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#11 | junho 2016 distribuição on-line gratuita Leonardo Wittmann Francesca Cricelli Livia Piccolo Rafael Elfe Philippe Wollney Elisa Andrade Buzzo 5 32 12 39 17 Clarissa Comin 26 46 Editorial 3 | Lista de autores publicados 87 Sobre as fotos 88 | Créditos e contato 90 Ana Salek 52 Anne Sexton em tradução de ensaio fotográfico de 59 75 Adelaide Ivánova & Rafael Mantovani Karine Moura a imagem de capa e as fotos ao longo da edição são de Kristiane Foltran J apão, século XIII. O zen floresce e nos abre os olhos para o agora. Mestre Dōgen deixa um poema: Flores na primavera cucos no verão a lua no outono neve gelada no inverno. De carona, uma nova Parênteses chega nos primeiros dias do inverno. Nos pegamos aqui com o olhar demorando sobre a fumaça que sobe do café, pensando no zen, nas belezas, no frio nos dedos do pé. Nessa sucessão dos dias. Nas estações que passam (que tempo louco, vou te contar). É conversa de elevador, mas também é poesia. É ver o mundo. Agradecemos às pessoas que dividiram conosco seus olhares. Nas próximas páginas, temos muitas maneiras de ver o mundo. Ainda em tempo (e atentos ao agora), reforçamos nossos discursos em favor da liberdade, da diversidade, da igualdade e da justiça. Aqui e agora estamos em luta. Fica nosso apoio à classe artística, que tanto faz pela plena democracia. A primavera um dia chega. - os editores Leonardo Wittmann À deriva I was born here and I’ll die here against my will I know it looks like I’m moving, but I’m standing still Every nerve in my body is so vacant and numb I can’t even remember what it was I came here to get away from – Bob Dylan, Not dark yet Apara a barba e sente a cicatriz à esquerda dos lábios. O acompanha há mais de um ano. Usa roupas velhas, rasgadas na gola e nos joelhos. As noites mal dormidas, a úlcera e o café amargo pela manhã pertencem a um conjunto que o define. Fita as olheiras no espelho. Anoitece. É hora, mais uma vez. 5 Abre a porta de metal e senta-se na cadeira em frente à loja de conveniências. Caminhões velozes rasgam a paisagem da longa estrada, mas nenhum estaciona para abastecer. Não se incomoda, em breve terá companhia. Avista as luzes da cidade distante e acende o último cigarro do maço. Ela sempre o criticara pelo fumo. Sorri. Baixa o olhar até as botas: a direita possui um furo na ponta, precisa tirar o pó do calçado quando se deita à noite, mas é uma boa marca. Ela comprará um novo par, calças e camisas também. Toca a cicatriz. Argumento nenhum explicará lutas em bares à beira de estradas. Joga o cigarro no chão e o pisoteia. A cidade longínqua escurece. O logotipo do posto, em néon amarelo, é a única fonte a iluminá-lo. Um caminhão passa, mas é outro que não precisa de gasolina. Cospe. Levanta-se da cadeira e vai até o meio da estrada. A brisa característica do horário o refresca. O combinado era na sexta-feira. Em alguma sexta-feira. Já passa da meia-noite. Tentará dormir. 6 Cadarços Os sapatos não estavam amarrados. Ainda não aprendera a fazer isso sozinho. Ele não contou ao homem que não os amarrava. Não fez o menor ruído. – William Faulkner, Luz em agosto A guarita de madeira em frente ao Precisa retornar, é quase hora da janta. Jantam arroz e carne. A mãe e o ho- lago decompõe-se mais a cada dia. Nin- O homem, agora de pé em frente à casa, mem conversam nos minutos iniciais, de- guém confia em seus alicerces podres, ex- veste uma camiseta preta e uma calça ras- pois se calam. Por vezes, ela fita o pequeno. ceto o menino. Senta-se no chão molha- gada no joelho direito. Até entrar, o meni- O outro não se vira nenhuma vez para ele. do onde é possível observar, pelas frestas no observa apenas as botas marrons. Durante a sobremesa, olha rápido da madeira, os pingos remanescentes da A mãe fuma sentada no sofá desbotado. para as duas pequenas cicatrizes que o chuva caírem na areia logo abaixo. Fecha – Fala com ele. – Não distingue se é uma visitante possui no lado esquerdo do pes- o último botão do casaco de lã cinza. ordem ou um pedido. – Ele tá na porta pra coço: resultado das brigas sobre as quais isso. a mãe, às vezes, comentava? Discussões, lutas em bares à beira de estradas, viagens sem direção, sem tele- Aperta os dedos do pé direito contra a sola. De pijama, anda até a caminhonete fonemas. É isto que sabe sobre o homem. A mãe dá uma tragada no cigarro bara- estacionada. O homem fuma na caçam- Sobre o homem que os deixou vivendo em to que não fumava há três meses. O meni- ba. Talvez tenha ouvido os passos atrás uma casa branca de três cômodos. Sobre o no olha, rápido, para a entrada: o homem dele, mas apenas olha para a ponta das homem que, agora, dorme no sofá verde continua em frente à porta aberta, de cos- botas. Ao contrário do que esperava o pe- desbotado comprado pela mãe com a eco- tas para os dois. queno, o homem não esboça reação al- Desabotoa o casaco cinza e vai até o quarto. guma depois. Dirige-se até o pai e puxa-o Olha para os sapatos: colocara os ca- De sua janela, observa a caminhonete pela camiseta preta. De alturas diferen- darços para dentro. Não sabe utilizá-los. O vermelha do visitante. Retira os sapatos e tes, olham-se. O menino revela o par de homem do sofá possui botas de cano curto, posiciona-se em frente à cama. Quer dor- sapatos na mão esquerda. marrons, que não precisam ser amarradas. mir, e não jantar. Quando acordar, talvez – Me ensina a amarrar? Talvez não saiba fazê-lo também. o homem não esteja mais lá. nomia de dois meses de salário. 7 Luzes siberianas Anotação 36 W. se debruça sobre as anotações que prometera fazer durante um ano. Ele não tem um assunto fixo, uma linha a seguir. Naquela noite, decide falar sobre o pai de seu pai. Ele tem uma foto do pai de seu pai na mesa do escritório: um homem de meia-idade nas areias de uma praia, desenhando um círculo com os pés e segurando, na mão esquerda, aquilo que parece ser uma carteira. W. procura por palavras repletas de significado, que soem inteligentes, para discorrer sobre a foto. Não escreve uma linha sequer. Anotação 37 Faz uma nova tentativa na noite seguinte. Quer escrever algo que seu pai considere de valor, não aquela “bobagem de ficção científica”. W. decide: vai escrever sobre fracasso e renascimento. Mas a obviedade das suas ideias o desanima. Folheia um dos livros que usa como auxílio: diz R.B.: “desejando limpar a minha vida de todos esses restos de fracasso”. Mas W. não é R.B. Se o pai de seu pai fosse o avô de R.B., um texto literário de valor já teria sido escrito. Deita-se. Anotação 38 Durante o dia, uma fagulha: o pai de seu pai dançando com uma cadeira na sala de casa, embalado pela melodia de O terceiro homem (aquele com Orson Welles). Como era mesmo a música? Cogita ligar para o pai e perguntar, mas não o faz. Anotação 39 W. não quer escrever hoje. Ele veste seu abrigo esportivo (calça, blusão, tênis, touca e colete) e sai para correr na noite de Nova York. Percorre boa parte do Greenwich Village, toma um café e volta para casa. Apesar do exercício, W. não sente sono. Toma uma ducha e decide rearranjar as estantes de livros. São seis horas da manhã e ele ainda está ocupado. Anotação 40 Ele pensa em escrever algo sobre a livraria, ainda ativa, em D. A livraria que carrega o sobrenome da família. Volta a encarar a foto e desiste. Agora, tenta extrair toda a nostalgia daquela imagem. Mas é impossível: a nostalgia “real” pertence apenas ao seu pai. A sua é ficcional. Aqui, pai, escrevi sobre a foto do teu pai, que mal conheci, e de toda a saudade que sinto dele. W. não tem filhos. Naquela noite, porém, ele bate uma foto de si mesmo, em frente à janela do apartamento, para presentear o futuro filho(a). Uma nostalgia já agendada. 8 Anotação 41 Outra fagulha: W., aos onze anos, levando, num restaurante ao ar livre em D., a janta para o pai de seu pai. Isso é para você, o pai lhe instruiu a dizer. Mas W. não era mais familiarizado com aquela língua estrangeira, e não sabe se as suas palavras fizeram algum sentido. Tenta transcrever a fagulha, mas é em vão. Dorme. Anotação 42 Parece que o pai de seu pai foi para a Sibéria uma vez. W. considera escrever uma novela sobre um andarilho na neve, que procura por refúgio tendo apenas uma luz distante como referência. Para sua surpresa, ele escreve as duas páginas iniciais. Anotação 43 Mais três páginas. Anotação 44 Nenhuma página. Anotação 45 Um parágrafo, apagado mais tarde. W. ri. Decide voltar às anotações sobre o pai de seu pai. 9 Anotação 46 A terceira fagulha: o chapéu de palha do pai de seu pai. W. chegou a usá-lo, mas foi repreendido: não se usa aquilo que vamos presentear. Ele faz uma última tentativa antes de abandonar as anotações de vez. Busca por uma frase que sintetize tudo aquilo que não escreveu. Não a encontra. W. percebe: é ele o andarilho que procura uma luz (imaginária?) na Sibéria. Anotação 47 Na manhã seguinte, ao folhear um livro de P.A.: “Then he writes. It was. It will never be again”. É doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS, onde também realizou o seu mestrado. Tem contos publicados na antologia Desamordaçados, com organização de Luiz Antonio de Assis Brasil. Dirigiu e roteirizou três curtas-metragens: O boxeador (RBSTV, 2009), Trajeto (2011) e Os anteriores (2015), este último exibido em festivais de cinema nos E.U.A. 10 É uma longa estrada repatriar a alma Há que se fazer o silêncio para ouvir os dedos Francesca Cricelli sobre o velho piano da ferrovia é uma longa estrada repatriar a alma a rota é na medula descida íngreme ou subida sem estanque – demolir para construir e não fugir do terror sem nome de não ser contido apanhado, compreendido é preciso seguir adiante no fogo e sem ar e se a dor perdurar é preciso ser destemido para espelhar o rosto em outros olhos distantes como num espelho. 12 Azul Há algo triste no azul dos teus olhos, algo perdido e infinito neste azul dos teus olhos, algo de azul no triste dos teus olhos. Há algo de teus olhos neste triste azul, algo perdido no infinito do azul dos teus olhos, algo infinito no azul perdido dos teus olhos. Há algo azul no infinito triste dos teus olhos perdidos. Remover do corpo as crostas do silêncio No se puede contemplar sin pasión. – Jorge Luis Borges Remover do corpo as crostas do silêncio tudo que é vivo e exposto grita e gira, pela avenida a dor se junta ao rumor. Para chegar à clarividência procura-se um ritmo, qualquer um, que descompasse as artérias – a vida enverga sobre a avenida no peito só a voragem do eterno, a fração do abalo sísmico, desenha na mão cataclismos. Catedrais Força sutil e estrondosa a nossa, catedral erguida no peito vazio – no silêncio dos olhos, sós e incessantes construímos um penhasco, ponte de uma dor a outra. Como todo ser vivo, hoje estamos cada um com seu vício. 14 É o nascer do dia que rasga o peito dos amantes É o nascer do dia que rasga o peito dos amantes, como o verde que colore os olhos, na mesma diagonal, o desenho de um milagre. Plantar na terra pés com o coração e não ir mais embora agora que colocaste o mar no céu. Enquanto na garganta brota-me a língua dos antepassados navegadores meu olhar permanece no horizonte. Francesca Cricelli, tradutora, é doutoranda em Estudos da Tradução (USP). Organizou e traduziu a correspondência entre Giuseppe Ungaretti e Edoardo Bizzarri (tradutor de Guimarães Rosa para o italiano) entre 1966 e 1968. É curadora das cartas de amor de Giuseppe Ungaretti para Bruna Bianco (Mondadori, 2016). Traduziu Mario Luzi, Pier Paolo Pasolini, Giuseppe Ungaretti, Giacomo Leopardi, Jacopone da Todi. É tradutora dos psicanalistas italianos Vincenzo Bonaminio (Imago, 2010) e Franco Borgono. 