Música no Renascimento

Transcrição

Música no Renascimento
Música no Renascimento (séc. XV- XVII)
Um pouca da História da Música Religiosa Renascentista
No séc. XV a Ars Nova vai gradualmente evoluindo para a arte da Renascença, já não só na Música Religiosa mas também na profana. Tudo começando na região franco-flamenga, na corte da
Borgonha.
Guillaume Dufay (c.1400-1474), depois de Machault ter escrito apenas uma Missa completa, é o
primeiro compositor a fazê-lo mais frequentemente. A sua Missa mais conhecida é a Messe
L’homme armé, que se baseia numa canção profana inglesa com o mesmo nome e muito em voga na
época.
Johannes Ockeghem (c. 1410-1497) é talvez a figura mais inovadora deste período – a melodia, que habitualmente era atribuída à voz mais aguda, também pode
andar pelas vozes mais graves (tenor ou baixo), aumenta a extensão musical
com notas mais agudas e mais graves para obter efeitos mais dramáticos, a clareza do texto é uma preocupação. Foi também conhecido como um virtuoso da
matemática musical (na sequência do séc. XIV), chegando a compor a Missa
cujusvi toni (Missa em qualquer tom) que podia ser executada em qualquer tonalidade sem que houvesse alguma desarmonia.
Josquin Desprez (c.1440-1512) que, sem ser inovador como Ockeghem, criou a
música mais perfeita, se assim se pode dizer. As suas Missas e Motetes atingiram a maturidade e as suas harmonias aproximam-se do ideal estético mais recente, como na Missa pange lingua. Tendo ido para Itália, foi o primeiro a compor Salmos e outras partes do Velho Testamento.
Johannes Ockeghem
Entretanto, com a Reforma a música religiosa separa-se a par da igreja. Em Inglaterra surgem compositores, como John Taverner, Thomas Tallis e William Byrd, que escrevem não só em latim mas
também na língua vernácula (o inglês) num estilo mais livre, enquanto que Giovanni da Palestrina
(em Itália), Roland de Lassus (na Alemanha) e Tomás Luis de Victoria (em Espanha) compõem
uma música mais convencional devido às regras impostas pela igreja romana. Uma vez mais, a
igreja (católica) procura a importância do cantochão e o despojar da música de temas e textos profanos.
Roland de Lassus dirigindo os músicos da Corte de Munique
Um pouca da História da Música Profana Renascentista
A música profana adquire uma maior importância e desenvolvimento. É escrita por compositores
famosos e é, sobretudo, destinada à Corte (alguns reis eram mesmo exímios executantes).
Agora é a vez da Itália tomar a dianteira e criar um novo estilo que se difundiria rapidamente pelo
resto da Europa – o Madrigal. A necessidade de criar um estilo mais flexível na adaptação da música à poesia de Petrarca, então muito em moda, e de outros poetas contemporâneos, fez com que
surgisse o Madrigal. Escrito para vozes cantadas, as cadências e o ritmos procuravam o correspondente significado. Esta forma musical foi, obviamente, utilizada por diversos compositores e atingiu a maturidade com Monteverdi.
Claudio Monteverdi (1567-1643) foi mestre de capela de São Marcos, em
Veneza. Compôs obras para dois coros (adaptado às características arquitectónicas de São Marcos, já experimentadas por Andrea Gabrieli), com
instrumentação variada, como Vespro della Beata Vergine. Foi um mestre
do Madrigal e está ligado ao nascimento da Ópera, que, apesar de outros
músicos a terem já esboçado, atinge com Monteverdi um desenvolvimento
e uniformidade de estilo – os temas são geralmente ligados à antiguidade
clássica, como Orfeo, Il Ritorno d’Ulisse in Patria ou L’ Incoronazzione di
Pompea.
Entretanto, em Inglaterra, numa luta entre Reforma e Contra-Reforma, os músicos compunham
ora para uns ora para outros. O Madrigal encontrou aqui um vasto terreno para se expandir –
Thomas Morley (1557-1603) foi o dinamizador da Escola Madrigalista Inglesa, e alguns reis foram
dotados neste campo.
A canção acompanhada por alaúde, muito popular na época, ganhou terreno, sendo John Dowland
(1563-1626) o seu expoente máximo. Dowland escreveu num estilo melancólico e frequentemente se
referiu a si próprio e a membros da sociedade. Nesta altura surge um tipo de escrita musical adaptado ao alaúde – as Tablaturas – onde se mostrava a posição dos dedos nos trastos do instrumento
(como se faz hoje na música para guitarra).
