alquimia - As Travessias

Transcrição

alquimia - As Travessias
Titus Burckhardt
ALQUIMIA
Ciência do cosmos,
ciência da alma
1
Fons Vitae
Louisville Kentuchy
A partir da tradução inglesa de William Stoddart
Tradução (amadora, para uso particular) para a língua
portuguesa: Bruno Costa Magalhães
Ilustração da capa: o casamento do rei e da rainha, do sol e da
lua, sob a influência do mercúrio espiritual. Do Philosopher´s
Rosegarden´, de Arnaldus von Villanova, manuscrito na
Biblioteca Vadiana, St. Gallen
2
FONS VITAE
ALCHEMY
Filho do escultor suíço Carl Burckhardt,
Titus Burckhardt nasceu em 1908. Sua juventude foi dedicada a
estudos da arte, história da arte, línguas orientais e a viagens pelo
norte da África e Oriente Próximo. Em 1942 ele tornou-se
diretor da Urs Graf-Verlag, uma editora especializada em edições
fac-símile de manuscritos antigos. Lá permaneceu até 1968.
Além de escrever livros em alemão, ele traduziu diversos e
importantes trabalhos do árabe. De seus trabalhos foram
publicados em língua inglesa, An Introduction to Sufi Doctrine,
Sacred Art in East and West, Moorish Culture in Spain, The Art
of Islam, Sienna, Fez City of Islam, Chartres e uma coleção de
seus ensaios Mirror of the Intellect. Os últimos três, assim como
Alquimia, foram traduzidos do alemão por William Stoddart.
3
ALCHEMY
A editora Fons Vitae orgulha-se de
anunciar a publicação de uma nova edição de Alchemy, dedicada
a Madame Edith Burckhardt. A realização espiritual tem sido
frequentemente descrita na terminologia da tradição alquímica,
pela qual a natureza sombria que dirige o homem é reconduzida
ao ouro, seu estado original. Isso tem sido frequentemente
tratado
como
'alquimia
espiritual'.
Nesse
volume
maravilhosamente esclarecedor somos conduzidos a algumas
dessas metáforas que se têm mostrado úteis para estabelecer
determinadas atitudes na alma, entre elas: confiança e
resignação, responsabilidade e esperança. Por exemplo: há uma
clara pertinência simbólica na seguinte analogia: qualquer
substância, ou entidade, submetida à dissolução (isso pode dar-se
inclusive em um relacionamento) pode finalmente ser
recristalizada em uma nova forma. Em outras palavras, um novo
ser é resolidificado em uma forma mais alta e mais nobre.
4
ÍNDICE
Introdução
6
1 A origem da alquimia ocidental
9
2 Natureza e linguagem da alquimia
19
3 A sabedoria hermética
28
4 Espírito e matéria
50
5 Planetas e metais
68
6 A rotação dos elementos
82
7 Da materia prima
87
8 Natureza universal
104
9 “A natureza pode dominar a natureza”
111
10 Enxofre, mercúrio e sal
127
11 Do “casamento químico”
138
12 A alquimia da oração
145
13 O Athanor
148
14 A história de Nicolas Flamel e de sua esposa 159
Perrenelle
15 Os estágios do trabalho
169
16 A Tábua de Esmeralda
180
17 Conclusão
186
Lista cronológica de autores herméticos e místicos 189
citados
Bibliografia de trabalhos clássicos
5
190
INTRODUÇÃO
Desde o Século do Iluminismo até os dias
de hoje, a alquimia tem sido comumente considerada como a
precursora da química moderna. Por isso, quase todos os
estudiosos que se dedicam a suas obras não têm tido motivo para
ver nela algo além do que um estágio inicial de futuras
descobertas na área da química. Esse modo unilateral de tratar a
alquimia tem pelo menos o mérito de causar a distinção a ser
feita entre seu conjunto de documentos a respeito de
experiências artesanais tradicionais – na preparação de metais,
corantes e vidros – e os procedimentos aparentemente irracionais
que desempenham um papel na alquimia como tal. Como esse
conjunto de documentos a respeito das experiências artesanais é,
como se sabe, longe de ser insignificante, a obediência teimosa
dos alquimistas a fórmulas químicas sem significado do seu
magistério não pode deixar de parecer mais peculiares. As
pessoas rapidamente concluem que o insaciável desejo de
produzir ouro persistentemente motivou os homens a acreditar
em um grande número de receitas fantásticas, o que, a bem da
verdade, não são nada mais que uma aplicação popular e
supersticiosa da filosofia da natureza dos antigos; como se os
alquimistas tivessem tentado, em parte através de procedimentos
físicos, e em parte através de evocações mágicas, tomar posse
direta da materia prima aristotélica – o fundamento de todas as
coisas.
Nunca pareceu chamar a atenção de
ninguém como no mínimo improvável que uma 'arte' assim dessa
espécie poderia, apesar de suas loucuras e decepções, ter
implantado a si mesma por séculos a fio nas mais diversas
culturas no ocidente e no oriente. Pelo contrário, as pessoas estão
mais inclinadas a adotar o ponto de vista de que, há até um
século, toda a humanidade estava sonhando um sonho estúpido,
cujo despertar veio apenas com a nossa época. Como se a
faculdade espiritual-intelectual do homem – seu poder de
distinguir o real do irreal – estivesse igualmente sujeita a alguma
espécie de evolução biológica.
Esse modo de olhar para a alquimia é
contradito por um determinado princípio de unidade organizado
6
pela própria alquimia: descrições do 'grande trabalho' agitam-se
a partir de várias culturas e vários séculos evidenciam, embora, é
bem verdade, haja uma multiplicidade de símbolos,
determinadas características invariáveis, que não são explicadas
empiricamente. Essencialmente, a alquimia indiana é idêntica à
ocidental; e a alquimia chinesa, embora arranjada em uma
atmosfera espiritual completamente diferente, pode lançar luzes
em ambas. Se a alquimia não fosse nada além de uma impostura,
a sua forma de expressão revelaria arbitrariedades e loucuras a
todo momento; mas, na verdade, ela parece possuir todos os
sinais de uma 'tradição' genuína, ou seja, uma orgânica e
consistente – embora não necessariamente sistemática – doutrina
e um claro corpo de regras estabelecidas e persistentemente
exposta por seus adeptos. Assim, a alquimia não é nem um
produto híbrido ou fruto do acaso da história humana. Pelo
contrário, representa uma profunda possibilidade para o espírito
e para a alma.
Essa também é a posição da autodenominada 'psicologia profunda', que pretende encontrar no
simbolismo alquímico uma confirmação de suas próprias teses a
respeito do 'inconsciente coletivo'1. De acordo com essa visão, o
alquimista, na sua busca sonhadora, traz à luz do dia
determinados conteúdos da sua própria alma que eram
desconhecidos, e assim, sem pretender conscientemente fazê-lo,
traz um tipo de reconciliação entre a sua consciência individual,
superficial e cotidiana, e o poder do 'inconsciente coletivo', ainda
não formado (mas em busca de formação) . Supôs-se que essa
reconciliação daria lugar a uma experiência de satisfação íntima,
que subjetivamente tem sede no magistério alquímico. Essa
visão, assim como as precedentes, é baseada na premissa de que
a primeira intenção dos alquimistas é fazer ouro. Considerava-se
que o alquimista se havia envolvido em alguma forma de
loucura, ou auto-engano, e em razão disso havia sido levado a
pensar e a agir como alguém que está sonhando. Essa explicação
possui alguma plausibilidade, desde que, de alguma forma, ela se
aproxima da verdade – apenas para se afastar dela
1Veja Herbert Silberer, Probleme der Mystik un thre Symbolik, Viena, 1914: C. G.
Jung, Psychologie und Alchemie, Zurich, 1944 y 1952, y Mysterium Conjunctionis,
Zurich, 1955 e 1957.
7
imediatamente. É verdade que a realidade espiritual na qual o
alquimista trabalha é uma espécie de iniciação, é algo de que o
iniciante está mais ou menos inconsciente, é algo que está
escondido no fundo da alma. Apesar disso, esse 'segredo
profundo' não deve ser confundido com o caos do assimchamado 'inconsciente coletivo' – tanto quando esse conceito
algo elástico tenha algum significado preciso. A 'fonte de
juventude' dos alquimistas não surge em nenhum sábio a partir
de um substrato psíquico obscuro; ela flui através da mesma
fonte do espírito. Ela é escondida dos alquimistas no começo do
seu 'trabalho', não porque está abaixo mas sim porque está acima
do nível do processo de consciência mental.
A hipótese dos psicólogos se evapora na
medida em que se compreende que os alquimistas genuínos
nunca estiveram enredados em nenhum sonho de satisfação de
desejos de fazer ouro, nem perseguiam seu objetivo como
sonâmbulos, ou por meio de 'projeções' passivas do conteúdo
inconsciente de suas almas! Pelo contrário, eles seguiam um
método deliberado, cuja expressão metalúrgica – a arte de
transmutação de metais comuns em prata ou ouro –
reconhecidamente enganou diversos pesquisadores nãoiniciados, embora em si mesmo seja ele lógico e, ademais,
realmente profundo.
8
CAPÍTULO 1
A ORIGEM DA ALQUIMIA OCIDENTAL
A alquimia existe desde, pelo menos,
metade do primeiro milênio antes de Cristo, e provavelmente
desde os tempos pré-históricos. À pergunta sobre como pôde a
alquimia existir por milênios em civilizações tão amplamente
separadas, como a do Oriente Próximo e a do Extremo Oriente, a
resposta da maioria dos historiadores possivelmente seria a de
que o homem tem repetidamente falhado na tentativa de ficar
rico rapidamente buscando fazer ouro e prata através de metais
comuns, até que os químicos empíricos do séc. XVIII finalmente
provaram que os metais não podem ser transformados um em
outro. Na realidade, entretanto, a verdade é muito diferente e,
pelo menos em parte, diametralmente oposta.
Ouro e prata já eram metais sagrados antes
mesmo de serem transformados em medida de todas as
transações comerciais. Eles são o reflexo terrestre do Sol e da
Lua, e assim também de todas as realidades do espírito e da alma
que estão relacionadas os pares celestiais. Até mesmo na Idade
Média o valor relativo desses dois metais nobres era determinado
pela relação entre os tempos de rotação desses dois corpos
celestes. Também as moedas antigas usualmente apresentavam
figuras ou sinais relacionados ao Sol ou à sua rotação anual. Para
o homem dos tempos pré-racionalistas, a relação entre os metais
nobres e os dois luminares era óbvia, e todo um mundo de
noções mecanicistas e os preconceitos acabaram necessariamente
obscurecendo a realidade auto-evidente dessa relação e fazendo
com que ela acabasse parecendo um acidente estético.
Não se deve confundir um símbolo com
uma mera alegoria, nem tentar ver nele a expressão de um
instinto coletivo algo nebuloso e irracional. O verdadeiro
simbolismo depende do fato de que as coisas, se se podem
modificar em razão de tempo, espaço, natureza material, e de
várias outras características limitativas, podem, por outro lado,
possuir e exibir a mesma qualidade essencial. Elas, assim,
aparecem como diversos reflexos, manifestações ou produções
9
da mesma realidade – que, em si mesma, é independente de
tempo e de espaço. Assim, não é muito correto dizer que o ouro
representa o Sol, ou que a prata representa a Lua;
diferentemente, trata-se de que os dois metais nobres e os dois
luminares são símbolos das mesmas realidades cósmicas e
divinas2.
A magia do ouro, assim, vem da sua
natureza sagrada, ou perfeição qualitativa, e apenas
secundariamente do seu valor econômico. Em vista da natureza
sagrada do ouro e da prata, a obtenção desses dois metais só
poderia ser uma atividade sacerdotal, assim como a cunhagem de
moedas de ouro e prata era prerrogativa apenas de determinados
lugares sagrados. Em sintonia com isso está o fato de que os
procedimentos metalúrgicos relativos ao ouro e à prata, que
foram preservados em algumas assim-chamadas sociedades
primitivas dos tempos pré-históricos, revelam abundantes sinais
da sua origem sacerdotal3. Nas culturas 'arcaicas', ainda não
familiarizadas com a dicotomia do 'espiritual' e do 'prático', nas
quais tudo era visto em relação com a unidade íntima do homem
e do cosmos, a preparação dos minérios era sempre realizada
como um procedimento sagrado. Como regra, era prerrogativa da
casta sacerdotal, chamada a esta atividade por comando divino.
Onde não era assim, como no caso de determinadas tribos
africanas, que não possuíam suas próprias tradições
metalúrgicas, o fundidor ou ferreiro, como um intruso não
autorizado na sagrada ordem da natureza, caía na suspeição de
envolvimento com a magia negra4.
O que aos olhos do homem moderno
parece superstição – e o que, em parte, apenas sobreviveu como
tal – é na verdade um pressentimento de uma profunda relação
entre a ordem natural e a alma humana. O homem 'primitivo'
estava bem consciente de que a produção de minérios no 'ventre'
da terra e a sua violenta purificação pelo fogo era algo sinistro, e
cheio de possibilidades perigosas, mesmo que eles não tivessem
2Na obra etnológica de E. E. Evans-Pritchard, Nuer Religion, capítulo «The
Problems of Symbols», Oxford at the Clarendon Press, 1956, há uma excelente
explicação do que se pode entender por símbolo.
3Veja Mircea Eliade, Forgerons et Alchimistes, coleção «Horno sapiens», París,
1956.
4ibid.
10
todas as provas de que a história da Era dos Metais tão
abundantemente nos proveu. Para a humanidade 'arcaica' – que
não separava artificialmente matéria de espírito – a chegada da
metalurgia não foi simplesmente uma 'invenção', mas também
uma 'relevação', porque apenas um comando divino poderia
autorizar à humanidade o acesso a tal atividade. No início,
entretanto, essa revelação foi uma faca de dois gumes 5; ela
requeria uma prudência especial por parte de quem ela havia sido
recebida. Assim como o trabalho exterior do metalúrgico com os
minérios e o fogo apresentava algo de violento em relação a ele,
assim também a influência que pesava sobre o espírito e a alma –
que eram inescapáveis neste chamado – era de uma perigosa e
dúbia natureza. Em particular a extração de metais nobres a
partir de minérios impuros, por meio de solventes e de agentes
purificadores como o mercúrio e antimônio, e em conjunção com
o fogo, era inevitavelmente realizada contra as resistências de
sombrias e caóticas forças da natureza, assim como a conquista
da 'prata interior' ou do 'ouro interior' – na sua pureza imutável e
luminosidade – demanda a conquista de todos os impulsos
obscuros e irracionais da alma.
*
O diálogo seguinte, extraído da
autobiografia de um senegalês, mostra como em determinadas
tribos africanas o trabalho com o ouro foi continuamente tratado
como arte sagrada até os presentes dias6.
“... Assim que meu pai sinalizou, os dois
aprendizes começaram a trabalhar o fole da pele de carneiro que
estava situado em ambos os lados da fornalha e conectado a ela
por meio de cachimbos de barro... As chamas no forno
espoucavam e pareciam ganhar vida – um gênio animado e mau.
“Meu pai, então, pegou a panela de
fundição com sua longa pinça, e colocou-a nas chamas.
“De repente todas as outras ocupações na
forja cessaram, porque enquanto o ouro estava sendo fundido, e
5“Nós revelamos o ferro. Nele há força maligna e utilidade para os homens”
(Corão, LVII, 25).
6Camara Laye, L'Enfant noir, París, 1953.
11
enquanto ele esfriava, era proibido trabalhar nas suas
proximidades quer com o cobre, quer com o alumínio, para
evitar que uma partícula desses metais comuns entrasse na
panela de fundição. Apenas o aço poderia continuar a ser
trabalhado. Mas mesmo aqueles engajados em alguma tarefa
com o aço geralmente deveria terminá-la rapidamente ou deixála de lado, para juntar-se aos aprendizes em volta do forno...
“Quando meu pai sentiu que seus
movimentos estavam começando a ser impedidos pelos
aprendizes que se amontoavam em volta, fazia sinal para que
eles se afastassem. Nem ele, nem ninguém, poderia pronunciar
nenhuma palavra. A quietude era rompida apenas pelo chiado
dos foles e pelo assovio do ouro. Mas embora meu pai não
dissesse nenhuma palavra, eu sabia que ele falava para si; eu
podia vê-lo por seus lábios, que se moviam silenciosamente
assim que ele mexia no ouro e no carvão com uma vara – que,
assim que pegava fogo, era substituída.
“O que ele dizia para si? Eu não sei dizer
com certeza, já que ele nunca me disse. O que poderia ser senão
uma invocação? Ele não invocava os espíritos do fogo e do ouro,
do fogo e do vento – o vento que soprava através dos foles, do
fogo que vem do vento e do ouro que estava aliado ao fogo?
Certamente ele pedia ajuda e suplicava a sua cooperação e
comunhão; certamente que ele invocava esses espíritos que
estavam entre os mais importantes, e cujo apoio era muitíssimo
necessário para a fundição.
“O processo que acontecia diante de meus
olhos não era apenas e por fora a fundição do ouro. Havia algo
além disso: um processo mágico que os espíritos poderiam
favorecer ou atrapalhar. Daí porque a quietude reinou em volta
de meu pai...
“Não é notável que naquele momento uma
pequena cobra negra sempre permanecia escondida por baixo da
pele do carneiro? Porque ela nem sempre esteve lá. Ela não vem
visitar meus pais todos os dias, e ela nunca deixa de vir quando o
ouro está sendo trabalhado. Isso não me surpreende. Desde
então, em uma noite, meu pai me falou sobre o espírito da nossa
tribo, e eu achei muito natural que aquela cobra estivesse ali,
porque a cobra conhece o futuro...
12
“O artesão que trabalha o ouro deve antes
de tudo purificar-se, deve lavar-se da cabeça aos pés, e, durante o
trabalho deve abster-se de relações sexuais...”
*
Que existe um ouro interior, ou melhor, que
o ouro tem uma realidade interior, assim como uma realidade
exterior, é apenas lógico para o modo contemplativo de olhar as
coisas, que espontaneamente reconhece a mesma 'essência' no
ouro e no Sol. É aqui, e em nenhum outro lugar, que as raízes da
alquimia repousam. As origens da alquimia remontam à arte
sacerdotal dos antigos egípcios; a tradição alquímica que se
espalhou pela Europa e pelo Oriente Próximo, e que talvez até
mesmo influenciou a alquimia indiana, reconheceu como seu
fundador Hermes Trismegistos, o 'Hermes, o três vezes grande',
que é identificado com o antigo deus egípcio Thoth, o deus que
reina sobre toda a arte sacerdotal e científica, um pouco como
Ganesha no Hinduísmo. A expressão alchemia deriva do árabe
al-kimiya, que parece derivar do antigo egípcio kême – a
referência à 'terra negra', que era uma designação do Egito, e que
poderia ter sido também o símbolo da matéria-prima dos
alquimistas. Outra possibilidade é que a expressão deriva do
grego chyma ('fusão' ou 'fundição'). Em todo caso, os desenhos
alquímicos remanescentes mais antigos estão em papiros
egípcios. Que nenhum documento primitivo tenha chegado até
nós não é surpresa, desde que é uma característica essencial de
uma arte sagrada a sua transmissão oral; que seu registro escrito
possa ser encomendado é usualmente o primeiro sinal de
decadência ou do receio de que a tradição oral será perdida.
Assim, é completamente natural que o assim-chamado Corpus
Hermeticum, que compreende todos os textos atribuídos a
Hermes-Thoth, tenham chegado até nós em grego, e revestido
mais ou menos em uma linguagem platônica. Que esses textos
são, todavia, originados de uma tradição genuína, e que não são
fabricações pseudo-arcaicas dos gregos, é provado por sua
fecundidade espiritual. As evidência sugerem que a assimchamada 'Tábua de Esmeralda' é também parte do Corpus
Hermeticum. A Tábua da Esmeralda declara-se uma revelação de
13
Hermes Trismegistos, e é considerada pelos alquimistas que
escreveram em árabe e em latim como nada menos que a 'tábua
da lei' da sua arte. Não há nenhum texto primitivo da Tábua da
Esmeralda. Ela chegou até nós apenas em tradições árabes e
latinas – pelo menos tanto quanto se pesquisou até agora – mas
seu conteúdo evidencia sua autenticidade.
Em abono à origem egípcia da alquimia do
Oriente Próximo e do Ocidente está o fato de que toda uma série
de procedimentos artesanais, relacionados com a alquimia e
provendo-a de várias expressões simbólicas, apareceu como um
conjunto coerente a partir dos últimos tempos egípicios,
finalmente aparecendo nos livros prescritivos medievais. Este
corpo de procedimentos contém alguns elementos claramente
derivados do Egito. Entre esses procedimentos, além do trabalho
do metal e da preparação de tinturas, está a produção de pedras
preciosas artificiais e vidros coloridos, uma arte que floresceu no
Egito. De mais a mais, toda a arte egípcia dos metais e minerais,
no seu esforço para extrair o a essência, secreta e preciosa, de
uma 'substância' terrestre, mostra uma óbvia relação espiritual
com a alquimia.
A Alexandria egípcia, em seus últimos
tempos, foi sem dúvida o cadinho no qual a alquimia, juntamente
com outras artes e ciências cosmológicas, recebeu a forma na
qual ela nos é hoje conhecida, sem por isso ser alterada em
nenhum aspecto essencial. Pode muito bem ter sido nessa época
que a alquimia também adquiriu alguns temas da mitologia grega
e asiática. Isso não deve ser considerado um acontecimento
artificial. O crescimento de uma tradição genuína parece-se com
um cristal, que atrai partículas homólogas a si próprio,
incorporando-as de acordo com as suas próprias leis de
harmonia.
Dessa época em diante, podem-se observar
duas correntes na alquimia. Uma é predominante e naturalmente
artesanal; o simbolismo de um 'trabalho interior' aparece aqui
como um complemento a uma atividade profissional e é apenas
ocasional e incidentalmente mencionado; a outra faz uso de um
processo metalúrgico exclusivamente como analogia. Então se
pode até mesmo perguntar se esses procedimentos foram
utilizados 'exteriormente'. Isso fez com que alguns cunhassem a
14
distinção entre a alquimia artesanal – a qual se acredita seja mais
antiga – e a assim-chamada alquimia mística, que se supõe de
desenvolvimento superior. Na realidade, entretanto, trata-se de
dois aspectos de uma e mesma tradição, na qual o aspecto
simbólico é sem dúvida o mais arcaico.
Será sem dúvida questionado como foi
possível à alquimia, juntamente com o seu fundamento
mitológico, ser incorporada nas religiões monoteístas: judaísmo,
cristianismo e islã. A explicação para isso é que as perspectivas
cosmológicas próprias da alquimia, relativas tanto à esfera
externa dos metais (e minerais em geral) quanto ao terreno
interior da alma, estavam organicamente ligadas com a
metalurgia antiga, e assim esse fundo cosmológico foi recebido,
juntamente com as técnicas artesanais, simplesmente como uma
ciência da natureza (physis) no sentido mais amplo do termo,
assim como o cristianismo e o islã se apropriaram das tradições
pitagóricas na música e na arquitetura, e assimilaram a
correspondente perspectiva espiritual.
Do ponto de vista cristão, a alquimia era
como que um espelho natural para as verdades relevadas: a pedra
filosofal, que transformava metais em ouro, é um símbolo de
Cristo, e a sua produção a partir do 'fogo que não se queima' do
enxofre, e a 'água inabalável' do mercúrio simbolizam o
nascimento de Cristo-Emmanuel.
Através dessa assimilação pela fé cristão, a
alquimia foi espiritualmente fecundada, enquanto o cristianismo
encontrou nela um caminho que, através da contemplação da
natureza, conduzia a uma verdadeira 'gnosis'.
Ainda com maior facilidade a arte
hermética entrou no mundo espiritual islâmico. Este sempre
esteve pronto, em princípio, para reconhecer qualquer arte préislâmica que aparecesse sob o aspecto de 'conhecimento'
(hikmah) como patrimônio dos primeiros profetas. Assim, no
mundo islâmico, Hermes Trismegistos é algumas vezes
identificado com Enoch (Idrîs).
Foi a doutrina da 'unidade da existência'
(wahdat-al-wujûd) – a interpretação esotérica da confissão de fé
islâmica – que deu ao hermetismo um novo eixo espiritual ou,
em outras palavras, restabeleceu seu horizonte espiritual original
15
em toda a sua plenitude e libertou-a da sufocação do recente
'naturalismo' helenístico.
Enquanto isso, o simbolismo da alquimia,
como resultado da sua incorporação gradual no tardio e clássico
pensamento
semítico,
desenvolveu-se
numa
variada
multiplicidade. Apesar disso, alguns traços fundamentais,
próprios da alquimia como 'arte', permaneceram como seu sinal
específico através dos séculos: acima de tudo, mencione-se o
plano preciso do 'trabalho alquímico', as fases individuais com as
quais é caracterizado por meio de alguns processos 'simbólicos'
que nem sempre podem ser levados a cabo na prática.
Em um primeiro momento, a alquimia
entrou na civilização cristã ocidental através de Bizâncio, e
depois, e em maior medida, através da Espanha árabe. Foi no
mundo islâmico que a alquimia alcançou a plenitude de seu
florescimento. Jâbir ibn Hayyân, um discípulo do sexto Shiite
Imam Jafar as-Sâdiq, fundou no séc. XVIII d. C. uma verdadeira
escola, a partir da qual centenas de textos alquímicos fluíam.
Sem dúvida que foi em razão de o nome de Jâbir ter-se
transformado em uma marca de qualidade de grande erudição
alquímica, que o autor da Summa Perfectionis, um italiano ou
catalão do séc. XIII d. C., também assumiu o nome, Gebe, na sua
forma latinizada.
Quando, com o Renascimento, ocorreu a
grande irrupção da filosofia grega, uma nova onda de alquimia
bizantina alcançou o Ocidente. Nos séc. XVI e XVII vários
trabalhos alquímicos foram impressos, e até então existiam
apenas manuscritos que haviam circulado mais ou menos
secretamente. Como resultado disso, o estudo do hermetismo
alcançou um novo patamar; foi em breve, contudo, que entrou
em decadência.
O séc. XVII d. C. é algumas vezes
considerado como marca do florescimento completo do
hermetismo europeu. Na realidade, entretanto, a sua decadência
já havia começado no séc. XV d. C. e prosseguia sem demora
com o desenvolvimento humanístico e já fundamentalmente
racionalista do pensamento ocidental, pelo qual qualquer
perspectiva universal, espiritual e intuitiva, foi privado de seu
fundamento básico. É verdade que por determinado tempo,
16
imediatamente anterior à era moderna, elementos de uma gnosis
genuína, que haviam sido, com dificuldade, tirados do terreno da
teologia tanto pelo desenvolvimento sentimental unilateral dos
últimos místicos cristãos e pela tendência agnóstica inerente à
Reforma, encontraram refúgio na alquimia especulativa. Isso
sem dúvida explica fenômenos como os ecos de hermetismo
detectados em trabalhos de Shakespeare, Jakob Boehme e Georg
Gichtel.
A medicina que derivou da alquimia durou
mais que a própria alquimia. Paracelsus chamou a isso de
'spagyric medicine'. O termo vem das palavras gregas
correspondentes a 'divisão' e 'união' – correspondendo aos termos
alquímicos solve et coagula.
Em geral, a alquimia europeia que se
seguiu à Renascença teve um caráter fragmentário; como uma
arte espiritual, carecia de fundo metafísico. Isso é especialmente
verdade a respeito de seus últimos vestígios no séc. XVIII d. C. –
mesmo apesar do fato de que entre todos os 'queimadores de
carvão', homens de real gênio tais como Newton e Goethe se
ocuparam dela, embora sem sucesso.
Nesse ponto parece oportuno dizer
categoricamente que não pode haver alquimia 'independente' e
hostil à Igreja, porque o primeiro pré-requisito de toda arte
espiritual genuína é reconhecer tudo o que a condição humana,
na sua supremacia e na sua precariedade, necessita em vista de
sua salvação. Que haja também uma alquimia pré-cristã de
nenhum modo prova o contrário; a alquimia sempre foi, em
qualquer época, uma parte orgânica de uma tradição completa,
integral, que em certo sentido congregava todos os aspectos da
existência humana. Na medida, entretanto, em que o
Cristianismo revelou verdades que estavam escondidas da
antiguidade pré-cristã, isso deve ser levado em conta pelos
alquimistas cautelosos. É, assim, um grande erro acreditar que a
alquimia ou o hermetismo, por si sós, poderiam possivelmente
ser uma religião auto-suficiente, ou mesmo um paganismo
secreto. Qualquer atitude dessa espécie deve necessariamente ser
vista como racionalismo e humanismo que paralisa desde o
princípio qualquer esforço em direção ao magistério interior.
É verdade que 'o Espírito sopra onde quer',
17
e ninguém pode, de fora, impor delimitações dogmáticas em suas
manifestações; mas o Espírito não 'sopra' onde ele próprio – o
Espírito Santo – é renegado em qualquer de suas revelações.
Na realidade, a alquimia, que não é ela
mesma uma religião, requer a confirmação de uma revelação –
com os seus meios de graça –, que é endereçada a todos os
homens. Essa confirmação consiste no reconhecimento da via e
do trabalho alquímicos pelos próprios alquimistas como um meio
específico de acesso ao significado completo da mensagem
eterna e salvífica da relevação.
Não devemos nos alongar na história da
alquimia, que, em todo caso, não é conhecida em detalhes, sem
dúvida em grande parte em razão de que a transmissão de uma
arte esotérica geralmente ocorre oralmente. Um último ponto
deve, apesar disso, ser mencionado; o fato de que escritores
alquímicos assumam nomes fantásticos, fora de qualquer relação
com a cronologia, alegadamente como seus autores ou fontes,
em nenhum sentido milita contra o valor dos textos em questão;
porque, independentemente do fato de que o ponto de vista
histórico e o conhecimento alquímico não tenham nada a ver um
com o outro, esses nomes (como no caso do Geber latino) são
indicações de uma dada 'corrente' da tradição, em vez de
pretender ser certificados de autoria. A questão sobre se dado
texto hermético é genuíno ou não, vale dizer, se ele procede de
um conhecimento e experiência verdadeiros da arte hermética,
ou se foi simplesmente coletado arbitrariamente, não pode ser
determinada nem pela filologia, nem pela comparação com a
química empírica; o único critério é a unidade espiritual da
tradição mesma.
18
CAPÍTULO 2
NATUREZA E LINGUAGEM DA ALQUIMIA
No meu livro a respeito dos princípios e
métodos da arte sagrada7, mais de uma vez tive a ocasião de
mencionar a alquimia, a título de comparação, quando se
considera a criação artística como aparece dentro da tradição
sagrada, não do ponto de vista de seu aspecto estético externo,
mas como um processo interno cuja meta é o amadurecimento,
'transmutação', ou renascimento da alma do próprio artista. A
alquimia também foi chamada arte – precisamente a 'arte real'
(ars regia) – por seus mestres e, com sua imagem da
transmutação dos metais comuns em ouro e prata, se presta como
um magnífico símbolo evocativo do processo interno a que ela se
refere. Efetivamente a alquimia pode considerada a arte da
transmutação da alma. Ao dizer isso não estou buscando negar
que os alquimistas também conheciam e praticavam os
procedimentos metalúrgicos, tais como a purificação e a liga de
metais; seu trabalho real, entretanto, dos quais estes
procedimentos são meramente o suporte exterior, ou símbolos
operacionais, foi a transmutação da alma. O testemunho dos
alquimistas nesse ponto é unânime. Por exemplo, no The Book of
Seven Chapters, que foi atribuído a Hermes Trismegistos, o pai
da alquimia ocidental e do Oriente Próximo, lemos: “Veja, eu
abri diante de você o que estava escondido: O trabalho
[alquímico] está em suas mãos e juntamente com você; na
medida em que se encontra dentro de você e é duradouro. Você
sempre terá isso presente, onde quer que você esteja, na terra ou
no mar...”8. E no famoso diálogo entre o rei árabe Khalid e o
sábio Morienus (ou Marianus) se disse como o rei questionou o
sábio sobre onde se poderia encontrar algo com que se pudesse
realizar o trabalho hermético. A isso Morienus se silenciou, e foi
apenas após muita hesitação que ele respondeu: “Ó rei, eu lhe
digo a verdade, que Deus, em sua misericórdia, criou essa coisa
extraordinária dentro de você; onde quer que você esteja, está
7Vom Wesen heiliger Kunst in den Weltreligionen, Origo-Verlag, Zurich, 1955, y
Príncipes et méthodes de l’art sacré, Lyon, 1968.
8 Bibliothèque des Philosophes Chimiques, ed. por G. Salmon, París, 1741.
19
sempre com você e nunca pode ser separado de você...”9.
