- Mauá DF

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ISSN 2238-7706
SUPER
Uni
Ano 2– n°3 – julho a dezembro de 2013
A PRÁTICA
DA BOA TEORIA:
Aspectos de Linguagem
e Teoria Administrativa
Ano 2– n° 3 – julho a dezembro de 2013
Brasília – DF – Brasil
Publicação trimestral pela Faculdade Mauá de Brasília
ISSN 2238-7706
A SuperUni é especializada na publicação de material científico da comunidade
acadêmica do Distrito Federal
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julho a dezembro de 2013
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Informações Gerais
Este periódico é especializado na publicação de
material científico de autoria de graduandos,
de profissionais e de docentes vinculados à Faculdade Mauá de Brasília ou a outras instituições de ensino superior, interessados na
divulgação de sua produção acadêmica. O conteúdo dos artigos não representa, necessariamente, os pontos de vista dos organizadores.
julho a dezembro de 2013
Sumário
Administração
página 6
Ciência, tecnologia e Sociedade:
uma construção dialética
Jonas Nogueira de SOUZA
Administração
página 9
A Prática da Boa Teoria:
Aspectos de Linguagem e Teoria Administrativa
Antônio Ferreira LIMA
Felipe Alves LEITÃO
Letras
página 16
A natureza da monocultura colonial semelhante à figura feminina ocupando papéis sócio-subjetivos monovalentes
Maria Aparecida de Assis Teles SANTOS
Jorge Alves SANTANA
Letras
página 25
DiscutiNdo raça/racismo na sala de aula de língua Inglesa:
relato de Uma experiência
Edilson Alves de SOUZA
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julho a dezembro de 2013
Ciência, tecnologia e Sociedade:
uma construção dialética
Jonas Nogueira de SOUZA
Especialista em Comportamento Organizacional e Gestão de Pessoas
Faculdade Apogeu
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O desenvolvimento da ciência e da tecnologia
tem acarretado diversas transformações na sociedade
contemporânea, refletindo em mudanças nos níveis
econômico, político e social. É comum considerarmos
a ciência e a tecnologia como molas propulsoras de
progresso que proporcionam não só o desenvolvimento do saber humano, mas também uma evolução
para o homem.
O que podemos compreender é que, numa relação dialética, a sociedade constrói a ciência e a tecno-
logia, ao mesmo tempo, a ciência e a tecnologia constroem a sociedade. Sem determinismos de parte a
parte. Esta é, em geral, a lição mais difícil de compreender quando começamos a estudar as relações
entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Mas
também, torna-se lição mais importante porque nos
abre duas portas, uma para o entendimento dessas relações e outra para a ação.
A primeira porta é a que nos explica a construção
da tecnologia, segundo o jogo social no qual estão prejulho a dezembro de 2013
Administração
sentes atores com seus interesses, valores, com diferenças de poder, de saberes e de capacidades, descartando o seu caráter de neutralidade.
Dessa forma, podemos perceber que a tecnologia
não segue um caminho predeterminado ou é sempre
a “melhor” tecnologia ou a de “ponta”. O sentido do
desenvolvimento da tecnologia ocorrerá conforme o
intrincado jogo de relações que se estabelecem em
qualquer sistema social.
David Noble (1984) usa a expressão “Fetiche
Cultural da Tecnologia” para nomear a dominação que
continua a moldar a sociedade e a tecnologia de
acordo com a “compulsão irracional da ideologia do
progresso” que determina o uso e desenho antes da
adoção da tecnologia.
A tecnologia que predomina no mundo atual é a
que inclui no seu desenvolvimento os valores e os interesses que dominam o jogo social e que servem para
construção desse tipo de sociedade. Se pensarmos em
outro tipo de sociedade, temos de pensar em construir outro tipo de tecnologia.
Diante desta constatação, abrimos a segunda
porta, a da ação. Diferentes
pessoas em diferentes lugares do mundo chegaram a esta compreensão por caminhos variados. Alguns compreenderam
essa questão teoricamente e realizaram pesquisas
para demonstrá-la. Outros entenderam essa ideia na
prática e passaram a fazer tecnologia introduzindo,
de forma consciente e intencional, interesses e valores
de grupos socialmente menos privilegiados, bem
como de critérios em geral negligenciados, como os
de sustentabilidade ambiental.
A compreensão da relação existente entre o problema da exclusão social e a ciência e tecnologia e que
estas podem desempenhar papel importante na redução das desigualdades sociais, constitui-se em um
vetor para a intervenção no meio social.
O enfoque tecnológico para inclusão social tem
um sentido transformador, buscando gerar uma tecnologia desenvolvida com os atores sociais interessados, como também com valores e interesses
alternativos e, por esta razão, capaz de promover a inclusão social.
O foco na tecnologia voltado para a exclusão e
aponta a formulação de um modelo de desenvolvimento alternativo, econômico, ambiental e socialmente sustentável, configurando-se como a porta da
ação. Tecnologia não é apenas o artefato, mas tamjulho a dezembro de 2013
bém o sistema de conhecimentos e a organização necessária para produzi-la e operá-la.
Langdon Winner (1997) afirma que as máquinas, as estruturas e os sistemas devem ser julgados
não apenas por suas contribuições à eficiência, à produtividade e por seus efeitos ambientalmente positivos ou negativos, mas também pela forma que
podem incorporar formas específicas de poder e autoridade. Segundo o autor, a tecnologia possui intrinsecamente algum conteúdo político. Ele também
afirma que a história da arquitetura, planejamento
urbano e obras públicas proveriam bons exemplos de
arranjos físicos ou técnicos que permitem observar
conteúdos políticos, presentes implícita ou explicitamente.
Alguns exemplos do passado mostraram como
tentativas de desenvolvimento e difusões de tecnologias alternativas podem falhar em seus objetivos de
transformação social. Na década de 1970, houve uma
proliferação de defensores de tecnologias diferentes
das convencionais, que integraram o movimento da
chamada Tecnologia Apropriada (TA). Elas tentavam
se diferenciar daquelas consideradas de uso intensivo
de capital e insumos sintéticos e poupadoras de mão
de obra, produzidas nos países desenvolvidos.
As TAs, no entanto, foram desenvolvidas sem
uma base crítica sobre a visão neutra, determinista e
instrumental da tecnologia. A visão corrente nesse
período estava fundamentada no Modelo Ofertista
Linear, que supunha que o conhecimento pudesse ser
“ofertado” por uns e “demandado” por outros, sem o
envolvimento dos atores sociais interessados na concepção da tecnologia.
Assim, a pesquisa científica, desenvolvimento
tecnológico e inovação eram vistos como fases de um
processo que mantinham entre si uma relação de causalidade sequencial-linear, em que o desenvolvimento
social seria obtido a partir da pesquisa científica, e o
meio acadêmico seria o local ideal para o início daquele processo virtuoso.
Em seguida, viria o desenvolvimento tecnológico, que levaria à inovação, que traria por consequência o desenvolvimento econômico e, como
decorrência “natural”, o desenvolvimento social.
A construção de uma Política de Ciência e Tecnologia que tenha resultados de inclusão social e promova um modelo de desenvolvimento realmente
sustentável passa necessariamente pelas duas por-
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Administração
tas mencionadas anteriormente. Eis, que se insere
o movimento em torno do conceito e das práticas de
Tecnologia Social (TS).
Um dos principais objetivos da TS é prover um
dado espaço socioeconômico de aparatos tecnológicos
(produtos, equipamentos, etc.) ou organizacionais
(processos, mecanismos de gestão, relações, valores)
que permitam interferir positivamente na produção
de bens e serviços e, assim, na qualidade de vida de
seus membros, gerando resultados sustentáveis no
tempo e reprodutíveis em configurações semelhantes.
Entretanto, o fato de que a condição periférica
brasileira oportuniza a geração de efeitos distintos –
ou até contraditórios – daqueles obtidos nos países
centrais por uma dada medida de política pública, embora ha muito conhecido, não tem sido levado em
consideração.
Nesse contexto, a proposta da TS significa, em
lugar em lugar da busca de um resultado estritamente
econômico do processo de produção do conhecimento, um deslocamento do condutor de orientação
diretamente para o resultado social, percebido como
melhoria no plano coletivo (qualidade de vida, em
seus diversos aspectos) ou em uma maior eficiência
na gestão pública com finalidades sociais. O efeito
inovador da TS não reside necessariamente no seu
ineditismo, mas sim, em associar-se às condições locais de seu desenvolvimento e aplicação.
É por isso provável e desejável, que uma determinada TS, que já tenha sido aplicada em outro contexto ou espaço provoque soluções e processos de
reinvenção e inovação distintos dos convencionais
porque ele é decorrente, especialmente, da capacidade
do empreendimento de natureza social conter como
seu elemento constitutivo, a capacidade de reproduzir-se e difundir-se coletivamente.
Diante do exposto, pode-se inferir que uma TS
não gera mais riqueza por ser inédita, nem por restringir a abrangência de seu uso a poucos. Ao contrário, ela cumpre seu objetivo se consegue a reprodução
e a difusão, conforme seus elementos constitutivos.
Este pode ser um elemento referencial de grande relevância para a construção de uma Política de Ciência
e Tecnologia realmente promotora de desenvolvimento sustentável e equitativo.
Referencias Bibliográficas
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GODIN, B. The Linear Model of Innovation: The Historical Construction of an Analytical Framework. Science Technology & Human Values [S.I.], v. 31, n. 6, p. 639-667, 2006. Langdon Winner,
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MCLUHAN, Eric “Internet faz ressuscitar teorias de McLuhan”, World Media, Edição 13 abril, p. 3,
1995.
NOBLE, David. Forças da Produção; Uma História Social da Automação Industrial, New York: Knopf,
1984.
VIOTTI, E. B. Fundamentos e Evolução dos Indicadores de CT&I. In: VIOTTI, E. B.; MACEDO, M.
D. M. (Ed.). Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil. Campinas: Editora Unicamp.
Cap.1. p. 43-87, 2003.
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A Prática da Boa Teoria:
Aspectos de Linguagem e Teoria Administrativa
Antônio Ferreira LIMA
Docente da Faculdade Mauá de Brasília
Mestre em Administração – Universidade de Brasília (UnB)
Felipe Alves LEITÃO
Docente da Faculdade Mauá de Brasília
Mestrando em Educação – Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires
A metodologia científica é o cinzel do pesquisador, ferramenta indispensável à transformação de
ideias em conhecimento sistematizado. Seu estudo
assume relevância na medida em que a teoria, como
um todo, é encarada pelas pessoas como atividade
tão especulativa que resulta estéril, sem qualquer
implicação prática ou fatual, e a administração não
foge dessa percepção.
Partindo de pesquisa bibliográfica, o objetivo
deste ensaio é postular a importância da da linguagem como fator de coerência interna da teoria. O
cuidado com esta característica intrínseca proporjulho a dezembro de 2013
ciona a) a eliminação da dubiedade das proposições,
ao delimitar claramente seu alcance e significado; b)
o enriquecimento e consolidação da própria teoria e
da ciência como um todo e c) mudanças no comportamento social, alavancadas pela influência das teorias científicas sobre o pensamento e sobre os
paradigmas das sociedades onde se inserem seus formuladores e/ou adeptos, contribuindo para sua revalorização.
A acepção moderna do termo ciência denota um
conjunto de inferências e conclusões decorrentes de
uma ou mais hipóteses, passível de verificação e con-
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frontação empírica (Simonsen, 1994, p.3), com suas
partes integrantes e um aparato que permite sua verificação ou confirmação, isto é, a teoria científica
(Abbagnano, 1970, p. 576).
A discussão sobre a natureza da administração,
se ciência, técnica ou arte é antiga e, acreditamos,
construtiva, mas refoge dos objetivos deste trabalho.
