1974 e 2009: 35 anos de intervalo temporal e o - Entrevista
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1974 e 2009: 35 anos de intervalo temporal e o - Entrevista
CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 CARTA DOS EDITORES E HOUVE COPA! Não é segredo que o futebol representa para os brasileiros uma paixão nacional, para usar um lugar-comum, ou determina uma espécie de sentimento ufanista, vaidoso e feliz, por conta do histórico bom desempenho dos jogadores, clubes e da seleção brasileira no cenário internacional. Havia uma enorme expectativa pela realização do torneio em terras brasileiras depois de mais de 60 anos, como também havia uma certa tensão no ar – muito alimentada pelos meios de comunicação, ancorados na propaganda governamental – refletindo o receio de que manifestações populares arranhassem o brilho do evento. No Brasil ainda não compreendemos que a manifestação pública é um direito, base da democracia, embora todos concordem que o apelo à violência, em alguns casos, acabe por afastar parte da população das reivindicações. Sem discutir o resultado alcançado pelo time nacional diante de milhões de apreciadores do esporte, é preciso admitir que o semestre atípico acabou por tornar mais lento o processo de seleção e edição da revista Cambiassu. Autores, pareceristas e editores tivemos algumas dificuldades relativas aos prazos divulgados na Chamada de Trabalhos, principalmente em decorrência das alterações de agendas determinadas pelas mudanças nos calendários acadêmicos de muitas instituições de ensino, devido aos feriados determinadas pela realização da Copa do Mundo de futebol, antecipação de férias e falta de uniformidade de decisões nesses sentidos entre muitas dessas instituições, claramente respeitada pela autonomia de cada uma. Mas é preciso ratificar que, mais uma vez, a procura pela seleção foi grande e qualificada e que, apesar do atraso de algumas semanas, a Cambiassu mantém a periodicidade semestral com a publicação de trabalhos relevantes para as áreas de Comunicação e afins. Boa leitura e até a próxima edição. Carlos Agostinho A. de M. Couto Larissa Leda F. Rocha Editores CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 SUMÁRIO Artigos A DIMENSÃO PROBATÓRIA DO DISCURSO PUBLICITÁRIO Alex Sandro de Araujo CARMO......................................................................................04 PEDRINHAS NA MÍDIA INTERNACIONAL Uma análise da cobertura jornalística do portal BBC sobre a violência carcerária Brena Freitas RODRIGUES............................................................................................19 AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NA EDITORIA "POLÍTICA NACIONAL" DA REVISTA ROLLING STONE BRASIL A cobertura das eleições presidenciais de 2010 no Brasil Carlos Augusto de França ROCHA JÚNIOR..................................................................37 JORNALISMO AMBIENTAL Uma ótica a partir das contribuições de Roland Barthes Catarine Moscato STURZA.............................................................................................59 RESILIÊNCIA EMPRESARIAL Uma necessidade ante a sustentabilidade das organizações Cláudio Paula de CARVALHO........................................................................................71 O DESAFIO DA INTIMIDADE NO CIBERESPAÇO Um olhar sobre mercantilização da intimidade no Blog do Kadu Danilo POSTINGUEL.....................................................................................................93 ELEMENTOS HISTÓRICOS PARA O ESTUDO DO SELO POSTAL EM COMUNICAÇÃO Diego SALCEDO...........................................................................................................109 BOLETIM DA DIRETORIA Acertos e erros na comunicação organizacional da UNESP, campus de Presidente Prudente-SP Édison Trombeta de OLIVEIRA.....................................................................................125 RELAÇÕES ENTRE O ERUDITO E O POPULAR NA ORQUESTRA SINFÔNICA DE TERESINA Um estudo de caso da Cantata Gonzaguiana Fábio Soares da COSTA; Sarah Fontenelle SANTOS; Janete de Páscoa RODRIGUES.................................................................................................................142 2 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 OS CORPOS DO CONSUMO: LEITURA ENUNCIATIVA PARA AS CAPAS DE NOVA E MEN'S HEALTH Guilherme Di Angellis da Silva ALVES.........................................................................161 A REPRESENTAÇÃO DOS VILÕES ATRAVÉS DAS FASES DA TELENOVELA BRASILEIRA Leonardo Sá SANTOS....................................................................................................174 A INFLUÊNCIA DO FAIT DIVERS NAS POSTAGENS COLABORATIVAS DO YOUTUBE QUE MIGRAM PARA “CICLO DO JORNALISMO INTEGRADO” Marcelli ALVES.............................................................................................................188 ANTROPOLOGIA VISUAL E DOCUMENTÁRIO Uma análise do documentário Promises Maria Elisa Swarowsky LISBÔA...................................................................................204 O APARTIDARISMO DOS PROTESTOS POPULARES NO BRASIL E OS DESLOCAMENTOS DE SENTIDOS DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA Nelson Toledo Ferreira..................................................................................................221 ENTRE RESISTÊNCIAS E DÁDIVAS Reflexões sobre o consumo colaborativo Ramon Bezerra COSTA.................................................................................................237 Ensaio GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E MÍDIA Uma interface na produção de sentido nas sociedades contemporâneas Lisiane MOSSMANN.....................................................................................................253 Entrevista Carlos Soria Márcio Carneiro dos SANTOS Thaís de Mendonça JORGE (Tradutora)....................................................................265 Resenha A redenção da TV e do videogame. Sim, é Surpreendente! Larissa Leda Fonseca ROCHA JOHNSON, Steven. Surpreendente!: A televisão e o videogame nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. .................................................................270 3 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A DIMENSÃO PROBATÓRIA DO DISCURSO PUBLICITÁRIO Alex Sandro de Araujo CARMO1 RESUMO: Pode-se dizer que a linguagem, antes de ser um instrumento de informação, é também instrumento de comunicação e argumentação. Portanto, em todo discurso, além de informar, procura-se convencer e/ou persuadir, ou mais precisamente, busca-se propiciar, por meio de argumentos, adesão a uma tese. Sob essa perspectiva, tendo a Teoria Retórica do Discurso como horizonte teórico, e com um estudo de caso demonstrativo, pretende-se empreender um estudo que versará acerca das dimensões argumentativas e probatórias do discurso publicitário. PALAVRAS-CHAVE: Publicidade. Discurso. Argumentação. ABSTRACT: It can be said that language, besides being an information tool, is also a communication and argumentation tool. Therefore, in every discourse, besides informing, it is sought to convince and/or persuade, or more precisely, to provide, by means of arguments, adherence to a thesis. From this perspective, having the Rhetorical Discourse Theory as a theoretical horizon, and with a demonstrative case study, it is intended tocarry out a study that will focus on the argumentative and probative dimensions of the discourse of advertising. KEYWORDS: Advertising. Discourse. Argumentation. A linguagem é assim instrumento não só de informação, mas basicamente de argumentação e esta, por sua vez, se dá na comunicação e pela comunicação, razão pela qual a argumentação é sempre situada, dando-se basicamente num processo de diálogo, isto é, num contacto entre sujeitos. Lineide do Lago Salvador Mosca 1 Publicitário e Mestre em Letras. Docente dos cursos de Comunicação Social da Faculdade Assis Gurgacz e da Faculdade Sul Brasil. Líder da Linha de Pesquisa Comunicação em Multimeios e do Grupo de Pesquisa em Redação Publicitária, da Faculdade Assis Gurgacz. E-mail: [email protected] 4 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 1. AS DIMENSÕES DA ARGUMENTAÇÃO “O que você quer dizer com estas palavras?”: provavelmente esta é uma das questões que mais acompanha o dizer. O homem, enquanto ser de comunicação, está sempre à procura do sentido, atrás do que aquilo que se diz quer dizer. Segundo Dittrich (2008, p. 21), “historicamente, a humanidade tem-se ocupado do efeito das palavras sobre a natureza e o espírito humanos, o que não faz estranhar que se desenvolvesse a arte do discurso a fim de interferir sobre as suas crenças e atitudes”. É justamente essa interferência no processo comunicativo sobre as crenças e atitudes que se quer examinar neste trabalho. Para isso, pretende-se estudar o discurso (em sua estrutura verbal/oral) de um anúncio publicitário, buscando visualizar em seus argumentos os raciocínios que compõem o dizer do anúncio, dando ênfase, à dimensão probatória, observando como se dá a utilização e a justificação da tese central que se vale de argumentos técnicos, legitimadores e sensibilizadores. Antes de entrar na análise propriamente dita, mostrar-se-á alguns apontamentos sobre a base teórica. Trabalha-se, aqui, com a Teoria Retórica do Discurso. Essa teoria, segundo Dittrich (2008, p.16), confere à Retórica: o status de teoria orientadora ao corpo de conhecimentos estabelecido, ainda que instavelmente, a partir dos teóricos gregos, romanos e de seus seguidores, privilegiando uma determinada configuração na constituição do objeto teórico, situando-o com foco na argumentação e na sua convergência com a retórica, com a persuasão e com outros aspectos relacionados ao desenvolvimento do discurso. Esse aparato teórico, ainda que recente, vale-se da Retórica que goza de longa tradição nos estudos da linguagem e da comunicação. Mas não se fica somente na Retórica, aqui, por ter a argumentação como foco; busca-se configurar a Teoria Retórica do Discurso como um universo de conhecimentos e respectivas implicações que dizem respeito à centralidade da argumentação na sua articulação com a retórica e sua possível, mas não necessária, conexão com a persuasão, constituindo um objeto de conhecimento complexo que, além de manter cada um dos conceitos individualmente, considera-os necessariamente em sua possível imbricação no funcionamento de um certo universo discursivo, sem descartar a possibilidade de discutir a pertinência de questões relativas aos objetos ou à eficácia dos discursos. (DITTRICH, 2008, p. 17). 5 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Não se busca nesta teoria trabalhar a Retórica com uma teoria da argumentação persuasiva, pois não se busca visualizar em técnicas argumentativas a determinação que faz atingir a persuasão, mas, sim a adesão a uma tese. Ao discursar, todo orador busca ativar, valendo-se de certas estratégias, um conjunto de atributos que propiciem a geração de influência sobre o receptor/interlocutor, isto é, “o orador aciona, lingüística e discursivamente, estratégias técnicas, emotivas e representacionais a fim de influenciar o interlocutor, tanto em suas crenças quanto em seus desejos” (DITTRICH, 2008, p. 22). Ora, o orador deve buscar adesão a tese que defende, para isso, cria condições favoráveis e, ao criar estas condições, utiliza argumentos como forma de convencer. Para Dittrich (2008, p. 22): Quando o objetivo do orador é convencer (ou persuadir) por meio do discurso, utiliza-se dos argumentos técnicos para falar à razão, da organização discursiva e da expressividade das palavras para aguçar a sensibilidade do auditório, despertando-lhe o interesse e mantendo sua atenção, de um jogo de representações para impressioná-lo positivamente, apresentando-se como alguém passível de credibilidade e com legitimidade para propor sua opinião. Embora seja plausível aceitar que a argumentação emotiva e representacional apenas subsidie a maior ou menor aceitação dos argumentos técnicos, parece pertinente admitir que, em determinados discursos, aquela se sobreponha a estes. Dito de outro modo: as potencialidades argumentativas dos discursos podem ativar e organizar qualidades racionalizadoras, emotivas e representacionais. Pode-se dizer que o discurso, dentro do arcabouço da Teoria Retórica do Discurso, se organiza em três dimensões, a saber: dimensão probatória, estética e política. Dittrich (2008), mostra que a argumentação é o princípio norteador de uma teoria do discurso fundamentada na Retórica que descreveria os mecanismos responsáveis pela eficácia argumentativa e comunicativa. Segundo o autor (2008, p.14): [...] a dimensão probatória diz respeito à justificação da tese em seu conteúdo, em suas motivações e em sua legitimidade; a dimensão política relaciona-se à negociação da tese entre o proponente e o interlocutor, configurando o jogo de poder entre ambos para propor, impor ou contornar (politicamente) os diferentes pontos de vista sobre o mesmo objeto (tese); a dimensão estética compreende as condições de produção do discurso e os efeitos de sentido para viabilizar ou compartilhar a tese dentro dos limites impostos pelas restrições de gênero e da cena enunciativa. (grifos do autor). 6 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Vê-se que o discurso se configura nas três dimensões já citadas, onde se encontrariam: 1) na dimensão probatória: a) a justificação da consistência da tese, isto é, seu conteúdo (argumentos técnicos); b) a justificação das possíveis motivações frente ao auditório, ou seja, os benefícios, os riscos e as consequências da adesão à tese (argumentos sensibilizadores ou motivacionais); c) a justificação da legitimidade da tese por parte do proponente do discurso, que se apóia num ethos prévio e num ethos discursivo (argumentos legitimadores); 2) na dimensão política: negociação da tese entre o orador e seu auditório; 3) na dimensão estética: desenvolvimento discursivo da argumentação para torná-la mais compreensível em seus vários aspectos, seja: lexicais, textuais, pragmáticos e semióticos. Observadas algumas características básicas dessas três dimensões, discorrer-se-á um pouco mais sobre a dimensão probatória do discurso, voltando a ver as qualidades argumentativas mencionadas acima. Nesta dimensão, encontra-se a argumentação técnica, a argumentação sensibilizadora e a argumentação legitimadora. Dittrich (2008), ao descrever estas qualidades da argumentação dentro da dimensão probatória, diz ser necessário, no caso das duas primeiras, responder a certas questões, respectivamente, “Em que, (ou como) a tese se sustenta?” e “Por que a tese merece ser adotada?”, já a última, apoiada no ethos prévio e no ethos discursivo, busca justificar a credibilidade de quem está propondo a tese. Assim, na primeira, trata-se da proposição de afirmações que defendem ou refutam o teor e o conteúdo da tese. Aí se encontram argumentos do tipo científico, estatísticos, jurídicos, de autoridade, e etc. Na argumentação técnica a consistência da justificativa se dá pela racionalização, isto é, pelo logos. Na segunda dimensão, o que se busca é argumentos para justificar possíveis consequências e não o conteúdo propriamente dito da tese, o objetivo é indicar as vantagens e desvantagens na aceitação da tese proposta. Como argumentos têm-se: os pragmáticos, ilustrativos, teleológicos. Nesta dimensão, justificam-se as motivações e os efeitos da tese para o receptor/interlocutor (auditório), por meio do phatos. E na terceira, busca-se justificar a credibilidade de quem propõe a tese, procurando, através da criação de um ethos (prévio e/ou discursivo) positivo, angariar e conquistar a confiança do receptor/interlocutor (auditório). Em relação ao ethos, ressalta-se ainda que o prévio se vale de argumentos credenciadores e o discursivo de argumentos representacionais. Para sintetizar, nas 7 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 palavras do próprio Dittrich (2008, p. 23), “a dimensão técnica é da ordem do conhecer e do entender; a emotiva, do sensibilizar e do atrair; a representacional, do crer e do legitimar”. 2. A PRÁTICA DISCURSIVA PUBLICITÁRIA Quando o assunto é publicidade quase sempre se ouve o mesmo tipo de colocação: a publicidade está sempre às voltas com a manipulação. Para clarear o assunto, pelo menos no entendimento deste estudo, mostrar-se-á como o termo publicidade é compreendido. Como primeiro ponto, embora se fale de publicidade, o que se procura é trabalhar com o discurso publicitário e este, por sua vez, não pode ser visto como criador de costumes, crenças e hábitos, pois ele é reprodutor de costumes, crenças e hábitos já cristalizados na e pela sociedade. Portanto, não há de se falar, neste sentido, em um discurso que manipula. Segundo Cattelan e Schröder (2008, p. 30) “Os discursos”, e leia-se aí os publicitários, “estão ancorados em alicerces duradouros de crenças”. Para estes autores, o discurso publicitário não produz crenças, na verdade ele somente as reproduz. O objetivo deste tipo de discurso é “levar”, diz Cattelan (2008, p. 67), “ao consumo de produtos ou de idéias, ele se obriga a associar os produtos que pretende vender a sentimentos humanos que se relacionam com o que atemoriza ou encanta a fatia do mercado a que se destina o produto”. Assim, o discurso publicitário obriga a associar-se aos sentimentos humanos, isto é, a crenças e atitudes que já circulavam antes de seu aparecimento. Alguns autores falam que o discurso publicitário é persuasivo, porém esta não é visão deste trabalho. Entende-se como discurso publicitário um conjunto de argumentos que procuram criar condições favoráveis para aceitação de uma tese. A essa luz, é mais prudente falar em adesão, haja vista que esta busca o convencimento do auditório se valendo de argumentos, muitas vezes, amparados na doxa enquanto pressuposto2 partilhado culturalmente. 2 Segundo Dittrich (2008), esse pressuposto não é análogo ao termo técnico da pragmática, pois, ele é visto aqui somente como um conjunto de suposições. 8 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O discurso publicitário, enquanto prática comunicativa, não deve ser visto como uma unidade fechada de sentido. Ele não é homogêneo, isto é, as partes que o compõe são desiguais, não há uma regularidade enunciativa para cada tipo de discurso. Se os discursos fossem homogêneos, portanto, fechados em si mesmos, não se admitiria, num discurso publicitário, por exemplo, que se utilizassem enunciados ou estruturas sintáticas provenientes de outras formas de discurso, desta maneira, cada discurso teria um repertório próprio de enunciados. Alguns autores que trabalham com a Análise de Discurso, principalmente os da vertente francesa, descrevem o discurso como efeitos de sentido entre interlocutores. Segundo Possenti (2009, p. 16), “O discurso é entendido, [...], como um tipo de sentido – um efeito de sentido, uma posição, uma ideologia – que se materializa na língua, embora não mantenha uma relação biunívoca com recursos de expressão da língua”. Pode-se ver que o discurso, embora se materialize, ao nível de intradiscurso, isto é, na escrita, na língua, não mantém uma relação obrigatória com a língua. Assim, nota-se que o discurso tem uma dimensão interacional (política), que é explicitada pelo fato dele ser visto como efeitos de sentido, principalmente, numa situação de interlocução, e que os discursos não são estruturas fechadas, pois as expressões da língua (enunciados, ditos populares, provérbios, etc.) são revestidas de sentidos por meio da interação e da inscrição em formações discursivas dadas que estabelecem sua forma de restrição discursiva (o que pode e o que deve ser dito). Não abandonando esta noção de discurso, propõe-se que estes efeitos de sentido sejam vistos como práticas discursivas, segundo a acepção de Maingueneau (2005, p. 143): Seria melhor, pois, definir nosso objeto não como discurso, mas como prática discursiva, seguindo nisso em parte a visão de Michel Foucault, que introduz precisamente esse termo para referir-se ao “sistema de relações” que, para um discurso dado, regula a localização institucional das diversas posições que pode ocupar o sujeito de enunciação. (grifo do autor). Nesta perspectiva, por não ser o discurso uma estrutura fechada, e por estar sempre disponibilizando diferentes posições discursivas, busca-se, então, entender o discurso publicitário como prática discursiva publicitária, sendo este tipo de prática responsável pelo processo comunicativo publicitário. 9 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 3. A DIMENSÃO PROBATÓRIA EM ANÁLISE De início, empreender-se-á, em linhas gerais, uma contextualização acerca de alguns aspectos do iogurte Activia que será o objeto de análise. Destaca-se que a linha de iogurtes Activia desenvolvida pela Danone é comercializada em vários países desde a década de 1980. No Brasil, o iogurte é comercializado desde 2004. Este produto contém uma cultura probiótica exclusiva que promete ajudar a regular o trânsito intestinal, a saber, o Dan Regularis. Sua principal função, além da nutrição, seria ajudar a melhorar o trânsito intestinal lento. Por este fato, vê-se que o Activia se encaixa no segmento de alimentos funcionais. Este segmento está em alta nos últimos anos, fato indicado pelo aparecimento de vários produtos com características que vão além de uma nutrição adequada. Isto é, circulam pelo mercado alimentício na atualidade produtos que visam ter efeitos benéficos em funções específicas do organismo humano, como, por exemplo, no caso do Activia, melhorar o trânsito intestinal, fazendo com que pessoas que sofrem de algum tipo de constipação intestinal tenham o funcionamento de seu intestino regulado pelo seu consumo. Assim, pelo fato de o Activia dizer em seus discursos que, por conter o bacilo Dan Regularis em sua fórmula, atua sobre transtornos intestinais, pode-se apontar que ele é um alimento funcional, pois se presta, ao menos, no fio do discurso de seus anúncios, a comunicar que além de nutrir, propicia bem-estar e ajuda a melhorar o funcionamento do organismo de seus consumidores. Feitas estas considerações breves, tanto do arcabouço teórico em seções anteriores, quanto de características do Activia, este estudo pretende observar os argumentos e os raciocínios implícitos e seus possíveis efeitos de sentido. Assim, passa-se, agora, a analisar algumas sequências discursivas de uma peça publicitária3 (anúncio televisivo) do Activia que veicula como mote publicitário o discurso que prega o seu consumo como solução para problemas de trânsito intestinal lento. SD01: “Muita gente não vai ao banheiro todos os dias e acha que é normal, mas não é.” 3 Este trabalho só irá analisar a parte locucional (isto é, o spot) do objeto de estudo. 10 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Raciocínio: Você deve ir ao banheiro todos os dias. Portanto, a não ida é sinal de que há algum problema intestinal. Argumento: Asserção: Você pode ter problemas intestinais. Dados: Você não vai ao banheiro todos os dias. Passagem: A não ida ao banheiro diariamente é sinal de que há algum problema com o funcionamento de seu intestino. Silogismo (Entimema): Premissa maior: Não ir ao banheiro todos os dias é sinal de problemas intestinais. Premissa menor: Você não vai ao banheiro todos os dias. Conclusão: Você tem problemas intestinais. Encontra-se neste primeiro raciocínio um argumento técnico. Como se sabe, há certo conhecimento corrente da existência de estudos científicos que dizem que um dos sinais ou sintoma de problemas intestinais é a não ida ao banheiro com certa regularidade. Este anúncio se ampara neste conhecimento para argumentar e para sustentar o raciocínio que as pessoas devem ir ao banheiro todos os dias. Pode-se observar que esta sequência discursiva está amparada no argumento de que se deve ir ao banheiro diariamente. O encadeamento discursivo realizado pelo mas conduz a uma conclusão não-r, na qual o anúncio se ampara para afirmar que não se deve achar normal não ir ao banheiro diariamente. Essa perspectiva discursiva é assumida pela peça publicitária e pode ser vista por meio do uso contrajuntivo do operador argumentativo mas que orienta argumentativamente no sentido de que não ir ao banheiro regularmente é sinal de problema intestinal. A argumentatividade ativada por esse enunciado provém de um discurso mais especializado (discurso científico) e que é, portanto, mais estabilizado e pautado em uma voz de autoridade. Porém, o conhecimento estabilizado dado por esse argumento técnico acaba sendo trivializado pelo discurso da Danone, ou seja: o discurso da empresa não é científico a rigor como pretenderia ser. Desta forma, o discurso publicitário do Activia, que fixa a não ida ao banheiro como fator determinante e genérico para a existência ou para o aparecimento de transtornos intestinais, busca dar um aspecto científico aos dois primeiros enunciados 11 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 do recorte, na tentativa de fazer deles um fato inquestionável e verificável como o discurso científico. Assim, apaga-se o aspecto ideológico que ancora a rede do dizível que a atravessa, para dizer que a não ida ao banheiro diariamente é um sintoma de problemas intestinais. Esse efeito de sustentação busca ser estabelecido no quadro de crenças do sujeito, fazendo com que ele creia nessa “evidência” e acredite que este efeito de sentido é do conhecimento de todos. Neste sentido, observa-se que a empresa traveste o discurso publicitário do Activia com a simulação de um discurso com aspecto especializado e estabilizado. Esse deslizamento é possível, pois a língua oferece lugar à interpretação (ORLANDI, 2001). Ou seja, a Danone, para dizer que é preciso consumir o Activia todos os dias, sem demonstrar seu interesse no aumento das vendas do produto, dissimula esse interesse argumentando, por meio da simulação de cientificidade, que é preciso ir ao banheiro diariamente. SD02: “Devemos ir ao banheiro diariamente. A gente elimina toxinas e evita problemas no futuro. Milhões de pessoas já sabem disso e tomam Activia. Activia contém o exclusivo bacilo Dan Regularis que regula o intestino naturalmente.” Raciocínio: Para ir ao banheiro todos os dias e eliminar toxinas evitando problemas intestinais futuros, milhões de pessoas tomam o iogurte Activia como forma de melhorar seu funcionamento intestinal. Argumento (1): Asserção: Tome Activia como forma de melhorar seu funcionamento intestinal. Dados: O iogurte Activia contém o exclusivo bacilo Dan Regularis que chega vivo no intestino. Passagem: O bacilo Dan Regularis é responsável pela regulação do trânsito intestinal. Silogismo (Entimema): Premissa maior: Quem tem problemas intestinais e quer ir ao banheiro todos os dias, como milhões de pessoas, deve tomar o iogurte Activia. Premissa menor: Você tem problemas intestinais e quer ir ao banheiro todos os dias. Conclusão: Você tem que tomar o iogurte Activia. 12 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Argumento (2): Asserção: O iogurte Activia regula seu trânsito intestinal e propicia uma vida mais saudável. Dados: O Activia contém o exclusivo bacilo Dan Regularis. Passagem: O Dan Regularis pode regular o trânsito intestinal e propiciar assim uma vida mais saudável. Silogismo (Entimema): Premissa maior: Para regular o funcionamento do intestino e ter uma vida mais saudável é preciso tomar o iogurte Activia que contém o exclusivo bacilo Dan Regularis. Premissa menor: Você toma o iogurte Activia que contém o exclusivo bacilo Dan Regularis. Conclusão: Seu intestino será regulado e você terá uma vida mais saudável. Nas sequência discursivas (02), encontram-se dois argumentos que possuem as características de legitimadores e técnicos. Estes argumentos buscam justificar sua proposição, tanto pelo teor do conteúdo (aspecto técnico), quanto pela legitimidade/credencialidade (aspecto legitimador) da tese, cujo objetivo é conquistar adesão a proposição de que o Activia faz o intestino lento e preguiçoso funcionar. Estes argumentos se apoiam tanto num logos como no ethos da Danone, empresa sólida, que tem uma imagem bem constituída, e que apresenta boas razões para o consumo de seu iogurte, pois o mesmo contém o exclusivo bacilo Dan Regularis. Nesta sequência discursiva, a partir dos nos enunciados Devemos ir ao banheiro diariamente. A gente elimina toxinas e evita problemas no futuro, podem ser observadas duas proposições: a) deve-se ir ao banheiro diariamente; b) eliminando toxinas maléficas ao corpo se evita problemas de saúde no futuro. Nota-se que a segunda proposição, mais especializada, marca-se na ordem do argumento técnico. Assim, por meio da flexão verbal devemos, vê-se a imposição ativada que a Danone procura avivar através do argumento. As expressões Elimina toxinas e evita problemas futuros são dados técnicos que assinalam o efeito conceptual utilizado para reforçar a ideia de que se deveria ter um trânsito intestinal regulado, capaz de possibilitar evacuações em uma rotina adequada. A Danone, enquanto enunciador do recorte, ao articular, via anúncio publicitário, no discurso do produto, enunciados de um discurso mais especializado e estabilizado, busca levar ao entendimento de que um intestino regulado elimina mais 13 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 toxinas que um desregulado. A essa luz, a empresa busca, através deste conhecimento, criar uma memória sobre o funcionamento intestinal que lhe seja útil, pois, assim, ela poderá propor o Activia e os supostos benefícios do produto como solução para os problemas de intestinos preguiçosos. Pode-se atentar que por meio do atravessamento de um argumento articulado a um conhecimento mais especializado e estabilizado (para evitar problemas de saúde futuros, deve-se eliminar toxinas maléficas ao corpo), contribui para o reforço da crença que a Danone vem procurando fixar nos receptores/interlocutores do anúncio. Assim, a estratégia discursiva da empresa, ao utilizar esse recorte, é destinada ao avalizamento do discurso publicitário do Activia. Para reforçar a implicação entre as propriedades argumentativas regularidade intestinal e eliminação de toxinas maléficas ao corpo, a Danone utiliza os enunciados Milhões de pessoas já sabem disso e tomam Activia. Com esses enunciados, a empresa busca avalizar a implicação das propriedades, dizendo que é do conhecimento de milhões de pessoas que se deve ir ao banheiro diariamente. Observa-se que, com a utilização do termo milhões, a Danone procura demonstrar que o conhecimento ativado pelo argumento é consensual e compartilhado por um grupo muito grande de pessoas: não se trata, pois, apenas de referir um nicho ou pequeno grupo. Pode-se afirmar que os enunciados Milhões de pessoas já sabem disso e tomam Activia pertencem ao grupo de enunciados que orientam argumentativamente para a legitimação das afirmações feitas sobre as propriedades anunciadas como funcionais e benéficas do Activia. Esses enunciados legitimam, ao menos, três afirmações: a primeira é relativa à afirmação de que milhões de pessoas sabem que é importante eliminar toxinas maléficas ao corpo para evitar problemas de saúde no futuro; a segunda é referente à questão da regularidade intestinal. Se milhões de pessoas sabem que é preciso eliminar toxinas maléficas ao corpo para evitar problemas de saúde no futuro, elas também precisam saber que, para se eliminar tais toxinas, é preciso evacuar diariamente; e a terceira é relativa ao fato de que se milhões de pessoas sabem que é preciso eliminar toxinas maléficas ao corpo e que, para isso, é preciso, segundo o discurso publicitário do Activia, ir ao banheiro diariamente para evacuar. Observa-se que os receptores/interlocutores do anúncio são levados a inferir que, para ter essa 14 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 regularidade no funcionamento intestinal e eliminar as toxinas maléficas, elas devem consumir o iogurte Activia que faz o intestino funcionar adequadamente. SD03: “Regule seu intestino e tenha assim uma vida mais saudável. Faça o desafio, tome Activia todos os dias, se não funcionar a Danone devolve seu dinheiro.” Raciocínio: Se consumindo diariamente o Activia seu intestino não funcionar, a Danone devolve o dinheiro gasto na compra. Argumento: Asserção: A Danone devolve o dinheiro se o consumo diário de Activia não fizer o intestino funcionar. Dados: A Danone possui tecnologia exclusiva. Passagem: A Danone pode fazer esta promessa, pois desenvolveu o bacilo Dan Regularis que age em intestinos lentos e mal regulados. Silogismo (Entimema): Premissa maior: Se o consumo diário do Activia não fizer o intestino funcionar a Danone devolve o dinheiro da compra. Premissa menor: Seu intestino não funcionou após tomar o Activia. Conclusão: A Danone devolverá seu dinheiro. Esta sequência discursiva ativa um argumento que propõe a devolução do dinheiro gasto na compra de certo número de potes do Activia (a partir de 15), caso o funcionamento intestinal não seja regulado pelo consumo deste iogurte. Este argumento se vale, principalmente, da imagem da Danone frente ao mercado consumidor, imagem que é constituída e reforçada, também, pelos argumentos técnicos que apresentam dados pautados em estudos científicos, isto é, estes dados se fixam no ethos prévio da Danone e consolidam o seu “saber fazer”, além, é claro, de certificar e avalizar a imagem (ethos discursivo) da Danone frente aos consumidores (potenciais e reais). Além destes argumentos (técnicos e legitimadores), pode-se, também, encontrar argumentos sensibilizadores ou motivacionais. Estes, por sua vez, não se encontram amparados em dados técnicos ou representacionais, não se vê neles um logos ou ethos, mas um pathos, isto é, “mais do que dirigidos ao entendimento técnico da tese, tais argumentos dirigem-se aos sentimentos do auditório” (DITTRICH, 2008, p. 6). Assim, 15 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 de forma implícita, pode-se encontrar o argumento sensibilizador/motivacional: não se pode ter uma vida saudável sem se ter um funcionamento intestinal adequado. A argumentação sensibilizadora deve responder, geralmente, à pergunta: “Por que a tese deve ser adotada?”. Por isso, na proposição de um argumento sensibilizador deve se disponibilizar, de forma explícita ou implícita, as vantagens que o receptor/interlocutor irá ter aderindo à tese em questão. Este tipo de argumento justifica as possíveis consequências da adesão e não o conteúdo da tese. Nesta sequência, pertencente à parte final do anuncio, vê-se a predominância de verbos no imperativo. Por meio das flexões verbais regule e tenha, podem-se verificar algumas ordens/sugestões que orientam argumentativamente para conclusões previstas na linha de determinação do anúncio. Se entendida como uma relação de equivalência, vê-se que ambas as flexões (regule e tenha) levam à perspectiva de um argumento que engloba e articula a afirmação/promessa de que para regular o intestino que não funciona diariamente e ter uma vida mais saudável, é preciso tomar o Activia. No recorte Faça o desafio, tome Activia todos os dias, se não funcionar a Danone devolve o seu dinheiro, junto com a primeira parte da sequência, observa-se a atuação de peroração no anúncio, procurando dispor o receptor/interlocutor em sentido favorável aos argumentos que foram apresentados. Assim, ratificando a potencialidade de adesão do comercial, ao passo de conclusão, observa-se um posicionamento enunciativo que ordena/sugere: a) que se regule o funcionamento intestinal para se ter uma vida mais saudável, b) que se aceite o desafio proposto pela Danone e c) que se tome o Activia todos os dias. 4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PERTINENTES Após analisar estas sequências discursivas com seus raciocínios e argumentos, pode-se considerar que a prática discursiva do anúncio estudado, ao menos em sua estrutura verbal/oral, que veicula o discurso publicitário do iogurte Activia, utilizandose do esquema aristotélico, revela certas estratégias argumentativas e discursivas na procura de propiciar adesão à tese de que o produto faz o intestino lento e preguiçoso de quem o consome funcionar. 16 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Neste sentido, em nível de exórdio, o anúncio inicia o discurso com a introdução de que o consumo deste iogurte faz o intestino de quem o consome funcionar. Já a narração arrola os fatos que serão apresentados, no caso, indicando que não ir ao banheiro todos os dias é sinal de problemas intestinais. Em seguida, as provas procuram afirmar e comprovar a eficácia deste produto por ele conter em sua fórmula o exclusivo bacilo Dan Regularis. E por fim, na peroração, esta peça publicitária em seu discurso, valendo-se de verbos no imperativo, ratifica sua potencialidade persuasiva, ao passo de conclusão, ordenando: i) que se regule o funcionamento intestinal para se ter uma vida mais saudável; ii) que se faça o desafio proposto pela Danone; iii) e que consuma o iogurte Activia todos os dias. Reforçando os argumentos apresentados, principalmente os legitimadores, este anúncio utiliza finalizando a mensagem que anuncia o consumo do Activia como forma de regular o trânsito intestinal, o enunciado: se não funcionar a Danone devolve seu dinheiro. Este enunciado trabalha de forma a reforçar a imagem de confiança da Danone frente aos receptores. Assim, pode-se dizer, à guisa de conclusão, que no anúncio do desafio Activia, encontram-se, na dimensão probatória, argumentos técnicos, legitimadores e motivacionais, e que nesta dimensão argumentativa há o predomínio dos argumentos legitimadores, isto é, este anúncio explora, para justificar sua tese, a imagem da Danone (ethos prévio e discursivo). Por isso, vê-se a Danone, ao dizer que devolve o dinheiro para quem não tiver o funcionamento intestinal regulado pelo consumo diário do Activia, avalizar a afirmação de que o consumo deste iogurte faz o intestino lento e preguiçoso funcionar. 17 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 REFERÊNCIAS CATTELAN, João Carlos. Colcha de retalhos: micro-historia e subjetividade. Cascavel: Edunioeste, 2008. ________; SCHRÖDER, Luciane Thomé. Ah! Eu não tenho dó! Eu falei. Revista Veredas (UFJF), V. 1, 2008. p. 22-32. DITTRICH, Ivo José. Por uma Retórica do Discurso: argumentação técnica, emotiva e representacional. Revista Alfa, São Paulo, nº 52 (1), 2008, p. 13-37. MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. [Trad. Sírio Possenti]. Curitiba: Criar Edições, 2005. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001. POSSENTI, Sírio. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. 18 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 PEDRINHAS NA MÍDIA INTERNACIONAL Uma análise da cobertura jornalística do portal BBC sobre a violência carcerária Brena Freitas RODRIGUES¹ RESUMO: A crise carcerária no Complexo Penitenciário de Pedrinhas provocou repercussão na imprensa internacional em função dos crimes contra a dignidade do ser humano, da violência na cidade de São Luís, capital do Estado, e das manifestações populares que desencadearam urgência de medidas efetivas contra a violência, exigidas pela Organização das Nãções Unidas - ONU e pela Anistia Internacional. Baseado nisso, o presente trabalho tem como proposta investigar a cobertura da imprensa internacional sobre tais fatos, a partir da análise do portal British Broadcasting Corporation - BBC, de outubro de 2013 a janeiro de 2014, período em que ocorreram os principais acontecimentos que deram origem à crise de violência na capital e, consequentemente, ganharam atenção da mídia internacional. Este trabalho também visa compreender o processo de noticiabilidade e sensacionalismo durante a cobertura jornalística. PALAVRAS-CHAVE: Violência, Imprensa Internacional, Noticiabilidade; Sensacionalismo. ABSTRACT: The prison crisis in the Penitentiary of Rhinestones caused repercussions in the international press on the basis of crimes against human dignity, violence in the city of Sao Luis, capital of the State, and the popular demonstrations that sparked urgent effective measures against violence, required by the United Nations - UN and Amnesty International. Based on this, this paper aims to investigate the international press coverage of such events, from the analysis of the British Broadcasting Corporation BBC website, October 2013 to January 2014, during which time the major events that led to the crisis of violence occurred in the capital and, consequently, gained 19 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 international media attention. This work also aims to understand the process of newsworthiness and sensationalism during news coverage. KEYWORDS: Violence; International Press; News Value; Sensationalism. 1 INTRODUÇÃO O surto de violência ocorrido no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís do Maranhão, provocou nos últimos meses uma crise de segurança na cidade jamais vista pelos ludovicenses, que desencandeou uma série de consequências que foram desde manifestações populares pela sociedade que clamava por segurança às autoridades competentes, até a urgência de medidas efetivas contra a violência, exigidas pela Organização das Nações Unidas – ONU e pela Anistia Internacional, fatos que repercutiram na imprensa nacional. O primeiro tópico deste artigo contém um breve histórico sobre o caso, que discorre sobre a causa inicial, as facções envolvidas na rebelião, os crimes bábaros ocorridos na penitenciária, a onda de terror que se espalhou pela cidade por conta dos ataques à ônibus e delegacias, além de uma criança morta por bandidos. Durante o período de pesquisa para a realização deste trabalho, de outubro de 2013 a janeiro de 2014, as principais notícias dos meios de comunicação do Maranhão, do Brasil e do mundo eram voltadas para os crimes que aconteciam na penitenciária de Pedrinhas e na capital do Estado. No segundo tópico, os autores Nelson Traquina e Mauro Wolf serviram como referência para explicar o porquê do termo “onde há morte, há jornalistas” e o motivo das notícias de violência terem tanto espaço na mídia, falando sobre os critérios de noticiabilidade e identificando os valores-notícias presentes no tema deste trabalho, tais como os de relevância, notabilidade, inesperado, dentre outros. O terceiro tópico possibilita a compreensão sobre o sensacionalismo na imprensa. De acordo com Traquina “o jornalismo também é um negócio” (2001, p.77) e o sensacionalismo vende. A partir disso, entendemos porquê a dicotomia mórbido-lucro está tão presente nos meios de comunicação da contemporâneidade. De acordo com o autor do livro Espreme que sai sangue – Um estudo do sensacionalismo na imprensa, Danilo Angrimani Sobrinho (1995, p.11), o que distingue o meio sensacionalista do meio informativo comum é a linguagem, que é especifica e remete ao inconsciente. 20 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Desta forma, entenderemos também porque o sensacionalismo vende, através da linguagem utilizada e da forma de conteúdo do jornalismo sensacionalista. Comentaremos também sobre as consequências resultadas do gosto da população pelo sensacionalismo. O último tópico traz informações gerais sobre a cobertura jornalística do British Broadcasting Corporation – BBC no período já citado, que acompanhou o caso e publicou 19 matérias no portal de notícias da emissora nas áreas BBC Brasil e BBC News Latin American & Caribbean, aos quais relataram desde as rebeliões, as guerras entre as facções criminosas, o número de mortos, até as condições sub-humanas que os presidiários vivem no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, além da pressão que as autoridades do estado e do país sofreram para que se pronunciassem e adotassem medidas emergenciais que solucionassem o caso. Veremos também neste tópico, quais os critérios de noticiabilidade identificados nas matérias selecionadas. Por fim, consideramos que o problema da crise de segurança na cidade gerou várias outras questões que necessitavam de atenção, como a crise carcerária no Brasil, o descaso na assistência dos presidiários, a violação dos direitos humanos, o abandono dos projetos de construções de novos complexos penitenciários, inclusive a reforma do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, e principalmente a falta de segurança que a sociedade sofre nos dias atuais. Expomos os lados positivo e negativo para São Luís diante de tamanha repercussão sobre o caso, e questionamos até onde vai a disputa do bom senso X audiência dos meios de comunicação, até onde vale fazer jornalismo para vender, e esquecer a ética diante da situação das vítimas envolvidas em determinadas circustâncias, além de refletir sobre o que o incentivo ao sensacionalismo nos meios de comunicação pode nos causar futuramente. 2 CRISE CARCERÁRIA EM PEDRINHAS: o estopim da violência em São Luís A crise da segurança, até então nunca vista pelos maranhenses, teve início no dia 1º de outubro de 2013, quando 18 presos foram transferidos para o Complexo Penitenciário de Pedrinhas. As rebeliões na penitenciária decorreram de guerras entre facções criminosas, após uma tentativa de revista da polícia nas celas, e a descoberta de um túnel para fuga de 60 presos. Tudo isso culminou em detentos decapitados, 21 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 atentados contra a polícia, ônibus queimados, uma criança morta por bandidos que atearam fogo em seu corpo e uma sociedade vivendo em um misto de revolta e pânico. As aulas em colégios e universidades foram suspensas, o expediente em empresas e repartições públicas foi reduzido e os ônibus foram recolhidos às 18h. A guerra entre as facções “Bonde dos 40” e do “Primeiro Comando do Maranhão – PCM” para saber quem comandava a cidade, estava declarada. Foi decretado estado de emergência no sistema prisional e na segurança de São Luís, fato que fez com que a atenção da mídia internacional se voltasse à cidade. O assunto mais comentado das redes sociais foi a violência em Pedrinhas. Manifestações populares e o horror que estava sendo espalhado pressionaram pronunciamentos de autoridades e tentativas para solucionar o caso da forma mais rápida possível. Isso fez com que outras problemáticas do sistema prisional do Brasil também fossem discutidas por entidades como a Anistia Nacional e a Organização das Nações Unidas – ONU. 3 NEWSMAKING: os valores-notícia Sendo noticiabilidade um conjunto de elementos por meio dos quais o aparato informativo controla e administra tanto a quantidade quanto o tipo de acontecimento que serve de base para a seleção de noitícias, Mauro Wolf (2003, p. 202) define valoresnotícia como um componente da noticiabilidade. Os valores-notícia são critérios de relevância difundidos ao longo de todo processo de produção, estando presentes na seleção de notícias, e permeando os procedimentos posteriores, com uma importância diferente. Ainda de acordo com o autor, os valores são critérios para selecionar os elementos mais importantes, auxiliando os jornalistas a elaborar a matéria ou reportagem final. Além disso, eles funcionam como linhas-guia para a apresentação do material, sugerindo o que deve ser enfatizado, o que deve ser omitido, onde dar prioridade na preparação das notícias a serem apresentadas ao público. Os valores/notícia são a qualidade dos eventos ou da sua construção jornalística, cuja ausência ou presença relativa os indica para a inclusão num produto informativo. Quanto mais um acontecimento exibe essas qualidades, maiores são suas chances de ser incluídos. (Golding e Elliot apud Wolf: 203). 22 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Wolf (2003, p. 207) afirma que os valores-notícia derivam de admissões implícitas ou de considerações relativas aos caracteres substantivos da notícia – o seu conteúdo; a disponibilidade do material e os critérios relativos ao produto informativo; o público; a concorrência. Tendo como primeira ordem de considerações o evento que é transformado em notícia. Já a segunda diz respeito ao conjunto de processos de produção e realização da notícia, o terceiro se refere à imagem que os jornalistas têm dos destinatários, e o último às relações entre os meios de comunicação de massa presentes no mercado de informação. No presente trabalho, limitaremos a discorrer sobre a primeira ordem. Wolf (2003, p. 208) diz que os critérios substantivos articulam-se em dois fatores: a importância e o interesse da notícia. A importância da notícia é determinada por quatro variáveis, que pode ser pelo grau e nível hierárquico dos indivídios envolvidos no acontecimento noticiável, o impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional, que relaciona o valor-notícia da proximidade, a quantidade de pessoas que o acontecimento envolve, e a relevância e significatividade do acontecimento em relação aos desenvolvimentos futuros de uma determinada situação. À respeito da noticiabilidade dada pelos meios de comunicação locais sobre a crise carcerária, a importância de tal notícia possui os quatro itens de importância citadas por Wolf. Sobre o grau de nível hierárquico, pode-se dizer que o governo estadual foi diretamente envolvido no caso, por ter sido acusado de incompetência no quesito segurança pública. Em relação ao impacto sobre a nação e interesse nacional, Pedrinhas foi listada entre as seis piores prisões do Brasil. Por fim, sobre a quantidade de pessoas envolvidas no acontecimento, relevância e significatividade, pode-se relacionar os mais de 60 presos mortos na rebelião da penitenciária, além das pessoas que sofreram algum tipo de violência na cidade, como roubos e assassinatos, por parte de membros da facção criminosa. No que diz respeito ao interesse da notícia, Wolf (2003, p. 213) diz que isso está diretamente ligado às imagens que os jornalistas fazem do público. Afirma que interessantes são as notícias que buscam dar ao caso uma interpretação baseada no lado do “interesse humano”. Algumas categorias normalmente são usadas para identificar os acontecimentos que respondem a esse requisito de noticiabilidade, que são o de histórias 23 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 de pessoas comuns e que passam a reagir em situações insólitas, ou histórias de homens públicos, observados em sua vida privada cotidiana; histórias em que há uma inversão de papéis; histórias de interesse humano; histórias de feitos excepcionais ou heróicos. De acordo com o autor Nelson Traquina, (2002, p. 173) noticiabilidade é um conjunto de critérios e operações que fornecem aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é de possuir valor como notícia. Os critérios de noticiabilidade são o conjunto de valores-notícia que determinam se um acontecimento ou um assunto, são suscetíveis de se tornar noticia, isto é, serem julgados como transformáveis em matéria noticiável, por isso, possuindo valor notícia. Durante a cobertura jornalística no período da pesquisa, notou-se que o portal utilizou-se de alguns critérios de noticiabilidade ou valores-notícia, para acompanhar o caso. Os valores notícias de seleção, ou critérios substantivos, identificados nas matérias citadas foram os de morte, o qual Traquina explica (2005, p. 79), que é um dos principais valores-notícia utilizados por jornalistas, pela notoriedade que notícias com esse aspecto causam; relevância, onde é determinado que a noticiabilidade tem a ver com a capacidade do acontecimento ter impacto sobre as pessoas ou sobre o país; Outro valor identificado foi o da notabilidade, onde entende-se que acontecimentos visíveis ou tangíveis tem mais valor-notícia, pelo fato de a cobertura jornalística está mais voltada para acontecimentos do que para problemáticas; inesperado, que são acontecimentos que surpreendem a comunidade jornalística; e o valor-notícia conflitos e controvérsias, o qual o uso da violência representa a quebra do que é normal, a presença da violência fornece mais valor-notícia; Já o valor-noticia com critério contextual foi o de visualidade, já que elementos visuais, no caso imagens de detentos decapitados, sangue, manifestações e etc, somados à informações, dão maior valor-notícia. 4 SENSACIONALISMO Sobre o sensacionalismo na comunicação, o autor Danilo Angrimani Sobrinho (1995, p. 11) diz que o que distingue o meio sensacionalista do meio informativo comum é a linguagem, que é especifica e remete ao inconsciente. Dentre as definições da palavra sensacionalismo, o mais condizente com o assunto abordado é o de divulgação e exploração, em tom espalhafatoso, de matéria capaz de escandalizar ou 24 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 emocionar. Uso de escândalos, atitudes chocantes, hábitos exóticos, etc. com o mesmo fim. Exploração do que é sensacional na literatura, na arte e etc. De acordo com Sobrinho (1995, p. 13), o termo sensacionalista é a primeira palavra que as pessoas usam para condenar uma publicação. Seja qual for a restrição, o termo é sempre usado para quase todas as situações. Ainda de acordo com o autor (1995, p. 14), no jornalismo, a palavra sensacionalista não só é confundida com qualificativos editoriais como audácia, irreverência, questionamento, mas também com imprecisão, erro na apuração, distorção, deturpação, editorial agressivo. Sobrinho afirma ainda que, para que o termo perca esse caráter múltiplo, há uma necessidade de melhor caracterizá-lo. O sensacionalismo está presente em todos os meios de comunicação desde os primórdios da história da imprensa mundial. Sobre esse fato, o autor (1995, p. 19) faz uma análise do início da imprensa nos países da França e Estados Unidos, verificando que o sensacionalismo já estava presente na origem do processo comunicacional, com jornas que traziam notícias fantásticas e que “agradavam a todos”, onde predominava o exagero, a falsidade ou inverossimilhança, imprecisões e inexatidões. Sobre o jornal sensacionalista, Sobrinho (1995, p. 56) afirma que há critérios que diferenciam-o dos outros informativos. O jornal sensacionalista difere dos outros informativos por uma série de motivos específicos, entre os quais a valorização editorial da violência. O assassinato, o suicídio, a vingança, as situações conflitantes, as diversas formas de agressão sexual, tortura e intimidação ganham destaque e merecem ser noticiadas no jornal a sensação. Traquina (2001, p. 191) também afirma que o sensacionalismo praticamente nasceu junto com a imprensa. O sensacionalismo foi, quando muito, mais predominante nas publicações na Europa do século XVIII que precederam o jornal. O autor britânico Matthew Engel (1996) escreve sobre os mídia noticiosos em Inglaterra nessa altura desta forma: Assuntos carnais e pecados secretos eram o tema dos jornais populares de domingo. 4.1 Por que o sensacionalismo vende? O sensacionalismo é popular, dá ibope e traz lucro aos meios de comunicação. Se ajuda na disputa com a concorrência, ele sempre encabeçará as principais notícias divulgadas diariamente. Se está sempre presente nas informações é porque há retorno. Ainda de acordo com Traquina (2001, p.77) o jornalismo também é um negócio. 25 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Todas as empresas jornalísticas, com a exceção das empresas públicas, enfrentam mais tarde ou mais cedo a tirania do balanço econômico final, ou seja, a comparação entre os custos e as receitas. [...] Temos aqui o problema do sensacionalismo no jornalismo, acentuado ainda mais pela lógica da concorrência. A procura do lucro poderá levar a empresa jornalística à crescente utilização de critérios econômicos, nomeadamente o recurso às técnicas de marketing. A dicotomia mórbido-lucro presente nos meios de comunicação diz respeito a um dos valores-notícia mais aplicados pelos jornalistas. O mórbido vende e gera lucro aos meios de comunicação. Traquina explica (2005, p. 79), que a morte é um dos principais valores-notícia utilizados ao buscar uma pauta, pelo fato da notoriedade que notícias com esse aspecto causam. Traquina usa a expressão “onde há mortes, há jornalistas”, para afirmar que a morte é um valor-notícia fundamental no âmbito jornalístico, o que explica o negativismo que é apresentado diariamente nos meios de comunicação. Por outro lado, parte da sociedade fascinada por tal conteúdo, quando não divulga o macabro, inventao. O autor Danilo Angrimani Sobrinho (1995, p. 15) também compartilha do pensamento de Traquina, quando afirma a prática sensacionalista como o grau mais radical da mercantilização. Tudo o que se vende é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a informação interna não irá desenvolver melhor do que a manchete. Esta está carregada de apelos às carências psíquicas das pessoas e explora-as de forma sádica, caluniadora e ridicularizadora. (...) O jornalismo sensacionalista extrai do fato, da notícia, a sua carga emotiva e apelativa e a enaltece. 4.2 O gosto pelo sensacionalismo A disseminação na mídia digital e local sobre a “carnificina” que ocorria em São Luís durou várias semanas. Foi divulgado pelas redes sociais, bloggers e jornais locais, desde boatos de arrastões e assaltos pela cidade, vídeos de detentos sendo decapitados e até imagens da menina Ana Clara Santos Sousa, sendo queimada. As mídias digitais também auxiliaram na organização de várias manifestações populares pela cidade. Sobrinho (1995, p. 16) afirma que a imprensa sensacionalista serve mais para desviar o público de sua realidade imediata do que voltar-se para ela. Fato que visivelmente também acontece com a população, quando boatos são criados diante da repercussão de determinado caso. Do ponto de vista jornalístico, o autor diz que a 26 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 linguagem do sensacionalismo é casual e clara, porque envolve o leitor/telespectador/ouvinte e por isso, tal linguagem não poderia ser sofisticada, nem elegante. A linguagem deve ser coloquial exagerada, com emprego excessivo de gírias e palavrões. (...) A linguagem sensacionalista não admite distanciamento, nem proteção, nem neutralidade. É uma linguagem que obriga o leitor a se envolver emocionalmente com o texto, uma linguagem editorial clichê. Além disso, quando Sobrinho (1995, p. 54) diz que a morte interessa à todos, igualitariamente, independente do nível cultural ou econômico de cada pessoa, entendese que grande parte da população tem a morte como objeto de fascínio. Assim, Angrimani define que todos querem ser informados, independente da intelectualidade ou classe social. O interesse do leitor pela notícia inclusive de casos de morte, no informativo comum, é o mesmo do leitor que gosta do sensacionalismo. O que muda é apenas a forma de noticiar, ou seja, a linguagem. A diferença de um público para o outro se admite como divisão de mercado. Mas ambos fazem parte da mesma camada de verniz cultural que é rompida todas as manhãs na leitura do jornal diário, quando se é informado dos crimes em série de um canibal, estupros, incestos, crimes passionais... Sonbrinho (1995, p. 54) diz que tanto o leitor do jornal sóbrio quanto o que prefere o sensacionalismo, se interessa pelo crime. O que faz com que o mercado se divida e haja um público exclusivo para o sensacionalismo, é a linguagem. A linguagem editorial, que é a forma de se destacar uma foto, tornar o texto mais atraente, enfim, a busca de um equilíbrio entre ilustração e texto, além da preferência por matérias originadas de fait divers, em detrimento de temas político-econômico-internacionais que servem como estímulo predominante no jornal informativo comum. A partir disto, entende-se que a sociedade contemporânea se sente familiarizada com o sensacionalismo, pois os fatos tornados sensacionalistas pelos meios de comunicação tornam-se quase que “normais” no seu dia-a-dia. Pela linguagem do sensacionalismo ser popular, as pessoas não sentem o tamanho da violência que se apresenta e assim se deixam levar pela curiosidade corriqueira, tornando essa relação de tragédia X consumo, um ciclo vicioso. A disputa sobre quem continha maiores informações e provas sobre o caso, gerando assim mais audiência e divulgação tanto para os meios de comunicação quanto 27 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 para internautas, fez com que os fatos tivessem repercussão mundial. O sensacionalismo alimentava os meios de comunicação e era alimentado pela sociedade. 5 A COBERTURA JORNALÍSTICA DO PORTAL BBC Limitamos este capítulo à análise do portal de notícias BBC, referente às publicações de matérias sobre a crise carcerária e de segurança no Maranhão, durante o período de outubro de 2013 a janeiro de 2014, foram 19 matérias publicadas nas áreas BBC Brasil e BBC News Latin American & Caribbean, que relataram desde as rebeliões, as guerras entre as facções criminosas, o número de mortos, até as condições sub-humanas que os presidiários vivem no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, além da pressão que as autoridades do estado e do país sofreram para que se pronunciassem e adotassem medidas emergenciais que solucionassem o caso. Em outubro de 2013, foram publicadas duas matérias onde a primeira, do dia 10, relatava a causa principal da rebelião que iniciou toda a crise de segurança no estado e o número de mortos e feridos em Pedrinhas. A polícia de choque afirmou que a guerra iniciou com a descoberta de um túnel que estava sendo escavado por 60 presos. O confronto ente detentos e policiais foi aproveitado por membros de gangues rivais para um acerto de contas entre as facções. Foram 13 mortos e 30 feridos. Sete ônibus foram queimados em São Luís após a rebelião. A segunda, divulgada no dia 11, destacou a investigação da polícia sobe os boatos espalhados por São Luís através das redes sociais, após o primeiro dia de rebelião, que causaram pânico na cidade. A falsa informação de que estava acontecendo ataques e arrastões em sinal de vingança por parte dos detentos na capital, fez com que todo o comércio do centro da cidade fosse fechado. O Secretário de Segurança Pública do Estado, Aluísio Mendes, prometeu punir os envolvidos nos boatos. Já em Dezembro de 2013, o portal contou com uma matéria que destacou o conteúdo de um relatório feito pelo juiz do distrito, Douglas Martins, que continham detalhes de casos como relações sexuais de detentos a espaço aberto, cenas de tortura, e um saldo de 59 mortes, incluindo a decapitação de três presos. O juiz afirma ainda que as instalações do Complexo Penitenciário de Pedrinhas são extremamente lotadas, motivo de grande revolta entre os detentos. A matéria cita uma declaração do Ministro 28 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmando que “o Brasil tem um sistema prisional medieval, que viola os direitos humanos e não permite a reintegração social ao cidadão que é detido”. O portal também ressaltou o problema das facções criminosas liderarem a grande maioria dos presídios do Brasil. Figura 5: Guerra de gangues em prisão de Pedrinhas no Brasil deixa 59 mortos em 2013 No mês de Janeiro, o conteúdo das matérias resumia-se nas consequências da crise, como o caso da menina de seis anos que faleceu vítima de queimaduras graves, após bandidos atearem fogo em seu corpo durante os ataques aos ônibus da cidade. Durante a pressão exercida sobre as autoridades para que o caso fosse solucionado, houveram reflexões sobre a situação dos presídios do Brasil, e a informação de que o Complexo de Pedrinhas estava entre as seis piores prisões do Brasil. No total, foram 16 matérias publicadas sobre o caso. 29 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Dentre as principais, as matérias que informavam sobre a pressão da sociedade para um pronunciamento das autoridades sobre a situação que o estado se encontrava, tiveram maior destaque. Como a que relatava que o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, a Anistia Internacional e Human Rigths Watch divulgaram comunicados oficiais que reprovavam os abusos de direitos humanos praticados em Pedrinhas. Segundo o portal BBC, a ONU lamentava ter que expressar preocupação com o péssimo estado das prisões no Brasil. Para a Anistia Internacional, era inaceitável que tal situação se prolongasse por tanto tempo sem nenhuma atitude efetiva das autoridades responsáveis. Outro fato importante destacado pelo portal foi a morte da menina de seis anos de idade, que teve seu corpo queimado quando estava dentro de um dos ônibus atacados pelos bandidos. Delegacias de polícia também foram atacadas, com vários tiros disparados contra os policias, causando a morte de alguns deles. De acordo com o secretário de segurança, Aluísio Mendes, as ordens dos ataques partiram de dentro do presídio. A Ordem dos Advogados do Brasil - OAB exigiu que o estado indenizasse às famílias das vítimas envolvidas nos ataques. Foram vários os pronunciamentos de autoridades. Dilma Rousseff, presidente do Brasil, declarou que estava acompanhando de perto a crise em São Luís, citando o envio de tropas da Força Nacional que apoiou as medidas de seguranças locais. Joaquim Barbosa, Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, disse que as prisões brasileiras eram um inferno, e para exemplificar o que chamou de "natureza explosiva das prisões brasileiras controladas por organizações criminosas", o presidente do STF citou o caso da Central de Custódia de Presos de Justiça (CCPJ) de Pedrinhas, onde mais de 60 presos morreram em 2013. Nota-se que o portal BBC News noticiou apenas os fatos mais “violentos”, que marcaram a crise de segurança na cidade e que impactaram no cenário nacional e internacional, gerando outras notícias importantes como relatos de autoridades competentes ao caso. O portal não só relatou os motins e o caos que ocorria no estado, mas fez também um comparativo ao sistema prisional brasileiro como um todo, apontando os maiores problemas dos complexos penitenciários do país, que em geral são os principais motivos de rebeliões, como os de superlotação, maus tratos, violação dos direitos humanos, e lideranças de facções criminosas. 30 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Figura 8: Complexo Penitenciário de Pedrinhas está entre as seis piores prisões do Brasil. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi-se o tempo em que a população precisava comprar o jornal pela manhã pra saber o que ocorreu no dia anterior. A ansiedade, que antes era um sentimento habitual que acompanhava o telespectador na espera do Jornal Nacional para saber sobre os acontecimentos do dia, no Brasil e no mundo, já não é mais tão comum. A disputa entre os meios de comunicação para saber quem primeiro veicula uma notícia inédita é o grande desafio da imprensa na atualidade. Os jornalistas precisam estar constantemente conectados ao mundo virtual e preparados para informar a sociedade sobre qualquer acontecimento, a qualquer hora do dia. A era da convergência digital possibilita à sociedade contemporânea, informações facilmente transmitidas com rapidez. Talvez por isso, qualquer cidadão se torna repórter por um dia, qualquer fato pode virar notícia, além de nos mantem bem informados durante a correria do dia-a-dia. Foi ela quem sustentou a repercussão da crise de segurança em São Luís, ajudando a sociedade a pressionar as autoridades competentes para que mostrassem uma solução rápida e eficaz para o horror que 31 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 acontecia na cidade. Foi com a ajuda da convergência digital, que as pessoas souberam de todas as medidas emergenciais tomadas por essas autoridades. Neste trabalho, que teve como tema a crise carcerária em Pedrinhas, expomos os fatos e explicamos como se deu o processo de noticiabilidade do caso, relatando a reação da população, a criteriabilidade da imprensa para a construção das notícias, o sensacionalismo sempre presente na divulgação das notícias e a influência que a mídia exerceu quando da pressão para que cessasse a grave onda de criminalidade na capital. O problema da crise de segurança na cidade gerou várias outras questões que necessitavam de atenção, como a crise carcerária no Brasil, o descaso na assistência dos presidiários, a violação dos direitos humanos, o abandono dos projetos de construções de novos complexos penitenciários, inclusive a reforma do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, e principalmente a falta de segurança que a sociedade sofre nos dias atuais. Figura 9: Ministro do Supremo Tribunal Federal fala sobre o sistema carcerário brasileiro Antes de utilizar qualquer critério de noticiabilidade, é preciso que o bom senso venha primeiro. Existem diversas maneiras de informar e vender, de reivindicar e manifestar. Todo cuidado é necessário com a rede. Uma vez que qualquer tipo de 32 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 informação está nela, ninguém mais tem o controle. Grande parte das imagens e informações divulgadas nas redes sociais foi utilizada em matérias e reportagens dos meios de comunicação, exibidos diariamente durante esse período de pesquisa, obrigando assim, que as autoridades se pronunciassem o mais rápido possível, anunciando medidas efetivas para conter a criminalidade em São Luís. Podemos definir dois lados, um positivo e um negativo, sobre o resultado da crise carcerária. Pelo lado positivo, houve resposta imediata de entidades civis e da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que classificaram a situação no Complexo Penitenciário de Pedrinhas como gravíssima. A ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, afirmou que era preciso retomar o controle. Ela coordenou uma reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana que tratou da situação em Pedrinhas e propôs que o governo federal deveria estudar a realização de uma intervenção na capital. Até o final do mês de janeiro, uma série de medidas emergenciais foi providenciada por autoridades estaduais e federais para tentar resolver a crise no estado. O portal BBC News informou que o Ministério da Justiça decidiu que a Força Nacional iria prorrogar até o fim do mês de fevereiro de 2014 a presença de policiais nos presídios maranhenses, que junto com a tropa de choque da polícia militar do estado, iriam tentar garantir a ordem em Pedrinhas. O portal também noticiou que a polícia ludovicense e o governo federal viabilizaram a transferência de detentos líderes das facções em conflito para presídios federais. Além disso, a venda de combustíveis em recipientes foi proibida pelo governo do estado, na tentativa de dificultar que criminosos incendiassem mais ônibus em São Luís em retaliação à presença das tropas policiais nos presídios. Também contou como medida emergencial pelo governo, um investimento de mais de R$ 130 milhões para a abertura de 2.800 vagas no sistema prisional do Maranhão até o final do ano. A administração de Pedrinhas afirmou que todos os crimes de abuso e violência ocorridos nos presídios seriam investigados. Entidades Internacionais, como a ONU, exigiram que o Brasil tomasse providências para um caos que assola a maioria dos presídios do país. Será que o mesmo aconteceria se a sociedade não tivesse utilizado da convergência digital para mostrar ao mundo com imagens chocantes o que realmente acontecia em São Luís? Será que a população mundial teria conhecimento disto e iria tomar providências de forma 33 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 tão rápida quanto à violação dos direitos humanos cometidos nos presídios, por exemplo? Será que os meios de comunicação, na sua grande parte, ligados a domínios políticos, iriam dar tamanha visibilidade ao caso? Assim, entende-se que a internet, aliada aos meios de comunicação, aos dispositivos móveis e as redes sociais são grandes aliados da sociedade contemporânea, principalmente no sentido de tomar conhecimento e denunciar os crimes e erros praticados no meio em que vivem, levando tais fatos ao conhecimento de uma grande quantidade de pessoas, de forma rápida e incontrolável, favorecido pela era da convergência digital. Pelo lado negativo, quem sabe por quanto tempo vai durar a imagem do horror que o mundo inteiro atrelou à cidade? Por tempo indeterminado, qualquer um poderá ter acesso às barbaridades ocorridas no estado. Que sirva para pensarmos o que de fato queremos ao usar as redes sociais somadas com os dispositivos móveis, de que forma a era da convergência digital pode realmente nos auxiliar, como podemos fazer isso dentro da ética, além de refletir sobre o que o incentivo ao sensacionalismo nos meios de comunicação pode nos causar futuramente. REFERÊNCIAS ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo. Espreme que sai sangue. São Paulo: Ed. Sumus, 1995. BBC BRASIL, 2014. BBC Brasil nasceu em 1938 com notícia sobre Hitler. