África, UmA viAgEm AO pASSADO
Transcrição
África, UmA viAgEm AO pASSADO
OUTRAS ONDAS 1. SAbbA, DOmENEch, pROENçA, bOcãO E bETãO. cARRO ATOlADO pElA mARÉ ENchENDO NO mEiO DA pRAiA DO 2. hElmO cARvAlhO, piER, 1972. 3. pRAiA DA vilA, SAqUAREmA, 1970. 4. SURFiSTAS NA pEDRA DO ARpOADOR, 1978. 1. SAbbA, DOmENEch, pROENçA, bOcãO E bETãO. cARRO ATOlADO pElA mARÉ ENchENDO NO mEiO iDUFYgUYEg iUYFg SDiUYFg qWiUhD gFiUYqWDg OFUgqWDOF OqWDSUg FOUYqWD OiFU hqWO FgWOqUDg FOiUWqh OFiUqWg EOiFg WODiUg FOUWqYDg FOUY WDg OUY qWEUFg OASiDUg FOUYqWEDg FOUYqgWED OUYFg qEOUFhqOWiEh FOqWiEU hFOUWqEh OFU hWqEO 8FqWOE8g FOqiUWEghFOiqWEh FO UiqEg FOU. África, UmA viAgEm AO pASSADO “Esse continente é demasiadamente grande para ser descrito. É um verdadeiro oceano. Um planeta diferente, composto de várias a África não existe.” (Ryszard Kapuscinski) #054 FRED D’OREY [email protected] 1. SAbbA, DOmENEch, pROENçA, bOcãO E bETãO. cARRO ATOlADO pElA mARÉ ENchENDO NO mEiO DA pRAiA DO 2. hElmO cARvAlhO, piER, 1972. 3. pRAiA DA vilA, SAqUAREmA, 1970. 4. SURFiSTAS NA pEDRA DO ARpOA DOR, 1978. 1. SAbbA, DOmENEch, pROENçA, bOcãO E bETãO. cARRO ATOlADO pElA mARÉ ENchENDO NO mEiO DA pRAiA DO pERó, cAbO FRiO, 1970. 2. hElmO cARvAlhO, piER, 1972. 3. pRAiA DA vilA, SAqUAREmA, 1970. 4. SURFiSTAS NA pEDRA DO ARpOA Já houve um tempo em que os surfistas eram poucos e vagavam solitários pelo planeta. Nessas andanças, se o visual ‘indie’ não chamasse atenção, a prancha debaixo do braço certamente faria o serviço. Era bem comum todos os olhares convergirem em sua direção, curiosos por saber que ser era aquele. E que tábua é aquela que ele carrega? Estando sozinho, não restava outra maneira de se locomover, e mesmo de sobreviver, se não interagisse, se não tentasse falar a língua, se não fizesse amigos. Submergir na cultura local era vital pra se chegar às ondas, porque, lembrem, não se sabia onde elas estavam. Graças a isso voltávamos pra casa cheios de histórias exóticas e interessantes, e nós mesmos nos tornávamos seres exóticos e interessantes, trazendo pros amigos que não puderam ir, relatos, receitas e mesmo peças de roupa diferentes, que faziam olhos brilhar e cabeças se abrir. Assim como o sexo é uma parte fundamental dos relacionamentos, a mais importante até, o surf ocupa esse mesmo espaço nas trips. Mas surf não é tudo, assim como o sexo. Tem o carinho, amizade, respeito, as risadas, a cumplicidade, coisas que a gente sente e constrói. Viver só de putaria nos deixa vazios e incompletos. No surf é igual. Hoje em dia não temos mais tempo pra nada. Tudo tem que ser milimetricamente planejado, swell mapeado, contagem regressiva. Vivemos numa bolha e circulamos dentro dela por todo planeta. Nos aeroportos, nas conexões, nos quartos de hotel, nos restaurantes. É Facebook, Twitter, ipod, iphone, ipad, imac. Nosso mundo virtual é enorme, mas não temos mais interesse naquilo que acontece bem ao nosso lado. Estamos ocupados demais postando e lendo posts dos outros, assistindo filmes, ouvindo músicas. Ou trocando com os nossos iguais, vivendo dentro de um campo de força que nos isola. Tudo é feito pra minimizar nosso tempo de espera, nossa interação com a cultura local. No aeroporto, o cara com a placa com o seu nome escrito te leva pra van, que te leva pro hotel, que te leva pro barco, que te instala no resort, onde você vai socializar com os seus pares tomando uma gelada. Tudo tão vazio. A verdade é que tenho sentido uma falta enorme das trips nas surf trips de hoje. Porque por mais fundamental que o surf