Basta-nos reconhecer que a administração, ainda
que considerada pouco densa por alguns, se consolida com o passar do tempo como ciência social, dotada de um corpo teórico próprio, que se renova e se
enriquece com a criação de novas abordagens e Escolas, novas perspectivas a respeito dos fenômenos
de seu domínio.
Teoria científica é o conjunto de técnicas e postulados que permite a verificação ou confirmação
das hipóteses cientificas, no tempo e no espaço; é
um instrumento de classificação e previsão dos fatos
aos quais se refere, sem necessariamente constituirse numa explicação exaustiva de seu domínio (Abbagnano, op.cit, pp. 571-572), pelo contrário, a
refutabilidade fez parte de sua essência. Simonsen
afirma que “uma ciência não apresenta verdades absolutas, mas previsões que são aceitas enquanto não
forem desmentidas pelos fatos.”
Do ponto de vista etimológico a palavra teoria
remonta ao grego theoria e, originariamente, queria dizer “ação de observar”, “ação de ver o espetáculo”. Posteriormente, o termo passou a denotar a
“contemplação do espírito, meditação, estudo”
(Bailly, apud Viegas, 1996, p.51) até chegar ao conteúdo dos dicionaristas. De acordo com o dicionário de Aurélio Buarque (1994), teoria é
“conhecimento especulativo meramente racional.
2. conjunto de princípios fundamentais duma arte
ou duma ciência. 3. doutrina ou sistema fundado
nesses princípios.”
A discussão sobre a natureza da teoria e seus
requisitos essenciais ainda parece estar aberta, inclusive no que tange à administração. Segundo Viegas (pp. cit, p. 52), entre os estudiosos “a questão
hoje é se a teoria é o reflexo da realidade ou apenas
uma forma prática de representá-la”, situando-se
a discussão num campo afeto à filosofia e à formação do pensamento e de conceitos. Se quanto à essência da teoria existe discussão, quanto aos
requisitos formais não é diferente. Contudo, entre
as características apontadas pela literatura, pare-
cem unânimes a univocidade da linguagem e a coerência interna.
Univocidade da linguagem
O objetivo principal do emissor de uma mensagem é a formação de um conceito, uma imagem no
cérebro do receptor quanto ao objeto da comunicação. Trata-se de estabelecer uma relação de significação entre duas realidades distintas, uma concreta,
a realidade observável e outra, abstrata, o signo representativo (Chanlat e Bédard, 1994, p. 127).
Quanto mais próxima a imagem percebida pelo receptor daquela internalizada pelo emissor, melhor
será a comunicação. A externalização dos conceitos
pela linguagem proporciona essa transferência de
imagens e cria as definições. Definir é essencialmente difícil porque cada receptor tem um sistema
cognitivo diferente daquele utilizado pelo emissor e
é sujeito a conjuntos diversos de influências que o
levam a entender os enunciados teóricos de acordo
com suas características pessoais.
Uma proposição unívoca, em termos de linguagem, deve a) aplicar-se a sujeitos diversos de maneira absolutamente idêntica, comportando apenas
uma forma de interpretação e um grau mínimo e
aceitável de variabilidade; b) não deixar margem a
mais de um sentido, ou qualquer equívoco; c) não
permitir que a prática denote incerteza, insegurança; e d) evitar a indeterminação, imprecisão, incerteza.
Quando se trata de proposições inteiras e, principalmente, quando se deseja retratar a realidade ou
um fenômeno, por banal que pareça, a possibilidade
da ocorrência de dubiedades é sempre uma constante. Um termo ou proposição qualquer, quando
ambíguo, pode levar à construção de falácias e paralogismos e, consequentemente, à derrocada da assertiva e da teoria. Considerando-se o objetivo do
observador de representar por palavras as propriedades ou características essenciais do fenômeno ou
relação que é objeto de sua análise, os termos da proposição assumem importância vital.
Univocidade é a característica formal que diz
respeito à unidade de significado e à coerência de
cada proposição no seu contexto. Fácil constatar
quanto a este requisito essencial duas necessidades
básicas: a) especificidade terminológica; e b) integridade gramatical.
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Administração
Especificidade Terminológica
A precisão terminológica reside no sentido de
aprimoramento das definições e da redução do uso
de analogias com o objetivo de fortalecer a teoria. A
compreensão analógica da realidade é questionável
e seu uso deve ser precedido de muitos cuidados
quando se trata de ciências sociais, principalmente
quando a base de comparação são fenômenos ou
entes físicos ou orgânicos. O uso das analogias pode
sugerir, inapropriadamente identidade essencial e funcional entre fenômenos distintos. Por exemplo, na
comparação da tendência entrópica, conceito formulado por Clausius e importado da termodinâmica,
com o desvanecimento de recursos organizacionais
ao longo do tempo, o primeiro conceito obedece um
modelo determinístico, enquanto os processos sociais sofrem diretamente a influência do homem,
seu agente e cliente, que, teoricamente, pode prolongar indefinidamente o fluxo de energia dos sistemas;
É necessário reconhecer que as diferenças entre
determinados fenômenos são substanciais e não
comportam o uso da analogia, porque não se restringem a meras diferenças de escala.
Talvez a mais famosa analogia da administração seja a comparação da empresa com o organismo humano. As empresas, como
organizações sociais, têm infinitas peculiaridades que não se encontram no corpo humano e
vice-versa, como a ausência de delimitação física
e a natureza contratual das relações sociais, na
existência de todo um sistema determinado de
normas e valores que baseiam a convivência dos
membros do grupo.
Os enunciados devem conter em seu desenvolvimento as definições dos fenômenos tratados. Não
se pode nem se deve questionar o estilo dos autores,
que se refere à maneira pessoal de expressão das
idéias de cada um. Contudo, textos que se iniciam,
desenvolvem e concluem sobre características, implicações e relações causais dificultam o entendimento do leitor, transmitindo-lhe não uma imagem,
um ícone, mas uma série de movimentos sem referencial.
Uma ciência como a administração, no contexto de transformação sem precedentes que se
verifica nos últimos anos, necessita de agilidade
julho a dezembro de 2013
na interpretação teórica como fator de viabilização da própria iniciativa empresarial. Talvez
daí decorra a preferência dos executivos pelo
aprendizado de técnicas e aquisição de pacotes
tecnológicos capazes de responder mais prontamente às necessidades práticas das organizações.
Integridade Gramatical
Uma das principais influências do sistema cognitivo é a língua, entendida como conjunto sistemático
de signos codificados, palavras e expressões usadas por
um povo, uma nação, e o conjunto de regras da sua
gramática que permite a comunicação entre seus
membros. Desnecessário realçar a importância da rigorosa observância de normas gramaticais como pontuação, regência e concordância verbal e nominal.
Uma das formas mais comuns de violação da
integridade gramatical é o uso indiscriminado de palavras estrangeiras, completamente descontextualizadas de seu sistema morfossintático de origem
e de jargões próprios a cada área temática organizacional.
As pessoas entendem os enunciados de acordo
com o seu entendimento da língua utilizada.
Quando eles vêm de forma híbrida, com termoschave em inglês, japonês ou outra língua qualquer,
a comunicação abra espaço para diversas interpretações e contradições, de acordo com o nível de entendimento do leitor a respeito daquelas línguas e suas
particularidades. No dizer de Copi (1978) ‘Para compreender o que foi dito, é necessário apurar o que as
palavras significam; é quando as definições se tornam precisas” e a formulação teórica ganha transparência, na medida em que suas proposições são mais
facilmente entendidas e assimiladas.
Termos estrangeiros devem ser utilizados
quando absolutamente necessário, apenas nos casos
onde verifique-se a impossibilidade de sua tradução.
Não se encontra justificativa plausível para pressupor
que o significado de termos como paper, case, input,
quality, outplacement, output, company, feedback e outros sejam de domínio comum dos administradores e,
menos ainda, de estudantes e funcionários. Estes termos são perfeitamente traduzíveis para o português.
O uso de jargões técnicos é questionado de há
muito. Fenômeno cultural que favorece a coesão dos
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grupos e a formação de identidades grupais, geralmente serve como mecanismo de restrição do conhecimento técnico a pessoas ou grupos
determinados. Resulta num relativo isolamento,
eventualmente benéfico para o grupo, valorizandoo, normalmente maléfico para a organização. Chanlat e Débard (op. cit. p. 142), afirmam que o uso
destes termos dificulta a comunicação entre setores,
inter-equipes, característica especialmente perigosa
para o desenvolvimento organizacional na era da informação, que requer, cada vez maior integração
entre as pessoas e grupos. Os autores acentuam que
É lamentável constatar que a evolução
atual das escolas de administração, ao contribuir para a difusão dessa língua empobrecida e
para a criação de neologismo pseudocientíficos,
torna cada vez mais difícil aos estudantes dominar todas as possibilidades de expressão que
a língua natural encerra, e emperra o desenvolvimento de qualquer preocupação estética.
Univocidade, fator de coerência interna
A teoria, como exposição ordenada do pensamento, é pura forma, mas nem por isso deve ser descuidada em relação à substância. Coerência interna
é a característica formal que confere unidade e uniformidade à teoria, proporcionando a convergência
das proposições parciais ou integrantes a um fator
axiológico central, uma proposição diretora à qual
todas as outras se rendem. Pressupõe que as partes
sejam todas da mesma natureza, estreitamente ligadas, não apresentando desigualdades.
A ocorrência de contradições ou de proposições
opostas destrói a teoria, por impossibilitar essa convergência necessária. “Diz-se que um conjunto de
fórmulas é formalmente consistente se, e somente se
não contém contradições “ (Bunge, 1989, p. 472,
grifo original).
Quando se está diante de proposições que se repelem mutuamente resta reconhecer a inexistência
da teoria ou desfazer a contradição, porque o encadeamento lógico refere-se à montagem teórica sem
tropeços, articulada, concatenada, ordenada, amarrada, sistematizada (Demo, 1985, p. 34). O autor
(op. cit, p.35) assevera que, entre outras, é tarefa básica para se construir ciência
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...definir os termos com precisão, para
não deixar margem à ambiguidade; cada conceito deve ter um conteúdo especifico e delimitado; não pode variar durante a analise; embora
uma dose de imprecisão seja normal, o ideal é
reduzi-la ao mínimo possível, produzindo o fenômeno desejável da clareza de exposição.
Retomando a metáfora do escultor, que transforma um bloco de pedra de acordo com uma imagem
de seu cérebro, o pesquisador observa a realidade, forma
uma imagem e a esculpe usando a teoria. O signo lingüístico é constituído de dois elementos: significante e
significado. O significante é a imagem acústica e o significado, o conceito, a imagem mental interiorizada (Saussure apud Chanlat e Débard, op. cit. p. 129).Daí resulta
uma relação de implicação recíproca entre linguagem e
pensamento, num processo de decomposição e recomposição, análise e síntese, que exige uma linguagem precisa (Condillac apud Chanlat e Débard, op. cit. p. 130).
A univocidade tem papel relevante na formulação teórico-científica por proporcionar a “redução a
termos”, isto é, por transformar em linguagem, os
conceitos e impressões provenientes da observação
da realidade, sistematizando suas características,
ampliando a precisão dos enunciados e contribuindo
para o aprimoramento lógico dos próprios conceitos,
como na figura abaixo.
O movimento acima representado é puramente
dialético, faz com que o enunciado teórico torne-se
mais compreensível e evidencie contradições e paralogismos que eventualmente pudessem viciá-lo, viabilizando sua verificação empírica, sua validação em
face da realidade. Considerando-se a ciência como
construção coletiva, uma teoria bem elaborada, consistente e unívoca possibilita o confronto das proposições com a realidade das várias épocas com o
intuito de validá-las, reformular conceitos obsoletos
ou imprecisos ou, se for o caso, refutá-las.