15 Livia Piccolo O aplauso aos animais Nada podia tê-la preparadopara os acontecimentos da semana. Nem a experiência, nem os livros, nem o planejamento. Ela trabalha no Teatro Municipal do Rio de Janeiro há três anos, faz visitas guiadas em português e inglês. Sempre chega pontualmente com os cabelos limpos e arrumados. A altura atípica para os padrões brasileiros, um metro e oitenta, a obriga a usar sandálias rasteiras e sapatilhas desde a adolescência. Salto alto seria uma extravagância que não combina com seu temperamento. Ela se descreve como alguém paciente. Seu plano principal, por ora, é juntar algum dinheiro para fazer uma viagem a Portugal. Foi na banalidade daquela segunda-feira que a vegetação subiu. Segundas-feiras pinicam de forma ardida gente do mundo todo. Ela notou que a vegetação estava mais exuberante do que de costume. O canteiro da entrada lateral do teatro exibia folhas e galhos crescendo em várias direções, ávidos. “Ou eu nunca prestei muita atenção no canteiro ou a primavera está com pressa”, pensou enquanto terminava o copo de café comprado na esquina. 17 Hoje são oito visitas, todas em inglês, em sequência. Uma os lábios rosas. Seu cabelo é ruivo tingido, usado de lado. Joyce segunda-feira e tanto. Será exaustivo, o sol está muito forte, e não se perturba com os galhos que crescem em várias direções. mesmo com o ar condicionado que refresca os cômodos, os pés Durante a tarde eles inclusive começaram lentamente a raste- inchados e a viscosidade do suor no corpo deixam tudo mais di- jar pelo chão, Marilena notou. Mas com esse calor, vai saber, vai fícil. De manhã ela cedeu o lugar para uma senhora no ônibus, ver as plantas precisam de mais espaço também. não conseguiu sentar. O trajeto de quarenta minutos foi mais Marilena toma vários copos de água antes da última visita cansativo do que costuma ser. A cada dia o fígado, os pulmões da manhã. O primeiro grupo foi composto em sua maioria por e os ossos de Marilena se cansam mais. Não é a fadiga da idade. casais de meia idade alemães e italianos. Com os americanos Ela é jovem. É a fadiga de bilhões de anos acumulados. Anos ela teve que pedir para o filho adolescente de um casal não usar vividos por pessoas de outros tempos, em outras guerras. É a es- flash com o celular. É normal. Sempre tem alguém que não pres- tafa dos pássaros que voam quilômetros. ta atenção nos informes iniciais. O terceiro grupo tinha alguns Uma vez ela se perguntou se a cidade se cansava como ela. brasileiros. Há também sempre o visitante piadista. Além, é cla- Marilena gosta de trabalhar no Teatro Municipal do Rio de ro, daquele que se esforça para demonstrar conhecimento supe- Janeiro. Conseguiu a vaga enquanto estava na faculdade de his- rior ao do guia com um comentário sobre o estilo renascentista tória e, nos últimos dois anos, depois de formada, dedicou-se do edifício e seu revestimento de mármore europeu. Também é com afinco às aulas de inglês. Hoje é a guia mais procurada para normal. Ela não se incomoda. De inesperado mesmo só os tais as visitas bilíngues pois responde às dúvidas do público com galhos que adentram o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. uma segurança que só cresce. A cidade está cheia de turistas Todos estão na varanda do primeiro andar, e enquanto Ma- e Marilena está cheia de trabalho. Nas ruas é engraçado olhar rilena fala do empenho do dramaturgo Artur de Azevedo na grupos de estrangeiros carregando sacolas de Havaianas. Em construção do teatro, ela se distrai rapidamente com a visão do suas cidades, com os pés vestidos, que trajetos eles percorrem andar térreo. Alguns degraus da escada principal estão verdes, às segundas-feiras? Quando faz esse tipo de pergunta ela até se cobertos por um material que parece grama. “Por volta da déca- esquece do cansaço dos bilhões de anos. Da estafa bilionária. da de 1880, diante da decadência do teatro no Rio de Janeiro, o dramaturgo acreditou que a criação de uma companhia teatral “Acho que esqueceram de podar o canteiro lateral. Você viu como subvencionada pela prefeitura municipal resolveria o proble- ele está cheio? ma.” Neste momento tem dificuldade em continuar o raciocí- Não reparei. Vai ver o jardineiro foi demitido.” nio. A imagem da escada forrada pela grama é algo inteiramen- Joyce não viu nada de diferente no canteiro. Ela está com um te novo. Mas o fato é que já repetiu as informações tantas vezes vestido tangerina que mostra as saliências dos braços e ressalta que um botão de conversa automática se acende em sua cabeça. 18 “Em 1903 a gestão do prefeito Francisco Pe- dessa cidade hoje!”. Não dá para acredi- fadiga dos pássaros. Fora que ela nunca reira Passos transformou inteiramente a tar, mas Joyce sabe se divertir até com o conheceu ninguém pela Internet. então capital do país, com a demolição de forno atmosférico. “Ainda essa semana No dia seguinte Marilena toma um antigos cortiços da região central e a ex- vou cortar os cabelos. Decidi”, diz Marile- susto. As plantas do canteiro desenvolve- pulsão de seus moradores, que passaram na em voz alta, meio sozinha, meio para ram folhagens que são verdadeiras gar- a habitar os morros da cidade.” Joyce, que já se livrou do turista america- ras. A entrada lateral está inteira tomada No final da visita, um americano per- no e está colocando a bolsa nos ombros e os tons de verde variam entre o mais su- gunta a Marilena algo sobre caipirinhas. enquanto abre a porta do banheiro cha- ave e o mais agressivo. A vegetação inva- Como já está na hora do seu almoço, ela mando por Marilena. de o foyer. Ramos com espinhos rompem chama Joyce para responder a dúvida do O que precisa mesmo ser cortado é o ônix do chão e sobem pelos corrimões e visitante, despistando- o gentilmente. O o jardim lateral do Teatro Municipal do pelas paredes, reivindicando espaço. Não americano parece decepcionado. Joyce Rio de Janeiro. Antes dos cabelos de Ma- se vê mais nada do mosaico que é a pri- não tem o rigor de Marilena ao falar da rilena as tesouras precisam alcançar a meira parada da visita guiada de Marile- história da cidade e do teatro, mas tem vegetação. Folhas de tamanhos variados na. Agora ela terá que improvisar, o que mais jogo de cintura em várias situações agora estão se movimentando e cobrindo a deixa um pouco ansiosa. As paredes imprevisíveis. os azulejos do hall de entrada. históricas do Teatro Municipal do Rio de Ela precisa se sentar por cinco minu- “Hoje é dia de nhoque mais barato Janeiro estão sendo cobertas pela mata, e tos sozinha em algum lugar e colocar os na cantina, vamos?”, Joyce pergunta a o que Marilena sabe fazer com excelên- pés para cima. Vai para o banheiro, onde Marilena. cia é falar de história, e não de plantas e o ar condicionado é sempre gelado. Ela cogita cortar os longos cabelos castanhos para suportar melhor o calor. Apesar de ter nascido no Rio de Janeiro, Marilena Pode ser. Vem cá, você viu aquelas folhas que estão entrando no hall? Ah! Esse matagal todo daqui a pouco sossega.” matos. Mas precisa das paredes! Sem elas Marilena perde o chão. Joyce diz: “vai dar tudo certo, não se preocupe”. Colado ao corpo dela está um vestido cor de beterraba. Joyce já fez cursos não se acostuma ao clima. Joyce está sempre suando sob seus vestidos coloridos, Há vários dias Joyce só fala do irlandês para se tornar atriz. Chegou a fazer alguns mas parece mais adaptada. A previsibi- que conheceu na internet. A certa altu- testes de publicidade, mas nunca foi apro- lidade das segundas-feiras traz consigo ra Marilena tem vontade de bocejar. Não vada em nenhum deles. Uma vez ela preci- os suores e as cores de Joyce. “Desempa- por desprezo à conversa, pelo contrário. É sou dançar funk com um bebê no colo en- ta o caminho porque ligaram o maçarico o calor e o cansaço de bilhões de anos, a quanto tomava um refrigerante e falava: 19 “a refrescância que você sempre sonhou”. Joyce é do tipo de pessoa que não se pertur- Talvez a ideia de Joyce seja mesmo boa. Relaxar. do Rio de Janeiro solta uma seiva translúcida. Os espelhos, sempre límpidos com ba com aquilo que não faz sentido. Talvez a Hoje é quarta-feira e o cheiro da mata a rigorosa faxina diária, estão comple- vegetação que está engolindo o Teatro Mu- entra pelas narinas e preenche todo o tamente embaçados. Antes de começar nicipal do Rio de Janeiro pareça dócil aos pulmão de Marilena durante sua última suas visitas Marilena caminha a esmo olhos de Joyce. Na vida acontecem tantas visita, que parece durar horas. Às quar- pelos cômodos. Por causa do calor da se- surpresas. O matagal não seria uma delas? tas-feiras é dia de ensaio da orquestra. mana ela veste sandálias. A cada passo Há notícias de que no Teatro Munici- Ela entra com os visitantes na sala de seus dedos sentem o frescor da vegetação. pal de São Paulo e no de Manaus a vege- espetáculos e assim que todos estão aco- Precisa desviar das centopeias. Não se vê tação, vândala e incontrolável, já cobre as modados pega o celular para ler mais al- a concretude. O mármore gelado agora pilastras e todas as paredes da constru- gumas notícias. Em Manaus alguns ani- está revestido por material vegetal sobre ção. Trata-se de um fenômeno nacional. mais circulam na escadaria. Répteis. Os o qual Marilena não sabe absolutamente “Você não pensa o que pode acontecer turistas continuam a frequentar o Teatro nada. Uma vez viu um documentário na Joyce? Eu sonhei que as samambaias nas- Municipal do Rio de Janeiro, e não se per- televisão sobre a chegada dos vegetais ao ciam na pia da cozinha de casa, pelo ralo. turbam com a umidade e o barulho dos mundo terrestre. No começo as plantas Eu abria a torneira e só saía formiga.” insetos. Marilena enxerga formas nas moravam na água. Foi preciso uma luta “Eu não penso muito no que pode folhas, algumas parecem pré-históricas. épica para que os vegetais conseguissem dar errado. Não penso muito no futuro. Há indícios de verde também no teto. Os sair da água para a terra. Essa mudan- Acho que sou assim desde pequena”, Joy- lustres não funcionam mais. Enquanto ça só foi possível depois que as plantas ce completa enquanto suga o canudinho os músicos ensaiam e os visitantes apro- desenvolveram raízes. Na água elas não amarelo do suco de latinha diet. Elas ter- veitam o veludo das poltronas ela observa tinham raízes. Foram muitas etapas de minam de almoçar. detalhadamente as pilastras de mármore transição. Em São Paulo e em Manaus o “Em São Paulo noticiaram a profusão rosa, tão estáveis. Folhas minúsculas ven- mundo vegetal, com constância espar- das begônias e bromélias. Eu ainda não cem a gravidade e começam a cobrir as tana, já tomou todo o espaço. Diversos vi nenhuma flor aqui.” pilastras que separam os camarotes. Elas tipos de plantas se misturam no Teatro nascem abaixo do chão, onde começa o Municipal do Rio de Janeiro. Onde havia cansaço de bilhões de anos. as estátuas de bronze representando a “Olha, porque você não aproveita que hoje você vai poder sair mais cedo e vai Dança e a Poesia, agora existe uma espé- no cinema? Dá uma relaxada na cabeça, vai dar uma volta.” Na quinta-feira o teto do Teatro Municipal cie de bambuzal agigantado. Ela estica os 20 braços e alcança uma folha meio verde e excesso de papel de carta rosa na infân- crescimento das plantas. Biólogos, cien- vermelha que pende do teto. Por ser alta cia. Cada um precisa praticar sua peque- tistas políticos, artistas e autoridades do Marilena alcança algumas das plantas na crueldade diária, e ela não conseguia poder público foram convocados a fa- que descem em direção ao chão, criando identificar qual seria a de Joyce. Algumas zerem suas análises sobre o que ficou uma cortina a cada hora mais espessa. vezes Marilena fingiu dormir no ônibus conhecido como “O Escândalo Vegetal.” para não ter que dar o assento para mu- Houve interesse de acionistas interna- “As visitas não estão sendo desmarcadas, lheres grávidas nem pessoas de terceira cionais pelo que poderia ser encontrado então eu faço o mesmo trajeto e digo as idade. Mas hoje ela não nega que ir comer nas várias dependências dos novos tea- mesmas coisas “ Marilena diz enquanto nhoque com a companheira de trabalho tros. Novas espécies, compostos vegetais pica a folha nas mãos suadas. acaba sendo quase sempre um diverti- para medicamentos, alguma cura. “Mari, não fica tão preocupada. Nem tudo é definitivo.” Como a obviedade pode ser tão mento. É bom. Alivia o cansaço ancestral O fruto foi incorporado pela mata. de Marilena. Sim, é uma certeza: ela tem Joyce, fruto suculento e atrevido, se afeto verdadeiro por Joyce. entregou ao tato e às pupilas de um vi- E é na sexta-feira que Marilena nota o sitante anônimo. Ou talvez aos animais, contraste de Joyce na vegetação densa. O que na semana seguinte já se apodera- Marilena gosta de almoçar com Joyce. Ela vestido colorido, os lábios com batom, os vam de todos os espaços do Teatro Muni- é simpática e sorri sem falsidade. Ma- cabelos ruivos. cipal do Rio de Janeiro. Macacos, araras, perturbadora? rilena sente o cheiro doce do sorriso da É como se Joyce fosse um fruto. tucanos, cobras. Sem moderação Joyce amiga e não se incomoda com o “bom dia, Talvez seja esse o motivo então. Do desapareceu. gente!!!!!” que ela posta todos os dias no desaparecimento. Na semana seguinte, Marilena sofre com o calor, mas con- Facebook. Desde a infância Joyce mora quando todos os Teatros Municipais das tinua a realizar as visitas guiadas. Na com a mãe, uma costureira habilidosa cidades do país foram definitivamente segunda- feira após o desaparecimento que já fez alguns figurinos das óperas tomados pela densa floresta que começou de Joyce foram duas visitas em português que se apresentam no Teatro Municipal. a se espraiar a partir dos inofensivos can- e uma em inglês. O domínio excelente do Ela convenceu a mãe a adotarem um gato teiros decorativos, Joyce não está mais lá. inglês trará uma promoção num futuro cor de caramelo, exaustivamente fotogra- Durante o final de semana as autorida- próximo. fado pelo celular. Já houve vezes em que des nacionais e os principais jornais do Marilena pensou em Joyce como uma país fizeram uma cobertura incansável mistura de otimismo mal direcionado e do fenômeno, quando notou-se o pico de 21 Geração Formidável A alguém foi feita uma pergunta sobre os dias que passam. Houve também quem respondesse que o mundo é uma mo- Uma espécie de questão de vestibular. O assunto? O Mundo. chila que pode ter três destinos: ir para a costureira, ser rouba- Houve quem respondesse que “as crianças existem, nascem da ou ser esquecida em uma estação de metrô. Uma escola de aqui ou no Vietnã, nos livros e no amanhã.” O mundo são encadeamentos de formas. Um apartamento vazio, mais uma releitura de Borges, o cheiro da garoa no festival de música a céu idiomas falida e uma mãe que chora na Palestina. Pode ser um garoto na favela que compõe funk e por acaso escuta Bach, e gosta. aberto. Pode ser um bêbado na calçada, em diagonal. Uma sopa É um garoto em outra favela que quer usar salto alto, e usa. apimentada, pessoas endividadas, uma ex-atriz dona de uma É fazer uma coisa já pensando na seguinte. agência de príncipes e princesas para festas de aniversário. É o Google Earth. Pode ser os oito minutos que a luz do sol demora para chegar O mundo são processos de reparação. até a Terra, ou a ideia de que a cabeça de cada um é o colapso de E quando as palavras entram em pânico. cada um. Houve finalmente quem respondesse que o mundo é um po- Pode ser um conto sobre um mergulhador, um astrônomo e um neurocirurgião. O mundo é uma coleção de selos e um homem que perde sua crueldade ao longo da vida. É uma repetida notícia de bombardeio. É uma mulher grisalha que destila a saudade de Deus todas as noites, na mesma oração. É o futuro da China. liedro. Ou uma notícia antiga, como por exemplo aquela em que Mike Tyson arrancou a orelha de Holyfield, em pleno ringue. E depois de tudo, houve a resposta: o Mundo é uma canção estranha com a expressão cordão umbilical. Zona Azul Sempre que encontra uma ambulância ela não consegue evitar. O pensamento começa a traçar labirintos. um retorno antes do pedágio. “Como eu ia pagar o pedágio?”, ela pensa. Estava sem nenhum dinheiro na carteira, só com cartão. Como Silvia pode se perder tanto, e tão gratuitamente? As veias da cidade por onde ela se perde sempre a condu- Quem está dentro? Talvez um pai que não vê o filho há mais zem para suas próprias vias, é inevitável. Uma vez, na faculdade, de dois anos e teve um infarto. Talvez uma avó viúva que há um dos exercícios da aula de criação era escrever uma carta a si muito tempo tem os ossos e a vista cansada. É o terceiro tombo mesma, dali a 10 anos. Era preciso se imaginar no futuro. Silvia da avó. A família quer vender o imóvel e colocá-la num apar- não conseguiu, ficou parada na frente do papel, assustada como tamento menor, mas ela recusa, quer ficar perto das paredes um filhote de pássaro molhado. A partir dali que têm as mesmas lembranças e que são tão elegantemente Silvia passou a admirar as pessoas que conseguem imaginar silenciosas. Ou não. Dentro da ambulância está uma jovem de 21 a si próprias. Falta pouco para chegar os tais dez anos futuros anos que faz faculdade de odontologia, tem pedra no rim, sem- que naquele dia não Silvia não pôde ver. “Daqui a pouco estarei pre sorri nas fotos e toma ecstasy nas festas que vai toda semana. nessa zona que não pude imaginar’’ ela pensa enquanto obser- O carro atrás buzina. va o mar de carros. O celular está sem bateria e ela esqueceu o carregador em Silvia não é o tipo de pessoa que diz amar seu trabalho. Nun- casa. Justo quando Silvia mais precisa. “Tenho que trocar o pla- ca teve nenhuma grande desavença, não cruza com pessoas es- no do celular. Preciso de um plano com mais internet, pecialmente inspiradoras e não ganha mal nem bem. E também internet ilimitada”, ela pensa. Algo que cairia bem, além da não se casou. A última relação durou quatro anos, o último sob internet, seria paciência ilimitada, isso sim. Para aguentar as o mesmo teto. Não houve gatos adotados nem briga de despedi- buzinas da cidade e da sua cabeça. da. Nesta história ela reclama do celular, mas Silvia não é das Silvia está parada no trânsito de algum grande centro urba- mais reclamonas. Está em forma sem fazer regime e tem os ca- no. Cada dia mais iguais esses aglomerados de gente e concreto. belos longos e sem tingimento. Já disseram que tem pernas bo- Silvia nunca foi paciente, mas já foi mais confiante. Neste mo- nitas. Na falta de imaginação de Silvia, há dez anos, existia algo mento os carros se sufocam a perder de vista e a ambulância sai diferente no futuro, mais espaçoso. Silvia fará 32 anos e de vez da garagem do prédio com a sirene ardida em alto volume. Ela em quando usa a expressão ‘minha geração’. A verdade é que vai perder o jantar de aniversário da amiga. ela nunca parou para pensar exatamente do que é feita uma Hoje foi a primeira vez que Silvia foi para este lado da cidade, geração. De fatos políticos e econômicos? De casas com a arqui- está a mais de 20 km de casa. A reunião acabou tarde, calculou tetura similar? De crianças vidradas no mesmo programa de mal o tempo, se perdeu na saída e pegou a estrada. Por sorte havia televisão? Da morte de Ayrton Senna? Do topo da página até este 23 momento o trânsito não andou, os carros brigam e se misturam aos arranha-céus. Provavelmente dentro deles deve existir um jovem que corre muitos quilômetros toda semana no parque e que ganha dinheiro no mercado financeiro, Silvia pensa. Ela mora no décimo terceiro andar, sempre viveu em apartamento. É normal acordar no meio da noite pensando que seus pés estão suspensos. Abaixo dos tacos imagina o ar e a queda até o chão. “Estamos subindo, subindo, subindo. Um dia vai dar pra encontrar um anjo” era algo que Silvia pensava quando criança, dentro do elevador. “A esta altura do campeonato o anjo deve estar com rinite”, ela diz em volta alta no carro. Silvia ri da lembrança. Pela primeira vez ela se indaga: devo me sentir jovem ou não? Quando chegar em casa vai ligar o celular e explicar toda a situação para a amiga. Este é um aniversário que Silvia não achou que iria perder. Além da festa e do caminho de casa talvez Silvia tenha perdido alguma coisa que nunca chegou a conhecer. Livia Piccolo é atriz, performer e preparadora vocal formada pela ECA/USP (2009), onde também realizou sua pesquisa de mestrado na área de performance da palavra (2013). Tem interesse pelas palavras tanto no âmbito narrativo quanto no sonoro e visual. Após estudar literatura contemporânea nos cursos livres do escritor Cadão Volpato (2014 e 2015), trabalha atualmente em seu primeiro livro de contos. 24 nebulosa nº 4 Sonho de viver uma pantomima. Na Califórnia dos meus vinte anos, de artista sem passaporte ou asfalto sob os pés, corria um ruído sintetizante; enquanto por aí a febre nacional ardia arroubos de liberdade ainda que tardia. Do outro lado do mundo fitas K-7 confiavam minhas agonias ao teu ouvido, – bem armado contra ilusões, mas cioso de perigos. Sempre que eu te lembrava invadia-me o espanto da pergunta tímida: “insetos dormem?”