seja ele não é tudo nas viagens. Tem muito mais. Os haoles que viveram o Hawaii dos anos 60 experimentaram uma ilha que os que rumam pro North Shore de hoje não podem nem sonhar. Na década de 70, os brasileiros que pegaram o trem da morte pro Peru, e os que desceram de fusca pro Farol de Santa Marta, viveram coisas que nunca mais irão acontecer. Quem curtiu Bali nos anos 80, Mentawai, Nias e Desert Point nos anos 90, conheceu uma Indonésia que não existe mais. Eu já escrevi num outro texto que o lance era ficar rico pra surfar ondas melhores. Fato. Mas, por outro lado, de que adianta todo esse dinheiro se ele só consegue te comprar uma semana por ano num resort? Se você não se interessa pela língua, religião, cultura local, se não se interessa em trocar com as pessoas que vivem ali, sua passagem por aquela parte do planeta terá sido superficial e em pouco tempo não haverá mais nada pra se lembrar. E nós somos o produto das nossas experiências, das nossas memórias, daquilo que aprendemos quando estamos fora da bolha. E nesse sentido não poderia haver destino mais apropriado do que a África. África é o continente antibolha. Ali não tem zona de conforto nem campo de força. Ainda. Ali você ainda é um ser estranho numa terra diferente. O seu estereótipo ainda não foi assimilado e as pessoas ainda te olham curiosas. Querem saber quem você é e o que está fazendo ali. E, claro, que tábua é aquela que você carrega debaixo do braço. A África hoje é o Hawaii dos anos 60, o Peru dos 70, a Indonésia dos 80 e 90. E é muito bom que seja assim. A serra elétrica ao longe me desperta e me faz abrir a janela. Dou de cara com as crianças uniformizadas que sobem a rua pra ir à escola. Todas me dão bom dia sorrindo, lindas. O trajeto até o surf é exótico. À minha direita, vales, montanhas e vulcões. À minha esquerda, um terreno pedregoso e despenhadeiros que dão no Oceano Atlântico. No cardápio, duas direitas sem nome, que eu apelidei de ‘A Onda’ e ‘O Outro Pico’. A Onda mistura a parede de Bell’s Beach com o tubo do inside de Sunset Point. Uma direita longa e perfeita, com um tubão terminando num canal profundo. Betinho se machucou ali, levou sete pontos porque escolheu uma menor e não passou, sendo jogado nas pedras. Foram todos pro hospital. Fiquei surfando sozinho naquela praia desértica sem saber o que tinha acontecido. Séries e mais séries de dois metros e eu caindo solitário, escolhendo a que eu quisesse. Não, ninguém iria chegar. Não, não tinham 17 caras fazendo alongamento se preparando pra me azarar. Não, nenhum carro com cinco surfistas estacionou no alto do penhasco checando as ondas. Ninguém iria aparecer, como não apareceu. Nem naquele dia, nem em dia nenhum. Que sensação maravilhosa. Já não me lembrava mais como era sentir essa ‘não ansiedade’. Acho que a última vez foi na Libéria. E a anterior foi em Angola. África! Betinho é Alberto Castro. Ano passado fizemos duas viagens juntos. Sumatra e Sumba. Foi ele quem nos guiou e ao Jim Banks, com o Lambo, na bem sucedida caça às melhores ondas das Mentawai. Foi ele quem levou Luciano à Sikakap pra dar pontos no rosto, depois de uma pranchada. E foi ele quem foi reconhecido por boa parte da população da cidade. Já era tarde da noite, mesmo assim toda hora alguém vinha falar – “Bento! Apa kabar?”