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/institutional/090120_expediente_tc2.shtml. Acesso em 03 jun. 2014. BBC NEWS LATIN AMERICAN & CARIBBEAN, 2014. Gang war in Brazil's Pedrinhas jail kills 13. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/news/world-latin-america-24472528. 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Adota-se o referencial teórico da Análise de Discurso Crítica como modo de observar criticamente os sentidos produzidos pela revista ao tratar da cena política brasileira. Para isso, recorre-se a categorias analíticas como avaliação, ideologia e luta hegemônica. PALAVRAS-CHAVE Análise de Discurso Crítica. Comunicação. Cultura Pop. Discurso Político. ABSTRACT This research analyzes the discourses published at "Política Nacional" of Rolling Stone Brasil magazine, concerning about the brazilian presidential elections in 2010. The corpus consists in six issues of the magazine, circulated in the second half of that year. We try to understand how the discourses of the magazine discuss the elections that year about the candidates, political trends and the electoral process itself . Theoretical 4 Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do Piauí, Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Estratégias de Comunicação - NEPEC/UFPI. E-mail: [email protected] 37 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 framework of Critical Discourse Analysis was adopted as a way to critically observe the meanings produced by the magazine to address the Brazilian political scene. For this, was resort to analytical categories such as evaluation, ideology and hegemonic struggle. KEYWORDS Critical Discourse Analysis. Communication. Pop Culture. Political Discourse. 1. INTRODUÇÃO Rolling Stone Brasil é uma revista de cultura pop que conta com uma editoria especializada em política nacional. Essa editoria apresenta as disputas e as relações entre as diversas tendências políticas que estão envolvidas em lutas por hegemonia no cenário político brasileiro. Contar com uma editoria voltada para política nacional não é uma exclusividade da versão brasileira da revista Rolling Stone. A matriz norteamericana também conta com uma editoria especializada em política que, assim como na edição brasileira, ocupa um espaço fixo na revista. Estudar como a revista se posiciona para tratar o campo político e as ideologias que constituem seus discursos articulados são importantes para pensar a própria existência da editoria. A editoria habitualmente aparece próxima ao centro da revista entre as edições selecionadas para o estudo. A editoria de “Política Nacional” destaca-se pela relação entre os elementos que compõem a reportagem. Cada matéria da editoria conta com uma ilustração acima do título que ajuda a traçar uma síntese do texto a ser apresentado nas páginas seguintes. Caracterizada também por uma linguagem mais despojada em relação a outras publicações que abordam o tema política, a publicação apresenta descrições minuciosas sobre a personalidade dos personagens da cena, abordando até mesmo aspectos pitorescos da vida dos políticos. Através dos discursos presentes na revista é possível compreender como são construídas as avaliações em torno dos candidatos à presidência do Brasil e como Rolling Stone Brasil narra a luta hegemônica entre eles. São reportagens que destacam como está estruturada a visão da revista sobre Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB), Marina Silva (PV) e as candidaturas menores. Estão em foco as estratégias da revista em abordar estes candidatos e como ela apresenta-os para o público leitor. 38 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O estudo aborda o discurso como moldado e restringido pela estrutura social, pelas relações entre as instituições particulares e que, através disso, ele promove não somente uma representação do mundo, mas um processo de significação do mundo. Tomando o discurso a partir de um viés crítico, o estudo aborda o tema como a contribuição para a estruturação das dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem. As estratégias discursivas da publicação ao longo dos meses de campanha são o foco da pesquisa que tem como corpus as seis edições de Rolling Stone Brasil publicadas mensalmente no segundo semestre de 2010. Compreendendo os três momentos em que o corpus está envolvido; pré-eleitoral, eleitoral e pós-eleitoral, a análise acontece a partir das categorias destacadas para o trabalho. O referencial teórico metodológico utilizado diz respeito à Análise de Discurso Crítica que se interessa por analisar as relações de poder. A partir deste aspecto destacam-se alguns autores como Ramalho e Resende (2011), Thompson (1996) e Fairclough (2001) que abordam respectivamente as categorias de avaliação, ideologia e poder como hegemonia. A aplicação da avaliação, ideologia e luta hegemônica abordam o material selecionado para destacar como os candidatos são tratados pela revista e como ela posiciona-se em relação a eles. Caracterizar a cobertura eleitoral empreendida por Rolling Stone Brasil é o foco do trabalho principalmente no modo como a revista estabelece diferenciações entre os candidatos, entre as tendências políticas e os posicionamentos no sistema eleitoral brasileiro. 2. DISCURSO, CAMPO E IDEOLOGIA: unidos pela prática social As estratégias enunciativas que revista Rolling Stone Brasil utiliza para abordar as eleições presidenciais de 2010 se constituem do uso da linguagem como prática social por parte do jornalismo a partir da organização discursiva do testemunho de muitos acontecimentos registrados por diversos suportes. 39 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A Teoria Social do Discurso proposta por Fairclough (2001) visa reunir a análise de discurso orientada linguisticamente e o pensamento social e político relevante para o discurso e a linguagem. Ramalho e Resende (2006) organizam as contribuições de Fairclough sobre a ADC considerando a relação entre linguagem e poder, também abordada por Bakhtin na primeira teoria semiótica da ideologia e na crítica ao objetivismo abstrato de Saussure. A Análise do Discurso Crítica organiza-se como um método marcadamente multidisciplinar, absorvendo aspectos da Linguística, assim como da Linguística Sistêmica Funcional, da Educação, das Ciências Sociais e da Comunicação. Nessa perspectiva, o discurso é visto como um momento da prática social ao lado de outros momentos igualmente importantes - e que, portanto, também devem ser privilegiados na análise, pois o discurso é tanto um elemento da prática social que constitui outros elementos sociais como também é influenciado por eles, em uma relação dialética de articulação e internalização. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 38) Entre as categorias analíticas a serem tomadas para o estudo estão em destaque a avaliação, a ideologia e a luta hegemônica. Para Ramalho e Resende (2011) a avaliação refere-se ao modo como os atores sociais identificam-se nas relações pessoais manifestada nas marcas textuais. As ideologias, conceito chave para a ADC são tomadas enquanto representações por parte da revista e também dos personagens políticos que participam das eleições 2010. A respeito da luta hegemônica há a busca por compreender como à maneira como os diversos discursos se articulam em diversos campos e disputas ideológicas como por exemplo, na narrativa midiática. Florence Albenas e Miguel Benasayag (2003) destacam que as narrativas buscam reduzir a amplitude dos diversos fatos que acontecem simultaneamente a um mundo condicionado com pessoas funcionando apenas como personagens. Neste aspecto os autores criticam o modo como o jornalismo tenta formatar a realidade para caber em modelos de narrativa. “Encontrar os personagens não é tudo. É preciso também pô-los em cena. Um cientista com avental branco cercado de tubos de ensaio terá um ar mais “verdadeiro” do que se estivesse no barbeiro” (AUBENAS; BENASAYAG, 2003, p. 19). A narrativa midiática encontra espaço em diversos suportes de comunicação. Entretanto, o jornalismo de revista é onde a narrativa jornalística ganha espaço por 40 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 excelência. Segundo Scalzo (2003) as revistas escutam o leitor de várias maneiras, como pesquisas, telefonemas, cartas e e-mails. “[...] na absoluta maioria dos casos de publicações bem-sucedidas no mercado, existe sempre algum modo, formal ou informal, de escutar periodicamente o público.” (SCALZO, 2003, p. 39) Outro aspecto de destaque para a revista é a periodicidade mais alongada. O campo social é visto a partir da práxis voltado para ações concretas, representado por recortes de posições dos agentes envolvidos em objetos sociais compartilhados conforme os capitais culturais, econômicos e político-ideológicos. A respeito da ideologia, cabe destacar que o mapeamento do conceito foi feito principalmente por Thompson (1996) e a compreensão de como a noção é alterada a partir das transformações sociais. Segundo este autor a primeira concepção a respeito de ideologia vem de 1796 pelo ideólogo francês Destutt de Tracy, para quem o conceito está associado diretamente à análise sistemática de ideias e sensações. Nessa perspectiva ideologia consiste em uma “ciência das ideias”, concepção apoiada por Napoleão Bonaparte quando ascende ao poder, mas depois rejeitada e classificada como a defesa do regime monárquico anterior. Na atualidade, impulsionada pelas comunicações de massa a ideologia está mais relacionada ao conceito de hegemonia, conforme a visão de Gramsci - como a dominação de um grupo sobre outro em que o grupo dominado aceita isto como norma a ideologia é uma das ferramentas para conseguir a dominação hegemônica. O desenvolvimento da comunicação de massa aumenta, significativamente, o raio de operação da ideologia nas sociedades modernas, pois possibilita que as formas simbólicas sejam transmitidas para audiências extensas e potencialmente amplas que estão dispersas no tempo e no espaço. (THOMPSON, 1996, p. 343) Atrelado ao conceito de ideologia, Fairclough (2001) traz o conceito de hegemonia e principalmente de como o conceito envolve disputas. A hegemonia é tratada pelo teórico como liderança, como dominação seja no domínio econômico, cultural, político e ideológico de uma sociedade. O autor compreende hegemonia como processo de como articulação, desarticulação e rearticulação de elementos em uma forma de poder, mas não a única. 41 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 No exercício da ideologia destaca-se principalmente o discurso político. Machado (2006) pontua o discurso político como polifônico utilizando como exemplo a interação da voz das fontes, do jornalista indivíduo, o jornalista instituição, o leitor, diagramadores, revisores entre outros participantes. Ao tratar do discurso político, principalmente na concepção do sujeito, Courtine (2006) destaca este sujeito político como um todo, resultado das condições de produção e enunciação do enunciado. O autor também adota a metáfora do teatro para explicar as relações entre as tendências políticas. Ele é o ponto de condensação entre linguagem e ideologia, o lugar onde os sistemas de conhecimento político se articulam na competência linguística, diferenciando-se um do outro, mesclando-se um ao outro, combinando com um outro ou afrontando-o em uma determinada conjuntura política. (COURTINE, 2006, p.64) Para Courtine, o corpus do discurso político precisa primeiro ser delimitado em um campo discursivo de referência, a exemplo do discurso de uma fonte particular do campo do discurso político ou a fala de um participante de uma determinada formação política. O autor enfatiza que “(...) todo discurso político deve ser pensado como uma unidade dividida, dentro de uma heterogeneidade em relação a si mesmo, que a análise do discurso político pode ser capaz de traçar.” (COURTINE, 2006, p. 68) O discurso político é marcadamente um lugar de memória, o que para Courtine representa poder porque a memória abre o direito à fala e a uma proposição eficaz. 3. ROLLING STONE BRASIL E POLÍTICA NACIONAL: uma revista de cultura pop que aborda política A cultura pop é um aspecto fundamental para a compreensão do objeto em estudo a partir da percepção de que Rolling Stone Brasil é uma revista que tem como tema principal, a cultura pop. A definição dessa expressão envolve a compreensão de dois termos: cultura e o pop, conceitos amplos construídos a partir de relações sociais. A cultura pop é um aspecto fundamental para a compreensão do objeto em estudo a partir da percepção de que Rolling Stone Brasil é uma revista que tem como tema principal, a cultura pop. A cultura caracteriza-se então como algo diverso, marcada principalmente pela multiculturalidade. Bauman (2002) ao empreender uma busca pelo 42 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 conceito de cultura destaca pelo menos três conceitos envolvendo o termo: hierárquico, voltado para a estruturação em níveis de cultura; diferencial, voltado para enfatizar as diferenças entre comunidades e genérico, que regula fronteiras entre o homem e o mundo. Fundada, âmbito internacional, por Jonn S. Wenner em 1967, a revista Rolling Stone surge a partir de um contexto marcado pela contracultura norte-americana e que está interligada a um nicho editorial interessado em informações sobre temas relacionados à produção cultural. A versão brasileira nasce em 1971, mas dura pouco por problemas entre os representantes brasileiros e a matriz norte-americana. Após 36 publicações, a RS Brasil padece em janeiro de 1973. São muitos os fatores que levaram a revista ao precoce fim. Dentre os principais, é pertinente ressaltar o grau de contracultura exalado por aqueles jornalistas dos anos 70 (e que, não por mera coincidência, será diferente da equipe que traz a RS Brasil ao mundo dos vivos na sua volta ao mercado editorial em 2006). Chegando ao ápice da prática do desapego material, os jornalistas dos anos 70, após perderem o material da matriz norte-americana por falta de pagamentos de royalties, mantiveram a revista em circulação sob um enorme carimbo com a palavra “pirata” a cada nova edição. O fim, decretado no início de 1973, acabou deixando um vácuo editorial que só seria preenchido anos mais tarde com o aparecimento de outros títulos (dentre os quais a revista Geração Pop e, posteriormente, a revista Bizz). (ALVES; SILVA; ROCHA JÚNIOR, 2010, p. 5) Rolling Stone volta ao Brasil com o que Anjos, Magalhães, Oliveira Filho e Rocha Júnior (2010) chamam de editorial inovador, jovem e descontraído; voltado para o que a revista chama de jovens entre 18 e 60 anos. Entre as principais características das matérias publicadas em 2006, Anjos, Magalhães, Oliveira Filho e Rocha Júnior (2010) destacam o discurso pedagógico, principalmente com o uso de recursos gráficos para facilitar a compreensão do tema e a polifonia, com a remissão a outros discursos para contextualizar a atualidade abordada através das reportagens. Quatro anos depois Rolling Stone Brasil volta ao período de eleições presidenciais brasileiras. Diferente de 2006, em 2010 a revista acompanha todo o ciclo eleitoral brasileiro, a pré-campanha, a campanha eleitoral em si e os desdobramentos do processo eleitoral. As reportagens publicadas ao longo daquele ano na editoria “Política Nacional” vão contar as histórias envolvidas no processo eleitoral brasileiro, seja pelos textos ou pelas imagens que apresentam cada matéria jornalística veiculada. “Como um resumo do texto, esta ilustração explora por vezes personagens da cena política nacional 43 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 e em outros momentos os elementos que são mais abordados na matéria jornalística.” (MAGALHÃES, ROCHA JÚNIOR, 2013, p. 7) Segundo os autores em 2010 o cenário político era diferenciado porque pela primeira vez desde a redemocratização brasileira o nome de Luís Inácio Lula da Silva (PT) não iria estar disponível para votação a presidente, afinal Lula já havia sido eleito em 2002 e reeleito 2006. Entretanto, o presidente lançou uma candidatura, a da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT). A candidata anteriormente já tinha ocupado cargos no governo do Rio Grande do Sul e de ministra das Minas e Energia, mas nunca tinha disputado um cargo eletivo. Na oposição, o principal nome era de José Serra (PSDB). Derrotado por Lula em 2002 o político havia ocupado cargos de ministro no governo Fernando Henrique Cardoso, anterior ao governo Lula. Outra candidatura considerada a partir das pesquisas de opinião de votos como competitiva era a da então senadora Marina Silva (PV). Exministra do Meio Ambiente, durante os dois mandatos do presidente Lula com a filiação ao Partido Verde ela apresentou-se como candidata a presidência da República como uma alternativa à PT e ao PSDB. Nas eleições de 2010 também se apresentam como candidatos José Maria Eymael (PSDC), Plínio de Arruda Sampaio (PSOL), Levy Fidelix (PRTB), José Maria de Almeida (PSTU), Rui Costa Pimenta (PCO), Ivan Martins Pinheiro (PCB), João Américo de Souza (PSL). Estas candidaturas com baixo percentual de intenção de votos acabam relegadas a um papel secundário na cobertura midiática das eleições. Em 2010 Rolling Stone Brasil através da editoria Política Nacional realiza uma cobertura abrangente, desde a pré-campanha com a ascensão de possíveis candidatos até a consolidação de candidaturas e, posteriormente, a disputa eleitoral em si que culmina com a eleição de Dilma Rousseff para a presidência da República. Entre 12 edições que abordam o tema eleições 2010, a escolha foi direcionada às edições correspondentes ao período entre os meses de Julho e Dezembro de 2010. 44 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 4. AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NAS PÁGINAS DE ROLLING STONE BRASIL Rolling Stone Brasil promove uma cobertura jornalística a respeito da política nacional sob uma perspectiva de rotinas produtivas diferentes, menos fragmentadas, o que é característico do suporte midiático, a revista. São textos e ilustrações que fazem parte das reportagens publicadas por Rolling Stone Brasil na editoria "Política Nacional" e que retratam a disputa eleitoral e tendências políticas estruturadas de diversas maneiras na cena política nacional. Para tal finalidade, serão aplicadas três categorias ao objeto em estudo: a hegemonia, a ideologia e a avaliação. 4..1 “O Monstro da Derrota”: A polarização entre PT e PSDB A primeira edição de Rolling Stone Brasil no período eleitoral propõe-se a situar o leitor na escolha do novo presidente da República. A escolha da revista é por revisitar a polarização eleitoral entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Com diversas afirmações avaliativas, em que segundo Ramalho e Resende (2011), o elemento avaliativo está mais explícito nos resultados que uma derrota traria às carreiras políticas de José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) na reportagem "O Monstro da Derrota", publicada na edição de Julho de 2010. Seguindo o título, a reportagem conta com uma imagem em que Serra e Dilma aterrorizados e encurralados em um beco escuro diante do tal monstro, conforme figura 1. Figura 1: Ilustração da reportagem “O Monstro da Derrota” - Fonte: Rolling Stone Brasil 45 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A avaliação, categoria destacada por Ramalho e Resende (2011) como identificacional, moldada por estilos, em torno de Dilma Rousseff e José Serra, está mais detalhada ao longo do texto da reportagem. Em relação à candidata Dilma Rousseff, a revista destaca o fato de que a petista nunca tinha disputado eleições anteriores, caracterizando-a como uma neófita na política partidária, mesmo com experiência administrativa. Embora seja uma estreante nas urnas, uma eventual derrota de Dilma Rousseff (PT) também deverá afastá-la de vez de uma segunda corrida presidencial. [...] Na verdade, o apoio de Dilma é Lula. E mesmo como a indicação do presidente houve forte resistência a seu nome de início. (ROLLING STONE BRASIL, JULHO 2010, p. 46) Por outro lado, José Serra é avaliado discursivamente como um derrotado. A revista conjetura a possibilidade da segunda derrota do candidato do PSDB ao cargo mais alto na hierarquia política brasileira. Justamente por já ter tido outra chance, e por ter estado em praticamente todos os cargos da hierarquia política, é que José Serra ficaria em uma situação extremamente difícil em caso de derrota, segundo a matéria que observa como ficariam os derrotados da eleição 2010. Para José Serra (PSDB), sem dúvida, esta é a sua última chance de ser presidente. Na eventualidade de uma derrota, ele será visto como um “político que teve chances de estar na cúpula, no vértice da hierarquia tucana”, mas que não conseguiu aproveitar a oportunidade por um motivo ou por outro (ROLLING STONE BRASIL, JULHO 2010, p. 45). Nesta reportagem, o discurso autorizado é representado principalmente pelas vozes de cientistas políticos e sociais. Em corroboração com a tese defendida pela revista, o especialista confirma que a publicação está apontando um aspecto importante do cenário político brasileiro. O investimento de sentido por parte da revista, em apresentar a derrota como uma catástrofe para Dilma e Serra, não é modificado mesmo quando a publicação apresenta um contraponto. 4.2 “À Sombra de Gigantes” e “O Próximo Presidente do Brasil”: Distinção entre os candidatos e a distância deles em relação ao poder A Análise de Discurso Crítica destaca que a transformação de situações opressoras é possível através de ações sociais, já que estas situações são criações sociais. Para Vieira (2007), a linguagem faz parte deste processo pela construção de identidades e veiculação de ideologias. A revista opta por mostrar os candidatos em dois 46 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 grupos com uma separação ideológica: primeiro, as candidaturas menores, de pouca representatividade no Congresso Nacional e baixo número de intenções de voto nas pesquisas eleitorais; posteriormente as candidaturas com maior estrutura e com índices mais altos nas pesquisas. Nas imagens de Rolling Stone Brasil este traço é perceptível ao destacar os candidatos e o seu desejo de ser eleito para a presidência da República na reportagem “À Sombra de Gigantes” de Agosto de 2010 e a série de entrevistas “O Próximo Presidente do Brasil” publicada em Setembro de 2010. A ilustração de "À sombra de Gigantes" investe na identificação que implica também uma avaliação sobre os postulantes, segundo a figura abaixo. Figura 2: Ilustração da reportagem “À Sombra de Gigantes” - Fonte: Rolling Stone Brasil A imagem compõe um texto multissemiótico, como destaca Vieira (2007), no tocante a sintetização das expressões de poder presentes na comunicação humana, neste caso, a reportagem. São representações por parte da revista a fim de consolidar o papel menor que estes candidatos desempenham nas eleições. A edição de Agosto de 2010 é para apenas delinear os gigantes que vão ter seu espaço próprio na edição seguinte com a série de entrevistas “O Próximo Presidente do Brasil”, em Setembro de 2010. Naquela oportunidade o mesmo conteúdo foi disponibilizado em três capas diferentes, conforme imagem em seguida. 47 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Figura 3: Capas de Rolling Stone Brasil com ilustrações dos candidatos entrevistados - Fonte: Rolling Stone Brasil Ramalho e Resende (2011) pontuam que a avaliação está ligada a processos de identificação particulares e relacionada às relações sociais que os atores sociais estabelecem entre si. É no momento da entrevista que cada candidato é confrontado com as percepções que Rolling Stone Brasil possui sobre ele. Confrontada com a ideia de ser uma neófita em termos de experiência política, a então candidata Dilma Rousseff rejeita o rótulo de inexperiente e apresenta-se como a novidade da disputa eleitoral. “Eu poderia dizer que mesmo sendo mulher e não sendo uma política tradicional, represento o povo. Uma representante do novo que pode dizer que é a porta-voz da continuidade do melhor governo que esse país já teve” (ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO 2010, p. 82). José Serra é avaliado pela revista com a mesma contundência. “Mantendo uma linha de discurso forçosamente otimista, com lampejos nostálgicos, o ex-ministro da Saúde e ex-governador de São Paulo, hoje candidato do PSDB ao maior cargo da nação, demonstrou impaciência somente diante de questões relacionadas ao seu ego” (ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO 2010, p. 69). O candidato é apresentado como mal humorado e impontual, já que o texto menciona a surpresa dos entrevistadores por encontrar José Serra de bom humor e "apenas" 30 minutos após o horário marcado para o início da entrevista. A candidata Marina Silva é avaliada de maneira diferenciada em relação aos candidatos do PT e PSDB. A candidata do PV é apresentada por Rolling Stone Brasil como a novidade da eleição 2010, atribuindo uma avaliação afetiva em que Marina Silva está acima da vitória ou da derrota nas eleições. “Marina, que aos incautos parece viver a tranquilidade da certeza da derrota, se mostrou uma leoa em pele de cordeiro, 48 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 fortemente apoiada por setores da juventude e já vitoriosa pelo fato de estar entre os grandes protagonistas das urnas neste ano” (ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO 2010, p. 59). Os outros candidatos de menor expressão nas pesquisas eleitorais não recebem da revista o mesmo tratamento, como terceira via entre a polarização entre PT e PSDB. A principal avaliação em relação a estes candidatos vinda de Rolling Stone Brasil é que no cenário político brasileiro eles são simplesmente “nanicos”. A editoria aborda estes candidatos menores na reportagem “À Sombra dos Gigantes”, veiculada em Agosto de 2010. A corrida presidencial é uma disputa de gigantes. Quer dizer, nem sempre. A exceção à regra aparece em todas as eleições, com as candidaturas da minoria. Diante da estrutura cinematográfica dos três candidatos que despontam nas pesquisas, há sete presidenciáveis que se esforçam para sobreviver em um combate mais discreto. Não porque assim o queiram. Mas a realidade é que acabam à sombra dos líderes, praticamente alheios ao próprio desempenho na corrida eleitoral mais importante do país (ROLLING STONE BRASIL, AGOSTO 2010, p. 55). É estabelecida uma divisão que demarca ideologicamente o espaço ocupado pelos grupos nas eleições 2010. Rolling Stone Brasil menciona as pesquisas para explicar o fato de separar os candidatos menores na edição de Agosto de 2010 e as entrevistas dos maiores na edição de Setembro de 2010. A revista busca reforçar que possui legitimidade para abordar o campo político e trazer o discurso político para as suas páginas. Mas esta não é uma revista de música?”, surpreendeu-se um dos candidatos ao ser questionado sobre o seu programa de governo. Em resposta, podemos citar as capas com Fernando Gabeira (maio 2008) ou Barack Obama (julho 2008) e as diferenciadas pautas políticas publicadas desde nossa primeira edição. Mais que uma revista de música, a Rolling Stone Brasil tenta entender o mundo por meio, entre outros, da política, do comportamento, do cinema, da televisão e também da música (ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO 2010, p. 56). Nas entrevistas com os candidatos cabe destacar algumas posturas de Rolling Stone Brasil, como a abordagem sobre a corrupção. Serra, Dilma e Marina têm de responder a perguntas sobre o tema organizando opiniões sobre um tema de destaque no discurso político. Marina Silva é avaliada como positiva pela revista por apresentar uma verdade consolidada sobre o tema. “A melhor forma de governar é com democracia e transparência. A democracia, e não uma ditadura, ou regime autoritário é a única forma 49 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 de governar” (ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO 2010, p. 66). Por serem apresentados pela revista, e encarem-se como opostos José Serra e Dilma Rousseff estabelecem um “diálogo” ao tratar do tema corrupção. O discurso político é apropriado para o jogo político entre o PSDB e o PT que estão na luta para conquistar a hegemonia do cenário político. As duas tendências em luta hegemônica empregam formulações ideologicamente orientadas para enfatizarem suas posições e pelo consenso com o eleitor alcançarem a vitória. 4.3 “Na Governança Global”, “Sim, Ela Pode” e “Pecado Original”: Vitoriosos, derrotados e consequências das eleições 2010 Rolling Stone Brasil propõe a observação sobre a situação política brasileira tomando como base não somente às eleições, mas o cenário político brasileiro em geral. Nas últimas edições de 2010 a revista opta por apresentar aspectos sobre o futuro brasileiro e das tendências políticas após a realização deste pleito. Para isso a revista começa abordando as relações internacionais brasileiras, na reportagem "Governança Global" de Outubro de 2010 e como várias tendências ideológicas, observam o país, segundo a figura abaixo. Figura 4: Ilustração da reportagem “Na Governança Global” - Fonte: Rolling Stone Brasil No momento em que a edição é publicada não está definida a vitória de nenhum dos que disputam o cargo, então a imagem do novo presidente é resumida a um rabisco 50 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 escuro com um esboço da faixa presidencial no peito. Segundo a revista, o Brasil está situado ideologicamente entre estes dois grupos e principalmente pelo que representaram os oito anos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em meados de 2008, quanto os títulos podres do mercado imobiliário norteamericano sacudiram o sistema financeiro mundial, Lula não perdeu a chance de criticar os países ricos pela confusão criada na economia do planeta. "A culpa é da gente branca, loira, de olhos azuis." Os 'ricos' entenderam a mensagem. E convocaram os emergentes na tentativa de encontrar a solução do problema. [...] Os louros da empreitada, conquistados a partir do avanço no campo econômico, injetaram ânimo para voos maiores. E o Itamaraty decidiu que deveria tentar resolver a complexa questão do Irã. Nesse aspecto, a política externa pode ser definida como fracasso (ROLLING STONE BRASIL, OUTUBRO 2010, p. 77). Várias lutas hegemônicas são representadas em torno das relações internacionais firmadas pelo governo Lula, como na disputa entre o capitalismo liberal dos Estados Unidos e o “socialismo de mercado” chinês. As últimas imagens em edições de Rolling Stone Brasil no ano de 2010 são complementares na explicação dos resultados das eleições sobre o campo político, assim como nas avaliações empreendidas e na apresentação da luta hegemônica entre PSDB e PT. Com a reportagem "Sim, Ela Pode", publicada em Novembro de 2010, a proposta é de observar a eleição de Dilma Rousseff em suas consequências, como a seguir. Figura 5: Ilustração da reportagem “Sim, Ela Pode” - Fonte: Rolling Stone Brasil Dilma ocupa o centro do poder a partir do momento em que é eleita para o cargo máximo na hierarquia política brasileira. Isto é apresentado por Rolling Stone Brasil 51 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 como uma obrigação que está sobre a nova presidente. Neste caso, a revista apresenta novamente Dilma Rousseff como neófita na política, como já foi realizado ao longo da disputa eleitoral. Prestes a completar 63 anos, a mineira é a primeira mulher a ocupar a Presidência da República. Teve nas eleições de 2010 o apoio de 55 milhões de pessoas - ou 56% dos votos -, mas vai governar para 190 milhões. Na democracia é assim – a maioria dos que votam decide. Cabe à população fiscalizar, acompanhar de perto, cobrar e confiar que tudo dará certo a partir do novo ciclo que se inicia, em pouco menos de dois meses. Não há espaço para tergiversação (ROLLLING STONE BRASIL, NOVEMBRO 2010, p. 67). Mesmo com o destaque conferido por Rolling Stone Brasil a identificação em relação a Dilma não é tão favorável em uma comparação com Marina Silva. “Na visão da senadora Marina Silva, decisiva para que a eleição fosse ao segundo turno, os últimos 16 anos ensinaram "muito", mas os partidos e as lideranças "não conseguiram" aprender a lição” (ROLLING STONE BRASIL, NOVEMBRO 2010, p. 68). A candidata do PV mais uma vez está identificada com a “terceira via” na política, fora da polarização entre PT e PSDB. A reportagem “Pecado Original”, da edição de Dezembro de 2010, não tem a situação de um protagonista único na imagem que acompanha o texto da reportagem. Porém, é possível tomar a imagem como central para a compreensão da matéria justamente pela metáfora da responsabilidade compartilhada em relação à derrota como percebe-se a seguir. Figura 6: Ilustração da reportagem “Pecado Original” - Fonte: Rolling Stone Brasil 52 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 As metáforas implicam também em avaliações dos papeis que desempenham naquele momento Aécio Neves, Geraldo Alckmin, José Serra e Fernando Henrique Cardoso. A avaliação de José Serra na imagem é corroborada com outros aspectos ressaltados pela revista na reportagem. Ao discorrer com mais profundidade a respeito dos problemas do PSDB, Rolling Stone Brasil consolida a avaliação de Serra como derrotado. “Naturalmente, o PSDB não vai poder dispensar a experiência de Serra, Tasso [Jereissati], [Arthur] Virgílio e Fernando Henrique, que não precisam de mandato”, segue Nárcio Rodrigues, incluindo o ex-candidato ao clube dos políticos que já viveram o seu tempo (ROLLING STONE BRASIL, DEZEMBRO 2010, p. 69). Não somente José Serra é visto como velho e derrotado. Rolling Stone Brasil também avalia que o PSDB é um partido derrotado. Na reportagem “Pecado Original”, publicada em Dezembro de 2010, a derrota do partido é associada à soberba, a falta de comando representada por uma bagunça interna e ausência de identificação com a maior parte da população. Na luta hegemônica expressa nas páginas de Rolling Stone Brasil a explicação da vitória do PT é outra parte da análise do campo político brasileiro, tomando por base a derrota do PSDB. “O PT se coloca no papel de mãe. Ao PSDB resta o semblante do padrasto “gente fina”, que nada mais tem a acrescentar – pelo menos do ponto de vista presidencial” (ROLLING STONE BRASIL, DEZEMBRO 2010, p. 67). A proposta de compreender as posições que são assumidas no campo político após as eleições 2010 buscam reconfigurar a disputa entre PT e PSDB, após o PT ganhar a terceira eleição seguida para presidente. Na busca por tentar estabelecer um distanciamento em relação aos acontecimentos, a revista acaba por recorrer ao pensamento dos pesquisadores em suas páginas. É uma estratégia da revista para conferir validade às suas teses apresentadas tanto como para apresentar sua cobertura política não apenas como repetição dos discursos políticos correntes. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A respeito das observações de como Rolling Stone Brasil aborda as eleições presidenciais brasileiras em 2010, destaca-se o fato de que a revista realiza uma 53 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 cobertura que leva em consideração três momentos da eleição. O primeiro deles, “préeleitoral”, pois explora o que já é conhecido da campanha; a polarização entre PSDB e PT. O segundo, representado pela apresentação dos candidatos, corresponde a campanha que está em curso. Os desdobramentos da eleição compõem o terceiro momento da cobertura da revista. Com Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB) representando uma propalada polarização entre seus partidos no cenário político nacional, a revista destaca Marina Silva (PV) que se situa entre os dois candidatos na cobertura das eleições presidenciais de 2010. Quanto aos outros candidatos, resta a eles um papel figurativo, representado pelas candidaturas menores que pouco aparecem. A revista apresenta avaliações sobre cada um dos candidatos e posiciona-se firmemente a respeito deles. As avaliações de que Dilma Rousseff é neófita e de que José Serra é velho são recorrentes ao longo da cobertura, e expõem que nenhum dos dois candidatos acaba por representar a mudança de cenário que a revista propõe. Neste caso, a mudança é a avaliação que é feita sobre a candidata Marina Silva, apresentada como uma candidata vitoriosa, por estar na terceira via da polarização entre PT e PSDB. Por diversos momentos Rolling Stone Brasil opta por utilizar-se do discurso autorizado para explicar e problematizar, por exemplo, a influência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no cenário político, ou a vitória de Dilma Rousseff, ou, ainda, a derrota do PSDB e José Serra. São situações em que, para defender o mote escolhido para a reportagem, a revista recorre à especialistas do campo político a fim de tratar do tema. As imagens atuam como parte da reportagem a fim de apresentar aqueles personagens da cena política brasileira ao público e realizar avaliações a respeito deles. Neste aspecto, as imagens traduzem a flexibilidade por parte da publicação ao transitar na apresentação de um cenário polarizado e em que há o aparecimento de outra candidatura competitiva. São relações que vão desde a simpatia com a candidatura de Marina Silva, a fortes críticas em relação a José Serra e a manifestação das limitações de Dilma Rousseff. 54 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 É uma cobertura em que a própria revista apresenta-se como um personagem devidamente identificado, e que vai dialogar com os especialistas a respeito das posturas dos candidatos e também dos outros políticos. Rolling Stone Brasil organiza diversas representações do campo político e posiciona-se também sem deixar de ser uma revista de cultura pop, mas caracterizando-se como uma revista em que a política nacional tem espaço. REFERÊNCIAS ALVES, Thiago Meneses; ROCHA JUNIOR, Carlos Augusto de França; SILVA, Emanuel Alcântara. 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Também são discutidos conceitos de percepção e racionalidade ambiental como referenciais teóricos para o jornalismo ambiental, que é tratado conjuntamente na segunda parte. Em suma, o trabalho aponta alguns vieses e interfaces multidisciplinares indispensáveis para o jornalismo ambiental no trato das emergentes questões ambientais. PALAVRAS-CHAVE: Roland Barthes. Jornalismo ambiental. Percepção. Racionalidade. ABSTRACT: The paper presents some contributions from Roland Barthes, still little explored in Brazil, which provide knowledge of environmental journalism and in addressing environmental issues. Initially a brief theoretical and conceptual review of Barthes' work, then, some concepts of geography (topophilia and topocide) and biology (biophilia) is presented. Also are discussed concepts of perception and environmental rationality as theoretical frameworks to environmental journalism, which is discussed together in the second part. In summary, this work shows some biases and indispensable 5 Jornalista e mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa em Ciberjornalismo (CIBERJOR). E-mail: [email protected]. 59 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 multidisciplinary interfaces for environmental journalism in dealing with the emerging environmental issues. KEYWORDS: Roland Barthes. Environmental journalism. Perception. Rationality. 1 APRESENTAÇÃO Roland Barthes, um dos grandes estudiosos da Teoria da Literatura e Semiótica, nasceu em 1915 na cidade de Cherbourg, França. Durante boa parte de sua vida se dedicou a crítica literária, teatral e cultural. A riqueza teórica trazida por suas obras serve de análise para várias áreas, como no jornalismo ambiental – nome dado à especialidade da cobertura de fatos relacionados ao meio ambiente. Acreditamos que o quadro de crise ambiental e de adversidades atual compreende um precioso momento para uma busca por novos olhares conceituais e multidisciplinares. Com isso, a proposta do artigo aqui apresentado é discutir alguns conceitos de Roland Barthes – ainda pouco explorados no Brasil – que podem auxiliar na contribuição do jornalismo ambiental e no tratamento das questões ambientais. Na primeira parte do trabalho “Texto, linguagem e fotografia” é apresentada uma breve revisão teórico-conceitual da obra barthesiana e suas contribuições à análise da comunicação. São levantados conceitos como: kama-sutra da linguagem, fotógrafospectador, punctum, studium, entre outros. Na seção seguinte “Percepção e Jornalismo Ambiental” é discutido alguns conceitos da geografia (topofilia e topocídio) e biologia (biofilia) que auxiliam no trato e discurso jornalístico do meio ambiente. 2 TEXTO, LINGUAGEM E FOTOGRAFIA Roland Barthes se formou em Letras Clássicas e Gramática e Filosofia na Universidade de Paris. Suas ideias ancoradas na sociologia francesa foram publicadas em diversas obras, como: O Grau Zero da Escrita (Le degré zéro de l'écriture, 1953), Mitologias (Mythologies, 1957), Sistema da Moda (Le système de la mode, 1967), O Prazer do Texto (Le plaisir du texte, 1973), A câmara clara (La chambre claire, 1980), entre outras. 60 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A maioria de seus livros analisa o texto, a linguagem e a fotografia. Em El analises textual de Roland Barthes, Robledo (1980) discute sobre a riqueza teórica que o autor trouxe ao método de análise textual, como por exemplo, a conotação, os códigos, as lexias, a leitura lenta e a exemplificação. A construção do texto é algo laborioso que se assemelha a confecção de uma renda (BARTHES, 2004). A renda é trabalhada com os nós dados pelos dedos e momentos de pausa do bilro que, lentamente, vão dando forma ao desenho. Assim é o texto construído pelo autor que, meticulosamente, dedica atenção e paciência à obra – sua criatura. De acordo com Bosco (2004, p.45) o texto barthesiano é rico também em temporalidades: “o texto clássico” (fluência, agilidade e baixo grau de resistência) e “o texto moderno” (alta produtividade de sentidos). “Textos de prazer” e “textos de fruição” são outras grandes contribuições do escritor francês. Para essa diferenciação Barthes usa da própria vida que nos propicia momentos de prazer e momentos de gozo (da palavra jouissance). O prazer é algo ainda controlado, o próprio desejo, já o gozo é a realização do desejo. Texto de prazer= aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado à uma prática confortável da leitura. Texto de fruição= aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faze entrar em crise sua relação com a linguagem (BARTHES, 2004, p.20-21). A caracterização de Barthes, dada aos textos de prazer e texto de fruição, é bastante ampla e indica a intensidade da experiência de vida, tanto para o autor como para o leitor do texto. O autor (escritor, quem dá arte à escrita) é um doador de sentido e seu gozo reside na doação e no desejo de ter o leitor. Quem escreve lida com realidade e utopia onde “[...] o mundo é uma medalha, uma moeda, uma dupla superfície de leitura cujo avesso é ocupado por sua realidade e cujo direito, pela utopia” (idem, 2003, p. 91). O texto pode ser visto como uma “kama-sutra da linguagem” (BARTHES, 2004, p. 11), ou seja, uma comunhão de prazer entre autor e leitor, representado um momento de êxtase pelo desejo/gozo no encontro dos dois. Para isso, o gozo é visto nas margens do prazer. 61 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A produção de outros sentidos, novos textos a partir do texto, relaciona-se à intertextualidade, isto é, o conjunto de leituras já feitas pelo autor que o influenciaram, consciente e inconscientemente, no seu ato de criação. Nem sempre essa intertextualidade é identificada pelo leitor na primeira leitura do texto, às vezes é preciso voltar ao texto para identificar essa intertextualidade de que fala o autor. Para Barthes o leitor nunca usa a mesma técnica para ler o texto, pois o que ele explora é a liberdade dos seus desejos. Ele explica: “Cada vez que tento ‘analisar’ um texto que me deu prazer, não é minha ‘subjetividade’ que volto a encontrar, mas o meu indivíduo, o dado que torna meu corpo separado dos outros corpos e lhe apropria seu sofrimento e seu prazer” (ibidem, p.73). Barthes (1988) destaca a importância do leitor na obra, atribuindo a este o papel de segundo autor, ou seja, a partir da leitura quem realmente dá vida ao texto é o leitor. É a experiência do leitor que vivifica a obra. O escritor fala ainda da “morte do autor” a partir do momento que a obra chega às mãos do leitor, isto é, é o leitor quem propicia a continuidade da vida da obra. Podemos afirmar como Barthes, que quem escreve vivencia menos do que quem lê. É o leitor quem digere e assimila a obra a parir da sua experiência cultural, social e individual. Nesse momento a obra abre-se para múltiplas possibilidades imprevisíveis para o autor da obra. O semiólogo trata também da linguagem presente no texto. Ele entende que a linguagem é a manifestação de poder, pois “[...] é o objeto em que se inscreve o próprio poder, desde toda a eternidade humana [...]” (BARTHES, 2007, p.11-12). O discurso do autor, dado à linguagem, é alienante e pode tornar-se uma ideologia que escraviza o leitor. Um exemplo desse poder é o que ocorre na fala das pessoas quando reproduzem a linguagem (e o discurso) dos meios de comunicação. A linguagem é matéria-prima indispensável na produção do texto, mas também é ardilosa, cuja armadilha é o poder. Barthes afirma que “o poder (libido dominandi) está emboscado em todo e qualquer discurso” (ibidem, p.10). Nesse sentido, o estudo barthesiano permite uma reflexão significativa sobre o tema do poder quando indaga: o que é o poder? “[...] Por toda a parte, de todos os lados, chefes, aparelhos maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes 'autorizadas', que se autorizam a fazer o discurso de todo poder” (ibidem, p.11). 62 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A ideologia é o instrumento menos adequado de trabalho que deveria incitar aos vários sentidos à multiplicidade de outros textos. A objetividade (apenas um sentido, uma ideologia) escraviza o leitor na leitura de novos sentidos. Para Barthes o texto nunca cessa, nunca acaba, sempre multiplica sentidos. Ele é a produtividade, e está em constante movimento nas infinitas possibilidades de significação dada pelo leitor. Podemos dizer que é a continuidade da obra reclamada pela própria obra nos sentidos criados pelo leitor. Quanto à fotografia Roland Barthes (1984) explica sua afeição: “Decidi então tomar como guia de minha nova análise a atração que eu sentia por certas fotos” (p.35). Para ele essa atração era uma certeza. As dificuldades metodológicas encontradas ao estudar a fotografia foram muito cedo identificadas por Barthes que questionava: “Quem podia guiar-me? Desde o primeiro passo, o da classificação (é preciso classificar, realizar amostragens, caso se queira constituir um corpus) a fotografia se esquiva” (ibidem, p.12). Desde o início das investigações Barthes distinguiu três práticas de análises ligadas à fotografia, tomadas a partir da pessoa que a vê: a prática de fazer para o operator (quem faz); a prática do suportar, relacionada ao spectrum e ao referente; e a prática do olhar, atrelada ao spectador ou autor. Para ele existe uma alternância de práticas entre o operator e o spectador, isto é, aquele que faz num primeiro momento, e aquele que assiste num segundo momento. Conforme Barthes (1984) existem duas linguagens na fotografia: a linguagem conotativa e a linguagem denotativa. A conotativa diz respeito ao óbvio, o visível, o evidente - são informações que revelam o contexto social e cultural da pessoa ou do próprio fotógrafo. A linguagem denotativa é o obtuso, isto é, a informação implícita na fotografia. Para ele isso significa “mensagem sem código” ou ainda quando assegura: “[...] seja o que for que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ele que vemos” (BARTHES, 1984, p.16). O autor ainda vê na fotografia outras duas linguagens: a linguagem expressiva, dirigida às características formais e estruturais, e a linguagem crítica, provocadora e origem de vários sentidos que o investigador projeta em seu discurso específico. As duas linguagens podem ser compreendidas como aquilo que se pode perceber e se pode conceber numa fotografia. 63 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A contribuição de Barthes na análise estruturalista da fotografia é fundamentada principalmente por dois elementos: o punctum e o studium. O punctum é o detalhe, o estímulo. Lembra a punição, a picada, pequeno corte, a tomada da fotografia que inclui tanto o fotógrafo-operador quanto o fotógrafo-spectador. O punctum não se relaciona com os objetivos ou a cultura e visão de mundo, mas sim com algo que toca o fotógrafo na imagem que vê. O studium relaciona-se a alguma coisa ou gosto por alguém, ou ainda o interesse geral. Para o autor pode-se entendê-lo como um saber, uma espécie de educação. Studium é um “extracampo sutil” (p.89) por meio do qual a imagem joga o desejo para além do visível. Barthes observa que o studium tem relação com o interior do sujeito, pois “[...] é pelo studium que me interesso por muitas fotografias, quer as recebe como testemunhos políticos, quer as aprecie como bons quadros históricos, pois é culturalmente (essa conotação está presente no studium) que participo das figuras, das caras dos gestos, dos cenários, das ações” (ibidem, p.45-46). A ligação da fotografia com o sujeito é evidente porque o significado dela é a representação psíquica de uma “coisa” e não a “coisa” em si. Portanto, a fotografia é um lugar onde o observador instala e encontra o seu mundo, como explica o escritor francês: "[...] diante da objetiva sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte" (ibidem, p.27). É a posição privilegiada do sujeito em sua ação investigativa, de si mesmo e do mundo. A fotografia apresenta também um caráter conservador para Barthes, pois ela eterniza, imobiliza um tempo e um espaço. Por outro lado, a foto tem um caráter subjetivo responsável por ressuscitar sentimentos ou, nas palavras do autor, ressuscitar “o morto”. Esta qualidade não depende do tempo ou do modo em que foi produzida a fotografia. Barthes (2007) também contribui com a visão dos meios de comunicação, principalmente da televisão. Para ele os telespectadores costumam ficar inseguros de si mesmos e só veem o que os olhos da televisão focam [...] para manipulá-lo e fazer dele Gregório [...] (p.27). Os telespectadores estão sempre em movimento, fazendo o que é ditado pela mídia que capta a subjetividade do mesmo, passando como um espelho midiático. 64 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O sentido da mídia é sempre o mesmo, a estética da plasticidade, em que todos repetem e ouvem sem parar. [...] forma bastarda da cultura de massa é a repetição vergonhosa: repetem-se os conteúdos, os esquemas ideológicos, a obliteração das contradições, mas variam-se as formas superficiais. Há sempre livros, emissões, filmes novos, ocorrências diversas, mas é sempre o mesmo sentido [...] (BARTHES, 2004, p. 51). As novelas “reforçam as ideologias, achatam as massas” (ibidem, p.50), fazem da realidade uma peça em movimento com flashes para interromper e mudar um pouco a vida cotidiana dos telespectadores. Neste acaso, o ofício é tornar a comunicação um ato de reproduzir em massa, uma função apenas instrumental, satisfazendo as necessidades. Segundo Ribeiro (2007) o Roland Barthes considerava a linguagem um processo indispensável para “[...] descrever os processos de semantização dos comportamentos sociais, acreditando ser possível estudar toda e qualquer atividade humana como linguagem [...]” (p. 3). 3 PERCEPÇÃO E JORNALISMO AMBIENTAL: as interfaces com as ideias de Roland Barthes O mundo contemporâneo do homem e da ciência caracteriza-se por um ritmo acelerado da história marcado nas diferentes escalas espaciais por um espaço geográfico uno e múltiplo. O homem, como ser histórico e geográfico, tem sua existência e experiência ambiental regidas pelas regras da discutida globalização e revolução tecnocientífica que unem e desunem diversas dimensões de tempo e espaço. Michel Soulè (apud WILSON, 1997, p. 597-598) identifica as dimensões do envolvimento entre a mente e a natureza: experiencial, analítica e valorativa. A primeira corresponde ao primeiro contato de experiência imediata, sensorial da natureza, amparada pelo sistema sensório-neural. A segunda é a analítica mental, responsável pelas complexas associações, concepção de teorias e surgimento de sistemas conceituais. E a última é a valorativa, que implica na atribuição de valores, juízo e julgamentos. Ele defende a ideia de uma “conceitualização multidimensional” do lugar com base na experiência, atividade essencial na mudança de valores e condutas. A 65 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 motivação para ver e ouvir o ambiente com novos olhares é o primeiro passo para que as pessoas valorizem a própria experiência e a percebam na vida cotidiana. Entretanto, elas se proíbem destas importantes atividades mentais, nas palavras de Henry Lefebvre (1991), uma vez que “a vida cotidiana no mundo moderno restringiu a experiência afetiva e emocional” (p. 199) o que também resulta na diminuição das atividades mentais. A atual crise ambiental é fruto da crise humana, ou seja, um estado de instabilidade vital da espécie humana provocado pela crise de percepção. A percepção e a própria experiência humana estão reduzidas a um olhar, agir e julgar atrelados à visão utilitarista a ao paradigma reducionista, pilares do pensamento e da ótica capitalista. Assim, é necessária uma nova percepção, desprovida de imagens e pensamentos estereotipados, de uma informação que também fale da experiência que “[...] incorpore a própria vida daquele que conta para comunicá-lo como sua própria experiência àquele que escuta” (BENJAMIM apud GUATTARI, 1980, p.51). Leff (2001) defende a racionalidade ambiental como contraponto da racionalidade econômica vigente. Para ele “depende da constituição de novos atores sociais que objetivem através de sua mobilização e concretizem em suas práticas os princípios e potenciais do ambientalismo” (p. 136). Entretanto, esta nova razão só virá com uma nova percepção paradoxalmente à visão utilitarista atual. Aqui é importante salientar outro conceito de Barthes (2003, p. 84) – a doxa – facilmente reconhecível na cultura e comunicação de massa. A doxa é a opinião corrente, “um mau objeto”, a repetição, não advinda do conteúdo, mas apenas da forma. A paradoxa (olhar diferente e antagônico) é indispensável à racionalidade ambiental e que deve ser produzida por jornalistas qualificados e compromissados com a relação harmônica entre sociedade e natureza. A fotografia é um poderoso instrumento investigado por Barthes que pode auxiliar no exercício de uma nova percepção do homem, do mundo e, principalmente, das relações entre homem e ambiente. Barthes (1984) destaca duas importantes categorias que contribuem na discussão ambiental, o studium e o punctum. O studium é o conjunto dos referentes visuais que nos tocam, humanamente, culturalmente e moralmente, mas permanecem em plano impessoal, sem nos atingir de forma especial. 66 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Já o punctum seria um elemento, um detalhe inadvertido que salta da fotografia e nos trespassa como uma flecha. Punctum é algo que nos fere, que nos "punge". A fotografia abaixo (figura 1) pode ser explorada a partir desses conceitos de Barthes, especialmente a dimensão do punctum, uma vez que o tema da foto nos fere, nos sensibiliza. Ela – a fotografia – evidencia a possibilidade da relação harmoniosa entre duas espécies diferentes (o homem e o porco-do-mato). Fig. 1 – Exemplo de ligação biofílica entre índia e filhote de porco-do-mato6 A imagem acima foi colhida pelo fotógrafo Pisco Del Gaiso e publicada na Folha de S. Paulo, em 16 de dezembro de 1992. Por tal feito, o fotógrafo recebeu o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei d'a Espanha. Barthes lembra que a fotografia pode ressuscitar sentimentos ou sensações vividas, como é o caso da biofilia (figura 1) que deve ser resgatada, ressuscitada para uma nova racionalidade ambiental que se contraponha à racionalidade econômica. As imagens precisam ser mais bem exploradas porque constituem um rico instrumento para a sensibilização e nova consciência, a ser construída na e para a racionalidade ambiental. 6 Disponível em: <http://respeitoanatureza.blogspot.com/2008_06_01_archive.html>. Acesso em 15 set. 2009. 67 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Barthes (1988) também contribui com o conceito de discurso acrático, ou seja, aquele produzido a partir da linguagem a-política, “fora do poder e/ou contra ele” (p. 101). A geografia contribui com diversos conceitos, entre eles podemos destacar, para este ensaio, a topofilia e o topocídio. A topofilia é um neologismo que sintetiza “[...] todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material” (TUAN, 1980, p. 107). O sentimento topofílico depende do enraizamento e da experiência com os espaços e a natureza que produzem o pertencimento e a identidade do homem com os lugares e as paisagens. O topocídio, termo proposto pelo geógrafo Yi-Fu Tuan, refere-se à morte e/ou extinção de um lugar. A biologia oferece outro conceito integrador – a biofilia – criado por Edward O. Wilson em 1984 para designar a atração, as ligações umbilicais, a ligação inata/natural do homem ao ambiente. É este elo vital, comprovado pelos genes (nemes) e certos arquétipos culturais, que deve lançar o homem para a ética de preservação. A figura 1 é um exemplo de biofilia, cuja fotografia é o instrumento indispensável para a sensibilização e conscientização ambiental. O jornalismo ambiental é um campo precioso e importante para a racionalidade ambiental. Tendo iniciado na década de 70, paralelo aos movimentos ambientalistas daquele período (SOUZA, 2005, p. 33), deve crescer ainda mais neste início do século XXI para atender as demandas informacionais de uma sociedade que precisa sair do papel de espectador e assumir as responsabilidades de sujeito. Bueno (2004) discorre que o jornalismo ambiental ainda passa por uma fase de transição e passa a incorporar uma visão intermultidisciplinar. Neste contexto, novos olhares conceituais são fundamentais, especialmente aqueles que podem ajudar na compreensão sistêmica, integradora e dinâmica das intrincadas relações entre homem e ambiente. Para Girardi et al (2006) o jornalista ambiental deve ser um “agregador de conhecimentos, complexo na essência, responsável na elaboração e didático para a recepção”. 4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES As contribuições barthesianas nos trazem a riqueza do processo de linguagem na reprodução e construção do comportamento humano. 68 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Partindo do cotidiano da vida francesa Roland Barthes critica a cultura de massa. Para ele todo discurso da mídia, toda linguagem é ideológica, cheias de ideias, pensamentos, visões, etc. Há significados ocultos que consumimos todos os dias nos diferentes discursos. Com isso, os conceitos teóricos do semiólogo (o certo sujeito inculto) não podem ser negligenciados especialmente quando necessitamos fazer a desconstrução de um conhecimento fragmentário e viciado ideologicamente. A informação e a comunicação, no âmbito do jornalismo ambiental, devem ser produzidas por um profissional aberto ao debate pluridisciplinar, tão necessário à formação de uma sociedade mais consciente e responsável em seus deveres com o ambiente. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. A câmara clara. 7ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ___________. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. ___________. Aula. 13ª. Ed., São Paulo: Cultrix. 2007. ___________. O prazer do texto. 4ª impressão. São Paulo: Perspectiva, 2004. ___________. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. BOSCO, Francisco. Roland Barthes, entre o clássico e a vanguarda. 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As relações junto às partes interessadas e a evolução no nível de conscientização quanto aos processos de produção e o tipo de relação junto às partes interessadas (stakeholders), faz com que a resiliência empresarial se torne um indicador de sustentabilidade fundamental à gestão das organizações e na forma de comunicação. PALAVRAS-CHAVE: Resiliência empresarial. Sustentabilidade Organizacional. Cultura Organizacional. Comunicação com Partes Interessadas. ABSTRACT: The effective changing process and the ongoing global transformation increase demand for a certain level of proficiency required from organizations. Relationships between business partners and requirements regarding the form of appropriation of natural resources have also evolved to a higher level of consciousness and it does that. This is an engaged sustainability index to the management of organizations. This situation directly affects production processes, making risk perception and its monitoring an ally to a greater level of sustainability within organizations and own relationship due to stakeholders, emphasizing how corporate resilience and more integrated communication is an important part to organizational sustainability. Keyword: Business Corporate Resilience. Organizational Sustainability. Organizational Culture. Stakeholders Communication. 7 Mestre Strictu Sensu em Sistemas de Gestão (Latec/UFF) 71 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 1. INTRODUÇÃO O presente estudo trata do processo de resiliência empresarial como um indicador diante da necessidade real de sustentabilidade das organizações a partir das transformações e das mudanças globais, alterando os paradigmas, os preceitos e as ações inerentes às linhas de gestão administrativa assim como em relação aos modelos conceituais que produziram efeitos não apenas sobre a sociedade, mas também sobre as próprias organizações, a relação de consumo, a forma de se comunicar diante dos diversos públicos de relacionamento e das partes interessadas (stakeholders)8. Principalmente, considerando as ações relativas a um processo de globalização acirrado e massivo, com suas consequentes exigências corporativas, políticas, sociais e econômicas, exigindo assim uma maior adequação e ajuste das organizações. Deste modo, tanto o processo de globalização quanto à necessidade de ajustes destas às condições que será exposta neste estudo, vem permear este crescente processo de mudança e de resiliência empresarial, passando a ser também um necessário indicador de sustentabilidade organizacional. Tal demanda se reflete, considerando que cada vez mais se é exigido no mundo empresarial, frente aos novos processos de gestão administrativa, e que faz com que haja uma interação de ajustes frente a estas necessidades e a nova realidade, em que características mais fortes relativas à governança corporativa e empresarial são impostas. Pois, as empresas ou organizações estão muito atreladas ao mercado de capitais e as novas distintas formas de captação de investimentos. Deste modo, corroborando não só na forma de lidar com o processo produtivo, mas também pelo envolvimento e uso dos recursos materiais, naturais, e humanos, visando justamente um desenvolvimento sustentável de seus negócios. 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES GLOBAIS E NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO EMPRESARIAL DAS ORGANIZAÇÕES NO ÂMBITO DE GOVERNANÇA O processo de transformação e mudança ocorreu principalmente com a implantação dos processos da globalização. Uma nova ordem da economia mundial 8 O termo stakeholders aparecerá no texto e será tratado dentro da conceituação de público de relacionamento e/ou partes interessadas. 72 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 impactando sobremaneira em termos de conceitos, premissas, atitudes e posturas em relação à evolução dos sistemas produtivos e o uso dos recursos naturais. Mas, também dos processos econômicos, tecnológicos e sociais (MAY et al., 2003). Ainda na visão dos autores, não só a sociedade envolvida diretamente, mas, principalmente, em relação às organizações e o uso dos meios produtivos diante desta relação de poder no que tange às partes interessadas muda, de acordo com esta necessidade. Haja vista o nível de entendimento dos mecanismos de funcionamento do mercado de capitais e do nível de engajamento que o capital próprio está envolvido, mas também a forma como os meios de comunicação inferem este processo de orientação e de obtenção de informações. Logo, tendo características próprias em que as organizações ficam bem mais sujeitas a possíveis perdas em longo prazo (MAHONEY, 2007). Ao longo deste processo de mudança global, em que uma maior governança se faz necessária, acaba gerando um elemento transformador junto às organizações e prementes ao processo de gestão. Ou seja, “o processo social que determina a alocação dos recursos e dos investimentos” (PEREIRA & QUELHAS, 2005). Este processo de mudança trouxe à tona possibilidade de uma discussão e implantação de questões até então pouco discutidas, como: questões de ética, funcionalidade administrativa das empresas, a própria gestão administrativa e gestão de pessoas, entre outras ações, assim como também diante da forma de lidar com as comunidades do entorno e seus desdobramentos junto à sociedade e partes interessadas em geral. Em complementação ao autor acima, Barreto (In STAREC et. al, 2006, p.4): O trabalho corresponde ao artificialismo da existência humana, o trabalho produz um mundo de coisas completamente diferentes de qualquer ambiente natural. O trabalho é exercido por um mundo de diferentes fluxos. Com o trabalho, o homem exerce a sua condição de troca em todos os sentidos para exercer sua permanência na terra. A condição humana do trabalho é a mundanidade. Uma das qualidades desta condição humana é a criação e a representação em código próprio da informação, a possibilidade de sua apropriação e elaboração para gerar conhecimento. O conceito de governança contempla uma nova forma de governar, de tomar decisões sobre o interesse coletivo e também dos negócios, de uma forma mais cooperativa, de um olhar mais humano, diferentemente dos modelos de gestão mais centralizados e mais conservadores (ZAPATA, p.12, 2009). 