Rosemeire dos Santos Brito

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Rosemeire dos Santos Brito
Rosemeire dos Santos Brito
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................ 2
CAPÍTULO I: FRACASSO ESCOLAR E GÊNERO................................................................................... 9
1.1) Hipótese inicial: socialização primária e vitimização escolar de meninos ............................................. 9
1.2) Reconstrução da hipótese: para além da vitimização ........................................................................... 23
1.3) Masculinidades e feminilidades plurais: implicações para o desempenho escolar............................... 29
CAPÍTULO II: CONSTRUÇÃO DOS PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS........... 35
2.1) Seleção da escola.................................................................................................................................. 35
2.2) Estruturação da metodologia ................................................................................................................ 37
2.3) As entrevistas com famílias.................................................................................................................. 46
CAPÍTULO III: O OLHAR DA PROFESSORA: MASCULINIDADES, FEMINILIDADES E
RENDIMENTO ESCOLAR.......................................................................................................................... 47
3.1) A classe e seu diagnóstico: o baixo rendimento entre meninos............................................................ 47
3.2) Comportamento, resultado escolar e masculinidades ........................................................................... 52
3.3) Possíveis gradações de masculinos e femininos ................................................................................... 71
CAPÍTULO IV – A VISÃO DAS CRIANÇAS E SUAS FAMÍLIAS ........................................................ 79
4.1) O discurso de estudantes, professora e famílias: simetrias e assimetrias.............................................. 79
4.2) O fracasso escolar revisitado: currículo oculto e relações de gênero ................................................... 97
CAPÍTULO V – CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 108
CAPÍTULO VI – BIBLIOGRAFIA............................................................................................................ 113
Rosemeire dos Santos Brito
INTRODUÇÃO
“Não há conhecimento totalmente neutro, todo pesquisador escolhe temas que tenham a ver com
a sua biografia”. Quando ouvi a professora proferir essa frase, em um curso de Métodos e Técnicas de
Pesquisa, não percebi a importância que ela teria em minha carreira acadêmica. Somente agora, finalizado
este trabalho, é que pude compreender seu real significado.
Tal como expresso acima, esta pesquisa tem uma relação importante com minha história de vida,
o que não significa uma tentativa de revê-la a partir dela. No entanto, por ser negra e oriunda de um
segmento desprivilegiado social e economicamente, desde os primórdios de minha escolarização pude
sentir as dores e as delícias daqueles que se propõem a estudar.
Em boa parte de minha trajetória educacional, senti de forma bem próxima a existência de
discriminações de classe e seus efeitos sobre o processo de aprendizagem.
Quando cursava o primeiro grau, atual Ensino Fundamental, eram constantes as sessões de
constrangimento público a que eu me via submetida por parte de colegas de classe, por eu residir em uma
favela perto da escola. Do mesmo modo, sofria recriminações de professoras, por eu não dispor de todo o
material escolar ou por não possuir o uniforme exigido pela escola.
Ainda que o universo escolar não me fosse muito acolhedor, eu gostava de estudar e me sentia
motivada a desafiar essas condições que tinham tudo para me levar à desistência da escolarização.
Quando era alvo de discriminações, esforçava-me para ignorá-las. Assim, ao longo de meu caminho, fui
obtendo respeito daquelas pessoas encarregadas de me introduzir no amplo cabedal de conhecimentos
produzidos pelo homem.
Embora não fosse considerada uma aluna excepcionalmente inteligente, minha dedicação
contribuiu para a construção de uma imagem de boa aluna.
Aos onze anos, então na quinta série, comecei a trabalhar como empregada doméstica e passei a
estudar à noite. A partir desse momento, conheci um outro lado das discriminações de classe, dada a
diminuição do tempo que eu tinha para estudar. Muitos professores acreditavam que um aluno que
cumpria uma dupla jornada não era merecedor de muita atenção, uma vez que não teria condições de se
aprofundar.
Entretanto, durante aquele ano, percebi que esse mesmo tratamento não era dirigido a outros
colegas que também estudavam à noite, mas que durante o dia não precisavam trabalhar para contribuir
financeiramente para a renda de sua família.
Desde então, prossegui meus estudos sempre exercendo, paralelamente, outras ocupações: babá,
diarista, ajudante geral, auxiliar de escritório, faturista, além de ter trabalhado como operadora de
telemarketing durante oito anos. As dificuldades eram inúmeras, mas a força que me estimulava a ir
avante fundava-se na crença de ascensão social por meio das credenciais escolares.
Ao término da oitava série, me vi diante de outro obstáculo: a oposição de minha mãe à
continuidade de minha escolarização. Em virtude de sua socialização para o matrimônio e a maternidade,
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ela não conseguia perceber os benefícios que se podia obter com graus mais avançados de escolaridade.
Em sua visão, as mulheres estavam naturalmente destinadas aos afazeres domésticos e ao cuidado de
marido e filhos. Ela, que sempre ocupara lugar nas estatísticas de analfabetismo e exercera ocupações
profissionais de baixo prestígio social, consideradas subalternas, não conseguia imaginar para a filha
outras opções de inserção no mercado de trabalho, tampouco um projeto de vida que ultrapassasse o
universo doméstico.
À revelia de suas ordens, contudo, consegui que a mãe de uma amiga autorizasse minha
matrícula na escola, em lugar de um de meus pais, e assim pude continuar estudando.
Tal como já havia ocorrido em meus anos anteriores de escolarização, sentia o ensino recebido
como de baixa qualidade. Com freqüência percebia, por parte de alguns professores, a quase total
ausência de disposição em ensinar, uma vez que a extensa maioria dos alunos não demonstrava ter
nenhum projeto de longevidade escolar. Lembro-me com exatidão de uma professora de Inglês de quem
fui aluna durante os três anos que compreenderam o Ensino Médio e com a qual pouco aprendi. Suas
aulas eram ótimas oportunidades de convívio social, conversávamos (em português) sobre tudo, e assim,
ao final dessa modalidade de ensino, meus conhecimentos em Língua Inglesa se restringiam ao verbo To
be. Entretanto, colegas de outros períodos, alunos da mesma professora, recebiam mais conteúdo.
Ao longo de meus doze anos de escolarização no Ensino Fundamental e Médio, vi muitos
colegas abandonarem a escola, alguns por haverem ingressado no mercado de trabalho, muitas garotas
por terem se casado durante o processo e/ou terem tido filhos ainda adolescentes, mas a maioria por não
alimentar nenhuma expectativa de êxito social e profissional se despendessem parcela considerável de sua
vida na aquisição de conhecimentos.
A despeito das muitas condições adversas ao meu intento, ao término do Ensino Médio optei por
prosseguir na batalha e arriscar-me a me imaginar cursando o nível superior.
O sonho de estudar em uma universidade pública passou a rondar meus pensamentos depois de
uma visita feita à Universidade de São Paulo – USP, em 1992, quando eu ainda cursava o último ano do
Ensino Médio.
Foi um dia marcante. Enquanto caminhava pela Cidade Universitária e ouvia as pessoas
conversarem, mais do que nunca percebi a existência de uma educação destinada a pobres e outra a ricos.
Fiquei impressionada. Muitos alunos da universidade que aparentavam ser apenas um pouco mais velhos
que eu falavam de assuntos, livros e idéias que eu jamais imaginei existir.
Depois de uma observação tão empírica como essa, passei a conviver com um forte sentimento
de indignação com essa realidade, mas ao mesmo tempo me sentindo pessoalmente desafiada a alcançar
uma vaga na Universidade de São Paulo.
A concretização dessa aspiração só ocorreu três anos depois, após duas tentativas frustradas de
aprovação no vestibular. Ingressei no curso de Ciências Sociais em 1995, e novamente me vi às voltas
com a oposição de minha mãe àquele projeto, dessa vez porque minhas eventuais chances de ascensão
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social representavam para ela uma dolorosa confrontação: a de que ela própria gostaria de ter tido outras
oportunidades em sua vida fora do lar.
Uma vez na universidade, passei a perceber mais intensamente as diferenças sociais existentes
entre mim e meus colegas e entre mim e o corpo docente da faculdade. Distinções cujos fundamentos e
origens, em um momento inicial, eu não conseguia compreender com clareza, mas que hoje, após anos na
universidade, posso afirmar que eram desigualdades relacionadas com o pertencimento social e racial.
Em primeiro lugar, notei a escassez de alunos(as) negros(as) em sala de aula: em minha turma
éramos apenas dois. Do mesmo modo, a maioria dos professores era branca.
Em segundo lugar, os assuntos e tópicos abordados em classe eram totalmente desconhecidos
para mim, mas não para muitos de meus colegas, cujas intervenções nas aulas eu raramente conseguia
entender. Assim, todo o tempo livre de que dispunha eu dedicava aos estudos, para conseguir acompanhar
as leituras propostas nos programas das várias disciplinas.
Em terceiro lugar, as mulheres eram maioria no corpo discente, situação muito comum nas áreas
de Humanidades. O mesmo não se verificava nas áreas de Exatas e Biológicas, que oferecem carreiras em
geral consideradas de maior prestígio social.
A mobilidade cultural e social fez com que eu me inserisse simultaneamente em dois grupos
sociais, o que implicava uma descontinuidade de sistemas simbólicos e gerava ocasiões de
desajustamento e crise. Ao mesmo tempo em que me sentia à vontade naquele espaço, sentia-me também
uma estrangeira, desadaptada, marginal e intrusa. Essa dupla vivência foi sentida, sobretudo, nos três
primeiros anos da graduação, pois o fato de, nessa época, eu precisar acordar às três e meia da manhã para
trabalhar e de dispor de pouco tempo para estudar, geralmente tendo de fazer minhas leituras no
transporte coletivo, constituíam sinais dolorosos de minha posição de classe social, em um contexto no
qual tais condições de vida não eram a tônica.
Tudo isso me levava a questionar: por que um sistema dual na educação brasileira? Por que, para
muitos alunos usuários do sistema público de ensino, a educação em nível superior não é uma alternativa
possível? Por que, para uma ampla parcela da população, o direito à educação, em todos os níveis, não é
legitimado e garantido por políticas educacionais?
Instigada por todos esses questionamentos e apesar de meu forte interesse pelo tema, durante
minha graduação não encontrei no conhecimento sociológico subsídios teóricos que me permitissem
investigar a desigualdade existente na educação nacional, recursos que me ajudassem a analisar as
mazelas sociais existentes no âmbito educacional.
Essa oportunidade foi surgir em duas disciplinas do curso de licenciatura em Ciências Sociais, na
Faculdade de Educação da mesma universidade. Nas aulas de Psicologia da Educação, entrei em contato
com o trabalho de Maria Helena Souza Patto (1990), no qual ela analisa as raízes das explicações oficiais
e acadêmicas sobre o problema do fracasso escolar nas camadas populares. Com esse trabalho, surgiu
diante de meus olhos um cotidiano escolar repleto de preconceitos e estereótipos sobre os alunos pobres e
suas famílias, do ponto de vista teórico e conceitual, elementos com os quais tenho convivido desde o
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início de minha escolarização e que ainda continuam sendo utilizados para excluir da educação pública
ampla parcela da população – o que a literatura posteriormente denominaria de mecanismos intraescolares de produção de malogro escolar.
Nas aulas de Política e Organização da Educação Básica, encontrei o respaldo teórico de que eu
precisava para dedicar-me ao estudo dessa temática, considerando a influência do neoliberalismo na
política educacional brasileira, especialmente nas reformas educacionais ocorridas na década passada.
Por sua vez, a constatação de que a maioria dos estudantes do meu curso e dos demais das áreas
de Ciências Humanas era composta de mulheres levou-me a questionar esse fato. Do mesmo modo, a
constante insistência de minha mãe em provar-me que era uma grande ilusão alimentar a idéia de outras
possibilidades de inserção social, pelo simples fato de eu pertencer ao sexo feminino, me fazia pensar que
talvez a situação das mulheres não estivesse tão boa quanto a mídia divulgava, quando insistia em
disseminar conceitos fundamentados no senso comum e que pouco explicavam a real situação das
mulheres no Brasil.
Ao notar as diferenças acima apontadas na universidade, eu me perguntava se havia algo no
processo de escolarização, anterior à formação de nível superior, que justificasse tais disparidades. Do
mesmo modo, revendo minha trajetória, eu me indagava: por que a maioria dos professores na Educação
Básica é composta de mulheres?
Tais interrogações conduziram-me ao curso de extensão “Gênero, Trabalho e Educação”,
ministrado pelas professoras Cláudia Pereira Vianna e Carmen da Sylva Vidigal Moraes, realizado na
Faculdade de Educação da USP, por meio do qual estabeleci os primeiros contatos com a pesquisa
acadêmica na área de gênero e educação.
Nesse curso, encontrei respostas para algumas de minhas indagações relacionadas com a
condição das mulheres no Brasil. A leitura de vários textos e, de modo especial, os seminários sobre a
situação das mulheres no mercado de trabalho no final dos anos 1990 foram reveladores dos limites
existentes nas conquistas dos movimentos feministas das décadas de 1970, 1980 e 1990.
Em primeiro lugar, diversos dados demonstram que, apesar dos avanços, do significativo
aumento do número de mulheres inseridas no mercado de trabalho, sobretudo no final da década de 1980
e início dos anos 1990, elas ainda ocupam os lugares menos privilegiados na economia, recebem salários
menores que o dos homens (muitas vezes em funções semelhantes) e em geral estão sujeitas a condições
de trabalho extremamente precárias. Em suma, o chamado processo de precarização do trabalho, termo
tão em voga nos últimos tempos, recaiu principalmente sobre a mão-de-obra feminina.1
Essa precariedade se traduz numa enorme quantidade de mulheres atuando no setor informal da
economia, sem registro em carteira; quando o possuem, é habitualmente por meio de contratos
1
Ver: Bruschini (1998), Oliveira (1998), Hirata (1997).
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temporários, em empregos terceirizados, nos quais elas geralmente recebem menos e possuem menos
benefícios, ou pelo trabalho doméstico, socialmente definido como não-trabalho.
Em segundo lugar, o trabalho feminino também se caracteriza por uma forte segregação
ocupacional e discriminação salarial.
Com pouquíssimas exceções, a mão-de-obra feminina está
confinada a verdadeiros guetos, por exemplo: ocupações de costureira, professoras, secretárias,
telefonistas, enfermeiras e auxiliares de enfermagem, recepcionistas, atendentes, operadoras de
telemarketing e atividades no setor de serviços em geral, ou seja, ocupações que tendem a reproduzir
atividades realizadas por mulheres na esfera reprodutiva, tais como: cuidar, lavar, passar, cozinhar e
ensinar, o que mantém um leque estreito de oportunidades de trabalho para as mulheres.
Além disso, em qualquer setor econômico em que estejam atuando, as mulheres recebem
remuneração inferior à dos homens, situação agravada pela pouca oferta a elas de postos mais altos e
privilegiados nas mais diversas ocupações. A figura da executiva bem-sucedida que povoa as revistas
femininas não é compatível com a realidade da maioria das trabalhadoras brasileiras.
Em vista disso, eu me perguntava: por que o acesso à escolaridade não significava, para muitas
de nós, a transformação desse quadro? O que explicaria a existência, ainda, de tais disparidades entre
homens e mulheres, considerando o grande avanço das mulheres na aquisição de credenciais escolares?
Enquanto essas inquietações ocupavam minha mente, também naquele ano passei a acompanhar
o início da trajetória escolar de um sobrinho. As reclamações que a escola fazia sobre o comportamento
do garoto eram tão freqüentes quanto as ameaças de expulsão. Por inúmeras vezes precisei comparecer à
escola, e em todas as situações o argumento central da instituição era a personalidade terrível do menino,
segundo os professores uma criança muito agitada, absolutamente incontrolável. Se continuasse daquela
forma, não iria muito longe, alertavam, em uma espécie de profecia auto-realizadora de que ele não
conseguiria se desenvolver. Em suma, ele era “naturalmente” visto como um delinqüente infantil pelos
educadores e pelo corpo de funcionários da escola.
Por trás dessas queixas, figurava a idéia de que a escola era um benefício gentilmente concedido
pelo Estado ao cidadão, e não um direito social, e por isso, caso não fizéssemos jus a ele, o perderíamos.
Em outras palavras, um comportamento não condizente com o desejado pela escola fatalmente
resultaria em malogro escolar. Além disso, a criança era vista como possuidora de características inatas
que a impediriam de exercer com sucesso o ofício de aprendiz.
Assim como na escola, em casa também o menino era considerado uma criança problema
simplesmente pelo fato de ser do sexo masculino, o que reforçava a premissa da existência de
características fundamentadas biologicamente para cada sexo e confirmava a visão que a escola tinha
dele.
Do cruzamento das estatísticas oficiais de desempenho escolar (que localizam o fracasso escolar
majoritariamente no alunado masculino) com minha luta incansável e solitária para provar às autoridades
escolares a inexistência de qualquer problema com aquela criança do ponto de vista cognitivo, nasceu
meu interesse pela investigação do insucesso de meninos nas séries iniciais. Eu visava, sobretudo,
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identificar os mecanismos envolvidos na eventual produção, manutenção e reprodução desses resultados
por parte da escola.
Durante minhas idas e vindas ao estabelecimento de ensino onde meu sobrinho estudava, era
comum perceber na fala das professoras a idéia de que o garoto trazia da socialização primária valores
relacionados com a construção de sua identidade de gênero, incompatíveis com o ofício de aluno.
Essa hipótese convive com outra, ainda restrita aos círculos acadêmicos, que afirma serem os
meninos as atuais vítimas da educação, por não terem a especificidade de sua masculinidade bem
atendida pelas escolas.
Um dos principais representantes dessa visão é o terapeuta norte-americano William Pollack
(1999). Ele afirma que meninos vestem uma máscara de bravura que oculta seu verdadeiro eu, razão pela
qual se vêem impedidos de demonstrar sentimentos como medo, incerteza, solidão e necessidade de
apoio.
Para Pollack (1999), no contexto escolar esse mascaramento só é percebido quando os meninos o
violam de alguma forma, resistem a ele ou tentam ignorá-lo, em geral garotos que apresentam baixo
rendimento escolar e um comportamento considerado inadequado à sua condição de alunos e ao bom
desempenho no processo de aprendizagem, como ocorreu com meu sobrinho.
Este trabalho pretende analisar criticamente essas duas afirmações, baseado em uma investigação
empírica realizada em uma escola pública da rede estadual de ensino, através da qual busco compreender
como a escola, enquanto agência socializadora, atua na produção social das masculinidades e das
feminilidades, bem como as possíveis implicações desse processo para o rendimento escolar de garotos e
garotas.
Para isso, dialogo com a tese da vitimização defendida por Pollack (1999) e por tantos outros
autores, e talvez em minhas considerações finais seja possível fornecer pistas que resgatem os meninos da
condição de vítimas e os elevem à condição de sujeitos de uma educação que não atende de forma
igualitária meninos e meninas.
No primeiro capítulo, demonstro os fundamentos teóricos e conceituais da hipótese inicial da
pesquisa, fortemente vinculada a um discurso polar que coloca fracasso versus sucesso, meninos versus
meninas e tende a reforçar a tese da vitimização.
Apresento também o processo de reconstrução dessa hipótese com base nos teóricos da
multiplicidade de masculinidades e feminilidades presentes no espaço escolar. Assim, mostro como no
decorrer da investigação fui abandonando as binaridades e partindo para uma concepção plural de
masculino e feminino que, vinculada a outras categorias, ajuda a explicar o sucesso/fracasso escolar.
De modo semelhante, no segundo capítulo abordo o processo de construção da metodologia,
combinando o uso de diferentes técnicas qualitativas de investigação, por meio das quais fui também
definindo as mais adequadas para o reexame da hipótese teórica inicial e os objetivos propostos.
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No terceiro capítulo, analiso os depoimentos da professora em cuja sala fiz observações de
inspiração etnográfica. O intuito foi mapear as diferentes configurações de masculino e feminino daquele
contexto e demonstrar as implicações que elas estabeleciam ou não com o sucesso/fracasso escolar.
No último capítulo, trabalho com os discursos das crianças sobre as diversas situações
vivenciadas no dia-a-dia da sala de aula, examinando minuciosamente as relações sociais entre professora
e alunos(as), assim como entre as crianças.
As falas das crianças me possibilitaram concluir o mapeamento dos múltiplos significados de
masculino e feminino iniciado no capítulo anterior e também verificar como as crianças interagiam com a
socialização familiar e a escolar, adequando-se a elas, criando outras alternativas, resistindo e até mesmo
refutando-as.
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CAPÍTULO I: FRACASSO ESCOLAR E GÊNERO
1.1) Hipótese inicial: socialização primária e vitimização escolar de meninos
No ano de 2001, enquanto cursava as disciplinas do Programa de Pós-graduação, trabalhei
intensamente na reconstrução do projeto de pesquisa apresentado na ocasião da seleção para esse
programa.
O projeto partia da premissa de que a qualidade da educação pública brasileira apresentava uma
variedade de problemas, razão pela qual ela podia ser analisada com base em diversos aspectos, desde a
gestão democrática da escola, investimento na formação de professores, melhoria da infra-estrutura das
escolas até o nível macroestrutural de uma política educacional voltada para a garantia de acesso e
permanência dos usuários da rede pública.
Romualdo Portella de Oliveira e colaboradores (1999), ao examinarem as estatísticas oficiais da
Educação Básica, de distribuição percentual de matrículas por série, segundo o sexo, notaram a existência
de uma tendência de maior presença masculina nas séries iniciais, e feminina nas últimas séries, o que
para eles era um forte indício da maior quantidade de reprovações no alunado masculino.2
A distribuição de matrículas total para o ano de 1996, conforme o sexo, em cada série do Ensino
Fundamental, era praticamente a mesma para ambos os sexos: 50,3% para o sexo masculino e 49,7% para
o feminino. Entretanto, as meninas ultrapassam os meninos já na segunda série, o que me permitiu crer
que as meninas estavam sendo menos reprovadas (Oliveira e colaboradores, 1999).
Do mesmo modo, também Fúlvia Rosemberg (2001) argumentou que o fluxo escolar tem
apresentado estrangulamentos equivalentes para ambos os sexos, decorrentes de reprovação, evasão e
expulsão escolar, porém as trajetórias escolares masculinas caracterizavam-se por um percurso menos
linear, o que pode ser verificado na inadequação série/idade decorrente tanto de entrada tardia no sistema
de ensino quanto de saídas seguidas por entradas e/ou reprovações.
Marília Pinto de Carvalho (2000), autora que tem se dedicado ao estudo desse quadro sob o
ponto de vista das relações de gênero no cotidiano escolar, aprofundou o debate sobre o tema. Para ela, o
melhor desempenho das meninas percorre todo o Ensino Fundamental, visto que desde os sete anos o
índice de defasagem entre idade e série escolar é maior para os meninos (14,7%) do que para as meninas
(13%).
Os meninos são maioria (53,2%) na primeira série, mas a partir da quarta série a repetência entre
meninos é maior do que entre meninas, e nas oitavas séries 55% dos alunos são do sexo feminino (MEC,
2
Os autores atribuem esses resultados também ao engajamento precoce dos meninos no mercado de
trabalho, enquanto as meninas podem compatibilizar diferentes formas de trabalho doméstico com a
freqüência à escola. Esse argumento tem sido criticado de diferentes maneiras e por vários autores, razão
pela qual faço apenas uma referência a ele neste momento; em outro ponto do trabalho, retomarei a idéia
à luz das críticas que foram lançadas.
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1996). No Ensino Médio, as meninas representam 56% dos alunos, sendo que 17,3% da população
feminina possui pelo menos o diploma desse nível, ao passo que na masculina o percentual é de 15,1%.
Os números parecem evidenciar que não existem problemas especiais de acesso para as meninas
decorrentes de seu sexo; “existe um problema crescente de acesso e permanência na escola para pessoas
do sexo masculino” (Carvalho, 2000, p. 42), que aparece mais claramente na desproporção entre rapazes e
moças que freqüentam o ensino médio e nas altas taxas de analfabetismo entre homens jovens no Brasil.
Segundo a autora, os índices indicam que continuam existindo problemas de evasão e repetência
para ambos os sexos. Entretanto, também como demonstrado por Rosemberg (2001), as trajetórias
masculinas de escolarização tendem a ser mais acidentadas que as femininas:
As estatísticas nacionais, embora precárias no que se refere à desagregação por sexo,
não deixam dúvidas quanto à diferença de desempenho escolar entre meninos e
meninas em todo o ensino fundamental e médio. Pode-se tomar os dados sobre evasão e
repetência ou as informações sobre defasagem entre série cursada e idade da criança:
qualquer dessas cifras indica que os meninos teriam maiores dificuldades escolares
(Carvalho, 2001b, p. 554).
De posse dessas informações, parti do pressuposto de que, para uma parcela considerável dos
alunos do Ensino Fundamental regular, a universalização do acesso a essa etapa da escolarização,
amplamente divulgada pelos órgãos governamentais, não era traduzida na universalização da conclusão e,
como conseqüência, a concretização do direito à Educação Básica não se realizava, apesar do expressivo
aumento do número de vagas ofertadas para essa modalidade de ensino, deixando evidente a baixa
qualidade da educação pública oferecida à população.
Nesse sentido, eu me perguntava: por que meninos fracassam mais que meninas? Por que suas
trajetórias escolares são mais irregulares?
Procurando respostas para essas perguntas, fui verificar na literatura sobre fracasso escolar como
essa questão vinha sendo analisada. Constatei que as pesquisas acadêmicas na área educacional e também
no campo da psicologia da aprendizagem abordaram de forma muito satisfatória o tema do fracasso
escolar sob o ponto de vista das discriminações de classe.3
Nessa seara, a investigação desenvolvida por Patto (1990) consolidou a tendência de examinar
esse problema sob essa ótica, destacando os mecanismos intra-escolares de produção, manutenção e
reprodução de histórias de malogro. Não resta dúvida de que essa obra representa um divisor de águas na
produção científica sobre o tema, pois muitas de suas revelações ainda estão presentes no cotidiano das
escolas públicas.
3
Ver : Aquino (1997), Machado (1997), Patto (1990), Patto (1992), Affonso (1992), Affonso (1994),
André (1997), Arroyo (2000), Arroyo (1997), Baeta (1992), Cagliari (1997), Campos (1995), Collares
(1992a), Collares (1992b), Gama (1991), Machado (1997), Machado (1996), Proença (2002), Sawaya
(1999), Sawaya (2002), Soares (1997), Souza (1991), Souza (1999), Tibaldi (1998).
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Conforme a autora, nos anos 1990 ainda convivíamos com três grandes paradigmas enunciadores
das causas do fracasso escolar:
As dificuldades de aprendizagem das crianças pobres muitas vezes são vistas como decorrentes de
suas condições de vida e da baixa participação das famílias na escolarização.
A escola pública continua sendo vista como própria para crianças de classe média e o professor tende
a se relacionar com seus alunos com base em um tipo ideal, que geralmente não corresponde aos
dados da realidade.
Os professores da rede pública e o discurso acadêmico ainda não entendem ou discriminam alunos
por desconhecerem seus padrões culturais. De modo geral, trabalhos posteriores outorgaram essas
evidências, levando-nos a acreditar que talvez não houvesse mais nada a ser discutido e analisado
nessa temática.
Logo após a pesquisa de Patto (1990), Elizabete Gama e colaboradores (1991) apresentaram as
mesmas justificativas para o insucesso escolar. Passados mais de dez anos, a pesquisa recente de Teresa
Cristina Ferreira Lagoa (2002) insiste na idéia de que o acompanhamento do processo de aprendizagem
pela família constitui um dos principais fatores da evolução do desempenho escolar, algo muito distante
das possibilidades e da realidade da imensa maioria da população usuária de escolas públicas.
Para essa corrente, portanto, as distinções de classe são os elementos centrais que explicam a
permanência de elevados indicadores de insucesso escolar na educação pública.
Entretanto, como esclarecer a evidência empírica de que tal fenômeno concentra-se, sobretudo,
no alunado masculino? Por que os meninos apresentam trajetórias escolares mais acidentadas e índices
maiores de baixo rendimento?
Para Carvalho (2001b), possíveis respostas a essa indagação deveriam ser buscadas menos nas
estatísticas oficiais e mais no cotidiano escolar, e principalmente nos critérios de avaliação adotados
formal e informalmente por professoras(es):
(...), as estatísticas de desempenho escolar têm alguma relação com aprendizagem dos
alunos, porém essa relação é intermediada: pelas políticas educacionais – que podem,
por exemplo, levar a fortes pressões pela diminuição drástica do número de
reprovados, ou mesmo de indicados para atividades de recuperação; pelo
relacionamento entre professores, professoras, alunos e alunas, sempre perpassado por
um conjunto de desigualdades sociais como aquelas decorrentes das relações raciais,
de classe e de gênero; assim como pelos critérios de avaliação adotados explícita ou
implicitamente, mais ou menos conscientemente pelos encarregados de avaliar e
atribuir conceitos ou notas aos alunos (Carvalho, 2001b, p. 555).
Logo, percebi que uma série muito mais ampla de fatores poderia atuar na construção do
fracasso/sucesso escolar, entre eles a forma pela qual a sociedade constrói o gênero, e a partir dele os
significados atribuídos aos homens e às mulheres.
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Todavia, antes de entrar nessa discussão, acho importante elucidar qual é a apreensão teórica do
conceito de gênero neste trabalho, articulando-a a suas possíveis relações com o rendimento escolar.
Não existe um consenso entre as(os) várias(os) autoras(es) que se dedicaram à tarefa de definir o
conceito de gênero. Para situar melhor qual é a apropriação que faço dele, creio ser conveniente recorrer
brevemente à sua origem e às várias teorias elaboradas no debate acadêmico.
Uma primeira definição surgiu no final dos anos 1960, com os trabalhos de autoras feministas
inglesas. Elas utilizavam o termo “gênero” como oposto e complementar ao sexo, ou seja, como a
construção social das diferenças biológicas entre homens e mulheres (Nicholson, 2000).
Nesse momento, as feministas estavam, sobretudo, voltadas a criticar os adeptos de
interpretações das diferenças sexuais entre homens e mulheres, exclusivamente fundamentadas nas
características biológicas dessas alteridades. Portanto, o investimento foi muito mais na luta para
legitimar os estudos sobre a condição feminina, denunciando as construções sociais que atribuíam
significados distintos para homens e mulheres, no seio da arena de poder social, na qual o sexo feminino
ocupava uma posição de desvantagem.
Entretanto, convém esclarecer que se tratava de uma definição que se restringia a descrever o
que é socialmente construído, em oposição ao que é biologicamente dado. Nos termos de Nicholson
(2000): “Aqui ‘gênero’ é tipicamente pensado como referência a personalidade e comportamento, não ao
corpo, ‘gênero’ e ‘sexo’ são portanto compreendidos como distintos” (Nicholson, 2000, p. 9).
Essa primeira abordagem foi criticada por não incluir uma visão mais densa e compreensiva do
gênero que pudesse dar conta de explicar que os significados construídos socialmente feminizam e
masculinizam homens e mulheres com relação a uma performance social, mas que poderiam ser também
elementos definidores da relação que ambos teriam com o próprio corpo (Scott, 1995).
Com base nessas colocações, a teoria feminista ainda vive sob a influência dessa visão que
coloca o sexo fora da cultura e da história, ou seja, como um fator formador da história.
Uma interpretação de maior envergadura foi elaborada pelas feministas pós-estruturalistas Scott
(1995) e Nicholson (2000). De um lado, ela possibilitou a compreensão de que a sociedade constrói
também as formas pelas quais os corpos irão expressar o feminino e o masculino. De outro, nos fez
compreender que o gênero é uma categoria que remete às formas simbólicas, mas é também um elemento
da organização de relações de poder em instituições sociais como igreja, escola, família, nos símbolos,
valores e normas transmitidos por essas instituições e nas dimensões macroestruturais da política ou
microestruturais da configuração das identidades (Scott, 1995).
Assim, o destaque passou a ser dado aos sistemas simbólicos implicados na rede de significados
e relações de poder de todo o tecido social, tal como expressa Guacira Lopes Louro, uma das primeiras
autoras a trazer essa discussão para o debate educacional brasileiro: “Há diferenças quanto à distribuição
de poder, o que vai significar que o gênero está implicado na concepção e na construção do poder”
(Louro, 1995).
12
Rosemeire dos Santos Brito
A meu ver, a principal contribuição das abordagens pós-estruturalistas para essa pesquisa foi a
noção de que o gênero é uma categoria que estrutura a prática social, o que inclui a sociabilidade, mas
também a domesticação do corpo com base no que é visto como masculino e feminino, em um dado
contexto cultural e momento histórico.
Essa maneira de conceituar o gênero permitiu que viesse à tona o fato de que não são somente as
distinções de classe, raça e etnia que definem a posição dos indivíduos e as relações que eles estabelecem
entre si, ou seja, as hierarquias sociais. Ao contrário, as possibilidades de inserção no espaço privado e
público têm uma estreita relação com o pertencimento de gênero.
À medida que me aprofundava nessas leituras, ia me certificando, cada vez mais, de que
qualquer estudo que se dedique de alguma forma a questionar relações de poder precisa estar
minimamente preocupado com essa complicada trama que estrutura tais relações. Em suma, não podemos
analisar as diferenças de classe e raça sem considerar as relações de gênero, e vice-e-versa:
Para entender o gênero, então, devemos ir constantemente mais além do próprio
gênero. O mesmo se aplica ao inverso. Não podemos entender nem a classe, nem a raça
ou a desigualdade global sem considerar constantemente o gênero. As relações de
gênero são um componente principal da estrutura social considerada como um todo, e
as políticas de gênero se localizam entre os principais determinantes de nosso destino
coletivo (Connell, 1997, p. 38).
A pesquisa acadêmica brasileira sobre o tema do fracasso escolar, a que já fiz referência
anteriormente, denunciou de modo decisivo uma longa história de discriminações de classe que perdura
até os dias atuais.
Contudo, salvo poucas exceções4, a grande maioria dos trabalhos não incorporou a categoria
gênero em suas análises, como se somente a classe social pudesse explicar as trajetórias de insucesso de
muitos alunos da rede pública, e assim possibilitar o estabelecimento de hierarquias de maiores
proporções, como a grande disparidade existente em relação à educação ofertada à população pobre e a
que está disponível para a parcela mais rica.
O contato com os escassos estudos sobre a análise dessa temática na ótica das relações de gênero
me permitiu formular a hipótese teórica inicial da pesquisa. Vejamos em que fundamentos ela foi
construída.
Foi basilar para a sua elaboração a pesquisa desenvolvida pela equipe de Carmen D. Silva e
colaboradores (1999). Nesse trabalho, foram analisados dados estatísticos de reprovação de quatro escolas
da rede estadual de Pelotas e também entrevistas com professores(as)5 dessas instituições, buscando
4
Ver: Silva (1999), Bernardes (1998), Carvalho (2000, 2001a, 2001b).
5
Uma amostra de 84 professores(as).
13
Rosemeire dos Santos Brito
identificar as representações6 dos(as) mesmos(as) sobre desempenho escolar, comportamentos
considerados adequados ou impróprios ao bom rendimento escolar, repetência e previsão de aprovação
e/ou reprovação relacionadas com o sexo e a cor dos alunos, assim como suas representações acerca da
própria profissão.
Os autores formularam uma tentativa de explicar o insucesso escolar afirmando que as diferenças
de aprendizagem e rendimento escolar podiam decorrer do fato de que na escola meninos e meninas
recebiam “educação diferenciada”, no sentido de que a escola possuía expectativas diferentes com
relação ao desempenho de meninos e de meninas, evidenciando a existência de discriminações de gênero
nas relações escolares, as quais só poderiam ser percebidas e analisadas se consideradas as sutilezas da
sociabilidade:
Meninos e meninas recebem educação muito diferente, embora sentados na mesma
sala, lendo os mesmos livros didáticos, ouvindo o mesmo professor (Silva, 1999, p.
213).
Com base nessa idéia, o estudo sugeria que as meninas têm obtido melhores resultados devido à
sua socialização para a passividade, enquanto os meninos passavam por um processo de socialização
direcionado à assertividade e ao mundo público, razão pela qual apresentavam mais resistências ao
modelo de aluno esperado pela escola.
Tal argumento já havia sido defendido por outros pesquisadores que desenvolveram estudos
anteriores a esse, dentre os quais destaco Mariano Enguita (1989), também citado por Silva (1999):
(...) as meninas são mais submissas, ou foram educadas para submeter-se à autoridade,
sendo mais cuidadosas em seu trabalho, ajustando-se, assim, à disciplina da escola. Os
meninos, ao contrário, são mais rebeldes, independentes, criativos (Silva e
colaboradores, 1999, p. 212).
As garotas seriam mais adaptadas à escola porque já trariam de casa formas de comportamento
mais adequadas ao exercício da função de alunas, tal como expressaram vários(as) dos(as) professores(as)
entrevistados(as):
As justificativas da diferença de desempenho expressam a percepção de que “os
meninos são mais inteligentes, porém, indisciplinados; enquanto as meninas são mais
atentas e aplicadas, mas menos inteligentes” (...), outras caracterizações dos
comportamentos indicam “as meninas como mais responsáveis, dedicadas, estudiosas,
interessadas, sensíveis, atentas”. Enquanto “os meninos são malandros, não têm
hábitos de estudo, não ficam em casa para estudar, saem para jogar bola, faltam às
aulas, são dispersivos, têm interesses fora da escola, são agitados, não prestam
atenção, ainda que mais inteligentes” (Silva e colaboradores, 1999, p. 215).
6
Os autores adotaram um conceito de representação entendido como uma forma de conhecimento,
socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de uma
realidade comum a um conjunto social (Silva e colaboradores, 1999, p. 210).
14
Rosemeire dos Santos Brito
Com base na leitura desse trabalho, percebi que talvez o comportamento traduzido na idéia de
uma conduta compatível com as normas e o processo de aprendizagem pudesse ser um elemento central
na formação dos critérios de avaliação de meninas e meninos.