. Queria ter resposta, embarque sem escalas (última chamada para o voo com destino a “desfaleço-em-seus-braços”). Queria deitar fora essa verborragia piegas. “Quantas vezes você consegue repetir seu nome, e depois o meu, em frente ao espelho, sem explodir em risos ou lágrimas”? Isso foi dias depois de você ter arrancado os sisos. Cuidei teus hematomas e colecionei bolsas de gelo no compartimento inferior de uma ge- Clarissa Comin ladeira bege, cujo modelo saiu de linha. ’73: última vez que apanhei do meu irmão mais velho. Doeu. Chorei. Deixei passar. Anos depois foi internado, amarrado de cabeça para baixo, banhos medicinais, choques, hipnose (quem não sabia?). Meus pais eram uma escultura de sal e silêncio, eu não ousava perguntar, e as roupas contorcidas no quintal pediam socorro. No jornal os juros subiam com gosto, saudades de jantar no Píer 4. Fazia a janela de lousa e ensaiava o 26 manifesto-do-amor-sem-volta. O cachorro não corre mais atrás do carteiro. vivido. sono. Despertar é sempre ambíguo: flu- Andava de um lado para o outro, afun- tuo um desconhecido, esfumaçando-se Hoje eu sei. dando os pés num pântano concreto, esti- pela força do piscar. Nas línguas apren- Com você o tempo era relógio surre- lhaços e espinhos do fundo do mar. Qua- didas fascinavam-me as diferenças en- alista e o que restou após sua partida fo- se nenhum ruído e meu peito palpitava tre cochilar, dormitar, deitar, despertar, ram números fracionados. A perfuração até as pálpebras. A ânsia da querência se acordar, levantar. dos segundos cerzia-me pés de galinha. desfazia em sustos. Não acordo mais. Nesse tempo dedicavam-me condolên- Comecei a pensar as pessoas na pri- Fico olhando esse quadro branco, es- cias, servidas em páginas amareladas, A2 meira do singular. Colecionei canetas e trangeiro, cheio de bandeirinhas e selos ou A3. Obrigava-me a preenchê-las até a papelotes multicores, desenhei manda- de viagem. Na tua casa tudo cheira ao borda direita – respiro de 0,5 cm nas late- las, inventei um parente morto nas trin- contrário e esse desterro me conforta às rais. Finda a lida abria a correspondên- cheiras, mordi a língua e calei. O vento avessas. Esse silêncio tantas vezes sutu- cia alheia, as tears go by, e me assustava encanado arde-me a garganta, não su- rado por conversas: éramos a linha e a com predições, confissões e excesso de porto esse calor. Todavia era inverno lá agulha da fábula romanesca. anúncios. Uma tormenta de lágrimas e em cima e nenhuma perspectiva do glo- mamãe passava alvoroçada com malas e bo desgirar. Não espero mais. As luzes se despedem e os barcos partem deixando espu- caixas. A estação da luz é para onde todos Quarenta e nove lances de escada. Sé- ma branca e caudalosa para trás. Aban- os esquimós desejam ir e agora acumula timo andar e seus intertítulos: campa- donar o navio: poetas e crianças primeiro. pedidos de socorro, triturados pelos trens. nhia, bom dia, roçar de ombros inespe- Acordei embriagada de olheiras, dis- rado, olhos pregados na varanda (a vista posição artificial. É cedo e preciso passar Em 2072 não estaremos mais aqui. E se es- daqui é privilegiada, minha filha!) e um as folhas a limpo. tivermos? Olharei comovida para a celulo- berreiro aberto no quartinho dos fundos. se imantada de tinta alemã, caríssima por Mesmo se desgirassem o globo, sempre causa dos impostos, e cantarei, de praxe, essa bonomia raivosa. cantigas de lembrar, assim como em ’76 o fizera na religiosa apresentação natalina. Será que ela tem uma caderneta com os nossos nomes? Virginia me irrita com músicas sobre demônio, fogo e sexo, variações. Fecho a página e lembro o pesadelo A despeito do que há no fim, alguém deve colocá-las para dormir. Que horas são? Para onde estão me levando? Encho as mãos em conchas de espasmos, durmo dois dias sem saber as coordenadas da cama, 1,60cm por 40cm, até levar aos olhos as mãos impregnadas de 27 das 7h às 17h Das 14h às 17h Oh!... Lê Philippe Djian, embora isso faça mal à sua saúde. Troca lâmpadas funcionando por outras queimadas, solavanco estático-racional, pulsão dos pés aos cabelos. Pensa a cena para mais tarde. Das 13h às 17h Prossegue a leitura, alternando com: “je suis comme le roi d’un pays pluvieux” Almoça colheres, spoons, facas e tenedores. Banha-se de pias, tapetes, toalhas e secadores. Enche os dedos de tomadas (viciada em choques). Das 10h às 17h Djian, Quintane, Beauvoir, Dumas, Montaigne numa esteira. Refeições da pensão burguesa: só para os chatos. Do jardinzinho a mão nodosa arranca pontos pretos, traças, raízes e espetos. Das 7h às 17h A Cena: o almoço as mãos as estrelas o corte Sem Bremen Um moço sem braço deseja ir a Bremen e assim começa uma grande his- o ecossistema em miniatura). varada e ninguém ousou interrompê-lo. Partimos. Como não havia intérprete que desse Partiu o projétil kamikaze e sua re- conta do recado, esperaram hipnotizados vanche prometida. o fim do parlatório. Foi notícia, fuxico, riso, pito, troça, es- Todavia, não escapou do procedimen- Bremen, Brema, Bremeno, Brémy, bórnia, concórdia, diz que diz do bobs da to padrão. Aqui não havia exceção, a lei Βρέμη, Бре́мен, ब्रेमेन, ブレーメン e variados. vizinha até o projeto de lei barrado pela era para todos. Despiu-se a contragosto. A despeito das pronúncias impensáveis, justiça – amplos direitos de abortar. De Trazia uma ave de rapina tatuada no toco registra apenas um endereço: 53° 4’ 33” N todo modo, nosso povo era de um con- esquerdo e despertou os fetiches do moço 8° 48’ 27” E. tentamento sem tamanho. Não tanto por metido a brigadeiro-bossa. A cocagem O mapa da Alemanha assemelha-se sermos sinceros mas porque a convivên- impertinente fez o moço sentir-se viola- a um protozoário de pés falsos (não fla- cia com o moço – alto, branco, brasileiro do, feito brinquedo novo fora de caixa. gelado), desses que a gente experimenta nato e de ascendência birmanesa – havia Seguiu-se nova enxurrada cacofônica. na microscopia escolar. Dependendo da se tornado insustentável e vinha prejudi- Um molho de palavras atropelando perspectiva, Bremen pode ser tanto va- cando o crescimento do país. tória. cúolo contrátil como pulsátil. Berlin, invariavelmente, é o núcleo. Será que ele consegue abraçar esta oportunidade? dialetos menores – cerzidores de cânhamo precisam voltar para casa e não têm dinheiro, uma família de camponeses No outono de 1943 foi inaugurado o teve os filhos degolados no alojamento Com um gênio difícil, exortava os subcampo Bremen-Farge – filial de um para refugiados – mas ele é imenso e ocu- amigos ao ódio. No saguão central, às outro notório, Neuengamme, em Ham- pa mais espaço que o longo caminho tra- 14:30, ninguém fez conta da despedida burgo – onde dr. Heissmeyer brincou de çado até aqui. Ele é intenso e esbravejava. histérica: maldizia a vida por não levar Frankenstein com quatro crianças judias. Nós não sabemos dizer não. malas, puxando uma em cada braço, mas Pouso tranquilo. Vamos às revistas. apenas mochila. O moço detestava ser contrariado. pulosa da Alemanha. No último recen- Bocejos, engasgos. Um embaraço para Abrindo a carteira com os dentes, jogou seamento atingiu os melhores índices de dar abraços, medo de fermentar-lhe a nos pés da imigração notas de cem e um qualidade de vida no país, perdendo ape- ferida (o toco restante era envolvido por discurso macarronesco sobre os direitos nas para a capital. Bremen é uma manhã uma pele translúcida e finíssima, quando das minorias, números de emergência e sem graça de domingo mas nos agrada ele não percebia fitávamos com atenção conselhos de ética. Falava com uma fome por não oferecer perigo. Mesmo assim, o moço foi. Bremen é a décima cidade mais po- 29 No bairro medieval de Schnoor o moço promete vitória. Ensaia novamente os juntos duas garrafas de pinga. Força do recomeça a vida com o jovem brigadeiro discursos da chegada, acrescentando os hábito e cautela, mantém-se sóbrio e leva aeronáutico. Mundo calmo de delícias e resultados da vasta pesquisa linguística o companheiro nos braços até a mesa sem vaidades. Findos atritos desneces- desenvolvida nos últimos anos. Gram- de jantar. Com a serra mais bela, tinin- sários, agora ele passa o dia em camiseta peia certificados, cartas de recomenda- do, talha fino um traço entre Bremen e sem manga, trabalhada em seda. Desa- ção, prontuários e laudos médicos, tudo Hamburgo. celeramento necessário, afinal nem as na esperança de salvá-los do naufrágio Autobahns são ilimitadas como parecem. iminente. Um silêncio mútuo ocupava a casinha Confiante, ele vai. Foi. gótica, era como se eles não existissem. E o que se segue não faz sentido deta- Salvo pelas discussões etmo-bizantinas lhar: o moço não sabia mais falar a lín- em que se metiam madrugada adentro: gua rapina dos primeiros dias. Tergiver- - Por que em alemão “braço” e “coitado” são a mesma palavra? - Por que em francês eu preciso de braços para beijar? sava, empacava nos momentos difíceis e nem a raiva inflando o toco anêmico garantia-lhe alívio. Dessa vez os encarregados não temeram. Acolheram as queixas No século XIX dois irmãos descreve- e protocolaram, preguiçosos, as solicita- ram diversos arquétipos alemães, dentre ções, certos de arremessá-las longe antes eles a história medieval de um burro, um da pausa-café. cão, um gato e um galo, que abandonam Entre 1939 e 1945 a Royal Air Force lançou 12.831 bombas em Bremen mas a úl- Clarissa Comin nasceu em Fortaleza e atual- O brigadeiro fincou os dois pés no tima, do dia 30 de março de 1945, deixou mente mora em Curitiba. É mestre em Literatura chão, lambuzou-se em demasia e perdeu uma Frau Leona em frangalhos, só os co- o emprego, assim termina uma grande toquinhos. Anos depois seu neto ensaia- história. ria uma frustrada vingança, juntando-se quisa literatura brasileira de invenção no sécu- ao exército inimigo. lo XX e XXI. Tem traduções e textos publicados os donos para serem livres em Bremen. Contas acumuladas, ostracismo social e rusgas domésticas levaram nosso prussiano Ícaro às profundezas. O moço acaricia-lhe sem jeito e promete revanche, O brigadeiro derretido no sofá é puro desolo e desespero. Espera seu moço chegar e vencem Brasileira (UFPR), Estudos Lusófonos (Université Lumière Lyon 2) e professora de língua francesa. Atualmente cursa doutorado na UFPR e pes- em revistas digitais como Qorpos, Mallarmagens, Enfermaria 6 e Raimundo. Em parceria com Julia Raiz escreve periodicamente no coletivo Totem & Pagu (totemepagu.wordpress.com). 30 Rafael Elfe Bicho sem fundo Você precisa resolver coisas dar de comer aos bichos, alimentar-se deles. Ligar pra família, mentir pros amigos. Mentir pra família, ligar pros amigos. Único que prolifera remorsos bicho que fuma escondido chora quando nunca nunca quando chora. 32 Diz que precisa resolver tudo matar recibos vencidos cimentar negócios dar-se de abraços à cama precisa fingir que ama e ama fingir que precisa. Único que vomita tempo enforca pessoas, fabrica relógios vive de tédio e pressa ama quando nunca nunca quando ama. Bicho de guardar segredos acha-se dono das coisas e só uma gripe te derruba uma paixão e diz poesia que nunca foi tua, que nunca foi boa. Único que literatura e brinca de estragar o mundo mastiga poeira, cospe parafuso bicho de comer à mesa nem a sete palmos de avareza tira esse peso do fundo. 33 Miopias I Com suas palavras inalcançáveis: estrelas de oito pontas, avião, mastro, girafa o cão abraçado ao muro a língua às cartas a mesma voz solene, diria: - só o brilho café nos olhos da fotografia mastigava tudo. II A saudade escapulia nos cabelos, Enfeitiçada, você fingia o riso e sua pequena mão de arbusto podava o berro. e sua pequena mão de arbusto aninhava o verso. e sua pequena mão de arbusto sufocava o verbo. III Ali onde esconde-se a noite, em desaviso, de pequenos túmulos verdes fantasmas com pés trocados suspendem a alvorada. IV O que acontecerá? Olhar represado de estátua, sol palrando cume uma nesga de noite aparvalha-se abre-se o ventre da aurora uma manhã nasce latindo. V Se vivo não mata Se morro não sei Mas não estanca nem seca Tem fundo falso esse peito Que bicho nenhum traduz. 