73 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Diante do forte e crescente processo de globalização, a implementação de uma gestão, onde os conceitos principais de governança corporativa (transparência, equidade, accountability – prestação de contas e responsabilidade corporativa) têm um papel importante no processo de controle, seja da ética, seja dos valores corporativos e de comunicação direta junto às partes interessadas (IBGC, 2009, p.19). Estes valores e mudanças conceituais, além da necessidade natural a que a sociedade se vê submetida, faz com que também se mobilize ainda mais em relação às posturas, às vicissitudes ou mesmo ao próprio ônus diante da instalação de um parque industrial globalizado. Com isso, modificando o conceito de resiliência empresarial. Em termos de gestão ambiental e uso dos recursos naturais, a intensificação do processo de globalização financeira e da produção da economia mundial acarretou também mudanças consideráveis nos mercados internacionais, vide o acirramento na concorrência mundial, inclusive alterando consideravelmente os padrões de concorrência industrial (MAY et al., 2003). Com isso, as empresas se viram forçadas a ter um desenvolvimento mais abrangente no sentido da qualidade dos processos, da gestão administrativa, uma maior preocupação ante a comunicação e as relações de consumo, em que um maior número de padronizações se fez necessário de ser efetivado. Ou seja, saindo de uma postura mais reativa, em que as ações eram mais voltadas para um atendimento compensatório e muito mais por força das legislações ambientais. Segundo Vinha (in MAY et al., 2003, p.184), até então, as análises eram feitas que somente sob circunstâncias de ameaça nos negócios ou à reputação é que o envolvimento se dava no processo de decisão, trazendo as partes interessadas. Mas, mesmo assim de forma limitada, apenas os consumidores e os representantes de órgãos reguladores. 2.1 Os impactos diante das mudanças globais, a necessidade de uma comunicação mais integrada, interligada à percepção de risco e os reflexos na sustentabilidade das organizações O processo de globalização econômica, segundo Capra (2005, p.150) foi engendrado intencionalmente por grandes grupos economicamente fortes, compostos pelos principais países capitalistas, formando o denominado G-7, e grandes conglomerados financeiros globais de grandes empresas transnacionais. No caso dos 74 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 grandes grupos financeiros, temos o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Assim, dentro de uma abordagem acerca de transformações globais, o conceito do que é cultura organizacional e desenvolvimento de conhecimento é introduzido necessariamente. Em que critérios de conduta e de administração são estabelecidos e se tem condições de avaliar o processo de transformação necessário nas organizações, decorrente deste movimento crescente e evolutivo do processo de globalização existente, alterando significativamente as relações entre as partes, sejam elas relacionadas ao público interno ou o externo. Segundo Barbosa (2002), as mudanças passam também pelas relações de poder, as quais são intrínsecas às múltiplas correlações relativas ao capital. Ou seja, a cultura empresarial estaria subdividida em modalidades distintas, as quais poderiam ser enquadradas em empresas privadas, estatais, de capital misto, familiar e as possíveis combinações destas divisões definidas pelo autor. E, estas relações também seriam distintas, seja pela própria característica de composição de cada tipo de formação de empresa ou de organização, de tamanho e formato. Com isso, as transformações econômicas globais atuam diretamente sobre as organizações, alterando significativamente a sua relação de gestão e de capacidade de captar investimentos. E, isto ocorre, principalmente, a partir do momento em que estas passam a ser listadas em bolsas de valores, onde nível de exigência no que tange à mudança na cultura organizacional é bastante forte assim como em termos de governança corporativa (MAHONEY, 2007). Por outro lado, a cultura organizacional precisa transformar-se diante dessas reais mudanças, muito mais pelos ajustes necessários aos quais as organizações estão submetidas, mas, também, diante do processo desenvolvimentista cada vez maior, que não é diferente em termos de planejamento estratégico (RODRIGUEZ, 2002). Porém, as premissas são diferentes no decorrer do tempo, principalmente após a implantação do processo de globalização, como explicitado por Barros & Prates (1996, p.108): “Todo o processo de mudança é de longo prazo e em seu decorrer existe a interferência de muitos fatores internos e externos à empresa”. E, dentre os fatores internos, na visão de Rodriguez (2002), a gestão de dos recursos humanos, das pessoas que compõem o quadro técnico-administrativo também tem necessidade de ser revisto. A cultura organizacional e a gestão administrativa das pessoas nas empresas possuem uma 75 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 arquitetura organizacional estabelecida. Por outro lado, na visão de Takeuchi & Nonaka (2008), os gestores, em geral, são céticos e questionam tudo, não presumindo nada como verdadeiro, devendo assim confiar no corpo técnico e operacional para que as ações, atividades e tarefas possam ser realizadas. Porém, o processo de modernização se faz cada vez mais presente e necessário. Logo, suas respectivas estruturas precisam acompanhar o processo evolutivo e estas mudanças, pois estão sempre em um ritmo de necessidades e de ajustes cada vez mais constantes e velozes. Existe uma necessidade de acompanhar a evolução destes processos, mas também no que tange à vantagem competitiva, diante de um mercado de grande atratividade, em que a volatilidade de benefícios faz com que haja também uma movimentação acentuada assim como influenciando o tempo de duração das decisões e das estratégias adotadas e o custo envolvido. Ainda contextualizando sobre as transformações globais, a questão da ética, na visão de Elliot (2002), afeta não só a visão das ações empresariais, mas também a solução das relações mantidas junto a diversas partes interessadas. Por quê? Porque a nova realidade global, com o advento maciço da tecnologia da informação, da democratização da informação, também cria elementos favoráveis ao processo da corrupção nas organizações. Mesmo que haja pelas organizações todo um bojo de condições engajadas às questões de governança corporativa das organizações. Mas, por outro lado, pelas relações intrínsecas junto às questões as quais devem combinar política/prática de governança e comportamento social/ambiental. O ativismo do investidor/ acionista vem sendo diretamente acompanhado pelas novas leis e regras surgidas, principalmente com o advento da Lei Sarbannes-Oxley (SOx), segundo Mahoney (2007, p.191). Com isso, não excluindo a ação em si da corrupção, mas atuando nas regulamentações e no controle das organizações. Se por outro lado, estes mesmos canais de facilidades também propiciam formas de mecanização da corrupção também permitem formas de coibi-las, pois as regras relativas aos mercados de ações geram um processo de transparência, que é inerente à prática de governança corporativa (MAHONEY, 2007). Considerando que a globalização pode introduzir a corrupção nos processos de gestão, a sistematização dos meios de comunicação, seja por meio da tecnologia da informação, seja pela 76 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 democratização da informação, seja pelas descobertas de ações organizadas, em que o papel da segurança da informação se torna premente. Tudo isto permite também uma acessibilidade de forma bem mais abrangente pelas diversas partes interessadas. Logo, tornando este tipo de ação mais próxima à exposição (ELLIOT, 2002). Por outro lado, a mesma democratização desta comunicação digital facilita o processo de descoberta das ações organizadas, pois a manutenção do sigilo possui determinadas dificuldades. São efeitos claros do processo de globalização (RODRIGUEZ, 2002). São vários os fatores externos alteram significativamente o comportamento organizacional, pois se dá pela composição de diversos fatores, sejam eles vinculados à imagem empresarial; a reputação e a credibilidade diante dos diversos públicos de em geral; as estratégias usadas decorrentes do plano de negócios realizados e dentro de um processo de divulgação transparente, principalmente junto aos investidores e à imprensa. Mas, também, em relação às comunidades do entorno, junto ao poder público e as entidades não governamentais (ONGs). Enfim, são diversos setores que se desdobram diretamente ou indiretamente, dependendo do tipo de segmento de negócio de cada empresa. Para cada ramo ou tipo de segmento, certamente, as partes interessadas também se desdobram e se segmentam especificamente. Por outro lado, isto só de dá em termos de quantidade de público de relacionamento, sem retirar o ônus dos impactos e das circunstâncias geradas que se baseiam em uma situação de crise ou mesmo diante de uma percepção de risco (OGRIZEK; GUILLERY, 1999). Principalmente, diante da necessidade de se ter uma maior preocupação ainda maior quanto aos aspectos e implantação do processo de governança corporativa, valores estes que também se tornaram prementes junto às organizações, baseado no que vem sendo exposto. E, as organizações estão muito mais sujeitas a regras e a penalidades legais, o que propicia o processo de mudança. E, estas mudanças propiciaram valores organizacionais importantes como forma de relacionamento com as partes interessadas (MAHONEY, 2007), se não pelas regras e regulamentações legais impostas, pelo fato de serem penalizados na movimentação e negociação de suas ações na bolsa do mercado de capitais. Hoje, um processo de comunicação é de percepção mais direta, por meio da interatividade existente junto às partes interessadas, especificamente os investidores (MAHONEY, 2007). 77 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O mais interessante é que as organizações devem se ajustar diante da necessidade maior no sentido da organização interna e cultural das empresas (BARBOSA, 2002). Porém, na visão de Fleury et al. (1996) sem descaracterizar a necessidade do rito de passagem, por meio da própria relação de poder econômico e, por assim dizer, das relações de poder organizacional e empresarial assim como das relações sociais e organizacionais inerentes de forma geral. E, diante da importância em demonstrar a mudança de valores, estes novos paradigmas que a sociedade como um todo tem em relação ao universo, ao meio ambiente que a envolve assim como seus respectivos desdobramentos, mudaram o nível e grau de relacionamento. Principalmente, mediante as forças de pressão e dos respectivos movimentos decorrentes do processo de sustentabilidade, muito mais alinhados à responsabilidade social corporativa (MAY et al., 2003). Na visão de Bertero (In FLEURY et al., 1996), dentro desta linha de mudança e cultura organizacional pode-se constatar que o mercado de forma geral, não só especificamente o de capitais, possui um movimento rápido em relação aos ajustes e às necessidades. E, em relação às necessidades sempre estão em acordo com o processo de evolução das gestões administrativas e empresariais. Principalmente, diante da implementação massiva da globalização e seus efeitos grandiloquentes ante as reais necessidades de mudanças administrativas e de gestão assim como diante das transformações tecnológicas e organizacionais (RODRIGUEZ, 2002). E, estas mudanças geram as necessidades, sejam estas nas relações interpessoais, de consumo etc., que por sua vez geram a real necessidade de as empresas se ajustarem e se adaptarem as novas realidades dos meios de produção e das relações junto às diversas partes interessadas, principalmente. Segundo Capra (2005, p.167), a sociedade está se ressentindo de forma acelerada diante dos impactos da globalização econômica, tendo papel relevante nos aspectos de mudança, criando um movimento transformador que cresce rapidamente em todo o mundo. Pois, o acesso e a disponibilidade de forma mais ampla às mídias sociais transforma esta sociedade em um agente importante dentro do processo de mudança. 78 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 2.2. A necessidade de uma comunicação mais integrada e os reflexos de resiliência empresarial no processo de sustentabilidade das organizações O crescimento de atuação da comunicação e de suas formas efetivas em redes de comunicação faz com que não só no aspecto simbólico da compreensão da informação, mas também no processo de realimentação existente nas redes de comunicação, seus canais, suas formas de interligação, se movimentam de forma mais sistematizada e estruturada, em decorrência da necessidade de um maior uso deste mecanismo de suporte (CAPRA, 2005). Além disso, não só no aspecto social, mas também como uma nova e importante vertente de utilização organizacional para o desenvolvimento de seus negócios, diante de um mundo cada vez mais integrado em termos de comunicação e de tecnologias cada vez mais disponíveis, tendo as mídias sociais um papel importante e de destaque, que referenda este ponto acima destacado, pois foi um embrião das mídias sociais e suas formas de relacionamento. Segundo Fleury (1996, p.24): “A comunicação constitui um dos elementos essenciais no processo de criação, transmissão e cristalização do universo simbólico de uma organização”. Assim, no entendimento de que a comunicação deve cumprir seu papel social dentro da sistemática dos negócios empresariais, a gestão empresarial percebeu a necessidade, durante o contínuo processo de transformações, de que a comunicação possui um papel importante e que deve ser mais integrado aos processos econômicos, sociais e organizacionais como um todo. Porém, sem perder as características de se manter em um relacionamento mais direto junto às partes interessadas. Condição esta bastante relevante no sentido de longevidade das organizações, e de forma que obtenha um grau de sustentabilidade exequível. Deste modo, a função comunicação migrou para uma integração multifuncional para atender e suprir as demandas decorrentes desta necessidade. Para Figueiredo & Nassar (1995), a comunicação empresarial tem um papel importante e é condição primária quanto ao aspecto da construção da imagem institucional de uma empresa. E, para que esta meta seja conquistada, além de todo o processo inerente à transparência e a aproximação junto às partes interessadas, deve-se ter a valorização de profissionais de comunicação cada vez mais. Uma vez incorporada nas organizações a relevância destes profissionais, estes possuem a condição de criar e permite a formação e construção de uma área de comunicação organizacional (institucional, empresarial, administrativa e mercadológica) no municiamento do 79 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 planejamento e no desenvolvimento de suas ações empresariais mais voltadas não só ao relacionamento institucional, mas também na visão do negócio (KUNSCH, 2003). Ainda na visão de Kunsch (2003), o papel da comunicação integrada é fazer a convergência de diversas áreas de atuação da comunicação, de forma que funcione como um organismo, dentro de uma visão sistêmica, em que o processo de sinergia flua adequadamente para um bom resultado coletivo. Este mix da comunicação organizacional, composto pelas diversas áreas de comunicação, seja a comunicação interna, a comunicação administrativa, a mercadológica e a institucional, na visão da autora, deve atuar de forma sistêmica. Assim, constituindo uma unidade efetivamente integrada, dentro de um nível consensual de harmonia, no âmbito do desenvolvimento das atividades e, consequentemente, na obtenção dos resultados do negócio. Esta convergência, ainda na visão da autora, desde que dentro de uma visão claramente definida e dentro de preceitos objetivos, transparentes em suas ações, define e permite um desenvolvimento estratégico e tático que deve ser definido para um bem maior na obtenção da eficácia de suas ações. Esta integração permite que, tendo as ações definidas e claramente expostas, elas possam propiciar que as ações de relacionamento perante as diversas partes interessadas sejam mais profícuas e estabeleçam condições para o desenvolvimento de uma relação de credibilidade em todas as instâncias desta relação. O que reforça o contexto da sustentabilidade organizacional não apenas em momentos de benesses, mas também em momentos de possibilidade de risco ou mesmo de gerenciamento de crise. De forma sintética, a Figura 1 (CARVALHO, 2008) apresentada abaixo demonstra o ciclo de sistematização dos processos de comunicação mais integrada, que reflete No processo de sistematização de gerenciamento de risco e de comunicação de crise e seu envolvimento direto no âmbito dos negócios. O sistema apresentado reforça o quanto é importante a manutenção das relações e sua relevância para a sistematização dos processos de comunicação, cuja integração e interatividade pode até dar uma dimensão de o quanto pode afetar direta ou indiretamente a sustentabilidade das organizações ou mesmo reforçar as relações, a marca, a reputação, a credibilidade, a identidade organizacional, junto ao público interno e externo. Enfim, possibilita que a empresa alcance a condição da 80 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 sustentabilidade empresarial no processo de troca e ajustes mútuos em cada uma das variáveis e partes envolvidas. – Sistematização de Gerenciamento e Comunicação de Crise - Fonte: CARVALHO (2008) Segundo Mestieri (2004), estas ações conjunturais efetuadas diante das diversas pressões internas e externas propiciaram um maior desenvolvimento nas relações junto às partes interessadas, possibilitando também um maior processo de transparência das organizações diante de cenários adversos Esta maior abertura, diante da necessidade e da disseminação da tecnologia da informação e das novas técnicas de obtenção desta, faz com que as diversas formas de obtenção de informação e de conhecimento, seja ela de forma estrutural, dentro das organizações, ou individualizada, tenha um cunho efetivamente mais democratizado. Segundo Morin (2011), em termos de preparação para esta visão futura de sustentabilidade, é fundamental levar estas premissas em consideração, e não somente em termos de gestão empresarial e administrativa, mas também em relação ao seu quadro técnico, operacional e corporativo, melhorar as condições das relações humanas, a formação do pensamento integrado e complexo. Da mesma forma, o conhecimento, seja pela pesquisa, pela capacitação do corpo das organizações, pela relação com os investidores e demais partes interessadas, o 81 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 processo de formação de imagem, sua reputação e credibilidade, dentre outras variáveis, permite uma abordagem mais abrangente de entendimento da organização. Até porque hoje a sociedade tem interesse em saber mais sobre esta ou aquela empresa. Seja por questões de maior entendimento no que tange às questões de sustentabilidade, seja pelo próprio papel de cidadão mais consciente, por ser membro de uma comunidade que se localiza muito próximo a uma empresa e o que a afeta socialmente. Ou então, pelo simples fato de ter um envolvimento maior junto ao mercado de capitais. O que reforça ainda mais o papel da transparência no processo de comunicação junto às partes interessadas. É este entrelaçamento entre a empresa e as partes interessadas que faz com que o problema não seja tão impactante. Mesmo considerando que isto não irá reduzir o processo de penalidade, mas sim no que diz respeito à imagem. E, no caso de investidores e acionistas, as relações têm um maior cunho econômico onde o entendimento da situação de crise existe, mas o direcionamento de investimento é bem maior. É certo que este posicionamento é fruto das condições e dos impactos de crise. Por outro lado, o risco existente é compatível quando se tem uma relação fortalecida, como retrata Eccles et. al. (2007), onde os clientes são mais leais e adquirem uma faixa maior de produtos e serviços porque o mercado acredita que tais companhias propiciam maior ganho e possui um crescimento futuro mais sustentável. O capital de relacionamento se traduz como um importante ativo intangível no processo de sustentabilidade, a partir do momento em que as empresas agem de forma interativa entre seu corpo gerencial e a parte técnica. Esta interatividade é rica, no sentido de que as informações e as melhores práticas são difundidas e discutidas em grupo, além de ser extensiva a entidades parceiras, como universidades, empresas e centros de pesquisa, como forma de gerar intercâmbio de conhecimento e fomentar parcerias que sejam profícuas para o desenvolvimento dos negócios. E, isto no caso do capital organizacional e de relacionamento possuírem um papel importante no processo de troca, de ganho e de interação. É bem possível que os investidores e os acionistas usem cada vez mais a sustentabilidade ecológica, no lugar da rentabilidade estrita, como forma de avaliar o posicionamento estratégico de longo prazo das empresas. Mas, também para reiterar o 82 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 seu posicionamento no que tange ao processo de transparência e de formação de valores que venham permear e garantir o contexto da credibilidade e de reputação da empresa. E, segundo Rodriguez (2002), as organizações devem levar em consideração que a cultura, os valores de mercado e as pessoas, a própria forma de lidar com o meio ambiente e seus aspectos de transparência e de lidar com os diversos processos, também devem ser vistos como parte do negócio. Assim, a relação de consumo ou mesmo de afinidade e imagem junto a uma determinada instituição e sua marca é alterada de acordo com as nuances, variações e condições e circunstâncias às quais as empresas estão submetidas, considerando o estágio de evolução perante o mercado e a própria evolução da empresa. E, por ser um ativo invisível, sob o aspecto da percepção e das mudanças desta percepção, isto faz com que a competitividade do mercado faça, cada vez mais, com que as empresas estejam em sintonia diante dos processos de mudança que surgem diante da gestão vigente. 3. A RESILIÊNCIA EMPRESARIAL COMO UM INDICADOR DE SUSTENTABILIDADE ORGANIZACIONAL A capacidade de resiliência das empresas é um tema recorrente, segundo Hamel & Välikangas (2003, p. 32): “Existe uma lacuna de resiliência. A velocidade com que o mundo fica turbulento é maior do que aquela com que as organizações adquirem resiliência.” Hoje, mais do que nunca, é fundamental as empresas incorporarem os processos de mudança e se ajustarem a ela. Acabou o período em que um executivo podia tratar uma determinada estratégia ou modelo de gestão de negócio como sendo uma condição eterna, baseada apenas na sustentabilidade empresarial vigente em determinado período. Desde o advento da globalização, as condições e as imposições de um mundo em mudou consideravelmente os paradigmas e os modelos de gestão, a forma de se relacionar com os diversos públicos de interesse e de relacionamento. Tal razão se deve ao fato dos colapsos de desempenho financeiro e empresarial vir aumentando muito, seja diante das mudanças que vêm ocorrendo no mundo globalizado ou mesmo diante das crises mundiais, principalmente após a última grande crise no final de 2008. Mesmo 83 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 empresas de sucesso mais duradouro sentem mais dificuldade para obterem retornos sempre superiores. Conforme Hamel & Välikangas (2003, p.33): Em tempos menos turbulentos, empresas estabelecidas podiam apostar no embalo para sustentar seu sucesso. Algumas como AT&T e American Airlines, eram protegidas da concorrência pela regulamentação e por práticas de oligopólio. Outras, como General Motors e Coca-Cola, contavam com paradigmas relativamente estáveis: há mais de meio século o automóvel tem quatro rodas e motor a combustão, e o consumidor bebe refrigerantes à base de cafeína. Já o McDonald’s e a Intel tinham a formidável vantagem do pioneirismo. Em setores de uso intensivo de capital, como o petrolífero e o aeroespacial, enormes barreiras à entrada protegiam os líderes. Uma condição essencial faz com que este status quo venha ser alterado, pois a necessidade da resiliência empresarial já é um fato duradouro diante das diversas mudanças advindas e agregadas diante do processo de globalização. Rupturas com modelos previamente estabelecidos, mudanças relativas aos padrões tecnológicos, o advento da tecnologia da informação de forma ampla e disseminada, onde todos os processos se interligam e se tornam interdependentes (RODRIGUEZ, 2002). Da mesma forma, os respectivos padrões de consumo também foram modificados em decorrência da exaustão do meio ambiente. O foco de desenvolvimento de produtos e serviços disponibilizados a clientes e consumidores, e o respectivo nível de exigência decorrente destes processos de mudança constituem uma das dimensões primordiais para o sucesso das transformações empresariais diante das mudanças globais, baseado na visão de Vinha (In MAY et al., 2003). Esta orientação acarreta uma geração de novas linhas de produtos e de serviços para os clientes, visando terem uma nova conceituação de valor agregado ao produto e aos serviços, assim constituindo uma nova forma de consumo para este segmento de público de relacionamento. Com base em Hamel & Välikangas (2003, p.34), poderia ser definida como resiliência empresarial: Resiliência estratégica não é reagir a uma crise isolada. Não é se recuperar de um revés. É, antes, a capacidade de se antecipar – e se ajustar – continuamente a profundas tendências seculares capazes de abalar de forma permanente a força geradora de lucros de um negócio. Resiliência é a capacidade de mudar antes que a necessidade se torne imperativa. Segundo Capra (2005, p. 148), essa nova economia, onde o capital funciona em tempo real, onde as fronteiras são virtuais, o poder do capital é mais entrelaçado e as redes financeiras internacionais são constituídas. Tudo isto faz com que este capital possa trafegar rapidamente por todo o mundo, buscando cada vez mais novas 84 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 oportunidades de investimento e de ampliação dos negócios. O processamento e a velocidade do processamento de informações e o desenvolvimento tecnológico para dominar, ou melhor, intervir nos processos desta tecnologia, principalmente tendo a gestão do conhecimento como um meio eficaz de dominação. Tudo isto faz com que essa inovação tecnológica venha ter um papel extremamente importante no processo da competividade empresarial. A inserção da informática, enquanto processo de rede mundial, faz com que haja uma revolução poderosa, mundial, em que não havendo a necessidade de algo mais concreto em termos de fronteiras, a abrangência acaba sendo muito mais poderosa, ressurgindo assim um capitalismo mais poderoso, rejuvenescido, flexível, diante de toda uma tecnologia à disposição e enormemente ampliada. Da mesma forma, ainda em relação às condições do status quo de tempos passados, as grandes mudanças geopolíticas fizeram com que países, até então em condições integrais de subordinação, passassem a integrar grupos de países relevantes, apesar de estarem enquadrados como em desenvolvimento. Assim, se ajustam aos processos de mudança das estruturas organizacionais, políticas e econômicas, e ampliaram suas ações de forma mais estável. Contribuindo para uma mudança da ordem econômica, das relações de poder e, consequentemente, da submissão aos padrões convencionados, alterando esta relação de poder. São países, como o Brasil, em que os processos de resiliência empresarial vêm se ajustando e acarretando uma mudança significativa relacionada aos padrões do consumidor e de produção, onde a exigência é maior quanto maiores forem os esgarçamentos das forças de coalizão, seja no âmbito social, ambiental e econômico. Dentre estes fatores e considerando uma era turbulenta, o capitalismo tecnológico exige mudanças, advindas do processo de globalização (CAPRA, 2005). Uma instituição pode tropeçar pela intensificação de suas ações de marketing para segmentos específicos de clientes, sem levar em consideração a inserção de novos parceiros futuros na cadeia de relacionamento de partes interessadas e na manutenção quanto ao uso dos recursos de rotina. E, mais ainda sem se preocupar na inovação de novos canais, por exemplo. Mas, nem sempre, um aporte menor de recursos (HAMEL & VÄLIKANGAS, 2003). Já uma idéia inovadora nem sempre atrai, pois onera o envolvimento e o processo decisório. As organizações devem se antecipar e estarem preparadas para as circunstâncias diante destas mudanças assim como em vir a 85 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 remodelar seu processo de gestão (RODRIGUEZ, 2002). Vide os impactos, relativamente recentes, desta não concordância ou de não ajuste por parte de megaempresas norte-americanas, como a General Motors, a Ford e a IBM, dentre tantas outras, que não souberam administrar o processo de mudança, as exigências decorrentes destas necessidades e as transformações e que tiveram alterações significativas em seu modelo de negócio. Da mesma forma, empresas como a Coca-Cola, que vem buscando se concentrar em conquistar o mercado de bebidas não gasosas. Ou então, o McDonald’s que vem tentando se ajustar às realidades regionais e locais onde possui franquias, mudando um pouco aquele conceito somente de hambúrgueres e suas variações, de forma que se adapte às mudanças e as exigências do mercado e de forma a retomar o crescimento (HAMEL & VÄLIKANGAS, 2003). É o caso também das indústrias farmacêuticas, desenvolvendo novas pesquisas, diante de novas regulamentações e tendo a inserção dos medicamentos genéricos, impondo e mudando a ordem social neste sentido. O mesmo ocorre com as empresas petrolíferas, mudando a gestão, transformando atividades, de empresas de petróleo para empresas de energia, mas sem perder o caráter da extração fóssil. Embora com maior controle no processo extrativista. Deste modo, dentro de uma diretriz de não alinhamento às questões de resiliência, segundo Rodriguez (2002, p.43), menciona: Na maioria das vezes, a introdução de drásticas mudanças na empresa chega somente no momento em que a mesma precisa sobreviver, ou seja, quando se encontra no limite entre a vida e a morte. O ritmo crescente de mudanças, e de forma contínua, exige que a evolução estratégica seja realmente acelerada no aspecto da vantagem competitiva, reforçando o aspecto da resiliência. Por isso, empresas tradicionalmente de sucesso, que sempre tiveram um ambiente propício e com poucas condições de risco nos negócios, se ressentem bastante diante destas necessidades de mudança. Assim, reforçando as premissas, e em consonância com as questões inerentes à resiliência, segundo Hamel & Välikangas (2003, p. 35), temos: A resiliência está ligada à capacidade de reconstrução contínua. É inovar em relação aos processos e comportamentos organizacionais que favorecem sistematicamente a perpetuação em detrimento da inovação. 86 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 As empresas, sistematicamente, devem ter uma atitude positiva diante do posicionamento de seu negócio e ante a necessidade de mudanças. Segundo Bezerra (In STAREC et. al., 2006, p.88): “O planejamento estratégico faz com que a empresa olhe para o futuro e vá ao seu encontro sem sofrer os percalços e dissabores de uma caminhada sem bússola ou mapa”. Ou seja, uma concretização maior e de forma mais consistente quanto ao entendimento e à atuação diante das situações de gerenciamento de riscos, seja no que diz respeito diante de mudanças conjunturais, de fatores climáticos, de cunho político ou de ordem econômica ou ambiental (MAHONEY, 2007). Com isso, as turbulências diante de um mundo globalizado estarão mais claramente identificadas por parte da organização, ampliando o processo de resiliência, impactando menos as questões comportamentais na organização. Portanto, a necessidade de uma boa governança se apoia em fortes interações entra a sociedade civil, os agentes do mercado e as estruturas do governo (ZAPATA, p.12, 2009). Na visão de Neto; Brennand (2004), a questão da sustentabilidade das organizações passa pela gestão das três dimensões, econômica, ambiental e social, mas também pelas atitudes e posturas diante do desenvolvimento dos negócios: A atitude socialmente responsável da empresa revela a sua consciência social, motivada pela sua compreensão da gravidade do problema social, da importância da população-alvo deste problema e pelo desejo de transformação social da comunidade-alvo do problema. No âmbito da proteção ao meio ambiente, as empresas devem adotar mecanismos relativos à gestão do consumo de energia e quanto ao uso e manejo dos recursos naturais assim como uma gestão eficiente no uso das matérias-primas e no tratamento dos resíduos. Mas também no que tange à gestão dos produtos ecologicamente corretos; de resíduos e efluentes; e na gestão da saúde ambiental (MAY et al., 2003). Já em relação ao desenvolvimento de cunho econômico, compete às empresas: processo de gestão democrática do trabalho, gerando novas oportunidades de emprego e de renda; gestão e fomento de economia popular; o mesmo tipo de gestão na rede de fornecedores, clientes e parceiros; e administração consciente quanto à política de preços quanto a seus serviços e produtos (RODRIGUEZ, 2002). 87 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 No que tange ao campo da equidade social, os desafios sempre são maiores, pois dependem de um maior engajamento e comprometimento, não só pelas organizações e sua cultura organizacional, mas junto aos diversos públicos e as partes interessadas (stakeholders). E, também, onde já não há espaço para o marketing social, isoladamente, já que as outras duas dimensões passam muito mais por questões relativas aos ativos tangíveis: gestão das ações éticas e adoção de práticas pertinentes, de transparência, honestidade, abolindo a corrupção como prática e costume cultural; gestão participativa dos negócios; processos de gestão referentes à mobilidade social, à diversidade cultural e étnica; à forma de comunicação e de governança junto às parte interessadas e de relacionamento (público alvo); retenção de talento e do conhecimento; desenvolvimento de programas e projetos sociais de combate à miséria e à pobreza, geração de renda e empregabilidade; e gestão cultural no combate ao preconceito social (NETO; BRENNAND, 2004). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se pode ver neste presente estudo, o movimento de mudança gera fatores relevantes, constantes, ágeis e consistentes diante do entendimento da concepção do que é o processo de sustentabilidade das organizações. Em que a necessidade de mudança e ajustes venha ser de forma bem mais ampla em relação à equidade das diversas variáveis, dos cenários que se desdobram diante das organizações assim como em relação ao processo de comunicação integrado e também o entendimento pelas partes interessadas e os diversos públicos de relacionamento, pois é bem mais abrangente sob o aspecto das relações seja interna, externa e também institucional. Há a necessidade de que o foco das dimensões seja discutido de forma bem mais ampla, saindo apenas do entendimento de que a dimensão principal seja o meio ambiente para algo bem mais amplo, em que as vertentes como a gestão ambiental, o crescimento econômico, a equidade social e as relações humanas sejam elementos fundamentais para o desenvolvimento sustentável das organizações e que a resiliência empresarial seja um aliado constante no processo decisório e de gestão das empresas. Bem engajada e compreendida passa a ser um importante elemento de mudança na gestão empresarial, pois propicia o fortalecimento das relações culturais das organizações, reforça cada vez 88 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 mais as questões relacionadas à sustentabilidade e no âmbito destas, a da própria cultura organizacional e as relações junto aos diversos públicos de relacionamento e partes interessadas (stakeholders). Por outro lado, a dificuldade de remodelar o processo de gestão de seus negócios decorre pelo fato de as empresas não possuírem a flexibilidade e a velocidade necessária para agir, atuando de modo pró-ativo, segundo a necessidade e o envolvimento junto às diversas partes, as tendências de mercado, sob a ótica das respectivas condições econômicas e também diante dos possíveis impactos em momentos de grandes crises econômicas, afetando as condições de resiliência empresarial. Pois, as metas são definidas. Em geral, de forma estática. Ou seja, sem que se vislumbre que existe uma forte necessidade de constante mudança e agilidade no modo de pensar e no modelo estratégico e mental do desenvolvimento e de planejamento estratégico do negócio. Deste modo, há a necessidade de uma forma mais atuante, eficiente, de inovação nas ações organizacionais e do monitoramento destas. Assim, a gestão de risco dos negócios e as metas decorrentes do planejamento estratégico devem estar sempre em consonância às avaliações constantes de seus processos e da análise efetiva por meio da melhoria contínua. Inclusive inferindo positivamente na cultura organizacional da empresa. Se o esforço de renovação, ou seja, a resiliência atuando como fator indutivo diante de uma situação ou de uma efetiva crise de desempenho, acarreta uma situação menos penosa diante de um processo de mudança ou de transformação na gestão empresarial. Daí a necessidade de revisão constante de seu planejamento estratégico sempre sob a ótica de possíveis mudanças conjunturais, antevendo as matrizes de percepção de risco, prevendo a construção de um futuro mais longevo e sustentável. E importante sobre estes aspectos é não se prender a condições do passado ou a situações de estabilidades de um período anterior, mas sim por conta de mudanças e de transformações atuais, se ajustando, canalizando o conhecimento usando a comunicação de forma integrada e estratégica, articulando junto às partes interessadas. O processo de análise contínua abrange mudanças e propicia um maior senso crítico, gradativo na gestão empresarial de forma mais organizada, mais transparente e mais equânime também de forma geral. E, isto seja no processo institucional e 89 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 corporativo, inferindo na cultura organizacional, mas, principalmente, junto aos seus diversos públicos de relacionamento e partes interessadas (stakeholders), acarretando uma percepção de imagem e identidade corporativa mais forte, propiciando uma possibilidade de menor risco, melhor investimento e retorno mais sustentável. REFERÊNCIAS BARROS, Betânia Tanure de; PRATES, Marco Aurélio Spyer. O Estilo Brasileiro de Administrar. São Paulo: Editora Atlas, 1996. BARBOSA, Lívia. Cultura e Empresas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2002. BARRETO, Aldo de Albuquerque. A Condição da Informação. In STAREC, Cláudio; GOMES, Elizabeth Braz Pereira; CHAVES, Jorge Bezerra Lopes. “Gestão Estratégica da Informação e Inteligência Competitiva”. 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A pesquisa qualitativa de caráter exploratório utilizou-se de uma revisão bibliográfica, como, também, de uma análise empírica em um blog; para compreender o evento. Palavras-chave: Intimidade. Blog. Mercadoria. Narrativas. Abstract: This paper seeks to understand how the idea of commodification can threaten intimate life. In this sense, seek to understand how blogs - an update of the daily - allow individuals to expose their intimacy, and understand the need to become all merchandise, commodifying even intimacy. Therefore, one can determine, at least in the virtual plane, many intimacies are exposed, trying to get them some kind of reward, since the stuff even symbolic. A qualitative exploratory research we used a literature review and an empirical analysis on a blog, to understand the event. Keywords: Intimacy. Blog. Merchandise. Narratives. 9 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas do Consumo PPGCOM – ESPM-SP, vinculado ao Grupo de Pesquisa NICO; Bolsista PROSUP/CAPES, e-mail: [email protected]. 93 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 1. INTRODUÇÃO Um dos temas recorrentes de nossa sociedade, hoje, pauta-se com relação ao excesso de exposição das pessoas, principalmente, nas mídias sociais. Constantemente, reportagens10 apontam para esse fenômeno. A qualquer ponto que se direcione o olhar, há uma câmera apontada para registrar um momento de felicidade, uma confraternização, um fato inusitado, um descaso público, enfim, um acontecimento. Nessa profusão de imagens, comentários, representações e narrativas que circulam pela rede mundial de computadores, indagações, por exemplo, acerca da intimidade são trazidas à luz das discussões no campo acadêmico. Recentemente, um aplicativo lançado para o público feminino causou grande burburinho entre os internautas. Conhecido por Lulu, o aplicativo possibilitava que esse público, e somente ele, avaliasse seus parceiros em alguns quesitos, entre eles, desempenho sexual. Entre os muitos envaidecidos por sua considerável nota, logo, decorrente de sua performance no mundo real, outros mais reticentes indagavam a propulsão de informações tidas como pessoais. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o estudante Felippo de Almeida Scolari, que processou o aplicativo por constar informações que, segundo o próprio estudante, perceber “que havia informações íntimas em um aplicativo que eu jamais baixei, para qualquer pessoa poder ver”11. Se a exposição da intimidade já repercute vários debates e discussões, o que dizer, por exemplo, quando essa intimidade é negociada e/ou comercializada? No início, revistas como Playboy, G Magazine, entre outras, traziam pessoas tidas como de destaque na mídia, em fotos, além de sensuais e sexuais, apresentavam-nos ‘da forma como que vieram ao mundo’. Para isso se ganhavam cifras de reais. E o que dizer então dos “paparazzi”, que de uma forma mais contida, contudo não menos invasiva, tentam capturar detalhes da intimidade de celebridades e comercializá-los? Até agora indagou-se sobre uma possível intimidade que foi exposta por outrem, no entanto é preciso compreender também quando o indivíduo resolve se expor, e por conseguinte, fazer receita disso. Dessa forma, é possível discutir essa problemática 10 MELO, Itamar. Jovens ultrapassam os limites na Internet e expõem a intimidade na rede. Jornal Zero Hora. 2010. Disponível em:<http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2010/08/jovens-ultrapassam-os-limites-na-internete-expoem-a-intimidade-na-rede-2998264.html>. Acesso em: 18 dez. 2013. 11 FINCO, Nina. 'Fiquei revoltado com a exposição da minha intimidade', diz estudante que processa o aplicativo Lulu. Época. 2013. Disponível em:<http://epoca.globo.com/vida/noticia/2013/11/fiquei-revoltado-com-exposicaoda-minha-intimidade-diz-estudante-que-processa-o-baplicativo-lulub.html>. Acesso em: 18 dez. 2013. 94 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 como uma atividade empreendedora ou uma nova possibilidade de trabalho pelas mídias sociais. Para entender quanto vale uma intimidade, lança-se a seguinte questão: em que momento a vida íntima, hoje, pode ser usada como mercadoria? Buscando elucidar a presente temática, tendo como base uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório será proposto analisar o Blog do Kadu, um blog de moda masculina. Para isso delimitou-se como amostra as postagens oriundas do mês de dezembro de 2013, selecionadas a partir do repertório imagético em que aparecia o blogueiro. O propósito de usá-lo dá-se por sua visibilidade ser oriunda da exposição cotidiana do próprio blogueiro, ou seja, Kadu mune-se de sua vida privada (intimidade) para expor tendências de moda, assim como galgar anunciantes para suas postagens. Ajudando a corroborar esse pensamento, será desenvolvida uma pesquisa bibliográfica, utilizando autores como Leonor Arfuch e Paula Sibilia em um debate acerca de narrativas biográficas e suas exposições, além de textos como de João Freire Filho, André Gorz, Zygmunt Bauman, propondo um debate acerca de empreendedorismo, performance e da necessidade de nos ‘tornamos mercadorias desejáveis’ nesse sistema capitalista. Das inúmeras formas possíveis de exposição da intimidade demarca-se a modernidade como início das discussões, principalmente com o surgimento do capitalismo que ensejou nos sujeitos a possibilidade de uma identidade individual que se mostrava para os indivíduos daquela sociedade. Mediante a isso se fará uma breve comparação entre os diários íntimos, uma de tantas formas modernas de constituição de identidade, e essa possível evolução dos diários, agora para o plano virtual, propondo essa visão dicotômica, onde o primeiro buscava o resguardo, o íntimo, o seguro e o segundo pela procura do público, do livre, do compartilhado. Duas escritas feitas a partir de si, mas em que uma buscava pelo resguardo, a outra, e contemporânea, a busca pelo público e ampliando as discussões, formas de se rentabilizar essa exposição de uma intimidade. 2. A EXPOSIÇÃO DO EU NO CIBERESPAÇO Há uma considerável profusão de mídias sociais virtuais. Em meio a essa 95 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 propulsão de uso, até mesmo a ideia de panaceia12 dessas mídias existentes; entre aquelas que rapidamente conseguiram sua ascensão, como também aquelas que ao longo do tempo, foram esquecidas, os blogs, uma das primeiras ferramentas de interação, compartilhamento e expressão, permitiram e permitem que qualquer indivíduo se expresse na web. Muitas vezes usados como os substitutos, ou melhor, aprimoramento dos diários íntimos, os blogs foram os propulsores nessa proliferação da intimidade para o maior contingente possível. No entanto Arfuch (2010, p. 35) aborda que essa ideia de um eu narrador da própria vida “é um fato que remonta há pouco mais de dois séculos somente, indissociável da consolidação do capitalismo e do mundo burguês”. Arfuch (2010, p. 15) relata que esses gêneros narrativos13, desde seu surgimento, davam indicativos “dessa obsessão por deixar impressões, rastros, inscrições, dessa ênfase na singularidade, que é, ao mesmo tempo, busca de transcendência”. Essa construção do eu, logo, de uma individualidade proporcionada pela modernidade – de um projeto burguês –, foi, como salienta Arfuch (2010): Submetido à cisão dualista (público/privado, sentimento/razão, corpo/espírito, homem/mulher), que precisava definir os novos tons da afetividade, o decoro, os limites do permitido e do proibido e as incumbências dos sexos, que, no século XIX, se consolidariam sob o signo da desigualdade, com a simbolização do feminino como consubstancial ao reino doméstico (ARFUCH, 2010, p. 36). Dialogando com a citação anterior, Sibilia (2008) reforça a importância que recebeu o lar nesse processo de modernização, sendo intensificado, a partir do século XIX. A autora enfatiza que “o lar foi se transformando no território da autenticidade e da verdade: um refúgio onde o eu se sentia resguardado, um abrigo onde era permitido ser si mesmo” (Ibidem, p. 62-63). Vale destacar como esse processo de ‘recolhimento’, de ‘domesticação’, tornou-se objeto de desejo, para os indivíduos, principalmente, para os burgueses da época. 12 Cf. Pinheiro, 2013. Arfuch (2010, p. 15) enquadra nessa perspectiva, gêneros, como: biografias, autobiografias, confissões, memórias, diários íntimos, correspondências. 13 96 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Concatenando com os gêneros narrativos, se a autobiografia permitiu esse desdobramento “da estirpe familiar à nação” (ARFUCH, 2010, p. 143), em contrapartida, os diários íntimos corroboraram a ideia de resguardo, de uma vida doméstica, promovendo uma aproximação maior desse eu. Com relação aos diários íntimos, Arfuch (2010), assim os descreve: [De] Uma escrita desprovida de amarras genéricas, aberta à improvisação, a inúmeros registros da linguagem e do colecionismo – tudo pode encontrar lugar em suas páginas: contas, bilhetes, fotografias, recortes, vestígios, um universo inteiro de ancoragens fetichistas –, sujeita apenas ao rimo da cronologia, sem limite de tempo nem lugar. O diário cobre o imaginário de liberdade absoluta, cobiça qualquer tema, da insignificância cotidiana à iluminação filosófica, da reflexão sentimental à paixão desatada (ARFUCH, 2010, p. 143). Estreitando as discussões, Arfuch (2010) salienta que, entre os gêneros biográficos que despontaram na modernidade, os diários podem ser considerados os precursores da intimidade midiática, isso porque “o diário cobiça um excedente, aquilo que não é dito, solicita uma forma de salvação. De alguma maneira, contém o sobrepeso da qualidade reflexiva do viver” (Ibidem, p. 145). De certa forma, os diários aguçavam a curiosidade alheia, a curiosidade em saber o que se passava na intimidade daquele que o escrevia. Temática essa similar, que pode ser exemplificada pelos indivíduos que consomem revistas tidas de fofoca. Assim, se as mídias tradicionais corroboravam a favor da exposição da intimidade de algumas celebridades, Arfuch (2010) vê, com o advento da internet, a possibilidade da intimidade até então encontrada e guardada nos diários íntimos, se espraiar para a sociedade, pois: A internet conseguiu, assim, popularizar novas modalidades das (velhas) práticas autobiográficas das pessoas comuns, que, sem necessidade de mediação jornalística ou científica, podem agora expressar livre e publicamente os tons mutantes da subjetividade contemporânea (ARFUCH, 2010, p. 150). Destarte, o advento e a posterior disseminação da internet, culminaram para que essa vida íntima e doméstica migrasse cada vez mais para plano virtual. Trazendo para uma contextualização mais contemporânea, Sibilia (2008), em seu livro O show do eu: intimidade como espetáculo, aborda, principalmente, como os blogs facilitaram a 97 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 exposição do eu. Com relação aos blogs e até mesmo os diários íntimos, Sibilia (2008) aborda que: Os ‘diários íntimos’ publicados na web, nos quais os usuários da internet contam suas peripécias cotidianas usando tanto palavras escritas como fotografias e vídeos. Trata-se dos famosos weblogs, fotologs e videologs, uma série de novos termos de uso internacional cuja origem etimológica remete aos diários de bordo mantidos pelos navegantes de outrora. É enorme a variedade dos estilos e assuntos tratados nos blogs de hoje em dia, embora sejam maioria os que seguem o modelo ‘confessional’ do diário íntimo. Ou melhor: do diário éxtimo, de acordo com um trocadilho que procura dar conta dos paradoxos dessa novidade, que consiste em expor a própria intimidade nas vitrines globais da rede (SIBILIA, 2008, p. 12-13). Amaral; Recuero; Motardo (2009, p. 29) reforçam a ideia do uso dos blogs como diários virtuais. Na concepção das autoras, “esses blogs eram utilizados como espaços de expressão pessoal, publicação de relatos, experiências e pensamentos do autor. Ainda hoje, o uso do blog como um diário pessoal é apontado por muitos autores como o mais popular uso da ferramenta”. Nesse contexto, quando as autoras enfatizam que a maioria dos blogs encontrados hoje na internet ainda seguem o modelo confessional dos diários íntimos, Sibilia (2008) traz uma conceituação, enfatizando que esses blogs seriam diários éxtimos, ou seja, esses blogueiros oferecem cotidianamente narrativas de sua intimidade, ou como elencou a autora, sua extimidade. Assim, “a velha intimidade se transformou em outra coisa. E agora está a vista de todos”. (Ibidem, p. 78). Na busca por audiência, esses blogs, assim como a intimidade e a subjetividade, acabam se tornando mercadorias. Segundo Sibilia (2008), No forcejar dessa negociação, as subjetividades podem se tornar mais um tipo de mercadoria; um produto dos mais requeridos, como marcas, que é preciso colocar em circulação, comprar e vender, descartar e recriar seguindo os voláteis ritmos das modas (SIBILIA, 2008, p. 274-275). Para corroborar com o entendimento da proposta deste artigo, a próxima seção se destinará a entender como esse ‘novo espírito do capitalismo’, impregnado em nossa cotidianidade, contribui para essa ideia de nos ‘tornarmos mercadorias desejáveis o tempo todo’, buscando assim, a máxima performance em todas as ações. 3. A PERFORMANCE E A MERCANTILIZAÇÃO DO EU 98 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O diálogo proposto até o momento buscou apresentar a relevância dos blogs como ‘fomentadores’ e, ao mesmo tempo, disseminadores de intimidade, criando, conforme apresentou Paula Sibilia, uma extimidade – uma intimidade, agora visível a todos. Ainda na última parte indagou-se que, no meio de tantos blogs que, constante e cotidianamente oferecem ao mundo a intimidade daquele que o escreve, ou seja, uma intimidade que é para ser vista, lida, descoberta, propagada, requer algumas, por assim dizer, estratégias que atraiam e retenham a atenção dos internautas. Querendo subentender – e começando esta seção –, que esses blogs e essas intimidades precisam, quase como que devessem, tornar-se mercadorias para os demais que as consumirão. Bauman (2008), nesse sentido, relata que parte dessa proposição de nos elevarmos à condição de mercadorias vendáveis advém dessa sociedade de consumidores, ressaltando que o papel do consumo nessa sociedade “não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas a comodificação ou recomodificação do consumidor” (Ibidem, p. 76). Ao trazer a ideia de comodificação, o autor enfatiza que o termo “precede o consumo e controla o acesso ao mundo dos consumidores. É preciso se tornar uma mercadoria, para ter uma chance razoável de exercer os direitos e cumprir os deveres de um consumidor” (BAUMAN, 2008, p. 88-89). Nesse sentido, Bauman reforça a ideia de que, para pertencer a essa sociedade, hoje, do consumo, é preciso, antes de tudo, tornarse uma mercadoria e, ainda, vendável. Seguindo por esse percurso de entender o indivíduo como mercadoria desejável, Gorz (2005), no livro O imaterial: conhecimento, valor e capital, em um determinado excerto, apresenta a ideia de que o indivíduo, além de se portar como mercadoria, precisa assumir, até mesmo, uma postura organizacional, ou seja, cada indivíduo deveria se portar como uma organização, buscando a máxima eficiência em suas atividades. Isso remete à dilatação das práticas organizacionais nas relações cotidianas. Segundo o próprio autor: A pessoa deve, para si mesma, tornar-se uma empresa; ela deve se tornar, como força de trabalho, um capital fixo que exige ser continuamente reproduzido, modernizado, alargado, valorizado. Nenhum constrangimento lhe deve ser imposto do exterior, ela deve ser sua própria produtora, sua própria empregadora e sua própria vendedora, obrigando-se a impor a si mesma constrangimentos necessários para assegurar a viabilidade e a competitividade da empresa que ela é (GORZ, 2005, p. 23). 99 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Contribuindo, Freire Filho (2011), ao analisar alguns discursos que circulam tanto pela nossa sociedade quanto pela mídia (o autor analisou peças publicitárias, como também, livros de autoajuda), mostra como esse espírito do capitalismo vigente busca esse perfil performático nos indivíduos, e como aquelas relações dicotômicas criadas, principalmente, na modernidade, vão sendo diluídas, ênfase aqui, na relação profissional e privado. Para o autor (idem, p. 28), “rompem-se, assim, as fronteiras entre o profissional e o privado, o trabalho e o afetivo. Como num encontro de almas, pulsões de expansão individual vão inserir-se, livremente, no circuito organizacional de busca da ‘alta performance’”. Essa diluição, ou até mesmo, borramento das fronteiras, conforme mencionado anteriormente, permite, segundo Freire Filho (2011, p. 29) deixar o indivíduo “em posição de vantagem nas relações de concorrência que se disseminam – sem exagero – por todas as esferas da vida. Gorz (2005, p. 25) justifica essa possibilidade de desempenho em todas as esferas da vida, enfatizando que esse ato performático se dá, pois “tudo é medido em dinheiro”. E acrescenta, utilizando aqui, de forma metafórica, que “o futuro pertence aos autoempreendedores” (Ibidem, p. 24). Essa ideia de performance, advinda do processo de mercadorização do indivíduo e da decorrente mediação exercida pelo dinheiro, pode ser explicada por conta desse espírito do capitalismo no qual vivemos. Max Weber, ao ensaiar sobre a ética protestante há mais de um século, dava indícios da existência de um espírito do capitalismo. Em seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, pode-se entendê-lo como “o capitalismo vivenciado pelas pessoas na condução metódica da vida de todo dia. Noutras palavras, o ‘espírito’ do capitalismo como conduta de vida: Lebensführung” (WEBER, 2004, p. 7). Com relação ao espírito do capitalismo, Boltanski e Chiapello (2009) reforçam, salientando que o termo É justamente o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ação e as disposições coerentes com ela. Essas justificações, sejam elas gerais ou práticas, locais ou globais, expressas em termos de virtude ou em termos de justiça, dão respaldo ao cumprimento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo geral, à adesão a um estilo de vida, em sentido favorável à ordem capitalista (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 42). 100 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Quando Boltanski e Chiapello (2009) ressaltam que vivemos um novo espírito do capitalismo, Freire Filho (2011) apresenta que, da mesma forma que esse novo espírito está presente nos ambientes corporativos, espraia-se para o ambiente familiar, criando, conforme salientaram anteriormente Boltanski e Chiapello, um novo estilo de vida, regrado por essa ordem capitalista. Esse novo estilo de vida, além de buscar encorajar as pessoas a se tornarem mais “autônomas” (FREIRE FILHO, 2011, p. 35), trabalhando nessa essência de performance, pode-se até mesmo dizer na ideia de obsolescência forçada com relação aos indivíduos, cobrando deles constante renovação e entrega por diferencial, ante os demais concorrentes, logo, uma ideia do mundo corporativo capitalista. Partindo para a empiria, a presente discussão corroborará com o entendimento dessa ideia de performance, cristalizada em nossa sociedade, demonstrando como pode existir uma ideia, tanto de performance como até mesmo de mercadorização da intimidade em blogs. 4. BLOG DO KADU Como aparece no próprio cabeçalho do site, o Blog do Kadu é um blog de “moda para homens com estilo, bom humor e atitude!” (BLOG DO KADU14). No entanto, Blog do Kadu não é simplesmente uma logomarca para mais um blog de moda no ciberespaço. Fazendo jus ao nome, é de fato, o blog do Kadu. Atentando-se para esse jogo de palavras, algo até mesmo proposto pelo próprio blogueiro, pelo fato de, antes de ser entendido como um espaço para divulgação de marcas e tendências do universo da moda, é uma vitrine virtual de exposição, como expôs Bauman (2008), dessa mercadoria vendável, chamada Kadu. Um primeiro fato que justifica essa ideia do blog como vitrine pode ser encontrada na aba, Kadu Dantas. Ao clicá-la, aparece uma breve descrição de quem é a pessoa de trás da tela. Contudo, ao confrontar com o endereço eletrônico disponível para essa aba15, percebe-se que o endereço apresenta a frase ‘sobre o blog’, e, quando 14 15 Blog do Kadu. Disponível em:<http://kadudantas.com.br/>. Acesso em: 20 dez. 2013. Disponível em:<http://blogdokadu.com/sobre-o-blog/>. Acesso em: 20 dez. 2013. 101 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 clicado, consta uma breve biografia do blogueiro, ou seja, quem está sendo apresentado ao mundo, antes do blog é a pessoa. Não desenvolvendo de maneira explícita uma análise de discurso, algumas falas do blogueiro são relevantes para a pesquisa. Ainda abordando a questão da performance, contextualizando-a e comparando-a com o mundo corporativo, uma mercadoria consegue maior visibilidade perante as demais, quando entrega alguns produtos e/ou serviços adicionais, é o que ocorre com Kadu, quando se apresenta. Ao abordar que o começo de sua carreira é marcado por um convite para trabalhar com a apresentadora Ana Maria Braga, Kadu dá indicativos que, mesmo quando era inexperiente para a época, já dava indícios de que possuía expertise na área. De certa forma, e adotando uma metáfora: ‘a mercadoria acabou recebendo o selo de garantia de uma grande organização reguladora’. Com relação às postagens, percebe-se nelas a ideia de diário íntimo, ou, como apresenta Sibilia (2008), diário éxtimo, de moda do Kadu. Os textos muitas vezes relatam o dia a dia corriqueiro e ‘corrido’ do blogueiro. Na postagem16 do dia 18 de dezembro é possível visualizar a questão levantada. “Hi, Buddies, Eita correria esse final de ano! Estou quase enlouquecendo pra deixar tudo organizado para o BKFWTOUR. Por isso, hoje deixo vocês por aqui. É isso! Have a nice day!”. Dando continuidade, percebe-se nas postagens uma ênfase maior nas imagens que são disponibilizadas; de Kadu apresentando o traje do dia, do que propriamente o que é escrito. Nesse sentido, Sibilia (2006, p. 9) relembra que, na 16 Disponível em:<http://blogdokadu.com/2013/12/18/todays-outfit-377/>. Acesso em: 20 dez. 2013. 102 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 realidade, “trata-se de uma escrita com fortes marcas de oralidade, que não remete a outros textos nem se apoia em parâmetros tipicamente literários ou letrados, mas abunda em referências à cultura de massa e ao mercado de consumo”. A autora (2008, p. 48) reforça que essa ideia de redução no texto e enfoque nas imagens se dá, pois “além de mais ‘interativos’, os sujeitos estão-se tornando ‘mais visuais do que verbais’”. Indo ao encontro daquilo que Sibilia chamou a atenção, referente à maior visualidade, hoje dos sujeitos, um dos diferenciais do blog é o fato de as tendências apresentadas por Kadu serem pertencentes ao ‘próprio guarda-roupa’ do blogueiro. Suas postagens mostram tendências usadas por ele próprio. Essa prática é quase que uma padronização do site, que busca apresentar quase todas as tendências, pelo próprio blogueiro servindo como modelo (Figura 1). FIGURA 1 – TENDÊNCIAS APRESENTADAS POR KADU Fonte: Elaborado pelo autor. Outro fato relevante que pode ser detectado no blog é como há a apropriação do espaço público como cenário, ajudando a compor e expor a cotidianidade e a intimidade de Kadu. Trazendo algumas discussões de Leonor Arfuch 103 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 acerca dessa relação entre o público e o privado, e até mesmo podendo usar como pergunta de partida para futuras pesquisas: até que ponto o público corrobora com a construção de uma identidade e intimidade, ou como apresenta a própria autora (2010, p. 96), de que modo podem se tornar “‘públicas’ certas pessoas e ‘privadas’ certas cenas coletivas”? Levantando essa discussão para uma possível eventualidade, e voltando a falar da intimidade, ou melhor, da extimidade (SIBILIA, 2008), a última postagem17 analisada mostra enfaticamente essa ideia de uma intimidade que pode ser exposta. Nela, Kadu, justificando que decorrente de inúmeros pedidos, resolveu mostrar tanto os produtos que usa, quanto o cabeleireiro que faz seu penteado. É curioso notar que, por assim dizer, foi preparado todo um editorial que mostra e demonstra, passo a passo, como o blogueiro chega àquele penteado. Mostrando em inúmeras imagens Kadu cortando o cabelo. Não se pode deixar de apresentar, nessa postagem, as ‘marcas parceiras’. Dessa forma, todos os produtos que são apresentados pelo blogueiro como potenciais produtos que usa, ao final da postagem, aparecem endereços eletrônicos de lojas virtuais que trabalham com esses produtos. Essas parcerias entre Kadu e as marcas aparecem com frequência. Nessa questão de parcerias com marcas, há no próprio site, um espaço destinado para o popular ‘anuncie aqui’ (Figura 2). O instigante, e algo que pode ser constatado, é o desejo que algumas pessoas e marcas têm em anunciar no blog (Figura 3). FIGURA 2 – ANUNCIE AQUI - Fonte: Elaborado pelo autor. 17 Disponível em:<http://blogdokadu.com/2013/12/19/kadus-hair-2/>. Acesso em: 20 dez. 2013. 104 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 É pertinente discorrer acerca dessa parceria entre marcas e blog, pois no caso do Blog do Kadu, antes de apresentar tendências de moda, propriamente ditas, disponibiliza no ciberespaço uma extimidade. Nesse sentido, Zelizer (2011, p. 34) aponta que “o dinheiro coabita regularmente com a intimidade e até mesmo a sustenta”. Demonstrando, conforme indagado na introdução, que sim, há um preço pela exposição da intimidade. Aproximando-se do fim, e trazendo Sibilia (2006) como algumas reflexões finais, é possível perceber que há uma inversão de valores, se antes uma personalidade narrava-se para a posteridade, hoje, tenta narrar-se primeiro, para tornar-se celebridade depois. Outro ponto a ser levantado é entender até que ponto essa intimidade exposta, que sempre está presente nas melhores festas, melhores eventos, com as melhores indicações (trazendo a ideia de ‘melhor’ como performance), de fato, é uma intimidade que foi exposta, ou simplesmente uma intimidade midiaticamente construída. É para se pensar. FIGURA 3 – INTERESSE EM ANUNCIAR NO BLOG - Fonte: Elaborado pelo autor. 105 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Zelizer (2011), em seu livro A negociação da intimidade, buscou apresentar, mediante alguns casos norte-americanos, como se dava essa relação da intimidade, quando envolvido algum valor monetário. Em uma determinada passagem, a autora salienta como o dinheiro bem como a intimidade, “representam princípios contraditórios, cuja interseção gera conflito, confusão e corrupção” (Ibidem, p. 32-33). Tomando esse enunciado como ponto de partida, o presente artigo buscou entender como se dava essa relação. Dessa forma, ao se trazer a abordagem empírica para corroborar o entendimento, deparou-se, no caso do objeto estudado, com o fato de como a exposição da intimidade daquele o que o fomenta é nítida. O blog não deixa de ser um diário que apresenta cotidianamente a intimidade do blogueiro, detalhando aqui, a exposição do que veste Kadu quase todos os dias. Outro ponto marcante se dá com a inserção de marcas patrocinadoras em suas postagens. A intimidade que é apresentada, muitas vezes, passa pelo filtro da marca e/ou empresa que patrocinam. Um caso notório foi a recente viagem que Kadu fez ao Oriente Médio, logo postada no blog, até mesmo com direito à primeira classe, mas com um detalhe, patrocinado por uma companhia aérea18. Dessa forma, toda a performance visualizada de uma pessoa ‘descolada’, ou até mesmo ‘bem de vida’, não passava do preço exercido para expor sua intimidade enquanto estivesse aos cuidados da companhia. Esse é um caso entre muitas outras parcerias que podem ser visualizadas desse binômio: intimidade e dinheiro. Logo, esse interesse pelas marcas se dá, e como assinalou Gorz (2005), pois Kadu não deixa de ser, mesmo que de forma velada, ou despercebida um autoempreendedor, que oferece ao mercado sua maior e mais valiosa mercadoria: o eu. Vale ressaltar que, decorrente de sua atuação como blogueiro de moda, recentemente, foi convidado para ser consultor, na primeira versão do programa Sob Medida, da RedeTV, que propõe uma transformação comportamental, vestual entre 18 Disponível em: http://blogdokadu.com/2013/10/30/qatar-airways-a-empresa-aerea-mais-bacana-domundo/>. Acesso em: 20 dez. 2013. 106 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 outras em um participante. Indo ao encontro daquilo que Sibilia (2006) enfatiza, da ideia de se expor – se narrar – possibilitando emergir ao estrelato. Se indagarmos até que ponto esse ‘novo espírito do tempo’, que cobra tanto por performance, vai interferir nas relações íntimas, privadas, digo que o Blog do Kadu pode ser a verificação desse tempo, nele, a performance está presente na busca por formas de diferenciação perante os demais blogs existentes; há certa performance, no sentido quantitativo da intimidade do blogueiro; como até mesmo uma performance com relação às marcas que o desejam. Por fim, é oferecida como possibilidade de desdobramento um estudo sobre o blog na perspectiva da economia criativa, pensá-lo não só como meio de expor intimidades, mas de circular formas de se desenvolver a criatividade por meio da tríade, comunicação, cultura e moda. Essa forma de comunicação possibilita colocar tanto produtor quanto consumidor em um mesmo patamar onde propicia à criatividade circular por uma nova forma de se entender a mediação além da exposição de uma intimidade. 107 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 REFERÊNCIAS AMARAL, Adriana; RECUERO, Raquel; MONTARDO, Sandra. (orgs.). Blogs.com: estudos sobre blogs e comunicação. São Paulo: Momento Editorial, 2009. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. FREIRE FILHO, João. 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Kadu. Disponível em:<http://blogdokadu.com/>; 108 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 ELEMENTOS HISTÓRICOS PARA O ESTUDO DO SELO POSTAL EM COMUNICAÇÃO Diego SALCEDO19 RESUMO: Parte do pressuposto de que o selo postal é um objeto de comunicação visual e de estudo no campo da Comunicação. Tem como objetivo indicar e contextualizar os elementos históricos que contribuíram ao seu surgimento. Para isso, do ponto de vista metodológico, explorou e debateu a literatura. Conclui, assim, que o selo postal conquistou seu lugar no campo da Comunicação. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação. Correios. Selo Postal. ABSTRACT: Assumes that the postage stamp is an object of visual communication and study in the Communication field. Has the objective do indicate and contextualize some historical elements that have contributed to its emergence. To do so, from a methodological stand, has explored and discussed the literature. Therefore, concludes that the postage stamp earned its place in the field of Communication. KEYWORDS: Communication. Mail. Postage Stamp. 1. CORREIOS NA EUROPA DE 1840 Mencionar o selo postal adesivo é situar o olhar, de forma ampla, sobre a Europa do século XIX, momento de emergência dos Estados Nacionais e de transformações radicais nas sociedades capitalistas ocidentais e, em particular, sobre à Inglaterra. Lugar, segundo Hobsbawm e Ranger (2002, p. 9), de “tradição inventada”. Para esses autores, a expressão tradição inventada pode ser percebida como um conjunto de práticas sociais, usualmente admitidas por um grupo de pessoas, e “formalmente 19 Doutor em Comunicação. Professor no Departamento de Ciência da Informação na Universidade Federal de Pernambuco. Telefone: (81)2126-8780. Email: [email protected] 109 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 institucionalizadas”. Além disso, a questão da repetição dessas práticas é essencial no estudo sobre as tradições, visto que, ainda conforme esses autores, a repetição visa “inculcar certos valores e normas de comportamento que implicam uma continuidade em relação ao passado apropriado”. De um ponto vista mais geral, os europeus, nesse período, tiveram o privilégio de experimentar um momento histórico de grandes e positivas mudanças no âmbito da comunicação. Estradas foram aperfeiçoadas, os cavalos puxavam velozmente transportes, cada vez mais leves, e o serviço postal sobrepujava, em vários aspectos, a comunicação do século anterior. Em meados de 1830, a Inglaterra tinha um dos mais eficientes serviços postais já conhecidos. Grande parte disso resultou do investimento realizado numa rede infraestrutural muito bem integrada. Combinava estradas de terra, canais de navegação fluvial, ligações marítimas costeiras e as primeiras linhas férreas. Briggs e Burke (2006, p. 134) citam que “trens e navios transportavam cartas, no século XIX, uma forma indispensável à comunicação tanto nacional quanto internacional”. Nesse sentido, comenta Hobsbawm (2005, p. 26), o sistema de carruagens postais ou diligências, instituído na segunda metade do século XVIII, expandiu-se consideravelmente entre o final das guerras napoleônicas e o surgimento da ferrovia, proporcionando não só uma relativa velocidade – o serviço postal de Paris a Strasburgo levava 36 horas em 1836 – como também regularidade. Uma das características do sistema de comunicação postal ferroviário, denominado ‘correio ambulante”, diz respeito às agências instaladas dentro dos vagões dos trens, que durante o seu rotineiro percurso realizavam a triagem, recebimento e distribuição das correspondências (QUEIROZ, 1988, p. 91), como ilustra a figura 1. Figura 1 – Correio ferroviário no período da Revolução Industrial - Fonte: coleção particular do autor 110 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Cabe aqui uma breve alusão ao contexto em que o desenvolvimento inglês foi gerado. Não é nosso propósito historiar esse contexto, pois nos faria desviar de nossa trajetória. No entanto, é importante observar que a Inglaterra do sistema postal infalível também é um lugar de política imperialista, um poder devastador que dominou uma centena de territórios ultramar. Vale lembrar, que muitos desses territórios dominados estampariam as independências nos selos postais do século XX, após o período em mais existiram revoltas coloniais. Os próprios colecionadores dos primeiros selos postais registraram esse fato. Segundo Bellido (2004, p. 81), redator de um dos primeiros periódicos sobre colecionismo de selos postais, fundado em meados de junho de 1896, "a Inglaterra é o país do mundo que maior número de colônias possui". Durante o final do século XIX e o início do século XX, a Grã-Bretanha foi o império que tinha o maior número de territórios ultramar dependentes ou anexados que emitiam selos postais (STANDARD Postage Stamp Catalogue, 2002). Em 1898, uma franquia postal imperial única, no valor facial de 1d (2c no Canadá) foi instituida para todos os domínios do Impériop Britânico. Assim, o Canadá emitiu um selo postal em que um mapa ilustra, em vermelho, a despeito de algumas inadequações, as possessões britânicas ultramar, além da inscrição "XMAS 1898" (abreviatura de Christmas), época em que a taxa entrou em vigor, e a legenda “we hold a vaster empire than has been” (“nós possuímos um vasto Império, como jamais existiu”), extraído de "A Song of Empire", composto por Sir Lewis Morris em 1887. Figura 2 – Emissão canadense, colônia do Império britânico 20 - Fonte: coleção particular do autor 20 Ver, também, Ferguson (2004, p. 202). 111 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Pois bem, o contexto que agora perpassamos era o de um amplo desenvolvimento científico e tecnológico e industrial, baseado na mecanização dos sistemas de produção, incluindo as relações econômicas e o desenvolvimento local, e, ainda, de expansão do empreendimento capitalista e da economia liberal, fazendo com que a Inglaterra, mas, também, outros impérios europeus, “minasse a ordem social dos territórios ocupados” (HOBSBAWM, 2005, p. 48). Ao mesmo tempo em que crescia internamente, o continente europeu se expandia para fora de seus domínios, conquistando terras, pessoas e novas riquezas tanto na África, quanto no extremo Oriente. A hegemonia inglesa, na Europa e sobre as suas colônias ficou conhecida como o período Vitoriano (1837-1902). Por outro lado, internamente, esse mesmo período também é lembrado pela drástica redução do poder do Estado, limitado para atuar em setores bem específicos, dentre eles, os da comunicação. Assim, acompanhando uma tendência geral dos demais reinados e impérios europeus, o governo inglês assumiu o poder sobre o serviço postal, substituindo os particulares por uma administração estatal Lembremos que o serviço pré-postal e postal, desde a Idade Média, estava a serviço da realeza, dos nobres, dos militares e do clero. Sendo assim, as transformações do sistema de correios foram ocorrendo pouco a pouco, em pontos isolados da Europa.21 Da Idade Média até 1900, a Europa experimentou avanços jamais vividos na comunicação, assim como em outras esferas sociais. O sistema postal, sua regulamentação e os avanços técnico-científicos foram algumas das causas que permitiram essa experiência. De volta ao contexto britânico, era norma geral que as correspondências fossem pagas pelo destinatário e não pelo remetente, como é feito hoje. Foi nesse aspecto, em particular, que um cidadão britânico desenvolveria algumas idéias que transformariam o sistema postal inglês, em particular e, por conseguinte, o de muitos outros países, colônias e grupos sócio-institucionais. Sir Rowland Hill (1795-1879), segundo Almeida 21 Uma das mais completas obras escritas sobre o sistema pré-postal e postal britânico, que merece ser traduzido ao Português, foi a de Campbell-Smith (2011). No Brasil, uma História Postal, articulada a elementos econômicos, políticos, tecnológicos, educativos, culturais (prensa e imprensa) e sociais merece e ainda está por ser escrita. De certo, campo de estudo mais tratado por colecionadores filatélicos do que por sociólogos, antropólogos e historiadores. 112 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 e Vasquez (2003, p. 17, tradução nossa), após o episódio, "percebeu algumas vulnerabilidades do sistema postal inglês vigente”. Nesse período, a classe média e trabalhadora britânica, apenas, sonhava com o aviso da chegada de um carteiro, pois o serviço tinha um caráter de luxuosidade. Mas, também, foi o momento histórico em que ascendia ao trono do Império Britânico, no dia 20 de junho de 1837, aos dezoito anos de idade, Alexandrina Vitória (1819-1901) iniciando a mais duradoura regência inglesa intitulada de “Era Vitoriana”. Logo após assumir o trono, a Rainha Vitória instituiu um Comitê Especial do Serviço Postal,22 que teria como objetivo e função explorar as condições de funcionamento do serviço postal britânico com vistas a reduzir as tarifas postais. Assim, à acurada visão de Rowland Hill aliada a um imbatível argumento contábil e estatístico, em conjunto com a disposição de melhoria do sistema postal britânico, por parte da Rainha Vitória, foi o momento adequado para que ele apresentasse algumas mudanças, que logo seriam copiadas no mundo inteiro, por meio de um relatório intitulado “Post Office Reform: its importance and practicability” (1837).23 A figura 3 indica algumas características de como era o sistema postal préfilatélico britânico e europeu, por volta de 1838, e quais foram as principais modificações sugeridas pelo Sir Rowland Hill. Figura 3 – O sistema postal europeu antes e depois da Reforma Postal O sistema postal europeu em 1840 A "Reforma Postal" na Inglaterra A tarifa poderia ser paga pelo remetente ou Pagamento prévio da franquia conforme destinatário da correspondência. A tarifa compreendia: as medidas, o peso, a classe e a distância a ser percorrida. tarifas pré-estabelecidas. Emissão de selos postais adesivos para comprovar o pagamento das correspondências conforme todo o seu 22 23 Em Inglês: “Select Committee on Postage”. Tradução: "Reforma Postal: sua importância e praticabilidade". 113 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 projeto e circulação. Tarifas uniformes dentro do país, A arrecadação era difícil e a falta de considerando o peso, mas sem levar em pagamento dos envios era alarmante. conta a distância, com o intuito de diminuir custos e tornar o serviço acessível para muitos. O envio para regiões distantes somava as dificuldades da própria distância e os meios empregados, às cobranças relativas a cada correspondência. Diminuição efetiva do valor das tarifas (1 penny) a cada 14 gramas de correspondência enviada. Fonte: Salcedo (2010, p. 94) Tamanha mudança no modelo do sistema postal britânico não ocorreria tão facilmente, sem as devidas pressões político-econômicas. De fato, estavam em jogo o poder real, a liderança exercida pelo Parlamento e a própria economia britânica, em que pesem os conflitos na Europa e ultramar. Em 17 de agosto de 1839, o Parlamento inglês aprovou as sugestões de Hill alegando, conforme registram Almeida e Vasquez (2003, p. 17), "que serviam ao progresso comercial e ao desenvolvimento das classes mais favorecidas". Logo após a aprovação da Reforma Postal, outro aspecto precisava ser resolvido. Assim, um concurso público foi anunciado pelo Tesouro Britânico, com o objetivo de convidar o público a sugerir o melhor modelo para os selos postais. “Mais de dois mil e seiscentos desenhos foram enviados por artistas nacionais e internacionais” (GOLDEN, 2012, p. 21). A Inglaterra, reproduzindo o perfil da cabeça da Rainha Vitória, a partir de uma medalha comemorativa gravada por William Wyon, inaugura o tipo “efígie”, com um selo postal adesivo que, oficialmente, foi chamado de Penny Postage, e que depois, já no âmbito da prática Filatélica ou do colecionismo de documentos postais, ficou conhecido como Penny Black. Nascia assim, o selo postal adesivo, um dos 114 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 artefatos fundamentais às transformações que iriam revolucionar os sistemas postais em todo o mundo. 2. O ADVENTO DO SELO POSTAL ADESIVO Assim, as características verbovisuais do primeiro selo postal adesivo, emitido na Inglaterra, no dia 06 de maio de 1840, foram: o valor facial impresso na margem inferior por extenso, "ONE PENNY"; o termo "POSTAGE" impresso na margem superior, indicando um serviço postal instituído pela administração postal daquela unidade política; a efígie da Rainha Vitória posicionada para mostrar seu perfil esquerdo, como num camafeu, e indicando a unidade política emissora da peça, no caso a Inglaterra; o fundo preto, com ornamentos nas margens direita e esquerda; por fim, as duas iniciais “M”, na margem inferior esquerda, e “H” na margem inferior direita, indicando a posição do selo na folha completa. Figura 4 – Medalha de Wyon e o 1° selo postal adesivo: “Penny Black”, Inglaterra, 1840 Fonte: Rosenblum (2003) Fonte: Arpin (2008) Sem dúvida o primeiro selo postal com padrões artísticos, responsável por estabelecer os padrões de seus descendentes. O cuidado extremo com os traços, a gravação da efígie beirando a perfeição e um fundo sóbrio que contrasta bem com a imagem, além de elementos verbovisuais sutis foi fundamental para o êxito do artefato. O “Penny Black”, muito provavelmente, tem sido o mais prolongado e detalhado objeto de estudo em comparação com qualquer outra emissão no mundo. Não, apenas, é um documento atraente e de curtíssimo período de circulação, historicamente investido de sentidos, um objeto de coleção desejado por colecionadores mundo afora. Mas, particularmente, porque foi impresso a partir de 11 placas distintas, acarretando uma reprodução com 2880 documentos distintos para serem colecionados. 115 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Almeida e Vasquez (2003, p. 21) afirmam que o selo postal, em verdade, é uma adaptação tipológica de estampilhas anteriores. Vale ressaltar que o pagamento antecipado da taxa postal não era uma novidade, e são conhecidas experiências nesse sentido desde o século XVII. A legislação brasileira, por exemplo, oferecia ao mandatário da carta a opção pelo pagamento antecipado do valor da taxa quando fosse seu desejo isentar o destinatário da despesa, de acordo com o estabelecido no artigo 61 do Decreto de 5 de março de 1829. Nesse caso, as cartas eram assinaladas pela palavra “franca” escrita manualmente na face principal. Por sua vez, Ferreira (2003, p. 14) afirma que na época de surgimento do selo postal, até mesmo muito tempo depois, o mundo não estava preparado para nele ver nada além do que um timbre oficial de comprovação de pagamento de franquia, mas, além disso, "não é apenas aos timbres ou marcas que o selo postal vai buscar os seus primitivos figurinos", algo que não lembrasse, imediatamente, senão uma moeda ou uma nota de banco. Nessas ferramentas de discurso ideológico estavam impressas, em princípio, efígies de soberanos reinantes (nas monarquias) e figuras alegóricas (nas repúblicas), cifras indicadoras do valor da franquia postal a ser paga, geralmente buriladas com linhas, florões e arabescos para dificultarem a contrafação do papel-moeda corrente. Ali também, considerando as estampas que foram adotadas nos primeiros anos de uso do selo postal, tinha início o período em que o Estado teria menores custos com o sistema postal e, ao mesmo tempo, um maior controle sobre os discursos e os segredos, o que era mais um claro fortalecimento da vigilância social que, atualmente, encontra seu equivalente em outras formas de controle (câmeras, celulares etc). Os primeiros selos postais do mundo tiveram como elementos pictóricos ou visuais, praticamente sem nenhuma exceção, a efígie, o brasão e a cifra, e como elementos verbais o termo postal, o nome da soberana ou conquistador e, ainda, o nome da moeda corrente na respectiva língua de origem da unidade política emissora. Podemos perceber uma práxis dos Estados em constituir uma identidade nacional e ultramar (nas suas colônias), por meio dos elementos verbovisuais. 116 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Figura 5 - Alguns elementos verbovisuais (esquemas pictóricos) dos primeiros selos postais Selos postais com Selos postais com efígies de soberanos Selos postais com armas e brasões motivos mitológicos Principais características dos países emissores: 1. Principais características dos Principais características dos Monarquias países emissores: unificadas, fortes e centralizadas. 2. Mostra 1. Países sujeitos a ocupação ou 1. Principalmente àqueles em sistema de união de reinos. elemento pictórico de soberano ou países emissores: soberana da com uma cultural mitológica. 2. Mostra elementos pictóricos 2. heráldicos diversos. Mostra elementos pictóricos mitológicos. aristocracia tradicional européia.. Alguns países emissores: Inglaterra, Hungria, Alguns países emissores: Espanha, Áustria, Bósnia, Bremen, Alguns países emissores: Itália, Bulgária, Finlândia, Modena, Luxemburgo, Portugal, Prússia, Romênia, Rússia, França, Grécia e Itália. Áustria, Prússia, Brasil, Sicília, etc. etc. Fonte: Salcedo (2010, p. 98) Outros elementos verbovisuais foram utilizados a posteriori, quando, aos poucos, algumas pessoas foram tomando consciência de que o selo postal servia para algo muito mais nobre do que simplesmente representar um atestado ou um recibo de pagamento prévio de serviço. É nesse momento que surge o colecionismo do selo postal e a prática que viria a ser denominada Filatelia. 117 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Apesar de não fazer parte do escopo deste trabalho é importante considerar que em paralelo ao uso do selo postal existia a utilização do carimbo. Uma área muito peculiar de estudo, “a parte oculta dos selos, o lado noturno eles” (Benjamin, 1995, p. 57), que também pode compor o estudo das estampilhas, denominado Carimbologia, fundamental para o entendimento das funções administrativas de documentos. Prática ordinária dos Correios, carimbar um selo postal tinha a finalidade de indicar a origem da missiva postal, a data de envio e o cancelamento do selo postal aderido à correspondência. Além disso, buscava impedir o reaproveitamento do selo, além de ser uma maneira de controlar e legitimar o poder da administração postal. O surgimento do segundo selo postal tem relação direta com a obliteração (ato de carimbar) do Penny Black. O Penny Red, com as mesmas características verbovisuais do seu antecessor, a não ser pelo tom avermelhado, foi criado justamente por causa de problemas com relação ao carimbo preto utilizado sobre um selo postal de cor preta. Figura 6 – Penny Black obliterado com a Cruz de Malta e o Penny Red Fonte: Arpin (2008) Essa situação incomodava as autoridades, pois que facilitava a reutilização do mesmo selo para várias missivas postais. Assim, o primeiro selo postal do mundo apenas foi utilizado, segundo Davies e Maile (1990, p. 6, tradução nossa), "durante 10 meses, com 68 milhões de peças impressas".24 Seguindo uma tradição que perdura desde então, a Inglaterra é o único emissor de selos postais que não especifica seu nome, por extenso, na face do artefato. Apenas apresenta o perfil do soberano ou da soberana. Por outro lado, o restante dos países e entidades emissoras de selos postais, inclusive as antigas e atuais colônias britânicas, 24 Texto original: "...lasted just ten months. In that time some 68 million stamps were printed". 118 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 devem especificar, por extenso, seus respectivos nomes seguindo as normas internacionais estabelecidas nos congressos da União Postal Universal (UPU).25 O advento do selo postal proporcionou uma racionalidade do sistema postal inglês, que, por sua vez, gerou lucros elevados. Essa foi a principal razão, mas não única, para que nos primeiros dez anos que se seguiram à circulação dos selos postais ingleses, a maioria dos países europeus (e suas respectivas colônias) adotassem o mesmo sistema. Segundo Cusack (2005, p. 592, tradução nossa), "até 1853, outros 44 países haviam seguido o exemplo britânico e emitiram selos postais adesivos".26 Após a Inglaterra, a unidade política Zurique (Cantão de Zurique 27), que tinha status geopolítico de nação ou país, emitiu os seus dois primeiros selos postais (o segundo no mundo), adesivos com os valores faciais de 4 e 6 rappen (centavo em alemão), em 1.03.1843, cinco meses antes da emissão dos Olhos-de-boi brasileiros, em 01.08.1843 (terceira unidade política a emitir um selo postal e a primeira do continente americano). Figura 7 – Emissões de 4 e 6 rappen do cantão de Zurique em 1.03.1843 - Fonte: coleção particular do autor 25 A ideia da UPU surgiu do problema enfrentado por diversos países que tinham tarifas postais distintas advindas do transporte marítimo, com barcos a vapor, e terrestres, por meio das ferrovias. Assim, em 1863 houve um encontro em Paris, por indicação do Diretor Geral dos Correios dos Estados Unidos da América, Montgomery Blair, a primeira entre quinze unidades políticas independentes com o objetivo de resolver esse problema. Atendida a proposta, do então, Ministro Alemão, Heinrich Von Stephan, outro encontro foi marcado para o dia 15 de setembro de 1874, na cidade de Berna, Suíça, com a participação de vinte e duas unidades políticas. Desta, resultou um acordo transformado no “Tratado de Berna”, no dia 9 de outubro do mesmo ano, que, por sua vez, em 1878 foi convertida na UPU. O Tratado foi baseado em três questões fundamentais e de interesse mútuo dos governantes e seus representantes: a uniformidade dos pesos, das taxas e a simplificação da contabilidade. A página eletrônica da UPU: <www.upu.int>. 26 Texto original: "By 1853, forty-four other countries had followed the British example and were issuing stamps". 27 Cantão é uma divisão geopolítica utilizada por unidades políticas como Suíça e Luxemburgo. Selo, porte ou correio cantonal alude ao sistema correios dos e nos Cantões. Estas informações também podem ser encontradas em QUEIROZ (1988, p. 59), e QUEIROZ e MACHADO (1994, p. 35). A Suíça é uma unidade política constituída por vinte e seis estados autônomos, independentes e soberanos (cantões). 119 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Figura 8 – Emissões de 30, 60 e 90 réis brasileiros em 1.08.1843 Fonte: coleção particular do autor A quarta emissão no mundo foi o “Double de Geneve” (Duplo de Genebra), do Cantão de Genebra. Este, em particular, inaugurava e promoveria a utilização de brasões e escudos nas emissões de selos postais, principalmente na Europa. Uma peça bipartida, com um valor facial de 10 cêntimos. O “Duplo de Genebra” é um selo postal composto por duas unidades de 5 cêntimos. Assim, ao enviar uma missiva dentro do cantão era preciso recortar o selo e utilizar uma das metades. Se a carta fosse enviada para outro local o era utilizada inteira. Figura 9 - Cantão de Genebra de 5c (meio porte) e 10c (porte inteiro) Fonte: coleção particular do autor No Duplo de Genebra foi utilizado, pela primeira vez, elementos verbovisuais, para além da indicação do valor facial ou do serviço prestado pelo correio, a saber: há um brasão e uma expressão dentro da bandeirola ou faixa, acima do escudo, que diz: Post tenebras lux = depois das trevas, a luz. A expressão impressa no selo postal, acima, alude alguns aspectos religiosos. Pode significar a Ressurreição (a luz), depois da tragédia (depois das trevas) da Sexta-Feira Santa ou depois do silêncio do Sábado Santo, a explosão da alegria da madrugada do Domingo de Páscoa. Também pode tratar sobre a luz da reforma religiosa na Europa, em que a Bíblia é a luz. A Bíblia 120 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 latina, que podia ser lida apenas pelo clero e estudiosos do Latim, Lutero traduziu para o alemão corrente, que podia ser lido pelo povo. Essa articulação escrita foi a primeira a ser impressa num selo postal. A partir disso, mas não unicamente, é possível atestar que os selos postais somar-se-iam, de uma vez por todas, ao acervo documental, patrimonial e memorial da Humanidade. O selo postal passaria a ser um texto em que o apelo ideológico-institucional se faria presente, criando a possibilidade de emergência dos acontecimentos discursivos. Todos esses, a rigor, pelas suas cores, seus elementos verbovisuais e suas funções serviram de base às demais emissões, em que o destaque ficou com duas peças: uma emitida em 1862 em que o nome do país foi impresso pela primeira vez e outra, emitida em 1882, em que o escudo e uma efígie alegórica foram impressos conjuntamente. Diversos países e suas colônias emitiram selos postais com as mesmas características das que, atém então, foram mostrados. Não causaria surpresa afirmar que os países mais industrializados, naquele tempo, como a Suíça, Bélgica, França e Bavária foram os primeiros a adotarem o novo artefato nos seus sistemas postais. Por volta de 1860, o selo postal seria produzido e circularia em todos os continentes, admitidas a respeitadas as idiossincrasias de cada região, além de suas necessidades políticoeconômicas. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das imagens mostradas é possível pensar que as primeiras emissões de selos postais buscavam os motivos de seus elementos verbovisuais não apenas na Heráldica28 mas, também, nos esquemas ilustrados pela Numismática, o que gerou quase 50 anos de emissões com motivos sobre efígies de soberanos reinantes, figuras mitológicas e conceitos abstratos antropormofizados por convenções sociais (exemplo: a Justiça, a República etc). 28 Segundo Ribeiro (2003, p. 141) "a primeira disciplina formal dedicada a estruturar o estudo da simbologia". As origens desses estudos remontam aos tempos em que existia uma necessidade de distinguir os participantes nos conflitos armados, especialmente os cavaleiros, assim como descrever os serviços por eles prestados, os quais eram pintados nos seus escudos. Contudo é imperativo perceber um brasão de armas não é definido pelo elemento pictórico ou visual, mas antes pelo elemento verbal ou escrito, a qual é dada numa linguagem própria, a Heráldica. 121 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A circulação dessa minúscula peça de papel colaborou, em certa medida, para que os impérios e seus sistemas postais mantivessem seus regimes políticos instituídos, sintetizando o valor monárquico e a unidade nacional. Tudo isso representado, simbolicamente, por meio desse novo tipo de documento iconográfico, que se tornaria testemunha figurativa da própria história. Com o Brasil não foi diferente. De fato surgia um neófito sistema político moderno, impondo normas e novos arranjos administrativos e burocráticos em todo o território, incluindo as colônias. Essas intervenções perduraram por todo o século XIX, ligando o governo e os indivíduos em práticas cotidianas, fomentadas, também, pelas revoluções ocorridas nos meios de transportes e de comunicação, aproximando essas rotinas. Os governos utilizaram os meios de comunicação impressos, como o selo postal, junto a seus habitantes para divulgar certa imagem da ‘nação’. Para aquelas pessoas que olhavam os elementos verbovisuais impressos nos selos postais, da segunda metade do século XIX, o conceito de nação e a ideia de pátria ganhavam contornos subjetivados na materialização das efígies, cifras e brasões ou escudos ali estampados. Assim, aos poucos, o selo postal foi conquistando seu locus como objeto colecionável e comerciável. Por outro lado, alguns estudos debatidos neste artigo auxiliam num movimento que possibilitou a revelação do selo postal enquanto objeto de pesquisa em Comunicação, assim como de estabelecimento do meu lugar de fala, enquanto pesquisador, deixando, assim, tudo isso à mercê e generosidade do potencial leitor. 122 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Cícero Antônio de; VASQUEZ, Pedro Karp. Selos postais do Brasil. São Paulo: Metalivros, 2003. ARPIN, Daniel. The Penny Black, how to determine its value. 2008. Disponível em: <http://www.arpinphilately.com/blog/the-penny-black-how-to-determine-its-value/>. BELLIDO, Raul Paul Remijio de. O colleccionador de sellos. ed. fac-similar. São Paulo: Gril, 2004. 4 v. 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Percebeu-se que o veículo é uma evolução para o processo comunicacional da instituição, mas melhorias devem ser adotadas para adequá-lo ao jornalismo contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação Organizacional. UNESP. Estrutura da Notícia. Valores-notícia. ABSTRACT: In 2010, the Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP), Campus Presidente Prudente-SP, launched the Boletim da Diretoria, in order to inform teachers, servers and students about the activities in the institution. This study aimed to analyze such information in order to discuss about its effectiveness and suitability to journalistic precepts (as structure and news-values). It was observed that the vehicle is an evolution of the communication process of the institution, but improvements must be taken to adapt it to contemporary journalism KEYWORDS: Organizational Communication. UNESP. Structure of News. Newsvalues 29 Jornalista com aperfeiçoamento em Leitura Semiótica: Textos Didáticos, Literários e Publicitários e MBA em Gestão Empresarial. Cursa especialização em Planejamento, Implementação e Gestão da EaD e Mestrado em Educação. É Assistente Administrativo na FCT/UNESP. E-mail: [email protected] 125 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 1. INTRODUÇÃO Uma eficiente comunicação organizacional, ao melhorar o clima interno, mostra-se um próspero caminho para o bom rendimento dos trabalhos de uma determinada instituição. Neste sentido, o presente trabalho tem como intuito analisar o Boletim da Diretoria, um veículo de comunicação interna da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/Unesp) implantado logo no início da última gestão da instituição, em março de 2010. A intenção de realizar esta pesquisa advém da graduação do autor deste trabalho, bem como a vontade da administração em estreitar as relações de comunicação com os alunos e com os servidores docentes e técnico-administrativos. A formação possibilitou que o autor pudesse desprender visão crítica à iniciativa, que aparentemente foi muito bem recebida pelo público-alvo, por ser uma ação inédita e representativa. Desta forma, espera-se que os apontamentos feitos, tanto os positivos quanto aqueles que possibilitem a visualização de pontos a serem melhorados, sejam levados em consideração de forma à sua caracterização como críticas construtivas, tendo em vista que quanto mais qualidade no ato comunicacional interno, melhor pode ser o rendimento dos trabalhos. É interessante ressaltar, em complementação, que o caminho científico desta pesquisa partirá de uma breve explanação do referencial teórico utilizado no trabalho. Depois, discutir-se-á os procedimentos metodológicos da investigação. Segue-se a caracterização da instituição, com dados históricos e números atuais. Em seguida, discorrer-se-á sobre as análises do material coletado e as discussões dos resultados. Por fim, proceder-se-á às considerações finais a respeito dos explanado. 2. PROBLEMATIZANDO O REFERENCIAL TEÓRICO A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) de Presidente Prudente foi criada em 1957, como uma instituição parte do sistema de Institutos Isolados de Ensino Superior (IIES) do Estado de São Paulo (ALEGRE, 2006). Foi em 17 de setembro deste ano que o governador do Estado de São Paulo, Jânio Quadros, assinou a lei 4.131, que 126 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 criou a FFCL da cidade. No entanto, apenas em 06 de agosto do ano seguinte houve a nomeação do Prof. Dr. Joaquim Alfredo da Fonseca para se tornar primeiro diretor da organização. Segundo Vaidergorn (2003), o começo das aulas, porém, se deu apenas no dia 03 de maio de 1959, pouco depois da publicação da autorização para que a faculdade funcionasse (Decreto Federal 45.755, de 13 de abril do mesmo ano). Segundo Lima (2005), duas turmas inauguraram as atividades: uma de Geografia, com 20 alunos, e uma de Pedagogia, com 33. Iniciou com dois cursos, número que aumentou até 1976, quando findou-se o sistema de IIES para o nascimento da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, que agregou os institutos existentes, fez surgirem outras unidades mais e encampou até instituições particulares. Nesta reforma, a unidade de Prudente passou a ser denominada Instituto de Planejamento e Estudos Ambientais (IPEA), ficando apenas com dois cursos. Já no ano de 1988, nova reforma agregou à UNESP o Instituto Municipal de Ensino Superior de Presidente Prudente (IMESPP), uma entidade municipal, e fez, novamente, uma mudança na denominação, para o nome que a unidade possui até hoje: Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT). Após o histórico de altos e baixos, atualmente a instituição possui 12 cursos de graduação e 06 programas de pósgraduação. Ademais, é a Unidade da UNESP que mais possui projetos de extensão universitária, além de uma oferta sistemática de cursos de extensão, temáticos, de atualização, de aperfeiçoamento e de especialização. Depreende-se, daí, que a estrutura organizacional da UNESP, Campus de Presidente Prudente, cresceu e tornou-se complexa com o passar do tempo. Hodiernamente, são cerca de 250 professores, aproximadamente o mesmo número de servidores técnico-administrativos e em torno de 3.500 alunos entre graduandos e pósgraduandos. Estima-se, também, que sejam quase 37 mil atendimentos anuais nos projetos de extensão. A estrutura central parte do vértice de comando Diretoria e é dividida em nove departamentos, duas divisões técnicas e três diretorias técnicas de serviços, conforme poderá ser observado neste texto, mais à frente. 127 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Uma estrutura complexa como esta possui uma grande facilidade para o aparecimento de ruídos e falhas na comunicação, que podem gerar problemas no rendimento do sistema organizacional. “[...] fatores sociais são necessários para impulsionar o progresso e (re)estabelecer ordem entre todos os setores da organização. Funcionários e gerências precisam se comunicar e fazer com que suas opiniões e pensamentos sejam notados, de forma a estabilizar os canais de comunicação e controlar os ruídos” (SOUZA et. al., 2009, p. 53). Neste sentido, a gestão da Unidade dos anos 2010-2014 tem desenvolvido uma política de comunicação tanto interna quanto externa, que compreende assessoria de imprensa, divulgação de notícias no site próprio e no da Reitoria, além da criação, publicação e divulgação quinzenal de um house organ intitulado Boletim da Diretoria. Este é o objeto de estudo do presente projeto. Estes canais de comunicação possuem diversas contribuições, entre as quais do autor deste trabalho que, pela formação em Jornalismo, passou a ser responsável pela publicação de notícias nos sites. E é exatamente esta formação, somada ao fato de ser servidor da Unidade, que despertou o interesse na presente pesquisa. Ressalta-se que a intenção é estudar o produto do qual o autor deste projeto não faz parte ativamente, na tentativa de manter a objetividade científica necessária. Assim, pode-se perceber a importância desta pesquisa, uma vez que trata-se de manter ou mesmo melhorar o rendimento de um órgão público, que deve contas à sociedade. Por isso mesmo, ele pode ser tratado, neste sentido, como uma empresa, visando o rendimento do trabalho com qualidade e inovação. Isso porque o correto e o completo processo comunicacional na instituição reduz ruídos de forma a facilitar o relacionamento entre os setores do órgão, para melhorar a produtividade. Na reforma pela qual a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” passou no ano de 1978, ficou claro o teor mercadológico da organização administrativa do ensino superior público do estado de São Paulo, principalmente da recém-criada UNESP. Isso porque alguns cursos foram fechados ou transferidos de campus sob a égide de se “evitar a duplicação de meios para fins idênticos, considerando-se cada uma das regiões” (LIMA, 2005, p. 274). 128 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Aproximadamente no mesmo período começou a despontar a importância da Comunicação Empresarial, tendo em vista que, com um mercado de consumo mais sólido e o fim do Regime Militar, passou a ser mais importante para as organizações ter uma boa relação com a sociedade, seus segmentos e especialmente o seu público, e não mais com as autoridades vigentes (NORI, 2003). Neste momento, ficou latente a visão organizacional da instituição. Ao mesmo tempo, passou a ser buscada com força a maior eficiência, conceito “usado, geralmente, para indicar a relação entre output e input. Entre as medidas de eficiência, temos a taxa de retorno sobre capital ou sobre os ativos, o custo unitário, restos e desperdício, tempo de parada, custo por paciente, custo por estudante, custo por cliente, taxas de ocupação e coisas semelhantes” (PARDO, 2012, p. 38, grifos do autor). Mais do que investimentos em bens econômicos ou de serviços, uma organização consiste também em seu sistema de produção, seja de materiais ou serviços. A UNESP, enquanto instituição de ensino superior, enquadra-se na segunda opção. Para Pardo (2012), “[...] especializar-se em administração empresarial requer [...] entender mais profundamente essa teoria dos sistemas e seus desdobramentos. Nestes desdobramentos, veremos os problemas relacionados [...] aos ruídos de comunicação [...]”. Segundo Pimenta (2002, p. 57), esta é uma referência a uma “[...] unidade socioeconômica voltada para a produção de um bem de consumo (editoras, construtoras, confecções etc.) ou serviço (agências de turismo, transportadoras, seguradoras etc.). Entretanto, agregado à função produtiva está seu papel sócio-cultural [...]”. E estes fatores sócio-culturais são necessários para impulsionar o progresso da instituição e (re)estabelecer a ordem entre todos os setores da organização. Funcionários e gerências precisam se comunicar e fazer com que suas opiniões e pensamentos sejam levados em conta, de maneira a manter estáveis os canais de comunicação e minimizar ou eliminar os ruídos. Daí depreende-se a importância dos processos de comunicação organizacional, com o intuito de facilitar o relacionamento entre os setores. Segundo Pimenta (2002, p. 99), este processo consiste em “[...] métodos e técnicas de relações públicas, jornalismo, assessoria de imprensa, lobby, propaganda, promoções, pesquisa, endomarketing e marketing. O público, ao qual se destina, pode ser dividido em externo e interno”. 129 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 É necessário ressaltar, ainda, parafraseando Bueno (2005, p. 12), que: [...] é necessário considerar que a comunicação empresarial não flui no vazio, não se realiza à margem das organizações, mas está umbilicalmente associada a um particular sistema de gestão, a uma específica cultura organizacional e que é expressão, portanto, de uma realidade concreta. Neste sentido, os referidos Boletins da Diretoria são iniciativas que nasceram da necessidade de uma realidade concreta e são tidos como uma ação para o público interno, de fluxo descendente. Este tipo de fluxo refere-se à prática de comunicação organizacional de cima para baixo, dos pontos altos da hierarquia funcional para a base da pirâmide, e têm a característica da formalidade. Pardo (2012), define a comunicação vertical como parte da abordagem mecanicista na organização. Ainda de acordo com o Rego (2008), ainda pode-se inserir o Boletim no nível coletivo, que utiliza-se de meios clássicos, como boletins, jornais e revistas, para atingir o público-alvo. Assim, os ruídos tendem a ocorrer por causa da distância entre fontes, emissores e receptores. No entanto, devido ao teor, à forma e ao conteúdo do Boletim, este tem o formato de uma comunicação administrativa, que “[...] abrange todos os conteúdos relativos ao cotidiano da administração, atendendo às áreas centrais de planejamento e às estruturas técnico-normativas, com a finalidade de orientar, atualizar, ordenar e reordenar o fluxo das atividades funcionais” (REGO, 2008, p. 45). Por isso mesmo, ruídos podem tornar-se mais comuns ainda. Para Souza et. al. (2009, p. 57), os problemas mais comuns são: “[...] excesso de informações, defasagem tecnológica da comunicação, planejamento errôneo do consumo de informações, [...] vagareza na transmissão das informações, má administração do tempo, canais inadequados, [...] falta de especialistas e de critérios editoriais, entre outros”. Ainda é interessante ressaltar que a Comunicação Empresarial difere de outras formas de comunicação, como a publicitária, por exemplo. Enquanto a primeira tem por objetivo fazer conhecer ou promover uma empresa a fim de se obter atitudes favoráveis de seus públicos – tanto interno quanto externo –, a segunda, segundo Rego (2008, p. 71), “exalta os méritos de uma companhia”. As formas mais comuns de se atingir os objetivos da Comunicação Empresarial é, de acordo com Neves (2000), desenvolver, fortalecer e proteger tudo o que for 130 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 positivo na imagem da empresa e tentar neutralizar o que pode ser tomado como negativo. No entanto, não é tudo o que se produz na organização que tem potencial para ser transformado em notícia. Toda organização possui uma ‘Política Editorial’ seja explícita ou não formal ou informal, que conduzem as políticas de relacionamento da organização com seus públicos no âmbito das publicações jornalísticas, seja na esfera dos jornais empresarias ou assessoria de imprensa (RODELLA, 2010, p. 23). Explicitado isso, cabe partir para o esclarecimento a respeito dos demais assuntos deste trabalho. 3 APONTAMENTOS SOBRE OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Com o intuito de problematizar as questões colocadas neste projeto, tomou-se como base a comunicação organizacional da UNESP, Campus de Presidente Prudente, por meio do house organ Boletim da Diretoria. Tal recorte justifica-se pelo fato de que tanto a comunicação interna quanto externa, na instituição citada, ainda são falhas, porém podem melhorar com atitudes simples. Além disso, é impossível não ressaltar a importância que a faculdade tem para a cidade e para a região, tendo em vista que é a única pública em Presidente Prudente, oferece vários cursos de graduação e pós-graduação e, inclusive, cursos que não existem em qualquer outra cidade do Estado. Além disso, tendo em vista que o presente pesquisador usufruiu de Bolsa Complemento Educacional, é necessário estudar esta realidade de trabalho, que diretamente se aplica à graduação do servidor. A pesquisa aqui proposta é do tipo explicativa, tendo em vista que se pretende analisar os Boletins da Diretoria, a fim de se explicar e indicar quais as características positivas e as negativas da iniciativa, bem como as possibilidades de melhora. Desta forma, a metodologia da pesquisa aqui apontada é voltada à pesquisa qualitativa, já que pretende trabalhar com “descrições detalhadas de situações com o objetivo de compreender os indivíduos em seus próprios termos. Estes dados não são padronizáveis como os dados quantitativos, obrigando o pesquisador a ter flexibilidade e criatividade no momento de coletá-los e analisá-los” (GOLDENBERG, 1997, p. 14). 131 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O método básico de coleta de dados da presente pesquisa será a observação sistemática, do tipo não participante. Tal técnica visa a obtenção de informações sobre determinado aspecto da realidade e, segundo Lakatos e Marconi (1005, p. 192), “[...] não consiste apenas em ver e ouvir, mas também em examinar fatos ou fenômenos que se desejam estudar”. O material coletado foi examinado em comparação com as teorias do jornalismo, no que se refere ao cumprimento de requisitos noticiosos gerais (como a construção das notícias com base nas respostas às perguntas básicas: quem? O que? Como? Quando? Onde? Por que? E daí?) e aos chamados “valores-notícia” (critérios, como proximidade, atualidade, abrangência, etc., utilizados para analisar se tal assunto merece ser divulgado jornalisticamente ou não), conforme delimitam Rodella (2010), Lage (2005), Zanchetta Júnior (2004), Faria (2003) e Noblat (2007). 4 A UNESP: Breve Relato da Origem e da Atualidade Conforme já explicitado anteriormente, a história da Unesp teve início em 1957, como Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) de Presidente Prudente, um Instituto Isolado de Ensino Superior (IIES) do Estado de São Paulo. As aulas começaram em 3 de maio de 1959, com os cursos de Geografia e Pedagogia. Este número aumentou para 6 até que, em 1976, os IIES foram agregados na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, e a unidade de Prudente passou a ser Instituto de Planejamento e Estudos Ambientais (IPEA), campus com apenas dois cursos. Já em 1988, foi somado à Unidade de Prudente o Instituto Municipal de Ensino Superior de Presidente Prudente (IMESPP), uma entidade municipal. Com a junção, a instituição passou a ser chamada Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT). Hodiernamente, então, a instituição tem 12 cursos de graduação e 06 programas de pós-graduação. A FCT é a Unidade da UNESP que mais possui projetos de extensão universitária, além de uma oferta sistemática e periódica de cursos de extensão, temáticos, de atualização, de aperfeiçoamento e de especialização. Pesquisa também é uma constante, formando assim o tripé da universidade brasileira: ensino, pesquisa e extensão. 132 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 5. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS OBTIDOS Inicialmente, cabe ressaltar que o início da publicação dos Boletins da Diretoria30, foco de análise desta pesquisa, em março de 2010, trata-se de um enorme salto na comunicação e na gestão organizacional da FCT. Isso porque, anteriormente, vigoravam formas de comunicação menos dinâmicas e mais formais, do tipo Comunicação Administrativa, ou menos eficientes e de cunho extremamente informal, de cunho ascendente. O primeiro, segundo Rego (2008, p. 45), abrange “normas, instruções, [...] políticas de desenvolvimento de pessoal, políticas de promoção, políticas salariais, [...] regulamentos, portarias, avisos, [...] mudanças institucionais e programáticas [...]”. Já o segundo é mais voltado a “conversas paralelas entre funcionários ou boatos que surgem na organização” (SOUZA, 2009, p. 56). Certamente, em comparação com estas duas opções, os Boletins da Diretoria são mais eficientes. Parte-se, então, à análise propriamente dita. O primeiro boletim foi um informativo de três páginas que se resumiu a informar a respeito da posse da nova gestão, bem como das novas ou mantenças Diretorias, Assessorias, Supervisões e Chefias. Considerando-se este número como “inaugural”, distinto daquilo que viria depois, o segundo número, de abril de 2010, trouxe uma estrutura já semelhante aos próximos, porém com apenas duas páginas e 14 itens. Em comparação, o último publicado (nº 18/2013) possui sete páginas, 41 notas informativas curtas divididas entre informes administrativos (licitações, construções, aposentadorias e admissões), acadêmicos (defesas de dissertações ou teses, congressos e visitas de docentes do exterior) e previsões para os próximos dias (abrangendo eventos tanto acadêmicos quanto administrativos que devem ocorrer nos dias seguintes à publicação, antes do próximo número). Esta, aliás, é a estrutura adotada desde o Boletim nº 4/2012, publicado em 9 de março do referido ano. E desde o início, a periodicidade das publicações é quinzenal, 30 Todos os Boletins da Diretoria http://www.fct.unesp.br/#!/diversos/downloads/ estão disponíveis na internet, no endereço 133 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 com um intervalo maior (de cerca de um mês) quando das férias do diretor ou do vicediretor, geralmente entre dezembro e janeiro e entre junho e julho. À primeira vista, poder-se-ia imaginar que entre o primeiro ou o segundo e o último boletim, o número de fatos e acontecimentos na Faculdade teriam, de acordo com as contas, praticamente triplicado. No entanto, tal constatação seria de um positivismo absurdo, uma vez que pode-se depreender que o que aumentou não foram os fatos noticiáveis, mas sim os fatos noticiados. É óbvio que diversos processos fizeram também crescer o número de notícias. Processos de internacionalização trouxeram cada vez mais docentes do exterior à FCT, bem como aportes financeiros mais avantajados fizeram prosperar as construções, reformas e ampliações no campus. Ao mesmo tempo, melhorou a consciência da gestão e dos servidores em geral de que é importante divulgar os fatos, é relevante que todos saibam o que está ocorrendo pela Unidade. Ou seja: foram dois fatores concomitantes. Iniciando a análise, será verificada a estrutura de algumas notas informativas. De acordo com os autores do jornalismo, entre eles Karam (2007), as perguntas básicas a serem respondidas em uma matéria jornalística para informar corretamente o receptor da mensagem são: O que aconteceu? Quem produziu o fato noticiado? Quando o fez? Como o fez? Onde o fez? Por que o fez? Em complementação, Refkalefsky (2005) insere uma pergunta a mais no contexto: E daí? Esta teria a intenção de mostrar ou problematizar a respeito das consequências desta informação na vida daquele que a lê. Assim, a nota número 1 do Boletim da Diretoria nº 2/2012 tem a seguinte escrita: “Estão sendo realizadas desde o dia 16 de janeiro e se estenderão até 17 de fevereiro, as atividades do Programa de Verão do Programa de Pós-Graduação em Matemática Aplicada e Computacional da FCT/UNESP”. Cabe, inicialmente, questionar se todos os receptores desta mensagem sabem do que se trata o Programa de Verão do Programa de Pós-Graduação em Matemática Aplicada e Computacional da FCT/UNESP”. Sem esta informação, é impossível ao 134 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 servidor, docente ou aluno que lê a nota, perceber a sua importância em sua vida, responder à pergunta “e daí?” colocada pelos teóricos. Já a nota de número 5 do Boletim nº 2/2010 traz a seguinte informação: No dia 31 de março de 2010, na cidade de São Pedro, ocorreu uma atividade promovida pela Reitoria sobre o Plano de Desenvolvimento Institucional da UNESP, com a participação do Diretor, Vice-Diretor, Diretoria Administrativa, Diretoria Acadêmica, um docente representante dos Cursos de Graduação, um docente representante dos Cursos de Pós-Graduação e um servidor Técnico-Administrativo. Este é mais um exemplo de nota que pouco informa ao receptor da mensagem. Qual é esta atividade promovida? O que exatamente foi tratado lá? Quem foram os participantes efetivos? O que isso, de fato, importa a cada leitor? Caso estas informações básicas tivessem sido inseridas na nota publicada, a notícia certamente estaria mais completa. O último trecho a ser analisado neste quesito é a nota 7 dos Informes Administrativos do Boletim nº 16/2013. Esta diz o seguinte: “Serão executadas pequenas obras de adequação nos estacionamentos e vias situadas nas proximidades dos prédios do Restaurante Universitário e do Departamento de Física, Química e Biologia (DFQB)”. Aqui, cabe questionar quais são estas pequenas obras de adequação? Quando estas serão executadas? Quais benefícios virão destes fatos? Novamente, informações além das dadas tornariam a notícia mais completa e significativa ao leitor. Há também bons exemplos. Apenas como ilustração, a nota 2 do Boletim nº 2/2012 diz o que segue: Durante o período de 16 de janeiro até 16 de fevereiro, o Prof. Dr. Ricardo Aroca, da Universidade de Windsor - Canadá, está ministrando o curso “Plasmonics and Ultrasensitive Detection” aos alunos de graduação e pósgraduação das áreas de Física e Química da FCT/UNESP. O Prof. Aroca é graduado em Química pela Universidade do Chile (1964) e desenvolveu sua Pós-Graduação também em Química na Universidade de Moscou (1970). Em 1990 obteve o título de Doutor em Ciências (Física) pela Academia Russa de Ciências. Foi professor nas Universidades do Chile e de Toronto. Atualmente é professor titular na Universidade de Windsor, Canadá. O Prof. Aroca tem colaborado com pesquisadores do DFQB há mais de 10 anos. Neste período recebeu professores e alunos em seus laboratórios. Esta é a terceira visita do 135 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Prof. Aroca à FCT. Sua pesquisa está centrada no campo das nanoestruturas metálicas aplicadas em espectroscopia, possui livros e capítulos de livros neste tema, além de mais de 300 artigos em revistas internacionais. Esta nota informa claramente o fato, quem é o envolvido neste, como, quando e onde se dará a ação. Em complementação, reporta ao histórico da relação entre o docente e a instituição a fim de indicar quais as implicações da vinda do professor, como intercâmbio de docentes e de conhecimento, bem como melhoria na publicação de livros e capítulos com a melhoria do nível de pesquisa. Já na segunda parte da análise, observar-se-á os valores-notícia das notas publicadas, a fim de se problematizar sobre as motivações de sua publicação, se esta foi oportuna ou não, se atende aos pré-requisitos de uma notícia, etc. Em geral, o norte é o interesse público e a verdade, conforme demonstra Lage (2005, p. 83): “[...] a tendência dos jornalistas é considerar adequada a divulgação de informação de que se tem certeza, desde que haja ou possa haver interesse público”. Alguns destes valores-notícia são elencados por Rodella (2010), Lage (2005), Zanchetta Júnior (2004), Faria (2003) e Noblat (2007). No entanto, este trabalho considera a lista organizada no Manual de Redação da Folha de S.Paulo: 1) Ineditismo (a notícia inédita é mais importante do que a já publicada). 2) Improbabilidade (a notícia menos provável é mais importante do que a esperada). 3) Interesse (quanto mais pessoas possam ter sua vida afetada pela notícia, mais importante ela é). 4) Apelo (quanto maior a curiosidade que a notícia possa despertar, mais importante ela é). 5) Empatia (quanto mais pessoas puderem se identificar com o personagem e a situação da notícia, mais importante ela é). 6) Proximidade (quanto maior a proximidade geográfica entre o fato gerador da notícia e o leitor, mais importante ela é) (MANUAL DE REDAÇÃO..., 2001, p. 43). Neste sentido, a nota 8 do Boletim nº 1/2012 diz o seguinte: No dia 5 de janeiro, o Diretor da FCT/UNESP se reuniu com a Diretora Administrativa, Senhora Mara Lúcia Ascenço Dedubiani e com o Diretor de Serviços Substituto, Senhor Emerson Katsuo Kawaguchi, para fazer os encaminhamentos necessários relativos às reformas em andamento na Unidade e aos dois compromissos recebidos da Reitoria. 136 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Com base nos seis valores-notícias antes elencados, considera-se que a nota acima, além de ter falhas na informação mesmo (quais encaminhamentos necessários? Quais reformas em andamento? Quais compromissos recebidos?), possui não possui ineditismo, improbabilidade, apelo ou empatia. Não é um fato curioso, inédito ou improvável, tendo em vista que reuniões com assuntos correlatos ocorrem com certa frequência. Além disso, não é um acontecimento que gere qualquer tipo de identificação com os leitores. Então, por que ler tal notícia? Talvez, pelos dois demais valores: proximidade e interesse. Aquela é um fato evidente, tendo em vista que trata-se de reformas no local de trabalho dos receptores da notícia. Já a segunda, embora não esteja claro quais as reformas, mudanças no ambiente físico dos servidores são, geralmente, de interesse da comunidade. A nota 15 dos Informes Administrativos do Boletim nº 20/2012, por sua vez, trata do que segue: “No dia 23 de outubro, o Vice-Diretor da FCT se reuniu com os alunos membros da Comissão de Moradia para tratar de assuntos relacionados à segurança no local, compra de materiais, acessibilidade e reforma do Bloco B”. Novamente, cabe esclarecer que faltam informações à notícia: o que se decidiu sobre tais assuntos? Não há esclarecimentos a este respeito. Proximidade e interesse, de novo, estão presentes pelos mesmos motivos dados na análise anterior. Já ineditismo, improbabilidade, apelo e empatia são ausentes pois, repete-se, reuniões são constantes, o assunto não é novo ou curioso e a possibilidade de identificação permeia apenas uma pequena parte do público-alvo do boletim. Por fim, a nota 4 do Boletim nº 15/2010 discorre: No dia 14 de outubro, o Diretor da FCT–UNESP esteve presente no evento científico da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na cidade de Natal, no qual participou como expositor da mesa redonda intitulada “Ordenamento Territorial e Agronegócio”. A última nota exibida aqui pouco se acerca dos seis valores-notícia dados. Não se trata de um fato próximo, de interesse, improvável, de apelo ou que desperte empatia. Quiçá possua um traço de ineditismo, tendo em vista que poucas pessoas esperavam que 137 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 o Diretor estivesse naquele local no período dado. No entanto, isso pouco justifica a sua publicação. É evidente que, para uma notícia ser divulgada, ela não precisa possuir todos os valores-notícia existentes. No entanto, quanto menos se aproxima deles, mais dispensável é a sua publicação. Conforme Zanchetta Júnior (2001, p. 59): As características citadas se entrecruzam, não são as únicas que podem definir o rol de notícias, e muito menos formam um conjunto completo ou exato. Auxiliam, entretanto, a situar certos processos, um deles o de que a imprensa convive com um conjunto quase pré-determinado de assuntos que se tornarão notícia. (ZANCHETTA JÚNIOR, 2004, p.59) De posse destas análises, cabe discorrer as considerações deste trabalho, conforme segue. 6. CONSIDERAÇÕES O início deste trabalho delimitou que a pergunta motriz desta pesquisa refere-se à efetividade da comunicação organizacional no âmbito da FCT/UNESP. Cumpriu, então, analisar o papel do Boletim da Diretoria, veículo lançado logo após a posse da nova gestão em 2010, no processo comunicacional, por meio da observação da estrutura das notícias e dos valores-notícia que mobilizaram suas publicações. Discutiu-se, durante o trabalho, diversas notas constantes de boletins diversos, desde o primeiro ano de sua divulgação até o atual. Com vistas nos critérios adotados, verificou-se que a iniciativa de se lançar o Boletim da Diretoria foi extremamente louvável, pois até o momento não havia um canal efetivo de comunicação organizacional na UNESP. As informações eram dadas de maneira simplesmente administrativa, ou circulavam por meio de conversas informais. No entanto, a estrutura das notícias e as motivações de suas publicações ainda deixam muito a desejar jornalisticamente. Faltam diversos dados, sem os quais as notas pouco informam de fato, bem como não há clareza nos critérios adotados para decidir se tal ou tal nota será publicada, o que culmina na divulgação de notícias que não despertam o total interesse no público-alvo. 138 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Cabe ressaltar, ainda, que durante os quase quatro anos de existência do veículo, a estrutura praticamente não alterou-se, e nem sua periodicidade. No entanto, a quantidade de notas e páginas cresceu consideravelmente, o que tem um significado dual: se há mais fatos noticiados e divulgados por um lado, por outro não são todos os receptores que possuem interesse em ler detalhadamente sete ou oito páginas de uma vez só. Assim, pode-se concluir que os Boletins da Diretoria têm o potencial de serem fatores fundantes no processo de comunicação organizacional da FCT/UNESP. No entanto, algumas alterações devem ser efetuadas, de modo a melhorar sua efetividade. Alguns exemplos destas melhorias são: diminuir o tempo entre a publicação de uma edição e outra (pode passar a ser semanal); otimização no layout do informativo, podendo até mesmo incluir imagens; e adaptação do texto à estrutura, forma e critérios jornalísticos. Considera-se, desta forma, que o veículo poderá ter seu potencial explorado de forma adequada, melhorando a produtividade dos servidores, docentes e alunos com base em informações devidamente divulgadas. 139 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 REFERÊNCIAS ALEGRE, Marcos (Org.). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – ontem: uma trajetória (história oral). Faculdade de Ciências e Tecnologia: hoje. Presidente PrudenteSP: Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2006. BUENO, Wilson da Costa. A Comunicação Empresarial Estratégica: definindo os contornos de um conceito. Conexão – Comunicação e Cultura. UCS: Caxias do Sul, v. 4, n. 7, p. 11-20. jan./jun. 2005. COMPETÊNCIAS DA UNESP. Portal Unesp. Disponível <https://ape.unesp.br/pdi/execucao/index.php>. Acesso em: 30 out. 2013. em: FARIA, Armando Medeiros de. 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A institucionalização histórica da polarização entre o erudito e o popular foi a problemática que nos levou a uma abordagem teórico-crítica, possibilitando-nos o reconhecimento de processos de fusão positivos do ponto de vista cultural e comunicacional, com impacto nos processos de produção e de recepção, tendo como multímetro a repercussão midiática e o atingimento maior de diversos públicos. Palavras-chave: Cultura. Música. Erudito. Popular. OST. ABSTRACT: This article seeks to analyze, through a case study, distances and similarities between classical and popular from Project “Cantata Gonzaguiana” held by 31 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação – PPGCOM da UFPI - Mestrado em Comunicação. Especialista em Supervisão Escolar pela UFRJ e Educador Físico licenciado pela UFPI. E-mail: [email protected] 32 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação – PPGCOM da UFPI - Mestrado em Comunicação. Especialista em educação contextualizada no semiárido na perspectiva da educação do campo pela UESPI. Jornalista e Relações Públicas graduada pela UESPI. E-mail: [email protected] 33 Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Profa. do PPGCOM - Mestrado em Comunicação da Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: [email protected] 142 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 “Orquestra Sinfônica de Teresina – OST”, during the year 2012, with performances in various cities in Brazil. The historical institutionalization of polarization between the scholarly and popular was the problem that led us to a theoretical-critical, enabling us to recognize mergers positive from the standpoint of cultural and communicative, with an impact on the production and reception, with the multimeter the media impact and the greatest achievement of various audiences. Keywords: Culture. Music. Scholar. Popular. OST. 1. APRESENTAÇÃO Diferenciar culturas e músicas eruditas das culturas e músicas populares sempre preencheram os espaços e discussões de músicos, comunicadores, artistas, historiadores e pesquisadores culturais, sendo encontradas em grande parte da história da humanidade. Todavia, nosso intuito aqui trata-se de entender tais denominações para tentar desconstruir essa polarização institucional, política e ideológica, de separação e fragmentação possível entre erudito e popular, no sentido de aproximarmos estes conceitos, se é que não estejam tão próximos a tal ponto de não termos percebido. Demasiado indispensável é o entendimento sobre: O que é cultura? O que é música erudita? E música popular? Enquanto componentes de uma diversidade cultural, encontram-se distantes? Próximos? Que processos de construção simbólica, ideológica, social e histórico-cultural estão presentes nesta tensão? Enfim, este estudo de caso (VENTURA, 2007. p. 384) foi realizado em 10 meses, onde foram analisadas apresentações, entrevistas, publicações e depoimentos de integrantes da Orquestra Sinfônica de Teresina quanto às atividades do Projeto Cantata Gonzaguiana.34 Os percursos históricos da música e da humanidade foram perpendicularmente traçados desde tempo atrás até os dias atuais, ultrapassando diversos obstáculos espaçotemporais, principalmente pelo poder comunicacional que a música como expressão artística tem. Por isso, analisar as aproximações entre a música e seus públicos tendo como entremeio o erudito e o popular é mister para o estabelecimento de compreensões sobre o estado da arte da cultura local hoje. 34 Deste ponto em diante a Orquestra Sinfônica de Teresina será referendada como OST e o Projeto Cantata Gonzaguiana como CG. 143 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 2. CULTURA E UMA MULTIPLICIDADE DE CONCEITOS As abordagens teóricas que procuram apresentar o conceito de cultura são inúmeras e complexas, pois como introduz Eagleton (2005), sua amplitude e concomitante especificidade reforçam seu espectro inconsciente e irracional, o que obscurece a compreensão das suas significações, dos sentidos e dos valores que historicamente foram atribuídos à palavra cultura. Vejamos a abordagem do crítico literário contemporâneo quanto a este pensamento: Incapaz, de certo modo, de dizer uma coisa sem dizer qualquer coisa, a cultura não diz o que quer que seja, eloqüente ao ponto extremo de ser muda. Ao cultivar toda a possibilidade até o seu limite, arrisca a deixar-nos com os músculos entorpecidos, imobilizados, tal é o efeito paralisante da ironia romântica. (EAGLETON, 2005, p. 33) Todavia, à procura de uma objetividade interpretativa devemos enveredar pelas considerações deste filósofo britânico que aborda três sentidos modernos de cultura: 1) Como civilidade; 2) Como modo de vida característico; e 3) Como especialização às artes. Neste contexto, é o terceiro sentido que guiará nossa abordagem conceitual para entender o imbricamento entre a música erudita e a música popular fundidas para o desenvolvimento da CG. A cultura como sentido de especialização às artes abordado por Eagleton (2005) inclui a atividade intelectual em geral (Ciência, Filosofia e Erudição), bem como as atividades imaginativas como Música, pintura e literatura. Esta é uma tradição romântico-humanista que traz consigo características a posteriori questionadas por nós em acordo com Eagleton (2005, p. 32, grifo nosso). Estes traços são de que este sentido traz uma carga pós-moderna de recusa ao partidarismo, tornando-a neutra, baseada na não-utilidade, transcendente à política, crítica do capitalismo e inevitavelmente mais contemplativa que engajadora. No entanto, ao lado do autor, entendemos que esta postura não é politicamente inocente, inclusive aproximando-se mais de uma perspectiva liberal de tendência conservadora. Nesta atmosfera conceitual observamos uma identificação marxista de Terry Eagleton e sua filiação aos estudos culturais, principalmente às ideias de Raymond Williams que propõe uma reaproximação dos sentidos de cultura uma vez 144 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 fragmentados, numa religação estético-antropológica que privilegia a diversidade de culturas, entrelaçadas pelo pensamento dialético. Esta lógica de pensamento é matricial para nós, pois a teoria pós-moderna traz um sentido popular à cultura, fortalecendo a alteridade e incorporando a cultura como um nível dominante da vida social. O reforço desta perspectiva pode ser encontrado em THOMPSON (2002, p. 176), quando reforça o fato de que a cultura de um grupo ou sociedade é o conjunto de crenças, costumes, ideias e valores, bem como, os artefatos, objetos e instrumentos materiais, que são adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de um grupo ou sociedade: Cultura é o padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças. Esta também é a nossa defesa. A de que cultura pode ser vinculada a uma comunidade desenvolvida técnica e economicamente, pode representar formas de vida social mais rústicas e primitivas, mas, sobretudo, e próximo ao que pensa Geertz (1989), deve ser pensada como sistema simbólico, claramente possível pelo isolamento histórico de grupos humanos, que expressa as relações próprias da comunidade, passando por gerações, até caracterizar-se por um sistema integrado de ações conjuntas, identificadas por sua ideologia, crenças, expressões, formas de ser e estar. Filiamo-nos a Eagleton (2005) e Thompson (2002) na crença de que não existem seres ou indivíduos não-culturais, pois estes são produtores de cultura. A identificação com um ser cultural é apenas admitir que a condição humana é sempre encarnada em alguma modalidade cultural específica. Esta defesa é alicerçada no percurso histórico contemporâneo e apresenta uma coerência factual, a exemplo, observamos que as situações de miséria e exploração em diferentes partes do planeta, apresentam distinta formas culturais. Contudo, é oportuno o entendimento sobre o que é a cultura criada pelo povo (popular), que articula uma concepção do mundo em contraposição aos esquemas oficiais e a cultura erudita que é transmitida na escola e sancionada pelas instituições. Neste contexto, Bosi (1986) esclarece que a cultura erudita tem uma aproximação com o 145 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 belo e o autoconhecimento, a partir do encanto com a arte, sob todas as suas vertentes e épocas, enquanto linguagem distinta, que necessita uma educação específica para sua apreciação e contemplação. Contudo, a necessidade de não ser encarada como valorização do aristocrático, ou ligada, literalmente, ao poder aquisitivo, se perde, a partir da constatação de que sua existência depende da atenção prévia de necessidades materiais básicas. (BOSI, 1986) Nesta mesma linha de abordagem, a cultura erudita pode ser representada pelos museus, pelas orquestras clássicas, pelas bibliotecas, pois precisam de um desenvolvimento educacional complexo e de longa maturação. Isto desemboca numa valorização do indivíduo enquanto grupo e também da sensibilidade. Parece-nos complexo externar qualquer conceito mais objetivo do que é, foi ou será cultura erudita, todavia, encontramos ainda em Bosi (1992, p. 337) intervenções esclarecedoras, como a que segue, em que o fascínio para com os iletrados e selvagens parece se perder com a o advento civilizatório: Esta, ou ignora pura e simplesmente as manifestações simbólicas do povo, de que está, em geral, distante, ou debruça-se, simpática, interrogativa, e até mesmo encantada pelo que lhe parece forte, espontâneo, inteiriço, enérgico, vital, em suma, diverso e oposto à frieza, secura e inibição peculiares ao intelectualismo ou à rotina universitária. A cultura erudita quer sentir um arrepio diante do selvagem. A ilustração feita por Muniz Sodré (1988) a partir de Bourdieu também revela um entendimento necessário para o desenvolvimento de nossos postulados: A explicitação institucional (tanto através da escola como dos protocolos de distinção social inculcados pela família, que incluem maneiras refinadas, domínio de etiquetas, desenvolvimento estético dos gostos, etc.) das normas do campo cultural é hoje característica da produção elevada ou culta. Neste sub-campo não se alinha apenas o saber humanístico de raízes greco-latinas, como tende a pensar uma certa sociologia da cultura, mas também a ciência. Bourdieu vê na sua “interrogação axiomática”, a “característica mais específica de todas as formas modernas de produção erudita (arte, literatura ou ciência)”. (SODRÉ, 1988, p. 77, Grifos do autor) Neste momento, nosso interesse em desconstruir o distanciamento institucionalizado entre cultura erudita e cultura popular nos obriga a indagar: Existe alguma validade na relação da cultura erudita com a popular? Assim incitamos a dúvida, pois percebemos no elitismo cultural um gozo de seus bens culturais, como os melhores 146 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 e mais inteligentes, intelectualizados, seu culto infere o consumidor alto, dominador, que tantas vezes exclui o universo dos dominados. Destarte, não nos rogamos o exercício de desacreditar que este contexto emoldura milhares de cérebros, pertencentes a um poderoso sistema simbólico que se chama culto, erudito, elevado, seleto e escolástico. Diante deste início de diálogo, reporto-me ao que projetou o Entrevistado 02 desta pesquisa: “[...] o erudito pegou foi carona em Luiz Gonzaga, no popular. Quer dizer, Luiz Gonzaga ficou na boleia e o erudito ficou na carroceria.” Todavia, não podemos perder de vista que o povo (índios, negros e pobres) foi colonizado pela cultura urbana portuguesa, eurocentrada, pelo catolicismo jesuíta e por último, pelo Estado, pela Escola, pelo Exército e pela Indústria Cultural que continua atingindo este mesmo povo agora pelas Indústrias Criativas (BENDASSOLLI, 2009). É historicamente perceptível que a cultura dominante, letrada, escolástica e fabril foi a que mais se expandiu, todavia, muitos preceitos coloniais e aristocráticos da religião católica deram lugar a culturas populares como as sertanejas, ao Carnaval, aos Afoxés, promovendo novas manifestações, mas também podendo ser entendida como um fenômeno da ressignificação, onde a cultura dominante é absorvida e descodificada pela cultura dominada, de tal modo que, nesta última, já não fica da cultura superior nada a não ser, talvez, o desejo que têm os dominados de apreender os dons e os poderes dos seus patrões. (Grifo nosso) Este prisma, é fortalecido pelos ditos de Sodré (1988, p. 74): [...] a cultura é um suposto foco de verdade universal e substitui o poder teológico como guardiã dos regimes de veridcção e de desenvolvimento da personalidade individual. Essa substituição se assenta em relações sociais definidas por critérios de autonomia profissional, que se fazem acompanhar de normas delimitadoras [...] Historicamente incrustada no verso cultural do mundo, temos o que Bosi (1992) chama de cultura popular: aquela que é caracterizada como a cultura das massas e para as massas, que, contudo, é institucionalizada, ou pelo Estado ou pela inciativa privada, organizações modernas e complexas que administram a produção e a circulação de bens simbólicos. Todavia, o que nos chama atenção e nos importa nesta fase são os 147 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 fenômenos simbólicos que nascem do imaginário do povo, estruturados de diversas formas, indo do rito quilombola da Comunidade Mimbó (Amarante-Pi) ao Bumba-meuBoi (patrimônio folclórico maranhense). Ou seja, serve-nos de contraponto conceitual a vertente romântico-nacionalista, ou romântico-regionalista, ou romântico-populista, que valida a transmissão pelo folclore, que ignora ou recusa as suas vinculações com a cultura de massa e a cultura erudita, e identifica as expressões grupais com um mítico espírito do povo, ou mais ideologicamente, com uma Nação. E, para o fortalecimento deste entendimento ancoramo-nos em Fernandes (1998), que caracteriza a cultura popular, como as manifestações coletivas, geralmente no espaço não-urbano, são os ritos antigos, os rurais, etc. Todavia, nos alerta que estas características devem ser associadas agora a um sentido semiótico de reapropriação e ressignificação temporal, historicamente determinada, que inclusive luta contra os ditames da indústria cultural, procurando incorporar a tecnologia e reconvertê-la enquanto instrumento de uma sociabilidade espontânea e autêntica. É o que Habermas (1987 citado por Gutierre; Almeida, 2004, p.56) expõe quando diz que a cultura é o armazém do ser humano, e a cultura popular, como caracterizada logo acima, luta para manter a tradição sem sucumbir à indústria cultural. O imbricamento entre cultura popular e cultura de massa torna-se neste contexto um problema, portanto não devemos evoluir nesta discussão sob pena de reconfigurar nossa linha de raciocínio. Desta forma, concluímos que para nossas pretensões, o entendimento sobre cultura popular não deve partir da Teoria Crítica dos Estudos Culturais, notadamente da Escola de Frankfurt, com as premissas de Adorno de Horkheimer, mas sim deve ser desenvolvida segundo os estudos culturais britânicos a partir das contribuições do Centre for Contemporary Cultural Studies, principalmente por Richard Hoggart (1958) e Raymond Williams (1958), que tem seus postulados relacionados a um forte populismo cultural. Assim, Douglas Kellner aponta que para os ingleses, cultura popular é algo relativamente autônomo e proveniente da classe trabalhadora, que é do povo. (KELLNER, 2001, grifo nosso) Ainda, Kellner (2001, p. 51) apresenta o que para nós deve ser considerado como conceito adequado ao que nos prostramos a discutir: 148 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O discurso do “popular” também foi utilizado por muito tempo na América Latina e em outros lugares, para descrever a arte produzida pelo povo e para ao povo, como esfera oposta à cultura dominante ou hegemônica, que é muitas vezes uma cultura colonialista, imposta de cima para baixo. Portanto, na América Latina e em outros lugares, a expressão “forças populares” indica os grupos que lutam contra a dominação e a opressão, enquanto “cultura popular” indica a cultura do povo, feita pelo povo e para ao povo, no sentido de que o povo produz essa cultura e participa das práticas culturais que articulam suas experiências e aspirações. (Grifos do autor) O relacionamento hostil entre os termos erudito e popular ora perceptível no campo teórico, mas empiricamente possível e percebido na produção da CG pela OST, nos remete ao que postula Eagleton (2005, p. 14, grifos nossos): A idéia de cultura, então, significa uma dupla recusa: do determinismo orgânico, por um lado, e da autonomia do espírito, por outro. É uma rejeição tanto do naturalismo como do idealismo, insistindo, contra o primeiro, que existe algo na natureza que a excede e a anula, e, contra o idealismo, que mesmo o mais nobre agir humano tem suas raízes humildes em nossa biologia e no ambiente natural. E é neste panorama de entendimento, recortado, sobre cultura erudita e cultura popular, que tentaremos articular um paralelo conceitual às músicas erudita e popular. Vamos adiante? 