine. A personagem de Sade, após a morte de
seus pais, passa a ter problemas financeiros e precisa lutar para manter sua virtude, recusando
as propostas que a fariam passar por humilhações. Já Agustina não parece querer preservar
essa virtude ao demonstrar certo interesse sexual pelos villeros durante sua permanência na
favela, ainda que esse aspecto não se mostre de todo claro na fala do narrador. Em um trecho
do fragmento, é possível perceber a forma como a protagonista vê os villeros:
Del ovni salía a todo volumen un remix cumbiero de “Macarena”, una de sus canciones
preferidas de los noventa, aunque en los noventa ella aún era una niña (ahora ya era una
vieja de 25, como le decía su esposo), y por un momento estuvo tentada de plegarse al sutil
bamboleo de caderas con que los chicos de cuerpos morenos y fibrosos acompañaban el
ritmo de aquel viejo hit español. Cuando bailaba, bamboleando su cuerpo también joven y
fibroso, aunque rubio, un cuerpo que estaba para darle alegría y cosa buena (…)
(MAGNUS, 2012, p. 10)
Uma vez mais, Ariel Magnus recorre ao diálogo com a tradição literária para compor
seus relatos, embora, no fragmento supracitado, não haja a alusão à estrutura do texto
48
canônico, como ocorreu com as obras de Calderón de la Barca e Lope de Vega. No
contraponto, nesse mesmo fragmento narrativo, o autor também lança mão da letra da música
“Macarena”, colocando em sintonia o texto literário e a cultura de massas.
Em outro relato da obra, intitulado “Mercano el marciano”, há a composição de muitos
jogos de palavras a começar pelo próprio título. Mercano, apelido dado ao protagonista do
relato, forma-se a partir da palavra merca que, na gíria popular argentina, significa “cocaína”.
O personagem recebe o qualificativo de “marciano” (ou “extraterrestre”) por não se adequar à
lógica da empresa que vende a seus empregados cocaína para que aguentem os turnos
exaustivos de trabalho. Como não aceitava o uso do entorpecente, foi despedido e passou a
trabalhar como catador de lixo, um cartonero.
Mercano el marciano, como lo habían apodado debido a que él no tomaba merca, una
aversión al vicio que por cierto le había costado su puesto de colectivero, no tanto porque el
cuerpo no aguantaba los turnos de dieciocho horas establecidos por la empresa sino porque
quien les vendía la droga para que aguantasen era la empresa misma, no por nada llamada
Línea, como le había recordado cínicamente su jefe antes de echarlo, y no de esa línea sino
de todas las líneas. (MAGNUS, 2012, p. 18)
No trecho, ademais do jogo de palavras com o nome do protagonista, o autor recorre
ainda ao potencial lúdico de palavras polissêmicas para se referir à história de Mercano. O
nome da empresa, Línea, como o próprio chefe mencionou, alude não somente às linhas de
ônibus, mas à própria forma linear da “carreira” de pó de coca disposta para consumo.
Magnus utiliza essa estratégia de jogar com a riqueza semântica de vocábulos comuns
em muitos fragmentos. É o que vemos no seguinte trecho: “Carlota Esperanza G. a los 16 por
asfixia, su padre le había hecho dos hijos que le había obligado a abortar y como ahora ella se
negaba a quitarse el tercero acabó matándola, ahora el padre paga su culpa en Devoto, si es
que algo así tiene precio” (MAGNUS, 2012, p. 123). A narrativa sublinha o uso das palavras
“paga” e “precio”, as quais retomam e retrabalham a ideia de “pagar a pena” pelo crime que o
pai cometeu.
Pelo viés do jogo de palavras e da ironia, em certos momentos o pastiche – que
desponta em vários momentos do texto – cede lugar a um tratamento claramente paródico de
um tema grave; uma elaboração na qual a brincadeira não impede que certos temas sociais
sejam levados a sério. Dito isso, emerge, com indisfarçável força, um discurso burlesco cujos
alvos parecem ser os fragmentos que pretendem alcançar transparência na sua representação
da realidade e buscam apresentar-se com um caráter de veracidade.
O jogo mencionado é um procedimento onipresente ao longo de toda obra, no entanto,
outras experimentações estéticas ficam claras, em muitos relatos, com objetivos bem
49
marcados, como por exemplo, a eleição de algumas pontuações – ou a falta delas – para
marcar ritmos diferentes nos fragmentos narrativos.
No primeiro semestre de 2015, eu, o professor Ary Pimentel e o escritor Ariel Magnus
iniciamos um projeto de tradução da obra La 31 (una novela precaria) para que esta fosse
publicada no Brasil. Durante a tradução de alguns trechos da obra feita pelos dois primeiros e
revisão de texto feita por Magnus para análise das editoras, o modo como o autor utiliza a
pontuação nos fragmentos narrativos foi tema de conversa entre os três. Ao traduzir os
trechos, percebemos que a pontuação usada por Ariel, em alguns fragmentos, não se adéqua à
formalidade do texto escrito. O autor não marca claramente o limite entre as orações – entre
outros casos –, suprimindo, recorrentemente, pontos e vírgulas.
Embora optando por utilizar, poucas vezes, a regra de pontuação de acordo com a
gramática da Língua Portuguesa, eu e o professor Ary Pimental modificamos parte da
intenção de Magnus que seria dar ritmo à narrativa. Em um questionamento feito à tradução
do fragmento “Agustina (o la fortuna de la maldad)” acerca da mudança que fizemos na
pontuação, Magnus assinala um aspecto de sua estética: “(no se puede respetar la puntuación
original, no es más lindo rítmicamente?)”11. A partir do comentário do autor, confirmou-se a
experimentação estética em alguns fragmentos da obra, marcando um ritmo diferente ao
proposto pelas regras gramaticais e apresentando uma idéia de fluxo e de outro tipo de
marcação das continuidades, como podemos constatar no seguinte trecho da sequência da
personagem Agustina:
Cuando Agustina se dio la vuelta notó que ya no había nadie. O sea gente había mucha, una
densidad de shopping los días de lluvia, pero eran todos villeros, sus colegas de la ONG
“La villa en la vida” se habían esfumado sin dejar rastros, como abducidos por un plato
volador. (MAGNUS, 2012, p. 9)
Na primeira frase do fragmento, composta por uma oração subordinada temporal
seguida de oração principal, não há o uso da vírgula para separar a primeira da segunda, como
sugere a regra gramatical da língua espanhola (GÓMEZ, 2007, p. 498) nos casos em que a
subordinada precede à principal. A segunda ausência de vírgula ocorre na frase seguinte, uma
vez que o autor não a utiliza para isolar a expressão explicativa “o sea” que inicia a oração.
Nossa última consideração em relação à pontuação, no trecho utilizado como exemplo,
é quanto ao não uso do ponto final para separar frases que contém ideias distintas. O narrador
comenta, no segundo período do trecho, que havia muita gente perto de Agustina, uma
“densidad de shopping en días de lluvia”, embora a personagem não os tenha identificado. Em
11
Comentário feito por Ariel Magnus em um email pessoal enviado a mim no primeiro semestre de 2015.
50
seguida, o narrador comenta do desaparecimento dos colegas da protagonista, como se
tivessem sido abduzidos. Dessa forma, o narrador muda o foco do assunto sem utilizar ponto
final, valendo-se de uma vírgula como se houvesse apenas uma pausa no discurso e não uma
alteração na informação.
A escolha pela ausência de pontuação no fragmento de Agustina parece interagir com
uma estrutura cinematográfica. O ritmo dado a todo fragmento remete o leitor à visualização
de uma cena de filme, confirmando o diálogo que Ariel Magnus mantém como essa forma
narrativa.
Seguindo nossa análise acerca da pontuação em La 31, discutiremos um segundo
trecho do fragmento intitulado “Empacados”, que parece ser um experimento de reprodução
da fala de um grupo de jovens moradores da favela. Nele não há vírgulas ou pontos nas falas,
há, apenas, a utilização das barras para diferenciar o turno dos interlocutores.
Y pintó un marciano / ¡sos muy groso mono! / yo paso man / rescatate careta / aguante el
vino loco pero esa mierda está dejando sin futuro a la vagancia / es al revé tufo la cosa es
que en este paí no hay futuro y por eso la vagancia le da a la porquería / andate a Bolivia si
no te gusta / lo único que falta es que nos peliemo por ver qué vino primero / eso peliémono
por lo que vino depué / ¿por qué se le dice marciano? / ¿depué de qué? / depué te digo / jajá
qué gil / en Bolivia la chala está regalada / porque te deja la sabiola hecha un plato volador /
no boludo por la merca / dijiste plato y me dio hambre / no te decía bolivia bolivia sino acá
al lado en la bis boludo / pero si es por la merca debería ser mercano / eso suena a mersa / y
bueno paco suena a cheto / mercano y te lo fumá por el ano jajá / mercano el marciano es
una peli / pero no es merca sino pasta base / a mi amigo el tano le gusta la pasta se sirve y
se sirve nunca le basta / y vo de dónde sabé de cine tanto ¿eh? (…) (MAGNUS, 2012, p.
16)
Além da ausência de pontuação no fragmento, outra estratégia de Magnus foi a
tentativa de aproximar o relato da oralidade que caracteriza a fala desse grupo de jovens. As
marcas da linguagem coloquial e os desvios gramaticais apontam para um grupo de jovens
pouco escolarizados. Alguns desvios podem ser observados na supressão do “s” final nas
palavras, como em “revé” em lugar de “revés”, “paí” em lugar de “país”, “depué” em lugar de
“después”, para citar somente alguns exemplos. Ariel também utiliza um grande número de
gírias para marcar a subcultura juvenil do grupo cuja fala integra o relato, unicamente a partir
da reprodução da fala do grupo de amigos que o autor constrói os personagens do fragmento.
A construção de alguns fragmentos da obra com essa marca de pontuação peculiar
escolhida pelo autor assemelha-se muito à estrutura do cinema, uma vez que dá ritmo às
narrativas como uma espécie de cena que o leitor “visualiza”.
Ariel Magnus traz nos procedimentos que adota em sua obra uma atualização das
diversas estratégias narrativas que a literatura do presente pode lançar mão em uma relação
tensa e complementar com a tradição literária. Faz seguidas referências ao cânone e absorve, a
51
partir do pastiche, elementos de obras clássicas, dialoga com a cultura de massas e a incorpora
na visão de mundo de seus personagens. Ademais, vale-se de experimentos linguísticos e de
um deslocamento do olhar operado pela estratégia do humor, assimila aspectos da linguagem
do cinema, em particular a descontinuidade e a montagem, tornando sua narrativa uma
espécie de collage de fragmentos de objetos partidos e heterogêneos.
Assim como em alguns títulos que antecederam a publicação de La 31 (una novela
precaria) e em outros posteriores, percebemos que a fragmentação e a descontinuidade
desempenham um papel muito relevante na obra de Magnus. Contudo, essa parece ser a
primeira vez que a idéia do fragmento influencia de modo determinante a estrutura de um de
seus livros.
Trata-se de ma narrativa que já não põe em xeque o cânone, mas os modos de narrar
tradicionais do romance. Explora, por meio da diversidade de seus registros e da
fragmentação, a possibilidade de construir uma linguagem que corresponda ao mundo atual
quase como signos de uma época.
52
3. TERRITÓRIO EM MOVIMENTO: O FOCO SE DESLOCA PELA CIDADE
Fragmento 1:
7. A garota que limpa (e que mente)
– Sempre acabo me distraindo e olhando pra favela. – comentou a senhora de Arredondo, de
pé diante dos janelões, após apoiar a xícara de porcelana sobre uma pequena mesinha de mármore,
de onde mais tarde devia retirá-la a garota que limpa e (que retira as xícaras) –. Quero olhar o rio,
me distrair por um tempo, e sempre acabo olhando pra favela.
– Ou seja que a favela te distrai de te distrair – replicou o doutor Arredondo, que do sofá
onde estava sentado não conseguia ver (a favela, a esposa sim ele via, embora preferisse olhar seu
charuto).
– É que eu olho pra favela e penso nas pessoas que vivem na favela e isso me deixa tensa.
– Talvez a distração seja então tudo o que fazemos enquanto não pensamos nas pessoas que
vivem na favela.
– Eu não acho que nós nos fingimos de distraídos, se é o que você está insinuando. Fazemos
doações para os pobres todos os anos. E temos a favela diante da gente, quando bem que poderíamos
viver em um bairro fechado e não vê-la nem pela televisão.
– Doamos o mesmo que pagaríamos de impostos e doaríamos ainda mais para não vê-la. E
quem quis um apartamento no centro com vista pro rio foi você.
– Sim, mas agora não posso ver o rio por culpa dessa favela. É como quando você quer olhar
nos olhos de uma pessoa com lábio leporino.
– Deve ser porque os olhos não te dizem nada e o lábio leporino sim.
– De qualquer forma é feio de ver.
– Imagina ter.
– Aí está o problema, eu não posso deixar de me imaginar assim.
– Mas você não tem. É como um pesadelo do qual você sempre acorda a tempo.
– Ah, e você gosta de ter pesadelos?
– Não, mas também não gosto de viver num sonho.
– Bom, não sei por que nos distraímos falando dessas coisas. Catalina!
Catalina era a garota que limpa, e que neste caso também escuta atrás da porta. Vivia na
favela, com um bom binóculo a senhora até poderia localizar a casa onde ela alugava um quarto, mas
a verdade é que a senhora não tinha binóculo, e além disso acreditava que Catalina vivia na casa de
uma prima em Tristán Suárez (a prima mesma e o resto da de sua família acreditavam que ela
trabalhava em casa de família e dormia no emprego, pois a senhora não a teria contratado – nem sua
família teria ficado tranquila – se Catalina lhes tivesse confessado que vivia na Villa 31, por mais que
fosse a melhor favela de Buenos Aires – com o que pagava aí por uma cama poderia ter alugado um
cômodo inteiro em Tristán Suárez). O que mais a incomodava em mentir, além de ter que fazê-lo por
vergonha, o que é um duplo pecado, pois ninguém deveria envergonhar-se de ser pobre, era que para
sustentar sua mentira devia cobrar umas diárias a que não tinha direito, e com isso o pecado passava
a ser triplo. Catalina não era muito crente, mas pela via das dúvidas preferia não abusar, não ser
supersticiosa tampouco a obrigava a andar virando saleiros nem passar por debaixo de tudo quanto é
escada que aparecesse em seu caminho.
Catalina entrou com a bandeja no alto e avançou até a mesinha sem levantar a vista, como
quem se dirige à saída de emergência de um avião guiando-se pelas luzes do piso. Embora levasse
quase três anos trabalhando nesse apartamento de luxo, não conseguia tocar uma xícara sem sentir
que a sujava, ao ponto de não entender por que não a faziam usar luvas e touca. De modo geral lhe
custava entender que uma pessoa tão branca e bonita como a senhora de Arredondo deixasse que sua
casa fosse limpa por uma negrinha que vivia na mais espantosa sujeira, a urbana. Ainda que tivesse
vindo de uma casinha decente de Tristán Suárez e não de seu quarto com piso de terra batida na
favela, só por ter apanhado o trem de manhã junto com todos os trabalhadores da grande Buenos
Aires a senhora já deveria ter-lhe vetado a entrada, ou em todo caso ter lhe obrigado a tomar banho.
53
Catalina sentia que era ao contrário ela que se limpava cada vez que chegava no trabalho, como se o
apartamento fosse uma piscina com muito cloro e colocar o avental, o banho prévio.
– Não vá embora, Catalina, acho que chegou a hora de falar.
A voz do doutor Arredondo paralisou-a no meio da sala de forma tão abrupta que ela quase
deixou cair a bandeja com a xícara. A menina que limpa (e que acredita que suja, e que nesse caso
quase suja de verdade) sabia que o doutor só podia querer falar de um tema diante da senhora, o
mesmo tema do qual ela tentava se distrair desde que se instalou entre eles. Era o final da mentira, e
também da limpeza.12 [Ariel Magnus. La 31 (una novela precaria)]
“– Siempre termino distrayéndome y mirando la villa – comentó la señora Arredondo, de pie frente a los
ventanales, luego de apoyar la taza de porcelana sobre una pequeña mesita de mármol, de donde más tarde debía
retirarla la chica que limpia (y que retira las tazas) – Quiero mirar el río, distraerme un rato, y siempre termino
mirando la villa.
– O sea que la villa te distrae de distraerte – objetó el doctor Arredondo, que desde el sofá donde estaba sentado
no alcanzaba a verla (a la villa, a su esposa sí, aunque prefería mirar su cigarro).
– Es que miro a la villa y pienso en la gente que vive en la villa y eso me tensiona.
– Quizá la distracción sea entonces todo lo que hacemos mientras no pensamos en la gente que vive en la villa.
– Yo no creo que nosotros nos hagamos los distraídos, si es eso lo que estás insinuando. Donamos todos los años
para los pobres. Y la tenemos enfrente, cuando podríamos vivir e country y no verla ni por televisión.
– Donamos lo que igual pagaríamos de impuestos y donaríamos aún más para no verla. Y la que quiso un
departamento en el centro con vista al río fuiste vos.
– Sí, pero ahora no puedo ver el río por culpa de esa villa. Es como cuando querés mirar a los ojos a una persona
con labio leporino.
v Será que sus ojos no te dicen nada y el labio leporino sí.
– Igual es feo de ver.
– Imaginate de tener.
– ahí está el problema, que no puedo dejar de imaginármelo.
– Pero no lo tenés. Es como una pesadilla de la que siempre te despertás a tiempo.
– Y qué, ¿a vos te gusta tener pesadillas?
– No, pero tampoco me gusta vivir en un sueño.
v Bueno, no sé por qué nos distrajimos hablando de esas cosas ¡Catalina!
Catalina era la chica que limpia, y que en este caso también escucha detrás de la puerta. Vivía en la villa, con un
buen largavistas la señora hasta habría estado en condiciones de ubicar la casa donde alquilaba un cuarto, pero lo
cierto es que la señora no tenía largavistas, y además creía que Catalina paraba en lo de una prima de Tristán
Suárez (la prima misma y el resto de su familia creían que ella trabajaba cama adentro, pues la señora no la
habría tomado – ni su familia se habría quedado tranquila – si Catalina les hubiera confesado que vivía en la 31,
por más de que fuera la mejor de Buenos Aires – con lo que pagaba ahí por una cama podría haberse alquilado
una pieza entera en Tristán Suárez). Lo que más le molestaba de mentir, además de tener que hacerlo por
vergüenza, lo cual es doble pecado, pues nadie debería avergonzarse de ser pobre, era que para sostener su
mentira debía cobrar un viático que no le correspondía, con lo que el pecado pasaba a ser triple. Catalina no era
muy creyente, pero por las dudas prefería no abusar, no ser supersticiosa tampoco la obligaba a andar tirando
saleros ni pasando por debajo de cuanta escalera se le cruzaba en el camino.