Uma pista nessa direção foi encontrada no trabalho de Carvalho (2001a), no qual ela constatou
que esse era o principal fator de avaliação e, inclusive, de indicação de alunos para classes de reforço em
uma escola pública da região metropolitana de São Paulo:
Para “tornar-se NS”7, uma criança devia apresentar ao que parece, principalmente
certos atributos de comportamentos: agressividade, “agitação”, “dar trabalho”, “falar
demais”, “atritos com os colegas”, “ser superativo”, não querer fazer as tarefas. Esse
critério era claro, por exemplo, na coincidência entre alunos que perturbavam na
classe e alunos indicados para as aulas de reforço (Carvalho a, 2001, p. 244).
Em um trabalho posterior, Thaís Juliana Palomino (2003)8 confirmou essas premissas ao afirmar
que a postura de meninos e de meninas na sala de aula era distinta, razão pela qual os garotos seriam mais
indisciplinados, inquietos, demandariam mais atenção da professora, ao passo que as meninas seriam
mais dóceis, disciplinadas e maduras, o que serviria para justificar as diferenças de rendimento entre eles.
Em suma, as meninas teriam melhor aproveitamento escolar porque se comportariam de forma
mais adequada ao “ofício de aluno”; em contrapartida, os meninos, em virtude de uma socialização mais
incompatível com a disciplina e a passividade, teriam menos chance de êxito.
Na fala da professora em cuja sala foi feita a investigação, Palomino (2003) verificou que o
comportamento e o desempenho escolar eram os principais determinantes do sucesso/fracasso. Enquanto
ela valorizava a realização de atividades nas meninas, a postura era o ponto destacado no que se referia
aos meninos:
A professora disse que as meninas “rendem mais porque sabem se comportar, quando
eu preciso chamar a atenção... não preciso chamar a terceira. Eles (meninos) o tempo
inteiro eu estou cobrando deles atenção, atenção, presta atenção...” (Palomino, 2003,
p. 178).
Desse modo, a autora deparou-se com justificativas semelhantes às encontradas por Silva e
colaboradores (1999) para o comportamento de meninos e meninas. Com base nessas constatações, ela
afirma que a escola poderia ser para as garotas algo que chamou de “sopa no mel”, definição que
permitiria inferir que o processo de aprendizagem poderia ocorrer sem grandes problemas para elas em
razão de sua socialização para a passividade e a obediência (Palomino, 2003, p. 46-50).
7
Os conceitos adotados na escola em que foi feita essa investigação eram: (S) satisfatório, (NS) não
satisfatório e (PS) plenamente satisfatório.
8
Esta autora realizou um estudo de caso em uma escola pública da rede estadual, em São Carlos/SP. A
investigação consistiu em observações em sala de aula de uma turma de classe de aceleração.
15
Rosemeire dos Santos Brito
Além disso, a opinião da professora sobre o comportamento de seus(suas) alunos(as) era um
elemento estruturante da interação professor-aluno: aqueles(as) que se comportassem melhor ocupavam
lugares privilegiados na sala de aula e, em última instância, tal comportamento definiria quem era
bom(boa) e mau(má) aluno(a):
A forma como a professora interagia com meninos e com meninas era interpenetrada
pela maneira como as crianças estavam distribuídas nas fileiras da sala. O critério
para colocar tal criança aqui ou ali, as notas que a professora atribuiu aos seus alunos
e alunas no primeiro trimestre (...). A distribuição fixa das crianças nas fileiras da sala,
efetuada pela professora, indica que, embora o comportamento e o rendimento tendam
a se unir para definirem o bom aluno, o comportamento parece ser o determinante
(Palomino, 2003, p. 180).
Baseada nessas colocações, a imagem do(a) aluno(a) ideal que fui formando em minhas
indagações de pesquisa era: alguém necessariamente passivo, obediente, atento, cuidadoso, enfim, uma
criança que apresentasse uma variedade de características supostamente mais encontradas no corpo
discente feminino, em decorrência de sua socialização.
Em razão dessa hipótese, fui buscar na literatura pesquisas que tivessem se dedicado ao estudo
da socialização infantil analisada sob o ponto de vista do gênero, isto é, que tivessem procurado
desvendar os mecanismos pelos quais a identidade de gênero era fornecida à criança, fosse ela do sexo
masculino ou feminino.
Novamente me vi às voltas com o mesmo tipo de dificuldade encontrada anteriormente, a
escassez de referências sobre o tema. Raras foram as pesquisas que se incumbiram da tarefa. Em geral, a
pesquisa feminista tem se dedicado à condição da mulher na sociedade, concentrando-se no universo
adulto, o que também ocorre com a maior parte da pesquisa educacional que tenha tido como foco as
relações de gênero no espaço escolar.
Trata-se de um campo ainda em construção no cenário acadêmico brasileiro, razão pela qual
creio ser de fundamental importância fomentarmos a realização de pesquisas que contemplem também a
visão das crianças sobre o que elas vivem no âmbito das escolas.
Voltando ao ponto anterior, as principais fontes que encontrei a respeito dessa temática foram os
trabalhos de Maria Duque-Arrazola (1997), Felícia Madeira (1997) e Maria Luiza Heilborn (1997), que
contribuíram para minhas reflexões iniciais sobre a socialização primária no que tange à construção da
masculinidade e da feminilidade, ou seja, da identidade de gênero.
Duque-Arrazola (1997) desenvolveu uma pesquisa com crianças e seus familiares na periferia de
Recife, conduzida por observações e entrevistas. Sua constatação foi de que o cotidiano de meninos e de
meninas era vivenciado como um processo diferenciado de aprendizados e experiências de vida e,
sobretudo, de reprodução de relações sociais de gênero, tal como existiam no universo adulto, as quais
eram vividas como direitos, permissões, proibições e responsabilidades desiguais por serem as crianças
meninos ou meninas.
16
Rosemeire dos Santos Brito
Para essa autora, no processo de socialização familiar9 as crianças aprendiam e interiorizavam
determinadas formas de viver as relações gênero enquanto meninos e meninas, de acordo com sua idade,
raça, etnia e classe social.
As informações obtidas em sua investigação possibilitaram a ela afirmar que nas relações
familiares reproduziam-se as desigualdades sociais entre homens e mulheres e as relações de poder que
elas implicam no âmbito da sociedade.
Traduzindo essa idéia, os dados demonstraram que as crianças desde cedo aprendiam a viver
como sexos segregados, motivo pelo qual os jogos e as brincadeiras eram tradicionalmente separados
conforme o sexo, assim como a obrigatoriedade dos afazeres domésticos desde cedo ficava a cargo das
meninas.
A partir disso, eram estabelecidas e vividas as restrições e proibições referentes a tudo que
negasse o que era socialmente atribuído ao masculino e ao feminino, assim como as permissões e direitos
para com tudo aquilo que contribuía para afirmar tais construções.
Por conseqüência, as crianças acabariam aceitando como verdade absoluta o fato de que os sexos
eram biologicamente diferentes e que essa distinção era a base da justificativa dada à desigualdade
existente entre ambos.
Na mesma linha, Montserrat Moreno (1999), ao analisar as brincadeiras de meninos e meninas,
afirma que:
As meninas têm liberdade para serem cozinheiras, cabeleireiras, fadas madrinhas,
mães que limpam seus filhos, enfermeiras, etc., e os meninos são livres para serem
índios, ladrões de gado, bandidos, policiais, super-homens, tigres ferozes ou qualquer
outro elemento da fauna agressiva. As manifestações espontâneas nas brincadeiras dos
meninos costumam ser de caráter agressivo e no (sic) das meninas de caráter pacífico.
Isso se deve a quê? Se meninos e meninas tendem a identificar-se com os modelos
vigentes em nossa sociedade e isso se manifesta no jogo, se os jogos são tão diferentes,
é necessário admitir que existem modelos diferentes para uns e para outros no que
concerne a essa característica (Moreno, 1999, p. 32).
Tanto para Moreno (1999) quanto para Duque-Arrazola (1997), isso ocorre porque o cotidiano
de meninos e de meninas é sexuado desde a mais tenra infância, no sentido de que são definidas
brincadeiras e obrigações para meninos e para meninas, conforme o sexo, ou melhor, de acordo com seu
pertencimento de gênero.
Esses trabalhos apontam ainda que em geral os garotos seriam socializados com maior liberdade,
como alguém que é destinado ao universo público, razão pela qual não se exige deles quase nenhuma
9
Compreendido como processo de formação que se realiza como aprendizagem, a partir de imitações,
interpretações e internalizações dos modos de agir, da linguagem, das concepções de mundo, das
representações sociais, universos simbólicos, dos valores e normatizações de uma determinada sociedade
(Duque-Arrazola, 1997).
17
Rosemeire dos Santos Brito
obrigatoriedade nas tarefas domésticas, e razão pela qual Duque-Arrazola (1997) os chama de “indivíduos
de direitos”.
Em contrapartida, as garotas deveriam ser controladas, reservadas ao doméstico, o que levaria
à formação de “um ser de direitos relativizados” cujo tempo seria prioritariamente constituído de
deveres e obrigações: trabalho doméstico, cuidado de irmãos menores. Seria também de negociação:
permissões de lazer, jogos e brincadeiras.
Tratar-se-ia, portanto, de um processo que tenderia exclusivamente a reproduzir as hierarquias
existentes entre homens e mulheres no interior de uma visão de criança vista meramente como objeto da
educação dos adultos e não como um ator-social capaz de apresentar resistências a esses modelos.
Se vertermos essa discussão para o espaço escolar, os estudos de Duque-Arrazola (1997) e
Madeira (1997) concluem que a dinâmica existente no universo doméstico tenderia a ser reforçada na
escola, ou seja, essa instituição ainda não apresentaria possibilidades de ruptura desses parâmetros.
Desse modo, a escola enquanto agência também incumbida da tarefa da socialização estaria
inclinada a reproduzir o cotidiano sexuado de meninos e meninas, ou seja, os modelos tradicionais de
masculino e feminino, o que poderia expressar a existência de uma incapacidade de questionamento das
relações de gênero nesse espaço.
Com base em tais premissas, as autoras concluíram que para os estabelecimentos de ensino e
seus educadores o feminino e o masculino possivelmente apareceriam como naturalmente constituídos
(Duque-Arrazola, 1997; Madeira, 1997). Visão semelhante é compartilhada por Moreno (1999):
A escola, por seu caráter de instituição normativa, contribui de maneira sistemática
para o desenvolvimento desses padrões de organização da conduta e das atividades de
forma praticamente permanente (Moreno, 1999, p. 68).
Apoiada em tais colocações, encontrei uma primeira ligação entre a socialização infantil e o
problema do insucesso de meninos no Ensino Fundamental. Ao analisar essas referências, pude de algum
modo conectar essas deduções com as justificativas dadas para o malogro masculino nas poucas pesquisas
que se dedicaram à investigação do tema sob a ótica da influência da categoria gênero nos resultados
escolares.
Naquele momento eu acreditava que, por tais razões, era comum a fala de muitos(as)
educadores(as) apontar o melhor desempenho das meninas como resultado de seu esforço e disciplina
para aprender e o fracasso dos meninos como decorrente de sua indisciplina, falta de atenção e cuidado
com os materiais escolares. Assim, as garotas seriam esforçadas quando apresentassem bons resultados
escolares e os meninos seriam inteligentes na mesma situação.10
10
Ver: Madeira (1997), Silva e colaboradores (1999), Palomino (2003).
18
Rosemeire dos Santos Brito
Dessa maneira, poderia se confirmar a profecia auto-realizadora encontrada na pesquisa de Silva
e colaboradores (1999), a qual afirmava que, embora os meninos possuíssem maior capacidade
intelectual, seu rendimento escolar ficaria seriamente comprometido em razão da má conduta.
Explorando mais a idéia acima, Silva e colaboradores (1999) foram adiante e concluíram que a
maneira feminina de exercer o magistério11 nas séries iniciais favoreceria e valorizaria o desempenho
escolar das meninas (Silva e colaboradores, 1999, p. 221). Logo, os meninos poderiam ser vistos como
vítimas de uma escola feminina. Raciocínios similares também foram encontrados em outros países – a
preocupação com o malogro masculino na educação não é exclusiva do Brasil. O fenômeno tem sido
debatido de forma intensa pela comunidade científica de Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Inglaterra,
Estados Unidos, Dinamarca, Alemanha e Japão (Debbie Epstein e colaboradoras, 1998, p. 6).
Por tal razão, autoridades governamentais de alguns países, de modo especial Estados Unidos e
Inglaterra,12 empenham-se em defender políticas educacionais voltadas para o alunado masculino,
considerado a grande vítima da educação contemporânea. E entre elas encontra-se a defesa de uma maior
presença de homens no magistério, uma vez que os meninos são vistos como alunos prejudicados em sua
formação, por serem quase totalmente educados por mulheres.
Alguns autores citados13 por Debbie Epstein e colaboradoras (1998a) argumentam que os
homens perderam o controle de sua vida por causa dos ataques feitos pelo movimento feminista, razão
pela qual clamam por um regime mais natural, no qual homens e mulheres saibam qual é o seu lugar e os
homens possam usar o poder que lhes é inerente.
Para os adeptos dessa visão, as mulheres seriam as culpadas pelo fracasso dos meninos, pois
tanto as professoras quanto as mães e as feministas estariam contribuindo para um processo de
afeminação desses estudantes nas escolas, cujo principal resultado é o rendimento escolar insatisfatório.
Tais argumentos possibilitaram-me perceber a existência de uma tese da “vitimização dos
meninos na escola”, que aos poucos vem sendo introduzida na mídia brasileira.
O grande expoente dessa tese da vitimização é o terapeuta americano William Pollack (1999),
que, ao discorrer sobre as razões do insucesso de meninos nas escolas americanas, argumenta que muitos
garotos vivem por trás de uma máscara de bravura que oculta o seu verdadeiro eu, sendo tal camuflagem
necessária para que eles se ajustem às expectativas da sociedade.
11
Em muitos países, tal como no Brasil, a maioria dos professores que trabalham na Educação Básica é
composta de mulheres. Segundo dados do Primeiro Censo do Professor no Brasil (Brasil, Mec/Inep, 1999
a), 85,7% dos professores da Educação Básica são mulheres, ao passo que apenas 14,1% são homens.
Entretanto, convém salientar que a maior parte das educadoras brasileiras está concentrada na Educação
Infantil (90%), enquanto nos níveis mais elevados de ensino elas constituem minoria, principalmente em
carreiras consideradas masculinas (Vianna, 2002).
12
Especificamente sobre as propostas estatais de superação do problema na Inglaterra, ver M. Warrington
e M. Younger, 2000, p. 494).
13
Robert Bly (1990) nos EUA, Steve Biddulph (1994) na Austrália e Neil Lydon (1996) na Inglaterra.
19
Rosemeire dos Santos Brito
Essa anteface é o que ele denomina “código de meninos”, que consiste em um conjunto de
comportamentos, regras de conduta, princípios culturais, e até léxicos, inculcados socialmente aos garotos
desde a mais tenra infância:
O código dos meninos coloca estes e os homens numa espécie de camisa-de-força
sexual que constrange não apenas a eles, mas a todos, como seres humanos, tornandonos estranhos uns aos outros e eventualmente a nós mesmos – ou, pelo menos, não tão
fortemente ligados uns aos outros quanto gostaríamos de estar (Pollack, 1999, p. 30).
Segundo o autor, a existência desse regulamento só é notada quando os meninos o violam de
alguma forma, ou tentam ignorá-lo, motivo pelo qual são freqüentemente alvos de severas repreensões
que visam controlá-los, discipliná-los, fazendo-os agir como homens capazes de manter as emoções sob
controle. Nas escolas, a violação desse código tenderia a ocorrer sob a forma de condutas perturbadoras
que se mostrariam incompatíveis com um desempenho considerado satisfatório para um aluno. Além
disso, esses comportamentos seriam vistos como prejudiciais não só ao alunado masculino, mas também
ao feminino.
Para Pollack (1999), é com base nesse quadro que se constroem os principais estereótipos com
relação aos estudantes do sexo masculino, assim como por meio dele as escolas estariam falhando em
atender às necessidades específicas dos garotos, tal como expressado abaixo:
Ademais, muitos educadores simplesmente rotulam os meninos como “bandidos”,
apontando nossos filhos como a fonte de muitos dos problemas sérios que as meninas
tiveram recentemente na escola. Assim, em vez de fazer o que for necessário para se
voltarem aos comportamentos, preocupações e sonhos únicos dos meninos, há uma
tendência, que prevalece nos estabelecimentos educacionais, de ignorar essas
necessidades. Aos meninos é permitido, na verdade, “afundar ou nadar”. Quando
entram em choque com professores, administradores ou outros estudantes, são quase
sempre vistos como os encrenqueiros ou os causadores de problemas. Baseado no
“mito do malefício, os meninos freqüentemente são vistos na escola como “pequenos
(guiados pela testosterona) monstros”, cuja agressividade “deve ser controlada e
disciplinada”, em vez de serem vistos como meninos pequenos e vulneráveis, que devem
ser acolhidos e incentivados. Isso, é claro, torna mais difícil enxergarmos soluções
criativas e úteis para ensiná-los (Pollack, 1999, p. 279).
Assim, a impossibilidade das escolas em trabalhar com as especificidades e carência dos
meninos seria o principal fator de insucesso escolar. Ele argumenta ainda que os meninos são tão
fortemente incentivados a competir com seus pares que alguns investem muita energia para manter o lado
emocional sob controle, e desse modo, com grande freqüência, não dispõem de vigor para se aplicar nos
estudos.
De forma mais precisa, para ele as escolas estão falhando de quatro modos diferentes (Pollack,
1999, p. 266-267):
Não estariam fazendo um bom trabalho com meninos, considerando as dificuldades que alguns têm
em certos assuntos escolares.
20
Rosemeire dos Santos Brito
Não estariam preparadas para lidar com as peculiaridades sociais e emocionais de meninos.
Não seriam ambientes acolhedores e amistosos para os meninos.
Por fim, os estabelecimentos não teriam um currículo e métodos de ensino voltados para as carências
e os interesses de meninos.
Com base em tais argumentos, ele chega, inclusive, a criticar as escolas mistas, que, em sua
visão, desenvolveram-se de forma a estar mais aptas a satisfazer as necessidades das meninas.
A solução proposta pelo autor para o problema da vitimização dos garotos é a masculinização do
espaço escolar, até mesmo criando escolas separadas para meninas e meninos:
Ao tentarmos “masculinizar” nossas escolas mistas e fazer com que elas adquiram uma
forma melhor para os meninos, será de grande ajuda olhar para o que as escolas
masculinas fazem para ser bem-sucedidas. Sei que a maioria deles não irá para uma
escola só de meninos, nem advogo que deveriam. Mas tendo tido a oportunidade de
atuar como consultor de muitas escolas para meninos, através dos Estados Unidos,
descobri que muitas delas, devido ao fato de serem especificamente criadas para
meninos, fazem um bom trabalho ao criar um ambiente educacional no qual eles podem
triunfar escolar e emocionalmente (Pollack, 1999, p. 295).
Essa proposta baseia-se no pressuposto de que a integração do alunado masculino na coeducação contribuiria para ocultar a insatisfação de suas necessidades, situação que só poderia ser
superada em escolas separadas para cada sexo:
Ao forçarmos a sua integração nos ambientes mistos que estão concentrados nas
necessidades das meninas, negamos aos meninos qualquer tipo de ambiente onde haja
laços só masculinos, a não ser o bando ao lado da diretoria da escola ou a cadeira de
réu diante de um juiz, a caminho da cadeia. Pergunto-me o que nos impede de
examinar alternativas de escolas exclusivamente masculinas para nossos filhos, ou de
utilizar as lições que escolas masculinas nos dão para tornar nossas instituições mistas
mais hospitaleiras para os garotos (Pollack, 1999, p. 296).
Desse modo, os garotos encontrariam um espaço seguro para se desenvolver e lidar com mais
naturalidade com a afetividade, sem correrem o risco de parecer afeminados:
Na ausência feminina os meninos não se sentem como tendo que ser competitivos ou
tão vulneráveis, e, portanto, tendem a ser menos ríspidos uns com os outros. Fazem
menos para humilhar os companheiros. Resumindo, cada um deles tende a se sentir
mais autoconfiante e menos dependente de uma máscara de bravata para encobrir a
segurança. Em ambientes mistos, em contraste, muitos meninos temem que os
professores ou os outros estudantes os ridicularizem caso se comportem de
determinadas maneiras, que possam não ser vistas como completamente masculinas.
Ficam ansiosos ao discutir emoções advindas de uma história ou de um poema: evitam
responder às perguntas dos professores para não parecerem “estúpidos” ao cometer
um erro nem parecerem afeminados por ter acertado, passando ao largo de assuntos
tidos como “femininos” (Pollack, 1999, p. 297).
21
Rosemeire dos Santos Brito
Na impossibilidade de criação de escolas separadas para meninos e meninas, a sugestão do autor
é de que pelo menos contratem mais professores do sexo masculino, para que possam servir de exemplo e
incentivar a aquisição de uma masculinidade saudável:
É fundamental que os sistemas escolares façam sérios esforços para encontrar
professores do sexo masculino, especialmente nas escolas elementares, onde os
meninos estão obtendo as primeiras noções sobre o comportamento sexual adequado.
Embora eu tenha demonstrado como as mães e outras mulheres podem ser importantes
na ajuda aos meninos para que adquiram uma masculinidade saudável, se todos, ou
quase todos, os modelos que tiverem na escola elementar forem mulheres, como
poderemos esperar que esses menininhos vejam a aprendizagem – e o entusiasmo de
aprender – como coisas que homens fazem? Imagine quantos genitores se insurgiriam
se todas as meninas do curso secundário tivessem apenas professores homens! Por que,
então, eu me pergunto, toleramos que nas escolas elementares nossos meninos sejam
predominante ou exclusivamente ensinados por mulheres? (Pollack, 1999, p. 306).
Além disso, seus estudos concluem que para muitos meninos a imagem do aluno aplicado não
condiziria com o modelo de masculinidade heterossexual, assim, ser inteligente e dedicado na escola
significaria portar-se como uma menina ou como um homossexual.
Fazendo uma síntese de todos os argumentos já expostos, no início da pesquisa de campo, em
2002, eu acreditava que, para analisar o problema do fracasso sistemático de meninos na educação
pública brasileira, eu deveria, de um lado, concentrar esforços analíticos no cotidiano escolar, procurando
desvendar os mecanismos de vitimização dos meninos nesse contexto, e, de outro, verificar qual era a
relação que possivelmente existiria entre os significados e as normas estabelecidos na socialização
primária no que tange ao masculino e ao feminino, e a visão de professores(as) sobre o desempenho de
meninos e meninas na escola.
Considerando as proposições de Duque-Arrazola (1997) e Madeira (1997), eu supunha que a
escola atuava apenas como uma instituição reprodutora do cotidiano sexuado de meninos e meninas, ou
seja, dos modelos de masculinidade e feminilidade tradicionais.
O pressuposto de que na socialização familiar as meninas das classes populares seriam desde
cedo obrigadas a auxiliar e posteriormente a assumir os serviços domésticos, com rigorosa disciplina,
levou-me a concordar com premissas que afirmavam que a escolarização poderia ser para elas um
processo muito mais tranqüilo do que para os garotos.
Em resumo: de certo modo eu aceitava que devido ao fato de os garotos se encontrarem mais
livres de responsabilidades para com o serviço doméstico, reduzindo sua participação a ocasiões
eventuais ou a incumbências bastante delimitadas, de fato eles poderiam ser menos adaptáveis às normas
de comportamento e à rotina escolar, razão pela qual apresentavam maior incidência que as meninas de
baixo rendimento.
22
Rosemeire dos Santos Brito
Concordando com todas essas proposições, minha hipótese era de que isso decorria da maior
facilidade de educadores(as) trabalharem com meninas,14 por serem elas, desde cedo, preparadas para o
exercício da submissão às regras; ao mesmo tempo, a maior dificuldade em lidar com meninos
socializados para serem indivíduos de direitos levaria à sua estigmatização como arruaceiros,
bagunceiros, indisciplinados, dispersos, desleixados, em uma dinâmica que conduziria ao obscurecimento
de suas reais dificuldades de aprendizagem e conseqüente insucesso escolar.
Nesse sentido, naquele momento eu supunha que o fenômeno do fracasso sistemático de
meninos e/ou trajetórias escolares mais acidentadas só poderia ser compreendido com a articulação dos
significados atribuídos ao masculino e ao feminino na socialização primária aos possíveis reflexos no
rendimento escolar e nas opiniões de professores(as) acerca de garotas e garotos.
Em suma, a pergunta formulada era: a masculinidade e a feminilidade, tal como construídas no
universo doméstico, repercutiriam na aprendizagem de meninos e meninas?
Além disso, eu também presumia que a escola não estivesse, de fato, preparada para lidar com a
especificidade da masculinidade e, desse modo, seria reprodutora da vitimização, ajudando a construir
cada vez mais histórias de insucesso escolar entre os estudantes do sexo masculino.
Entretanto, por ser essa pesquisa uma investigação de cunho qualitativo, ao longo de minha
permanência em campo essa proposição foi sendo questionada, pois a observação de meninos e meninas
na escola me indicava que a questão era muito mais complexa do que eu pensava.
1.2) Reconstrução da hipótese: para além da vitimização
A hipótese inicial de que os meninos apresentavam mais incompatibilidades com o ofício de
aluno me possibilitava, grosso modo, aceitar a proposição de que a escola talvez não estivesse preparada
para lidar com a especificidade da masculinidade.
Assim, ao iniciar a investigação de campo, influenciada por Pollack (1999) e sua tese da
vitimização masculina, eu esperava confirmar que:
Os meninos apresentavam mais problemas de conduta que as meninas em sala de aula;
As fontes de poder na escola eram diferentes para meninos e meninas, tais como: proeza em esportes,
agressão física, insultos, gosto por matérias mais centralizadas na idéia da racionalidade por parte do
alunado masculino e preferência por matérias menos relacionadas com a objetividade racional por
parte das garotas;
14
Mesmo que nem sempre reconheçam sua capacidade cognitiva.
23
Rosemeire dos Santos Brito
Meninos eram mais punidos e menos recompensados que as garotas por tarefas bem-feitas e pela
participação em aula;
Meninos e meninas recebiam e interagiam com as punições e recompensas recebidas na escola de
forma diferenciada;
A professora interagia mais com as meninas, por serem supostamente melhores alunas que os
garotos;
As transgressões às normas escolares eram diferentes entre meninos e meninas.
Desse modo, ao mesmo tempo que iniciava a coleta de dados eu tentava também refinar minha
hipótese inicial. Considerando a exigüidade de referências teóricas na literatura brasileira que me
ajudassem a pensar melhor meu objeto de pesquisa, o diálogo com publicações anglo-saxônicas e
australianas ensejou o surgimento de outras possibilidades de compreensão e análise do fracasso escolar
de meninos.
O primeiro aspecto com o qual tive que me confrontar foi o da binaridade dos discursos
formulados sobre esse tema por vários autores(as),15 em países onde têm sido criadas políticas públicas
voltadas para a superação do problema.
Constatei que, de modo geral, o debate público tem sido conduzido de forma extremamente
simplista e alarmista, além de não se considerarem as vozes e as análises da corrente feminista (Epstein e
colaboradoras, 1998, p. 3).
Com isso, com a questão sendo investigada sem uma perspectiva histórica, firmando-se apenas
uma oposição simplificada entre a escolarização de meninos e a de meninas, todas elas ganham e todos
eles perdem.
Prisioneiros dessa polaridade, de acordo com Epstein e colaboradoras (1998), os discursos sobre
o fracasso de meninos, no contexto inglês, concentram-se em três grandes paradigmas: “os pobres
garotos”, “o fracasso da escola”, “garotos serão sempre garotos”, argumentos que, de certo modo, estão
mais ou menos vinculados à tese da vitimização dos meninos. Ou seja, todas essas explicações ajudam a
formular e a legitimar essa tese. Vejamos no que consiste cada um desses paradigmas e depois as críticas
feitas a eles.
O primeiro reside na tese da vitimização masculina, anteriormente apresentada. O segundo
indica a escola como a responsável pelo insucesso masculino, motivo pelo qual propõem-se diferentes
alternativas de superação do problema em diversos países,16 que em geral apontam como saída a
masculinização das escolas. O terceiro paradigma poderia ser visto como uma complementação do
primeiro, ao fundamentar em bases biológicas o fracasso de meninos, ou seja, a masculinidade envolveria
15
Ver: Epstein e colaboradoras (1998), Pat Mahony (1998), Michèle Cohen (1998), Lyn Raphael Reed
(1998), David Jackson (1998), Warrington e Younger (2000), Pam Gilbert e Rob Gilbert (1998).
16
Ver Epstein e colaboradoras, 1998, p. 8.
24
Rosemeire dos Santos Brito
fundamentalmente agressividade, gosto por lutas, imaturidade e ainda um baixo rendimento escolar como
algo extrínseco a garotos. Tudo isso em sociedades que valorizam o investimento feito em educação, ou
pelo menos boa parte desses países, e que, apesar de muitos alunos apresentarem desempenho escolar
considerado negativo, ainda enfatizam a superioridade de seu intelecto sobre o das meninas.
Diversas críticas foram formuladas com relação a cada uma dessas interpretações do fenômeno e
todas serviram para que eu fosse questionando minha suposição inicial. A investigação empírica também
ajudou nesse processo, apurando meu olhar sobre a realidade observada.
No que se refere à primeira hipótese, a tese da vitimização propriamente dita, defendida por
vários autores, tanto Pam Gilbert e Rob Gilbert (1998) quanto David Jackson (1998) afirmam que o
principal problema existente nesse discurso é o fato de ele ter sido formulado em termos de oposição e
culpa, ou seja, a tese da vitimização tem sido socialmente construída pelos autores a ela alinhados, sem
que, de fato, ela corresponda à realidade existente em muitos países.
Para os Gilbert (1998), autores australianos, as questões formuladas por essa corrente são: se os
garotos não estão indo muito bem nas escolas, então há alguém para culpar?
De acordo com eles, essas questões têm, em primeira instância, o limite de considerar meninos e
meninas como grupos singulares e opostos. Desse modo:
A diversidade e a diferença dentro e entre os grupos de garotos é raramente
reconhecida ou endereçada, apesar do fato de um expressivo grupo de pesquisas na
literatura indicar como as escolas servem a alguns grupos de garotos
significativamente pior do que servem outros (...). As pesquisas também sugerem que
enquanto alguns garotos podem estar em desvantagem na escola e alguns em
dificuldade, há ainda muitos garotos que não estão, para os quais os processos
competitivos de trabalho escolar estão indo bem. As recompensas para muitos desses
meninos se tornam óbvias nos anos pós-escolarização, em termos de acesso a
universidade, emprego e ganhos semanais (Gilbert e Gilbert, 1998, p. 5).17
Michael Kemmell, autor inglês, também questiona esse discurso dizendo:
Mas se há uma “guerra contra garotos” quem a declarou? Quais são os lados do
conflito? Quem é o culpado pelo fracasso dos meninos? O que parece ser um consenso
sobre a triste situação dos meninos, na verdade, mascara a agenda mais profunda –
uma crítica do feminismo. E eu acredito que no atual clima, os meninos precisam se
defender contra precisamente aqueles que reclamam a defesa deles, eles precisam se
salvar precisamente daqueles que os salvariam (Kimmell, 2000, p. 2).
17
Eles fazem essas críticas considerando a conjuntura australiana, inglesa e americana.
25
Rosemeire dos Santos Brito
Com tal crítica, ele defende que as reformas educacionais realizadas como conseqüência das
reivindicações dos movimentos feministas resultaram em melhorias na qualidade da educação ofertada
tanto para meninas quanto para meninos.
Portanto, não se justificariam reivindicações por mais atenção ao alunado masculino, o que
certamente poderia contribuir para um retrocesso na educação das meninas. Além disso, outras pesquisas
britânicas evidenciam que:
(...) garotas são mais freqüentemente marginalizadas em sala de aula, com os
professores respondendo mais facilmente aos meninos, que monopolizam o espaço
físico e lingüístico da atenção da professora (Warrington e Younger, 2000, p. 493).
Assim sendo, para os citados autores as questões que envolviam as garotas, e eram sonoras nos
anos 1970 e 1980, não foram totalmente resolvidas. Trenemam, explorando ainda mais a questão, diz: “O
insucesso estatístico de garotos nas escolas não é nada comparado ao estatístico sucesso dos homens na
vida” (Trenemam apud Warrington e Younger, 2000, p. 495).
Com fundamento nessas críticas, outras perguntas foram sendo formuladas: quais garotos estão
fracassando nas escolas? Em relação a que critérios? Em relação a quem eles estão fracassando? Em que
áreas? Quando? Em que condições? Por que razões estão falhando?
Com tais indagações, pude também perceber que para os autores acima citados o fenômeno é
muito mais complexo do que o discurso simplista, formador de visões de senso comum sobre a temática.
A complexidade advém de uma intrincada trama de relações entre poder socioeconômico, etnicidade, raça
e gênero (Epstein e colaboradoras, 1998; Mahony, 1998; Cohen, 1998; Reed, 1998; Jackson, 1998;
Warrington e Younger, 2000; Gilbert e Gilbert, 1998).
Por outro lado, a crise dos homens e das masculinidades não é algo inteiramente novo. As
masculinidades tradicionais existem em um contínuo estado de contradição e crise, nas quais cada nova
geração redescobre o problema dos homens jovens (Jackson, 1998, p. 79).
Para Jackson, a idéia de que os meninos são as atuais vítimas de uma educação feminina que os
exclui serve apenas para a manutenção dos privilégios masculinos nas sociedades, bem como para a
aniquilação de muitas conquistas feministas, mascarando as desigualdades de gênero (Jackson, 1998, p.
80).
A preocupação com o que está acontecendo com os meninos nas escolas não pode significar,
automaticamente, uma postura antimeninas. É preciso, sobretudo, problematizar a complexidade das
várias hierarquias presentes na dinâmica das relações sociais, nos critérios de avaliação e nas normas de
comportamento, para assim poder verificar como as diferentes configurações de masculino e feminino
resultam em malogro e/ou sucesso escolar.
Argumentos parecidos com os anteriores constam dos pareceres relacionados com o segundo
discurso, o qual postula que o fracasso não é dos garotos, e sim das escolas, por não estarem preparadas
26
Rosemeire dos Santos Brito
para atendê-los. Para Pat Mahony (1998), além de a preocupação com o malogro masculino na escola não
ser nenhuma novidade, o problema é que ele tem sido mais percebido agora, em diversos países, devido
ao aumento do atual estado de competição econômica entre homens e mulheres, fator que tem sido
desconsiderado em muitos discursos: “Dentro da reestruturação do capitalismo, a ‘gaiola patriarcal’ foi
perturbada pela crença de que os homens estão perdendo chão econômico para as mulheres” (Mahony,
1998, p. 42).
Portanto, para a autora os defensores de tal discurso estão na verdade preocupados com essa
suposta perda que ameaça a dominação masculina, e não com a melhoria das condições de ensino e
aprendizagem, razão pela qual não podemos ser indiferentes ao contexto político, social e econômico no
qual se tem produzido tal visão.
Do mesmo modo, segundo Reed (1998), esse discurso da ineficiência das escolas em atender os
meninos está contribuindo para o obscurecimento de políticas e práticas que possam reposicionar os
significados de raça e classe no contexto educacional. Também são preocupantes as implicações para a
eqüidade de gênero. Portanto, as diferentes masculinidades e feminilidades precisam ser não só
reconhecidas mas questionadas, sem cair nas armadilhas dessas visões polarizadas.
Por fim, o terceiro paradigma fornece uma explicação para esse problema fundamentada em uma
visão biologizante, com base na qual se torna possível inferir que o insucesso masculino decorre da má
conduta masculina, vista, por sua vez, como uma característica natural dos garotos. Portanto, também
nesse caso a falha caberia à escola, por supostamente não estar preparada para lidar cotidianamente com
esse fato.
A literatura aponta que o principal problema dessa explicação é não reconhecer que o insucesso
nunca foi tratado como um problema de garotos. A razão básica para tanto é que o fracasso de meninos
nas escolas tem sido historicamente atribuído a algo externo a eles – pedagogias, métodos, textos,
professores –, ao passo que o malogro feminino é imputado a algo interno a elas – usualmente a natureza
de seu intelecto – e seu sucesso a algo externo (Cohen, 1998, p. 20).
Para Cohen a questão que precisamos formular não é por que agora os meninos estão
fracassando, mas: por que só agora o insucesso de meninos nas escolas se tornou objeto de preocupação?
(Cohen, 1998, p. 30)
Embora não sejam inteiramente aplicáveis à realidade brasileira, todas essas reflexões ajudaramme a reformular a hipótese original desta pesquisa. Os primeiros questionamentos que surgiram foram:
existe de fato uma camisa-de-força sexual para meninos no contexto daquela escola? O malogro existe só
para meninos? Todas as meninas apresentam êxito escolar? Quais fatores estão presentes nas
configurações dos diferentes resultados escolares? Quais aspectos estão contemplados nos critérios de
avaliação da professora? A professora demonstra diferentes expectativas a respeito do rendimento de
meninos e de meninas? Quais são os elementos constitutivos dessas expectativas: classe, raça, gênero,
noções idealizadas de aluno(a)?
27
Rosemeire dos Santos Brito
O trabalho de Annette Abramowicz (1995) possibilitou-me encontrar reposta para uma dessas
indagações ao apontar que o fracasso escolar também é um fenômeno que se verifica no alunado
feminino. Ela ressalta que os efeitos de uma história de insucesso escolar são ainda mais perversos para as
meninas repetentes, na medida em que elas passam a ser consideradas o grau zero da instituição escolar.
Ou seja, o lugar do nada, pois, ao não apresentarem bom rendimento escolar, confirmam a idéia de que
não existe um espaço para as mulheres no saber, restando-lhe apenas o espaço do não-saber: o trabalho
doméstico.
Essa desvalorização de gênero pode ser evidenciada pelo tipo de avaliação que professoras e
professores faziam de meninos e de meninas. Em geral entendiam a reprovação dos meninos como coisa
de moleque, coisa da idade, rebeldia, ao passo que no caso das meninas tal resultado era expressão de
burrice, incompetência, não dá para a coisa, resta-lhe apenas o lar (Abramowicz, 1995).