A partir de tudo isso, veremos que a
diferença entre a alquimia e qualquer outra arte sagrada é que o
conhecimento alquímico não é alcançado visivelmente, na plano
externo artesanal, como na arquitetura e na pintura, mas apenas
no coração; porque a transmutação de chumbo em ouro, que
constitui o trabalho alquímico, de longe ultrapassa as
possibilidades do conhecimento artesanal. O caráter miraculoso
desse processo – efetuando um 'salto' que, de acordo com os
alquimistas, a natureza por si própria, apenas pode realizar em
um tempo imprevisivelmente longo – destaca a diferença entre
as possibilidades corporais e aquelas da alma. Enquanto uma
substância mineral – cuja solução, cristalização, fundição e
aquecimento podem refletir até certo ponto as mudanças da alma
– deve permanecer confinada em limites definidos, a alma, por
sua parte, pode superar os limites 'físicos' correspondentes,
graças ao encontro com o espírito, que não é confinado por
nenhuma forma. O 'chumbo' representa o caótico, 'pesada' e
doentia condição do metal ou do homem interior, enquanto o
ouro – 'luz congelada' e 'sol terreno' – representa a perfeição da
existência metálica e humana. Na perspectiva dos alquimistas, o
ouro é a efetiva meta da natureza metálica; todos os outros
metais são passos preparatórios, ou experimentais, para esse fim.
O ouro, em si mesmo, possui o equilíbrio harmonioso de todas as
propriedades metálicas e assim também possui durabilidade. O
'cobre não encontra sossego até que se transforme em ouro', disse
Mestre Eckhart, referindo-se, na realidade, à alma, que anseia
por seu próprio ser eterno. Assim, em contraste com a acusação
usual contra eles, os alquimistas não procuram, por meio de
fórmulas secretamente conservadas, nas quais apenas eles
acreditam, fazer ouro de metais ordinários. Quem quer que
realmente tenha desejado tentar isto pertence aos chamados
'charcoal burners' que, sem nenhuma conexão com a tradição
alquímica viva, e puramente com base no estudo de textos que
eles apenas podem compreender no sentido literal, buscaram
alcançar o 'grande trabalho'.
9Ibíd. II. O relato do diálogo entre o rei árabe Chalid e o monge Morieno, o
mariano, foi provavelmente o primeiro texto alquímico treduzido do árabe para o
latim.
20
Como um caminho que pode conduzir o
homem ao conhecimento do seu próprio ser eterno, a alquimia
pode ser comparada com o misticismo. Isso também é indicado
pelo fato de que as expressões alquímicas foram adotadas pela
mística cristã, e ainda mais pela islâmica. Os símbolos
alquímicos da perfeição referem-se ao conhecimento espiritual
da condição humana, ao retorno ao centro ao qual as três
religiões monoteístas chamam de reconquistas do paraíso
terrestre. Nicolas Flamel (1330-1417), que foi um alquimista que
recorreu à linguagem da fé cristã, escreveu sobre a conclusão do
trabalho, que ele 'transforma o homem em bom, afastando dele a
raiz de todos os pecados, especificamente a cobiça. Então ele
torna-se generoso, benigno, piedoso, crente e temente a Deus,
independentemente de quão mal ele havia sido anteriormente;
porque, a partir de então, ele estará sempre cheio da graça e
misericórdia com que ele foi recebido por Deus, e com o mais
profundo de seus maravilhosos trabalhos10.
A essência e o objetivo do misticismo é a
união com Deus. A alquimia não fala disso. O que tem relação
com o caminho místico, entretanto, é a meta alquímica de
reconquistar a nobreza original da condição humana e o seu
simbolismo; porque a união com Deus é possível apenas em
virtude daquilo que, a despeito do abismo incomensurável entre
a criatura e Deus, une o antigo ao mais recente – e isso é o
'teomorfismo' de Adão, que foi 'deslocado' ou se tornou inefetivo
pela Queda. A pureza do homem simbólico deve ser
reconquistada antes que a forma humana possa ser reassumida
no seu arquétipo infinito e divino. Compreendida em seu aspecto
espiritual, a transmutação do chumbo em ouro não é nada além
da reconquista da original nobreza da natureza humana. Assim
como a inigualável qualidade do ouro não pode ser produzida
pela soma exterior das propriedades dos metais tais como massa,
dureza, cor etc., assim a perfeição 'adâmica' não é uma mera
assimilação de virtudes. É tão inimitável quanto o ouro. E o
homem que tenha 'realizado' esta perfeição não pode ser
comparado com os outros. Tudo nele é original, no sentido de
que o seu ser está completamente acordado e unido com a sua
origem. Na medida em que a realização desse estado
10 Bibl, des Phil. Chim.
21
necessariamente pertence à via mística, a alquimia pode, de fato,
ser considerada como um ramo do misticismo.
Ademais, o 'estilo' da alquimia é tão
diferente do misticismo, que é diretamente baseado em uma fé
religiosa, que alguns foram tentados a chamá-lo de 'misticismo
sem Deus'. Essa expressão, entretanto, é perfeitamente
disparatada, para não dizer completamente falsa, porque a
alquimia pressupõe a crença em Deus, e praticamente todos os
mestres dão grande importância à prática da oração. Essa
expressão é verdadeira apenas na medida em que a alquimia, em
si mesma, não possui nenhuma armadura teológica. Assim, a
perspectiva teológica tão característica do misticismo não
delimita o horizonte intelectual da alquimia. O misticismo judeu,
cristão e muçulmano é centrado na contemplação de uma
verdade revelada, um aspecto de Deus, ou uma 'ideia' no sentido
mais profundo da palavra; ele é a realização espiritual dessa
ideia. A alquimia, por sua vez, não é primeiramente nem
teológica (ou metafisica) nem ética; ela olha ao conjunto dos
poderes da alma de um ponto de vista puramente cosmológico e
trata a alma como uma 'substância' que deve ser purificada,
dissolvida e cristalizada novamente. A alquimia age como uma
ciência ou arte da natureza, em razão disso todos os estados da
consciência íntima são vias da uma única 'natureza' que engloba
tanta as formas externas, visíveis e corporais quanto as formas
internas e invisíveis da alma.
Por tudo isso, a alquimia não está isenta de
um aspecto contemplativo. De forma alguma isso consiste em
mero pragmatismo vazio de intuição espiritual. A sua natureza
espiritual e, de certo modo, contemplativa reside diretamente na
sua forma concreta, na analogia entre o reino mineral e o reino
da alma; essa similaridade pode apenas ser percebida por uma
visão que seja capaz de olhar as coisas materiais
qualitativamente – intimamente, num certo sentido –, e que
compreenda as coisas da alma 'materialmente' – o que quer dizer
objetiva e concretamente. Em outras palavras, a cosmologia
alquímica é essencialmente uma doutrina do ser, uma ontologia.
O símbolo metalúrgico não é meramente um improviso, uma
descrição aproximada do processo interior; como todo símbolo
genuíno, é uma espécie de revelação.
22
Com esse modo 'impessoal' de olhar para o
mundo da alma, a alquimia coloca-se em uma relação muito
mais próxima com o 'caminho do conhecimento' (gnosis) do que
com o 'caminho do amor'. Porque é prerrogativa da gnosis – no
sentido genuíno, e não no herético, da expressão – reconquistar a
alma individual 'objetivamente', em lugar de experimentá-la
apenas subjetivamente. Daí porque trata-se de um misticismo
fundado no 'caminho do conhecimento', que por acaso usou
modos de expressão alquímicos, se de fato não assimilou de fato
as formas da alquimia com os graus e os modos de seu próprio
'caminho'.
A expressão 'misticismo' vem de 'segredo'
ou 'afastamento' (do grego myein); a essência do misticismo
impede uma interpretação meramente racional, e isso soa bem no
caso da alquimia.
*
Outra razão por que a doutrina alquímica
se esconde em enigmas é que ela não é feita para todos. A 'arte
régia' pressupõe uma compreensão além da ordinária, e também
um certo tipo de alma, sem os quais a prática envolve perigos
relevantes para a alma. 'Não se reconhece', escreve Artephius,
um famoso alquimista da Idade Média11, 'que a nossa arte é
cabalística12? Com isso eu quero dizer que ela é transmitida
oralmente e é repleta de segredos. Mas você, pobre e iludido
discípulo, você é tão ingênio a ponto de acreditar que podemos
ensinar clara e abertamente os maiores e mais importantes de
todos os segredos, ao ponto de você poder interpretar nossas
palavras literalmente? Eu lhe asseguro, de boa-fé (porque eu não
sou tão ciumento como outros filósofos), que quem interprete
literalmente o que os outros filósofos (isto é, os outros
alquimistas) escreveram, perder-se-ão a si próprios nos recessos
de um labirinto do qual eles nunca escaparão, e quererão o fio de
11Artefius pode ser o nome latinizado de um autor árabe desconhecido (Veja E. von
Lippmann, Entstehung und Ausbreitung der Alchemie, Berlín, 1919). Provavelmente
viveu antes do ano 1.250.
12“Cabalístico” significa, aqui, de acordo com a etimologia da palavra,
“transmitido oralmente”.
23
Ariadne para mantê-los no caminho correto, e levá-los com
segurança para fora...'13 E Synesios14, que provavelmente viveu
no séc. IV d. C., escreveu: '(Os verdadeiros alquimistas) apenas
se expressam por símbolos, metáforas e similares, assim eles
apenas podem ser compreendidos pelos santos, pelos sábios e
por almas dotadas de entendimento. Por essa razão, eles
observaram, em seus trabalhos, um certo caminho e uma certa
regra, de tal modo que o homem sábio possa entender e, talvez
após alguns tropeços, atingir tudo o que é aí descrito
secretamente'15. Finalmente Geber, que resume toda a ciência
alquímica medieval na sua Summa, declara: 'Não se pode expor
esta arte por palavras obscuras apenas; por outro lado, não se
pode explicá-la tão claramente que todos possam compreendê-la.
Por isso eu a ensino de um modo que nada permanece escondido
ao homem sábio, embora possa repercutir em mentes medíocres
como algo obscuro; os ignorantes, por sua vez, não
compreenderão nada...'16. Alguns podem se surpreender com o
fato de que, apesar dessas advertências, das quais muitos outros
exemplos podem ser fornecidos, muitas pessoas – especialmente
nos séc. XVII e XVIII – tenham acreditado que através do estudo
diligente dos textos alquímicos seriam capazes de encontrar uma
fórmula de fazer ouro. É verdade que os autores alquímicos
frequentemente deixam a entender que eles preservam o segredo
da alquimia apenas para prevenir que alguém indigno adquira
um poder perigoso. Eles assim fazem uso de uma inevitável
equívoco para manter pessoas desqualificadas à distância.
Ademais eles nunca falaram das finalidades aparentemente
materiais de sua arte, sem mencionar ao mesmo tempo a
verdade. Quem quer que se tenha motivado por paixões terrenas
falhará automaticamente em compreender o essencial de
qualquer explicação. Assim, no Hermetc Triumph está escrito: 'A
pedra filosofial' (com a qual se pode transformar metal em ouro)
concede vida longa e imunidade a doenças àquele que a possui, e
através desse poder traz mais ouro e prata do que todos os mais
poderosos conquistadores tiveram entre eles. Ademais, esse
13 Bibl. des Phil. Chim.
14Tem-se discutivo se são a mesma pessoa este Sinésio e o homônimo Bispo de
Cirene (379-415), que fui discípulo da platônica Hipatia de Alejandría.
15 Bibl. des Phil. Chim.
16 Ibid.
24
tesouro tem a vantagem sobre todos os outros nesta vida,
especificamente o de que aquele que o usufrui será perfeitamente
feliz – a mera visão disso o faz feliz – e nunca será assaltado
pelo medo de perdê-lo.'17 A primeira assertiva aparenta confirmar
a interpretação externa da alquimia, enquanto a segunda indica,
tão claro quanto desejável, que a posse que aqui se discute é
interior e espiritual. O mesmo se encontra no já mencionado no
The Book of Seven Chapters: 'Com a ajuda do Deus
misericordioso, esta pedra (filosofal) libertará você e o protegerá
das mais severas doenças; também o protegerá da tristeza e dos
problemas, e especialmente contra tudo o que puder prejudicar o
corpo e a alma. Levará você das trevas à luz, do deserto à casa e
da indigência à riqueza.'18 O duplo sentido que se percebe em
todas essas assertivas está em relação com a frequentemente
mencionada intenção de ensinar o 'sábio' e de confundir o 'tolo'.
Porque o modo de expressão dos
alquimistas, com todo o seu taciturno 'hermetismo', não é uma
invenção arbitrária, mas algo inteiramente autêntico, Geber foi
capaz de dizer, em um apêndice à sua famosa Summa: 'Quando
eu parecia falar mais clara e abertamente sobre nossa ciência, na
realidade me expressei de modo mais obscuro, e ocultei o objeto
de meu discurso com maior intensidade, e ainda a despeito de
tudo isso, nunca revesti o trabalho alquímico com alegorias ou
enigmas, mas tratei disso com palavras claras e inteligíveis, e
descrevi com honestidade, tanto quanto eu o conhecia e aprendi
por inspiração divina...' Por outro lado, outros alquimistas,
propositadamente, compuseram seus textos em uma forma tal
que a leitura deles proporciona a 'separação das ovelhas dos
cabritos'. O último trabalho mencionado é um exemplo disso,
pois Geber diz no mesmo apêndice: 'Por esse meio, declaro que
nesta Summa não ensinei nossa ciência sistematicamente, mas a
espalhei aqui e ali em vários capítulos; porque se eu a houvesse
apresentado numa ordem lógica e coerente, o mal-intencionado,
que poderia usurpar esse conhecimento, seria capaz de aprender
tão facilmente como as pessoas de boa-fé...' Se alguém estuda de
perto a intenção aparentemente metalúrgica da exposição de
Geber, descobrirá no meio das descrições mais ou menos
17 Ibid.
18 Ibid.
25
artesanais dos procedimentos químicos consideráveis saltos de
pensamento: por exemplo, o autor, que não havia mencionado
previamente uma 'substância' (em conexão com o 'trabalho'), de
repente dirá: 'Agora pegue essa substância, que você conhece
suficientemente bem, e a coloque no recipiente...' Ou de repente,
depois salientar que os metais não são transmutados em sentido
exterior, ele fala de um 'remédio que cura todos os metais
doentes', transformando-os em prata e ouro. Em cada uma dessas
ocasiões, a compreensão é rudemente levada ao colapso, e isso
de fato é o propósito de uma exposição dessa espécie. O
discípulo é levado a experimentar diretamente os limites de sua
própria razão (ratio). Então, finalmente, como Geber disse, ele
pode olhar para dentro de si mesmo: 'Voltando-me para mim
mesmo, e meditando no caminho no qual a natureza produz
metais no interior da terra, percebo aquela real substância com a
qual a natureza nos preparou, de modo a permitirmos aperfeiçoálas na terra...' Aqui alguém notará uma certa similaridade com o
método do Zen Budismo, que procura transcender os limites da
faculdade mental, através da meditação concentrada em certos
paradoxos enunciados por um mestre.
Este é o limite espiritual que os alquimistas
devem ultrapassar. Os limites éticos, como temos visto, é a
tentativa de buscar a arte alquímica apenas por conta do ouro. Os
alquimistas insistem constantemente que o grande obstáculo para
o seu trabalho é a cobiça. Esse vício é para sua arte o que o
orgulho é para 'o caminho do amor', e o que o auto-engano é para
o 'caminho do conhecimento'. Aqui a cobiça é simplesmente
outro nome para o egoísmo, para o apego do próprio ego no
caminho da paixão. Por outro lado, a exigência de que o
discípulo de Hermes deva apenas procurar transmutar elementos
com a intenção de ajudar os pobres necessitados – ou à própria
natureza necessitada – relembra a promessa budista de procurar a
iluminação mais alta apenas em vista da salvação das criaturas.
Somente a compaixão nos liberta da astúcia do ego, que de todo
modo procura apenas olhar para si próprio.
*
Pode ser objetado que a minha tentativa de
26
explicar o significado da alquimia é uma violação do primeiro
pressuposto alquímico, especificamente a necessidade de
reservar os ensinamentos ao seu próprio domínio. A isso pode ser
respondido que, em todo caso, é impossível exaurir por meras
palavras o significado dos símbolos que contêm a chave para o
mais íntimo segredo da alquimia. O que pode ser explicado em
larga medida são as doutrinas cosmológicas fundamentais da arte
alquímica, a sua visão do homem e da natureza, e também o seu
modo geral de proceder. E mesmo se alguém for apto a
interpretar todo o trabalho hermético, sempre haverá algo
deixado de lado, que nenhum trabalho escrito pode transmitir, e
que é indispensável para a perfeição do trabalho. Assim como
toda arte sagrada, no sentido genuíno do termo (como todo
'método' que pode conduzir a uma realização dos altos estados de
consciência), a alquimia depende de uma iniciação: a permissão
para empreender o trabalho deve ser obtida geralmente de um
mestre, e apenas em instâncias raras, quando as correntes de
homem a homem tenham sido quebradas, pode acontecer que a
influência espiritual salta miraculosamente sobre o abismo. No
diálogo entre o rei Khalid e Morienus, foi dito a esse respeito: 'O
fundamento dessa arte é que quem quer que deseje ultrapassá-la
deve receber os ensinamentos de um mestre... Também é
necessário que o mestre a pratique em frente ao discípulo...
Quem quer que conheça a sequência desse trabalho e já o tenha
experimentado por si próprio não pode ser comparado com
aquele que apenas o viu em livros...' 19. E o alquimista Denis
Zachaire20 escreveu: 'Acima de tudo, gostaria que isso fosse
compreendido – caso haja alguém que ainda não aprendeu – que
essa filosofia divina ultrapassa em muito o poder humano;
menos ainda pode ser adquirida através de livros, a menos que
Deus a introduza dentro dos corações pelo poder do seu Espírito
Santo, ou nos tenha ensinado da boca de um homem vivo...'21
19 Ibid.
20 Alquimista francês do século XVI.
21 Bibl. des Phil. Chim. II.
27
CAPÍTULO 3
A SABEDORIA HERMÉTICA
A perspectiva do hermetismo origina-se da
visão de que o universo (ou macrocosmo) e o homem (ou o
microcosmo) correspondem-se como reflexos; o que quer que
haja em um deve também, de alguma maneira, estar presente no
outro. Essa correspondência pode ser melhor compreendida
reduzindo-a ao relacionamento mútuo de sujeito e objeto, de
conhecedor e conhecido. O mundo, como objeto, aparece no
espelho do sujeito humano. Embora esses dois polos possam ser
distinguidos teoreticamente, eles contudo nunca podem ser
separados. Cada um deles apenas pode ser concebido em relação
ao outro.
Para o bem da clareza, é necessário
examinar os vários significados que podem ser dados ao termo
'sujeito'. Se se diz que a perspectiva que o homem tem do
universo é 'subjetiva' isso geralmente significa que a perspectiva
em questão depende da particular posição do homem no espaço e
no tempo, e do maior ou menor desenvolvimento de sua
habilidade e conhecimento; a dependência 'subjetiva' é aqui
aquela de um indivíduo ou de um grupo de pessoas limitado
temporal ou espacialmente. Contudo, não é meramente limitado
em cada caso: é especificamente limitado em si mesmo, e nesse
sentido não há algo como um conhecimento puramente subjetivo
do mundo colocado fora da esfera do sujeito humano. Nem a
concordância de todas as possíveis observações individuais nem
o uso de significados que amplia o alcance dos juízos podem ir
além deste âmbito, que condiciona tanto o mundo como um
objeto reconhecível, como o homem como um ser que conhece.
A coerência lógica do mundo – que faz de suas múltiplas
aparências um todo mais ou menos palpável – pertence tanto ao
mundo como à natureza unitária do sujeito humano. Apesar
disso, todo conhecimento, embora possa ser interpretado pelo
indivíduo ou pela espécie, tem algo de absoluto. Do contrário,
não haveria ponte do sujeito ao objeto, do 'eu' para o 'tu', não
haveria unidade atrás dos inúmeros 'mundos' como vistos pelos
28
diversos e muito grandemente variáveis indivíduos. Esse
elemento incondicional e imutável, que é a raiz do 'conteúdo de
verdade' mais ou menos escondido em toda porção de
conhecimento – e sem o qual não seria conhecimento em
absoluto – é o puro Espírito ou Intelecto, que como conhecedor e
conhecido estão absoluta e indivisivelmente presentes em todo
ser.
De todos os seres neste mundo, o homem é
o mais perfeito reflexo do universal – e, no que diz respeito à sua
origem, divino – Intelecto, e nesse respeito ele pode ser
considerado como o espelho ou a imagem total do cosmos.
Façamos uma pausa por um momento para
considerar as diferentes realidades que encaram como um
espelho: primeiro e principalmente, há o Intelecto Universal ou
“Sujeito Transcendental”, cujo objeto não é apenas o mundo
físico aparente, mas também o mundo secreto da alma – tanto
quando a razão; as operações da razão podem ser objeto de
conhecimento, ao passo que o intelecto universal é incapaz de
qualquer objetivação que seja. É verdade que o Intelecto tem
conhecimento direto e imediato de si mesmo, mas esse
conhecimento está para além do mundo das distinções, então do
ponto de vista da percepção distintiva (dividida que está entre
objeto e sujeito), parece inexistente. Um pouco diferente é o
sujeito humano, dotado que está com as faculdades do
pensamento, imaginação e memória, e dependente da percepção
sensorial, daí que ele, o sujeito humano, tem como objeto todo o
mundo corpóreo. É do Intelecto Universal que o sujeito humano
extrai sua capacidade de conhecimento. Finalmente há
propriamente o homem, composto de espírito (ou intelecto),
alma e corpo, que são tanto parte do cosmos que é objeto de seu
conhecimento, e que também, em virtude de sua especial
categoria (sua natureza eminentemente espiritual), aparece como
um pequeno cosmos dentro de um cosmos maior, do qual ele é a
contrapartida, como uma imagem refletida. Assim, a doutrina da
correspondência recíproca do cosmos e do ser humano é também
fundada na ideia do Intelecto Transcendente e único, cujo
relacionamento com o que é comumente chamado de 'intelecto'
(ou simplesmente razão) é como a de uma fonte de luz para a sua
29
reflexão para um meio limitado22. Essa ideia, que é uma ponte
entre cosmologia (a ciência dos cosmos) e a metafísica pura 23
não é de modo algum uma prerrogativa especial do hermetismo,
embora ela seja exposta de um modo particularmente claro nos
escritos de Hermes Trismegisto, o 'Três vezes grande Hermes'.
Em um desses escritos está dito a respeito
do Intelecto ou Espírito: 'O Intelecto (nous) se origina da
substância (ousia) de Deus, na medida em que se pode falar de
Deus tendo uma substância24; de que natureza essa substância é
apenas Deus pode saber exatamente 25. O Intelecto não é parte da
substância de Deus, mas irradia deste como luz resplandecente
vinda do sol. Nos seres humanos esse Intelecto é Deus...” 26.
Não se deve deixar enganar pelo inevitável
defeito da analogia aqui empregada. Quando alguém fala de
irradiação ou resplandecência do Intelecto de sua fonte divina
não se quer significar alguma espécie de emanação material.
No mesmo livro está dito que a alma
(psyque) está presente no corpo do mesmo modo que o Intelecto
(nous) está presente na alma, e como a Palavra de Deus (Logos)
está presente no Intelecto. (Vale dizer, pelo contrário, que o
corpo está na alma como a alma está no espírito ou intelecto, e o
espírito está na Palavra). Deus é chamado o Pai de tudo.
Será visto quão próximo essa doutrina está
da teologia joanina – fato que explica como o círculo cristão da
Idade Média foi capaz de ver nos escritos do Corpus
Hermeticum (assim como naqueles de Platão), as sementes précristãs do Logos27.
Embora
a
doutrina
da
unidade
22O entendimento se parece a uma lente condensadora que projeta a luz do espírito
em uma direção determinada e sobre um campo limitado.
23Entendemos por Metafísica a ciência do não-criado. A maior parte da
“Metafísica” aristotélica é, simplesmente, cosmologia. Distintivo da verdadeira
Metafísica é seu caráeter “apofático”.
24Traduzimos ousía por substância, de acordo com os usos da Escolástica. Na
realidade, aqui se trata da essência de Deus.
25Vale dizer, a substância ou o ser de Deus não pode ser reconhecida por nada que
esteja fora de si mesmo, pois está além de toda dualidade e de toda diferenciação
entre sujeito e objeto.
26Corpus Hermeticum, trad. por A.-J. Festugière, París, “Les Belles Lettres”, 1945.
Capítulo “D'Hermes Trismégiste: sur l'Intellect commun, à Tat”.
27 Veja os escritos herméticos, entre outros, de Santo Alberto Magno.
30
transcendente do Intelecto seja afirmada por todas as escrituras
sagradas, não obstante ela permanece esotérica naquilo que não
pode ser transmitida para todos sem um risco de uma
simplificação enganosa. O principal perigo é que no seu esforço
para compreender a imaginação pode conceber a unidade do
espírito e do intelecto como uma espécie de unidade material.
Isso pode conduzir à obscuridade da distinção entre Deus e a
criação, assim como àquela entre a singularidade essencial de
cada criatura individual.
O Intelecto Universal não é numericamente
um, mas um na sua indivisibilidade. Desse modo está
completamente presente em cada criatura, e a partir dele cada
criatura adquire sua singularidade. Porque não há nada que
possua mais unidade, completude e perfeição do que aquilo pelo
qual é conhecido.
Um exemplo dessa falsa visão a respeito do
Intelecto único presente em todos os seres é fornecida pela
opinião filosófica de que quando um ser espiritual, individual,
deixa o corpo no momento da morte, ele imediatamente retorna
para o Intelecto Universal, daí que não há sobrevivência
separada após a morte. Entretanto, aquilo que durante a vida
confere uma limitação à individualidade na luz infinita do
intelecto não é o corpo, mas a alma. Agora a alma sobrevive após
a separação do corpo, mesmo quando, durante a vida, ela tenha
sido inteiramente orientada em direção ao corpo e de fato
aparentou não haver nada além do que isso28.
Desde que o Intelecto, como polo cognitivo
da existência universal, não é acessível ao conhecimento
discursivo, o conhecimento dele não transformará a experiência
do mundo – pelo menos não no campo dos fatos. O
conhecimento essencial pode, entretanto, determinar a
assimilação interior dessa experiência, i.e., a apreensão de sua
verdade. Para a ciência moderna, 'verdades' (ou leis gerais) –
sem as quais a simples experiência será nada mais do que areias
movediças – são apenas descrições simplificadas de aparências,
úteis mas sempre 'abstrações' provisórias. Para a ciência
tradicional, por outro lado, a verdade é uma expressão ou
28 Daí os tormentos que, ao abandonar o corpo, sofrem as almas que só se
preocuparam com o corporal.
31
'cristalização' (em uma forma acessível à razão) da possibilidade
contida no Intelecto Universal, e desde que essa possibilidade
está contida permanente e imutavelmente no Intelecto, ela pode
também ser manifestada no mundo exterior. A ideia da verdade é
assim muito mais absoluta na tradição do que na ciência
moderna – sem, contudo, que as formas conceptuais de verdade,
se tenham transformado em um fim em si mesmas, já que a
captação da verdade pela razão e pela imaginação não é nada
mais do que um símbolo das possibilidades contidas no Intelecto
eterno.
De acordo com o ponto de vista moderno, a
ciência é construída exclusivamente com base na experiência.
Para o ponto de vista tradicional a experiência não é nada sem o
núcleo de verdade que vem do Intelecto, e em torno do qual a
experiência individual pode-se cristalizar. Assim, a ciência
hermética é baseada em determinada tradição simbólica que
deriva da revelação espiritual. A expressão 'revelação' é usada
aqui no sentido mais largo do que dado pela teologia, mas não
num sentido puramente poético. Em termos hindus, o processo
espiritual em questão pode ser considerado como uma revelação
de 'segundo grau', como smriti em lugar de shruti. Em termos
cristãos, pode-se falar de uma inspiração do Espírito Santo,
endereçada não a toda a comunidade de fiéis, mas apenas a
determinadas pessoas capazes de um certo modo e grau de
contemplação. Foi nesse sentido, de qualquer modo, que os
alquimistas cristãos consideravam a herança do hermetismo. O
hermetismo é, na verdade, um ramo da revelação primordial que,
persistindo através das eras, estendeu-se também ao mundo
cristão e islâmico.
As possibilidades imutáveis contida no
Intelecto não podem ser absorvidas imediatamente pela razão.
Platão chamou essas possibilidades de ideias ou arquétipos.
Faríamos bem em preservar o real significado dessas expressões,
e não aplicá-las a meras generalizações – que, no melhor dos
casos, não são mais que reflexos das verdadeiras ideias – nem ao
campo puramente psicológico, conhecido como 'inconsciente
coletivo'. Essa última distorção é especialmente enganosa,
porque envolve uma confusão da indivisibilidade do intelecto
com a impenetrabilidade da profundidade passiva e obscura da
32
alma. Os arquétipos são encontrados não abaixo, mas acima do
nível da razão. E tanto é assim que o que quer que a razão possa
discernir a respeito deles não passa de um aspecto severamente
restrito daquilo que eles são em si mesmos. Apenas a união da
alma com o Espírito – ou o seu retorno à unidade indivisível do
espírito – opera uma certa reflexão das possibilidades eternas
que têm lugar na consciência formal. O conteúdo do Intelecto,
que é, por assim dizer, a 'faculdade' do Espírito, assim
repentinamente 'cristaliza-se', na forma de símbolos, na razão e
na imaginação.
No livro do Corpus Hermeticum,
conhecido como 'Poimandres' está descrito como o Intelecto
Universal revela-se a si mesmo a Hermes-Thoth: '... Com essas
palavras, ele olhou-me longamente na face, o que me fez
estremecer. Então, assim que ele levantou sua cabeça novamente,
eu vi como, no meu próprio espírito (nous), a luz que consiste de
inumeráveis possibilidades transformou-se um infinito Todo,
enquanto o fogo, cercado e contido por um poder sagrado,
atingiu sua posição imóvel: foi isso o que eu fui capaz de
apreender racionalmente desta visão... Enquanto eu estava
completamente fora de mim mesmo, ele disse novamente: você
agora, no intelecto (nous) viu o arquétipo, a origem e o começo
que nunca termina...'29
Um símbolo, nos planos da alma e do
corpo, é aquilo que reproduz os arquétipos espirituais. Em
conexão com esta reflexão de realidades superiores em planos
inferiores, a imaginação possui certa vantagem sobre o
pensamento abstrato. Em primeiro lugar, é capaz de múltiplas
interpretações; ademais, não é tão esquemática como o
pensamento abstrato e então, na medida em que se 'condensa' em
uma imagem pura, baseia-se na correspondência inversa que
existe entre o terreno corporal e espiritual, de acordo com a lei
segundo a qual 'o que está embaixo é reflexo do que está acima',
como está colocado na Tábua de Esmeralda.
*
Na medida em que o intelecto humano,
29Corpus Hermeticum, op. cit., capítulo “Poimandrès”.
33
como resultado de uma união mais ou menos completa com o
Intelecto Universal, afasta-se da multiplicidade das coisas, e por
assim dizer sobe em direção à unidade indivisa, assim o
conhecimento da natureza que o homem obtém de tal intuição
não pode ser de uma espécie puramente racional e discursiva.
Para ele o mundo agora se mostra transparente: nessa aparência
ele vê o reflexo de 'arquétipos' eternos. E mesmo quando essa
intuição não é imediatamente presente os símbolos que saltam
dele, contudo desperta a memória ou a 'recordação' desses
protótipos. Esta é a visão hermética da natureza.
O que é decisivo para este ponto de vista
não é a natureza mensurável e inumerável das coisas,
condicionada que é pelas causas e circunstâncias temporais; é
precisamente suas qualidades essenciais, que podem ser
imaginadas como os fios verticais (urdidura) de um tecido,
tomado como representação do mundo, na qual se entrelaçam os
fios horizontais (trama), fazendo assim do tecido um material
unificado e compacto. Os fios verticais são o conteúdo imutável
ou 'essência' das coisas, enquanto os fios horizontais representam
sua natureza 'substancial', dominada pelo tempo, espaço e
condições similares30.
Dessa comparação pode-se ver como a
visão do cosmos baseada na tradição espiritual num senso
'vertical' pode estar correta, ainda que ela possa parecer inexata
num sentido 'horizontal' – vale dizer, num sentido de observação
discursiva e analítica. Assim, por exemplo, não é necessário
conhecer todo metal existente em vista de conhecer diretamente
o arquétipo do metal em si mesmo. É suficiente levar em
consideração os sete metais mencionados pela tradição – ouro,
prata, cobre, estanho, ferro, chumbo e mercúrio – em vista de
compreender a possível gama de variações dentro de um tipo.
(Aqui nos preocupamos apenas com o aspecto qualitativo do
metal). É o mesmo que considerar o conhecimento dos quatro
elementos31, que na alquimia desempenha um papel tão
importante. Esses elementos não são os constituintes químicos
30 Sobre o simbolismo do tecido, veja René Guénon, Le Symbolisme de la Croix,
París, 1931.