34 VIII Inunda a lua na cozinha teus magros pés de tinta branca VI indagam o céu que tanto cobre Pequena espera morrem ao vento à sombra enorme quase dor sem demora; à sombra do ventre se altera do homem curto, o tempo que em tudo dobra, o tempo curto no homem. urgência de flor que acorda Edifício curvando estrelas; nascendo a cada instante, e pra sempre: preto é o chapéu da velha casca. o fulminado beijo do agora. VII Nenhum desejo te devora só tua carne enquanto comes O mundo das ideias é o mundo dos vivos. Nele, Deus pode deixar de existir; e o adeus no riso telegrafa ser Criança, Lobo, Mulher, Demônio. O mundo de Deus, é o mundo do qual não por dentro, em chamas, fazemos ideia. teu nome Nesse limite, do qual nossa razão não pode avançar, está a ideia de Deus. por fora e toda parte meu enxame. IX Da manhã só o veneno; à boca o óleo dos pássaros e o suor dos que não vivem. 35 Recorrente você me lembra coisas dessas que não mensuro coisas que permanecem como a voz no interfone - mas não te ouço, levo de seu, só o pedaço de um mar nas orelhas e o barco virgem rabiscando a praia no rastro, o marulho branco tua face mal desenhada que não fui homem bastante para apagar. Silêncios É motor de geladeira. rafael elfe - sou músico e compositor; Quando desliga é brilho de estrela carioca radicado em são paulo. Mas desse tipo estudante de antropologia e ciências sociais. tenho um disco só ouvimos a cor. Poemia lançado, estou gravando outro. escrevo ocasionalmente, quando o poema vem me chamar. acho que, quando mais velho, vou inverter Por ti zil regressos. isso de quem chama quem. Por onde sempre recomeço, uma vez publiquei um livro na web sem ter jamais partido. chamado sem digitais, apaguei. o bicho sem fundo quero publicar materialmente pra não ter o perigo de apagar tudo outra vez. o cantor belchior disse que é do poetariado, eu também acho sou. gosto de pensar que faço música e poema como quem troca pneu, por utilidade prática; como quem acorda cedinho pra colocar a massa no forno. meu disco aqui: rafaelelfe.com 37 Philippe Wollney caosnavial iv: resíduo sólido O progresso não é nem mesmo progressista. – Eduardo Galeano coágulo na via principal sangue dos novos congestionando desejos & autovias galerias de dejetos desembocam na garganta & no gargalo caldo de cana caiana adocica o cotidiano-cadáver o paraíso privado de privilégios-privadas 39 prisão de ventre é a negação do cotidiano congestão nasal rima com anal : nada entra & nada sai não nos suportamos por aceitar a profecia da cidade-cicuta que em cada esquina : nos fundos das repartições públicas partes escuras das praças aliciando menores entrada de emergência de hospitais públicos & clínicas para drogados nas grandes avenidas vendendo travestis nas calçadas descalçadas desgraçados menores fitam com firmes olhos afirmando que a natureza não nos suporta & o profeta brilhando com urânio descerá entre as nuvens de enxofre em seu novo discurso sobre monte de lixo eletrônico afirmará : somos um nó nas tripas do mundo 40 caosnavial vi: velha usina Desolados e chuvosos vãos no tempo, a grande arte aprendida na desolação – Allen Ginsberg guerrilha das gramíneas contra o concreto & aço a cascavel cochicha : não passamos de um segundo plantas carnívoras esganam fios de cobre urtigas brancas brotam no esterco das cabras silenciosos tentáculos de jerimuns sobre tetos de zinco liquens copulam com as ferrugens brotoejas afloram no cimento fezes de morcego corroem engrenagens gangrenagens gangregases :::... no que resta de maquinarias : cogumelos esporram sobre o passado gasto de progresso : a paciência do algoz que amputa espécies & percorre na surdina os pisos de mármore : descama os afrescos de ódio : de tédio & de medo oxida a capa de pérola do livro de poemas carcomidos cava sulcos nas cadeiras de jacarandá na varanda aleija os degraus que levam ao pelourinho destrói as paredes do quimbundo encobre as trilhas que levam aos quilombos retira o reboco dos homens arrebenta os samboques da história ressignifica no grunhido do incêndio que deixa a paisagem em cinzas para unguento do silêncio 41 caosnavial vii: o coiote Horrorissonando horrivelmente para amantes e dorminhocos – Lawrence Ferlinghetti seus olhos holofotes : iluminam o trabalho por quilômetros : o seu uivo dita o ritmo dos recordes da safra animal anjo da caldeira durante meses o cheiro de vinhoto deixa prenhe a cidade seu sêmen de vinagre atiça o cio dos dias acendem as madrugadas das segundas-feiras refugo das queimadas : a alergia dos netos : o azougue dos priméveros : a aposentadoria por invalidez dos velhos o coiote dita o ritmo do açoite : dia após dia : noite após noite caosnavial viii: tardiamente O pouco que aprendi na vida / foi com flores, livros e pedras – Fred Caju da morte na equação sobre o uso do solo : assassinatos como eficiente acontecem a última trepada boia-fria mecanismo de coerção social : e : nas encruzilhadas existem centenas no cardápio do dia um formidável de pequenas cruzes pintadas de multinacionais ocupando os prato de nossa gastronomia : azul & branco com anúncios de campos com bredos de flores fettuccine ao creme de jerimum ticoqueiros : lambais : corumbas : roxas : mais uma vez o canavial se acompanhado com elevados cambindas mortos incinera na chegada da safra : as índices de violência & prostituição labaredas estalam ao ebulir o caldo infantil & como sobremesa frapê de iv açucarado acordando as crianças araçá no casquinho de guaiamum beatas rezam & revezam diante de das ruas e os coiotes nos escritórios com marketing governamental & cruzes de sete pontas riscadas no : nuvens de pixilinguis & mariúnas analfabetismo funcional chão : acenos de pavor quando as i atravessa os mares em forma de tomam as ruas da cidade com sonhos industriais & escapamento iii palavras se diluem em significados & automotivo : cortes verticais de aço e & um mix de miserê noticioso & poético mais certezas : uma oração para são esconde que dentro dos canaviais há benedito : um toque para zé pilintra separação de miolos em segundos : : um canto pra exu : as sete cidades foices & peixeiras temperam o córtex da jurema atrás da capela : santos & no embate do corte da cana de quatro sonhos & senhores entre o perdão palavras ornamentadas com crânios toneladas-dia no chão : na safra & pendão & o punhal : fazem a fé o de urubus símbolos : dos cartéis : dos em que alguns não se safam nos facão & o fuzil derivarem da mesma latifundiários : dos especuladores atropelos dos tratores & treminhões origem : do mesmo início & difícil de imóveis que inserem a variável : nos morros de massapê onde re:começar vidro na direção do sol ii tendo como norteador ordinárias murmúrios distantes & não trazem 43 caosnavial ix: em tom de zinco por que deus existe, mas a contade dele não – Ícaro Tenório entre o tráfego & o tráfico a rotina anuncia : um passa-passa senão te passo & como o dia fica pálido de susto pó bruto sulcando os poros do rosto nos olhos reflexos de um sol chapado i cremes hidratantes afogando os geoglifos da pele o rasgo da boca mancha de álcool iodado a fé fria nos subúrbios no centro pedregulho : fiéis & fuzis poesia dispalavra palabalas na cartucheira que não repõe o que havia antes dos buracos na sala ii despenca como chuva : uma fuligem que intoxica contratos : pedidos de liberação de crédito tratados : resoluções : acordos econômicos : o sonho da casa própria : o carro do ano : a comida sobre a mesa : a sede de viver : & um desejo : agora em tom de zinco Philippe Wollney é poeta brasileiro, nascido na cidade de Goiana, Pernambuco, em 1987. Organiza intervenções artísticas, recitais, saraus, publicações e outros atentados poéticos. Trabalha para difundir a produção literária da zona da mata norte de Pernambuco. É editor do coletivo Silêncio Interrompido, do selo editorial Porta Aberta, e da revista Poesia & Cia – Ed. Maturi. Une a produção de livros artesanais em formato de baixo custo com o design e os meios digitais. Participou do Festival Internacional de Poesia do Recife em 2013. Tem poemas publicados em diversas revistas, pelo coletivo Silêncio Interrompido e pelo selo Porta Aberta. Participou das antologias ARRUADA (2013), e cem poetas sem livros (2009) 44 Elisa Andrade Buzzo um poema se faz com palavras moldadas em letras duras segundo artifícios mecanismos para apertar o coração a mão que pressiona o botão na tarefa etérea e árdua da composição baseada em tipos risíveis da condição humana e seus ridículos amores um poema se faz de palavras catadas ao engenho do signo e do som não se molda em sentimentos antes no mecânico imprimir de antigos requerimentos e planos formidáveis ao auxílio de utensílios do rebite da máquina de escrever da pressão automotora se reproduz o texto de substância firme mas dinâmica até mesmo na curvatura imperfeita da caligrafia como uma forma nítida tal qual se caminha em obra kandinskyana roldana emancipada linha a linha andaimes e cordas sustentando o arremate da corrente gráfica e o poema se cria agora como força viva 46 não sou mulher-maravilha ainda que tenha para mim extraordinários poderes minha imaginação desfere golpes fatais a vilões em potencial tenho uma boca com dentes e espinhos pronta à mordida as unhas crescem na medida certa para arruinar num só gesto proposital a cabeleira faz as vezes de chicote numa dança pra te ferir ou impressionar mas veja estas palavras-lança talvez sejam elas meus poderes ultrassintáticos a trespassar do peito meu ao seu detenho-me às folhas secas olhares nesta paisagem que se esqueceu deus de pôr gente aqui tudo é natureza sento num tronco de árvore escondo-me entre ramagens na verdade a praça é um corpo vivo feito de mil imagens hortaliças de índios vergéis de colonos verde séquito a se perder no horizonte esta ainda é uma paragem distante praça carlos drummond de andrade ao lado da casa de vidro de lina bo bardi 48 olha de um chumaço de cabelos escuros enrolados na pia suspendeu-se uma aranha em patas de fio que lembra sujeira úmida seu corpo um glóbulo maciço de capilares emaranhados ela se desloca num crescendo e pula assustadora aterrissando de pernas bem abertas com uma bufada começa a inspecionar a casa e muito satisfeita se põe a considerar a bagunça e poeira se pudesse atinar pensaria vou fazer daqui minha casa pousar minha trouxa enrodilhar meu corpo frouxo e vistoriando os cômodos as pilhas de roupas desdobradas ótimas para um esconderijo a louça acumulada perfeita para forrar seus intestinos molhados ao sentir um frêmito no buraco da fechadura ela se desintegra numa lufada espalhando-se em restos pretos pelos buracos dos tacos 49 cortaram-lhe as asas e ainda assim tecia harmonias no chão e agora fitaria não as copas mas bem de perto as folhas secas e douradas pisoteadas na praça e se da pele tiraram-lhe o sentir nisto também viu algo proveitoso pois assim passaria por entre as folhas pontudas dos jardins misteriosos sem sentir dor ciceroniaria as abelhas em seu desejo de pétalas e se dos olhos lhe tirassem a visão haveria o silvo dos animais desses sons absolutos haveria de evocar a forma viva dos seres e se então por sua vez a audição lhe fosse destituída teria sua imaginação a lhe render uma nascente cristalina de onde brotaria diariamente como um desejo indevido ressurgido das pedras Elisa Andrade Buzzo, formada em Jornalismo pela Universidade de São Paulo, estreou na literatura com os poemas de Se lá no sol (7Letras, 2005). Seu último livro de poesias, Vário som (Patuá, 2012), foi