Tais diálogos acadêmicos me levaram a abandonar algumas polaridades que eu havia
inicialmente estabelecido: socialização feminina para a passividade versus socialização masculina para a
atividade; meninos versus meninas; incapacidade da escola em lidar com as necessidades dos garotos
versus eficácia escolar; ganho das meninas versus perda dos meninos.
Em síntese, meu olhar deslocou-se da idéia de que a escola estava despreparada para lidar com a
masculinidade e dirigiu-se para a noção de diferentes nuances de masculinidades e feminilidades
construídas através da intersecção com outras categorias, no caso classe social, e assim alinhei-me aos
pesquisadores(as) que analisam esse problema considerando toda a complexidade que o envolve.
Marília Carvalho, por exemplo, contribuiu significativamente para esse processo. Em uma de
suas pesquisas em uma escola da rede pública estadual de São Paulo, Carvalho (2001b) buscou perceber o
que as professoras consideravam fundamental avaliar, e como o faziam. Também averiguou em que
medida as opiniões das professoras sobre masculinidade e feminilidade interferiam em suas avaliações e
julgamentos sobre o comportamento tanto de meninos quanto de meninas.18
As constatações de sua pesquisa permitem notar que a feminilidade baseada na submissão e na
obediência às normas era pouco valorizada pelas professoras:
Vivenciando intensamente uma feminilidade assentada na obediência às normas, na
organização e na submissão, essas meninas falhavam, do ponto de vista das
professoras, por não terem criatividade, voz própria, autonomia e, portanto,
participarem pouco, não serem questionadoras, não terem papel de liderança no grupo.
Nesse caso, uma forte adesão a um padrão de feminilidade diferente daquele evocado
pelas professoras em suas avaliações parece comprometer o sucesso escolar das
meninas (Carvalho, 2001b, p. 562).
Por outro lado, ela percebeu a existência de diferentes formas de apatia, intrinsecamente
articuladas a características da feminilidade e da masculinidade. Havia tanto uma decorrente de excesso
18
A investigação foi feita com crianças da quarta série.
28
Rosemeire dos Santos Brito
de submissão e obediência quanto outra proveniente de desleixo, descompromisso e desinteresse, o que
não era naturalmente atribuído a um sexo ou outro.
As diferentes gradações de masculino e feminino apresentadas por essa autora possibilitaram-me
visualizar um exemplo concreto da complexidade e das contradições existentes na formação dos perfis de
bons(boas) e maus(más) alunos(as).
Logo, passei a considerar mais importante, de um lado, verificar como a escola atua na produção
dessas gradações de masculino e feminino, e, de outro, averiguar quais são suas repercussões para o
rendimento escolar de meninos e meninas.
A coleta de dados foi feita visando mapear, naquele contexto, essa pluralidade, assim como a
presença desse conjunto de significados nas relações entre professora e alunos(as) e entre alunos(as).
Tal análise busca refletir acerca das diversas possibilidades de relação que podem ser
estabelecidas entre as várias formas de masculino e feminino existentes naquele contexto, razão pela qual
os conceitos abordados pelos teóricos da pluralidade são essenciais. Faço um convite para adentrarem
comigo no universo das múltiplas masculinidades e feminilidades. Afinal, o que elas são? Quais são
algumas de suas configurações?
1.3) Masculinidades e feminilidades plurais: implicações para o desempenho escolar
Se há um hiato na produção acadêmica sobre o tema do fracasso escolar, o qual raramente tem
incorporado o conceito de gênero em suas análises, a situação nos estudos educacionais que de alguma
maneira focalizaram esse aspecto não é muito diferente. Tal como explicitou Rosemberg (2002), de modo
geral os trabalhos concentram-se em investigações sobre a condição feminina, sendo pouco freqüentes os
que contemplam as relações de gênero na infância em suas intersecções com a educação, e, menos ainda
os que se proponham a analisar a existência de masculinidades e feminilidades múltiplas no espaço
escolar.
Portanto, trata-se de um campo ainda em construção, motivo pelo qual tive dificuldade em
encontrar na literatura respaldo teórico e conceitual para a investigação.
Alguns estudos, no entanto, foram de grande valia. Uma contribuição importante nesse campo
advém dos estudos desenvolvidos pelo pesquisador australiano Robert W. Connell, que dentro do
chamado feminismo pós-estruturalista, forneceu instrumentais teóricos de grande utilidade para o
aprofundamento do próprio conceito de gênero.
Embora, o tenha definido nos mesmos termos que Scott (1995) e Nicholson (2000), Connell
(1995;1997) sistematizou pressupostos implícitos nas colocações dessas duas autoras, ou seja, a noção de
diferentes configurações de práticas de gênero, de acordo com o pertencimento social, racial e étnico. Por
sua vez, no interior delas são construídos diversos projetos de gênero, com base em uma série de modelos
femininos e masculinos, isto é, de masculinidades e feminilidades.
Assim, para Connell (1997), essas configurações são plurais, circunstanciais, pois são elaboradas
de acordo com o contexto histórico de que fazem parte, sendo que no interior de uma mesma instituição é
possível a coexistência, nem sempre harmoniosa, de várias delas.
29
Rosemeire dos Santos Brito
Ao refletir sobre tais idéias, passou a me ocorrer a possibilidade da existência dessa
multiplicidade no interior daquela escola, da sala de aula que eu estava analisando, assim
como passei a desconfiar que o quadro talvez não fosse o mesmo em todas as aulas e momentos
vivenciados pelas crianças, ou seja, a performance de um certo modelo de masculinidade durante a prova
de Matemática poderia ser diferente da apresentada no recreio, em casa, entre amigos, e o mesmo também
valia para as meninas.
Apresentados os motivos pelos quais considerei importantes as contribuições desse autor a esta
pesquisa, convém sintetizar seu modelo teórico e explicar como fui me apropriando dele não só para
conduzir a investigação empírica mas, sobretudo, para ir formulando novas indagações à medida que ia
encontrando uma informação nova, em um constante movimento de ir e vir que me possibilitou
reconstruir a hipótese inicial.
De acordo com Connell (1995; 1997), os vários arranjos estruturais de significados masculinos e
femininos têm aparecido na sociedade ocidental sob quatro perspectivas diferentes: essencialistas,
positivistas, normativas e semióticas.
As essencialistas usualmente reconhecem determinado traço que define o núcleo do masculino e
a ele agregam diversas características dos homens, razão pela qual foi criticada, pois havia uma forte
propensão a delimitar essa parte primordial de forma arbitrária e com base em caracteres biológicos.
As perspectivas fundamentadas no positivismo empregam uma definição simples de
masculinidade com base em uma proposição lógica: é o que os homens realmente são, o que permitiu a
formação de escalas de masculinidade e feminilidade na psicologia, supostamente tidas como
absolutamente neutras. Essa perspectiva também foi criticada por desconsiderar totalmente a influência
das práticas sociais na formação dessas escalas; além disso, não tinha nenhuma condição de representar o
conhecimento neutro em si. Para Connell (1997), qualquer descrição de determinada forma de
masculinidade sempre implica a adoção de um ponto de vista, ou seja, reflete uma interpretação que
jamais é totalmente imparcial.
As normativas reconhecem as diferenças sexuais existentes entre homens e mulheres e oferecem
um modelo a cada sexo: a masculinidade consiste no que os homens deveriam ser de acordo com normas
sociais de conduta, que definem o que é apropriado para cada gênero. Portanto, o exercício da
masculinidade e da feminilidade significaria, nesse caso, a realização de uma performance
socialmente valorizada de masculino e/ou feminino. É no interior dessa corrente normativa que se
encontra a teoria dos papéis sexuais que trata a masculinidade como uma norma social para a conduta dos
homens (Connell, 1997, p. 33-34). Para Connell, ela também apresentava problemas, uma vez que poucos
são os homens que se adaptam integralmente ao estereótipo de masculinidade. Por outro lado, a corrente
normativa também não reconhece a influência da personalidade na formação desse padrão. Ao estabelecer
uma correspondência direta entre papel sexual e identidade, ela insere o homem como objeto social e não
como um sujeito capaz de construir a própria história e apresentar resistências aos regulamentos sociais.
30
Rosemeire dos Santos Brito
Por fim, as perspectivas semióticas definem a masculinidade mediante um sistema de diferença
simbólica, no qual se contrastam os lugares masculino e feminino, em uma dinâmica em que um se define
em oposição ao outro, ou seja, ambos são definidos a partir das trocas simbólicas, lingüísticas, que
expressam as diferenças existentes entre eles.
Segundo Connell (1997), embora esse último enfoque apresente uma densidade maior em
relação aos anteriores, ele ainda não consegue dar conta da complicada trama formadora das noções
contemporâneas de masculinidade e feminilidade.
Tal como os críticos19 das visões dualistas sobre o problema do fracasso escolar já haviam
ressaltado antes, ele também é partidário da idéia de que é preciso compreender o processo de construção
social das masculinidades e feminilidades em sua relação com outras categorias, ou seja, classe, raça e
etnia, pois só assim se pode sair do plano da pura abstração para o das práticas sociais concretas.
Desse modo, ele propõe um caminho para a análise da masculinidade:
No lugar de tentar definir a masculinidade como um objeto(...), necessitamos nos
centrar nos processos e relações por meio dos quais os homens e mulheres levam vidas
imbuídas no gênero. A masculinidade, se se pode definir brevemente, é ao mesmo
tempo a posição nas relações de gênero, as práticas pelas quais os homens e mulheres
se comprometem com essa posição de gênero, e os efeitos dessas práticas na
experiência corporal, na personalidade e na cultura (Connell, 1997, p. 35).
Nesse sentido, para investigar as diversas configurações de masculino e feminino em uma dada
instituição social, é preciso focalizar as relações estabelecidas em seu interior, que são sempre
contraditórias e conflitantes.
Portanto, é com base nas antinomias, ou nos contrastes existentes, que será possível
compreender como um mesmo indivíduo pode esboçar determinada maneira de afirmação da identidade
de gênero em um determinado contexto, conforme as relações que estabelece naquele grupo, e em outro
apresentar algo totalmente diferente.
Trabalhando com essa visão, Connell (1995) fez diversas pesquisas com meninos, rapazes e
homens australianos e, por meio dos resultados obtidos nelas, não só pôde notar a existência de
masculinidades múltiplas mas também constatar a existência de hierarquias entre elas, que são centrais
para o entendimento das relações de poder na sociedade.
Com o ordenamento dos diversos padrões, foi possível apontar os modelos de masculinidade que
ocupavam o topo da escala social, assim como os que estavam na base e no meio, além das várias
possibilidades de resistências, de rupturas e de construção de novos modelos, em uma perspectiva que
coloca homens e mulheres na condição de sujeitos das relações que estabelecem entre si.
19
Ver: Debbie Epstein e colaboradoras (1998), David Jackson (1998), Pat Mahony (1998), Michael
Kimmell (2000), Warrington & Younger (2000), Gilbert e Gilbert (1998).
31
Rosemeire dos Santos Brito
Os hegemônicos seriam aqueles mais direcionados à tarefa de legitimar a dominação masculina,
focalizando o domínio dos homens sobre as mulheres como a principal forma de construção e afirmação
da identidade de gênero:
A masculinidade hegemônica se pode definir como a configuração da prática genérica
que encarna a resposta correntemente aceita ao problema da legitimidade do
patriarcado, a garantia (ou se toma para garantir) à posição dominante dos homens e a
subordinação das mulheres. (...) A masculinidade hegemônica não é um tipo de caráter
fixo, o mesmo sempre e em todas as partes (Connell, 1997, p. 39).
É, ao invés disso, a masculinidade que ocupa a posição hegemônica em um dado
modelo de relações de gênero, uma posição sempre disputável (Connell, 1995, p.76).
Por tais razões, embora reconheçam a existência da pluralidade de modelos masculinos e
femininos convivendo no espaço escolar, os Gilberts (1998) também admitem a força dos modelos
hegemônicos nesse contexto. Os depoimentos que eles obtiveram com estudantes australianos
mostraram que para muitos garotos das classes trabalhadoras as experiências de gênero eram
extremamente complexas e mutantes. Eles tendiam a apresentar na escola uma performance de
masculinidade que era uma construção em relação a uma visão dominante de diferença de gênero.
Em contraposição à lógica da hegemonia, as masculinidades subordinadas seriam aquelas
submetidas ao poder daqueles que encarnam o projeto descrito acima. Por tal razão, elas tenderiam a
existir mais nas classes trabalhadoras ou em minorias raciais e étnicas, originando-se das relações que
esses grupos estabelecem com os segmentos dominantes da sociedade, que seriam os que efetivamente
teriam mais condições de exercer, de fato, a dominação masculina, por estarem inseridos nos mecanismos
de controle social: o Estado, os partidos políticos, as Forças Armadas e as grandes corporações
industriais, arenas ainda pouco acessíveis às mulheres.
Segundo Connell (1997), as relações estabelecidas entre as masculinidades subordinadas e o
modelo hegemônico são extremamente tensas e contraditórias. Na maioria das vezes, as masculinidades
subordinadas tentam se tornar cúmplices do padrão que sobressai, mas acabam marginalizadas por ele.
Isso explica por que o modelo hegemônico vê a marginalidade como uma relativa autorização da
masculinidade hegemônica do grupo dominante. Alguns membros de outros segmentos sociais tornam-se
modelos da hegemonia, sem que isso mude a situação social dos demais indivíduos que integram esses
corpos sociais.20
Há, portanto, um intenso movimento entre as várias maneiras de afirmação da identidade de
gênero, razão pela qual o processo de construção social da masculinidade precisa ser visto como “um
20
O autor oferece como exemplo dessa configuração os jogadores de basquetebol americanos, que são em
sua maioria negros e vistos como exemplo de sucesso, sem que, entretanto, isso altere as possibilidades de
ascensão social da comunidade negra americana. Enquanto fazia essas reflexões, não pude deixar de
pensar em minha própria condição de pós-graduanda em uma universidade pública de reconhecido
prestígio social e acadêmico, após uma intensa batalha travada com essa finalidade, que, no entanto, em
nada contribuiu para alterar as chances de inserção de meus familiares, especialmente as mulheres.
32
Rosemeire dos Santos Brito
processo ativo de construção, ocorrendo em um campo de relações de poder que são sempre tensas e
contraditórias, e sempre envolvendo negociação de formas alternativas de ser masculino” (Connell, 1998,
p. 142).
À luz dessas idéias, ele afirma que a escola é uma das principais instituições da sociedade; ela
atua na formação da masculinidade e também é um lugar no qual outras agências estão participando deste
processo, inclusive as próprias crianças (Connell, 1998, p. 152).
Gilbert e Gilbert (1998) dizem-nos que no espaço escolar a masculinidade hegemônica se revela
sob a forma de condutas perturbadoras, geralmente contrárias às normas escolares e fortemente
associadas a comportamentos agressivos: “Ser excessivo, correr riscos e levar as coisas ao limite são
características das imagens populares de masculinidade” (Gilbert e Gilbert, 1998, p.130).
Para esses autores, o grande problema é que há uma tendência a ver esse padrão como o único
representante da masculinidade. Com isso, excluem-se outras de suas formas de vivência, no próprio
espaço escolar, o que promove o obscurecimento das relações sociais que as constroem, ou seja, relações
que podem ser de cumplicidade, subordinação e marginalização entre o padrão dominante e os demais.
Esse é um aspecto de considerável importância para a questão do fracasso de meninos na
escolarização. Tais abordagens abriram a possibilidade de analisar o modo de agir de muitos deles com
um olhar mais profundo, que procura não naturalizar esses comportamentos, mas entender como eles são
construídos socialmente. Passei então a atentar para as práticas que atuavam nesse processo.
Percebi também a importância das alunas e alunos como atores sociais, os quais, no interior de
uma instituição responsável pela tarefa de educá-los, também constroem ativamente modelos de
masculino e feminino, nem sempre compatíveis com o que espera a instituição de ensino e os(as)
professores(as).
As pesquisas desses autores mostraram ainda que a escola atua na produção de masculinidades
por meio das relações sociais, que não deixam de ser de poder, vivenciadas no cotidiano por todos os
atores envolvidos na escolarização.
As maneiras pelas quais a instituição estrutura a divisão do trabalho entre homens e mulheres,
assim como os padrões de afetividade e simbolismo presentes nos uniformes e na organização de filas
separadas para meninos e meninas, constituem exemplos de práticas imbuídas nas diferentes
configurações de gênero.
Eu acrescentaria a essa lista mais um ponto flagrado em minhas observações de sala de aula: a
colocação de um menino perturbador entre duas garotas quietas, estratégia freqüentemente utilizada pela
professora para acalmar21 os garotos, o que a meu ver certamente pode contribuir para a legitimação do
comportamento masculino como necessariamente perturbador e do feminino como passivo e obediente.
21
Grifo meu para um verbo freqüentemente utilizado pela professora ao pedir silêncio aos meninos.
33
Rosemeire dos Santos Brito
Entretanto, também pude notar que isso não ocorria com todos os estudantes do sexo masculino.
Na verdade, apenas uns poucos ficavam conversando, brincando e se levantando das carteiras; aqueles
que não agiam dessa forma podiam escolher seus lugares com maior liberdade. Isso me remeteu à idéia de
modelos de masculinidade e feminilidade possivelmente mais valorizados pela escola, em termos
similares ao que diz Connell:
Há formas de masculinidade muito mais compatíveis com os programas educacionais
das escolas e as necessidades disciplinares. Isso é especialmente verdadeiro para as
masculinidades das classes médias organizadas em torno das carreiras, que enfatizam
a competição muito mais através do conhecimento do que da confrontação física
(Connell, 1998, p. 163).
Assim sendo, convenci-me da necessidade de olhar para os possíveis modelos de masculinidade
no interior daquela sala de aula, como a realização de um comportamento, instrumento a partir do qual os
meninos dão um sentido para sua atuação e inserção naquele contexto.
Aceitei também o fato de que as desigualdades materiais e de gênero atuam de maneira decisiva
nesse comportamento, uma vez que ele é produto das relações de poder vivenciadas no cotidiano das
crianças nas várias instituições que dele fazem parte.
Aos poucos, abracei a premissa de que essas relações são sempre mutantes e conflitantes,
portanto concordei com a proposição de que há uma variedade conflitiva e competitiva de modelos de
masculinidade disponíveis para os garotos nas várias agências socializadoras, assim como no interior de
cada uma delas.
Por fim, ao adotar tal referencial teórico como eixo deste trabalho, procurei analisar as
masculinidades em seu aspecto relacional com o processo de construção das feminilidades, o que não foi
feito pelos autores anteriormente citados. Logo, embora meu objeto de estudo tenha sido o fracasso de
meninos, achei também necessário analisar quais eram as possíveis performances de feminilidades
existentes naquela classe em sua intersecção com os resultados escolares, pois esse poderia ser um
elemento-chave para a investigação tanto do fracasso quanto do sucesso escolar.
Tentei então averiguar como as noções de masculinidades e feminilidades foram construídas pela
escola e reproduzidas ou não por meninos e meninas, procurando identificar as possíveis conseqüências
desse movimento repleto de contradições para o rendimento escolar.
Entretanto, convém esclarecer que me limitei à análise do impacto da classe social nas diferentes
configurações de masculinidade e feminilidade. A inclusão de outras categorias, como raça e etnia, com
certeza poderia não só enriquecer mas ampliar o foco analítico. Mas, assim como evitei as polarizações
rígidas, que ao longo da história tendem a definir as mulheres como eternas vítimas e os homens como
perpetradores, ou, ainda mais recentemente, os meninos como os atuais prejudicados no âmago de uma
escola feminina despreparada para lidar com suas necessidades, também procurei não simplificar a
complexa trama dos significados atribuídos ao pertencimento racial e étnico.
Por essas razões, procurei identificar as implicações da categoria classe social para as diferentes
formas de masculinidades e feminilidades, acreditando que a inclusão de outras é tarefa a ser feita em
34
Rosemeire dos Santos Brito
estudos posteriores, após um tempo maior de permanência na escola e com o uso de outras técnicas de
investigação.
Com isso, as questões que formulei para a análise dos dados empíricos foram: quais seriam as
possíveis gradações de masculinos e femininos existentes naquele universo? Como a escola poderia estar
agindo na formação dessas tendências? Essa atuação trazia alguma repercussão para o fracasso/sucesso
escolar? Quais eram os modelos de masculinidades/feminilidades valorizados pela professora? Isso trazia
conseqüências para os resultados escolares? Quais eram os padrões considerados impróprios para o bom
rendimento e as necessidades disciplinares?
Essas indagações constituíram o fio condutor do processo de investigação empírica, que foi
também um momento de construção da metodologia, ou seja: conforme eu revia e analisava o
ponto de partida teórico, também ia redefinindo a natureza da pesquisa, bem como as técnicas que melhor
atenderiam aos objetivos propostos.
CAPÍTULO II: CONSTRUÇÃO DOS PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
2.1) Seleção da escola
Minha idéia era realizar a pesquisa em uma escola pública da rede estadual de ensino na periferia
de São Paulo, preferencialmente nas zonas oeste ou leste da cidade, regiões que eu mais conhecia, e onde,
por isso, eu poderia ter meu acesso mais facilitado.
Entretanto, por se tratar de um tema que apresenta estreita relação com minha própria biografia,
percebi que era necessário adotar certo distanciamento da realidade a ser pesquisada, pois lembranças de
minha própria escolarização poderiam influenciar meu olhar sobre as situações que observaria e,
possivelmente, também a condução das entrevistas. Era preciso adquirir um distanciamento crítico que
permitisse tornar estranho o que já era conhecido.
Diante disso, foi descartada a possibilidade de realizar a investigação empírica em qualquer
instituição de ensino situada na zona leste da cidade. Optei por uma escola localizada na zona oeste, até a
qual eu teria facilidade de locomoção, pois na época eu residia naquela região da cidade.
Após estudar e analisar várias alternativas, as características peculiares de determinada
instituição foram decisivas para a escolha definitiva.
A Escola C22 tinha, em 2001, quarenta anos de existência e destacava-se na rede pública estadual
pela busca da excelência educacional. Era, portanto, uma instituição muito mais aberta e receptiva a
pesquisadores e estagiários, motivo pelo qual um grande contingente de estudos e projetos alternativos
eram lá desenvolvidos.
22
Todos os nomes relativos à pesquisa são fictícios.
35
Rosemeire dos Santos Brito
Outro aspecto decisivo para minha escolha foi a composição heterogênea das classes, 23 nas
quais encontravam-se crianças e adolescentes de origem cultural e condições socioeconômicas
distintas, fator que contribuía para que eu realizasse um trabalho de campo em uma instituição com uma
configuração diferente de todas que eu tivera a oportunidade de conhecer como estudante. Ao longo de
minha escolaridade anterior à universidade, eu sempre havia estudado em escolas públicas que atendiam
apenas a classes trabalhadoras e que estavam situadas nas regiões periféricas da cidade de São Paulo.
O perfil socioeconômico24 dos usuários(as), segundo dados do levantamento preliminar realizado
pela escola, indicava que 60% das famílias atendidas por ela tinham renda mensal dentro da faixa de R$
400,00 a R$ 700,00 e 40% das famílias, renda mensal acima ou abaixo desses valores.
A escola ainda se diferenciava de muitas outras com relação à infra-estrutura e recursos materiais
disponíveis. O estabelecimento de ensino ocupava três prédios, com um total de vinte e oito salas de aula,
dispunha de um anfiteatro com duzentos e quarenta lugares, um centro de memória e ampla área externa,
composta de jardins, horta, pátio coberto e quadra poliesportiva.
Com relação aos recursos materiais, a escola contava com treze aparelhos de televisão, quinze
videocassetes, um projetor de diapositivos, oito retroprojetores, uma câmera de vídeo, doze aparelhos
portáteis de toca-fitas, um jogo completo de mapas geográficos atualizados, três globos terrestres, alguns
kits de material montessoriano, oito kits de física para as séries iniciais, vidraria diversa para laboratório e
reagentes químicos para experimentos de química, biologia e ciências. Possuía ainda um laboratório de
informática com cinqüenta e uma máquinas e uma biblioteca com um acervo de vinte e cinco mil títulos,
assiduamente freqüentada por professores e alunos.
Os recursos humanos da escola compunham-se de quarenta professores(as), sendo que trinta e
sete deles cumpriam uma jornada de quarenta horas semanais e três uma jornada de trinta horas. Dispunha
de duas orientadoras educacionais, uma coordenadora pedagógica, o vice-diretor e o diretor.
Um fato a salientar é que todos esses profissionais gozavam de incentivos e flexibilidade na
jornada de trabalho, que visavam facilitar a participação em cursos, seminários, congressos e programas
de pós-graduação latu e strictu senso.
Diante de todos esses aspectos, pareceu-me ser essa a melhor opção de escola para a proposta
desta pesquisa, e então encaminhei meu projeto à instituição. Após a comunicação do aceite do trabalho,
marquei a primeira reunião com a coordenadora pedagógica, ocasião em que fui apresentada às duas
professoras responsáveis pelas classes de segundas séries, para agendarmos a primeira entrevista e o
cronograma da investigação.
23
A escola atendia estudantes do Ensino Fundamental e Médio, com duas salas para cada série,
organizadas em três ciclos, e progressão continuada: o primeiro ciclo ia da primeira à quarta série, o
segundo da quinta à oitava e o último compreendia os três anos do Ensino Médio.
24
Os dados socioeconômicos foram fornecidos pela escola. Não foi possível atualizar essas informações,
pois estavam sendo desenvolvidas outras pesquisas na escola naquele momento.
36
Rosemeire dos Santos Brito
Ao mesmo tempo em que dava esses primeiros passos no trabalho de campo, eu também fazia a
revisão bibliográfica e construía a arquitetura metodológica que iria servir de base à realização de cada
tarefa. Vejamos como ela foi sendo formada.
2.2) Estruturação da metodologia
No capítulo anterior, demonstrei como o objeto desta pesquisa foi se configurando aos poucos,
partindo de uma indagação inicial para a elaboração de uma série de outras questões conforme eu ia
reconstruindo a hipótese inicial, o que me possibilitou sair de uma visão determinista e singular de
significado masculino e feminino para uma perspectiva mais plural, densa e crítica.
De forma análoga ocorreram a definição da metodologia, a escolha dos procedimentos e técnicas
a ser empregados e, no final, a própria forma de análise das informações obtidas em campo. Por ter
determinado que esse estudo seria de natureza qualitativa, aceitei também, como premissa básica, que eu
deveria adotar um instrumental metodológico que permitisse revisões, ou seja, adaptações que pudessem
contribuir para o aperfeiçoamento da pesquisa de campo. Pude compreender, na prática, a definição de
pesquisa social que, nos dizeres de Inês A. C. Teixeira (2003), é “como uma arquitetura”:
O primeiro aspecto é o fato de ser a arquitetura da pesquisa uma construção teórica
daquilo que será investigado, do problema sociológico a ser pesquisado. E isso não se
faz pela simples apresentação de autores, de seus conceitos, análises e teorizações
(procedimentos indevidos, embora tão usuais em projetos de pesquisa, em
dissertações e teses). Não se trata, simplesmente, de avançar por citações, ou de listar
autores e suas contribuições teóricas no campo. Trata-se, sim, de um procedimento e
esforço intelectual no sentido de arquitetar, de montar o objeto de estudo, recortandoo, constituindo-o, construindo-o, deslindando suas dimensões, trazendo à luz e à
reflexão os aspectos e processos que lhe dão conteúdo, forma e movimento. Trata-se de
delimitar o problema por meio do raciocínio, do pensamento lógico, da reflexão
teórico-analítica sobre os vários planos e dimensões que constituem o objeto empírico,
apreendendo e explicitando, teórica e conceitualmente, os aspectos e faces que o
constituem (Teixeira, 2003, p. 83)
De fato, mergulhei no processo de elaboração de toda uma arquitetura metodológica que pudesse
servir de sustentação ao decurso da investigação empírica e também que me permitisse rever a hipótese
inicial conforme ia fazendo as observações, entrevistas e registros em um diário de campo. Uma tarefa na
qual a cada novo passo dado eu tentava combinar fatos, questões, teorizações, análises e raciocínios.
A primeira etapa consistiu em esforço intelectual para delinear o primeiro esboço da investigação
que eu pretendia empreender. Nesse momento do trabalho, analisei em profundidade a literatura sobre o
tema do fracasso escolar e, de modo especial, as poucas investigações desse problema sob a ótica das
relações de gênero. Dediquei-me, assim, à tarefa de arquitetar, de montar minha hipótese e/ou objeto de
estudo por meio das reflexões que fazia sobre esses trabalhos.
Estudo de caso inspirado na etnografia educacional
O próximo passo foi a delimitação da natureza da investigação, ou seja, definir se seria um
estudo de caso, uma etnografia escolar, uma observação participante, uma observação não participante,
37
Rosemeire dos Santos Brito
pesquisa-ação, enfim, dentre uma variedade de opções disponíveis era preciso escolher a metodologia que
melhor se aplicava aos objetivos deste estudo.
Assim, de forma paralela à constituição do ponto de partida teórico e conceitual, restou-me a
tarefa de desenhar os primeiros traços da estrutura metodológica, visando encontrar instrumentos que
pudessem me fornecer respostas tanto para uma eventual confirmação da primeira hipótese quanto para
sua refutação.
Eu partia do princípio de que necessitava adentrar no cotidiano de uma escola pública para
analisar, na especificidade de uma turma em sala de aula, quais fatores estariam atuando na produção do
fracasso e do sucesso escolar.
Após analisar cuidadosamente as várias alternativas e também as investigações já realizadas por
outras(os) pesquisadoras(es), convenci-me de que o formato metodológico mais propício a essa
investigação era o que se chama em Ciências Sociais de estudo de caso – um processo de pesquisa que se
concentraria no interior de uma singuralidade, ou seja, de um contexto muito peculiar e real da vida de
meninos e meninas (Sarmento, 2003).
Além disso, essa opção também facilitaria a condução da pesquisa de campo, uma vez que
poderiam ser combinadas diferentes abordagens e correntes teóricas, assim como técnicas. Esse, portanto,
era o instrumental metodológico que oferecia de forma mais satisfatória a flexibilidade necessária ao
desenvolvimento do trabalho.
São de grande amplitude as referências bibliográficas a respeito de investigações dessa natureza.
Elas demonstram a combinação de uma variedade imensa de procedimentos e métodos, e discorrer sobre
todos eles, embora de certo modo seja tentador, foge aos objetivos deste capítulo. Por tal motivo, sigo
adiante e classifico esta pesquisa como um estudo de caso de inspiração etnográfica, no qual foram
utilizados mecanismos de apreensão de informações de cunho qualitativo.
Convém ressaltar que não defino este estudo de caso como uma etnografia, porque as
observações feitas em sala de aula tiveram um caráter secundário na coleta de dados. Apesar de
significativas, elas foram realizadas apenas com o intuito de atender a uma necessidade muito específica:
a escolha de quatro crianças, as quais eu pretendia entrevistar; queria também visitar suas residências e
conversar com seus pais.
Portanto, se as observações em sala de aula não foram o foco central da investigação empírica,
elas tiveram uma grande importância, pois me forneceram base para cruzar os depoimentos da professora
com o cotidiano dos(as) alunos(as). Do mesmo modo, propiciaram-me momentos preciosos de forte
interação e convivência com as crianças, e por tal razão, alguns dias após ter iniciado esse contato, senti a
necessidade de sistematizar minhas anotações de uma maneira mais consistente.
38
Rosemeire dos Santos Brito
Quando percebi que uma organização mais cuidadosa dos registros era imprescindível, inspireime no método etnográfico desenvolvido pelos antropólogos funcionalistas e passei a fazer anotações de
toda e qualquer situação observada. Os registros eram depois revistos e, caso fosse preciso, eu
acrescentava detalhes que não tivessem sido anotados.
Assim, transcorridos dois meses de convivência com o dia-a-dia dessa classe, eu dispunha de um
material riquíssimo, que podia também ser analisado em conjunto com outros dados.
Definida a natureza da investigação, o passo seguinte foi escolher quais seriam as técnicas
qualitativas que melhor atenderiam aos objetivos propostos, ou seja, era preciso delimitar o que utilizar:
entrevistas estruturadas, semi-estruturadas, questionários, anotações em diário de campo, perguntas
abertas ou fechadas. Era imperativo escolher os meios de investigação apropriados ao tipo de pesquisa
que eu desejava fazer. Vejamos quais foram as opções selecionadas e em que medida elas contribuíram
para refinar a tessitura metodológica.
A busca das técnicas adequadas
No momento inicial da investigação, eu pretendia entrevistar exclusivamente duas professoras de
duas classes de segundas séries e oito famílias, quatro de cada sala, definidas conforme os seguintes
critérios: uma menina e um menino que apresentassem baixo rendimento escolar e um menino e uma
menina que apresentassem um quadro de fracasso escolar, em cada sala de aula.
A opção por trabalhar com classes de segundas séries vinculava-se a um aspecto já demonstrado
na literatura sobre o tema do fracasso escolar, o qual situa esse fenômeno como resultado, ou produto
final, de uma longa história de malogros sucessivos. A maioria das pesquisas sobre o tema tem se
dedicado a analisar esse fenômeno quando uma história de baixo rendimento já está de certo modo
consolidada; raros foram os estudos que investigaram esse fenômeno nas fases iniciais da escolarização.
Por tal razão, decidi realizar a coleta de dados com uma classe de segunda série composta de
crianças recém-inseridas na escolaridade, as quais poderiam fornecer-me pistas importantes para
desvendar as possíveis origens de percursos com tendência ao insucesso e/ou ao sucesso.
Para satisfazer esse objetivo, a técnica que me pareceu mais eficaz foi a de entrevistas semiestruturadas, que, por se fundamentarem em um roteiro prévio de perguntas, poderiam auxiliar-me na
condução das indagações, propiciando uma flexibilidade maior que as perguntas fechadas dos
questionários. Por conseqüência, seria possível também explorar outras questões que porventura
surgissem no desenrolar das conversações.
Conforme Ludke e André (1986), as entrevistas mais livres e menos estruturadas são as mais
indicadas para a análise qualitativa, pois permitem a obtenção de pontos de vista, opiniões, comentários
que certamente não surgiriam com a aplicação de questionários fechados.
Além disso, o uso dessa técnica estava em plena consonância com a necessidade de revisão e
reconstrução da hipótese durante o desenvolvimento das várias etapas de pesquisa, possibilitando o que
39
Rosemeire dos Santos Brito
Nadir Zago (2003) define como contribuição dessa técnica à constante construção da problemática de
estudo.
Com base em tal conjectura, elaborei o roteiro da primeira entrevista a ser realizada com as
professoras das duas classes de segundas séries, instrumento com o qual eu pretendia fazer um
levantamento inicial do rendimento de meninas e meninos, verificar quais eram as expectativas das
professoras quanto aos resultados escolares de seus(suas) alunos(as) e também identificar que critérios
elas utilizavam para avaliar os estudantes.
O roteiro de perguntas elaborado para essa finalidade estava fundamentado na bibliografia
estudada durante a elaboração do projeto de pesquisa, cujas obras constituíram os fundamentos de minha
hipótese inicial.
Após esse primeiro levantamento, decidi dar continuidade à pesquisa apenas com a classe da
professora Fernanda,25 que se mostrou mais aberta e receptiva à idéia de ter uma pesquisadora observando
suas aulas. Sua disponibilidade, associada à minha necessidade de estreitar os laços de convivência com
as crianças, levou-me a decidir utilizar outro recurso de investigação: observações em sala de aula com
inspiração nos etnógrafos, o que me fez adotar um diário de campo, no qual eu registrava o máximo de
informações que podia.
A professora Fernanda e eu combinamos que eu estaria presente nas aulas duas vezes por
semana, em dias alternados, para acompanhar as crianças em diferentes situações e verificar como elas
procediam, se relacionavam e se comportavam nos diferentes espaços da escola.
Os registros eram revisados no final do dia, e a eles eu procurava acrescentar informações que
porventura não tivessem sido anotadas. Ao final de dois meses de observação, eu tinha em mãos vários
momentos de conflito na relação professora-alunos(as) que me possibilitavam fazer uma série de
questionamentos, assim como estreitar meus laços de convivência com os(as) alunos(as).
Para aperfeiçoar a coleta de informações, também decidi reduzir à metade o número de
entrevistas a ser feitas com alunos(as) e famílias. A experiência com as entrevistas realizadas com a
professora levou-me a considerar como razoável a possibilidade de ser necessário fazer mais de uma
entrevista com os sujeitos envolvidos, para obter dados complementares que não tivessem sido
plenamente trabalhados em uma primeira conversação. Assim decidi que seria mais adequado entrevistar
as famílias de quatro estudantes: um menino e uma menina com resultados de insucesso e um garoto e
uma garota que apresentassem bom rendimento escolar.
Nesse momento, tomei também outra decisão valiosa: minha primeira idéia era selecionar
somente alunos(as) que pertencessem a segmentos sociais mais baixos, mas como a professora não
25
Fernanda tinha 33 anos em 2002, era solteira e formada em Pedagogia. Fez seu curso de graduação em
uma universidade pública, com habilitação em Administração Escolar, que foi concluído em 1996.
Atuava na docência há onze anos.
40
Rosemeire dos Santos Brito
estabeleceu uma relação direta entre resultados escolares e pertencimento social, optei por escolher as
crianças com base em meus registros pessoais e nas informações fornecidas pela professora sobre
seus(suas) alunos(as), deixando a classe social como um elemento a ser verificado na análise final de
todos os depoimentos.
Saliento que contribuiu muito para essa decisão a maneira como Fernanda classificou seus(suas)
alunos(as) em uma segunda entrevista. Ela os dividiu em: bons, intermediários e mais difíceis, adotando
como critério central para essa classificação a questão do bom comportamento em sala de aula.
No final do segundo semestre de 2002, após ter convivido de maneira mais próxima com as
crianças daquela classe, senti também a necessidade de estender, ao menos em parte, a quantidade de
entrevistas a ser feitas com elas.