31 Os hindus falam de cinco elementos, pois incluem o éter (akasha), a
quintessência dos alquimistas.
34
das coisas, mas são as determinações qualitativas da matéria em
si mesma. Tanto que no lugar de se falar em terra, água, ar e
fogo, pode-se também falar no modo sólido, líquido, aéreo ou
ígneo da existência dos materiais.
A evidência analítica de que a água
consiste em duas partes de hidrogênio e de uma parte de
oxigênio não nos diz absolutamente nada sobre a essência do
elemento água. Pelo contrário, esse fato, que apenas pode ser
conhecido circunstancialmente, e por assim dizer abstratamente,
na realidade obscurece a qualidade essencial 'água'. Além disso,
a abordagem científica a rigor limita a realidade em questão a
um plano determinado, apesar de que a intuição imediata e
simbólica do elemento desperta um eco que ressoa através dos
níveis de consciência, a partir do corpóreo ao espiritual.
A ciência moderna 'disseca' as coisas, com
a intenção de possuir a manejá-las no seu próprio nível. Esse
objetivo está acima de toda a tecnologia. O racionalismo apegase à crença de que através dos materiais e das análises
quantitativas, pode-se descobrir a verdadeira natureza das coisas.
Característico desse ponto de vista é a opinião de Descartas de
que as definições escolásticas do homem como um 'animal
dotado de razão' não diz nada a respeito dele, a não ser através
do estudo de seus ossos, tendões, tecidos etc32. Como se uma
uma substância não fosse mais próxima da realidade, quanto
mais ampla fosse! O entendimento analítico é, em última
instância, nada mais que uma faca que investiga na articulação
das coisas. Fazendo assim ele permite uma visão mais clara
delas. Mas a essência não é acessível à mera dissecação. Goethe
entendeu isso muito bem quando disse que o que a natureza não
nos revelou na luz do dia não pode ser retirado à força dela pelas
'alavancas e parafusos'.
*
A diferença entre a cosmologia tradicional,
a exemplo da cosmologia hermética, e a ciência analítica,
dominada apenas pela razão, mostra-se mais claramente na sua
32Descartes, La recherche de la Vérité par les lumieres naturelles, citado em
Maurice Dumas, Histoire de la Science. «Encyclopédie de la Pléiade», pág. 481.
35
perspectiva astronômica. A mais antiga concepção do mundo, na
qual a Terra é vista como um disco coberto por um céu de
abóboda estrelada, está cheia de significados os mais gerais e
profundos – significados que são tanto menos obsoletos quanto
esta imagem do mundo continua sendo verdade, não sendo outra
coisas que não a experiência natural e imediata de todo ser
humano. O céu, por seu movimento o medidor de tempo, a
determinação do dia e da noite e das estações, a causa do subir e
baixar dos luminares, o distribuidor das chuvas, manifesta o polo
ativo e masculino da existência. A Terra, por outro lado, que por
influência do céu se fertiliza, traz à tona plantas e nutre todas as
criaturas vivas, corresponde ao polo passivo e feminino. Esse
relacionamento entre o céu e a Terra, da existência ativa e
passiva, é o arquétipo e modelo de várias dualidades analógicas,
tal como o par conceitual 'forma essencial' (eidos, forma) e
'matéria' ou 'substância' (hyle, materia), e a dualidade,
compreendida à luz de Platão, do espírito ou intelecto (nous) e
alma (psyche). O movimento circular dos céus pressupõe a
existência de eixos imóveis e invisíveis, correspondentes ao
intelecto, que está presente imutavelmente em todas as
circunstâncias do mundo. Do mesmo modo, o percurso do Sol
traça uma cruz regular composta de pontos cardinais – Norte e
Sul, Leste e Oeste – após o que as qualidades cósmicas que
governam toda a vida distribuem-se respectivamente como frios
e quentes, secos e úmidos. Podemos ver mais tarde como essa
ordem é repetida dentro do microcosmo da alma humana.
O percurso solar, na medida em que
aparece sobre o horizonte, segue um círculo cada vez mais largo
do solstício de inverno ao solstício de verão, e então um círculo
cada vez mais curto, até que todo o ano se transcorra.
Basicamente isso corresponde a um espiral que se vai 'liberando',
e que após várias voltas transforma-se numa espiral que se vai
'enrolando' – uma imagem que foi retratada numa variedade de
sinais, como a espiral dupla,
36
a espiral de dois vórtices, conhecida como
o yin-yang chinês, e não menos importante no grupo de Hermes
(os caduceus) nos quais duas cobras são entrelaçadas em um
eixo – o eixo do mundo33. A oposição se manifesta nas duas fases
do curso solar (o ascendente e o descendente), correspondendo,
em um certo sentido, à oposição entre céu e Terra – com a
diferença de que aqui os dois lados são móveis, e então no lugar
de uma oposição de causas, trata-se de uma questão de
alternância de forças. Céu e Terra estão acima e abaixo; os dois
solstícios estão um no Sul e outro Norte; eles estão relacionados
um com o outro como expansão e contração. Nós podemos mais
uma vez nos depararmos com essa oposição, que tem vários
significados, em conexão com o magistério alquímico, onde ela
aparece como oposição entre o enxofre e o mercúrio.
*
33A esse respeito, René Guénon, Le Symbolisme de la Croix y Julius Schwabe,
Archetyp und Tierkreis, Basilea, 1951.
37
Uma forma irlandesa ou anglo-saxônica dos dois dragões na
árvore do universo. A suástica no tronco da árvore (que
corresponde ao eixo universal) representa o movimento dos
céus. Cada dragão é composto de doze sóis e estrelas, que
podem corresponder aos doze meses.
De uma minuatura do séx. XVIII, extraída das 'Cartas paulinas
de Northumberland', na Biblioteca da Universidade de
Würzburg.
A concepção do universo de Ptolomeu (na
38
qual a Terra, como um globo, representa o centro, ao redor do
qual os planetas giram em uma variedade de órbitas e esferas,
cercados pelo céu de estrelas fixas e, na parte externa, pelo
empíreo sem estrelas) não afasta o significado da antiga
concepção de universo, e nem retira a experiência imediata que o
ser humano tem dela. Ademais, isso coloca em jogo um
simbolismo diferente, especificamente aquele do caráter
compreensivo do espaço. A graduação das esferas celestes reflete
a ordem ontológica do mundo, segundo a qual cada nível de
existência procede de um mais alto, de modo que um nível
superior 'contém' o inferior, assim como a causa 'contém' o
efeito. Assim, quanto maior for a esfera celeste na qual as
estrelas se movem, mais puro, menos condicionado e mais
próximo da origem divina será o nível de consciência a que isso
corresponde. O empíreo sem estrelas, que envolve os céus
estrelados e que aparenta compartilhar seu movimento com o
firmamento das estrelas fixas (a rotação mais rápida e mais
regular de todas as esferas), representa o primeiro motor
(primum mobile) e assim também o Intelecto Divino que abrange
tudo.
Essa é a concepção de mundo de Ptolomeu
adotado por Dante. Antes dele já se encontrava em textos árabes.
Há também um manuscrito hermético anônimo, do séx. XII,
escrito em latim e provavelmente de origem catalã34, no qual o
significado espiritual das esferas celestes que se abarcam é
apresentada de uma forma muito parecida com a da Divina
Comédia. A ascensão através das esferas é descrita como uma
subida através da hierarquia dos níveis espirituais (ou
intelectuais), por meio da qual a alma, que sucessivamente
assimila isso, gradualmente se desloca dos limites do
conhecimento discursivo às formas de uma visão indiferenciada
e imediata na qual sujeito e objeto, conhecedor e conhecido são
um. Essa descrição é ilustrada por desenhos que demonstram as
esferas celestes como círculos concêntricos, através dos quais o
homem sobe, como se estivesse nas escadas de Jacó, à mais alta
34Publicado em M. T. d'Alverny, Les pélégrinations de l’Ame dans l'autre Monde
d’après un anonyme de la fin du XIIè siècle, en «Archives d'Histoire doctrinale et
littéraire du Moyen Age», 1940-1942. Segundo investigações posteriores de M.T.
d’Alverny, o manuscrito que se conserva na Biblioteca Nacional de Paris foi escrito
provavelmente na Bolonha, inspirado em um antecedente espanhol.
39
esfera, o Empíreo, no qual Cristo está sentado em seu trono35. Os
círculos celestes são complementados em uma direção
descendente – ou seja, em direção à Terra – pelos elementos.
Próximo à esfera lunar está o círculo do fogo; abaixo está o
círculo do ar, que confina a água, que imediatamente envolve a
Terra. Vale ressaltar que esse escrito anônimo, cujas
características herméticas são evidentes, reconhece a validade de
todas as três religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e
Islamismo. Isso demonstra claramente como a ciência hermética,
graças à sua linguagem cosmológica simbólica pura, baseada na
natureza, pode ser combinada com qualquer religião genuína,
sem conflitos com os respectivos dogmas.
Como a revolução do oitavo céu, o
firmamento de estrelas fixas é a medida básica do tempo. Então
o céu externo sem estrelas (que confere ao oitavo o seu
movimento ligeiramente atrasado, em razão da assim chamada
processão dos equinócios) deve representar a linha divisória
entre tempo e eternidade, ou entre todos os modos de duração
mais ou menos condicionados36 e o eterno 'agora'. A alma, que é
representada como ascendendo através das esferas, uma vez
alcançado o Empíreo, deixará para trás o mundo da
multiplicidade e das formas e condições mutuamente exclusivas
e alcançará o Ser indiviso e todo envolvente. Dante representa
essa passagem – que envolve uma completa reversão do
panorama – confrontando a ordem cósmica das esferas
concêntricas, que amplia sucessivamente da limitação da Terra à
Infinidade Divina, com uma ordem invertida, cujo centro é Deus,
e ao redor de quem o coro dos anjos gira, em cada vez maiores
círculos. Eles giram mais rapidamente onde eles estão mais
próximos da origem divina – em contraposição com as esferas
cósmicas, cujo aparente movimento cresce em proporção com
sua distância do centro terrestre. Com essa 'transformação' da
ordem cósmica em ordem divina, Dante antecipa o profundo
significado da concepção heliocêntrica.
*
35 Veja as lâmitas l e 2; e a explicação correspondente adiante.
36 Segundo Averróis, o movimento ininterrupto do ciclo sem estrelas é a interseção
entre tempo e eternidade.
40
Figuras 1 e 2. A ascensão da alma através
41
das esferas. Duas representações análogas de um manuscrito
hermético anônimo do final do séc. XII (MS Latin 3236A da
Biblioteca Nacional de Paris; publicado pela primeira vez por
M. T. d´Alverny nos Arquivos de História doutrinal e literal da
Idade Média, 1940-42).
A página 90 mostra em seu topo Cristo
sentado no trono, sobre as esferas. Ao lado estão as palavras:
'Creator omnium Deus –Causa prima– Voluntas divina –
Voluntas divina' (O Criador de todas as coisas, Deus – a
Primeira causa – a Vontade divina – a Vontade Divina). Os dois
círculos mais altos contêm as palavras 'forma em potência' e
'matéria em potência'. Estes são os dois polos forma e materia
prima, Ato Puro e Receptáculo Passivo, que são aqui
concebidos como possibilidades contidas no Ser Puro, e ainda
não manifestadas. Esta é a razão por que eles repousam do lado
de fora do universo espiritual, quando ele é visto na sua
realidade manifestada ou criada, que é representada pelo
próximo círculo: 'Causatum primum esse creatum primum
principium omnium creaturarum continens in se creaturas'
(Primeiro ser criado, princípio de todas as criaturas, contendo
todas as criaturas em si mesmo). Como estágios dentro do
Espírito Universal, seguem-se dez faculdades intelectuais ou
cognitivas ('intelligentiae'), aos quais correspondem um número
similar de coros angelicais. Curiosamente a ordem na qual eles
aparecem é exatamente oposta à doutrina de Dionísio a respeito
da hierarquia celeste; de cima para baixo, eles são: 'Angeli',
'Archangeli', 'Troni', 'dominationes', 'virtutes', 'prmcipatus',
'potestates', 'Cherubim', 'Seraphyn' e 'ordo senorum', (coro dos
anciãos). Essa inversão da ordem pode ser imputada ao erro de
um copista que tivesse um esquema teocêntrico na cabeça.
Abaixo dessas dez esferas do espírito
supra-formal encontram-se quatro esferas da alma: 'Anima
celestis', 'Anima rationabilis', 'Anima animalis' e 'Anima
vegetabilis'.
Até aqui a ordem concêntrica das esferas
pretende-se puramente simbólica, enquanto que a sucessiva (e
cada vez menor) esfera do mundo corporal devem ser
entendidas simbólica e espacialmente: o mundo corporal é
envolvido pelos seus círculos exteriores: 'Natura principium
42
corporis' (Natureza como princípio dos corpos). Aí estão as
esferas astronômicas, a mais externa das quais corresponde à
revolução de área dos céus: 'Spera decima – spera suprema
qua: fit motus de occidente ad orientem et est principium motus'
(Décima esfera – esfera superior: na qual ocorre o movimento
do Ocidente ao Oriente, e que é o princípio de todo o
movimento). Dentro dela está a esfera que determina a
processão dos equinócios: 'Spera nona –spera motus octave
spere qua fit motus eius de septentrione ad meridien et e
converso' (Nona esfera – que move a oitava esfera, e causa a
passagem do Norte a Sul e vice-versa). A seguinte, na ordem
descendente, do Céu das estrelas fixas e das esferas planetárias:
'Spera octava – spera stellata; Saturnus – spera saturni; Jupiter
– spera iovis; Mars – spera martis; Sol – spera solis; Venus –
spera veneris; Mercurius – spera mercurii; Luna – spera lunae.'
Aí repousam os quatro elementos em círculos concêntricos, ao
redor do centro da Terra (o círculo mais externo corresponde
tanto ao domínio dos elementos em si mesmos como ao elemento
superior fogo): 'Ignis – corpus corruptibilis quod est quatuor
elementa' (Fogo – corpo corruptível consistente nos quatro
elementos): 'aer'; 'acqua'; 'terra'; 'centrum mundi'.
Através desses círculos dos mundos
espiritual, psíquico e corporal o homem ascende a Deus como
que por uma escada. A figura inferior continua limitada ao
domínio dos elementos, e um companheiro o arrasta para cima,
segurando-o pelos cabelos. Ao lado do grupo superior está
escrito: 'O mi magist[er]' (Oh, meu mestre!), ao lado do
próximo: ´[e] phebei' ('jovens´), ao lado do grupo do meio:
'socii omnes' (todos os companheiros), ao lado do inferior:
'cetera turba' (a multidão remanescente). Trata-se
provavelmente de uma referência a diferentes graus da
sabedoria ou iniciação.
A outra miniatura, na p. 89, repete a
mesma ordem, dessa vez com círculos completos, mas apenas
com inscrições parciais.
43
44
*
A concepção universal na qual o Sol
representa o centro, ao redor do qual estão os planetas, incluindo
a Terra, girando, não é uma descoberta original da Renascença.
Copérnico simplesmente ressuscitou – e sustentou com
observações – uma ideia que já era conhecida dos antigos 37.
Como um símbolo, a concepção heliocêntrica é o necessário
complemento à geocêntrica. Porque a origem divina do mundo –
vale dizer, o Intelecto Único ou Espírito através do qual Deus
cria o mundo – pode ser facilmente considerado como o Todo
Envolvente (correspondente a espaços ilimitados), assim como
pode ser considerado como o único centro 'radiante' de todas a
manifestação. Precisamente em razão de que a origem divina
está tão acima de todas as diferenciações, cada representação
dela deve ser complementada pela sua própria parte invertida,
como se vistas em um espelho.
A concepção heliocêntrica, entretanto, é de
fato usada pelo racionalismo para provar que a concepção
geocêntrica tradicional – e todas as interpretações espirituais
conectadas com ela – são puros enganos. E daí surge o paradoxo
de que uma filosofia que fez da razão humana a medida da
realidade resultou numa concepção astronômica na qual o
homem acabou aparecendo mais e mais como um grão de areia
entre outros grãos de areia, um mero acidente sem qualquer
espécie de procedência cósmica, enquanto a perspectiva
medieval, baseada não na razão humana, mas na revelação e na
inspiração, colocou o homem no centro do cosmos. Essa
flagrante contradição é, apesar de tudo, fácil de se explicar. O
ponto de vista racionalista esquece completamente que tudo o
37O sistema heliocêntrico era ensinado já por Aristarco de Samos (320-250 a.C.).
Nicolau Copérnico, no prólogo dedicado ao Papa Paulo III, de sua obra Sobre a
Órbita dos Astros (1543), refere-se a Hicetas de Siracusa e a certas indicações de
Plutarco. Aristóteles, em seu livro Sobre o Céu, escreveu: “Enquanto que a maioria
(dos físicos) opinam que a Terra está no centro (do Universo), os filósofos itálicos,
chamados pitagóricos, dissentem deles, pois afirmam que no centro está o fogo; a
Terra, pelo contrário, que é um dos astros, gira ao redor do centro...” É de supor que
também certos astrônomos hindus da Antiguidade conheciam o esquema
heliocêntrico do Universo.
45
que se pode expressar a respeito do universo permanece como
conteúdo de consciência humana, e que o homem, precisamente
porque ele pode olhar para a existência física a partir de um
ponto de vista superior – como se ele não fosse limitado de fato a
esta terra – claramente demonstra que ele é o centro cognitivo do
mundo, precisamente porque o homem é o portador privilegiado
do Intelecto, e portanto pode conhecer essencialmente tudo o que
é, a perspectiva tradicional o coloca no centro do mundo visível,
cuja posição de fato corresponde inteiramente com a experiência
sensorial imediata. Na mesma esteira, especificamente a da
cosmologia tradicional, a concepção heliocêntrica, na qual o
homem é, por assim dizer, periférico ao Sol, só pode ter um
significado esotérico, a saber aquele que Dante concebeu na sua
descrição teocêntrica do mundo angélico: do ponto de vista de
Deus, o homem não está no centro, mas no limite extremo da
existência.
Que a concepção heliocêntrica possa
parecer mais correta a partir de um ponto de vista físicomatemático é em uma indicação de que esse ponto de vista, em
si e a seu respeito, algo de não muito humano... Ele se recusa a
considerar o homem como um todo, como um ser composto de
espírito (intelecto), alma, e corpo, em benefício de uma
consideração exclusiva do plano material quantitativo, e então se
transforma em reflexo 'inferior' do ponto de vista que vê o
homem sub specie aeternitatis.
Nenhuma concepção de mundo pode estar
sempre absolutamente correta, porque a realidade da qual nossa
observação toma conhecimento é condicionada, dependente, e
multiplamente indefinida.
Acreditar no sistema heliocêntrico como
algo absoluto criou um tremendo vazio: o homem foi privado de
sua dignidade cósmica, e foi transformado em um grão de areia
sem significado entre todos os outros grãos de areia ao redor do
Sol, mostrou-se incapaz de realizar uma visão satisfatória e
espiritual das coisas. A concepção cristã, centrada na encarnação
de Cristo, não estava preparada para isso. Ser capaz de ver o
homem como um desaparecente nada no espaço cósmico, e ao
mesmo tempo como o seu centro cognitivo e simbólico, excede a
capacidade da maioria.
46
Mais tarde, quando o Sol foi considerado
ele próprio dentro de uma corrente sem fim de milhões de outros
sóis (talvez também cercados de planetas), talvez com milhares e
milhões de anos-luz entre eles, nenhuma concepção, em qualquer
sentido real do tempo, é mais possível. A 'construção' do mundo
não é mais imaginável, resultando daí que o homem perdeu a sua
capacidade de se integrar num todo dotado de sentido. Isso pelo
menos é o efeito frequente, nos ocidentais, da concepção
moderna. O modo budista de ver as coisas, que sempre
considerou o mundo como uma areia movediça, pode trazer uma
diferente reação às teses científicas.
Se o conhecimento científico anda de mãos
dadas com uma valoração espiritual das aparências, pode-se ver
no sucessivo abandono de todos os, por assim dizer, sistemas
fechados, a prova de que toda visão do mundo não é nada mais
do que uma imagem ou reflexo, e como tal não é de modo algum
incondicional. Para este mundo, o Sol que nossos sentidos
percebem é a soma total de luz e o símbolo natural daquela
origem divina que ilumina todas as coisas e em volta de que
todas as coisas giram. Ao mesmo tempo, entretanto, é apenas um
corpo luminoso, e como tal não é único, mas um entre outros do
mesmo tipo.
Aqui não é o lugar para mostrar como cada
nova concepção de mundo é promovida, nem tanto pelas
observações científicas, como pela sua 'unilateralidade' lógica.
Isso se aplica também à mais recente concepção de espaço. A
cosmologia medieval imaginou a totalidade de espaço como uma
grande esfera, imensurável, espiritualmente englobada pelos céus
mais exteriores. Filósofos racionalistas consideraram que o
espaço era infinito. Desde que considerado, contudo, como
extensão limitada, pode muito bem ser indeterminado, mas
certamente não é infinito, o próximo passo científico conduz a
um conceito praticamente inimaginável de um espaço curvo
fluindo de volta a si mesmo!
A homogeneidade incondicional de espaço
e tempo é abandonada pelos mais recentes matemáticos em favor
de uma relação constante entre espaço e tempo. Se, contudo, o
espaço é aquilo que contém tudo o que é observado
simultaneamente, e o tempo é aquilo que constitui a sucessão de
47
observações, então automaticamente as estrelas fixas não estão
mais separadas de nós por muitos anos-luz, mas estão situadas
onde visível e simultaneamente tem o seu limite mais externo.
Em face desse paradoxo, deixe-nos simplesmente dizer que em
última instância toda concepção 'científica' de mundo é
condenada a contradizer-se, ao passo em que o significado
espiritual que manifesta a si mesmo, de um modo ou de outro, a
todas as coisas visíveis, e que se revela a si mesmo de modo
tanto mais convincente quanto mais primordial e mais adaptada
ao homem a concepção for, não sofre mudanças de qualquer
espécie. Se falamos aqui de um significado, não nos referimos a
nada conceitual. Usamos a expressão 'significado', por
necessidade e seguindo o exemplo dos escritos tradicionais, para
designar o conteúdo imutável das coisas, que apenas o intelecto é
capaz de alcançar.
*
Por meio das observações precedentes,a
respeito da concepção astronômica do mundo, talvez acabamos
mostrando que há dois meios mutualmente opostos de olhar para
o mundo ou para a natureza, num sentido amplo da palavra. O
primeiro, fomentado pela curiosidade científica, esforça-se em
direção a uma inexaurível multiplicidade de aparências e, na
medida em que se acumulam as experiências, tornam-se, em si,
múltiplos e desmembrados. A outra esforça-se na direção do
centro espiritual, que é ao mesmo tempo o centro do homem e
das coisas, enquanto suporta a si mesmo no caráter simbólico das
aparências, a fim de pressentir e contemplar as realidades
imutáveis contidas no Intelecto Divino. Esse último ponto de
vista leva à simplificação, não no que diz respeito ao que se
percebe como gradação múltipla, mas com respeito àquilo que
considere ser essencial. A mais perfeita visão com a qual o
homem pode alcançar é simples, no sentido de que sua riqueza
interior é desprovida de características diferenciadas. Essa visão
superior, ou contemplação, tem relação com um texto hermético
sírio, do qual gostaríamos de citar alguns trechos, como
conclusão desse capítulo sobre o conhecimento hermético (o
texto em questão fala de um espelho secreto, que está
48
estabelecido atrás das sete portas, que corresponde às sete esferas
planetárias): '… O espelho é feito de modo que nenhum homem
pode ver-se a si mesmo materialmente nele, porque tão logo ele
dele se afasta, esquece sua própria imagem. O espelho representa
o Intelecto Divino. Quando a alma nele se vê a si mesma, ela
descobre a desonra que há em si mesma, e a afasta de si. Assim
purificada, ela se assimila ao Espírito Santo, e o toma como
modelo; ela se transforma no Espírito; ela alcança paz e sempre
retorna a esse estado superior, no qual se conhece (Deus) e se é
conhecido por ele. Então, tendo voltado sem sombras, ela é
liberta de suas próprias correntes e daquelas que ela
compartilhava com o corpo... Qual é o adágio dos filósofos? –
Conheça-te a ti mesmo! Isso se refere ao espelho intelectual e
cognitivo. E o que é o espelho senão o Intelecto Divino e
original? Quando o homem olha-se a si mesmo e vê a si mesmo
no espelho, ele se afasta de tudo que suporta o nome de deuses
ou demônios, e unindo-se a si mesmo com o Espírito Santo,
transforma-se em um homem perfeito. Ele vê Deus dentro de si
mesmo... Esse espelho está colocado além das sete portas... que
corresponde aos sete céus, além do mundo sensível, além das
doze mansões (celestiais)... Além de tudo isso está este olho dos
sentidos invisíveis, este olho do Intelecto, que está onipresente e
além de todas as coisas, então se vê esse Espírito perfeito, em
cujo poder tudo está contido...'.38
38 Berthelot, La Chimie au Moyen Age, París, 1893, II. 262-263.
49
CAPÍTULO 4
ESPÍRITO E MATÉRIA
Para os homens da antiguidade, o que nós
hoje chamamos matéria não tem o mesmo significado atual; o
mesmo se diga do conceito e da experiência. Isso não quer dizer
que os assim chamados homens primitivos apenas enxergavam
através de um véu de 'imaginações mágicas e compulsivas',
como certos etnologistas supuseram, ou que seu pensamento era
'alógico' ou 'pré-lógico'. As pedras eram tão duras quanto hoje, o
fogo era tão quente quanto, e as leis da natureza, tão inexoráveis
quanto. O homem sempre pensou logicamente, mesmo se, além
dos dados sensoriais, ou mesmo através deles, ele estava
acostumado também a levar em conta realidades de uma ordem
diferente. A lógica pertence à essência do homem, e a sua
decomposição em imaginações compulsivas, de caráter
parcialmente materialista, parcialmente sentimental, não é
encontrada em pessoas 'primitivas', nem nos selvagens mais
espiritualmente degenerados, mas apenas na decadência de uma
cultura exclusivamente urbana.
Que a matéria pudesse ser concebida como
algo completamente afastado do espírito, como no caso, no
mundo moderno, tanto na teoria como na prática – e não obstante
certas correntes filosóficas contraditórias 39 – não é de modo
algum auto-evidente. Isso é resultado de um desenvolvimento
mental particular, para o qual Descartes foi o primeiro a dar
expressão filosófica, sem 'inventá-lo'; de fato, foi profunda e
organicamente condicionado pela tendência geral de reduzir o
espírito a mero pensamento e limitá-lo à razão discursiva, que
significa privá-lo de toda a significação supra-mental e, portanto,
também de toda presença e imanência cósmica.
De acordo com Descartes, espírito e
matéria são duas realidades completamente separadas, que
graças à ordenação divina, andam juntas em apenas um ponto: o
39Certas teorias modernas que pretendem entender o desenvolvimento das formas
inorgânicas e orgânicas como uma “evolução” do espírito não são, no fundo, senão
uma continuação do materialismo, já que atribuem ao espírito, que em essência é
imutável, um devir.
50
cérebro humano. Assim, o mundo material, conhecido como
'matéria', é automaticamente privado de seu conteúdo espiritual.
Enquanto o espírito, por sua vez, transforma-se na contrapartida
da mesma realidade puramente material, porque o que ele é em si
mesmo, acima ou além disso, permanece indeterminado.
Para o homem dos tempos antigos, matéria
era como que um aspecto de Deus. Nas culturas que são
comumente chamadas arcaicas, essa perspectiva era imediata, e
relacionada com a experiência sensorial, porque o símbolo da
matéria era a terra. Essa representava, na sua realidade perene, o
princípio passivo de todas as coisas, enquanto o céu representava
o princípio ativo e geracional. Os dois princípios são como as
duas mãos de Deus, e eles estão relacionados um com o outro
como macho e fêmea, pai e mãe, e não podem ser separados um
do outro – porque em tudo o que a terra produz o céu está
presente como poder criativo, enquanto a Terra, por sua vez, dá
forma e corpo às leis celestiais. Assim, o modo arcaico de ver as
coisas era 'sensível' e espiritual ao mesmo tempo, porque a
verdade metafísica por trás dela permanece independentemente
dessa simplória concepção de universo.
Para a philosophia perenis, que até a
chegada do racionalismo era comum tanto no oriente como no
ocidente, os dois princípios, o ativo e o passivo, eram, para além
de todas as manifestações visíveis, os primeiros e tododeterminantes pólos da existência. Nessa visão, a matéria
permanece um aspecto ou função de Deus. Ela não é algo
separado do espírito, mas seu complemento necessário. Em si
mesma, ela não é mais do que a potencialidade de receber uma
forma, e todos os objetos perceptíveis aí sustentam a marca da
sua contrapartida ativa, o espírito ou palavra de Deus.
É apenas para o homem moderno que a
matéria se transformou em uma coisa, e deixou de ser o espelho
completamente passivo do espírito. A matéria se tornou mais
compacta, vale dizer, na medida em que agora arroga-se a si
mesma, sozinha, a qualidade da extensão espacial, e tudo o que
se relaciona com esta. Ela se tornou massa inerte, ao contrário do
espírito livre. É completamente exterior e espiritualmente
impenetrável. É um mero fato. Na verdade, mesmo para as
pessoas da antiguidade, a matéria corporal possuía esse aspecto
51
contingente e relativamente não-espiritual, mas esse aspecto não
fez a mesma afirmação, mas não tinha essa pretensão de ser a
única realidade. Acima de tudo, ela nunca foi considerada como
algo que pudesse ser estudada por si mesma, independentemente
do espírito, a visão de que a extensão espacial era a característica
distintiva da matéria teve sua primeira expressão filosófica em
Descartes. Daí em diante, a matéria foi considerada como massa
e extensão. O resultado disso foi que o homem buscou
compreender tudo o que era espacial, e finalmente todas as
qualidades sensivelmente percebidas num modo puramente
quantitativo. Em certo sentido, isso é possível, especificamente
na medida em que isso pode ser uma vantagem em uma ciência
devotada exclusivamente para a manipulação exterior das coisas.
Contudo, nem a extensão espacial, nem qualquer outra qualidade
sensorialmente percebida, pode ser complemente esgotada em
linhas puramente quantitativas. Como René Guenon mostrou
com maestria, no livro O Reino da quantidade e o sinal dos
tempos (Luzac, Londres, 1953), não há extensão espacial que
não possua um aspecto qualitativo – tanto quanto um
quantitativo. Pode-se ver isso mais facilmente nas formas
espaciais mais simples, como é o círculo, o triângulo, um
quadrado etc. Cada uma dessas figuras têm algo de único,
qualitativamente falando, que não pode ser sujeito a uma
comparação puramente quantitativa40. É de fato impossível
reduzir o mundo da percepção sensorial a categorias
quantitativas, pois ele poderia se desintegrar em um puro nada!
Mesmo os mais simples 'modelos de pensamento' da ciência
empírica – por exemplo, os modelos que indicam a estrutura dos
átomos ou moléculas – contém elementos qualitativos, ou pelo
menos dependem indiretamente desses elementos. Pode-se
expressar a diferença entre o vermelho e o azul em figuras
explicando as cores em termos de oscilações e expressando isso
em figuras; mas um homem cego, que nunca teve uma
experiência direta das cores, nunca vai conhecer a essência do
40Isso é válido inclusive para os números, porque cada número não representa só
uma quantidade, senão, ao mesmo tempo, também um aspecto da unidade ou do
uno, como o que tem caráter de dois, três, quatro etc. A diferença qualitativa das
formas se manifesta com a maior claridade das unidades numerais, e essa é a razão
pela qual os teotemas pitagóricos consideravam aos números simples como a
expressão dos arquétipos.
52
vermelho e do azul em virtude dessas figuras. E o mesmo se
aplica ao conteúdo qualitativo de qualquer outra percepção
sensorial. Deixe-nos imaginar um homem que foi surdo e
daltônico desde o nascimento, mas se acostumou com a
descrição científica dos sons e cores. A descrição científica não
lhe transmitirá nem a essência dos sons e das cores, nem a
profunda diferença entre os dois tipos de percepção sensorial. E
o que é verdade a respeito das mais simples e mais elementares
qualidades aplica-se, primeiro e principalmente, a formas que
são expressões de uma unidade viva. Isso, por sua própria
natureza, evita não apenas qualquer medida e toda contabilidade,
mas também, e acima de tudo, qualquer perspectiva que busque
'dissecá-la'. É sempre possível, obviamente, mapear,
quantitativamente, as fronteiras de uma forma particular, sem
compreender sua essência. No campo das artes, ninguém
contestar isso, mas é frequentemente esquecido que isso também
é válido em outros domínios a essência, o conteúdo, a unidade
qualitativa de uma coisa, nunca pode ser abarcada por um
processo de cálculo 'passo-a-passo', mas apenas por uma
experiência compreensiva e imediata ou 'visão'.