O progresso do conhecimento é fundamentado
essencialmente em disputas genuínas de opinião, no
refutamento de teorias e leis anteriormente formuladas e no enunciado de outras que serão, eventual
e igualmente refutadas. Como assevera Popper
(1975): “o trabalho do cientista consiste em elaborar
teorias e pô-las à prova”. Este texto, portanto, não
advoga a unidade de pensamento, pois o progresso
da ciência reside na alteridade construtiva e tanto
julho a dezembro de 2013
Administração
mais construtiva será esta alteridade quanto mais
claros forem os enunciados objeto das discussões
acadêmicas, teóricas e práticas.
b) o “enriquecimento” dos enunciados; e
c) realçar a influência de sua aplicação prática
sobre o corpo social.
Teoria e prática: irreconciliáveis?
Univocidade vs. Ambiguidade
A maior oposição à teoria reside na percepção
das pessoas de que ela seria irreconciliável com a
prática. Esta ligada à ação, à produção de resultados
palpáveis e mensuráveis e, exatamente por isso, intrinsecamente objetiva, enquanto aquela retrataria
a essência da esterilidade, da reflexão desprovida de
resultado concreto. Talvez por isso mesmo ocorra a
tendência dos estudiosos que, segundo Wahrlich
(1986) cultivam um interesse muito maior pelo desenvolvimento de práticas e técnicas do que pela
pesquisa de seus fundamentos teóricos.
A distância entre teorias falaciosas e a prática
deve ser reconhecida como disfuncional, uma vez
que a teoria deve possibilitar, entre outras coisas:
a classificação e previsão dos fenômenos
sob seu domínio;
a facilitação do estudo e compreensão da
realidade que cerca esses fenômenos e suas correlações e interações; e
a sistematização do conhecimento, que além
de assegurar condições mínimas para a disseminação
da ciência, possibilita a comprovação e comparação
dos resultados dos
experimentos, mesmo decorridos longos períodos de tempo, por outras pessoas, em outros
contextos.
Confirmando a validade da teoria, da boa teoria,
Viegas, citando Abbagnano (op.cit. p.52) observa
que as leis e teorias mostram sua validade pela verificação das previsões que com elas podem ser obtidas.
A questão é que uma teoria equivocada, cujas previsões falham, causa mais impacto na sociedade que leis
bem fundamentadas, cujas previsões são confiáveis.
Teoria e prática, contrariamente ao que se
pensa, são complementares, auxiliares. Para Wahrlich {op.cit) as duas devem andar juntas com o objetivo de permitir o aprendizado a partir da
experiência, da prática e, por outro lado, por meio
da teoria, garantir sua disseminação e verificação.
Entre outras ações que visam o fortalecimento
da teoria, no sentido de favorecer a percepção da sociedade acerca de sua importância, é preciso buscar:
Em disputas genuínas as partes realmente discordam e se antagonizam de modo explícito e sem
ambigüidades sobre uma questão. Pode centrar-se
sobre atitudes, fatos, tipologias, substância ou forma,
etc. O importante é que, nesse gênero de disputa não
existe ambigüidade e, qualquer que seja o resultado,
verificar-se-á um passo adiante no progresso da lei
ou teoria, por menor que seja (Copi, op. cit).
Não raramente, interpretações divergentes de
um termo ou proposição central geram ; desacordos
que não passam de meras “disputas verbais”, segundo Copi (op.cit) o gênero de disputa onde a ambiguidade provoca a contenda e não uma legítima
divergência de opiniões entre os antagonistas. Desenvolve-se um processo de comunicação tangencial,
ainda que involuntário, onde a decodificação ou decomposição das mensagens se dá de forma oblíqua,
as respostas do receptor dissociadas das mensagens
do emissor ou presas a aspectos secundários. Fundamental, portanto, identificar e eliminar qualquer
ambigüidade de seus termos em relação a) aos outros termos e proposições e b) ao contexto onde se
inserem, com o objetivo de evitar que aconteçam desacordos e discussões infrutíferas.
a) eliminação da ambigüidade;
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O Enriquecimento dos Enunciados
O observador deve, municiado pela teoria, ser
capaz de reconhecer da forma mais clara possível os
fenômenos enunciados e seus modelos causais, para
assim poder acompanhar a ocorrência ou não das
previsões. O enunciado será tanto mais rico quanto
mais facilmente o receptor possa, a partir de seus
termos, identificar o fenômeno relatado em suas características essenciais e dinamismo.
Termos claros e precisos, livres de ambigüidades e outros vícios, otimizam o processo de comunicação. Seus significados são assimilados
sistematicamente, a teoria torna-se mais “maleável”
e é mais facilmente verificada empiricamente. As
proposições ganham em matiz e sutileza quando se
sabe escolher e dispor os elementos mais apropriados para traduzir o pensamento e captar a situação.
A formação de imagens dos fatos administrativos
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possibilita uma visão ampliada dos fenômenos.
A Teoria Científica Influenciando Atitudes
O objetivo final de qualquer teoria é influenciar
o comportamento e as atitudes das pessoas no tempo
e no espaço. Ao definir um termo ou enunciar uma lei
tem-se em mente influenciar a percepção de mundo
da sociedade, seus paradigmas, segundo Kuhn (1994).
Trata-se de fornecer aquela “sofisticação” que falta ao
senso comum, como assinala Demo (op.cit), ajudando
as pessoas a problematizar as relações entre sujeitos
e objetos.
A relação entre ciência e sociedade é uma via de
mão dupla, na qual se percebe uma interação constante. Kneller (1980) reconhece que, embora a ciência
não seja tão passível de ser determinada pelas forças
sociais, freqüentemente essas forças a influenciam,
mediante diversos fatores como os paradigmas ou visões de mundo, as ideologias e até as forças econômicas e tecnológicas da época. Simonsen (op.cit)
assevera que até a filosofia interage com a ciência pois
os modelos científicos são construídos de acordo com
o modo de pensar da época em que são elaborados e ,
por outro lado, certas descobertas científicas alteram
os paradigmas filosóficos.
Conclusão
14
A missão da ciência de perseguir a verdade é alcançada pela formulação teórica realizada num ambiente intelectual que inclui as visões de mundo e
ideologias de uma sociedade, visão de mundo entendida como o conjunto de crenças não suscetível de verificação empírica (Kneller, op.cií). Formuladas as leis,
suas implicações extrapolam das comunidades científicas e impactam, por vezes, todo o comportamento
das sociedades, influenciando comportamentos e atitudes, configurando um verdadeiro ciclo de interações.
O papel da teoria é sistematizar e disseminar o
conhecimento científico para permitir a verificação,
no tempo e no espaço, das hipóteses que ele encerra.
Uma função essencialmente pragmática, avaliável em
confronto com a eficiência da proposição teórica, “e
esta eficiência (mede-se) pela possibilidade de obter
com ela previsões que resultem suficientemente corretas” (Abbagnano, apud Viegas, 1996). A univocidade
tem papel decisivo na formulação das leis e teorias
exatamente por colaborar na uniformização dos con-
ceitos e proposições e, assim, possibilitar sua coerência interna.
Já no século XDC, Comte defendia que as organizações seriam a ponta de lança da mentalidade positiva, já que sua influencia alcançaria, finalmente, a
totalidade da sociedade, provocando as reformas profundas das estruturas sociais e da mentalidade das
pessoas (Rocher, apud Ajamil, 1994, p. 227). Mais
uma vez esta expectativa se volve para os quadros empresariais, agora no sentido da redefinição dos modelos políticos, econômicos e sociais, que baseiam o
comportamento humano na era das ciências sociais
e, principalmente da administrativa.
Se o homem vive, necessariamente, em um contexto organizacional, o estudo destas entidades e de
suas relações com os homens é de suma importância,
o que ressalta a necessidade de que o resultado das reflexões e estudos se traduza em um corpo teórico
coeso e harmônico, que possibilite a atualização constante dos conceitos e definições, contribuindo para,
cada vez mais, se aprofundar a compreensão do executivo acerca do ambiente onde se insere e capacitálo a intervir sobre ele de forma prática, rápida e
efetiva.
A percepção das sociedades de que a teoria é algo
estéril que se contrapõe à realidade, essencialmente
prática, deve ser revertida, principalmente na administração. Não se pode conceber que os administradores privilegiem uma abordagem instrumental,
enfatizando mais a formulação de técnicas de execução e padronização de comportamentos que a reflexão sobre relações de causa e efeito existentes entre
fenômenos. Produtos acabados, sem esquemas ou roteiros e o estabelecimentos dos pontos de ambivalência entre causa e consequência restringe a
possibilidade de reprodução e verificação posteriores
sobre os processos originários.
Nota-se uma tendência na administração brasileira à mera reprodução de teorias e práticas, modas
e conceitos estrangeiros, dos quais até os termos são
importados literalmente e cujas causas e conseqüências não cabe aqui discutir. Entretanto, se assim o é,
pelo menos que esses conceitos importados sejam
perfeitamente traduzidos e contextualizados à realidade nacional. A busca da sistematização teórica própria em sede de administração no Brasil deve ser
empreendida pelos órgãos responsáveis pelo desenvolvimento desta ciência no país, pelas universidades,
julho a dezembro de 2013
Administração
governos, empresas e estudiosos com o objetivo de
melhorar o entendimento dos executivos sobre a sua
ciência e sua prática diária. Teoria e prática começam
a se reconciliar quando as pessoas começam a falar a
mesma língua e a se entenderem. O resumo vem
numa frase de Einstein, “nada é mais prático que uma
boa teoria”.
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Fundamentos de Metodologia Científica. Brasília: UnB, 1995 13.WAHRLICH,
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15
A natureza da monocultura colonial
semelhante à figura feminina ocupando
papéis sócio-subjetivos monovalentes
Maria Aparecida de Assis Teles SANTOS
Mestre em Letras e Estudos Literários – Universidade Federal de Goiás
Jorge Alves SANTANA
Doutor no Programa de Pós-Graduação em Letras e Estudos Literários – Universidade Federal de Goiás
Este trabalho tem como objetivo uma reflexão
sobre a obra “Calabar: o elogio da traição”, de Chico
Buarque de Hollanda, discutindo a natureza da monocultura colonial semelhante à figura feminina ocupando papéis sócio-subjetivos monovalentes. Para
tanto, tomar-se-á como objeto de discussão as personagens Anna de Amsterdam e Bárbara, bem como a
exploração da terra, tanto por portugueses quanto
por holandeses, numa visão ecocrítica.
Félix Guattari (1998) advertia para o fato de que
a ecologia não podia voltar-se apenas e isoladamente
para os problemas decorrentes de tratamento hierárquico e dualista entre ser humano e meio ambiente;
antes devia reconhecer que o equilíbrio global somente se alcançará pelo inter-relacionamento das três
ecologias: a do meio ambiente, a do social e a mental
ou da subjetividade humana. Lembra-nos que:
16
Não somente as espécies desaparecem, mas
também as palavras, as frases, os gestos de soli-
dariedade humana. Tudo é feito no sentido de esmagar sob uma capa de silêncio as lutas de emancipação das mulheres e dos novos proletários que
constituem os desempregados, os “marginalizados”, os imigrados. (GUATTARI, 1989, p.35)
Para a fundamentação teórica, basear-se-á em estudos de Hall (1997); Guattari (1994; 2004); Foucault
(2006); Beauvoir (1967; 1970); Garrard (2006); Glotfelty e From (1996). O pensamento guattariano, ampliando a percepção do ecológico, parece-me indicar
um caminho de superação das dicotomias, no que bem
dialoga com o ecofeminismo mais avançado. O posicionamento de Maria Miles e Vandana Shiva (1993)
nos parece avançar na perspectiva ecofeminista; em
muitos casos, limitada ainda pelas oposições entre natureza (pela qual se vem identificando a mulher) e cultura (ligada ao homem), relacionadas às de mente X
alma, intelecto X emoção, racionalidade X espiritualidade – dualismos culturalmente codificados.
