e prata - ADIGAL
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e prata - ADIGAL
MIRAGENS NA ETIMOLOGIA GALEGO-PORTUGUESA DE BASE LATINA? por Higino Martins Esteves Donde o advérbio ALIÁS? Erudito ou popular? Miragem típica. A prosápia de CIAR e a sua larga parentela A família disfarçada viaja para longes terras CORAÇÃO Etimologia impossível? Talvez não. ENTERQUINAR Um catalanismo do galego não documentado em catalão ESTOURAR Com efeito, o rei vai espido. Etimologia de estourar-estoirar. Miragem certa: O que foi das JÃS? Etimologias de jã, antarujã, antarujaira, jaira, *jairo, -a. OFERTA Parece palavra latina... Será? PETRÚZIO O morgado popular na Galécia De PRATOS e PRATA De prato, prata “argento” e prata “dinheiro”. UIVAR, OUVIAR-OUVEAR, OULAR e BURLAR Etimologias de oular, aular, oulear, uivar, ouviar, ouvear, oviaruviar “chegar, alcançar a”, burlar, burla, bulha e ular “aturujar”. DONDE O ADVÉRBIO ALIÁS? No dicionário etimológico de J. P. Machado leio que o advérbio aliás viria do lat. aliās. A. Geraldo da Cunha repete-o, e coincide em que teria entrado por via erudita. Mas por via popular aliās teria dado certamente o paroxítono *alhas. Quanto ao sentido, em latim era advérbio de tempo, “outra vez, noutro tempo”; depois na fala popular passou a ser também de lugar, “noutro sítio”, e desde Plínio o Antigo podia ser de modo, “de outra maneira”. Ora bem, neste dossiê há algumas circunstâncias obscuras: 1) Se veio por via erudita, o valor devera ser o clássico, temporal, mas o uso constante, desde as primeiras documentações, é claramente de modo. 2) O anómalo deslocamento do tom é indissimulável, mas não se lhe buscou explicação, até onde sei. Se palavra erudita, talvez nascesse entre estudantes –competentes em latim–, mas nada autoriza a supor que lhe dessem, nem faceciosamente nem a sério, uma fingida pronúncia francesa. É justo revisar essas apressadas opiniões. E deveremos andar outras vias no intuito de formular hipóteses mais firmes, sem medo das equivocações. COMECEMOS DE NOVO É útil situar a palavra no tempo. A primeira documentação, no séc. XVI, permite supor que surgisse entre a renascença e esse século, congruentemente com o cariz culto dos utentes do advérbio. Esse século é também o que regista os últimos documentos de muitas palavras arcaicas, do período galego-português. A encruzilhada de períodos brinda uma hipótese que talvez atine no étimo: A locução seria al hi hás, quer dizer, “outra cousa aí tens”, Esta locução triplamente arcaica –logo desprezada– teria atingido subitamente o salvo-conduto para sobreviver numa etimologia “erudita”, numa etimologia popular de cunho letrado. Os cultos, ao não reconhecer ou não querer reconhecer a locução popular, em ouvindo-a creram ver nela o latino aliās. Al (do lat. antigo e popular alid, clássico aliud) invisibiliza-se depois do séc. XVI, bem que surja às vezes nos adágios e suspeitemos a subsistência latente nos dialetos, por caso nos galegos, onde era viçoso no XVII, soa no XVIII e chega a ler-se na parte final do Conto Galego de Rosalia de Castro. No castelhano, o rechaço de Juan de Valdés, no Diálogo de la Lengua, adverte-nos sobre o cariz rústico que o acompanhava. I ou hi (do lat. ibī cruzado com hīc) chega ao mesmo século XVI, e o verbo haver com o valor do nosso ter (verbo principal como em latim) também chega ao séc. XVI. Todas essas palavras (al, i e hás por “tens”) já eram então arcaicas, de saibo rústico, sem brilho nem prestígio. E arcaico, ou escassamente apolíneo, era o uso do tratamento familiar por tu, da segunda pessoa singular, fora da íntimidade. O disfarce latino varria desprestígio e permitia o uso em qualquer contexto. O tempo varreu os ecos a vibrar ao pronunciar e ao escuitar as três palavras, mas pode imaginar-se, palidamente, os abismos linguísticos que separavam os níveis de falantes. A PROSÁPIA DE CIAR E A SUA LARGA PARENTELA ciar “remar para atrás”, cia-voga, ciar “ter ciúmes”, cear “recuar”, cia “osso do cadril”, cé!, cea!, ceaqui! [gal. boh!, cast. ¡ce!, ¡che!, cat. xe!] 1. A origem de ciar “remar para trás” é incerta, apesar de ser declarado vindo do castelhano por aí ter aparecido os documentos mais velhos1. É não computar a má guarda das nossas fontes, roborada em casos de autoctonia certa e documentação antiga escassa. Mas desde 1968 sabe-se a datação do derivado ceavoga (mod. cia-voga) na metade do XV, na Crónica do descobrimento e conquista da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, morto em 14742. Os étimos que recusa Coromines3 decerto não persuadem. É palavra náutica das línguas hispanas e mediterrâneas: português, castelhano, catalão, provençal, genovês, > itáliano, veneziano, croata, grego e mesmo turco. Da análise (v. DCECH II, 59) surge um protótipo com sibilante inicial africada4. Para dar no étimo pouco há: cariz náutico, africada inicial, vocalismo. O cariz náutico é geral; só baixa a candidatura castelhana. A passagem da africada inicial a fricativa é fácil; a inversa, difícil. Descem possibilidades do provençal (sem textos antigos) e das línguas orientais, fora o veneziano, com africada. Para hipóteses de saída só há português, catalão e veneziano. Aí vence o catalão: o português quase não é mediterrâneo (o teatro é a principal óbice para atribuir-lho) e o veneziano parece isolado, de documentos algo serôdios. 2. Devéramos pegar a pesquisa no catalão, mas só o português tem variações vocálicas no tempo distribuíveis. Em galego-português as formas velhas eram cear-ceiar e o derivado ceavoga, em vez dos atuais ciar e cia-voga. Não vale arguir a labilidade vocálica da língua: a variante ceiar (Moraes) ancora firmemente o timbre antigo da primeira vogal. Sugeriu a origem portuguesa Coromines (loc. cit.): do lat. zelāre e o seu fruto ciar(-se) “ter ciúmes”, mas descartou-a pelo forçado étimo cia “osso do cadril”. Esqueceu as vogais antigas na nossa língua, que cumpria integrar. Não tivera ocasião de conhecer documentos galego-portugueses mais antigos, dos que justamente sente a falta e que nós agora já temos (o ceavoga de da Zurara). De cear é o moderno ciar. A passagem é corrente em português, que procura desfazer hiatos: alumear > alumiar. Bem que também há casos de conservação (nomear) e ziguezagueantes (cambiare > cambear-cambar > cambiar), de explicação pontual, em cear era obriga dissimilar a causa do cear “tomar ceia” e o ant. cear (mod. ciar) “sentir, manifestar 1 Vários autores da primeira metade do século XV, segundo Coromines (DCECH II, 59, sub ciar). 2 Cito de R. Lorenzo, Sobre Cronologia do Vocabulário Galego-português, Vigo, 1968. E Maria A. Tavares Carbonell Pico, A Terminologia Naval Portuguesa anterior a 1460 (cita de J. S. Crespo Pozo, que não diz o ano da edição). 3 Lat. secāre “cortar (as águas)” era o étimo para D'Ovidio e Baist. Para Meyer-Lübke, Gamillscheg e Rohlfs seria o gaulês ou celtolatino *SELIARE. “Sólo podrían justificarse fonéticamente si el vocablo en todos los romances procediera del francés, cuando todo prueba lo contrario”. “El fr. scier en nuestra acepción náutica es palabra poco castiza, pues Jal afirma que en francés se dice culer o nager a culer; los testimonios más antiguos son los de Duez (1674) y Cotgrave (1611), que traen la ortografía sier. Tratándose de un vocablo integrante de la terminología náutica mediterránea ha de ser italianismo o acaso provenzalismo” (Coromines, loco citato). 