O conteúdo qualitativo das coisas não
pertence à matéria, que é meramente um espelho dele, que então
pode ser visto, mas não ao ponto de que pode ser limitado
juntamente com o plano material. Uma ciência baseada em
análises quantitativas, que 'pensa através de ações ou age através
de conceitos' (ao invés de ver e experimentar integral e
diretamente), tem necessariamente que ser cega à fertilidade
infinita e à essência multifacetária das coisas. Para uma tal
ciência, o que os antigos chamavam de 'forma' de uma coisa (i.e.,
seu conteúdo qualitativo) não tem praticamente nenhum papel.
Essa é a razão pela qual ciência e arte, que nas eras préracionalísticas eram mais ou menos sinônimas, são agora
completamente divorciadas uma da outra. E também porque a
beleza, para a ciência moderna, não oferece o menor acesso em
direção ao conhecimento.
A doutrina tradicional que faz a distinção
entre eidos e hyle (ou entre forma e matéria) é aquela que mais
completamente faz justiça ao fato de que as coisas têm vários
significados em diferentes níveis, e que elas têm qualidades tanto
53
quanto quantidades. A doutrina tradicionalista, que efetivamente
discrimina, não apenas divide ou desmembra, mas leva em conta
os dois 'pólos' na sua complementaridade mútua. Aristóteles deu
uma expressão dialética a essa doutrina, mas ele não a 'inventou',
pois ela está na natureza das coisas, e corresponde à perspectiva
espiritual do homem primitivo.
A forma, no sentido peripatético da
palavra, é a síntese das qualidades que constituem a essência de
uma coisa. Forma significa a realidade inteligível de uma coisa, e
é bastante independente da existência material das coisas. Nesse
sentido, não se deve, portanto, confundir 'forma', nesse sentido,
com forma no sentido cotidiano, de algo que é espacialmente, ou
de outra forma, limitado, mais do que qualquer um deve
equiparar 'matéria', que recebe 'forma' e lhe dá existência finita,
com matéria no sentido moderno do termo.
A imaginação pode ser ajudada a
compreender as ideias de 'forma' e 'matéria' pela analogia entre
artista ou artesão, que confere certa forma, pré-concebida em seu
intelecto, a uma matéria tal como argila, madeira, pedra ou
metal, assim criando uma imagem do objeto. Mas isso não passa
de uma comparação, porque o material do artesão não é
completamente sem formas. Mesmo que ele seja relativamente
'informe', ele contudo já possui certas propriedades ou
qualidades – de outro modo, a argila não poderia ser distinguida
da madeira, ou a pedra do metal. A matéria completamente 'sem
forma' não pode nem ser representada nem imaginada, pois ela é
potencialidade pura (tendente a ganhar forma) e não tem em si
mesmo qualquer caractere discernível. Ela somente pode ser
conhecida em relação com 'forma'. Mesmo 'forma', entretanto,
não pode ser representada separada da matéria, porque qualquer
forma que já foi revelada participa de uma matéria. Isso se aplica
até mesmo a uma forma imaginada, na medida em que se pode
dizer que a imaginação reveste a essência espiritual da forma
com um tipo de 'matéria' mental.
Em razão de que a essência de uma forma,
independentemente do seu 'revestimento' material, permanece o
mesmo (de tal modo que se pode ainda chamar uma forma
materialmente limitada de 'forma'), o conceito padece de uma
certa ambiguidade. Pode-se reconhecer prontamente que em
54
certas circunstâncias à mesma palavra forma pode ser dados dois
significados opostos: como 'figura' exterior de um ser ou um
trabalho, 'forma', no aspecto 'material' das coisas, é oposta ao
espirito ou conteúdo. Como uma causa que dá forma, contudo,
que cunha sua marca na matéria, 'forma' se localiza do outro lado
– aquele do espírito ou essência.
Quando comparamos o modo cartesiano de
ver a matéria como essa doutrina, notamos, entre outras coisas,
que a extensão espacial que Descartes atribui à matéria contradiz
a teoria tradicional, porque a extensão espacial, privada de
qualquer forma qualitativa, é inimaginável. Mesmo o sentido,
como René Guenon demonstrou41, é de natureza qualitativa.
Matéria, entretanto, é em si mesma completamente sem forma.
Tudo o que ela tem é quantidade, pura quantidade que não é
determinada por nenhum número finito, e assim não pode ser
alcançada de nenhuma maneira. Ela corresponde, como Guenón
também assinalou, a materia signata quantitate, que os
escolásticos consideraram a base do mundo corporal. Vale dizer,
ela não corresponde à matéria-prima, privada que é de todo
atributo, mas apenas à matéria secunda relativa, determinada em
direção ao mundo corporal. Da matéria-prima, a substância
primordial, apenas se pode dizer que ela é puramente receptiva,
com respeito à causa que dá forma à existência, e isso é ao
mesmo tempo a raiz da 'alteridade', porque é através dela que as
coisas são limitadas e múltiplas. Na linguagem bíblica, a
matéria-prima é representada pelas águas, sobre as quais, no
início da criação, o Espírito de Deus se movia.
Assim como a materia, quando se procura
apreendê-la, frustra cada avanço da razão e retira-se ao pólo
passivo da existência, então a forma essencial (forma) pode ser
rastreada no pólo ativo da existência, esvaziando-o
sucessivamente de qualquer camada de manifestação que é
condicionada por qualquer materia, por tênue que seja.
Aristóteles, que rastreou os dois conceitos (forma e matéria ou
eidos e hyle) apenas até onde sua ontologia pode ser
demonstrada logicamente, não alcançou o limite onde suas
oposições paradoxalmente se dissolvem numa unidade superior.
Entretanto, está claro que a causa formal, correspondendo ao Ato
41 No Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos, Ed. Gallimard, París, 1943.
55
puro, e a sustância receptiva, que é puramente passiva,
complementam-se uma à outra reciprocamente; e assim, como as
possibilidades fundamentais e atemporais, elas não podem ser
separadas uma da outra. Essa referência de todas as aparências,
aos dois pólos primários obviamente não abole o milagre da
criação; trata-se apenas de indicar os seus limites perceptivos
mais extremos. O pólo ativo pode também denominar-se, de um
modo geral, como 'essência', e o pólo passivo como 'substância'.
Em um certo sentido, essência corresponde ao espírito ou
intelecto, na medida em que a formae ou predeterminações
essenciais das coisas estão contidas no Intelecto divino como
protótipos ou 'arquétipos'. Pode-se objetar que a ideia de 'forma'
não pode ser alargada em uma direção superior sem se abolir a
distinção manifestações 'formal' e 'supra-formal'. Vale dizer, a
distinção entre o terreno 'individual' e o terreno 'universal', que é
aquele do Espírito único. A isso se pode responder que o termo
'formal' apenas pode ser aplicado àquilo que, através de uma
forma, é impresso em uma substância. Em si mesma, a forma
pode ser vista não apenas como limitação ou contorno, mas
também como 'feixe' de qualidades não 'substancial' ou
'materialmente' determinadas. Nesse último sentido, ela pode ser
aplicada até a aspectos unitários do Ser. Até mesmo nos escritos
dos teólogos medievais de todas as três religiões monoteístas,
deparamo-nos com a expressão 'a forma de Deus' (forma Dei; em
árabe as-sûratu ´l-ilâhiyah) para a totalidade das qualidades
divinas. A 'essência' de Deus, que revela-se a si mesma através
dessas qualidades, é nela própria incondicionada e acima de
todas as qualidades.
*
56
Figura 3. Dois candelabros da sepultura de
São Bernardo, bispo de Hildesheim (993-1022). São Bernardo,
tutor de Otto III, filho da princesa bizantina Theophano, fundou
oficinas de metalurgia, ouriversaria, caligrafia e pintura.
Nos pedestais dos dois candelabros
encontrados em seu túmulo, está escrito: 'Bernwardus Praesul
candelabrurn hoc puerum suum primo hujus Artis flore non
auro, non argento, et tamen, ut cernis, conflare jubebat'
(Bernardo, o Superior, no primeiro florescimento desta arte,
57
pediu a seu aprendiz para projetar este candelabro não em prata
nem em ouro, mas de qualquer modo, como se vê, para projetálo). Os dois candelabros consistem em uma mistura de prata com
cobre e ferro; a superfície apresenta sinais de dourados.
O pedestal de ambos os candelabros
consistem em três pares de dragões entrelaçados, sobre os quais
homens nus estão cavalgando. Os rebentos de videira, em volta
do eixo, brotam dos dentes de um leão. Nisto os homens sobem,
e os pássaros sentam-se neles. As velas estão sustentadas por
salamandras. Os pares de dragões representam os dois poderes
psíquicos primários em seu estado selvagem, caótico. Eles
correspondem aos caduceus. A videira que brota da boca do leão
solar é um símbolo primordial da vida, assim como uma fonte de
água lançada a partir da máscara leonina. Para o Cristianismo,
isso é também um símbolo da palavra de Deus. A salamandra é
um animal de fogo.
58
Figura 4. A flor da sabedoria. No ovo
hermético está o dragão Uroboros, que como simbolo da
Natureza não redimida ou da matéria informe, devora a sua
própria cauda. Para fora do ovo cresce a flor vermelha de ouro,
a flor branca de prata e, entre elas, a 'flor da sabedoria' azul.
Embaixo está o Sol e a Lua, e entre eles está a estrela do
Mercúrio 'filosofal'. – Página do 'Manuscrito Alquímico' de
1550, na Biblioteca da Universidade da Basiléia.
No seu livro The Sceptical Chymist,
publicado em 1661, Robert Boyle atacou a doutrina tradicional
dos quatro elementos como fundamento de toda a materia
corporal. Ele demostrou que a terra, água e ar não são corpos
indivisíveis, mas são compostos de vários constituintes
químicos. Ele acreditou que, fazendo assim, ele haveria
destruído a alquimia em suas raízes. O que ele na verdade
destruiu não foi a alquimia verdadeira, mas uma concepção
imperfeita e mal-compreendida da doutrina tradicional dos
quatro elementos, já que os verdadeiros alquimistas nunca
consideraram terra, água, ar e fogo como substâncias corporais e
químicas, no atual sentido da palavra. Os quatro elementos são
simplesmente as qualidades primárias e mais gerais através das
quais a substância amorfa e puramente quantitativa de todos os
corpos revelam-se em formas diferenciadas. A essência imutável
de cada elemento também não tem nada a ver com qualquer
indivisibilidade corporal. E na realidade, o fato de que a água
seja composto de hidrogênio e oxigênio, e o ar de hidrogênio e
nitrogênio, de nenhuma forma altera a experiência imediata das
quatro 'condições' fundamentais da materia corporal, de que
terra, água, ar e fogo são os exemplos mais gerais. Mesmo os
constituintes químicos nos quais os três primeiros itens podem
ser decompostos reduzem-se a estas categorias. Uma certa
dificuldades em compreender a doutrina a respeito dos quatro
elementos pode surgir do fato de que enquanto esses quatro
'modos de manifestação' são, de um lado, a diferenciação
qualitativa primária de materia, eles, contudo, na medida em que
sua relação com os corpos verdadeiros é considerada,
desempenha o papel de substâncias passivas e que podem ser
59
moldadas. Nesse último aspecto, especificamente como
fundamentos materiais ou substanciais, os quatro elementos
podem ser comparados – como foi feito por ar-Râzî (Rhazes),
por exemplo – com estados mais ou menos densos de substâncias
corporais, ou até mesmo com vários tipos de vibração, embora
todas essas analogias sejam apenas aproximadamente adequadas,
já que os elementos em si mesmos permanecem além (ou ao
lado) de manifestação corporal, na medida em que a materia de
todo o mundo corporal é ela mesma imperceptível.
De tudo isso pode-se ver que uma alquimia
consciente de seus fundamentos cosmológicos não poderia
acreditar que seria através de procedimentos químicos que os
quatro elementos foram reduzidos um ao outro, e a suas
substâncias comuns subjacentes – como a arte hermética
ensinou. Se esse ensinamento era de fato seguido em seu sentido
real, ela apenas poderia distanciar de um nível de empirismo
exterior a uma 'dimensão' ontológica completamente diversa. De
acordo com os alquimista ocidentais e orientais, os elementos
nunca estão presentes nos corpos em sua forma pura. Cada
substância corporal contêm todos os quatro elementos, com a
preponderância de um ou outro, e assim imprimindo seu
caractere na aparência corporal. Assim, a água comum não é
idêntica ao elemento de mesmo nome, embora seja sua
manifestação mais imediata, e ao mesmo tempo é essencialmente
uma, tanto com ela como com o aspecto passivo da substância
primordial ou universal. O fato de que em todos os lugares, nos
vários níveis da existência, há ligações 'verticais' com os
arquétipos universais, significa que a concepção cosmológica da
natureza – e também toda arte nela baseada – possui uma
multiplicidade de significados hierarquicamente arranjada.
A base comum dos quatro elementos,
quando se olha às coisas em geral e de um modo sintético, não é
nada além do que a materia prima do mundo. Olhando às coisas
mais exatamente, entretanto, os elementos não procedem
diretamente da matéria-prima, mas de sua primeira
determinação, o éter, que preenche todo o espaço igualmente, e
que nos escritos alquímicos é chamado tanto de materia, quando
uma quintaessentia – dependendo se é visto material ou
qualitativamente.
60
A mais completa exposição dos quatro
elementos é encontrada na cosmologia hindu de sankhya. De
acordo com ela, os elementos corporais, ou bhutas, que
pertencem ao mundo material, no sentido mais amplo do termo,
correspondem em número às medidas 'essenciais' ou tanmâtras,
que estão contidas no sujeito cognitivo. Ambos os grupos de
determinações primordiais, os tanmâtras tanto quanto os bhutas,
derivam, em última instância do prakriti (materia prima). Eles
são filtrados através do ahankâra, o principium individuationis
ou consciência egóica, e divididos nos pólos objetivos e
subjetivos do mundo manifesto.
Essa exposição dos elementos corresponde
exatamente à concepção hermética. Ela também mostra como as
aparências visíveis podem ser transpostas para o campo interior,
porque as tais tanmâtras também 'medem' fenômenos psíquicos.
Se os elementos são listados na ordem de
seu 'quilate' ou 'sutileza', a terra ocupa o lugar mais baixo e o ar,
o mais alto. Se, contudo, eles são ordenados de acordo com as
direções do seu movimento, o fogo ocupa o lugar mais alto; a
terra é caracterizada pelo seu peso: ela possui uma tendência
descendente. A água é também 'pesada', mas também tem a
capacidade de 'extensão'. O ar tanto aumenta como se estende, ao
passo que o fogo apenas aumenta.
De acordo com a tradição hermética, a
ordem natural dos elementos é representada tanto por uma cruz,
cujo ponto central então corresponde a quinta essencia, ou por
círculos concêntricos, em cujo caso a terra é o ponto mediano, e
o fogo o círculo mais exterior. De novo, ela pode ser
representada pelas partes individuais do 'Selo de Salomão', que
consiste em dois triângulos equiláteros, que se intercedem. O
triângulo que aponta para cima △ corresponde ao fogo, e o
triângulo que aponta para baixo ▽ corresponde à água. O
triângulo representando o fogo, com o lado horizontal do outro
triângulo, representa o ar & enquanto o oposto desse símbolo
representa a terra %. o Selo de Salomão completo Y representa a
síntese de todos os elementos, e assim a união de todos os
opostos.
*
61
A concepção tradicional de materia como o
fundamento passivo e receptivo de toda a multiplicidade e
diferenciação torna possível aplicar o mesmo conceito fora do
domínio corporal. Assim, pode-se falar de materia da alma, dado
que o plano psíquico também consiste de uma 'impressão'
múltipla e mutável de formas essenciais, e assim possui um pólo
ativo (ou essencial) e passivo (ou substancial ou 'material').
O pólo substancial da alma, em outras
palavras sua materia, é expressado na sua capacidade de assumir
e manter formas, vale dizer, na sua 'receptividade' pura e
ilimitável. Este é o seu lado feminino – e pode-se concebê-lo
quase literalmente, já que na natureza da mulher esse aspecto da
alma predomina, e mesmo se mostra fisicamente. Na mulher,
alma e no corpo estão relativamente fechados um ao outro, como
resultado das características 'passivas' comuns a ambos – um fato
que enobrece o corpo mas vincula a alma.
As 'formas' assumidas pela 'substância' ou
'matéria' da alma vêm tanto de fora como de dentro. Isso
significa que, empiricamente, eles vêm de fora, através dos
sentidos. Eles são formas essenciais apenas na medida em que
correspondem aos arquétipos imutáveis contidos no Intelecto,
que constitui o conteúdo real de todo o conhecimento. O pólo
essencial da alma é assim o Intelecto (ou Espírito). Ele é sua
'forma'. Essa expressão pode muito bem soar peculiar. Ela não
deve ser considerada de modo a significar que o Intelecto em si
mesmo tem qualquer 'forma' particular. Se até mesmo o termo
'forma essencial' pode ser aplicado ao Intelecto, é apenas porque
na sua ação sobre a materia de uma dada alma ele imprime a
'forma pessoal' da alma, e então, juntamente com esse último,
forma o ser pessoal. Pelas mesmas razões – ou seja, havendo
considerado o inter-relacionamento do espírito e alma, e em
razão de que a singularidade qualitativa da pessoa vem do
Espírito –, é possível falar de 'espírito' de um ser particular, ou de
'espíritos' no plural. Assim, é no caso de uma luz, de que um raio
– ou um feixe de raios – é interceptado numa superfície refletora:
a luz em si mesma não tem nenhuma direção particular, ela se
espalha por todo o espaço. No seu relacionamento com a
superfície reflexora, contudo, ela tem uma direção, e parece, sem
62
qualquer mudança essencial de natureza, como se fosse um raio.
Então tudo o que é espírito é 'feito de conhecimento' e
completamente um com a Luz da Verdade. E ainda quando o
espírito está presente na alma, ele aparece como um ser
individual.
Como espírito e alma não podem ser
circunscritos como duas coisas corporais, qualquer comparação
que se possa fazer para transmitir seu relacionamento recíproco é
de alguma muito simplista e muito imperfeito. Apesar disso, tais
comparações transmitem muito mais do que um esforço de
descrição psicológica, que necessariamente relaciona tudo
unicamente ao plano psíquico, resultando que o pólo espiritual
apenas é percebido indiretamente, como um aspecto particular
do mundo psíquico. Isso ocorre, por exemplo, na distinção
psicológica entre animus e anima, que tem a mais remota
conexão real entre espírito e alma, como é mostrado pelo fato
(entre outras coisas) de que animus recebe uma inclinação
'racional'. Na realidade, é apenas uma reflexão psíquica e passiva
do espírito.
No seu livro On the Adornment of the
Spititual Marriage (Livro II, Capítulo 4), Ruysbroek escreve:
'Em todo homem há, por natureza, uma tripla unidade, que além
disso, no caso dos justos, é sobrenatural. A primeira e mais alta
unidade encontrada no homem é Deus, já que todas as criaturas
dependem da Unidade Divina para a perfeição de seu ser, vida e
existência. Se eles pudesse dissolver esse relacionamento, eles
cairiam no nada e seriam aniquilados. Essa unidade é em nós
essencialmente natural, quer sejamos bons ou maus. Sem nossa
cooperação, não nos faz nem santos nem bem-aventurados.
Enquanto essa unidade está em nós, ela está ao mesmo tempo
acima de nós como fundamento e suporte de nossa vida.
'A segunda união, ou unidade, está da
mesma forma presente em nós naturalmente. Trata-se da unidade
das faculdades superiores, uma unidade que deriva do fato de
que, considerando-se sua atividade, essas faculdades saltam
naturalmente da unidade do próprio Espírito. Ela continua a
mesma unidade que nós possuímos em Deus, mas aqui ela é
considerada do lado ativo, e não do ponto de vista da essência. O
Espírito está tão presente em uma unidade como em outra, com
63
toda a completude do seu ser. Essa segunda unidade nós
possuímos em nós mesmos, bem acima do terreno dos sentidos.
Dela derivam o pensamento, a razão, o desejo e todas as
possibilidades da atividade espiritual. Aqui a alma comporta o
nome de espírito.
'A terceira unidade que em nós está
naturalmente consiste no domínio das faculdades inferiores, que
tem sua sede no coração, a base fonte da vida animal. É no
corpo, e especialmente na ação do coração, que a alma possui
essa unidade, a partir da qual todas as atividades do corpo e os
cinco sentidos procedem. Aqui leva seu verdadeiro nome, alma,
pois é a 'forma' do corpo que ela anima, o corpo que ela faz viver
e mantém vivo.
'Essas três unidades que estão no homem
por natureza constituem uma só vida e um só reino. Em sua
unidade inferior essa vida é sensorial e animal; na unidade
intermediária ela é racional e espiritual; na unidade superior, ela
está contida na sua própria essência. Isso pertence a todos os
homens por natureza...'
Ruysbroek caracteriza a alma no senso
literal da palavra (anima, psyque), por sua tendência em direção
às faculdades sensoriais, através do que ele faz menção aos
níveis da alma individual empírica, em contraposição ao espírito.
Mas o relacionamento espírito-alma pode também ser visto de
uma outra forma. Quando ele fala da alma como materia do
espírito, nós não queremos apenas significar o mero tecido de
uma consciência egóica, mas antes a capacidade passiva e
receptiva que subjaz em maior profundidade, e que precisamente
é velada pela habitual relação feita entre alma e sentidos. A
possível confusão da alma, considerada como ego, com o corpo a
torna fragmentária e, num certo sentido cristalizada, e isso a
impede de refletir o Espírito livremente e sem distorções.
O que corresponde à alma caótica no plano
mineral é a condição dos metais comuns, especialmente o
chumbo, que na sua obscuridade e peso assemelha-se a uma
massa imperfeita. De acordo o famoso místico islâmico Muhyi
´d-Dîn ibn ´Arabî, o ouro corresponde às condições saudáveis e
originais da alma que, livremente e sem distorções, reflete o
Espírito Divino na sua essência, enquanto o chumbo corresponde
64
à sua condição 'doente', distorcida e 'morta', que não reflete mais
o Espírito. A verdadeira essência do chumbo é o ouro. Cada
metal comum representa uma quebra no equilíbrio que somente
o ouro possui.
Em busca de libertar a alma de sua
coagulação e paralisia, a sua forma essencial e a sua materia
devem ser dissolvidas da sua combinação imperfeita e unilateral.
É como se o espírito e a alma devessem ser separados um do
outro, com o objetivo de, após esse 'divórcio', 'casarem-se'
novamente. A materia amorfa é queimada, dissolvida e
purificada, em vista de ser cristalizada novamente na forma de
um cristal perfeito.
A forma da uma alma assim 'renascida' é
distinguível do Espírito que tudo abarca, na medida em que
continua pertencente à existência condicionada. Mas ao mesmo
tempo ela é transparente à Luz indiferenciada do Espírito, e em
uma união vital com a materia primordial de todas as almas;
porque o fundamento 'material' ou 'substancial' da alma, assim
como seu fundamento essencial ou ativo, tem uma natureza
unitária. Que todas as almas são 'feitas de uma substância' pode
ser conhecido do fato de que os 'movimentos' (emoções) da alma
de todas as criaturas vivas – apesar da imensa variedade de
espécies e níveis de consciência – são feitos de maneira similar.
Pode-se dizer que eles são como as ondas de um mesmo mar.
A doutrina e o simbolismo alquímicos
nunca tiveram em vista a 'extinção' completa (espiritual) do
individual, como o moksha hindu, o nirvana do Budismo, o fanâ
´u ´l-fanâí Sufi, e como a unio mystica ou deificatio cristã no
sentido mais alto dessas duas expressões. Isso porque a alquimia
é baseada em uma visão puramente cosmológica, e por isso pode
apenas ser transportada indiretamente para o campo metacósmico ou divino. Desde que, entretanto, as realizações
alquímicas podem ser representadas como um caminho para o
mais alto de todas as metas, ela foi contudo incorporada no
misticismo cristão e islâmico. A transmutação alquímica permite
o contato direto do centro da consciência humana com aquele
raio divino que irresistivelmente atrai a alma para cima, e a
permite saborear por antecipação o Reino dos Céus.
65
*
A aplicação de conceitos mutualmente
complementares de forma e materia ao âmbito da alma torna
claro em qual senso determinadas informações sensíveis, como
os quatro elementos, podem ser transpostos ao plano psíquico.
Assim como a materia corporal, que se manifesta mais
facilmente nos quatro elementos, assim a materia da alma, no
seu desenvolvimento, tem diversas tendências mutualmente
opostas. Ela tem uma tendência 'descendente' em direção à inéria
e à densidade terrena; ao mesmo tempo, ela tem a tendência
ascendente, como o elemento fogo, em direção ao Espírito.
Novamente, tem uma tendência em relação à expansão – uma
inércia tanto passiva como relativamente inerte, como aquela da
água, ou mais ativa e móvel, como aquela do ar. Aplicada à alma,
'terra' é aquele aspecto ou tendência que causa um mergulho
dentro do corpo, e que o vincula a este. 'Fogo' tem o mesmo
caráter purificador e transmutador do fogo visível. 'Água' é capaz
de assumir todas as formas. Na sua natureza original e
incorrupta, a água é, nas palavras de São Francisco de Assis,
umile e preziosa e casta. Para a alma, o 'ar', livre e móvel,
envolve todas as formas de consciência.
Os signos dos quatro, derivados do Selo de
Salomão, são particularmente claros quando aplicados à alma. A
partir deles, pode-se ver que a pluralidade dos elementos originase da oposição do fogo △ e água ▽, ou seja, do par atividadepassividade (que obviamente corresponde ao par forma-materia).
É a mesma oposição que encontraremos na forma do enxofre e
do mercúrio. Através da união dos opostos Y a alma se
transforma em 'fogo fluído' e 'água ígnea', e ao mesmo tempo
também adquire as qualidades positivas dos outros elementos, de
maneira que a sua água é 'sólida' e o seu fogo 'não se queima';
pois o 'fogo' da alma é o que dá solidez à sua 'água', enquanto à
'água' da alma confere ao 'fogo' a suavidade e a ubiquidade do
'ar'.
Os 'elementos interiores' podem também
ser considerados como qualidades puras do espírito, e, em última
instância, como aspectos imutáveis do Ser. Vistos por esse lado,
a sua união e reconciliação consiste no fato de que em cada
66
qualidade individual dos elementos os outros estão também
contidos, porque o Ser puro é ao mesmo tempo simples e
inexaurivelmente rico. O significado superior da alquimia é o
conhecimento de que tudo está contido em tudo, e o seu
magisterium não é outro além da realização dessa verdade no
plano da alma. Essa realização é efetivada através da criação do
'elixir', que concentra em si próprio todos os poderes da alma, e
assim atua como um 'fermento' transmutador' no mundo
psíquico, e de uma maneira indireta, também no mundo visível.
Assim como não há nenhuma substância
corporal que é completamente separada dos modos superiores de
ser, é possível em certas circunstâncias transportar os poderes
pertencentes a alma ou espírito a uma substância corporal, e
então, em determinado sentido, eles se unem a ela. Assim, o
elixir interior dos alquimistas pode ter, em alguns casos, uma
contrapartida exterior.
67
CAPÍTULO 5
PLANETAS E METAIS
Os alquimistas designam os vários metais
através dos mesmos símbolos que eles atribuem aos planetas, e
muitas vezes até mesmo dão aos metais e planetas o mesmo
nome. Ao ouro eles chamam 'sol', à prata, 'lua', ao mercúrio,
'mercúrio' (quicksilver), ao cobre, 'vênus', ao ferro, 'marte', ao
estanho, 'júpiter', e ao chumbo, 'saturno'. As correspondências
assim estabelecidas demonstram claramente o relacionamento
entre a alquimia e a astrologia, uma relação baseada naquela lei
que a Tábua da Esmeralda expressa nas seguintes palavras: 'O
que está embaixo é como o que está acima'.
A astrologia e a alquimia, que na sua forma
ocidental derivam da tradição hermética, relacionam-se uma à
outra como céu e terra. A astrologia interpreta o significado do
zodíaco e dos planetas; e a alquimia, o significado dos elementos
e dos metais. Os doze signos do zodíaco são uma imagem
simplificada dos arquétipos imutáveis contidos no Intelecto
Divino. Os elementos fogo, ar, água e terra, por outro lado,
manifestam simbolicamente a primeira e fundamental
diferenciação da substância primordial (materia prima, hyle).
Considerando que os planetas, em virtude da posição de um em
relação ao outro, manifestam de modos diferenciados e
temporais as possibilidades contidas no zodíaco, e assim
representam os caminhos de ação do Espírito Divino, 'descendo'
do Céu à terra, os metais, por sua vez, representam os primeiros
frutos da substância elemental42, 'amadurecido' pelo Espírito ou
Intelecto.
A alquimia ensina que os metais foram
gerados no ventre escuro da terra, sob a influência dos sete
planetas – sol, lua e os cinco planetas visíveis a olho nu. Esse
modo de ver as coisas não deve ser considerado uma explicação
física. Ele indica como as manifestações materiais derivam –
essencialmente mas não fisicamente, dos dois principais pólos da
42Expressado com certa ousadia, o metal é uma forma espiritual da matéria
corporal, enquanto que os planetas ou os astros representam em geral uma forma
corporal do espírito.
68
existência. Nos regimes complementares de estrelas e metais, já
um tipo de escala ontológica, para o qual todos os aspectos da
natureza podem ser relacionados. Isso é verdade não apenas no
caso da natureza 'visível', o macrocosmo, mas também para o
microcosmo, o que vale dizer, a constituição psicofísica do
homem. Assim como na alquimia há metais interiores, assim
também na astrologia há planetas interiores.
Uma
certa
mutabilidade
no
emparelhamento de metais e planetas surge do fato de que
algumas escolas alquímicas consideram o mercúrio, em razão de
sua 'volatilidade' e o seu efeito sobre outros metais, não como
um metal ou 'corpo', mas como um agente volátil ou 'espírito'.
Em tais casos, um metal diverso do mercúrio toma seu lugar na
escala dos sete metais – algumas vezes uma liga. O que é
essencial é que cada um dos sete metais representam um 'tipo
definitivo', que inclui todo um grupo de metais mutualmente
relacionados43.
A dualidade dos pólos ativo e receptivo da
existência expressa no complementarismo de céu e terra, ou de
planetas e metais, reflete-se em cada um dos dois grupos no
relacionamento entre sol e lua e entre ouro e prata. O sol, ou
ouro, é, de certo modo, a encarnação do pólo ativo e gerador da
existência, enquanto que a lua, ou prata, encarna o pólo
receptivo, a materia prima. Ouro é sol; sol é espírito. Prata, ou
lua, é alma.
Os outros metais, e os outros planetas,
participam em diferentes graus nos dois pólos da existência.
Nenhum dos pólos manifesta-se completamente em qualquer um
deles.
A graduação das qualidades cósmicas –
manifestada ativamente nos planetas e passivamente nos metais
– é claramente expressa nos sete símbolos que representam tanto
planetas quanto metais. Eles estão listados aqui na ordem das
órbitas planetárias como vistas da terra:
43 Alguns alquimistas helenos colocam o elétron no lugar do mercúrio.
69
R
s
t
q
Lua
Mercúrio
Vênus
Sol
Prata
Mercúrio
Cobre
Ouro
v
w
Marte
Júpiter
Saturno
Ferro
Estanho
Chumbo
Em contraposição ao modo usual de
representar o símbolo de marte – com uma seta u (uma fórmula
que desvia completamente do estilo dos outros símbolos), marte
é aqui representado por um círculo com uma cruz sobre ele.
Podemos supor que marte era antigamente designado dessa
forma e que o símbolo atualmente mais usado foi introduzido
com o fim de distingui-lo de vênus, em mapas do céu sem uma
indicação clara de onde estava a parte superior e onde a parte
inferior. O uso do símbolo antigo para marte como uma
designação da terra, apenas surgiu com a concepção
heliocêntrica, e ele não é diferente do símbolo Cristão do globo
encimado pela cruz.
Assim, os sete símbolos planetários são
formados a partir de três figuras básicas: o círculo, o semicírculo
e a cruz. Como o círculo é também o símbolo do sol, e o
semicírculo o da lua, essas duas figuras podem ser consideradas
como representações da órbita completa e de meias órbitas do
sol, respectivamente. A interpretação espiritual de modo algum
foi alterada por isso, já que a meia órbita do sol, que mede uma
das duas fases do ano, está contida na órbita completa, assim
como a luz da lua procede inteiramente do sol. A terceira figura
básica, a cruz, recorda, astronomicamente falando, a cruz das
quatro direções do espaço, e alquimicamente falando, os quatro
elementos. Inscritas, as três figuras básicas dão origem à 'roda
Celestial': ;.