. Na Sumatra Beto vira Bento, e apa kabar significa ‘como vai’. Já Bento é o nome de batismo do filho do Beto com a Rafa, em homenagem às indescritíveis aventuras que o casal viveu na década de 90, navegando em traineiras arranjadas no porto, se alimentando de arroz, peixe quando conseguiam pescar, e muita onda boa sem crowd. As histórias desses sete anos da dupla são de arrepiar. Sentados na laje da casa africana, ficaram dividindo conosco aventuras que me deixaram arrepiado, e que mereciam livros e filmes. Acabaram casando e têm dois filhos. A estrada do surf provou serem feitos um para o outro. E agora, as atenções do Beto se voltam para a África. E a Rafa vem junto. Adorei. Preciso mesmo de parceiros. África é um continente imenso e intenso, e é sempre mais seguro viajar em dupla. Depois que Beto e Rafa voltaram pro Brasil e o mar baixou, pude explorar melhor ‘O Outro Pico’, que fica a cinco minutos de caminhada de ‘A Onda’. Na real, quando a série quebra na ponta de pedras do ‘O Outro Pico’ em alguns segundos essa mesma série vem bombar em‘A Onda’. São duas direitas perfeitas, só que ‘O Outro Pico’ é mais curta e intensa. Quase sempre double up com alguns degraus no drop, e uma baforada de despentear qualquer cabeleira. Fui ganhando confiança no drop, até ser atirado e amassado no fundo, o que me custou um rasgo no short e na perna. Nada grave, apenas um aviso. Tirando 1. SAbbA, DOmENEch, pROENçA, bOcãO E bETãO. cARRO ATOlADO pElA mARÉ ENchENDO NO mEiO DA pRAiA DO 2. hElmO cARvAlhO, piER, 1972. 3. pRAiA DA vilA, SAqUAREmA, 1970. 4. SURFiSTAS NA pEDRA DO ARpOADOR, 1978. 1. SAbbA, DOmENEch, pROENçA, bOcãO E bETãO. cARRO ATOlADO pElA mARÉ ENchENDO NO mEiO esse drop cabeludo, ‘O Outro Pico’ é um creme, com uma parede implorando pra ser espancada. Ondulações de norte predominam no final do ano, quando imperam as direitas. Mas as esquerdas são igualmente fantásticas, só que essa temporada começa em abril... Como na maior parte da África, os chineses também dominam o comércio local. Vendem toda sorte de porcaria plástica e roupas básicas. Pelo menos fiquei feliz em não ver ninguém fantasiado de surfista, nem uma sombra de surfwear. Turismo também não existe. Coisa difícil de encontrar hoje em dia. Se desligar da internet e caminhar pela vila e conversar com os simpáticos locais é obrigatório. As pessoas são pobres, simples, mas não miseráveis. E são extremamente educadas. Como a estrada é ruim e o barco que faria o trajeto da capital até a vila simplesmente não aparece há três semanas, o mercado está vazio de produtos e as poucas vendedoras conversam sem parar. Mas nada que a dinâmica local não resolva. Afinal, é preciso comer e viver. Algumas vezes por dia, mulheres e crianças batem à porta oferecendo, com um enorme sorriso, cestos com peixes e frutas, e até mesmo um pedaço de um porco que irão abater no dia seguinte. Os homens passam os dias em torno do tradicional tabuleiro da mancala, um jogo em que a sorte não existe e vence o melhor raciocínio lógico. As crianças brincam nas ruas, vazias de carros, enquanto os adultos conversam sentados ou deitados nas calcadas até altas horas. A bebida local é o grogue, uma espécie de cachaça produzida pela força do boi, e feita por encomenda nas montanhas. Depois que degustei um copinho de boas vindas na primeira noite com o vizinho, Mister Nice (era esse mesmo o seu nome, e ele era mesmo muito gente fina), e sentamos na calçada, uma espécie de varanda da sua casa, pra conversar, encomendei uma garrafa na hora. Por duas semanas, todos os dias depois do surf eu perguntava do meu grogue, e ele me respondia em tom de suspense bem humorado que ia ver. chegou no último dia. Parto sabendo de uma só coisa. Que preciso voltar. Que vou voltar.