4 Gal.-port., cast., cat. ciar, veneziano ant. ziare (mod. siare). As formas fricativas podem vir das africadas; não é verossímil o contrário. Quanto às formas com sibilante palatal, genovês sciare, > it. sciare, > croata šijat, propagadas desde o genovês sobre formas com s- (como it. ant. siare), são claramente posteriores. ciúmes” (que não cremos ser cear-ciar “remar para trás”). Se cear precede ciar, é preciso optar entre duas conclusões: ou cear é independente das formas forasteiras com -i- e é fortuita a coincidência semântica, ou as formas forasteiras vêm do port. ciar. Formas não portuguesas com -i- há já no séc. XV (cat., it.) entanto que o português cear chega a meados do séc. XVI, o que argúi contra o português. É que um é a escrita, com a inércia do sistema fonológico, e outro a pronúncia, a realização, mais quando os forasteiros possuem sistemas vocálicos diversos do do emissor. Cear para portugueses tinha fonema E (à parte se aberto ou fechado quando tónico) e isso escreviam, enquanto aí realizavam sons mais fechados do aceitável nos sistemas doutras línguas para fonemas homologáveis. Os forasteiros viam aí o seu fonema I. Afinal a analogia (e talvez uma retroalimentação a partir doutras línguas) generalizou o timbre I mesmo nas formas rizotónicas do português. 3. Parece pois que o cariz náutico do termo e sobretudo a fundura diacrónica do vocalismo apontam para a origem galego-portuguesa. Se na pesquisa se parte desta hipótese, devemos coerentemente excluir a de cia “osso do cadril”5 por também não acordar com o vocalismo primitivo em português. Partamos logo da forma cear como mais antiga. Pois bem, esta conserva-se até hoje no léxico agrário dos falares galegos. Nos léxicos galegos (já Cuveiro Pinhol), cear é: a) “ciar, remar para trás”, b) “recuar em geral” e c) “fazer recuar gado vacum que puxa o arado ou carro”. A 1ª aceção –em Cuveiro Pinhol e Estravis, não em R. Gonçález, Carré e F. Grande–, é dúbia e não a vi roborada noutros informantes. Será homologação das duas variantes, mercê da forma próxima e o factor semântico comum de “retrocesso”. Mas nenhum marinheiro diz cear “remar para trás”. A 2ª (1ª de Estraviz), generalização ou abstração, é de surgir espontâneo, e influxo do castelhano, que também generaliza, ao invés do português comum. A 3ª é o sentido real e verossimilmente o primitivo. Crespo Pozo traz variantes formais e semânticas. De Fernândez Pousa recebe acear e diz em Verim coexistir cear e ciar no mesmo plano, logo haver um ciar “recuar os bois”. E em Padrão haver, com “sesseio”, ciar “dar volta ao carro”, o que em cear é um pouco geral. 4. Logo o sentido real, antigo e atual, de cear foi e é “fazer recuar os bois jungidos”, que dantes passou ao geral “recuar”, depois a “remar para atrás”. Na boca de marujos cear fezse ciar. Ciar é deles e cear de lavradores, sem contaminações a alterar o quadro. Quadra perguntar donde virá cear. E aduzir o sentido do falante que usa a palavra, que sente vínculo com a interjeição cé! (à margem de se certo ou paretimológico), para fazer recuar os bois no tiro: cé, boi!, registada desde o P. Sarmiento. Nos léxicos vem sem variantes (R. Gonçález, Carré, F. Grande) até o de Estravis, que nota o nexo assinalado nas variantes que traz, cea! e ceaqui!, baseadas em usos modernos. Cea! parece paretimologia em cé! sob influxo de cear, inda que a precedência aí dada a cea! note ter-se por imperativo de cear, e logo cé! ser secundário. A ordem será justo a inversa: cé criou cear. E ceaqui! será causa parcial de cea!, ao admitir a falsa segmentação: cé aqui! > ceaqui! > cea aqui! Ao cabo, para gerar cea foi factor concorrente, nalguns falares galegos, a progressiva substituição analógica da desinência -é por ea (marea por maré; grea por dial. gré, por grei; chaminea por chaminé; etc.). Fundados na autoridade de Sarmiento e da tradição, continuamos logo a crer que cé! é a única forma antiga e que dela procede em data românica o verbo cear6. 5 6 Do vulg. scia, lat. ischia, ischiōrum “ossos do cadril”, por sua vez do gr. Æσχία, -ιjν. A suspeita de influxo paretimológico desde cé! num ciar vindo de fora, que daria cear no mundo dos lavradores, não tem fundamento; foi justamente do mundo náutico português donde surgem os testemunhos primeiros com -e-. 5. Etimologia de cé! Pensava eu em fazer longa defesa do estudo etimológico das interjeições, postergado pela opinião que só lhe concede peso na génese aos factores expressivos e fonossimbólicos. Sei desse factor e de algumas ter nado de sons eficazmente simbólicos, mas estou persuadido de as mais virem de velhas palavras, pouco dá quão remota seja a data em que perderam a função original. Eis o gal. boh!, cast. bah!, boa mostra do que dizemos7. Mas não é mister estender-se na etimologia de cé!, que ora vejo bem fundada na autoridade do P. Sarmiento, que há dous séculos já sabia donde vinha8: Cé! vem do latim cēde, imperativo singular de cēdere, verbo de semântica complexa. Cēdō, -is, cessī, cessum, cēdere era primeiro “andar, ir, vir”, a marcha em sentido lato. Tal amplidão, amiúde ambígua, fazia a rareza na língua escrita e o desenvolvimento de aceções em campos especiais com regimes próprios, e depois a formação de derivados e compostos de sentido mais preciso. A 2ª aceção, frequente, foi “ir-se (embora), retirar-se”, próxima da 3ª, “ceder o passo a alguém, retirar-se ante”. Interessa muito a 4ª, “cessar, deixar de, deter-se”, e a geral de “ceder, afrouxar ante outrem, conceder”. Há outras menos relevantes ao nosso intuito: “chegar a, ir parar”, “virar, transformar-se em” e, enfim, um longo elenco que nos desvia9. Logo o imperativo cēde!, por abrangente e por incluir o gesto, era mais penso a durar que o resto do verbo simples, e a passar a interjeição, depois de isolado e vazado de valor verbal. Umas traduções podem aproximar-nos da sua expressividade no popular e arcaico latim republicano: anda!, vai!, vem!; vai-te!, arreda!; deixa!, para!, detém-te! Para o nosso cé! cumpre reter para!, detém-te! e sobretudo arreda!, que ainda não são recua!, mas andam próximos. As fontes não deixam saber se já valia recua! Se ainda não, perto estava e o passo será românico. Suspeito estar já implícito no verbo simples. A ambígua amplidão da aceção 1ª dava possibilidades de muito uso na língua coloquial, na que contexto espacial, dêixis, gesto, se unem para obter uma comunicação eficaz e breve (fez a fortuna de cēde na língua oral e o esquecimento de cēdere na escrita). Mas em níveis formais é necessária a precisão linguística, o que gera a pletora de derivados e compostos não passados às línguas românicas por não arreigados na língua popular. Mesmo cēdō não tem quase eco românico, mas no caso as razões eram inversas, a perda de prestígio na língua formal. Os derivados volveriam depois quase todos por via erudita. Sublinho os derivados, de um lado, ser mais da língua formal que da coloquial, e doutro lado, que inda lhe podemos discernir o carácter recente, a escassa presença no latim galeco. Para “recuar” voz clássica era recēdō, que não deixou pegada. Retrocēdō é forma do séc. II; também não podia deixar rasto no latim popular galeco. Daí pensarmos que em cēde! já palpitava recēde!, quer dizer, 7 Gal. boh!, cast. (bah!, interjeições de forte menosprezo, vêm a meu ver do antigo vá, 3ª pessoa sg. do presente de conjuntivo de ir, antiquada em castelhano e nos falares galegos sob o seu influxo, e substituída pelo bissílabo vaya (e vaia). A energia depreciativa vai em razão direta ao esquecimento da origem verbal. Fases menos evoluídas do processo são as interjeições galegas vaite, vaites, vaiche, vaiches e a cast. vaya, nas que ainda transparece a origem e a ironia supera o menosprezo. No fundo há locuções do tipo “vá por Deus”, com que se despede um esmoleiro. Em cast. a ortografia atual documenta-se primeiro no Marquês de Ribas (inícios do séc. XIX), segundo Coromines. A forma etimológica (ainda verbal, mas já interjetiva) aparece na última frase do mamotreto III de La Loçana Andaluza (1524), de F. Delicado: “va, va, que en tal pararás”. 