finalista do Prêmio Jabuti 2013 na categoria Poesia. Foi coeditora da revista de literatura e artes visuais Mininas. Seus textos foram publicados em diversos livros, antologias e revistas literárias no Brasil e em países como Espanha, Portugal, Alemanha, México e Estados Unidos. Publicou o volume de crônicas Reforma na Paulista e um coração pisado (Oitava Rima, 2013) e está no prelo a próxima antologia, O gosto da cidade em minha boca. 50 Na estação penso como teria sido se tivesse trazido você comigo se tivéssemos preparado juntos as malas se você sentaria ao meu lado ou em frente no trem em movimento se você repararia Ana Salek nos gestos da holandesa ou se mostraria um moinho lá fora se teria topado dividir o bolo de cenoura se poria leite no chá se conseguiria ter arrastado a mala na escadaria na metade do tempo em que eu pude cumprir a tarefa com a ajuda de um moço simpático que se ofereceu para carregar a bagagem na escadaria da estação será que a mulher dele teria me olhado da mesma forma estranha caso você estivesse aqui? 52 Desenho cego não que isso importe mas gosto dos signos em rotação quando escuto você falar sua pulsão, a sua própria língua de sinais foi assim, de repente um senhor com o andador de boina e suspensórios foi assim que vi seu tronco de terno, de costas as imagens dobradas no vidro suspensas, fatiadas em luzes tailandesas #ilusãodeótica sem compasso duas sopas com gengibre duas pimentas dedo-de-moça eu pedi duas pimentas dedo-de-moça mas você quer mais duas taças de vinho e eu quero mais duas taças de vinho nos encontramos entre um gole e outro quando tocamos as mãos na toalha branca salpicada de cinzas atrás das garrafas – gravata vermelha e olheiras – seu olhar nada revela a não ser o cansaço 53 das mãos sem retórica sob a penumbra acobreada ansiando mais vinho arriscando um gesto no ar, uma autoridade (são mãos perdidas, mãos que eu amo) por trás das notas musicais o garçom diz que a comida vai melhor com cerveja “é por causa da pimenta, meninos” me distraio facilmente com a música dos pratos caindo no chão, batendo “eu estava acompanhada, não estava?” uns nos outros ele balança a cabeça negativamente como o tilintar dos copos “não, senhora”, pode ser que faltem peças, em Combray elas mudam de forma – lanço o garçom enrubescido os dados – quando muito próximas pelo olhar severo do gerente umas das outras: #miragem ou #sonho assim que me distraí a silhueta ambígua, o cabelo fino na testa a cadeira vazia à frente, a voz rouca – era minha ou sua? – entre guardanapos palpitação no peito sem despedida o lábio roxo dos tintos estive sozinha durante haveria conversa entre dois silêncios? todo esse tempo? “Moço”, me despeço de mim mesma pergunto ao garçom “por favor, a conta?” inclinado aos cacos convencida de que invento seu rosto num malogrado quebra-cabeça num autorretrato de sobre mesa, mas o garçom informa (noutra esquina, você tem um cigarro aceso nas mãos, nas mãos que eu amo) “a conta já foi paga, senhora” 54 Trem em movimento você dorme em algum quarto em dresden com um cinzeiro apoiado na barriga cheia suas mãos você entrou no vagão de cerveja alemã estão descontroladas com o trem em movimento no gesto que leva pode ser que você o cigarro à boca sonha com roedores ainda não tenha (você pensa que é um atirador) que tentam roubar o seu melzinho adormecido ou sonhe suas mãos estão descontroladas por sorte com o melzinho de paraty no modo como você apagou o cigarro tenta afastar antes de pegar no sono pode ser que você um pesadelo na suíte máster esteja se endividando (você é a caça) de um hotel sem estrelas com o cinzeiro num hotel cinco estrelas mas também é possível suas mãos estão apoiado na barriga que esteja numa pensão barata segurando copos cheia de cerveja alemã você era imprevisível de cachaça em matéria de hospedagem que você quebra em qualquer matéria um a um Casa tomada como retirar dos objetos o nome acender um lustre e espaná-los até que fiquem e pensar autônomos que o jarro azul se destaca destacados apenas somente porque é azul por insistência do olhar e todas as coisas na casa separados da paisagem interior são madeira ou verde-musgo objetos que tornam-se verde-escuro, o jarro donos da casa apenas porque assim o quisemos é apenas seu peso porque assim decidimos? indistinto da pequena estátua objetos com vida o cristal mesmo como se fossem visitas à noite à meia luz mais do que visitas disfarça-se na paisagem interior como se fossem donos da casa como panóptico mais do que proprietários que observa e registra ou talvez apenas reveze como se fossem intrusos imagens mas que já moram ali há algum tempo? como gato reveza de assento do pufe para a poltrona para o banco para a mesa e as visitas para o piano que parecem mais objetos do que pessoas do que objetos de decoração? após o jantar, todos os objetos E os donos da casa que mais parecem visitas do que donos? estão bem quietos observando Visitas vermelhas, embrulhadas? o filho de alguém que natal passado tocou pour elise e esse ano, parque dos dinossauros do ré para o dó, do mi para o ré e o gato lá 56 Frutos da terra Nathanael, eu te ensinarei o fervor disse andré gide nos frutos da terra este livro uma vez me fez chorar de morrer de vergonha como um bebê deixado aos peixes foi um livro que antônia me deu e que eu li de uma só vez umas não sei quantas páginas e nada compreendia do que lia e soluçava como quem entendesse com o corpo todo e se me perguntassem sobre o que estás a ler? eu ficaria boquiaberta com o que não poderia dizer no dia seguinte eu disse a antônia um pouco envergonhada que havia me debulhado sobre o livro e antônia sorriu Ana Salek nasceu no Rio de Janeiro em 1987. É mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Em 2010 publicou seu primeiro livro, Dezembro (Circuito). Atualmente prepara seu segundo livro de poemas. 57 Anne Sexton por Adelaide Ivánova & Rafael Mantovani 59 Love poems é o quarto livro e, na minha opinião, não é o melhor Traduzir é um exercício muito vivo; à medida que você avança versos de Anne Sexton, mas contém grandiosos poemas em suas páginas, des- afora, é forçado a voltar para fazer ajustes nos anteriores e depois seguir ses que marcam a vida. Além disso, o que faz dele especialmente atraente em frente e voltar de novo etc. Por exemplo: em O nado nu, por ter dado a para mim é o livro de poesia como projeto, como se fosse uma necrópsia. “heart” um caráter fisiológico, acabei des-traduzindo o que antes tinha tra- Ainda que Sexton aqui e ali ela fale de outras coisas, o cadáver a ser disse- duzido como “bombeiro” (quando ela fala “my hands down the backbone, cado é o adultério e seus protagonistas, com o corpo como arma do crime, down quick like a firepole”) e passei para “paramédico” e em seguida voltei por assim dizer. para a primeira estrofe para fazer de “Greek chorus” “microscopista” (tô Nos pontos altos, Sexton transfere a obsessão que antes tinha com a morte e historização da própria biografia, prum homem (o marido; o amante). Poemas como For my lover returning to his wife têm uma força mãe-natureza e um nível de empatia que ainda me deixam besta. ligada, não tem absolutamente nada a ver, mas criava uma imagem mais próxima do que estava procurando pra tradução do poema). Meu desejo com essa traduções era aproximá-las da linguagem falada, da forma como ela é falada no português brasileiro, já que isso era algo Os Love poems foram escritos durante o romance que Anne Sexton teve que a própria Anne não renegava – como revela a poeta e amiga íntima de com seu segundo analista. Sem saber dessa informação, é mais difícil en- Sexton, Maxine Kumin: “[para Anne] a ordem natural das palavras, o tom tender o porquê da linguagem às vezes encriptada que ela – uma senhora leve da linguagem vernacular, nunca deveriam ser ignorados em nome de casada e mãe de filhos, dos subúrbios de Boston – utiliza no livro, publi- uma rima”. Assim, algumas escolhas foram feitas me afastando da semân- cado em 1969. Essa linguagem “secreta” resulta eventualmente num tom tica para tentar me aproximar do que o poema quer dizer – e de como isso solene, que pelo tipo de metáfora cai, às vezes, na cafonice. O tom é bem é dito na língua que eu falo. diferente de All my pretty ones, seu segundo, bastante aclamado pela crí- Essas são, então, as traduções que fiz pro meu português recifense (ou tica. Essa solenidade tem sido minha maior dificuldade traduzindo Love seja, cheias de “tu” em vez de “você” e “a gente” em vez de “nós”, entre outras poems. nem por isso o livro é menos sexy. Se não me engano, foi o que mais pequenas coisas), usando a edição da poesia completa, publicada em 1981 vendeu (até a publicação de Transformations, em 1971). pela Mariner Books, organizada pela filha de Anne, a também poeta Linda Aqui, Anne relaxa com a métrica-e-musicalidade que lhe consagraram Gray Sexton, com prefácio de Kumin. Além disso, convidei o poeta Rafael em To Bedlam and part way back, seu livro de estreia. O cuidado com a Mantovani para traduzir três dos seus poemas preferidos deste livro, por versificação que ela mostrou nos seus primeiros livros (depois de Bedlam ser Rafael leitor entusiasmado de Anne e um excelente tradutor. veio All my pretty ones, bastante aclamado pela crítica e, sem seguinda, Live or die, que ganhou o Pulitzer) têm, na minha opinião, muito a ver com a Os oito poemas aqui apresentados estão organizados seguindo a mesma ordem do original. doença mental de que ela sofria. Em Love poems, no entanto, ela transfere a obsessão pela estética em uma obsessão pelo sujeito. Uma troca tão ou mais arriscada. - a tradutora O beijo Minha boca lateja como uma úlcera. The kiss Fui o ano inteiro ignorada, noites My mouth blooms like a cut. chatíssimas, nada além de cotovelos ásperos I’ve been wronged all year, tedious e caixinhas de Kleenex gritando crybaby nights, nothing but rough elbows in them crybaby, sua abestalhada! and delicate boxes of Kleenex calling crybaby crybaby, you fool! Até ontem meu corpo era inútil. Before today my body was useless. Agora se rasga nas partes ossudas. Now it’s tearing at its square corners. Faz do manto de Maria pó, de nó em nó It’s tearing old Mary’s garments off, knot by knot e olhe – Agora atingida por um certo raio: and see — Now it’s shot full of these electric bolts. Bum! Ressuscitou! Zing! A resurrection! Once it was a boat, quite wooden Antigamente havia um barco, de madeira and with no business, no salt water under it e sem utilidade, sem mar embaixo and in need of some paint. It was no more e precisando de uma demão de tinta. Não era muito than a group of boards. But you hoisted her, rigged her. além de um bocado de tábua. Mas ela você alçou e laçou. Ela foi escolhida. She’s been elected. My nerves are turned on. I hear them like musical instruments. Where there was silence Meus nervos à beira de um ataque. Posso ouvi-los como the drums, the strings are incurably playing. You did this. instrumentos musicais. Onde antes havia silêncio: Pure genius at work. Darling, the composer has stepped bateria, irremediavelmente as cordas tocam. Você é o responsável. into fire. Trabalho de gênio. Querido, o compositor se mete fogo adentro. 