3. AS DUAS MÚSICAS A música acompanhou historicamente o homem e se fez, desde o incremento da sua ampla difusão, fator constituinte da realidade social e cultural. A partir das tensões e contradições promovidas por seus sons, melodias e letras, pois ela deve ser compreendida com um campo onde se estabelecem conflitos, a música está presente em todo o planeta, compondo-se como um dos principais alicerces das diferentes culturas, seja por suas relações coletivas ou individuais com os sujeitos sociais. A polarização entre a música erudita e a música popular é uma construção simbólica de caráter ideológico e social, assim pensa Bizzocchi (1999). Para o autor, essa polarização é histórica e caracterizou-se por uma aristocracia que considerava a música erudita como a única forma de cultura, pois a música popular era uma nãocultura, ausente de características civilizatórias. Este contexto está repleto de 149 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 representações ideológicas e artísticas de uma minoria da sociedade (elite) caracterizada outrora como de classes. Isto acima nos parece nocivo, principalmente após ouvir depoimentos do Entrevistado 03 de nossa pesquisa que diz: “A essência da música erudita é a música de uma época: renascimento, barroco, clássico, romântico e moderno. É uma música que em sua época era popular. Beethoven quando fez a 5ª Sinfonia, fez com um tema que era popular para ele.” Oportunamente, encontramos na defesa de Silva (2008), também a defesa do Entrevistado 03, quando, aparentemente contraditório, pois se propõe a utilizar as ideias de Adorno, anteriormente negado por nós, mas que agora nos fortalece o entendimento. O autor afirma que a arte musical de Mozart, que foi um compositor genuinamente clássico, também era popular. Poderíamos então, chamar de popular, aquela música que a população, em sua maioria, consome. A música de Tom Jobim, por exemplo, foi e é popular. O mesmo Jobim se tornou clássico, na nossa música, pela beleza, pela seriedade de sua obra, por sua arte. Em Bizzocchi (1999) e Silva (2008) encontramos subsídios para afirmar que a música erudita deu origem às partituras musicais, que pode ser tocada por um instrumento só, por pequenos grupos de instrumentos e também por Orquestras, que é uma música rígida, ortodoxa, em que os instrumentistas precisam seguir ao pé da letra todas as instruções da partitura e não podem improvisar. Numa aproximação espacial, também absorvemos que a música erudita ou clássica, no Brasil dos primeiros séculos de colonização portuguesa, vincula-se à igreja e que somente com o músico Heitor Villa-Lobos é que ela se consolidou em nosso país. Também pudemos perceber que, para nossos músicos, historiadores e pesquisadores, os maiores nomes da música erudita estão nesta relação: Haydn, Bach, Mozart, Beethoven, Chopin e Villa-Lobos. Quanto às características da música popular que aqui pensamos, podemos absorver historicamente o que trata Napolitano (2002). Para o historicista, música popular é o mesmo que canção e é um produto do século XX. Possui uma fonografia específica e um padrão de 32 compassos (COLLURA, 2008. p.124), adaptada a um 150 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 mercado urbano e intimamente ligada à busca de excitação corporal (música para dançar) e emocional (música para chorar, de dor ou alegria...). A música popular urbana reuniu uma série de elementos musicais, poéticos e performáticos da música erudita (o lied35, a chançon36, árias de ópera37, bel canto38, corais, etc.), da música folclórica (danças dramáticas camponesas, narrativas orais, cantos de trabalho, jogos de linguagem e quadrinhas cognitivas e morais e do cancioneiro “interessado” do século XVIII e XIX (músicas religiosas ou revolucionárias, por exemplo). Sua gênese, no final do século XIX e início do século XX, está intimamente ligada à urbanização e ao surgimento das classes populares e médias urbanas (NAPOLITANO, 2002, p. 8). Em nosso país, pensamos que a diversidade cultural está presente nestas duas músicas. Pois como disse Kiefer (1990, p. 33) “os compositores eruditos do Modernismo não podiam deixar de dar atenção aos gêneros populares (ou semieruditos) nacionalizados [...]”. E vimos isso com Heitor Villa-Lobos, que digeriu insaciavelmente muitos vocabulários musicais, atuando de maneira bem brasileira, no nível popular e no erudito, e promovendo uma fusão entre os dois. Também pudemos perceber isto nas apresentações da OST, especificamente na CG. Por oportuno, não podemos deixar de introduzir que a manifestação cultural remetente ao popular analisado foi o gênero musical Baião/Forró, inaugurado na indústria fonográfica nacional por Luiz Gonzaga na década de 1940. Mas, será o Baião uma música popular? Quando pensamos concomitantemente em música e Baião, que logo resinificouse para o Forró, percebemos que não podemos esquecer uma função social básica que a música sempre desempenhou: a dança. Elemento catalisador de reuniões coletivas, voltadas para a dança, desde os empertigados salões vienenses ao mais popularesco 35 É um termo tipicamente usado para classificar arranjos musicais para piano e cantor solo, com letras geralmente em alemão. 36 É uma palavra de origem francesa, que significa "canção”. 37 É qualquer composição musical escrita para um cantor solista, tendo quase o mesmo significado de canção. 38 É uma tradição vocal, técnica e interpretativa da Ópera italiana. 151 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 arrasta-pé, passando pelos saraus familiares e pelos não tão familiares bordéis de caisde-porto, a música popular alimentou (e foi alimentada) pelas danças de salão. Quanto à origem da palavra Forró, podemos evidenciar a existência de três versões diferentes. A primeira, talvez a mais conhecida, é a que diz que o termo surgiu no final do século XIX, nas construções das estradas de ferro no Nordeste pelos ingleses. Estes realizavam festas frequentemente, mas nem sempre abertas à população. Quando a festa era aberta à todos, escrevia-se na entrada For All (isto é, para todos) (ROCHA, 2004). Então, o termo Forró teria surgido como variação da pronúncia da expressão inglesa citada. A segunda versão é muito parecida, porém, quem realizaria as festas seriam os soldados norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial (19391945) (ROCHA, 2004). E, por fim, a terceira tem relação com a expressão africana forrobodó – mais antiga, significando algazarra, festa para a ralé, arrasta-pé e representando, segundo Aurélio Buarque de Holanda, a contração de forrobodó, que é a mais aceita. (ROCHA, 2004). Ainda, segundo Quadros Júnior & Volp (2005, p. 119): O Forró é a festa onde se toca gêneros musicais nordestinos, tais como o baião, o xote, o xaxado, o côco e a quadrilha, e se dança o baião, o xote, o xaxado, o côco e a quadrilha. Porém, é importante atentarmos que, popularmente, o termo forró é usado para designar tanto as “danças nordestinas” quanto as “músicas nordestinas”, por isso é comum as expressões “Vamos dançar um forró” ou “Vamos tocar um forró”. Note-se, ainda, que estas expressões não distinguem os vários gêneros musicais e os vários ritmos de dança que compõem o fenômeno. (grifo dos autores) Assim, como música, o Baião e Forró são elementos culturais que fundamentam grande parte dos comportamentos de nossa sociedade, que pauta-se em seus ritmos, letras e danças por ela desencadeadas para nortear seu cotidiano. Para Trotta (2009, p. 22), a música constitui um importante espaço aglutinador dos hábitos, desejos, saberes, sonhos, costumes e valores que permanentemente circulam e entram em conflito no terreno da cultura. Em outras palavras, músicas não apenas fazem cantar, dançar e divertir, elas “carregam teias de significados, valores e sentimentos que interagem com a vida cotidiana das pessoas e dos grupos sociais”. 4. O CASO DA ORQUESTRA SINFÔNICA DE TERESINA: e uma Cantata Gonzaguiana 152 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Swoboda (1968) diz que a Orquestra, enquanto bem institucionalizado, teve contribuições e percurso seminal desde meados da era cristã, passando pelo Renascimento, Barroco e Romantismo, mas foi no Classicismo a sua mais forte demonstração de autonomia, entre 1750 a 1820. No século XX, em plena Modernidade, houve uma ampliação desta autonomia, principalmente do ponto de vista quantitativo e ela passou a ser dividida em três forma principais: a) Orquestra de Câmara, constituída por um pequeno grupo (entre 8 e 18 músicos), que executa músicas instrumentais em pequenos locais, dedicando-se a um segmento instrumental restrito; b) Orquestra Filarmônica, maior que a de Câmara em número de músicos e instrumentos, mantida por amigos, admiradores da arte e entidades privadas; e c) Orquestra Sinfônica, composta por naipes39 de diversas famílias instrumentais, maior que a de Câmara e a Filarmônica, sendo mantida por entidade privadas e pelo poder público. O estudo foi realizado a partir de uma revisão de literatura, de pesquisa bibliográfica sobre cultura e música erudita e popular, bem como de pesquisa em acervo da OST e de materiais publicitários produzidos pela própria OST, reportagens de jornais impressos e publicadas na internet. Também foram realizadas três entrevistas abertas com um produtor, um músico e um regente da OST. O que hoje é a OST, outrora foi originada ainda como Orquestra de Câmara em 1993. Todavia, em 1986 ela foi criada pela Lei Municipal nº 1.842 de 26 de fevereiro de 1986, para ser mantida pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, com o objetivo de desenvolver atividades de artes cênicas, plásticas, literatura, música, folclore e música popular, e que teve sua materialidade a partir de um projeto social de musicalização para crianças carentes por meio de instrumentos de cordas friccionadas (violinos, violoncelos, violas e contrabaixos), com fomento do Ministério da Cultura, no ano de 1991. 25 jovens bolsistas integravam o grupo. Em 2005, passou a ser Orquestra Filarmônica, pois teve o suporte financeiro da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. E em 8 de junho de 2007, passou a contar com a gestão administrativa e financeira da Prefeitura Municipal de Teresina, por decreto municipal, consequentemente tornou-se a OST, tendo como missão o aperfeiçoamento e a 39 Uma Orquestra possui quatro famílias (naipes) de instrumentos: cordas, madeiras, metais e percussão. Disponível em: <http://sandra-musicasempre.blogspot.com.br/2011/05/naipes-da-orquestra.html> Acesso em: 05 ago. 2013. 153 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 musicalização profissional, a difusão da música clássica erudita e regional, bem como a promoção e o desenvolvimento dos músicos e da organização musical. (FEITOSA, 2010); (MAGALHÃES, 2010) A juventude da OST fez com que até hoje, apenas dois maestros estivessem a sua frente. O primeiro foi Emmanuel Coelho Maciel, violinista e Professor do Departamento de Educação Artística da UFPI e de formação clássica, que permaneceu na OST por oito anos, quando então o Maestro Aurélio Melo assumiu a regência e direção da Orquestra. Hoje a OST é formada por 73 músicos (violino, viola, cello, baixo, clarinete, oboé, fagote, flauta, trompete, trombone, tuba, trompa, tímpano e percussão), 2 regentes e 4 produtores. A OST durante sua existência já desenvolveu diversos trabalhos e apresentações. Após sua institucionalização como orquestra sinfônica ela passou a realizar diversas apresentações em espaços públicos, teatros e igrejas e teve como principais produções: Concerto para Crianças; A 9ª Sinfonia de Beethoven; Os Recitais Didáticos; Concerto de Natal; Publicou o livro “Repertório Básico”; Gravou o CD “Valsas Piauienses”, de Possidônio Nunes Queiroz; Apresentação com Maristela Gruber; Música depois da Missa; OST nos Bairros; Concertos pelo Sertão; Cantata Gonzaguiana; Concertos Matinais; e 1ª Semana Sinfônica. O projeto Cantata Gonzaguiana foi pensado a partir dos resultados obtidos com o Projeto Concertos pelo Sertão, em que a OST, com patrocínio da Petrobrás realizou 09 apresentações em 04 Estados Nordestinos: Piauí (Valença, Picos e São Raimundo Nonato); Ceará (Crato e Juazeiro do Norte), Bahia (Juazeiro da Bahia e Remanso) e Pernambuco (Salgueiro e Petrolina), em que atingiu todos os seus objetivos e teve suas expectativas de receptividade do público superadas. Destarte, numa discussão com o ator e humorista João Cláudio Moreno, o Maestro Aurélio Melo resolveu pensar, desenvolver e executar a CG. Como a denominação do projeto já indica o seu eixo fundante, resta-nos apenas repeti-lo. A CG é a apresentação de um conjunto de músicas autorais de Luiz Gonzaga, arranjadas sinfonicamente e com o incremento da parte vocal, realizada por um ator e humorista que consegue imitar de forma maestral a voz o Rei do Baião. Realizou 154 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 diversas apresentações pelo Brasil, com destaque para três apresentações: a primeira realizada no Projeto Artes de Março, no Teresina Shopping, a segunda foi a apresentação realizada no Congresso Nacional, especificamente no espaço cultural do Senado da República e a terceira foi a última apresentação do projeto, realizada em Exu-PE, cidade natal de Luiz Gonzaga. O que percebemos ao longo das análises de textos, vídeos, depoimentos e entrevistas realizados foi de que o distanciamento institucionalizado outrora vigente entre o erudito e o popular é desconstruído gradativamente, em tempos pós-modernos, principalmente a partir de exemplos como o da CG. Inicialmente podemos prematuramente perceber algo diferente no depoimento do Maestro Aurélio Melo, TV Senado (2013): Uma Orquestra Sinfônica do Piauí nunca será igual a uma Orquestra Sinfônica de Brasília, nunca será igual a uma Orquestra Filarmônica de Berlim. Não tem condições! Nenhuma Orquestra do Brasil tem condições de chegar a uma Orquestra Filarmônica de Berlim, pois aquilo faz parte da cultura deles. Mas tocar uma música de Luiz Gonzaga, tocar uma música de Tom Jobim está mais no nosso sangue. Então porque não trabalhar em cima disso? Todavia, esta é a representação da alteridade que vem sendo ressignificada na cultura de nosso povo. É por esta fusão cultural que percebemos que as culturas erudita e popular aproximam-se de maneira negociada, a partir de suas realidades específicas e extemporâneas. Após analisar as apresentações percebi o nexo entre as duas músicas. Precisamos entender que entre música erudita e popular não há melhor ou pior, superior ou inferior, são simplesmente diferentes, passíveis de imbricamento e absorção uma pela outra. A liberdade de expressão caraterística da cultura popular e o canonismo do erudito promovem uma nova emergência cultural, ressignificada, que pode ser lida, negociada e de interesses diversos, por diferentes audiências agora. A efusividade com que o público aplaude as apresentações das CG faz-nos crer que a produção cultural do povo, representada pelas produções de Luiz Gonzaga, foi absorvida pela dinâmica hegemônica da música erudita com bastante propriedade. A cultura sertaneja consolidou-se como uma dinâmica de inclusão, gerando uma nova forma de expressão artística. O distanciamento institucionalizado do popular em relação ao erudito agora transformou-se em uma aproximação cultural. O Baião e o Forró são 155 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 manifestações da identidade cultural brasileira, assim como o Samba e o Carnaval, e apresentaram-se neste projeto como uma estratégia eficaz de aproximação do povo com a música erudita de característica nordestina. O reforço desta perspectiva é apoiado no entendimento do Entrevistado 02 quando solicitado a apresentar a expressão de seu sentimento ao tocar música popular com arranjos eruditos durante a CG? É como seu eu tivesse passando na peneira a força do povo nordestino. Esse paradoxo que há: rico-pobre; feio-bonito; alto-baixo; magro-gordo (verbalização acompanhada de expressão facial de negação) [...] Aquele sorriso que você vê na hora que eu tô tocando... pra mim ali... eu estou no céu, num diálogo com Deus... É corpo e espírito. [...] O povo brasileiro, o povo piauiense está precisando de referência, de sorriso, de alegria [...] E pra mim, a Gantata Gonzaguiana tem um gostinho especial, pois eu não nasci na Alemanha, eu sou nordestino, nascido em Demerval Lobão. Então quando eu coloco o chapéu de couro e toco um xote, um baião, um xaxado, eu digo aqui sim, aqui é a minha casa. 5. PERCEPÇÕES E ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES Numa época em que a música erudita pautava-se na autoafirmação de padrão cultural único e melhor para a sociedade, negando-se veementemente a cultura do povo, pois o atraso, a pequenez e a tradição próprias dela, fazia com que seu lugar fosse inferiorizado, podemos defender apenas o preciosismo das melodias, a instrução e a beleza sonora que nos encanta e desperta um prazer quase que inexpressível em palavras. Todavia, foi possível observar neste estudo, dentro das ações da CG, que este panorama vem sendo ressignificado. A partir da revisão de literatura e da pesquisa bibliográfica realizada também com o Projeto Concertos pelo Sertão, desenvolvido pela OST antes da CG e que serviu de pedra fundamental para se pensar esta fusão entre o erudito e o popular, foi possível analisar que a música erudita passou a ter um relacionamento mais próximo com um público diversificado, diferente daquele que se digna apreciá-la e daquele que não a conhecia. As dinâmicas de apresentação (ao ar livre, geralmente se uma acústica apropriada), o locais eleitos (praças, igrejas, shopping, adros) e os municípios e localidades em que as apresentações aconteceram têm relações estreitas com a música popular, assim, apresentar uma música erudita a partir de composições em que o público 156 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 se identifica, fez emergir novas formas artísticas com aproximações culturais antes marginalizadas. Parece-nos razoável começar a questionar se termos como música clássica, música de concerto, música boa, música intelectual, música superior e a verdadeira música, próprios do século passado, devem continuar sendo sinonimizados à música erudita. Será que hoje seríamos capazes de responder com propriedade se a música Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (1947), que encerra as apresentações da CG, é uma música popular? É somente popular? Se é um clássico? Será que termos como clássica, de concerto, boa, intelectual, superior e verdadeira podem ser aplicados à música Asa Branca, tocada e cantada na CG? O relacionamento direto, linear e horizontal que o erudito teve com o público durante as apresentações da CG representou uma estratégia exitosa de aproximação entre o erudito e o popular, que resultou em um dos principais objetivos que os projetos culturais possam prosperar atingir. Vimos esse resultado na resposta do Entrevistado 02 ao ser indagado sobre que contribuições sociais a CG trouxe para a sociedade, quando diz: O conhecimento! O conhecimento! Porque o ser humano é o que ele vê, o que ele escuta, o que ele geri. Então como é que o povo piauiense poderia gostar, o povo nordestino, o povo brasileiro, gostar de uma música erudita, se ele nunca escutou? Como é que um garoto pode gostar de uma sanfona se ele nunca viu um puxado de fole? Gostar de um zabumba? [...] A Cantata Gonzaguiana tornou isso possível. Concluímos que as músicas erudita e popular redesenhadas na CG representam o equilíbrio cultural que ambas devem possuir diante do público, pois apenas diferenciam-se quanto a sua forma, som e estrutura, não sendo diferentes quanto à sua altura, peso, tamanho e beleza. Na CG fica nítida a reciprocidade de suas contribuições culturais uma com a outra, principalmente quando observamos uma música popular ser enquadrada numa quadradura, numa melodia sinfônica e ao mesmo tempo uma Orquestra Sinfônica de asas abertas, voando, livre e molejando-se à sonoridade afroditiana do Baião de Luiz Gonzaga, sanfoneiro do sertão, brasileiro do Brasil, como já proclamava o saudoso Luiz da Câmara Cascudo. (Grifo nosso) 157 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 As concepções tradicionais de cultura e música erudita, de cultura e música popular, já não mais dão conta das multifacetadas hibridações que cultura e música se prestam, já cessaram historicamente e não servem para entender às simples, e ao mesmo tempo complexas, imbricações culturais contemporâneas, como é o caso da CG. Para este entendimento é preciso ladear com indiferença parcialidades e preconcepções, pois a incompletude sobre o entendimento do outro nos reforça a compreensão de estarmos quase sempre distantes do que seria a verdade. Ao contrário, a alteridade nos deve proporcionar contribuições para uma melhor significação da multiculturalidade, em sua característica estadunidense liberal como traz CANCLINI (1997) em sua produção El malestar en los estudios culturales, que postula uma igualdade natural e uma equivalência cognitiva entre as diferentes culturas. A brevidade deste diálogo incontenta-nos o espírito disseminador de nossas crenças, no entanto, findo estes superficiais comentários, sublinho a necessidade de aprofundamento deste entremeio, de observações a partir de mais lugares plurais para a evolução de um lugar que se não mais plural ainda, que clarievidencie processos comunicacionais e culturais que permeiem inciativas artísticas, políticas e culturais como o caso da CG. E ainda, pontuo a experiência das duas músicas em contextos ainda mais eloquentes, como o da Orquestra Sanfônica de Teresina, que já influenciada pela OST e pela CG, presta a oportunidade empírica de sentirmos esta energia musical que traz o erudito e o popular fundidos em composições de Luiz Gonzaga e Dominguinhos. REFERÊNCIAS BENDASSOLLI, Pedro F.; WOOD JR., Thomaz; KIRSCHBAUM, Charles; CUNHA, Miguel Pina e. Indústrias criativas: definição, limites e possibilidades. Rev. adm. empres. [online]. 2009, vol.49, n.1, pp. 10-18. ISSN 0034-7590. BIZZOCCHI, Aldo. O clássico e o moderno, o erudito e o popular na arte. Líbero. São Paulo, v.2, n.3/4, p.72-76, 1999. CANCLINI, Néstor García. El malestar en los estudios culturales. En Fractal. Revista Trimestral [on line], n. 6, jul - set, ano 2, volume II, México. 1997. p. 45-60. Disponível em: <http://www.mxfractal.org/F6cancli.html>. 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Os ideais e valores industriais se inserem também na construção do corpo e do seu erotismo. Por meio das manchetes, é possível pensar na produção e no consumo do corpo e do sexo. O consumo como elemento integrador dos dois ideais de masculino e feminino. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação. Nova. Men's Health. Erotismo. Indústria cultural. ABSTRACT: The present article proposes a enunciative reading for the cover of the magazines Nova and Men's Health. With that, thinks about the role of consume in the formation of the hegemonic masculinity and emphasized femininity exposed in the two publications. The industrial ideals and values are also inserted in the fabrication of the body and its eroticism. Through the headlines, it is possible to think about the production and the consume of the body and the sex. Consume as the integrator element of the two ideals of masculine and feminine. KEYWORDS: Communication. Nova. Men's Health. Eroticism. Cultural industry. 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS A leitura enunciativa proposta no presente trabalho visa enunciar os principais autores, teorias e conceitos para o estudo do objeto em questão, as revistas de 40 Doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília, linha de pesquisa Imagem e Som. Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, linha de pesquisa Jornalismo e Sociedade. Jornalista e escritor. 161 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 comportamento Nova e Men's Health, voltadas, respectivamente, para o público feminino e masculino. Tal leitura não esgota o objeto, mas fornece as balizas teóricas indispensáveis para a discussão proposta. Ela será dividida em três partes: na primeira, estudos sobre sociedade de consumidores e indústria cultural, a partir dos trabalho de Arendt, Foucault, Bauman e outros. Na segunda, ideais e vivências do masculino e do feminino e a construção de corpos-modelo e corpos de consumo, a partir de Connell e Hoff e dos autores da primeira etapa. Por fim, o uso midiático do erotismo como retórica de persuasão para o consumo, a lógica mercadológica de produção/consumo reafirmada nos procedimentos do corpo, ele mesmo instrumento da indústria. 2.1 Leitura enunciativa: Animal Laborans, biopoder, sociedade de consumidores Em A condição Humana (2010), Hannah Arendt descreve o trabalho, a obra e a ação como as atividades fundamentais da vita activa, pois correspondem às condições básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra. O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano. Sua condição é a própria vida. Como os outros animais, temos de saciar as necessidades permanentemente repostas do processo vital. A obra é a atividade que correspondente à não-naturalidade da existência humana, que não está irremediavelmente presa no sempre-recorrente ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último. Ela confirma a nossa singularidade perante os outros seres ao dizer respeito ao legado não-natural do passado. Sua condição humana é a mundanidade. Já a ação é a única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação da matéria. Ela corresponde à condição humana da pluralidade, condição fundamental de toda vida política, artifício por meio do qual os indivíduos afirmam a sua presença única no mundo, por meio da ação e do discurso. Arendt (2010) mostra que nos primeiros estágios do capitalismo manufatureiro há uma mudança no critério de definição do produto de fabricação humana. Se em um período anterior, a finalidade do homo faber, o fabricante de mundo, era a criação de objetos de uso, com o novo modelo econômico a finalidade da fabricação passa a girar em torno do valor de troca. 162 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Por ser somente no mercado de trocas que um objeto pode adquirir valor em relação a outro, o homo faber ganha espaço na esfera pública. Com isso, o homem político perde o seu espaço, pois no mercado de trocas a relação entre os indivíduos se dá na condição de fabricante de produtos, exibindo não a sua individualidade, mas suas mercadorias. Nesta mesma perspectiva, Foucault (2008) fala do homo oeconomicus, cria de uma nova razão governamental que coloca o mercado como instrumento de veridição da prática de governo. É ele que vai fazer com que o governo funcione com base na verdade, verdade esta que é dada pelo mercado (FOUCAULT, 2008, p.45). O homo oeconomicus permite que a arte de governar se regule de acordo com o princípio da economia, tanto se tratando de economia política quanto de economia no sentido de restrição e autolimitação – do governo e de si. Foucault descreve esse papel como um átomo de liberdade diante de todas as condições restritivas e limitadoras de um governo possível (FOUCAULT, 2008, p.370). Nesta relação, em que a liberdade só existe enquanto o mercado permanecer pressuposto inquestionável, a invisibilidade e o obscurantismo do processo são fundamentais. A mecânica econômica implica que cada um siga seu próprio interesse e, ao fazer isso, também impede a compreensão da totalidade do processo, para que possa combinar seus elementos constituintes artificial ou voluntariamente. O sujeito econômico não contesta, mas funda o caráter atomístico do processo econômico do qual está inserido. A vitória do homo faber na era moderna representou também a generalização do critério utilitário. A categoria de meios e fins, que diz respeito ao processo de fabricação, foi introduzida como mentalidade nas mais diversas esferas da sociedade. Com isso, o espaço privilegiado da contemplação dá lugar à ação como o mais elevado posto, tornando a contemplação, outrora importante, sem sentido (ARENDT, 2010, p.364). Outras consequências advindas com a era moderna foram a alienação do mundo, a introspecção e a perda do senso comum. O fato de que a moderna alienação do mundo foi suficientemente radical para estender-se até a mais mundana das atividades humanas, a obra e a reificação, à produção de coisas e à construção do mundo distingue as atitudes e avaliações modernas ainda mais nitidamente daquelas da tradição do que indicaria uma mera inversão de posições entre a contemplação e a ação, entre a atividade de pensar e a atividade de agir. O rompimento com a contemplação foi consumado não com a promoção do homem fabricante à 163 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 posição antes ocupado pelo homem contemplativo, mas com a introdução do conceito de processo na atividade de produção (ARENDT, 2010, p.376). O critério utilitário do homo faber foi levado ao extremo com a instrumentalização de tudo o que existe. O Animal laborans reduziu todas as atividades humanas ao denominador comum de assegurar as coisas necessárias à vida e a produzilas em abundância. A vitória do trabalhador sobre o fabricante de objetos e o homem de ação marca um novo limiar em que humanidade e animalidade têm suas fronteiras diluídas. A fruição do mero estar vivo converte-se no horizonte da felicidade, esta compreendida como saciedade. Arendt (2010) diz que o evento decisivo da modernidade política foi a instrumentalização da política pelo mero viver, o bem supremo. A vida se torna o valor único. A partir desse entendimento, Foucault (2008) e Agamben (2002) trabalham o conceito de biopolítica, que representa a inclusão da vida natural nos mecanismos de poder estatal. A vida biológica ganha importância política na modernidade justamente pelo seu aspecto sacro, mas também é por esse fator que ela é exposta ao poder soberano da vida e da morte. O fenômeno da biopolítica pode ser entendido como exercício cotidiano de um poder que investe na preservação da vida por meio da aniquilação da própria vida, o que leva Agamben também falar em tanatopolítica. Esse processo de inclusão da vida no cálculo político conduziu à formação de estados totalitários, observável no nazismo e no stalinismo, por exemplo. O valor – e o desvalor – da vida humana converte-se em tema central da atividade política. A inclusão da vida na política não é exclusiva dos regimes totalitários. Isso também constitui as democracias liberais e de mercado. O desenvolvimento do capitalismo não teria sido possível sem o controle disciplinar de um biopoder, com tecnologias diversas que proporcionaram os “corpos dóceis” tão fundamentais para o sistema. Agamben mostra que a biopolítica do totalitarismo moderno e da sociedade de consumo e do hedonismo de massa possuem as mesmas raízes e justificativas. Fala também da decadência da moderna e do progressivo convergir com os estados totalitários nas sociedades pós-democráticas espetaculares (AGAMBEN, 2002, p. 17). 164 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A vitória do animal laborans representa o apequenamento da estatura e dos horizontes do homem moderno, para quem a felicidade é o último objetivo a almejar e se mostra exclusivamente como saciedade e fastio. Com isso, a busca pela imortalidade é substituída pela da longevidade anônima, o que traz consequências severas para a política. Com a vitória do animal laborans, é a existência do mundo como obra do homem que entra em discussão. É a permanente ameaça de ser tragado pelos processos socialmente construídos para a busca e satisfação das necessidades, sempre pululantes, que está em jogo na relação do animal laborans com o mundo. Arendt mostra que quanto mais fácil se torna a vida em uma sociedade de consumidores ou de trabalhadores, mais difícil é a possibilidade de se preservar a consciência das exigências da necessidade que a compele. O perigo, alerta, é que tal sociedade, deslumbrada pela abundância, e presa ao funcionamento aparentemente orgânico de um processo interminável, já não seja capaz de reconhecer a sua própria futilidade (ARENDT, 2010, p.167-168). A verdade bastante incômoda de tudo isso é que o triunfo do mundo moderno sobre a necessidade se deve à emancipação do trabalho, isto é, ao fato de que o animal laborans foi admitido no domínio público; e, no entanto, enquanto o animal laborans continuar de posse dele, não poderá existir um verdadeiro domínio público, mas apenas atividades privadas exibidas à luz do dia. O resultado é aquilo que eufemisticamente é chamado de cultura de massas; e o seu arraigado problema é uma infelicidade universal, devida, de um lado, ao problemático equilíbrio entre o trabalho e o consumo e, de outro, à persistente demanda do animal laborans de obtenção de uma felicidade que só pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e de regeneração, de dor e de alijamento da dor, atingem um perfeito equilíbrio. A universal demanda de felicidade e a infelicidade extensamente disseminada em nossa sociedade (que são apenas os dois lados da mesma moeda) são alguns dos mais persuasivos sintomas de que já começamos a viver em uma sociedade de trabalho que não tem suficiente trabalho para mantê-la contente. Pois somente o animal laborans, e não o artífice nem o homem de ação, sempre demandou ser “feliz” ou pensou que homens mortais pudessem ser felizes (ARENDT, 2010, p.166). A vitória do animal laborans pode ser compreendida, portanto, como uma estratégia de domesticação do homem por meio do pathos, aqui compreendido como desejo, como fome. Preso a necessidades artificiais, à construção social dessas necessidades, ele dedica sua vida à obtenção dessa saciedade. Em um mundo em que o tempo não pode mais ser divido entre trabalho e ócio, mas entre produção e consumo, o animal laborans é um ávido trabalhador em um mundo de pouco trabalho. Esse sujeito econômico, diz Foucault, é o homem do consumo, mas, na medida em que consome, é 165 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 também um produtor, o produtor da sua satisfação. Ideal de satisfação, no entanto, que é definido pelo próprio mercado, o poder agindo interna e obscuramente. Dessa forma, o tempo excedente do animal laborans nunca pode ser empregado em algo que não seja o consumo, e quanto maior é o tempo livre, mais ávidos e urgentes precisam ser esses desejos. Com tal voracidade, nenhum objeto do mundo – nem mesmo as próprias pessoas, como mostra Bauman (2008), pois elas são tanto sujeito quanto objeto nesse processo – está a salvo do consumo e da aniquilação por meio dele (ARENDT, 2010, 166). É vital para o sistema produtivo a produção de consumidores, o que se realiza, como mostra Arendt, na forma com que as mercadorias são exibidas e incorporadas à vida social. Isso traz como consequência um tensionamento das subjetividades, a partir de uma miríades de modelos de identificação e de vinculação obtidos pelo consumo. A indústria cultural é parte estruturante neste processo, ao implantar na cultura os mesmos pressupostos em vigor na produção econômica em geral: o uso crescente da máquina e a submissão do ritmo humano de trabalho ao ritmo da máquina; a exploração do trabalhador; a divisão do trabalho (COELHO, 2006, p.10). Se o aumento da produção depende necessariamente do aumento do consumo – e, portanto, da destruição daquilo que foi produzido – a insaciabilidade é condição indispensável ao processo. O mal-estar advindo dessa busca irrefreável, verdadeiro trabalho de Sísifo, não é apenas consequência de se viver em um sistema em que o consumo é elemento totalizador e subjetivante: o mal-estar é também o combustível que move essa busca, ao estimular o consumo e, consequentemente, aumentar a produção, ao exigir do sujeito constantes reelaborações de si mesmo. Uma dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas poderem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente” satisfatório; que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentem a necessidade de se libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres. O corolário dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser juízes incompetentes de sua própria situação, e devem ser forçadas ou seduzidas, mas em todo caso guiadas, para experimentar a necessidade de ser “objetivamente” livres e para reunir a coragem e a determinação para lutar por isso (BAUMAN, 2001, p.25). 166 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 2.2 Leitura enunciativa: ideais e vivências do masculino e feminino, corpo-modelo, corpo-discurso A masculinidade hegemônica e a feminilidade enfatizada, expostas nas capas de Men's Health e de Nova, assim o são por possuírem uma relação intrínseca no seu comportamento e nas suas formações com o consumo. O corpo e o erotismo ali exibidos são industriais, revelam o predomínio da técnica sobre a subjetividade. Connell entende (1987, p.252) que as masculinidades hegemônicas passaram a existir em circunstâncias específicas, abertas, portanto, à mudança histórica. Formas anteriores de masculinidade podem ser substituídas por novas, justamente pelas relações de poder entre todos os participantes. O ideal de masculinidade também não precisa corresponder à maioria dos homens. A vitória da hegemonia envolve a criação de modelos de masculinidade que são especificamente figuras de fantasia. Mais importante que corresponder a tais modelos, afirma, é sustentar tais imagens como normativas por meio de uma estratégia coletiva em relação às mulheres e a masculinidades subordinadas. Desse modo, as masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma que não correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos. Eles oferecem modelos de relações com as mulheres e soluções aos problemas das relações de gênero. Ademais, eles se articulam livremente com a constituição prática das masculinidades como formas de viver as circunstâncias locais cotidianas. Na medida em que fazem isso, contribuem para a hegemonia na ordem de gênero societal (CONNELL, 1987, p.253). Já as formas de vivência do feminino operam no nível das relações sociais massificadas. A base essencial para a diferenciação, diz Connell, é justamente a subordinação global das mulheres aos homens. Todas as formas de feminilidade na nossa sociedade, afirma, são construídas no contexto dessa subordinação (CONNELL, 1987, p. 186). Por tal razão, não há feminilidade que possua a posição entre as mulheres mantida pela masculinidade hegemônica entre os homens. A forma definida em concordância com a subordinação e orientada para acomodar os interesses e desejos dos homens é chamada de feminilidade enfatizada (CONNELL, 1987, p.187). Outros modelos de feminilidade são definidos por 167 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 estratégias de resistência ou não-cumprimento ou até mesmo pela complexa combinação de cumprimento, resistência e cooperação. O inter-relacionamento dessas formas é parte fundamental nas dinâmicas de transformação das ordens de gênero. Como a masculinidade hegemônica, a feminilidade enfatizada é uma construção cultural pública, embora seu conteúdo é especificamente conectado com o ambiente doméstico. É um tipo de feminilidade performática, desempenhada especialmente para o homens. O corpo-modelo não é o corpo natural. É o corpo rigidamente trabalhado, disciplinado por normas, técnicas e procedimentos específicos, destinados a maximizar os ganhos e minimizar o tempo de produção. Manchetes prometem o corpo-modelo: barriga magra, coxas grossas, braços fortes, ombros largos. E o prometem, por meio desses procedimentos técnicos, com produtividade máxima: dietas com resultados quase instantâneos, quase sem esforços; exercícios de musculação com eficiência e imediata. O culto da produtividade aliado também ao corpo: maximização dos ganhos corporais e estéticos a partir de estratégias cientificamente comprovadas e maximização da obtenção de prazer por meio de técnicas, também embasadas por estudos acadêmicos. Não só o culto da produtividade, mas a demanda gerada a partir dela: com procedimentos tão simples e eficientes, como não, ou melhor, por que não aderir? Só depende do sujeito essa adesão, e quanto maior for ela por parte das pessoas que o cercam, maior a pressão para que ele a faça também. Pois não são só os procedimentos técnicos da indústria que se introduzem no corpo; são principalmente os valores que passam a operar na lógica de produção do corpo e de sua erótica. Se o que apresentado naquelas capas é tido como modelo, como ideal, por consequência, a não adequação é o seu oposto. Gera infelicidade, frustração, mal-estar. Os sentimentos de identificação, de pertencimento, de aceitação e de satisfação consigo são partes estruturantes do processo. Tais mudanças beneficiam o comportamento industrial ao elevar a mentalidade industrial de progresso no próprio cuidado com o corpo e com o sexo. Pode-se até mesmo pensar em produção e consumo, lados da mesma moeda. 168 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Na primeira etapa, a produção do sexo, tem-se os cuidados com o corpo, o aprendizado técnico, a conduta. Esse processo demanda gastos. O corpo da moda, a roupa da moda, a técnica da moda têm seus custos de produção. Sexo não é conjunção carnal de dois corpos nus, pois ninguém está realmente nu no sexo industrial. Os participantes vestem máscaras, assumem papéis previamente concebidos. O ato começa com a concepção do ser industrial, que é sexualmente atrativo porque carrega consigo os valores propagados pela indústria. Na segunda etapa, o consumo do sexo industrial, tem-se o sexo como válvula de escape das tensões provocadas pelo trabalho repressivo. A nova jornada de trabalho, surgida após importantes movimentos que exigiam melhores condições para os trabalhadores, não leva o operário à exaustão física, mas a adequação do homem à máquina e seu ritmo de produção mecanizado proporcionam um desgaste mental muito grande. A conduta vitoriana (FOUCAULT, 2003, p.11), que reprimia o sexo sob todas as formas que não a para fins procriativos, é abandonada por ser ineficaz nos novos tempos. A conduta sexual é modificada para atender aos interesses produtivos e seu consumo proporciona o relaxamento tão fundamental para o início de uma nova jornada de trabalho. Com respeito a isso confrontamos um novo e específico problema no mundo ocidental – a guerra entre eros e tecnologia. Não existe guerra entre sexo e tecnologia: as inovações tecnológicas ajudam a tornar o sexo seguro, disponível e eficiente. Sexo e tecnologia se reúnem para alcançar o “ajuste”; com a plena libertação da tensão nos fins de semana, pode-se trabalhar melhor no mundo convencional às segundas-feiras. As necessidades sensuais e a sua gratificação não estão em guerra com a tecnologia, pelo menos no sentido imediato (se estão a longo prazo é outra questão) (MAY, 1973, p.107). O sexo ganha requintes industriais: ele é despersonalizado, padronizados com normas e técnicas, regidos conforme a necessidade de indústria, que descaracteriza a sexualidade e a insere dentro da relação produção/consumo, reduzindo Eros à erotização, ao uso do corpo como ferramenta da indústria. O orgasmo atua como medida de sucesso, elimina a subjetividade da relação, anuncia a infabilidade da técnica. O homem perfeito (seja lá quem for) está ao alcance da leitora da Nova, desde que ela consiga se utilizar dos macetes da reportagem. Caso não consiga, o insucesso é por sua própria conta. As dicas infalíveis de sedução da Men's Health eliminam a subjetividade 169 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 da mulher a ser seduzida. Não importa quem seja, tal a força da técnica, seu predomínio sobre outras esferas. O amante tecnologicamente eficaz, derrotado pela contradição que é a cópula sem eros, acaba por tornar-se impotente. Perdeu a força de ser arrebatado e sabe muito bem o que está fazendo. Os instrumentos deixam de ser uma ampliação da consciência, passando a ser seus substitutos, e tendendo a recalcá-la e truncá-la (MAY, 1973, p.109). É preciso levar em conta também nesse processo de produção e consumo do corpo e da sexualidade o quão disciplinador é o débito, a dívida. Paga-se a crédito esse investimento com o corpo e nesse sexo, cujo resultado será a aceitação, o sentimento de sucesso, de vitória, de progresso. Todos os valores mais enaltecidos pela sociedade retraduzidos nesses novos investimentos. Tal investimento, no entanto, tem como contrapartida a necessidade de se estar sempre produzindo, sempre recebendo dinheiro para poder arcar com gastos. O espaço público invadido pelo privado. São os shoppings, os condomínios de luxo fechados, os residenciais privativos, os clubes etc. O consumo permeia todas as relações – e a disciplina é conduzida de forma a obrigar o trabalhador a produzir caso ele queira consumir – produção e consumo do corpo, produção e consumo do sexo também. Sempre se está um passo atrás do corpo-modelo. Sempre se está em dívida em relação a ele. Tal débito é disciplinador desse conduta, forçando sempre o investimento – ou as consequências da negação dele. A esteira da academia é também a roda do hamster. 2.3 Leitura enunciativa: Mídia e Erotismo O século XVIII dá início a uma abordagem científica do erotismo ao tratá-lo sob a ótica da razão (CAMARGO; HOFF, 2002, p.58), mas é o século seguinte que vem inaugurar a noção de sexualidade, por meio de todos dispositivos oriundos daquilo que Foucault (2003) denominou scientia sexualis, que incluem a formação de saberes e sistemas de poder que regulam sua prática e as formas de reconhecimento. A sexualidade é justamente o correlato dessa prática discursiva desenvolvida e estruturada lentamente. É um discurso que estabelece verdades científicas e normas regulamentares para a sexualidade, atuando sobre o corpo, determinando o que deve ou não ser feito, o que é saúde ou doença, e prescrevendo procedimentos adequados para a cura e para a prática sexual. 170 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Em O Nascimento da Biopolítica (2008), Foucault argumenta que o estado moderno integrou numa proporção sem precedentes técnicas de individualização subjetiva e procedimentos objetivos de totalização; um duplo vínculo político, constituído pela individuação e pela simultânea totalização das estruturas do poder. Vemos como na sociedade de consumo esse duplo vínculo se fortalece. Como elemento unificador, totalizante; consumo também como caminho subjetivante e identificatório. Vemos ainda o papel de uma indústria cultural que condiciona e legitima esses discursos sobre o corpo: “E diante de fenômenos como o poder midiático-espetacular, que está hoje por toda parte transformando o espaço político, é legítimo ou até mesmo possível manter distintas tecnologias subjetivas e técnicas políticas? (AGAMBEN, 2002, p.13)”. O desenvolvimento do capitalismo não teria sido possível sem o controle disciplinar de um biopoder, com tecnologias diversas que proporcionaram os “corpos dóceis” tão fundamentais para o sistema. Agamben (2002) mostra que a biopolítica do totalitarismo moderno e da sociedade de consumo e do hedonismo de massa possuem as mesmas raízes e justificativas. Fala também da decadência da modernidade e do progressivo convergir com os estados totalitários nas sociedades pós-democráticas espetaculares. Arendt, antes de Agamben, argumenta em A Condição Humana que o evento decisivo da modernidade política foi a instrumentalização da política pelo mero viver, o bem supremo. A vida se torna o valor único. A sociedade de consumidores adapta a concepção do modelo discursivo médicocientífico da scientia sexualis às relações mercadológicas, constituindo uma nova medicina do corpo, um novo controle. Primeiro, a compreensão da sexualidade do corpo, depois a associação da saúde à estética e a construção de padrões de corpo e de beleza, amplamente divulgados pela mídia. Tal dispositivo, diz Foucault, gerou um “falar de” que possibilitou a construção e a difusão de um “fazer” normatizado, em uma nova forma de realização do erótico. Na mesma perspectiva, Morin mostra como a indústria cultural associou o erotismo com o próprio movimento do capitalismo moderno. O dinheiro, sempre insaciável, se dirige a Eros, sempre subnutrido, para estimular o desejo, o prazer e o gozo, chamados e entregues pelos produtos lançados no mercado. É o que ele chama de expansão vertical 171 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 do capitalismo, que invade o reino dos sonhos, acorrenta a libido e domestica Eros. Morin (2002, p. 122) diz que ao utilizar o desejo e o sonho como ingredientes no jogo da oferta e da procura, o capitalismo soube impregnar a vida humana de um onirismo e de um erotismo difusos. O erótico passa a ser regido pelo econômico. Dentro daquilo que Lévy (1996) chama de virtualização, ele perde a sua essência e a sua força criativa a partir do momento em que a mídia procede de maneira semelhante à scientia sexualis na criação de verdades e na divulgação e controle do discurso erótico. O erotismo midiatizado produz um corpo-discurso, construído na mídia para significar e ganhar significados nas relações midiáticas. É imagem, texto não-verbal que representa um ideal e dilui a subjetividade e a dispersividade dos corpos de natureza e de cultura (CAMARGO; HOFF, 2002, p.27). É um simulacro cuja função é difundir e propagar o discurso do poder. Relaciona a saúde à estética, desagrega valores gerontocráticos, acentua a desvalorização da velhice e promove valores juvenis. Esse processo de virtualização do erótico e de apropriação econômica dele, em que ele se dissolve nas funções mercadológicas e está presente em todas as redes de exercício do poder, acarreta na dissolução do seu próprio potencial criativo. Objetivado pela economia, ele perde suas representações locais e determinantes da moral, perde sua subjetividade. Prevalece o caráter físico, ou seja, aquilo que é expresso no corpo como erótico, que permitirá tratá-lo como mercadoria e, como tal, terá valor somente o que dele for observável universalmente. O novo entendimento do erótico faz com que ele não seja religioso, pois sua ligação com o começo e a vida prende-se ao plano natural. Não é político, porque não é ideológico, e nem regulador da convivência social. Também não é moral, pois não propõe práticas de melhoria de vida – sonhos e utopias – e porque a consciência de eternidade prevê viver mais e não viver melhor. Desprovido da dimensão intelectual e marcado pelo código econômico, quase não se distingue do pornográfico. Está presente em todas as formas discursivas, sempre numa dimensão econômica, e não mais como erótico propriamente dito (CAMARGO; HOFF, 2002, p.46). Esse erotismo midiatizado carrega consigo elementos da scientia sexualis e da ars erotica. Do primeiro, o investimento direto sobre o corpo e a sexualidade, além da construção de um falar de e um fazer específicos às questões. Do segundo, a constituição de um poder que é imposto pelo indivíduo para si mesmo, não por meio da 172 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 lei e do chicote, mas voluntária, por exercícios e cuidados. As estratégias de coerção existem e são severas, mas dependem da voluntariedade do sujeito durante o processo, por meio da identificação com esses padrões de beleza, como será discutido na leitura argumentativa. A sanção a quem não se submete a tais padrões depende da inserção social do indivíduo e diz respeito à sua imagem perante os outros e a si mesmo. Como Morin e outros mostram, cabe à indústria cultural o papel normatizador do corpo e da sexualidade, além da tarefa de instigar, por meio desses olimpianos, a vontade para seguir tais códigos de conduta. O corpo-modelo da mídia tem de tornar aparente aquilo que, enquanto ideia, não passa de abstração, difícil portanto de ser comunicado. O corpo-modelo é um corpo-síntese. Nesta perspectiva, as revistas de comportamento analisadas nesta leitura enunciativa cumprem função fundamental. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001. ______. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008. CAMARGO, Francisco Carlos; HOFF, Tânia Márcia Cezar. Erotismo e mídia. São Paulo: Expressão e arte editora, 2002. COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2006. CONNELL, R.W. Gender and power. California: Stanford University Press, 1987. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ______; História da sexualidade v.1. São Paulo: Graal, 2003. LÉVY, Pierre. O que é o virtual?. São Paulo: Ed. 34, 1996. MAY, Rollo. Amor e vontade: Eros e repressão. Petrópolis: Vozes, 1973. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 173 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A REPRESENTAÇÃO DOS VILÕES ATRAVÉS DAS FASES DA TELENOVELA BRASILEIRA Leonardo Sá SANTOS41 RESUMO: Este artigo visita as três fases da telenovela brasileira – sentimental, realista e naturalista – com o intuito de examinar a natureza dos vilões desse tipo de produção, personagens geralmente representados como pessoas extremamente atraentes e abastadas. Tendo como base os estudos de algumas das principais pesquisadoras da área, o trabalho investiga a função da vilania na estrutura narrativa das novelas televisivas e como beleza, riqueza e maldade são características associadas há mais de sessenta anos de teledramaturgia. PALAVRAS-CHAVE: Telenovela; vilões; televisão; ficção. ABSTRACT: This article visits the three phases of Brazilian telenovela – sentimental, realist and naturalist – aiming to examine the nature of the villains of these productions, characters usually represented as extremely attractive and rich people. Based on the studies of some of the leading researchers in the field, the paper investigates the role of villainy in the narrative structure of telenovelas and how beauty, wealth and evil are associated characteristics for over sixty year of fictional television production. KEY-WORDS: telenovela; villains; television; ficcion. 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Beleza, elegância e os mais diversos atos de maldade reverberam em uníssono nas telenovelas produzidas no Brasil. Corpos atraentes são responsáveis por carregar mentes frias, que calculam e executam assassinatos, roubos, torturas físicas e psicológicas. Para ganhar ou manter status de poder, os vilões dessas produções até se divertem ao manchar seus os impecáveis trajes com o sangue de quem se coloca em seus caminhos. 41 Acadêmico do curso de Comunicação Social, com habilitação em Radio e TV, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). 174 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Resistentes de mansões imponentes, donos de estilos sofisticados e luxuosas maneiras de viver, os principais antagonistas das novelas televisivas são geralmente apresentados como pessoas belas, refinadas e abastadas. Com poucas exceções, pode-se notar algo comum no principal gênero ficcional da TV brasileira: “veem-se personagens honestas e descentes porque são pobres e conclui-se que o dinheiro conspurca e degrada, que o dinheiro serve, mas é sujo” (PALLOTTINNI, 2011, p. 131). Assim, é possível perceber que os vilões são reconhecidos pelo universo de aparências que os rodeia. Universo de aparências belas, claro, e, na maior parte das vezes, sustentadas pelo dinheiro. A construção do imaginário de vilões belos nas telenovelas brasileiras pode ser notada, por exemplo, nas obras de Gilberto Braga42, responsável por sucessos como Celebridade (2003), Paraíso Tropical (2007) e Insensato Coração (2011) 43 . O autor é apontado como especialista em mostrar os desequilíbrios econômicos nas produções que assina e, em seus roteiros, riqueza e poder ditam a postura dos personagens principais. “Rico pode e deve poder tudo; pobre deve humilhar-se e manter-se humilde. Rico é bonito e elegante, sabe viver; pobre é feio, desprezível e menor no mundo ficcional do autor Gilberto Braga” (PALLOTTINNI, 2011, p. 131). As novelas de Braga não são casos isolados e tal construção também pode ser percebida em obras roteirizadas por outros autores. Em Fina Estampa (2011), Agnaldo Silva apresentou a dicotomia através da protagonista Pereirão (Lília Cabral) e da vilã Tereza Cristina (Christiane Torloni). Como o apelido sugere, Pereirão era uma mulher rústica, de classe social baixa, trabalhadora, humilde, de personalidade explosiva, mas simpática, além de possuir uma aparência descuidada por valorizar mais o bem estar da família do que o seu próprio. Já Tereza Cristina era má, ostentava uma vida de luxos, estava sempre bem vestida, elegante e tinha um mordomo que não lhe poupava elogios. Assim como em Fina Estampa, maldade acrescida de beleza física também pode ser notada em Amor à Vida (2013), Salve Jorge (2012), Avenida Brasil (2012) e tantas outras produções de exibidas em horários e emissoras diferentes. 42 Autor brasileiro de telenovelas e minisséries. Produções exibidas pela Rede Globo às 21h, janela de exibição de maior audiência da televisão brasileira, conhecida como “horário nobre”. 43 175 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Fruto dos questionamentos surgidos no projeto de pesquisa “Maldade em outra ótica: feiúra moral sob o véu da beleza na narrativa da telenovela”, desenvolvido no departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), este artigo se propõe averiguar a história da telenovela brasileira, seus primórdios e fases, com o objetivo de entender a natureza sedutora de seus vilões e a relevância narrativa dessa característica estética para o sucesso do produto midiático em que é inserida. 2. TELENOVELA EM FASES Segundo os estudos da pesquisadora Maria Immacolata Lopes (2009), a história da telenovela brasileira pode ser categorizada em três fases: sentimental, realista e naturalista. Cada período com características próprias, marcados por estilos narrativos peculiares. A fase sentimental foi predominante na década de 1950, juntamente com as primeiras telenovelas exibidas no país, e perdurou até o ano de 1967. O estilo foi caracterizado pela forte exploração das emoções, a fim de comover o público e envolvêlo através de situações que, muitas vezes, não tinham qualquer proximidade com a realidade do dia a dia do telespectador da época. Havia uma linha mais tênue em relação as origens do secular gênero novela, nascido nas infindáveis canções feitas e reproduzidas por trovadores, que hibridizavam histórias dos mundos da realidade e da imaginação. “Em primeiro lugar, nota-se que, na origem, a novela era ou podia enredada, entrançada, literalmente enovelada; podia ser ainda inverossímil, exatamente a acusação que mais se faz à telenovela” (PALLOTTINI, 2011, p. 32). Lançada em 1966, pela Rede Globo, Sheik de Agadir é indicada como um modelo típico do período dos sentimentos, pois apresentava “seus personagens de nomes estrangeiros vivendo dramas pesados, diálogos formais e figurinos pomposos, ambientados em tempos e lugares exóticos” (LOPES, 2009, p. 25). Aparentemente uma trama ordinária, sobre uma donzela disputada fervorosamente por dois homens, a produção ganhou subtramas e outros elementos puramente fantasiosos, chegando até a mostrar heróis árabes montados a cavalo, armados com espadas, e soldados nazistas no mesmo contexto. Ao fim da trama, a delicada princesa Éden de Bassora, interpretada 176 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 pela adolescente Marieta Severo, foi desmascarada como autora de uma série de assassinatos cometidos no decorrer da trama. O atual modo de produção de telenovelas nacionais é reconhecido pela retratação do cotidiano, com abordagem de dramas mais comuns a quem assiste e se identifica com as obras. “A telenovela tem tido, no Brasil, uma espécie de coautoria: a da realidade e a da sociedade” (PALLOTTINI, 2011, p. 66). Já nas produções típicas do período sentimental, não havia busca pela mimetização do comum e elas se prendiam ao escapismo, como em O Rei dos Ciganos (1966), que contou a história de Wladimir (Carlos Alberto), um cigano que se apaixona por Wanda (Sônia Clara), moça disposta a abdicar da vida de luxos na nobreza austríaca para se dedicar ao romance. No caminho dos dois ficou o charmoso conde Fernando Racozy (Andé Villo), homem que fez de tudo para separar a casal. A estrutura com abordagem distante da realidade brasileira foi predominante em várias outras obras das décadas de 1950 e 1960, sobrepondo-se aos demais modos de se dramatizar na televisão. Mas pode-se perceber que durante o período também foram transmitidas novelas televisivas mais cotidianas, todavia, que não tinham qualquer ambição além da raiz melodramática do gênero. 