8 Na Colecção de Voces y Frases Gallegas, 405, e no Catálogo de Voces y Frases Gallegas, 221 v. Edição de J. L. Pensado; este subscreve a etimologia do P. Sarmiento, nos seus Estudios Etimológicos Galaicoportugueses, Univ. de Salamanca, 1965, p. 77. Cabe destacar que na primeira das obras se lê cê, enquanto na segunda cé. Não sei se a hesitação é do autor ou do editor, mas será do primeiro. Os informes que possuo falam de E aberto. 9 Para mais, o Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, de Ernout-Meillet, Klincksieck, Paris, 40 edição, 1967. “recua, retrocede, vai para trás”. Os outros valores, às vezes opostos, não se perderam (vêlos-emos nas interjeições afins de domínios vizinhos, em 3. 6.), mas foram-se eclipsando a prol de “recua”. Cēde seria ćẹđe no latim imperial, e passaria ao românico galeco primitivo como čẹđe. Depois já seria ĉẹe no galego-português antigo, e cé! no médio e moderno. 6. Há coirmãos de cé alhures? Etimologia de voz tam breve requer apoios na comparação. 6. 1. Surge o cast. desusado ¡ce!, interjeição para chamar ou deter alguém. Justo os valores de cēde deixados vagos pelo cé! galego. Equivalia a anda, vem; detém-te, para. Coromines aduz testemunhos literários dos sécs. XV, XVI e XVII10. A pátria dos autores (Rojas, Tirso, Cervantes) não excede os limites de Madrid e Toledo; logo pode ser o local moçarábico. A ser lídimo castelhano, o -D- imediatamente postónico permaneceria (Mas cabe ver outra via através da perda do -e final e depois a pronúncia popular alternante que prevaleceu no castelhano platino, em tomá, por tomad: ced(e) > ce). Na sequela de Amado Alonso, Coromines crê ce ser um desenvolver do som tsss, para chamar. Ora, tsss, št ou čst continuam a usar-se para isso sem adir-lhes vogal. No meu castelhano rio-platense chistar (gerado desde čst, som para chamar) vive firme, mas o apelo mesmo, o som de facto articulado, nunca vocaliza. Pode arguir-se que a vogal era somente convenção gráfica, mas logo tal ¡ce! ficaria só, isolado do cé! galego, de vogal certa, e dos che e xe que veremos depois, também de claro centro vocálico. Portanto aqui ao mais pode falar-se de reforço fono-simbólico casual duma raiz léxica. Podemos avançar mantendo a congruência com a hipótese aventurada. 6. 2. É coerente aduzir os che rio-platense, hondurenho, venezolano e o fantasmal andaluz, e o xe (čę) do catalão valenciano. Como diz Coromines, a identidade de usos do che platino e xe valenciano não é casual, como não pode sê-lo a vizinhança que vimos de ver com o ce moçarábico-castelhano. Atentemos para essas interjeições. O che hondurenho e venezolano para Coromines é como “não me importa, pouco me dá”. O che platino e o xe valenciano servem a dirigir-se ao que se dispensa trato familiar, com a peculiaridade de sentir-se-lhes valor pronominal, de pronomes pessoais de 2ª com função só vocativa: designam o interlocutor. Do fugidio che andaluz a documentação é escassa, mas a não ter havido nenhuma, não é menos certo que devíamos imaginá-la para explicar os che americanos, que não podem ser indígenas. Mas vem em La Loçana Andaluza (1524), do cordovês Francisco Delicado 11 , e em andaluzes modernos que citam Amado e Coromines12. O che andaluz parece às vezes vocativo, outras desaprobatório, como o platino-valenciano e o hondurenho-venezolano. Amado Alonso cuidava o che vir de ce e o câmbio dar-se ao desaparecer a africação da sibilante C, tentando manter o factor expressivo ao instalar outra africação ainda possível13. 10 DCECH II, sub ¡ce!. Amiúda na Celestina: “¡Ce! ¡ce! ¡ce!” (Clás. Castellanos I 60. 3), pedindo silêncio; “Pármeno, detente. ¡Ce!, (escucha que hablan estos!” (I 88.21), também para fazer calar a par que se chama; “¡Ce! Señora Celestina: poco as aguijado.” (I 127. 12), simples vocat.; “¡Ce, amigo, que se va todo a perder!” (I 178. 16), vocat., em frase talvez folclórica: conjura o demo; “¡Ce, señor! ¿Cómo es tu nombre?” (II 82. 21), vocat. Há mais. Em Tirso serve a chamar a atenção do interlocutor na introdução duma pergunta: “Ce: )es el conde?” (El Vergonzoso en Palacio, III, 1263) e “Ce, ¿a quién digo? (El Burlador de Sevilla, II, 252). Em Cervantes só o derivado cecear “chamar a alguém dizendo ¡ce!” (Quixote I, XLIII). 11 Citado por Amado Alonso, em Nueva Revista de Filología Hispánica I, Ciudad de México, p. 6: “El normal ce, clásico (de llamada, de silencio, de advertencia) es por lo menos una vez che en La Lozana Andaluza de Francisco Delicado, 1534 [sic]: “y si queréis ver si uno es verdaderamente español hazé que diga chupale, che, vellaco”. 12 Vejam-se em RFH, XX, 74 e DCECH II, sub ¡ce! 13 Revista de Filología Española, XX, 74. Pretende pôr ce e che em sequência cronológica, mas os dados não lhe acordam. O que sim mostram é uma partição territorial: ce de Madrid e Toledo, che de Córdova e Sevilha (e Valência). O toledano Rojas e o cordovês Delicado nasceram no mesmo ano, 1475. Logo o castelhano andaluz de fins do séc. XV e inícios do XVI era fonologicamente mais arcaico que o castelhano do domínio original. O cordovês Delicado tem che, Rojas ce. O madrileno Tirso, na primeira parte do séc. XVII, em plena crise de sibilantes, conserva ce. Logo é partição geográfica: ce e che são paralelas de dialetos diversos. 6. 3. Cuido que quadra deixar o fono-simbolismo e ver a divergência semântica das cinco interjeições: ce vocativo toledano-madrileno; che platino e xe valenciano, vocativo-pronominais; che centro-americano, desaprobativo com rechaço indiferente; che andaluz, a par vocativo e desaprobatório, segundo o caso. As formas vocativas, com matizes, deixam-se reunir facilmente; as desaprobativas ou depreciativas acordam como derivações de cēde nos valores “vai-te, arreda, deixa”. É incerto se no che andaluz os dous valores andavam misturados ou partidos territorialmente. Ajudaria uma pesquisa das pátrias dos colonos platinos e as dos hondurenhos e venezolanos. À margem de detalhes, patenteia-se o vínculo com cēde. Os escassos vestígios românicos de cēdere acordam com estas formas isoladas, próprias de línguas arcaicas qual o galego-português e os falares moçarábicos. 6. 