Assim, nos sete símbolos nós encontramos
uma expressão da hierarquia cósmica integral, que foi
mencionada acima. Essa hierarquia é o resultado da polarização
da existência em um pólo ativo, ou masculino q e um passivo,
ou feminino R, e essa origem deve-se ao fato de que a influência
do primeiro no último (que desempenha o papel da materia
plástica) é imprimir condições nesse último, que 'se cruzam'
70
mutuamente +. Que sol e lua correspondam aos dois pólos da
existência pode ser visto tanto na relação entre a fonte da luz e a
superfície que a reflete como no fato de que a forma da lua
muda-se, enquanto a do sol sempre permanece a mesma. O
porvir pertence ao lado passivo, enquanto o Ato Puro da
Essência permanece imóvel. A terceira figura básica dos
símbolos planetários, a cruz, é o mais genérico dos símbolos que
representam a diferenciação (sob a influência do pólo ativo) das
possibilidades latentes na materia passiva. É a cruz dos quatro
elementos.
É importante lembrar que o sol, ou ouro,
não é o pólo ativo como tal, mas apenas seu principal reflexo em
um determinado domínio. O mesmo é verdade a respeito da lua,
ou prata, que corresponde ao pólo passivo. Estritamente falando,
o símbolo do pólo passivo não tem forma própria, assim como a
materia prima também não tem forma. Ela pode assim apenas
ser o complemento ou a fragmentação do símbolo do pólo ativo,
daí porque o semicírculo, a lua crescente e a meia-órbita solar
simbolizam a causa passiva. Assim, é essa unidade do ouro em si
mesma toda 'luz metálica' ou toda 'cor', enquanto a prata, como
um espelho, é incolor.
Os planetas (exceto o sol e a luz) e os
metais comuns, são variações de um único protótipo, que se
encarna totalmente apenas no sol e no ouro. Neles tanto a causa
solar como a causa lunar são predominantes – sem, contudo,
realizarem expressão completa, porque as diversas combinações
de círculo e semicírculo com a cruz significa uma determinada
ruptura do equilíbrio original dos elementos. Toda ruptura desse
equilíbrio (consoante, nesse símbolo, a figura solar ou lunar
esteja localizada acima, abaixo ou no traço horizontal da cruz) é
associada a uma qualidade diferente. Assim, no símbolo de
Saturno (w) ou chumbo, o crescente está ligado à parte inferior
da cruz, no ponto mais baixo, vale dizer, de ordem material – o
chumbo, de fato, sendo o mais denso e 'caótico' dos metais. No
símbolo de Júpiter (v), o crescente está ligado à linha horizontal.
Do ponto de vista alquímico, isso corresponde à posição
intermediária do estanho entre o chumbo e a prata. O símbolo
com o crescente na parte mais alta da cruz não existe. Ele
poderia corresponder ao símbolo da lua, porque onde a causa
71
lunar é predominante, ela dissolve as diferenciações elementares,
matéria-prima sendo pura receptividade informe, como a água.
De outro lado, há um símbolo (de Vênus ou cobre – t) no qual o
sol aparece sobre uma cruz, porque a causa formal ativa não
dissolve as diferenciações elementais, mas, em lugar disso, as
reforça, antes de trazê-las ao equilíbrio perfeito, na forma de
ouro. De acordo com Basilius Valentinus, o cobre contém um
excesso de poder solar não-fixado, como uma árvore que tem
muita resina. Seu oposto, tanto no que respeita o seu símbolo
como a sua natureza, é o ferro; nele o sol pode ser encontrado
abaixo da cruz, e assim escondido na escuridão da terra. Na
concepção geocêntrica, Marte (U) e Vênus (t) estão próximos
um do outro; eles são o par mitológico de amantes.
O único símbolo, aquele de Mercúrio
(Mercury or quicksilver) contém todas as três figuras básicas: a
cruz, o círculo e o semicírculo. Nele a causa lunar predomina
sobre a solar, que por sua parte 'fixa' a cruz dos pares de opostos
elementais. Nós podemos voltar frequentemente a esse símbolo,
porque ele é a chave verdadeira para o trabalho alquímico, assim
como o Mercúrio, ou Hermes, é o predecessor da alquimia.
Entretanto, deixe-nos dizer que esse símbolo e metal a que ele
corresponde expressa materia prima, como o portador de todas
as formas. O metal mercúrio é do mesmo modo o 'ventre' de
todos os metais, enquanto a prata assemelha-se à condição
virginal da pura materia prima. Isso também explica porque os
alquimistas representam a causa feminina ou 'materia' – materia
– na medida em que isso entra em seu trabalho tanto pela luz (ou
prata) como pelo mercúrio (quicksilver). Esse último
corresponde ao poder produtivo da materia, seu aspecto
dinâmico, assim como o enxofre, o 'oposto' do mercúrio, é o
poder ativo da causa solar ou masculina. Em certo sentido, a
teoria chinesa a respeito do sol e da lua pode ser aplicada ao ouro
e à prata: o sol, dizem os chineses, é yang cristalizado, e a lua,
yin cristalizado. Do mesmo modo, o ouro é 'enxofre' cristalizado
ou estático, e a prata é 'mercúrio' cristalizado. É necessário
observar que todas essas relações não podem ser compreendidas
em sentido físico, mas no contexto de uma cosmologia que vai
para além do domínio corporal.
A série de sete símbolos dos planetas e
72
metais pode ser considerada como uma representação
simplificada de um dado domínio cosmológico. Em todo o
domínio há o que podemos chamar centro, vale dizer, um ponto
alto qualitativo, no qual o protótipo ou causa, que governa todo o
domínio, revela a si mesmo de modo mais completo e imediato.
Assim é o ouro entre os metais, a pedra preciosa entre outras
pedras, a rosa ou o lótus entre as flores, o leão entre os
quadrúpedes, a águia entre os pássaros, e o homem entre as
criaturas vivas na terra. Em cada caso, a manifestação 'central' é
'esplêndida', porque, como símbolo, é tão completa e integral
quanto possível. Pelo contrário, as manifestações 'periféricas' são
mais ou menos 'básicas', na medida em que elas expressam
apenas qualidades ou aspectos incidentais de um protótipo44.
Aqui pode ser notado que enquanto o
homem, na sua natureza específica, sempre representa
simbolicamente o centro do domínio terrestre, isso não é
necessariamente dessa forma em relação à sua individualidade.
O animal sempre permanece fiel à forma essencial de sua
espécie. Em um modo passivo, ele participa daquele raio do
Intelecto Divino que se releva nele, através da sua existência
mesma. (O assim chamado 'instinto' dos animais pertence à sua
participação passiva no Intelecto.) O homem, por outro lado, é
criado com o propósito de participar ativamente do Intelecto
Divino, do qual ele é o reflexo 'central'. Apenas quando ele age
assim é que ele é verdadeiramente o centro do mundo terreno, e
até mesmo em proporção à sua identificação com o Intelecto de
todas a manifestação formal ou do cosmos inteiro. A 'realização'
do centro do mundo terreno é a meta real da alquimia, e também
o significado mais profundo do ouro. Ouro é um 'corpo' como os
outros metais, mas a massa, a densidade e a divisibilidade dos
corpos nele foram transmutadas em qualidades puras e
simbólicas. Ele é luz encarnada. Os próprios alquimistas muitas
vezes descrevem a meta do seu trabalho como uma 'volatização
do sólido' ou uma 'solidificação do volátil' ou como uma
44Deve-se observar, sem embargo, que só um campo completo da existência possui
um centro indiscutível; só o homem é o centro induscutível de toda a existência
terrena. Pelo contrário, há campos parciais com centros relativos que se manifestam
frequentemente em formas diversas, as quais se complementam entre si. Por
exemplo, no reino das aves temos, além da água, o rouxinon, a pomba, o pavão, o
cisne e inclusive a coruja, que, cada um a seu modo, representam um centro.
73
'espiritualização do corpo' e uma 'encarnação do espírito'. O ouro
não é nada além disso.
Apenas no símbolo do ouro o ponto central
do círculo é indicado, o que significa que apenas no ouro a
unidade essencial do arquétipo, com seu reflexo material,
encontra expressão. Do mesmo modo, é apenas no homem
perfeito que a similaridade da criatura com Deus é
espiritualmente efetiva.
*
Nas palavras da 'Tábua da Esmeralda' – de
acordo com as quais o que está abaixo é como o que está acima,
e o que quer que esteja em cima é como o que está abaixo – há
uma referência a uma espécie de inversão, como em um espelho,
nos dois lados. Na realidade, a 'graduação' dos metais (de acordo
com a sua maior ou menor similaridade com o ouro) é inversa
àquela dos planetas, que gozam de uma classe superior, quanto
mais distantes estiverem suas órbitas do centro da terra. Uma
exceção aqui é o sol, que corresponde ao ouro, e cuja esfera está
no meio entre duas séries de três órbitas planetárias. Acima do
Sol, de baixo para cima, estão as órbitas de Marte, Júpiter e
Saturno. Abaixo dele, em ordem descendente, em direção à
Terra, estão as órbitas de Vênus, de Mercúrio e a Lua. Se, em
direção para cima e para fora, adicionarmos as estrelas fixas às
esferas planetárias, então as séries podem ser completadas, na
direção descendente e na direção do centro, pela adição da Terra.
De um modo ou de outro, mesmo na
concepção geocêntrica, o Sol representa um centro,
independentemente do fato de que como fonte de luz para todos
os planetas ele é mesmo o seu centro. A combinação das duas
ordens simbólicas (nas quais, de um lado, a maior ou menor
largura dos 'céus' é soberana e, por outro, a posição central do
Sol) também surge na aplicação das qualidades planetárias aos
seres humanos. Aqui isso adquire um significado que é
particularmente instrutivo à medida em que a concepção de
mundo comum tanto à alquimia como à cosmologia é
considerada.
74
Saturno, cuja órbita, é a maior do ponto de
vista da Terra, corresponde à inteligência, ou mais exatamente ao
intelecto, enquanto a Lua, cuja órbita é a mais próxima do centro
da Terra, é análoga ao 'espírito vital', que liga entre si alma e
corpo. Estes são os dois pólos extremos da capacidade da alma,
porque o espírito vital, que governa as atividades voluntárias do
corpo, como crescimento e digestão, e que por essa razão tem
um caráter mais 'existencial' que 'racional', é em certo sentido
oposto ao intelecto. Entre esses dois pólos extremos, as outras
faculdades da alma estão localizadas. Eles são comumente
designados e relacionados aos planetas dependendo de qual lado,
o do 'conhecimento' ou o da 'vontade', leva-se mais em conta.
Em todo caso, o Sol corresponde a uma faculdade que está no
meio do caminho entre os dois pólos e em um certo sentido os
unifica. De acordo com Macrobius (que em seu comentário ao
Sonho de Cipião considera a hierarquia dos planetas em conexão
com a doutrina pitagórico-órfica da descida da alma do céu
superior à terra) o Sol é análogo à faculdade que anima os cinco
sentidos e sintetiza suas impressões. O Sol é assim o arquétipo
da vida da 'alma sensitiva'. De acordo com outra e mais profunda
visão das coisas, aquela de ´Abd al-Karîm al-Jîlî, por exemplo,
no seu livro sobre o 'Homem Universal' (al-insân al-kâmil)45, o
45Veja a minha tradução parcial: Abd al-Karîm al-Djîlî, De l'Homme universel,
75
Sol é análogo ao coração (al-qalb), o órgão do conhecimento
intuitivo, unificador, que transcende completamente todas as
outras faculdades da alma. Assim como o Sol dá aos planetas a
sua luz, assim a luz do coração (morada do espírito ou intelecto)
ilumina todas as outras faculdades da alma.
'Inteligência' é aqui usada para traduzir
ratio no sentido antigo (e não no 'racionalista') da palavra (grego:
nous; árabe: al-´aql). Como faculdade do pensamento
fundamental e compreensivo, a inteligência, nesse sentido – ou o
intelecto humano – está relacionada ao Intelecto Divino que tudo
compreende. No Intelecto Divino, contudo, os dois aspectos
'Conhecimento' e 'Ser' são ambos presentes, enquanto que no
intelecto humano só há o aspecto 'conhecimento', porque em
certo sentido o intelecto humano é separado daquilo que ele
conhece. Quanto maior e mais compreensiva a sua visão mais
separado do seu objeto. O 'espírito vital', de outro lado, é
(subjetivamente e de acordo com a experiência comum)
incondicionalmente imerso na existência corporal. Esses são os
dois limites extremos da consciência individual, e pode-se dizer
que essa consciência é dividida entre mente (nous) e corpo. O
cogito ergo sum ('penso, logo existo') é imediatamente refutado
pelo fato de que o pensamento não é capaz de abarcar o seu
próprio ser. A expressão 'existo' é tanto a expressão de uma
certeza, transcendente e sempre presente, infinitamente acima de
todo pensamento, ou meramente da experiência comum da
existência corporal e individual, que não faz nada mais do que
acompanhar passivamente o pensamento, por mais que isso
possa ser envolvido por uma verdadeira rede de imaginações. O
conhecimento e o ser são refletidos separadamente na
consciência individual, como mente e corpo. Para libertar-se
dessa dualidade, a consciência deve retornar ao 'Sol' do coração.
Como dizem os alquimistas, o 'corpo' deve de novo tornar-se
'espírito' e o 'espírito', 'corpo'.
A respeito dos outro planetas, Júpiter é
geralmente comparado à faculdade da decisão (em árabe: alhimmah). Ele assim representa a forma espiritual ou intelectual
da vontade. À Marte pertence a coragem; Al-Jîlî a ele atribui a
'imaginação ativa' (al-wahm). Ambos os atributos estão
Argel y Lyon, 1953.
76
relacionados à vontade do 'demiurgo', inclinada para a terra. De
acordo com Macrobius e todos os cosmologistas helenísticos,
Vênus é a estrela da paixão amorosa. Para Al-Jîmî é acima de
tudo é o arquétipo da 'imaginação passiva' (al-khiyâl), e está
relacionado à imaginação ativa de Marte como está a cola para o
selo. Para todos os cosmologistas, Mercúrio é o arquétipo do
pensamento analítico (al-fikr). À Lua Macrobius atribui a
faculdade de formação e movimento do corpo. Isso é definido
ainda mais exatamente por Santo Alberto Magno como motus
quos movet, in sequendo naturam corporis, ut atrahendo,
mutuando, augendo et generando, e esses são exatamente os
modos de ação do espírito vital (spiritus vitalis, ar-rû), que al-Jîlî
atribui à Lua.
A hierarquia dos planetas é descendente, e
a dos metais correspondentes, ascendente. Os primeiros são
ativos; os segundos, passivos. Como matéria inerte, o metal não
pode ser símbolo nem da faculdade 'cognitiva' nem da 'volitiva'.
Assim, em razão de sua natureza estática e informe, ele é a
expressão de um estado similarmente estático de consciência,
vale dizer de uma consciência íntima que não é limitada por
formas mentais. Isso não é outra coisa que a consciência íntima
do corpo individual. Isso é a sua 'forma da alma'. Desse 'metal' os
alquimistas podem extrair 'alma metálica' e o 'espírito metálico'.
A consciência corporal caótica e 'opaca', sobrecarregada com
paixões e hábitos, é um metal comum. Nele alma e espírito
aparecem sufocados, sombrios, misturados com a terra. Por outro
lado, a consciência corporal 'iluminada' (metal 'nobre') é ela
mesma um modo espiritual de existência. A alma deve primeiro
ser extraída de um metal comum, dizem os alquimistas. O corpo
remanescente deve ser purificado e queimado até que não fica
nada além de cinzas. Então a alma deve ser reunificada com ele.
Quando o corpo é assim 'dissolvido' na alma, então ambos
constituem uma materia pura, o Espírito age na alma e confere a
ela uma forma incorruptível. Vale dizer, ele transmuta a
consciência corporal individual de volta à sua própria
possibilidade puramente espiritual, onde, em toda a sua
completude e de acordo com a sua própria essência, ela
permanece imóvel e indivisível. Basilius Valentinus compara
esse estado com o 'corpo glorioso' do ressuscitado.
77
Enquanto que a astrologia, em sua
qualidade de ciência teórica, parte sempre do mais alto, ou seja,
dos arquétipos cujos símbolos celestes são os doze signos do
zodíaco e, baseando-se nas posições dos planetas, os projeta e
entrelaça em sentido descendente, a alquimia, como arte que
enobrece a matéria 'metálica', parte da matéria ainda sem forma,
vale dizer, do mais baixo e, portanto, não se funda na forma
essencial, no arquétipo, mas sim na matéria-prima, que, como
corresponde à sua natureza passiva, encontra-se 'embaixo'.
(trecho extraído da tradução espanhola – não consta da tradução
inglesa)
Ao lado da hierarquia planetária,
estabelecida em sentido inverso à ordem dos metais, há também
uma ordem diversa e mais antiga dos planetas que é paralela à
ordenação alquímica. Trata-se da sua gradação de acordo com
'casas', cuja distribuição no zodíaco apenas ganha significado
quando seus eixos ordinários estão localizados no lugar em que,
com toda a probabilidade, ela estava situada no zodíaco original
de aproximadamente 2.000 anos antes de Cristo. No momento
em que o eixo do solstício passa entre Leão e Câncer na parte
superior, então, como resultado, as assim chamadas 'casas
planetárias' ficam simetricamente arranjadas. Como Julius
Schwabe mostrou46, há muitas sugestões de que essa posição dos
céus foi fundamental para todo o simbolismo astrológico. Além
disso, porque o significado alquímico dos símbolos planetários é
idêntico ao astrológico, pode-se presumir que a mesma ocasião
também assistiu ao nascimento da alquimia na forma tradicional
na qual ela existiu até os tempos modernos.
46 J. Schwabe, Archetyp und Tierkreis, Basilea, 1951.
78
As 'Casas' Planetárias, c. a. 2000 A.C.
Cada planeta possui duas casas adjacentes,
uma esquerda e uma direita, ou uma feminina e uma masculina,
com exceção da lua e do sol, que têm apenas uma casa cada, e
regem, respectivamente, a metade feminina e a metade
masculina do zodíaco. Na posição inferior dessa figura dos céus,
nos dois lados do solstício de inverno, no lugar da escuridão e da
morte, 'habita' Saturno, que corresponde ao chumbo entre os
metais. Seu símbolo (W) mostra o crescente lunar na posição
inferior. Simbolicamente isso representa a imersão caótica da
consciência no corpo. Por outro lado, o símbolo de Júpiter, ou
estanho (V), que no crescente ocupa a posição superior seguinte,
também indica o primeiro passo na perda da alma a partir dos
pares de opostos elementais. A 'lua' da alma toca aqui a linha
horizontal da cruz, que significa a expansão cósmica.
Imediatamente abaixo do eixo médio horizontal de todo o
zodíaco estão as duas casas de Marte e, imediatamente, as de
Vênus. Seus dois símbolos (U e T) são como imagens espelhadas
um do outro. O símbolo de Marte, que corresponde ao ferro,
exibe uma cristalização ou um mergulho do espírito no corpóreo.
No símbolo de Vênus, ou cobre, por outro lado, o 'sol' do espírito
aparece sobre a 'árvore' das tendências elementais. A cor do ouro
79
se torna visível, mas ainda não está purificada. Sobre ele estão as
duas casas de Mercúrio (ou quicksilver). Seu símbolo (S) é o
único que contém as figuras tanto do sol como da lua. O
mercúrio (quicksilver) contém em sua 'água' lunar o germe
ardente, ígneo, do sol, assim como o poder original da alma traz
consigo o germe do Espírito essencial. Para os alquimistas, o
mercúrio (quicksilver) é a 'mãe do ouro' e o primum agens do seu
trabalho. O sol e a lua colocam-se um em oposição ao outro em
suas casas no topo do zodíaco. A lua (R) é análoga à alma em seu
estado de pura receptividade, e o sol é análogo ao espírito, ou
mais exatamente, à alma transmutada e iluminada pelo espírito,
representando a perfeita união do espírito, da alma e do corpo.
O sol não apenas meramente governa em
sua própria 'casa'. Ele também atravessa todo o zodíaco, subindo
através do seu lado 'masculino' e descendo através do lado
'feminino'. O 'solstício' entre o descendente e o ascendente está
no domínio de Saturno, e no seu 'caos' plúmbeo a vida do sol e
do ouro está escondida.
'Finis corruptionis et principio gerationis' (O fim da corrupção e
o começo da geração). A luta entre as duas forças primordiais
do sol e da lua, do Enxofre e do Mercúrio no círculo celestial. –
Do assim chamado 'Ripley Scrowle', na Biblioteca do British
Museum.
80
O mito alquímico do Rei Ouro, que deve
ser morto e enterrado, a fim de que possa despertar de novo para
a vida, e que, ascendendo através das sete dominações (régimes)
alcança a sua glória suprema, não é nada além de uma expressão
desse simbolismo astrológico. Esse simbolismo, entretanto, é a
reflexão cósmica de uma lei secreta: a centelha divina no homem
corresponde ao sol. Ela parece morrer quando a alma entra na
casa de Saturno. Na verdade, entretanto, ela surge outra vez e,
ascendendo através dos sete níveis de consciência, transforma-se
em um 'leão vermelho' – o elixir que tudo transmuta.
81
CAPÍTULO 6
A ROTAÇÃO DOS ELEMENTOS
Como dito acima, a alquimia espiritual não
se envolveu necessariamente em operações metalúrgicas
concretas, ainda que tenha feito uso delas por analogia. Não se
deve, contudo supor que originalmente o trabalho interno e
externo andam de mãos dadas, porque dentro do quadro de uma
civilização orgânica, orientada em direção à meta maior do
homem, uma profissão apenas pode ter um significado quando
serve à via espiritual. Uma forma simbólica de expressão, por
sua parte, apenas encontra sua justificação na experiência
imediata. Desse modo, é apropriado neste ponto olhar alguns dos
mais simples procedimentos metalúrgicos, que sempre serviram
como suportes simbólicos para a alquimia.
Apartados dos procedimentos puramente
metalúrgicos (tais como extração de metal a partir de minério
misto ou impuro, e sua fundição e, se necessário, a sua
combinação com outros metais, para tornar benéficos seus
defeitos específicos), há também a produção daquelas
substâncias químicas que atuam sobre os metais (tanto
purificando-os ou dando-lhes propriedades específicas, como
uma maior fusibilidade, uma maior dureza ou uma cor
particular). Entre tais substâncias estão o antimônio e o enxofre,
assim como o mercúrio que, embora metal em si mesmo,
também atua como um solvente de outros metais.
Como a produção e o uso desses produtos
químicos também estão na competência dos metalúrgicos,
veremos que o objetivo dessas atividades correspondem a todos
os intentos e propósitos dos químicos modernos. Daí porque
ofícios relacionados, tais como a produção de vidros coloridos e
pedras preciosas artificiais, e a preparação de cunhas, foram
também incorporadas na tradição basicamente metalúrgica da
alquimia e da sua linguagem simbólica.
Famosos alquimistas, como Jâbir ibn
Hayyân, Abu Bakr ar-Râzî (morto em 925) e Geber, mencionam
em seus trabalhos toda uma série de operações fundamentais
82
que, ainda que sejam obviamente químicas por natureza, também
servem como símbolos do processo interior, por causa do seu
caráter genérico e típico.
De acordo com Jâbir, há quatro processos
que governam o trabalho alquímico: primeiramente a purificação
de substâncias, então sua solução, seguida por uma nova
coagulação e finalmente a sua combinação. Ar-Râzî inclui
diversas outras operações – a maioria delas também encontradas
na Summa Perfectionis de Geber – das quais aqui apenas
mencionaremos as mais importantes: volatilização ou
sublimação serviram, como continuam a servir hoje, para separar
uma substância evaporável de uma mistura, e então obtê-la em
estado puro. Como é sabido, o enxofre é produzido dessa
maneira. Descensão, por outro lado, foi usada para separar uma
substância fundível (um metal) pela drenagem, a partir de
minerais não-fundíveis. A destilação era a filtragem de
substâncias solúveis. A queima ou calcinação transforma o metal
em um óxido solúvel, que, quando dissolvido (dissolução), pode
ser separado de substâncias insolúveis com ele misturadas. Ele
então deve ser trazido de volta ao seu estado não-oxidável, pela
coagulação e redução renovadas. Substâncias voláteis podem ser
'fixadas' e tornadas estáveis pelo fogo, e substâncias sólidas
podem ser tornadas como cera, ou tornarem-se fundíveis, pela
incineração. Nessas operações, ao lado de agentes puramente
minerais, agentes orgânicos como azeite e urina também são
utilizados.
Se a alquimia prática permanece sem o
conhecimento analítico que está à disposição da química
moderna, a sua visão, por essa mesma razão, é mais nítida para
os aspectos qualitativos da matéria e para as suas
transformações. Nesse aspecto, seus métodos foram muitas vezes
extremamente bons, e é possível que eles, algumas vezes,
tenham tido acesso a área que a ciência moderna não leva em
conta. A natureza tem diversas facetas.
O símbolo mais impressionante é a
transformação que uma única substância pode sofrer, tornando-se
sucessivamente líquida, gasosa e então sólida novamente; ou
tendo sido quebradiça, torna-se flexível como uma cera; ou,
perdendo sua forma em uma solução, repentinamente adquire
83
uma nova forma, desta vez cristalina; ou, na mudança de seu
estado, ela adquire uma nova cor. Essa capacidade de
transformação, por parte de uma única substância, simboliza
mais claramente do que qualquer outra coisa a materia prima
única do cosmos, capaz de assumir todas as formas e estados
possíveis, sem uma alteração essencial. Isso também joga luz na
natureza da alma, que de igual modo expõe vários estados e
propriedades, todos de algum modo pertencendo à sua (nãoimediatamente discernível) essência. Assim, no forno ou balão
de ensaio dos alquimistas, pode-se ver em miniatura o 'jogo' da
Natureza (quer seja no domínio corporal, quer seja no domínio
psíquico).
Ao interpretarem as mudanças corporais
como expressão de uma lei geral, os alquimistas remetem, por
um lado, aos quatro elementos, e por outro às quatro qualidades
naturais (quente, frio, úmido e seco), que, como modos de ação
da natureza, são 'ativos' na sua relação com os elementos. O
esquema dessas relações também foi mencionado por Aristóteles.
As quatro qualidades sensíveis são assim
'móveis' em relação à matéria, e parecem de fato terem a
capacidade de transformar um elemento no seu próximo: assim,
é pelo calor que a água é absorvida pelo vento; é pela frieza que
ela se congela e se torna similar à terra sólida. Na realidade,
84
entretanto, não são os quatro elementos que se modificam, mas a
materia corporal que, sob a influência das qualidades sensíveis,
migram através dos estados 'elementais'. Nesse sentido,
efetivamente apenas o calor e a frieza atuam como forças
motrizes, e, como a segunda qualidade não é nada além de uma
negação da primeira, cuida-se que, em última análise, é o calor
mesmo a origem da 'rotação'. É o efeito do fogo, sozinho, que
torna a substância, no forno dos alquimistas, sucessivamente
líquida, gasosa, ígnea e, uma vez mais, sólida. Assim, ela imita
em miniatura o 'trabalho' da Natureza mesma.
O esquema esboçado acima também tem
um significado em relação à alma; e aqui as qualidades
expansão, contração, dissolução e solidificação tomam os
lugares de quente, frio, úmido e seco. Podemos retornar a isso
mais tarde. Já se fez menção da correspondência entre os quatro
elementos e os estados da alma; a importância 'especulativa'
dessa alquimia – no sentido antigo de speculatio, vale dizer, um
'espelhamento' de verdades espirituais – repousa no fato de que a
observação de um único caso visível pode ser a chave aos
grandes ritmos da natureza. A penetração no substrato invisível
de uma substância individual, que os químicos modernos têm
como sua meta, não contribui para essa utilidade, mas pelo
contrário fornecem informações bastante diversas, que não
facilitam uma visão total do mundo corporal e do mundo da
alma.
O conteúdo da visão hermética da natureza
pode ser visto na seguintes palavras de Muhyi ´d-Dîn ibn ´Arabî:
'O mundo da natureza consiste de diversas formas que são
refletidas em um espelho único – ou melhor, é uma forma única,
refletida em diversos espelhos47'. O paradoxo expressado aqui é a
chave ao significado espiritual das aparências.
Não é por acaso que o esquema dos
elementos e das qualidades naturais ('modos de ação') dados
acima assemelha-se à roda cósmica, cujo arco é a órbita solar e
cujos raios são as quatro direções cardinais.
Alquimicamente falando, o eixo da roda é a
quintaessentia. Através disso faz-se referência tanto ao pólo
espiritual de todos os quatro elementos ou a seu fundamento
47 Veja a minha tradução de Fusûs al-Hikam, op. cit. pág. 139.
85
substancial comum, o éter, no qual todos eles estão contidos
indivisivelmente contidos. Para mais uma vez atingir o seu
centro, o desequilíbrio dos elementos diferenciados deve ser
reparado; a água deve tornar-se ígnea; o fogo, líquido; a terra,
sem peso; e o ar, sólido. Aqui, contudo, deixa-se o plano das
aparências físicas e entra-se no reino da alquimia espiritual.
Synesios escreveu: 'É assim claro o que os
filósofos querem dizer quando descrevem a produção da sua
pedra como alteração de naturezas e a rotação de elementos.
Você agora percebe que por 'incorporação' o úmido se torna seco;
o volátil, imóvel; o espiritual, corpóreo; o fluído, sólido; a água,
em substância flamejante; e o ar, algo como a terra. Assim, todos
os quatro elementos renunciam à sua própria natureza e, pela
rotação, transformam-se um em outro... Assim como no início
havia um Único, assim também nesse trabalho tudo vem do
Único e retorna ao Único. Isso é o que quer dizer a
retransformação dos elementos...'48
48 Bibl. des Phil. Chim.
86
CAPÍTULO 7
DA MATERIA PRIMA
De acordo com os alquimistas, os metais
comuns não podem ser transmutados em prata ou ouro sem
primeiro serem reduzidos à sua materia prima. Se os metais
comuns são considerados como sendo análogos ao estado
“coagulado” unilateral e imperfeito da alma, então a materia
prima a qual eles devem ser reduzidos não é nada além da
“substância fundamental” subjacente, vale dizer, a alma no seu
estado original, como ainda incondicionada por impressões e
paixões, e “não-cristalizada” em sua forma definitiva. Apenas
quando a alma é liberta de toda a sua rigidez, e contradições
internas, ela se transforma na substância plástica na qual o
Espírito ou Intelecto, vindos do alto, pode imprimir uma nova
“forma” – uma forma que não limita ou vincula, mas ao
contrário completa, porque vem da Essência Divina. Se a forma
de um “metal” comum é uma espécie de “coagulação”, e assim
um grilhão, a forma de um “metal” nobre é um símbolo
verdadeiro, e como tal uma ligação imediata com o seu próprio
protótipo em Deus.
De acordo com os alquimistas, a alma, em
seu estado original de pura receptividade, é fundamentalmente
uma com a materia prima do mundo inteiro. De algum modo
isso não é senão a restauração da premissa teorética de toda a
alquimia, especificamente a correspondência recíproca entre
macrocosmo e microcosmo. Ao mesmo tempo, isso é também
uma expressão da meta do trabalho alquímico. A unidade da
alma com a matéria-prima é verdadeiramente “vivida” e
conhecida apenas na medida em que o trabalho tenha progredido
pelo caminho que produz à sua realização. - e aqui nós tocamos
no segredo real da alquimia, porque tudo o que é dito a esse
respeito deve necessariamente permanecer nada mais que uma
indicação e um símbolo.
A materia prima, a substância fundamental
da alma (psyque), é em primeiro lugar a substância da
consciência individual egóica; e então de todas as formas físicas,
87
independentemente dos seres individuais; e finalmente do mundo
inteiro. Todas essas interpretações são válidas; porque, se a
“teia” do mundo não é fundamentalmente da mesma natureza
que aquela da alma, todo indivíduo estaria preso em seu próprio
sonho – o que é um absurdo. Mesmo se, em relação ao Espírito
imutável, o mundo é um “sonho”, o “sonho” é não-obstante
consistente por si mesmo. “Nós somos feitos da mesma matéria
dos sonhos”, disse Shakespeare, em sua peça hermética A
Tempestade. A oposição entre “interno” e “externo”, do mundo
da alma, e do mundo físico, são tecidas neste sonho.
Simbolicamente,
a
matéria-prima
permanece “abaixo”, porque ela é completamente passiva, e ela
aparece como “escura”, porque como o absolutamente nãoformado, ela ilude todo avanço da inteligência. Esta é a fonte do
desentendimento que confunde a materia prima dos alquimistas
com o “inconsciente coletivo” da psicologia moderna. A materia,
entretanto – ao contrário daquele mal-definido domínio psíquico
– não é a fonte do impulsos irracionais e mais ou menos
“exclusivamente psíquicos”, mas, como foi dito, a base passiva
de todas as percepções. Além disso, a palavra “coletivo”, tal
como a aplicam os psicólogos, encerra uma contradição: ou bem,
segundo sua etimologia, designa um conjunto de coisas – neste
exemplo disposições psíquicas herdadas –, caso em que é difícil
compreender como pode aqui haver qualquer unidade, já que a
herança não apenas se acumula mas também se ramifica; ou
então é usada imprecisamente para significar “geral”, no sentido
do que é comum a todo homem – mas isso é então a natureza da
alma e do corpo. Neste caso, entretanto, resta demostrar como os
psicólogos que observam e acessam o assim chamado
“inconsciente coletivo” – de cima, de onde ele parece fazê-lo um
objeto de um estudo “objetivo” – não pensa ou age, ele próprio,
como resultado desse substrato “coletivo”. Seja como for, a sua
posição continua aquela do homem que, sentado em um barco,
deseja esvaziar o mar.