Colaboraram muito para essa decisão os diálogos durante as orientações e as reflexões de Zeila
B. F. Demartini (2002) e Rosemberg (2001), autoras que têm procurado denunciar a ausência de
depoimentos infantis em pesquisas nas quais as crianças são concebidas como sujeitos da investigação.
Em geral, são contempladas apenas as falas dos adultos envolvidos no processo de escolarização, ficando
as crianças reduzidas à condição de objetos.
Eu concordava com Demartini (2002) e Rosemberg (2001) quanto ao fato de a pesquisa
acadêmica na área da educação ainda não haver considerado a importância da especificidade da infância
em seus pressupostos teóricos/metodológicos e em suas considerações finais:
Estamos muito distantes do movimento observado na Sociologia da Educação anglosaxônica ou francófona dos anos 90, especialmente a partir da difusão de correntes
pós-estruturalistas que conceberam a criança como ator social. Assim raros são os
estudos que procuraram ir ao lugar da infância na construção das relações de gênero
no sistema educacional (Rosemberg, 2001, p. 8-9).
Para Jucirema Quinteiro (2002), a ausência de pesquisas que compreendam a criança como
sujeito social constitui uma das principais lacunas na área da pesquisa educacional. Conseqüentemente,
salvo algumas exceções, pouco sabemos sobre as culturas infantis e acabamos contribuindo para reduzir
seus testemunhos a fontes de informação pouco confiáveis.
Por tais motivos, certifiquei-me de que era imprescindível dar voz às interpretações de meninos e
meninas a respeito das diversas situações que vivenciavam na escola e também com relação às
opiniões da professora sobre seu rendimento e comportamento, no intuito de identificar as possíveis
conformidades e rupturas existentes entre o discurso da educadora e os depoimentos infantis.
Para isso, estudei longamente uma série de métodos e técnicas a ser empregados e, com o
objetivo de minimizar ao máximo as hierarquias existentes entre a pesquisadora e esses sujeitos da
investigação, acabei optando por uma forma muito específica de coleta de dados desenvolvida por
pesquisadoras espanholas, a qual apresento no próximo tópico.
41
Rosemeire dos Santos Brito
Metodologia empregada com as crianças
Ao perceber a importância dos relatos infantis para este estudo, analisei várias alternativas de
condução de entrevistas com crianças. A literatura educacional disponível sobre o tema ajudou-me a
perceber que, da mesma maneira como acontece no universo adulto, eu precisaria enfrentar uma série de
desafios, se quisesse executar com êxito essa tarefa.
Uma das primeiras dificuldades na condução de entrevistas com crianças foi percebida por Goetz
e Lecompte (1988) apud Sarmento (2003), os quais constataram que, em situações de pesquisa, as
crianças podem considerar as perguntas muito difíceis, ou raramente responderem a questões
proposicionais. Podem, ainda, avaliar a entrevista como mais um trabalho escolar e estruturarem as
respostas de forma exclusivamente narrativa – contando histórias e relatando episódios –, baseando-se
muitas vezes em estereótipos (Sarmento, 2003, p. 163).
Esse autor chegava a considerar inviável o emprego da técnica de entrevistas formalizadas com
crianças:
Parece-nos que, junto das crianças, as entrevistas mais formalizadas não têm sentido,
devendo, em seu lugar, ser realizado com mais atenção todo o processo de recolha de
informações que decorre da observação e da análise de documentos “reais”, isto é, de
textos produzidos com uma finalidade pragmática, bem como as “conversas amáveis”,
pelas quais perpassa uma voz autônoma e livre, tão difícil de captar na forma
estruturada da entrevista formal (Sarmento, 2003, p. 163).
Eu não compartilhava de semelhante opinião. Acreditava que possivelmente existisse uma
dificuldade maior de acesso às reais opiniões das crianças, por ser eu uma adulta e pesquisadora, ou seja,
por existir uma série muito distinta de hierarquias entre mim e elas, que poderiam tornar mais complicado
o acesso a suas verdadeiras opiniões sobre a experiência da escolarização.
Tal como se dá com o universo adulto, o processo de pesquisa não deixa de ser influenciado
pelas relações de poder existentes entre pesquisador e objeto de investigação. No caso específico das
crianças, isso parecia ainda mais patente.
Soma-se a essa influência a ambigüidade de papéis que o(a) pesquisador(a) assume diante dos
alunos. Segundo Carvalho (2003), esse é um dos empecilhos à comunicação entre ambos:
No dia-a-dia da escola, os horários e espaços são muito estruturados, organizados,
previstos e ocupados. Sem desconhecer a reconstrução e a subversão que a criatividade
dos alunos e educadores produz cotidianamente nessa rotina, não seria exagero dizer
que os comportamentos adequados tanto para adultos quanto para crianças e jovens já
estão previstos e organizados ao longo dos tempos e lugares e que os papéis a serem
desempenhados podem ser facilmente antecipados pelo pesquisador que, muito
provavelmente, já está inserido nessa cultura. Ora, nesse cotidiano estruturado, não há
lugar previsto para o sociólogo, para um adulto – freqüentemente uma adulta – que
não é professora, funcionária, nem mãe de alunos. Uma adulta que não se
responsabiliza pela manutenção da disciplina, não pune – estranham os estudantes. Ao
mesmo tempo, uma “colega” que nem sempre se dispõe a substituir a professora
ausente, ou a ajudar a imprimir o material da prova – incomodam-se os professores
(Carvalho, 2003, p. 209).
42
Rosemeire dos Santos Brito
Além dessa incerteza com relação ao papel do pesquisador na sala de aula, as hierarquias de
idade entre pesquisador(a) e crianças também dificultam a realização de atividades com elas:
Outra gama complexa de questões se coloca quando refletimos sobre a relação do
sociólogo com os alunos e alunas, situação em que as hierarquias relativas à idade
intervêm intensamente. A (re) emergência de uma sociologia da infância, com a busca
crescente de tomar as crianças como sujeitos ativos de experiências e objetos legítimos
da investigação sociológica, traz também à tona a problemática das metodologias e
instrumentos de pesquisa mais adequados para “alcançar as experiências das crianças
e dar conta delas” (Carvalho, 2003, p. 214).
De acordo com Barrie Thorne (1997), as hierarquias de idade se expressam principalmente pela
relação privilegiada do pesquisador(a) com os professores e o corpo de funcionários da escola, o que
facilita sua associação com a autoridade adulta de professores e funcionários. Por tais razões, ao
longo de duas investigações de cunho etnográfico, essa autora tentou diminuir essa distância social entre
ela e as crianças evitando posições que expressassem sua autoridade, raramente intervindo de forma
diretiva e também se mantendo mais próxima delas do que de professores e funcionários das escolas.
Durante o período em que eu fazia minhas observações senti que as crianças estavam inseguras
quanto à minha presença nas aulas. Isso pôde ser percebido nos vários momentos em que fui questionada
sobre o que estava fazendo ali e quando indagavam quem era eu, afinal. Alguns me viam como uma
assistente da professora, outros como uma estagiária e outros, ainda, como uma possível delatora de seus
erros e travessuras.
Para desfazer essas impressões, procurei sentar-me sempre em um lugar diferente, entre as
crianças, longe da mesa da professora. Quando percebia a ocorrência de uma situação conflituosa, evitava
demonstrar concordar com a professora, assim como procurava ao máximo não auxiliá-la durante as
atividades.
Apenas em duas ocasiões atendi a um pedido de auxílio da professora. Em uma delas, me pediu
que eu entregasse, e depois recolhesse, as provas das crianças, e recordo com exatidão que ao me
aproximar da carteira de um garoto que tinha baixo rendimento escolar, ouvi-o nitidamente dizer: “Não
me mate, por favor”.
Diante dessas evidências, eu tinha clareza de que era fundamental conquistar a confiança das
crianças e garantir que elas pudessem falar tranqüilamente, sem se preocupar com as conseqüências de
suas palavras, sabendo que eu não era uma espiã a serviço da direção da escola. Nesse sentido:
Ganhar a confiança das crianças e convencê-las de que nenhum nome será revelado e
que não somos espiões a serviço do diretor, professores e funcionários, é um desafio
ainda maior que ganhar a confiança dos professores e no qual nem sempre se obtém o
resultado desejado (Carvalho, 2003, p. 215).
Com tais preocupações, eu almejava desenvolver uma atividade com o grupo de alunos(as) que
pudesse captar seu discurso com base nas experiências que vivenciavam no cotidiano escolar. No entanto,
tinha clareza que entrevistar crianças, na maioria das vezes, é uma tarefa árdua, posto que muitas delas se
43
Rosemeire dos Santos Brito
sentem intimidadas diante do(a) pesquisador(a) e simplesmente se calam. Alcançar o significado desse
silêncio é outro desafio para aqueles que se propõem a trabalhar com crianças no campo educacional.
Eu tinha conhecimento de que na área da Psicologia a pesquisa acadêmica dispõe de técnicas que
possibilitam a apreensão do relato infantil, de modo especial valendo-se de intervenções que conjugam
desenhos com a fala da criança. Márcia Gobbi (2002) relata o instrumento utilizado em sua investigação
de mestrado, no qual ela propunha à criança a confecção de determinado desenho e analisava a fala da
criança no momento em que ele estava sendo produzido.
Essa alternativa, todavia, também não se mostrava viável para este trabalho, uma vez que, além
de não dominar o referencial teórico e metodológico da Psicologia, a presente investigação estava muito
mais inserida no campo da Sociologia da Educação, o que não me daria condições de explorar toda a
riqueza de informações presente nos desenhos infantis.
O contato com a metodologia desenvolvida por Montserrat Moreno e Genoveva Sastre (2002),
em obra lançada naquela ocasião no Brasil, significou uma alternativa para esse aparente beco sem saída
em que me encontrava.
Após analisar e discutir com outras pessoas,26 achei que a utilização das técnicas empregadas por
essas autoras poderia, de fato, facilitar meu acesso ao discurso das crianças e assim resgatar sua condição
de sujeitos na investigação.27
A técnica empregada pelas autoras consistia em apresentar por escrito, ou por meio de imagens
(vídeos), situações de conflito, com a finalidade de trabalhar os sentimentos e as emoções no Ensino
Fundamental e Médio. A resolução das situações solicitava a integração dos aspectos afetivos e
cognitivos do raciocínio humano. Desse modo, as autoras visavam aprimorar a qualidade das relações
interpessoais tanto no universo microscópico da família e da escola quanto no macroscópico, das
relações entre países.
Meu intuito era bem mais modesto. Estava interessada em criar algo que pudesse desobstruir
minha dificuldade de acesso ao universo da criança, assim como eventuais empecilhos que os alunos
pudessem ter para expressar como vivenciavam as diversas situações de seu dia-a-dia escolar. Eu
desejava, sobretudo, que eles me falassem o que pensavam da escola, de seu desempenho e
comportamento, e também, se possível, o que sentiam a respeito das relações que estabeleciam com a
professora, os funcionários, os colegas e até mesmo com a pesquisadora.
26
Agradeço às professoras Marília Pinto de Carvalho, Denise Trento e Valéria Amorim Arantes as
sugestões feitas.
27
O único obstáculo à realização desta atividade se restringia ao acesso a seus relatos. Em nenhum
momento eu as tratei como adultos, o que também não significou que as tratei como seres vulneráveis ou
incompetentes. Eu reconhecia as diversas hierarquias existentes entre mim e elas, enquanto adulta e
pesquisadora, e almejava minimizar seus efeitos na conversação, resgatando a condição de sujeitos dessas
crianças na pesquisa que desenvolvia. Sobre esse assunto, ver Pia Christensen e Alan Prout (2002).
44
Rosemeire dos Santos Brito
Analisando o material obtido, verifiquei que muitas das situações observadas em sala de aula e
relatadas em meu diário de campo poderiam servir de instrumento facilitador de um diálogo com as
crianças sobre sua experiência como alunos.
Inspirada na metodologia de resolução de conflitos, selecionei algumas dessas situações,
tomando o cuidado de alterar o nome dos atores envolvidos. A entrevista propriamente dita consistiu na
leitura das situações28 e no fomento da discussão a partir das seguintes indagações:
O que você acha da atitude de tal pessoa?
O que você acha da atitude da professora?
O que você faria se estivesse nessa situação?
Você já viu alguma situação parecida com essa em sua classe?
Definida a metodologia e a técnica a ser empregada, o próximo passo foi conversar com a
professora Fernanda e agendar a atividade. Com a preocupação de não incomodar o fluxo das aulas,
sobretudo o processo de aprendizagem das crianças, optei por deixar que a professora definisse qual seria
a melhor data e as condições de realização das entrevistas.
Ela sugeriu que deveríamos entrevistar meninos e meninas separadamente, em dias
diferenciados. De comum acordo, optamos por dividir as crianças em grupos de seis. A composição dos
grupos foi feita pela professora, que buscou isolar nos diversos agrupamentos os alunos que ela
considerava mais indisciplinados.
Em dois dias, concluí as entrevistas com todas as crianças que quiseram participar29 e em uma
segunda etapa dediquei-me a entrevistar as duas duplas: uma composta de um menino com baixo
rendimento e comportamento considerado inadequado e uma menina que apresentava rendimento
mediano, embora se comportasse de modo semelhante aos garotos; outra formada por um menino e uma
menina com bons resultados e boa postura.
Essas quatro crianças foram selecionadas conforme as classificações de sucesso/fracasso feitas
pela professora e também considerando meus registros pessoais.
É importante salientar que em nenhum momento Fernanda inseriu alguma menina no conjunto
de alunos mais difíceis. Esse subconjunto foi composto apenas de garotos que apresentavam resultados
insatisfatórios fortemente associados a problemas de comportamento. Por tal motivo, acabei escolhendo
aquela menina, que era uma das poucas que apresentavam uma conduta semelhante a esses alunos.
28
Foram utilizadas quatro situações de conflito, inspirada em minhas observações de campo. Três delas
foram usadas nas entrevistas com todas as crianças da classe que quiseram participar da atividade e uma
foi empregada na entrevista com duas duplas de alunos(as). Todas se encontram anexadas no final deste
trabalho.
29
Apenas uma menina não participou, porque estava ausente no dia em que realizei a atividade.
45
Rosemeire dos Santos Brito
Para evitar situações embaraçosas, tomei o cuidado adicional de separar as duas duplas, assim
não haveria comparação explícita que constrangesse e inibisse os(as) alunos(as). Conforme decidido pela
professora, primeiro entrevistei Carlos e Suzana, depois , Eduardo e Sandra.
Também nesse caso foi formulado um roteiro prévio de questões, sem que, no entanto, eu me
restringisse a ele.
2.3) As entrevistas com famílias
Após ter concluído as entrevistas com as crianças, o próximo passo foi entrevistar as famílias dos
quatro alunos(as) selecionados(as). Eu queria, de um lado, verificar como pais e mães recebiam os
resultados escolares de seus filhos e, de outro, averiguar como se dava a construção social da
masculinidade e da feminilidade no espaço doméstico, e quais as suas possíveis implicações para o
rendimento escolar das crianças.
Com essa intenção, elaborei um roteiro prévio de perguntas e, munida dessas questões iniciais,
comecei a fazer as entrevistas com as famílias das quatro crianças selecionadas para a pesquisa. Minha
pretensão era entrevistar os pais e as mães das crianças.
Contudo, com exceção do pai de Eduardo, os demais alegaram falta de tempo, excesso de
trabalho e/ou timidez, recusando-se a participar do processo de investigação.
No total, foram
entrevistadas quatro mães e um pai e em apenas um caso essa conversação não foi realizada na residência
da família, pois a mãe de uma das crianças preferiu receber-me em seu local de trabalho, durante o
horário de almoço.
Com esse trabalho, obtive informações preciosas sobre a participação da família no processo de
escolarização, que era distinta conforme o pertencimento social. Do mesmo modo, foi possível notar
diferentes gradações de masculinidades e feminilidades construídas nesses lares, novamente de acordo
com a classe social.
No entanto, antes de entrar nessa parte da análise, apresento no próximo capítulo as possíveis
nuances de masculinidades e feminilidades encontradas nos depoimentos da professora e que repercutem
de forma diferenciada no rendimento escolar de meninas e meninos, ora contribuindo para o sucesso, ora
para o insucesso.
46
Rosemeire dos Santos Brito
CAPÍTULO III: O OLHAR DA PROFESSORA: MASCULINIDADES, FEMINILIDADES E
RENDIMENTO ESCOLAR
3.1) A classe e seu diagnóstico: o baixo rendimento entre meninos
Tal como relatei nos dois capítulos anteriores, foi adotado como ponto de partida que o baixo
rendimento escolar tem se concentrado no corpo discente masculino.
Enquanto fazia as observações em sala de aula, tive acesso aos conceitos transmitidos aos alunos
nos dois primeiros trimestres e, no início de 2003 a direção da escola me disponibilizou os dados
referentes aos terceiro trimestre e o conceito final. .
Naquele momento eu já estava analisando as entrevistas feitas com a professora, com as crianças
e suas famílias, e, embora o foco desta pesquisa não fosse os indicadores estatísticos, era importante
verificar o que se poderia afirmar com base nos resultados escolares formais se eles, afinal, confirmariam
ou não a tendência nacional de fracasso de meninos.
A tabulação dessas informações por sexo não trouxe nenhuma surpresa; o rendimento na sala da
professora Fernanda seguia a tendência nacional de concentração de maiores índices de insucesso no
alunado masculino.30 Em contrapartida, as meninas apresentaram melhor rendimento em todas as
disciplinas, tal como se observa na tabela abaixo:
TABELA 1 - DESEMPENHO GERAL DA CLASSE EM 2002
MATÉRIAS
DESEMPENHO DAS MENINAS
DESEMPENHO DOS MENINOS
NS
S
PS
NS
S
OS
MATEMÁTICA
12%
59%
29%
21%
65%
14%
PORTUGUÊS
06%
70%
24%
21%
65%
14%
CIÊNCIAS
12%
82%
06%
29%
64%
07%
GEOGRAFIA
0%
47%
53%
0%
64%
36%
HISTÓRIA
0%
53%
47%
0%
64%
36%
É importante destacar que, nessa escola, estudantes que obtinham conceitos considerados não
satisfatórios eram indicados pela professora para participar de aulas extras em um horário anterior ao do
período das aulas.
47
Rosemeire dos Santos Brito
No caso desses alunos de segunda série, as aulas de reforço eram dadas pela própria professora
da turma, no período matutino. Cabia a ela organizar as atividades, selecionar aqueles que deveriam
participar e também decidir quando não seria mais necessária a freqüência do aluno nessas aulas.
Após algumas conversas com a professora, e logo depois de eu mesma iniciar minhas
observações em sala de aula, eu já sabia que os meninos eram maioria no reforço. A professora também
havia salientado, numa entrevista, que os meninos estavam sempre em maior número nessas aulas. No
decorrer daquele ano letivo, foram seis meninos e somente duas garotas a freqüentar as aulas de reforço.
A proporção de meninos participantes dessas atividades se manteve praticamente a mesma
durante todo o ano; restava saber se eram os mesmos ou se havia rotatividade.
Já as garotas, além de participarem em menor número das aulas de reforço ao longo do ano,
permaneciam pouco tempo nelas, o que permite supor que as meninas conseguiam se recuperar de forma
mais efetiva que os garotos.
A professora explicou que, em geral, a indicação das meninas para as aulas de reforço voltava-se
muito mais à necessidade de elas reverem determinado ponto da matéria. Superadas as dificuldades com
aquele tópico, elas eram liberadas e voltavam a comparecer à escola somente no horário regular de aulas.
Podemos visualizar melhor como isso ocorreu nos gráficos31 abaixo. No caso da disciplina
Matemática, é visível o fato de que se manteve inalterada a quantidade de meninos com resultados
insatisfatórios ao longo do ano, o que já não ocorreu com as garotas.
12
Desempenho dos meninos em Matemática
Desempenho das meninas em Matem ática
10
10
Quantidades
20
15
15
10
10
5
5
2
0
1 o.
11
8
2
0
2 o.
5
1
1
3 o.
4 o.
S
8
8
6
5
4
4
3
2
2
2
PS
0
1 o.
2 o.
3 o.
Bimestres
NS
30
4
3
1
Bime stre s
NS
Quantidades
9
S
4 o.
PS
Ver: Oliveira (1999), Carvalho (2000), Rosemberg (2000).
31
Os gráficos mostram exatamente a quantidade de alunas(os) que obtiveram os conceitos NS, S e PS ao
longo dos trimestres.
48
Rosemeire dos Santos Brito
Em Português, da mesma maneira, verifica-se a manutenção de resultados de insucesso entre
alguns garotos, o que não ocorreu no universo feminino – a dificuldade de uma garota32 foi sanada já no
primeiro trimestre.
Desempenho dos meninos em Português
Desempenho das meninas em Português
12
13
12
10
5
0
4
11
11
6
6
4
1
0
0
2 o.
3 o.
Bimestres
1 o.
NS
S
Quantidades
Quantidades
15
10
8
6
4
4 o.
8
3
2
2
0
0
10
9
6
4
3
4
2
1
1 o.
2 o.
3 o.
Bime stre s
NS
S
PS
4 o.
PS
Em Ciências, embora ambos os sexos tenham conseguido superar os resultados insatisfatórios do
primeiro trimestre, também se observa a maior concentração de conceitos satisfatórios e plenamente
satisfatórios entre as garotas.
Desempenho das meninas em Ciências
16
Desempenho dos meninos em Ciências
14
14
10
10
9
8
8
9
8
7
6
Quantidades
Quantidades
12
12
10
8
6
4
2
0
11
9
4
5
5
3
2 o.
3 o.
4 o.
Bimestres
2
2
9
1
1 o.
4
9
NS
1
0
0
1 o.
0
2 o.
S
PS
0
3 o.
4 o.
Bimestres
NS
S
PS
32
O que não significa que ela tenha sido indicada pela professora para participar das atividades de
reforço. Mais adiante retomo este ponto.
49
Rosemeire Do
dos Santos
Brito
mesmo
modo,
em Geografia e História, disciplinas nas quais não foram registrados índices
de baixo rendimento, é expressiva a diferença entre a quantidade de meninas com conceitos satisfatórios e
plenamente satisfatórios em comparação com os garotos.
Desempenho das meninas em História
14
12
10
8
6
4
2
0
16
9
9
5
5
0
1 o.
2
0
0
2 o.
3 o.
Bimestres
NS
15
14
12
S
14
12
10
Quantidades
Quantidades
Desempenho dos Meninos em História
4
10
9
8
8
9
8
6
4
0
4 o.
3
2
2
0
1 o.
0
0
0
2 o. Bimestres 3 o.
PS
NS
S
0
4 o.
PS
Desempenho das meninas em Geografia
16
Desempenho dos meninos em Geografia
0
9
9
5
0
1 o.
9
8
5
2
0
2 o.
0
0
3o.
Bimestres
NS
S
4o.
Quantidades
Quantidades
5
13
12
12
10
15
14
15
10
8
9
8
6
4
4
2
0
PS
9
8
2
0
1 o.
0
2 o.
NS Bimestres
S
0
0
3 o.
4o.
PS
50
Rosemeire dos Santos Brito
A tabulação dessas informações confirmou uma das premissas presentes na reconstrução de
minha hipótese teórica: não é todo o corpo discente masculino que apresenta baixo rendimento escolar.
Na verdade, o malogro estava localizado em uma pequena parcela de meninos, especialmente nas
disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa, ferramentas básicas da escolarização no Ensino
Fundamental.
Tal constatação mostrou claramente que era preciso apurar ainda mais a análise, resgatando as
premissas que haviam norteado a reformulação da hipótese teórica inicial: que garotos estavam
fracassando? Em relação a que critérios? Em relação a quem eles apresentavam resultados insatisfatórios?
Em que áreas? E por que razões estavam falhando?
Nesse momento, senti que era crucial contemplar dois aspectos muito importantes: recorrer à
análise dos critérios de avaliação adotados explícita ou implicitamente pela professora e que poderiam
justificar ou não os conceitos obtidos; e investigar que relação eles tinham com as masculinidades e as
feminilidades.
Eu retomava, então, os pontos destacados por Connell (1995; 1997) que falavam da necessidade
de focalizarmos nossa atenção nos processos e relações por meio dos quais homens e mulheres e/ou
meninos e meninas dão um sentido à sua inserção em determinados contextos, conforme a posição que
ocupam nas relações de gênero desses diferentes cenários.
O desafio foi identificar os critérios de avaliação da professora: postura, rendimento,
participação nas aulas, autonomia. Foi preciso ampliar o foco analítico para além da questão
comportamental enfatizada de modo polar e binário em outros trabalhos.33
Isso permitiu verificar quais os possíveis modelos de aluno(as) presentes nesses critérios e,
posteriormente, quais os padrões de masculinidades e feminilidades que apresentavam maior ou menor
vínculo com eles.
Na etapa seguinte, foi possível identificar a relação que os diferentes modelos de alunos(as),
imbuídos(as) no gênero, estabeleciam ou não com o rendimento escolar.
Para isso, examinei minuciosamente as entrevistas feitas com a professora, assim como todos os
meus registros sobre as várias situações observadas durante o período em que estivera acompanhando as
aulas.
33
Ver: Silva (1999), Madeira (1997) e Palomino (2003). Esses trabalhos encontraram como explicação
para o fracasso escolar o comportamento diferenciado de meninos e meninas, concluindo que os
primeiros tendem a apresentar condutas perturbadoras, o que prejudicava seu desempenho, assim como o
dos demais colegas. Essas investigações tiveram o mérito de chamar nossa atenção para os processos que
produziam essas condutas diferenciadas, rompendo com as explicações calcadas nas diferenças
biológicas. Entretanto, não foram consideradas as diferenças comportamentais entre os próprios meninos.
Em suma, todos foram tratados de forma singular.
51
Rosemeire dos Santos Brito
3.2) Comportamento, resultado escolar e masculinidades
A literatura aponta diferentes possibilidades de influência do comportamento nos resultados
escolares. Para Silva e colaboradores (1999), a concentração de insucesso escolar no alunado masculino é
conseqüência da má conduta e da indisciplina desses estudantes em sala de aula.
No âmago dessa visão, estava a idéia de que o sucesso feminino decorria de uma socialização
para a passividade e obediência, muito mais compatível com as normas escolares e as expectativas de
professores(as).
Para essa autora o comportamento constitui, então, o elemento central na formação de critérios
de avaliação de meninos e meninas, e muitas vezes era o fator que definia a relação que o(a) professor(a)
estabelecia com os estudantes.
Conclusão semelhante foi apresentada por Palomino (2003). Em sua pesquisa, ele constatou que
o comportamento, em sua intersecção com o desempenho escolar, compunha a noção de que os meninos
teriam mais insucesso em razão de seu comportamento indisciplinado e as garotas teriam mais facilidade
na escolarização por serem vistas como aplicadas, atentas e cuidadosas.
Esse aspecto tornou-se ainda mais explícito para Palomino (2003) quando ela notou que a
educadora, em suas avaliações informais sobre estudantes do sexo masculino, considerava muito mais o
comportamento do que o cumprimento ou não das tarefas.
No caso das meninas, o contrário disso era a regra: valorizava-se muito mais a realização das
atividades do que a postura; a execução das tarefas é que consistia, para a educadora observada por
Palomino (2003), o principal elemento de formação de seus critérios de avaliação das meninas. Tal
constatação possibilitou a pesquisadora realizar um mapeamento social e espacial que a ajudou a construir
hierarquias entre os estudantes e também a definir o grau de atenção dado a cada um pela professora.
Por tais motivos, a escolarização podia ser considerada uma tarefa muito mais árdua para
meninos do que para meninas, visto que desde a mais tenra infância elas já recebiam toda uma educação
que as preparava para exercer de forma competente seu papel de alunas.
Isso, entretanto, não significava que as garotas eram tidas como brilhantes. Ao contrário. Os
professores entrevistados por Silva e colaboradores (1999) admitiram que julgavam os meninos mais
inteligentes, porém mais indisciplinados, ao passo que as garotas seriam mais atentas e aplicadas, mas
menos inteligentes.
Uma contribuição importante e que torna ainda mais complexo o debate sobre as razões do
fracasso escolar foi dada por Carvalho (2003). Ao analisar em profundidade os critérios de avaliação e as
idéias que as professoras tinham das relações de gênero, ela constatou que os garotos que apresentavam
mais dificuldades de aprendizagem eram percebidos pelas professoras como os que exibiam uma postura
muito mais rebelde e assertiva. Julgados pelas professoras, eram considerados desligados, esquecidos,
pouco assíduos, descompromissados com a escolarização e pouco participativos (Carvalho 2003, p. 565).
52
Rosemeire dos Santos Brito
No entanto, a autora constatou que a associação entre sucesso escolar e boa conduta nem sempre
constituía a regra, ou seja, nem todos os garotos que apresentavam uma postura mais desobediente e
contrária às normas escolares tinham baixo rendimento escolar. Seu trabalho descreve o caso de um
garoto agitado, irreverente, indisciplinado, cujo comportamento parecia não incomodar nem os colegas
nem a professora, que o considerava um bom aluno no que dizia respeito à aprendizagem e aos resultados
escolares (Carvalho, 2003, p. 567).
Com base nesses referenciais, compreendi que os liames entre comportamento e resultados
escolares eram mais complexos do que pareciam. Era preciso verificar em que circunstâncias eles serviam
ou não para explicar o malogro/sucesso escolar.
Portanto, para analisar os depoimentos de Fernanda, parti da premissa de que era necessário
esmiuçar ao máximo os elementos formadores de seus critérios de avaliação, de forma a compreender
como ela justificava resultados tão díspares entre meninos e meninas e, especialmente, entre os próprios
garotos.
Além de levar em conta os questionamentos que eu já vinha utilizando para reconstruir a
hipótese teórica inicial, era indispensável acrescentar outras indagações: por que alguns meninos não
conseguiam apresentar um bom rendimento no decorrer do ano? Quem eram esses garotos? Por que
outros conseguiam ter um bom rendimento escolar e desempenhar com maior êxito o ofício de aluno?
Com tais questionamentos, foi possível visualizar os modelos de alunos e de alunas enquadrados
nessas justificativas, assim como os padrões masculinidades e feminilidades. Busquei então verificar se o
comportamento era o único ponto destacado ou se havia outros aspectos conectados a ele.
Para esse fim, lancei mão tanto das entrevistas realizadas com a professora como das
informações que havia obtido em minhas observações diretas em sala de aula. Com esses dois tipos de
dados, pude perceber de forma mais apurada como estudantes e professora vivenciavam diversas
situações, como interagiam entre si, de acordo com a posição que cada um(a) ocupava na avaliação de
Fernanda.
O exame dos depoimentos da professora revelou que, diferentemente do que fora relatado por
Silva e colaboradores (1999), logo no momento inicial ela reconheceu uma diferença de desempenho
entre meninos e meninas, principalmente ao considerar as indicações para as classes de reforço, assim
como uma maior facilidade das garotas em se adaptar ao ritmo escolar:
É muito louco isso, mas eu percebo em todas as salas em que eu trabalhei até hoje que
os meninos têm uma postura muito mais ativa, muito mais indisciplinada e as meninas
não, muito mais passivas, é claro que não dá para generalizar, mas é assim no geral
(Fernanda).
53
Rosemeire dos Santos Brito
Entretanto, apesar de admitir que os meninos costumavam ter essa postura, Fernanda evitou fazer
uma associação direta e explícita entre rendimento escolar e comportamento em sala de aula. Ao explicar
que critérios utilizava no dia-a-dia para avaliar seus estudantes, a professora manifestou que nem sempre
a postura mais desobediente resultava em malogro:
Eu acho que a postura e o aproveitamento escolar, as duas coisas em conjunto, não dá
para desconectar, se bem que tem classes de crianças que são agitadas e têm uma
postura não adequada, mas são excelentes alunos e o aproveitamento é muito bom,
existem casos assim, como existem casos contrários (...), então o critério que eu uso é
basicamente esse aproveitamento e postura (Fernanda).
Fernanda destacou que em algumas circunstâncias sua avaliação dos(as) alunos(as) não levava
em conta o comportamento deles(as), como no caso das indicações para as aulas de reforço. Questionada
sobre os critérios de tal indicação, a professora fez questão de enfatizar: “Não, postura, não, aí o reforço é
só com relação à aprendizagem, tem um caso de um menino que é superagitado, mas ele é muito bom”.
Contudo, nas observações em classe, percebi que o comportamento era, sim, um elemento
crucial não só para a avaliação que ela fazia dos(as) alunos(as) mas também para a definição de sua
relação pedagógica com as crianças. Em mais de uma ocasião notei conflitos entre a professora e meninos
que apresentavam condutas disruptivas.
A título de exemplo, destaco uma ocasião em que presenciei a professora, diante de uma mesma
solicitação, reagir de modo diferente com meninos que exibiam um comportamento mais rebelde e
indisciplinado e com meninas que tinham outro tipo de postura. Fernanda circulava pela classe para
checar os trabalhos de pesquisa que cada um deveria ter feito sobre a história do bairro onde eles(as)
viviam. Enquanto executava essa tarefa, alguns garotos corriam pela classe, falavam alto, pouco se
importando com o que deveriam estar fazendo naquele momento.
Em seguida, dois deles pediram autorização da professora para ir ao banheiro e imediatamente
receberam uma resposta negativa. Continuaram insistindo, mas mesmo assim não lhes foi permitido sair
da classe.
Entretanto, duas garotas que na avaliação de Fernanda tinham uma postura adequada34
receberam permissão para ir ao banheiro assim que solicitaram. Logo depois, outra garota saiu da sala
sem sequer pedir a autorização da professora, e, minutos depois, outra e mais outra, o que em nenhum
momento ocorrera com os garotos que estavam perturbando a aula; eles tinham, inclusive, recebido uma
advertência verbal de Fernanda, que ameaçou anotar seus nomes no quadro-negro.
Indiferente à solicitação deles, Fernanda continuou examinando os trabalhos e somente após o
retorno de todas essas meninas, permitiu que um dos garotos deixasse a sala, e depois todos os que
haviam solicitado.
34
Este assunto será abordado mais adiante.
54
Rosemeire dos Santos Brito
Outra situação que vale a pena relatar ocorreu em um dia de avaliação. As crianças estavam
sentadas em fileiras para fazer a prova de Matemática, as carteiras separadas umas das outras, e a
professora andava pela classe para esclarecer eventuais dúvidas.
Um dos garotos conhecido por sempre falar, brincar, rir e correr pela classe, além de não
começar a atividade, continuava importunando, distraindo a si mesmo e aos colegas próximos. Ele olhava
para a prova, depois brincava com a borracha, falava com o colega do lado, o que lhe rendeu uma forte
reprimenda da professora: “Carlos, já é a terceira vez que eu pego você falando! A sua prova está na sua
frente e até agora você não pegou o lápis para fazer! Aliás, o lápis, não, mas a cabeça é que ainda não
começou a funcionar” (Fernanda).
Assim que ela passou pela carteira dele, o menino voltou a brincar, fingindo comer a borracha.
Ele parecia não saber o que precisava ser feito, e solicitou a ajuda da professora. Ela explicou-lhe
detalhadamente o que ele precisava fazer, e essas explicações da professora se repetiram por mais oito
vezes. Notei que Fernanda estava ficando cada vez mais irritada e impaciente com aquele aluno, elevava
o tom de voz ao falar com ele, franzia o rosto numa demonstração de nervosismo e concluía as
explicações de forma rápida, sem perguntar se ele havia compreendido ou se ainda tinha alguma dúvida.
Reparei que ele não conseguia compreender o que estava sendo solicitado no exercício e menos ainda
resolver as atividades propostas pela avaliação.
Observei, ainda, que a atitude impaciente e irritadiça de Fernanda tinha endereço certo:
destinava-se exclusivamente a esse garoto e a mais dois que se comportavam da mesma maneira que ele
brincando, conversando, fazendo piadinhas, jogando seus materiais escolares no chão, enfim, fazendo de
tudo para chamar a atenção, no dia-a-dia da sala de aula.
A postura de Fernanda com outros estudantes que também solicitavam esclarecimentos, no
entanto, era de todo diferente, em especial no caso de uma garota que costumeiramente participava das
aulas e contribuía para as correções coletivas. Por várias vezes, notei que ela requisitava o auxílio da
professora não para entender o que estava sendo solicitado, mas para questionar se estava racionando de
forma correta, e em todas as vezes que precisou da professora esta se mostrou calma e disponível para
escutá-la, fornecendo quantos exemplos fossem necessários e elogiando a garota quando percebia que ela
estava indo pelo caminho certo.
Com base em tais evidências, ficou nítido que o comportamento do(a) aluno(a) constituía um
aspecto importante na relação entre professora e estudantes, e pelo menos nesses casos era a base para o
tipo de atendimento prestado a cada criança.
Entretanto, convém ressaltar que o que Fernanda definia como boa postura não era,
necessariamente, um comportamento submisso à rotina e às normas escolares. Ela, em vez disso,
valorizava posturas mais assertivas e questionadoras, que se traduzissem no que ela chamava de querer
mais, ou seja: ela lamentava num(a) aluno(a) a ausência ou a inexistência de um compromisso com a
escola através do qual ele(a) estivesse permanentemente buscando superar suas dificuldades:
55
Rosemeire dos Santos Brito
O que eu percebo é que uma coisa que faz muita diferença é a questão do querer e a
questão do esforçar, porque tem criança que tem dificuldade, mas ela não trabalha
para vencer essas dificuldades e tem criança que não tem dificuldade, mas tem um
envolvimento enorme, quer mais, está sempre em busca de mais (Fernanda).
Isso ficou ainda mais evidente em uma das entrevistas feitas com Fernanda, na qual solicitei que
comentasse a respeito de seus(suas) melhores alunos(as), dos(as) intermediários(as) e também dos(as)
piores. Embora, ela tenha preferido não caracterizar nenhum como mau aluno, ao comentar sobre seus(as)
alunos(as), ela espontaneamente os classificou entre os bons, os intermediários e os mais difíceis.
Com tal caracterização, foi possível constatar que a influência do comportamento na
aprendizagem e, conseqüentemente, nos resultados escolares era muito mais complexa. Na opinião da
professora, a postura só interferia na escolarização quando associada com outras características que
contribuíam de forma muito mais significativa para o comprometimento do rendimento escolar.