Henry Purcell (1659-1695) é considerado o maior compositor inglês, apesar de um retrocesso no processo de escrita, devido a limitações religiosas. Da sua imensa produção destaca-se a no campo da
ópera como Dido e Eneias, cujo lamento de Dido não pode deixar alguém indiferente.
A música instrumental (só para instrumentos) ganha igualmente um grande ascendente. Normalmente associada à dança, escrevem-se Fantasias, Ricercare, Chaconnes, Allemandes, etc.
que mais tarde dão origem às Suite e à Sonata. Os instrumentos de tecla aparecem, em particular o Virginal (em Inglaterra) e
a Espineta ou o Clavicórdio (no continente), assim como os de
cordas habituais duma orquestra actual – o violino e a viola da
braccio que se juntam à viola da gamba (que se segura entre as
pernas).
Músicos tocando Viola da Braccio e
Viola da Gamba
As Formas Musicais
CANTO GREGORIANO – ou Cantochão, continuou a ser cantado sozinho ou intercalado
com a polifonia nos rituais religiosos.
MISSA – é habitualmente composta em 5 partes principais: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e
Agnus Dei. Outros momentos da missa, como o Laudamus te, Cum Sancto spiritu ou o Benedictus podem ser tratadas separadamente.
MOTETE – obras normalmente a 3 e 4 vozes, em que a voz com a melodia pode agora estar tanto
na voz aguda como no tenor ou no baixo (vozes mais graves).
SALMO – peça polifónica composta sobre textos do Velho Testamento.
MADRIGAL – peça desenvolvida a partir da frottola, para 3 a 7 vozes sem acompanhamento instrumental, embora quando houvesse falta de alguma das vozes pudesse ser substituída por um instrumento. É caracterizada por uma correspondência entre o texto e o ritmo – a palavra corrida é desenhada por notas muito rápidas, enquanto dor seria por notas lentas.
INTERMEDII – era um conjunto de canções, madrigais e balletti em arranjos cénicos ocorridos
durante cerimónias importantes, como casamentos. É nesta forma que se baseia a Rappresentazione di Anima e di Corpo (1600), de Emilio de Cavalieri, considerada a primeira ópera.
VILANCICO – é uma canção de Natal, de tema religioso, muito divulgado na região galaicoportuguesa. Era frequentemente cantado nas igreja, mas viria a ser proibido pelo seu cariz profano.
Foi ainda uma forma muito utilizada, com as devidas adaptações, na colonização do novo mundo
para atrair novos cristãos.
Adoração do Cordeiro (pormenor superior), Jan van Eyck
Os Anjos tocam órgão, harpa e viola da braccio
Os Instrumentos
Instrumentos de Sopro ou Aerofones
Não existem alterações significativas relativamente à Idade Média. Utilizam-se mais frequentemente as Flautas, Charamelas, Cromornes, Cornetos, Baixão (espécie de Fagote) e Gaitas de Foles nos instrumentos de sopro, Trombetas (Trompete), Trompas (naturais ou de caça), Sacabuxas
nos instrumentos de metal. E, claro, o Órgão continuou a ser o instrumento
de igreja.
REALEJO – era um órgão portátil, em que o som é emitido não por um tubo
mas por palhetas livres.
Instrumentos de Percussão
Também não existem alterações significativas relativamente à Idade Média.
Continuam-se a preferir o Tamborim, o Tambor, os Timbales e os Crótalos,
entre outros.
Anjos tocando,
della Robia (Cat. de Florença)
Instrumentos de Cordas ou Cordofones
ALAÚDE – desenvolvido a partir do seu antepassado grego, a caixa acústica é
periforme (forma de pêra) e as cordas são dedilhadas ou tocadas com uma palheta. Também com uma construção cuidada, a abertura da caixa era trabalhada
como as rosáceas de uma catedral gótica. A Teorba (mais pequena) e o Chitarrone (maior) possuíam um segundo braço maior.
VIHUELA – semelhante ao Alaúde, a caixa acústica já aparenta a forma da
Guitarra clássica actual. Possuía 6 pares de cordas.
VIOLA DA GAMBA – antepassado do violoncelo, a caixa acústica era semelhante à do alaúde. O som era produzido pela fricção de um arco com crinas de
cavalo resinado. O termo deve-se ao facto do instrumento ser seguro entre as
pernas (gambe).
VIOLA DA BRACCIO – termo utilizado para distinguir da viola da gamba,
sendo mais pequeno que este e seguro pelo queixo e pelo braço. Deu origem à
Viola de Arco actual e ao Violino (mais pequeno). Cremona foi centro de grandes construtores de violinos e violas, como Stradivarius, Amati ou Guarnieri,
cujos instrumentos valem hoje verdadeiras fortunas.