Catalina entró con la bandeja en alto y avanzó hasta la mesita sin levantar vista, como quien se dirige a la salida
de emergencia de un avión guiándose por las luces en el piso. Aunque llevaba casi tres años trabajando en ese
departamento de lujo, no conseguía tocar una taza sin sentir que la ensuciaba, al punto de que no entendía que no
le hicieran usar guantes y cofia. En general le costaba entender que una persona tan blanca y pulcra como la
señora de Arredondo se hiciera limpiar la casa por una negrita que vivía en la más espantosa suciedad, la urbana.
Aun si hubiese venido de una casita decente en Tristán Suárez y no de su habitación con piso de tierra en la villa,
solo por haberse tomado el tren a la mañana junto a todos trabajadores del conurbano la señora debería haberle
vetado la entrada, o en todo caso obligarla a bañarse. Catalina sentía que era más bien ella que se limpiaba cada
vez que llegaba al trabajo, como si el departamento fuera una piscina con mucho cloro y ponerse el delantal, la
ducha previa.
– No te vayas, Catalina, creo que llegó la hora de hablar.
La voz del doctor Arredondo la paralizó en medio de la sala de forma tan abrupta que casi dejó caer la bandeja
con la taza. La chica que limpia (y que cree que ensucia, y que en este caso casi ensucia de veras) sabía que el
doctor solo podía querer hablar de un tema delante de la señora, el mismo del que ella intentaba distraerse desde
que se instalara entre ellos. Era el final de la mentira, y también de la limpieza.” (MAGNUS, 2012, p. 21-23)
12
54
Fragmento 2:
2. Favelusa
– Ovni doze chamando nave mãe.
– Aqui nave mãe, prossiga.
Para Lungo sempre era um pouco embaraçoso fazer uso desse código de filme de ficção
científica, mas a verdade é que havia surgido de uma imagem proposta por ele mesmo para explicar
como funcionaria o sistema operacional, que certamente ele continuava considerando de um
futurismo quase utópico, mesmo quando já estava sendo colocado em prática. Inquietava-o sobretudo
o temor de que a irônica imagem, aproveitando que já dominava suas comunicações, acabasse por se
instalar no mundo real, mais ou menos como a expressão “comunidade” tinha se convertido em um
termo neutro, no qual já nem se identificava a ironia da imagem. Inconfessavelmente Lungo temia que
a 31 decolasse para o além quando todos os óvnis (carros forte) aterrizassem em breve em seu seio,
um temor não muito mais absurdo que o plano do qual havia nascido, pois entre propor que a
revolução deve surgir na favela e acreditar que não estamos sozinhos no universo não havia tanta
distância, nem na irrefutabilidade do raciocínio, nem na dificuldade de prová-lo. Quanto aos demais,
não só eles se chamavam extraterrestres entre si, como também o eram, ao menos no sentido de que
na cidade os tratavam como se viessem de outro mundo e estivessem invadindo a Terra. A única coisa
que consolava Lungo era que não eram de tipo burguês, nem a metáfora que havia escolhido, nem o
medo a que isso se tornasse literal.
– Tamo com um probleminha...
– Agora é Riuston é?
– Como?
– Nada, citação disparatada. Qual é o probleminha?
Um de comunicação, por enquanto, pois depois de alguns chiados a voz deixou de se escutar.
A pergunta não respondida lhe trouxe à memória a última piada do paraguaio Ríos, o opositor mais
ferrenho que havia tido a sua ideia de fundar os Estados Unidos da Miséria.
(...)
“Nós, os representantes do povo, e não somente da Nação Argentina mas da própria noção de
Nação, reunidos aqui desde todas os estados por vontade e escolha alheia, em cumprimento de pactos
pré-existentes que têm por objetivo assegurar e garantir o bem-estar e os benefícios de todos os
homens que, invocando a proteção de Deus, se estabelecem e se decretam como fonte de toda razão e
justiça, estabeleceremos desde este imposto Retiro uma nova Constituição”.
Lungo releu o princípio de seu manifesto e balançou a cabeça. “Regionalista demais”, disse
pra si mesmo, e duas grossas linhas de sua bic o cruzaram de ponta a ponta. Embora tivesse resolvido
em poucos minutos o tema do carro forte roubado (partiu essa cédula em duas e as redigiu para as
outras, com as quais por sua vez se comunicou brevemente para pedir-lhes que estivessem mais alerta
diante de possíveis manobras contrarrevolucionárias, mesmo sabendo que podia dar ideias a
potenciais traidores); embora tivesse resolvido o outro assunto em poucos minutos já levava não
sabia quanto tempo tratando de redigir seu manifesto sem ter escrito nem uma linha definitiva.
Planejar a revolução acabou sendo infinitamente mais fácil do que agora explicá-la, da mesma forma
que para o crente lhe resulta muito mais fácil imaginar ou desejar o Paraíso antes do que descrever
como é lá.
Inspirado por essa última imagem traçou uma linha e anotou embaixo: “A todos aqueles que
têm escondida sua grana nos paraísos fiscais (e aos que sonham em tê-la) lhes anunciamos desde
estas terras também fiscais ou públicas (como deveriam sê-lo todas) que a partir de hoje já não vão
ter que debater se urbanizar ou não nossa favela, nem como, pois nós é que vamos discutir como
favelizar a urbe que vocês usurpam com a sua propriedade privada”. Deixou a bic e leu. “Marxista
demais, pode assustar os investidores” disse irônico para si mesmo e coçou um olho. Inspirado por
essa segunda imagem traçou uma linha e anotou embaixo: “Fazemos piquetes na via expressa.
Fazemos piquetes em frente à estação do Retiro. Para evitar de agora em diante os incômodos
ocasionados, pelos quais não nos desculpamos, nós nos declaramos o que na realidade já somos: um
piquete permanente no meio da cidade. Como essas favelas da Grande Buenos Aires que têm como
nome a data em que seus primeiros habitantes ocuparam a terra que agora ocupam, a partir de hoje
deixamos de nos chamar com este número que os militares nos deram e inauguramos um novo
55
calendário, que em breve (muito em breve) será o que se imporá no mundo todo”. Deixou a bic e leu.
“Imperialista demais, poderia assustar os marxistas”, disse irônico a si mesmo e fechou o caderno.
Talvez o erro tivesse sido comprar um caderno Rivadavia em vez de um Gloria ou um Éxito, pensou
enquanto acariciava a textura do papelão da capa, mais sólido do que aquele que fazia o papel de
parede em muitos barracos da 31.13 [Ariel Magnus. La 31 (una novela precaria)]
“– Ovni doce reportando a madre nodriza.
– Acá madre nodriza, adelante.
Al Lungo Le resultaba un poco embarazoso hacer uso de ese código de película de ciencia ficción, pero lo cierto
es que había surgido de una imagen propuesta por él mismo para explicar cómo funcionaría el operativo, que por
cierto le seguía pareciendo de un futurismo casi utópico, aun cuando ya se estaba llevando a cabo. Lo inquietaba
sobre todo el temor de que la irónica imagen, aprovechando que ya dominaba sus comunicaciones, acabara por
instalarse en el mundo real, un poco como la expresión “villa miseria” se había convertido en un término neutro,
en el que ya ni se oía lo irónico de la imagen. Inconfesablemente el Lungo temía que la 31 despegase hacia el
más allá cuando todos los ovnis (camiones caudales) arribaran en breve en su seno, un temor no mucho más
absurdo que el plan del que había nacido, pues entre proponer que la revolución debe surgir en la villa y creer
que no estamos solos en el universo no había tanta distancia, ni en lo incuestionable del razonamiento, ni en la
dificultad de probarlo. Por lo demás, no solo ellos se llamaban extraterrestres entre sí, sino que también lo eran,
al menos en el sentido de que en la ciudad se los trataba como si vinieran de otro mundo y estuvieran invadiendo
la Tierra. Lo único que lo consolaba al Lungo era que no eran de tipo burgués, ni la metáfora que había elegido,
ni el miedo a que se tornara literal.
– Tenemo un problemita…
– ¿Jiuston ahora?
– ¿Eh?
– Nada, una cita al cohete. ¿Qué problemita?
Uno de comunicación, por lo pronto, pues tras algunos chisporroteos la voz dejó de escucharse. La pregunta
incontestada le trajo a la memoria el último chiste del paragua Ríos, el opositor más férreo que había tenido su
idea de fundar los Estados Unidos de la Miseria.
(…)
“Nos, los representantes del pueblo, y no solo de la Nación Argentina sino de la misma noción de Nación,
reunidos aquí desde todas las provincias por voluntad y elección ajena, en cumplimiento de pactos preexistentes
que tienen por objeto asegurar y afianzar el bienestar y los beneficios de todos los hombres que, invocando la
protección de Dios, se establecen y se decretan como fuente de toda razón y justicia, estableceremos desde este
impuesto Retiro una nueva Constitución”.
El Lungo releyó el principio de su manifiesto y sacudió la cabeza. ‘Demasiado regionalista’, se dijo, y dos
gruesas líneas de su bic lo cruzaron de punta a punta. Aunque había resuelto en pocos minutos el tema del
camión robado (partió esa cédula en dos y las redirigió hacia las otras, con las que a su vez comunicó
brevemente para pedirles que estuvieran más alerta frente a posibles maniobras contrarrevolucionarias, aun
sabiendo que podía darles ideas a potenciales traidores); aunque había resuelto lo otro en pocos minutos ya
llevaba no sabía cuánto tratando de redactar su manifiesto sin haber escrito una línea definitiva. Planificar la
revolución le había resultado infinitamente más fácil que ahora explicarla, lo mismo que al creyente le resulta
mucho más fácil imaginarse o desear el Paraíso antes que describir cómo se ve.
Inspirado por esta última imagen trazó una línea y anotó debajo: ‘A todos aquellos que tienen escondida su plata
en los paraísos fiscales (y a los que sueñan con tenerla) les anunciamos desde estas tierras también fiscales
(como deberían serlo todas) que a partir de hoy ya no van a tener que debatir si urbanizar o no nuestra villa, ni
cómo, pues vamos a ser nosotros quienes discutamos cómo villarizar a urbe que ustedes usurpan con su
propiedad privada’. Dejó la bic y leyó. ‘Demasiado marxista, puede asustar a los inversores’, se dijo irónico y se
rascó un ojo. Inspirado por esta segunda imagen trazó una línea y anotó debajo: ‘Hacemos piquetes en la
autopista. Hacemos piquetes frente a la estación de Retiro. Para evitar de aquí en más las molestias ocasionadas,
de las que no nos disculpamos, nos declaramos lo que en realidad ya somos: un piquete permanente en medio de
la ciudad. Como esas villas del conurbano que llevan de nombre la fecha en que sus primeros habitantes
ocuparon la tierra donde ahora se erigen, a partir de hoy dejamos de llamarnos con este número que nos pusieron
los militares e inauguramos un nuevo calendario, que pronto (muy pronto) será el que rija a todo el mundo’. Dejó
la bic y leyó. ‘Demasiado imperialista, podría asustar a los marxistas’, se dijo irónico y cerró el cuaderno. Quizá
el error había estado en comprarse un Rivadavia en vez de un Gloria o un Éxito, pensó mientras repasaba el
cartón texturado de la tapa, más sólido que el que hacía de pared en muchas casillas de la 31.” (MAGNUS, 2012,
p. 11, 33-35)
13
56
O início do processo de fragmentação na cidade de Buenos Aires ocorre
posteriormente ao fracasso da política de modernização da nação impetrada no início do
século XX na Argentina, em um jogo político oficial de ordem (o que se objetiva para o país é
uma nação regrada, uma cidade ideal) e desordem (cidade real), preterindo qualquer caráter
social ao projeto. Como a pretensão de modernização do Estado-Nação fracassa, a “cidade
real” volta à cena.
Na década de 70, a população da villa aumenta com a chegada de imigrantes internos
do interior do país, atraídos pelo emprego na estação ferroviária ou outras opções de trabalho
proporcionadas pela cidade. Logo, o assentamento em que viviam esses imigrantes seria
chamado de “villa miseria”.
Tem-se a ilusão de que o caráter periférico desta nação sul-americana pode ser lido como
um avatar de sua história e não como um dado de seu presente. Ao mesmo tempo, persiste
de maneira contraditória, mas não inexplicável, a idéia de periferia e de espaço
culturalmente tributário, de formação monstruosa ou inadequada em relação à referência
européia. (SARLO, 2006, p. 87)
Na formação de que nos fala Sarlo, trazendo à tona a visibilidade da “cidade real”, está
a formação de bairros populares e de favelas, que não surgem apenas em decorrência do
fracasso da política de modernização que tinha o intuito de se assemelhar a cidades europeias,
mas também por uma questão primordial na política mundial do século XX: a Segunda
Guerra Mundial. O conflito gerou um fluxo migratório produzido por uma grave crise
econômica, o que acarretou o deslocamento de parte da população europeia a vários países da
América do Sul, entre eles a Argentina. A favela 31, no bairro Retiro, surge na década de 30
com os primeiros assentamentos dessa população imigrante e teve seu nome diretamente
relacionado à consequência dessa imigração: “Villa Desocupación” (CRAVINO, 2009a, p.
17).
Se algum tempo depois a imigração de europeus para a cidade de Buenos Aires
provocou certo encanto com aceitação e absorção da cultura desses imigrantes, como assinala
Jesús Martín-Barbero, no prólogo da obra Relatos de la diferencia y la igualdad: los
bolivianos em Buenos Aires, de Alejandro Grimson (2011, p. 7); no contraponto, os fluxos
migratórios atuais, provenientes majoritariamente de países vizinhos periféricos, não têm a
mesma aceitação, sendo vistos como uma ameaça à segurança da cidade.
A cidade ficou visivelmente múltipla, passando a ser observada como uma soma de
fragmentos, não sendo possível, portanto, dar conta desse território por meio de um discurso
totalizador. Segundo Néstor García Canclini,
57
A fragmentação das experiências registrada nos estudos sobre diversidade cultural urbana
torna evidente que não há saberes totalizadores. Nem o prefeito da cidade, nem o melhor
especialista em planejamento urbano têm uma visão em profundidade do conjunto; mas
chama a atenção, de vez em quando, que no desenvolvimento comunicacional apareçam
simulacros de totalização. (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 21)
Os dois fragmentos escolhidos para abrir este capítulo têm em comum, no cerne de sua
narração, a ideia da cidade fragmentada e o modo como essa, de forma sempre diversa para
cada habitante dos enclaves, pode influenciar as relações entre os sujeitos de diferentes
territórios da cidade.
O primeiro relato, “La chica que limpia (y que miente)”, expõe a relação de trabalho
de Catalina em uma casa de classe média (alta) e a percepção que ela, uma moradora da Villa
31, tem de si mesma e dos outros. Está composto por dois elementos: a reação do villero
diante do preconceito de lugar, configurada nas estratégias da empregada para que os patrões
não descubram seu local de moradia; e a angústia dos grupos mais abastados pela
proximidade da Villa, o que se manifesta na aflição da Senhora Arredondo por ter como vista
de seu apartamento a mesma favela em que reside sua empregada.
O relato retirado da obra de Ariel Magnus reflete a consequência dessa fragmentação
territorial ocorrida em Buenos Aires aos olhos de seu morador. A Senhora Arredondo
demonstra grande desconforto com a imagem que se projeta da sua janela: “– Sí, pero ahora
no puedo ver el río por culpa de esa villa. Es como cuando querés mirar a los ojos a una
persona con labio leporino.” (MAGNUS, 2012, p. 21).
O mal-estar da personagem deriva, de fato, dos efeitos de um processo de
fragmentação e de segregação socioespacial imposto ao longo do século XX. Em particular, a
personagem sente-se incomodada pelo contato, ainda que apenas visual, com esse
assentamento irregular que cresceu no coração da cidade de Buenos Aires. De acordo com os
termos usados pela personagem para descrever a favela, podemos concluir que, para certo
grupo social, a fragmentação é uma espécie de fissura ou anomalia no processo de produção
da cidade. O território já não é um território uniforme e as “fissuras” decorrentes da
fragmentação são percebidas como um defeito que, contudo, a personagem aponta como algo
congênito à formação desse corpo.
A cidade pensada como palco de disputas pela representação e pelo direito a ela pode
ser usada como um território de exercício do poder dominante, representado normalmente
pelos moradores dos espaços formais da cidade. E, quando fica evidente sua fragmentação, o
poder das classes mais abastadas perde certa força, deixando mais acirradas as disputas pelo
território.
58
Marcelo Lopes de Souza, em seu artigo “O território: sobre espaço e poder, autonomia
e desenvolvimento”, discute, inicialmente, o conceito reducionista do termo “território”. Para
o geógrafo carioca, o conceito foi – e continua sendo – visto como algo relacionado ao
Estado, ou seja, o território é compreendido sob o ângulo do Estado com todas as implicações
do discurso nacional que se pode adicionar:
Retornando ao conceito de território, é imperioso que saibamos despi-lo do manto de
imponência do qual se encontra, via de regra adornado. A palavra território normalmente
evoca o “território nacional” e faz pensar no Estado – gestor por excelência do território
nacional – em grandes espaços, sentimentos patrióticos (...). (2008, p. 81)
Após ser repensado por diferentes áreas do conhecimento, o termo passou a ser
compreendido, segundo Souza, não somente como o espaço sobre o qual o Estado detém
poder, mas como o espaço em que as identidades se formam. Dito de outra maneira, o
território passa a ser investigado como o lugar que dialoga com as identidades dos sujeitos
que por ali circulam ou vivem. A cidade fragmentou-se – e segue fragmentando-se –,
acabando por configurar-se como uma multiplicidade de territórios heterogêneos e, mais
recentemente, o processo redimensiona-se no âmbito cultural, surgindo, como consequência,
as pequenas “ilhas urbanas” que compõem o arquipélago da cidade, associadas a uma nova
concepção de território.
Frequentemente, Ariel Magnus reconhece que lhe agrada escrever sobre lugares: “Me
gustan los límites geográficos”. Em várias de suas obras podemos observar esse interesse por
territórios delimitados e um projeto narrativo que apresenta a leitura de uma realidade mais
geral a partir de um fragmento: o edifício, o bairro, a favela, a ilha urbana. Em La 31 (una
novela precaria), obra em que assume mais uma vez a tarefa de transformar uma geografia
real em geografia imaginada, a estratégia fragmentária encontra seu ímã no território. Em
alguns de seus capítulos são apresentadas características do espaço e inclusive momentos do
processo de formação desse território, merecendo destaque especial a fragmentação em suas
múltiplas dimensões, a qual, conforme assinalamos no capítulo anterior, repercute na estrutura
precária da narrativa.