Diante desse cenário, foi possível visualizar que crianças tinham baixo rendimento escolar e
quais eram as bem-sucedidas, assim como aquelas que, embora não fossem consideradas excelentes, não
apresentavam maiores problemas com Fernanda e com o aprendizado.
Vale ressaltar que a professora pouco falou a respeito de suas alunas e, quando o fez, foi para
dizer que elas não tinham grandes problemas e/ou comentar especificamente sobre alguma menina,
especialmente quando solicitei sua opinião sobre duas garotas: uma que sempre participava das aulas35 e
outra que estava sempre brincando, conversando, circulando pela classe, enfim, que se comportava de
maneira semelhante a muitos garotos.
Vejamos então como ela foi construindo esses modelos, para depois avançarmos nesse ponto e
tentar vislumbrar os possíveis padrões de masculinidades e feminilidades contemplados nessa
classificação.
Os mais difíceis: poderiam ir melhor
Ao ser indagada sobre quais eram seus bons e maus alunos, a professora Fernanda preferiu evitar
utilizar a segunda denominação, afirmando que não existiam maus alunos, e sim estudantes com
dificuldades específicas. Com base nesse argumento, optou por começar a entrevista comentando sobre
aqueles que considerou espontaneamente como os mais difíceis.
A professora identificou três meninos nesse grupo: Carlos,36 Davi e Manoel, que tinham uma
série de características que os distinguia dos demais colegas de classe. Além de serem os únicos que
35
Nas observações do cotidiano escolar, foi possível notar, em quase todos os dias, que a professora
privilegiava a participação dessa garota durante as correções coletivas, provavelmente porque essa aluna
cumpria com êxito todas as tarefas escolares.
36
Carlos foi um dos alunos escolhidos para estudo de caso, razão pela qual possuo mais informações a
seu respeito. Ele vivia com os pais, uma irmã de onze anos e a avó em uma casa de seis cômodos e amplo
quintal em um bairro próximo à escola. O pai trabalhava em uma estatal como atendente de serviços
comerciais e a mãe era educadora em uma creche pública, o que proporcionava à família uma renda
mensal de quatro mil reais.
56
Rosemeire dos Santos Brito
haviam mantido um quadro de insucesso escolar durante todo o ano letivo, principalmente em Português
e Matemática, eram também os que apresentavam mais problemas disciplinares.
Além disso, eram os garotos que mais resistiam a romper com os padrões dominantes de
masculinidade. Tive a oportunidade de observá-los em uma aula de Educação Física na qual foi proposto
que meninas e meninos revezassem as atividades, de modo que as primeiras foram convidadas a jogar
futebol e os meninos a brincar de pular corda. Eles ficaram absolutamente contrariados e indignados com
tal sugestão e, em claro sinal de protesto, retiraram-se da atividade e permaneceram sentados ao meu lado.
Eram estudantes que apresentavam não só problemas de indisciplina como baixo rendimento em
Português e Matemática no decorrer de todo o ano letivo, motivo pelo qual haviam freqüentado as
oficinas de reforço (apenas Davi foi dispensado delas em setembro). Eram os garotos que estavam
fracassando na escola, como pode se ver nos gráficos abaixo:
Evolução desempenho mais difíceis em Português
Quantidades
Desem penho dos m ais difíceis em
Português
0
1
3
2
1
0
2
1
2
1
1º
2º
2
NS
S
2
1
2
1
3º
4º
Bimestres
PS
NS
S
FINAL
Evolução desempenho mais difíceis em Matemática
Desempenho dos "mais difíceis" em
Matemática
Quantidades
4
0
3
3
2
2
1
1
0
3
NS
S
0
1 o.
PS
3
0
0
2 o.
E
3
0
3 o.
4 o.
Bimestres
NS
S
PS
57
Rosemeire dos Santos Brito
Eles também estavam entre os estudantes que apresentaram dificuldades em Ciências:
Desempenho "mais difíceis"em Ciências
Evolução do desempenho dos mais difíceis em Ciências
2
Quantidades
4
1
3
3
2
2
2
1
1
1
3
0
NS
S
PS
1 o.
2 o.
3 o.
4 o.
Bim estres
NS
S
PS
Por sua vez, em História e Geografia não tiveram rendimento considerado insatisfatório.
Entretanto, somente no terceiro trimestre receberam o conceito Plenamente Satisfatório, tal como
demonstram os próximos quatro gráficos:
Desempenho dos mais difíceis em História
Quantidades
Evolução desempenho dos mais difíceis em
História
3
3,5
3
2,5
2
1,5
1
0,5
0
3
3
1 o.
NS
S
3
2 o.
PS
3 o.
3
4 o.
Bimestres
NS
PS
Desempenho dos mais difíceis em Geografia
S
Evolução desempenho dos mais difíceis em Geografia
Quantidades
4
3
3
3
3
3
2
1
0
3
1 o.
2 o.
3 o.
4 o.
Bimestres
NS
S
PS
NS
S
PS
58
Rosemeire dos Santos Brito
Na opinião da professora, esses eram os alunos mais difíceis da classe. Durante as aulas, notei
que eles passavam a maior parte do tempo rindo dos colegas, fazendo piadinhas sobre a professora,
levavam brinquedos para a escola e, em mais de uma ocasião, flagrei-os em lutas corporais ou agredindose verbalmente em voz alta, momentos que sempre exigiam uma intervenção rigorosa da professora.
Do mesmo modo, nos intervalos de aula e/ou nos minutos que antecediam a entrada para a
classe, estavam sempre entre garotos que ocupavam esse tempo com brincadeiras consideradas
tipicamente masculinas: jogando futebol na quadra da escola, envolvendo-se em lutas corporais,
invadindo as brincadeiras das garotas. Quando a professora chegava para conduzir as crianças para a
classe, eles eram sempre os últimos a entrar na fila e muitas vezes eram repreendidos verbalmente no
trajeto.37
Quando chegavam à classe, era comum darem continuidade às brincadeiras do pátio após o
início da aula. Em uma dessas ocasiões, o aluno Carlos trouxe para a sala de aula uma bola, com a qual
ficou brincando enquanto a professora tentava acalmá-los38 para poder começar as atividades
programadas para aquela tarde.
Além de estarem quase sempre alheios ao que se passava nas aulas, esses garotos eram os que
mais se envolviam com as atividades das aulas de Educação Física, principalmente quando elas estavam
relacionadas com práticas socialmente consideradas masculinas, como futebol e basquetebol. E, por tal
razão, eles eram os primeiros a entrar em conflito com a professora dessa disciplina quando a proposta era
outra.
Formavam esse grupo: Carlos, Manoel e Davi, todos brancos e freqüentadores das atividades de
reforço durante o ano letivo, com exceção de Davi39, dispensado em setembro.
De acordo com a professora, esses meninos raramente permaneciam concentrados durante as
aulas, estivesse ela explicando ou não alguma matéria. Fernanda afirmava que eles estavam sempre
dispersos e qualquer coisa que acontecesse servia de pretexto para deixarem de lado as lições, muitas
vezes perturbando os colegas que estavam estudando. Ao tecer comentários específicos sobre Carlos, ela
revelou:
O meu aluno que tem mais dificuldade em termos de aprendizagem é o Carlos, até
agora está bem aquém do grupo. Ele tem muitas dificuldades, principalmente em
Português e Matemática. (...) É um aluno que tem problema de concentração, (...)
qualquer vírgula que aconteceu do lado dele é motivo para ele levantar, para falar,
37
Já as garotas, com raríssimas exceções, permaneciam sempre mais próximas ao edifício escolar,
conversando, brincando com bonecas, com figurinhas, jogando amarelinha, pulando corda.
38
O verbo “acalmar” era freqüentemente utilizado por Fernanda quando as crianças estavam muitas
agitadas. Em diversas ocasiões ouvi-a dizendo: “Vamos acalmar”.
39
Carlos e Manoel foram convocados para reforço paralelo em Matemática e Língua Portuguesa. Essas
aulas eram dadas às sextas-feiras, entre nove e onze da manhã.
59
Rosemeire dos Santos Brito
enfim, ele não se concentra, é difícil, isso talvez interfira na aprendizagem dele, (...).
Acho que ele poderia..., mesmo com essas dificuldades todas, poderia estar melhor
(Fernanda).
Além do permanente estado de desatenção dos meninos, Fernanda dizia que eles eram muito
dependentes, que estavam sempre precisando do auxílio dos colegas, uma vez que com freqüência
perdiam as explicações. E também por causa disso requisitavam muito a atenção da professora. Em várias
ocasiões notei que ela se mostrava sempre mais irritada e menos disponível para atender esses alunos. As
explicações fornecidas a eles eram breves, com poucos exemplos, e muitas vezes o esclarecimento vinha
acompanhado de uma áspera repreensão:
Tanto o Carlos quanto o Davi, eu percebo que eles são um pouco dependentes, estão
sempre esperando que alguém fale para eles o que eles têm que fazer (...), que alguém
diga o que precisa ser corrigido (...). O Manoel está sempre esperando que você diga
para ele o que ele precisa fazer e mesmo que ele tenha entendido o que você disse, ele
sempre pergunta para confirmar, e você percebe na pergunta dele que a pergunta já
traz uma insegurança danada, porque ele entendeu certo, ele pergunta aquilo que eu
falei, mas já falando, não é? Ele não tem segurança naquilo que ele fala, que ele
entende, então ele quer sempre saber se está certo mesmo, e de detalhes, sempre saber
os detalhes. Eu acho que grande parte do problema se resolveria se ele tivesse mais
autonomia, aprendesse a ser mais autônomo (Fernanda).
No olhar de Fernanda, essa dependência acentuada era uma carência que poderia ser suprida com
uma postura mais distante e exigente com esses alunos, motivo pelo qual procurava estimulá-los a superar
individualmente as dificuldades:
O Manoel está sempre esperando que alguém ajude a fazer a lição, sempre requerendo
alguém, (...) porque às vezes eu peço um exercício qualquer e falo: “Olha, você vai ler
e tentar entender, se não conseguir entender, você lê de novo e tenta mais uma vez, se
você não conseguir, você pode pedir ajuda para o amigo do lado, se o amigo entendeu
ele te ajuda e aí você responde, senão aí você levanta a mão que eu vou ao seu lugar”,
senão eles vão querer toda hora qualquer coisa, é capaz deles chamarem para você ler
para eles o que está escrito. Então eu procuro enfiar esse ato neles, para aprenderem a
ser autônomos. Na terceira série vão precisar disso. (...) O papel do professor é
acordar essas crianças que estão no compasso de espera. Esperando as coisas caírem
do céu. E outras vezes é incentivar ainda mais essa postura de querer mais, de ir atrás
(Fernanda).
No entender da professora, a esse permanente estado de desatenção somava-se o da agitação.
Fernanda achava os alunos bastante inquietos, o que, na sua opinião, dificultava não só a própria
aprendizagem mas, sobretudo, o andamento das aulas. Para fundamentar esse argumento, ela comentou
especificamente o caso de Davi e Manoel:
O Davi, o problema é assim, ele conversa, ele fala muito, eu já falei isso para o pai dele
(...), essa história de você estar falando com a turma e ele toda hora interrompe para
fazer algum comentário, como se fosse uma conversa particular com ele, então isso
também atrapalha não só a ele, como a dinâmica, várias vezes interrompe o que eu
estou falando e depois, para retomar, atrapalha um pouco, ele tem esse costume. Até
que eu pego no pé dele (...), está sempre ligado em outras coisas, muitas vezes eu vejo
que é por traquinagem mesmo, que não é por falta de concentração. O Manoel, ele é
muito agitado, além de ser desatento, ele também é agitado, tem dias que ele está
elétrico (Fernanda).
60
Rosemeire dos Santos Brito
Essas observações, além de confirmarem que o insucesso escolar concentra-se no alunado
masculino, permitem notar que tal resultado é obtido por uma pequena parcela dos estudantes, em geral
aqueles que apresentam condutas perturbadoras (Gilbert & Gilbert, 1998).
Os pressupostos assumidos na reconstrução de minha hipótese teórica inicial não
impossibilitaram que eu evitasse associar baixo rendimento a má postura.
Influenciada por Madeira (1997), Silva e colaboradores (1999) e por Palomino (2003), em uma
primeira leitura dos fragmentos fornecidos pela professora Fernanda estabeleci uma relação direta entre a
má postura e baixo rendimento escolar. Apoiada nessa idéia, a princípio não avaliei os limites de tal
afirmação.
Entretanto, sucessivas releituras fizeram com que eu percebesse as contradições existentes na
fala de Fernanda. Quando se referia ao conjunto de alunos, ela tendia a afirmar que não havia
correspondência entre sucesso/insucesso escolar e a postura dos(as) alunos(as) em sala de aula. Em outros
momentos, porém, salientava que a postura era parte do que deveria ser avaliado no estudante, sendo,
portanto um dos elementos de seus critérios de avaliação, e que, no limite, influenciava decisivamente a
relação entre professora e estudantes.
Este último aspecto sobressaiu quando analisei seus depoimentos a respeito da situação dos três
alunos, Carlos, Manoel e Davi. Nesses casos, o comportamento servia como justificativa do malogro
escolar.
Tal como já relatado por Silva e colaboradores (1999) e por Palomino (2003), esses meninos
eram vistos como desatentos, agitados, desinteressados. Apresentavam, enfim, um conjunto de
características que possibilitava acreditar que seu baixo rendimento poderia ser explicado também como
fruto de uma socialização incompatível com o que a escola esperava de um bom estudante.
Todavia, ao longo da investigação foi ficando cada vez mais claro que esse postulado não dava
conta de decifrar toda a complexidade existente nos relatos da educadora.
Na verdade, o que mais parecia incomodá-la naqueles meninos desatentos, agitados e
desinteressados era a ausência de iniciativa deles, que os impedia de se comprometerem seriamente com o
aprendizado e poderem discernir sozinhos quando poderiam brincar e quando deveriam estudar.
Além disso, as observações do cotidiano escolar revelaram que esses estudantes não eram os
únicos a apresentarem condutas perturbadoras; outros garotos também tinham uma postura indisciplinada
e, não obstante essa condição, eram vistos como alunos(as) médios(as) ou bons/boas pela professora.
Tudo levava a crer que o comportamento inadequado só era visto como um problema sério se estivesse
associado a expressivos graus de dependência.
Desse modo, novos questionamentos foram surgindo: o que distinguia a postura desses meninos
da postura dos demais garotos? Que outros fatores poderiam ajudar a explicar a influência do
comportamento nos resultados escolares? E por fim, quais eram as visões de masculinidades presentes
nos julgamentos da professora?
61
Rosemeire dos Santos Brito
Em suma, quem eram os demais meninos? Quais as diferenças entre eles e esses três? Por que a
indisciplina dos demais alunos(as) parecia não incomodar Fernanda?
Buscando respostas para essas indagações, analisei na seqüência o discurso da professora a
respeito dos estudantes que ela considerava médios ou medianos e, sobretudo, daqueles que chamou de
bons/boas alunos(as).
Os medianos: demoram um pouco, mas chegam lá
Para Fernanda, a maior parte dos(as) alunos(as) de sua classe concentrava-se no nível mediano.
De modo geral, eles apresentavam desempenho considerado satisfatório e uma postura menos resistente
às normas escolares. Esse agrupamento era composto de nove meninos e treze meninas.
Ao compará-lo com o primeiro grupo, Fernanda fez questão de ressaltar que esses nove meninos
e treze meninas tinham mais chances de avançar no conhecimento; mesmo quando demonstravam
algumas dificuldades no percurso, elas eram rapidamente superadas: “Acho que os medianos são assim,
em alguns assuntos, que são mais difíceis, demoram um pouco mais, precisa explorar mais aquilo para
eles”.
Alguns desses estudantes também freqüentaram o reforço paralelo: três meninos e duas garotas:40
Porém, ao contrário de Carlos, Davi e Manoel, essa participação foi circunstancial, destinada apenas a
reforçar alguns pontos específicos da matéria. Comentando o caso de Wellington, Davi41, Karen e Marta,
Fernanda afirmou que esses estudantes conseguiam avançar, mesmo que não recebessem auxílio da
professora; eram, portanto, mais autônomos quando comparados a Carlos, Davi e Manoel:
Eu acho que esses que eu estou dispensando agora o mês que vem, eles conseguem,
você percebe que têm condição de seguir adiante, mesmo sem ajuda, dá para perceber
isso, que mesmo sem o auxílio, eles conseguem avançar no ritmo deles, mas conseguem
(Fernanda).
O rendimento Não Satisfatório e o Plenamente Satisfatório eram ocasionais entre esses
estudantes; a maior parte deles conseguia obter o conceito Satisfatório nas avaliações, tal como
demonstram os gráficos abaixo:
40
Irineu, Rafael, Wellington, Karen e Marta.
41
Davi foi citado aqui porque estava entre os alunos que foram dispensados das oficinas de reforço.
Entretanto, foi claramente classificado por Fernanda como pertencente ao grupo dos mais difíceis.
62
Rosemeire dos Santos Brito
Desempenho dos medianos em Matemática
Desempenho dos Medianos em Português
2
3
2
2
17
18
NS
NS
S
S
PS
PS
Desempenho dos Medianos em História
Desempenho dos Medianos em Geografia
0
0
9
9
13
13
NS
NS
S
S
PS
PS
Desempenho dos medianos em Ciências
1
4
17
NS
S
PS
Os gráficos sobre a evolução do desempenho desses estudantes evidenciam que eles tinham
maior capacidade de recuperação, o que a professora interpretou como possibilidade de avanço após a
revisão de determinados pontos da matéria.
63
Rosemeire dos Santos Brito
20
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
18
18
Evolução do desempenho dos medianos em
Matemática
25
17
15
Quantidades
Quantidades
Evolução desempenho dos medianos em Português
5
3
1
2
1 o.
3
2
2
2 o.
3 o.
20
20
17
17
15
13
10
5
6
3
3
2
4 o.
1 o.
2 o.
Bimestres
NS
S
3
2
1
0
3 o.
4 o.
Bimestres
PS
NS
S
PS
Evolução do desempenho dos Medianos em Geografia
Evolução do desempenho dos medianos em História
25
25
20
10
15
13
9
7
15
Quantidades
15
7
5
0
0
0
0
1 o.
2 o.
3 o.
Bimestres
NS
S
0
22
20
15
13
10
15
15
7
7
9
5
0
4 o.
0
0
0
0
1 o.
2 o.
3 o.
4 o.
Bimestres
PS
NS
S
PS
Evolução do desempenho dos Medianos em Ciências
Quantidades
Quantidades
22
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
17
15
12
10
12
10
7
4
1
1 o.
0
2 o.
0
3 o.
0
4 o.
Bimestres
NS
S
PS
64
Rosemeire dos Santos Brito
Agora, analisando esses resultados sob o ponto de vista comportamental, constatou-se que entre
esse grupo estavam incluídos estudantes de ambos os sexos que apresentavam uma postura mais
obediente e também outros que se comportavam de forma indisciplinada.
Para Fernanda, entretanto, havia diferenças significativas entre esses estudantes e os outros três
do grupo anterior. A análise dos registros do Diário de Campo possibilitou notar que os primeiros
pareciam incomodá-la mais ou porque estavam constantemente precisando de seu auxílio nas tarefas e/ou
porque atrapalhavam a aula:
O Carlos, o Davi e o Manoel (...), eles são mais trabalhosos porque cada um tem suas
peculiaridades, mas eles têm que ficar mais em cima, se deixar por conta deles, eles
ficam estagnados (Fernanda).
Ao contrário desses três estudantes, os(as) classificados(as) por Fernanda como pertencentes ao
grupo dos medianos conseguiam discernir as brincadeiras dos estudos e combiná-los harmonicamente.
Quando a professora estava explicando alguma matéria, eles procuravam prestar atenção e quando
executavam alguma tarefa escolar ficavam mais concentrados:
São alguns que põem fogo no resto, por exemplo: o Lourival é um deles, o Manoel (...).
O Davi, que é outro que também é fogo, né, então, Lourival, Davi, meninos, só porque
meninas, a Nivia é mais safadinha, que entra mais no esquema, mas a grande maioria
das meninas são súper na boa assim. Agora tem esses localizados, enfim, mas tem uns
que são súper na boa, superlegais, o caso do Vicente, do Irineu, sabe tem muitos
meninos que assim, ficam tranqüilos, quando esses põem fogo (...), ficam muito mais
tranqüilos (Fernanda).
Com base nessas afirmações, é possível afirmar que a má conduta, isolada de outros fatores, não
consegue, por si só, explicar o insucesso de meninos nesse contexto. Basta citar o caso de Robson, um
garoto que falava muito, andava pela classe, brincava com os colegas e que nem por isso era visto pela
professora como um aluno difícil. Em determinada ocasião, por estar se comportando de forma
inadequada, Robson foi severamente repreendido pela professora. Ela o isolou dos demais alunos,
deixando-o sentado no canto direito da classe durante todo o período de aula.
Nesse grupo de estudantes considerados medianos pela professora havia também os que
apresentavam dificuldades específicas, como o caso de Roberto. Apesar de ter um comportamento
compatível com as regras escolares, era tido pela professora como demasiadamente quieto e passivo.
Além disso, estava presente nesse grupo a aluna Suzana, escolhida para fazer parte dos estudos
de caso exclusivamente porque, na maior parte do tempo, comportava-se de forma tão indisciplinada
quanto Carlos, Davi e Manoel, o que raramente ocorria com outras garotas.
No entanto, ao tecer comentários sobre essa aluna, a professora Fernanda não a classificou no
grupo anterior. Em sua opinião, embora Suzana fosse desatenta e indisciplinada, algo a diferenciava
daqueles garotos:
65
Rosemeire dos Santos Brito
A Suzana é uma garota muito esperta. Ela tem facilidade de aprendizagem, mas ela é
muito dispersa, muito viagem (...), se dispersa na brincadeira, mas é muito afetiva, está
sempre em contato, querendo dar beijo, conversar e tal (Fernanda).
Fernanda parecia desejar um aluno(a) crítico(a), participativo(a), autônomo(a), mesmo que
eventualmente ele(a) apresentasse problemas de indisciplina que justificassem admoestações verbais ou
até mesmo repreensões mais severas, como deixar a criança sem recreio, prática freqüentemente utilizada
pela professora.
Foi se tornando cada vez mais evidente que para essa professora o bom aluno e a boa aluna não
eram necessariamente uma criança que permanecesse quieta o tempo todo, que fizesse tudo certinho e que
se limitasse a seguir regras e a copiar as lições do quadro-negro.
A análise dos depoimentos da professora sobre seus bons alunos reforçou ainda mais essa
premissa e também forneceu outros elementos que permitiram desvendar os modelos de aluno(a) que a
professora tinha em mente e quais eram as feminilidades e/ou masculinidades neles contempladas.
Vejamos, então, o que caracterizava os bons estudantes e em que medida tais idéias faziam parte
dessa categorização.
Boa aluna, bom aluno: aprendem apesar da escola
Durante a entrevista, Fernanda apontou espontaneamente como bons alunos cinco meninas e dois
garotos, sendo que uma das estudantes era tida como a melhor da classe.
Nesse grupo, todos apresentavam excelente rendimento em todas as matérias durante o ano
letivo, motivo pelo qual jamais freqüentaram as oficinas de reforço, embora alguns deles tenham
participado de outros projetos da escola.42 Os gráficos abaixo ilustram seu desempenho, evidenciando que
o conceito Plenamente Satisfatório era a regra, o Não Satisfatório inexistente e o Satisfatório a exceção.
42
Os alunos Eduardo e Valéria participaram do Clube de Matemática, atividade extra-aula que não
constituía as oficinas de reforço, embora alguns estudantes indicados para o reforço paralelo também
tenham freqüentado o Clube. Havia ainda outro projeto denominado Letras e Livros, no qual estiveram
presentes dois estudantes do grupo dos mais difíceis, Carlos e Davi, e três do intermediário, Wellington,
Irineu e Vicente.
66
Rosemeire dos Santos Brito
Evolução do desempenho dos melhores
alunos em Português
Desempenho dos melhores alunos em
Português
Quantidades
6
0
2
4
NS
S
4
4
4
2
2
2
0
0
1 o.
0
2 o.
PS
5
5
1
0
3 o.
1
0
Final
Trimestres
NS
S
Desempenho dos melhores alunos em Matemática
PS
Evolução do desempenho dos melhores alunos
em Matemática
8
2
4
NS
S
PS
Quantidades
0
6
6
5
4
4
4
2
2
2
0
0
0
1 o.
1
0
0
2 o.
3 o.
Final
Trimestres
NS
S
PS
67
Rosemeire dos Santos Brito
Desempenho dos melhores alunos em Geografia
Evolução do desempenho dos melhores alunos em
Geografia
0
Quantidades
1
8
6
4
2
4
2
0
1
0
0
5
6
5
1 o.
NS
S
4
2
0
2 o.
00
3 o.
Final
Trimestres
PS
NS
Desem penho dos Melhores alunos em História
S
PS
Evolução do desempenho dos melhores alunos em
História
8
0
Quantidades
1
6
5
4
4
2
2
1
0
0
5
S
1
0
0
1 o.
NS
6
5
2 o.
0
3 o.
Final
Trimestres
PS
NS
S
PS
Desempenho dos melhores alunos em Ciências
Evolução do desempenho dos melhores
alunos em Ciências
8
0
Quantidades
1
5
6
6
5
4
4
2
2
1
0
0
1 o.
4
2
0
0
2 o.
0
3 o.
Final
Trim estres
NS
S
PS
NS
S
PS
68
Rosemeire dos Santos Brito
Para Fernanda, o primeiro traço distintivo desses estudantes era a facilidade de aprendizagem: “É
essa coisa de que quando você começa a trabalhar com um conceito, mesmo que seja novo para eles,
pegam com muita facilidade”.
Tal característica era vista por Fernanda como uma conseqüência dos conhecimentos extraescolares desses estudantes, assim como do forte incentivo de suas famílias à escolarização:
Muitas vezes a coisa já vem dos conhecimentos prévios deles, então eles só estão vendo
uma coisa que eles já conhecem, então tem esse estímulo do meio que ajuda bastante,
mas também a rapidez de raciocínio, de internalizar os conceitos, enfim, de conseguir
lidar com o conhecimento de uma forma tranqüila, sem grandes problemas, em todas as
áreas, não é só uma, não; geralmente quem se dá bem em uma difícil não se dar nas
outras, todos eles se dão bem em tudo (Fernanda).
O resultado da combinação desses dois aspectos traduzia-se numa maior capacidade de esses
estudantes participarem das aulas. Eles constantemente expunham suas idéias para toda a classe,
apresentavam seus deveres nas correções coletivas, atitude muito apreciada pela professora. Com relação
ao quesito participação, Fernanda forneceu dois exemplos de estudantes. Um deles era a garota que ela
tinha como sua melhor aluna e o outro um menino que ela considerava também muito bom, embora em
alguns momentos se comportasse de forma indisciplinada:
A Sandra é uma das melhores, é muito interessada, sempre participando, dando a sua
contribuição em termos de motivação, de interesse, ela sai na frente de todos, e não é
só querendo participar da correção; ela participa de tudo (...), ela também tem um bom
estímulo em casa, ela é esforçada, ela gosta de ler, escrever, escreve bem, é muito
criativa (...), ela gosta, tem interesse pelo estudo e se empenha para tentar vencer os
desafios, os obstáculos (Fernanda).
Olha que interessante: a Valéria, a Luzia, a Silvana e o Eduardo são alunos que têm
uma postura superadequada, estão aí, interessados, prestam atenção, são atentos,
participam (...), o Robson já foge a isso, mas ele também é muito bom, eu acho que é o
jeito dele, porque ele participa também; apesar de ser agitado, ser falante pra
caramba, ele participa muito das aulas (...), ele gosta de falar, ele gosta de pôr as
idéias dele para fora, de dar sugestões (Fernanda).
É com base na compreensão dessas reflexões feitas pela professora Fernanda que se pode
perceber que a avaliação negativa dos alunos Carlos, Davi e Manoel decorre da ausência de autonomia
deles e do forte grau de dependência que têm em relação à professora, manifestações não apresentadas
com a mesma intensidade pelos demais alunos.
Nesse sentido, de forma distinta do que foi encontrado por Silva e colaboradores (1999) e por
Palomino (2003), o comportamento não era o único ponto importante na avaliação que Fernanda fazia de
seus(suas) alunos(as). Na verdade, havia outro aspecto que contrastava de forma muito evidente com os
três estudantes que ela classificou como os mais difíceis. Diferentemente de seus colegas Carlos, Davi e
Manoel, todos esses estudantes, mesmo os que não se mostravam tão participativos, não necessitavam
69
Rosemeire dos Santos Brito
tanto de sua ajuda; eram autônomos, “autodidatas43” e mais presentes nas atividades realizadas em sala de
aula.
Além disso, o autoditatismo demonstrado por aqueles alunos derivava, na visão da professora, de
uma influência do meio, ou seja, do possível respaldo dado por suas famílias à escolarização. Por tais
motivos Fernanda acreditava que os conhecimentos adquiridos via instituição de ensino eram
complementares a essa formação precedente:
Tem uma expressão que eu gosto: o bom aluno é aquele que aprende apesar da escola,
é autônomo, é autodidata, ele aprende com o mundo, a escola para ele é algo a mais,
que vai fazer ele crescer. É o aluno que tem mais facilidade, que está sempre em busca
de coisas novas, de crescimento, é o aluno que muitas vezes sabe mais que o professor
(Fernanda).
Com base nessas colocações, foi possível ir compondo aos poucos o modelo ideal de aluno
concebido por Fernanda. Esse aluno era alguém necessariamente independente, participativo, com rapidez
de raciocínio, facilidade de aprendizagem e que ao mesmo tempo fosse atento concentrado, livre do
compromisso de apresentar em tempo integral uma postura totalmente adequada à rotina escolar e a suas
normas.
Mais do que isso, o perfil do bom aluno estava fortemente vinculado à capacidade da família
daquela criança de incentivar, acompanhar e até mesmo supervisionar a escolarização. Quem contasse
com esse respaldo em casa era também alguém com mais propensão de desempenhar o ofício de aluno
de forma congruente com a opinião da professora. E as observações de campo mostraram que quem se
encaixava nesse perfil eram os estudantes que tinham relações menos problemáticas com a educadora,
que contavam com sua maior disponibilidade e que eram os mais convidados a apresentar para a classe os
deveres escolares nas correções coletivas.
Isso era bastante nítido no caso de Sandra, que, embora de hábito não fosse a primeira solicitada
a explicar aos demais como havia feito as tarefas, acabava sempre convocada quando Fernanda percebia
que a atividade não estava avançando, ou porque os alunos não conseguiam demonstrar com clareza os
procedimentos adotados nos exercícios, ou porque apresentavam resultados incorretos.
Nesse sentido, a valorização de um currículo oculto por parte de professores(as) e instituição
escolar, embora já amplamente denunciada pela literatura relacionada com o tema do fracasso escolar,
ainda merece ser destacada e analisada, na medida em que é algo bastante presente nas avaliações do
corpo discente no Ensino Fundamental.44
Isso deixou evidente que o pertencimento social era um elemento estruturante de uma trajetória
escolar bem ou mal-sucedida, com menores ou maiores estrangulamentos e/ou com percursos mais ou
menos acidentados.
43
Para Fernanda o aluno autodidata era aquele que não dependia exclusivamente da escola para aprender.
44
Ver Patto (1990; 1992), Aquino (1997).
70
Rosemeire dos Santos Brito
Fernanda percebe que suas dificuldades em lidar com essa diversidade são construídas
socialmente e que fazem parte da cultura escolar:
Está desconexo o comportamento das crianças e o que a escola tem a oferecer; é uma
coisa que não encaixa. Como se as crianças esperassem muito mais da escola e a
escola não consegue dar isso para elas. Então eu percebo que 95% estão dentro desse
parâmetro que a escola dá para eles. Por quê? Porque eles estão querendo mais (...) eu
percebo isso como? Em que tipo de postura? Assim naquela aula tradicional que você
dá, quando você está explicando alguma coisa, um conceito novo, enfim, eu percebo
isso: fulaninho não está nem aí, ele está olhando para o teto, ele está rabiscando o
caderno (Fernanda).
No entanto, mais adiante na mesma entrevista, a professora admitiu que se sente impotente
diante desse quadro, que diz respeito à organização da própria escola e ao limite das políticas
educacionais:
Então é uma falha da escola, é uma falha minha enquanto professora, mas acho que
por enquanto nem eu nem a instituição conseguimos dar conta. Eu acho que isso é uma
coisa (...) que é bem maior (Fernanda).
E com isso ela de certo modo justifica a avaliação que faz de seus estudantes com base em seu
repertório pessoal, questão que tem sido uma tônica após a implementação de políticas de melhoria e
correção do fluxo escolar, no caso do Estado de São Paulo: ensino organizado em ciclos de progressão
continuada (Carvalho, 2003). Por tal motivo, percebe-se a força da classe social nas opiniões que ela tem
sobre seus alunos e alunas.
Entretanto, se isolado de outras categorias, esse aspecto não consegue explicar a complexidade e
a ambigüidade existente no discurso da professora com relação aos estudantes. Como vimos no primeiro
capítulo, o pertencimento social está fortemente vinculado ao pertencimento de gênero e, portanto, a
determinada forma de configuração das relações de gênero, sempre conflitantes, mutantes e dialéticas.
Diante disso, era preciso analisar também qual a possível conformação das masculinidades e
feminilidades, de acordo com o olhar da professora. Era imprescindível ainda verificar que vínculos essa
disposição tinha com o pertencimento de classe das crianças, bem como as possíveis implicações dessa
relação para o sucesso e/ou insucesso escolar.
Utilizando a ferramenta metodológica de Connell (1995; 1997), no próximo tópico exploro os
padrões de identidade de gênero existentes naquele contexto, com base no olhar da educadora,
procurando identificar os padrões mais ou menos valorizados por ela ou os que estavam em maior ou
menor conformidade com o modelo ideal de aluno(a) defendido por Fernanda, necessariamente alguém
independente, autodidata, participante e que recebesse estímulo do meio.
3.3) Possíveis gradações de masculinos e femininos
A análise dos depoimentos de Fernanda sobre esse aspecto revelou que o fator comportamento
fornece apenas uma parte da explicação a respeito do fracasso/sucesso escolar de meninas e meninos. Tal
71
Rosemeire dos Santos Brito
como já visto em Carvalho (2001b), quem podia se encaixar no perfil de excelente aluno(a), no caso da
professora Fernanda, e ser definido como um estudante participativo, crítico, criativo, independente e, ao
mesmo tempo, responsável e rápido no aprendizado, não passava de um pequeno número de meninas e
uma dupla de meninos. No caso eram: Eduardo, Robson, Nivia, Aline, Sandra, Valéria e Luzia — de
forma mais precisa, aqueles(as) que estavam mais próximos(as) do ideal de aluno como alguém que
aprende apesar da escola, ou seja, não obstante uma cultura escolar repleta de preconceitos, estereótipos,
discriminações, mecanismos de seletividade e exclusão.
Como vimos, as crianças que melhor atendiam a esse requisito não eram, necessariamente, as
que se comportavam de forma mais passiva, obediente, pouco questionadora, embora existissem casos
assim. Em seus relatos, Fernanda forneceu exemplos de estudantes que não apresentavam tais
características e que muitas vezes até tinham uma postura contrária às normas escolares e aos acordos
estabelecidos com a classe45, como era o caso de Robson e Nivia. Ambos foram descritos pela professora
como estudantes com problemas de comportamento, mas mesmo assim foram classificados entre os bons
alunos por serem autônomos.
Por outro lado, a situação de Carlos, Davi e Manoel denunciavam a ausência dessa combinação
harmônica, pois no entender de Fernanda a má conduta desses estudantes não permitia que eles
correspondessem ao modelo por ela valorizado.
Trabalhando com o eixo autonomia versus dependência, aos poucos foi possível visualizar os
padrões de masculinidades e feminilidades presentes naquelas três classificações: os mais difíceis, os
intermediários e os bons alunos.
Com relação ao primeiro conjunto, tanto os depoimentos da professora quanto as observações do
cotidiano escolar revelaram que na maior parte do tempo esses estudantes apresentavam condutas
consideradas perturbadoras. Em geral, conversavam em voz alta, circulavam pela classe, brincavam de
lutar, enfim, como dizia Fernanda, estavam sempre distraindo-se com qualquer vírgula.
Por tal razão, o aspecto comportamento era para ela uma variável importante para explicar o
baixo rendimento de Carlos, Davi e Manoel, na medida em que impedia o exercício da autonomia,
também essencial para o aprendizado.
Como se vê, eles pareciam muito próximos dos estudantes descritos por Gilbert & Gilbert
(1998), Mac an Ghahill (1994) e Connell (1995; 1998), pertencentes às camadas populares. Ao viverem
uma diferenciação hierarquizada estabelecida pela professora, na qual eles não constam como os mais
valorizados, vão cada vez mais assumindo uma postura antiescola como uma fonte alternativa de poder, o
45
Em um quadro de avisos situado na parede esquerda da sala, destinado à exposição temporária de
trabalhos dos alunos, havia um cartaz amplo, onde estavam descritos todos os pactos feitos pela
professora com a classe, entre eles “Se sujar, vai limpar”. Por mais de uma ocasião notei que esse
regulamento era utilizado como um pretexto para dispersão e brincadeiras pelas crianças. O aluno Carlos,
por exemplo, freqüentemente sujava a própria carteira de propósito, para depois ter a oportunidade de ir
pegar o material de limpeza e assim poder circular pela classe, conversar com os amigos e brincar.
72
Rosemeire dos Santos Brito
que contribui intensamente para o aumento e a manutenção de um conflito permanente entre esses
estudantes, professores(as) e instituição escolar.
As práticas sociais de Manoel, Carlos e Davi expostas na fala da professora eram muito
semelhantes às desvendadas no estudo do pesquisador britânico Mac an Ghahill (1994). Eles perturbavam
o ambiente o tempo todo, dando risadas, fazendo piadinhas, levantando-se com freqüência e procurando
divertir-se ao máximo, enquanto os demais colegas ocupavam-se dos deveres escolares.