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Letras
Uma perspectiva ecofeminista apresenta a necessidade de uma nova cosmologia que reconhece que a vida na natureza
(incluindo os seres humanos) mantém-se
por meio da cooperação, cuidado e amor
mútuos. Somente deste modo estaremos
habilitados a respeitar e a preservar a diversidade de todas as formas de vida, bem
como das suas expressões culturais, como
fontes verdadeiras do nosso bem estar e felicidade. Para alcançar este fim, as ecofeministas utilizam metáforas como “re-tecer o
mundo”, “curar as feridas”, religar e interligar a “teia”. (MILES & SHIVA, 1993, p. 15).
Ecocrítica
A ecocrítica é o estudo das relações entre a literatura e o meio ambiente, segundo Cheryll Glotfelty
na introdução do livro “The ecocriticism reader”, que
é até o momento, a obra mais completa sobre a matéria. Ecosofia é como denomina Guattari (2004) à articulação ética-política entre os três registros
ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais
e o da subjetividade humana.
Ecofeminismo
Combinação das palavras ecologia e feminismo,
o ecofeminismo abraça a idéia de que a opressão das
mulheres e a opressão ou destruição da natureza
estão intimamente ligadas. Elementos do movimento
feminista, do movimento da paz, dos movimentos
ambientalista e verde podem ser vistos no ecofeminismo. Ativista, educadora e escritora, Ynestra King
chegou a chamar o ecofeminismo de “a terceira onda
do movimento feminista” [fonte: Sturgeon]. O termo
foi cunhado em 1974, do trabalho da feminista francesa Françoise d´Eaubonne, “Le feminisme ou la
mort”. O feminismo pode ser definido como o pensamento e o movimento em direção à igualdade política, econômica e social entre mulheres e homens. A
ecologia é o estudo da relação entre grupos humanos
e seus ambientes físico e social.
O ecofeminismo é baseado na teoria de que a
opressão das mulheres e a opressão da natureza estão
fundamentalmente ligadas. Na literatura ecofemi1
nista, o ecofeminismo é normalmente descrito como
a crença de que o ambientalismo e o feminismo estão
intrinsecamente conectados. Outra definição sugere
que a discriminação e a opressão baseadas em gênero,
raça e classe estão diretamente relacionadas à exploração e à destruição do ambiente. Algumas escritoras
ecofeministas dizem abertamente que tal opressão é
patriarcal, enquanto outras preferem apenas insinuar.
De qualquer modo, a ligação que está sendo feita entre
as mulheres e a natureza é evidente. Mas enquanto algumas ecofeministas vêem a ligação entre a mulher e
a natureza como fortalecedora, outras acreditam que
essa ligação é imposta pelo patriarcado e é degradante.
Aquelas que veem a associação como fortalecedora, geralmente afirmam que as mulheres estão mais
próximas à natureza por causa de suas posições como
mães e donas de casa. Como resultado, elas concluem
que pelo fato de as mulheres cuidarem de suas famílias
e lares, elas serão mais conscientes das questões ambientais do que os homens.
Pessoas que veem a
associação como degradante, geralmente, afirmam
que os homens continuarão a explorar as mulheres e
a natureza porque eles enxergam ambas como eternamente férteis e infinitamente capazes de fornecer a
vida [fonte: Sturgeon]. As ecofeministas levantam
questões como a poluição da água, o desflorestamento, a acumulação de lixo tóxico, o desenvolvimento agrícola e sustentabilidade, os direitos dos
animais e a política de armas nucleares.
As bases de nossa colonização
A política mercantilista no Brasil privilegiou o
cultivo de gêneros agrícolas de origem nativa ou trazidos de fora. As opções iniciais concentraram-se na
cana-de-açúcar. Em menor escala também o fumo e o
algodão, enquanto o extrativismo florestal – pau-brasil e as chamadas “drogas do sertão” – continuavam a
ser largamente explorados.
Para o cultivo da cana-de-açúcar os portugueses criaram um sistema integrado baseado na grande propriedade voltada para a exportação e no trabalho escravo. Esse
tipo de sistema era semelhante à plantation1 da colonização inglesa no sul dos atuais Estados Unidos. A força da
agricultura canavieira colonial estava em seu caráter exportador. Tratava-se em uma economia especializada em
Plantation – Grande propriedade agrária especializada na monocultura tropical destinada à exportação, geralmente ligada a produtos como cana-de-açúcar, fumo e algodão, cultivados com mão de obra escrava.
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Letras
produzir e vender via metrópole, açúcar para o mercado
europeu, em grande quantidade e preço competitivo. Embora tenha dado lucro, essa estrutura produtiva apresentou desde o começo um caráter extremamente destrutivo.
No nordeste e em outras regiões, a cana-de-açúcar era cultivada de modo extensivo, ocupando enormes extensões
de terras. Nas regiões onde era plantada, nenhuma outra
lavoura era admitida. Tratava-se de uma cultura exclusivista. Esse tipo de exploração – a monocultura em grandes
propriedades – levou à destruição crescente da Mata
Atlântica e ao empobrecimento e esgotamento do solo.
Pode-se afirmar que os colonizadores, na sua ânsia
de retirar de suas possessões, toda a riqueza nelas existente, desenvolveram a abordagem ecofilosófica, denominada por Garrard (2006) de cornucopiana. Tal
postura se manifesta na “pouca ou quase nenhuma consideração pelo meio ambiente não humano, exceto na
medida em que ele possa ter um impacto na riqueza ou
no bem-estar humanos. A natureza só é valorizada em
termos de sua utilidade para nós” (Garrard, 2006, p.35).
Vale ressaltar que a população formada por indígenas,
negros e mestiços não representavam o “nós” na visão
do europeu que aqui se estabeleceu, sendo assim, a natureza só era valorizada na medida em que servisse aos
propósitos dos exploradores. É verdadeira a afirmação
de que a colonização no Brasil deu-se primeiramente
pelos olhos da pastoral, quando por aqui desembarcaram os portugueses em busca do paraíso. Mas, como o
mundo pastoral não admitia a produtividade, foi necessário um novo modo de se olhar para as terras da nova
colônia, atestado pelas palavras de Caminha em sua
carta ao rei de Portugal, “(...) em que se plantando, tudo
dá”. A postura adotada foi a de uma geórgica radical, voltada para a monocultura agroexportadora. Tal posicionamento se apoiou na tradição judaico-cristã, que segue
o que prega o livro do Gênesis em que o homem extraia
da terra tudo aquilo que lhe satisfaça. Porém a geórgica
desenvolvida aqui era a do tipo socialista, que numa
condição antropocêntrica, praticava cultivos grandiosos, mas centrada apenas num só produto. Esta, com
certeza era diferente da geórgica de Jesus Cristo ou
franciscana, que prega o cuidado, o amor e o respeito a
todos os segmentos da vida interior.
A sociedade
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Era uma sociedade patriarcal, além disso, centrada no poder do chefe de família rural, o patriarca.
Esse homem era ao mesmo tempo dono da terra, au-
toridade local e senhor dos destinos dos seus dependentes, empregados, parentes e agregados, além dos
escravos. O conjunto de pessoas dependentes formava a família patriarcal, uma família extensa baseada no direito masculino de primogenitura.
Em relação às mulheres, no Brasil colonial, elas
eram tratadas como pessoas subalternas em relação
aos homens. As mulheres raramente apareciam às vistas ou iam à rua, e quando apareciam deviam cobrir
com véus o rosto. Era uma atitude de inferiorização e
exclusão da mulher na sociedade colonial.
A mulher negra – escrava, além de prestar serviços domésticos, também servia aos carichos sexuais
do seu senhor e dos seus descendentes.
A mulher índia – duplamente explorada.
A mulher branca – geralmente analfabeta, casava-se muito cedo e morria precocemente, por causa
dos inúmeros partos.
Calabar, o elogio da traição
Ruy Guerra e Chico Buarque desenvolveram a
trama resgatando fatos e personagens históricos do
século XVII, quando Holanda e Portugal lutavam
entre si pela colonização do Brasil, para refletirem
sobre o presente dos anos 70. Propunham uma reavaliação crítica do processo histórico nacional em seus
diversos aspectos, e também, objetivavam despertar
o público para reflexões acerca de conceitos como traição, nacionalidade e pátria, presentes nos discursos
militares pós 1964 e que foram cristalizados pela história oficial, conforme declarações do próprio Ruy
Guerra. (AZEVEDO,1973:84 )
O mulato Domingos Fernandes Calabar, personagem histórica em torno da qual se desenvolve a
ação dramática, é tratado pela historiografia tradicional como traidor da pátria por ter desertado em favor
dos holandeses durante a colonização do Brasil. Nativo e grande conhecedor da região em disputa, o nordeste, Calabar esteve a frente da luta empreendida
pelos portugueses para “libertar” o país do invasor
holandês até reconhecer que a opção escolhida não representava ganhos para sua gente e para sua terra.
Decidiu então, passar para o outro lado, acreditando
que os holandeses pudessem trazer ao país um governo mais humano e menos opressivo do que o trazido por Portugal. Sua atitude representou uma
grande perda também um grande risco às ambições
portuguesas, por isso foi encarada como um ato de
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traição. Calabar foi delatado por um, até então, amigo
seu, Sebastião do Souto, que auxiliou pessoalmente a
Coroa na sua captura. Preso, foi enforcado e esquartejado, a fim de servir de exemplo àqueles que tencionassem desobedecer às ordens vindas da metrópole.
O ponto de partida na trama desenvolvida por Chico
e Ruy Guerra é um aviso de advertência de Mathias
de Albuquerque a Calabar, nomeado major pelos holandeses. Mathias reconhecia o quanto dependiam da
sabedoria e esperteza do mulato para o empreendimento da conquista. Por isso não se conformava com
a traição, mas prometia perdoá-lo se voltasse a defender os interesses da Coroa. O discurso abaixo deixa
claro o seu posicionamento frente à situação:
Por que é que ele foi para lá?
Era um mulato bonito, pêlo ruivo, sarará.
Guerreiro como ele não sei mais se haverá.
Onde punha o olho punha a bala.
Onde o mangue atola, o pé firmava.
Bom de briga, de mosquete e de pistola,
Lia nas estrelas e no vento.
Tendo a mata no peito e o peito atento,
Sabia dos caminhos escondidos,
Só sabidos dos bichos desta terra
De esquisito de falar.
Eu lhe dei minha confiança
Em matéria de navios e de guerra.
E ainda me pergunto,
Sem resposta pra me dar,
Por nome que é que ele foi para lá?
Era um mameluco, louco, pêlo brabo,pixaim.
Pra que falar dos seus dois metros de alto,
De seus olhos claros de assustar,
Capitão aqui, major passou no salto.
Levou o seu saber para os flamengos.
E nem sei se cobrou o que era de cobrar.
Eu lhe ofereci perdão em engenhos e patente
Se quisesse voltar.
E afoito o rebelde, em língua de serpente,
Mandou-me recusar,
Como um bicho esquisito destas terras
Que pensa dum jeito impossível de pensar.
Por que é que ele foi para lá?
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p.10-11).
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Outras personagens são fundamentais no desenrolar da trama, além de Mathias, que é comandante
das quatro capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande. O negro Henrique Dias e o índio
Felipe Camarão auxiliam-no na luta empreendida pela
resistência portuguesa. Bárbara e Anna de Amsterdam
eram, respectivamente, mulher e amante de Calabar.
Significativamente importante para a trama é a contraditória personagem Frei Manoel do Salvador, que
serve ora a um, ora a outro colonizador, e que mantém
acesa a discussão acerca do jogo de interesses e da traição imputada apenas a Calabar. A existência de tal personagem nos desperta para a reflexão e provoca
dúvidas sobre o que significava “trair” naquele momento. Estas dúvidas estão presentes, ainda, nas falas
da personagem Bárbara, que vive atormentada pelo
que aconteceu a seu marido. Ela tenta, a todo custo
entender o que seria trair para aquela gente, pois percebe que todos os que estão a sua volta, inclusive
Souto, traem de alguma forma e que, no entanto, apenas Calabar foi julgado e condenado. Por isso desabafa
durante uma conversa com Souto:
Pobre Sebastião, você não sabe o que é trair.