Em um dos 32 capítulos da obra intitulado “De paso”, o personagem Romero divisa a
cidade a partir de uma janela móvel sobre a realidade durante sua viagem de trem. Divide essa
urbe em movimento entre “parte rica” e “parte pobre”, em uma clara alusão aos processos de
segregação induzida e auto-segregação que assumem sua cara mais visível das distâncias
entre os citadinos que orientam os padrões de diferenciação socioespacial:
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no es que fuera distinta la ciudad según Romero mirara su perfil rico o su perfil pobre sino
que él mismo era otro, más combativo o más resignado, más despierto o más distraído.
Desde que entendió la relación se propuso elegir la Buenos Aires que quería mirar en virtud
del Romero que quería ser (…). Tajante, antagónica, maniquea era la diferencia entre
ambas caras de la ciudad, pero no lo que cada una de ellas obraba en su espíritu. A veces la
silueta de la villa le hacía pensar en los dibujos de su hija, lo cual le causaba gracia y
ternura; a veces las fachadas francesas le daban nostalgia de París, donde nunca había
estado. (MAGNUS, 2012, p. 124)
Nessa passagem, fica evidente a forma como esta cidade estruturou-se a partir da
fragmentação socioespacial, dividindo-se em áreas pobres (villas e barrios obreros) e áreas
ricas (barrios cerrados), que podem ser classificadas pelo personagem com um simples olhar
lançado a sua volta durante o percurso do trem. O narrador faz ainda uma alusão indireta ao
processo de modernização da capital portenha, que se quis uma Paris dos trópicos, ao
comentar a nostalgia da cidade luz, sentida pelo personagem, quando passa pelas construções
com fachadas francesas.
Partindo da divisão da cidade feita pelo olhar do personagem Romero, voltamos à
análise do fragmento “La chica que limpia”. A imagem importuna, segundo a concepção de
território que tem a Senhora Arredondo, demonstra não somente a impossibilidade que alguns
grupos sociais têm de apreender que esses espaços periféricos também compõem a cidade,
bem como anuncia a necessidade emergente da autossegregação por parte desses grupos que
adotarão a estratégia da evitação e do não-contato. Comenta a personagem: “Yo no creo que
nosotros nos hagamos los distraídos (…). Donamos todos los años para los pobres. Y la
tenemos enfrente, cuando podríamos vivir en un country y no verla ni por televisión”.
(MAGNUS, 2012, p. 21. Grifo nosso).
O que a personagem sinaliza no comentário acerca dessa cidade fragmentada é a
possibilidade de não interagir e nem mesmo olhar para o “outro” a partir da opção, adotada
por muitos, de fugir da cidade e se isolar entre iguais em um country ou bairro fechado. A
questão da necessidade de autossegregação que alguns grupos sociais manifestam pode estar
relacionada ao “medo da cidade”, uma vez que é perceptível que esta já não é homogênea,
mas composta por fragmentos de territórios diversos em sua estrutura e nos sujeitos que neles
se estabelecem. Essa questão é muito bem abordada pelo geógrafo Marcelo Lopes de Souza
em seu livro Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana (2008).
Primeiro, faz-se necessário explicar o título pensado pelo geógrafo para sua obra dada
a importância que o termo tem para a discussão acerca do conceito de cidade e a
fragmentação do espaço. Marcelo Lopes de Souza explica, na apresentação de seu livro, que o
neologismo “fobópole” é a combinação de dois vocábulos “derivados das palavras gregas
phóbos, que significa ‘medo’, e pólis, que significa ‘cidade’” (2008, p. 9). O termo criado por
60
Souza evidencia a relação desse medo social com o urbano, sentimento que aumenta
gradualmente nos últimos anos do século XX, fazendo com que a cidade, perceptivelmente
não-homogênea e cada vez mais fragmentada, se converta no espaço da fobia.
O tema da fobia da cidade poderia ser a base de análise de muitos relatos da obra La
31 (una novela precaria) visto que em diferentes momentos a obra problematiza algumas
questões que estão no cerne desse sentimento. Em consequência do medo que se sente dos
territórios da alteridade, a segregação induzida pelas circunstâncias e a autossegregação
podem assumir-se como medidas preventivas das quais muitos personagens da obra lançam
mão para evitar o contato com o “outro”.
Marcelo Lopes de Souza explica a diferença entre os dois conceitos de segregação
supracitados: o primeiro refere-se à segregação territorial imposta a alguns grupos sociais;
essa imposição pode ou não ser forçada, relegando esses grupos a espaços periféricos, como
as favelas. No outro extremo da questão da segregação urbana, aparece a autossegregação que
consiste na escolha das classes média e alta por viver em condomínios fechados,
concretizando um processo de apartação que lhes garanta a sensação de segurança e distinção
do isolamento entre iguais. Souza considera a ideia de “fragmentação” da cidade a partir da
análise dessas duas formas de segregação espacial:
aqui o uso da palavra [fragmentação] é essencialmente adequado, uma vez que o tecido
espacial que emerge do processo não é somente “diferenciado internamente” ou
caracterizado por disparidades. Está-se lidando, na verdade, com uma cidade cada vez mais
segmentada por poderosas fronteiras invisíveis, ilegais em grande parte. Fronteiras são
estabelecidas com a finalidade de controle espacial (SOUZA, 2008a, p. 58-59).
O geógrafo define a fragmentação como um processo pelo qual as cidades passam, e
não como um estado absoluto das mesmas. Esse argumento de Souza dialoga diretamente
com as causas históricas e sociais que abordamos anteriormente acerca da reconfiguração da
cidade de Buenos Aires desde o início do século XX. É essa transformação no processo de
produção da cidade que incomoda tanto “o olhar” da Senhora Arredondo, como vimos no
trecho acima.
Renato Cordeiro Gomes, em seu livro Todas as cidade, a cidade (2008), denomina
como “cidade real” esse território que foi recalcado ao longo do processo de modernização e
“europeização” da cidade – no caso da obra citada, na cidade do Rio de Janeiro, mas que se
assemelha ao processo na capital argentina, como vimos no início deste capítulo –; e que,
após o fracasso do projeto de modernização, volta à “cena”:
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Esta cidade real, por onde circulava uma rica tradição popular, não cabia na versão da
“ordem”. Era vista como obscena, ou seja, deveria estar fora de cena, para não manchar o
cenário (...). (GOMES, 2008, p. 116)
O “obsceno” figura na cena por meio dos territórios periféricos que passam a compor
essa cidade idealizada anteriormente como pura, limpa e bela. A periferia como parte desse
quebra-cabeça, que é a cidade, já não pode ser preterida; ela constitui a cidade, bem como os
espaços formais, enquanto unidade territorial. Embora a ideia de fragmentação fique clara em
várias análises teóricas acerca da constituição do urbano, não se pode pensar a cidade como
um território segmentado com “ilhas urbanas” estanques que não se comunicam entre si.
Marcelo Lopes de Souza, dando seguimento a sua análise acerca da fragmentação da cidade,
considera que esses “fragmentos” territoriais não estão isolados dentro da urbe:
Fragmentação tem a ver, obviamente, com fragmentos. E fragmentos são partes, frações de
um todo que ou não se conectam mais, ou quase não se conectam mais umas com as outras:
podem ainda “tocar-se”, mas não muito mais que isso. Claro está, ou deveria estar, que se
trata de muito mais que de um processo de “diferenciação”. (SOUZA, 2008a, p. 56)
A ideia da não conexão entre as frações de uma cidade sugere que esta é um espaço
totalizador, o que não ocorre na prática. O “tocar-se”, como sugere Souza, no que diz respeito
aos fragmentos da cidade, pode ser uma saída para deslocar essa concepção de espaço
totalizador, uma vez que os sujeitos de uma cidade transitam pelos diferentes territórios que a
compõem.
Conquanto a fragmentação seja um fenômeno social vivenciado por diferentes
metrópoles, as “ilhas urbanas” (LUDMER, 2010) não podem ser concebidas como territórios
fechados em si. Dito de outro modo, os territórios que constituem a cidade são atravessados e
conectados por um fluxo contínuo e cotidiano de sujeitos em movimento: pessoas transitam
pela cidade para se divertir, para trabalhar, para usufruir de seus equipamentos e pelos mais
diversos motivos.
Alguns territórios podem ser chamados de “ilhas urbanas” porque existe neles uma
identidade que os difere dos demais, mas isso não significa que eles estão isolados dentro da
cidade. Jailson de Souza e Silva, em seu texto “Carta para Zuenir Ventura” (2012) –
divergindo do argumento que Ventura defende em seu livro Cidade Partida (1994), segundo
o qual a cidade do Rio de Janeiro apresenta uma divisão socioespacial entre a favela e o
“asfalto” sem que haja qualquer interação entre os moradores de ambos os territórios –,
pleiteia que existe sim uma circulação de sujeitos de diferentes territórios por outros espaços
da cidade por motivos diversos, como assinalamos acima:
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Meu olhar era outro, que vem dos territórios dos moradores das favelas e das periferias – ou
de outras centralidades (...). Esses moradores, entre os quais sempre me incluí por origem e
práticas sociais, sempre tiveram que circular na cidade em busca de trabalho, de lazer, de
atividades culturais. (...) Nesse caso, a cidade é atravessada por um conjunto de práticas de
circulação que faz com que ela não seja “partida” para os pobres, pelo menos não na
dimensão da inserção no território, de forma global. Eles buscam viver na cidade de forma
plena. (SILVA, 2012, p. 20)
Embora ambos os textos estejam tratando da cidade do Rio de Janeiro, o argumento
utilizado por Jailson Silva para refutar o texto de Zuenir Ventura remete à realidade
socioespacial criada por Ariel Magnus: o autor não olha para toda a cidade, mas para partes e
parcelas de um enorme quebra-cabeças do qual jamais se tem uma noção completa.
Fragmentos dentro de uma estrutura fragmentada é a villa 31 de Ariel Magnus.
Muitos são os personagens da obra de Magnus que corroboram o argumento de Silva,
ao colocarem em prática movimentos de circulação pela cidade. Entre eles está Mercano el
marciano (p. 18-19; 49-52), que cruza a cidade até o abastado Barrio Norte a fim de conseguir
caixas de papelão descartadas para vender: “de codos sobre el parabrisas inexistente de su
falso colectivo Mercano dobló por la avenida Libertador y avanzó hacia el lado de la
autopista” (MAGNUS, 2012, p 18). No fragmento “Los violadores recoletos”, dois jovens
moradores da Villa 31 resolvem deslocar-se a um dos bairros nobres da cidade, Palermo, para
violar alguma mulher desse território com o objetivo de cobrar em “especias todos los
rechazos que habían facturado de las mujeres a lo largo de sus existencias” (MAGNUS, 2012,
p. 30).
Catalina, de “La chica que limpia (y que miente)”, também circula pela cidade, uma
vez que seu local de trabalho se localiza em outra parte da cidade. A personagem não só
diferencia seu grupo social daquele integrado pelos seus empregadores, especialmente a partir
do local de moradia de cada um, como maximiza essa diferença, assinalando que o território
em que vive pode dar-lhe características de estigma concreto, reproduzindo um discurso
social de preconceito em relação à favela.
Aunque llevaba casi tres años trabajando en ese departamento de lujo, no conseguía tocar
una taza sin sentir que la ensuciaba, al punto de que no entendía que no le hicieran usar
guantes y cofia. En general le costaba entender que una persona tan blanca y pulcra como la
señora de Arredondo se hiciera limpiar la casa por una negrita que vivía en la más
espantosa suciedad, la urbana. (MAGNUS, 2012, p. 23)
Não há, contudo, no texto, qualquer menção por parte de seus empregadores à suposta
“sujeira” de Catalina. O que se tem é um reflexo da autoimagem que a personagem faz de si
mesma a partir da ideia que ela tem do ponto cego da cidade que é a villa em que vive.
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A circulação dos personagens confirma, portanto, a tese de que os sujeitos transitam
por diferentes territórios de uma mesma cidade. Isso não significa, no entanto, que possamos
assimilar a cidade como um território único, ainda que haja uma noção precária do “todo” que
seria formada pelos diferentes fragmentos conectados pelos deslocamentos dos personagens.
Ariel Magnus, por meio de sua narrativa precária, trabalha exatamente com essa ideia da
circulação feita por personagens de diferentes territórios, mostrando uma costura espacial
desse universo múltiplo formado por diversos fragmentos. A forma como estrutura-se a
cidade está na base de muitas narrativas recentes, como vimos no capítulo anterior. Magnus e
Ruffato são apenas alguns exemplos de autores que apresentam uma estética relacionada ao
espaço e trabalham com essa noção de território estilhaçado.
Milton Santos discute no capítulo “O espaço e a noção de totalidade”, em sua obra A
natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção (2012), a impossibilidade de apreender
a totalidade sem pensá-la como um processo de algo cindido, fragmentado:
O conhecimento da totalidade pressupõe, assim, sua divisão. O real é processo de
cissiparidade, subdivisão, esfacelamento. Essa é a história do mundo, do país, de uma
cidade... Pensar a totalidade, sem pensar a sua cisão é como se a esvaziássemos de
movimento. (SANTOS, 2012, p. 118)
A forma como muitas narrativas do presente estão estruturadas mostra um claro
diálogo com o argumento de Milton Santos de que não se pode pensar uma cidade em sua
totalidade sem levar em consideração o desmembramento ou sua composição a partir de seus
múltiplos fragmentos. Compor uma narrativa totalizadora em que o lócus narrativo seja a
cidade seria desconsiderar essa realidade, e isso já não é possível.
Em La 31 (una novela precaria), Magnus trabalha exatamente com uma ideia
semelhante a que foi proposta por Santos, levando seus personagens a caminharem por uma
cidade fragmentada, sem prescindir uma noção englobadora dos diferentes microterritórios
que a compõem. O encadeamento dado para a leitura do livro também dialoga com a estrutura
da cidade: histórias, teoricamente estanques, que reafirmariam a ideia das “ilhas urbanas”,
podem cruzar-se em outros capítulos, tal qual o movimento feito por pessoas de diferentes
territórios dentro da cidade.
Se a cidade não constitui uma totalidade, mas uma unidade composta por fragmentos,
a apreensão desse território será única a partir dos fragmentos territoriais em que cada
indivíduo circula. O olhar sobre a cidade pode proceder dos territórios periféricos, dos
territórios abastados ou de um entre lugar e é exatamente a experiência da circulação por esses
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espaços que dará ao sujeito seu lugar de leitura em relação à cidade, como afirmou Jailson
Souza e Silva a Zuenir Ventura no trecho que reproduzimos anteriormente.
No segundo fragmento que abre este capítulo, intitulado “Villusa” – “Favelusa”, na
tradução para o português –, o personagem Lungo tem como objetivo fazer a revolução neste
país chamado favela para “villarizar” de vez a cidade em um movimento contrário ao que
normalmente se pretende, assinalando a clara intenção de que a favela não se adéque aos
projetos de urbanização e sim que esta se adapte aos processos de “favelização”. Lungo
sugere que Buenos Aires assuma o aspecto desse fragmento territorial ocupado pelos sujeitos
que ficaram à margem da cidade formal. Insinua-se, a partir da lógica de Lungo, uma lógica
de valorização do fragmento territorial “indesejável”, conforme argumenta Zygmunt Bauman
(2005), em dissonância com a unidade da cidade.
O protagonista do fragmento é um desses sujeitos do deslocamento. Percebe a cidade e
seu território a partir da visão do morador do espaço periférico e subverte a lógica do olhar
externo. Lungo, um revolucionário da villa, faz lembrar o grupo dos P.V.C. (Pensadores
Villeros Contemporáneos), que organizou-se em torno de poetas e narradores saídos do
sistema carcerário para refutar os discursos hegemônicos. O personagem trabalha a partir da
visão equivocada que a cidade formal tem desse território periférico e decide fazer uma
revolução social a partir da palavra. O narrador do fragmento traz para o centro do seu
discurso a imagem dos “extraterrestres”, que aqui, de modo subversivo, parodia a visão que
muitos têm dos moradores da favela.
Em contrapartida à visão do protagonista de “Villusa”, a personagem Senhora
Arredondo assimila a fragmentação da capital portenha a partir de seu olhar de classe média,
deixando evidente sua preferência por não ter contato com os espaços periféricos da cidade, e
mostrando, consequentemente, uma leitura a partir da imagem hegemônica do território. À
vista disso, fica evidente a estratégia de Magnus de dar a sua narrativa múltiplos olhares sobre
a cidade a partir dos diversos territórios que a compõem, não apenas das classes abastadas,
mas do próprio morador da periferia, utilizando para isso a ideia de deslocamento da voz.
Ricardo Piglia sugere o deslocamento como complemento das cinco propostas
idealizadas por Ítalo Calvino para a literatura deste milênio. O escritor argentino pretende, em
seu artigo “Uma proposta para o novo milênio”, pensar a literatura a partir do deslocamento,
ou seja, a partir da margem.
O romancista argentino inicia a discussão questionando qual seria a sexta proposta de
Ítalo Calvino se a literatura fosse pensada a partir do “subúrbio do mundo” e como narrar o
“horror” sem que haja uma forma diferente de relacionar-se com a linguagem, sem pensar de
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onde se fala. O que Piglia objetiva com essa proposta é uma narração sob a perspectiva do
território e de seus sujeitos à margem; objetivo semelhante também parece ser o de Magnus
ao pensar uma narrativa a partir do olhar dos sujeitos ficcionais de vários territórios, inclusive
do território periférico.
Creio, então, que poderíamos imaginar que há uma sexta proposta. A proposta que eu
chamaria, então, de distância, deslocamento, mudança de lugar. Sair do centro, deixar que a
linguagem fale também na margem, no que se ouve, no que chega de outro. (PIGLIA, 2012,
p. 4)
Elena Palmero González, na definição do verbete “Deslocamento / desplaçamento”
(2010), aborda alguns dos vários sentidos que podem ter esses dois vocábulos, entre eles está
a ideia de Ricardo Piglia. González explica que este deslocamento do olhar a partir da
margem é um olhar “do descentramento, das fronteiras e da transgressão” (2010, p. 114).
O professor e pesquisador Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, em sua mais recente
obra acerca da representatividade das margens nas obras de Rubens Figueiredo, discorre
acerca da experiência de autores que são originários desses territórios periféricos e como se dá
suas narrativas a partir desse lugar.