4. Mas, podem ser moçarábicos ce, che, e xe? Cuido que sim. O ce,i latino deu č (ou ž) em moçárabe, como em quase toda a parte. Se chegou a passar este estádio é questão debatida. Para Amado Alonso14, também em moçárabe teria passado rápido a S. Mas na toponímia e nos glosários árabes coexistem formas com ch (č) e c procedentes de ce,i. Se a conservação de č é atribuível ao árabe antes que ao próprio moçárabe, como quer, teremos mais topónimos com ch na Andaluzia e Valência (e no Alentejo e Algarve) que mais ao norte. Quer dizer que bem ao sul houve fixação no estádio č, dando a oposição entre ce toledano-madrilense e che-xe andaluz-valenciano15. Ainda se debate se sonorizaram as oclusivas surdas intervocálicas e houve –interessa mais– queda ou lenição das sonoras. Para não nos deter mais, digamos que havia, mas flutuantes, sem uso consagrado. Cumpre ter em conta o carácter verbal e a frequência de uso, que pendem para a queda. Paralelo moçárabe oportuno é o de vai (“vai-se meu coraŷon de mib”), de vadit. 7. CONCLUSÕES Além de o enigma de ciar já não ser, nestas pesquisas valoramos as falas da Galiza, e mais uma vez a importância da náutica portuguesa. Adianta um passo a visão do latim vulgar e outro o valor léxico das interjeições. Mitos locais (o che rio-platense e o xe valenciano) dão aclarados. 14 Revista de Filología Hispánica VIII, p. 72. 15 Do moçárabe veja-se Sanchis Guarner, na Enciclopedia Lingüística Hispánica I, Madrid, 1960, p. 293 a 342. CORAÇÃO O étimo de coração e do cast. corazón (ant. coraçon) é desconhecido. Hipóteses não faltam: CâR}TIÆ, -ÆNIS, inviável semântica e foneticamente; *COR}TIÆ, -ÆNIS não explica o -Ç-; *CORICIÆ, -ÆNIS, também não o explica. Escuso a crítica miúda e remito ao DCECH de Coromines, corazón. Todos esses étimos em castelhano antigo dariam formas com -Z-, de todo ausentes antes da mutação de sibilantes recolhida na reforma ortográfica do séc. XVIII. Aí única forma é coraçon, de -Ç- surdo, depois interdentalizado e ao cabo grafado com Z. Uma sugestão de Coromines, que ele não aproveita, fez-me cismar e imaginei a história que dou na ordem cronológica. Os celtas hispânicos obrigados a falar latim, como todos os falantes de duas línguas próximas, tentavam adequar os conteúdos novos nos vasos do velho idioma, escolhendo dos sinónimos da língua nova os similares aos da própria, chegando a fazer palavras novas se o novo sistema o permitia. Em céltico “coração” era *KRADION (Pedersen) ou *KRIDION (Thurneysen, Pokorny), tema em O neutro. Pouco dá a primeira vogal; mas o I ou iode e o O do final são factos certos. O clássico cor, cordis punha dificuldades. O vulg. cor, *coris venceu em francês, catalão e italiano, e talvez corresse entre os celtas hispanos. Mas ao cabo entre estes prevaleceu outra forma de novo cunho: *CORDIÆ, CORDIÆNIS, de um ar mais familiar, ao manter intato o tema cord-, e, com o acréscimo da desinência latina de *RNIÆ, RNIÆNIS “rim”, recobrar o encontro vocálico do céltico. E além disso, a palavra –tecnicismo médico?–, notava melhor a relação com muitos derivados da mesma família, com vēcordia, socordia, *concordium (Meyer-Lübke), discordia. misericordia, praecordia, prāvicordia, torticordius, verticordia. Tal *CORDIÆ, CORDIÆNIS passou para *corçom, na nossa língua e no protocastelhano. Quanto a este passo, veja-se o Manual de Gramática Histórica Española de M. Pidal, ' 53. Eis delida a dificuldade das outras hipóteses! Até aqui todo hipotético, verossímil mas reconstruído. Haverá elos documentados? Sinto não ter um dicionário histórico português para constatar a antiguidade do vocábulo que estimo um testemunho indireto de *corçom: descorçoar, talvez julgado síncope indigna de atenção, e que nesta hipótese vem ser um precioso arcaísmo pasmosamente preservado. *Corçom, ausente do latim, era de deriva fácil, e sofreu anaptixe trás o -R-. A vogal neutra a surgir (*corəçom) tomaria o timbre das vogais vizinhas, confirmando a harmonia vocálica já existente: *coroçom. Este testemunha-o descoroçoar, que se cria deturpação de *descoraçoar. Mas este só pode surgir por analogia, como em castelhano, que não tem aquelas formas antigas. Estes fósseis projetam-se a par na tela sincrônica. A sequência, por verossímil que seja, só cabe conjeturá-la. Mas continua a achegar-nos da congruência o moçarábico qūruŝûn “erva do coração”, que Coromines cita de Asín, editor do glossário moçárabe hispalense de arredor do 1100. Não é galego-português e é algo incerto pela transcrição do alifato árabe, mas isso não nos descorçoa. O câmbio culmina no abrir total da vogal anaptíctica. Rumo inverso do anterior que impunha foneticamente o -R-. Ao passar o O átono a aberto, foi obrigado dissimilá-lo das foneticamente fechadas vogais laterais, tanto por adequar o sistema fonológico das vogais átonas quanto por analogia, em contexto isolado, dos dous sufixos coligados -aço e -om/ ão. Rápido aparece por toda a parte a forma histórica coração. Partindo de coração, não se vê étimo satisfatório para as duas línguas hispânicas. ENTERQUINAR, UM CATALANISMO DO GALEGO NÃO DOCUMENTADO EM CATALÃO A forma flutua. Carré e R. Gonçález têm entirquinar e entirquinência. O segundo, também interquenar e interquenência. Carvalho Calero escrevia interquinência. Também flutuam as definições: entirquinar “disputar, porfiar”, entirquinência, “disputa”, interquenar “obstaculizar, estorvar; causar moléstia”, interquenência, “obstáculo, inconveniente, embaraço; moléstia, enfado, fastio”. É palavra expressiva, de sentido vago e vogais lábeis, ecos de empréstimo mal digerido, sem modelo onde ver-se. Cuido que vem do ant. catalão *enterquí (ou *enterquina), e este de enterc “teso, rígido, duro; teimudo”, deverbal de entercar, ou do hápax enterca, talvez “uno de los malos usos de que se libraron los payeses catalanes de remença en el séc. XV” (Coromines). O sufixo catalão -í, -ina faz diminutivos de nomes que notam modo, matéria, espécie ou procedência16. Os abusos irritam, logo conjeturo que enterquinar primeiro seria “enfastiar, irritar”, e secundariamente, “obstaculizar; disputar, porfiar”. De qualquer jeito, houve um galego *enterquina perdido. A origem última das palavras catalãs está no céltico, como demonstra Coromines17, o que ao cabo justifica incluir enterquinar nesta seção das miragens. Quais as circunstâncias do empréstimo? Disso nada sei ao certo. Peregrinos medievais? Pescadores catalães no século XVIII? Pareceria mais provável o segundo, mas devera ser objeto de estudo mais acurado na documentação galega e catalã. Conclusões A palavra nada lhe deve ao prefixo inter-, nem é erudita (em latim não existe), o que ajuda a grafá-la melhor. Isto importa porque, apesar das obscuridades, é bastante usada. Além disso, é um interessante testemunho na história do comércio cultural galego na época média. E talvez aproveite para a história catalana, se é que ilumina o obscuro uso, abusivo e irritante, que se esconde sob o hápax citado. 