Pode-se fazer uma distinção entre, de um
lado, a mais ou menos tenebrosa camada da consciência, deitada
abaixo da consciência cotidiana (cuja camada, de modo algum,
pode ser completamente inconsciente naquilo que, de alguma
maneira é absorvido conscientemente) e, de outro lado, há a real
88
e puramente passiva, e assim em si mesma amorfa, terreno da
alma, com a sombria camada acima referida (que se assemelha a
um tipo de crepúsculo, com uma tendência decrescente em
direção à densidade, mais do que uma noite completamente
escura) é preenchida com os sedimentos de impressões psíquicas
e modos comportamentais. O verdadeiro fundamento da alma,
por outro lado, não é em si mesmo nem escuro nem claro; nem
tampouco um vulcão com erupções irracionais. Pelo contrário,
quando não está completamente velado, e então está
aparentemente escuro, é o espelho fiel do seu polo
complementar, o Espírito Universal49, e assim de todas as
verdades que, quando a força latente da imaginação se aproxima
da condição pura da materia prima, ocasionalmente expressa a si
mesma na forma de símbolo. Isso pode ocorrer em sonhos, ainda
que raramente, pois em geral a concepção de mundo dos sonhos
é o brinquedo dos mais variados impulsos; e como a alma, em
estado de sonho, está a mercê de toda sorte de possibilidades de
influência, isso também pode ser uma “endiabrada” ou mesmo
satânica distorção de símbolos. Outro não menos importante dos
perigos da moderna “psicologia profunda” é que ela confunde
desesperadamente símbolos verdadeiros com suas distorções.
Isso acontece, por exemplo, quando as mandalas do Extremo
Oriente são colocadas no mesmo nível das pinturas concêntricas
do doente mental50. Um simbolo verdadeiro nunca é “irracional”.
O “supra-racional” nunca deve ser confundido com “irracional”.
*
Com o intuito de demonstrar que a materia
prima contém em potência todas as formas de consciência e,
assim, todas as formas do mundo efêmero, o alquimistas árabe
do Séc. IX, Abu´l-Qâsim al-Irâqî escreveu: “(...) A materia
49Analogicamente, voz populi, vox Dei, em que “pessoa”, no verdadeiro sentido da
palavra (uma característica da coletividade que a coletividade moderna mais ou
menos aboliu) corresponde exatamente ao real fundamento da alma.
50 Como na introdução feita por C. G. Jung na tradução alemã feita por Richard
Willelm do livro taoísta The Secret of the Golden Blossom [ Das Geheimnis der
Goldenen Blüte] (Munich, 1929). Algumas das pinturas de doentes mentais
reproduzidas neste livro e comparadas com mandalas são realmente caricaturas, nas
quais imaginações infantis de doutrinas secretas orientais podem ser detectadas.
Outras são ninharias inofensivas e insignificantes.
89
prima pode ser encontrada em uma montanha, que contém uma
incontável quantidade de coisas incriadas. Nessa montanha está
todo tipo de conhecimento que pode ser encontrado no mundo.
Não há conhecimento, entendimento, sonho, pensamento,
habilidade, interpretação, consideração, sabedoria, filosofia,
geometria, política, poder, coragem, distinção, satisfação,
paciência, disciplina, beleza, criatividade, viagem, ortodoxia,
liderança, exatidão, crescimento, comando, autoridade, riqueza,
dignidade, conselho ou negócio que não esteja contido nela. Mas
também não há ódio, malevolência, engano, infidelidade,
confusão, ilusão, tirania, opressão, corrupção, ignorância,
estupidez, baixeza, despotismo, ou excesso, e não há música,
jogo, flauta ou lira, ou casamento, nenhuma brincadeira, nenhum
membro, nenhuma guerra, nem mesmo sangue ou homicídio que
não esteja contido nela (...)”51. A montanha em que a materia
prima pode ser encontrada é o corpo humano, pois a redutio à
substância universal procede metodicamente da consciência
corporal, que deve primeiro ser “dissolvida” a partir de dentro,
antes que o homem possa alcançar a alma além do nível das
formas – e não simplesmente e de modo indireto através de suas
experiências sensoriais. Isso explica a interpretação que Basilius
Valentinus fez da palavra-chave alquímica V.I.T.R.I.O.L.: Visita
interiore terrae; rectificando invenies occultum lapidem (“Visite
o interior da terra, através da purificação você encontrará a pedra
escondida”). O interior da terra é também o interior do corpo,
isto é, o centro íntimo e indiferenciado da consciência. A pedra
escondida não é outra senão a materia prima.
*
A partir do ponto de vista “interior”, a
“redução dos metais à sua substância primária” não tem nada a
ver com uma imersão sonambúlica da consciência no
“inconsciente”. A “redução” ocorre apenas depois de um
combate árduo contra as tendências conflituosas da alma, nas
quais todos os “nós” ou “complexos” irracionais devem em
primeiro lugar ser dissolvidos. O trabalho alquímico não é um
tratamento para doenças mentais.
51 Texto fornecido por Dr. S. Hussein Nasr, Teheran.
90
No caminho a partir da consciência
diferenciada para a indiferenciada então intervem a escuridão,
correspondente ao caos. Essa é a condição da materia que já não
está em posse de sua pureza original, mas cujas possibilidades
diferenciadas continuam confusas e desordenadas. Tal é a
condição da “crueza material”. Se entretanto a consciência se
dirige a alcançar o nível mais profundo ela percebe o espelho do
fundamento da alma, que, embora não seja alcançável em sua
“realidade substancial”, entretanto revela sua natureza – isso é
refletir, desembaraçadamente, a luz do Intelecto. O caos da alma
é como o chumbo. O espelho do fundamento da alma é como a
prata. Também é possível compará-la a uma fonte pura. Trata-se
da mítica fonte da juventude, de cujas profundezas emana a água
da vida, semelhante ao mercúrio. Esse é o significado das
seguinte nota do alquimista Bernardus Trevisanus:
“Aconteceu que em uma noite eu tinha de
estudar em vista de uma disputa que haveria no dia seguinte. No
entanto eu encontrei uma pequena fonte, bonita e clara, e
completamente cercada por uma linda pedra. A pedra estava no
tronco de um velho carvalho oco, completamente cercada por um
muro, para prevenir que de vacas e outros animais irracionais –
incluídos os pássaros – não se banhassem na fonte. Como eu
estava muito sonolento, eu me sentei na beira da fonte, e eu vi
que ela estava coberta em cima, e assim completamente fechada.
“Então se aproximou um velho sacerdote e
eu lhe perguntei por que a fonte estava completamente fechada,
por cima, por baixo e por todos os lados. Ele se virou
amavelmente em minha direção, e começou a responder assim:
'Senhor, a verdade é que essa fonte possui um poder terrível,
maior que qualquer outro nesta terra. Este poder é apenas para o
rei deste lugar, a quem ela conhece bem e que a conhece. Por
duzentos e oitenta e dois anos, o rei se banha com este poder
nesta fonte. Fazendo isso o rei se rejuvenesce bastante a si
próprio. Então nenhum homem pode vencê-lo (...)”
“(...) Ao ouvir isso eu retornei
secretamente à fonte e comecei a abrir todas as toda as
fechaduras (que funcionavam perfeitamente). Então eu comecei
a olhar o livro que eu havia ganhado (em uma disputa) e apreciar
seu belo esplendor. Mas como eu estava bastante sonolento, ele
91
caiu na fonte, entristecendo-me sobremaneira, já que eu desejava
guardá-lo, pois se tratava de um prêmio honorífico. Então eu
comecei a olhar (para dentro da fonte) até que o meu sinal
surgiu. Eu então comecei a esvaziar a fonte e eu fiz isso tão bem
e tão cuidadosamente que apenas faltava a décima parte – que,
apesar da minha enérgica atividade, permaneceu como uma
massa. Como eu assim trabalhei, pessoas de repente começaram
a vir (…) e pela minha transgressão eu fiquei preso por quatro
dias. Quando, depois desses quatro dias, eu deixei a prisão, eu
fui de novo olhar a fonte. Então eu vi nuvens negras e escuras,
que se mantiveram por um longo tempo. Finalmente, entretanto,
eu vi tudo o que o meu coração desejava, e eu não tive
problemas a esse respeito. E você também não terá nenhum, se
você não se perder em um caminho mal e traiçoeiro,
negligenciando essas coisas que a Natureza requer52.
*
Os alquimistas dão à materia prima – que
eles consideram tanto a substância primeira do mundo como a
substância básica da alma – um grande número de nomes. O
objetivo dessa multiplicidade não é tanto proteger o hermetismo
dos desqualificados, mas sim sublinhar o fato de que esta
materia está presente em todas as coisas, e do mesmo modo ela
contém todas as coisas. Eles a chamam “mar”, porque ela traz
dentro de si todas as formas, como o mar traz em si as ondas, ou
“terra”, porque ela nutre tudo o que “nela” vive. Ela é a “semente
das coisas”, a “umidade básica” (humiditas radicalis), o hyle. Ela
é “virgem” em razão da sua pureza e receptividade infinitas e
“meretriz”, porque ela parece abraçar-se a todas formas. Também
é comparada, como já vimos, à “pedra secreta”, embora em sua
primeira condição deve ser distinguida da “pedra filosofal”, que
é o fruto de todo o trabalho. A materia prima pode ser
considerada como “pedra”, apenas naquilo que permanece
imutável. A sua designação como pedra lembra o gohar persa e o
jawhar árabe, que significa literalmente “pedra preciosa”, e em
um sentido metafórico é utilizada para significar “substância”
52 Do Le Livre du Trévisan de la philosophe naturelle des métaux, na Bibl. des.
Phil. chim.
92
(em grego, ousia).
A materia prima é também o “depósito de
minério” de todos os metais. De outro ponto de vista, entretanto,
é o homem que é chamado “depósito dos minerais”, a partir do
qual a materia do trabalho deve ser extraída, como Morienus
explicou ao Rei Khalid: Haec enim res a te extrahitur; cuius
etiam minera tu existis (“Isto é extraído de você, porque você é
sua mina”).
Nessa condição caótica na qual nem é pura
nem modelável, nem dotada de formas claras, a materia é
chamada de “coisa comum”, já que, como “materia bruta” é
encontrada em todo o lugar. Ademais, ao mesmo tempo, é uma
“coisa bastante preciosa”, porque a partir dela o elixir com o qual
se pode fazer ouro é obtido. A matéria bruta, que em comparação
com a materia prima representa a materia secunda é comparada
com o chumbo (no qual a natureza do ouro está escondida) ou
com o gelo (que pode ser derretido), ou com um campo (que
apenas produz frutos quando está arado e semeado). Henrich
Kunrath disse: “(...) A terra encharcada, úmida, gordurosa e
lamecenta de Adão, materia prima, da qual esse imenso mundo,
nós mesmos, e nossa poderosa pedra foram criados, faz a sua
aparição (…)53.
Como uma árvore, a materia prima está
unificada com a árvore do mundo, cujos frutos são o Sol, a Lua e
os planetas. Na “árvore” da materia crescem o ouro e a prata, ou
todos os metais, ou de novo as variadas fases do trabalho
alquímico, com suas cores simbólicas preto, branco e vermelho,
e algumas vezes o amarelo entre o branco e o vermelho. Abu´lQâsim al-Irâqî escreveu a respeito desta árvore, que tem suas
raízes não na terra, mas no mar do universo. Aqui “mar” é a
materia da alma, anima mundi. A árvore cresce nas “terras do
Oeste”, portanto na terra do Sol poente. Daí que materia
corresponde ao Ocidente, assim como forma, o protótipo
essencial, corresponde ao Oriente. A “árvore” pode assumir a
forma de uma criatura viva, já que é a forma interna do homem.
Dela é obtida a materia prima do trabalho, pois no fruto a
origem da árvore mesma permanece escondida.
A materia prima, que pode produzir a
53 Henrich Kunrath, Thatrum sapientiae aeternae.
93
forma do elixir, é obtida a partir de uma única árvore, que cresce
nas “terras do Ocidente”. Ela tem dois ramos, que são muito
altos, para que qualquer um que coma seus frutos não o faça sem
trabalho e esforço, e dois outros cujos frutos são secos e mais
enrugados que os daquela. A flor do primeiro dos dois ramos é
vermelha, e a flor do segundo está entre o branco e o preto. A
árvore tem dois outros ramos, que são mais fracos e mais leves
que os primeiro quatro. A flor do primeiro desses dois ramos é
preta, e a do segundo é branca e amarela. Essa árvore cresce na
superfície do oceano, assim como outras plantas crescem na
superfície da terra. Quem quer que coma dessa árvore é
obedecido tanto pelos homens como pelos gênios (jinn). Esta é a
mesma árvore daquela que Adão – que a paz esteja com ele! –
estava proibido de comer. Quando ele comeu dela, ele foi
transmutado de uma forma angélica para uma forma humana.
Esta árvore pode transformar-se em qualquer criatura viva
(...)54”.
A materia prima dos alquimistas é tanto a
origem como o fruto do trabalho, porque o caos da materia é
obscuro e opaco apenas na medida em que as formas estão nele
contidas – e inclusive “brotadas” – não atingem seu completo
desenvolvimento. Toda “potência” (potentia) é, na essência,
impenetrável. Isso é assim no caso de um mineral que aparenta
ser bruto e opaco na sua condição amorfa, mas que, a partir do
momento em que ganha forma como um cristal, é claro e
transparente. Entretanto, não se deve concluir a partir disso que
todas as possibilidades fundamentalmente presentes na alma
necessariamente serão manifestadas, porque, em primeiro lugar,
a sua multiplicidade é inexaurível, e, em segundo, a grande
variedade do conteúdo das almas é um obstáculo à realização
dessas “forma” essencial, ou seja, o estado unitário e harmonioso
da consciência, que é um perfeito espelho do “Ato Divino”.
Assim, a verdadeira natureza da materia prima revela-se a si
mesma na medida em que recebe e assume a verdadeira forma.
Assim como a substância universal
(materia prima) apenas pode ser apreendida por meio do
conhecimento do Puro Ser, de que é sombra, assim também o
verdadeiro fundamento da alma apenas pode ser conhecido em
54 Texto fornecido por Dr. S. Hussein Nasr, Teheran.
94
sua reação ao Puro Espírito. A alma apenas se revela a si mesma
quando unida como noiva do Intelecto-Espírito. É isso que é
mencionado quando se fala do casamento do Sol e da Lua, do rei
e da rainha, do enxofre e do mercúrio.
*
O “descobrimento” do aspecto receptivo
da alma e a “revelação” do Espírito Criativo vieram ao mesmo
tempo. Eles não podem ser separados um do outro. Apesar disso,
as várias fases e aspectos do trabalho interior podem fazer
referência a um ou a outro polo. Todo caminho de realização
espiritual visa à preparação do “produto”, ou substância,
receptivo, e o “trabalho” ou influência do Ato espiritual ou
divino sobre ele. Dependendo do caminho seguido, entretanto, a
ênfase – tanto doutrinal como prática – irá repousar-se tanto em
um como em outro dos dois processos internos, e, em vista disso,
a meta espiritual irá ser também definida sobre o “Ato imóvel”
ou sobre o aspecto imutável e puro da alma. O simbolismo
artesanal da alquimia, que consiste no “enobrecimento” de uma
substância mineral, requer que a alma seja concebida como uma
“substância”, e inclusive que uma ideia de “primeira substância”
(materia prima) seja colocada no centro de todas as
considerações. Mesmo o efeito do Intelecto transcendente, que é
“antípoda” da “matéria” da alma é, na linguagem simbólica da
alquimia,
expressada
“substancialmente”,
como
uma
transformação química. O fato de que essa transformação exceda
possibilidades puramente artesanais indica que sua origem não é
meramente substancial.
Os dois aspectos ou fases da realização
espiritual são claramente ilustrados em determinada forma
tradicional de crucifixo, decorada com símbolo. Como exemplo
disso, nós selecionamos uma cruz prateada relicária, do começo
do Séc. XIII, que está conservada no monastério de Engelberg e
cuja decoração prova que a alquimia esteve ligada à arte da
ourivesaria. O crucifixo é decorado com gravuras em ambos os
lados. À frente (reconhecível por seu relevo mais profundo) traz
no centro a figura do Salvador crucificado, e nas extremidades
95
dos seus quatro membros representações dos quatro evangelistas,
juntamente com seus símbolos animais. Esta foi uma
composição muito difundida da arte cristã da Idade Média. Mas
aqui ela aparece em uma forma relativamente “naturalística”.
Nas cruzes litúrgicas antigas, a figura do Cristo, ou do Cordeiro,
é cercada apenas por quatro animais celestiais, que conferem ao
simbolismo uma grande austeridade, e ao mesmo tempo uma
grande amplitude. De um modo semelhante, as costas do
crucifixo mostram no centro a Santíssima Virgem entronizada
com o menino Jesus, e nas quatro extremidades os símbolos dos
quatro elementos. O foto está acima, o ar na direita (do
expectador), a água à esquerda e a terra abaixo.
Os dois lados da cruz podem ser
considerados como representações do “essencial” e do
“substancial”, do “ativo” e do “passivo”, da forma e da materia
do cosmos: a frente trazendo os personagens humanos da Palavra
Divina e os seus quatro “modos de revelação” (os evangelistas)
claramente corresponde (em sua relação com o simbolismo do
lado reverso) ao Ato Divino ou “forma essencial” do cosmos. O
lado oposto, por outro lado, corresponde à materia prima, ou
melhor, ao mundo que daí procede. A Virgem, no centro,
simbolicamente assume o papel do éter que, de um determinado
ponto de vista hermético, deve ser identificado com a materia
prima. Os quatro elementos, por sua vez, manifestam as quatro
determinações fundamentais da materia prima, e assim também
os quatro fundamentos de todo o universo formal. O inviolável
equilíbrio da materia prima, sua natureza “virginal”, torna-se
claro pela posição central dada à Virgem, correspondente aos
quatro símbolos do fogo, ar, água e terra.
96
Cruz-relicario del abad de Engelberg Heinrich von Wartenbach,
hacia 1200. Anverso. Monasterio de Engelberg.
97
La misma cruz. Reverso.
98
É desnecessário acrescentar que a
interpretação cosmológica que a interpretação cosmológica
dessas imagens cristãs não é de modo algum depreciada em seu
significado teológico. Pelo contrário, há coincidência entre as
duas “perspectivas” espirituais em um e mesmo símbolo confere
a ele uma importância ainda maior – de ambos os pontos de
vista. Isso revela ainda mais claramente o seu conteúdo
verdadeiramente metafísico, que dá amostras das possibilidades
completamente ilimitadas da pura contemplação, que está aberta
ao artista experimentado na arte hermética, e ao mesmo tempo
enraizado na fé cristã.
A conexão intrínseca entre as duas
concepções simbólicas – encontradas respectivamente na frente e
no verso da cruz – encontra expressão na pomba do Espírito
Santo, retratada como que descendo em direção à Virgem, e no
Menino Jesus presente no seu colo. A pomba representa a
presença do Espírito não-criado, sob cuja influência a materia
prima sofre seu desenvolvimento formal, tanto quanto sob Sua
sombra a Virgem concebe e dá à luz. Como o Menino, nascido
dela, o Espírito Divino ganha forma. Ele continua o mesmo em
essência, mas se reveste da substância dada a Ele por Sua mãe.
Ele adapta-Se aos diferenciados aspectos da matéria 55.
A forma mesma da cruz, que expressa a lei
de todo o cosmos, pode ser encontrada em cada um dos polos.
Ao mesmo tempo corresponde à relevação quádrupla da Palavra
Eterna e aos dois pares de opostos contidos na materia prima.
Assim, todo trabalho espiritual procede tanto do Ato Essencial,
quanto do Seu receptáculo substancial. A alma não pode ser
transmutada sem a cooperação do Espírito, e o Espirito ilumina a
alma apenas na medida da sua preparação passiva e
conformidade com o seu modo. A oposição entre os dois polos é
superada apenas no nível mais alto, no puro Ser. Aqui a
“substância” receptiva mesma não é nada mais do que a
primeira, imediata e interna determinação do Espírito Divino,
que assim desce apenas em direção àquele que já é seu,
55 Assim, de acordo com a doutrina dos místicos islâmicos, a Revelação (tajallî) de
Deus no coração assume a forma e a prontidão que a última lhe confere. Ver
minha tradução de Fusûs al-Hikam, de Muhyi-d-Din Ibn' Arabî: La Sagesae des
Prophètes, Ed. Albin-Michel, París, 1955.
99
assumindo sua forma e modos56.
As interpretações dadas às quatro imagens
descritas acima podem ser complementadas por diversos outros
detalhes. Assim, cada uma das quatro extremidades da cruz tem
no final três semicírculos. Desse modo, o grupo dos quatro
evangelistas e os quatro elementos aumenta para o grupo dos
doze apóstolos e os signos do Zodíaco. Na frente da cruz, anjos
seguram um círculo sobre a cabeça do Cristo, enquanto atrás
imagens de São Pedro e de vários santos bispos cercam a figura
da Virgem. Nessas duas disposições, podem ser reconhecidas as
hierarquias celestes e eclesiásticas, que, de acordo com São
Dionísio Areopagita, se colocam frente a frente, dando e
recebendo.
Outros detalhes se referem de modo ainda
mais explícito à alquimia. No tronco da cruz pode-se ver Moisés
sustentando o polo com uma cobra de bronze. Trata-se tanto de
um protótipo da Crucificação no Antigo Testamento, como um
símbolo da fixação alquímica do mercúrio. O mesmo processo é
também expresso no grupo de animais em combate
imediatamente ao lado do pé do Cristo crucificado. Certamente o
primeiro e mais imediato significado deste grupo é a vitória do
Leão de Judá sobre os dragões infernais. Mas a mesma imagem
pode também ser interpretada como a sujeição do mercúrio
“volátil” pelo Leão Solar do Enxofre.
56 Dante tinha essa verdade em mente quando chamou a Bem-Aventurada Virgem
de “Filha do seu Flho” (figlia del tuo figlio). (Paraíso, começo do Canto 33).
100
A cruz de Cristo crescendo como um lírio azul para
fora da Santíssima Virgem, que está ajoelhada na Lua
crescente. O lírio com cinco pétalas corresponde à
quintessencia. E a Mãe de Deus corresponde à
materia prima. Extraída de uma miniatura no
alquímico Book of the Holy Trinity, na Biblioteca
Estatal de Munique.
Há um paralelo extremo oriental a essa
iconografia cristã que, apesar de distante no espaço e no tempo,
serve ainda mais fortemente para reforçar a validade universal do
101
simbolismo em questão. Nós temos em mente determinada
forma de mandala que é usada no Shingon japonês, um dos
ramos do Mahayana budista. A mandala consiste em uma
insígnia pintada dos dois lados. Em um lado está a representação
do “mundo dos indestrutíveis” ou dos “elementos diamantinos”,
e do outro lado está uma representação do “elemento uterino”.
No centro, dos dois lados, está uma das formas de manifestação
do “grande iluminador” o Buddha Mahâvairochana, sentado
sobre o lótus. Na primeira representação – aquela dos protótipos
imutáveis – o buda tem um semblante contemplativo. Sua cabeça
está cercada por uma auréola branca, o símbolo da atividade.
Isso significa que aqui o polo “substancial” é considerado em seu
aspecto dinâmico, correspondente, na doutrina tao budista, como
tendo relação com a essência ativa da não-ação e da essência
passiva da ação. A meditação a respeito da representação
primeiramente mencionada leva ao conhecimento do modo de
libertação do porvir, enquanto que a meditação a respeito do
segundo tem como fruto o conhecimento das quatro ciências
cosmológicas57.
*
A interpretação da materia prima como um
espelho do Espírito Universal pode também ser encontrada no
simbolismo extremo oriental do espelho. Espelhos chineses
rituais ou mágicos usualmente tem do seu lado reverso uma
representação de um dragão celestial. Isso corresponde ao
Espírito Universal ou Logos. No Shinto, a religião pré-budista do
Japão, o espelho sagrado (que reflete a imagem do Deus solar
Amaterasu) é obviamente também um símbolo da alma no seu
estado de pureza espiritual, no qual ela pode receber e refletir a
Verdade – supra-conceitual, Verdade original. Isso nos leva de
volta à assimilação hermética da materia prima com o fundo da
alma.
Ainda mais surpreendente, o mesmo
simbolismo pode ser encontrado entre determinados grupos
indígenas norte-americanos, especificamente os Corvos e os
Shoshonis. Aqui o espelho é inclusive um espelho mágico, por
57 Ver E. Steinnilber-Oberlin, Les Sectes boudhiques japonaises, París, 1930.
102
meio do qual o Xamã pode encontrar coisas perdidas ou
esquecidas. (Ele as vê nas profundidades do espelho). Na
superfície do espelho uma linha vermelha em zig-zag é pintada,
representando um relâmpago que, para os indígenas, é o símbolo
Grande Espírito e da Revelação, assim como é também (para os
indígenas) a água voando pelos céus, e descendo
vertiginosamente como um trovão.
103
CAPÍTULO 8
A NATUREZA UNIVERSAL
Um importante adágio dos alquimistas é o
seguinte: “A arte é a imitação da natureza no seu modo de
operação”. O modelo para o trabalho alquímico é a natureza. A
natureza vem em assistência do “artista” que dominou seu modo
de operação, e aperfeiçoa, na sua “atividade”, o que ele começou
com trabalho e esforço. “Natureza” tem aqui um significado
muito preciso. Não significa simplesmente o “porvir”
involuntário das coisas, mas antes um poder unitário, um poder u
causa unitários cuja essência pode ser conhecida pela apreensão
de seu ritmo todo abrangente – um ritmo que regula tanto o
mundo visível quando o invisível.
Como a alquimia ocidental geralmente usa
a linguagem da metafísica platônica, podemos a ele fazer
menção com o fim de apreciar em toda a sua extensão tudo o que
está incluído nas expressões natura ou physis. A descrição mais
significativa da natureza pode ser encontrada nas Enéadas (III,
8), de Plotino, onde ele escreveu: “Se se pudesse perguntar à
natureza por que ela faz o seu trabalho, ela poderia responder
assim – se realmente ela aceitasse responder: seria mais
adequado não perguntar (ou seja, não investigar com a mente),
mas aprender silenciosamente, mesmo quando eu estou em
silêncio. Pois este não é o meu modo de falar (em contraposição
ao Espírito, que se revela a Si Mesmo em palavras). Mas isso
você deve aprender, que tudo o que acontece é o objeto da minha
contemplação silenciosa, uma contemplação que minha posse
original, pois eu mesmo nasci de uma contemplação
(especificamente a contemplação da alma universal), que
contempla o Espírito Universal, tanto quanto este contempla o
Infinito). Eu amo a contemplação, e aquilo que em mim
contempla imediatamente engendra o objeto dessa
contemplação. Assim os matemáticos registram figuras como
resultado de sua contemplação. Eu, entretanto, não registro nada.
Eu apenas observo. E as formas do mundo material surgem,
como se elas procedessem de fora de mim...”.
104
Assim a natureza, em sua essência
receptiva, está relacionada à materia prima; e, de fato, ao lado da
materia prima (hyle), ela está situada abaixo das três hipóstases
cognitivas do universo platônico. Acima dela está a “alma
universal” (psyque), e acima desta está o Espírito Universal
(nous), que sozinho contempla o Uno inefável, e ao contemplá-lo
procura manifestá-lo sem cessar. Abaixo da natureza está apenas
a materia prima, o fundamento passivo de toda manifestação,
que por ela mesma não participa do porvir, e assim permanece
eternamente “virgem”. Pode-se chamar a natureza o aspecto
materno da materia prima, já que é ela quem “dá a luz”. Ela é
operativa e móvel, enquanto que a materia prima, em si mesma,
permanece imóvel.
Muhyi ´d-Din ´Arabi´, “o grande mestre”
(ash-sheikh al-akbar) do misticismo islâmico, e o grande
enunciador dos princípios herméticos, concebe a natureza
universal (tabi´at al-kull) como o lado feminino ou materno do
ato criativo. Ela é o “'sopro' misericordioso de Deus” (nafas arrahmán), que confere existência diferenciada às possibilidades
indiferenciadas latentes no “não-ser” (´adam). Esse “sopro” é
misericordioso, já que as possibilidades que estão em vias de ser
manifestadas estão já sedentas por manifestação; mas o mesmo
poder tem um aspecto obscuro e confuso. A multiplicidade, em si
mesma, é desilusão e separação de Deus58.
A explicação de Ibn Arabi a respeito da
natureza universal como compreensiva e maternal, mas ao
mesmo tempo confusa, como poder de origem divina, é aqui de
especial importância, porque ela constitui uma ponte em direção
à ideia hindu de shakti, o poder produtivo feminino de Deus.
Sobre essa ideia de shakti estão baseados todos aqueles métodos
espirituais tântricos que estão mais proximamente relacionados à
alquimia do que qualquer outra arte espiritual. Os hindus, a bem
da verdade, consideram a alquimia mesma como um método
tântrico.
Assim como Kâlî, o shakti é por um lado a
mãe universal, que amavelmente abraça todas as criaturas, e por
outro lado é o poder tirânico que os conduz à destruição, morte,
tempo e espaço (que causa separação). Algumas vezes ela é
58 Ver a minha tradução de Fusûs-al-Hikam, op. cit.
105
retratada como tendo uma beleza sublime, algumas vezes como
tendo traços que causam terror. Sua cor é escura, como uma
essência “sombria”. O shakti é também mâyâ, a arte divina, que
confere aos seres suas múltiplas formas e assim também as afasta
da sua única e infinita origem.
Esse modo de considerar o poder criativo
divino pode parecer surgido de um ponto de vista um pouco
diferente daquele da teologia escolástica, ainda que ele não
contradiga esse último, já que a concepção de que a existência é
tanto um presente divino quanto (do ponto de vista do puro ser)
uma limitação, também pode ser encontrada na ontologia
clássica ensinada pelos padres da Igreja.
A particularidade da concepção aqui
descrita, que combina a metafísica de Ibn Arabi com a doutrina
hindu do shakti, é que elas se atribui ambos os aspectos da
existência (ou do “porvir”), tanto o positivo quanto o negativo, a
uma única e mesma causa-raiz, especificamente a natureza
universal, que é retratada como sendo tanto maternal como
terrível. Em contraposição à ação pessoal de Deus, que é o
objeto real da teologia em si mesma, Sua ação ou operação no
mundo é aqui representada de um modo impessoal. Isso
corresponde inteiramente ao ponto de vista especial da alquimia
– que não é por essa razão agnóstica, embora o conceito de
“natureza”, como usado e confundido pelos filósofos iluministas,
indiretamente deriva da natura hermética. Que essa natura
pudesse ter-se transformado, com a secularização e
dessacralização da ciência, em um vago e descompromissado
substituto de Deus, não está inteiramente desconectado com o
concomitante estreitamento do horizonte teológico, que tornou
mais difícil uma visão simultânea dos aspectos “pessoais” e
“impessoais” da revelação que Deus faz de Si Mesmo.
No que se refere ao trabalho exterior da
alquimia, a natureza é o poder direcionador por trás de todas as
transmutações – a “energia potencial”. Na alquimia interna ela
aparece como o poder maternal, que liberta a alma da sua
existente ignorante, árida e estéril. Assim ela é o poder do desejo
e da ansiedade que há no momem, e ao mesmo tempo muito
mais, já que como potência inexaurível, “natureza” desenvolve
todas as capacidades escondidas na alma, contra ou juntamente
106
com os desejos ou com o ego, dependendo de se esse último
assimila o poder da natureza ou se transforma em sua vítima. Ela
é sempre feminina – tanto como senhora natureza como também
em seu aspecto terrível como o grande dragão que vaga através
de todas as coisas.
A natureza, em forma de mulher e árvore, sai rejuvenescida dos
balões de destilação, que são o Sol e a Lua. Os pássaros são as
“sementes” de ouro e prata. As duas direções de seu voo
representam, respectivamente, “solução” e “coagulação”. - Do
livro 'Alchemical Manuscript', de 1550, na Biblioteca da
Universidade da Basiléia.
107
De acordo com uma interpretação
(associada com o nome da “natureza” ainda hoje), a natureza traz
sempre algo de coação. Isso marca uma diferença essencial entre
ela e a operação do livre-arbítrio humano. Ela possui este
aspecto também na alquimia, pelo menos em um sentido, porque,
de um certo ponto do trabalho, essa coação é transmutada em um
ritmo cósmico, que não prende mas liberta. Dante chamou isso
de “o amor que move o Sol e as outras estrelas”.