O enlace entre documento e ficção é resultante do lugar ocupado pelo sujeito autoral, que
em alguns casos passa a figurar como personagem da própria narrativa. Afinal, não
podemos deixar de observar que, ao apresentar-se como ex-morador da favela por ele
romanceada, Paulo Lins passa a ser “personagem, ator, agente que se situa naquele mesmo
espaço físico, arquitetônico e simbólico de exclusão de que fala” (...). A mesma análise
pode ser facilmente aplicada a Ferréz, autor residente na favela do Capão Redondo,
localizada na periferia da zona sul de São Paulo, que utiliza sua vivência marginal como
matéria literária. (PATROCÍNIO, 2016, p. 135-136)
É claro que não estamos sugerindo que o autor de La 31 assuma esse olhar à margem,
uma vez que Ariel Magnus é um escritor de classe média, que estudou e morou na Alemanha
entre os anos de 1999 e 2005. Depois esteve na Suíça por dois meses e é aí, em Zurique, que
irá terminar de escrever La 31.
Magnus não pretende narrar a cidade a partir do lugar de um estudioso ou de um
conhecedor do território. Sua obra não é uma ficção de caráter documental, tal qual produziu
Paulo Lins em Cidade de Deus; tampouco recorre à experiência de vivência no território,
como o fez Ferréz em Capão pecado. O deslocamento que pretendemos identificar aqui se
opera nas vozes e no movimento dos personagens para narrar a representação de uma
realidade tão dura e tão comum nesse território, em um movimento semelhante ao que trata
Ricardo Piglia. O que se move é a perspectiva, o lugar de onde provêm os ecos reunidos na
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fala que narra e também os próprios sujeitos, apresentando distintos modos de se inserir na
cidade.
Se Ariel Magnus não parte da premissa de que tem a experiência da vivência no
território marginal que narra, também não objetiva ser mediador de qualquer discurso
referente a esse território, o que não endossa a ideia de que ele não pode falar por não ser de
“dentro” – partindo de um discurso conservador de propriedade da fala –, uma vez que sua
narrativa, embora trate de um território real, é uma representação ficcional desse lugar.
Portanto, sua narrativa não parte do olhar de dentro, mas se opera a partir de uma narrativa
acerca da exterioridade do interior da villa, lançando um olhar muito particular para questões
referentes a esse lócus.
No entanto, não há qualquer indício de que Ariel Magnus tente ser um porta-voz de
grupos marginalizados, o que fica claro por meio do esvaziamento realista de seu discurso;
tampouco pretende escrever apenas para o público proveniente do território escolhido como
lócus narrativo de sua obra.
Não pretendemos com isso equiparar a fala de Magnus à fala dos autores que se
enquadram, a partir de um movimento literário proposto por Ferréz, na literatura marginal
brasileira, uma vez que o olhar para a favela se dá de forma bastante distinta. O
referencialismo da experiência nesse território da alteridade pode fazer com que algumas
obras incluídas nesse movimento literário tenham uma narrativa mais limitada ou até mesmo
insuficiente desse lócus narrativo.
Na obra Escritos à margem: a presença de autores de periferia na cena literária
brasileira, de 2013, o professor Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, durante uma exposição
da problemática que há em relação à voz que pode falar pelo sujeito marginal, reproduz a
parte da crônica “Cultura é poder”, de Preto Ghoéz, a respeito das produções artísticas feitas
sobre a favela (p. 228).
Todo mundo quer ser perifa, quer ser favela. E assim eu vejo uma pá de maluco
documentando a dureza do dia a dia da favela, uma pá de filme documentando a violência
na quebrada, e neles eu vejo um bagulho que a esteriotipização de um estilo de vida, as
roupas, as gírias, os loucos, as fitas.
Por meio de visão diferente desse lugar, a narrativa de Magnus parte da exterioridade
desse território, ou seja, parte de um olhar externo com o esvaziamento do ponto de vista
realista do relato. Esse tom não realista dado por Ariel a sua narrativa abre espaço para um
movimento de refração desse centro vazio, propondo diversos olhares acerca desse território.
Percorrendo um caminho distinto do que seria a romantização da favela – e tudo o que
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poderia a ela estar relacionado –, propõe um sem número de olhares que não se encerram em
uma visão totalizante desse território e que tampouco lançam mão de estereótipos acerca do
lugar e dos sujeitos que ali vivem, dialogando, portanto, com os argumentos de Preto Ghoéz
lançados em sua crônica.
Nos trinta e dois capítulos que compõem o romance de Magnus, a narrativa advém, em
grande parte, desse território da margem. A representação do cotidiano desse lugar ocorre a
partir das vozes que ecoam nesse âmbito de deslocamento, embora, em alguns relatos, a
cidade formal seja palco para a representação. No entanto, quando o narrador lê a sociedade a
partir do deslocamento, o faz como estratégia narrativa colocando em foco o lugar e a cultura
do “outro” (da margem), normalmente mostrando o imaginário preconceituoso assimilado
pelas classes médias e altas portenhas.
A Villa 31 do romance existe no espaço da escrita, mas também existe concretamente
no bairro do Retiro na cidade de Buenos Aires. A utilização de uma foto tirada da Villa 31
para compor a capa da obra é um indício da relação que Magnus traça entre seu território de
ficção e a favela real, embora os personagens do autor não estejam colocados na Buenos Aires
ou na Villa 31 empírica. A 31 de Ariel é uma transposição de aspectos da favela concreta
(primeira realidade) para uma segunda realidade onde a favela só ganha existência na forma
artística.
Em contraponto a esta estratégia de Ariel Magnus – que se manifesta na própria
estrutura do livro formada por 61 fragmentos, como uma espécie de referência cifrada a uma
31 bis – poderíamos citar a obra Villa 31: historia de un amor invisible. Esse romance, escrito
por Demian Konfino e lançado no mesmo ano de La 31 (una novela precaria), apresenta uma
proposta mais tradicional. Configura-se, na obra, uma trama que assume um lugar central e
toda a ação ocorre na Villa 31, lugar onde Konfino trabalhou durante anos em uma ONG, o
que se mostra um elemento fundamental para assegurar sua autoridade epistemológica se
pensarmos em um discurso mais conservador no que diz respeito à autoridade da fala. Em
entrevistas publicadas na imprensa e no paratexto da própria obra, o autor afirma
insistentemente sua experiência na Villa 31 e o desconhecimento dos outros, fator que o
autorizaria a narrá-la. Konfino leva a Villa 31 para o plano da ficção, mas, nesse processo,
abdica de criar a Villa 31, a sua Villa 31. Ao contrário de Magnus, Konfino escreve o
romance somente a partir de seu contato com essa realidade e com as histórias e memórias da
31. O enredo parte da fundação da favela e chega até os dias atuais, passando por vários
momentos da Villa 31: a privatização dos trens, as causas e consequências da marginalidade,
a importância de Padre Mugica para o território, entre outros.
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Sandra Jatahy Pesavento, em seu texto “Pedra e sonho: os caminhos do imaginário
urbano” (1999), fala das representações que a literatura pode fazer da cidade, tal qual o faz
Magnus:
Sobre tal cidade, ou em tal cidade, se exercita o olhar literário, que sonha e reconstrói a
materialidade da pedra sob forma de um texto. O escritor, como espectador privilegiado do
social, exerce a sua sensibilidade para criar uma cidade do pensamento, traduzida em
palavras e figurações mentais imagéticas do espaço urbano e seus atores. (PESAVENTO,
1999, p. 10)
A reconstrução da materialidade seria a forma como o autor reescreve a cidade, ou
seja, como ele a imagina, não no aspecto real, mas no campo ficcional. Magnus não escreve
apenas acerca de favela número 31, localizada no Retiro, ele escreve e recria,
simultaneamente, essa favela a partir de suas narrativas. Não existem na 31 do Retiro os
personagens utilizados pelo autor em seu romance. Ariel lança mão do nome e de uma
imagem de território existentes para ficcionalizar, sem pretensão de assumir o lugar de uma
fala autorizada de quem conhece de dentro. Assim, por meio de um romance com
características bem específicas, como tratamos no capítulo anterior, manifesta-se a condição
de Magnus como inventor de espaços, traçando uma complexa imagem territorial no plano da
imaginação literária sem ser subserviente ao referente, embora deixe clara – por meio de suas
incursões na 31, por exemplo – a relação entre o espaço ficcional e o espaço real.
Ariel Magnus traz a fragmentação do espaço urbano para o espaço da escrita, criando
uma forma de “novela” descontínua que em muito lembra o tecido fragmentado da cidade. A
literatura, apoiada no território real da cidade, pode reescrevê-la a partir de uma sensibilidade
desse espaço, assim como o faz o autor, problematizando as relações cidade-favela.
Para Sandra Jatahy Pesavento, “trata-se, sem dúvida, de espaços e personagens
imaginários que, contudo, se constroem sobre experiências vividas na trama das relações
sociais” (1999, p. 14). Esses personagens imaginários são idealizados a partir de elementos
retirados da leitura feita das relações sociais, envolvendo atores internos e externos em
diferentes processos de sociabilidade fundados no urbano. A escrita literária também pode
narrar o imaginário da cidade por meio de sua arquitetura e os territórios que a estruturam,
ocorrendo o que se poderia denominar de “deslocamento, na medida em que as imagens
produzem seu espaço no pensamento e se traduzem em discursos” (PESAVENTO, 1999, p.
15).
Magnus não apenas caracteriza essa cidade a partir de um imaginário, como utiliza
algumas imagens desse território real para produzir uma representação do mesmo,
descrevendo, no âmbito da ficção, sua arquitetura e alguns de seus tipos humanos, inventando
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uma realidade hiperbólica que leva ao limite os estereótipos construídos sobre esse lugar e
seus habitantes. Como exemplo dessa afirmativa, há a constatação do caráter inconclusivo e
precário das moradias na villa e que, ao longo de muitos relatos da obra, é assumido como
cerne da sua representação literária. Para ilustrar esta afirmação, escolhemos um trecho do
capítulo 9, “Teorías y análisis de la villa: La differance de la mismidad”, no qual o narrador
descreve hábitos semelhantes de pobres e ricos, enfatizando porém, que o lugar e a classe
social diferenciam a forma como são adquiridos tais hábitos e o sentido dado aos materiais
usados para a construção:
Ciertamente, los ladrillos que se dejan a la vista en las casas de mal gusto son un tipo
diferente a los que en la villa quedan expuestos por falta de material, pero eso no quita que
la equivalencia sirva para subrayar una paradoja muy documentada entre ricos y pobres, a
saber, que el rico muchas veces elige por capricho lo mismo o casi lo mismo que el pobre
padece por falta de recursos. Desde la decoración minimalista o las paredes “al natural”
hasta los jeans rotos o las zapatillas sucias, pasando por dietas de hambre y el exceso de
preocupaciones – tan ficticias como los agujeros en la ropas la falta de sustancia en el plato
–, los ricos convierten en moda lo que para los pobres es mera fatalidad, aunque siempre
cuidándose de que se note la diferencia: fuman paco pero con uñas limpias, escuchan
cumbia villera pero en reproductores de marca, buscan tener los músculos de un obrero de
la construcción pero dentro de un gimnasio y bajo la tutela de un personal trainer.
(MAGNUS, 2012, p. 26-27)
O narrador descreve os hábitos desses personagens imaginários a partir de relações
sociais que se estabelecem entre diferentes grupos econômicos e estendendo sua análise – sem
julgamento de valor – às diferenças observadas em certos aspectos das moradias dos dois
grupos. O leitor da obra poderá ler a cidade de Buenos Aires a partir do olhar literário do
autor ao fazer a representação de um território e estruturar personagens tipo, dialogando
criticamente com uma galeria de imagens postas em circulação. Sandra Jatahy Pesavento
explica que pode existir uma visão literária da cidade,
pois cada um carrega consigo o seu “capital” neste ato de “ver “ e “narrar” a cidade,
constituído de suas habilitações específicas e cargas de sensibilidade próximas, mas são
todos os olhares que se cruzam em torno da mesma concretude da urbe. As representações
da cidade, construídas por cada um desses leitores, é que estabelecerão distâncias e
aproximações, perguntas e respostas umas às outras, como num jogo de espelhos.
(PESAVENTO, 1999, p. 18)
Os leitores de La 31 (una novela precaria) podem ler a capital portenha a partir da
obra, com base em suas vivências na cidade, embora na obra de Magnus haja uma mescla de
discurso ficcional e dados reais desse território. O território periférico pode ser para um
determinado leitor o lugar do medo, tal qual o é para os personagens externos que transitam
por ele, ou o território de identificação, caso vivam ali. É a sensibilidade do olhar da qual fala
Pesavento.
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Algumas obras literárias sobre villas escritas na Argentina parecem dialogar com a
teoria de Pesavento no que diz respeito à ideia de que os territórios e sujeitos imaginados são
construídos a partir de uma vivência das relações sociais. Cada autor dessas obras, em anos
diferentes, apreende a cidade de maneira distinta e, a maioria deles, não percebe a cidade de
forma fragmentada como Ariel Magnus, construindo, portanto, uma narrativa linear muito
próxima à estrutura do romance tradicional. Em três obras de interesse de Magnus em que há
o nítido binômio cidade/favela; veremos que o autor, de formas diferentes, demonstra a
importância dessas obras para seu projeto com La 31 (una novela precaria).
A primeira de que se tem conhecimento a respeito do tema “favela” é Villa miseria
también es América, de Bernardo Verbitsky, de 1957. A obra foi escrita no período da
Revolución Libertadora, nome dado pelos militares à ditadura que se estabeleceu após o golpe
de Estado que levou à queda do presidente Juan Domingo Perón, em setembro de 1955.
Espécie de etnografia urbana de um autor que mergulhou na realidade dos bairros periféricos
de Buenos Aires, a narrativa atravessa a vida de famílias de imigrantes internos e externos que
chegavam à villa, apresentando um discurso sociológico bastante agudo que debilita a base
narrativa.
El recuerdo terrible de la Villa Basura, deliberadamente incendiada para expulsar con el
fuego a su indefenso vecindario, era un temor siempre agazapado en el corazón de los
pobladores de Villa Miseria. La noticia de aquella gran operación ganada por la crueldad,
no publicada por diario alguno, corrió no obstante como un buscapiés maligno. (…)
Durante un tiempo velaron guardias nocturnas en Villa Miseria, para no ser sorprendidos.
Nada ocurrió, en muchos meses. Pero una madrugada despertó el barrio en medio del
amenazante y confuso rumor de voces de mando y ladridos de perro, entre gritos de
intimidación y de alarma. Hombres y mujeres, sobresaltados, mal despiertos y a medio
vestir, sintieron la angustia de ser, ellos y sus familias, el objeto mismo del ataque.
(VERBITSKY, 2003, p. 11)
Fabián había comprendido y quería que también los demás lo entendieran; aquella
espantable razzia que habían soportado se realizó para cumplir un requisito judicial que
permitiría seguir el pleito para desalojarlos. La angustia de despertar sobresaltado, el terror
de chicos y mujeres, el arreo de los hombres como animales y su trato como si fueran
delincuentes. (…) Pero la exigencia del procurador y su cumplimiento por el comisario
traducían además la actitud mental del Señor Groso, propietario del terreno la obligación de
establecer la identidad de todas las personas que allí vivían para poder demandarlas una a
una le parecía imposible al Señor Groso por el camino normal. Nunca había penetrado en la
ciudad enana y desde afuera la imaginaba una ciudadela enemiga, y a la vez un reducto de
criminales. Le fascinaba ese mundo pero se conformaba con imaginárselo, y aunque con
frecuencia, (…) descartaba absolutamente el entrar, del mismo modo que nunca había
pensado pasear por el anillo de Saturno. (VERBITSKY, 2003, p. 55)
Bernardo Verbitsky escreve um romance singular para a literatura argentina por ter
sido pioneiro ao escolher como lócus narrativo a favela. É um convite para conhecer esse
território periférico em uma época em que não se discutia o tema. Os dois trechos que
escolhemos para citar mostram a preocupação do autor em narrar os problemas sociais pelos
71
quais passavam os moradores da favela. Nos dois trechos, o narrador relata o desespero dos
sujeitos que ali viviam na iminência de uma expulsão do território, sendo o primeiro uma
estratégia mais violenta utilizada contra as famílias, dialogando ambos os relatos com o
fragmento “La villa y la bestia” que está em La 31. No fragmento, o narrador também relata a
tentativa de expulsão na década de setenta dos moradores da favela pelos militares, o que foi
impedido em consequência da relação amorosa entre a moradora Gina e o tenente coronel
Augusto F. Rossio (MAGNUS, 2012, p. 91-93).
Pedro Orgambide, no prólogo da obra de Verbitsky, explica o título “villa miseria”
cunhado pelo autor:
El lector puede intuir desde el mismo título de la novela que lo que se cuenta en esta obra
tiene lecturas paralelas en Paraguay, en Bolivia, en las ciudades perdidas de México o en
las favelas de Brasil. En este sentido, Villa miseria también es América es la más
latinoamericana de las novelas de Bernardo Verbitsky, al dar cuenta del mestizaje que se
opera en las zonas marginales de la ciudad. (VERBITSKY, 2003, p. 9)
A obra conta diversas histórias, mas sem fragmentar-se como a narrativa de Magnus.
A percepção da cidade é outra e a narrativa apresentará os personagens muito isolados em
núcleos estanques, reflexo de uma visão dominante à época da escrita do livro. Por outro lado,
pode-se dizer que há uma ideia de fragmentação na obra de Verbitsky se pensamos o título
analisado por Pedro Orgambide. O autor não trabalha com a fragmentação da cidade, mas
com uma esfera muito maior: a fragmentação da América Latina com seus diversos territórios
periféricos que dialogam entre si no que diz respeito à precariedade que lhes é comum,
formando uma unidade no continente.
Ariel Magnus uma vez mais dialoga com o cânone literário em La 31 (una novela
precaria). Dessa vez, ele faz referência à Villa miseria también es América (Magnus, 2012, p.
115), em uma clara homenagem à primeira obra que trata das villas em Buenos Aires e que
cunhou a expressão “villa miseria”, que daria nome aos assentamentos irregulares da capital
portenha. O fragmento em que há a referência é a segunda parte de “Alegoría miseria” no qual
a história do personagem Lungo é contada, fazendo com que os fragmentos narrativos da obra
toquem uns nos outros. O narrador conta que Lungo não era morador da favela; teria visitado
a 31 durante um tempo para coletar informações para seu romance – tal qual fez Bernardo
Verbitsky –, que seria a reescritura do romance Villa miseria también es América e teria como
título “Villa miseria también es USA”, o que explica, tardiamente ao leitor, o título do
fragmento “Villusa”, no qual Lungo é o personagem central.
Segundo esse relato, Lungo decide permanecer como morador do lugar em
consequência da quantidade de material encontrado para seu romance. O resultado dessa
72
permanência foi o plano para que o território villero se expandisse por toda cidade, como no
fragmento citado na abertura deste capítulo.