16 17 F. de B. Moll, Gramática Histórica Catalana, Gredos, Madrid, 1952, ' 407. DCECeH V, pp. 467 e ss. Dum célt. *TERKO‐ “seco, resseco, estéril; raro, escasso; duro”, indo‐europeu *tersko‐ “seco”, raiz *ters‐ “estar seco”, que deu irl. tir “seco”, “terra”, lat. terra, irl tart “sede”, ant. alto alem. durst, etc. ESTOURAR Outro coco da etimologia galego-portuguesa é estourar, estimado de “origem incerta” ou “obscura”. Se de passagem se emitiu hipótese, recorreu-se a construções difíceis, tendo por certo que a solução não podia ser imediata. A meu ver é tão insolitamente fácil que penso que estamos a ver a nudez do rei e ninguém quer confessá-lo. Estourar vem do lat. instaurare, como ensinam os manuais de gramática histórica. A moderna frequência do erudito instaurar, a sua trivialidade, tolhem ver que o conteúdo semântico do instaurare latino não era o do moderno reflexo erudito. Para Ernout-Meillet a origem do lat. īnstaurāre é incerta. No latim antes do Império era “renovar, recomeçar, reparar, restaurar”. Parece ter sido velho termo ritual religioso-pagão, palavra técnica, cujo significado original na fala dos sacerdotes era “substituir, renovar (cerimónia, sacrifício malogrado)”. Na língua comum, como se deduz das glosas •vαvεοà e renovat, o valor cabe cifrá-lo na voz renovar. Mais tarde, no Império, tal valor se sentiu inconciliável com o prefixo in-, e fez-se restaurāre (cf. instituō, restituō), que o substituiu para “renovar (cerimónia religiosa malograda)”. Nesse momento instaurare passou a ser “oferecer (por vez primeira), estabelecer”. Tal o valor do nosso instaurar erudito. Mas, no latim galeco, procedente da Bética, velho latim republicano, o significado era o primitivo naquela língua comum, “renovar”. Na língua mais antiga, instaurare era “renovar”. Cabe dizer mais? A deriva semântica, bem que longa, é clara. Na língua antiga, o termo podia-se aplicar ao início do ciclo anual dos vegetais, tal qual para nós renovar coincide com rebentar. Instaurare para o povo era “deitar novos rebentos ou renovos os vegetais”, como renovar entre nós. Rebentar (< lat. *REPENT}RE “sair de repente”) antes fora o mesmo, mas, na imaginação lavradora, tal brotar ostentava uma força, um viço, uma potência, quase numinosa. Além disso, tal brotar às vezes tem precisamente as características físicas dum estalo. Estourar passaria pelas três etapas, ancorando ao cabo na última: “renovar” > “rebentar” > “estalar”. Se non è vero, è ben trovato. Rebentar, pedra angular do processo semântico, com a sua polissemia tende a ponte para entendermos como se produziu o longo percurso. Quanto à variante estoirar, presente nalguns falares portugueses, convém destacar que é desenvolvimento secundário de estourar, cuja precedência vem assegurada não só por Camões, mas também pelo uso vivo e único de estourar em galego, que, qual se sabe, não comuta os ditongos ou-oi, fora as poucas excepções de explicação pontual, como louroloiro e mesmo soidade-saudade, frutos duma difusão antiga. O QUE FOI DAS JÃS? (jã, antarujã, antarujaira, jaira, jarela, *jairo, -a) Sabido é que o lat. Diana deu o vulg. Jana, do que vêm muitas formas românicas. Passou no folclore de grande deusa da natureza virgem e dos animais selvagens a “fada noturna” (Du Cange), “fada das fontes” (NO hespérico), “fada que fia de noite” (Algarve), etc. Um pouco por todas as partes cobrou também o sentido de “bruxa”, com a típica ambivalência dos produtos da psique profunda. Na Galiza chegou algures a confundir-se com a companha ou estantiga18. O nome (não o mitologema) entrou na sombra na Galiza, trocado por dona, senhora, moura, etc. O declínio de jã, pelo seu breve corpo fónico, sofreu a par, mercê do plural, confusão com a companha. As jãs eram primeiro a turba feérica, o coro das ninfas ou pequenas fadas vegetais, constelação de luzinhas vistas ou imaginadas na noite. Antes a companha foi também uma turma de luzes aéreas, à margem da interpretação consciente que das visões coletivas se fazia já no séc. XVIII19. Ao cabo, luzes na noite, fascinantes ou terríveis. Interessa mais discernir as causas que produziram a passagem de “luzes das fadas noturnas” a “luzes da hoste diabólica”, e depois “fantasmas dos defuntos”. Talvez a história da cultura aproveite pronto estes dados, para cuja análise ainda não forjou cabalmente o instrumento da psicologia profunda coletiva. Fortuna diversa mostram os derivados de jã. Antarujã (e antarujaira) “bruxa”20 une jã a uma palavra enigmática que Coromines estima deturpação de untura, com alguns apoios semânticos oportunos. A opacidade do primeiro membro produziu alterações paretimológicas várias, ao cabo tão caducas como o mesmo antarujã. Também não é claro o processo de composição e a figura que esconde: untura de jã?, jã de untura? Importa mais jaira, que está no composto antarujaira (antaruxaira no P. Sarm.) e que isolada é “estantiga noturna” (Sarm., CaG, 182r). Foi o vulg. *janaria (clássico dianāria) através de *jãaira (não de *jãeira, que dera *jeira. O jeira que existe é de diāria), como chaira ou avelaira de planāria e abellānāria. Aqui é coletivo: cabe pôr (turma) dianāria. Palavra e mito acusam grande antiguidade, mas no outro milénio não era “estantiga” mas “turma de Diana”, depois “turma feérica”. 18 M. Sarmiento, em CaG, 163r (“Jâns, as jans. Dícese hacia Orense: fulano vio as jans, y es lo mismo que ver la compaña o hueste”). 19 A companha, hoste, estantiga, antes decerto bando diabólico e aéreo de longa tradição, como acusam os próprios nomes, foi interpretada no contexto cristão recente como procissão de defuntos. Mas a especulação cristã popular ocupava um lugar similar ao da racionalização materialista posterior e o fenómeno alucinatório era-lhe independente. Em The Bible in Spain de Borrow, temos testemunho tão importante ou mais que os do P. Sarmiento. O mais explícito é o do cap. 29, no que o guia descreve a Borrow a Estadea e depois lha explica. Cumpre separar descrição de expli-cação. “Levantou-se uma névoa muito espessa. De pronto começaram a brilhar por riba de nós, entre a névoa, muitas luzes; havia mil ao menos. Ouviu-se um chio tremendo, e as mulheres caíram de bruços gritando: Estadea! Estadea! Eu também caía e gritava: Estadinha! Estadinha!” A seguir o guia considera-se obrigado a explicar: “A Estadea são as almas dos mortos que andam por cima da névoa com luzes nas mãos.” A separação é clara e a meu ver a verdade da experiência alucinatória coletiva está assegurada por esse chio tremendo, característico de certas imagens arque-típicas aparentadas (Veja-se o Wotan de C.G. Jung). Além da racionalização, a visão da cavalgada do bando aéreo diabólico em forma pura vê-se no caso do cap. 27, in fine: “De crermos aos galegos, os demos das nuvens persegui-ram os ingleses na sua fuga e atacaram-nos com trovões e golpes de água quando pugnavam por remontar as reviradas e empinadas vereias de Foncevadão.” 