Você não passa de um delator.
Um alcaguete. Sebastião, tira as botas.
Põe os pés no chão. As mãos no chão, põe, Sebastião, e lambe a terra.
O que é que você sente?
Calabar sabia o gosto da terra
e a terra de Calabar vai ter sempre o mesmo
sabor.
Quanto a você, você está engolindo o estrume
do rei de passagem.
Se você tivesse a dignidade de vomitar,
aí sim, talvez eu lhe beijasse a boca.
Calabar vomitou o que lhe enfiaram pela goela.
Foi essa a sua traição. A terra e não as sobras
do rei.
A terra, e não a bandeira.
Em vez de coroa, a terra.
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 96).
Dentro do mundo feminino da obra em análise,
Bárbara emerge como a voz de Calabar, a voz do que
não tem voz, duplamente, primeiro porque também
é a voz que reage contra a marginalidade sociocultural
que relega a mulher a uma condição subalterna, mer-
19
Letras
cadoria; segundo, porque seu discurso é o de todos os
excluídos da ordem social e política vigente. Bárbara
é assim a representante da tradição grega dionisíaca,
empunhando a bandeira daqueles que não faziam
parte da polis, mulheres e escravos (Menezes, 2000).
Enquanto Calabar vivia, Bárbara se configurava
dentro do arquétipo da mulher mestiça (ela era mameluca): concubina, sem uma religião a que professar,
mãe (produtora de braços para a lavoura), companheira, acompanhava o marido em suas diversas empreitadas e também, sensual como sua antepassada
índia, desejava e era desejada sexualmente. Depois da
morte do amado, Bárbara revela seu caráter apolíneo,
movida pela revolta, passa de dominada a dominadora: aceita a companhia de Sebastião Souto, o traidor
de Calabar, � que se justifica, afirmando tê-lo feito por
causa de seu desejo por ela � com o único propósito
de demonstrar seu desprezo e o quão insignificante e
fraco era se comparado ao companheiro morto. A fim
de ilustrar essa relação de atração/repulsão, apresenta-se e analisa-se a letra-poema de Chico Buarque,
“Tira as mãos de mim”:
Ele era mil (Calabar)/Tu nenhum (Souto)
na guerra és vil (Souto)/Na cama és
mocho(Souto)
Tira as mãos de mim (Souto)/Põe as mãos em
mim (Souto)
E vê se o fogo dele (de Calabar)/Guardado em
mim (Bárbara
)/Te incendeia um pouco (Souto)
Éramos nós/Estreitos nós (Bárbara e Calabar)
Enquanto tu/És laço frouxo (Souto)
as Tira mãos de mim (Souto)
E vê se a febre dele (de Calabar)
Guardada em mim (Bárbara)/Te contagia um
pouco (Souto).
Tira as mãos de mim (Souto)/Põe as mãos em
mim (Souto).
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Tomando como princípio o texto de José Luiz
Meurer (Uma dimensão crítica do estudo de gêneros
textuais p.18), tem-se a ideia de que o indivíduo possui a capacidade de “produzir, reproduzir ou desafiar
a realidade social na qual vive”, uma grande contribuição que o texto poético também nos oferece. A
partir da análise crítica do discurso poético, podemse estabelecer três de suas principais características:
(1) produz e reproduz conhecimentos e crenças por
meio de diferentes modos de representar a realidade;
(2) estabelece relações sociais; e (3) cria, reforça ou
reconstitui identidades. Comprova-se, através da
ideia tríplice, a informação de que através desta canção, Chico Buarque reproduziu conhecimentos a respeito da história de Calabar e do período da
colonização, assim como da linguística, da linguagem
e sua estruturação textual, e da literatura, utilizando
o jogo de palavras e a literariedade. Usando da tríplice
caracterização, ele estabeleceu relações sociais e apresentou ou criou identidades, principalmente a identidade feminina, na pessoa de Bárbara. Na
letra-poema em questão, há um estereótipo feminino
não muito comum para a época: uma mulher que usa
de pressão psicológica para atingir o homem que delatou seu marido. Ela se entrega a ele, vive com ele,
martirizando-o, comparando-o com a pessoa que ele
traiu. Ela, Bárbara, é a narradora, e as ações narradas
por ela têm uma ideia natural, cotidiana. Através da
atitude da narradora, temos a percepção de diferentes
concepções a respeito da vida social, de valores e ações
humanas. A relação discursiva se mostra através do
poder que Bárbara exerce sobre Souto, ela se mostra
autoritária, provocativa, manipuladora pelo simples
fato de saber da sua traição de Sebastião bem como
do sentimento que o mesmo nutre por ela. Tal poder
pode ser reconhecido pelo uso do discurso direto:
“Tira as mãos de mim, põe as mãos de mim”, e, principalmente pelo modo verbal utilizado, o imperativo:
“Tira/Põe”. Sebastião, por sua vez, ouve tudo calado
e não contesta. As principais identidades são Bárbara
(a narradora), Calabar (o marido) e Sebastião Souto
(o traidor).
A relação social neste discurso se apresenta
através da omissão de Souto, que aparenta ser uma
pessoa inepta, ou então submetida ao remorso de ter
traído o amigo, e por isso, não questiona, não contesta o comportamento irreverente e punitivo de Bárbara, que ao contrário possui como característica, a
perspicácia, o discernimento, a clareza de seus objetivos, que aliados à sua capacidade de persuasão lhe
dão armas suficientes para a afirmação de sua subjetividade. Nesse contraste de personalidades, no antagonismo de fraqueza e força ocorre o equilíbrio entre
poder e submissão.
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Letras
CALA A BOCA BÁRBARA
Ele sabe dos caminhos
Dessa minha terra
No meu corpo se escondeu
Minhas matas percorreu,
Os meus rios,
Os meus braços
Ele é o meu guerreiro
Nos colchões de terra
Nas bandeiras, bons lençóis
Nas trincheiras, quantos ais, ai
Cala a boca,
Olha o fogo,
Cala a boca,
Olha a relva,
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Ele sabe dos segredos
Que ninguém ensina: Onde guardo o meu prazer,
Em que pântanos beber,
As vazantes,
As correntes,
Nos colchões de ferro
Ele é o meu parceiro
Nas campanhas, nos currais
Nas entranhas, quantos ais, ai
Cala a boca,
Olha a noite,
Cala a boca
Olha o frio
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Nesta letra/poema, que é uma das mais intensas
e delicadas demonstrações eróticas da Literatura Brasileira, o corpo feminino é metaforizado nos elementos da natureza em que é possível reconhecer uma
mulher que é ao mesmo tempo, amante e companheira de luta, uma guerrilheira. Essa canção integra
a peça Calabar, em que Chico Buarque e Ruy Guerra
empreendem uma revisão do papel histórico dessa
personagem, apresentado como o traidor por excelência, segundo a historiografia oficial. No início da peça,
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Calabar já estava morto e esquartejado, havia sido
executado pelos portugueses. Eles também promulgaram um edito de execração da memória (Damnatio
memoriae) que não apenas exigia que seu nome fosse
apagado de qualquer registro onde pudesse figurar
(como por exemplo, nas certidões de batismo), como
também proibia que esse nome fosse pronunciado.
Mas restou sua mulher, Bárbara, que é quem canta a
canção, e em quem ele está imensamente presente.
Ela nunca o chama pelo nome, Calabar é o ele a que se
refere. No entanto, é esse o nome que se forma, com
assustadora nitidez, à força da repetição quase obsessiva do refrão: CALA a boca BÁRbara: CALABAR
Aquilo que Bárbara silencia é o que reponta com
força e realidade. Impõe-se uma técnica psicanalítica:
no não dito, descobrir-se o dito. No interdito, descobre-se o dito. Interdito porque foi interditado (por injunções da censura) e interdito porque está dito entre
as sílabas das palavras que constituem o refrão. O
nome proibido continua a ressoar, no tecido da linguagem. O essencial e aparentemente omitido, mas
continua lá, pulsando, latente no coração do discurso.
Partir daí, a própria palavra Calabar reinventada,
passa a condensar em si o “Cala a boca” ao nome de
Calabar. E o nome de Calabar conterá o nome de Bárbara; fusão de amantes apaixonados.
Bárbara não admite que o marido estivesse
morto, porque ela está viva para perpetuar-lhe na história, passando a ser a voz daquele que já não podia
se manifestar. Ela põe em cheque o que é trair, instigando a todos os que se acovardaram diante da execução do único personagem verdadeiro dentre todos
os que ali estavam os pretensos amigos � Felipe Camarão, Henrique Dias, Sebastião do Souto �, o clero,
na figura do Frei Manoel de Salvador, holandeses e
portugueses que viviam de conchavo, imbuídos apenas da certeza de estarem protegendo seus próprios
interesses.
Num outro viés, naquele que interessa mais a
esse trabalho, abordo a letra-poema na questão da ecocrítica, dando destaque ao corpo feminino, com a sexualidade feminina intensamente presente, se
sobrepõe a imagens da terra, rios, matas, vazantes, enchentes, relva, pântanos. Cada um desses termos pode
ser submetido a uma dupla leitura, tanto no registro
paisagístico, quanto no erótico. Reagrupados de outra
maneira (de um lado, matas, relva; de outro, pântanos,
correntes, vazantes), eles evocam toda uma geografia
21
Letras
simbólica do corpo feminino, marcam inequívocas referências (por alusão e/ou analogia) ao sexo a mulher:
pelos, fenda e fonte de umidade. Chico Buarque recupera aqui a expressão geográfica “braços de rio”, restaurando-o na sua literalidade, ou melhor, desvelando
mecanismo de composição de uma metáfora, através
da oposição, em contiguidade, dos termos comparantes, ‘os meus rios/ os meus braços’ (Menezes, 2001,
p.127), apontando, conforme Vico, a projeção do
corpo sobre a paisagem (e o retorno desse processo:
da paisagem para o corpo).No entanto, essa terra/mulher não há de ser considerada só do ponto de vista telúrico, mas também do político: e a terra pátria, pela
qual vale a pena lutar. Calabar era um “guerreiro”, ao
mesmo tempo em que “parceiro”, e a mulher que aí
aparece é a guerrilheira, misturada ao combate e identificada com o país pelo qual se luta. A entrega do
homem, no jogo amoroso, é a entrega à mulher-terra,
possuidora de trincheiras/entranhas (povoadas de
ais). As bandeiras estão para s lençóis, assim como as
trincheiras estão para as entranhas. Ao telúrico
somou-se não apenas o erótico, mas o político.
Como já havia dito antes, meu interesse se volta
para as personagens femininas na obra Calabar, portanto
cabe agora ma leitura ecocrítica de Anna de Amsterdam.
Assim como as jovens brancas � mesmo que “erradas” �
mandadas à Índia e ao Brasil, por Dom João III e Dona
Catarina, no início da colonização, Anna também veio
“com a esperança de casar”, porém sua sorte foi adversa,
serviu como objeto de prazer a todos, porém desdenhava
dos homens com quem se relacionava. Anna foi amante
de Calabar, entretanto, foi ela que amparou Bárbara e a
fez fortalecer-se para que a morte do amado não fosse
em vão. Assim como Bárbara, Ana é símbolo de resistência, mesmo que as arma seja o sexo, o escárnio e o deboche. Passemos à letra-poema Anna de Amsterdam:
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Sou Ana do dique e das docas
Da compra, da venda, das trocas de pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das
fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana
Da cama, da cana, fulana, sacana
Sou Ana de Amsterdam
Na esperança de casar
Fiz mil bocas pra Solano
Fui beijada por Gaspar
Sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada
Sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana
Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam
Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar
Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar
Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, das vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam
A Anna “dos dentes rangendo” e “dos olhos enxutos”
é aquela que na impotência de mudar seu destino o encara, usando das armas que dispõe: a ironia, a amargura e
o sarcasmo, mas é dela uma interessante reflexão a respeito da diferença entre a força do homem e a da mulher:
(Ana) É mulher não tem nada a ver com
homem. O homem é antes de tudo um forte.