Cinquenta anos após a publicação da obra de Bernardo Verbitsky, é lançado na
Argentina o livro La Virgen Cabeza, de Gabriela Cabezón Cámara. A obra segue a proposta
de ter a favela como lócus narrativo da trama, mas difere de Villa miseria también es América
em muitos pontos. Na obra de Cabezón, já não há uma abordagem sociológica na trama,
embora a autora descreva uma série de problemas que poderiam ser encontrados em muitas
favelas de Buenos Aires ou de outras cidades externas a Argentina. Está claro que é uma
representação desse território tal qual faz Ariel Magnus, tendo sido inclusive uma das obras
que influenciariam a escrita de La 31.
Na obra, a travesti Cleopatra, moradora da villa El Poso, tem uma revelação religiosa:
ela vê a Virgem Maria. Essa visão inspira a travesti a sair da prostituição e direcionar seu
olhar aos problemas da favela com o intuito de ajudar os moradores desse território. A
personagem, após essa visão, passa a fazer milagres, e todo tipo de gente – os moradores da
favela, assim como as pessoas externas ao território – a procura com o objetivo de resolver
seus problemas pessoais. O resultado dessa busca a Cleopatra é a notícia por toda cidade do
travesti que opera milagres.
Qüity, uma jornalista que objetiva ganhar um prêmio muito importante do jornalismo,
decide ir a El Poso ver de perto esse fenômeno que já havia ganhado grande notoriedade na
cidade. Durante sua permanência na favela, Cleopatra e Qüity apaixonam-se. A relação entre
as duas personagens poderia ser a trama principal da obra; no entanto, o que se lê é um
conjunto de pequenas tramas que envolvem pibes chorros, narcotraficantes, violência,
prostituição, corrupção policial e fé; tudo isso com muita dose de ironia. Desta forma inicia a
trajetória de Qüity pela favela:
Entré a la villa un año y medio después, un día de noviembre. Era muy temprano, como las
ocho; con Daniel pensamos que la hermana Cleopatra seguramente había redescubierto la
mañana poco tiempo atrás, después de abandonar la vida nocturna. Había llovido mucho el
día anterior y la villa resucitaba después del diluvio; estábamos tan hundidos en el barro
que parecíamos emerger de ahí, como las primeras criaturas del dios de la Virgen que
hablaba y sigue hablando con Cleopatra. (CABEZÓN, 2009, p. 51)
O olhar da villa na obra de Cabezón acontece a partir de uma jornalista de classe
média que poderia entrar no território com a carga de um imaginário estereotipado – como
acontece com os personagens pertencentes a essa classe na obra de Ariel Magnus – , mas ela
encontra na favela seu lugar, um lugar de empatia.
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La llamaban “La Virgen estanciera” y “la patroncita morena” también, que es parecido a
como le dicen a la nuestra, “la Virgen Cabeza”, por nosotros, que éramos todos cabecitas
como nos decían las viejas chetas del barrio (…) (CABEZÓN, 2009, p. 125)
A explicação para o nome dado a Virgem Maria na favela dialoga diretamente com a
etnia de parte da população que vive nesse território: os descendentes de indígenas que a
partir dos anos de 1940 migraram do norte da Argentina para as periferias da cidade Buenos
Aires e foram apelidados pejorativamente de “cabecitas negras”.
Gabriela Cabezón Cámara apreende essa cidade narrada em seu livro a partir de dois
territórios diferentes: a cidade formal e a favela. Entretanto, não percebe essa cidade de forma
tão fragmentada, como Magnus, e isso fica nítido em sua obra. Toda estrutura narrativa é
linear, tal qual Villa miseria también es América, oscilando ora com pequenos relatos que
ocorrem na cidade, ora relatos na favela, na maioria da vezes.
Ariel Magnus, durante a entrevista que nos concedeu em 2015, comenta que há poucas
obras que utilizam a favela como lócus narrativo e afirma que a obra de Cabezón foi muito
importante para seu projeto porque lhe permitiu pensar esse território em diálogo com o
ficcional antes de escrever La 31 (una novela precaria). Ao ser questionado se teria se valido
de obras que discutem a temática favela para escrever seu romance, o autor comenta:
No hay, que no encontré. Hay muy pocos libros sobre la villa. Cuando salió La 31, salió
otro sobre La 31, era el primero que tenía. Hay una que se llama que se llama Previ, que es
una novela de los noventa, obscura (…), que no me interesó. Y está Gabriela Cabezón
Cámara, que tiene ahí sí un tono que me interesó y que me inspiró (…): La Virgen Cabeza.
Después Alarcón, que es muy interesante, también me interesó, no sé si tanto. Cabezón
Cámara sí me pareció inspirador, no sé cuánto agarré, pero (…). Está muy bien
experimentada. (A. Magnus, entrevista pessoal, 29 de agosto de 2015)
O livro do jornalista Cristian Alarcón citada por Magnus é Cuando me muera quiero
que me toquen cumbia, de 2012. A obra foi produzida a partir de uma reportagem para o
jornal Página 12 e conta a história de uma figura real, Víctor Vital, mais conhecido na villa de
San Fernando como “El Frente”. Víctor era um pibe chorro que, após ser assassinado pela
polícia, se eleva à categoria de mito na favela onde morava. Alarcón adentra nesse território
periférico para contar não apenas a história de Frente Vital, mas dos pibes chorros que vivem
na favela, com base em uma análise sociológica do território e de seus moradores. Cristian
Alarcón sua obra da seguinte maneira:
Cuando llegué a la villa, solo sabía que en ese punto del conurbano norte, a unas quince
cuadras de la estación de San Fernando, tras un crimen, nacía un nuevo ídolo pagano.
Víctor Manuel el “Frente” Vital, diecisiete años, un ladrón acribillado por un cabo
Bonaerense cuando gritaba refugiado bajo la mesa de un rancho que no tiraran, que se
entregaba, se convirtió entre los sobrevivientes de su generación en un particular tipo de
santo: lo consideraban tan poderoso como para torcer el destino de las balas y salvar a los
pibes chorros de la metralla. (...) Detrás de cada uno de los personajes se podría ejercer la
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denuncia, seguir el rastro de la verdad jurídica, lo que los abogados llaman “autor del
delito” y el periodismo, “pruebas de los hechos”. (ALARCÓN, 2012, p. 13-14)
O autor explica o tipo de narrativa que será contada em sua obra e deixa claro para seu
leitor que é um texto jornalístico que poderia ser usado para denunciar os atos cometidos
contra os meninos naquele território. No entanto, seu texto está no limiar entre uma denúncia
jornalística e a literatura, o que causa ainda muitos problemas de análise da obra. Cuando me
muera quiero que me toquen cumbia dialoga de forma muito próxima com a Villa miseria
también es América, no que diz respeito à escrita a respeito da cidade a partir de uma
abordagem sociológica de problemas do seu tempo.
As obras de Ariel Magnus e Gabriela Cabezón Cámara, por sua vez, dialogam bastante
por se distanciarem de uma denúncia social, muito embora ambas toquem em problemas
sociais complexos e caros à cidade, como a violência policial. Ambos os autores deixam clara
a vertente ficcional de suas obras, lançando outro olhar em direção a esse território periférico.
Os diferentes olhares acerca da cidade/favela podem ser lidos nessas obras a partir do
“capital” de cada autor. A sensibilidade para tratar do tema em cada obra é distinta, uma vez
que a relação que seus autores têm com a cidade é particular, principalmente com as villas. Os
sentimentos dos personagens são olhados com certa proximidade em todos os casos; dor,
sofrimento, medo, amor são sentimentos que viram temas em todas as obras, seja por relações
afetivas que ocorrem dentro das villas, como no caso das protagonistas na obra de Gabriela
Cabezón Cámara, seja pela relação direta com os desmandos e poder da cidade formal sobre o
território marginalizado.
75
4. A VIOLÊNCIA INVISÍVEL ECOA NOS DISCURSOS DA CIDADE
Fragmento 1:
1. Agustina (ou a fortuna da maldade)
Quando Agustina se virou, percebeu que já não havia ninguém. Ou seja, gente havia muita, uma
densidade de shopping nos dias de chuva, mas eram todos favelados. Seus colegas da ONG “A janela
para a favela” tinham desaparecido sem deixar rastros, como abduzidos por um disco voador.
Primeiro tinha se distraído para falar com o garoto de dreads, a quem deu um cartão da agência do
seu marido, onde buscavam uma pessoa com aspecto de músico jamaicano para uma publicidade.
Porém o que realmente a tinha feito esquecer por completo do grupo com o qual havia entrado na
favela número 31 do bairro do Retiro foi a imagem de uma menina de uns cinco anos que passou
carregando nos braços outra menina menor, praticamente um bebê, mas que de corpo era quase
maior que ela própria. Veio à cabeça de Agustina a imagem de uma formiga transportando uma folha
que tem duas vezes o seu tamanho, acompanhada de um pensamento menos inquietante que absurdo,
e por ser absurdo duplamente inquietante: essa menina estava roubando o bebê. Descalça e seminua,
a menina foi balançando junto daquela que seguramente não devia ser mais que a irmãzinha deixada
pra ela tomar conta até alcançar o grupo de crianças do outro lado da esquina, ou da praça, ou como
quer que se chamasse esse retângulo irregular, oblongo, que por certo também tinham os shoppings,
no qual confluíam várias vielas, nesse caso com seus riachos de água podre. O terceiro e último fator
de distração, estes jovens de bermuda e sem camisas, com correntes penduradas no pescoço e tênis
vistosos, estavam parados em torno de um enorme aparelho de som no último volume, uma espécie de
óvni prateado e cheio de luzes que tinha caído nesse lugar tão terráqueo vá se saber como. Agustina
supôs que devia valer mais do que a casa de seu dono, se é que o aparelho tinha dono e este, por sua
vez, uma casa, e se é que se podia chamar de casa essas malocas. Do óvni saía a todo volume um
remix cumbieiro da “Macarena’, uma de suas canções preferidas dos anos noventa, embora nessa
década ela ainda fosse uma menina (agora já era uma velha de 25, como dizia seu esposo), e por um
instante ficou tentada a juntar-se ao sutil balanço de cadeiras com que os garotos de corpos morenos
e firmes acompanhavam o ritmo daquele velho hit espanhol. Quando dançava, balançando seu corpo
também jovem e firme, embora loiro, um corpo que existia para dar-lhe alegria e coisas boas,
Agustina perdia-se por completo, se autoabduzia do lugar, fosse qual fosse, e à sua volta não restava
ninguém. Nesse sentido inofensivo da expressão foi que ao girar sobre seus tênis de lona,
especialmente escolhidos para visitar a favela, Agustina, ao não ver seus colegas da ONG (terão sido
sequestrados?, ou a sequestrada, por exclusão, era ela?), sentiu que não havia ninguém ali, por mais
que fosse o pior insulto que se podia fazer a toda essa gente, entre eles os garotos de rostos angulosos
e olhos negros. Que não eram tão garotos, pensou Agustina, agora que voltava a girar sobre seus
tênis baratos (esse outro insulto sub-reptício) e tornava a olhá-los, e eles de repente também a ela.
Instintivamente puxou para baixo a bolsa que levava cruzada sobre o peito, buscando tapar a zona
pélvica que um segundo antes teria querido pôr ostentosamente a rebolar. Seu marido não tinha
permitido que levasse celular com medo de que o roubassem (“Entre levar alguma coisa pra favela e
jogar no lixo não há diferença, e entre enfiar-se aí e se autoviolar com um cabo de vassoura, de fato,
também não”, ele opinou quando ela lhe falou que começaria a colaborar com a ONG), mas agora
ela o teria doado com gosto, e até com créditos vitalícios, em troca de que lhe deixassem usá-lo pela
última vez. O único óvni aí era ela, pensou Agustina, e ela não conseguia imaginar nenhuma coisa em
toda a galáxia que não teria dado para se teletransportar de imediato para a nave mãe . [Ariel
Magnus. [La 31 (una novela precaria)]14
“Cuando Agustina se dio vuelta notó que ya no había nadie. O sea gente había mucha, una densidad de
shopping los días de lluvia, pero eran todos villeros, sus colegas de la ONG ‘La villa en la vida’ se habían
esfumado sin dejar rastros, como abducidos por el plato volador. Primero se había distraído por hablar con el
chico de las rastas, al que le había dado la tarjeta de la agencia de su marido, donde buscaban una persona con
aspecto de músico jamaiquino para una publicidad. Pero lo que realmente la había hecho olvidarse por completo
14
76
Fragmento 2:
1. Agustina (ou a fortuna da maldade)
– Ei, tu aí, ô loura.
Agustina se virou como buscando a pessoa em questão, embora estivesse segura de que o
garoto de boné só podia estar se referindo a ela. Nem nessa pracinha, nem certamente em toda a
favela, devia haver uma mulher com o cabelo tão claro como o seu, o cabelo e os olhos e a pele, tão
claros e tão belos e tão desejáveis.
– Não, é com você mesmo, moça.
Agustina sentiu que a voz imberbe e flexível, morena, esquentava primeiro sua nuca para
depois meter-se em sua orelha com a avidez de uma língua pontiaguda. Por um instante ficou
paralisada, como se estivesse debatendo-se em conflito entre se virar novamente ou fugir por alguma
das vielas, ou melhor, como se não houvesse nada que debater porque já havia sido apanhada pelas
costas, imobilizado o torso por uns braços jovens e decididos, as cadeiras submetidas à pressão de um
volume sem muita margem para interpretações inocentes, a mente em branco diante da iminência do
suplício.
Sobrepondo-se ao ataque demente, as pernas moles e os peitos eriçados pelo medo, Agustina
se meteu na viela mais próxima e avançou com a cabeça levantada e a vista fixa em frente, como
quem sabe aonde vai e conhece o caminho. E o certo é que sabia aonde ia, para a sua própria
perdição ia. Qualquer uma dessas paredes finas dá para um prostíbulo ilegal, pensou. Te metem aí
dentro e te escravizam. Como você é linda, ainda por cima gravam e jogam na Internet, e aí, se você
consegue se safar, pode se ver para sempre mamando a meio mundo da favela.
Ao dobrar numa esquina ficou preso o casaquinho rosa, Agustina puxou para soltá-lo sem
deixar de caminhar, o casaquinho não cedeu e ela tampouco, então girou sobre si mesma com os
braços abertos e continuou avançando, agora já sem casaquinho. Ao alívio que sentiu de imediato,
del grupo con que había entrado en la villa 31 de Retiro fue la imagen de una nena de unos cinco años que pasó
cargando en brazos a otra nena menor, prácticamente un bebé, pero que de cuerpo era casi más grande que ella
misma. A la cabeza de Agustina acudió la imagen de una hormiga transportando una hoja que dobla en tamaño,
acompañada de un pensamiento menos inquietante que absurdo, y por absurdo doblemente inquietante: esa nena
se estaba robando al bebé. Descalza y semidesnuda, la nena fue balanceándose junto a lo que seguramente no
fuera más que el hermanito que le habían dejado a cargo hasta alcanzar al grupo de chicos en el lado opuesto de
la esquina, o de la plaza, o como se llamara ese rectángulo irregular, oblongo, que por cierto también tenían los
shoppings, en el que confluían varios pasillos, en este caso con sus riachos de agua podrida. El tercer y último
factor de distracción, estos jóvenes en shorts y torso descubierto, con cadenitas colgando del cuello y zapatillas
vistosas, estaban parados alrededor de un enorme equipo de música a todo volumen, una especie de ovni
plateado y lleno de luces que había caído en ese lugar tan terrícola vaya uno a saber cómo. Agustina supuso que
debía valer más que la casa de su dueño, si es que el aparato tenía dueño y este a su vez una casa, y si es que se
podía llamar casa a esos habitáculos. Del ovni salía a todo volumen un remix cumbiero de “Macarena”, una de
sus canciones preferidas de los noventa, aunque en los noventa ella aún era una niña (ahora ya era una vieja de
25, como le decía su esposo), y por un momento estuvo tentada de plegarse al sutil bamboleo de caderas con que
los chicos de cuerpos morenos y fibrosos acompañaban el ritmo de aquel viejo hit español. Cuando bailaba,
bamboleando su cuerpo también joven y fibroso, aunque rubio, un cuerpo para darle alegría y cosa buena,
Agustina se perdía por completo, se autoabducía del lugar, fuera cual fuera, y a su alrededor no quedaba nadie.
En ese sentido inofensivo de la expresión fue que al girar sobre sus zapatillas de lona, especialmente elegidas
para visitar la villa, Agustina, al no ver a sus colegas de la ONG (¿los habrían secuestrado?, ¿o la secuestrada,
por exclusión, era ella?), sintió que no había nadie, por más de que ese era el peor insulto que se le podía hacer a
toda esa gente, entre ellos los chicos de caras angulosas y ojos negros. Que no eran tan chicos, pensó Agustina,
ahora que volvía a girar sobre sus zapatillas baratas (ese otro insulto subrepticio) y volvía a mirarlos, y ellos de
pronto a ella. Instintivamente presionó hacia abajo la cartera que llevaba cruzada sobre el pecho, buscando que
tapase la zona pélvica que hacía un segundo hubiera querido poner ostentosamente a bambolear. Su marido no le
había dejado llevar celular por miedo a que se lo robasen (“Entre llevar algo a la villa y tirarlo a la basura no hay
diferencia, y entre meterte ahí y autoviolarte con un palo de escoba la verdad es que tampoco”, le había dado su
parecer cuando ella le anunció que empezaría a colaborar con la ONG), pero ahora lo hubiera donado con gusto,
y hasta con crédito vitalicio, a cambio de que la dejaran usarlo por última vez. El único ovni ahí era ella, pensó
Agustina, y no se le ocurrió ninguna cosa en toda la galaxia que no habría dado por teletransportarse de
inmediato a la nave nodriza. (MAGNUS, 2012, p. 9-10.)
77
pois o calor era intenso, se tinha trazido o casaquinho foi só pra não irritar o ciumento do seu
marido, “Cobre um pouquinho os peitos e vê lá se não vai dar mole pra esses bundas moles”, tinha
dito o grande impertinente, como ele podia pensar que ela pudesse dissimular alguma coisa, com esse
cabelo e esses seus olhos, só uma burca poderia ter ocultado tanta beleza; ao alívio lhe seguiu de
imediato a pergunta de como tinha feito para desvencilhar-se do casaquinho sem ter tirado antes a
bolsa, lembrou como tinha quase se pendurado nela quando descobriu que estava sozinha e teve que
concluir que a tinha perdido. Tchau, agora já não tenho nem documentos, pensou. Se vou à polícia,
primeiro me amarram nas grades e me dão um trato e logo depois me entregam aos cafetões da
favela, que primeiro me amaciam eles próprios para depois me escravizarem.