A julgar pelo discurso de Fernanda e por minhas observações em sala de aula, estava claro que
essa forma de afirmação da masculinidade não era apreciada pela professora, embora ela não tivesse
conhecimento dos complexos mecanismos que produzem essa construção. Assim, não constituía novidade
que essas fossem as crianças mais severamente punidas. Todas do sexo masculino. Esses alunos eram os
que não mereciam toda a atenção solicitada, os que não recebiam as mesmas permissões que as demais
crianças da classe, os que ficavam impedidos de ir ao banheiro durante a aula, os que acabavam sendo
atendidos de forma rápida quando estavam com dúvidas ou os que não eram convidados a participar das
correções coletivas, técnica largamente utilizada pela professora.
Esses garotos pareciam estar em clara tensão entre o universo do pátio escolar e o da sala de
aula. Em diversas ocasiões em que os observei fora da classe, tanto antes das aulas quanto nos intervalos,
eles estavam sempre envolvidos em brincadeiras e atitudes socialmente vistas como masculinas:
futebol, lutas, insultos orais, com forte ênfase em sua capacidade de ser bem-sucedidos nos esportes.
Nesse contexto, eles afirmavam sua identidade de gênero, sustentados pelo reconhecimento de suas
proezas naquelas atividades, no descaso com o processo de aprendizagem e no constante desrespeito às
normas escolares e/ou aos acordos estabelecidos entre professora e estudantes.
No caso inglês descrito por Mac an Ghahill (1994), os professores da escola secundária
adotavam medidas de policiamento com os alunos que apresentavam semelhante comportamento. O
regime disciplinar ali instituído operava de forma autoritária o processo de interação entre a instituição e
os estudantes. Tal vigilância, porém, não se restringia às relações entre alunos e escola; muitas vezes os
rapazes eram vigiados por colegas que exerciam a função de monitores da escola.
No discurso de Fernanda, a postura antiescola se traduzia em um descompromisso com a escola,
o que não era notado nem entre os garotos e as garotas classificados nos outros grupos nem entre aqueles
que, embora também tivessem problemas disciplinares semelhantes, sabiam equilibrar as várias
estratégias de bagunça com o comprometimento com a aprendizagem.
O fato é que, ao tratar esses estudantes difíceis de forma diferenciada, a escola os empurrava
cada vez mais para uma trajetória de insucesso acadêmico, destino para o qual, no decorrer de 2002, eles
já haviam dado passos decisivos. Como explicita Connell (1998), citado por Carvalho (2001b, p. 570):
Diferentes masculinidades vão sendo construídas em relação à diferenciação
hierarquizada em que a escola aloca os estudantes, através da constante competição e
classificação. À medida que se reconhecem como fracassados na escola, vendo
fecharem-se as possibilidades de realizar um certo padrão de masculinidade
hegemônica e de controlar um certo tipo de poder social ligado ao sucesso acadêmico e
73
Rosemeire dos Santos Brito
às profissões liberais, alguns jovens, principalmente oriundos das classes
trabalhadoras, podem reagir buscando “outras fontes de poder, até mesmo outras
definições de masculinidade”, muitas vezes simbolizadas na força física, na agressão e
nas conquistas heterossexuais (Carvalho, 2001b, p. 570).
De acordo com os padrões encontrados por Connell (1995), eles talvez representassem perante a
professora e seus colegas uma masculinidade de protesto, encontrada principalmente entre
estudantes das classes trabalhadoras, cujas características compõem o modelo mais estereotipado
e tradicional da masculinidade no corpo discente masculino, fazendo jus às afirmações lançadas em
outros trabalhos,46 de que garotos são necessariamente: rebeldes, indisciplinados, desatentos,
desinteressados, preguiçosos e imaturos.
Possivelmente esses garotos trouxessem de casa referenciais de masculinidades incongruentes
com os mais apreciados pela professora, mas também poderiam estar assumindo, dia após dia, essa forma
de masculinidade, pautada pela rebeldia, indisciplina e até mesmo pelo descaso pelas regras e tarefas
escolares, como a única fonte de aquisição de algum poder e prestígio no grupo de meninos da classe,
uma vez que em nossa cultura a masculinidade ainda se organiza em torno da posse do poder social.
No que se refere ao grupo dos estudantes de Fernanda tidos como intermediários, já nesse grupo
é possível tecer comentários a respeito de modelos de masculinidades e feminilidades, pois é a partir
desse grupo que as garotas passam a ser incluídas.
No caso especificamente dos meninos, Fernanda inseriu nesse conjunto tanto meninos que não
apresentavam problemas de comportamento como alguns com problemas disciplinares semelhantes aos
de Carlos, Davi e Manoel. Um bom exemplo foi o do aluno Lourival, citado por Fernanda como um dos
que tumultuavam as aulas e acabavam prejudicando os(as) demais alunos(as):
Algumas crianças têm essa dificuldade de se concentrar e que botam fogo no resto. São
alguns, não são todos, por exemplo: na sexta-feira o Lourival não veio. Aliás, não foi
nessa, foi em um outro dia que o Lourival não veio. É impressionante como a sala ficou
bem! Nossa [suspiro de alívio]. É muito perceptível isso (Fernanda).
Entretanto, o que diferenciava Lourival dos outros três meninos do grupo dos mais difíceis era
sua maior capacidade de avançar no conhecimento de forma independente da professora, mesmo que isso
levasse um pouco mais de tempo. Comentando exclusivamente sobre ele, Fernanda não o classificou
como um dos mais difíceis por má conduta, por ele ter facilidade no aprendizado: “Ele também é bom.
Ele está na faixa dos medianos. Ele tem também algumas facilidades”.
Com relação às garotas nesse grupo foram incluídas apenas as meninas que de modo geral
apresentavam uma postura compatível com o que Fernanda espera de seus(suas) alunos(as), com exceção
de Suzana47 que em vários momentos exibia um comportamento muito próximo ao de Carlos, Davi e
Manoel.
46
Silva (1999) e Palomino (2003).
47
Uma das meninas selecionadas para o estudo de caso.
74
Rosemeire dos Santos Brito
Entretanto, convém salientar que suas práticas disruptivas não chegavam a comprometer ou a
prejudicar de modo significativo o andamento das aulas. Em várias ocasiões observei-a brincar com um
estojo de canetas hidrográficas, ler um livro enquanto a professora explicava a matéria e, em
determinadas situações, conversar com os colegas e circular pela classe, buscando fugir um pouco do
universo da sala de aula.
Mas, diferentemente do que eu imaginava no início da pesquisa de campo, Fernanda não a
considerava uma aluna difícil, pois ela era muito afetiva e tinha facilidade de aprendizagem, ou seja,
conseguia aprender de forma mais rápida que seus colegas Carlos, Davi e Manoel, embora nem sempre
apresentasse o comportamento adequado e/ou o rendimento Plenamente Satisfatório:
A Suzana é uma garota muito esperta. Ela tem facilidade de aprendizagem, mas ela é
muito dispersa, muito viagem. Ela sai daqui e brinca, enfim, muitas vezes também sai
brincando, se dispersa na brincadeira, mas é muito afetiva. Está sempre em contato,
querendo dar beijo, conversar, mas em termos de rendimento ela é boa até, não tem
grandes problemas (Fernanda).
Fernanda não teceu comentários específicos sobre as demais meninas, e somente com o estímulo
da pesquisadora forneceu um comentário que tendia a desvalorizar uma feminilidade mais passiva.
Enquanto eu ainda estava influenciada pelas referências bibliográficas que vinculavam o baixo
rendimento dos meninos ao mau comportamento em sala de aula, solicitei que ela me fornecesse sua
opinião sobre uma garota da classe que, por corresponder ao perfil de aluna descrito por Silva e
colaboradores (1999) e por Palomino (2003), me fazia crer que ela poderia ser muito apreciada pela
educadora.
O discurso de Fernanda, contudo, não confirmou essa minha suposição; essa postura não era a
mais valorizada: “A Nicole, ela é uma criança que facilmente ela pode sumir na sala. Ela é daquelas
crianças que some, se você não ficar ligado”.
Por tais razões, o grupo dos intermediários parecia combinar dois modelos de feminilidade. De
um lado, uma feminilidade passiva, que correspondia ao modelo tradicional encontrado em tantos
trabalhos,48 já criticado49 no primeiro capítulo e que não se adequava ao esperado pela professora
Fernanda e também posturas mais assertivas. Convém destacar, porém, que o primeiro padrão só era
desvalorizado em meninas que manifestavam alguma dificuldade de aprendizagem, como era o caso de
Nicole:
Ela tem algumas dificuldades, mas está dentro da média. Na escrita ela come muita
bola, inclusive ortografia, produção de texto também. A letrinha dela também é um
problema (Fernanda).
48
Silva (1999) e Palomino (2003).
49
Ver Carvalho (2001b).
75
Rosemeire dos Santos Brito
Portanto, a maior vigilância que Fernanda exercia sobre as garotas desse grupo dos
intermediários parecia ter endereço específico: aquelas que apresentavam problemas no aprendizado e
que ao mesmo tempo exerciam uma feminilidade mais dependente, menos assertiva, menos autônoma, o
que seguramente não era o caso de Suzana.
Já no universo masculino, Fernanda não apontou grandes problemas. Nesse grupo estavam tanto
alunos considerados indisciplinados, como Lourival, quanto outros com uma postura que ela denominou
de superadequada.
Ao que tudo indica, esses garotos combinavam a dose certa de masculinidade: conseguiam ser
aceitos pelos colegas do mesmo sexo, sem confrontar de forma tão intensa e constante as normas
escolares. Eram estudantes que sabiam separar o mundo da quadra esportiva e do pátio do universo da
sala de aula, e por isso eram mais concentrados, autônomos, embora em algumas ocasiões precisassem
rever certos pontos da matéria para conseguirem aprender. Nos termos de Carvalho:
São garotos que desenvolvem a habilidade de equilibrar-se entre o mundo do pátio de
recreio e da cultura dos meninos e o mundo da sala de aula, descobrindo ou
inventando uma posição masculina bem-sucedida em meio a essa tensão (Carvalho,
2001b, p. 567).
Por fim, com relação ao discurso de Fernanda sobre seus melhores alunos, dois garotos foram
alojados nesse conjunto: um que ela via como um aluno com uma postura superadequada e o outro que,
embora não apresentasse o mesmo comportamento, também se mostrava um bom aluno, pois estava
sempre participando, dando sua contribuição.
Pensando a masculinidade como uma configuração da prática de gênero que se realiza também
no intercâmbio com outras categorias, é interessante notar que a professora os definiu como aqueles que
aprendem apesar da escola, em suma, como aqueles que apenas complementam sua formação com a
educação escolar, ou seja, como os possuidores de um amplo cabedal de conhecimentos anteriores e
paralelos à escolarização.
Com base nessas observações, pareceu-me que a escola valorizava mais um padrão de
masculinidade pautado pelo uso da racionalidade e por uma relação instrumental com a escolaridade. Em
outras palavras, a aquisição de conhecimentos via instituição escolar permitia o fornecimento de uma
série de credenciais que podiam ser ao mesmo tempo instrumentos de ascensão social e/ou de manutenção
de determinado status, o que Connell (1995a) chamou de Masculinidade da Razão.
Para esse autor, como também para Gilbert & Gilbert (1998), esse modelo de masculinidade é
quase inexistente nas camadas populares e fortemente presente nos setores médios intelectualizados. Por
tal razão, a renda monetária pareceu não ser suficiente para explicar o rendimento escolar. Na verdade,
era necessário haver a combinação de poder monetário com valores intelectuais para que a escolarização
adquirisse um lugar central na vida de crianças e suas famílias.
76
Rosemeire dos Santos Brito
Nesse sentido, o perfil do bom aluno descrito por Fernanda se aproximava muito mais dos New
Enterprisers e dos Academic Achievers descritos por Mac an Ghahill (1994). Os primeiros
caracterizavam-se pelo desenvolvimento de uma masculinidade comprometida com os valores
pragmáticos da racionalidade, uma apropriação instrumental do conhecimento, cuja aquisição
estava voltada para o planejamento estratégico de carreiras economicamente promissoras.
Os segundos praticavam um modelo de masculinidade fundamentado no domínio de um amplo
capital cultural, na maioria das vezes anterior ao ingresso na escola, razão pela qual viam a si mesmos
como detentores do real conhecimento, sentindo-se dessa forma autorizados a questionar a autoridade de
professores e o aprendizado dos colegas.
Em vista de todos esses argumentos, acredito ser preciso, cada vez mais, investir em pesquisas
que questionem os processos de construção das múltiplas masculinidades, uma vez que eles se
desenvolvem em sua intersecção com outras determinações sociais, entre as quais, neste estudo, destaco a
classe. “Na classe média o modelo de masculinidade está mais calcado na racionalidade e
responsabilidade do que no orgulho e agressividade” (Connell, 1998, p. 147).
Assim, exercer essa gradação de masculino significa não só pertencer a determinado meio social,
como ainda ter acesso a determinado conjunto de informações e conhecimentos e também ter à disposição
tecnologias que não estão totalmente acessíveis a uma ampla parcela da população usuária da rede pública
de ensino.
Em nenhum momento a professora demonstrou conhecer essas implicações, o que reafirma a
necessidade de cada vez mais desvendar a complicada trama nas quais as múltiplas masculinidades e
feminilidades são elaboradas.
Restou-me a tarefa de descontruir os relatos da professora com relação às meninas pertencentes a
esse grupo. Tarefa muito mais difícil que a anterior, uma vez que as condutas perturbadoras de alguns
garotos eram bem mais visíveis, razão pela qual a professora, em nossas conversações, ocupou-se mais de
comentar esses casos.
Entretanto, trabalhando com o verdadeiro eixo do discurso, isto é, com a questão autonomia
versus dependência, foi possível estabelecer uma analogia entre os meninos e as meninas desse conjunto.
Da mesma maneira que no universo masculino, aqui também havia o caso de uma estudante com
problemas disciplinares semelhantes aos de Carlos, Davi e Manoel, sem que isso merecesse uma
avaliação negativa de Fernanda.
77
Rosemeire dos Santos Brito
Ao contrário, Fernanda a considerava uma boa aluna, por sua facilidade de aprendizagem,
rapidez de raciocínio e excelentes resultados. Uma aluna, portanto, com mais autononomia do que muitas
meninas que apresentavam uma postura mais condizente com as normas.
Sandra foi outra garota que Fernanda fez questão de indicar como uma de suas melhores alunas,
e também porque ela se mostrava independente, participativa, tinha estímulo no meio50, era criativa,
enfim, apresentava um forte compromisso com a escola, questão vital para o sucesso no aprendizado, no
olhar da professora.
Já as outras meninas, além de terem certo grau de independência, também apresentavam uma
postura adequada; elas intervinham mais ocasionalmente nas aulas, quase sempre quando estimuladas
pela professora.
Tal como havia ocorrido no universo masculino, novamente me vi às voltas com a valorização
de um modelo de feminilidade pautado na racionalização da educação, no alto investimento nas
credenciais escolares por parte da família e no planejamento da trajetória educacional, como ficou
evidente no caso de Valéria, relatado por Fernanda:
A melhor aluna, na minha opinião, que pega as coisas com muita facilidade, tem
interesse e tudo é a Valéria. Essa menina era do primeiro ano. Ela entrou no primeiro
ano nessa escola esse ano. Os pais pediram para ela compensar. Ela fez algumas
avaliações, passou pela banca examinadora [risos] e ela foi promovida para o segundo
ano, já foi direto para o segundo ano. Isso foi na segunda semana de aula (Fernanda).
Apesar de a escola pesquisada ser uma instituição que assume como compromisso trabalhar com
a diversidade e/ou heterogeneidade social e cultural de seus alunos, a análise dos depoimentos da
professora permite afirmar que esse objetivo ainda está longe de ser atingido.
De um lado, por haver uma forte valorização de um modelo de estudante pertencente aos setores
médios da população que não corresponde à totalidade do corpo discente daquele estabelecimento de
ensino.
De outro lado, esse discurso também fez vir à tona a ausência de uma compreensão mais
articulada do processo de construção social do gênero, que é sempre conflitante, contraditário, dialético e
que influencia e também é afetado por categorias sociais como classe e raça51. Por essa razão, os estudos
de caso52 mostraram-se vitais para a compreensão mais apurada desse processo.
50
Sua família supervisionava sua escolarização.
51
Neste estudo, contemplamos apenas a análise da classe social em sua intersecção com as múltiplas
masculinidades e feminilidades. Dada a complexidade do pertencimento étnico e racial, não foi possível
considerar essas duas categorias na análise, pois isso certamente exigiria uma investigação de maior
envergadura.
52
Vale lembrar que, entre os três alunos, somente Carlos foi selecionado para posterior estudo de caso,
conforme critérios já descritos no segundo capítulo.
78
Rosemeire dos Santos Brito
Fernanda se referia a meninos e meninas como se todos tivessem o mesmo pertencimento social.
Talvez a professora não tenha conhecimento de que as práticas sociais e/ou a configuração de gênero em
determinada estrutura social são totalmente diversas de outras e que, em razão disso, as masculinidades e
as feminilidades são sempre múltiplas.
Isso demonstra a necessidade de assumirmos, de fato, um compromisso sério no sentido de cada
vez mais inserir essa temática no seio do debate acadêmico e de modo especial na temática do fracasso
escolar.
No intuito de contribuir para a ampliação e o aprimoramento desse debate, no próximo capítulo
apresento a análise dos relatos infantis que possibilitou verificar as continuidades e as rupturas entre a
visão das crianças e os modelos da professora.
Somada a isso, a visão das famílias dos quatro estudantes selecionados possibilitou encontrar
mais fundamentos para as diferentes construções de masculinidades e feminilidades, que passavam mais
ou menos intensamente por aspectos como o fomento da autonomia e a questão do currículo oculto.
CAPÍTULO IV – A VISÃO DAS CRIANÇAS E SUAS FAMÍLIAS
4.1) O discurso de estudantes, professora e famílias: simetrias e assimetrias
A análise do discurso da professora mostrou que o que mais prejudicava o rendimento escolar
era a ausência de autonomia, característica fortemente presente nos estudantes que haviam apresentado o
pior desempenho no decorrer do ano letivo.
Nesse sentido, diferentemente do que foi constatado por Silva e colaboradores (1999) e por
Palomino (2003), a essência das considerações de Fernanda sobre o sucesso/insucesso estava na
existência ou não de independência em cada criança. Aquelas que conseguiam aprender mais rápido, sem
precisar constantemente do auxílio da professora e dos colegas, tinham mais chances de ser consideradas
boas alunas. Já as que não apresentavam tais traços e, além disso, exibiam condutas consideradas
disruptivas, tinham menos possibilidades de ser avaliadas de forma positiva.
Uma autonomia de aprendizado como essa permitiria que a escola se tornasse apenas um
complemento à educação, realidade, porém, muito distante dos setores populares brasileiros. Tal
concepção de estudante refere-se muito mais a crianças das camadas médias da população, em geral não
usuárias da rede pública de ensino.
Esse não é um aspecto que constitui grande novidade na literatura sobre o tema do fracasso
escolar. Vários autores já o salientaram,53 embora tenham sido raros os estudos dedicados a analisar o fato
do ponto de vista das relações de gênero.
53
Ver página 17, nota no 2.
79
Rosemeire dos Santos Brito
O exame de algumas preciosas referências mostrou que dentro desse modelo ideal de estudante
está o desempenho de um padrão de masculinidade e/ou feminilidade também próprio dos setores médios,
pautado na racionalidade e em um intensivo investimento na educação.
Ao comparar os relatos infantis com as explicações fornecidas pela professora, pude perceber em
alguns momentos certa continuidade entre os dois discursos. Em outros relatos, todavia, as crianças
explicitaram não ter para si o mesmo modelo de aluno que Fernanda, apresentando outras
possibilidades de compreensão de um mesmo fenômeno ou ainda outras formas de vivenciar o feminino e
o masculino.
A principal concordância reside no fato de que em todos os grupos entrevistados percebi uma
forte vinculação de rendimento escolar com bom e/ou mau comportamento em sala de aula e, por
conseqüência, com uma ou mais formas de masculinidades e feminilidades.
No primeiro momento, todos(as) os(as) estudantes pareciam acreditar que a falta de
concentração, que resultava em indisciplina, certamente levaria ao malogro escolar. Portanto,
reconheciam que atitudes formadoras de uma cultura antiescola trariam poucas chances de sucesso no
desempenho escolar.
Talvez daí decorra o alto grau de importância que deram à construção da imagem de bom(a)
aluno(a) através de uma conduta considerada adequada. Para esses(as) estudantes, o próprio sentido da
aula relacionava-se à idéia de que o aluno deveria permanecer quieto, atento, concentrado nas lições e
obedecendo à professora:
— Na sala de aula não é lugar de fazer bagunça.
— O que tem que fazer na sala de aula?
— Estudar, fazendo silêncio, concentração, não brincando na sala de aula (Luciana).
— Porque não é o lugar para ficar brincando, é para prestar atenção, estudar, porque
a professora está explicando a lição. Tira a atenção dos amigos (Aline).
— Eu acho que a pessoa deve ser assim: o aluno tem que prestar atenção quando a
professora explica (Lourival).
— Tem que prestar atenção, estudar, em casa estudar, na classe também, aí (...), na
avaliação, aí você pode conversar sobre o assunto (Vicente).
Como o sentido da aula parecia ser a obediência à professora e às regras escolares, as crianças
aceitavam que poderiam não ser bem atendidas em suas solicitações caso não apresentassem o padrão de
conduta esperado:
80
Rosemeire dos Santos Brito
Porque ele não estava prestando atenção na aula, ele estava viajando. Por que a
professora ia gastar a voz dela? Ele devia ter prestado atenção, se ele tivesse prestado
atenção, por que ela ia explicar para ele? (...), Por que ela vai falar à toa? (Carlos).
Quando você chega na aula, você está aprendendo as coisas, se você chegar brincando
(...), e depois vai ter uma prova, estava brincando a semana toda, a professora brigou,
mas ela continuou, aí ela ficou sem recreio, aí na hora que chega a prova, aí ela
falando e pondo a mão na testa: “Aí como é que faz esse exercício?” (Sandra).
Porque isso é uma coisa muito feia, a professora está dando uma lição e você não
prestar atenção, você não aprende nada, aí quando você crescer e for para uma
faculdade de alguma coisa, você não vai saber nada (Marisa).
Tudo indicava que os alunos(as) tinham um claro entendimento de que o exercício de uma
masculinidade e/ou feminilidade próxima do que Connell (1995) denominava de protesto diminuía suas
possibilidades de triunfo escolar. Eles(as) demonstravam também saber que esse não era o modelo
valorizado pela instituição escolar, com base no julgamento da professora.
Como decorrência disso, tanto meninas quanto meninos expressaram que se empenhavam para,
no mínimo, conseguir equilibrar-se entre os dois pólos opostos, ou seja, no dia-a-dia da sala de aula
procuravam apresentar uma dose equilibrada de masculinidade e feminilidade pautada em um
comportamento racional, disciplinado, mas também em atitudes ocasionais de não concordância com as
normas e a rotina escolar, bem como com os padrões de masculino e feminino mais estimados.
Nesse sentido, sucesso e/ou fracasso escolar teriam como eixo explicativo a boa conduta, o que
para muitos significa obediência irrestrita aos ordenamentos de Fernanda.
Do ponto de vista do gênero, o perfil do(a) bom(boa) aluno(a) ainda se encontrava associado ao
exercício de uma masculinidade e/ou feminilidade silenciosa e passiva, razão pela qual houve certa
unanimidade na identificação de alguns meninos que não se conformavam com esse modelo, como os
piores alunos da classe.
Apesar disso, alguns(mas) estudantes apontaram alternativas para essa visão mais geral; eram
crianças que não viam como incompatíveis outras maneiras de afirmar sua identidade de gênero. Foi o
caso da aluna Nivia, que apresentava excelentes resultados escolares, embora tivesse uma postura muito
parecida com a dos garotos perturbadores.
A garota era tida como uma aluna que brincava durante a aula, gritava com a professora e a
desrespeitava, isto é, como alguém que ousava se portar de forma diferente do que tradicionalmente vem
sendo visto como o comportamento natural do corpo discente feminino.
No entanto, durante a entrevista com o grupo de garotas, no qual ela estava incluída, percebi que
Nivia apenas manifestava um padrão de feminilidade mais conflitante com o estereótipo tradicional. Sua
postura era mais questionadora, não se resumia à exposição de idéias durante as aulas; Nivia ultrapassava
esse limiar, questionando e ironizando as próprias atitudes da professora em sala de aula: “Uma boa
81
Rosemeire dos Santos Brito
atitude é fazer a prova direito, não brincar na aula, não gritar, respeitar a professora e também não ficar
cinco minutos sem recreio, nem dez, nem quinze, nem vinte”.
Tal exemplo é de vital importância para que a escola possa não só trabalhar com uma visão mais
plural de masculinidades e feminilidades, mas, sobretudo, compreender que as crianças não são meros
receptáculos de prescrições sociais transmitidas de geração a geração pelas instituições.
O mesmo tipo de ruptura foi encontrado na entrevista conduzida com alguns garotos. A maioria
demonstrou crer que o comportamento de um garoto não pode se pautar apenas pela quietude e
observância às normas e aos acordos estabelecidos com a professora (como no exemplo abaixo), e outros
meninos também apresentaram visões mais alternativas de vivência da masculinidade:
— O que vocês acham de um menino que faz toda a lição, não faz bagunça?
— Ele é muito chato, ele deveria ser um pouquinho mais bagunceiro. É da natureza do
homem (Robson).
Percebi, então, que para alguns garotos a experiência da masculinidade era vivenciada de uma
forma mais agressiva e assertiva, o que de certo modo correspondia ao estereótipo tradicional de meninos
na educação, exposto em outros trabalhos.
Essa opinião, no entanto não era compartilhada da mesma maneira por todos os garotos
entrevistados. Durante a condução da entrevista com o grupo em que se encontrava Robson, outros
colegas apresentaram uma alternativa diferente de afirmação da identidade de gênero no contexto escolar,
tal como se nota no contra-argumento oferecido pelo aluno Wellington: “Homem, cada um tem o seu
jeito”.
Wellington também considerou que a agitação poderia estar conectada com uma posição mais
participativa em sala de aula, e não com uma visão de comportamento natural de todos os meninos:
Ele tem que ser um pouquinho mais agitado porque não fica bem ele ficar muito quieto
assim na sala e quando a professora levantar (...), perguntar, ele nem vai poder
levantar a mão (Wellington).
Portanto, ao mesmo tempo em que demonstravam compreender precisamente as expectativas da
professora com relação a seu desempenho e comportamento, esses meninos também me mostraram que
não entendiam outros pontos, razão pela qual creio ser preciso trazer essas descontinuidades à tona.
Eles pareciam compreender que o modelo de aluno valorizado por Fernanda passava pela idéia
do estudante bem-comportado, assíduo, responsável e comprometido com a escola.
Os relatos infantis e as observações revelaram que as garotas têm sido mais bem-sucedidas na
tarefa de combinar brincadeira e estudo. Em várias ocasiões notei que, enquanto copiavam os exercícios
do quadro-negro, elas conversavam trocavam bilhetes, material escolar, e que só mostravam às colegas os
brinquedos que haviam trazido de casa quando não estavam sendo observadas.
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Rosemeire dos Santos Brito
A discrição caracterizava as bagunças femininas, tal como relatado por Bernardes (1989) e
Carvalho (2001b). Já as brincadeiras e as conversas dos garotos quase sempre constituíam verdadeiras
interrupções na aula, sempre exigindo uma intervenção mais rigorosa de Fernanda e, não raro, uma
punição mais severa. Em mais de uma ocasião Carlos perdeu o recreio por causa de um comportamento
indisciplinado, além de uma vez ter sido obrigado a limpar todas as carteiras da classe. Em outra
circunstância, o castigo de Robson foi ter de ficar sentado na última carteira da primeira fileira,
totalmente isolado dos colegas.
Isso me possibilitou perceber, de um lado, uma configuração diferente da encontrada por Silva
(1998) e Palomino (2003), uma vez que em ambas as pesquisas foram feitas considerações com relação a
meninos e meninas no singular, com meninos ativos versus meninas passivas. De outro lado, assim como
para Bernardes (1989) e Carvalho (2001b), verifiquei que as meninas também promoviam alguma
desordem; a diferença é que elas conseguiam elaborar estratégias mais bem-sucedidas de indisciplina, de
modo a não perturbar tão intensamente o andamento das aulas.
Com muita perspicácia, algumas meninas esclarecem que as conversas, embora
fazendo parte do repertório de ações dos meninos, constituem o modo predominante de
as meninas fazerem bagunça. Entretanto, como muitas vezes o fazem reservada e
dissimuladamente, nem sempre a professora toma conhecimento dessas ações
(Bernardes, 1989, p. 164).
No exemplo abaixo, uma garota, Luciana, a princípio chegou a afirmar que jamais tinha visto
meninas fazendo bagunça: “Eu nunca vi menina fazendo bagunça”, mas em seguida outra colega
assegurou que sim:
— Já, sim, a Suzana (Laura).
(...), ah, elas ficam correndo na classe (Luciana). (...) A Nice fica fazendo tudo,
qualquer coisa: “Ai me empresta o apontador”, daí ela vai e fala: “Não pega na sua
caixa ou senão pega com teu amigo do lado”.
Também Aline admitiu que as garotas eram mais discretas em suas interrupções das aulas: “Elas
são mais reservadas”, restringindo seus momentos de diversão a conversas mais silenciosas e de menor
duração:
— Eles ficam brigando, levando papel com palavrão (Aline).
— E as meninas, como é que as meninas fazem bagunça?
— Conversando (Aline).
— E isso não atrapalha?
83
Rosemeire dos Santos Brito
— Não, a gente conversa baixo, não alto como eles (Aline).
Desse modo, para as estudantes do sexo feminino a indisciplina dos meninos também era mais
incômoda que a das garotas:
Só tem uma menina que faz brincadeira lá, a Suzana; menino tem o Manoel, o Davi, o
Adriano, o Carlos, o Manoel fica levantando e vai catar coisa em outro lugar ou fica
falando na aula, o Lourival fica levantando para ir fazer gracinha, fica fazendo
gracinha, o Adriano faz na hora errada (...) (Joana).
— Você acha que tem alguma coisa que os alunos fazem que atrapalha a aula?
— Sim as gracinhas do Lourival, porque ele fica levantando sem motivo, não é para ir
perguntar (...), catar uma borracha que caiu no chão, pegar alguma coisa na caixa,
não, ele fica levantando para ir fazer gracinha (Bianca).
As observações feitas nesta classe mostraram que as garotas também apresentavam
comportamentos desregrados. Entretanto, a atitude delas não chegava a incomodar o decurso das aulas
nem as explicações da professora Fernanda:
Na sala o que eu mais faço, assim de bagunça mesmo que eu faço, (...), é que na sala eu
começo a conversar, mas eu converso quando a professora deixa, a Antonia54 não
começou a conversar, começou a mexer no estojo e passear pela sala; tem o Lourival,
ele faz a mesma coisa, começa a conversar, passeia pela sala, fica bagunçando, já
virou até a carteira do outro colega (Sandra).
Bom os meninos, eles ficam fazendo bagunça, saindo da carteira, essas coisas, tanto é
que a única menina que faz bagunça é a Suzana, e ela faz pouca coisa, ela fica na
carteira, não fica se jogando no chão, não joga o estojo no chão por querer. Atrapalha
um pouco, só que a dos meninos atrapalha mais ainda, porque aí a professora ouve o
barulho, aí ela não fica concentrada em fazer as coisas com os alunos (Marisa).
Eles ficam bagunçando na aula, o Lourival fica dançando na aula, mostra a língua,
mostra a bunda. A Suzana fica falando, (...) é que as meninas, elas fazem muito menos
bagunça que os meninos, apesar de que algumas meninas também fazem (Yone).
É, ele fica se derrubando da cadeira (Nivia).
Na visão dos meninos, isso ocorria porque a professora achava que as meninas eram mais
comedidas:
— Ela acha que as meninas é mais quietinha (Jefferson).
— É mas depois...(Manoel).
54
Nome dado à garota de uma das situações propostas para discussão durante a entrevista.
84
Rosemeire dos Santos Brito
— Quando a professora vira as costas, as meninas: “Aí vocês são tudo folgado”
(Carlos).
— Um dia eu estava lá na classe, aí eu saí para a fila da perua lá embaixo, aí chegou a
Nice, me deu uma mochilada na cabeça com um ferro que tinha lá, eu me machuquei
(Robson).
Em outra situação, vários meninos descreveram uma briga ocorrida entre duas meninas:
— A Nivia e a Nice só que são as meninas mais bagunceiras da classe, é mais a Nivia
do que a Nice (Wellington).
— A Suzana (Robson).
— E a Bianca também, já deu uma briga no recreio, ela e a Luzia (...), ela empurrou a
menina no chão, deu a maior barrigada na cabeça (Wellington).
— E daí a Luzia deu o maior xingão na Bianca (Lourival).
— A Bianca deu o maior soco, as duas deitaram assim no chão (Wellington).
O que podemos extrair de tudo isso é a tendência a uma relação mais conflitiva entre professora
e meninos.Ela os considerava agentes da perturbação, razão pela qual alguns deles sentiam-se mais
intensamente repreendidos e vigiados pela professora:
A Francisca..., eu estava fazendo a lição, acho que era de Ciências (...), aí ela começou
a falar comigo, aí eu falei: “Não vou responder nada”, comecei a fazer a lição, ela
começou a perguntar umas coisas lá, aí depois eu não fiz nada e depois a professora
me deu bronca (Rafael).
Eu estava na sala, aí eu estava sentado junto com a Suzana, aí ela estava conversando
comigo, aí eu estava quieto e a professora: “Aí, Adriano, para de conversar, senta lá
no fundo” (Adriano).
É quando eu esqueço de fazer a lição, a professora fica furiosa, mas quando é a Aline a
professora fala assim: “Ah, você esqueceu”, daí a professora fala assim: “Ah, tudo
bem”, quando é eu: “Você vai ter que fazer aqui no recreio” (Roberto).
O que eles não percebiam é que as meninas lançavam mão de estratégias de bagunça mais
circunspectas e de menor duração temporal que os meninos. Durante as observações, percebi meninas
lendo outros assuntos na aula, brincando com bonecas trazidas de casa, conversando em voz baixa quando
a professora não estava olhando... Muito raramente faziam algo que Fernanda pudesse notar e repreender.
Situação semelhante já tinha sido apontada por Bernardes (1989) e Carvalho (2001b) em seus trabalhos,
em que meninos eram mais freqüentemente vistos como indisciplinados em razão dessas diferenças.
Depois quando a professora vira as costas, as meninas ficam lá fazendo bagunça,
depois quando a professora chega, elas: “Vamos ficar quietinhas para a gente não
levar bronca”. Elas ficam mandando carta, depois: “Não fui eu, eu não escrevi
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Rosemeire dos Santos Brito
nenhuma carta”. Depois quando elas querem, elas escondem para não ser elas. “Foi o
Carlos que escreveu para mim.” Elas ficam fazendo isso (Manoel).
Nas meninas ela só fala assim: “Pára” [tom de voz mais baixo], e nos meninos ela fala
assim: “Se você não parar, vai para a lousa” (...). Nas meninas ela só faz assim: “Fica
quieta”. E nos meninos: “A próxima tua eu vou escrever seu nome lá na lousa” [tom de
voz mais alto] (Carlos).
É, com os meninos ela engrossa a voz, mas com as meninas não. (...) Com os meninos
ela faz assim, ela fala: “Pára senão você vai ficar cinco minutos sem recreio”, aí se ele
continuar ela coloca cinco, se ele continuar ela coloca dez, vinte..., aí quando chega no
vinte ela manda ele sair da sala e ficar para fora (Wellington).
Jefferson também disse que várias vezes os garotos eram convidados a deixar temporariamente a
sala de aula: “Ela manda a gente dar uma volta, para a gente sossegar o facho”.
Decorrente dessa queixa, havia outra: de que a professora atendia mal os garotos ou tirava menos
dúvidas deles. Muitos afirmaram ter passado pelo mesmo tipo de situação que lhes foi apresentada na
entrevista:
Às vezes, a professora na minha prova, ela fala: “Eu já te expliquei e não vou mais te
explicar” (Carlos).
Foi assim, ela estava conversando (...), daí eu levantei a mão (...), ela estava fazendo
um negócio, ela ficou meio estressada assim, falou tão rápido que eu não..., aí eu fui lá
e tirei S (Wellington).
Também um dia eu estava assim em Português, Ciências quer dizer, eu estava assim
com a mão levantada, a professora não quis me atender, eu estava conversando, aí eu
levantei a mão que eu não entendia e ela não me atendeu, daí eu desisti, quando eu vi
eu tinha tirado NS (Lourival).
Alguns autores, entretanto, apontam para a inexistência dessas discrepâncias. Na verdade,
diversos estudos sustentam que professores preferem ensinar meninos por considerá-los mais
potencialmente inteligentes que suas colegas do sexo feminino. Walkerdine (1995) fala em meninas vistas
por professores como “esforçadas”55 e meninos como “inteligentes”.
Constatação semelhante pode ser encontrada na pesquisa desenvolvida por Silva e colaboradores
(1999), na qual, apesar da maior ocorrência de insucesso escolar entre o alunado masculino, esses
estudantes ainda continuam sendo percebidos pelos(as) professores(as) entrevistados como os mais
capazes intelectualmente.
Considerar os relatos dos meninos sem, porém, dialogar com esses estudos nos aproximaria da
tese defendida por Pollack (1999) de que meninos seriam as atuais vítimas da educação por supostamente
ser obrigados a vestir uma máscara de bravura que os obrigaria a desempenhar uma masculinidade
55
“Uma pessoa esforçada é uma pessoa que no fim chega lá, mas que é terrivelmente lenta, que não tem
estilo, genialidade ou criatividade” (Walkerdine, 1995, p. 208).
86
Rosemeire dos Santos Brito
fundamentada na agressividade e na ausência de manifestação de sentimentos nas várias relações e
instituições da vida social. Aqueles que não a utilizassem corretamente seriam repreendidos nas escolas e
culpabilizados por quaisquer problemas que afetassem as garotas.