20 M. Sarm., CaG, 182r. “Antaruxá y antaruxairas. Creo llaman allí [Ourense] a las bruxas” Alhures diz ser nome de Monte-rei. Dianāria podia modificar nomes não coletivos, como deduzimos do jaira que vivo nos chegou: “mulher aloucada, coquete, garrida” (em Padrão, cf. Crespo Pozo). A ver melhor o sentido de jaira serve um derivado: jarela e jarelo, -a. Mais frequente que o positivo, já aparece em F. X. Rodríguez, donde toma Cuveiro Pinhol: “la mujer respondona, descarada y alborotadora”. Eládio Rodríguez Gonçález define xarelo “pessoa descarada, pouco formal no falar, de pouco critério”, aclara aplicar-se mais amiúde às mulheres. Enfim, I. A. Estraviz define jaira: 1º) diz-se da mulher que anda trás os homens, 2º) mulher descarada, atrevida, 3º) borracheira, bebedeira (tomar uma jaira). Jarelo é em geral “pessoa que fala ou obra com desvergonha”. Fonicamente, é claro o vínculo de jarela com jaira. O ditongo átono reduz-se. Em data românica incorporou-se a desinência de diminutivo, deslocando o tom. Interessa das palavras o perfil que surge de integrar as definições. Documenta a noção pela qual uma pessoa –nomeadamente uma mulher– participa da natureza do nume feminino “Diana”. A pessoa possuída manifesta-se “ligeira de casco; coquete, garrida” e, conforme a definição de jarelo, “sem vergonha”. Desenvolvidamente, “o que está isento da impronta moral judeu-cristã, particularmente no que diz respeito à conduta sexual” ou “o que está livre das ataduras da condição social comum”. Jairo, -a, abstratamente “feérico”, é um adjetivo bonito, digno de restaurar-se, mas é jaira, e jarela, o que aí corre, com saibo a transgressão subterrânea, às tradições pagãs do feminismo vegetal e resistente de sempre. O QUE SE ESCONDE NA HUMILDE OFERTA? Apesar de aparências, oferta, não é latino. Como em cantiga, a semelhança com o latim fez um vocábulo pré-romano sobreviver. Coromines disse21 que o asturiano ofierta “oblata de milho, trigo ou de roscas de pão” virá do lat. vulg. *offerita, mas daí viria *ofierda, na nossa língua *oferda. Como diz, o cast. oferta é de origem galo-românica, como mostra a falta de ditongo e o uso restrito comercial (“ley de oferta y demanda, ofertas de temporada”). Nada como a oferta portuguesa, popular e unida às formas culturais mais fundas já nos documentos primeiros, nas Cantigas. Machado propõe o étimo *offerta, analógico, que substituiria oblata. Não impossível, fica em cifra algébrica, hipótese abstrata necessitada de mais estudo. Terá nossa oferta vindo de além-Pirineus pelo Caminho de Santiago? É possível, mas improvável, segundo o âmbito íntimo do uso. Ao cabo, onde é que nascem as formas gálicoromânicas com -RT-, substantivas ou participiais? Cuido termos um caso como o de rima e arrimar, de cariz greco-latino e origem céltica. Quanto ao foco provável, cabe ter em conta que o mais velho documento do lat. eclesiástico offertōrium é de S. Isidoro de Sevilha, séc. VI. Certo que Comodiano, de fins do II, já traz offertor, mas não sabemos donde era. Sempre houve nexo, paretimológico, com offerre. Ferō, ferre sempre se perdia, mas o derivado offerō ficava no campo religioso, donde é próprio. Também o fr. offerte equivale a offertoire. A nossa língua, arcaizante, também acusa o tom religioso original. Aqui oferta, antigo e popular, é sinónimo de oferenda, ex-voto, dom, de todos os sacrifícios populares subsistentes trás a substituição cristã dos cruentos pela Hóstia ou Vítima eucarística. Como diziam “sacrifício” em céltico? De muitos nomes, o neocéltico coincide num: a) gaél. ant. audbart, edbart, idbart, fem. em -Ā, “oferecer”, (hoje íobairt [ībeřť], atraído aos temas em -I); e b) britónicos galês aberth e bretão aberz. Thurneysen e Pokorny propõem o étimo *ADUSSBÉRTĀ, de AD “a, para”, USS “arriba” (ie.*ups > célt. UXS > USS ou ie. *ud-s > USS) e BERTĀ “levada” (do ie. *bher-). O curso da voz é fatal; nos românicos ocidentais –no contexto do bilinguismo diglóssico celtolatino– o -D- caía, e o ditongo átono a emergir pronto se reduzia. O grupo -SB- devia sofrer assimilação regressiva (-ZB-), mas o lat. offerre (ou equivalentes vulgares) levava a preferir a opção do disfarce progressivo: -SB- > -SF> -F-, qual o castelhano platino resbalar > resfalar > refalar. Vista a perda de ferō e dos mais dos derivados (os populares), cabe perguntar-se a razão de durar offerō no latim eclesiástico. Por que não triunfaram as palavras missa, oblata, mais unívocas? Aduzirão o lat. fertum, ferctum “pastel de sacrifício”, mas, além de raro, era um neutro e sem sílaba pretónica. Ao mais pôde ser um harmónico, um reforço paretimológico. A razão dirimente era a presença oportuna e maciça desse adussbertā-ausberta, que esvarou para *OSBERTA, e daí para oferta. Assim atingia dous intuitos: disfarçado sob saio pseudolatino, enervava a censura do latim, e a par, na nova família, firmava o verbo offerre, quase esvaído, do que se cria vir. Quase consumada a perda, foram formas próximas, *offerīre e *offerescere, as que se abriram caminho. Conclusões: Além do interesse desta “vítima levada para arriba” galo-românica e galeca, a mesma romanística devera avaliar a sondagem no substrato. Mal que arrepie os romanistas, tenho certeza de que o programa de pesquisa não pode deixar de embrenhar-se sistematicamente nessas trevas, se é que quer saber algo do passado. Casos como os de rima, arrimar, cantiga ou este de oferta, demonstram às claras a importância do labor. 21 DCECe H, IV, p. 633b, l7. PETRÚZIO É um caso curioso, talvez só galego. Falamos em petrúzio 22. Se a ideia coalhar, teremos um instituto do direito consuetudinário apoiado num dado linguístico novo. Nos léxicos galegos há variante patruzio (patrucio). Flutuam ao definir: Cuveiro (petrúcio) “el mayor o patrón de una familia”; Carré (petrucio) “patrón; dueño de la casa; jefe de familia”; R. Gonçález “ídem; el padre cuando es anciano” (em patrucio); agrega ser instituto de direito sucessório consuetudinário que tenta evitar a divisão do património, e o petrúcio pegar a sê-lo ao casar na casa pela abdicação tácita do que o era. Dirige a exploração, vende, merca, sustém pais e irmãos a morar na casa, dota as irmãs e dá aos varões legítimas equivalentes e acolhe as irmãs sós: um morgado popular. Na literatura e no matiz adido pelo último à definição vêse pendor a vê-lo sinónimo de patriarca. No grupo de definições há previsíveis contactos paretimológicos com patrão (em todas) e com patrício. Deste tira-o a opinião atual, quer qual fruto semi-erudito de patricius, quer como deturpação atual do patrício erudito. Não sei se as anomalias provocaram análise. Conceito do âmago do direito consuetudinário, recende antiguidade, que mal acorda com semi-eruditismos ou deturpações populares atuais. Além disso, no plano fónico, a suposta labialização da vogal tónica não se sustém. Como pode o P- labializar a firme tónica à distância e sem afetar a átona contígua? Por que não fazer a via inversa e supor petrúzio (ou petrúcio; patrúcio-patrúzio são paretimo-lógicos) ser fruto popular, dum étimo ignoto? A viagem talvez ilumine um canto esquecido do passado. É popular? Apoia-o a desinência e o -T-. E não se enxerga outra base que *pectorucinu-, id est, pectus, pectoris junto da desinência tardia de diminutivo -icinu-/ -ucinu- de rodízio, canízia e moçárabe bupu‡ino, -‡ina (*vulpucinu-, *vulpucina); v. vulpeja no DCECeH. Mais documentado está o sufixo composto -ūcinu- (por caso em lactūcina), mas, além da forma bupuĉino, aqui ambígua, faz preferir U breve a alta probabilidade de o cast. chozno ter igual desinência. Sufixo complexo: -ico- e -nu-. Pelos casos do sufixo -ūco- é de crer que -ūcinuequivaleria a -icinu-. O curso -ct’- > -t- é o de apertar (< apretar < *apetrar < appectorāre); é pré-literário e por monotongação pré-tónica (-ect’-, > -eit’-, > -et’-). É de prever a síncope do -O- pretónico. Se o sufixo foi -ucinu-, de tónica breve, a inflexão metafónica desta, pelo iode do grupo vocálico final a surgir