– Ô, loira, ei, loirinha!
Em lugar de paralisá-la, dessa vez a voz foi como um empurrão. Agustina saiu em disparada
para frente e começou a correr pelas vielas, se sentia uma heroína que foge de um monstro em um
filme de terror, podia até escutar a trilha sonora de fundo (a incongruência de que fosse uma canção
alegre –“Macarena”– não fazia mais que aumentar o aspecto tenebroso da cena). Um cachorro
começou a latir pra ela e a segui-la, Agustina apressou o passo, as pessoas se afastavam para o lado
surpresas, os olhares cravados em seus peitos bamboleantes. Teria percorrido o equivalente a duas
ou três quadras, impossível contabilizá-las nesse zigue-zague permanente, quando pisou em falso e
caiu no chão. Olhava os arranhões no braço, respirava agitada, quando apareceu o garoto do boné.
– Tu tá bem, loira?
O outro a ajudou a se levantar e lhe entregou a bolsa, da qual pendia a alça arrebentada.
Agustina pensou que devia ter sido engraçado para os espectadores de seu filme ver aquele que devia
ser o ladrão perseguindo aquela que devia ser a vítima para devolver-lhe o que devia ter sido o fruto
do roubo. Com certeza agora vai querer que eu lhe pague o favor com o que tenho de melhor, pensou.
Espero que pelo menos não seja demasiadamente bem dotado. [Ariel Magnus. La 31 (una novela
precaria)]15
“- Eh, vo, rubia.
Agustina se dio vuelta como buscando a la aludida, aunque estaba segura de que el chico de la gorrita solo podía
referirse a ella. Ni en esa plazoleta, ni seguramente en toda la villa, debía haber una mujer con el pelo tan claro
como el suyo, el pelo y la piel, tan claros y tan bellos y tan deseables.
- No, te digo a vo, che.
Agustina sintió que la voz lampiña, morocha, le calentaba primero la nuca para luego meterse en la oreja con la
avidez de una lengua puntiaguda. Por un momento quedó paralizada, como debatiéndose entre darse la vuelta
nuevamente o huir por algún pasillo, o más bien como si ya no hubiese nada que debatir porque ya había sido
tomada por la espalda, inmovilizado el torso por unos brazos jóvenes y decididos, la cadera sometida a la presión
de un bulto sin mucho margen para interpretaciones inocentes, la mente en blanco ante la inminencia del
suplicio.
Sobreponiéndose al ataque demente, las piernas flojas y los pechos erizados por el miedo, Agustina se metió en
el pasillo más próximo y avanzó con la cabeza alzada y la vista fija hacia adelante, como quien sabe adónde va y
conoce el camino. Y lo cierto es que sabía adónde iba, a su propia perdición iba. Cualquiera de estas chapas da a
un prostíbulo ilegal, pensó. Te meten adentro y te esclavizan. Como sos linda además lo graban y lo suben a
Internet, cosa de que si zafás podés verte para siempre chupándosela a media villa.
Al doblar en un recodo se le enganchó el saquito rosa, Agustina tironeó para soltarlo sin dejar de caminar, el
saquito no cedió y ella tampoco, entonces giró sobre sí misma con los brazos abiertos y siguió avanzando, ahora
ya sin saquito. Al alivio que sintió de inmediato, pues el calor era intenso, si había traído el saquito había sido
solo por no enojar al celoso de su marido, “Tapate un cacho las tetas a ver si todavía les hacés los ratones a las
ratas esas”, le había dicho el muy desubicado, cómo se le ocurría que podía disimular algo ella, con ese pelo y
esos ojos suyos, solo una burka podría haber ocultado tanta hermosura; al alivio le siguió de inmediato la
pregunta de cómo había hecho para desprenderse del saquito sin haberse sacado antes la cartera, recordó cómo se
había casi colgado de ella cuando descubrió que estaba sola y tuvo que concluir que la había perdido. Chau,
ahora ya no tengo ni documentos, pensó. Si voy a la policía, primero me atan a los barrotes y me dan masa y
recién después me entregan a los cafishos de la villa, que primero me ablandan ellos y después me esclavizan.
- ¡Rubia, eh, rubia!
En lugar de paralizarla, esta vez la voz fue como un empujón. Agustina salió disparada hacia adelante y empezó
a correr por los pasillos, se sentía una heroína que huye de un monstruo en una película de terror, si hasta creía
escuchar la banda sonora de fondo (la incongruencia que fuera una canción alegre – “Macarena” – no hacía más
que a acrecentar la tenebrosidad de la escena). Un perro empezó a ladrarle y a seguirla, Agustina apuró el paso,
la gente se hacía a un lado sorprendida, las miradas clavadas en sus tetas bamboleantes. Habría hecho el
15
78
Fragmento 3:
8. Favela tour
De acordo com o estrito esquedul que tinha sido distribuído pelo guia, no qual estavam
contemplados até os minutos de permanência em cada poin os interes (o ginásio poliesportivo Padre
Mujica, a capela Cristo Operário do Padre Mujica, o “Perifério de culturrale” Geo Jota, etc.), o tour
pela “Nova Shork das favelas da Paris da América Latina”, como havia sido apresentada pelo
próprio guia com não menor formalidade, nem maior sentido de vergonha, já devia ter chegado a seu
fim. A única que o percebeu foi a senhora Prescott, que tinha desrespeitado a proibição de trazer
relógio, além da proibição de trazer câmera de foto, carteira e até óculos de sol, em parte porque sem
esses objetos se sentia nua, mais pobre que os próprios pobres, e em parte também porque a
inquietava não ter nada com que negociar um resgate. Já havia sido sequestrada com seu marido no
Egito e na selva do Camboja, sabiam portanto que aí onde o dinheiro permite chegar também é
possível sair por conta do dinheiro, se bem que nesse caso a agência que emite as passagens muda de
nome e de razão social.
– Já deveríamos ter ido há uns dez minutos – comentou a senhora Prescott entre incomodada
e divertida, como toda vez que pegava os locais em um erro de organização.
– Se a gente tivesse pelo menos quem nos tirasse daqui – respondeu seu esposo entre divertido
e eufórico, como toda vez que um tour ameaçava ir pro espaço.
– É verdade – a senhora Prescott girou a cabeça para um lado e para o outro –, onde ele se
meteu?
– Os encolhedores de cabeças não podem ter sido porque esse negrinho idiota (nice lovely
latin boy of interesting indigenous roots) de fato quase não tinha cabeça.
O resto do grupo, todos americanos (ianques do caralho), tinha parado no meio da viela
estreita e serpenteante, entre as altas paredes fora de esquadro que na cidade teriam anunciado como
“tijolo aparente”, mas que aqui simplesmente tinham ficado sem reboco. Essa simpática falta de
prolixidade, somada à estreiteza da viela, à roupa estendida nas alturas, aos cães sem dono e ao
cheiro de comida que saía das casas, faziam os turistas se lembrarem dos velhos povoados europeus.
Até os desníveis do terreno que, apesar de não ser montanhoso tinha sua personalidade, ou os
entulhos de concreto do que parecia ter sido uma tentativa de pavimentar a calçada desse mundo
descalço de ordem, alguns deles pintados com tinta a óleo cor de paralelepípedo, até nesses pequenos
detalhes a ruazinha evidenciava o ar tão confundível das aldeias europeias.
– Para isto eu ia a Lisboa, que pelo menos fica mais perto e tem água Pedras, finamente
gaseificada por natureza – havia comentado no meio da visita uma mulher jovem e loira tão atenta a
não trazer nada de valor que tinha vindo apenas de short e camiseta, expondo provocativamente o
mais caro do seu ser.
– Eu estive nas favelas do Rio e de Caracas e lhes digo que estão muitíssimo pior, aí sim o
tour vale a pena – aproveitou para gabar-se outra mulher que havia acreditado seguir a equívoca
sugestão do guia desprendendo-se de anéis e colares, embora sem se dar conta, por chegar à
interpretação talvez puramente piedosa, de que cada uma das suas peças de roupa valia mais do que
a roupa de famílias inteiras, fazendo um cálculo bem conservador.
– Eu estive na Índia e a verdade é que depois daquilo não há miséria que consiga me
surpreender – lamentou-se agora um homem já idoso, de bigodes e chapéu texano, que embora tivesse
acatado a ordem de deixar a máquina fotográfica e o resto dos aparatos no hotel, não fez a mesma
coisa com seu revólver, primeiro porque carregar uma arma fazia parte de sua constituição – como
ele gostava de dizer, brincando com a ambiguidade ontológica-política do termo – e segundo porque
embora a pistola fosse um objeto de valor, o certo era que tinha sido feita para defender os outros
equivalente a dos o tres cuadras, imposible contabilizarlas en ese zigzag permanente, cuando pisó mal y cayó al
suelo. Se miraba las raspaduras en el brazo, respirando agitada, cuando apareció el chico de la gorrita.
- ¿Tás bien, rubia?
El otro la ayudó a levantarse y le alcanzó la cartera, de la que colgaba la correa rota. Agustina pensó que debía
haber sido gracioso para los espectadores de su película ver al que debía ser el ladrón persiguiendo a la que debía
ser la víctima para devolverle lo que debía haber sido su botín. Seguro que ahora quiere que le pague el favor en
especias, pensó. Espero al menos que no esté demasiado bien dotado. (MAGNUS, 2012, p. 27-29.)
79
objetos de valor, o que em parte aumentava o seu, mas também e talvez em maior medida o diminuía,
no sentido em que o convertia em um meio e aos outros em um fim, e como ele não queria meter-se em
uma discussão político-ontológica com o guia – sabia que essas discussões viram um círculo vicioso e
só podem se resolver a tiros, caso em que ele teria saído vencedor –, decidiu levar o objeto de valor
como se não tivesse nenhum, que de qualquer forma é o caso de uma arma enquanto não se usa.
A decepção era geral e tinha sido aumentada em cada parada do tour, pois em comparação
com o que esperavam ver isso era efetivamente Nova York, e ninguém viajava tantas horas – alguns
daquela própria cidade – para que lhe mostrassem edifícios de até cinco andares, muitos com sua
caixa d’água no teto e todos com luz elétrica, varandas e aparelhos de ar condicionado, esquadrias
de alumínio e vidros (inteiros). O desenvolvimento urbano era tão evidente, e por não ser incluso no
programa estatal de moradia tão genuíno, que as ocasionais chapas de zinco e os emaranhados de
fios pareciam colocados de propósito, como se fosse para que o lugar continuasse sendo precário e
seus habitantes não tivessem que pagar impostos nem perdessem o lucro com o turismo.
– Assim qualquer um é pobre – pode-se ouvir alguém murmurar ao ver que o refeitório
infantil contava com geladeira e forno micro-ondas.
– No fim das contas, a palavra favela era um mero deslocamento de sentido para nomear uma
planta como outra qualquer – impôs outro seus conhecimentos idiomáticos, na falta de outras posses
mais vistosas para ostentar.
O repentino desaparecimento do guia despertou os Prescott de uma frustração que já
ameaçava virar fúria e processo por propaganda enganosa. Pela primeira vez naquela tarde olharam
o lugar com franco interesse, sentindo que por fim começava a aventura. [Ariel Magnus. La 31 (una
novela precaria)]16
“Según el estricto esquedul que les había repartido el guía, donde estaban contemplados hasta los minutos de
permanencia en cada poin os interes (el Polideportivo Padre Mujica, la capilla Cristo Obrero del Padre Mujica, el
“Periferio de cultura” Geo Jota, etc.), el tour por “la Nueva Shork de las villas de la París de Latinoamérica”,
como lo había presentado el mismo guía con no menor formalidad, ni mayor de sentido de vergüenza, ya debía
haber llegado a su fin. La única que lo notó fue la señora Prescott, que había violado la prohibición de traer reloj,
además de la prohibición de traer cámara de foto, billetera y hasta anteojos negros, en parte porque sin esos
objetos se sentía desnuda, más pobre que los mismos pobres, y en parte también porque la inquietaba no tener
nada con que negociar un rescate. Con su marido ya habían sido secuestrados en Egipto y en la selva camboyana,
sabían por lo tanto que adonde se llega con dinero también puede uno irse con dinero, si bien la agencia que
emite los pasajes cambia de nombre y aun de razón social.
- Deberíamos habernos ido hace diez minutos – comentó la señora Prescott entre molesta y divertida, como cada
vez que atrapaba a los locales en un error de organización.
- Si tan solo tuviéramos quién nos sacara de aquí – le respondió su esposo entre divertido y eufórico, como cada
vez que un tour amenazaba con desmadrarse.
- Es cierto – la señora Prescott giró la cabeza a un lado y al otro –, ¿dónde estará?
- Los reducidores de cabeza no pueden haber sido porque ese negrito idiota (nice lovely latin boy interesting
indigenous roots) la verdad que casi no tenía.
El resto del grupo, todos americanos (yanquis del orto), se había detenido en medio del pasillo angosto y
serpenteante, entre las altas paredes fuera de escuadra que en la ciudad se habrían publicitado como de “ladrillo a
la vista” pero que acá simplemente habían quedado sin revoque. Esta simpática desprolijidad, sumada a la
estrechez del pasillo, a la ropa tendida en las alturas, a los perros sin amo y al olor a comida que emanaba de las
casas les recordaba a los turistas los viejos pueblos europeos. Hasta los desniveles del terreno, que sin ser
montañoso tenía su personalidad, o los cascotes de concreto de lo que parecía haber sido un intento de ponerlo
en vereda, algunos de ellos teñidos de aceite color adoquín, hasta en esos pequeños detalles la callecita
evidenciaba el aire tan confundible de las ladeas europeas.
- para eso me iba a Lisboa, que al menos que da más cerca y tiene agua Piedras, finalmente gasificada por
naturaleza – había comentado al promediar la visita una mujer joven y rubia tan atenta a no traer nada valioso
que había venido nada más que en short y musculosa, exponiendo provocadoramente lo más caro de su ser.
- Yo estuve en las favelas de Río y de Caracas y les digo que están muchísimo peor, ahí sí que el tour vale la
pena – aprovechó para jactarse otra mujer que también había creído seguir la equívoca sugerencia del guía
desprendiéndose de anillos y collares, aunque sin percatarse, por hacer una interpretación más bien piadosa, de
que cada una de sus prendas valía más que la ropa de familias enteras, por hacer un cálculo más bien
conservador.
- Yo estuve en India y la verdad es que después de eso no hay miseria que uno logre sorprenderlo – se lamentó
ahora un hombre ya mayor, de bigotes y sombrero tejano, que si bien había acatado la orden de dejar la máquina
16
80
As mudanças sociais e urbanas de uma cidade podem acarretar em seus moradores
sensações de desconforto, insegurança e medo a partir das novas configurações geográficas e
imaginárias que se delineiam no território. Essa é uma das teses com a qual trabalha a
professora Teresa Pires Caldeira, em seu livro Cidade de muros: crime, segregação e
cidadania em São Paulo (2000). Embora seja uma obra que traz uma discussão topocêntrica –
como aclara o próprio título da obra –, muitas questões levantadas pela antropóloga sugerem
uma base para a discussão acerca da ideia de cidade em uma concepção mais geral, dando-nos
argumentos para pensar o imaginário urbano formado em outras cidades latino-americanas, a
exemplo de Buenos Aires, como consequência de sua fragmentação socioespacial.
Caldeira analisa as justificativas utilizadas para a segregação territorial com base no
discurso do medo com base em preconceitos de diferentes tipos, como por exemplo de classe
social e etnia, associando a violência em momentos de crise a sujeitos oriundos dos territórios
marginalizados. Esses discursos podem acompanhar o deslocamento de ondas de imigrantes
periféricos – internos e externos – para territórios que compõem essa cidade pretensamente
homogênea. É o contato com o “outro”, com o “não semelhante”, que poderá gerar formas de
segregação manifestadas no corpo da cidade.
O mecanismo, muitas vezes, empregado para construir essas barreiras discursivas e,
consequentemente, fomentar o imaginário negativo em relação aos territórios e sujeitos
periféricos origina-se do que Teresa Pires Caldeira denomina “fala do crime” (2000, p. 9). A
categoria cunhada em Cidade de muros é aplicada para dar conta do discurso construído no
dia a dia e que não tem, necessariamente, ligação direta com uma experiência de violência que
de fotos y el resto de los aparatos en el hotel, no hizo lo propio con su revólver, primero porque llevar un arma
era parte inherente a su constitución – como le gustaba decir, jugando con la ambigüedad ontológico-política del
término – y segundo porque si bien la pistola era un objeto de valor, lo cierto es que estaba hecho para defender
a los otros objetos de valor, lo cual en parte aumentaba es suyo, pero también y acaso en mayor medida lo
disminuía, en el sentido de que lo convertía en un medio y a los otros en un fin, y como no quería enfrascarse en
una discusión político-ontológica con el guía – sabía que esas discusiones se mueven en círculo y solo pueden
dirimirse a los tiros, en cuyo caso la hubiese ganado él –, decidió llevar el objeto de valor como si no tuviera
ninguno, que por lo demás es el caso de un arma mientras no se la usa.
La decepción era general y se había ido acrecentado en cada parada del tour, pues en comparación con lo que
esperaban ver eso era efectivamente Nueva York, y nadie viajaba tantas horas – algunos desde aquella misma
ciudad – para les mostraran edificios de hasta cinco pisos, muchos con su tanque de agua en altura y todos con
luz eléctrica, balcones y aires acondicionado, cerramientos de aluminio y vidrios enteros. El desarrollo edilicio
era tan evidente, y por no ser del plan estatal de viviendas incluso tan genuino, que las ocasionales chapas y los
embrollos de cables parecían puestos de propósito, como para que el lugar siguiera siendo considerado precario y
sus ocupantes no tuvieran que pagar impuestos ni perdieran los ingresos por el turismo.
- Así cualquiera es pobre – se oyó murmurar a alguno al ver que el comedor infantil contaba con heladera y
horno microondas.
- Al final resulta que la palabra villa era un mero cacofonismo para un barrio como cualquier otro – hizo valer
otro sus conocimientos idiomáticos, a falta de otras posesiones más vistosas con las que pavonearse.
La repentina desaparición del guía despabiló a los Prescott de una frustración que ya amenazaba con devenir en
furia y juicio por estafa. Por primera vez en la tarde miraron el lugar con franco interés, sintiendo que al fin
empezaba la aventura. (MAGNUS, 2012, p. 23-26.)
81
potencialize um imaginário estigmatizado acerca dos sujeitos que estão à margem da cidade
formal.