Entretanto, não só a literatura mas também os relatos das crianças entrevistadas mostram que tal
afirmação não condiz com o contexto real da educação de meninos e meninas. Alguns dos garotos que
afirmaram ser mal atendidos pela educadora em outros momentos manifestaram idéia oposta,
reconhecendo que as punições eram aplicadas de forma igualitária, independentemente de ser dirigida a
um aluno ou a uma aluna.
Em outros termos, assim como a professora demonstrou cautela com generalizações, ressalto que
os próprios meninos admitiram essa pluralidade. Apesar de alguns terem denunciado punições mais
rigorosas para o alunado masculino, também explicitaram que tal fato ocorria apenas com uma pequena
parte desse conjunto. As punições mais rigorosas destinavam-se a casos muito específicos, em geral
aplicadas aos alunos mais indisciplinados, aqueles poucos que compunham o grupo que Fernanda
denominou de os mais difíceis: Carlos, Davi e Manoel.
Embora Carlos tivesse dito anteriormente que a professora censurava com mais severidade os
garotos, quando questionado sobre em quem a professora dava mais bronca, localizou alguns casos
particulares:
Ela só dá bronca no Lourival e no Manoel, porque quando a gente estava com a
Sandra, daí o Manoel falou: “Posso ir no banheiro?”, daí ela falou: “Não”, daí o
Manoel falou: “Ai que merda”, e chutou a parede (Carlos).
Assim como Carlos, o aluno Robson também indicou quais eram os garotos mais repreendidos,
entre eles alguns que compunham o grupo dos mais difíceis:
— Você já viu isso acontecer alguma vez na sua classe?
— Já, com o Manoel, o Carlos, o Lourival, o Roberto, o Davi, o Adriano (Robson).
Do mesmo modo, quando indagadas a esse respeito, também as garotas localizaram alguns casos
individuais:
O Lourival e o Davi, eles ficam lá e ficam brigando toda hora, o Lourival fica jogando
estrelinha, eles ficam dando porrada em cada um, ficam caindo no chão” (Luciana).
O Davi, o Manoel, o Adriano, o Lourival, o principal que faz bagunça é o Lourival, e o
Carlos às vezes (Suzana).
A gente estava fazendo uma lição de Ciências e o Lourival falou assim para o Manoel,
para ir lá no armário, pegar o material e então eles começaram a chutar a mesa,
começaram a brigar, a professora veio e deu uma bronca neles (Nicole).
O Lourival, ele fica bagunçando demais, (...) eu sei que ele bagunça demais na aula,
um dos mais bagunceiros são o Lourival e o Manoel (Sandra).
87
Rosemeire dos Santos Brito
Quem leva mais bronca na classe é o Lourival e o Manoel (...), o Manoel tem mania de
ficar pulando nas carteiras e o Lourival tem mania de ficar fazendo gracinhas (...). O
Manoel fica gritando também e o Lourival fica no meio da aula correndo pela sala
(Darleide).
Bom, eles fazem mais do que as meninas, porque o Lourival ele fica se jogando no
chão, ele derruba o estojo por querer para todo mundo ir lá pegar, ele faz todas essas
coisas, os meninos fazem isso (...), jogar o estojo no chão, ficam fazendo barulho, ficam
gritando, às vezes pode até entupir o ouvido das pessoas de tanto gritar (Marisa).
Quem leva mais bronca é o Lourival e o Manoel (...), as meninas é a Suzana, não, a
Suzana e a Nivia (Darleide).
Esse tema se encerrou com a afirmação feita por Bianca, de que todos deveriam ser advertidos
quando estivessem atrapalhando a aula:
Está certo ela dar uma bronca nele, mas ela tinha que dar uma bronca nos dois, se ela
fica brincando; porque ela deu nele porque ele é menino e ela é menina, não; mas é que
todo mundo tem que levar bronca, porque se faz uma coisa errada, ela está dando aula
para aprender (Bianca).
As crianças, como se vê, pareciam ter uma compreensão semelhante à da professora: aqueles que
apresentassem comportamentos indisciplinados deveriam ser mais seriamente vigiados e repreendidos
quando a situação exigisse.
Em outras palavras, para esses estudantes também existiam alguns que punham fogo no resto56
que necessitavam de vigilância constante, ou por terem tendência a produzir um quadro de estagnação no
rendimento escolar, ou por poderem prejudicar o aprendizado dos demais colegas.
E, nesse sentido, para os estudantes o cerne das explicações atribuídas ao fracasso e/ou sucesso
escolar estava exatamente na questão comportamental. Bastava se comportar de maneira adequada,
respeitar a professora e ser obediente para obter bons resultados.
A autonomia aparecia como uma característica decorrente de uma boa conduta e não como algo
que poderia existir de forma independente dessa condição, tal como foi possível verificar ao analisar as
avaliações da professora sobre seus(as) alunos(as). Se para a professora o bom aluno era aquele que
podia aprender independentemente do que ela e a escola pudessem oferecer, para os estudantes
entrevistados o bom aluno era apenas o que apresentava um comportamento adequado. Por esse discurso
ficava evidente como os(as) alunos(as) desconheciam que a idéia de independência era o elemento que a
professora mais valorizava em um aluno(a).
Eles apenas sabiam que não podiam apresentar muitas dúvidas e/ou dependerem exclusivamente
das explicações dadas pela professora. Contudo, tanto meninos como meninas demonstraram desconhecer
que deveriam, necessariamente, ter capacidade de aprender independente da escolarização para poderem
ser vistos como bons alunos:
88
Rosemeire dos Santos Brito
Assim ela falava, falava e depois eu não entendia, ela falava e ele não entendia, quando
a professora vê: eu não vou te atender mais,tem que fazer do seu jeito” (Manoel).
Ah, eu ia perguntar para uma pessoa do lado (...), para outra pessoa. [E se ninguém
soubesse?] Ah, eu tentava sozinho (Carlos).
É, eu não estava entendendo a prova de Matemática, o segundo exercício do primeiro
trimestre (...), aí ela foi lá e disse assim, mas... com aquela voz de velha chata, eu pedi
de novo para ela explicar e ela: Eu pedi de novo para ela explicar, ela: “Não vou te
explicar mais, você que se vire”, aí eu também fiz a prova por minha conta (Nivia).
Porque eu estava na minha prova, acho que foi de História e Geografia, então a gente
estava fazendo o negócio lá sobre o Butantã e eu não soube responder a quarta, aí
fiquei tentando fazer, depois eu levantei a mão, a professora falou: “Yone, é isso, isso,
assim”, eu tentei fazer, aí daqui a pouco eu levantei a mão de novo, a professora:
“Yone, é isso, isso e isso”, aí eu não entendia, nenhuma vez que ela me falava, não sei
por quê (Yone).
(...) eu não consegui fazer, falei para a professora, a professora explicou tão rápido que
eu não entendi nada (Nice).
Portanto, não se tratava de mau atendimento a todo o universo do alunado masculino, como
facilmente poderíamos ser levados a crer. A atitude mais distanciada da educadora ocorria sempre com
alunos(as) que não eram tidos como os melhores da classe, o que me fez pensar haver nessas crianças
certo padrão de afirmação da identidade de gênero que a professora julgava inadequado ao ofício de
aluno. Trazer essas controvérsias para o cerne da pesquisa educacional sobre esta temática é um desafio a
todos os trabalhos que se propuserem a investigar trajetórias escolares diferenciadas entre meninos e
meninas.
Exposto o panorama sobre os relatos infantis, vejamos agora como os perfis dos quatro
estudantes selecionados para o estudo de caso e suas respectivas famílias dialogam com o modelo da
professora.
Eu tirei tudo Plenamente Satisfatório e todo mundo sabe
Pelas conversações travadas formal e informalmente com Fernanda, foram selecionados quatro
estudantes para estudo de caso: uma menina e um menino que apresentavam bom rendimento acadêmico,
um menino que concentrava resultados insatisfatórios em seu boletim e uma garota com um padrão de
conduta muito semelhante ao dos garotos perturbadores Carlos, Davi e Manoel. Essa garota foi escolhida
apenas em virtude desse aspecto, pois Fernanda não indicou nenhuma estudante do sexo feminino como
pertencente ao grupo dos mais difíceis. Outra menina foi apontada pela professora e alunos como a mais
56
Expressão cunhada por Fernanda.
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Rosemeire dos Santos Brito
indisciplinada, mas as observações em sala de aula mostraram que seus momentos de ruptura com a
ordem vigente eram bem mais ocasionais. Já a aluna Suzana quase todos os dias exibia um
comportamento alheio ao que se passava durante a aula. Em alguns momentos estava conversando com os
colegas, rindo, fazendo brincadeiras, em outros era vista lendo um livro ou perdida em pensamentos,
longe da classe, da aula, da professora, da escola.
No trabalho com essas duas duplas, tentei aprofundar a análise do discurso proferido por todos
os estudantes. Se para a maioria o perfil de bom aluno passava, em primeira instância, pela capacidade de
se comportar na mais perfeita conformidade com as expectativas da educadora, era preciso verificar como
esse padrão se refletia (ou não) na vida dos quatro alunos. Em que medida suas famílias apresentavam
rupturas ou continuidades com esse padrão?
Sandra vivia com uma irmã de treze anos e os pais em um bairro próximo à escola. A renda
mensal da família, de quatro mil reais, vinha do trabalho dos genitores. O pai tinha nível superior
incompleto e a mãe superior completo. Apesar disso, ambos trabalhavam em ocupações que não exigiam
esse grau de escolaridade: a mãe era secretária em uma universidade e o pai trabalhava como técnico
eletrotécnico em uma empresa privada. Não tive oportunidade de conhecer a residência da família, pois a
mãe de Sandra preferiu fazer a entrevista em seu local de trabalho.
Eduardo morava em um condomínio situado em um bairro razoavelmente próximo da escola,
com dois irmãos e uma irmã; mais uma irmã estava para nascer, na época da entrevista. O apartamento
parecia amplo, mas não o conheci por inteiro, pois a entrevista com a mãe de Eduardo foi feita na cozinha
e a com o pai na quadra poliesportiva. Os pais de Eduardo tinham nível superior completo, ambos
administradores de empresas. No final de 2002, porém, somente o pai estava trabalhando. A renda da
família era de cinco mil reais.
Carlos morava em uma casa de seis cômodos com os pais, uma irmã de onze anos e uma avó. A
casa era ampla e tinha um grande quintal. Na sala onde foi realizada a entrevista havia um computador ao
lado da televisão. Embora a casa fosse ampla e denunciasse a provável boa renda da família, não observei
a presença de livros e jornais nos vários espaços. A renda familiar decorria do trabalho dos pais e girava
em torno dos quatro mil reais.
Suzana morava em um pequeno apartamento próximo à escola, com sala, cozinha, banheiro e
apenas um dormitório, dividido pela menina e os pais. A mãe trabalhava como funcionária pública em
uma universidade e o pai era cobrador de ônibus, o que lhes possibilitava uma renda mensal de mil e
quinhentos reais.
90
Rosemeire dos Santos Brito
Os primeiros estudantes entrevistados foram Sandra e Eduardo, vistos pela professora como a
dupla de bons alunos, os estudantes com facilidade de aprendizagem, conhecimentos prévios, capacidade
de concentração, disposição para participar da aula e, sobretudo, mais independentes. Portanto,
necessitavam menos do auxílio da professora.
Informei a todos, na sala de aula, quais tinham sido os quatro estudantes escolhidos para os
estudos de caso. Pensei que enfrentaria mais dificuldades na entrevista com esses dois alunos,
especialmente com Eduardo, que raramente falava durante as aulas, ao contrário de muitos de seus
colegas, que a todo instante indagavam sobre as razões da minha presença ali. Eles queriam, a todo custo,
encontrar uma resposta para isso, buscando saber o que eu fazia, o que estava escrito em minhas
anotações, para o que elas serviam, além de se preocuparem com a possibilidade de eu ser uma espiã que
poderia contar a Fernanda todas as suas travessuras.
Eduardo expressou o desejo de não ser entrevistado junto com Carlos, pois achava que isso
poderia colocá-lo em uma situação de comparação explícita, prejudicial a ambos. Em suas próprias
palavras: “Como vai ser essa entrevista? Porque eu fui sorteado e o Carlos também. Eu tirei tudo PS e ele
NS, mas ele está melhorando. Eu não quero me gabar diante dele” (Eduardo).
Tomando esses cuidados, saí da sala de aula primeiro com Sandra e Eduardo para irmos
conversar em outra classe. Grande foi minha surpresa diante do desembaraço e fluidez do diálogo
estabelecido justamente com Eduardo. Ele não só estava à vontade para falar como em vários momentos
mostrou-se orgulhoso do prestígio que desfrutava com a professora, o que certamente não poderia ter
feito na presença de Carlos. Comportamento semelhante também notei em Sandra, embora com menor
intensidade.
Os dois alunos reafirmaram o que Fernanda havia comentado a respeito da postura e do
rendimento escolar deles. Sem dificuldade reconheceram que tinham facilidade de aprendizagem, ou seja,
os dois sentiam que conseguiam aprender de forma mais rápida que muitos colegas, razão pela qual, em
determinadas circunstâncias, eram mais valorizados pela professora:
Ih, eu não me esforcei nada nas provas e tirei tudo Plenamente Satisfatório, todo
mundo sabe, Plenamente Satisfatório em tudo (...). Eu acho que ela está sempre
pensando [referindo-se à professora], quando todo mundo está errando (...), demora
uma hora uma correção de lição de casa pequena: “Ah, eu vou acabar logo com isso, é
Eduardo” [imita a voz da professora chamando seu nome] (Eduardo).
Quando a gente está fazendo a lição, a gente procura entender bem mais rápido para
poder escrever e saber, e passar já para a outra pergunta (Sandra).
Para isso, ambos pareciam saber como combinar durante as aulas concentração e autonomia dos
métodos de estudo, estabelecendo uma relação causal entre as duas habilidades:
É tipo um negócio assim, fica pensando: “Ah, eu estou escrevendo, eu vou comprar
aquele brinquedo quando eu sair e for no mercado”, ele só fica pensando no
brinquedo, fica orgulhoso daquilo (...), aí depois ele não presta atenção na letra,
atrapalha, por causa que ele fica pensando em uma coisa, igual eu na aula de Música,
91
Rosemeire dos Santos Brito
eu fiquei pensando no helicóptero de miniatura, aí eu não estudei, depois eu me
esforcei para esquecer aquilo e esqueci, tudo bem, e tirei uma nota boa, nova em
Música (Eduardo).
Na classe eu estou estudando assim, se a professora não deixa estudar com o colega, eu
já para mim, sozinha, eu costumo estar mais adiantada, quando eu não estou
adiantada, eu pego e começo, se for soma, eu não sou assim como se fosse quadro de
valor e lugar, eu somo no dedo mesmo, mesmo que seja mais demorado (...), aí eu vou
somar de um jeito mais fácil para mim (Sandra).
Eu corrijo os resultados (...), às vezes eu acho que aquilo está errado e depois eu
corrijo de novo, às vezes tem algumas coisas que estão erradas (...). Eu estou
aprendendo muito com o meu pai, ele me ajuda às vezes, às vezes eu faço sozinho, eu
falo: “Pai, não tem esse gás metano aí, se você pegar um fósforo e por aí, como o fogo
vai fazer? Ele vai voar?” (...) E aí eu tiro algumas dúvidas com ele (Eduardo).
Faz uns três, quatro meses que eu já li o Harry Potter, agora eu quero o outro livro que
é Contos das Mil e Uma Noites (...), é na minha casa, a minha mãe, meu irmão e minha
irmã tentam ler (Eduardo).
O fato de Eduardo poder contar com o auxílio da família constituía, sob o ponto de vista de
Fernanda, um dos principais fatores para a produção de uma trajetória escolar bem-sucedida, o que
certamente permitia que em sala de aula ele se mostrasse mais autônomo em comparação com muitos
outros alunos.
Entretanto, além de poder ser um aluno que aprende apesar da escola, seu currículo oculto não
estava só abastecido com conhecimentos específicos. Eduardo tinha adquirido em casa outra habilidade:
uma metodologia de estudos que ele seguia rigorosamente, dia após dia:
Eu acho que eu fico lá em silêncio, lá escrevendo e escrevendo, enquanto os outros
estão lá, como o Lourival, ele tira nota satisfatória, mas eu acho que ele poderia
melhorar se pelo menos na sala ele ficasse prestando mais atenção (Eduardo).
Além de ser considerada uma aluna autônoma, criativa e participativa, Sandra parecia ter
encontrado também formas variadas de corresponder a essa expectativa da professora. Quando não
conseguia resolver individualmente alguma atividade ou não podia recorrer à educadora, ela tomava a
iniciativa de estudar e raciocinar junto com outros colegas. Ou seja, Sandra encontrava uma saída coletiva
para uma questão vista como individual por Fernanda:
Eu pergunto para ela algumas coisas. Quando eu não entendo, eu torno a perguntar,
que eu não entendi e quando ela não consegue mais explicar para mim, eu pergunto
para os colegas. (...) Eu peço ajuda para a professora, peço às vezes para os colegas
(...) e se todo mundo não entendeu e só eu entender e a professora deixar, aí eu passo
pelas mesas e explico como é que se faz, mas sem falar a resposta, senão aí vou estar
ensinando a ele pedir a resposta, eu também penso com o colega, quando eu sei mais
ou menos, ele também sabe, eu penso com o colega que está do lado (Sandra).
Sandra parece ter encontrado uma saída satisfatória para o desenvolvimento da autonomia entre
os estudantes, pois, de acordo com ela, independência não significa necessariamente a capacidade de
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Rosemeire dos Santos Brito
enfrentar sozinho as várias atividades, e sim a possibilidade de discutir junto com os colegas
procedimentos a ser adotados:
Antes era melhor, porque a professora, se a gente precisasse de ajuda, ia lá na mesa,
esperava uma fila, mas agora a gente tem que levantar a mão, ficar com a mão
levantada. Aí até a professora passar lá, demora. (...) Seria legal a professora deixar
um colega ajudar o outro colega. Ela deixa poucas vezes o colega que está do lado, (...)
mas um outro colega que está lá longe, já terminou, ela não deixa ajudar (Sandra).
Eduardo e Sandra admitiram ter não só a capacidade mas também o prazer e a disposição em
participar, expondo livremente suas idéias durante as aulas:
— E quando a professora está fazendo aquela correção coletiva? Vocês gostam de
participar?
— Às vezes ela chama ou só chama quem não está falando (Sandra).
— É igual o que eu falei, ela quer exercitar os outros e não chamar eu de uma vez para
acabar com o negócio (Eduardo).
Convém ressaltar que esse potencial era considerado por ambos como algo inacabado, que
necessitava de constante desenvolvimento, que precisava ser repensado e aperfeiçoado:
— Como você acha que você pode melhorar o seu desempenho na escola?
— É preciso algumas coisas, tem que melhorar um pouquinho, ler muitos livros, porque
poucas pessoas estão lendo muitos livros, é preciso ler outros livros, começar a estudar
um pouco mais, que até então esses dias eu estava estudando, pegando livros que eu
tinha lá do ano passado e estou começando a fazer uns exercícios tudo, é eu preciso
tentar estudar bem cedo (Sandra).
— Sabe é como um armazén, se você não cuida daquela comida, ela estraga e aí depois
fica ruim, e aí você tira às vezes Satisfatório e Não Satisfatório e às vezes você não
cuida daquela comida que é muito boa, aí não dá, ela estraga, vira..., é tipo um PS que
está lá, daí ele estraga e vira um Satisfatório ou Não Satisfatório (Eduardo).
Entretanto, mesmo admitindo que faziam parte do modelo de aluno apreciado por Fernanda,
ambos compreendiam esse perfil da mesma forma que seus colegas. Na opinião deles, o simples fato de
se comportarem de forma adequada resultava em um bom rendimento acadêmico. Pareciam não
identificar a força da autonomia valorizada pela professora, tampouco o currículo oculto como algo que
ela produzia:
O bom aluno é aquele que respeita a professora, está com a lição em dia, é muito
educado, (...), porque faz tudo direitinho, as lições certinhas e ele estuda bastante, o
desempenho dele é muito bom, ele é muito estudioso, só tira PS, tudo dele é bem
direitinho, a letra (Sandra).
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Rosemeire dos Santos Brito
O mau aluno é aquele que não respeita os professores, xinga muito, é um aluno que não
faz lição, um aluno mal-educado, um aluno que não lê muitos livros (...), que não gosta
de estudar muito, só fica brincando na sala (Sandra).
O que leva a ser um mau aluno é brincar sempre na classe, tipo assim: [imitando os
colegas] “Rá... rá... você caiu da carteira” [imitando risos], e aí o outro começa: “Ah,
Lourival, pára, cala a boca, não sei o quê... Agora, bom aluno lê mais livros assim. Eu
estou lendo todos os livros (Eduardo).
Vale destacar que quando Eduardo e Sandra precisavam da ajuda da professora, consideravam-se
bem atendidos por ela e, com suas dúvidas esclarecidas, conseguiam seguir adiante: “Ela me explica e aí
eu faço a lição. Em dois casos eu não entendi, aí ela me deu o segundo exemplo e eu entendi”, disse
Eduardo.
Desse modo, eles apresentaram mais coerências com o ponto de vista da professora do que
contraposições. Os dois alunos sabiam que eram valorizados por Fernanda por se encaixarem
perfeitamente no perfil de aluno ideal. Também tinham clareza de estar à frente dos demais colegas não
só em rendimento escolar mas, sobretudo, no que tange ao compromisso com a escolaridade.
Analisando as considerações de Eduardo e Sandra sob a ótica do gênero, é possível afirmar que
ambos pareciam viver em profundidade um padrão de masculinidade e feminilidade coerente com suas
aspirações intelectuais. Tal como os Academic Achievers discutidos por Mac an Ghahill (1994), eles
buscavam planejar, otimizar e objetivar o processo de aprendizagem, de forma a obter cada vez mais
conhecimentos, tornando-se mais competitivos, para poder galgar depois posições mais vantajosas do
ponto de vista socioeconômico.
Dadas essas condições, restou-me averiguar em que medida as famílias contribuíam para esses
resultados. Antes disso, porém, vejamos como os perfis de Carlos e Suzana dialogam com o modelo da
professora.
A professora acha que sou besta, idiota
Diferentemente do ocorrido com Sandra e Eduardo, na entrevista conduzida com Carlos e
Suzana, senti muita dificuldade em conseguir que eles se manifestassem. Suas frases eram menores, e
muitas vezes o silêncio predominou, sem dúvida, uma manifestação de insegurança diante da
pesquisadora. Além de um adulto, eu era alguém que desfrutava de uma relação mais privilegiada com a
professora e com o corpo de funcionários da escola.
Os dois também pareciam temer que eu fizesse perguntas cujas respostas comprovassem que eles
não se adequavam ao modelo de aluno da professora, bem como aos padrões de masculinidades e
feminilidades por ela valorizados.
94
Rosemeire dos Santos Brito
Por tais razões, a entrevista com Carlos e Suzana foi um árduo exercício de paciência e
persistência. A todo instante ambos manifestavam o desejo de terminar logo a tarefa, e com muita
dificuldade fui conduzindo as questões. Meu empenho analítico consistiu na tentativa de localizar como
os temas anteriormente apresentados pela professora apareciam mesmo nessas poucas palavras.
Do mesmo modo que muitos de seus colegas, ambos compartilhavam a idéia de que o perfil do
bom aluno estava articulado a um bom comportamento e vice-versa:
Bom aluno? Não fazer mal para o outro, não conversar, ser educado com a professora,
não responder para a professora, no estudo, estudar (Carlos).
Um mau aluno é aquele que faz bagunças e faz travessuras e o bom é o que respeita a
professora (Suzana).
Por tal razão, os dois acreditavam que a professora não tinha uma visão satisfatória acerca da
maneira como eles desempenhavam seu papel de alunos:
Bom, eu sou bom às vezes (...) A professora acha que eu sou uma besta (Carlos).
Acho que ela pensa que eu sou uma idiota, uma burra (Suzana).
Na opinião deles, essa percepção decorria do fato de não apresentarem o comportamento
esperado por Fernanda durante as aulas, justificativa também presente quando avaliaram o próprio
rendimento escolar:
Tem algumas que está bom, tem algumas que está ruim, porque tem algumas que é
difícil, tem algumas que é fácil, porque às vezes eu olho para trás, fico conversando,
porque eu gosto, porque às vezes eu estou cansando, eu paro para conversar. Ela passa
muita lição (Carlos).
Eu sou mais ou menos porque eu converso (Suzana).
Assim, eles mostraram que não se encaixavam no modelo da professora. Carlos sabia que se
comportava de forma inadequada e Suzana apresentava uma conduta semelhante, embora não fosse
classificada pela professora como má aluna. Ambos explicitavam que precisavam de auxílio no
aprendizado, mas que sabiam que nem sempre podiam contar com Fernanda para suprir essa necessidade:
Porque aí tem vezes que a professora não ajuda, não é, Suzana? Quando tinha prova,
ela não ajuda às vezes (Carlos).
Ela atende mal (Suzana).
De algum modo esses estudantes pareciam saber que não se enquadravam no modelo da
professora, tanto por apresentarem má conduta como também por precisarem com freqüência de seu
auxílio. Em outras palavras: por necessitarem da escola para aprender, dependiam da relação que tinham
com Fernanda para obter êxito escolar.
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Rosemeire dos Santos Brito
Como vimos no capítulo anterior, alunos com tais características não recebiam uma avaliação
positiva de Fernanda, mesmo quando tinham dúvidas e solicitavam esclarecimentos.
As observações em sala de aula mostraram que isso ocorria de forma mais intensa com Carlos do
que com Suzana. Em geral, a professora passava por sua carteira irritada, aumentava o tom de voz,
fornecia poucos exemplos e muitas vezes não o atendia, deixando-o à mercê das próprias dificuldades.
Para Fernanda, cabia a ele querer mais, isto é, fazer um esforço individual para se superar. Já
para Carlos, esse querer mais estava intrinsecamente associado à possibilidade de poder contar
com
ela
para
ajudá-lo quando precisasse, independentemente da maneira como ele se
comportava na escola. Tudo indicava haver aqui um conflito de expectativas, e ele parecia estar
resultando no início de uma trajetória escolar malsucedida para esse estudante.
Apesar de ter ressaltado que também esperava que a professora contribuísse mais em sua
escolarização, Suzana conseguia driblar de forma mais tranqüila essa impossibilidade. Freqüentemente eu
a via abraçando e beijando a professora, brincando com ela mesmo que recebesse uma bronca, motivo
pelo qual Fernanda57 muitas vezes fingia não perceber suas travessuras em sala de aula e a atendia quando
se dava conta de que a dificuldade de Suzana era mais séria.
Carlos tentava suprir essa carência com o auxílio da mãe, em casa, mas mesmo assim não
conseguiu reverter o quadro de insucesso que apresentava em Português e Matemática:
Às vezes eu falo para a minha mãe me ajudar (...), eu chego em casa, tomo um banho,
eu janto, eu vou dormir e no outro dia, escovo o dente, tomo o café-da-manhã, assisto a
Xuxinha lá, depois eu vou escovar o dente, depois eu faço a lição, às vezes a minha mãe
me ajuda quando eu estou com preguiça (Carlos).
Carlos pertencia ao grupo de estudantes que a professora avaliava como os mais difíceis e exibia
em sala de aula uma performance de masculinidade típica de alunos oriundos das classes trabalhadoras.
Seu constrangimento durante a entrevista assim como seu discurso ajudaram-me a compreender o quanto
Fernanda inclinava-se a atender melhor certos grupos de meninos que outros. Pesquisas australianas já
haviam apontado isso:
Os garotos que aprendem como desempenhar uma versão bem-sucedida de
masculinidade dentro da sala de aula estão mais prováveis de serem recompensados
pelos professores e respeitados por seus pares. Ele aprende como posicionar a si
próprio dentro de um discurso de masculinidade adaptado à sala de aula (Gilbert &
Gilbert, 1998, p. 207).
Sem prestígio com a professora, Carlos tendia a buscar fontes alternativas de poder que lhe
possibilitassem ser respeitado enquanto menino entre os colegas. Uma dessas fontes era a busca por
57
Em uma das entrevistas, Fernanda mencionou que Suzana tinha tido dificuldades para aprender
subtração com recurso, mas fez questão de salientar que a dificuldade foi sanada após algumas
explicações.
96
Rosemeire dos Santos Brito
proezas nos esportes. Ao ser indagado sobre o que gostava na escola, prontamente respondeu que eram os
esportes, atividades nas quais costumava se sair melhor: “Eu jogo futebol porque eu cato bem no gol”.
Por sua vez, diferentemente de Eduardo e Sandra, Carlos e Suzana não podiam contar com um
currículo oculto que transformasse a escolarização em algo apenas complementar à sua formação, pois
seus pais não tinham o mesmo grau de escolaridade que tinham os pais de Eduardo e Sandra.
Desse modo, eles tendiam a apresentar uma masculinidade/feminilidade situada no extremo
oposto do modelo apresentado por Sandra e Eduardo, ou seja, uma forte inclinação ao exercício do que
Connell (1995) denominou de masculinidade/feminilidade de protesto. Assumiam que o processo de
ensino-aprendizagem era enfadonho, razão pela qual estavam sempre tentando escapar dele com
brincadeiras, conversas com os colegas, distrações e até mesmo com a interrupção das atividades durante
as aulas.
A análise das falas das famílias ajudou-me a aperfeiçoar a compreensão desse fenômeno com
resultados tão díspares entre as duas duplas.
4.2) O fracasso escolar revisitado: currículo oculto e relações de gênero
As entrevistas realizadas com os pais de Sandra e Eduardo confirmaram minha suposição de que
ambos estivessem apresentando uma gradação de masculinidade e feminilidade mais próxima dos
modelos encontrados nos setores médios da população, com forte ênfase na racionalidade e em uma
postura mais agressiva e competitiva nos estudos e não nas proezas nos esportes e em demonstrações
gratuitas de poder diante de colegas e professores.
A renda de ambas as famílias confirma sua inserção nas camadas médias, com ganhos mensais
entre quatro mil reais e cinco mil reais. O que as diferenciava eram as ocupações profissionais. O pai de
Sandra era técnico eletrotécnico e a mãe secretária com curso superior incompleto. O pai de Eduardo era
administrador de empresa. A mãe, embora também tivesse nível superior e a mesma formação do marido,
há alguns anos dedicava-se exclusivamente às tarefas domésticas e ao cuidado dos filhos.
No caso de Eduardo, esse padrão de masculinidade, denominado por Connell (1995) de
masculinidade da razão, decorria da própria história de vida do pai, que havia obtido seu diploma de nível
superior através do método que agora procurava desenvolver com os filhos:
Eu não fui um bom aluno (...) dentro desse ambiente (...) do Jardim Europa, eu tinha
extrema folga material (...). A partir do momento que esse mundo se esvaziou e eu
apalpei a realidade áspera e cruel, mas real, verdadeira. Então quando foi necessário
que eu ganhasse a vida pelas minhas próprias mãos, aí, sim, eu estudei sábado,
domingo (...) eu me tornei um grande estudioso lá na Getúlio Vargas, (...). Eu fiz um
curso na Espanha, onde tive a prudência de estudar antes a matéria, de modo que eu
me desempenhei bem no curso por causa disso também, e depois passei um
periodozinho na Inglaterra (Evandro, pai de Eduardo).
Se em determinado momento de sua vida ele teve de lutar para construir sua carreira, para sua
esposa os obstáculos superados foram muito maiores. De origem humilde e rural, a mãe de Eduardo
precisou transpor diversas barreiras antes de alcançar a mesma formação do marido:
97
Rosemeire dos Santos Brito
Eu escolhi uma esposa para mim (...) que é muito simples, mas que é uma pessoa que
não tem o glamour do dinheiro, não tem o glamour de muitos idiomas e tal. Mas uma
pessoa simples, veraz, uma pessoa que teve uma origem na lavoura e outro dia estava
estudando com o executivo de destaque do Banco Mercantil de São Paulo e fez curso
superior, (...) você não sabe o que é para uma pessoa transpor o mundo rural, se
transpor para o mundo urbano, é um esforço cultural enorme e ela conseguiu isso, ela é
uma vencedora nesse ponto (Evandro, pai de Eduardo).
Assim, a racionalidade que fazia parte do mundo dos negócios e do exercício da profissão de
administrador era retomada no processo de escolarização daquela casa:
Então o que eu procuro fazer nas reuniões é ver onde está o ponto fraco (...), aí me
lembrando um pouquinho das minhas lições de planejamento estratégico (Evandro, pai
de Eduardo).
Embora o pai de Eduardo tenha lançado vagamente a idéia de que o uso do método na educação
dos filhos talvez não fosse muito correto, em outro momento de nossa conversação assumiu que era dessa
forma que as coisas aconteciam diariamente:
Às vezes coloca uma perspectiva feminina da supermãezona e do pai que é mais
cartesiano, é o cara que trabalha no escritório, então tudo tem que ser certinho. Quero
talvez trazer esse mundo do escritório para dentro de casa e talvez isso não seja muito
correto (Evandro, pai de Eduardo).
Atitudes de certo modo análogas eram tomadas pela mãe de Sandra, cuja trajetória de vida, de
certa forma, havia se diferenciado do caminho percorrido pela mãe de Eduardo. Embora ela também
tivesse nível superior completo, o investimento na carreira não foi a tônica de sua juventude, pois na
maior parte do tempo precisou conciliar os estudos com trabalho e afazeres domésticos. Por tal razão, ela
fez questão de enfatizar a importância que atribuía à escolarização de suas filhas, colocando-a como a
prioridade da organização familiar:
Então o fundamental é educação, a diferença está não é no número, na conta bancária,
mas na sua educação, tem que aproveitar ao máximo (...), tirar o máximo proveito de
tudo isso que está à disposição, porque não tem nenhum compromisso de limpar a casa,
de lavar louça, eu não estou muito preocupada com esse detalhe, eu gostaria que elas
se dedicassem a estudar e que vissem no estudar o futuro delas, porque o estudar é o
que vai definir o que elas vão ser, o que elas vão fazer, como elas vão se apresentar
nessa sociedade (Clarice, mãe de Sandra).
As entrevistas realizadas com as famílias de Eduardo58 e Sandra de alguma maneira
confirmavam as palavras da professora: “O bom aluno é aquele que aprende apesar da escola”. A
facilidade de aprendizagem, a rapidez de raciocínio, a capacidade de participar da aula eram fatores
decorrentes do que se poderia chamar de uma verdadeira escola em casa, principalmente no caso do
58
O pai dele foi o único homem que se dispôs a participar dessa etapa da pesquisa.
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Rosemeire dos Santos Brito
garoto Eduardo, o que mais uma vez confirmava o entendimento da professora de que a instituição
escolar é apenas um complemento na educação dessas crianças.
Vale destacar que tanto Sandra como Eduardo já chegaram à primeira série do Ensino
Fundamental devidamente alfabetizados, sendo que Eduardo, desde a mais tenra infância, havia estudado
em escola particular:
Ele estudou desde um aninho até os cinco no A. E. e dos cinco aos seis ele fez o pré
aqui no Sesi, e aqui no Sesi ele não pôde ir para a primeira, ele já estava alfabetizado,
ele já estava lendo e escrevendo, só que eles não aceitam com seis anos para a primeira
série, então ele teve que fazer o pré outra vez (Eduarda, mãe de Eduardo).
A mesma situação foi vivida por Sandra. Embora não tivesse estudado em colégio particular,
ficou em uma creche pública durante os primeiros anos de sua infância, e de lá também saiu alfabetizada:
A minha, desde lá,[creche] ela já começou a ler muito cedo, não que eles tivessem toda
essa preocupação de a criança ler, mas foi dela o estímulo de pegar coisinhas, o
contato com os livros, então ela começou a ler desde a época da creche, então quando
chegou na escola e tinha essa questão da leitura, horário para leitura, ela falou assim:
“Já li todos aqueles livros, precisam trocar aqueles livros” (Clarice, mãe de Sandra).
Além desses conhecimentos anteriores à experiência da escolarização, Eduardo e Sandra podiam
contar com um amplo aparato de ensino-aprendizagem no seio do ambiente doméstico, que eu
consideraria uma verdadeira instituição escolar.
Os pais e mães de ambos não se limitavam a acompanhar o processo de aprendizagem e
aquisição de conhecimentos apenas verificando se os deveres de casa estavam sendo feitos ou não.
Na verdade, muitas vezes eles eram a principal porta de entrada para o mundo do saber,
transformando as tarefas escolares destinadas ao lar em um pretexto para incentivar as crianças a
produzirem sempre mais do que a professora solicitava. Nesse sentido, tratava-se de um intensivo
processo de racionalização da conduta e do tempo da criança, tal como expresso na fala do pai de
Eduardo:
De repente a pessoa chega aí aos sessenta anos, setenta anos e o que eu construí?
Nada, eu tive relacionamentos instáveis e tal, e não tive constância em uma coisa. Só a
constância produz (...), aquela pequena constância do menino sentado ali na cadeira
estudando, olha que bons resultados que trouxe, plenamente satisfatório, e constância
na vida hoje em vida que é tudo muito volátil e as pessoas são muito volúveis, é muito
difícil de conseguir, então o que a gente puder criar um ambiente positivo para a
criança ter constância e aprender os valores humanos (Evandro, pai de Eduardo).
99
Rosemeire dos Santos Brito
Essa disciplina tão evidenciada pelo pai de Eduardo traduzia-se em um cotidiano pautado por
uma rotina diária estruturada em função dos objetivos e das necessidades escolares:
Ele levanta e já toma o cafezinho dele, e já estuda, e geralmente o Anderson59 está
dormindo. Ele já faz a tarefinha e já liquida o que tem de fazer, e depois ele sempre lê e
faz a caligrafia, o pai sempre passa caligrafia de inglês para ele, para ele desenvolver
tanto a caligrafia quanto aprender um pouquinho do inglês, e ele lê também, tanto é
que ele leu este ano os livros do Harry Potter 1, 2, 3 e 4, agora ele está lá, Odisséia, e o
outro é Tom Sayer, ele está lendo, ele gosta de ler, então ele acorda, faz a tarefinha e
vai ler um pouco (Eduarda, mãe de Eduardo).