da queda do -N-, também é regular, como em rodízio ante o cast. rodezno. Que significa o monstro reconstruído? O sufixo sói diminuir: o que? Pectus é da raiz indo-europeia para “pelo” (Ernout-Meillet); designava o peito piloso de varões e animais. Além doutros valores (“coracão; inteligência; alma”) era a metonímia “homem, varão”. *Pectorucinus (ou *pectorūcinus) no vulg. local era “varonzinho”. A partir daí nada custa atar “varonzinho” (vibra o harmónico “filho”) com “herdeiro”; a pouco o mais específico, o primogénito ou privilegiado. O “varonzinho” era o herdeiro, primogénito ou casado na casa. Levava o nome entanto durava a memória do pai ou não nascia novo “varonzinho”. Enquanto transparecia o valor original. Ao opacar-se, chamou-se de petrúzio ao chefe da família no momento da posse e até deixá-la. Mais tarde o pendor não se deteria até valer “velho provecto e cabal” (não se tira com honra o nome a um pai). Cedo, ao compasso da idade, o conceito cresceu, a par que o conteúdo jurídico diminuía. Então apareceu o mais preciso vinculeiro. A atinar, que distância entre o velho petrúzio popular e aqueloutro petrúcio, semi-erudito, deturpado, vago e declinante! Dilema inelutável é ser voz e instituto antigo ou não, ser só uma inflação pseudo-romântica mal vestida de saio emprestado. Tenho fé na cousa e na palavra. 22 Ou petrúcio, pois de momento não consta a condição sonora ou surda da última consoante. UIVAR, OUVIAR, OULAR e BURLAR Oular, aular, aulear, oulear, uivar, ouviar, ouvear, oviar-uviar “chegar, alcançar a”, burlar, burla, bulha, ular “aturujar” Nem todo é ululare, nem todo rasto românico de ululare está onde se supõe. Possível é que as opiniões a emitir tenham sido propostas antes; se assim, suplico indulgência. Custa crer não se vissem antes alguns factos óbvios. Vejamo-los ordenadamente. É oular lídimo vocábulo galego-português? Este verbo foi pouco atendido, talvez por afim do cast. aullar, que deita sombra no seu cariz genuíno. Em Portugal não o vejo registado, mas existiria; aulido, tido por castelhanismo, é talvez um rasto. A ser oular castelhanismo, a presença fora mais ou menos uniforme por toda a Galiza. Mas vemo-lo numa zona compacta, a do galego mais oriental. Castelhanismo não é, sim extensão de isoglossa léxica comunicada com o hispano-românico central. Oular é do galego de Astúrias, aular do Caurel, aulear de Verim, oulear de Sárria. De Fonsagrada são oular, ouviar e bouviar. No Zebreiro há oular e aular. O flutuar do ditongo é fenómeno dialetal do sueste lucense. Em aulido, antes que castelhanismo, há recriação do valor fonossimbólico do vocalismo, apagado na maioria do domínio português pela simplificação de OU. Quanto a -ear de aulear-oulear, virá de ouvear. Etimologia de oular. Aceita-se o cast. aullar vir do lat. ululāre, de origem imitativa. A condição onomatopeica explica a incoerência na evolução para o românico. Concretamente, ululāre tinha U breves e as palavras que estamos a ver supõem étimo de primeiro U longo. Além disso, têm um Aprotético, que também serviu a acentuar a imitação da voz dos cânidas. Há outra diferença, de aparência leve: ululāre era de bufos, mouchos e corujas, só depois estendido a homens e animais em geral. Mas oular (e aullar) não é de homens e animais; só de cânidas, domésticos ou selvagens. A semântica não tem fruído de suficiente atenção nas pesquisas etimológicas do nosso campo, com notáveis excepções; cuido que é tempo de mudar. Que será se mudamos critérios e rumos? Invertendo os termos e reconstruindo o étimo a partir do românico, faremos um monstro, mas aclararemos ideias. Por tal via se chega a *ADŪLLĀRE, de ar próximo do lat. adūlārī (adūlor, adūlāris) “afagar; adular, louvaminhar”, do que se nos diz que não deixou rastos românicos. Ernout diz ser dantes próprio dos cães, que, para mostrar alegria ou para afagar o dono, se achegam (ad-) movendo o rabo (-ūlo-; cf. scr. vālah, vārah “rabo, cauda”, lituano valaĩ “rabo de cavalo”). Bem mirado, o único escolho no corpo fónico que separa o monstro de adūlārī é o LL geminado. Pouco, havida conta do valor da geminação no velho indo-europeu. Mas não nos entusiasmemos. Adūlārī duraria no latim republicano galeco, mas se neste oular nos chegou foi em cruzamento com ululāre. Este dava o factor sonoro (só tácito em adūlārī) e o harmónico lúgubre e agoireiro que já lhe era próprio (adulari era festivo) e tanto quadra às vozes de lobos e cães, julgadas de agoiro funesto. Proponho partir do vulg. *ADâLL}RE “latir (cânidas)”, cruzamento de adulari e ululare. Aquele, tomado no seu valor mais antigo, brindava quase toda a matéria fónica, o segundo quase todo o sentido. Oular sofreu depois a atração dos ditongos decrescentes e desfez o hiato que o castelhano conserva nas formas rizotónicas: aúlla, aúllan. São independentes uivar e ouvear? Nos falares galegos para “uivar” é comum ouvear, também de Trás-os-Montes (aí ouviar). Em Fonsagrada ouviar é “desejar ardentemente”, cf. Aníbal Otero; será a mesma palavra com outro rumo semântico. Ouvear já vem em Sarmiento. Não lhe conheço etimologias. Coromines tira-o de *ULULIZĀRE, e para uivar subscreve a opinião de Cornu, ululāre. Ora, o nexo entre uivar e ouvear-ouviar é certo. Uivar virá de *uviar, e ouviar também, com ditongo inicial de função onomatopeica, que talvez venha do visto oular. A metátese vocálica em uivar é clara ao justapor as formas aparentadas. Certo que não há documentos de *uviar com este significado, mas a seguir veremos a que se deve. Etimologia de uivar e ouviar. Coromines atinou unindo-os nas origens. Mas o étimo a custo seja ululāre: daria *oar ou *ovar; e *uar ou *uvar, se o U- fosse longo. Achando o protótipo de uivar-ouviar-ouvear talvez obteremos luz. Primeiro cumpre optar entre ouviar e ouvear. Este lembra dialetalismos galegos como cambear e ravear “raivar”. Dar-se no arcaico e isolado Trás-os-Montes (talvez na Fonsagrada) robora o critério. Cumpre preferir ouviar. Uivar vem de *uviar, como raivar vem de raviar (séc. XIII). O primeiro documento de uivar (e de uivo) está no Livro de Falcoaria, séc. XIV. Justo desse século são os últimos testemunhos do medieval oviar, (h)uviar “chegar (em auxílio), chegar a, conseguir, alcançar a”, que vem do lat. obviāre “sair ao encontro”. Esta palavra chega ao séc. XIV e esvai-se, justo ao surgir uivar “latir; ulular (cânidas)”, de idêntica forma. Porque é idêntica: a palavra medieval é quase sempre uviar, com variantes: oviar (nas Cantigas de Santa Maria, que tem também uviar), uvar (na Crónica Galega de inícios do séc. XIV, onde predomina huviar), (h)uvear (Crónica Troiana, códice galego!) e oivar (G. Estória e Crónica Troiana, do XIV). Pasma não terem suscitado curiosidade. Certo que o problema consiste em tender a ponte semântica. Mas, a meu ver, não é caso árduo. O vocábulo medieval já andava ferido e o uso pegaria a estereotipar-se em frases feitas. Lembre-se que obviāre, tardo no latim, já significava “sair ao encontro” e “ir adiante”, tal qual se deduz do advérbio obviam, que o origina. Estes sentidos deviam estar vivos nos usos orais de uviar-oviar, cujos testemunhos escritos vêm das classes letradas, nas que é possível supor usos de leve especializados, mas divergentes do eixo semântico