0-5499 Ocupado (1963), por exemplo, tinha o clássico drama amoroso, mas sem a necessidade abrir-se tanto ao mundo fantástico. Beto Rockfeller (1968) inaugurou a fase realista na teledramaturgia nacional, dando início a “uma mudança na telenovela brasileira que vai distanciá-la, sempre mais, do modelo melodramático e maniqueísta da novela clássica” (MOTTER, 2003, p.51). A produção da Rede Tupi ignorou várias características da fase anterior e implantou em sua narrativa qualidades que permanecem até hoje nas obras nacionais, como o uso da linguagem coloquial do dia a dia, abordagens de pautas comuns a quem acompanha os capítulos diariamente, personagens complexos, humor e realização de gravações externas para retratar a vida diária. “Esse paradigma trouxe a trama para o universo contemporâneo das grandes cidades brasileiras” (LOPES, 2009, p. 25). Com autoria de Cassiano Gabus Mendes e Bráulio Pedroso, Beto Rockfeller se afastou das terras árabes e europeias para mostrar abismos sociais do final da década de 177 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 1960. O desejo por uma vida bem sucedida, em um país em pleno desenvolvimento, é representado pela dúbia figura do vendedor de sapatos Alberto (Luís Gustavo), que assumiu o pseudônimo que nomeia a telenovela para penetrar no mundo dos milionários de São Paulo. O personagem viveu dois extremos, de morador de um bairro simples ao de um falso magnata assíduo nos pontos mais frequentados pela elite paulistana. A obra aproximou telespectador à história contada, pois conseguiu reunir “as ansiedades liberalizantes de um público jovem, tanto masculino quanto feminino, recém-chegado à metrópole, em busca de instrução e integração nos polos de modernização” (LOPES, 2009, p. 25). O país e sua identidade começaram a ganhar cada vez mais espaço na dramaturgia de televisão, mostrando “a vocação da novela em mimetizar e em renovar constantemente as imagens do cotidiano de um Brasil que se ‘moderniza’” (LOPES, 2009, p. 25). As telenovelas se transformaram em espaços onde as pessoas passaram a enxergar a si mesmas em um ambiente crível. As tramas longínquas e ilógicas passaram a ser preteridas, dando espaço a visões mais próximas à vida habitual, típicas do período realista. Tempo e espaço fictícios passaram a refletir a nação contemporânea. As histórias de um romantismo primitivo, que se passavam em lugares e épocas distantes e exóticos, com personagens esquemáticas e nenhuma ligação com o mundo brasileiro, sucederam enredos mais realistas, reconhecíveis pelas pessoas comuns dentro de seu mundo comum, enredos que cobrem, é verdade, quase tão somente a parcela das pessoas que vivem entre a pequena classe média e o universo dos milionários; mas que, de qualquer forma, tocam, ainda que às vezes ligeiramente, um mundo real de carências, vícios e miséria (PALLOTINI, 2011, p. 165) Sem o ar poético, o linguajar comum adotado a partir de 1968 ajudou a massificar as telenovelas, que se tornaram produtos mais acessíveis. Personagens excêntricos deram lugar aos inspirados em pessoas comuns, mudança que facilitou a aproximação do público com as tramas exibidas. “Suas personagens vão se afastando do mundo maravilhoso da pura fantasia rumo a um mergulho progressivo e gradual no mundo social concreto. Vivem num cotidiano tenso, perpassado de problemas, angústias, impotências” (MOTTER, 2003, p. 43). Pode-se perceber também que a vilania abandou condes e princesas, formando raízes na privilegiada alta sociedade brasileira. A sensual Raquel (Eva Wilma) foi 178 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 destaque na primeira versão de Mulheres de Areia, lançada em 1973 pela Rede Tupi, trama em que se torna rica ao usurpar a insípida irmã gêmea, Ruth. Já em Dancin’ Days (1978), Joana Fomm interpretou Yolanda Patrini, uma mulher invejosa, egoísta e, claro, elegante milionária. A década de 1990 trouxe consigo a fase naturalista da telenovela brasileira. As obras se tornaram fortes meios de denúncia e problematização do país, sendo responsáveis pela criação de relações íntimas entre o telespectador e diversos problemas sociais, muitos dos quais pouco conhecidos pelo grande público até serem retratados nas produções seriadas. As novelas de TV desse período, que ainda é predominante atualmente, são reconhecidas por “sintetizar o público e o privado, o político e o doméstico, a notícia e a ficção, o masculino e o feminino, está inscrita na narrativa das novelas que combina convenções formais do documentário e do melodrama televisivo” (LOPES, 2009, p. 26). As criações dos autores, diretores e atores deixaram de ser consideradas meras cópias romantizadas da vida real, como na fase anterior, passando a ter o status de agentes de influencia na sociedade atual. O período naturalista é caracterizado pela fusão entre as clássicas tramas românticas e as diversas temáticas políticas e sociais. Histórias sobre amores perdidos e conquistados são acrescidas de mensagens socioeducativas sobre a preservação do meio ambiente, sexo seguro, desaparecimento de crianças, trabalho infantil, dependência química, pedofilia, preconceito racial, violência nas cidades, imigração, síndrome de Down, e várias outras questões. Sendo assim, o que era entretenimento puro “se converte em lugar privilegiado para discussão e reavaliação do atual modelo de sociedade” (MOTTER, 2003, p. 42). As abordagens são realizadas diretamente nas narrativas das telenovelas, que passam a ser responsáveis pela introdução das temáticas ao público, que assimila assuntos anteriormente superficialmente abordados ou tratados como tabu. Os ensinamentos dramatizados nas novelas televisivas mais recentes receberam o nome de merchandising social. A Rede Globo foi responsável por sistematizar e instituir o uso desse recurso comunicativo, que é a base da fase naturalista. O conteúdo educativo implícito à grande parte das produções veiculadas há mais de duas décadas é percebido quando um personagem enfrenta problemas para se livrar do vício em álcool 179 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 ou quando é discriminado pela cor da pele, tenta superar as barreiras impostas pela dislexia ou é segregado pela origem humilde. Também não é raro que muitas situações da realidade sejam acrescentadas na ficção através de depoimentos de pessoas que passaram por circunstâncias semelhantes. A relevância do marketing social é ressaltada pelos estudos de Maria Immacolata Lopes, que apontam o recurso como forte influenciador nas aprovações do estatuto do idoso, do estatuto do desarmamento e da lei Maria da Penha. As telenovelas atuais cumprem a chamada função pedagógica explícita do melodrama, que “se apresenta de forma deliberada e cujo discurso traz explicações, conceituações e definições, enfim, forma opinião, acerca dos temas sociais abordados” (LOPES, 200, p. 33). As produções assinadas por Glória Perez são nítidos exemplos do funcionamento desse artifício narrativo, pois abordam temas de relevância, mas pouco esclarecidos. Barriga de Aluguel (1990) inovou ao retratar o desenvolvimento de embriões em úteros “alugados” por mulheres que não podem entrar em gestação; a internet e as relações construídas virtualmente foram temas de Explode Coração (1995), produção lançada bem antes da popularização da rede mundial de computadores; O Clone (2001) abordou a evolução da ciência genética e os malefícios das drogas; e América (2005) denunciou os perigos passados por brasileiros como imigrantes ilegais nos Estados Unidos. Vilões de Perez também são construídos com base no marketing social das obras naturalistas. Em Caminho das Índias (2009), Letícia Sabatella interpretou Yvone, uma mulher bonita, charmosa e de índole má, como é de se esperar de uma vilã, porém a autora se preocupou em explicitar que as atitudes friamente calculadas da personagem eram fruto de sua psicopatia. Diálogos expositivos eram usados frequentemente para alertar o público sobre a natureza dos psicopatas. Eram comuns as intercalações entre as cenas de Yvone e do psiquiatra Castanho (Stenio Garcia); enquanto ela adotava diferentes personalidades e cometias crimes diversos, o médico ficava responsável por elucidar os comportamentos típicos de um psicopata. As falas explicitamente didáticas, abominadas na ficção cinematográfica, são aceitáveis para a proposta educativa das telenovelas atuais, que devem abordar temas da forma mais clara possível a um público plural. 180 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Bem diferente do período sentimental, os autores de hoje também se preocupam em “criar caracteres que tenham raízes na realidade, que sejam verossímeis e que, evoluindo ao longo da longa história, conservem em sua trama o mínimo de coerência desejável. (PALLOTINI, 2011, p. 166). Em Salve Jorge (2012), Glória Perez cunhou a vilã Lívia Marine (Cláudia Raia) inspirada nos grandes chefes das redes de tráfico de mulheres brasileiras, com o claro objetivo de denunciar esse tipo de crime tão pouco tocado até o lançamento da obra. Resta saber se todos os traficantes de pessoas são tão alinhados quanto Lívia. 3. O LADO SÁDICO DA BELEZA Mesmo com a difusão das ideias humanistas e naturalistas emurchecendo cada vez mais as superstições de origem religiosa no mundo ocidental, até o Renascimento acreditava-se que a beleza era uma característica intrínseca às pessoas justas e de coração puro, aos escolhidos por Deus como portadores dessa qualidade física. Um corpo belo significava bondade, espiritualidade e nobreza. “Isso conduz mais profundamente ainda à hierarquização segundo os critérios de moralidade: determinar a perfeição estética ligando-a ao Bem” (VIGARELLO, 2006, p. 28). Do outro lado, entre os séculos XIV e XVII, a feiura e as diversas anomalias corporais eram comumente consideradas resultados do pecado, da perversão e da maldade. A aparência anormal era mal vista e as pessoas com deformidades físicas eram postas à margem da sociedade devido à crença que suas feições eram originadas por atos diabólicos. Nos dias atuais, esses tipos de associações não são mais correntes, porém, na ficção, boa parte dos filmes, livros, seriados norte-americanos, histórias em quadrinhos e desenhos animados também retratam a aparência física como reflexo da conduta moral de seus personagens. É comum observar protagonistas delicados e atraentes sendo perseguidos por vilões com corpos disformes, cicatrizados e monstruosos. Super-heróis salvam cidades de antagonistas com aparências sinistras, que servem como aviso para o perigo; bruxas com verrugas, grandes narizes pontiagudos e mãos finas como garras são constantemente vistas caçando príncipes e princesas desafortunados; homens desfigurados são enfrentados por atléticos rapazes. Em Harry Potter, série de sucesso na literatura e no cinema, Tom Riddle abdica do aspecto de um ser humano comum para tornar-se Voldermort, vilão de assustadora aparência ofídica. 181 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Nota-se que a telenovela brasileira foge do modelo apresentado acima ao sempre representar seus antagonistas principais através de atores e atrizes conhecidos não só pela desenvoltura nas artes dramáticas, mas também por seus corpos atraentes. É possível observar que essa escolha é feita desde os primórdios da teledramaturgia nacional, sendo percebida entre as telenovelas das fases sentimental, realista e naturalista. A partir do período em que as produções realistas predominaram, a ligação entre a maldade e a monstruosidade corpórea ficou ainda distante das novelas produzidas no país. Pode-se notar que mesmo as aparências ordinárias de corpos fisicamente normais são ignoradas diante da rigorosa exigência pelas belezas mais refinadas características dos vilões, que precisam causar temor, mas, ao mesmo tempo, seduzir os demais personagens e o público. 3.1 Princesa Éden de Bassora Linda, delicada, rica e assassina em série. A personalidade pudica das princesas dos contos de fadas pouco tem a ver com a da princesa árabe Éden de Bassora (Marieta Severo), vilã de Sheik de Agadir. Na telenovela que, como já citado, foi um marco para o período sentimental, Éden passa a cometer todos os tipos de crime para conseguir ter os sentimentos correspondidos pelo homem amado, o sheik Omar Ben Nazir (Henrique Martins). Figura - Marieta Severo como Éden de Bassora - Fonte: ISTOÉ44 44 Disponível em: http://www.terra.com.br/istoegente/157/celebridade/index.htm. Acesso em abr. 2014. 182 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Com roteiro livremente inspirado no romance Taras Bulba, de Nicolai Gogol, a produção teve autoria de Glória Magadan e começa quando o sheik que batiza a produção se apaixona pela princesa europeia Jeanette Legrand (Yoná Magalhães), que então é raptada da França para Agadir, no Marrocos. Com o objetivo de transformá-la em uma odalisca e conservá-la distante dos rivais, Omar mantém a moça em seu palácio. Os fatos despertam os ciúmes de Éden de Bassora, que passa a usar diversas artimanhas maliciosas para afastar o sheik e a francesa. Enquanto os dramas amorosos se desenrolavam, um misterioso assassino era responsável pela morte de vários personagens. Apelidado de Rato devido à destreza com que se movia na escuridão da noite, o criminoso tinha as mãos cobertas por luvas focadas enquanto asfixiava alguém. Após matar, o homicida deixava uma tarântula sobre o corpo morto, como uma marca registrada de seus atos. O mistério que rondava a identidade do Rato cresceu até o último episódio, quando foi revelado que a princesa Éden era a responsável pelo grande número de assassinatos em Agadir. As telenovelas sentimentais não precisavam ser verossimilhantes com a realidade e, por isso, uma adolescente franzina matando com as mãos soldados maiores e mais hábeis em combate não chega a parecer tão incoerente dentro do mundo diegético proposto. A resolução é aceitável porque personagens das novelas de TV podem ser desenvolvidos para “cumprir uma função anteriormente designado pelo autor, mesmo que isso seja feito à custa de uma caracterização superficial, contraditória, cheias de vácuos e incongruências” (PALLOTTINI, 2011, p. 168). Tratando-se de uma trama construída sem uma base fiel à realidade, não houve necessidade alguma de um desfecho mais sólido. A princesa usava a fragilidade para passar despercebida, chegando, em determinado ponto da trama, a fingir ser paraplégica. Os demais personagens não poderiam esperar que uma jovem cadeirante pudesse ser fisicamente capaz de cometer tais façanhas. No caso de Sheik de Agadir, a aparência nobre da vilã serviu como suporte para o suspense que a obra gerou. Éden não parecia ser capaz de ir além dos atos passionais mais leves para separar os protagonistas, mas acabou recebendo o título de primeira serial killer da TV brasileira. 183 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 3.2 Odete Roitman Em Vale Tudo (1988), Beatriz Segall viveu Odete Roitman, uma das mais expressivas vilãs das telenovelas brasileiras. A personagem ficou conhecida por sua frieza, pelo estilo elegante com que costumava aparecer em cena e pelo mistério da identidade de seu assassino, que efetuou três tiros contra seu corpo, poucos dias antes do final da trama. Vale Tudo é exemplar como novela da fase realista, que faz “opção por uma definição clara no tempo e no espaço – quase sempre o cenário contemporâneo situado no âmbito da nação” (LOPES, 2009, p. 25). As principais obras feitas entre o final da década de 1960 e 1980 comumente abordavam as diferenças econômicas e sociais brasileiras, a polarização entre riqueza e pobreza, interior e capital, tradicional e moderno. Odete surge como representação de um desses extremos, desempenhando o papel de mulher orgulhosa, que tenta usar o dinheiro como uma prova de superioridade. Ela não poupava críticas ao Brasil, lugar que considerava apenas execrável. Os atos da vilã faziam jus ao título da produção e, para ela, tudo era realmente válido: assassinato do próprio filho, envenenamento, golpes, chantagem, traição e tortura psicológica. Mesmo sendo tão maldosa quanto os vilões das produções sentimentais, ela se diferenciava por ser atual e, de certo modo, representar a classe alta do final da década de 1980. Embora sem nenhum traço de dualidade, ela era apenas má e não mostrava sentimentos que equilibrassem essa característica, a personagem foi uma retratação mais real como antagonista. É mais fácil crer em uma persona como Odete Roitman agindo em uma grande cidade brasileira do que na vilania excêntrica de lugares e tempos puramente imaginários. 3.3 Félix Prisão, morte, fuga e loucura são finais típicos para vilões das telenovelas. Contudo, Amor à Vida (2013) divergiu do modelo padrão e antecipou a punição de Félix (Matheus Solano), que não sofreu nenhuma das consequências recorrentes. 184 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Cercado por uma vida de luxo e conhecido por desprezar tudo e todos, o antagonista viu a própria vida mudar ao ser expulso de casa, após ter seus crimes revelados. Sem emprego, cartões de crédito ou lugar para morar, o vilão teve que se abrigar em um bairro simplório de São Paulo e sobreviver como vendedor de cachorro quente na Rua 25 de Março, conhecido ponto de comércio popular na capital paulista. Roupas caras começaram a se desfazer, pratos de restaurantes finos foram trocados por porções de macarrão instantâneo, o carro confortável deu lugar ao transporte público lotado e a aparência impecável transformou-se em um semblante cansado. Para um vilão arrogante e soberbo como Félix, conviver com o tipo de pessoas e estilo de vida que sempre menosprezou foi uma eficaz punição. Ser obrigado a encarar uma maneira de viver completamente diferente do que estava acostumado desencadeou o processo de redenção do personagem, que, pouco a pouco, passou a ser mais humilde, cordial e arrependido pelas atitudes maldosas que cometeu, mas sem perder o característico humor ácido. Como telenovela típica da fase naturalista, Amor à Vida apresentou uma forte mensagem socioeducativa inserida em seu contexto: a aceitação das diferenças. Por não ter o amor do pai, que não aceitava sua homossexualidade, Félix passou a cometer atos maldosos e cruéis, incluindo o sequestro e abandono da sobrinha recém-nascida em uma caçamba de entulho, apenas por ter ciúme da irmã preferida pelo pai. Apesar dos roteiristas de telenovelas não serem obrigados a construir experiências e traumas do passado que expliquem os atuais comportamentos dos personagens que criam (PALLOTTINI, 2011), o autor Walcyr Carrasco deixa claro que seu vilão não seria capaz ou precisaria causar tantos malefícios se tivesse sido aceito pelo pai. Neste caso, o marketing social funcionou como o que aponta Maria Immacolata. Para que ocorra é necessário que haja, por exemplo, referência a medidas preventivas, protetoras, reparadoras ou punitivas; alerta para causas e consequências associadas ou quanto a hábitos e comportamentos inadequados; valorização da diversidade de opiniões e pontos de vista (LOPES, 2009, p.38) O final da telenovela foi marcado pelo primeiro beijo entre dois homens da teledramaturgia nacional, protagonizado Félix e Niko (Thiago Fragoso), e as pazes entre o pai conservador e o vilão regenerado. O desfecho ressaltou a importância do respeito próximo independentemente de quem se escolhe amar. 185 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A telenovela brasileira transformou-se durante seus mais de sessenta anos de história, modernizou-se e ganhou novas maneiras de ser contada. O que não se modificou durante todas essas décadas foi a aparência dos vilões, que sempre foram atraentes, bem vestidos e elegantes. Crueldade, sadismo, brutalidade e frieza são características necessariamente associadas à beleza desde as primeiras obras realizadas no país até as que são exibidas atualmente. Mesmo na fase sentimental, período em que os autores mais se rendiam aos artifícios fantasiosos e buscavam comover o público através do exagero, os vilões já eram representados através de atores fisicamente atraentes. As telenovelas do período não tinham qualquer compromisso com a busca pela verossimilhança com o mundo real, porém, não desenvolviam seus vilões como figuras monstruosas, como fazem outros gêneros que também não se prendem à realidade, mas já traziam a beleza aliada às mentes malignas e corruptas. Personagens como o conde Fernando Racozy e a princesa Éden comprovam que os antagonistas das novelas não se impõem apenas através das típicas atitudes perversas, mas também pelo refinamento de suas aparências. A demanda pela mimetização do cotidiano brasileiro, que fez com que as produções realizadas no período realista se tornassem menos fantasiosas, também resultou na realocação dos vilões. Eles abandonaram os figurinos, penteados e falas pomposos e se aproximaram do comum, mas nunca com fisionomias banais, sempre belos e vistosos. A fase foi dominada pela encenação da polarização do país, sobretudo pela retratação das diferenças riqueza e pobreza, contudo, os personagens maus não transitaram com equidade entre múltiplos ambientes sociais, sendo postos majoritariamente nas classes sociais mais privilegiadas. A representação da vilania ganhou vida por meio da figura de empresários, coronéis, socialites, fazendeiros, políticos, grandes chefes de organizações criminosas e outros tipos poderosos facilmente encontrados em qualquer zona urbana ou rural do país. O dinheiro, nesses casos, era responsável por garantir estilos de vida luxuosos, que ascendiam os vilões até posições vantajosas contra os delicados mocinhos. 186 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Com o passar dos anos, eles continuaram a ter a função de movimentar a trama principal das telenovelas e, partir da década de 1990, passaram a receber a função de carregar de mensagens socioeducativas. Os vilões continuam buscando ganhar mais poder ou criar empecilhos aos casais protagonistas, mas suas atitudes passaram a possuir traços didáticos, mostrados de maneira implícita ou explícita. Os antagonistas atuais se mantêm atraentes e perigosos, mas contribuem para a naturalização de assuntos poucos conhecidos pelo grande público por meio do merchandising social. Diferente de outros gêneros e formatos ficcionais, as telenovelas raramente apresentam aparências assustadoras como reflexo da degradação moral de um personagem malicioso. Os vilões da chamada “narrativa da nação” são criados para seduzir e até instruir. REFERÊNCIAS LOPES, Maria Immacolata V. Telenovela como recurso comunicativo. Matrizes, São Paulo, Ano 3, n. 1, p. 21-47, ago./dez. 2009. MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e Realidade: A Construção do Cotidiano na Telenovela. 1. ed. São Paulo: Alexa Cultural, 2003. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. VIGARELLO, Georges. História da beleza: o corpo e a arte de se embelezar, do Renascimento aos dias de hoje. 1. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 187 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A INFLUÊNCIA DO FAIT DIVERS NAS POSTAGENS COLABORATIVAS DO YOUTUBE QUE MIGRAM PARA “CICLO DO JORNALISMO INTEGRADO” Marcelli ALVES45 Resumo: Estudar as postagem colaborativa que são escolhidas para serem utilizadas em um telejornal de referência é um dos anseios do trabalho que elegeu como o corpus de pesquisa o site youtube, o telejornal, Jornal Nacional, e o site de notícias G1, disponível. Observa-se que um novo ciclo da notícia surge com o cibermeio utilizado em complementação à televisão, denominado aqui como “Ciclo do Jornalismo Integrado”. O referencial teórico está embasado nas teorias do newsmaking e a do gatekeeper, além da análise dos materiais serem feitas à luz da semiologia de Barthes, com ênfase no Fait Divers. Palavras- chaves: Youtube. Jornal Nacional. G1. Fait Divers. Abstract : Studying the collaborative post that are chosen to be used in a newscast reference is one of the desires of the work that elected him as the corpus search youtube site, news, National Journal, and the G1 news website available. Observe that a new cycle of news comes with the ciberway used to complement the television, called here as "Journalism integrated cycle". The theoretical framework is grounded in theories of newsmaking and the gatekeeper, and the analysis of the materials being made in the semiotics ligth of Barthes, emphasizing the Fait Divers. Keywords: Youtube. National Journal. G1. Fait Divers. 45 Jornalista, doutoranda em Comunicação pela UNB. Professora assistente do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus de Imperatriz. E-mail: [email protected] 188 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 1. INTRODUÇÃO Muito tem se falado sobre o impacto das novas tecnologias no jornalismo. Várias possibilidades estão sendo apresentadas por estudiosos e novas termologias também têm sido inseridas na área da comunicação. Este artigo trata sobre essas questões, já que propõe uma termologia “Ciclo do Jornalismo Integrado” e surgiu depois de pesquisas relacionadas ao tema oriundas do grupo de pesquisa G Mídia – Grupo de Pesquisa de Mídia Jornalística e migrou para o processo de doutoramento, em andamento da UNB – Universidade de Brasília. Mediante a tantas nomenclaturas que surgem a partir do processo de convergência depara-se com o estudo sobre a utilização do vídeo amador e o processo que o mesmo está vivendo atualmente. O trabalho investiga o site de compartilhamento de vídeos youtube, o telejornal Jornal Nacional – JN ( Rede Globo) e o site de notícias ligado à Central Globo de produções, intitulado G1. Ou seja, a imagem bruta postada no youtube se transforma em telerreportagem e posteriormente em notícia no hipertexto no site G1 e retornando para o youtube, desta vez como notícia editada do Jornal Nacional ( é importante dizer que o fluxo não é linear, o que é estático é a origem, sempre no youtube e o seu retorno também. Mas ela pode ir primeiro para o G1 – em formato de hipertexto – e depois para o Jornal Nacional, ou vice versa). Ou seja, o ciclo sempre começa e termina no youtube. O motivo da escolha da rede de compartilhamento de vídeos youtube em detrimento de outras se fez em função da relevância da rede em questão. De acordo com Burgess, Jean (2009, p. 144) o youtube representa “uma apropriação normal, calma e embasada no discurso, no qual a mídia de massa e citada e recombinada, em que a mídia caseira ganha acesso público”. A pesquisa empírica permite a afirmação de que essa plataforma de compartilhamento de vídeos é um meio de o cidadão contribuir para o que anteriormente os autores chamavam de jornalismo colaborativo ou cidadão. Acredita-se que esse (jornalismo participativo ou cidadão) deixa o espaço, antes bastante explorado no ciberespaço, e vem também para a notícia aliada a imagem, na televisão. Em relação à termologia em voga Dan Gillmor (2004) afirma que nomes como Jornalismo participativo e Jornalismo cidadão são sinônimos da idéia de intercâmbio entre quem 189 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 produz a notícia (jornalista) e quem consome (expectador). Sobre o assunto Manuel Castells (2006) afirma que faz parte da chamada era da informação: É um período histórico caracterizado por uma revolução tecnológica centrada nas tecnologias digitais de informação e comunicação, concomitante, mas não causadora, com a emergência de uma estrutura social em rede, em todos os âmbitos da atividade humana, e com a interdependência global desta atividade. (CASTELLS, 2006, p. 225). No entanto, essa questão ganha força, rapidez e agilidade com a nova realidade tecnológica. A discussão é longa, alguns pesquisados temem que essa nova modalidade migre e passe a ser controlada demais. “Alguns veem um mundo sem gatekeeper, outro um mundo onde os gatekeepers têm um poder sem precedentes. Mais uma vez, a verdade está no meio termo”. ( HENRY JENKINS, 2009, p 46). O youtube marcaria então uma nova fase da televisão? A escolha do telejornal do canal aberto, Jornal Nacional, como corpus de estudo em questão junto com o site youtube e o G1 não foi ao acaso. Ele foi eleito em função ser apresentado por pesquisas de opiniões públicas como o primeiro lugar de audiência no horário nobre da televisão brasileira por anos consecutivos. Além disso, o telejornal em questão traz enraizada em sua história uma postura editorial oposta ao sensacionalismo. Por manter o seu critério em relação à qualidade da imagem o telejornal em questão também prima em relação a publicar apenas aquilo que estiver dentro dos padrões Globo de qualidade, previstos nos princípios editoriais das organizações Globo. O portal de notícias G1 foi eleito por fazer parte da Central Globo de Televisão e utilizar com frequência textos e vídeos oriundos dos telejornais da rede Globo. Exemplo do fluxo na imagem do vídeo amador quando as mesmas seguem a orientação do ciclo: redes sociais – televisão – site de notícias – redes sociais. Em um momento inicial, de forma empirica, inferimos que o fator determinante para que um vídeo pudesse migrar e entrar para o “Ciclo do Jornalismo Integrado” seria o número de acessos, no entanto, ao realizar as análises estatística percebeu-se que nem sempre isso é determinante para que o vídeo migre. Essa pergunta ainda está em busca de uma resposta pois faz parte do estudo, em andamento, do projeto de doutoramento da pesquisadora. 190 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 É importante ressaltar que os vídeos que alimentam o site youtube e que ganham notoriedade por meio da televisão registram fatos que poderiam permanecer no anonimato não fossem às novas tecnologias. No entanto, os vídeos amadores não são materiais jornalísticos, mas sim, produtors que servem para alimentar o jornalismo. 2. O “CICLO DO JORNALISMO INTEGRADO” E AS TERMOLOGIAS Novas modalidades de comunicação e também termos surgem com a velocidade nas quais as transformações oriundas dos impactos tecnológicos influenciam no dia a dia dos seres comunicantes. Uma das expressões em voga é o termo “líquido” para relacionar com as novas formas da comunicação. Segundo Lúcia Santaella (2007, p. 34) a metáfora do líquido representa que no atual momento tudo está em permanente estado de “desmontagem”, sem nenhuma perspectiva de permanência. “Já não há lugar, nenhum ponto de gravidade de antemão garantido para qualquer linguagem, pois todas entram na dança das instabilidades. Texto, imagem e som já não são o que costumavam ser.” Anelise Rublescki (2011), também discute a termologia e desenvolve o termo “Jornalismo líquido”. Para ela, a termologia está relacionada à reconfiguração do jornalismo a uma nova ecologia midiática, a partir da cultura da convergência. Sabe-se que a termologia, em diversas perspectivas, vem sendo estudada desde a década de 1970. Sobre este assunto Jenkins (2009) é claro: [...] um serviço que no passado era oferecido por um único meio – seja a radiodifusão, a imprensa ou a telefonia – agora pode ser oferecido de várias formas físicas diferentes. Assim, a relação um a um que existia entre um meio de comunicação e seu uso está se corroendo. (JENKINS, 2009, p. 37) Percebe-se que diferentes níveis midiáticos possibilitam a atuação de forma complementar. Alex Primo (2008) discorre sobre três níveis midiáticos propostos por Thornton (1996 apud PRIMO 2008): mídia de massa, mídia de nicho e micromídia. A interconexão entre os três níveis midiáticos é chamada pelo autor de “encadeamento midiático.” Ainda sobre as termologias adotadas na tentativa de explicar os novos acontecimentos recorre-se a Thais de Mendonça Jorge (2007). A autora traz o termo mutação da biologia para o campo comunicacional. No seu argumento, Jorge (2007) 191 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 justifica que a notícia passou por toda trajetória de organismo vivo, transformou-se mais uma vez e passou a assumir novos formatos, em discussão específica o hipertexto. Em relação à trajetória do jornalismo na Internet percebe-se que várias etapas já surgiram. Estudos embasados em autores nacionais como Suzana Barbosa (2007), Elias Machado (2008), Luciana Mielniczuk (2001 e 2003) e Vilson Santi (2009) classificam a evolução do webjornalismo em fases que ficaram assim conhecidas: webjornalismo de primeira, segunda, terceira chegando à quarta geração. As gerações eram analisadas por meio de metáforas. Quando surgiu a quarta geração muitos acreditavam que seria a última fase, pois sugere, entre outros, o desenvolvimento de sistema de gestão de conteúdos mais complexos e baseados em softwares e linguagens de programação com padrão open source. No entanto, Fabiane Grossmann e Mielniczuk (2010) instigam a reflexão sobre o surgimento da quinta geração do webjornalismo. As autoras afirmam: Uma quinta geração de webjornais será possível quando suas interfaces passem a ser pensadas não apenas em termos de metáforas, mas principalmente elaboradas a partir de estratégias comunicacionais. Tal visão propõe que se dê um passo adiante na questão do pensar as estratégias para a elaboração da interface, porque não basta ao webjornal estabelecer estratégias naquele sentido institucional, empresarial, conhecido como planejamento estratégico. É necessário que sejam também pensadas as estratégias comunicacionais constituintes das interfaces gráficas, uma vez que serão estas que irão atender aos objetivos comunicacionais do referido formato de jornal: atrair, conquistar o leitor ou um novo leitor. (GROSSMANN E MIELNICZUK, 2010, P. 01) Ainda relacionada ao jornalismo na internet, Gabriela Zago (2011) explora uma nova concepção em se tratando da circulação da informação nas redes sociais. A autora sugere o termo ‘recirculação’ e parte do princípio de que um mesmo indivíduo pode consumir uma informação e fazê-la circular. Ou seja, ao consumir, é possível se apropriar da informação, transformá-la em um novo enunciado e fazê-la recircular. 2.1 A relação do “Ciclo do Jornalismo Integrado” com as teorias da Comunicação A teoria do newsmaking inclui em seus estudos, principalmente, a forma em que se desenvolve o relacionamento entre fontes primeiras e jornalistas, além das etapas da produção informacional, em se tratando tanto do nível de captação até a sua distribuição. Segundo Mauro Wolff (2005), trata-se de um estudo ligado à sociologia das profissões, no caso o jornalismo. O autor afirma que ao estudar a termologia do 192 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 newsmaking faz-se necessário o entendimento do termo gatekeeper no processo de produção da informação. Ele é utilizado na tentativa de entender as escolhas dos critérios de noticiabilidade, ou seja, ele se justifica quando faz um comparativo entre a termologia gate (que significa portões em inglês) e a aproxima do processo de produção da notícia. O autor diz que o fluxo de notícias precisa passar por diversos gates (portões) que na prática seriam as decisões tomadas pelo jornalista. Ou seja, o gatekeeper precisa decidir se vai escolher determinada notícia ou não. “Se a decisão for positiva, a notícia acaba por passar pelo “portão”, se não for a sua progressão é impedida, o que na prática significa “morte” porque significa que a notícia não será publicada” ( WOLFF, 2005, p. 150). Os jornalistas na qualidade de editores passam a ser chamado de gatekeeping. Para encontrar justificativa ao termo, Wolff ( 2005) recorre a outros teóricos: Com o advento do jornalismo on line e as constantes discussões sobre o jornalismo colaborativo que o mesmo proporciona veio à tona um novo termo, o gatewatching, modelo que passou a existir com o advento da Internet. Esse é discutido como oposição ao gatekeeper. Axel Bruns (2005) diz que o gatekeeper está em extinção. Para ele, o processo se inverteu e o leitor, telespectador ou ouvinte se transformou em gatewatcher da informação. João Canavilhas ( 2010) apresenta um pensamento similar: Para além dos próprios media utilizarem estes canais, os leitores chamaram a si esta atividade, funcionando como uma espécie de novo gatekeepers que comentam e selecionam as notícias mais interessantes para os seus amigos (facebook) ou seguidores ( Twitter). ( CANAVILHAS, 2010, p. 3). Sabe-se que existem normas profissionais que encabeçam a seleção da informação. Pierre Bordieu (1996, p. 25) diz que "os jornalistas têm óculos especiais a partir dos quais veem certas coisas e não outras e veem de certa maneira as coisas que veem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado". Nelson Traquina (2005) concorda com o autor e atribui a esses “óculos” os valores notícias e os dividem. Servem de “óculos” para ver o mundo e para o construir. Sublinhamos, como o historiador Mitchell Stephens, as “qualidades duradouras” do que é notícia ao longo do tempo: o insólito, o extraordinário, o catastrófico, a guerra, a violência, a morte, a celebridade. Mas os valores notícia não são imutáveis, com mudanças de uma época histórica para outra, com 193 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 destaques diversos de uma empresa jornalística para outra, tendo em conta as políticas editoriais. (TRAQUINA, 2005, p. 95) Para o autor os valores-notícia são divididos entre os de construção e os de seleção. Traquina (2005) diz ainda que os critérios de seleção são subjetivos e estão relacionados à avaliação dos fatos de acordo com a sua importância, ele os define da seguinte maneira: morte, notoriedade, proximidade, relevância, novidade, tempo, notabilidade, inesperado, conflito ou controvérsia, infração e escândalo. Os valoresnotícia eleitos pelo autor como critérios contextuais são: disponibilidade, equilíbrio, visualidade, concorrência e dia noticioso. 2.2 A influência do Fait Divers nos valores notícias dos vídeos amadores Sabe-se que o estudo da comunicação contemporânea sofre a influência de vários pensadores franceses. Um dos pensamentos adotados nesse trabalho é oriundo do francês Roland Barthes que encabeça o campo da semiologia (estudos de todos os sistemas de signos). Foi Barthes também o precursor nos estudos do Fait Divers, termologia que está relacionado à imprensa sensacionalista: Muitas vezes, o rótulo sensacionalista está ligado aos jornais e programas que privilegiam a cobertura de violência. Entretanto, o sensacionalismo pode ocorrer de várias maneiras. É possível afirmar que todo o jornal é sensacionalista, pois busca prender o leitor para ser lido, e consequentemente, alcançar uma boa tiragem. (AMARAL, 2006, p. 20) Danilo Angrimani (1995, p.16) define o sensacionalismo como o produto que visa “tornar sensacional um fato jornalístico que, em outras circunstâncias editoriais, não mereceria esse tratamento.” O autor, enfatiza que ao enquadrar um veículo nessa denominação automaticamente se está afastando de mídias conhecidas como ‘sérias’. Barthes (1971 p.263) caracteriza o Fait Divers com o seu sentido aterrorizante “análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, em resumo anônimos”. O autor complementa afirmando que existem dois tipos de Fait Divers: o da causalidade e o da coincidência. Para o autor a causalidade está sempre vinculada a um absurdo, a narrativa sempre segue a desproporção entre o efeito e a causa. Já a coincidência e ressaltada pelo autor: “leva sempre a imaginar uma causa desconhecida, tanto é verdade que na consciência popular o aleatório é sempre distributivo, nunca repetitivo” (BARTHES, 1966, p.194). De forma geral, o Fait Divers não trata de assuntos oficiais, 194 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 mas, sim, de drama de pessoas comuns. Dessa forma, faz com que o leitor se reconheça nas histórias que de maneira geral poderia ser sua. Barthes (1971) subdivide as categorias do Fait Divers. Em relação ao da causa esperada o autor a desmembra em causa perturbada e causa esperada. O autor simplifica dizendo que a causa perturbada é quando se desconhece ou não é possível precisar a causa de tal fato e ainda, quando uma pequena causa provoca um grande efeito. “Causa perturbada: há o desconhecimento causal ou quando uma pequena causa provoca um grande efeito; Causa Esperada: quando a causa é normal, a ênfase recai nos personagens dramáticos — criança, mãe e idoso (BARTHES, 1971, p. 276-271). Em relação à causa esperada Barthes (1971) explica que se dá quando a causa é corriqueira considerada normal e normalmente explora personagens dramáticos que podem proporcionar comoção. De forma geral envolve crianças, mães ou idosos. Em se tratando do Fait Divers da coincidência o autor o divide em da repetição e o da antítese. A repetição é tratada quando uma informação acontece de forma repetida e leva o receptor a supor causa desconhecidas, que acontecem em aspectos diferentes. A antítese ocorre quando se assemelham dois termos de qualidade distante, ou seja, ela une dois termos opostos, e consegue estabelecer a fusão de dois percursos diferente em um único. Uma de suas formas de expressão é o cúmulo (a má sorte), figura da Tragédia Grega. Partindo desse princípio e relacionando o mesmo com vídeos amadores que ganharam espaço no Jornal Nacional e passaram a fazer parte do que denominamos de “ciclo do jornalismo integrado”, percebe-se em várias postagens a presença do Fait Divers. 2.3 A análise do Fait Divers no vídeo amador Essa pesquisa realizou análises empíricas em semanas dos anos de 2011, 2012 e 2013. Nesse período foram observados o telejornal intitulado Jornal Nacional, a plataforma e compartilhamento de vídeos na internet, youtube, e o site de notícias G1. A intenção foi identificar as imagens oriundas do youtube, a sua migração para a televisão, a transformação em hiperlink e o seu retorno como vídeo de telejornalismo na plataforma de origem. 195 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Os critérios estipulados pela análise levaram em consideração a identificação do vídeo amador e as características comuns entre eles, separando as amostras de forma intencional. As semanas eleitas para análise foram escolhidas como recorte em função de que após a análise anual dos materiais as respectivas datas apresentam vídeo amador. (2011 – 14 a 22 de Dezembro - 2012 – 10 a 18 de Janeiro e 25 a 31 de Julho - 2013 – 28 de janeiro a 01 de Fevereiro, 07 a 14 de Julho) Após a realização da análise empírica do material percebeu-se que a presença do vídeo amador não é constante, ou seja, ele não acontece em todas as semanas. No entanto, atentou-se também que grande parte deles apresenta características semelhantes em relação à presença do Fait Divers. Partindo para análise estatística o resultado sobre a presença do vídeo amador durante a semana é alterado de acordo com o fato. Por exemplo, assuntos de pequena repercussão, não são explorados em outras edições, portanto, a busca por novos vídeos ou a utilização do mesmo limita-se a apenas uma entrada. Diferente de fatos que ganham repercussões mais acirradas. Começaremos com a análise de um vídeo que após ser postado no youtube ganhou repercussão significativa. Na postagem, a imagem de uma enfermeira chamada Camila Corrêa Alves de Moura Araújo dos Santos chutava e jogava um cão da raça yorkshire no chão. Após a agressão o cão morreu. A atitude da enfermeira foi feita na frente da sua filha, uma criança de aparentemente três anos. Esse material foi utilizado por três vezes na cobertura do Jornal Nacional. O fato aconteceu no ano de 2011. No ano de 2012, nas semanas elencadas, foram encontradas duas postagens com a utilização de vídeos amadores. A primeira trata de uma suposta agressão de Policiais Militares a um estudante da Universidade de São Paulo – USP, no campus da instituição. Vídeos postados no youtube e explorados no Jornal Nacional mostravam a agressão que ocorreu durante a desocupação de um espaço que era usado pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE), esse material foi utilizado por duas vezes na semana. A outra postagem relacionada ao ano de 2012 fala da investigação de um policial por ter realizado um disparo durante um sequestro relâmpago na cidade do Rio de Janeiro. O material relata que uma mulher foi sequestrada na porta de uma escola a polícia foi chamada e encontrou os bandidos. Um deles foi baleado. A polícia diz que o infrator tinha reagido, mas as imagens evidenciavam que no momento do disparo o assaltante 196 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 não esboçava nenhuma reação. Ainda na reportagem o Secretário de Segurança do Rio de janeiro, José Mariano Beltrame, afirmou que os policias seriam submetidos a processo de expulsão sumária. Após a descrição dos materiais analisados é notório que a agressão, a morte, a infração a lei e a violência estão presentes em todas as postagens descritas. Esses itens corroboram para inferir que os mesmos contêm componentes do Fait Divers. Nos jornais não-sensacionalistas há sempre uma carga intensa de violência que não se revela, que não se escancara com a mesma intensidade encontrada nos jornais a sensação. Mas é uma violência disfarçada (ANGRIMANI, 1995, p. 57) A sequência dos materiais analisa semanas do ano de 2013. A primeira a ser contemplada refere-se ao assassinato do Mc Daleste. O Mc foi assassinado durante um show que realizava. O que ilustrou o material foram as imagens de celulares de fãs postadas no youtube e mostravam o momento em que ele foi atingido. Após a divulgação da morte outras imagens foram postadas, uma delas serviu para a polícia realizar a investigação, na busca de conseguir diagnosticar de onde o tiro tinha sido disparado. A análise das imagens pela polícia foi acompanhada pelo Jornal Nacional. Sobre essa situação recorre-se a José Arbex (2001, p. 52) quando o autor diz “O que importa nos atuais programas de telejornalismo, é o impacto da imagem, assim como o ritmo de sua transmissão”. Essa mesma linha de pensamento pode ser aplicada relativa às imagens que serviram para a cobertura de um fato que explorava que a disputa pela direção de sindicatos terminava com tiros em São Paulo. “Onde há morte, há jornalistas” (TRAQUINA, 2005, p. 79) e complementa “a morte é um valor-notícia fundamental para essa comunidade interpretativa e uma razão que explica o negativismo do mundo jornalístico que é apresentado diariamente nas páginas do jornal” (Idem, p.79). Na sequência da análise tem-se o fato de um avião bimotor que caiu logo após a decolagem em Manaus. As imagens de um cinegrafista amador que acompanhava o momento da queda foram postadas no youtube e utilizadas pelo Jornal Nacional. Notícia que evidencia a tragédia, assunto constante no Fait Divers. Fato semelhante na cobertura da notícia relacionada ao fato do acidente de balão que deixou três brasileiros mortos e oito feridos na Turquia. 197 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Imagens de violência também são evidenciadas na cobertura de quatro outros casos de materiais analisados. Um deles, fala sobre os depoimentos de PM´s que contradizem as informações da polícia sobre a prisão de estudante em protesto e a outra é relacionada a manchete de que um rapaz morre baleado em feira agropecuária em Goiânia. Ambos os materiais evidenciam imagens de cinegrafista amadores que respaldam a informação sobre o assunto. Marilena Chauí ( 1999) define violência como um ato de brutalidade. Para ela é a sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações subjetivas definidas pela opressão e intimidação e complementadas pelo medo do terror. A autora vai além quando se refere a imagem do mal. Para ela são imagens relacionadas ao espetáculo que causam indignação e compaixão e acalmam a consciência. O outro material analisado, relativo ao ano de 2013, relata um incêndio em uma boate com o nome kiss localizada na cidade do interior do Rio Grande do Sul, Santa Maria. O fato que ficou conhecido também como tragédia de Santa Maria teve um número de 242 mortos. Na cobertura desse fato foi utilizada com frequência a utilização de imagens postadas no youtube. Cobertura que evidencia o Fait Divers de Barthes (1971) quando se refere à superexploração do trágico, da morte, da dor. Barthes (1971) A definição leva a um paralelo com o pensamento de Barthes ( 1971) quando o mesmo refere-se a condição de sujeito que para o autor é conflituosa e muitas vezes trazida pelo Fait Divers. O autor justifica que é um efeito em nível de consciência mantidas pelo incosciente por meio da qual o telespectador se reconhece e vive aquilo como se fosse seu. Outros dois seguem a mesma ótica de observação. Um deles trata da depredação da prefeitura contra o aumento da passagem de ônibus no Rio Grande do Sul e o outro explora a chacina em São Paulo que acabou por deixar sete pessoas feridas. Para complementar o assunto mais uma vez recorre-se a Barthes ( 1971) quando o autor explica que o Fait Divers trabalha com um sistema de significação subjetivo, ou seja, ele denota a factualidade presente ao mesmo tempo que conota o conflito. O Fait Divers representa uma interpelação narcísica com o receptor que o identifica de forma projetiva os seus conflitos inconscientes comparando-os com os conflitos da informação. 198 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Os outros dois materiais analisados são os relativos ao incêndio na boate kiss e a outra sobre a denúncia da defesa dos direitos humanos sobre o massacre de mais de 65 pessoas na Síria. O primeiro assunto é relativo a um incêndio que aconteceu em uma boate com o nome kiss localizada em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, chamada Santa Maria. O fato que ficou conhecido também como tragédia de Santa Maria teve um número de 242 mortos. A maioria jovens estudantes da Universidade Federal da cidade. Na cobertura desse fato foi utilizada com frequência a utilização de imagens postadas no youtube. As imagens mostravam o momento do incêndio, o desespero das pessoas frente ao grande número de corpos espalhados pelo chão. As imagens exploravam o choro, o desespero das pessoas no momento do resgate. Cobertura que evidencia o Fait Divers de Barthes (1971) quando se refere à superexploração do trágico, da morte, da dor. Neste caso, enaltecidas pelas imagens do vídeo amador. Item que não foge a regra também na cobertura do caso do massacre na Síria, o vídeo amador permitiu trazer para dentro da casa das pessoas a imagem em movimento que retratava a tragédia, ingrediente inseparável do Fait Divers. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS É antigo o estudo que tenta encontrar uma resposta para o motivo que leva as pessoas ficarem fascinadas pela televisão. Poder integrar parte da notícia e ser contemplado em um telejornal de referência é anseio de muitos. Conseguir transformar o seu produto em notícia é fruto de trabalhos especializados, um exemplo são as assessorias, tanto de comunicação quanto de imprensa. Porém, às novas tecnologias trouxeram avanços diversos e consequentemente impactaram o comportamento das pessoas pois, notoriamente, com ela veio a possibilidade, tanto de estar com um celular na mão no momento do acontecimento de um fato e poder registrá-lo, quanto, também, a oportunidade de poder disponibilizar a imagem para o mundo por meio da Internet. Esse fenômeno também é objeto de estudos de diversos teóricos. No entanto, percebeu-se por meio de análise, tanto empírica quanto teórica, que essa filtragem de materiais que passaram a estar disponíveis na rede mundial de computadores a todo momento não é tarefa singela, uma vez que o número de colaborações é significativa. Buscar entender as semelhanças entre elas foi o anseio principal que auxiliou no início desse estudo. 199 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Sabe-se também que a notícia tem se transformado com o decorrer do tempo. Conforme Jorge (2007) ela passou por um processo de mutação. No entanto, verificouse que o ciclo da notícia também sofreu alteração (aqui em especial as que utilizam o vídeo amador). Anterior as redes sociais é sabido que uma notícia de telejornal era disponibilizada apenas em uma mídia específica (televisão) podendo ser desmembrada no dia seguinte no jornal impresso, apenas como texto que podia descrevê-la e no máximo uma foto. Com o advento da Internet e a implantação dos sites de notícias esse ciclo começou a ser alterado. Ou seja, uma reportagem utilizada em um telejornal passou a poder integrar também um site de notícias, uma das modalidades do hipertexto, considerado por alguns autores como “textos entre nós”. Porém, o que se conclui aqui é que com a rede de compartilhamento de vídeos youtube um novo ciclo passou a ser evidenciado. Para referendar o trabalho foram feitas análises em semanas nos anos de 2011, 2012 e 2013. A maior parte da análise está concentrada no ano de 2013. A intenção foi averiguar o telejornal intitulado Jornal Nacional para encontrar o uso do vídeo amador retirados da rede de compartilhamento de vídeos youtube. O que se atestou é que todos os vídeos amadores que foram encontrados advindos do youtube migravam para o site de notícias G1, veículo também ligado a central Globo de Jornalismo. A constatação também é que depois dessa migração o material editado volta para o youtube, mas dessa vez como reportagem do telejornal editado. Foi notado também que a ordem não é seguida em todas as postagens, por exemplo, se um vídeo é postado pela manhã, ele é utilizado no hipertexto do G1 e a noite se transforma em reportagem no Jornal Nacional, retornando em seguida para o youtube. Todas as notícias analisadas foram observadas a partir do ciclo: youtube,Jornal Nacional, G1 e youtube ou youtube, G1, Jornal Nacional, youtube. O que se afirma é que todas as postagens estudadas foram oriundas do youtube e retornaram para ele quando se transformaram em matérias do Jornal Nacional. Na busca ainda por respostas as semelhanças entres ambos constatou-se que todos contem ingredientes encontrados na definição de Barthes ( 1971) quando ele fala sobre o Fait Divers. Embora ingrediente inseparável da imprensa sensacionalista ele é componente também dos vídeos amadores que ganham destaque em um telejornal de 200 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 referência e se sobressaem em relação a outras postagens no sentido de conseguir espaço na imprensa nacional. REFERÊNCIAS AMARAL, Márcia Franz. Jornalismo popular. São Paulo: Contexto, 2006. ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: Um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus, 1995. ARBEX Jr., José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. 3. ed. São Paulo: Casa Amarela. 2001. BARBOSA, S. Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) - Um paradigma para produtos jornalísticos digitais dinâmicos. Tese de Doutorado. Programa de PósGraduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas – FACOM/UFBA, Bahia, 2007 BARTHES, Roland. 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De acordo com a autora, a antropologia visual viabiliza o conhecimento do homem através da imagem e permite o registro do real segundo um dinamismo próprio através do qual se estabelece uma relação entre o antropólogo, a sociedade à qual ele se refere e o seu espaço. Pretende-se verificar se este documentário pode ser avaliado como resultado de um trabalho antropológico, segundo uma poética do encontro, tomando a alteridade como característica principal. Palavras-chave: documentário, antropologia visual, alteridade, cotidiano, Promessas de um mundo novo. Abstract: This article analyzes the documentary Promises, filmed in Jerusalem between 1995 and 2000, based on the methodology of visual anthropology. According to France (2000), it enables man's knowledge through the image, which allows the recording of reality according to its own dynamics, through which it establishes a relationship between the anthropologist, the society to which he refers and its space. The proposed objective is to verify that this documentary can be assessed as a result of an anthropological work, according to a poetics of the meeting, taking otherness as its main feature. Key-words: documentary, visual anthropology, otherness, daily life, Promises 46 Mestranda em Comunicação visual pela Universidade Estadual de Londrina. Graduada em Comunicação Social – habilitação Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 204 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 1. INTRODUÇÃO O objeto desse artigo é analisar o documentário Promises, (Promessas de um mundo novo), produzido entre 1995 e 2000 em Jerusalém e dirigido por Justine Shapiro, B.Z. Goldberg e Carlos Bolado. A obra contempla as histórias de sete crianças entre 9 e 12 anos de idade, palestinas e israelenses, que narram suas vidas e apresentam ao mundo suas visões do conflito na região. Por meio da convivência e do envolvimento nas tarefas do dia a dia dos jovens, o cineasta participa das suas rotinas e evidencia questões religiosas, familiares, políticas, educativas, entre outras. Nota-se, nessa produção cinematográfica, um desejo de transformação social ao tratar do “outro”, além de abordar uma questão político-social pertinente que desperta a discussão sobre as paisagens, as fronteiras e os conflitos da região do Oriente Médio.47 Para Nichols (2007), os documentários trazem para as telas de televisão – ou de cinema – o mundo onde vivemos. Essa forma de produção audiovisual compreende inúmeras questões éticas, de forma e de conteúdo e envolvem o público de maneiras muito particulares. O autor afirma que “documentários não são reproduções da realidade, são uma representação do mundo em que vivemos. Representa uma determinada visão de mundo, uma visão com a qual talvez nunca nos tenhamos nos deparado antes” (NICHOLS, 2007, p. 47). Para o autor, todos os filmes são documentários, mas se diferenciam pela espécie de histórias que contam. Há, segundo ele, os documentários de satisfação de desejos – aos que chamamos de ficção – e os de representação social, que expressam algum aspecto da realidade e permitem que o público compreenda e explore “novas visões de um mundo comum”. 47 O filme recebeu 15 prêmios: 2003 One World Broadcast Trust Award for the Children's Rights Category, UK. 2002 Emmy Award “Best Documentary”. 2002 Emmy Award “Outstanding Background Analysis”. 2002 The NBR Freedom of Expression Citation National Board of Review. 2002 The Michael Landon Award for Community Service to Youth Twenty-Third Annual Young Artist Awards. 2001 Rotterdam International Film Festival. Audience Award and Best Film. 2001 Munich Film Festival Freedom of Expression Award. 2001 Jerusalem Film Festival Special Festival Award. 2001 Locarno International Film Festival Special Ecumenical Jury Prize. 2001 San Francisco International Film Festival Audience Award, Best Documentary Grand Prize, Best Documentary Golden Gate Award, Documentary Film. 2001 Vancouver International Film Festival Audience Award, Diversity in Spirit Award. 2001 Hamptons International Film Festival Best Documentary. 2001 Sao Paulo International Film Festival Best Documentary Audience Award. 2001 Valladolid International Film Festival Best Documentary. 2001 Paris International Film Festival (Rencontres) Audience Award-Best Film. 205 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Para a análise do filme Promises, adota-se a metodologia da antropologia visual, área do conhecimento que proporciona métodos de pesquisa para a produção fílmica acerca de uma realidade e para a compreensão de objetos fílmicos já produzidos. Na obra Antropologia fílmica, uma gênese difícil mas promissora, Claudine de France defende que o objeto da antropologia visual é “o homem tal como ele é apreendido pelo filme, na unidade e na diversidade das maneiras como coloca em cena suas ações, seus pensamentos e seus ambientes” (FRANCE, 2000, p. 17). Nesse sentido, o objeto da disciplina é duplo, uma vez que o filme pode ser o instrumento a serviço da pesquisa antropológica e também seu objeto de estudo. Temos aí, portanto, a análise do homem e a análise da imagem do homem. Serão analisados aspectos de produção do filme a partir dos princípios da metodologia da antropologia fílmica como pesquisa básica, tempo e descrição. Tendo em conta a poética do encontro de um filme documentário, será explorada a relação do cineastaantropólogo com os sujeitos no filme sob a ótica de Marcius Freire, que defende a alteridade como centro da construção do documentário. Tendo como aporte teórico as contribuições de Nichols sobre o documentário e as prerrogativas da antropologia visual de France, propõe-se nesse artigo a seguinte reflexão: a partir da metodologia da antropologia visual, o documentário Promises pode ser avaliado como resultado de um trabalho antropológico, segundo uma poética do encontro? 2. DOCUMENTÁRIO E ANTROPOLOGIA VISUAL De acordo com France (2000), diferentemente da pesquisa escrita, o estudo antropológico por meio do filme permite o registro do real segundo um dinamismo próprio, através do qual se estabelece uma relação entre o antropólogo cineasta e a sociedade à qual ele se refere. Entra aí a discussão de como as imagens são por ele captadas, de como o processo de produção do documentário é realizado, o que ele leva em conta e o que ele vai mostrar sobre o homem e para o homem. Para isso, os documentários lançam mão de uma série de procedimentos, de leis cenográficas, conhecidas por mise en scène, pois aquilo que aparece na imagem não é exatamente igual àquilo que é apreendido pela observação direta. Para France: 206 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 a reprodução audiovisual das manifestações do real introduz, no aparelho de pesquisa do antropólogo, uma reviravolta da qual ele nem sempre tem consciência, mas que cedo ou tarde o conduz a repensar a natureza e o status do observado, as relações entre o observador, o observado, a palavra e a escrita no interior da pesquisa antropológica (FRANCE, 2000, p. 18.). As primeiras imagens do documentário Promises compõem-se do público que o filme vai tratar: crianças judias e palestinas. Elas aglomeram-se junto da câmera de forma espontânea, evidenciando a presença do observador. Estão diante das lentes querendo mostrar-se como são, revelar algo de suas vidas, contar alguma coisa. Parecem que dizem: venham, venham ver como é minha vida, minha história. O filme documentário de representação social tem a missão de retratar uma determinada realidade, transmitindo uma mensagem acerca das pessoas inseridas em um determinado contexto, conforme a seleção e a organização do cineasta. Segundo Nichols, os documentários de representação social são o que normalmente chamamos de não-ficção. Esses filmes representam de forma tangível aspectos de um mundo que já ocupamos e compartilhamos. Tornam visível e audível, de maneira distinta a matéria de que é feita a realidade social, de acordo com a seleção e a organização realizadas pelo cineasta. Expressam nossa compreensão sobre o que a realidade foi, é e o que poderá vir a ser. Esses filmes também transmitem verdades, se assim quisermos. (NICHOLS, 2007, p. 27.) Quando esse tipo de produção audiovisual busca revelar a realidade, ele acaba colocando-nos diante de questões éticas, despertando no público um olhar sobre o mundo, a partir do seu trabalho de coleta de dados, produção, edição e veiculação. Fala de pessoas para pessoas. Partindo desse princípio do documentário, coloca-se a seguinte questão proposta por Nichols: o que fazemos com as pessoas quando filmamos um documentário? Nesse caso, diferentemente dos filmes de ficção - em que elas são tratadas com atrizes - em um documentário, temos atores sociais, que vivenciam seu cotidiano mais ou menos como fariam sem a presença da câmera. Os documentários não apresentam uma forma fixa, nem sequer tratam de determinados tipos de aspectos da realidade. Nichols defende que há inúmeras maneiras de se produzir um documentário, assim como infinitos assuntos que podem ser por ele abordados. O pesquisador utiliza quatro ângulos distintos a fim de caracterizar os documentários: o ângulo das instituições, o dos profissionais, o dos textos (filmes e vídeos) e o do público. 207 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Segundo o ângulo das instituições, Nichols sinaliza que o formato desse tipo de produção tem uma estrutura institucional, que apresenta um conjunto de limites ou convenções para o cineasta e para o público. Tem, na sua maioria, o comentário da voz over e são, em geral, patrocinados pelas redes de televisão ou pelas agências de informação. Se olharmos para um documentário sob o ângulo dos profissionais que o produzem, verificamos que cada cineasta pode imprimir o seu próprio estilo ao produzir um filme, além de poder estar sempre aberto a mudanças de linguagem ou variações de temas abordados. Um terceiro ângulo para definir o documentário a partir da análise do seu conteúdo, é necessário compreender os filmes que compõem a tradição do próprio documentário, segundo uma lógica específica. Conforme Nichols, a particularidade do gênero documentário é conferida a ele a partir de seu próprio argumento – uma alegação sobre o mundo que vivemos – organizado segundo uma lógica de produção de textos, imagens e sons. Daí nasce o envolvimento das pessoas com o filme, que busca em si mesmo o envolvimento com a realidade histórica. Se buscamos a definição de documentário a partir da ótica do público, devemos ter em conta que, pelo vínculo que possui com a realidade – ao representá-la com imagens que funcionam como índices – o filme documentário constrói sua própria perspectiva ou argumento sobre o mundo. Ou seja, segundo Nichols, o conteúdo de sons e imagens dispostos na tela está fortemente relacionado com o que o público compartilha no mundo histórico. A metodologia para a realização (ou para a análise) de um documentário tem o seu arcabouço nas técnicas da própria antropologia visual. Para a produção de um filme, toma-se em consideração alguns princípios que formam, segundo France, o “núcleo duro” da antropologia visual, como a pesquisa básica, a disponibilidade temporal do pesquisador e a descrição. Seu objetivo, nesse sentido é o conhecimento do homem através da imagem. O primeiro desses princípios é a pesquisa básica, ou o levantamento de dados sobre um grupo social que tem por objetivo aprofundar no conhecimento, na descoberta do objeto observado. O pesquisador nesse caso é o destinatário imediato da pesquisa, além do público que terá acesso ao conteúdo estudado. O segundo princípio é a disponibilidade temporal do antropólogo cineasta durante as distintas fases das 208 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 filmagens, de modo que ele necessita de tempo para acompanhar as pessoas filmadas, inserindo-se no seu contexto. O terceiro conceito importante a ser levando em conta é a descrição, resultado da atenção às palavras, gestos, conteúdos da expressão verbal. Comprometido com a descrição da realidade que vai demonstrar pelo filme, o antropólogo cineasta deve dar-se ao tempo de observar e de mostrar tudo aquilo o que se refere ao ambiente e aos indivíduos que ele se propôs estudar. Durante os primeiros minutos do filme, são mostradas imagens de Jerusalém com a voz over do narrador, introduzindo o cenário geopolítico onde o documentário ambienta-se. Ainda não se sabe quem é este observador; entretanto, em seguida, ele revela-se como um personagem daquele contexto por dois detalhes: primeiro porque conta que nasceu e cresceu em terras judias e segundo porque se coloca no meio das pessoas diante das câmeras, autoafirmando-se como um deles. A maneira como os elementos são dispostos pelo cineasta em um documentário etnográfico são fundamentais para a compreensão da mensagem transmitida, a fim de que seu trabalho provoque uma “reflexão sobre a maneira de colocar em cena os homens por meio da imagem” (FRANCE, 2000, p. 18). Seguindo este mesmo raciocínio, Nichols expõe que através dos documentários, somos capazes de enxergar questões oportunas, que pedem nossa atenção, como assuntos de alcance social, seus problemas e possíveis soluções. Daí nasce uma relação entre mídia e espaço, fortalecida pelo vínculo entre o filme e o mundo histórico apresentado aos nossos olhos pelo documentário. Segundo a análise de Nichols, temos aí dois tipos de representação: “eu falo deles para você” e “eu falo de nós para você”. Esta segunda classificação pode ser entendida como um narrador que, mesmo não estando presente continuamente no contexto dos grupos mostrados, é parte deles. Desde o início de Promises, o espectador é introduzido no cotidiano das crianças, com apresentação de cenas comuns nos espaços e ambientes que lhe são próprios: acordar, vestir-se, rezar, ir à escola. Há o registro de movimentos cotidianos como embarcar no ônibus e estudar ( conforme fotograma 1). Isto denota o envolvimento do cineasta com os gestos e as práticas das pessoas que representa. 209 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Fotograma 1 Sobre esse envolvimento, a antropologia visual lança mão do procedimento da inserção e do registro, anteriores e necessários à descrição propriamente dita. Fotografar os personagens é uma prática que contribui para esse registro, pois as fotografias funcionam como disparadores de histórias e memórias dos personagens. Cada uma pode desencadear um inesperado conjunto de narrativas, que cabe ao cineasta revelar. Dessa maneira, adiantam que o filme irá contar suas histórias e experiências, conforme o fotograma 2. Fotograma 2 A câmera de vídeo mostra o processo de fotografar do observador, isto é, o espectador fica sabendo que aquele que vai contar a história está registrando os sujeitos fotograficamente. A própria câmera de vídeo ressalta a atividade antropológica de pesquisa, de coleta de dados fotográficos (fotograma 3). 210 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Fotograma 3 O cineasta tem diante de si pessoas reais, que se dispuseram a mostrar-se como são, como levam suas vidas. Desse fato deriva uma série de reflexões acerca dos modos de representação desses indivíduos, que cabe ao cineasta explorar através do seu trabalho. Sobre isso, Nichols aponta que o valor dessas pessoas “reside não nas formas pelas quais disfarçam ou transformam comportamento e personalidade habituais, mas nas formas pelas quais comportamento e personalidade habituais servem às necessidades do cineasta” (NICHOLS, 2007, p. 31). A disponibilidade temporal do antropólogo faz parte desse trabalho, uma vez que o mais natural, ao representar personagens reais é respeitar o seu próprio ritmo de vida. Sobre isso, France acrescenta que uma tal conquista concretiza-se essencialmente quando o filme etnográfico não se contenta em oferecer somente imagens dos tempos fortes da atividade humana (estados de crise, dramas conflituosos, clímax de cerimônias paroxísticas), mas se dedica, igualmente, a restituir os tempos fracos (atos repetitivos anódinos) e tempos mortos (silêncios, ausência de atividade aparente) das pessoas filmadas. Em suma, conquistar o tempo consiste também em enfatizar os longos momentos que separam os tempos fortes da vida de um grupo ou de um indivíduo (FRANCE, 2000 p. 28). Surge daí a vitalidade do trabalho do cineasta ao colocar-se junto desse público, permitindo-se um encontro com ele. Isso pode acontecer de formas variadas, e cabe ao observador estar ciente da sua responsabilidade em representar o outro. Sobre esses modos de representação, Nichols explica que há diferentes modos de retratar as pessoas filmadas, partindo da relação tripolar entre o cineasta os temas ou atores sociais e o público ou os espectadores. Segundo ele, a interação mais clássica é “eu falo deles para você”. 