Você sabe como é. Passa duas semanas na
guerra chega em casa, puxa uma espada
deste tamanho, aí você diz, bem, chegou a
minha vez, me estoca, e ele só dando tiro pro
ar... Daí você tira a roupa e ele fica todo excitado, mas não porque você está nua, é porque ele acertou um índio e vai por aí, e te
confunde com um índio e te dá uma paulada
e te confunde com o carrasco e te pede pra
bater nele até cansar e dorme e ronca e você
cutuca ele (cutuca Souto)... E ele nada, sozinho. Vamos, homem, acorda... (cutuca
Souto)... Dá-lhe macho, cadê tua espada? (...)
Dia seguinte ele acorda satisfeito como se tivesse feito proezas. Veste a farda, faz continência e volta para a guerra. Vamos, Bárbara.
Uma mulher precisa de carinho, dengo, cosquinha... (Hollanda, 1979, p.78-79).
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Letras
Anna encarna o arquétipo da mulher ativa, “perdida”, a prostituta, a que é de todos, mas não é de ninguém, assim como a terra brasileira, alvo de
explorações de toda ordem por todos os colonizadores
que por aqui passaram, sendo usada e desvalorizada.
Ana encarna o espírito dionisíacoi, assumindo o caráter masculino no seu comportamento transgressor na
sua liberdade sexual, e na postura “protetora”, que
manifestou junto à Bárbara. Entretanto, é Ana quem
assume, naquele contexto em que trair é um conceito
revisitado e discutido, o papel do “contente”, num
jogo cínico onde o que realmente valia era a defesa da
própria sobrevivência. Se Calabar seguia vivo em Bárbara, Anna se uniria a ela, para que se juntassem num
só corpo a trindade da resistência. Chico Buarque dá
voz às minorias, fazendo do discurso misógeno de
Anna, de um sujeito lírico transmudado, travestido
de homem, não apenas para chocar com o regime repressivo, tanto do tempo da história, quanto do da
narrativa, mas, sobretudo para mostrar a força do
novo, expressão nova surgida de figuras populares.
Um novo comportamento, uma nova configuração
para papéis culturalmente demarcados, Anna e Bárbara, conjunção do masculino/feminino, inauguram
um novo lugar para o sujeito, aquele do constante
devir, que pode ser isto, aquilo ou ambos. Isto pode
ser comprovado nos versos de Bárbara, cantados por
Anna como numa declaração de amor:
Anna (cantando):
Bárbara, Bárbara, Nunca é tarde, Nunca é
demais. Onde estou? Onde estás? Meu
amor, Vim te buscar. Bárbara – ... Sim!
A fim de reforçar o estado de dominação por que
passavam os oprimidos, no caso, personificados nas
mulheres, Anna demonstra à Bárbara o quanto é inútil “comprar briga” com os poderosos, prevalecendo
aqui o ditado popular “manda quem pode, obedece
quem tem juízo”, o que pode ser comprovado na letra
da canção Vence na vida quem diz sim.
Diz que sim.
Torcem mais um pouco,
Diz que sim.
Se te dão um soco,
Diz que sim.
Se te deixam louco,
Diz que sim.
Se te babam no cangote,
Mordem o decote,
Se te alisam com o chicote,
Olhe bem pra mim.
Vence na vida quem diz sim,
Vence na vida quem diz sim.
Se te jogam lama,
Diz que sim.
Pra que tanto drama,
Diz que sim.
Te deitam na cama,
Diz que sim.
Se te criam fama,
Diz que sim.
Se te chamam vagabunda,
Montam na cacunda,
Se te largam moribunda,
Olha bem pra mim.
Vence na vida quem diz sim,
Vence a vida quem diz sim. (everybody)
Se te cobrem de ouro,
Diz que sim.
Se te mandam embora,
Diz que sim.
Se te puxam o saco,
Diz que sim.
Se te xingam a raça,
Diz que sim.
Se te incham a barriga
De feto e lombriga,
Nem por isso compra a briga,
Olhe bem pra mim.
Vence na vida quem diz sim,
Vence na vida quem diz sim.
Dionisíaco é o termo adotado por Nietzsche, 1984. Ecce, o que coloca homo: como se chega a ser o que se
é. Trad. de José Marinho, Lisboa: Guimarães Editores, para expressar, dentre outras coisas, o eterno devir do
homem moderno. A representação do caos, da desconstrução constante. Contrapõe-se à expressão Apolíneo,
que representa a ordem, o desejo de perfeição humana.
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Letras
Diante do exposto nesse estudo, tentei compreender como ocorreu o processo de exploração do solo brasileiro, desde os primórdios de sua colonização, seja por
colonizadores portugueses ou holandeses, a partir da
obra Calabar elogio da traição, utilizando-me dos discursos buarqueanos representados nas vozes das personagens Bárbara e Anna de Amsterdam, pois me pareceu
oportuno comparar a natureza da monocultura colonial
semelhante à figura feminina ocupando papéis sóciosubjetivos monovalentes. Se por um lado, o colonizador
usou da terra para ampliar suas riquezas, ele também
usou a mulher, seja ela índia, negra ou branca, como objeto para satisfação de seus prazeres, ou ainda, como mão
de obra geradora de mais mão de obra, ambas vistas
como uma cornucópia, jorrando infinitas fontes de vida.
Félix Guattari (2004), nos alerta sobre a urgência em se
reinventar o meio ambiente e os modos vida e de sensibilidade para que seja possível sair das crises que o
mundo de hoje está passando, compreendendo que só
assim seja viável a permanência dos seres neste planeta.
Nessa perspectiva, entendo que Chico Buarque, utilizou
do discurso poético para ressignificar a história, dando
uma nova configuração ao discurso oficial e conforme
nossa leitura tornou possível o estabelecimento de relações entre o ecológico e o literário. Reconheço o ecológico
não apenas como registro ambiental, considerando que
as relações entre os seres humanos e o meio ambiente
envolvem, necessariamente, as relações sociais e a construção das subjetividades. Conforme nos indica Cheryll
Glotfelty, a primeira lei da ecologia formalizada de
modo simples por um dos mais respeitados ecologistas,
Barry Commoner: “todas as coisas são interligadas
umas com as outras” (GLOTFELTY, 1996, p. XIX).
Dessa forma, espero ter contribuído para uma ressingularização da abordagem do texto poético, tomando de
empréstimo as palavras de Cheryll Glotfelty, entendo “que
a literatura não flutua acima do mundo material em algum
éter estético, ao invés disso, tem um papel num sistema global imensamente complexo, no qual energia, matéria e
ideias interagem” (GLOTFELTY, 1996, p. XIX).
Referencias Bibliográficas
CLARK, Katerina. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Coleção Tópicos, Tradução de Márcio Alves da Fonseca
& Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 358-359.
GARRARD, G. Ecocrítica. Tradução de Vera Ribeiro. Brasília/DF: Editora UNB, 2006.
GONZAGA, Sergius. Manual de literatura brasileira. Porto Alegre: mercado Aberto, 1985.
SILVA, Anazildo V. da. A Poética de Chico Buarque, Rio de Janeiro: Sophos Editora, 1974
GLOTFELTY, Cheryll. Introduction-literary studies in an age of environmental crisis. In: GLOTFELTY,
Cheryll & FROMM, Harold; eds. The ecocristicism reader – landmarks in literary ecology. Athens /
London. The Univ. of Georgia Press, 1996. p. XV-XXXVII.
GUATTARI, Félix. As três ecologias.Tradução de Maria Cristina Bittencourt, 15ª edição, Campias/SP:
Papirus Editora, 2004.
_______________. Práticas ecosóficas e restauração da cidade subjetiva. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 116: 9-25, 1994.
HOLLANDA, Chico Buarque de & GUERRA, Ruy. Calabar - o elogio da traição.coleção Teatro Hoje,
vol.24, 12ª edição. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
24
MENEZES, Adélia B. de. O poder da palavra: Ensaios de Literatura e Psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
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DiscutiNdo raça/racismo
na sala de aula de língua Inglesa:
relato de Uma experiência
Edilson Alves de SOUZA
Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Inglesa
Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Este trabalho tem objetivo de mostrar uma experiência de Letramento Crítico na sala de aula de língua inglesa, considerando-a como um espaço
questionador das relações de poder e das ideologias
disfarçadas sobre raça e racismo. Para tanto, foram
feitas análises dos resultados de discussões e de questionários aplicados no 8º Ano de uma escola municipal de Senador Canedo-GO.
Like many things that people are reluctant to discuss in polite society, or to discuss honestly, race is too
important to be ignored or – worse yet – think about
only in safe conventions and evasive phrases of our
time.
Thomas Swell
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Introdução
O ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras
e os novos e diversificados contextos educacionais
atenderam as necessidades que, em seus diferentes
momentos sociais e históricos, lhes eram inerentes
(OKAZAKI, 2005; COX; ASSIS-PETERSON, 2008; LIBERALI, 2009, p. 9). Assim, foram sendo desenvolvidos os processos educacionais e, dentre eles, as
metodologias e técnicas viáveis e “apropriadas” para
cada situação e/ou época (RICHARDS; RODGERS,
2001). Na contemporaneidade, verifica-se que o ensino deve estar conectado a busca imperativa de questionar e colocar à prova certas ideologias e discursos
que constroem, hegemonicamente, hierarquias de
poder por meio dos produtos discursivos de língua
25
Letras
(PENNYCOOK, 2001; CONTRERAS, 2002; OKAZAKI, 2005; PESSOA, 2012b).
Contudo, ainda hoje, quando se trata do ensino de
línguas, comumente, faz-se muita referência à utilização de
técnicas/métodos com o fim de obter um ensino/aprendizagem eficiente, porém, através da aquisição de habilidades
linguísticas (speaking, listening, writing, reading), de forma
estruturalista, mecânica e com foco na gramática. Esse modelo de comportamento pedagógico desconsidera o uso
dessas habilidades de maneira a conduzir uma abordagem
crítica de temas importantes na formação de um indivíduo,
que o atinge e o compreende como um ser que, sociamente,
age e interage dentro de certos contextos ideologicamente
constituídos (LIBERALI, 2009).
Diante disso, percebe-se a necessidade de valerse do ensino/aprendizagem, no caso o de língua, para
formação do cidadão que interfere e produz significados na sua realidade e no mundo. E, dessa forma, problematizar, desconstruir e transformar, constante e
criticamente, certos paradigmas de privilégio e exclusão que produzem, por sua vez, desigualdades e injustiças sociais sobre gênero, raça, etnia entre outros
(MCLAREN, 1997, p. 192; FREIRE, 2011; URZÊDA
FREITAS; PESSOA, 2012b, p. 146). Ou seja, é preciso
entender a língua como prática social para questionar
as relações de poder e ideologia disfarçadas e escondidas nos discursos (PENNYCOOK, 2001; CONTRERAS,
2002). Sendo assim, a sala de aula de língua estrangeira
não será apenas um ensaio da vida, mas, sim, um ambiente que “atende” às necessidades dos sujeitos na
vida que se vive, pondo-a em questão (LIBERALI, 2009;
PESSOA; URZÊDA FREITAS, 2012a, p. 57).
Para tanto, neste trabalho, serão abordadas questões sobre as relações de raça a partir da implementação
da Lei nº 10. 639, de 9 janeiro de 2003; das Orientações
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de Histórica
e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2005); e de estudos
os quais debatem sobre o tema (CAVALLEIRO, 2001;
MUNANGA, 2001; GOMES, 2002; FERREIRA, 2012).