Psicologicamente falando, aquilo que no começo do trabalho
aparece como um perigosa e distorcido impulso se transforma,
com o acúmulo da perícia, em uma força que conduz a
consciência a esferas mais altas. Esta é uma lei presente em toda
verdadeira ascesis, distinguindo-a do puritanismo, já que na
verdadeira espiritualidade não se trata de destruir as forças
naturais, mas antes de domesticá-las, de modo que elas se
transformem em veículos do Espírito. Aquilo que por si só deve
ser destruído é a tendência egoísta, que deforma a genuína
essência desses poderes. Esse, de fato, não é nem bom nem mal
em si mesmo, mas naturalmente inocente. Fala-se comumente de
“sublimação”, assim emprestando uma expressão alquímica a um
processo psicológico, que contudo é completamente incapaz de
superar determinadas tensões em bases puramente profanas, e
sem a ajuda de uma arte sagrada ou da Graça. Pode-se apenas
falar de uma extensão cósmica dos poderes da alma, em conexão
com uma arte espiritual genuína; para atingir algo cósmico (e
indiretamente divino), o homem deve primeiro entrar – por meio
do símbolo revelado e de sua aplicação fiel – antes que ele possa
se perder a si mesmo, para meras arbitrariedades, e atingir uma
liberdade verdadeira. É sob essa luz que se devem considerar
certos exercícios que imitam ritmos da natureza, como por
exemplo a regulação da respiração – um procedimento que
provavelmente era considerado pela alquimia. Não se trata de
uma técnica automática, mas algo que pode servir à meta da
realização espiritual apenas na esteira de certas condições
externas e internas. Na mesma categoria
há diversos
significados especiais – dúbios à primeira vista, e de todo modo
perigosos – de despertar o poder interior, tais como a
contemplação da senhora natureza na beleza de um corpo
feminino – um método que é praticado tanto no tantra como no
108
cavalheirismo hermético59.
Pode-se perguntar com acerto se a
distinção familiar entre desenvolvimento “natural” e a operação
“sobrenatural” da Graça tem algum significado do ponto de vista
hermético. A resposta é negativa, no sentido de que o trabalho da
Graça não se derrama fora do universo natural e, além disso,
sempre tem repercussão dentro da ordem natural no sentido
estrito. Apesar disso, justifica-se a distinção quando se considera
qualquer nível da natureza, cuja sujeição relativa a “compulsão”
pode ser sempre superada pela Graça, que irrompe
repentinamente e sem constrangimento, como uma iluminação.
Assim a expressão “natureza” abrange caso a caso o maior ou
menor domínio de realidade.
Um texto alquímico anônimo, intitulado
60
Purissima Revelatio diz que a natureza como um “livro” no
qual apenas aquele que recebeu a iluminação de Deus pode ler.
Também se diz que ela é “uma grossa madeira na qual muitos
penetraram com o fim de tentar sacar dele os seus sagrados
segredos. Mas eles foram engolidos, porque não tinham as armas
sutis, as únicas que podem conquistar o terrível dragão que
guarda o bracelete de ouro. E aqueles que não foram mortos
tiveram que refazer seus passos, aterrorizados e cobertos de
vergonha e desgraça. A natureza é também aquele mar imenso no
qual os argonautas se estabeleceram. Desventura para os
marinheiros que não conhecem sua arte! Eles que devem viajar
até o fim da vida sem alcançar o ponto. Eles não encontrarão
refúgio nas terríveis tempestades. Queimados pelo sol e
congelados pelos ventos gélidos, eles sem dúvida perecerão, a
menos que implorem ajuda do mais alto e poderoso Senhor...
Porque não é dado a muitos alcançar a margem da Cólquida...
Apenas os sábios argonautas, que observam estritamente as leis
da natureza e são completamente devotados à vontade do TodoPoderoso, podem conquistar o bracelete de ouro, com a qual
Medéia, a personificação da natureza, irá se render, contra a
ordem do seu obscuro pai, e para a grande raiva do dragão
59Veja Maurice Aniane, Notes sur l'alchimie, 'yoga' cosmologique de la chrétienté
médiévale, em 'Yoga, science de l’homme intégral', Cahiers du Sud, Paris, 1953, e J.
Evola, Metafísica del Sesso, Atanòr, Roma, 1958.
60 Tradução francesa de Roberto Buchère em Le Voile d´Isis (Paris), 1921, p. 183.
109
surpreso...”. Medéia é uma imagem do lado “sombrio” da
natureza. A natureza universal, como mâyâ, tem duas direções ou
movimentos – um que tende a se afastar do centro espiritual em
direção à multiplicidade (e que no homem está ligada às
paixões), e uma que, a partir da multiplicidade, conduz de volta à
direção ao centro espiritual. O primeiro está relacionado aqui
ligado à Medéia, e o último à Sophia ou sabedoria. Ambos são
femininos em relação com a vontade humana, sendo ambos
amantes ou noivas: “... E maldito aquele que, como Jason, tendo
vencido com o auxílio de Medéia, deixa-se seduzir pela sua
perigosa astúcia, e submete feiticeira à natureza, no lugar de
permanecer constante e fiel à sua noiva divina, a sabedoria. Por
outro lado, bem-aventurado aquele que, assegurado pela
sabedoria, sabe como seduzir aquela natureza feiticeira, com o
fim de atingir seus segredos, que ela não mais pode negá-lo, e
que retorna à casa, na posse do bracelete de ouro, e fiel ao seu
virtuoso noivo...”. Como os métodos tântricos, o trabalho
alquímico desperta um poder natural terrível, e destrói os
despreparados e desqualificados, mas que eleva o sábio em
direção à supremacia espiritual. Esse poder reside no homem,
mas seu nome indica que não se trata de algo individual ou
limitado, mas uma parte ou aspecto de um ritmo impessoal e sem
fim. Essa é única interpretação irrefutável que foi conservada na
expressão “natureza”.
110
CAPÍTULO 9
“A NATUREZA PODE DOMINAR A NATUREZA”.
No mundo das formas, o “modo de
operação” da natureza consiste em um ritmo contínuo de
“dissoluções” e “coagulações”, ou de desintegrações e
formações, daí que a dissolução de qualquer entidade formal não
é senão a preparação para uma nova conjunção entre a forma e a
sua materia. A natureza age como Penélope que, para se livrar de
pretendentes indignos, desenrola à noite o vestido de casamento
que ela teceu durante o dia.
Os alquimistas também trabalham desse
mesmo modo. Seguindo o adágio solve et coagula, ele dissolve
as coagulações imperfeitas da alma, reduzindo-as à sua materia,
e as cristaliza novamente em uma forma mais nobre. Mas ele
pode realizar esse trabalho apenas em uníssono com a natureza,
por meio de uma vibração natural da alma que desperta durante o
curso do trabalho e conecta os domínios humano e cósmico.
Assim, por sua própria vontade, a natureza vem em auxílio da
arte, de acordo com o adágio alquímico: “O progresso do
trabalho agrada muito à natureza” (operis processio multum
naturae placet).
As duas fases da natureza – dissolução e
coagulação – que parecem se opor a partir de um ponto de vista
superficial mas que na verdade são mutuamente complementares
podem, em um certo sentido, ser relacionadas aos dois polos,
essência e substância, embora eles, obviamente, não estejam
presentes na natureza como pura oposição de Atividade e
Passividade, mas meramente como reflexões relativas desses
últimos. Na natureza é o enxofre alquímico que corresponde ao
polo ativo, e o mercúrio alquímico que corresponde ao polo
passivo. O enxofre é relativamente ativo; é o enxofre que confere
forma. Mercúrio assemelha-se à matéria passiva, que é assim
mais imediatamente relacionado com a natureza mesma e com o
seu caractere feminino. Desde que o enxofre representa o polo
essencial da sua refração natural, diz-se que ele é ativo no modo
passivo, enquanto o mercúrio, em vista do caráter dinâmico da
111
natureza, pode ser chamado de passivo no modo ativo. A relação
mútua das duas forças primordiais é assim similar àquela do
homem e da mulher na união sexual.
O melhor símbolo para a dupla enxofremercúrio é o padrão chinês Yin-Yang, com o polo preto no
vórtice branco e o polo branco no vórtice preto, como indicação
de que o passivo está presente no ativo e de que o ativo está
presente no passivo, assim como no homem está contida a
natureza da mulher e na mulher a natureza do homem61.
Na alma o enxofre representa a essência,
ou espírito, enquanto o mercúrio corresponde à alma mesma, em
seu polo receptivo e passivo.
De acordo com Muhyi ´d-Dîn ´Arabi, que
sempre tem as mais altas interpretações em vista, o enxofre
corresponde ao “Comando divino”, vale dizer, ao fiat lux por
meio do qual o mundo se transformou em um cosmos a partir do
caos, enquanto o mercúrio representa a Natureza universal, a
contrapartida passiva do primeiro62. Assim, muito embora no
domínio específico da alquimia os dois polos apareçam como
forças mais ou menos condicionadas, é bastante útil recordar
seus protótipos incondicionados, já que só assim se pode
entender, por exemplo, em que aspecto o enxofre corresponde ao
desígnio espiritual, e o mercúrio à capacidade “plástica” da alma.
Em um sentido imediato, e em sua interpretação psicológica
geral, o desígnio espiritual se origina de um ideal e se esforça
para formar a alma de acordo com ele. Em seu sentido original,
entretanto, que revela a si mesmo apenas dentro dos limites de
61 Isso não tem apenas uma base psicológica, mas também e acima de tudo
ontológica.
62 Futûhât al-Mekkiyah.
112
uma arte espiritual tradicional, o desígnio espiritual é uma
vibração vindo do centro do ser, um ato espiritual que rompe
através do pensamento e que no plano da alma efetiva duas
coisas: uma ampliação e aprofundamento do “senso do ser” e
uma clarificação e estabilização dos conteúdos essenciais da
consciência. De acordo com isso, a capacidade “plástica” da
alma, que corresponde ao Ato do Espírito original, não é
meramente a imaginação passiva que assume e desenvolve
formas, mas uma capacidade que gradualmente se estende para
além dos confins da consciência individual vinculada ao corpo.
*
O enxofre, poder masculino original, e o
mercúrio, poder feminino origina, ambos empenham-se na
direção da completude de seu único e eterno protótipo. Esse
último é ao mesmo tempo a razão para sua oposição e da sua
mútua atração – tanto quanto as naturezas masculina e feminina
almejam à integridade do estado humano, e como resultado desse
procura, a separar-se um do outro e a unir-se um com o outro.
Por meio dessa união física, ambos tentam restabelecer a
imagem de seu protótipo eterno comum. Esse é o casamento do
homem e da mulher, enxofre e mercúrio, Espírito e alma.
No reino mineral é o ouro que nasce da
união perfeita dos dois princípio geradores. O outro é o
verdadeiro produto da geração metálica. Qualquer outro metal é
tanto um parto prematuro ou um aborto, um ouro imperfeito e,
desse ponto de vista, o trabalho alquímico não é senão uma
parteira ou ajudante, que a arte oferece à natureza, daí que essa
última pode perfeitamente amadurecer o fruto cuja maturação foi
prejudicada por certas circunstâncias temporais63. Isso pode ser
entendido tanto no sentido mineral como no microcósmico.
Muhyi ´d-Din ibn Arabi considera o ouro como símbolo do
estado original e incorruptível (al-fitrah) da alma, a forma na
qual a alma humana foi criada no começo. De acordo com a
concepção islâmica, a alma de toda criança inconscientemente se
63 As mais recentes descobertas no campo da fissão nuclear parecem confirmar que
os metais qualitativamente mais baixos são os mais instáveis. O urânio
assemelha-se rigorosamente ao chumbo.
113
aproxima do estado adâmico, antes de ser conduzida para longe
dele novamente pelos erros impostos nela pelos adultos64. O
estado incorrupto possui um equilíbrio interno de forças. Isto é
expressado pela estabilidade do ouro.
De acordo com uma concepção
cosmológica amplamente difundida – já citada por Aristóteles –
a natureza é caracterizada por quatro propriedades, manifestadas
no nível sensorial por calor, frio, umidade e secura. O calor e a
secura são associados com o enxofre; frieza e umidade, com o
mercúrio. As duas primeiras propriedades, assim, têm o caráter
predominantemente ativo e masculino; as duas últimas, o caráter
mais passivo e feminino. O que isso significa pode ser visto mais
claramente quando se relaciona o calor à expansão, o frio à
contração, a umidade à dissolução, e a secura à coagulação.
O calor, ou o poder de expansão peculiar
ao enxofre, causa o crescimento de uma determinada forma a
partir do seu centro essencial, e essa força da natureza é
intimamente ligada com a vida. A secura do enxofre coagula ou
“fixa” a forma no plano de sua materia, então ela imita a
imutabilidade do seu protótipo de um modo passivo e material.
Em outro sentido, o poder de expansão do enxofre é o dinâmico
– e portanto relativamente passivo – aspecto do Ato essencial, e a
coagulação é o contrário ou o aspecto menos predominante da
imutabilidade da Essência. O Ato puro é imóvel e a Essência
verdadeira é ativa. A frieza, ou o poder de contração, do
mercúrio se opõe ao poder de coagulação do enxofre, na medida
em que envolve as formas a partir do exterior, como se ele fosse,
e os prendesse rapidamente, como um útero cósmico 65. O caráter
úmido e dissolvente do mercúrio, entretanto, assemelha-se à
receptividade feminina que, como a água, pode assumir todas as
formas, sem desse modo ser alterado.
As quatro propriedades naturais ou “modos
de operação”, que têm relação de paridade com o enxofre e o
mercúrio, pode, em suas sucessivas coagulações e dissoluções,
64 Esta doutrina não deve ser confundida com a opinião de J.-J. Rousseau de que o
homem é bom em si mesmo. A recapitulação inconsciente do estado primordial
na criança não exclui as tendências negativas ou os defeitos hereditários.
65 Sobre o poder de contração do mercúrio, veja-se René Guenón, A Grande Tríade,
publicado pela La Revue de la Table Ronde, Paris, 1946, capítulo entitulado
“Enxofre, mercúrio e sal”.
114
entrar em uma variedade de combinações um com o outro. A
geração apenas tem lugar quando as propriedades do enxofre e
do mercúrio mutuamente se penetram. Quando a secura do
enxofre se junta unilateralmente com a frieza do mercúrio, então
a coagulação e a contração vão juntas (sem a consequente ação
do calor expansivo do enxofre ou da umidade dissolvente do
mercúrio), segue-se uma completa rigidez da alma e do corpo.
Em termos da vida, esta é a sonolência da idade avançada e, no
nível ético, a avareza. Mais genericamente e mais profundamente
isto é o encerramento da consciência egóica em si mesma, uma
condição mortal da alma que perdeu a sua receptividade e
vitalidade originais, tanto espiritual como sensorialmente. Pelo
contrário, uma conjunção unilateral de calor e umidade (i. e.,
expansão e dissolução) resulta em uma volatilização de poderes.
Isso se assemelha à condição da paixão que consome, vício e
dissipação de espírito. Caracteristicamente, os dois tipos de
desequilíbrio usualmente são encontrados juntos. Um gera o
outro. A congelação das potências da alma conduz à dissipação, e
o fogo vivo da paixão desenfreada traz a morte íntima. A alma
que é avara consigo mesma e se fecha ao Espírito é transportada
ao largo no vórtice de impressões dissolventes. O equilíbrio
criativo apenas é produzido quando o poder expansivo do
enxofre e o poder contrativo do mercúrio mantêm o equilíbrio, e
quando ao mesmo tempo o poder coagulante masculino entra em
uma frutífera união com a capacidade dissolvente feminina. Esse
é o verdadeiro casamento dos dois polos do ser, que são
representados inter alia pelos triângulos interseccionados do selo
de Salomão Y – o signo que também simboliza a síntese dos
quatro elementos. As aplicações dessa lei são efetivamente
ilimitadas; apenas algumas poucas consequências psicológicas e
“vitais” foram mencionadas aqui. Pode-se acrescentar que a
medicina tradicional está fundada nos mesmos princípios, os
quatro elementos que correspondem aos quatro humores66.
66 Ao ar corresponde o vermelho constituinte do sangue; ao fogo, a bile amarela; à
água, a fleuma; e à terra, a bile negra. Todos os quatro humores estão contidos no
sangue.
115
Figura 5. Representação simbólica do trabalho alquímico. O
dragão do caos, ou natureza não-domesticada, descansa na
árvore da materia prima física, que tem suas raízes na terra da
materia prima cósmica. Os sete sóis correspondem aos sete
metais, planetas e fases do trabalho. Do sol, no topo da figura,
emergem dois raios que representam os poderes masculino e
feminino. Entre eles estão equilibradas as duas águias que
representam o mercúrio masculino e feminino. Suas cores são o
preto, o branco, o amarelo e o vermelho e então reúnem em si
mesmos as quatro principais cores do trabalho. Em determinado
sentido o dragão é o início e águia é a forma final do mercúrio.
– De um manuscrito alquímico MS 428 da Biblioteca Vadian, St.
Gallen.
A alma, em sua completa amplitude, como
116
desdobrada no curso do trabalho alquímico, é governada pelas
duas forças fundamentais, enxofre e mercúrio, que adormece, no
estado “caótico” da alma adormecida, como o fogo na pedra e a
água no gelo. Quando eles despertam, antes de tudo, manifestam
suas oposições em uma certa tensão externa. A partir desta
tensão, eles continuam a crescer um sobre o outro, e na medida
em que eles se tornam livres, eles se compenetram, já que eles
estão predestinados um ao outro como homem e mulher. A essas
duas fases do seu desenvolvimento estão relacionadas as duas
primeiras cláusulas da fórmula hermética: “A natureza se deleita
na natureza; a natureza contém a natureza; a natureza pode
dominar a natureza.” Essa última cláusula significa que os dois
poderes, quando eles cresceram ao ponto de um abranger o
outro, reúnem-se em um plano superior e então sua oposição,
que previamente limitava a alma, agora se transforma em uma
complementaridade frutífera por meio da qual a alma adquire
domínio sobre todo o mundo das formas e correntes psíquicas.
Assim, a natureza, como uma força libertadora, domina a
natureza como tirania e opressão.
117
Figura 6. “Aquila volans et bufo gradicus
sup. Terra est magisterium”. A águia ascendente representa a
parte liberada, espiritual, da materia alquímica, e o sapo a sua
escória obscura mas fértil. A lua crescente corresponde à alma
purificada enquanto a serpente presa por um nó é a imagem da
força latente da natureza. Do manuscrito Egerton 845 no Museu
Britânico. Séculos XV-XVI.
*
Quando o Ato divino imutável que governa
o cosmos é simbolicamente representado por um eixo vertical
imóvel, o “curso” da natureza, em relação a ele, é como uma
118
espiral que gira ao redor desse eixo; então com cada volta ele
concebe um novo plano ou grau de existência. Esse é o símbolo
primordial da serpente ou dragão, que se faz girar em torno do
eixo da árvore do mundo67. Quase todos os símbolos da natureza
procedem da espiral ou do círculo. O ritmo desses sucessivos
girar e desenrolar da natureza, do solve et coagula alquímico, é
representado pela dupla espiral: , cuja forma está também na
base das representações zoomórficas do Shakti. Também
relacionada a isso é a representação das duas serpentes ou
dragões em direções mutuamente contrárias em torno de um
grupo de árvores. Elas correspondem às duas fases
complementares da natureza ou às duas forças fundamentais 68.
Esta é a herança antiga de imagens da natureza sobre as quais
tanto a alquimia, e determinadas tradições do Oriente
(especialmente o tantrismo) extraíram.
Também se pode notar aqui que o uso de
uma serpente ou de um dragão como imagem de um poder
cósmico pode ser encontrado em todas as partes do mundo. É
especialmente característico daquelas artes tradicionais tais como
a alquimia, que estão preocupadas com o mundo sutil. Um réptil
se move sem pernas, e por meio de um ritmo ininterrupto de seu
corpo, então trata-se da incorporação, por assim dizer, de uma
oscilação sutil. Além disso, a sua essência é tanto inflamável
como fria, deliberada e elemental. A semelhança em questão é
tão real que a maioria, senão todas as culturas tradicionais,
consideram as serpentes de portadores ocasionais de poderes
psíquicos sutis. Basta pensar nas serpentes como guardiãs dos
túmulos na antiguidade ocidental e extremo oriental.
Na Iaya-yoga, um método espiritual
pertencente ao domínio do tantrismo, cujo nome significa união
(yoga) alcançada através da dissolução (laya), o despertar do
Shakti dentro do microcosmo humano é comparado com o
despertar da serpente (Kundalinî), que até então permanecia
67 Ver René Guenón, O simbolismo da cruz.
68 Ver René Guenón, op. cit.
119
enrolada no centro sutil conhecido como mûâdhâra. De acordo
com determinada correspondência entre as ordens sutil e
corporal, esse centro é localizado na extremidade interior da
coluna vertebral. A Kundalinî é despertada por determinados
exercícios em concentração espiritual, por meio dos quais ele
gradualmente ascende, em espiral, o eixo espiritual do homem,
trazendo à cena mesmo os maiores e mais altos estados de
consciência, até que finalmente restaura a plenitude da
consciência do Espírito supra-formal69. Nessa representação, que
não deve ser considerada literalmente, mas como uma simbólica
– embora lógica e consequente – descrição do processo interior,
pode-se novamente reconhecer a imagem da natureza ou Shakti
girando ao redor do eixo do mundo. Que os poderes em
desenvolvimento podem vir “de baixo”, está em sintonia com o
fato de que a potência (potentia) – como a materia prima – em
sua passividade representa a “base” do cosmos, e não o ápice.
Na tradição hermética, a natureza
universal, em sua condição latente, é representada da mesma
forma como um réptil enrolado. Esse é o dragão Uroborus que,
ondulado dentro de um círculo, morde sua própria calda.
A natureza, na sua fase dinâmica, por outro
lado, é retratada por meio das duas serpentes ou dragões, que na
forma do bem conhecido modelo do Báculo de Hermes, ou
caduceus, gira a si mesma ao redor de um eixo – aquele do
mundo ou do homem – em direções opostas. Essa duplicação da
serpente primordial tem também uma contrapartida em layayoga, já que Kundalinî é também dividida em duas forças sutis,
Idâ e Pingalâ, que em direções opostas giram a si mesmas ao
redor de Merudanda, o prolongamento microcósmico do eixo do
mundo. No começo do trabalho espiritual o Shakti está presente
nesta forma dividida, e apenas depois que as duas forças são
ativadas alternativamente por meio de uma forma de
concentração baseada na respiração, Kundalinî desperta de seu
sono e começa a ascender. Tão logo ela alcança o limiar da
consciência, as duas forças opostas se dissolvem completamente
nela. Na alquimia as duas forças representadas como serpentes
ou dragões são o enxofre ou o mercúrio. Seu protótipo
macrocósmico são as duas fases – de aumento e diminuição – do
69 Veja Arthur Avalon, O Poder da Serpente, Madras, 1931.
120
curso anual do Sol, separado um do outro pelos solstícios de
inverno e de verão70. A conexão entre o simbolismo tântrico e
alquímico é óbvio: das duas forças Pingalâ e Idâ, que giram a si
mesmas ao redor de Merudanda, a primeira é descrita como
sendo quente e seca, caracterizada pela cor vermelha, e, como o
enxofre alquímico, comparada com o Sol. A segunda força, Idâ,
é considerada como sendo fria e úmida, e na sua palidez
prateada, é associada com a lua.
Os sete “shakras” ou centros de poder do corpo sutil do
homem, com os dois fluxos de poder “Ida” e “Pingala”, que
gira ao redor do eixo central. Representação tântrica extraída
de O Poder da Serpente, de Arthur Avalon. A folha desenhada
na cabeça representa o shakra superior: “o lotus de mil
pétalas”.
Em
seu
70 Ver Julius Schabe, op. cit.
121
livro
Sobre
as
figuras
hieroglíficas, Nicolas Flameu escreveu a respeito da relação
mútua do enxofre e do mercúrio: “... aí estão as duas serpentes
que são fixadas ao redor do caduceus, ou Báculo de Mercúrio, e
por meio do qual o mercúrio domina seu grande poder e
transforma a si mesmo de acordo com seu desígnio. Quem quer
que destrua um, diz Haly71, também destrói o outro, porque cada
um deles somente pode ser destruído juntamente com o seu
irmão (por meio da destruição deles, ambos passam para um
novo estado)... Após ambos terem sido colocados no “vaso” do
túmulo (vale dizer, o vaso interior, “hermeticamente fechado”),
eles passam a ferir-se um ao outro, com selvageria, e em razão
de seu magnífico veneno e fúria cruel, não se soltam – a menos
que o frio possa detê-los – até que ambos, como resultado de seu
veneno úmido e ferimentos mortais, são banhados em sangue
(por tanto tempo quanto a natureza permanece “selvagem”, a
oposição das duas forças é manifestada de modo destrutivo ou
“venenoso”), então eles finalmente se destroem e submergem em
seu próprio veneno, que, após sua destruição, irá transmutá-los
em água viva e perpétua (na qual eles são reunidos em um nível
superior), após eles haverem perdido, com sua queda e
decomposição, suas formas primeiras e naturais, com o intuito de
adquirir uma forma simples, nova, mais nobre, melhor...”72.
Essa fábula complementa o mito hermético
do Caduceu de Hermes. Hermes, ou Mercúrio, golpeou com este
báculo, um par de serpentes que combatiam entre si. O golpe
dominou as serpentes que, feridas, se enroscaram em torno da
vara e lhes conferiu o poder teúrgico de “ligar” e “dissolver”.
Isso significa a transmutação do caos em cosmos, do conflito em
ordem, através do poder de um ato espiritual, que tanto separa
quanto une.
71 Provavelmente o nome árabe ´Ali.
72 O amorfo, ou sem forma, é o oposto de ultraformal, ou supra-formal. Este último
não carece de forma, ele a possui essencialmente, sem ser limitado por ela. Por
essa razão, o supra-formal – quer dizer, o Espírito puro – apenas pode ser
concebido por meio de uma forma perfeita.
122
O Báculo de Hermes, ou Caduceu, de um desenho de Hans
Holbein, o Jovem.
Na tradição judaica, como contrapartida ao
Caduceu de Hermes, e ao símbolo hindu de Brahma-danda73, nós
encontramos o Bastão de Moisés, que realmente se transformou
em serpente. No misticismo islâmico o bastão de Moisés, que,
“sob o comando de Deus”, se transformou em uma serpente e, ao
ser “apreendido” por Moisés, retornou à forma de bastão, é
comparado à alma passiva (nafs), que através da influência do
Espírito Divino pode ser transformada em um poder prodigioso.
Porque ele incorpora um poder espiritual, o Bastão de Moisés,
transformado em serpente, pode vencer a serpente engendrada
pelos feiticeiros egípcios, feita de poderes mágicos – e por isso
mesmo psíquicos; porque o espírito prevalece sobre a alma e seu
domínio74. Esta interpretação da história do bastão de Moisés,
73 Ver René Guenón, op. cit.
74 Veja minha tradução de Fusûs al-Hikam, capítulo sobre Moisés.
123
mencionada no Alcorão, lembra a distinção hindu entre vidyâmâyâ (Natureza Universal em seu aspecto “iluminador”) e
avidyâ-mâyâ (Natureza Universal como poder de ilusão). Nessa
distinção, entretanto, também se pode ver o senso profundo do
provérbio hermético: “a natureza pode dominar a natureza”. Do
ponto de vista alquímico, a transformação do Bastão de Moisés
em serpente, e sua subsequente solidificação, corresponde
exatamente ao solve et coagula do grande trabalho.
Par de dragões, de um talismã árabe.
Na arte cristão medieval há uma
representação do Caduceu de Hermes que a fábula de Flamel traz
vivamente à lembrança. A figura do par de serpentes, ou dragões,
entrelaças e se mordendo mutuamente, também era comum na
antiga arte irlandesa e anglo-saxã. Na escultura romanesca, isto
ocorre com muita frequência e desempenha um papel tão
marcante na decoração das construções sagradas 75, que se pode
rapidamente concluir que se trata de um tipo de “assinatura” de
determinada escola cristã hermética. Além disso, o mesmo tema
está conectado com o símbolo do laço, cujo significado
cosmológico está no fato de que quanto mais fortemente se puxa
75 De fato este tema pode ser encontrado em todas as igrejas romanescas.
124
o nó mais firmemente os seus dois componentes permanecem
juntos. Isso ilustra, inter alia, a mútua neutralização das duas
forças quando em estado de “caos”76.
Par de dragões, do coro
romanesco da Catedral da
Basiléia.
Forma
romanesca
do
caduceu, na porta principal
da Igreja de Saint Michael´s,
em Pavia.
Algumas vezes um dos dois répteis que
representam o enxofre e o mercúrio é alado, enquanto o outro
não tem asa. Ou no lugar dos dois répteis há um leão e um
dragão em combate. A falta de asas refere-se sempre à natureza
“firme” do enxofre, enquanto o animal alado, seja um dragão,
um grifo ou uma águia, representa o mercúrio “volátil”77. O leão,
que vence o dragão, corresponde ao enxofre, que “fixa” o
mercúrio. O leão alado, ou um grifo leonino, podem representar
a união das duas naturezas, e têm o mesmo significado que a
imagem do andrógino masculino e feminino.
76 Isso explica o papel dos nós na magia.
77 Ver Senior Zadith, Turba Philosophorum. Bibl. des. phil. chim.
125
De um manuscrito alquímico de 1550, na Biblioteca da
Universidade da Basiléia.
Finalmente o dragão sozinho pode
representar todas as fases do trabalho, contanto que ele seja
provido de pés, barbatanas ou asas, ou está sem quaisquer
membros. Dessa forma considera-se que ele pode viver tanto na
água, no ar ou na terra e, como uma salamandra, até mesmo no
fogo. O símbolo alquímico do dragão, assim, parece-se muito
proximamente com aquele do dragão universal extremo oriental,
que primeiro vive como um peixe na água, e então como uma
criatura alada elevada aos céus. Isso também lembra o mito
asteca de Quetzalcoatl, a serpente plumada, que sucessivamente
se move debaixo da terra, sobre a terra, e no céu.
Todas essas correspondências com
imagens alquímicas de animais foram mencionadas com o intuito
de mostrar como a sabedoria cosmológica dos mais diversos
povos é refletida na alquimia, de um modo particular, e com
limites específicos.
126
CAPÍTULO 10
ENXOFRE, MERCÚRIO E SAL
É em virtude de sua natureza, e do papel
que eles exercem no ofício dos metalurgistas, que as duas
substâncias químicas normalmente chamadas de enxofre e
mercúrio são tomadas como símbolo das duas forças criadoras
primárias. Elas atuam nos metais, mas são em si mesmas
“espíritos” voláteis. O mercúrio, em particular, pode ser sólido,
líquido ou gasoso. Ele pertence aos “corpos”, aos metais e aos
“espíritos”. O caráter “masculino” do enxofre pode ser visto na
sua “inflamabilidade”, e também no fato de que ele pode fixar e
dar cor ao mercúrio volátil. A combinação dos dois produz o
Cinabre. A coloração, pelo enxofre, corresponde à atribuição de
forma.
O mercúrio ordinário possui um grande
desejo de se ligar aos metais correspondentes. Com o mercúrio,
os metalurgistas podem fazer ouro e prata líquidos. O amálgama
de mercúrio tem sido usado desde os tempos antigos para dourar
objetos metálicos. Após a aplicação do amálgama líquido o
mercúrio pode ser eliminado pelo fogo, e o dourado permanece.
O ouro pode também ser extraído de outros minerais através da
limpeza destes com o mercúrio. O significado do solve et
coagula alquímico também pode ser visto nesse exemplo
artesanal, também como a função decisiva do fogo espiritual.
De acordo com a mesma analogia, o
mercúrio carrega em si mesmo a “semente do Sol”, assim como
o mar primordial da materia prima, que os hindus chamam
prakriti contém o ovo dourado do mundo – o hiranyagarbha do
mito indiano. No plano da alma o mar primordial não é nada
além do que a anima mundi. O mercúrio, que anima e dissolve o
“metal” interior é, em um certo sentido, a rebentação desse mar
primitivo, que como a mãe de todas as coisas permanece
inalcançável. Por essa razão o mercúrio é também conhecido
como “sangue materno” (menstruum), porque quando ele não
flui “para fora” e perece, ele nutre a semente no útero alquímico
ou “athanor”.
127
Cristo na forma da água-dupla do mercúrio emergindo da
Santíssima Virgem (materia prima). De um manuscrito
alquímico do século XVI. Biblioteca Vadiana, S. Gallen.