tradicional. Como acontece no latim vulgar, a língua popular sói ficar mais próxima do perfil tradicional e arcaico do que os testemunhos formais médios. Ao decair uviar, os transmissores ingénuos ouviriam, em contextos narrativos, frases como “uivavam-uviavam-uveavam os lobos”. A fraqueza da voz caduca desaparecia ao prender fortemente na imaginação de moços que já não sabiam o significado exato. A presença dos lobos chega mais pelo ouvido e é justo tal presença velada e misteriosa a que mais capta o ânimo. Escutavam, no contexto emocional de narrações contadas nas noites de inverno arredor do lume, que “os lobos chegavam ou iam adiante do viageiro solitário”. A memória dos ouvintes a respeito dos lobos, mormente auditiva, interpretava a palavra opaca pelo valor contextual e fonossimbólico: “davam vozes prolongadas, guturais, de mau agoiro e péssima premonição”. O contexto é suposto; o valor fonossimbólico de uivar, óbvio. O asterisco de *uviar convém só a “dar vozes os lobos”: uviar “sair ao encontro” sai em documentos. Não só; tal sentido tem as variantes formais oivar e uvear. Volvamos ao valor fonossimbólico de uivar. Este finca mormente no ditongo inicial. Ouviar-ouvear surgiu na variante sem metátese, cruzada com oular, para lograr o valor expressivo. Ora, o ditongo OU evoca mais o latir dos cães que o ulular de lobos. De qualquer jeito, os limites excediam-se num sentido e outro. Quanto à forma a preferir, ouviar ou ouvear, a acertar a hipótese, será ouviar, o que não supõe violência nos usos dada a labilidade vocálica do idioma, sempre dócil e resistente. Terá algo que ver com isto burlar? Burlar (também bulrar) fez cismar muito e talvez em vão. Para uns é castelhanismo, mas a mesma incerteza etimológica tira sustento à mera impressão. Também aqui se esqueceu a semântica. Desde o início vêm juntas as acepções “enganar”, “escarnecer” e “rir (de)”. Há frequente riso, mas deliberadamente agressivo, escarninho. O riso sempre diminui o objeto, mas aqui é deliberado. Mesmo pode não haver diversão e haver burla. Em português hoje predomina a nota de “engano”. Ao invés, em castelhano “engano” antiquou-se e só ficam dela rastos estereotipados em frases feitas. No centro aí está hoje “zombar, rir (de)”. Em catalão subsiste o plexo. Existiu junto dessas acepções outra esvaída: “arremedar; fingir; criar ficção artística”, não ausente ou possível junto das outras. O que dos textos velhos surge é a independência possível desse sentido. Assim, no castelhano temos o valor em J. Ruiz, no verso 114 do Livro de Bom Amor, edição de Coromines: “trobar burla”. R. Lapa achou-o numa cantiga de escarnho de Gonçal' Eanes do Vinhal (CV 1001; CEM 169), na que uns “infanções... entran nosco en dõas cada dia / e jantan e cean a gran perfia/ e burlan corte, cada u chegamos.” Quer dizer, não zombam, na companhia do rei procuram fingir serem homens de corte. A meu ver burla foi o vulg. *ūrulare, que deu fr. hurler, it. urlare e romeno urlà. Nestes não é claro o timbre longo da primeira vogal. Em burla vê-se a origem do câmbio. É “buu!” mais *urulare (*bū urulāre > būrulāre * “fazer “buu!”), onomatopeia infantil dos sons guturais de animais agoireiros e logo de fantasmas. Do escárnio infantil, arcaico arremedo de bufos, corujas e fantasmas, vem “enganar escarninhamente” e “zombar (de)”. Também “arremedar (bufos, corujas, fantasmas)”, que pas-sou a “arremedar (em drama)”, menos carregado de conotações e que pronto decaiu, enquanto os outros se constituírom em vozes básicas do idioma pela carga expressiva. Também existiu o valor mais neutro, menos conotativo, o de mero “ulular”, mas quase não ficam rastos. Quase, que se dá em Juan Ruiz, verso 1425d: “al leon despertaron con su burla tamaña”. Não é possível nenhuma zomba nem engano; tampouco arremedo inocente. É perfeito equivalente de bulha; este é que é palavra vinda do cas-telhano. O cast. bulla não vem de bullīre, como se disse, senão de buu! mais ululare (não *urulare), que terá dado *bullar, do qual bulla é deverbal. Antes de deixá-lo, é justo aduzir outra forma local nossa, bem que pouco conhecida, talvez vinda de ululare. Refiro-me ao ular “aturujar, dar gritos os moços nas romarias ou no monte”, que assinala Aníbal Otero em Valedouro (Rizal, Lagoa, Alfoz, Norte de Lugo). O étimo preciso será um uu! mais ululare, quer dizer, ūl'lare. DE PRATOS E PRATAS O étimo sabe-se há muito, mas a sequência semântica dista de ser clara. Na ordem cronológica, digamos todos vir do gr. πλατύς “ancho, largo; chão”, pelo latim vulgar *plattus, com geminação expressiva, como notam os frutos românicos: francês, provençal, catalão e reto-românico plat, italiano piatto, galego-português prato, castelhano plato. Os valores de adjetivos destes coincidem em geral. Como sói afirmar-se que o gal.-port. prato se tomou do fr. plat, é preciso sublinhar que este, como substantivo, não é “prato”, mas “bandeja, salva”. O empréstimo parece afirmação inconsistente. Além dessas vozes, ainda há o adjetivo port. e cast. chato, com o tratamento popular do grupo inicial. A nítida vulgaridade, nomeadamente para “de nariz achatado”, fez as primeiras documentações serem extremamente tardias: 1705 e 1605, respetivamente. As outras formas, prato e plato, como diz Coromines, apresentam nesse grupo a pronúncia das classes podentes, que usavam tais peças no serviço de mesa, entanto que as classes populares usavam escudelas e concas de barro. A acepção “vaso chão do serviço de mesa” vem decerto de (ferculum) *plattum, que é justo isso, literalmente “(vaso do serviço de mesa) chão”. Eis que prato, como substantivo, é o primeiro elo da cadeia a estudar. A geminação de *plattum talvez aconselhe traduzir “chatinho”. ferculum *plattum “vaso de mesa chatinho” > *plattum “prato para comer” > prato Como surgiu prata “argento”? Trás longo lapso, argentum (e ecos obscuros: *aregentu-?, *arentu-?) cedeu o campo a prata “metal” e postergaram-se arenço, arento e arente. Eis a parte do processo que apresenta maior obscuridade. A meu ver, é preciso partir do plural de valor coletivo fercula *platta “serviço de mesa”. Apesar de esses vasos também poder ser de argila ou outros metais, é sabido que o material principal dessas alfaias era a prata, o argentum. Amiudam os testemunhos e seria excessivo acumulá-los. Chega destacar que ainda hoje na língua existe a que suponho é o primeiro passo no significado a estudo: “baixela”. A par, já no lat.-vulg., (fercula) platta passou a valer, ao menos como um harmónico necessário, “riqueza mobiliária (familiar)”, praticamente “enxoval”. Da acepção fica claro testemunho na locução portuguesa governar-se com a prata da casa, que é “governar-se com os recursos próprios, com o próprio património”. (fercula) platta “serviço de mesa” > prata “baixela” e prata “riqueza mobiliária (familiar)” Só resta um passo. Donde o uso americano de prata (e plata) para “dinheiro”? Claramente da recém-vista acepção “riqueza mobiliária, património”, que na Idade Média foi de toda a península, e que subsiste no português do Brasil e no castelhano americano em geral. Tal acepção ainda corria na Europa no século XVII, e é semanticamente paralela à do francês argent “dinheiro”.
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