Serão analisadas as percepções dos alunos do 8º ano de
uma escola pública do município de Senador CanedoGO, suscitadas por debates e questionários.
Discussão teórica
26
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
ao tratarem da importância da Língua Estrangeira
(1998, p. 38, grifos nossos), afirmam que:
A aprendizagem de Língua Estrangeira no
ensino fundamental não é só um exercício intelectual em aprendizagem de formas e estruturas
lingüísticas em um código diferente; é, sim, uma
experiência de vida, pois amplia as possibilidades de
se agir discursivamente no mundo. O papel educacional da Língua Estrangeira é importante, desse
modo, para o desenvolvimento integral do indivíduo [...].
Nessa perspectiva, tratamos a língua na concepção de Moita Lopes (1996 apud PESSOA; URZÊDA
FREITAS, 2012a, p. 61), na qual o discurso, socialmente, constrói ou mesmo, identidades, realidades de
privilégio e, também, de inferiorização. Por isso, teremos que “fazer uso da linguagem para desconstruir
e/ou reescrever esses processos que tanto afetam as
sociedades contemporâneas” (PESSOA; URZÊDA
FREITAS, 2012a, p. 60). A escola, assim como os variados espaços da sociedade, é um ambiente onde
muitos aspectos da formação dos indivíduos são cultivados (GOMES, 2002) e, por isso, deve ajudar o alunado a entender as ideologias que privilegiam valores
culturais em detrimentos de outros.
O estudo de uma língua, a partir do ponto de
vista que considere seus aspectos formativos enquanto prática social, tem sua relevância por trazer
posicionamentos críticos e discutir essas ideologias e
hegemonias que decorrem do discurso – oral ou escrito – por meio de suas formas linguísticas. Este tipo
de atividade pedagógica sobre a linguagem que
abrange e promove um diálogo entre ensino línguas,
relações de poder e transformação social é conhecida
como Letramento Crítico (CERVETTI; PARDALES;
DAMICO, 2001).
Na visão do letramento crítico a língua é concebida como uma atividade não neutra, como o veículo
de construção e reconstrução de contextos e significados, nos quais há relações de poder. Além disso, a
língua é tratada também como uma solução, como
uma forma de criar um contradiscurso, de quebrar de
paradigmas, valores e crenças. Esse pode ser um meio
de alimentar a atividade crítica dos alunos e ampliar
suas visões de mundo, acrescentando dentro das
aulas a necessidade do protagonismo docente e discente perante as realidades sociais (FREIRE, 2011).
A sala de aula é um lugar, no qual há troca de experiências. Segundo Herzila Maria de Lima de Bastos
(2010, p. 32), muitos valores e crenças dentro da sala de
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língua estrangeira, podem, ideologicamente, firmar e
construir certos estereótipos às pessoas e a “cada povo”.
Uma pluralidade de elementos pode servir para classificar, eugenicamente, um grupo, estereotipando-o, a partir
de traços genótipos, fenótipos e culturais. É interessante
ressaltar que, mesmo os documentos oficiais – tal como
os Temas Transversais (BRASIL, 2001) –, apontam que
essa é uma realidade comum nas escolas e que se deve
apresentar a diversidade cultural como solução.
Estereótipos são caracterizações e impressões
pré-concebidas para representação de alguém ou algo.
Essas representações estão relacionadas ou fazem
parte do processo educacional, principalmente, nos
instantes em que as diferenças e a diversidade cultural
deixam de ser respeitadas, ou seja, passa-se a existir
os preconceitos, que tanto reprimem e atingem o âmbito escolar (CAVALLEIRO, 2001; GOMES 2001a;
LOPES, 2001). Sobre estes, pode-se dizer, também,
que convergem e influenciam na maneira de se conceber as relações de gênero, de raça, de etnia e, também, as condições socioeconômicas dos indivíduos,
tendo por base certos padrões.
Quando se fala de relações étnico-raciais é importante destacar que houve uma ampliação do quadro de
discussões dentro dos ambientes sociais em geral, principalmente por parte dos professores (GOMES, 2001a;
FERREIRA, 2012). No entanto, esta ampliação está
bem longe de mudar o panorama atual, visto serem
ainda insuficientes as (re)ações para reverter a situação
discriminatória dentro da escola, hoje. Essa realidade
é visível, principalmente, no Brasil, onde se nega o racismo. Entretanto, este é mantido “presente no[s] sistemas de valores que regem o comportamento da nossa
sociedade, expressando-se através das mais diversas
práticas sociais” (GOMES, 2001a, p. 142).
Segundo Eliane Cavalleiro (2001, p. 7), “[f]alar
sobre discriminação no ambiente escolar não é realizar um discurso de lamentação. Mas dar visibilidade
à discriminação de que crianças e adolescente negros1
são objetos”. Essa é uma necessidade que, no entanto,
ainda é atendida pela escola com um trabalho ineficiente, especialmente, na desconstrução e reconstrução da identidade negra (GOMES, 2001a, 2002).
Nessa direção, acontece a naturalização e consequente
perpetuação do racismo com o auxílio daquela que deveria desvelar as máscaras, a comunidade escolar
1
(GOMES, 2002, FERREIRA, 2012).
Contudo, as aulas de língua inglesa, além de um
espaço para o ensino-aprendizagem de língua, podem
ser um meio de problematização das relações étnico-raciais (CONTRERAS, 1996, 2002, MOITA LOPES, 2006;
PESSOA; URZÊDA-FREITAS, 2012a; FERREIRA,
2012). É justamente, conforme apresentado no aporte
teórico acima, considerando a sala de aula como um
lugar de construções e desconstruções de significados
sociais por meio do discurso, que se pode trazer e fazer
mudanças mais expressivas sobre esse tema crítico.
É conveniente, todavia, levar em conta que “[a]
problematização do ensino de línguas se concretiza
não apenas nas provocações feitas pelo professor, mas
também nas atividades que desafiam os alunos a pensar como se pode agir de forma diferente e, assim, vislumbrar possibilidade de mudança” (PESSOA;
URZÊDA FREITAS, 2012a, p. 60).
Diante desse contexto de racismo, culturalmente,
naturalizado; do mito da democracia racial dentro do
espaço escolar; e da possibilidade da discussão crítica
como material contra esses problemas se faz importante essa pesquisa, de maneira a destacar como os
alunos (brancos e negros) veem o racimo hoje.
Metodologia
O presente estudo buscou relatar a experiência de
tratar raça e racismo dentro do contexto da aula de inglês
como Língua Estrangeira. Também pretendeu identificar as concepções dos alunos na atividade de representação do negro por meio do debate sobre raça e racismo.
A pesquisa foi realizada durante o segundo semestre de 2012, sendo que a maior parte das atividades se concentrou no mês novembro – mês de
efervescência do assunto por causa do dia nacional da
consciência negra, datado 20 de novembro. O públicoalvo dessa pesquisa foi um grupo 31 pessoas, alunos
e alunas do 8º ano de uma escola pública do município
de Senador Canedo-GO. Dentre esses, 18 eram meninas e 13 eram meninos.
Para tanto, foram desenvolvidas atividades, discussões e aplicado um questionário fundamentados
numa abordagem que proporcionasse uma experiência de Letramento Crítico, conforme a noção apresentada acima (CERVETTI; PARDALES; DAMICO, 2001;
FREIRE, 2011). As atividades se basearam na leitura
Consideramos “negro(s)”, nesse trabalho, os “pretos e pardos”, segundo a classificação do IBGE.
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de textos curtos na língua inglesa. Estes, depois de
lidos e compreendidos, foram usados de forma a conhecer e a contestar os padrões sociais de gênero, raça
e etnia, e alimentar questionamentos e opiniões diversos por parte dos alunos e alunas, oportunizando
os debates. Após as discussões foi aplicado um questionário como culminância das sessões dialógicas
entre alunas e alunos e o professor durante as aulas.
Estes serão analisados na próxima seção.
Assim, podemos dividir a pesquisa em dois momentos. No primeiro momento foram realizadas discussões sobre racismo, preconceito e igualdade. Tais
discussões tiveram o objetivo de levar os participantes a refletirem sobre os assuntos (raça e racismo) que
seriam abordados em sala, de modo que eles expusessem suas opiniões e experiências de forma livre, sem
interrupções e/ou intervenções muito aprofundadas
sobre o tema. Esse foi um ponto inicial e crucial que,
de certo modo, “destrona” com “a crença de que a função da escola está reduzida a transmissão dos conteúdos historicamente acumulados, como se estes
pudessem ser trabalhados de maneira desvinculada
da realidade social brasileira” (GOMES, 2001, p. 141).
No segundo momento, os alunos tiveram um espaço para expressarem suas experiências concretas de
racismos e/ou preconceitos, mostrando sua visão de
mundo perante a situação de problematização crítica.
Para tanto responderam um questionário, no qual foi
dada a oportunidade de relatar, de maneira pessoal e
escrita, suas apreciações e julgamentos a respeito do
tema discutido em sala. É importante destacar que,
as discussões não foram realizadas em língua inglesa,
nem as respostas aos questionários, tendo em vista
que os alunos ainda não possuem habilidades linguísticas suficientes da língua estrangeira alvo – o inglês
–para realizarem as atividades propostas ressaltadas
no parágrafo anterior e nesse.
Análise dos dados
Nesta seção, serão apresentados os resultados e
uma análise da segunda parte do estudo – o questionário. Constituído de três perguntas bastante simples
e diretas, o questionário foi aplicado em de Novembro
de 2012. Dentre as três questões, inicialmente estavam: 1) E, sua opinião, o que é racismo? e 2) Em sua
opinião, existe racismo hoje? Por quê?
Num primeiro instante, os/as alunos/as foram
convidados a refletir sobre o que eles/as entendiam por
racismo. Essa questão além de pertinente para a construção de uma discussão com os alunos, segundo Gomes
(2001a, p. 143), “poderia ajudar os(as) educadores(as) a
compreenderem a especificidades do racismo brasileiro
e auxiliá-los a identificar o que é uma prática racista [...]
no interior as escola”. Confiramos as respostas:
Aluno/a 1: Racismo é um crime cometido pela
maioria da população e é praticado na escola e nas
ruas. Quem sofre mais são pessoas de pele escura,
pessoas acima do peso, pessoas de cabelo ruim, etc...
Aluno/a 2: Racismo é uma coisa ruim. Racismo não é só cometido com negros, [mas] também
com gordos, etc.
Aluno/a 3: Racismo é um preconceito muito
sem noção. Porque cor não se escolhe. A gente tem
por que tem de ser assim, e cor não [é] conteúdo.
Aluno/a 4: É uma discriminação, uma forma de
falar mal de uma pessoa pelo seu jeito e pela sua cor2.
Apreendemos na fala do/a Aluno/a 1 um termo
que atribui, infelizmente, qualidades negativas às pessoas que têm cabelo crespo (“cabelo ruim”). Pode-se inferir que essa expressão é um produto da formação
que esse/a jovem teve. A esse respeito, Nilma Lino
Gomes, em seu artigo Trajetórias escolares, corpo negro
e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?, no qual descreve uma pesquisa que
realizou, resalta dados que influenciaram e influenciam na formação individual de cada pessoal. Nesta,
ela entrevistou algumas pessoas, na sua maioria mulheres negras de várias faixas etárias, a fim de constatar as formas de representação do/a negro/a. Sobre
este trabalho, Gomes (2002, p. 41, grifos nossos) destaca que:
A trajetória escolar aparece em todos os
depoimentos como um importante momento
no processo de construção da identidade
negra e, lamentavelmente, reforçando estereótipos e representações negativas sobre esse segmento étnico/racial e o seu padrão estético.
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Os destaques realizados em negrito nas falas dos alunos não contam nos textos originais. Esses são apenas
um recurso utilizado para ressaltar partes importantes dentro das respostas dos questionários.