VIRGINAL – de forma de caixa rectangular ou triangular (Espineta), as cordas, que
abarcam cerca de 4 oitavas e 1/2, são vibradas pela passagem de uma pena controlada
por um teclado. Daria origem ao Cravo.
Rainha Isabel I tocando
alaúde
A Música e a Arte
Como na Pintura, também a música encontrou dois importantes pólos de desenvolvimento – um
franco-flamengo e um italiano.
O desenvolvimento da Polifonia Renascentista – mais cheia, rica e colorida – encontra um paralelo
na descoberta da Perspectiva – as figuras de um quadro já não se confinam a um plano, mas a um
espaço que parece desaparecer no infinito. Igualmente, a música franco-flamenga é mais escura –
ritmos mais pausados e melodias mais dramáticas e interiores – e a italiana é mais clara – ritmos
mais vivos e melodias mais juvenis e exteriorizadas.
O Casamento dos Arnolfini, Jan van Eyck
Escola Flamenga
O Nascimento de Vénus , Sandro Botticelli
Escola Italiana
Curiosidades
Com o desenvolvimento da tipografia na Alemanha por Gutenberg, Giovanni Petrucci imprimiu
em Veneza, em 1501, um livro de música com caracteres móveis.
Josquin Desprez frequentemente utilizou a música com
um certo sentido de humor, permitindo-lhe, desta forma,
enviar alguns recados.
Compôs uma Missa em Lá-Sol-Fá-Ré-Mi, que corresponde à frase italiana Lascia fare a me (Deixa isso comigo) que o conde Sforza usava quando lhe devia o salário.
Perante a mesma situação de dívida do rei Luís XII, Desprez escreveu o
Motete Memor esto verbi tui (Lembre-se da sua promessa). Quando a
dívida foi saldada, escreveu outro Motete a agradecer.
Este mesmo rei pediu um dia a Josquin para escrever uma Chanson para
ele próprio cantar. Uma vez que o rei não era propriamente um cantor dotado, escreveu-lhe a peça com apenas uma nota – assim não haveria o perigo do rei desafinar.
Audição
Apesar da música desta época já ser escrita, a reprodução da música Antiga têm procurado, sobretudo a partir dos escritos teóricos e das características dos instrumentos da época, uma interpretação fiel à época em que foram compostas. Por exemplo, a utilização de Contra-tenores (vozes masculinas que cantam em falsete) para as partes agudas, uma vez que as mulheres não podiam cantar
dentro das igrejas.
É o exemplo do trabalho desenvolvido pelos diversos grupos vocais e/ou instrumentais, como os Pro
Cantione Antiqua de Bruno Turner, La Chapelle Royale de Philippe Herreweghe, Segréis de Lisboa de Manuel Morais ou The Hilliard Ensemble de Paul Hillier, entre outros.
Música Sacra do séc. XV ao séc. XVII
Hino – Hostis Herodes impie (para a Epifania), Guillaume Dufay
ƒ
Schola Hungarica, dir. Janka Szendrei
Motete – Ave Maria, Johannes Ockeghem
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The Hilliard Ensemble, dir. Paul Hillier
Missa – Messe de l’Homme Armé sesti toni– Kyrie, Josquin Desprez
ƒ
A Sei Voci, dir. Bernard Fabre-Garrus
Missa – Missa Pro Defunctis – Kyrie, Tomás Luis de Victoria
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Westminster Cathedral Choir, dir. David Hill
Antífona – Natus est nobis hodie, Thomas Tallis
ƒ
Robert Wooley (órgão)
Música Profana do séc. XV ao séc. XVII
Madrigal – Madrigali Guerrieri – Madrigal IV, Claudio Monteverdi
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Collegium Musicum Aldovadensis
Madrigal – Arise, awake, awake, Thomas Morley
Madrigal – Hark! Did ye ever hear so sweet a singing?, Thomas Hunt
ƒ
Pro Cantione Antiqua, dir. Ian Partridge
Vilancico – Pues a Dios Humano vemos, anónimo
Instrumental – Oyelos Graçiosos, anónimo
Canção – Sabete Gil que me muero, anónimo
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Segréis de Lisboa, dir. Manuel Morais
Song – Now, o now I needs must part, John Dowland
Song – The Miller of Dee, tradicional
Song – Greensleves, tradicional
ƒ
Paul Esswood (contra-tenor) e Jürgen Hübscher (Alaúde)
Textos e compilação musical de José Manuel Russo
para a Exposição do Departamento de Artes Visuais e Técnicas, 2004