211 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O cineasta se apresenta como o “eu”, pessoa individual que transmite a informação sobre alguém e para alguém. Pode ser feito em voz over – sendo anônimo, (não necessariamente o cineasta), portando-se como quem tem autoridade sobre o assunto e é desconhecido do público - ou diante das câmeras, em situações em que o próprio cineasta aparece e interage com as pessoas filmadas, contando, junto com elas, suas histórias, como um personagem. Essa visão pessoal do cineasta ajuda a transmitir ao público um ponto de vista sobre o assunto, a representação de uma opinião pessoal. O “falar de”, seguindo a visão de Nichols, pode adquirir vários matizes quando se trata de representar pessoas em um documentário. Isso pode incluir a narração de uma história, a construção de uma narrativa, ou a transmissão da informação sobre o mundo que compartilhamos para expressar opiniões. No documentário, o “eles” são as pessoas representadas no filme. Há uma separação entre o cineasta e aquele de quem ele fala. Segundo ele, pode-se representar os indivíduos plenos, complexos através de manifestações de situações que ocorrem no mundo, em um determinado contexto. Sobre o público que assiste ao documentário, podemos entendê-lo como o “você”, para quem o cineasta destina a realidade representada no documentário e permite que o filme o atinja de alguma forma. Separados do “eu” que conta a história e do “eles”, o “você” tem sua identidade diferente de ambos e, através da mensagem filmada, entra em contato com temas cuja experiência se assemelha à nossa ou contrasta com ela. 3. DOCUMENTÁRIO, RELAÇÃO E ENCONTRO Ao longo do filme, são colocadas legendas do transcorrer do tempo, como “um ano depois”. Com essa noção da passagem do tempo, percebe-se o envolvimento do cineasta na intimidade de vida das crianças, que lhe permite questioná-las sobre suas crenças, valores, identidades, histórias. Ele acaba por conquistar sua confiança, fundamental para que o registro das suas vidas seja apresentado ao público. Com isso, ele consegue evidenciar a pessoa que está mostrando nas câmeras. Freire define o documentário de cunho antropológico como as formas de representação fílmica que têm no outro sua própria razão de ser. Segundo ele, a relação estabelecida entre ambos deve 212 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 se desdobrar em um encontro, do contrário teríamos como resultado uma visão superficial dos sujeitos representados. Cabe diferenciar os conceitos de relação e encontro, explicados por Freire e outros autores como Pamela Vermes (1992). Ele defende que a relação precede o encontro, que supõe uma reciprocidade entre sujeitos (eu e tu, e não eu e isso). Quanto àquilo que se compreende por encontro: enquanto que a relação é o reconhecimento unilateral de alguém enquanto em tanto que “tu”, por parte de um “eu”, o encontro é aquilo que acontece quando dois “eu” entram simultaneamente em relação. O encontro é quando se encontram juntos, numa comunhão existencial dois “eu” e dois “tu”. O encontro é um privilégio que eu recebo. Eu entro numa relação de “tu” por minha própria vontade, e com isso cumpro “o ato do meu ser (VERMES, 1992, p. 91). O encontro entre os filmados e o filmador em Promises não se reduz a si mesmo, mas também desemboca num encontro efetivo entre os sujeitos do contexto documentado, separados por crenças, costumes e visões de mundo opostas. O resultado da construção do encontro entre o cineasta e os sujeitos representados por ele ao longo dos 5 anos acaba resultando na descoberta da viabilidade de um encontro real entre judeus e palestinos, antes para eles impensável. Pela atmosfera que é criada entre o observador e as crianças, elas parecem confortáveis contando seu dia a dia e revelando sua forma de vida, com características específicas para árabes e judeus. Há uma sequência de imagens de Raheli (irmã de Moishe) durante as quais ela vai explicando o que é costume fazer no Shabbat e as peculiaridades da sua vida futura. Isso é viabilizado pela posição que o cineasta se coloca frente a elas, respeitando suas maneiras de ser e de se expressar: ultrapassa a relação e culmina no encontro. Além disso, B. Z. Goldberg também apresenta-se ao público dentro de um veículo, que vai em direção aos locais onde vivem as crianças. Com essas imagens, parece estar afirmando que está entrando em seus dramas, nas suas histórias, com a finalidade de contá-las ao público. O trabalho de cunho antropológico requer, por parte do realizador da pesquisa, um compartilhamento do mesmo ambiente dos sujeitos que observa, conforme Marcius Freire. O resultado da relação que se estabelece a partir daí é o encontro, condição fundamental para a existência do documentário. Para o autor, tanto a etnografia quanto o filme documentário de cunho antropológico possuem esse traço em comum: para tomar forma, precisam ser produto de um encontro. Não pode existir a descrição de uma cultura qualquer sem que aquele ou aquela que a descreve trave contato com ela. (...) Não pode existir 213 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 um filme documentário que tenha a alteridade como tema se não houver um encontro entre o realizador e seus sujeitos. A qualidade desse encontro, ou da relação que se estabelece entre os protagonistas da interlocução, portanto, é fundamental para definir os atributos do texto ou do artefato fílmico final que vai dar conta dos resultados desse encontro (FREIRE, 2007, p. 16). Para que essa relação se estabeleça, ou para que haja um encontro entre o pesquisador e o sujeito observado, é necessário que aquele se permita uma inserção no espaço deste, de modo que observe e colete os dados característicos, determinantes do resultado final do filme. Esta é uma fase preliminar às filmagens e “se traduz na aproximação do cineasta às pessoas observadas com o intuito de aprender sobre elas aquilo de que precisa para a conformação do seu filme”. (FREIRE, 2007, p. 17). O fotograma 6 mostra o cineasta em uma posição de com as pessoas filmadas. Fotograma 4 Portanto, o trabalho antropológico característico de um documentário pede que o pesquisador se coloque em contato com o público - e com seu espaço - que irá analisar e apresentar em seu filme. Entende-se que este contato não é supérfluo, mas supõe uma inserção na vida dos sujeitos, um compartilhamento de experiências. Nesse processo, o antropólogo cineasta volta seu olhar – e todas as suas potências - para o outro. Sobre isso, Freire afirma que surge daí uma relação de poder entre aquele que observa e o observado, através da qual o primeiro domina o segundo. “O realizador queira, ou não, detém um domínio sobre o processo de construção, enquanto as pessoas filmadas a ele estão submetidas” (FREIRE, 2007, p. 15). Mas esta 214 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 subordinação não é algo negativo. Os conflitos resultantes desse estranhamento acabam gerando, segundo Freire, os ingredientes da receita de um documentário. Exemplos disso são os momentos em que os jovens estão fazendo oração – algo importante e íntimo para ambas religiões – nos quais são respeitados os locais e gestos de cada um. É possível sentir a atmosfera espiritual tanto do judaísmo quanto do islamismo. Este aspecto da vida das crianças é relevante apresentar, uma vez que está profundamente relacionado com a forma de encarar o mundo e as demais pessoas. Os costumes religiosos do judaísmo também são apresentados através da comemoração de Shlomo, junto ao seu grupo próximo ao muro das lamentações. Partindo do raciocínio de France, existem duas maneiras de aproximação com as pessoas filmadas: inserção superficial (típica dos filmes de exposição, que se esgota quando começam as filmagens) e inserção profunda usada nos filmes de exploração, caracterizado por um “prolongamento durante o qual as pessoas filmadas encenam suas próprias atividades diante da câmera” (FRANCE, 1998, p. 348). No caso da inserção profunda de um filme de exploração, conjugam-se o período anterior, durante e posterior às filmagens, em um diálogo contínuo entre o cineasta e os protagonistas da história. Segundo Freire, vemos assim que, as relações humanas estão no cerne do processo de realização de um filme de exploração, pois a inserção praticamente se confunde com a consecução dos registros propriamente dita, ou seja, ela se prolonga até a conclusão do trabalho e, em casos mais emblemáticos, transborda em muito essa conclusão (FREIRE, 2007, p. 18). A descrição das identidades das crianças é também viabilizada pelas entrevistas, nas quais compartilham suas vivências e contam o que acreditam sobre os povos vizinhos. O cineasta participa desse processo ativamente. Virtudes como naturalidade e simplicidade, típicas das crianças parecem facilitar este trabalho. Elas não têm receio de expor sua visão do conflito, de quem deveria ter a posse das terras. Sobre a definição de descrição, France lembra que é um processo que exige tempo de observação, ultrapassando a simples mostra de gestos ou ações. O objetivo da descrição é oferecer ao público uma apresentação continuada de manifestações sensíveis relacionadas ao tema por elas englobado. Os diálogos que se estabelecem entre o cineasta e as crianças não se reduzem a um formato de entrevista tipo pergunta e reposta. Eles se estendem a uma convivência, pela qual as identidades de cada grupo se expressam com naturalidade, 215 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 através de cenas do cotidiano. O esporte, algo comum entre os mais novos, é evidenciado em cenas do torneio de vôlei em que participam os dois irmãos judeus. Paralelamente, vemos também a prática esportiva no cotidiano da jovem palestina Sanabel, que tem na dança uma forte expressão da sua cultura. Outros detalhes do cotidiano das crianças vão sendo desdobrados, como as visitas ao pai de Sanabel, preso em uma casa de detenção israelense, as justificativas de posse de terras tanto pelos jovens palestinos quanto judeus, baseados em documentos religiosos ou civis. Cenas como essas evidenciam o apego que ambas culturas têm sobre a terra, reivindicando seus direitos, relacionando-o o seu drama atual com o passado. Pouco a pouco, o trabalho de apresentar a vida das crianças salientando suas semelhanças e diferenças vai resultando na aproximação entre elas, incentivada pelo cineasta. É um encontro que desemboca em um outro encontro, mediado pelo observador. Dessa forma, o documentário serve como meio para ultrapassar as fronteiras religiosas, políticas e culturais entre árabes e judeus. Há, portanto um envolvimento - decorrente da inserção profunda – do cineasta com os sujeitos observados, que lhe permite estabelecer uma relação de confiança com o público retratado no filme. Eduardo Coutinho afirmou em uma entrevista no ano de 1997 que se sentia responsável pela comunidade retratada nos seus filmes: Obviamente, se é uma imagem decente que transmito deles, suponho que também vou ser fiel a uma relação com os favelados em geral, com as pessoas do lixo em geral, mas o importante são aquelas pessoas que têm nome. Não é uma confiança de classe desencarnada, mas é encarnada em pessoas que foram gentis comigo. (COUTINHO, 1997, p. 170) Portanto, cabe destacar que o papel do cineasta diante do grupo social registrado por ele reflete uma alteridade – esse voltar-se ao outro – sem a qual o trabalho antropológico para a realização de um documentário estaria comprometido. Pelos primeiros depoimentos das crianças sobre uma possível aproximação, percebe-se – pela parte delas - a inviabilidade do encontro. O jovem palestino Mahmoud declara que jamais se colocaria próximo a um judeu. No entanto, ao conversar com ele, B.Z. explica que ele mesmo é um judeu e que está diante dele naquele momento. Um detalhe interessante são as mãos de ambos juntas, como mostra o fotograma 5. 216 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Fotograma 5 O primeiro diálogo entre os gêmeos judeus e Faraj é feito por telefone, após B.Z. apresentar Faraj ao meninos através da fotografia. Cabe salientar a importância desse registro fotográfico, que viabilizou o conhecimento do rosto de Faraj a partir da sua imagem. Além disso, o pai dos gêmeos judeus declara que permite o encontro com Faraj, pois conhece e confia na equipe e no trabalho de B.Z. Nesse sentido, France expõe que “apreender o gesto e a palavra viva do homem através da imagem é uma maneira de reatar com aquilo o que constitui a matéria essencial da tradição oral” (FRANCE, 2000, p. 20). Cabe reconhecer que, em um trabalho de antropologia fílmica, a relação que surge entre o antropólogo cineasta e os sujeitos filmados é um ponto relevante de análise. A respeito disso, France lembra que o pesquisador cineasta, ao abandonar o seu anonimato, revela-se tanto para as pessoas que filma quanto para o espectador. O encontro entre as crianças acontece quando os irmãos judeus cruzam a fronteira e vão visitar Faraj. São dois mundos distintos que se encontram. Ao mesmo tempo, são crianças que compartilham de características semelhantes, como sonhos, brincadeiras, gosto pelo esporte, etc. Ao final, fazem uma refeição juntos e abrem sua intimidade em grupo sobre o que pensam das diferenças, do conflito, da paz, da amizade. Esta cena denota um verdadeiro encontro, mediado pelo cineasta, no qual sensibilidades são dialogadas e compartilhadas como pode ser visto no seguinte fotograma: 217 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Fotograma 6 4.CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da metodologia da antropologia visual, foi possível detectar no documentário Promises (Promessas de um mundo novo) o trabalho antropológico para a realização do filme. As características encontradas nas imagens e nas entrevistas denotam um trabalho de campo que viabilizou um legítimo encontro entre o cineasta e os sujeitos representados. Promises é um documentário de representação social, segundo os conceitos de Bill Nichols, que retrata as visões de mundo de dois grupos de crianças palestinas e israelenses a partir dos seus cotidianos. O trabalho de campo da equipe produtora durou ao todo cinco anos, período em que o jornalista B.Z Goldberg permaneceu junto dos sujeitos, convivendo dentro das suas casas, conversando com eles, captando suas imagens. Sem essa disponibilidade temporal, o trabalho estaria seriamente comprometido, uma vez que a descrição fílmica, conforme France “possui uma amplitude, no tempo e no espaço, que tende a restituir, se possível, toda a densidade do real, dar-lhe corpo, com – mais uma vez – seus tempos fortes, seus tempos fracos, mas também com seus tempos mortos, até a pura espera silenciosa dos seres filmados” (France, 2000, p. 31). A voz do cineasta no documentário pode ser interpretada segundo duas posições. Conforme o raciocínio de Nichols, a mais clássica é a “eu falo deles para 218 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 você”, na qual há uma separação entre o documentarista, os sujeitos filmados e o público. Há também a forma “eu falo de nós para você”, na qual um integrante do grupo retratado assume a voz e se apresenta junto de seu grupo. Em Promises, o limite entre essas duas maneiras de narras se mostra tênue, porque, além do cineasta ser um judeu, parece assumir um papel integrador da situação de ambos os grupos, o que demonstra uma penetração no drama desses povos. Entretanto, ele não deixa a sua posição de observador que vem de outro lugar para contar uma história a um determinado público. No documentário, percebe-se que a relação estabelecida entre observador e sujeitos resulta em um legítimo encontro. As demonstrações de confiança, os diálogos, as cenas do dia a dia revelam uma poética do encontro pela qual o filme se desdobra. Com isso, um encontro levou a outro. Sobre a alteridade, vale destacar que conhecer o mundo dos demais é colocar-se no lugar de, ter uma atitude de respeito ao outro e isso promove a legítima compreensão. As crianças registram isso nas suas falas. Faraj chega a confidenciar emocionado que, após a partida de B.Z., o encontro deixará de existir, algo que demonstra sua amizade e confiança na presença do documentarista. Nesse sentido, cabe lembrar France, que defende que estou em referindo aos grupos humanos, às minorias étnicas ou culturais que toda a sociedade, através das convulsões do seu próprio desenvolvimento ou o peso da sua cultura dominante, leva ao desenraizamento, à marginalização ou a uma assimilação demasiadamente brutal. Ao revelar as maneiras de viver e de pensar desses grupos e ao esforçar-se para situá-los no conjunto da sociedade à qual pertencem, a pesquisa fílmica do antropólogo desemboca frequentemente na exposição explícita de problemas de ordem social. (FRANCE, 2000, p. 22) As fotografias, importantes disparadores de histórias e memórias, tiveram um papel no filme, pois permitiram que se produzisse um encontro real entre os grupos de crianças afastadas pela história, cultura e religião. Há também uma contextualização histórica do conflito, apresentada por infográficos, mapas e imagens de televisão. A visão das crianças sobre o conflito é transmitida através de suas vozes, de suas vidas e testemunhos. O observador, colocando-se junto delas, evidencia o papel das crianças na situação política e cultural enfrentada no território. Esse trabalho parece ter sido feito segundo a metodologia da antropologia visual, e foi viabilizador de um encontro que extrapola os limites de um filme. 219 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 REFERÊNCIAS COUTINHO, Eduardo. O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade. Revista PUC SP. V. 15, 1997. Disponível em http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/11228. Acesso em: 06 abril 2014 FRANCE, Claudine (org). Antropologia fílmica, uma gênese difícil, mas promissora. In Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Campinas. Editora da Unicamp, 2000. FRANCE, Claudine de. Cinema e antropologia. Campinas. Unicamp, 1998. FREIRE, Marcius. Relação, encontro e reciprocidade: algumas reflexões sobre a ética no cinema documentário contemporâneo. Revista Galáxia, São Paulo, n. 14, p. 13-28, dez 2007. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas. Papirus, 2007 VERMES, Pámela. Martin Buber. Paris. Albin Michel, 1992 The Promises Film Project. Disponível em <http://www.promisesproject.org/> Acesso em: 06 abril 2014. 220 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 O APARTIDARISMO DOS PROTESTOS POPULARES NO BRASIL E OS DESLOCAMENTOS DE SENTIDOS DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA Nelson Toledo Ferreira48 RESUMO: A proposta do artigo é discutir o emblemático episódio dos protestos apartidários ocorridos no Brasil, em junho e julho de 2013, nas perspectivas da midiatização da política e das novas abordagens sobre o conceito de representação. Como metodologia busca-se uma interface teórica entre as mutações dos partidos políticos e o surgimento de formas não eleitorais de representação, que eclodem na sociedade contemporânea, tendo a visibilidade midiática como dispositivo de enfrentamento político. Tais discussões levam às inferências que nos permitem afirmar que ocorre nos dias atuais um deslocamento de sentidos da representação política, cada vez mais atravessados pelos media. Palavras-chave: Política; partidos políticos; representação política; mídia; protestos. The non-partisan of the popular protests in Brazil and displacements meanings of political representation ABSTRACT: This papers suggest to discuss the emblematic episode of non-partisan protests in Brazil, in June and July 2013, on the perspectives of media coverage of politics and new conflicts over the concept of representation that is consolidated in Brazil and other countries. The methodology quest a theoretical interface between the changes of political parties and the emergence of non-electoral forms of representation, 48 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, Bolsista Capes; jornalista. Email: [email protected] 221 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 rise in contemporary society, and the media visibility as political confrontation device. These discussions lead to make inferences that allow us to affirm that occurs nowadays a change of meanings of political representation, increasingly restricted by the media. Keywords: Politics; political parties; political representation; media; protests. INTRODUÇÃO Os media assumem, a cada dia, o papel de protagonista da esfera política. As pessoas percebem a sua realidade através dos enquadramentos midiáticos, repercutindo, até mesmo, na construção desta própria realidade. Com o incremento das novas tecnologias de comunicação – digitais e móveis - os embates discursivos nos meios de comunicação travam uma acirrada disputa simbólica entre variadas fontes, de acordo com as perspectivas dos mais diversos segmentos sociais. Com isso, uma multiplicidade de leituras de fatos e acontecimentos traz à cena política versões da realidade, buscando influenciar a sociedade. Cada qual, criando uma versão que mais lhe seja interessante politicamente. A tradição dos media pautarem a agenda pública e influenciarem a opinião pública e, consequentemente, o comportamento e a atitude das pessoas, é focada de forma constante pelos teóricos da Comunicação e de áreas afins, como Sociologia, Antropologia, Ciências Políticas, Linguística, Psicologia e muitas outras. No entanto, recentes fenômenos sociais e políticos, em todo o mundo, vêm reafirmando a apropriação destas ferramentas midiáticas por estes mesmos atores políticos, que no passado, em uma visão frankfurtiana, eram considerados receptores reféns dos meios de comunicação, apesar das inúmeras teorias que foram aparecendo e mostravam que existiam filtros nesta trajetória cognitiva entre emissores e receptores, que acabam interferindo neste processo, como, por exemplo, a cultura. Os protestos ocorridos no Brasil, nos meses de junho e julho de 2013, ratificaram, de forma plena, este fenômeno do receptor ser simultaneamente produtor de enunciados políticos, complexificando os debates sobre o processo de midiatização da política. Esta materialização do discurso político nos ambientes digitais e móveis se faz presente pela interatividade proporcionada aos indivíduos e pela capacidade de produzir notícias, mobilização, conscientização e moldagem da opinião pública, independente do 222 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 aporte financeiro, que sempre foi o diferencial entre os cidadãos “comuns” e os que os que detinham o poder da propriedade dos meios de comunicação. Nos episódios dos protestos, principalmente os ocorridos no ano passado, que tiveram uma maior dimensão midiática, as redes sociais foram emblemáticas no seu poder de aglutinação de força política, agendando manifestações simultâneas em várias partes do país e reforçando um discurso aguerrido de luta política, apesar de muitas críticas quanto à desorganização, ao apartidarismo e, até mesmo, às imputações de fascismo de grupos de extrema direita infiltrados no seio das manifestações. Nesta perspectiva, vivemos uma reconfiguração do fazer política, impactando principalmente os tradicionais pilares da representação política. O voto digitado nas urnas, a autorização e o accountability49 ficam em segundo plano e novas abordagens sobre o tema ganham a cena principal, trazendo transformações na sempre conturbada relação entre representantes e representados. Assistimos um momento que grupos diferenciados da sociedade passam a incorporar o papel de mediação entre as inúmeras clivagens sociais e o Estado, por meio de dispositivos bem peculiares, buscando a visibilidade midiática na promoção de novos discursos de enfrentamento. Almeida (2011) aponta para uma de crise de legitimidade das democracias representativas, que se dá pelos sinais claros de esgotamento da gestão do Estado como agente de valores morais e bens materiais, inclusive nas democracias liberais mais consolidadas: abstenção eleitoral, o esvaziamento dos partidos políticos, presença de lideranças pessoais e plesbicitarias e a desconfiança dos cidadãos na classe política e nas instituições (CHANDHOKE, 2005, ANKERSMIT, 2002 apud ALMEIDA, 2011, p. 36). E neste cenário, surge a necessidade de se repensar a representação política de acordo com a dinâmica da sociedade e suas práticas sociais e políticas. A autora acrescenta que reações da sociedade têm demonstrado que novos atores estão se reinserindo no processo político por meio de organizações não governamentais, movimentos sociais e associações diversas. “(...) a própria representação se recria e, ao se reinventar, demanda novas lentes de compreensão” (ALMEIDA, 2011, p.47). Apesar de muitos autores discordarem da chamada crise de representação, na medida em que o sistema é adotado na maioria das democracias do Ocidente, e, por 49 O termo não tem uma definição exata na língua portuguesa, mas refere-se à palavra inglesa Account, que significa orçar, calcular, avaliar. No contexto político, accountability tem o sentido de responsividade, prestação de contas. 223 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 mais tensões que marquem esse modelo, o mesmo continua sendo o ideal a ser adotado em sociedades complexas (MIGUEL, 2010; BOBBIO, 2000; MANIN, 1997), o fato é que o conceito de representação política vem sendo reconfigurado, nas últimas décadas. Um fato que chamou atenção durante os protestos ocorridos em junho e julho de 2013 foi a hostilidade com que os manifestantes trataram militantes dos partidos políticos, inclusive chegando ao ponto de queimar bandeiras das legendas em determinados episódios e rejeitá-las de participar dos movimentos, como foi registrado no dia 19 de junho, em algumas das manifestações50. No dia 20 de junho de 2013, uma quinta-feira, por exemplo, os protestos marcaram o descontentamento da população em quase todas as regiões do país, umas mais pacíficas, outras mais violentas, chegando a serem realizados em cerca de 150 municípios de forma simultânea. E os meios digitais e móveis foram os condutores desta insatisfação e deste chamamento que ganhou o slogan “vem para rua, vem!”, de forma autônoma, sem que os partidos políticos, centrais sindicais e líderes políticos direcionassem estes protestos. Nesta disputa de sentidos, os cidadãos acabaram revelando um momento ímpar de se distanciarem dos partidos políticos e construírem suas pautas de reivindicações de forma autônoma, reforçando a necessidade de ocupação de ruas, gabinetes e espaços públicos, exigindo mudanças. Uma pesquisa recente realizada pela Organização Não Governamental (ONG) Transparência Internacional aponta que 81% dos brasileiros definem os partidos políticos como “corruptos ou muito corruptos”. O estudo ainda revela que o Congresso Nacional aparece em seguida entre as instituições mais desacreditadas pela população, com 72%. Para cada 4 em 5 brasileiros, acreditam os partidos são corruptos.51 Neste cenário, o artigo busca construir uma reflexão sobre como a midiatização dos processos políticos pode ser ressignificada, na medida em que produz novos sentidos de enfrentamento, complexificando os debates sobre representação política e criando uma linha de fuga para o tradicional modelo de se fazer política, engendrado pelos partidos e seus líderes. A apropriação dos dispositivos midiáticos estrategicamente por cidadãos, movimentos sociais e associações da sociedade civil, que passam de 50 Disponível em: http://noticias.band.uol.com.br/cidades/noticia/100000607976/bandeiras-de-partidos-saoperseguidas-nas-manifestacoes-pelo-brasil.html Acesso em: 20 junho 2014. 51 Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/07/130709_transparencia_corrupcao- fl.shtml Acesso em: 28 abril 2014. 224 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 consumidores a produtores de enunciados políticos, produz um deslocamento de sentido sobre o processo de midiatização da política contemporânea e sobre o próprio conceito de representação política. 1 Os media como dispositivos dos protestos populares No momento atual, a comunicação se reverte de um fenômeno social e político, resultante do movimento histórico e das relações de poder que se configuram e se reconfiguram de forma dinâmica na sociedade. Os sentidos e os sujeitos estão constantemente em jogo e isso se torna cada vez mais evidente na esfera política, visto que as apropriações de determinados discursos estão em confronto o tempo todo. “As tecnologias da comunicação ampliam o espaço público, mas apenas de modo técnico ou retórico” (SODRÉ, 2006, p.161). Apesar de muitos estudos teóricos e empíricos (CHADWICK, 2006; SODRÉ, 2006; POPKIN, 1994; GOMES, 2007; LEAL, 2002) revelarem um distanciamento dos cidadãos em relação ao envolvimento com as questões importantes da política, denotando apatia e despolitização constantes, os protestos ocorridos no Brasil, como vem ocorrendo em outras partes do mundo revelam uma indignação dos cidadãos, acumulada de anos, e até décadas, diante de escândalos de corrupção, da crescente desqualificação dos serviços públicos oferecidos pelos governos, da usurpação do poder para interesses particulares de grupos. No país, esta indignação se materializou nas ruas e avenidas de todo o país, quando milhares de pessoas foram às ruas pedindo mudanças. No entanto, ficou o questionamento até que ponto os media foram os dispositivos principais que impulsionaram estas manifestações em várias cidades brasileiras, deflagradas pelo Movimento Passe Livre, em São Paulo, por tarifa zero no transporte público? Os cidadãos demonstraram uma resposta à política institucionalizada de forma espetaculosa por meio dos media, como uma estratégia para potencializar a insatisfação de toda a sociedade, sem lideranças políticas, o que resultou em um grande espetáculo midiático que seduziu mais pelas belas imagens estampadas nas manchetes dos principais jornais, telejornais e portais de notícias do país e do mundo, devido à repercussão internacional. O aspecto positivo foi mais a demonstração de força que a pressão popular pode exercer nos circuitos do poder, mas ficou evidenciado a 225 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 fragilidade dos protestos sem continuidade e sem o mínimo de organização. Os mesmos se tornaram mais um espetáculo da democracia, mas sem respaldo e desdobramentos políticos efetivos, como foi percebido nos meses seguintes Brasil. A importância do apoio dos medias como condutor destes protestos se evidenciou mais uma vez em 2014 quando o Movimento Passe Livre quis retomar às ruas para comemorar um ano das manifestações, mas o resultado ficou muito aquém do esperado, levando um número ínfimo de participantes52. No período, final de junho de 2014, outro grande espetáculo midiático era estampado em todas as mídias do país e do mundo, a realização da Copa do Mundo de Futebol, que retirou todas as atenções dos manifestos isolados ocorridos no país, a maioria, inclusive, contra a realização do mundial no Brasil. Com isso, os brasileiros estavam mais preocupados com os resultados das partidas, com a eliminação das grandes potências europeias do futebol e muito pouco com os manifestos, que perderam sua força de aglutinação e mobilização. Para entender esta relação entre os campos político e midiático, recorremos a Bourdieu (2007) que aponta que toda sociedade deve ser compreendida como um espaço social, que por sua vez, é subdividido em outros campos, cada qual com suas peculiaridades, na medida em que estes têm suas próprias regras e lógicas. Os limites de cada campo dependem da interface entre eles, a partir de uma perspectiva relacional do espaço como um todo. Trata-se de um campo de forças que impacta os agentes neles inseridos, fazendo-os atuar conforme suas posições, e, com isso, mantendo ou modificando sua estrutura. Com isso, os indivíduos que compõem os campos ocupam várias posições dentro destes espaços, atuando no cotidiano e acumulando determinados tipos de capitais simbólicos, que os permitem participar do jogo político. Neste quadro, são definidos aqueles sujeitos que controlam a produção de sentido e do discurso dos respectivos espaços de atuação. Os campos da mídia e da política, apesar de suas lógicas e regras próprias, estão em um constante e dinâmico processo de intercessão, criando uma disputa entre seus agentes pelo acúmulo destes capitais simbólicos, que reconfiguram a tradicional noção de política que tínhamos há décadas atrás. Miguel (2002) esclarece que o capital 52 Disponível em: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/nos-jornais-com-apoio-reduzido-ato-anti-copa-temdepredacoes-e-confrontos/ Acesso em: 20 junho 2014. 226 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 político é uma forma de capital simbólico, ou seja, dependente do reconhecimento fornecido pelos seus pares. (...) mídia e política formam dois campos diferentes, guardam certo grau de autonomia e a influência de um sobre o outro não é absoluta nem livre de resistências. (...) O que se observa é que a visibilidade na mídia é, cada vez mais, componente essencial na produção do capital político (MIGUEL, 2012, pp.167- 169). Na perspectiva teórica de Bourdieu (2007) existe um condicionamento mental dos agentes que disputam posições e a acumulação de capitais simbólicos dentro destes campos. Estes indivíduos acabam incorporando as regras e as normas dos respectivos campos que atuam em suas práticas sociais, o que Bourdieu denomina de “habitus”: uma introjeção de valores que fazem com que os sujeitos desempenhem determinados papéis sociais e estes valores se manifestam, principalmente, em nível discursivo. Bourdieu (2007) destaca que na medida em que o agente interage com a realidade social, não se torna apenas o resultado de suas determinações, mas também consegue determinar. Ou seja, os sujeitos e a sociedade podem ser considerados estruturas estruturantes e estruturadas ao mesmo tempo. O “habitus” seria uma disposição adquirida que faz com que os papéis sociais e condutas na sociedade sejam orientados para determinados fins, independente de ser um processo consciente, uma vez que o próprio jogo nos leva a conhecer suas regras, jogá-las e até improvisar. Com efeito, os campos político e midiático acabam ocasionando interferências entre os agentes que neles atuam reconstituindo o cenário político contemporâneo e naturalizando determinadas práticas que acabam consolidando mudanças no fazer político, que impacta tanto representados como os representantes. 2 A gestão da informação política e seus reflexos na representação Na medida em que os meios de comunicação vêm se tornando cruciais na configuração do ambiente social e político contemporâneo, os partidos tiveram que investir e aprimorar a gestão da informação política para buscar o enfrentamento neste concorrido mercado político eleitoral, tanto em relação a outros partidos com plataformas, ideologias e siglas tão similares, quanto a estas novas formas de 227 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 representação não eleitorais, que emergem na sociedade atual53. O desafio maior para os partidos políticos no Brasil, como em outras partes do mundo, se dá pelo crescente descrédito dos cidadãos em relação aos modelos tradicionais de se fazer política, focados no processo eleitoral, pelos constantes escândalos de corrupção, que depreciam ainda mais o papel dos líderes e partidos políticos na atualidade. “(...) a percepção de que há descrença generalizada nas potencialidades da política institucional se sustenta em vários tipos de evidência, entre as quais se destacam o aumento da abstenção eleitoral, a erosão das lealdades partidárias...” (MIGUEL, 2010, p.225). Diante deste quadro, podemos afirmar que na sociedade contemporânea, os meios de comunicação transformam-se em amplas arenas de embates discursivos, uma vez que o que é registrado pelos meios é o que passa a existir na realidade. Como se o que não tivesse a visibilidade midiática não existisse e não tivesse importância. Nisso decorre que as representações midiáticas criam um ambiente em que se definem o pensamento, julgamento e ação dos indivíduos na sociedade. Esta proposição é cada vez mais apropriada no cenário político, na construção dos discursos, na geração e gestão de mecanismos de identificação das instituições e líderes políticos com diversos segmentos sociais. As novas tecnologias apareceram como uma forma de democratizar estes processos, antes fechados em círculos de poder e de influência restrita dos meios massivos comerciais. Atualmente, os meios digitais - internet e seus dispositivos móveis - potencializam a circulação da informação política oriundas de várias fontes em diferentes arenas discursivas, em diversos formatos e conteúdos, democratizando a informação. E nestes novos formatos e conteúdos, os cidadãos comuns e grupos sociais variados aprenderam a se manifestar e fazer valer suas opiniões, o que trouxe um dinamismo às discussões na esfera política. Os protestos populares ocorridos em junho e julho de 2013 refletiram esta força da política do espetáculo favorecida por estas novas tecnologias de comunicação. As imagens das manifestações no Brasil foram vistas em todo mundo e construíram uma força política que entusiasmou mais e mais pessoas a aderirem aos protestos. Diante da 53 Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-jun-17/gastos-campanhas-eleitorais-cresceram-471-dezanos>. Acesso em: 14 junho 2014. 228 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 cobertura destes episódios, a materialização da insatisfação popular na mídia com belas imagens causou uma comoção nunca vista no país. Eram crianças vestidas de verde e amarelo, jovens enrolados em bandeiras, cartazes, faixas, palavras de ordem entoadas com um patriotismo que chegava a emocionar e a criar comoventes enquadramentos nos telejornais e nas fotos das coberturas jornalísticas. Os partidos políticos, que deveriam ser os principais mecanismos de mediação entre a sociedade e o Estado, ficaram em segundo plano, descartados pelos próprios cidadãos, haja vista a queima simbólica de bandeiras das legendas e dos gritos apartidários das ruas. Mais uma cena ontológica que causava efeitos emocionais neste espetáculo midiático. Com efeito, há de se considerar que as bases que sustentaram os partidos políticos e suas representatividades começam a perder espaço nesta luta simbólica, deixando de ser tão homogêneas e com demandas comuns. Com isso, os partidos políticos enfraquecem nos seus posicionamentos ideológicos, uma vez que tinham como suporte principal as classes sociais para definições de suas representações políticas, repercutindo nos modelos de sistema político que defendiam. Trata-se de um fenômeno mundial, inclusive na Europa com a forte tradição dos partidos políticos. Chadwick (2006) lembra que um dos principais argumentos para esta crise partidária é que as sociedades pós-industriais já não contam com classes sociais e grupos homogêneos que deram origem aos partidos nos séculos XIX e XX. “(...) como as sociedades tornaram-se fragmentadas, os partidos políticos tem visto suas bases sociais murcharem ou tornarem-se repletas de clivagens sociais” (CHADWICK, 2006, p.145). O autor ainda reforça que os eleitores são agora muito mais propensos a flutuar livres de identificação partidária. Com isso, as identidades políticas parecem menos fixas, fazendo com que os cidadãos exijam formas mais flexíveis e complexas de expressar diferentes visões políticas e não veem os partidos como os únicos capazes de acomodar tais diversidades ideológicas (CHADWICK, 2006, p.146). 3 Interferências midiáticas no conceito de representação política Para compreender como o conceito de representação entrou no cenário político é necessário contextualizar com o desenvolvimento histórico das instituições, a interpretação sobre o papel das mesmas na sociedade e o próprio desenvolvimento 229 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 etimológico da palavra, como já afirmava Pitkin (1967). Percebe-se que a complexidade do termo é enfatizada pela autora desde o final da década de 60, mas sempre com o vínculo com as transformações das sociedades. O livro de Hanna Pitkin, The Concept of Representation, publicado em 1967, nos Estados Unidos, é considerado um marco teórico nestes debates, revelando uma visão inovadora da representação política como uma atividade social, fugindo da noção ortodoxa até então empregada para designar a representação. Tais discussões trazem para nossos debates sobre os protestos populares realizados no Brasil, principalmente, no ano de 2013, leituras diferenciadas sobre o papel cada vez mais incisivo de novos atores políticos no cenário político nacional, que reconfiguram o conceito de representação política. Observa-se que o foco sobre o conceito de representação se distancia dos paradigmas tradicionais sobre autorização, legitimidade, responsividade, que sempre nortearam as discussões sobre o tema, e é aproximado de questões como visibilidade midiática e opinião pública. Os protestos no Brasil, como em outras partes do mundo, foram emblemáticos na afirmação de que os cidadãos não se sentem representados politicamente e que utilizam os media para mostrar esta insatisfação e pedir mudanças, impactando a opinião pública para suas bandeiras de lutas e reivindicações. Grupos organizados ou não, com ideologias claras ou não, foram às ruas com o apoio de Sindicatos de trabalhadores, organizações não governamentais e até de facções mais radicais que entendem que a luta popular contra o sistema se dá através da violência e do quebra a quebra. Mas tais mobilizações só alavancaram em todo o país pelo impacto midiático operacionalizado pelos grandes conglomerados de comunicação que deram cobertura aos protestos e pela capacidade de articulação destes atores políticos permitida via redes sociais. Desde a obra Leviathan, de Hobbes, em 1651, quando foi aplicada a primeira ideia de representação na teoria política, no sentido da agência legal, autorização de alguém para agir por outro, o termo foi sofrendo atualizações na teoria política, passando pelas revoluções democráticas do final do século XVIII e pelas mutações políticas institucionais do século XX. (...) o sufrágio, a divisão em distritos e proporcionalidade, os partidos políticos e os interesses e políticas, a relação entre as funções legislativas e executivas. Estas lutas políticas precipitaram um corpo considerável da literatura, sistematizada de tempos em tempos, enriquecida e redirecionada 230 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 pela teoria política. Desse material colossal, apenas duas questões conceituais inter-relacionadas podem ser discutidas até aqui: a “polêmica sobre o mandato e a independência” e a relação entre a representação e democracia (PITIKIN, 2006, p.67). A autora categorizou a representação política em representação formalista, descritiva, simbólica e substantiva. A primeira enfatiza a noção de representação sob duas dimensões: por autorização prévia e por responsividade, ideias estas defendidas inicialmente por Hobbes e pelo modelo liberal, respectivamente. Já a segunda, dá ênfase à relação entre representantes e representados, como se o primeiro espelhasse por meio das semelhanças o segundo. No terceiro caso, leva em conta o significado que o representante tem para aqueles que estão sendo representados. E, finalmente, a representação substantiva refere-se à substância do que é feito, ou seja, são as atividades dos representantes, as ações realizadas em nome e no interesse dos representados, é que são avaliadas. Em todos os casos, observa-se que a representação política ultrapassa o cenário eleitoral para a legitimação do exercício do poder por determinados grupos. Nesta perspectiva, a concepção de representação política já trazia consigo uma exigência de legitimação construída através de processos de identificação entre os representados com seus representantes, o que exigia medidas eficazes para que ocorressem estes sentimentos de pertencimento dos cidadãos a determinados grupos e não a outros, com demandas comuns, discursos comuns, percepções comuns. Nesta configuração, a opinião pública começa a potencializar sua importância nestes debates, inclusive, favorecida pelas tecnologias de comunicação. Em meados de 90, Bernard Manin traz contribuições importantes para o tema da representação, fazendo uma análise da evolução das democracias representativas, buscando um denominador comum entre elas ao longo de suas histórias no que se refere à eleição dos representantes pelos governados, à independência parcial dos representantes, à liberdade de opinião pública e às decisões políticas tomadas após os debates. Sua principal crítica recai sobre o processo de seleção dos governantes pelas eleições, o que ele considera um arranjo aristocrático das elites. Manin (1995) traz com sua teoria o debate sobre polêmica de que os meios de comunicação estariam substituindo os partidos políticos na mediação entre representantes e representados, reforçando a importância da liberdade da opinião pública neste processo. Com o autor, é reforçada a chamada democracia da audiência. 231 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 (...) Em primeiro lugar, os canais de comunicação política afetam a natureza da relação de representação: os candidatos comunicam diretamente com seus eleitores através do rádio e da televisão, dispensando a mediação de uma rede partidária. A era dos ativistas, burocratas de partido ou “chefes políticos” já acabou. Por outro lado, a televisão realça e confere uma intensidade especial à personalidade dos candidatos. (...) o que estamos assistindo hoje em dia não é a um abandono dos princípios do governo representativo, mas a uma mudança do tipo de elite selecionada: uma nova elite está tomando o lugar dos ativistas e líderes de partido. A democracia de público é o reinado do “comunicador”. O segundo fator determinante da situação atual são as novas condições em que os eleitos exercem o poder. Reagindo a estas mudanças, os candidatos e partidos são ênfase à individualidade dos políticos em detrimento das plataformas políticas (MANIN, 1995, p.22-23). Com as transformações profundas na sociedade, com algumas características deste novo período, o qual alguns teóricos denominavam pós-modernidade, capitalismo tardio ou sociedade pós-industrial, a ênfase recai sobre uma intensa fragmentação dos segmentos sociais e suas novas bandeiras de lutas, que se impõem no cenário político, embaralhando ainda mais a concepção de representação política. Como já citamos, as bases que sustentaram os partidos políticos e suas representatividades começam a perder espaço nesta luta simbólica, deixando de ser tão homogêneas e com demandas comuns. Com isso, os partidos políticos enfraquecem nos seus posicionamentos ideológicos, uma vez que tinham como suporte principal as classes sociais para definições de suas representações políticas, repercutindo nos modelos de sistema político que defendiam, cenário que se confirma até os dias atuais. Young (2000), no seu livro Inclusion and democracry, traz para o debate uma nova abordagem sobre representação, tendo como foco principal o conceito de “perspectivas sociais”, visando, principalmente, os chamados grupos minoritários que aparecem com mais força no cenário político, como mulheres, negros, homossexuais e outros. Por esta ótica, cada um dos novos segmentos que irrompem no tecido social a partir da década de 90, fruto dos novos tempos, tem perspectivas diferenciadas em relação a algumas temáticas, que são necessárias para serem incorporadas nas discussões políticas dos regimes democráticos atuais. Mais uma vez, os processos midiáticos reaparecem como mecanismos de visibilidade das demandas destes novos segmentos. Young (2006) aproxima suas análises de uma visão deliberacionista da democracia e da representação política tentando abarcar a inclusão social destes novos 232 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 grupos, pois a multiplicidade dos pontos de vistas ampliaria a noção de realidade e contribuiria para o processo democrático. Numa sociedade complexa e com milhões de pessoas a comunicação democrática consiste em discussões e decisões fluidas, sobrepostas e divergentes, dispersas tanto no espaço como no tempo. O que são relações comunicacionais inclusivas em tais sociedades fluidas, descentralizadas de massa? No contexto dessas sociedades as queixas que apontam o caráter excludente das normas de representação. As pessoas muitas vezes reclamam que os grupos sociais dos quais fazem parte ou com os quais tem afinidade não são devidamente representados nos organismos influentes de decisão, tais como legislaturas, comissões e conselhos, assim como nas respectivas coberturas dos meios de comunicação (YOUNG, 2006, p.140). Na virada do século XX para o XXI, a discussão sobre representação política reaparece através das instituições representativas como mediadoras entre o Estado e a sociedade, reforçando o papel da esfera pública nos debates. Também neste período começam a aparecer estudos que se concentram na inclusão e exclusão de grupos marginalizados, gerando novas formas de abordagem teórica sobre a representação (FABRINO, 2008; CHADWICK, 2006; YOUNG, 2006). As instituições representativas passaram por mudanças importantes que forçam a inclusão do caráter informal discursivo em uma esfera marcada pelo pluralismo e diversidade, como agentes que se autoautorizam (ONGs, fundações, grupos de interesses) e entidades que representam (fóruns deliberativos, painéis, conferências temáticas). Nesta revisão histórica, o objetivo não foi discutir detalhes sobre estas teorias e sua validade na formulação dos conceitos de democracia e de representação, mas revelar o papel fundamental e central da mídia e, consequentemente, da opinião pública, nestas discussões, que foi ganhando espaços nas últimas décadas. É através da visibilidade midiática, da potencialização da opinião pública e das transformações impactadas pela centralidade da mídia nos processos sociais, econômicos e políticos, que estes debates ganham intensidade, mostrando que os significados de representação política passam a ter novas leituras e perspectivas relacionais. Os protestos populares revelaram de forma muito marcante a importância destes dispositivos propiciados pelas novas tecnologias de comunicação para lançar novos olhares sobre a representação política na atualidade. “Quem representa”, “o que representa” e “como representa” são questões que são atravessadas pelos media em todas as fases do processo de representação política. 233 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Considerações finais No cenário político atual, os debates sobre representação política são calcados mais nas performances imagéticas e retóricas dos candidatos e partidos do que no modo deliberativo dos conteúdos e doutrinas. Há décadas, novas estratégicas comunicacionais vão sendo incorporadas na construção desta interface entre mídia e política, o que impacta o modo de se fazer e de se pensar a política na contemporaneidade. Os constantes deslocamentos de sentidos vão escrevendo novas histórias e novas apropriações por segmentos variados da sociedade como linhas de fuga. Os protestos populares, que levaram milhões de pessoas às ruas e avenidas do país em 2013, materializaram estes jogos de construção de sentidos nestas implicadas redes de poder político. As manifestações transformaram-se em um fenômeno midiático político, na medida em os meios de comunicação de massa foram dispositivos essenciais para legitimar o movimento como uma grande prática democrática, apesar do incômodo da violência praticada por grupos de esquerda e direita radicais que pregavam a depredação como forma de protesto. Sem a cobertura jornalística dos grandes conglomerados de comunicação e a interatividade proporcionada pelas redes sociais, o movimento do Passe Livre, que surgiu em São Paulo, não teria este impacto e reflexo político em todo o país. Com efeito, os protestos ocorridos no Brasil podem ser analisados por três aspectos que reforçam esta linha de fuga, ressignificando os debates sobre a midiatização da política e a reformulação do conceito de representação política. Outros protestos populares como os ocorridos no mundo árabe contra a ditadura, nos países europeus contra as medidas recessivas e na América Latina quando da eleição do presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, dentre outros exemplos revelaram também, apesar de suas peculiaridades históricas e culturais, que a visibilidade midiática pode e deve ser apropriada também pelos cidadãos para potencializarem suas vozes de mudanças e insatisfação. “Da mesma maneira como o vírus “aprendem” a resistir às vacinas, as massas aprendem a jogar com as irradiações que recebem” (GUILHAUME, 1989, p. 138). A segunda perspectiva refere-se às formas não eleitorais de representação política, que eclodem na sociedade como mecanismos legitimados pelos meios de comunicação de massa para o enfrentamento político contra grupos que detém o poder 234 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 institucionalizado. Em uma sociedade midiatizada, com clivagens múltiplas e com demandas cada vez mais plurais, grupos sociais organizados ou não da sociedade civil utilizam esta visibilidade midiática para potencializar suas vozes e exigir seus direitos em confrontos discursivos mais acirrados, na medida em que a mídia amplia o espaço público de debates. Esta prerrogativa deve suscitar reflexões sobre como os tradicionais partidos políticos e seus líderes se comportam frente a este novo cenário e como podem amenizar estas crises de identificação partidária que se abatem em todo o mundo. O terceiro aspecto refere-se à política do espetáculo, que traz consigo algumas características positivas de impacto, dramatização, comoção no trato das questões políticas, mas também reforçam questões negativas como o esvanecimento rápido e fugaz destes momentos políticos. O dinamismo informacional dos quadros políticos é tão intenso que a memória torna-se curta demais e os desdobramentos se perdem no meio do caminho. O escândalo de corrupção de hoje se sobrepõe ao de ontem e o espetáculo abre suas cortinas com outros cenários e outros atores, construindo novos sentidos e ressignificando o momento político. Nestas perspectivas, o apartidarismo dos protestos foi emblemático nestas relações de poder que atravessam a sociedade atual, mostrando metamorfoses importantes que devem gerar novas apropriações de discursos e práticas políticos, tendo como suporte um encadeamento entre a sociedade, mídia e a construção dinâmica de contextos simbólicos, múltiplos e circulares que se abastecem e redesenham o cenário político contemporâneo. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, A. de; DIAS, M. R. Propaganda Política e a construção da imagem partidária no Brasil. Revista Civitas, Vol.2, nº 2, p 309-326, 2002. ALMEIDA, Débora C. R. Repensando representação política e legitimidade democrática - entre a unidade e a pluralidade. 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Em seguida, discutem-se dois aspectos que parecem estar relacionados a essa forma de consumo: primeiro uma relação entre essas práticas e as resistências às “subjetividades capitalísticas” e, segundo, uma aproximação dessa forma de consumo com o paradigma da dádiva. A importância das tecnologias digitais de comunicação para o “consumo colaborativo” é discutida ao longo do trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Consumo Colaborativo; Tecnologias digitais de comunicação; Dádiva; Resistência. ABSTRACT: The aim of this paper is to reflect about the so called “collaborative consumption”, phenomenon that is related to different ways of relate to and purchase products through exchange, rent, loan, donation. First, it introduces what has been understood as “collaborative consumption” and some examples. Then, it is discussed two aspects that seem to be related to this form of consumption: first a relationship between these practices and the resistance to “capitalistic subjectivity” and second an approximation of this consumption form with the gift paradigm. The importance of digital technologies of communication to the “collaborative consumption” is discussed throughout the paper. 54 Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ). Bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Email: [email protected]. 237 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 KEYWORDS: Collaborative Consumption; Digital Technologies of Communication; Gift; Resistance. 1. INTRODUÇÃO As práticas que atuam sob o rótulo do “consumo colaborativo” têm aumentado significativamente nos últimos anos. Um possível indicativo disso é que, em 2011, a Revista Time elegeu as “10 ideias que vão mudar o mundo” e o consumo colaborativo foi apontado como uma delas (WALSH, 2011). Ao falar de consumo, vale lembrar Douglas e Isherwood (2006) no clássico O Mundo dos Bens, quando dizem que o consumo estrutura valores e regula relações sociais, sustentando assim estilos de vida. Partindo dessa compreensão, essas práticas que costumam ser intituladas de “consumo colaborativo” parecem um rico e curioso fenômeno, pois alteram, ou mesmo criam, singulares formas dos sujeitos se relacionarem e construírem seu lugar no mundo. O “consumo colaborativo” parece ter íntima relação com as tecnologias digitais de comunicação, pois como afirmam Botsman e Rogers (2011), a partir dessas ferramentas, os passivos consumidores tornam-se criadores ativos. Tal afirmação está diretamente relacionada à Internet, já que esta reduz os intermediários e facilita os intercâmbios. Observa-se, assim, que por meio da rede mundial de computadores estabelece-se uma forma de consumo que, por vezes, promove relações semelhantes àquelas entre vizinhos e parentes, mas, agora, entre pessoas que não se conhecem. Outro aspecto relevante dessa forma de consumo é que ela não faz frente ou critica o capitalismo, de fato, parece impulsionar novos modelos de negócios. Apesar disso, ao promover o acesso ao produto em detrimento da propriedade e as consequentes economias de dinheiro, espaço e tempo, além da dimensão ecológica – devido à redução do consumo de objetos novos – e ao favorecer que pessoas conheçam outras, criando novos laços, parece incentivar relações que talvez indiquem novas conformações subjetivas que fujam ao que Félix Guattari (1990) chamou de “subjetividades capitalísticas”. Além disso, o fenômeno do “consumo colaborativo” também parece indicar outro móvel para a ação dos sujeitos, que talvez se aproxime do paradigma da dádiva proposto por Marcel Mauss (2003). Antes de discutir essas questões, é importante esclarecer a ideia de consumo colaborativo e a que se refere. 238 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 2. O CONSUMO COLABORATIVO Possivelmente a primeira referência direta à ideia de consumo colaborativo tenha sido feita por Felson e Spaeth (1978) ao analisarem práticas como o compartilhamento de automóveis. Nos anos 2000, essa noção foi retomada por alguns autores, quando ganhou amplitude, talvez devido ao número crescente de iniciativas dessa natureza. Atualmente, essa forma de consumo pode ser entendida como práticas de troca, empréstimo, doação, aluguel, que ocorrem especialmente por meio de redes digitais de computador (BOTSMAN; ROGERS, 2011). São experiências diversas. Trocas de objetos que não servem mais para uma pessoa, mas que podem ser de utilidade para outras. Empréstimos, que vão desde roupas até casas e vagas em residências, passando por objetos como bicicletas e DVD’s. Esses mesmos objetos também podem ser alugados, mas por um preço menor do que o aluguel convencional ou se o produto fosse comprado, como acontece com carros e objetos usados com baixa frequência, como furadeiras ou iates. Também existem os empréstimos de espaços: alguém com uma área inutilizada no quintal empresta para outra pessoa interessada em cultivar uma horta, mas que não tem espaço para isso onde mora, para citar um exemplo. Botsman e Rogers (2011) consideram que as práticas de consumo colaborativo podem ser organizadas em três sistemas distintos: Serviços de produtos, que consistem em pagar pelo benefício do objeto sem adquirir uma para si; Mercados de redistribuição, que reúnem as práticas de troca e aumentam o ciclo de vida dos produtos, reduzindo desperdícios; e Estilos de vida colaborativos, que estão ligados à partilha de coisas imateriais. No sistema de “serviços de produtos”, observam-se experiências que vão na contramão do modelo de propriedade individual, o que parece mais importante é a utilização do bem, o que ele proporciona, e não a posse, questão que se aproxima das ideias de Jeremy Rifkin (2000) ao afirmar que vivemos na “era do acesso”. Existem diversas iniciativas nesse Sistema na área de mobilidade urbana. Exemplo disso é a empresa de compartilhamento de carros Zazcar, que foi a primeira da América Latina, cujo objetivo é fazer com que os clientes tenham todos os benefícios de um carro particular, sem ter que arcar com os custos e responsabilidades de um dono de automóvel. O funcionamento é simples: os carros ficam espalhados em diversos pontos 239 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 da cidade e o cadastrado, após fazer a reserva (por hora ou dia), retira o automóvel usando um cartão e depois do tempo estabelecido precisa devolvê-lo no mesmo lugar. Há também experiências desse tipo para utilização de bicicletas. Um exemplo, gratuito, é o IntegraBike, que funciona na cidade de Sorocaba/SP. Para utilizar o serviço é preciso ter mais de 18 anos e cadastro no sistema de transporte coletivo da cidade, o que permite utilizar a bicicleta por uma hora. Outra iniciativa é o Bike Rio, que disponibiliza bicicletas em diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro. A partir de um cadastro prévio e do pagamento de um valor mensal (R$ 10), é possível fazer quantas viagens quiser (de até 60 min.) durante todo o dia, desde que sejam realizadas com intervalo de pelo menos 15 min. entre elas. Caso as viagens tenham duração maior que 60 min., é cobrado um valor (R$ 5) por cada hora excedente. Não só na área de mobilidade existem exemplos do sistema de “serviços de produtos”. Objetos também podem ser alugados. Uma iniciativa que permite isso é o DescolaAi. O site possui um sistema que localiza o usuário mais próximo geograficamente daquele que procura o produto e os coloca em contato para acertarem os valores e prazos do aluguel. O DescolaAi também permite o aluguel de serviços, por exemplo: uma pessoa que precisa de ajuda na mudança pode alugar as horas livres de outra. Essa iniciativa oferece ainda a troca de produtos pelo site, o que a caracteriza também como “mercado de redistribuição”. Para realizar uma troca, o cadastrado no site (que possui um perfil com nome, foto, cidade e outros dados) oferece algo que não queira mais e pode indicar pelo o quê gostaria de trocar, ou aguardar a oferta “surpresa” de alguém. O site Xcambo é outra iniciativa que permite a troca de objetos nesses mesmos modelos. Outro exemplo que ilustra os “mercados de redistribuição” é o site Trocando Livros, com o objetivo de promover o que afirma o nome. Quando uma pessoa interessada em participar chega ao site pela primeira vez, o passo inicial é fazer o cadastro e elaborar uma lista com os seus livros que deseja disponibilizar para troca – todos precisam estar em bom estado de conservação. No momento em que algum usuário antigo se interessa por um dos livros da pessoa que acabou de chegar, ele faz uma “solicitação”, que o proprietário da obra precisa aceitar e confirmar que enviará o objeto, recebendo assim o endereço para envio. A cada livro que o usuário envia, ele recebe um “crédito”, necessário para que ele solicite os livros de alguém. Cada crédito, 240 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 que é obtido pelo envio de cada livro, é que permite ao usuário adquirir livros, realizando as trocas sem envolver dinheiro e baseadas na confiança. O terceiro sistema a partir do qual Botsman e Rogers (2011) organizam as práticas de consumo colaborativo (“estilos de vida colaborativos”) reúne experiências intrigantes. Não é curioso observar que em um mundo, comumente entendido como perigoso e que requer cuidado ao lidar com desconhecidos, pessoas recebem, em suas casas, sujeitos que nunca viram e, muitas vezes, de culturas completamente distintas? Isso acontece no CouchSurfing, que pode ser descrito como um serviço de hospitalidade totalmente gratuito no qual os cadastrados podem receber pessoas em sua casa ou ficar nas residências de outras. Atualmente, existem mais de 4 milhões de pessoas de 207 países cadastradas. Além das estadias, que podem variar de uma noite a semanas, os cadastrados nesse site também costumam realizar encontros e passeios em suas cidades, independente da estadia, criando e mantendo vínculos. Outro tipo de experiência que demonstra esse estilo de vida colaborativo é o chamado crowdfunding (financiamento coletivo). Essa talvez seja a prática de consumo colaborativo mais comum no Brasil, com inúmeras iniciativas55, desde gratuitas até as que cobram comissão. De maneira geral, ela funciona assim: um sujeito interessado em obter financiamento para um projeto/ideia (que pode ser qualquer coisa: pintar carroças, publicar livros, gravar um cd...) faz um vídeo curto descrevendo sua ideia, falando da importância, dizendo quanto necessita e publica em um site de crowdfunding. Após isso, as pessoas podem financiar com qualquer quantia, que costuma variar entre dez e mil reais. Cada pessoa que doou receberá uma recompensa caso o projeto seja realizado, que varia de acordo com o valor investido, podendo ir desde o nome em uma página de agradecimento até um jantar com os realizadores, passando por receber o produto que foi realizado. O projeto fica disponível para receber doações durante um determinado período, se o proponente atingir o valor que precisa, recebe o dinheiro, caso contrário, a quantia é devolvida para quem financiou. Esses três sistemas que Botsman e Rogers (2011) sugerem para organizar as experiências de consumo colaborativo têm caráter meramente didático e não devem ser 55 Algumas iniciativas de crowdfunding no Brasil: http://catarse.me/pt (primeira a ser criada); www.doare.org e www.juntos.com.vc (voltadas para o terceiro setor); www.benfeitoria.com (que não cobra taxa de comissão); bicharia.com.br (foco em animais abandonados); www.variavel5.com.br (foco em eventos culturais); www.cineasta.cc (foco em cinema); www.freedomsponsors.org (voltada para projetos de software livre). 241 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 tomados de forma definitiva. Eles foram retomados aqui somente por oferecer uma ordem na apresentação de alguns exemplos e não para que sejam adotados. Além disso, essas experiências de consumo são diversas e as características desses três sistemas podem estar presentes na mesma iniciativa e/ou se mesclarem e criarem algo que não se encaixa em nenhum dos três. Um exemplo é o Airbnb, site que permite alugar a própria casa estando ou não nela, e que poderia estar presente tanto no primeiro quanto no terceiro sistema. Além das experiências de consumo colaborativo que foram citadas existem inúmeros outros tipos. Por exemplo, as iniciativas que oferecem caronas gratuitas entre os cadastrados no site, como o Carona Brasil e o Caronetas, sendo que esta última ganhou um prêmio internacional de soluções para o trânsito em 2012 (MobiPrize). Outro exemplo interessante é o Bliive, que pode ser descrito como um espaço para troca de tempo e experiência. Funciona assim: você oferece uma experiência (uma aula de dança, por exemplo) e pela hora oferecida recebe um “timemoney”, que poderá ser trocado por outra atividade que alguém ofereça em seu tempo livre (aulas de inglês, passear com o cachorro). Com essa breve apresentação de algumas iniciativas de consumo colaborativo a intenção foi oferecer um panorama geral dessa forma de consumo, sem a preocupação de criar ou adotar categorias que sistematizassem as experiências. O importante é perceber a diversidade e o ambiente, pois esses exemplos parecem envolver mudanças nos processos de produção social de subjetividade56 e indicar a criação de novas sensibilidades e valores. 3. RESISTÊNCIAS ÀS “SUBJETIVIDADES CAPITALÍSTICAS” Como foi possível notar, todas as iniciativas do chamado consumo colaborativo funcionam a partir de páginas na Internet, o que demonstra o lugar das tecnologias digitais de comunicação para essas experiências, que são praticamente sua condição de possibilidade. Essa importância é enfatizada por Botsman e Rogers (2011, p.73): “Sem 56 A ideia de subjetividade é entendida a partir de Guattari (1992, p.19) como “o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial autoreferencial (...)”