61 Aquele dia Essa é a mesa à qual me sento e essa é a mesa onde te amo bem muito essa diante de mim é a máquina de escrever, posta onde ainda ontem estava posto teu corpo com seus ombros curvados como os de um microscopista, That day com sua língua de rei baixando decretos, This is the desk I sit at com sua língua de gato bebendo leite, and this is the desk where I love you too much com sua língua – e nós dois enrolados nela, escorregadia. and this is the typewriter that sits before me Isso foi ontem, aquele dia. where yesterday only your body sat before me Aquele foi o dia da tua língua, with its shoulders gathered in like a Greek chorus, with its tongue like a king making up rules as he goes, with its tongue quite openly like a cat lapping milk, tua língua que sai de teus lábios, with its tongue - both of us coiled in its slippery life. dois viajantes, metade animal, metade pássaro That was yesterday, that day. enjaulados no teu átrio direito. Aquele foi o dia que segui as regras do rei, correndo pelas tuas veias, as vermelhas e as azuis, descendo minhas mãos pela tua espinha dorsal, rápida como um [paramédico, até entre as tuas pernas, onde se apresenta tua sabedoria interior, onde se escondem minas de diamantes, urgentes, mais surpreendentes que cidades reconstruídas. That was the day of your tongue, your tongue that came from your lips, two openers, half animals, half birds caught in the doorway of your heart. That was the day I followed the king’s rules, passing by your red veins and your blue veins, my hands down the backbone, down quick like a firepole, hands between legs where you display your inner knowledge, where diamond mines are buried and come forth to bury, Em segundos está erguido, o monumento. come forth more sudden than some reconstructed city. O sangue, ainda que líquido, faz a torre. It is complete within seconds, that monument. As pessoas deviam se juntar para admirar essa construção. The blood runs underground yet brings forth a tower. Já que por um milagre elas jogam confete e esperam em filas. Certamente a imprensa aparecerá, em busca de uma manchete. Certamente alguém estará na calçada segurando um cartaz. A multitude should gather for such an edifice. For a miracle one stands in line and throws confetti. Surely The Press is here looking for headlines. Surely someone should carry a banner on the sidewalk. 62 Se constroem uma ponte, o prefeito não vai lá cortar a faixa? If a bridge is constructed doesn’t the mayor cut a ribbon? Se em Belém nasce uma estrela, não aparecem reis com presentes? If a phenomenon arrives shouldn’t the Magi come bearing gifts? Ontem foi o dia em que eu trouxe presentes para o teu presente Yesterday was the day I bore gifts for your gift and came from the valley to meet you on the pavement. e vim de longe para te encontrar na calçada. That was yesterday, that day. Isso foi ontem, aquele dia. That was the day of your face, your face after love, close to the pillow, a lullaby. Aquele foi o dia do teu rosto, tua cara depois de transar, no travesseiro: uma canção de ninar. Meio dormindo ao meu lado, deixando aquele relógio velho parar, Half asleep beside me letting the old fashioned rocker stop, our breath became one, became a child-breath together, while my fingers drew little o’s on your shut eyes, while my fingers drew little smiles on your mouth, nossa respiração virou uma, juntas viraram uma respiração infantil, while I drew I LOVE YOU on your chest and its drummer enquanto eu desenhava bolinhas nos teus olhos, and whispered, ‘Wake up!’ and you mumbled in your sleep, enquanto eu desenhava risinhos na tua boca, ‘Sh. We’re driving to Cape Cod. We’re heading for the Bourne enquanto eu desenhava TE AMO no teu peito, no coração batendo, e cochichei “acorda!” e tu murmuraste qualquer coisa: Bridge. We’re circling the Bourne Circle.’ Bourne! Then I knew you in your dream and prayed of our time that I would be pierced and you would take root in me “sssssh estamos dirigindo até a praia. Atravessamos uma and that I might bring forth your born, might bear ponte. Passamos pela orla”. Praia! the you or the ghost of you in my little household. Então em teus sonhos eu te entendi e orei pelo dia Yesterday I did not want to be borrowed em que eu seria a terra e tu as raízes e eu carregaria teu fruto, carregaria but this is the typewriter that sits before me and love is where yesterday is at. a ti ou a teu fantasma na minha horta interior. Ontem eu não queria me deixar levar mas é só a máquina de escrever que está na minha frente e ontem é onde o amor está. 63 Celebração do meu útero Tudo em mim é pássaro. Bato todas minhas asas. Eles queriam te tirar de mim In celebration of my uterus mas eles não vão. Everyone in me is a bird. Eles disseram que você é imensamente vazio I am beating all my wings. mas você não é. They wanted to cut you out Eles disseram que você estava morrendo but they will not. mas eles estavam errados. They said you were immeasurably empty but you are not. Você canta como uma menina. They said you were sick unto dying Você não é em vão. but they were wrong. You are singing like a school girl. Querido fardo, para celebrar a mulher que sou e a alma dessa mulher que sou You are not torn. Sweet weight, in celebration of the in celebration of the woman I am e a criatura central e a sua luz, and of the soul of the woman I am eu canto para você. Eu ouso viver. and of the central creature and its delight Olá, alma. Olá, troféu. I sing for you. I dare to live. Fixo, envólucro. Cobertor e conteúdo. Olá para a terra destes campos. Raízes: bem-vindas. Hello, spirit. Hello, cup. Fasten, cover. Cover that does contain. Hello to the soil of the fields. Welcome, roots. 64 Cada célula existe. Aqui há o suficiente para satisfazer a nação. Each cell has a life. Já chega que essa ralé se apodere desse bem. There is enough here to please a nation. Qualquer um, qualquer comunidade diz dele, It is enough that the populace own these goods. “Que bom que esse ano poderemos plantar de novo e nos alegrar pela colheita. Any person, any commonwealth would say of it, “It is good this year that we may plant again and think forward to a harvest. A vacina contra a praga foi o vaticínio”. A blight had been forecast and has been cast out.” Muitas mulheres, unidas, cantam sobre isso: Many women are singing together of this: ela está na fábrica de sapatos, xingando a máquina, one is in a shoe factory cursing the machine, ela está no zoológico cuidando de uma onça, ela está triste dirigindo seu Fiesta, one is at the aquarium tending a seal, one is dull at the wheel of her Ford, one is at the toll gate collecting, ela está trabalhando no guichê do pedágio, one is tying the cord of a calf in Arizona, ela está no desfile da escola de samba, one is straddling a cello in Russia, ela está afinando um violoncelo na Rússia, one is shifting pots on the stove in Egypt, ela está mexendo o almoço no Egito, ela está pintando as paredes do quarto, one is painting her bedroom walls moon color, one is dying but remembering a breakfast, one is stretching on her mat in Thailand, ela está morrendo mas lembrando de um café-da-manhã, one is wiping the ass of her child, ela está fazendo ioga na Tailândia, one is staring out the window of a train ela está limpando a bunda de um filho, in the middle of Wyoming and one is ela está olhando pela janela do ônibus no meio do Tocantins e ela está anywhere and some are everywhere and all seem to be singing, although some can not sing a note. em lugar nenhum e outras estão em todos os lugares e todas parecem cantar, ainda que algumas sejam desafinadas. 65 Querido fardo, Sweet weight, para celebrar a mulher que sou in celebration of the woman I am me deixe usar uma écharpe de 3 metros, me deixe paquerar os meninos de 19 anos, let me carry a ten-foot scarf, let me drum for the nineteen-year-olds, let me carry bowls for the offering me deixe levar as oferendas (if that is my part). (se for o caso). Let me study the cardiovascular tissue, Me deixe analisar os tecidos cardiovasculares, let me examine the angular distance of meteors, e examinar as distâncias entre os meteoros, me deixe chupar o caule das flores let me suck on the stems of flowers (if that is my part). Let me make certain tribal figures (se for o caso). (if that is my part). Me deixe ser Iemanjá For this thing the body needs (se for o caso). let me sing Por aquilo que o corpo precisa me deixe cantar para celebrar o jantar for the supper, for the kissing, for the correct yes. o beijo o sim certeiro. 66 O nado nu No sudoeste de Capri encontramos uma grutinha secreta onde não havia ninguém e nós The nude swin nos metemos nela até o fim e On the southwest side of Capri liberamos nossos corpos de toda we found a little unknown grotto solidão. where no people were and we entered it completely and let our bodies lose all Tudo o que em nós é peixe se deixou levar. their loneliness. se deixou levar. Os peixes de verdade não deram a mínima. Não atrapalhamos suas vidas íntimas. All the fish in us had escaped for a minute. The real fish did not mind. Nadamos tranquilos por cima We did not disturb their personal life. e por baixo deles, compartilhando We calmly trailed over them bolhas de ar, brancas, ínfimas and under them, shedding bexigas, que emergiam rápido air bubbles, little white até o sol banhando o barco balloons that drifted up into the sun by the boat onde o italiano tirava uma soneca where the Italian boatman slept cobrindo a cara com um chapéu. with his hat over his face. 67 A água era tão clara Water so clear you could que dava para ler um livro. read a book through it. A água era tão tranquila Water so buoyant you could float on your elbow. que se podia boiar sem medo. I lay on it as on a divan. Me deito nela como me deito no divã. I lay on it just like Me deito nela como Matisse’s Red Odalisque. a odalisca vermelha de Matisse. Water was my strange flower, Sendo a água a flor estranha, é preciso imaginar uma mulher one must picture a woman without a toga or a scarf on a couch as deep as a tomb. sem toga nem lenço num sofá cavado como um túmulo. The walls of that grotto were everycolor blue and As paredes daquela gruta tinham todos os tons de azul you said, ‘Look! Your eyes are seacolor. Look! Your eyes are skycolor.’ And my eyes e tu disseste “Ó! Teus olhos shut down as if they were são da cor do mar. Ó! Teus olhos suddenly ashamed. são da cor do céu”. E meu olhos se fecharam em repentina vergonha. 68 Todos conhecem a história da outra É um Walden particular. Ela está sozinha na cama You all know the story of the other woman It’s a little Walden. She is private in her breathbed as his body takes off and flies, enquanto o corpo dele se ajeita e dispara, flies straight as an arrow. decidido como uma flecha. But it’s a bad translation. Mas isso tá mal explicado. Daylight is nobody’s friend. A luz do dia não é amiga de ninguém. God comes in like a landlord and flashes on his brassy lamp. Deus chega como se fosse cobrar o aluguel Now she is just so-so. e acende a luz quando não convém. He puts his bones back on, Agora ela está assim-assado. turning the clock band an hour. Ele põe seus ossos de volta no lugar, She knows flesh, that skin balloon, atrasa o relógio em uma hora. the unbound limbs, the boards, the roof, the removable roof. Ela conhece a carne, o balão feito de pele, She is his selection, part time. os membros partidos, o assoalho, You know the story too! Look, o teto, o teto removível. when it is over he places her, Ela é meio-período sua eleição. like a phone, on the hook. Você conhece essa história. Fique olhando: quando termina ele a coloca, como um telefone, no gancho. 