Embora, aparentemente, essa escolarização extra-sala de aula não fosse vivida por Sandra com o
mesmo rigor, observei que sua rotina doméstica também refletia uma busca de otimização do tempo da
criança na escola:
A gente pega no pé no sentido assim: horário de fazer lição, fazer lição não dá para ver
televisão, nem estar com o som alto (...), aí eu e meu marido falamos: “Vamos estipular
o horário de ver televisão, se não der certo vamos tirar a televisão, vamos tirar, vamos
desligar tudo”, porque nós achamos que não adianta, tem o horário para estudar, e
aquele horário tem que ser tranqüilo, não dá para você estudar vendo televisão ou com
o som no último volume, fazer lição de casa, fazer uma pesquisa, a gente tem tentado
conciliar, horário de fazer lição não é horário de ver não sei que programa, não sei
que novela, “esse programa não é adequado para vocês” (Clarice, mãe de Sandra).
O pai e a mãe de Sandra também incentivavam o progresso da aprendizagem das filhas60
adquirindo livros e outros materiais que pudessem aumentar o repertório de conhecimento delas:
Nós compramos, na medida do possível, porque às vezes é caro, mas quando elas têm
oportunidade de passar numa livraria ou querer algum livro que chama a atenção, elas
querem aquele livro porque querem, a Sandra queria ler o Harry Potter (...), tem livros
que alunos falam para alguém, ela ouve, não sabe do que estão comentando: “Ah, eu
quero ler Carlos Drummond de Andrade (...), a outra chegou me dando a notícia que
na escola dela chegou aquele Estação Carandiru, ah, traz para mim ler” (...) eu tenho
livros de poesia, uns livros velhos já (...), mas eu acho legal essa percepção delas, como
eu estou colocando é importante ler porque quando você lê, você desenvolve senso
crítico e aprende a escrever (Clarice, mãe de Sandra).
Tal como explicitado pelo pai de Eduardo, eles também eram partidários da concepção de que só
a constância produz, motivo pelo qual estimulavam as filhas a desenvolver um método próprio de estudo,
assim como defendiam que todas as dúvidas deviam ser esclarecidas:
Ela também às vezes tem as suas dificuldades, mas também tem aquela parte de
partilhar, se eu tenho dúvida eu vou ver com o fulano, fulano deve ter feito ou
entendido melhor, e às vezes ela é muito assim... ela tem um desejo de tudo, eu falei
para ela: “Calma, não é da sua série, calma, para tudo tem seu tempo na vida, não
chegou a hora ainda”, ela se metia a ir, a lição da outra (...), eu falei: “Olha, quando
você tiver alguma lição, vê se faz com calma, com tempo, revisa, não sabe aquela
59
Um dos irmãos de Eduardo.
60
A irmã de Sandra tinha onze anos em 2002 e cursava a quinta série em uma escola municipal da rede
pública.
100
Rosemeire dos Santos Brito
primeira, passa para a segunda, aí você volta com calma, às vezes ela erra e não é
porque errou, é falta de atenção, a pressa de fazer (Clarice, mãe de Sandra).
Sandra era considerada a melhor aluna da classe exatamente por ser criativa, crítica, participativa
e atenta, características que só existiam porque sua casa se transformou em um espaço de
aperfeiçoamento do que ela aprendia na escola:
Ela quer melhorar a letra porque diz que a letra dela é feia (...), porque ela é canhota e
a letra é meio deitada, mas isso não é importante, o importante é que a professora
consiga ler, mas de uns tempos para cá eu vi que ela ficou muito preocupada nesse
sentido, da letra ser feia, não ser legível, às vezes ela calca a mão no lápis, aperta
demais, então ela começou além do caderno de caligrafia que ela tem na sala de aula,
em casa também, ela me pedia: “Mãe me passa caligrafia, escreve alguma coisa para
mim melhorar minha letra” (Clarice, mãe de Sandra).
Os discursos dos pais de Sandra e de Eduardo mostram que a supervisão que eles faziam dos
trabalhos dos filhos na escola era o elemento central do êxito escolar desses estudantes. Além de
acompanharem as notas e os trabalhos, os pais também desenvolviam atividades semelhantes às passadas
na escola, o que estava em plena concordância com a frase proferida por Fernanda: “Ela tem incentivo do
meio”:
Ela fica muito preocupada quando tem uma atividade de pesquisa, de achar, aí ela já
tem facilidade assim em ordem alfabética, também tenho a enciclopédia da Abril, que é
boa, livros que eu conheço, trouxe para casa para pesquisar as coisas (...), nós
recebemos em casa a [revista da] Kalunga e a Kalunga, sempre nas edições dela,
sempre dita uma matéria sobre educação, folclore, então eu gosto de estar sempre
guardando esses materiais de consulta, as revistas também que aparecem por aqui
[referindo-se a seu local de trabalho, um departamento em uma universidade] também
são fonte de consulta, também guardo para elas estarem pesquisando (Clarice, mãe de
Sandra).
Por outro lado, pareceu-me que a intensificação dessa escolaridade vivenciada fora da escola era
facilitada pela ausência da obrigatoriedade de Sandra participar das tarefas domésticas. A menina em
alguns momentos afirmava não querer para si uma feminilidade fundamentada no estereótipo tradicional
de mulher:
Outro dia ela me respondeu: “Eu não nasci para lavar louça, eu não nasci para ser
dona de casa” (...) Eu falei: “Que Deus te ouça, que te abençoe, que você consiga ter
cacife para bancar” (...), porque não tem nenhum compromisso, a casa, de limpar a
casa, de lavar louça, eu não estou muito preocupada com esse detalhe, eu gostaria mais
que elas se dedicassem a estudar e que vissem no estudar o futuro delas, porque o
estudar é que vai definir o que elas vão ser, o que elas vão fazer, como elas vão se
apresentar nessa sociedade (Clarice, mãe de Sandra).
De modo semelhante, também Eduardo contava com uma verdadeira instituição de ensino em
seu lar, porém organizada de forma ainda mais sistemática que no caso de Sandra. O pai de Eduardo
assumiu que os problemas e as dificuldades na aprendizagem da criança podiam, e deviam, ser resolvidos
pela família:
101
Rosemeire dos Santos Brito
Eu sempre que vou às reuniões lá, eu procuro perguntar para a professora onde está
pegando, onde é o calcanhar-de-aquiles, qual é o ponto fraco, porque os pontos fortes
ficam muito evidenciados, essa atitude foi extremamente relevante quando o Eduardo
começou a aprender a ler, a escrever também, porque uma professora falou assim:
“Olha, ele está muito distraído na classe”, então eu procurei fazer um diagnóstico, o
que está acontecendo? Por que ele está agindo dessa forma? Eu não estou dando
atenção para ele? (...) Como eu posso contornar essa situação? Então, essa foi a
informação mais relevante que a professora deu para mim, depois disso eu e minha
esposa começamos a fazer um esforço em casa para incentivá-lo a escrever, nem que
fossem rabiscos, e essa atitude foi crescendo, crescendo, em poucos meses o Eduardo
teve uma reação (...), ele começou a reagir e começou a ir bem, e essa trajetória, esse
impulso que ele tomou então não tem parado, então o que eu procuro fazer nas
reuniões é ver onde está o ponto fraco e tentar tomar dentro das minhas próprias
limitações algumas atitudes (...), no sentido de corrigir isso (...), para ele ir
corrigindo esse ponto específico, aí me lembrando das minhas lições de planejamento
estratégico, os pontos fracos e os fortes (...), atualmente eu estou tentando insistir com
o Eduardo para corrigir a sua letra, para a letra ficar mais bonita, então eu incentivo e
cobro, às vezes sou chato, às vezes sou um pai neurótico, chato mesmo e falo alto para
ele fazer a caligrafia diária (Evandro, pai de Eduardo).
Vale destacar que a importância atribuída à educação era reflexo da renda familiar, cujas
prioridades centravam-se nos gastos com educação e a saúde das crianças:
Eu tenho dinheiro suficiente para comprar dois carrões maravilhosos, eu não faço, eu
tenho uma Parati velha (...), é uma Parati 94, nós já estamos em 2002, injeção
eletrônica, e eu não largo do meu carburador e eu sou meio pão-duro, porque na
verdade não é pão-durismo, eu quero dirigir os recursos da família para a saúde e para
a educação das crianças, eu insisto muito com a Eduarda que eu não quero fazer
economia mais, eu quero gastar, agora porque nós já conquistamos uma boa casa
própria, eu quero gastar em atividades educacionais com ele, eu quero gastar nisso, eu
não me importo de ficar com o carro velho (Evandro, pai de Eduardo).
Eduardo era recompensado em casa por bom desempenho na escola, e esse reconhecimento
geralmente se traduzia em atividades que, também elas, pudessem contribuir para o aprendizado escolar:
Eu acho que se tem alguma relação, oitenta por cento tem que ser a escola e vinte por
cento tem que ser em casa. Acho que noventa e cinco por cento de valores humanos têm
que ser em casa e quem sabe em termos de conhecimentos técnicos cinqüenta e
cinqüenta por cento, cinqüenta por cento a escola, cinqüenta por cento dentro de casa e
tal, de dar um respaldo, comprar livros, incentivar, o Eduardo leu mais um livro, a
gente foi no cinema, foi no McDonald’s, foi incentivado (Evandro, pai de Eduardo).
O tempo livre de Eduardo era investido em atividades de divertimento ligadas ao aprendizado. O
acesso ao microcomputador, por exemplo, era restrito a jogos educativos, e o mesmo se dava com
programas de televisão e leitura de livros:
O micro só depois que fez pelo menos um pouquinho de tarefa, um pouquinho, pelo
menos uma linhazinha, pelo menos umas duas linhazinhas é o que a gente pede (...),
pelo menos um pouquinho de caligrafia para ela ir conhecendo que ela tem que se
superar (...). Eu considero fundamental evitar alguns vícios que tem hoje em dia,
televisão à vontade (...), o videogame, você pode ver que lá em casa até agora eu não
tenho videogame, eu estou pensando em comprar um agora, que é para ocupar as
crianças um pouquinho mais nas férias, dar um pouquinho mais de alívio para a
102
Rosemeire dos Santos Brito
mamãe, mas quero me concentrar em games que sejam suaves, do Mario Gross, por
exemplo, mais light (Evandro, pai de Eduardo).
A fala de sua esposa também confirmava essa evidência:
Eu acho que vai tudo do incentivo da gente mesmo, se a gente não incentivar eu acho
que não vai, mesmo o Eduardo, eu vejo que ele gosta de ler, a gente procura dar livros,
estar incentivando, passa na banquinha: “Ah, quero essa revista SuperInteressante”, o
pai vai e compra a revista SuperInteressante, não é qualquer coisa que quer e vai
dando, é sempre uma coisa para o crescimento deles (...), o pai está sempre
incentivando, mesmo no micro ele só deixa joguinho criativo, ele não deixa violência,
ele só procura esses que incentivam um pouco, tanto números como alfabetização
(Eduarda, mãe de Eduardo).
Resta destacar que, do ponto de vista do gênero, a própria atribuição de tarefas domésticas era
pensada em termos dessa racionalização da escolarização. Evandro não só admitiu que gostaria que as
crianças participassem mais desse tipo de atividade, como enfatizou que isso contribuía para o exercício
da disciplina, elemento indispensável à construção do sucesso escolar sob seu ponto de vista:
O meu ponto de vista é o seguinte: é que infelizmente, às vezes eu acho que a mamãe
toma a iniciativa excessiva dentro das tarefas pesadas da casa, e eu às vezes fico sendo
o chato e é sempre motivo de alguns atritos entre mim e ela, de as crianças
participarem mais das pequenas tarefas de casa (...), eu tive duas empregadas ou três
quando estava lá no Jardim Europa quando eu era pequeno, esse mundo de luxo, de
abundância, um dia acabou (...), então eu percebi como foi útil para mim assumir as
tarefas domésticas e essas coisas rotineiras do dia-a-dia, porque antes eram as
empregadas que faziam. Eu tento insistir com a minha esposa que essas coisas são úteis
para as crianças aprenderem a trabalhar, e se aprende a trabalhar dentro de casa com
essas coisinhas que parecem que são bobas, para desenvolver o espírito de serviço na
criança (...). Agora é interessante (...) porque às vezes coloca bem uma perspectiva
feminina de supermãezona e do pai que é mais cartesiano, é o cara que trabalha no
escritório, então tudo tem que ser certinho. Quer talvez trazer esse mundo do escritório
para dentro de casa (Evandro, pai de Eduardo).
Com base nessas palavras, será possível delinear posteriormente o possível padrão de
masculinidade e feminilidade elaborado por essas famílias, assim como sua adequação ou inadequação ao
almejado pela professora. Antes disso, porém, apresento os dados mais significativos das entrevistas
conduzidas com as mães dos outros dois estudantes.
A primeira noção que ficou evidente na análise das entrevistas feitas com as mães desses dois
alunos foi a ausência de uma escola em casa – pelo menos nos moldes concebidos pelas duas famílias
anteriores, a de Sandra e a de Eduardo.
Isso foi mais nítido na entrevista conduzida com Carmen, mãe de Carlos. Embora tenha dito que
o filho freqüentou uma creche pública antes da escola, reconheceu que o menino saiu de lá sem
conhecimentos prévios:
No começo eu não tinha muita preocupação com o aprendizado, principalmente
quando ele saiu da creche, que ele não saiu alfabetizado da creche, ele saiu escrevendo
o nome dele, o nome da mãe, algumas coisas assim e a minha preocupação com ele era
com relação à conduta (...). Aí quando ele fez a primeira série, ele também não saiu
alfabetizado no final do ano (Carmen, mãe de Carlos).
103
Rosemeire dos Santos Brito
Além disso, também percebi a inexistência de uma educação complementar na casa de Carlos,
elemento absolutamente evidente no ambiente familiar de Eduardo. A mãe de Carlos chegou a questionar
a necessidade de haver essa espécie de extensão da escola no universo doméstico, por considerar a
impossibilidade de muitos pais atenderem a esse quesito:
Eu acho que às vezes tem muita cobrança, eu acho que o pai e a escola têm que estar
sempre junto, eu acho que não dá para delegar também tudo para a escola, mas eu
acho que muita coisa caminha junto, mas eu vejo por mim que a criança tem
dificuldade: “Ah, é porque o pai não colabora”, mas será que o pai tem um
entendimento do que está acontecendo? (Carmen, mãe de Carlos).
Assim, diferentemente da situação de Eduardo, o acompanhamento, em casa, da escolarização de
Carlos parecia se resumir a verificar se ele estava ou não fazendo os deveres escolares. Seus problemas e
dificuldades na escola não eram tratados de forma estratégica, nem vistos como um obstáculo a ser
superado.
Em alguns momentos, a mãe de Carlos parecia até incentivar o comportamento dependente do
filho, ao auxiliá-lo nas lições sem exigir, sistematicamente, que ele se desenvolvesse sozinho, através de
uma forte disciplina nos estudos. Ao comparar Carlos com sua irmã de onze anos, ela disse:
Ela nunca me deu problemas com nota, com comportamento, que nem, ela está na
quinta série, ela já está de férias a partir de amanhã porque ela já passou, então ela é
uma criança que é muito de leitura (...), ela fica mais com os livros, faz os trabalhos, as
lições, ela é mais independente para fazer as lições, os trabalhos da escola do que ele.
Ele, para fazer uma conta que ele sabe, eu tenho que estar do lado (Carmen, mãe de
Carlos).
Desse modo, o exercício da constância não era tão fortemente estimulado pela família. A criança
é que possuía ou não as virtudes necessárias que a levariam a alcançar um bom rendimento escolar. Ou
seja, o bom desempenho não era algo passível de ser estimulado com uma rotina diária em casa, com um
acompanhamento mais rigoroso da escolarização pela família.
Ao comparar Carlos com a irmã, sua mãe admitiu que ele apresentava muitas dificuldades de
aprendizagem por causa da má conduta em sala de aula, principalmente quando não estava participando
das atividades extras:
Na sala uma mosca já dispersa ele (...), é, sabe, a dispersão é uma coisa impressionante
(...). Eu acho que a maior dificuldade dele é de concentração, sentar, ler um livro e
saber que ele está ali lendo aquele livro e não tem nada fora (Carmen, mãe de Carlos).
Quando as dificuldades de Carlos se tornaram preocupantes, a família procurou solucionar o
problema da forma mais clássica: encaminhando a criança para um profissional externo à escola,
localizando as dificuldades de escolarização apenas no aluno:
O professor está certo, é difícil mesmo, mas como ajudar? Que nem o Carlos com as
dificuldades que ele tinha, eu fiquei muito aflita, porque eu estava vendo, eu falei
assim: “Meu, meio do ano, segunda série e não está andando”, então por minha conta
104
Rosemeire dos Santos Brito
eu fui e coloquei um professor particular para ele (...), até procurei a Berenice, falei
para a Berenice que eu queria procurar uma psicopedagoga (Carmen, mãe de Carlos).
Essa falta da escola em casa também pôde ser percebida pelo tipo de diversão que Carlos tinha
em casa. Ao contrário do que acontecia na casa de Eduardo, as brincadeiras de Carlos não estavam
associadas a algo que pudesse contribuir para a melhoria de seu aprendizado escolar:
A gente tira muito as coisas dele, muitas coisas, não só pelo desempenho na escola (...)
mas pelas condutas mesmo (...), principalmente assim: pipa, bola, essas coisas a gente
tem cortado, a gente pontuou para ele, isso só vai ser em férias, quando você estiver de
férias (Carmen, mãe de Carlos).
Às vezes tem algumas coisas que a gente libera para ela que não dá para liberar para
ele, por quê? Pelo comprometimento mesmo que tem, por exemplo: ela terminou o que
ela tem que fazer, as tarefas que ela tem que fazer, de enxugar uma louça, de estudar,
enquanto ele está perturbando, aí ela termina e ela pode sair, pode brincar; ele não
(Carmen, mãe de Carlos).
Situação muito semelhante pôde ser percebida com Suzana, que também não recebia em casa um
acompanhamento tão sistemático, como ocorria com Eduardo e Sandra: “Ela não é muito aplicada assim.
O desempenho dela só depende dela mesma, ela não é muito estudiosa dentro de casa, se deixar...” (Alice,
mãe de Suzana).
O acompanhamento da escolarização de Suzana resumia-se em ajudá-la em dificuldades
específicas ou em verificar se ela tinha feito ou não os deveres de casa:
Eu cheguei a ensinar ela porque atualmente as contas de diminuir são diferentes
daquelas que a gente somava (...), eles têm uma história de um recurso, então ela
estava com dificuldade para aprender isso aí (...), mas eu acho que ela já aprendeu,
porque as últimas lições que eu tomei dela (...), até que ela aprendeu (Alice, mãe de
Suzana).
Eu acho que a gente tem uma responsabilidade muito grande de ajudar ela, por
exemplo: nesse negócio da lição de casa, tem que olhar, ver se ela está cuidando bem
dos materiais dela. Eu acho que isso é uma responsabilidade muito grande, porque
senão ela não se interessa, porque senão ela fica meio relaxada com as coisas da
escola dela e com lição também, eu já te falei, se a gente não ficar de cima, ela não faz
(Alice, mãe de Suzana).
Alice reconheceu também que a filha apresentava problemas de comportamento na escola; ela
vinha recebendo reclamações sobre a falta de concentração da menina durante as aulas:
O comportamento dela, eu já recebi reclamação, porque ela é muito agitada. Ela não
se concentra nas coisas e fica, levanta, fica levantando, não se concentra no que está
fazendo (Alice, mãe de Suzana).
.
Essa agitação, entretanto, não a impedia de ser vista como uma boa aluna tanto pela mãe quanto
pela professora. A mãe de Suzana atribuía esse fato aos conhecimentos anteriores ao Ensino
Fundamental:
105
Rosemeire dos Santos Brito
Eu acho que ela desempenha bem a função dela de aluna (...), com base nas notas, ela
teve uma pré-escola boa, ela estudou em uma escola particular e quando ela foi para a
escola, tudo o que ela aprendeu lá no primeiro ano ela já tinha aprendido antes. Ela já
sabia ler e escrever, então eu acho que ela desempenha bem o papel dela na escola,
não sei mais adiante, mas pelo menos nesses dois anos (Alice, mãe de Suzana).
Agora ela é uma boa aluna porque ela é inteligente e porque ela já veio com uma boa
base dessa outra escola (Alice, mãe de Suzana).
Tomando por base esses depoimentos, é possível apresentar com mais precisão as prováveis
gradações de masculino e feminino estimuladas por essas famílias em sua conformação ou não com as
incentivadas pela instituição escolar, já analisadas na fala da professora.
No caso de Suzana e de Carlos, a configuração mostrava-se outra, a começar pelo fato de as
ocupações profissionais de seus pais ser consideradas de menor prestígio social. O pai de Suzana
trabalhava como cobrador de ônibus e a mãe como técnica contábil. Ambos tinham apenas o Ensino
Médio completo. O pai de Carlos atuava como atendente de serviços comerciais em uma estatal e sua mãe
era educadora em uma creche. Ambos também tinham o Ensino Médio completo. A renda das famílias é
que se diferenciava. Enquanto os pais de Suzana conseguiam um rendimento mensal de mil e quinhentos
reais, os pais de Carlos ganhavam juntos quatro mil reais por mês.
A família de Carlos vivia em uma casa com cinco cômodos, e mais um estava sendo construído,
destinado a se transformar em um novo quarto para o garoto. Além disso, dispunham de um
computador na sala de visitas e mais de um aparelho de televisão. Entretanto, não notei a presença
de jornais ou livros nos diversos ambientes da casa.61
Enquanto eu entrevistava a mãe de Carlos, ele cuidava de um passarinho e brincava de bicicleta,
ao passo que na entrevista com a mãe de Eduardo este permaneceu próximo a nós, participando com
interesse da conversa e me mostrando os livros que havia lido ultimamente.
A casa de Sandra, por sua vez, era pequena, tinha quatro cômodos e apenas um dormitório, onde
a menina dormia com os pais, sem nenhum espaço privado no qual pudesse se dedicar aos estudos. Não
havia computador na casa e menos ainda jornais, revistas e livros – uma indicação que precisa ser levada
em conta na análise.
A garota permaneceu brincando e tentando me distrair enquanto eu conversava com sua mãe.
Esta me fornecia as informações ao mesmo tempo que preparava o jantar da família ouvindo sambas
populares no aparelho de som.
No caso de Carlos, sua mãe demonstrou alguma preocupação com os constantes problemas
disciplinares do filho na escola, que estavam muito próximos do modelo de masculinidade encontrado por
61
Na casa de Eduardo, na mesa da cozinha, havia vários livros que estavam sendo lidos, o que revelava
ser a leitura um hábito naquele cotidiano.
106
Rosemeire dos Santos Brito
Mac an Ghahill (1994), os The Macho Lads, definido por Connell (1995) como masculinidade de
protesto:
Eu notei muita diferença esse segundo semestre na escola (...), mais agitação,
arrumando mais confusão com os amigos, isso me preocupa, porque ele acha que é
bonito, um dia ele chegou para mim e falou: “Ah, briguei com o fulano”, então para ele
é um status (Carmen, mãe de Carlos).
Eu acho assim, eu acho que ele faz algumas coisas (...) para se afirmar mesmo (...), ele
faz para se afirmar com os amigos: “Oh, eu consegui fazer isso, eu consegui brigar
com o fulano de tal” (...), não sei se é para ser aceito no grupo mais fácil (Carmen, mãe
de Carlos).
Ao comparar essas falas com os depoimentos dos pais de Eduardo, percebe-se, no primeiro caso,
a estimulação de uma masculinidade mais compatível com a vivida pelo filho na escola. No caso de
Carlos, sua mãe chegou a demonstrar preocupação com a permanente necessidade de o filho afirmar
sua masculinidade através de condutas perturbadoras e, sobretudo, da agressividade, sem, entretanto
apresentar alguma possibilidade de descontruir esse modelo no universo doméstico. Era como se o garoto
fosse “naturalmente” daquele jeito.
O problema de Carlos – para mim agora é muito claro – não decorria só deste último fator, mas
estava ligado, sobretudo, a seu pertencimento de classe, que talvez lhe impossibilitasse outras formas
culturais de afirmar sua identidade de gênero, formas mais compatíveis com as expectativas da
professora. Assim, Carlos tendia a apresentar na escola uma nuança de masculinidade fundamentada nas
proezas esportivas e na agressividade, modelo mais intensamente presente na classe trabalhadora.
Da mesma maneira, o sucesso de Eduardo era, em certa medida, decorrência do exercício de uma
versão bem-sucedida de masculinidade, alicerçada na razão e na disciplina e mais fortemente vinculada
aos objetivos do processo de aprendizagem. Caminho que ele possivelmente percorria com naturalidade
também por pertencer a uma classe média intelectualizada.
No caso de Suzana, o modelo de feminilidade incentivado pela mãe estava muito mais próximo
do estereótipo tradicional de feminino, razão pela qual a aluna, embora em alguns momentos apresentasse
comportamentos semelhantes aos de Carlos e de outros meninos perturbadores, parecia conseguir driblar
de forma mais bem-sucedida a vigilância da professora. A fala abaixo exemplifica bem o tipo de
incentivo que recebia da mãe com relação à afirmação da identidade de gênero:
Tem que ser amiga das meninas, se comportar direitinho, os meninos para lá,
principalmente moleques que são danados, ficam falando palavrão (Alice, mãe de
Suzana).
107
Rosemeire dos Santos Brito
Portanto, mesmo estimulada a representar na escola uma versão mais tradicional de feminilidade,
em vários momentos Suzana tentava romper com isso, adotando um padrão bem mais assertivo e
perturbador, algo já denunciado pela literatura como típico de alunos dos setores populares.62
CAPÍTULO V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estatísticas oficiais têm demonstrado, ao longo dos anos, que o fracasso escolar é mais
expressivo no alunado masculino. Meninas tendem a obter melhores resultados tanto no Ensino
Fundamental quanto no Ensino Médio.
De posse dessas informações, o projeto de pesquisa partiu do pressuposto de que a
universalização do acesso ao Ensino Fundamental, amplamente divulgada pela imprensa e pelos órgãos
governamentais, não tem se traduzido na conclusão dessa modalidade da Educação Básica.
A análise de ampla literatura sobre o tema revelou que pouquíssimos estudos dedicaram-se a
examinar esse fenômeno sob o ponto de vista das relações de gênero. Em geral, as pesquisas mencionam
o aluno no singular e no masculino, como se todas as crianças, a não ser por seu distinto pertencimento de
classe, fossem iguais e também como se a escola fosse uma instituição isenta de discriminações dessa
natureza.
Excelentes trabalhos desvendaram os mecanismos intra-escolares de produção, manutenção e
reprodução de trajetórias escolares de insucesso. Entretanto, grande parte dessas pesquisas fundamentou
suas descobertas apenas nas discriminações de classe.
A pergunta permanecia: por que meninos fracassam mais que meninas? Ou ainda: por que sua
trajetória escolar tem sido mais acidentada?
Sem muito respaldo teórico no início, passei a dialogar com as poucas referências que
investigavam esse problema sob a ótica das relações de gênero. Um dos primeiros contatos foi com
Carvalho (2001b), para quem as possíveis respostas precisavam ser buscadas no cotidiano escolar,
especialmente nos critérios de avaliação adotados de forma implícita e/ou explícita, em avaliações
formais e informais, sobre o desempenho de meninos e meninas.
Para essa autora, com base nesses critérios, uma série de fatores poderia estar atuando na
construção do fracasso ou do sucesso, e a literatura já tinha posto em evidência um deles: as
discriminações de classe. No entanto, nada se perguntava sobre os demais fatores em sua intersecção com
o pertencimento social.
62
Foram especialmente úteis as leituras de Mac an Ghahill (1994) e Connell (1995).
108
Rosemeire dos Santos Brito
Parti então da premissa de que o gênero, o fato de o indivíduo ser homem ou mulher, menino ou
menina, ajudava a constituir sua posição na sociedade e, por conseguinte, o poder que ele poderia
adquirir, seu acesso a bens materiais, a observação de seus direitos, nesse caso em especial o direito à
educação.
Além do trabalho realizado por Carvalho (2001b), foi basilar para a formulação da hipótese
inicial de investigação a pesquisa empreendida por Silva e colaboradores (1999), na qual encontrei o
postulado de que tais resultados decorriam de uma “educação diferenciada” dada a meninos e meninas.
Em virtude de discriminações de gênero nas relações escolares, os professores entrevistados manifestaram
expectativas diferentes quanto ao rendimento de meninos e meninas.
Os garotos eram vistos como mais inteligentes, porém indisciplinados, ao passo que as garotas
eram consideradas menos inteligentes, mas mais responsáveis, dedicadas, estudiosas, interessadas,
sensíveis e atentas.
Tal constatação surgiu da leitura dos comportamentos divergentes dos estudantes, como se tais
condutas fossem naturalmente nadas, como se não houvesse todo um processo de construção anterior à
própria experiência da escolarização.
Essa descoberta levou-me a buscar na socialização infantil explicações para o insucesso
masculino. Isto é, o processo de socialização nas várias instituições sociais presentes na vida da criança
contribuía ou não para a formação dessas condutas?
Como até esse momento ainda não havia clareza de algumas implicações, eu pretendia averiguar
se a socialização infantil fornecia elementos para a aquisição e a aceitação de papéis de gênero
fundamentados de forma a justificar a polaridade meninos inteligentes versus meninas esforçadas, com
piores resultados para os primeiros.
Essa binaridade constituía o eixo principal da explicação fornecida por Silva e colaboradores
(1999) a respeito do insucesso masculino. O baixo rendimento dos alunos poderia ser explicado pela
socialização, que os ensinava a se comportar de forma mais livre, menos responsável, assertiva e
desafiadora, originando uma conduta mais incompatível com os objetivos e as normas escolares.
As meninas, em contrapartida, seriam educadas desde a mais tenra infância para se mostrar
passivas e obedientes, razão pela qual tinham maiores chances de exercer com êxito o ofício de
alunas. A escolarização, portanto, seria uma etapa de vida muito mais tranqüila para elas do que para os
meninos, ou a escola estaria fracassando mais com eles do que com elas.
Tal argumento tem sido amplamente debatido não só no Brasil como em vários países do mundo.
Essa idéia encontra-se no bojo de uma tese que vê os meninos como as atuais vítimas da educação e cujo
grande expoente é o terapeuta norte-americano William Pollack (1999).
Segundo esse autor, os estudantes do sexo masculino viveriam atrás de uma máscara que os
obriga a se apresentar diante da sociedade como indivíduos fortes, independentes, sem poder manifestar
seus reais sentimentos, ocultando desse modo seu verdadeiro eu. Para Pollack (1999), as escolas
109
Rosemeire dos Santos Brito
desconhecem esse processo e têm falhado insistentemente no atendimento das necessidades específicas
desses alunos.
Tomando esse argumento como eixo de suas reflexões, o autor defende a idéia da
masculinização do espaço escolar, com a contratação de mais professores homens e, em última instância,
com a criação de escolas destinadas a cada sexo, alternativa vista por ele como a mais eficaz para o
desenvolvimento e crescimento de alunos de ambos os sexos.
Apoiada nesses dois postulados, no início da investigação empírica eu ainda acreditava na
possibilidade de a escola não estar de fato preparada para lidar com a especificidade da masculinidade.
Entretanto, ao longo da pesquisa de campo, fui reconstruindo essa hipótese, ao entrar em contato
com trabalhos que procuravam analisar o fenômeno de outras perspectivas. Como no Brasil o debate
sobre esse tema está apenas engatinhando, me propus a estudar, de modo especial em publicações anglosaxônicas e australianas, como essa questão vem sendo avaliada em outros países.
A primeira descoberta importante foi que as bases sobre as quais eu havia construído minha
hipótese inicial eram absolutamente polares, uma vez que contrapunham meninos versus meninas,
fracasso versus sucesso, em uma lógica que os apresentava como perdedores e as meninas como
vencedoras.
Além disso, tratava-se de um discurso universalizante ou absolutista, pois fazia imaginar que
todos os meninos, necessariamente, apresentavam resultados insatisfatórios e/ou que todas as garotas
obtinham êxito.
Esses dois achados me incentivaram a buscar mais elementos que permitissem aprimorar minha
hipótese e apurar meu olhar para a coleta de dados empíricos. Um processo longo, mas ao final dele as
indagações formuladas já não eram as mesmas.
Vários autores63 concorreram para isso, mostrando que o fenômeno do insucesso masculino era
muito mais complexo do que eu inicialmente imaginava. Também as contribuições de minha orientadora
e da banca presente no exame de qualificação foram fundamentais para que eu empreendesse uma análise
mais cuidadosa do fracasso/sucesso escolar no universo pesquisado.
Com base nas críticas e nas sugestões de leitura e reexame do material empírico, foi possível
considerar que da mesma forma que as discriminações de classe poderiam estar imbuídas dos significados
de gênero, o inverso também ocorria. E assim compreendi como era essencial ir além do próprio gênero
para analisar o fenômeno.
Nesse sentido, ficou mais nítido ainda que eu não podia assumir como ponto de partida a idéia de
que meninas eram socializadas para a passividade e que por isso obtinham sucesso em seu rendimento
escolar. O contrário tampouco não conseguiria explicar, isoladamente, o malogro masculino.
63
Epstein e colaboradoras (1998), Mahony (1998), Cohen (1998), Reed (1998), Jackson (1998),
Warrington e Younger (2000), Gilbert e Gilbert (1998), Connell (1998), Kimmel (2000).
110
Rosemeire dos Santos Brito
Era preciso então problematizar as várias hierarquias presentes na dinâmica das relações
escolares e verificar em que medida elas contribuíam ou não para a obtenção de resultados diferenciados
entre meninos e meninas.
Fazia-se necessário, sobretudo, uma releitura dessa concepção de comportamento masculino
versus feminino, com o objetivo de averiguar os vários elementos que compunham o olhar da professora
para essa questão e que poderiam ou não estar contribuindo para a formação de expectativas diferenciadas
sobre o rendimento de meninos e meninas.
A polaridade inicial ia sendo aos poucos abandonada e em seu lugar foi surgindo um conjunto
muito mais amplo e variado de questões: que meninos estão fracassando? Com relação a quem? Sob quais
critérios? Em que condições?
Com essas indagações em mente, fui saindo de uma perspectiva binária e partindo para uma
concepção mais plural de significados masculinos e femininos no cotidiano escolar, e ela apontava para a
existência de múltiplas masculinidades e feminilidades, construídas não só nas relações de gênero mas
também no pertencimento social, racial e étnico.
Conseqüentemente, a idéia era verificar como a escola poderia estar atuando na produção dessas
diferentes gradações de masculino e feminino, e analisar quais as implicações desse processo para o
rendimento escolar.
A análise dos depoimentos da professora revelou que o comportamento era uma variável
importante, desde que associado a elevados graus de dependência do(a) aluno(a) com a educadora e à
falta de iniciativa dele(a) em sala de aula. O ponto central da explicação para o insucesso de meninos
deixava de ser pura e simplesmente a questão da conduta e passava a ser a menor ou a maior possibilidade
de um aluno mostrar-se ou não autônomo, autodidata, alguém enfim capaz de aprender apesar da escola.
Apoiada nesse fundamento, a professora Fernanda construiu hierarquias para classificar os
estudantes em níveis: mais difíceis, medianos e bons.
O primeiro grupo era constituído por três garotos que haviam apresentado ao longo do ano
resultados insatisfatórios em Português e Matemática. Os alunos incluídos no grupo dos medianos eram
os que obtinham conceitos satisfatórios e/ou que haviam demonstrado alguma dificuldade específica mas
passageira em alguma matéria. Os estudantes classificados como bons eram os que obtinham o melhor
rendimento e que não haviam passado pelas oficinas de reforço.
Comparando as três classificações, foi possível compreender que a presença ou a ausência de
independência era o que explicava os resultados diferenciados. O cruzamento dessa informação com os
pontos abordados na literatura revelou a existência de múltiplos modelos de masculinidades e
feminilidades, conforme o pertencimento social.
O grupo de estudantes vistos pela professora como os mais difíceis eram alunos com problemas
de indisciplina e poucas chances de exercerem a chamada autonomia, uma vez que não tinham acesso a
bens culturais, como ocorria com outras crianças da mesma classe.
111
Rosemeire dos Santos Brito
Além disso, verificou-se a existência de diferentes gradações de masculinidades e feminilidades:
aqueles que apresentavam os melhores resultados tendiam a desempenhar uma performance de
masculinidade ou feminilidade fundamentada na racionalidade, na responsabilidade, no alto investimento
em educação, visando ascender socialmente através das credenciais escolares ou construir uma sólida
carreira profissional com alicerces já lançados nos primeiros anos de escolarização.
A professora, contudo, por aparentemente desconhecer toda essa complexidade, mantinha uma
relação mais conflituosa, fria e distante com os três garotos que compunham o primeiro grupo, dos mais
difíceis.
Observações diretas do cotidiano escolar revelaram que possivelmente esses três estudantes
estivessem exercendo um padrão de masculinidade conhecida como masculinidade de protesto, mais
presente nas classes trabalhadoras e caracterizada essencialmente por atitudes antiescola.
Por não ter parâmetros e fundamentos para compreender tais atitudes de forma mais profunda e
complexa, menos polar, a escola talvez esteja estimulando esses garotos a darem os primeiros passos na
construção de uma longa trajetória de insucesso acadêmico.
Por fim, a análise dos depoimentos de crianças e famílias confirmou a existência dessa
pluralidade de masculinidades e feminilidades, cujas diferenças puderam ser explicadas sob a ótica do
pertencimento social.
Com isso, espero contribuir para o aprofundamento do debate sobre o insucesso de meninos na
escola, possibilitando que se desenvolva um olhar mais plural e dinâmico sobre essa questão. Que a
complexidade, e não a binaridade, seja levada em conta quando se analisa fracasso escolar.
112
Rosemeire dos Santos Brito
CAPÍTULO VI – BIBLIOGRAFIA
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