. 242 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 a capacidade de redes sociais da Internet, tal esquema teria pouca chance de combinar ‘desejo com necessidade’ e de alcançar escala rapidamente”. É interessante notar que algumas ações dessa forma de consumo, especialmente o empréstimo e a troca, são muito antigas. Exemplos disso são as bibliotecas públicas e o hábito de pegar algo emprestado com o vizinho. A questão é que, com a Internet e a criação de sites específicos para esse fim, tais comportamentos se ampliam e se organizam. O movimento em torno dessa forma de consumo parece ser muito semelhante ao contexto de compartilhamento no qual se inserem experiências como a criação do Linux, da Wikipédia e outras. Uma possível diferença é, conforme apontam Botsman e Rogers (2011), que no ambiente do consumo colaborativo as experiências não se restringem a cooperações no âmbito online, os laços são criados por meio da rede mundial de computadores, mas geram ações e também se fortalecem fora da Internet. Assim, a tecnologia é um elemento importante do consumo colaborativo. Porém, essa importância não parece ser motivada pela técnica em si, mas pelas relações que se estabelecem com ela a partir dos desejos de compartilhar algo. Diante disso, parece ser possível sugerir que essa prática de consumo é habitada e organizada por uma relação com a técnica, ou seja, está impregnada do que Gilbert Simondon (2007) chama de “tecnicidade”. Entretanto, para Simondon (2007), essa “tecnicidade” envolve, juntamente com a técnica, o elemento político, cultural, econômico, subjetivo, entre outros, e à medida que um desses aspectos muda, altera-se o conjunto dessas relações e as formas como essas práticas se configuram. Assim, a tecnologia é um elemento importante e deve ser considerado, mas não determinante, tendo em vista que funciona em relação a outros elementos. Nesse sentido, essas experiências precisam ser encaradas como configurações nas quais elementos diversos interagem para organizar o fenômeno. Fala-se em configuração com inspiração no conceito de “agenciamento” proposto por Deleuze e Guattari (1977). Para eles, o agenciamento seria como uma teia de elementos heterogêneos ligados por desejos. É uma noção mais ampla que a de sistema, estrutura, processo ou montagem e admite componentes de natureza diversa, tanto de ordem biológica, quanto social, maquínica, imaginária (GUATTARI; ROLNIK, 1999). Compreendendo o consumo colaborativo nessa perspectiva e entendendo-o como uma prática que não pode ser dissociada das relações de produção capitalista, 243 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 tendo em vista que existe em uma sociedade que funciona nesse sistema e diz respeito a um modo de adquirir e se relacionar com objetos e serviços, é fundamental levar em consideração as características do capitalismo nesse contexto e as relações de poder. Atualmente, conforme é apresentado por vários autores (HARDT; NEGRI, 2010; LAZZARATO, 2006; PELBART, 2009; entre outros), vive-se sob o predomínio do trabalho imaterial e em uma etapa do desenvolvimento capitalista que tem sido chamada de “capitalismo cognitivo”. Esse ambiente seria marcado pela figura do “Império” (HARDT; NEGRI, 2010), que coincide com a ideia de “Sociedade de Controle” tematizada por Deleuze na esteira do pensamento de Foucault (PELBART, 2009). Nesse contexto, o poder57 investiu a própria vida. Os desejos, costumes e hábitos necessários para a reprodução do capitalismo são internalizados e reproduzidos (PELBART, 2009). Assim, o exercício do poder é menos vertical e mais democrático, entrelaçado nas experiências sociais de maneira que nem percebemos, afetando e formatando assim a subjetividade dos sujeitos (PELBART, 2009). Diante disso, as resistências ao poder devem se apoiar no que ele próprio investe, isto é, na vida (NEGRI, 2003; DELEUZE, 2005; PELBART, 2009). Nesse contexto, as possibilidades de resistência dizem respeito a criar e permitir que a potência da vida se expresse, tal como Gilles Deleuze apresenta em seu Abecedário 58. E quando se fala em criar não significa algo ontologicamente novo, mas arranjos, relações e experiências singulares, que podem ser observadas em diversas áreas, e não somente em práticas que, claramente, têm como objetivo enfrentar, resistir ou criticar algo. Segundo Negri (2003), sempre há como resistir contra esse poder que investe a vida e, muitas vezes, as iniciativas não apresentam, abertamente, objetivos claros e definitivos de mudança de algo, mas “resistem”, cotidianamente, de diversas formas, como ele esclarece: (...) nas atividades produtivas, contra um patrão; nas atividades da reprodução social, contra as autoridades que regulam e controlam a vida (na família, o paternalismo...); na comunicação social, contra os valores e os sistemas que fecham a experiência e a linguagem na repetição e os empurram para a ausência de sentido. A resistência interage duramente, mas também 57 O poder é entendido aqui, a partir do pensamento de Foucault (1984), como uma relação que não é originalmente má e está presente em vários campos sociais: família, trabalho, política etc. 58 O abecedário de Deleuze é uma entrevista concedida pelo filósofo e publicada após sua morte. Disponível em: <http://bibliotecanomade.blogspot.com/2008/03/arquivo-para-download-o-abecedrio-de.html>. Acesso em: 10 jul. 2013. 244 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 criativamente, com o comando, em quase todos os níveis da vida social vivenciada. (NEGRI, 2003, p. 197). Assim, os efeitos do poder e as possibilidades de resistência devem ser encarados “no domínio da ecologia mental, no seio da vida cotidiana, individual, doméstica, conjugal, de vizinhança, de criação ética pessoal” (GUATTARI, 1990, p. 33). Diante disso, é possível observar experiências de resistência em iniciativas que não se prestam, claramente, a esse propósito, mas que parecem criar novas sensibilidades, maneiras de se relacionar e, talvez, até se afastar do que Félix Guattari (1990) chama de “subjetividades capitalísticas”, isto é, dos valores, desejos e formas de estar no mundo responsáveis pela reprodução e manutenção do capitalismo. Isso parece existir em determinadas práticas do chamado consumo colaborativo ao experimentarem diferentes maneiras de consumir bens e singulares experiências sociais. Enquanto os modos de subjetivação capitalista requerem que os sujeitos consumam mais, por exemplo, nessa forma de consumo há uma tentativa de aumentar a vida útil dos produtos. Os adeptos dessa forma de consumo não parecem interessados em combater o capitalismo, especialmente porque muitas iniciativas são como empresas que geram renda aos proprietários (como a Zazcar e outras), mas talvez resistam inventando outras formas de consumir e viver a partir dessas plataformas. Pensando a prática do lazer, por exemplo, ao viajar, ao invés de ficar em um hotel, é possível se hospedar na casa de uma pessoa desconhecida criando laços, conhecendo a cidade sob outra perspectiva e economizando. Ao ler um romance, ao invés de comprar um livro novo, que depois pode ficar na estante sem utilidade, é possível trocar um antigo que está sem uso por outro – o mesmo pode acontecer com dvd’s ou cd’s. Além disso, no Bliive, por exemplo, é possível capitalizar tempo livre e adquirir algum serviço em troca: uma pessoa que aprendeu a tocar violão na infância por diversão pode dar aulas para alguém e, em troca, receber aulas de francês, necessárias para o trabalho e que o sujeito talvez não tenha condições de pagar. Assim, são formas de consumir produtos e serviços que fogem ao modelo convencional, muitas não utilizam dinheiro e criam relações entre os sujeitos que antes não existiam. As pessoas que se dispõem a consumir dessa maneira talvez estejam 245 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 movidas por outros valores, desejos e resistindo ao criar singulares processos de subjetivação, que para Deleuze (1992) é a operação pela qual os sujeitos ou grupos se constituem “a margem dos saberes constituídos e dos poderes estabelecidos” (DELEUZE, 1992, p.188). 4. SOBRE O PARADIGMA DA DÁDIVA Nas iniciativas de consumo colaborativo é perceptível certa “doação” dos sujeitos, quando recebem estranhos em sua casa, dão caronas ou mesmo usam seu dinheiro para financiar ideias de desconhecidos. É por conta dessas ações que se percebe uma aproximação com a noção de “dádiva”. De acordo com Mauss (2003), a dádiva é o fundamento de toda sociabilidade humana, produzindo alianças de diversas naturezas. Para Godbout (1998), a dádiva é o que circula na sociedade sem estar ligado ao mercado, ao Estado ou à violência. De acordo com esses autores, a dádiva não corresponde ao modelo mercantil, isto é, tenta se afastar da equivalência e não possui a retribuição como um fim; pode até existir um retorno, mas esse não é o foco da ação. Sendo assim, a manutenção da “dívida” é uma tendência da dádiva (GODBOUT, 1998). É uma relação muito semelhante com a que pode ser observada nas práticas de consumo colaborativo, nas quais as pessoas dão, mas nem sempre recebem algo de volta e o retorno não parece ser o móvel da ação. Na perspectiva da dádiva, os atores retiram a obrigação de retribuir e o retorno é incerto, mas há o interesse de tentar fazer a dádiva prosseguir (GODBOUT, 1998). É possível notar isso no consumo colaborativo: o sujeito que dá carona, aceita alguém em sua casa ou ajuda em um site de crowdfunding, talvez não receba isso de volta, mas quem foi beneficiado pode fazer por outra pessoa. Evidentemente, outros fatores podem motivar essa ação dos sujeitos, como o desejo de fazer parte de um grupo ou exercer algum tipo de poder, mas apesar disso a experiência que emerge é de “auxílio” e “doação” ao outro. Uma questão significativa que merece ser levantada é a confiança entre os sujeitos. Conforme diz Godbout (1998), o sujeito envolvido em um sistema baseado na dádiva tende a manter a incerteza para permitir que a confiança se manifeste. A construção da confiança é um aspecto central do consumo colaborativo: é preciso 246 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 acreditar no outro para dar dinheiro a ele, emprestar um objeto, aceitar em casa, enviar um livro. Todas as práticas dessa forma de consumo pressupõem confiança, ainda que de diferentes formas e níveis. Talvez seja a incerteza presente na dádiva que colabore para a existência (ou a construção) da confiança entre os sujeitos dessa forma de consumo. Outro aspecto importante a refletir é sobre o móvel das ações dos sujeitos. Godbout (1998) afirma que o modelo da dádiva não atende a nenhum dos dois mais comuns postulados psicológicos para explicar o móvel das ações humanas: o do “interesse”, que geralmente orienta o pensamento econômico, segundo o qual sempre esperamos algo em troca; e o da “interiorização das normas”, que percebe as ações como resultados de normas externas que orientam as maneiras de agir. Sendo assim, o autor diz ser necessário considerar outro atrativo, que talvez seja a necessidade de se ligar ao outro, se relacionar. Godbout (1998) não chega a uma conclusão definitiva sobre esse atrativo da dádiva, mas ainda que sem almejar solucionar essa questão, vale lembrar Michael Tomasello (2009), que a partir de uma pesquisa com crianças, considera que os seres humanos são naturalmente cooperativos, e que ao crescer é que vão se adequando as normas do meio. Talvez isso ajude a pensar o móvel do sistema da dádiva, uma vez que a cooperação, isto é, a colaboração com o outro, está presente no cerne da dádiva. Botsman e Rogers (2011), ao refletirem sobre as motivações dos sujeitos que atuam no consumo colaborativo, apontam que talvez essas experiências de consumo tenham relação com a crise econômica que se estabeleceu nos Estados Unidos e na Europa nos últimos anos, e que por isso as pessoas perderam parte do seu poder de compra e buscaram novas formas para consumir. Por outro lado, é possível observar o surgimento de experiências dessa natureza em países que registram aumento no consumo de bens e serviços, como é o caso dos países da América do Sul, em particular o Brasil (CAÑIGUERAL, 2012). Longe de chegar a alguma certeza, Botsman e Rogers (2011) apresentam diversas motivações dos sujeitos que atuam no consumo colaborativo. Alguns consumidores de colaboração são otimistas que pensam adiante e que são voltados para aspectos sociais, mas outros são indivíduos motivados por uma urgência prática a fim de encontrar um jeito novo e melhor de fazer as coisas. Essa urgência prática pode ser economizar dinheiro ou tempo, acessar um serviço melhor, ser mais sustentável ou permitir relacionamentos mais estreitos com pessoas, e não com marcas. A maioria das pessoas que participa 247 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 do consumo colaborativo não é composta de benfeitores do tipo Pollyanna e ainda acredita muito nos princípios de mercados capitalistas e do interesse próprio. (BOTSMAN; ROGERS, 2011, p.60). Diante disso, não parece ser possível definir um único atrativo para a dádiva e/ou uma exclusiva motivação para os sujeitos que atuam no consumo colaborativo, mas isso não é um problema, é possível tomar a diversidade de motivações que podem existir e observar um aspecto que certamente está relacionado: a presença da liberdade na dádiva, tendo em vista que é uma escolha agir dessa maneira (GODBOUT, 1998). E nessa perspectiva se encontra um precedente importante para refletir sobre uma última questão com este trabalho: o sujeito que se constitui nas práticas de consumo colaborativo. Foucault (2010a) entende a liberdade relacionada à ética. Para ele, “a liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela liberdade” (FOUCAULT, 2010a, p. 267). A relação entre ética e liberdade no pensamento de Foucault está intimamente ligada à questão do “cuidado de si”. A partir do Estoicismo grego, o filósofo francês defende que o cuidado de si é uma forma de limitar o poder, de controlar desejos, vícios e estabelecer consigo uma relação de domínio, para então ser livre. Nessa perspectiva, a ética é entendida como uma prática racional, como escolha, por isso é apresentada como uma forma de liberdade. A partir dessa liberdade, o sujeito tenta dar à própria vida determinada forma, burilá-la como uma obra de arte, por isso Foucault (2010b) vai chamar esse processo de uma “estética da existência”. Ao longo da história, passamos pela predominância de diferentes formas de constituição dos sujeitos. Nos últimos séculos, é possível observar certo enfraquecimento dos alicerces e regras que ditam como a pessoa deve agir. As ciências e o partido político, por exemplo, têm seu papel como fonte de verdade e orientação colocado em “xeque” e enfraquecido. Assim, os sujeitos são menos “formatados”, unicamente, por modelos prontos, buscando, julgando e compondo modos de vida frente às várias possibilidades. Vale lembrar que essa “estética da existência” é realizada através de esquemas que o sujeito “encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social” (FOUCAULT, 2010a, p. 276). Assim, ao buscar modos de vida, o sujeito pode inventar algo singular, mas invenção não significa o 248 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 surgimento de algo extraordinário e novo, mas sim o que é elaborado com os diagramas e moldes com os quais o sujeito se depara no mundo em que vive. Diante disso, é possível sugerir que os sujeitos das práticas de consumo colaborativo parecem buscar formas singulares de estar no mundo e viver, visto que criam ou experimentam diferentes maneiras de se relacionar e adquirir produtos. E a ação desses sujeitos não é uma obrigação ou obediência a normas. Pelo contrário, os sujeitos escolhem agir assim e, em alguns casos, se esforçam para tanto. Nisso é possível perceber a semelhança com a noção de dádiva, pois como afirma Godbout (1998), ela não é feita por dever ou para seguir determinados princípios, mas porque o sujeito quer, escolheu e se sente bem. Além disso, conforme foi apontado anteriormente, observar os modos de constituição do sujeito é também uma maneira de pensar a resistência, partindo do pressuposto que se pode opor às “subjetividades capitalísticas” criando modos de vida singulares. 5. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES Conforme foi dito, é possível perceber que os sujeitos que participam do consumo colaborativo possuem motivações diversas. Alguns querem uma sociedade sustentável, outros buscam ganhar dinheiro a partir de um novo modelo de negócios, enquanto outros apenas facilitar sua vida (BOTSMAN; ROGERS, 2011). Mas todos parecem convergir para um modo de consumo que priorize o acesso em detrimento da propriedade e que parece ter relação com os valores de compartilhamento e sustentabilidade, reduzindo desperdícios e aumentando a vida útil dos produtos. Nessa forma de consumo, as pessoas oferecem o que possuem, mas o que vão ganhar em troca não parece ser a motivação principal, até porque, muitas vezes, não há retorno certo. É possível encontrar exemplos disso em ações como usar dinheiro, que poderia ser gasto em um fim pessoal, para financiar ideias de pessoas desconhecidas; aceitar estranhos onde mora mesmo sem receber nada material em troca ou a promessa de ficar na casa do hóspede quando precisar; e oferecer caronas a estranhos. Ações como essas não parecem corresponder ao modelo mercantil comum das sociedades atuais, no sentido entendido por Godbout (1998), e talvez se aproximem do paradigma da dádiva. 249 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Foi possível perceber também que determinadas práticas consideradas como consumo colaborativo parecem apontar para a criação de processos de subjetivação que talvez indiquem resistências aos poderes que tentam regular a vida a partir de “semiotizações capitalísticas” (GUATTARI, 1990). Assim, talvez os sujeitos que atuam nessas iniciativas estejam criando singulares maneiras de viver orientadas por outros valores. A partir das reflexões apresentadas neste trabalho, e ainda que algumas questões tenham sido mais apontadas do que propriamente esclarecidas, buscou-se sugerir caminhos para refletir sobre o chamado consumo colaborativo. Espera-se ter contribuído com reflexões sobre um fenômeno recente, que parece muito rico e diverso, exigindo mais e continuados estudos. REFERÊNCIAS BOTSMAN, Rachel; ROGERS, Roo. O que é meu é seu: como o consumo colaborativo vai mudar o nosso mundo. Porto Alegre: Bookman, 2011. CAÑIGUERAL, Albert. Consumo Colaborativo explode na América Latina. DescolAí. 2012. Disponível em: <http://descolaai.wordpress.com>. Acesso em: 28 ago. 2012. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. ______. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. ______.; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. 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Tomamos como apoio teórico pesquisadores do campo da epistemologia cultural, como Thompson (2002 e 2011), Moraes (2003), Stuart Hall (2005) e Eagleton (2005). Esta reflexão evidencia a tensão imanente entre o global e o local. O discurso da mídia se ajusta e media valores que ressurgiram com força, como o da proximidade e suas raízes identitárias. Palavras-chave: Mídia. Globalização. Cultura. ABSTRACT: This paper approaches, in an articulated way, three categories that influence on the formation of contemporary societies. With the title Globalization, culture and media: an interface in the production of meaning in contemporary societies, we develop a reflection showing the links among these concepts. We had as theoretical support researchers on the field of cultural epistemology, as Thompson (2002 and 2011), Moraes (2003), Stuart Hall (2005) and Eagleton (2005). This reflection shows the immanent tension between the global and the local. The media discourse adjusts and mediates values that resurged strongly, as the one of proximity and identity roots. Key-words: Media. Globalization. Culture. 59 Lisiane Mossmann é jornalista formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí. E-mail de contato é [email protected]. 253 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 1 INTRODUÇÃO Neste artigo se pretende estabelecer uma relação conceitual entre globalização, cultura e mídia. A mídia desempenha papel imprescindível nos processos de produção de sentidos e na construção da realidade nas sociedades contemporâneas. Os meios de comunicação, neste complexo campo de estudo, emergem como área estratégica e de poder no mundo globalizado. A tecnologia digital possibilita ainda uma intervenção instantânea no cotidiano das populações ocidentais e as fronteiras geográficas, econômicas e políticas se tornam mais tênues. Programas radiofônicos e televisivos, jornais, revistas, internet invadem o espaço privado e se inserem na vida das pessoas, seduzindo-as com informações, entretenimento, ideologias, representações políticas e filosóficas. A cultura juntamente com a mídia constitui o tecido de formação do pensamento de um povo. Seu processo de desenvolvimento acompanha as configurações das sociedades modernas. Desta forma, os estudos da cultura e da mídia na sociedade contemporânea somente podem ser efetivados de forma híbrida, pois se entrelaçam ao ponto da literatura compreender conceitualmente cultura como sendo cultura da mídia. A cultura da mídia estabelece uma relação dialética com o fenômeno da globalização. Toda produção de bens simbólicos pertence, por um lado, ao sistema de representação e, por outro, ao sistema de telecomunicação. Esses sistemas funcionam a partir da lógica da aceleração dos processos de aproximação e distanciamento do tempo e do espaço. A globalização, neste contexto, exerce fortes influências no mundo, mas com mais ênfase nos países da América Latina. Portanto, a organização retórica da reflexão está sistematizada em torno de três tópicos discursivos. O primeiro investiga a noção de globalização comunicacional: como esta categoria se articula com sua dimensão econômica e política intervindo direta ou simbolicamente na produção e no consumo dos processos comunicacionais e midiáticos. O segundo tópico reflete sobre a construção do conceito de cultura, explicitando o seu desenvolvimento relacionado com a produção de códigos e regras razoavelmente flexíveis, mas que contribuem para a convivência civilizacional. Uma elaboração dialética do saber tensionado entre o natural e o artificial. E o terceiro tópico 254 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 trabalha o processo histórico midiático, abordando também o fenômeno de globalização da mídia com suas mudanças de paradigma comunicacional e seus modelos. Por último, são feitas considerações finais. 2 A NOÇÃO DE GLOBALIZAÇÃO COMUNICACIONAL A noção de globalização comunicacional é construída tendo como base teórica autores vinculados às teorias modernas culturais e midiáticas. Thompson (2011) acredita que o processo da globalização da mídia se firmou remontando esse desenvolvimento também às origens do poder e suas inter-relações. De acordo com o autor, poder “é a capacidade de agir para alcançar os próprios objetivos ou interesses, a capacidade de intervir no curso dos acontecimentos e suas consequências” (2011, p.38). São distinguidos por Thompson (2011) quatro tipos principais de poder – de caráter analítico: econômico, político, coercitivo e simbólico. Essas formas de poder, geralmente, acabam se sobrepondo umas às outras de maneiras diversas e complexas. O poder econômico provém da atividade humana produtiva. O político, distinto do econômico, está mais ligado à atividade de coordenação dos indivíduos e de regulamentação dos padrões de sua interação. Já o coercitivo pressupõe o uso ou a ameaça da força física na conquista ou ao subjugar um oponente. A quarta forma de poder é o simbólico ou cultural, que nasce na atividade de produção, transmissão e recepção do significado das formas simbólicas (THOMPSON, 2011, p. 38-42). Um segundo aspecto apontado por Thompson (2011) para o processo da globalização aglutina, de um lado, as relações entre os padrões estruturados da comunicação global e, por outro, as apropriações dos produtos midiáticos. Moraes (2003) também analisa o fenômeno de globalização da mídia e cita pontos que ajudam a fixar este perfil: a) a mudança do paradigma comunicacional e b) o modelo organizacional das corporações de mídia. Do gabarito midiático, diz, evoluiu-se para o multimidiático ou multimídia, sob o signo da digitalização. E essa linguagem favorece, segundo Moraes (2003, p.191), "a interconexão de redes e plataformas, viabilizando a base material para a hibridação das infraestruturas indispensáveis à transmissão compartilhada de dados, imagens e sons, em proporções incalculáveis”. 255 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Já no que se refere ao padrão corporativo das mídias, Moraes (2003) explica que a abertura desenfreada dos mercados de informação e entretenimento coloca por terra as salvaguardas nacionais existentes. E o mandamento diz que os empreendimentos devem ser geridos a partir de um centro estratégico — a holding — incumbido de pensar e formular prioridades, diretrizes e planos de inovação, além de estabelecer parâmetros de rentabilidade para subsidiárias e filiais. Ao mesmo tempo, centraliza a inteligência e a decisão de filiais locais, regionais e nacionais, garantindo a autonomia para cumprir as expectativas de produção e lucro, levando em conta certas particularidades socioculturais. No entanto, Moraes (2003) discorda dos teóricos que acreditam que a abundância de oferta de informação e entretenimento no mundo democratiza as culturas. Para ele, “a industrialização dos bens simbólicos obedece, assim, às injunções mercadológicas e às conveniências políticas e econômicas dos titãs” (MORAES, 2003, p. 191). Não há como retroceder. O mundo está interconectado. Moradores de povoados da Ásia obtêm informações e imagens de culturas ocidentais fornecidas pelas TVs, rádio, internet, jornais, assim como produzem roupas que são comercializadas nos Estados Unidos e na Europa. A mídia trata de mediar a vida social do planeta e as identidades “flutuam livremente” sem se fixar (HALL, 2005). Hall (2005, p. 77) propõe pensar a sociedade a partir das novas articulações entre o global e o local e não a partir do eclipse do local pelo global. Isso implica no fortalecimento das identidades locais e na produção de identidades híbridas, originadas do processo de Tradução Cultural: pertence-se a mais de uma identidade, fala-se mais de uma linguagem cultural (HALL, 2005, p. 89). Essa dualidade tão presente faz com que o mundo seja visto a partir de uma tensão ou então da “glocalização” (HALL, 2005). Numa perspectiva pós-moderna, a identidade, completa Eagleton (2005), está muito mais frágil e instável, enquanto, na era moderna, a concepção que se tinha é a de que estava ligada à individualidade e à construção de um eu individual único. Currie (1998) acrescenta ainda que esse período se caracteriza pela diversificação e 256 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 desconstrução. O impacto principal da globalização citado por Hall (2005) é a compressão espaço-tempo. É que o tempo e o espaço são coordenadas básicas dos sistemas de representação - escrita, pintura, desenho, fotografia, simbolização através da arte ou dos sistemas de telecomunicação. Diferentes épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas. Atualmente, há uma aceleração desse processo e sente-se que as distâncias encurtaram e o tempo diminuiu. Eagleton (2005) afirma que as vidas social e cultural estão imbricadas na “forma da estética da mercadoria”. A mídia, hoje, consegue moldar novas práticas culturais na sociedade dentro de uma perspectiva de transformação. midiática mudou e transformou a sociedade. A dinâmica da produção Para entender a “planetarização” vivenciada pelas sociedades, Rodrigues (1994) distingue a esfera da informação e a dimensão da comunicação. Para o autor, a "esfera da informação é uma realidade relativa que compreende o conjunto dos acontecimentos no mundo e forma o nosso meio ambiente” (RODRIGUES, 1994, p. 20). Já a dimensão comunicação, "é um processo de relativa previsibilidade. Da previsibilidade do processo comunicacional depende um dos seus princípios fundamentais, o da intercompreensão" (RODRIGUES, 1994, p. 21). A informação pertence à transmissão de acontecimentos e conhecimentos, a comunicação é uma relação intersubjetiva, enraizada na experiência singular e particular dos interlocutores. Por isso, pode-se dizer que em meio à abundância de informação sobre o mundo, a percepção sobre o ele não é tão rápida e não acompanha as transformações. A percepção faz parte da dimensão da comunicação e está ligada ao ter "tempo para tratar, assimilar, apreciar e compreender os ecos da atualidade" (RODRIGUES, 1994, p.25). Rodrigues (1994) aponta outros aspectos relevantes em que, apesar de a experiência planetária se sobrepor à experiência cultural concreta enraizada nos quadros tradicionais de representação da realidade, “cada cultura define o seu entendimento de mundo e continua a definir seu horizonte que delimita o espaço de entendimento e de compreensão dos acontecimentos e das mensagens difundidas pela mídia” (RODRIGUES, 1994, p.24). 257 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Para Rodrigues (1994), a homogeneização informativa não acarreta uma desterritorialização generalizada, pois não faz com que toda a humanidade tenha as mesmas representações da realidade e o que ocorre é uma universalização dos fluxos informativos, em que os particularismos culturais se manifestam. A mesma opinião tem Hall (2005) sobre essa questão de homogeneização cultural generalizada por causa da globalização da mídia. O que existe para Hall (2005) é um tensionamento e um processo de negociação contínuo entre o global e o local. O autor leva em conta três fatores importantes para fazer tal afirmativa. O primeiro fator vem a partir da argumentação de outro pesquisador, Kevin Robin. Ele afirma que ao lado desta tendência da globalização também existe um fascínio pela diferença, pelo local. O segundo, segue Hall (2005), refere-se à forma de como estes produtos globais são distribuídos, porque a globalização ocorre de maneira desigual nas diferentes partes do planeta. Thompson (2011) ao analisar estudo feito por Hebert Schiller sobre programas televisivos norte-americanos critica a tese do imperialismo cultural. Segundo Thompson (2011), Schiller falha ao não levar em conta que as apropriações de fenômenos culturais são processos fundamentalmente hermenêuticos. Os indivíduos se servem destes bens simbólicos e os interpretam a partir das suas disponibilidades e também contam com a ajuda daqueles que estão cotidianamente com eles para interpretar. 3 A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA A compreensão de como a mídia começou a ocupar o papel central na disseminação da cultura hegemônica e ocidentalizada só é possível com o entendimento do processo da construção do conceito de cultura. O significado da palavra cultura acompanhou o processo histórico-civilizatório e também se transformou. No seu desenvolvimento, formaram-se as regras e codificaram-se questões filosóficas, do espírito, da identidade. Se cultura significa cultivo, um cuidar que é ativo, daquilo que nasce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção ‘realista’, no sentido epistemológico, já que implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós; mas também uma dimensão ‘construtivista’, já que essa matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente 258 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 significativa (EAGLETON, 2005, p. 10) Os conceitos de cultura são os mais variados, como diz Muniz Sodré (1988, p.13): “Os de um todo, um sistema total de vida, e os de uma prática diferenciada, parcelar, mas sempre ao redor de uma unidade de coerência, um ‘foco’ de manifestação da verdade, do sentido, da razão.” A sua origem está ligada ao manejo da terra, e a noção de cultura é indissociável da ideia de campo normativo, explica Sodré. Mais tarde cultura e civilização tornaram-se sinônimos, utilizadas para se referir às pessoas cultas, civilizadas. Essa concepção, chamada por Thompson (2002) de “concepção clássica de cultura”, refere-se ao processo de enobrecimento das faculdades intelectuais que se dava através dos trabalhos acadêmicos e das artes. Eagleton (2005) amplia o conceito e acentua a noção de atividade que implica na participação das pessoas e é exatamente ali que se processam a criação de sociedades e identidades: “A cultura modela os indivíduos, evidenciando e cultivando suas potencialidades e capacidades de fala, ação e criatividade.” (EAGLETON, 2005, p. 11). Eagleton (2005) problematiza a ideia de cultura no processo de desenvolvimento civilizatório para desvelar a importância política e escapar da ideia redutora e ordem colonizadora. A sociedade está imprensada entre “natureza e cultura” (EAGLETON, 2005, p. 141). Afinal, o homem não é apenas um ser natural ou cultural, mas fruto da junção dessas duas marcas transformadas pela capacidade simbólica e criativa. Nas sociedades tradicionais, o conceito cultura era universal: todos estavam ligados a uma ordem simbólica e não eram tidos como sistemas distintos. Por muito tempo, teóricos pensaram a cultura de uma forma universal. Somente mais tarde é que foram observadas historicamente as diferenças entre os vários grupos que compõem a sociedade. Numa perspectiva bem mais ampla, então, se passou a usar a palavra cultura no plural para designar as distintas formas de sociedade, pensamentos e modos de vida. Na relação entre cultura e Estado, Eagleton (2005) mostra que na modernidade os interesses políticos governaram os interesses culturais. No entanto, percebe-se a dualidade existente, pois essa mesma relação instituiu o Estado-Nação moderno ao atribuir sentido à herança, à linguagem e aos valores compartilhados. 259 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Assim como a cultura, a mídia foi de suma importância para a formação dos Estados-Nação, pois seu “nascimento e seu processo histórico específico acompanharam o surgimento das sociedades modernas” (THOMPSON, 2002, p. 210). Cultura e mídia começaram a se entrelaçar e criar laços fortes para a disseminação do que se chama hoje a cultura da mídia, que nada mais é que a cultura dominante (THOMPSON, 2011). 4 O PROCESSO HISTÓRICO MIDIÁTICO A mídia também, em sua constituição histórica, buscou a hegemonia na sociedade. Seu surgimento no século XV, com a impressão de Gutemberg e circulação dos primeiros jornais, já mostrava isso. As primeiras publicações ultrapassam fronteiras e chegam a países vizinhos. Depois, com a institucionalização do cinema, rádio, revistas, histórias em quadrinhos, propaganda e imprensa (pós-Segunda Guerra Mundial), a mídia começou o processo – que segue até nos dias de hoje - de domínio do lazer e da ocupação do centro do sistema de cultura. O surgimento da televisão exacerbou mais esse fenômeno e fez a mídia se transformar em força dominante na cultura, na política e na socialização, além de acelerar definitivamente o seu processo de globalização (cabos e satélites superam limitações de transmissão) (McQUAIL, 2013, THOMPSON, 1995). A partir daí, mudanças drásticas políticas, sociais, econômicas e culturais eram acompanhadas de perto pelo mundo. Assistiu-se, na década de 1960, os movimentos sociais se rebelarem contra a política e a cultura hegemônicas, produzindo formas alternativas de vida. Já nos anos 70, tem-se o período de recessão nos Estados Unidos, que afetou grande parte do mundo e provocou uma reorganização da economia mundial. Marcante também o embate de discursos midiáticos produzidos por causa do cenário geopolítico nos anos 80 e 90. Trava-se a chamada Guerra Fria: de um lado o Ocidente do livre mercado e de outro o Leste comunista. A derrubada do muro de Berlim e a queda do império comunista soviético pareciam indicar o fim destas disputas. No entanto, o que se observa é o surgimento de outras guerras culturais, nacionalistas e religiosas, criando uma nova era de medo e sem uma alternativa política de estabilidade e paz (THOMPSON, 2002 e McQUAIL, 2013). 260 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A mídia se transformou e modificou a sociedade. A chamada “sociedade da informação” - hoje quase que totalmente digitalizada -, segundo Mattelart (2002, p. 135), “é um eixo do projeto geopolítico mundial, cuja função é garantir o reordenamento do planeta ao redor dos valores de mercado e do avanço tecnológico”. Isso só se tornou possível porque os meios de comunicação exercem uma dupla função: de objetos e de agentes da globalização. Modernizam-se e recebem investimentos financeiros e ainda têm o papel de tornar a sociedade consciente desse fenômeno (McQUAIL, 2013, p.234). Moraes (2003) também aponta essa duplicidade de papel da mídia: são agentes discursivos e econômicos. Segundo ele, o primeiro é relativo à sua condição peculiar de agentes operacionais da globalização, do ponto de vista da enunciação discursiva, pois exercem a função de vender e legitimar o ideário global e ainda transformam o discurso social hegemônico, propagando visões de mundo e modos de vida que transferem para o mercado a regulação das demandas coletivas. A ideia vendida é a de que a fonte de expressão cultural se mede pelo nível de consumo. A mídia influencia e exerce poder na construção da realidade social por meio da moldagem de percepções, afetos, significações, costumes e da produção de efeitos políticos, baseada na interação em tempo real e na possibilidade de criação de espaços artificiais ou virtuais (SODRÉ, 2008, p. 12-18) São as formas mais variáveis e multifacetadas de informações que lemos, ouvimos e assistimos nos meios de comunicação. Neste processo de globalização, criouse um embate entre o global e o local. Os noticiários e programas estão preocupados em interagir com aqueles que consomem seus produtos e priorizam informações locais, principalmente os meios de comunicação afastados dos grandes centros econômicos e sociais. Podemos dizer que nesta tensão entre o local e o global irá se produzir informações e programas diferenciados tentando atender novas demandas: “Não há global sem local nem local sem global” (REBELO, 2000, p. 153). Aqueles que já tinham um caráter de proximidade intensificam o foco no local sem perder de vista o global e a chamada era informacional: produz informação global e procura dar lugar para vieses, vozes e assuntos locais. Então se lê em notícias de assuntos nacionais e internacionais vozes locais opinando e, é claro, tentando manter uma relação de proximidade com o leitor. 261 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Para acompanhar essa transformação, o processo e a prática da mídia passam por revisões e adaptações nas produções: tanto na estrutura como nos discursos. Automatização, enxugamento no quadro de profissionais das empresas, sobrecarga de tarefas daqueles que permanecem nas empresas, profissionais jovens e sem experiência assumindo postos de comando e um mercado em plena transformação, com o advento das redes sociais, colocam em xeque a forma de noticiar e a linguagem utilizada pelas mídias impressos. Os produtos midiáticos em circulação são o resultado de um processo de busca de hegemonia, a partir de uma negociação no mercado simbólico (LOPES, 2004). Em todas as etapas, desde a produção do fato até a sua edição e recepção, este processo se faz presente. Muitas vezes, o que ocorre é que aqueles que dela participam não se dão conta de todas as nuances, imbricações e negociações feitas durante o processo de produção, por estarem envolvidos de forma já tão naturalizada e internalizada. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS As últimas considerações serão no sentido de marcar algumas retomadas dos conceitos fundamentais desta interface de produção de sentido nas sociedades contemporâneas, permitida pela interconexão entre globalização, cultura e mídia. Desta forma se afirma os seguintes conceitos: a) Da noção de globalização comunicacional se afirma que esta definição foi construída por meio de um processo de relação entre os padrões estruturados da comunicação e apropriações dos produtos midiáticos. O fenômeno de globalização da mídia explicita mudanças de matrizes conceituais e formas de composição de poder das corporações de mídia. Outra compreensão de globalização é sua evolução para as realidades multimídia, sob o signo da digitalização. Toda comunicação passa por suportes computacionais de interconexão de redes e plataformas. O mundo contemporâneo se configura como compartilhamento de dados virtuais, imagens, sons e movimento. b) Da construção do conceito de cultura se constata definições variadas e abertas. Desde uma compreensão de cultura como um sistema de práticas, de manifestação 262 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 de verdade, de construção de sentido ou de expressão da razão humana, a uma concepção clássica relacionada à exaltação intelectual e artística. Cultura ainda pode ser entendida como forma de controle da ação do indivíduo, tanto da sua linguagem quanto da sua produção. c) Do processo histórico midiático descrevemos uma leitura cronológica deste conceito como também a forma de posicionamento que a mídia foi tomando em cada momento histórico da sociedade. Tendo como referência a invenção da imprensa do século XV, passando pela segunda guerra mundial, até o surgimento da televisão, chegando à contemporaneidade com as mídias interconectadas em rede. A mídia se posicionou na busca da hegemonia nas articulações de sentido na sociedade e torna-se uma expressão de globalização na atuação dos meios de comunicação. Portanto, globalização, cultura e mídia são formas multifacetadas de informações que produzem bens de consumo através das múltiplas linguagens e concepções de saber, no qual a comunicação por meio das mídias ganha na cultura contemporânea um status de adaptabilidade na tensão entre o local e o global. 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Junto com um grupo da Universidade de Navarra, onde foi decano, fundou na década de 1990 o Innovation Media Consulting Group, empresa de consultoria exclusiva para veículos de imprensa, da qual foi presidente, e que conta com um corpo de 80 consultores. Assim como Carlos Soria, hoje no cargo de chairman do Innovation, esses consultores viajam pelo mundo orientando empresas sobre como entrar na chamada revolução digital, usando os conceitos de convergência e de turbina informativa. “As certezas de longos anos foram derrubadas. O panorama dos meios clássicos envelheceu prematuramente devido à revolução digital. Hoje vivemos um momento de ansiedade, 60 MÁRCIO CARNEIRO DOS SANTOS é doutor pelo programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUCSP, Mestre em Comunicação pela UAM-SP , tem especialização em Marketing pelo ISAN/FGV-Rio e graduação em Jornalismo pela UFMA.É professor do Departamento de Comunicação Social na área de Jornalismo em Redes Digitais e coordena o LABCOM – Laboratório de Convergência de Mídias que trouxe o professor Carlos Soria a São Luís. Email: [email protected] 61 THAÏS DE MENDONÇA JORGE é professora da Faculdade de Comunicação (FAC) da Universidade de Brasília, cumpriu, de 2009 a 2010, estância de Pós-Doutorado na Universidade de Navarra (Pamplona, Espanha), por meio de bolsa do convênio Capes-DGU. Doutora em Comunicação Social (2007) e mestra em Ciência Política (1995) pela Universidade de Brasília, sua graduação em Comunicação Social foi pela Universidade Federal de Minas Gerais (1972). 265 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 uma encruzilhada na comunicação. Temos que construir um novo cenário”, convida o professor espanhol. Soria é autor de 13 livros, e tem em seu currículo mais de 100 consultorias em empresas midiáticas da Europa e América Latina. Veja mais em: http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=7760 - Professor espanhol fala sobre novos rumos do jornalismo. De forma resumida, como tem sido o seu trabalho junto às organizações de mídia e que problemas elas tem enfrentado por conta das mudanças tecnológicas? SORIA: - Em mais de 20 anos de experiência, aprendemos muita coisa. Hoje, o panorama da ação empresarial está mais claro. Temos algumas certezas. Por exemplo: a) É preciso ter um pensamento estratégico multimídia. As empresas pedem ajuda para isso. Que plataformas devem desenvolver e com que intensidade. Atualmente, as organizações sabem que se encontram em um novo tempo e que há novos hábitos de consumo de informação, diferentes do passado; b) Com esse pensamento estratégico, é preciso reinventar todas as plataformas: internet, rádio, TV, agências, meios impressos. Antes, cada meio era uma ilha, agora, não. É necessário ter uma estratégia integrada para atender a audiências que querem receber a informação da maneira mais barata, a qualquer hora, em qualquer lugar, através de qualquer plataforma disponível; c) É preciso haver essa integração editorial e comercial. As organizações que nos chamam compreendem essa realidade. O trabalho do consultor é conhecer muito bem o pensamento da companhia – conceitos, seu DNA, o mercado e como a organização se vê no mercado, as audiências – e conseguir formular perguntas que o empresário quer ver respondidas, ajudando-o até a prática das ideias esboçadas. O senhor tem afirmado que a internet não é um meio de comunicação, poderia explicar por quê? SORIA: - A internet é uma matriz digital multimídia que contém todos os outros meios dentro de si. É uma tecnologia que resume todas as linguagens – a escrita, a gráfica, a 266 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 audiovisual –, presentes ou futuras. Isto não significa que não seja uma plataforma, mas há que situá-la no coração de todos os meios. Dizer que a internet é um meio é uma afirmativa muito pobre. Não se pode alinhá-la com outros meios. A internet representa, na verdade, um salto qualitativo para todas as comunicações de hoje e do amanhã. Os modelos de negócio tradicionais utilizados pelos veículos de comunicação estão com os dias contados? SORIA: - Não é bem assim. Os modelos de negócio, hoje, enfrentam tantas turbulências que estão inseguros. O jornal tem um preço de venda político: não é o custo real, ou seja, o que pagamos na banca não cobre o custo do produto. Assim, o jornal é subvencionado pela publicidade. O sistema de venda e distribuiçãoo, que sempre foi um projeto de engenharia, é um esforço impressionante. As pessoas estão perdendo o hábito de comprar o jornal e as empresas estão preocupadas com as assinaturas, pois elas são muito caras. Hoje, com 40% de queda na publicidade, sabe-se que há uma crise no consumo. Logo, não há publicidade. A publicidade é um fator decisivo para as empresas, que depende de terceiros. Cada empresário da indústria da mídia tenta encontrar o equilíbrio entre publicidade e assinaturas para conseguir sobreviver. Com a rede de distribuição montada para os jornais se pode distribuir muitas outras coisas; os jornais também podem diversificar-se como centros de eventos, na organização de convenções. Subir o preço aos poucos pode ser uma estratégia, assim como fazer promoções, venda cruzada. Melhor isso que o grátis total. Como as empresas jornalísticas podem sobreviver oferecendo informação num mundo onde ela é abundante e gratuita? SORIA: - É muito curioso o que se passou na indústria da mídia. Antes, as breaking news (notícias de última hora) eram privilégio dos jornais, que as exploravam no dia seguinte. Então, as rádios liam as breaking news do jornal diário. Depois, o rádio começou a dar informação em tempo real. Vieram as revistas semanais, numa tentativa de dar ordem e contexto às breaking news. Hoje essas notícias instantâneas, de última hora, não valem nada. Os jornais descobriram que não adianta publicar o que passou: o que interessa é o “next”, o que vem em seguida. As empresas jornalísticas têm que fazer produtos necessários. Encher papel é suicídio. Qualquer jornal pode ter a metade das páginas que coloca nas ruas todos os dias. Os jornalistas vão trabalhar muito mais e o público vai ter um produto muito melhor. Há que reinventar os jornais, assim como as rádios e as TVs. A matéria-prima informação e divertimento é normalmente grátis. Não se pode dar essa informação grátis para milhares de pessoas. Como sobreviver? Não dando a informação que é abundante e livre. Isso exige trabalhar melhor as notícias. Poderíamos afirmar que o impacto das mudanças de que estamos falando está relacionado com o estado de desenvolvimento da infraestrutura de internet do país ou região que observamos, ou seja, em lugares onde ela (a infraestrutura) ainda 267 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 não é muito ampla as formas tradicionais de mídia, como o jornal impresso, por exemplo, ainda teriam um período maior de existência? SORIA: - Um pensamento estratégico, em termos da indústria informativa, se apoia na tecnologia. Os jornais têm que se informatizar e nao pode ter menos recursos que a audiência. Se nao tiver o mínimo, não poderá fornecer informações relevantes para a população. Nativos digitais encontram dados em todos os lugares. Se um veículo não lhe fornece a informação que querem, eles darão um jeito de buscá-la. É preciso ter, pelo menos o mesmo nível de tecnologia da audiência. Como o senhor definiria o termo convergência de mídias? SORIA: - Todos os termos estão contaminados. Falamos de um fenômeno global. Se não há fronteiras entre os meios, se os hábitos de consumo rezam que eu tenho que encontrar a informação que quero, na plataforma que desejo e da forma mais barata, não há maneira de trabalhar com esse tsunami a não ser estrategicamente, organizando e superando a informação monomeio. Isso significa exercitar um planejamento e um controle da informação para todas as plataformas. Se a presidente Dilma Rousseff vem a São Luís, como vamos planejar? Que ênfase vamos dar? Toda empresa tem que saber a atender ao relógio da informação. A que horas o público se conecta? Qual é meu target? É preciso coordenar esse relógio.7 Como se organizam nesse novo cenário as redações jornalísticas? SORIA: - A palavra-de-ordem é “open space”. O modo de organizar o trabalho, as equipes, passa pela integração, dentro de um pensamento estratégico. É preciso realizar um câmbio profundo, acabar com as paredes e os “aquários”, pensando no trabalho em equipe, multimídia e integrado, onde todas as linguagens conversem, os jornalistas conversem, discutam e se entendam. Todo mundo à vista, sentindo-se parte de um projeto maior e mais importante, que é a própria informação a serviço do público. Uma redação multimídia integrada pode se organizar em torno de um “superdesk”, que seria um “radar desk”, onde se detectam as informações. Esse superdesk se comunica com os editores de conteúdo. Depois, há uma outra mesa onde são dados os toques finais para cada publicação e plataforma. Há também uma “ecodesk”, que trata das relações com as redes sociais; estúdios de foto, rádio e TV; e outros setores especiais como “design” e “informática”. Na sua visão como será o jornalismo do futuro? SORIA: - Prevê-se um renascimento muito bonito da profissão, que leve em conta o jornalismo de qualidade. Esse jornalismo vai existir sempre e estará matizado pelas audiências muito mais maduras quanto à liberdade, busca de dados, essencialidade das mensagens, participação cidadã nas redes sociais, conectividade. O jornalista tem que ter uma cabeça multimídia e não muitos braços como o do deus Vishnu da mitologia hinduísta. Ele deve dominar os gêneros jornalísticos no mínimo – e alguns no máximo, 268 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 que se tornarão sua especialidade – para poder exercitar a imaginação criadora, planificadora, multimídia. Antes o jornalista era um solista, agora ele é um maestro, que precisa entender vários instrumentos. Tem que trabalhar em equipe, senão não serve a uma rede convergente e turbinada. O jornal, como existe hoje, não tem futuro. O papel como suporte nao vai desaparecer: ele é flexível, dobrável, portátil, legível, atende a muitos propósitos e funções e tem inúmeras vantagens. Entretanto, é preciso estudar melhor a periodicidade do jornal. O jornal do futuro pode não ter nada que ver com o que conhecemos hoje. 269 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 A REDENÇÃO DA TV E DO VIDEOGAME. SIM, É SURPREENDENTE! Larissa Leda Fonseca ROCHA62 Resenha JOHNSON, Steven. Surpreendente!: A televisão e o videogame nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. Desde o início do seu livro Steven Johnson nos apresenta qual sua hipótese geral de trabalho e nos indica claramente o caminho que pretende seguir para nos demonstrar o que sugere o subtítulo de seu livro: como o consumo da televisão e do videogame proporcionou um aumento significativo de nossas habilidades cognitivas. O autor nos diz que há, hoje, um tipo novo e diferente de educação que não está acontecendo nas salas de aulas ou com livros repousados sobre os colos de leitores assíduos dos clássicos de literatura, mas em telas de televisão e computadores, em porões de casa e sofás confortáveis e que está sendo realizado pela maioria dos consumidores de entretenimento da era digital, é o que chama de Curva do Dominhoco. “Os tipos mais degradantes de diversão de massa – videogames e filmes violentos de televisão, bem como as sitcoms (comédias de costumes), próprias para jovens –, no final das contas, revelaram ser saudáveis” (p. 8). Ao contrário da posição corrente que considera que a indústria cultural promove uma cultura de massa rasa e imbecilizada, Johnson afirma que o que está acontecendo é justamente ao contrário, do ponto de vista intelectual a cultura está cada vez mais sofisticada e não em direção à bancarrota absoluta. 62 Doutoranda em Comunicação Social pela PUC-RS. Mestre em Comunicação Social pela UFF. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMA. Autora do livro “Diluindo Fronteiras: hibridizações entre a realidade e a ficcionalidade na narrativa da telenovela” (Edufma). Coordenadora do projeto de pesquisa financiado pela Fapema “Maldade em outra ótica: a feiura moral sob o véu da beleza na narrativa da telenovela”. Editora da revista Cambiassu, do Departamento de Comunicação Social da UFMA.Email:[email protected] 270 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 Além desta hipótese de trabalho – por si só já instigante – são apresentadas na obra as causas prováveis para que seja possível falar em Curva do Dorminhoco, que inclui anseios neurológicos do cérebro, a sofisticada economia da indústria cultural e um avanço tecnológico sem igual. Estas forças “colidem” e resultam em uma maneira específica de funcionamento da cultura de massa e do modo como as pessoas se apropriam disto. O autor, basicamente, nos pede para pensar sob uma nova lógica, não mais o embotamento cerebral promovido e organizado pela indústria do entretenimento como o cinema, a TV e o videogame, mas justo o oposto disso, a potencialização de nossas faculdades cognitivas. Ao invés de significar declínio e atrofia, a cultura popular63 tem se tornado cada vez mais complexa e nos ajudado a exercitar nossas mentes de modo mais poderoso. Uma ressalva, porém, é fundamental. Para compreender e mesmo reconhecer a existência da Curva do Dominhoco é preciso tirar da equação o julgamento moral do conteúdo da cultura popular, como diz o autor, “abolir a tirania da moralidade” (p. 11). Naturalmente, se avaliarmos a mídia com base nos padrões morais do que é transmitido por lá só será possível ver um declínio absoluto na sua história. Mas não há um único modo de avaliar as práticas da indústria cultural e deixando de lado, por um momento, a moralidade do julgamento será possível reconhecermos que a mídia vem operando de tal forma e nos exigindo um tipo de pensamento que amplia nossas capacidades cognitivas e isso, talvez, seja mais importante do que os programas de tv ou os videogames nos passarem uma série de lições de vida. “A atual cultura popular pode não estar nos mostrando o caminho moralmente correto, mas está nos tornando mais inteligentes” (p. 12). Surpreendente! é dividido em duas partes, além da introdução e de “Leitura Adicional” ao final do livro. Na “Parte Um” ocupa-se em desvelar o que a indústria do entretenimento – e os consumidores – vem fazendo com os jogos, a televisão, a internet e o cinema. Esta parte, na verdade, vem organizada em quatro subpartes separadas de acordo com as mídias mencionadas, e ocupa a maior parte da obra. A “Parte Dois” do livro não traz subpartes, mas foca suas atenções em falar sobre o aumento do QI nos 63 Em sua obra, traduzida no Brasil por Luciana Gomes e Lucya Duarte, o autor usa as expressões “cultura popular” para referir-se à cultura de massas, oriunda do sistema da indústria cultural, e “objeto cultural”, para referir-se aos objetos que são o resultado produtivo desta indústria. Aqui neste trabalho usaremos a expressão escolhida pelo autor e/ou suas tradutoras. 271 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 últimos anos e as forças que impulsionam a Curva do Dorminhoco: econômica, tecnológica e neurológica. Por fim, Johnson fecha a parte dois da obra voltando à questão do julgamento moral da cultura popular e de elementos correlatos a este debate, como o tratamento da violência em filmes, séries de TV e videogames. Johnson não poupa fôlego ao falar sobre jogos e sobre televisão, destinando uma atenção mais reduzida à internet e ao cinema, provavelmente por que as mídias que vem apresentando os desafios cognitivos que o interessam são justamente a indústria de videogames e os seriados de televisão. O autor posiciona a questão fundamental para a qual devemos voltar nossas atenções: a pergunta que interessa não é se os jogos mostram-se como um divertimento mais sofisticado para as crianças hoje do que a maioria das outras experiências culturais às quais são submetidas, isso é claro. A pergunta é: afinal, por que os jogos cativam tanto se, hoje, a maior parte deles – ao menos os mais vendidos no mundo – são “diabolicamente, algumas vezes enlouquecidamente, difíceis?” (p. 21). O autor vai apoiar-se na neurociência para buscar esta resposta e vai concentrar-se em nos dizer que não é o tema dos jogos que seduz, é o sistema de recompensa neles que tanto atrai. E volta a diminuir o conteúdo dos jogos em valorização do modo como são usados. Dito de outro modo: “não é o que você está pensando quando está jogando, é o modo como você está pensando que importa” (p. 33). Se não é o conteúdo que tanto importa, é possível focar nossa atenção no “aprendizado colateral” que o jogo proporciona e ele é todo baseado na tomada de decisões. Esta é a atividade básica do jogador e “nenhuma outra forma de cultura popular mobiliza diretamente o dispositivo de tomada de decisão do cérebro da mesma maneira” (p. 34). Estas decisões são baseadas em duas modalidades de trabalho intelectual fundamentais: a sondagem e a investigação telescópica. A sondagem tem relação com o aprendizado das regras do jogo, que só é possível aprender jogando, literalmente. É parte fundamental da experiência do videogame as ambiguidades nas regras e nos objetivos, então o sucesso no jogo está justamente na decifração das regras do universo onde a experiência está acontecendo. Mas há, além das regras, o que Johnson chama de “física do mundo virtual”. Ao executar um jogo o computador não segue apenas as regras, ele “concebe um mundo inteiro, um mundo com biologia, luz, economia, relações sociais, condições climáticas 272 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 (...) você está sondando a física de um mundo quando começa a descobrir padrões e tendências sutis no modo como o computador está executado a simulação” (p. 36). Mas ao “brincar” com um videogame um jogador nunca tem apenas um objetivo, são vários, simultaneamente em jogo e estes objetivos ainda se organizam mentalmente de modo aninhado e hierárquico. O trabalho mental de organizar todos estes objetivos o autor chama de “investigação telescópica”, do modo como vão se encobrindo um dentro do outro como um “telescópio desmontado”. Este modo de investigação tem relação com a questão da ordem e da construção de hierarquias adequadas de tarefas para poder evoluir através delas na sequência correta, ou seja, perceber relações e definir prioridades. “O que você verdadeiramente faz ao jogar (...) tem a ver com descobrir ordem e significado no mundo, e tomar decisões que ajudem a criar essa ordem” (p. 49). Ao pensar sobre a televisão Johnson nos fala que há um desenvolvimento rigoroso e rápido e isto está relacionado à mudanças econômicas nos negócios da televisão e ao desenvolvimento tecnológico que permite assistir tv hoje de outro modo, em nada semelhante ao consumo síncrono entre emissão e recepção de poucos anos atrás. Há três elementos primordiais onde o autor apoia-se para pensar como a televisão – e suas narrativas – vem contribuindo para nosso desenvolvimento cognitivo: enredos múltiplos, setas intermitentes e redes sociais. Hoje o drama com enredos múltiplos se tornou o mais recorrente no gênero de ficção no horário nobre da televisão norte-americana64. Desde os anos 80 a complexidade das narrativas vem aumentando sistematicamente e exige que os espectadores preencham elementos cruciais para a história fazer sentido, ou seja, não se trata apenas de ver um programa inteligente, mas de lançar mão de um trabalho intelectual fora da tela para o consumo pleno – e compreensivo – das histórias, exige-se um consumo inteligente. Nas ficções de televisão atuais há vários enredos diferentes sendo contados ao mesmo tempo, uns se sobrepondo aos outros. Um dos elementos que ajudam a complexificar as narrativas é o trabalhos que os roteiristas fazem com as setas 64 A televisão norte-americana é o cenário das análises empíricas de Johnson. 273 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 intermitentes, que são como uma espécie de sinalização da narrativa, que ajudam as pessoas a entender o que se passa na tela e o sentido que devem dar a certos signos. Nas narrativas clássicas as setas intermitentes diminuem consideravelmente o trabalho interpretativo/analítico do espectador para que possa compreender a história. Com as setas nos lugares corretos, tudo que é preciso fazer é segui-las e a narrativa será inteligível. Não há nenhum mistério sobre a atividade imediata na tela, ela é sempre perfeitamente entendível. A questão é que nas narrativas contemporâneas, baseadas em enredos múltiplos, não nos perguntamos apenas como tudo aquilo vai terminar, mas afinal, o que está acontecendo na história agora. A questão é que os roteiristas nos obrigam a ficar no escuro, nos negam acesso às setas intermitentes porque desejam que sejamos capazes de desvendar a história, usando nossas próprias habilidades cognitivas. Há como que uma confiança implícita entre os espectadores e a narrativa, uma certa tolerância às ambiguidades e ausência de sentido pois quem assiste a uma dessas ficções tem que saber o que não deve saber, o que não será oferecido pela história pois parte do prazer é o espectador “preencher” os espaços vazios para só então a narrativa ficar plena de significado. “A maneira mais marcante de medir a complexidade desses programas é considerar o montante de informações externas que o espectador tem que acumular para ‘compreender’ inteiramente as piadas”(p. 67). Johnson também volta suas atenções para os reality shows. Apesar de nos alertar que estes programas sempre podem ser questionados sobre sua qualidade, não é possível negar os méritos do gênero e sua estrutura é “fidedigna a um videogame” (p. 73): há uma imprevisibilidade nas regras que não são estabelecidas logo de início, o que é parte do fascínio. O prazer, que ajuda a entender as enormes fatias de audiência que estes programas alcançam, vem do fato de “colocar outros seres humanos em um meio ambiente complexo e de alto risco, onde não há estratégias estabelecidas e ver como eles se orientam” (p. 75). Os reality shows até excedem as demandas cognitivas da audiência, em relação aos jogos, pois estimulam as ramificações dos contatos sociais dos telespectadores que, ao analisar cada passo dado pelos participantes, acabam jogando junto com eles. Trata-se não apenas de adaptar-se à regras mutáveis e de planejamento das estratégias de ação, mas de fazer tudo isso em um “campo minado de relacionamentos pessoais” (p. 76). Se é verdade que as narrativas contemporâneas da 274 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 ficção para a televisão nos desafiam a acompanhar múltiplas tramas, os reality shows “exigem que sigamos múltiplos relacionamentos” (p. 85). Seguir um reality show é seguir essa trama, essa rede social do universo criado na tela. Johnson concentra a parte dois de seu livro falando sobre as forças que impulsionam a Curva do Dorminhoco: econômica, tecnológica e neurológica. Sim, há nesse jogo de produção de objetos culturais que nos desafiam cognitivamente poderosas forças de mercado que moldam o entretenimento popular; o impulso oferecido por tendências tecnológicas de longo prazo; e, por fim, demandas que vem lá do “fundo do cérebro humano” (p. 127). Há uma “economia da repetição”, gerada pela alta rentabilidade da exibição/venda de reprises, que se relaciona com a Curva do Dorminhoco. Se a meta final da indústria deixa de ser a exibição única de uma narrativa e passa a ser a repetição dessa exibição, essa mudança vai afetar o conteúdo das ficções televisivas. Os programas que conseguem sustentar várias exibições sem ficarem cansativos e entediantes para o público são aqueles que vão gerar mais lucros na “distribuição autorizada”. Trata-se de levar a parte mais vultosa do lucro do “ao vivo” para as coleções, para os box de DVD com a última temporada daquele seriado preferido. “Sempre que a cultura popular troca seus incentivos econômicos de sucessos rápidos para uma repetição a longo prazo, surge um aumento correspondente na qualidade e na profundidade” (p. 133). Naturalmente este cenário é ainda o resultado do desenvolvimento de uma série de tecnologias, de “máquinas de repetição”, que permitem diminuir o ritmo ou voltar no tempo, como os DVDs, por exemplo. A internet – e a reunião nela de espectadores fiéis de programas de TV e jogadores de videogames – permitiu que conhecimento especializado de consumidores atentos pudessem ser compartilhados pelas pessoas, ajudando a compreender o sentido das narrativas e descobrindo os truques dos jogos. Os sites onde estes consumidores se encontram e partilham informações sobre seus programas e jogos preferidos funcionam como um “anel de decodificação” para a complexidades desses objetos culturais. “Fãs devotos são co-autores de documentos públicos maciços (...) que existem on-line como ferramentas evoluídas de trabalho do conhecimento popular, sempre atualizados por seus fãs dedicados” (p.137). A 275 CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111 São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14 complexidade, assim, só aumenta. A Curva do Dorminhoco é o resultado sim de investimento econômicos da indústria na produção de uma cultura mais desafiante, graças às tecnologias da repetição e do metacomentário, mas apenas porque existem cérebros que desejam ser desafiados. Há que se considerar, por fim, as “más notícias”. Johnson admite que há certos tipos de experiências que não podem ser transmitidas ou vividas de forma conectiva e abreviada. O texto transmitido em rede tem suas próprias riquezas, mas exigem um tipo de inteligência e habilidade diferentes daquelas demandadas pela leitura de um argumento que se sustenta por 200 páginas ou mais em um livro. Se a narrativa não envolve interatividade e o texto exige o acompanhamento do desenvolvimento de uma ideia de forma contínua, o autor é claro: “A Curva do Dorminhoco sugere que a cultura popular não está fazendo um bom trabalho” (p. 150). Além disso é importante atentar para a questão do conteúdo moral, tema abordado no início do livro e retomado em suas últimas páginas. O primeiro ponto a se considerar em meio à polêmica da indústria cultural estar ajudando a construir um conjunto de consumidores desenvolvidos cognitivamente mas pobres moralmente é que o autor acredita que provavelmente superestimamos a extensão pela qual nossos valores mais centrais e fundamentais são, realmente, transmitidos pela mídia. Além disso, a maior parte dos conteúdos da mídia acaba girando ao redor de estruturas tradicionais de moralidade. Outro ponto a ser considerado é se toda a violência denunciada nos objetos culturais tem efeito na mente das pessoas. Johnson diz que a maior parte das pessoas compreende que a violência exibida é, afinal, fictícia, mas o exercício mental empregado no consumo destes objetos é real. “O conteúdo da maior parte do entretenimento tem menos impacto do que o tipo de raciocínio que o entretenimento força você a fazer” (p. 153). Johnson conclui dizendo que aquilo que defende é uma mudança nos parâmetros para a qualificação do que é lixo e do que é verdadeiramente substancial, já que a corrida em direção ao fundo do poço é um mito e não somos um conjunto acéfalo de preguiçosos mentais. A indústria nos oferece objetos culturais cada vez mais sofisticados e “nossos cérebros gravitam alegremente para essa complexidade recém-descoberta” (p. 159). 276
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