69 Nós por Rafael Montovani Eu estava embrulhada em peles pretas e peles brancas e você desembrulhou e então me colocou na luz dourada e então me pôs a coroa, enquanto nevava lá fora em dardos diagonais. Enquanto uma neve de vinte e cinco centímetros descia como estrelas em pequenos fragmentos de cálcio, estávamos nos nossos próprios corpos (esse quarto que vai nos enterrar) e você estava no meu corpo (esse quarto que vai existir depois de nós) e primeiro sequei os seus pés com uma toalha porque eu era sua escrava e então você me chamou de princesa. Princesa! Ah então me levantei na minha pele dourada e derrubei os salmos e derrubei as roupas e você desatou a brida e desatou as rédeas e eu desatei os botões, os ossos, as confusões, os cartões-postais de New England, Us I was wrapped in black fur and white fur and you undid me and then you placed me in gold light and then you crowned me, while snow fell outside the door in diagonal darts. While a ten-inch snow came down like stars in small calcium fragments, we were in our own bodies (that room that will bury us) and you were in my body (that room that will outlive us) and at first I rubbed your feet dry with a towel because I was your slave and then you called me princess. Princess! Oh then I stood up in my gold skin and I beat down the psalms and I beat down the clothes and you undid the bridle and you undid the reins and I undid the buttons, the bones, the confusions, the New England postcards, a noite de janeiro às dez da noite, e nos erguemos feito trigo, acres e mais acres de ouro, e nós colhemos, colhemos. the January ten o’clock night, and we rose up like wheat, acre after acre of gold, and we harvested, we harvested. Sr. Meu por Rafael Montovani Note como ele numerou as veias azuis no meu peito. Tem dez sardas além disso. Mr. Mine Notice how he has numbered the blue veins in my breast. Moreover there are ten freckles. Agora ele vira à esquerda. Agora à direita. Now he goes left. Now he goes right. Está construindo uma cidade, uma cidade de carne. He is building a city, a city of flesh. Ele é um industrial. Passou fome em porões He’s an industrialist. He has starved in cellars e, senhoras e senhores, foi surrado por ferro, pelo sangue, o metal, pelo triunfante and, ladies and gentlemen, he’s been broken by iron, by the blood, by the metal, by the triumphant iron of his mother’s death. But he begins again. ferro da morte da mãe dele. Mas ele recomeça. Now he constructs me. He is consumed by the city. Agora me constrói. A cidade o consome. From the glory of words he has built me up. Da glória das tábuas ele me ergueu. From the wonder of concrete he has molded me. Do milagre do concreto ele me moldou. Me deu seiscentas placas de rua. He has given me six hundred street signs. The time I was dancing he built a museum. He built ten blocks when I moved on the bed. Da vez em que eu estava dançando ele construiu um museu. He constructed an overpass when I left. Construiu dez quarteirões quando me virei na cama. I gave him flowers and he built an airport. Construiu um viaduto quando eu fui embora. For traffic lights he handed at red and green Dei flores e ele construiu um aeroporto. lollipops. Yet in my heart I am go children slow. Distribuiu como semáforos pirulitos vermelhos e verdes. Mas no coração sou cuidado crianças brincando. 71 Canção para uma moça por Rafael Montovani No dia dos peitos e dos quadris pequenos a janela salpicada de chuva podre, Song for a lady On the day of breasts and small hips On the day of breasts and small hips the window pocked with bad rain, rain coming on like a minister, we coupled, so sane and insane. chuva insistente feito um padre, We lay like spoons while the sinister copulamos, com mais juízo e com menos. rain dropped like flies on our lips Deitamos que nem colheres enquanto a chuva and our glad eyes and our small hips. sinistra caía feito moscas nos nossos lábios febris e nossos olhos contentes e nossos pequenos quadris. “The room is so cold with rain”, you said and you, feminine you, with your fiower said novenas to my ankles and elbows. “O quarto está tão frio com essa chuva”, você disse You are a national product and power. e você, você fêmea, com sua flor Oh my swan, my drudge, my dear wooly rose, rezou novenas para os meus tornozelos, cotovelos. Você é um produto e uma potência nacional. even a notary would notarize our bed as you knead me and I rise like bread. Ó meu cisne, rosa querida felpuda, minha serviçal, até um tabelião autenticaria nosso colchão enquanto você me amassa e eu cresço que nem pão. 72 Adelaide Ivánova (Recife, 1982) é fotógrafa, poeta, Rafael Mantovani nasceu em 1980 em Anne Sexton (1928-1974) foi uma escritora esta- escritora e tradutora brasileira. Lançou os livros São Paulo, e mora em Berlim desde dunidense, considerada uma das mais impor- autotomy (...) (Pingado-Prés, 2014), Polaróides 2011. Ganha a vida como tradutor e tantes autoras do gênero de poesia confessio- (Cesárea, 2014) e O martelo (Douda Correria, 2016). gasta como poeta. Publicou poemas nal e vencedora do Prêmio Pulitzer de Poesia Seu trabalho já foi exposto no Brasil, Argentina, em algumas revistas brasileiras como em 1967 pelo seu terceiro livro, Live or die (ainda EUA, Alemanha, França e Espanha e faz parte a Modo de usar & Co., Lado 7, Rosa e sem publicação no Brasil). Os temas mais recor- das coleções dos museus L’arthotèque (Brest, Opiniães. Seu livro Cão foi lançado em rentes na poesia da autora são depressão, vida França) e Kunst Dieselkraftwerk (Cottbus, 2011 pela Editora Hedra e ele tem um familiar e sexo - ainda que, nos anos antes de Alemanha). Tem publicados textos, traduções novo no prelo. Apresenta-se espora- sua morte, ela tenha escrito poemas mais mito- e fotografias em revistas como i-D, Colors, The dicamente em eventos de literatura e lógicos e religiosos. Sexton lançou oito livros e Huffington Post, Modo de Usar & Co., Suplemento performance em Berlim. se matou em sua casa em 1974, aos 45 anos. Pernambuco, Vogue e Marie Claire, entre outras. Adelaide Ivánova vive e trabalha entre Colônia e Berlim, na Alemanha. 73 74 ensaio fotográfico de Karine Moura “OVITAGEN”, esta série de fotografias, começou a ser produzida durante a execução de um projeto de colagens, com a intenção de captar o processo criativo. Utilizei uma câmera analógica e um celular para realizar os registros da série e depois, tratamentos de imagem para imprimir degradação e efeitos negativos. Karine Moura, 21 anos, é artista visual. Paulista com um pé no interior e outro na capital do Estado, sentiu que queria fazer arte assim que começou a fazer, ainda que sem estudos formais na área. Quando deixou o jornalismo e o interior, começou a descobrir-se artista, primeiro com fotos em celulares e em seguida com câmeras analógicas e autorretratos. Passou então a experiências com desenho, pintura, xilogravura e, atualmente, colagem. Dedica-se ao estudo autodidata e a experimentos independentes. Lista de autores já publicados Alan Kramer, Ana Guadalupe, Alfredo Fressia, Alvaro Posselt, Ana Kehl de Moraes, Ana Martins Marques, Ana Rüsche, André Oviedo, Andréa Del Fuego, Aníbal Cristobo, Barbara Mastrobuono, Bruna Beber, Bruno Palma e Silva, Carina Sedevich, Carol Rodrigues, Carla Kinzo, Cecilia Pavón, Charles Cros, Daniel Francoy, Daniella de Paula, Déa Paulino, Deborah Prates, Dimitri br, Edu Suppion, Ellen Maria Vasconcelos, Érica Zíngano, Fabiano Calixto, Fabíola Weykamp, Fabricio Corsaletti, Felipe Nepomuceno, Francesca Cricelli, Gabriela Ventura, Gertrude Stein, Giuseppe Ungaretti, Glória Paive, Grazi Shimizu, Guilherme Damasceno, Ismar Tirelli Neto, J.F. de Souza, Jimena Arnolfi, Juliana Amato, Júlia de Carvalho Hansen, Juliana Krapp, Kenneth Koch, Luana Vignon, Jeanne Callegari, Joana Hime, Julia de Souza, Julianna Motter, Laura Liuzzi, Leandro Jardim, Leo Ventura, Leonardo Gandolfi, Lielson Zeni, Lilian Aquino, Lubi Prates, Lisa Alves, Luca Argel, Lucas Perito, Luci Collin, Ludmila Rodrigues, Lyn Hejinian, Marcos Vinícius de Almeida, Maíra Ferreira, Maíra Matthes, Marcos Casadore, Mariana Botelho, Marília Garcia, Marcia Pfleger, Matheus Hatschbach, Mirella Carnicelli, Miriam Adelman, Múcio Góes, Nathalie Lourenço, Noemi Jaffe, Odile Kennel, Pierre Masato, Rafael Mendes, Raimundo Neto, Ricardo Domeneck, Rodrigo Garcia Lopes, Rosa van Hensberger, Rubens Akira Kuana, Sergio Mello, Stephanie Borges, Tao Lin, Tiago Feijó, Thiago Ponce de Moraes, Thiago Tizzot, Vanessa Rodrigues, Victor Heringer, Virna Teixeira, William Zeytounlian. Fotógrafos Adelaide Ivánova, Ana Kehl de Moraes, André Lasak, Alexandre Santos, Carol de Andrade, Camila Lordelo, Daniela Feder, Edu Suppion, Juliana Rocha, Julio Perestrelo, Marcel Fernandes, Mariana Caldas, Pedro Ferrarezzi, Raphael Bernadelli, Rodrigo Sommer, Thany Sanches, Vanessa Carvalho. Sobre as fotos O instante que não estava lá. Quando movimento e momento se fundem. Kris Foltran e a criação de um universo. O viver e o morrer Materializando o invisível Não é difícil olhar para as obras de Kris Foltran. Não é fácil entender a obra de Kris Foltran sem Os olhos se perdem em mundo de detalhes e for- levar em conta a sua interação com o momen- mas. O mais interessante, entretanto, é quando to. Com sua câmera tenta fotografar o invisível. se percebe elementos outrora nítidos colidindo Atenta, faz duas fotografias, como se a vida fos- em explosões de novos temas, novas sensações. se um tesouro a ser lapidado não com apenas O seu momento fotográfico é duplo. Há o viver um golpe. Então, contrói uma dupla exposição em dois tempos, que uma vez amalgamados na tentativa de extrair do mundo algo que não morrem para dar vida ao que não somente com pertence ao mundo dos sentidos. olhos pode ser visto. - Guilherme Zawa, curador da Galeria Airez (Curitiba, janeiro de 2015) 88 Kristiane Foltran, curitibana nascida em 1978, é artista visual e designer gráfica. Durante sua formação acadêmica teve contato com fotografia analógica e laboratório e desde então aprofundou seus estudos fotográficos. Criou o Grupo Ta Da Ça, para discussões artísticas, produção e construção de novas linguagens, com fins expositivos e mercadológicos. Atualmente, interessa-se em formular seu trabalho com base em conceitos pós-modernos. Sua trajetória conta com seleções em editais participações em concursos e exposições, individuais e coletivas, nacionais e internacionais. Mais informações estão disponíveis em seu site: krisfoltran.com.br 89 Edição Bruno Palma e Silva Lubi Prates Fotos Kristiane Foltran krisfoltran.com.br Projeto gráfico Bruno Palma e Silva palmaesilva.com.br A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar. Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados. Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores, cuja gentileza agradecemos. Novas contribuições são sempre bem-vindas, fale conosco! revistaparenteses.com.br facebook.com/revistaparenteses [email protected]