As narrativas cotidianas, comentários, conversas e até mesmo brincadeiras e piadas que têm
o crime como tema contrapõem-se ao medo e à experiência de ser uma vítima do crime e,
ao mesmo tempo, fazem o medo proliferar. (...) A fala do crime constrói sua reordenação
simbólica do mundo elaborando preconceitos e naturalizando a percepção de certos grupos
como perigosos. (CALDEIRA, 2000, p. 9-10)
Segundo a autora, as narrativas estigmatizadas que emergem das conversas cotidianas
referentes a esses espaços da alteridade, associando-os a territórios de violência,
potencializam, em grande medida, um imaginário urbano de medo no que diz respeito a esses
lugares. É como se essas narrativas mediassem o acesso dos que ali nunca irão e se
apresentasse como uma forma de conhecimento os territórios da alteridade, reafirmando
estereótipos e visões preconcebidas, fundadas no medo de tornar-se vítima de algum ato
violento.
Caldeira também problematiza a relação que os interlocutores estabelecem com os
sujeitos vinculados a esses territórios a partir das representações veiculadas em uma trama
discursiva que domina as interações cotidianas na cidade de muros. De acordo com a
antropóloga, o valor simbólico desses discursos é tão potente que os próprios moradores
desses espaços, e não apenas os que vivem fora dele, absorvem o imaginário construído por
meio de tais narrativas. Essa teoria remete-nos ao fragmento narrativo “La chica que limpia (y
que miente)”, discutido no capítulo anterior. Catalina, a empregada, aceita e compartilha o
imaginário relacionado à favela e absorve a ideia de sujeira que se transferira do território
para ela própria.
As mudanças derivadas de fortes crises no âmbito econômico e social de um país
podem ajudar a fomentar esse imaginário, uma vez que normalmente trazem perdas a todas as
classes sociais e podem gerar uma nova forma de ver e lidar com os territórios da alteridade.
A crise econômica ocorrida na Argentina em 2001 ajudou na proliferação desses territórios e,
ao mesmo tempo, reforçou a ideia que se fazia deste como um problema em si e uma fonte de
problemas.
Néstor García Canclini em seu texto “Imaginários culturais da cidade: conhecimento /
espetáculo / desconhecimento” dialoga com a teoria de Teresa Pires Caldeira ao argumentar
que os meios de comunicação podem ser ferramentas muito eficazes para a difusão de
imagens de territórios marginais – desconhecidos por grande parte da população da cidade –,
podendo favorecer o surgimento, como resultado, de uma visão distorcida e estereotipada
desse território e de seus moradores. Segundo Néstor García Canclini,
82
As cidades não existem só como ocupação de um território, construção de edifícios e de
interações materiais entre seus habitantes. O sentido e o sem sentido urbano se formam,
entretanto, quando o imaginam os livros, as revistas o cinema. (GARCÍA CANCLINI,
2008, p. 15)
O antropólogo argentino deixa evidente que parte do que se conhece de uma cidade
não necessariamente está relacionado às interações dos indivíduos pertencentes aos diferentes
microterritórios que compõem a cidade, muito embora essas pessoas circulem por diferentes
ambientes todos os dias. A teoria proposta por Néstor García Canclini diz respeito ao
conhecimento que se adquire por meio da imprensa, do cinema ou mesmo da literatura, como
uma forma de imaginar a cidade dos outros. Seu argumento pode ser demonstrado com a
leitura e análise de alguns trechos de um dos relatos do livro de Ariel Magnus mais
emblemáticos no que se refere à questão do imaginário deturpado. Exemplificaremos com os
relatos que reproduzimos no início do capítulo.
No fragmento “Villa’s tour”, um grupo de estrangeiros que passeia pela villa se
espanta ao se deparar com uma forma do “outro” que mostra certo grau de semelhança com
eles mesmos. Essa possível semelhança dá-se com a visualização do acesso a serviços e de
bens de consumo que observam nas casas da favela. Essa imagem choca-se com o imaginário
que os estrangeiros tinham da villa como um espaço de total precariedade e pobreza extrema,
reproduzindo, portanto, uma fronteira simbólica que fazia dessa parte da cidade um espécie de
outro mundo (uma ilha crescendo à margem da cidade) acessado por meio do imaginário
dominante. Ao constatar o tipo de vida que se leva ali a partir das construções, o grupo que
fazia o tour compara a favela da capital portenha a favelas de outros países, como as do Rio
de Janeiro e Caracas, diminuindo a importância da visita por perceber no “outro” algo de
semelhante com o “eu”, o que frustra as suas expectativas.
A villa 31 já havia sido caracterizada pelo guia sem “mayor sentido de vergüenza”,
segundo o narrador, como “La Nueva Shork de las villas de la París de Latinoamérica” (2012,
p. 23), em uma clara alusão a sua estrutura menos precária que as demais favelas da cidade.
Essa caracterização é retomada novamente mais adiante pelo narrador ao comentar a
decepção dos turistas ao compararem o que efetivamente viam com o que esperavam ver:
aquele território era, de fato, “Nueva York” (2012, p. 25).
A designação feita pelo guia aos turistas de que estariam adentrando o território de “La
Nueva Shork de las villas de la París de Latinoamérica” faz uma menção irônica ao projeto
perpetrado no início do século XX na Argentina de assemelhar-se a Paris, no que diz respeito
à arquitetura. Beatriz Sarlo, em sua obra Tempo presente (2005), comenta tal projeto:
83
A Buenos Aires que as elites imaginaram e conseguiram, parcialmente, construir tem um
perfil cuja originalidade advém da combinação de diferentes modelos tecnológicos,
urbanísticos e estéticos. (...) Buenos Aires é uma tradução da Europa, mas não de uma ideia
única de Europa, e sim de muitas linguagens e de muitos significados urbanos em conflito,
refletidos pelo fato inexorável de sua localização na América. (...) Buenos Aires não é uma
cidade europeia, mas o produto de uma vontade cultural europeia desenvolvida na América.
(SARLO, 2005, p. 27)
A análise feita por Beatriz Sarlo acerca do projeto de cidade levado a cabo na capital
portenha idealizada pelas elites locais dialoga diretamente com expressão concebida pelo guia
para caracterizar a villa 31, demonstrando seu aspecto mais estruturado, ou “elitizado”, em
relação a outras favelas, o que foi constatado pelos turistas no decorrer do tour.
A escolha de uma favela “elitizada” para ser o lócus narrativo de uma obra que
objetiva narrar, prioritariamente, um território da falta também deu margem a críticas feitas
por pessoas próximas a Ariel Magnus. O autor comenta como pessoas de sua relação social
receberam a informação de que escolhera a favela 31 para lócus narrativo de sua obra.
Segundo ele: “Amigos o gente que me comentó: ‘¿Por qué agarrar la 31 que no tiene onda?
¿Por qué no te vas al conurbano que hay unas villas tremendas (…), mucho peores?’ (…) A
mí me interesaba por ella en el medio de la ciudad”. (A. Magnus, entrevista pessoal, 29 de
agosto de 2015).
Os comentários aos quais se refere o autor se relacionam às críticas feitas pelos turistas
ao encontrar na 31 uma favela que, segundo eles, é bem estruturada e, por isso, não deveria
ser denominada “villa” (ou “favela”, no português), pois, a partir do olhar estrangeiro, “resulta
que la palabra villa era un mero cacofonismo para un barrio como cualquier otro” (MAGNUS,
2012, p. 26).
Além do imaginário relacionado à precariedade do território, o fragmento aponta para
o medo da violência no território da alteridade. O guia havia proibido os turistas de levarem
objetos de valor ao passeio, o que deixa uma das personagens do fragmento, a senhora
Prescott, aflita por não ter moeda de troca caso fosse sequestrada no local.
O trecho do relato que utilizamos como exemplo para a teoria de Canclini evidencia
que o sentido do urbano se estrutura por meio de como o imaginam os filmes, os livros, os
jornais e as revistas. Conforme argumenta o antropólogo (2008, p. 17), “é próprio das cidades,
sobretudo das megalópoles, nos proporcionarem experiências de desconhecimento.
Atravessamos zonas nas quais só podemos imaginar o que ali sucede (habitualmente com
preconceito e discriminações)”.
Entrar em uma favela também pode ser uma experiência atemorizante; é assim que
pensa Agustina, figura emblemática com que Ariel Magnus abre seu romance La 31 (uma
84
novela precaria). Quando se percebe sozinha no meio da favela, a personagem ativa os
discursos que lhe permitiram construir, a partir das estratégias da atitude textual, a imagem
deste espaço e seus moradores.
Os fragmentos intitulados “Agustina (o la fortuna de la maldad)” narram a experiência
da personagem que dá nome ao relato durante sua ida à favela com um grupo de amigos
pertencentes à ONG “La villa en la vida” (no texto original). Em dado momento, Agustina
perde-se do grupo e se vê “sozinha” naquele território desconhecido. A personagem do relato
aciona, durante todo o tempo em que esteve sozinha na villa, o imaginário já assimilado a
partir dessa exotização do morador de outras áreas da cidade. A protagonista, no início do
relato, distingue nitidamente os indivíduos pertencentes a sua classe social dos indivíduos
moradores da 31. Para ela, esses sujeitos não contam, são “ninguém”, ou são uma ameaça:
“Cuando Agustina se dio vuelta notó que ya no había nadie. O sea gente había mucha, una
densidad de shopping los días de lluvia, pero eran todos villeros (…)” (MAGNUS, 2012, p.
9). Agustina não reconhece, portanto, os moradores do território como iguais, ou mesmo,
como pessoas que mereçam reconhecimento.
O posicionamento de Agustina, durante sua estada na favela, remete-nos de volta aos
argumentos do antropólogo de como a “experiência do desconhecimento” pode favorecer uma
visão deturpada em relação a um dado território ou a um grupo de indivíduos. A personagem
central no relato mostra claramente seu medo pelo “desconhecido” e, embora, o desfecho de
sua “aventura” esclareça à protagonista que seu imaginário criado não condizia com a
realidade, ela permanece com a dúvida e o receio, produtos de uma naturalização do olhar.
Jesús Martín-Barbero, em sua obra Dos meios às mediações: comunicação, cultura e
hegemonia (2008), reforça os argumentos de Canclini assinalando que a televisão é um
dispositivo que não deve ser desconsiderado no processo de representação e controle das
diferenças. Se por um lado esse meio de comunicação convence que há semelhanças entre
grupos heterogêneos – ainda que de forma superficial –, por outro lado, quando os distancia,
transforma o “outro” em um estranho sem qualquer relação com o grupo hegemônico:
Ao conectar o espetáculo com a cotidianidade, o modelo hegemônico de televisão imbrica
em seu próprio modo de operação um dispositivo paradoxal de controle das diferenças: uma
aproximação ou familiarização que, explorando as semelhanças superficiais, acaba nos
convencendo de que, se nos aproximarmos o bastante, até as mais “distantes”, as mais
distanciadas no espaço e no tempo, se parecem muito conosco; e um distanciamento ou
exotização que converte o outro na estranheza mais radical e absoluta, sem qualquer relação
conosco, sem sentido para o nosso mundo. (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 253-254)
85
O que o antropólogo discute no trecho citado é a possibilidade da televisão naturalizar,
em alguns grupos sociais, a superficial aparência de semelhança com grupos que estão na
outra ponta da sociedade, de acordo com a perspectiva social e econômica. Entretanto, o
distanciamento físico dos territórios de alteridade, bem como os indivíduos que nele vivem,
pode levar à exotização de ambos.
O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em seu livro Preconceito contra a
origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia (2007), discute essa exotização
inquietante que faz parte do imaginário de muitos indivíduos pertencentes às classes mais
abastadas no que tange à imagem criada do “outro”. O autor, na introdução de sua obra,
pondera a forma como se cristaliza uma atitude preconceituosa do homem em relação à
origem geográfica do “outro”, passando “pelo senso comum ou mesmo pelos meios de
comunicação de massa” (2007, p. 15):
O preconceito quanto à origem geográfica é justamente aquele que marca alguém pelo
simples fato deste pertencer ou advir de um território, de um espaço, de um lugar, de uma
vila, de uma cidade, de uma província, de um estado, de uma região, de uma nação, de um
país, de um continente considerado por outro ou outra, quase sempre mais poderoso ou
poderosa, como sendo inferior, rústico, bárbaro, selvagem, atrasado, subdesenvolvido,
menor, menos civilizado, inóspito, habitado por um povo cruel, feio, ignorante, racialmente
ou culturalmente inferior. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 11)
Embora o autor analise historicamente a questão do preconceito geográfico, o trecho
supracitado poderia ser lido como uma análise da experiência de Agustina na villa, quando a
personagem recorre exatamente aos mecanismos descritos por Albuquerque Júnior. Como
esperar de Agustina uma postura diferente em relação aos moradores da villa – “território
bárbaro”, “selvagem”, “atrasado”, “subdesenvolvido” –, uma vez que eles não são seus
semelhantes? O mecanismo do imaginário age de modo poderoso para reafirmar e justificar o
preconceito.
Para pensar melhor esse mecanismo, vale pensar a discussão proposta por Tzvetan
Todorov, em sua obra O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações (2010).
Todorov explica a origem do termo “bárbaro”, assinalando que este foi cunhado exatamente
para diferenciar grupos de sujeitos que não carregariam marcas de semelhança com os
demais.
Como se sabe, o termo vem da Grécia Antiga, sociedade em que ele tinha um uso comum,
em particular, após a guerra contra os persas. Era utilizado em oposição a outro vocábulo e
conjuntamente, eles permitiam dividir a população mundial em duas partes iguais: os
gregos – portanto, “nós” – e os bárbaros, ou seja, “os outros”, os estrangeiros. Para
reconhecer a filiação ao primeiro ou ao segundo grupo, fazia-se referência ao domínio da
língua grega: os bárbaros eram, então, todos aqueles que não a compreendiam, nem a
falavam ou que a falavam incorretamente. (TODOROV, 2010, p. 24-25)
86
Conquanto a explicação para o uso do termo “bárbaro” dada por Todorov se refira a
uma abordagem história mais antiga, o filósofo explica, mais adiante na obra, que o vocábulo
ganha outro sentido e valor, modificando a dicotomia “bárbaros/gregos” para a oposição
“selvagens” versus “civilizados”, sentido este que se aproxima da visão de Agustina acerca
dos moradores da favela que os vê quase como o “estrangeiro” descrito por Todorov.
Em outro relato da obra de Magnus, “Martín Fierrita”, o narrador expõe a imagem que
há do morador desse território da alteridade, descrevendo a relação pejorativa que a sociedade
narrada faz do villero com outro personagem da cultura argentina:
Ciertamente, el gaucho asustaba por su soledad, que se comparó en su momento a la del
animal salvaje, mientras que el villero se le espera que vive demasiado cerca, cuando en
ambos casos el problema es que, de modo extensivo o intensivo, se han adueñado de la
tierra que los otros creen propia. (2012, p. 104)
Ariel Magnus comenta a relevância desses clichês relacionados ao território periférico
para sua obra, dialogando pontualmente com as posições de Néstor García Canclini e Jesús
Martín-Barbero, no que se refere à importância dos meios de comunicação para o fomento
dessa visão deturpada.
La mitad de los clichés, el noventa por ciento de los clichés sobre la villa vienen de los
medios. Esto está todo el tiempo. Todo con lo que se ironiza son los medios, medios
escritos, películas, no solo con la villa, sino con los pobres en general. Con lo que más se
trabaja es con la visión de los medios sobre la pobreza de la villa. Es lo que más te permite
ese humor, porque son ridículos en sí, como, concretamente, los monstruos, los
extraterrestres, el platillo volador. Esto no sé de dónde sale. Bueno, está la novela de Aira,
que siempre los extraterrestres están ahí. Igual esto es una metáfora. Eso surgió ahí. (A.
Magnus, entrevista pessoal, 29 de agosto de 2015)
Magnus assume, nesse trecho da entrevista, que quase todos os clichês relacionados ao
imaginário urbano usados em sua obra saem exatamente dos meios de comunicação que os
propagam. Lançando mão desses clichês e os invertendo, o autor joga construindo um humor
que desponta em quase todos os relatos do livro.
A estratégia utilizada por Ariel Magnus na construção do personagem de Agustina
ressalta a posição maniqueísta da qual a personagem se serve para diferenciar a si mesma dos
moradores da villa. A forma como a protagonista deste capítulo percebe o “outro” tem como
base uma distorção tão radical que ela compara a imagem do grupo de villeros a de um
“monstruo”, e a dela, como não poderia ser diferente, a de uma “heroína” de filme,
confirmando a fala de Magnus acerca do imaginário e das imagens que surgem para designar
determinados grupos.
No decorrer do relato, a personagem deixa ainda mais evidente sua posição em
exotizar o “outro”, em diferenciá-lo de si, dito de outro modo, diferenciá-lo da classe à qual
87
pertence. Agustina, inicialmente, distingue a cor de sua pele da cor da pelo dos moradores
com os quais mantém contato visual. Em seguida, a personagem vai positivar diferentes
aspectos de sua imagem (“bella”, com “el pelo y los ojos y la piel, tan claros y tan bellos y tan
deseables”) para justificar, desse modo, seu medo de ser violada, uma vez que ela argumenta
que não haveria possibilidade de existir, naquele território, alguém semelhante a ela.
No entanto, em uma leitura mais atenta do fragmento, pode-se perceber que o medo
não é o único sentimento de Agustina. Há, de forma pouco explícita pelo narrador, uma
tensão sexual por parte da protagonista em relação aos homens locais. O narrador não utiliza
vocábulos tão evidentes para demonstrar tal tensão; ao contrário, ele apenas sugere que o
medo de Agustina de ser violada pode não se traduzir em outro sentimento que ela tenta
reprimir.
Agustina, desde o início de sua aventura, após perder-se do grupo, observa algumas
características físicas dos rapazes moradores da favela que nada têm a ver com o medo que
ela acredita sentir. O narrador utiliza palavras como “morenos y fibrosos” para definir o
biótipo dos rapazes, segundo o olhar de Agustina. No segundo fragmento do capítulo relativo
à personagem, essa tensão fica mais evidente, a partir de utilização de outros vocábulos,
embora continue sem explicitar o que de fato sente Agustina. Destacamos um trecho deste
fragmento:
Agustina sintió que la voz lampiña y flexible, morocha, le calentaba primero la nuca para
luego meterse en la oreja con la avidez de una lengua puntiaguda. (…) quedó paralizada,
como debatiéndose entre darse la vuelta nuevamente o huir (…), o más bien como si ya no
hubiese nada que debatir porque ya había sido tomada por la espalda, inmovilizado el torso
por unos brazos jóvenes y decididos, la cadera sometida a la presión de un bulto sin mucho
margen para interpretaciones inocentes. (…) Sobreponiéndose al ataque demente, las
piernas flojas y los pechos erizados por el miedo. (MAGNUS, 2012, p 28. Grifo nosso.)