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Perante isso, é relevante apontar que a sociedade
estabelece critérios para classificação que reproduzem
relações assimétricas entre negros e brancos, nas
quais a verticalidade demonstra a quem pertence o
poder dentro da educação (CAVALLEIRO, 2001). Para
se afirmar os direitos educacionais dos afro-brasileiros, além da Lei 10.639/2003, que alterou a LDB, é
necessário reconhecer a exigência de
que se questionem relações étnico-raciais
baseadas em preconceitos que desqualificam os
negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente
violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual (BRASIL, 2005, p.
12, grifos nossos).
Gillborn (1995 apud FERREIRA, 2012, p. 37)
chama a atenção sobre a cautela na abordagem da
questão da raça/racismo, [visto que,] se a
atividade não for bem dirigida, “[...] não importa
o quão bem intencionada, pode atrapalhar e alienar os estudantes menos favorecidos socialmente,
servindo para reforçar (em vez de desconstruir)
estereótipos raciais existentes e conflitos”.
É muito importante perceber que não só a “escola” realiza esse trabalho de padronizar negativamente as pessoas ou um grupo de pessoas. Por vezes,
são desconsiderados outros lugares (espaço de relações sociais, tais como, casa, clubes, etc.) que possam
ter influenciado a citação “cabelo ruim” na fala do
Aluno/a 1. Assim sendo, pode-se afirmar que é um
conjunto de fatores educacionais que influencia a
construção e o estabelecimento dos modelos e padrões que circundam a forma de conceber as imagens
e representações, principalmente, as identitárias, ao
mesmo tempo em que são os fatores educacionais
que, igualmente, podem combater e romper essas hegemonias e normas (BRASIL, 2005, p. 14-15).
É válido ressaltar que, na percepção dos alunos/as,
nessa primeira pergunta, o racimo não está relacionado
restritamente às pessoas negras, mas também, às obesas
e pessoas que se destacam por alguma característica diferente das outras, como o “jeito de ser”. É interessante
apreender nos relatos acima que o conceito de racismo
está, estreitamente, vinculado ao conceito de preconjulho a dezembro de 2013
ceito, de rotular o desigual de maneira discriminada.
No segundo questionamento proposto, os/as
aluno/as deveriam responder: “Em sua opinião, existe
racismo hoje? Por quê?”. Todos, unanimemente, disseram que sim, ressalvando posicionamentos bastante ricos. Vejamos:
Aluno/a 1: Sim, por que até hoje tem gente
que ainda se acha melhor que o outro, que ainda se
acha diferente de todos. Racismo pela cor, pelo
peso e pela classe social.
Aluno/a 2: Sim, por que as pessoas ainda não
tem a capacidade de raciocinar e ver que cor não
faz diferença nas atitudes.
Aluno/a 3: Sim, existe. Por que algumas pessoas não tem a noção do que é racismo. Elas não
sabem que isso pode ofender as pessoas.
Aluno/a 4: Sim, infelizmente, isso ainda não
acabou. [...] Pelo menos hoje tem as lei para a defesa
do discriminado.
Estes/as alunos/as, conforme vemos na
transcrição acima, estão cientes da permanência da
divisão das pessoas causada por meio da cultura de
raça ou de criar raças – o que também causa o racismo.
O termo raça é utilizado com freqüência
nas relações sociais brasileiras, para informar
como determinadas características físicas, como
cor da pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o
destino e o lugar social dos sujeitos no interior
da sociedade brasileira (BRASIL, 2005, p.13, grifos nossos).
A raça/racismo, como se vê, está intimamente ligada com o “lugar social dos sujeitos”, o que converge
com a ideia de que não houve políticas de inserção do
negro – “jogado à liberdade” pela Lei Áurea – na sociedade (VALENTE, 1987, p. 22-23). O negro não foi
e não é tratado como um contribuinte para construção do desenvolvimento étnico, cultural e econômico
do Brasil e do Mundo (VALENTE, 1987). Essa situação manteve e mantém o negro à margem das oportunidades de ascensão que, consequentemente,
alimentou a veiculação de discursos de inferioridade
do negro (VALENTE, 1987). Por isso, “hoje tem gente
que ainda se acha melhor que o outro”, como bem discute o/a Aluno/a 1. Nessa direção, vemos o racismo
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produzir outros preconceitos, como, por exemplo, os
relacionados à “classe social”, além de verificar que os
racistas são “pessoas não tem a noção do que é racismo”,
isto é, não tem noção do mal que causam, como
afirma o/a Aluno/a 3.
É importante destacar que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos
na Constituição Federal do Brasil, de acordo com o exposto no artigo 3º é:
I – construir uma sociedade livre, justa e
solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV
– promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 2011a, p. 20, grifos nossos).
Mas, o que se verifica, depois de mais de 20 anos
da Constituição, é que o cumprimento dessa lei não
atinge a todas a pessoas, como deveria ser. Essas são
algumas das inúmeras falhas da concretização de políticas que, por não serem cumpridas e “nem existirem” instrumentos para sua real efetivação, geram
mais problemas sociais, como os preconceitos, infelizmente, comuns relacionados à raça e sexo.
Indubitavelmente, a “[...] raça está sempre presente em todas as configurações sociais de nossas
vidas” (LADSON-BILLINGS 1998 apud FERREIRA,
2012, p. 42) mesmo que alguns, conscientemente,
façam de conta que isso não existe (VALENTE, 1987,
p. 6; LOPES, 2001). É principalmente nesse tipo de
situação que a escola deve interferir, propondo alternativas e reflexões críticas, transformando os discursos e, por conseguinte, a visão de mundo do alunado
e, numa amplitude maior, da sociedade (GOMES,
2001a, 2001b, 2002; LOPES, 2001; FREIRE, 2011).
Na última questão, os/as alunos/as teriam que
fazer uma breve reflexão sobre um trecho do famoso
discurso “Eu tenho sonho” (I have a dream) de Martin Luther King Jr.: “Eu tenho um sonho de que
meus quarto filhos um dia viverão em uma nação
onde eles não serão julgados pela cor de sua pele,
mas pelo conteúdo do seu caráter”3. Vejamos o resultado das reflexões:
Aluno/a 1: Os seus filhos não sofreriam
de racismo, mas, sim, seriam aceitos na sociedade pelo seu caráter não pela cor da sua
pele.
Aluno/a 2: Entendo que ele [Martin Luther King], assim como todos, quer o melhor
para os seus filhos, e que eles possam ser alguém na vida, sendo respeitados.
Aluno/a 3: Ele [Martin Luther King] quer
viver em um mundo igualitário, onde não
existe preconceito.
Aluno/a 4: Entendo que [...] em vez de
julgar, por que não conhecer e descobrir que ela
[qualquer pessoa] pode valer tanto como
você ou mais.
Nessas respostas, podemos verificar que as leituras realizadas pelos alunos vão ao encontro da necessidade soluções propostas pelas Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de Histórica e Cultura AfroBrasileira e Africana para sanar os problemas com a
injustiça, a desigualdade e a exclusão sociais:
A divulgação e produção de conhecimentos, a formação de posturas e valores
que eduquem cidadãos orgulhosos de seu
pertencimento étnico-racial – descendentes
de africanos, povos indígenas, descendentes
de europeus, de asiáticos – para interagirem
na construção de uma nação democrática, em
que todos, igualmente, tenham seus direitos
garantidos e sua identidade valorizada (BRASIL, 2005, p. 10, grifos nossos).
O/A aluno/a 1, ao afirmar: “seriam aceitos na sociedade”, levanta uma questão de suma importância
que é a inserção do negro, do marginalizado, do excluído, na sociedade. Isto é, “garantir à população
negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a
defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas
de intolerância étnica” (BRASIL, 2011b, p. 5). Em outras palavras, é a presença e a atuação do negro dentro
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“I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by
the color of their skin but by the content of their character” (I have a dream, Martin Luther Kingʼs Speech Tradução nossa).
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dessa “nação democrática”. Segundo Gomes (2001b,
p. 85-86) “a escola brasileira, com sua estrutura [curricular] rígida, encontra-se inadequada à população
negra e pobre deste país. Nesse sentido não há como
negar o quanto o seu caráter é excludente”.
Excluir é tirar para fora do contexto. “Pensar a
articulação Educação, cidadania e raça” é “lutar em
prol de uma sociedade democrática que garanta a
todos/as o direito de cidadania” (GOMES, 2001b, p.
83-84). Negar o acesso à educação é negar que “todos,
igualmente, tenham seus direitos”, visto ser a educação um direito social (BRASIL, 2005, p. 10). Nessa esteira, constata-se ainda na fala do Aluno/a 3, um
outro aspecto que circunda as formas de representação dos negros: vê-lo como uma vítima da injustiça e
da desigualdade.
Percebe-se que muito já se cresceu nessa direção.
Prova disso, é a existência da Lei 10.639/2003 e das
Diretrizes supracitadas, que desvelam a necessidade
de um novo olhar sobre o negro. Porém, além de não
haver a efetiva prática dessas orientações nos contextos educacionais, há “limitações do ensino de uma
questão sensível como raça/etnia, [..] e isso perpassa
pela formação de professor” (FERREIRA, 2012, p. 45).
Esse quadro terá consequências diretas na escolarização dos indivíduos e na maneira como atuará sua cidadania – ponderação ressaltada pelo/a Aluno/a 2,
quando reflete: “ser alguém na vida”.
Todos os aspectos apreciativos e depreciativos
da pessoa negra somam-se ao discurso que moldará
a identidade desse indivíduo, o que faz uma manutenção e mantém a lógica do círculo vicioso de marginalização e desvalorização do negro e sua
identidade. Todavia, para que ele possa resgatar seu
valor, “é preciso garantir eqüidade social. Discutir direitos civis” (GOMES, 2001b), visando, basicamente,
o “processo de afirmação de identidades”; “combate
à privação e violação de direitos”; “o rompimento
com imagens negativas forjadas por diferentes meios
de comunicação”; e ampliar o “acesso a informações
sobre a diversidade da nação brasileira e sobre a recriação das identidades, provocada por relações étnico-raciais” (BRASIL, 2005, p. 19). Com essas
atitudes, perceber-se-á que o negro “pode valer tanto
como” (fala do/a Aluno/a 4) qualquer ser humano,
visto, também, ele o ser.
Considerações finais
Perante o exposto, pudemos compreender a
busca, tão necessária, de se construir novas formas de
pensar o ensino da língua estrangeira, no caso o inglês.
Esses novos pensamentos estão circundados, é claro,
com a ação de também repensar o papel da escola
quando trata problemas sociais, tal como o das questões étnico-raciais (GOMES, 2001a, 2001b). Como se
percebeu nos relatos, foi e é possível construir diálogos
dentro da sala de aula sobre temas críticos tão importantes quanto raça/racismo na sociedade.
No entanto, verifica-se, igualmente, que é preciso deixar mais claro e concreto qual deve ser o vínculo entre a escola e a vida do educando. Um dos
passos é propor discussões que circundam o contexto
e se aproximem da atuação social dos alunos e sua
visão de mundo (LIBERALI, 2009), como se pode ver
nesta breve pesquisa. Este é um aspecto educacional
bastante basilar – a contextualização do ensino – que
é complementada com a orientação de Paulo Freire
(2011), encontrada no livro Pedagogia da autonomia.
Nesse, vemos a apresentação da Educação com um
novo olhar, o da educação vista, não apenas como um
ambiente no qual se passa conteúdo, mas, como uma
forma de intervir no mundo.
Para tanto, usamos as aulas de língua inglesa
como um espaço propício para debates como “formas
de ensinar pautadas por uma reflexão sobre a vida”
(LIBERALI, 2009, p. 12), mostrando a responsabilidade que há em usar o discurso em favor da construção de uma humanidade melhor.
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