O trecho citado deixa clara a tensão sexual, uma vez que toda a cena desse fragmento
faz parte da imaginação de Agustina. O que se tem de real, segundo mostra o narrador, é uma
voz masculina que tenta conseguir a atenção da protagonista para lhe devolver a bolsa
perdida, como confirmado no final do relato. No entanto, cada vocábulo utilizado nesse trecho
sugere a imaginação de um possível ato sexual que, naquele momento, não se concretiza.
A dimensão sexual do relato dialoga muito com a obra Passagem para a Índia, de
Edward Morgan Forster, de 1924, levada ao cinema pelas mãos do diretor David Lean, em
1984. Na obra, a personagem Miss Adela Quested viaja de Londres a Chandrapore com sua
futura sogra, Mrs. Moore. Ao chegarem à Índia, o médico indiano Dr. Aziz, que irá
acompanhá-las em uma visita a um ponto turístico local, seria injustamente acusado de atacar
88
sexualmente a senhora Moore, o que o levaria preso. Durante o julgamento, algum tempo
depois da prisão do Dr. Aziz, descobre-se que o crime ao qual o médico fora acusado nunca
ocorreu.
O que se tem nessa narrativa de Passagem para a Índia é a tensão sexual e os
preconceitos intrínsecos à relação entre colonizador (concretizado nas figuras das inglesas) e
colonizado (concretizado na figura do médico indiano), decorrente do olhar do exotismo do
primeiro em relação ao segundo. Um olhar semelhante ao que se percebe em Agustina diante
dos jovens moradores da villa, quando, de algum modo inexplicável e inadmissível para ela
mesma, se sente atraída por essa diferença.
Além do olhar de exotismo lançado em direção aos outros, o tema da fobia da cidade
também é base de análise de muitos relatos da obra, visto que problematiza muitas questões
que estão no cerne dessas narrativas. O medo do território da alteridade, como analisamos no
fragmento dos turistas, também está na base da narrativa de Ariel Magnus. A exemplo dessa
análise, citamos mais um fragmento de La 31.
Porque Acevedo no le tenía pánico al hecho de caer, si abajo lo hubiera esperado un
precipicio, o el mar, sino al hecho de caer dentro de la villa, y no precisamente por la
posibilidad de matar a alguien, como asumió su madre la vez en que le comentó su
inquietud, aunque en aquel momento él asintiera compungido. Acevedo imaginaba la villa
como una selva o un pantano que amortiguarían la caída hasta hacerla imperceptible, pero
solo para acusarle luego la más lenta y terrorífica de las muertes, la de quien no logra salir
de un pozo insondable o un laberinto eterno. (MAGNUS, 2012, p. 90)
O fragmento supracitado, intitulado “De paso”, mostra o medo que o personagem
Acevedo tem da villa, apresentando o receio de “cair” no território definido, por Marcelo
Lopes de Souza como “induzido pelas circunstâncias” (2008, p. 57), ou seja, território
relegado à população pobre das cidades e definido pelo narrador como “pantano” e “selva”.
Esses relatos deixam evidente a discussão que propõe Marcelo Lopes de Souza em
relação às consequências que o medo da cidade heterogênea provoca nas pessoas, ativando o
imaginário construído, ao longo dos anos pelos meios de diferentes discursos, aos que são
externos ao território segregado.
Zygmunt Bauman, em sua obra Vidas desperdiçadas (2005), analisa o que seria para
uma sociedade as pessoas que são relegadas a viver nesses territórios periféricos. Bauman
caracteriza-os como “refugos” ou “redundantes”, ou seja, seriam os sujeitos considerados
excesso para a cidade.
“Redundância” compartilha o espaço semântico de “rejeitos”, “dejetos”, “restos”, “lixo” –
com refugo. (...) O destino do refugo é o depósito de dejetos, o monte de lixo. Com muita
frequência, na verdade, rotineiramente, as pessoas declaradas “redundantes” são
89
consideradas sobretudo um problema financeiro. Precisam ser “providas” – ou seja,
alimentadas, calçadas e abrigadas. Não sobreviveriam por si mesmas – faltam-lhes os
“meios de sobrevivência”. (BAUMAN, 2005, p. 20-21)
A imagem desses sujeitos tratados como “refugos” vem sendo bastante explorada em
diversas formas artísticas, seja na literatura ou no cinema atual. Para permanecer na realidade
argentina, gostaríamos de pensar a forma como os sujeitos periféricos, bem como seus
territórios, são pensados na linguagem cinematográfica, contrapondo-a a linguagem e ao olhar
de Magnus em La 31 (una novela precaria).
A produção cinematográfica recente a que nos remete esta discussão e se assemelha à
obra de Magnus no que diz respeito à escolha dos sujeitos e território representados é Elefante
Branco, de Pablo Trapero. O filme tem como lócus narrativo a Villa Virgen, uma favela da
periferia de Buenos Aires, que se formou em volta do que seria o maior hospital da América
Latina – construção que dá nome ao filme –, mas que foi abandonado antes que a obra fosse
terminada. Diferentemente do cinema brasileiro, a temática acerca da favela não é recorrente
na produção argentina, uma vez que o assunto foi preterido durante anos no país. Pablo
Trapero rompe, portanto com as temáticas mais usuais nas produções realizadas no país e toca
em um assunto quase tabu para a capital.
A trama tem como protagonista Padre Julián, interpretado por Ricardo Darín, que se
caracteriza por participar ativamente na ajuda à população local há alguns anos. Apóiam-no,
em seu trabalho nesse território, a assistente social Luciana e o padre Nicolás, interpretados,
respectivamente, por Martina Gusmán e Jeremie Renier.
A história do filme gira em torno de duas vertentes: a delinquência e o narcotráfico
que tomam conta do lugar, tendo como consequência intensas cenas de violência, e a tentativa
de salvação do lugar personalizada na figura do padre e seus companheiros. Esse binômio
narrativo parece corroborar com o imaginário urbano acerca da favela como o lugar da
violência e da falta. A violência exacerbada e ultrarrealista parece ser a marca inexorável da
trama, não poupando o espectador de cenas perturbadoras de assassinatos e corpos
ensanguentados.
Renato Cordeiro Gomes, em seu artigo “Por um realismo brutal e cruel” (2012) cita
Jesús Martín-Barbero para explicar as relações que são travadas entre a cidade e o medo:
As relações entre a cidade e o medo vêm sendo debatidas por pensadores como Bauman e
Martín-Barbero, que, no ensaio “La ciudad que median los miedos”, falando de Bogotá,
adverte que os meios de comunicação, ao tratar da violência generalizada vivida como um
processo banal com normas e regulações, vivem dos medos, do terror, e os exploram de
forma doentia, agravando a desinstitucionalização da violência e colaborando na expansão
do sentimento de impotência em relação a uma ação coletiva e no constrangimento do
indivíduo ao território doméstico e a si mesmo. Para Martín-Barbero, a reiterada presença
90
do ato violento nos discursos sociais remete, por um lado, à sua banalização, e, por outro, à
necessidade psicológica de sobrepujar o trauma, permitindo sua assimilação como
experiência. (GOMES, 2012, p. 74)
A representação brutal da violência no lócus narrativo escolhido corrobora com o
argumento de Martín-Barbero, citado por Gomes, de que os meios de comunicação podem
tratar a violência de maneira tão trivial, reforçando o sentimento do medo urbano, o que pode
acarretar em um imaginário dicotômico entre o sujeito civilizado contrapondo-se ao sujeito
bárbaro para citar Todorov.
Não se está julgando a obra cinematográfica de Pablo Trapero, nem imaginando a
possibilidade de produzir uma narrativa da favela dominada pelo tráfico de forma
romantizada. Não obstante, não se pode negar que a linha narrativa seguida no filme de
Trapero é uma alegoria da violência que dialoga com a linha de discurso dos meios de
comunicação calcada na criminalização dos sujeitos moradores dos territórios periféricos.
Em outra ponta das possibilidades discursivas acerca desse território está a obra de
Ariel Magnus que não pretende dar um tom de discurso totalizador, e que insistentemente
coloca em xeque os clichês presentes no imaginário urbano em relação a esse fragmento da
cidade. A violência na narrativa de Magnus emerge pouquíssimas vezes e, quando ocorre, não
está associada obrigatoriamente à figura dos villeros ou ao espaço da villa. Na verdade, o
autor trabalha constantemente com inversões que apontam para a presença da violência
simbólica exercida pelo discurso. Magnus, com frequência, subverte o imaginário dominante
para ironizar esse discurso que se atualiza na fala ou no pensamento de certos personagens.
Um ótimo exemplo é o sequestro invertido de Agustina. A personagem perde-se na favela e
teme ser sequestrada. Mas, no final, é ela quem sequestra um bebê da villa.
Aparentemente, Ariel Magnus pretende ler o território a partir de uns quantos sujeitos
também fragmentados. Atrás de relatos que quase sempre giram em torno de um personagem,
o autor constrói trajetórias fragmentárias e inconclusivas. No entanto, apresenta-se um esboço
de fechamento ou de feixe de trajetórias em um fragmento em particular.
Um esforço bem-sucedido de dar forma às subjetividades fragmentárias características
da pós-modernidade pode ser observado em um fragmento que se destaca do conjunto da
obra. Trata-se da continuação do capítulo “23. Ab villa condita”. Enquanto a maioria dos
fragmentos não chega a uma página ou ocupa pouco mais que isso, o referido fragmento
exigirá a atenção do leitor por dezesseis páginas (p. 124-140) e não se focará, como os
anteriores, na história de um único personagem. Trata-se do fragmento mais dinâmico entre os
62 que integram o livro. Nele, os personagens encontram-se, as trajetórias chocam-se, as
91
histórias desdobram-se e adquirem outros significados. Não só os personagens são
modificados quando reaparecem em uma nova sequência, também o leitor que consegue
interpretar o deslocamento dos sujeitos na nova cena na qual não se sustenta a imagem que
antes fazia deles e que talvez os próprios personagens fizessem de si mesmos.
Sensível às múltiplas dimensões dos sujeitos que já não são fixos, Ariel Magnus,
oferece no contraponto entre dois fragmentos de um mesmo capítulo, outro modo de
compreender a relação entre sujeito e trajetória, que já não se resume a uma totalidade. Cada
vivência cotidiana estaria abrindo novas possibilidades de ser para os sujeitos. E são essas
experiências aparentemente isoladas, mas que ganham novos significados no diálogo com
outras experiências o objeto que aqui se narra. É a complexidade derivada do choque entre
dois fragmentos o ponto fulcral do texto, o que só se faz notar nesse longo fragmento
intitulado “23. Ab villa condita”, em que os personagens se entrecruzam e suas trajetórias se
articulam.
Em uma dessas sequências não intituladas inseridas neste capítulo, talvez principal
delas, vemos o desenrolar da aventura de Agustina na Villa 31. O resultado é muito rico, pois
permite perceber a variedade de elementos usados na construção da realidade por Magnus.
Em uma análise apressada, após a leitura dos dois primeiros fragmentos de “Agustina (o La
fortuna de la maldad)”, sendo o primeiro deles o texto de abertura do livro, conclui-se que
Agustina temia a ação dos “monstros” apenas por puro preconceito, quando de fato não corria
risco algum. Nada mais falso. Outro momento dessa sequência começa com o diálogo dos
“violadores recolectos”, que irão escolher para violentar uma “rubia” que, nesse fragmento, o
leitor descobre tratar-se de Agustina.
Diante desse fragmento tão complexo, as múltiplas retomadas das diferentes histórias
devolvem-nos à idéia original do autor que rege a obra: recorrer à inversão e ao humor para
fazer pensar:
El desafío era hablar de todo esto sin perder el tono del humor. Un tipo de humor que casi
de mal gusto, humor negro, un tono como el de (Peter) Capusotto. El humor de permite
decir y pensarlo de vuelta. Lo escuchás de vuelta (algo que estaba anestesiado) y volvés a
sentir la empatía. Generar empatía con los villeros, una empatía eufórica. (A. Magnus,
entrevista pessoal, 29 de agosto de 2015)
O ressurgimento dos personagens nesse momento final do livro faz com que os
sujeitos representem ideias opostas às que se haviam configurado antes, o que se converte em
instrumento de indagação para o próprio leitor. Essas viradas bruscas deixam para o leitor um
deslocamento do olhar.
92
O fato é que essa ação subverte uma expectativa estabelecida por um fragmento
anterior. Talvez por isso muitos estranhem tanto a ação dos “violadores” (2012, p. 131)
quanto à atitude da própria Agustina, que também comete um crime ao raptar o bebê para tirálo da favela (2012, p. 163), provavelmente o mesmo bebê que aparece no primeiro fragmento
do livro.
A imagem problemática envolve elementos de significação contraditória, fazendo com
que o leitor hesite em proferir um julgamento. É importante frisar que isso está presente em
todo o livro. O efeito é observado também com a volta à cena do personagem Mercano nesse
fragmento (2012, p. 133). Logo de início, pensamos que o catador de lixo ocupa um lugar
positivado (“el héroe de la película”) diante do sujeito mau e preconceituoso que aparece
como o responsável pelo projeto de remoção da favela. A contraposição das figuras do
favelado consciente e do personagem, cujo texto no qual se revela o projeto remoção da Villa
31 jogado no lixo pela própria empregada, revela o que antes se havia configurado como um
falso problema. A retomada do tema no fragmento “23. Ab villa condita” aponta o equívoco e
se desdobra numa discussão imprevista: a recepção das representações. O que Mercano
considerava uma ameaça para o espaço onde reside era nada mais que o roteiro de um filme
de propaganda escrito por Aldo. O catador de lixo vai até a casa do insensível autor do plano
de extermínio de favelados para colocar diante dele como realidade de carne e osso o que até
aquele momento parecia estar sendo visto apenas como uma abstração e um problema: “En
realidad vine para que me explique cuál es este plan de erradicación y exterminio que ustedes
tienen. Vivo en la villa y tengo tres hijos, no sé si me explico.” (MAGNUS, 2012, p. 133).
Aldo percebe que o problema está no que cada um compreende como realidade e que o
homem diante dele parecia não fazer distinção entre o real e a representação do real.
Nesse longo fragmento, o narrador toma uma realidade que não se esgota em uma de
suas facetas mais aparentes. A mulher bela e loura de classe alta insinua uma sensualidade
reprimida e confronta a lascívia dos “monstros” da favela, a qual já fora assinalada pelo
marido quando ela saía de casa para visitar a ONG. As posições misturam-se e se invertem.
Os estereótipos confirmam-se e se desconstroem. Personagem, prototípica da figura de classe
média, que vê a favela como o local onde a violência domina a vida cotidiana, mostra-se ela
própria capaz de uma violência extrema. A imagem fecha em uma dimensão oposta à sugerida
pelos dois fragmentos intitulados “Agustina (o La fortuna de la maldad)”, nos quais apareceu
a figura da moradora do Barrio Norte perdida na Villa 31.
É nesse capítulo que os personagens se mostram em sua riqueza e complexidade,
destoando de outros fragmentos nos quais apareceram associados a posições e imagens
93
dicotômicas ou maniqueístas. A simplicidade da estratégia é desconcertante, especialmente
para o leitor que se recusa a viajar na desconstrução de suas posições.
O romance abre com a história de Agustina. Aos poucos, à medida que caminha a
leitura, impõe-se a pluralidade de personagens, de histórias, de formas. Em La 31, tudo é
segmentado, mas ao mesmo tempo tudo se mescla (discursos, personagens, histórias, espaços,
trajetórias, projetos) em uma hibridez que se realiza de modo mais radical nesse capítulo.
Não existe uma trama geral que se constitua como corpo completo (a exemplo do que
ocorre com uma aventura determinada ou com a história de uma vida ou o relato de fatos que
marcariam um momento de uma existência), e sim conjuntos mais ou menos sequenciais de
pequenos fragmentos heterogêneos, que traçam um percurso dos personagens a partir de
incidentes que, de algum modo, se vinculam com a Villa 31.
94
5. CONCLUSÃO
Em La 31 (una novela precaria), de Ariel Magnus, a ironia é a base dessa narrativa
crítica da sociedade argentina com seus medos, imaginários urbanos e precariedade. Não há
na obra uma postura de oposição entre o cidadão que vive na cidade formal e o marginalizado
da favela, ou um foco da obra na ideia de violência ou tráfico de drogas – como ocorre com
muitas obras que utilizam o território favela como palco para a narração.
O objetivo do autor em lançar um sem número de olhares para e a partir do território
periférico converge em uma narrativa que não se atem a estereótipos em relação a esse lugar,
abrindo um leque de possibilidades para pensá-lo sem os comuns clichês utilizados em obras,
cinematográficas ou literárias, para narrá-lo.
O livro estrutura-se em fragmentos discursivos que fogem ao padrão linear do
romance tradicional e, com isso, dialogam com uma sociedade formada por sujeitos
fragmentados. A importância agora está em narrar o presente de uma cidade sem unidade
geográfica, mas que se reconfigura com sua pluralidade de territórios, denominados “ilhas
urbanas” por Josefina Ludmer. Se a sociedade se reconfigura, a literatura segue o mesmo
caminho.
Essa literatura já não se limita a uma modelo de gênero, embora não negue as
estruturas anteriores; pretende construir narrativas a partir de diferentes territórios da cidade
com a intenção de representar o presente. Nessa complexidade, aparece a cidade narrada por
essa literatura pós-autônoma (LUDMER, 2010), o imaginário urbano ganha corpo e as
variantes culturais encontradas nos diversos territórios que se formaram – e continuam se
formando – em Buenos Aires passam a ocupar lugar de destaque nas obras, como pudemos
constatar em La 31.
Entretanto, ao pensar a ação de Magnus ao narrar o território fragmentado e o
fragmento de território, percebemos que ele não se propõe a construí-lo transpondo elementos
reais para os relatos. O claro objetivo do autor é a tentativa de narrar a representação dessa
“ilha urbana” a partir de um conjunto de vozes contraditórias, entreouvidas, dispersas. Para
isso, Magnus lança mão de estratégias narrativas que colocam em cena e em xeque o
imaginário social sobre esse território. Multiplica as visões sobre o que já não é o mesmo e
mostra a impossibilidade de apreensão do todo.
A parte dessa perspectiva, o que pretendemos foi pensar La 31como um livro que
modifica o nosso modo de ler romances ao questionar, por meio de sua forma, a própria
95
concepção de romance. E isso se dá na medida em que a descontinuidade do corpo da cidade
e da experiência material do urbano se traduz na forma do romance como um conjunto
diverso e fragmentado de textos.
96
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