Tendo em mente o fato de que o enxofre
em certo sentido corresponde ao Espírito, e o mercúrio à alma,
pode causar uma confusão o fato de que quase todos os
alquimistas chamam o mercúrio um spiritus (“espírito”),
enquanto alguns deles (por exemplo, Basilius Valentinus)
comparam o enxofre à anima (“alma”). Isso contradiz o que vem
sendo dito acima apenas aparentemente; porque na linguagem
desses autores alma significa a alma imortal, assim sendo a
“forma” essencial e imutável do homem, enquanto a expressão
spiritus não significa o espírito transcendente ou o intellectus
agens, mas o “espíito vital”, aquele poder sutil que une a alma
individual com o corpo e com o universo corporal como um
128
todo. O espírito vital corresponde ao mercúrio porque ele está
ligado apenas parcial e espontaneamente à esfera do ego, e assim
representa a materia ainda em formação. A expressão árabe rûh
também pode ter o mesmo significado. Ela é usada neste sentido
pelos cosmologistas, independentemente do fato de que a mesma
palavra também designa o espírito metafísico. A razão para esse
duplo significado pode ser a de que spiritus como rûh e também
(e também o ruah hebreu) lembra o movimento do ar na
respiração (em árabe, “vendo” é rîh). Por um lado isso pode
representar a respiração criativa do Espírito universal e, por
outro lado, a mobilidade do “Espírito vital”, e sua conexão com a
“atmosfera” sutil deste mundo. O “Espírito vital” se prolonga por
todo o “espaço” cósmico. Ele é assimilado pelos seres como o ar
o é na respiração. Trata-se da constante nutrição do “corpo” sutil
de seus poderes vitais.
Os hindus chamam esse poder de prâna.
Determinadas tribos indígenas norte-americanas chamam de
orenda78. Ela pode ser assentada por meio de uma arte espiritual.
Para os Shaivas hindus trata-se do Shakti.
Se se procura determinar com base em
descrições alquímicas o que significa exatamente mercúrio, se
ele pertence ao reino do corpo ou da alma ou se é meramente um
suporte subjetivo ou mesmo cósmico, pode-se facilmente perder
o fio da meada, se não se sabe que está na essência da alquimia –
e também de outros métodos similares – sempre aproximar o
domínio da alma dos seus pontos de referência corporais, e o
Universal, de seus traços existenciais concretos.
No nível corporal, o mercúrio está presente
no sangue e no sêmen. Em um nível um pouco mais elevado –
intermediário entre o corpo e a alma – ele está no coração e na
respiração. Trata-se então do portador da “substância” da alma.
Seu ritmo é a imagem da “solidificação” dessa substância no
campo da força da consciência individual, e de sua eventual
dissolução no Todo. A substância da alma, por sua vez, é a
portadora da realidade espiritual.
78 Ver Paul Coze, L´Oiseau-Tonnere, Paris-Geneva, 1938. De acordo com Averróis,
que se baseia em Galeno, o espírito vital é uma substância pura presente no
espaço estelar, que é assimilada por meio de um processo similar à resporação e
é transformada em vida no coração.
129
De acordo com o mestre chinês Ko Ch
´ang-Kêng , que incorporou a alquimia ao Budismo Dhyâna
(Zen), a ação do mercúrio pode ser concebida de três modos: de
acordo com a primeira concepção, o mercúrio é o coração, que
se faz líquido pela meditação (dhyâna) e ígneo pelas faíscas do
Espírito, enquanto o chumbo, que ele pode transmutar,
corresponde ao corpo. De acordo com a segunda concepção, o
mercúrio é a alma, e o chumbo e a respiração; e segundo a
terceira, o mercúrio é o sangue e o chumbo é o sêmen. Em cada
caso o mercúrio tem o papel de elemento dissolvente e
vivificador. Em última análise, é a substância que “flui” em todas
as formas psíquicas e mentais. Os alquimistas hindus chamam o
mercúrio de “sêmen de Shiva”. Shiva é deus como autor de toda
transmutação80.
Talvez o leitor possa perguntar como se
pode, de algum modo, provar o que, na alquimia interior, é
realidade e o que é meta imaginação. O critério para isso está na
realização alquímica mesma, que em última análise não traz
nenhum conteúdo novo para a consciência humana, mas antes
revela sua real substância, que precede toda a experiência. Em
busca de uma melhor expressão pode-se chamar isso de “a
aquisição da consciência do ser”. O ser não é nem “objetivo”,
nem “subjetivo”, mas inclui ambos ou está acima de ambos. A
consciência do ser é também necessariamente um conhecimento
da unidade, já que unum et esse convertuntur.
Em primeira instância o mercúrio é apenas
a manifestação da materia prima. Em última análise, entretanto,
é a materia prima mesma. No livro de Fra Marcantonio A luz
que procede da escuridão está dito que “Eu conheço bem que o
seu mercúrio secreto não é outro senão o espírito vivo,
onipresente e inato que, na forma de um nevoeiro etéreo (uma
influência sutil) continuamente desce do céu à terra (e aos
homens da terra) com o fim de impregnar os corpos porosos da
terra. Eu sei que ele é subsequentemente nascido no meio do
enxofre impuro (as substâncias corporais), e então, tendo tido
uma natureza volátil, ele pode adquirir uma firme (i. e.
Imutável), e ao fazer isso ele assume a forma da umidade
79
79 Ver Micea Éliade, Forgerons et alchimistes, capítulo sobre a alquimia chinesa.
80 Ver Mircea Éliade, op. cit., capítulo sobre a alquimia indiana.
130
primária (humiditas radicalis)... “81.
O enxofre tem aparentemente dois
aspectos contraditórios: como causa formativa, ele efetua, em
primeiro lugar, a coagulação da “substância” ou “corpo” que será
transmutado, e assim também a sua secura e dureza. Ele então
aparece como um impedimento à purificação, e apenas quando a
“substância” tenha sido complemente dissolvida de sua
coagulação, o enxofre revela-se como a causa criativa da forma
nova e “nobre”. A dissolução é patrocinada pelo mercúrio.
Assim, em primeira instância, esse último e o enxofre trabalham
com propósitos contrários, arrebatando-lhe sua “substância” com
o fim, subsequentemente, de oferecer “a si mesmo” a “ele” como
uma substância nova, ilimitada e mais receptiva. Do ponto de
vista psicológico isso é o mesmo que ocorre quando a atração da
natureza feminina dissolve a natureza masculina do seu torpor e
ao mesmo tempo suscita, como resultado dessa tensão entre os
dois polos, seu verdadeiro poder masculino e ativo. Há um
método tântrico que opera esse processo alquímico pelo
incremento da atração natural entre o homem e a mulher ao mais
alto grau, e então promove uma reavaliação espiritual, similar ao
Fedeli d´Amore (ao qual Dante pertenceu), que também
conheceu e praticou tal método82.
No casamento químico de Christian
Rosenkreutz, de Johann Valentin Andrae, a seguinte alegoria é
relatada: um belo unicórnio, branco como a neve, adornado por
um colar dourado, aproxima-se de uma fonte e se ajoelha, como
se desejasse prestar honras ao leão que lá estava. Esse leão, que
em primeiro lugar, em razão de sua imobilidade, parece ser de
pedra ou metal, imediatamente agarra uma brilhante espada que
ele mantinha sob suas patas, e a quebra em duas. Ambas as
partes caem dentro da fonte. Então ele solta um longo rugido, até
que uma pomba branca, com um ramo de oliveira, começa a voar
em sua direção. A pomba dá-lhe o ramo de oliveira. O leão
devora-o e permanece em silêncio. O unicórnio retorna feliz e
saltitante ao seu lugar. O unicórnio branco, um animal lunar, é o
mercúrio em seu estado puro. O leão é o enxofre que, em
primeiro lugar, como forma essencial do corpo, parece tão rígido
81 Bibl. des. Phil. Chim.
82 Ver Julius Évola, Metafísica do Sexo.
131
como uma estátua. Ele é despertado pela reverência do mercúrio
e começa a rugir. A sua voz é o seu poder criativo. De acordo
com os fisiólogos, o leão traz seus filhos natimortos à vida por
meio da voz. Ele quebra a espada da razão e os fragmentos dela
caem na fonte, onde eles são dissolvidos. O leão apenas se
silencia novamente depois que a pomba do Espírito Santo lhe
deu comer o ramo de oliveiras da Sabedoria Divina.
Figura 7. O casamento do enxofre e do mercúrio no vaso
hermético. Do manuscrito Egerton 845, no Museu Britânico.
Em certo sentido, o enxofre “rígido” é o
entendimento teorético. Ele contém o ouro do espírito em forma
fértil. Ele deve primeiro ser dissolvido em mercúrio antes de
poder se transformar em um “fermento” vivo, que pode
transmutar outros metais. Vale dizer, ele deve libertar-se de suas
limitações conceituais, e se tornar-se completamente “ativo”.
132
133
Figura 8a. A luta dos dois poderes primordiais: o poder
masculino tem o sol como cabeça, e está montado em um leão
de enxofre; o feminino tem a lua como cabeça e está montado
em um grifo de mercúrio. Os ornamentos nos escudos,
entretanto, estão invertidos: no escudo do poder solar está
desenha a lua; e naquele do poder lunar, o sol. De um
manuscrito alquímico Ph. 172 da coleção gráfica da biblioteca
central de Zurique.
Figura 8b. Representação do trabalho alquímico: em primeiro
lugar, o material bruto é submetido no tubo como uma massa, e
então “servido” no vaso hermético. O dragão, que está
devorando sua própria cauda, representa o poder ainda não
redimido da natureza; a água é o “espírito” em fase de
libertação; na sua cabeça está sentado o corvo da
mortificação. Do mesmo manuscrito.
O poder dissolvente e desintegrante do
mercúrio tem um aspecto terrível. Ele é o “dragão venenoso”,
134
que devota tudo; é água que faz estremecer e que traz o
pressentimento da morte. Artephius escreveu: “todo segredo está
em nosso conhecimento a respeito de como extrair o mercúrio
não-inflamável do corpo da magnésia... vale dizer, deve-se
extrair uma água viva e não e incombustível e então coagulá-la
com o corpo perfeito do sol, que se dilui nesta água em uma
substância branca, cremosa, até que tudo se transforma em
branco. Mas antes, contudo, o sol irá perder o seu esplendor, será
extinto e se tornará negro, como resultado da putrefação e
dissolução (resolutio) que ele sofre nessa água...83 Por outro
lado, entretanto, o mercúrio é a “água da vida” (aqua vitae) e a
fonte na qual o sol e a lua, o espírito e a alma, devem-se banhar
para serem rejuvenescidos. Tudo isso também pode ser dito a
respeito da materia prima, já que o mercúrio é a sua
manifestação psíquica mais direta e todos as características
aplicáveis ao primeiro também podem ser transpostas para o
último. Synesius escreveu: “...coloque de lado o que é misturado
e tome o que é simples, porque o último é a quintessência do
primeiro. Lembre-se de que nós possuímos dois corpos
verdadeiramente perfeitos (ouro e prata, espírito e alma, coração
e mente), que estão ambos preenchidos com mercúrio. Tire deles
o nosso mercúrio, e daí você fará o remédio chamado
quintessência, porque ele possui um poder duradouro e sempre
vitorioso. Ele é uma luz viva que ilumina toda alma que chegou
a contemplá-lo. Ele é o nó e o laço de todos os elementos que
nele estão contidos, assim como ele é também o espírito que
nutre e anima todas as coisas, e através do qual a natureza age no
cosmos. Ele é o poder, o começo, o meio e o fim do trabalho, e
para dizer-lhe tudo em poucas palavras, meu filho, saiba que a
quintessência e a coisa escondida que é a nossa pedra não é nada
além do que nossa alma viscosa (porque aderente a todas as
coisas), celestial e gloriosa, que através de nosso magistério nós
extraímos de sua mina (o corpo, ou o ser humano), que sozinho a
produz. Não está em nosso poder produzir essa água por meio de
qualquer arte, como a natureza sozinha pode gerar. Essa água é
também o vinagre verdadeiramente forte, que faz um espírito
puro a partir do corpo de ouro. Eu lhe aconselho, meu filho, a
desprezar todas as outras coisas, porque elas são todas vãs,
83 Bibli. des phil. chim.
135
exceto essa água que queima, alveja, dissolve e congela. Ela
sozinha tem o poder de decompor e de germinar....”84.
Como todo trabalho alquímico tem o
mercúrio como seu meio e ponto de partida, o enxofre e o
mercúrio são algumas vezes chamados o mercúrio masculinofeminino “duplo”. Quando a natureza do enxofre alcança seu
desenvolvimento no mercúrio, ela é representada pelo símbolo S.
O crescente lunar é aqui recolocado pelos chifres do carneiro
“incandescente” (Aries) do Zodíaco. Trata-se da “água
incandescente” e do “fogo não-inflamável”.
Como já foi dito, o “ouro vivo” é obtido
através da perfeita união do enxofre e do mercúrio. De outro
ponto de vista, porém, cada metal tem três componentes, a saber,
enxofre, mercúrio e sal. “Onde quer que haja metal”, diz Basilius
Valentinus, “há enxofre, mercúrio e sal... espírito, alma e corpo”.
Assim esses três poderes ou princípios juntos constituem a
natureza do metal – ou do homem. O sal é, em certo sentido, o
elemento estático, e assim também neutro, do ternário.
Transposto ao homem, o sal não é
simplesmente o corpo na sua forma externa e visível; é a sua
forma psíquica, e como tal tem um duplo aspecto: por um lado, o
da limitação, e por outro, o de um símbolo.
O enxofre produz a combustão, o mercúrio
a evaporação. O sal é a cinza que sobra e serve para firmar o
espírito “volátil”.
Não apenas na alquimia, mas também em
diversos métodos contemplativos do Oriente e do Ocidente, a
consciência corporal purificada faz as vezes de um “fixador” ou
suporte para um estado mais elevado do espírito, em cuja
respiração e originalidade ilude todas as limitações conceituais.
Que o corpo, liberto das febres da paixão, possa servir como
suporte a tal estado contemplativo, justifica-se tanto o seu caráter
relativamente estático, que se destaca como um pilar sólido na
corrente das aparências psíquicas que flui constantemente, e
também no fato de que, em contraste com o conteúdo puramente
subjetivo da consciência, ele representa a, por assim dizer,
interseção objetiva entre o microcosmo humano e o
macrocosmo. Em um certo sentido, o corpo é o mais claramente
84 Bibli. des phil. chim.
136
circunscrito, externo e simples de todos os reflexos do cosmo. O
mais baixo corresponde ao mais alto, diz a regra enunciada na
“Tábua da Esmeralda”.
137
CAPÍTULO 11
DO “CASAMENTO QUÍMICO”
O casamento do enxofre eu do mercúrio,
do sol e da lua, do rei e da rainha, é o símbolo central da
alquimia. Somente com base na interpretação desse símbolo é
que se pode fazer uma distinção entre, de um lado, alquimia e
misticismo, e do outro entre alquimia e psicologia.
De um modo geral, o ponto de partida do
misticismo é aquele de que a alma se tornou separada de Deus e
se voltou para o mundo; consequentemente, a alma deve ser
reunificada com Deus. E isso se faz descobrindo nela mesma a
Sua presença imediata e toda iluminada. A alquimia, por outro
lado, é baseada na visão de que o homem, como resultado da
perda do seu estado “adâmico” original, está dividido dentro de
si mesmo. Ele recupera sua natureza integral apenas quando os
dois poderes, cuja discordância tem causado sua impotência, são
de novo reconciliados um com o outro. Essa dualidade interna, e
agora “congênita”, na natureza humana, é, além disso, uma
consequência de sua queda de Deus, assim como Adão e Eva
apenas se tornaram conscientes de sua posição após a queda e
foram expulsos para o curso da geração e da morte.
Inversamente, a recuperação da natureza integral do homem (que
a alquimia expressa pelo símbolo do andrógino masculinofeminino) é o pré-requisito – ou de outro ponto de vista, o fruto –
da união com Deus.
Se a distância – e o relacionamento – entre
o homem e Deus é representado por uma linha vertical, então a
distância entre o homem e a mulher, ou entre os dois poderes
correspondentes da alma, é representado por uma linha
horizontal – o que resulta em uma figura como um T invertido.
No ponto em que as duas forças opostas estão balanceadas, quer
dizer, no centro da linha horizontal, esta é tocada pelo eixo
vertical, descendendo de Deus, ou subindo a Ele. Isso
corresponde ao espírito supra-formal, que une a alma com Deus.
138
O andrógino hermético – rei e rainha ao mesmo tempo – sobre
o dragão da natureza, entre a “árvore do sol” e a “árvore da
lua”. O andrógino tem asas e carrega em sua mão direita uma
cobra enrolada; e na sua mão esquerda uma traça com três
cobras. A sua metade masculina está vestida de vermelho; a
feminina, de branco. Do manuscrito de Michael Cochem (ca.
1530) na Biblioteca Vadiana, St. Gallen.
139
Embora de acordo com esta imagem as
duas forças ou polos da natureza humana (o enxofre e o mercúrio
do trabalho alquímico interno) estejam no mesmo nível, há
contudo uma diferença de categoria, similar àquela que há nas
mãos direita e esquerda, daí que se pode dizer que o polo
masculino está colocado sobre o feminino. E certamente o
enxofre, como polo masculino, desempenha um papel em relação
ao mercúrio, o polo feminino, que é similar àquele do espírito
em sua ação na alma toda.
Como todo conhecimento ativo pertence
ao lado masculino da alma, e todo o passivo, ao lado feminino, a
consciência, dominada pelo pensamento (e portanto claramente
delimitada), pode em certo sentido ser atribuída ao polo
masculino, enquanto todos os poderes involuntários e
capacidades conectadas com a vida como tal aparece como uma
expressão do polo feminino. Isso pode parecer assemelhar-se à
distinção feita na psicologia moderna entre o consciente e o
inconsciente. Há, portanto, uma tentação de interpretar o
“casamento químico” (expressão de Valentim Andreae)
simplesmente como uma “integração” dos poderes inconscientes
da alma na consciência egóica, como é afirmado pela então
chamada “psicologia profunda”.
Para estabelecer quão distante essa
interpretação está da verdade, e em que extensão ela deve ser
corrigida, é necessário recordar o relacionamento tripartite que
foi representado acima por um T invertido. A verdadeira união
dos dois poderes da alma apenas pode ocorrer naquele ponto
onde o espírito supra-formal, o raio divino, toca seu nível
comum. Isso significa, contudo, que o que o homem considera
como o seu próprio “eu” pode nunca se tornar o eixo de uma
integração real, já que de acordo com as tradições espirituais, o
“eu” que a psicologia moderna considera como o núcleo da
“personalidade” é precisamente o obstáculo que impede a
consciência de ser inundada pela luz do puro Espírito ou, em
outras palavras, que oculta o Espírito de nossa consciência.
Assim o “casamento químico” não é uma “individuação”, de
qualquer maneira não no sentido de um processo interior por
140
meio do qual o ego imprime em uma onda de instintos coletivos
a sua fórmula particular – uma forma necessariamente limitada,
tanto temporal como qualitativamente. Pode muito bem ser que o
influxo de influências inconscientes passadas possam ampliar a
consciência egóica, porque ela se encontra ao alcance de uma
sublimação ordinária no sentido psicológico da palavra. Apesar
disso ela tem limitações muito bem definidas, que são de fato
aquelas da consciência egóica ordinária.
O casamento do rei e da rainha, sol e da lua, sob a influência
do mercúrio espiritual. Extraído de “Philosophers´ Rosegarden
141
´, de Arnaldo de Vilanova, manuscrito que se conserva na
Biblioteca Vadiana, St. Gallen.
A consciência humana pode apenas atingir
domínio sobre o tempestuoso mar do inconsciente com o
despertar de um poder criativo dentro de si, que deriva de uma
esfera superior àquela da consciência egóica. Essa esfera
superior é também inconsciente, mas apenas provisoriamente e
do ponto de vista da consciência ordinária, já que em si mesma é
pura luz indivisa. Essa luz é inacessível à observação
psicológica, tanto em sua essência quanto em todas as suas
emanações, já que a psicologia, assim como todas as ciências
empíricas, é sujeita à razão, que atua sobre si mesma, e a razão
não pode penetrar além de si mesma à sua fonte de iluminação
mais que um espelho pode jogar luz no sol. É por isso muito vão
o desejo de descrever psicologicamente a essência real da
alquimia, ou o segredo do “casamento químico”. Quanto mais
nos esforçamos por eliminar os símbolos e por substituí-los por
concepções científicas de uma espécie ou de outra, tanto mais
rápido aquela presença espiritual desaparece – aquela que é o
verdadeiro coração da questão, e que apenas pode ser transmitida
por símbolos, cuja natureza é ser conceitualmente inexaurível.
Em um sentido, portanto, a consciência
egóica está entre dois domínios inconscientes, um abaixo, que na
sua natureza latente e ainda não-formada, nunca pode se tornar
completamente consciente, e o outro acima, que apenas aparece
como inconsciente visto “desde de baixo”. À medida em que a
luz supra-conceitual atua no domínio da alma, o poder “natural”
da consciência “inferior” é tomado e assimilado. O processo
alquímico tem, assim, um aspecto duplo e ambíguo, já que o
desenvolvimento dos dois poderes fundamentais da alma
(enxofre masculino e mercúrio feminino), trazido à tona pela
concentração espiritual, é capaz de refletir o Espírito nãoconceitual, à medida em que ele inclui os domínios involuntários
e nesse sentido naturais. A razão para isso é que a Natureza, em
seu aspecto não-conceitual e mais ou menos inconsciente ou
involuntário, é a imagem inversa do espírito criativo, de acordo
com as palavras da Tábua da Esmeralda, segundo as quais o que
está acima é como o que está abaixo e vice-versa. Assim, os
142
poderes fundamentais masculino e feminino estão ancorados na
natureza inconsciente e instintiva do homem. Os dois poderes
experimentam o seu completo desenvolvimento no plano da
alma, mas realizam a sua completude apenas no espírito, já que
apenas aqui a receptividade feminina alcança a sua maior
amplitude, e a sua mais pura pureza, e é completamente
unificada ao Ato masculino vencedor.
Por outro lado, pode-se dizer que a
natureza involuntária, enraizada no inconsciente, apenas alcança
sua unidade viva à medida em que o Espírito supra-conceitual
atua nela. O raio do Espírito atua na natureza original como uma
palavra mágica, e isso não se aplica meramente na natureza
interna, a natureza da alma (desligada da atmosfera psíquica
externa, nem tanto pelo corpo como pela consciência conceitual
egóica): efetivamente a presença direta do Espírito no homem
atua sobre todo o ambiente sutil ou psíquico, e através dele
penetra em maior ou menor extensão também no ambiente
corporal. Isso explica, entre outras coisas, certos milagres que
ocorrem nas proximidades dos santos.
Retornemos ao nosso símbolo original do
T invertido e o amplifiquemos para uma cruz. A parte superior
do eixo vertical obviamente indica a origem da luz espiritual. A
parte inferior desce até a escuridão da natureza inconsciente. Os
dois traços horizontais “medem” o desenvolvimento dos dois
poderes polares da alma, que a alquimia chama de enxofre e
mercúrio. Pode-se dizer agora que através da reconciliação ou
casamento dessas duas forças inicialmente hostis, a oposição
entre “acima” e “abaixo” também desaparece, à medida em que
de fato a escuridão é dissipada pela luz. Se as duas forças são
representadas por duas serpentes, girando-se se a si mesmas eixo
vertical acima, até que no nível da linha horizontal elas
finalmente se encontram e se juntam no centro,
subsequentemente sendo transmutadas em uma única serpente
erguida na parte superior da cruz, então temos uma imagem de
como a natureza “obscura” é transmutada na natureza
“luminosa”.
O casamento das forças masculina e
feminina finalmente se mistura ao casamento do espírito e da
alma, e assim como o espírito é o “divino no humano” – como
143
está escrito no Corpus Hermeticum, esta última união está
relacionada também com o casamento místico. Assim, um estado
se funde em outro. A realização da completude de alma conduz
ao abandono da alma ao espírito, e assim o símbolo alquímico
tem uma multiplicidade de interpretações. O sol e a lua podem
representar os dois poderes na alma (enxofre e mercúrio); ao
mesmo tempo eles são símbolos do Espírito e da alma.
Intimamente ligado ao simbolismo do
casamento está o simbolismo da morte. De acordo com algumas
representações do “casamento químico”, o rei e a rainha, no
casamento, são mortos e enterrados juntos, apenas para
ressuscitarem rejuvenescidos. Que essa conexão entre o
casamento e a morte está na natureza das coisas é indicado pelo
fato de que, de acordo com a experiência antiga, um casamento
no sonho significa uma morte, e uma morte em um sonho
significa um casamento. Essa correspondência é explicada pelo
fato de que qualquer nova união pressupõe a extinção de um
estado anterior diferenciado. No casamento do homem e da
mulher cada um deles abre mão de parte da sua independência,
ao passo que, por outro lado, a morte (que em uma primeira vista
é uma separação) é seguida pela união do corpo com a terra e da
alma com sua essência original.
No “casamento químico”, o mercúrio traz
em si mesmo enxofre, e o enxofre, mercúrio. Ambas as forças
morrem, como adversárias e amantes. Então a lua mutável e
reflexiva alma une-se ao sol imutável do espírito de modo que
ela, ao mesmo tempo, é extinta e iluminada.
144
CAPÍTULO 12
A ALQUMIA DA ORAÇÃO
Tanto quanto a alquimia contém uma
ciência da natureza – essa última compreendendo tanto as
manifestações grosseiras ou corporais como as sutis ou psíquicas
–, suas leis e concepções podem ser livremente transpostas ao
domínio das outras ciências tradicionais, por exemplo a medicina
humoral (que considera o organismo humano como um todo
indivisível) e também à correspondente ciência da alma e às
terapias a elas relacionadas. Mais importante para nós, na
presente conexão, é a transposição de perspectivas alquímicas ao
misticismo, já que ele oferece um paralelo ao que foi dito acima
a respeito do “casamento químico”. Aqui será feita apenas uma
breve menção a essa transposição particular, por meio de
indicação e amplificação, sem um esforço de procurar todas as
suas ramificações.
No quadro do misticismo, a alquimia é,
acima de tudo, a alquimia da oração. Pela palavra oração deve
ser entendido nem tanto uma petição individual, mas sim a
articulação interna – e algumas vezes também externa – de uma
fórmula ou nome dirigida a Deus e evocando a Deus, assim
especialmente as chamadas “preces jaculatórias”. A excelência
dessa espécie de oração está no fato de que a palavra ou frase
repetida, como um meio de concentração não foi escolhida por
um ser humano ou outro, mas sim deriva completamente da
revelação ou contém um nome divino (se de fato ela não consiste
exclusivamente deste nome). Assim a palavra pronunciada pela
pessoa orante é, graças a sua origem divina, um símbolo da
palavra eterna e, em última análise, em vista de seu conteúdo e
de poder de benção é Una com esse último: “O fundamento deste
mistério (ou seja, a invocação de um nome divino) é, de um lado,
que “Deus e seu nome são um” (Ramakrishna), e de outro que
Deus mesmo pronuncia seu nome nele mesmo, portanto na
eternidade e fora de toda a criação. Portanto, Sua incomparável e
incriada palavra é o protótipo da prece jaculatória e até mesmo,
em um sentido menos direto, de toda prece” (Frithjof Schuon,
145
Stations of Wisdom85).
Assim, fundamentalmente, o nome divino,
ou a fórmula sagrada da oração jaculatóia, estão relacionados à
alma passiva, assim como a palavra divina, o fiat luz, à natureza
passiva ou materia prima do mundo. Isso nos traz de volta à
correspondência (mencionada por Muhyi 'd-Dîn ibn 'Arabi) que
existe entre de um lado o comando divino (al-amr) e a natureza
(tabî'ah) e por outro lado enxofre e mercúrio, os dois poderes
fundamentais que, na alma, são (respectivamente) relativamente
ativo e relativamente passivo. No seu sentido imediato, e do
ponto de vista do “método”, enxofre é a vontade, que se liga com
o conteúdo da palavra pronunciada na oração, e age de um modo
formativo sobre o mercúrio, ou a alma receptiva. Em última
análise, porém, o enxofre é a luz espiritual penetrante contida nas
palavras sagradas, como o fogo na pedra, e cuja aparência efetua
a real transmutação da alma.
Essa transmutação passa pelas mesmas
fases determinadas pelo trabalho alquímico, pois a alma
inicialmente se congela ao se afastar do mundo exterior, então se
dissolve como resultado do calor interno, e finalmente, tendo
sido uma corrente mutável e volátil de impressões, transforma-se
em um cristal imóvel preenchido de luz.– Essa é de fato a
expressão mais simples a qual esse processo interior pode ser
reduzido. Se se fosse descrevê-lo em grandes detalhes seria
necessário repetir quase tudo o que foi dito neste livro sobre o
trabalho alquímico e relacionar isso com a ação íntima da
oração, e dentro do quadro da correspondente contemplação
espiritual86.
Bastará aqui mencionar que a alquimia da
oração é tratada de um modo particularmente completo dos
escritos dos místicos islâmicos87. Aqui eles estão em estreita
relação ao método de dhikr, uma expressão arábica que pode ser
traduzida por “recordação”, “reminiscência” e “alusão”, e
também como “prece jaculatória”. Recordação tem aqui um
sentido da anamnesis platônica: “A razão suficiente para a
85 Publicado por John Murray, Londres, 1961. Capítulo intitulado “Modes of
prayer”.
86 Ver Frithjof Schuon, obra citada, capítulo “Stations of Wisdom”.
87 Ver minha Introdução à doutrina Sufi, p. 101Ff, publicada por Ashraf Lahore,
1959.
146
evocação do nome (divino) está em que isto é uma “recordação”
de Deus; e isto, em última análise, é consciência do Absoluto. O
nome atualiza esta consciência e, no fim, o perpetua na alma e o
fixa no coração, e então ele penetra todo o ser, e ao mesmo
tempo o transmuta e o absorve...” (Frithjof Schuon, obra citada).
A lei básica desse tipo de alquimia interior
pode ser encontrada na fórmula cristã da Ave Maria, a “saudação
angélica”. Maria corresponde tanto à materia prima quanto à
alma em estado de pura receptividade, enquanto que as palavras
do anjo são uma prolongação do fiat lux divino. O “fruto do
ventre da Virgem” corresponde ao elixir miraculoso, à pedra
filosofal, que é a meta do trabalho interno.
De acordo com interpretações medievais, o
anjo cumprimenta a virgem mutans Evae nomem: Ave é, de fato,
o inverso de Eva. Isso indica a transmutação da alma caótica em
um espelho puro da palavra divina. À objeção de que o anjo não
falou latim, de que Eva em hebreu é Khawwa pode-se responder
que no domínio do sagrado não há acaso, e inclusive aqueles
fatos que parecem mera coincidência são, na realidade, préordenados. Isso explica por que na Idade Média os menores
detalhes das Escrituras, mesmo os nomes, eram estudados e
variadamente interpretados de acordo com o seu simbolismo – e
com uma inspiração que rejeita qualquer mancha de
artificialidade.
147
CAPÍTULO 13
O ATHANOR
“Athanor”, do árabe at-tannûr (“forno”), é
a palavra usada pelos alquimistas para designar o forno no qual o
elixir é preparado. Nos manuscritos alquímicos ele é usualmente
representado na forma de uma pequena torre encimada por uma
abóboda. Ele contém um receptáculo de vidro (usualmente em
forma de ovo), que permanece em uma capa de areia ou uma
cova cinza situada imediatamente acima do fogo. Tudo isso tem
tanto um significado literal como simbólico, pois embora seja
certo de que aqueles fornos desse formato foram de fato usados
para todo tipo de operações químicas e metalúrgicas, o
verdadeiro athanor – até onde o “grande trabalho” se interessou –
não foi outro senão o corpo humano, e assim também uma
imagem simplificada do cosmos.
Que o forno dos alquimistas seja uma
reminiscência do corpo humano já foi notado por outros
escritores modernos que escreveram sobre a alquimia88. É uma
ilusão, porém, tentar estabelecer essa semelhança sobre uma base
anatômica, pois do ponto de vista “metódico” da alquimia, o
“corpo” não significa o corpo visível e tangível, mas uma série
de poderes da alma que tem o corpo como seu suporte, e que são
acessíveis via consciência corporal. Quando se diz que o amor
habita o coração, assume-se uma relação entre a alma e o corpo
similar àquele que, de uma maneira muito mais gradualmente
sutil, está na base do símbolo alquímico do athanor. Nele o
tríplice envoltório (consistindo em um forno terrestre, cova de
cinzas ou recipiente de vidro) refere a outros tantos envoltórios
ou “estratos” da consciência corporal ou vital.
O elemento mais importante no forno é o
fogo. Os alquimistas salientam que o calor que transmuta a
materia contido nos recipientes deve ser tríplice, a saber, o calor
aberto do fogo, o calor uniformemente distribuído da cova de
cinzas ou de areia (em cuja vala o recipiente de vidro está como
um ovo em um ninho), e finalmente o calor latente que é
88 Ver H. K. Iranchär, Enthüllung der Geheimnisse der wahren Alchemie, Zurich.
148
atualizado na substância mesma, um calor que depois disso se
torna ativo por seu próprio direito. (Esse último é o que hoje
pode ser chamado – em um nível puramente físico – o calor da
reação química.)
Athanor, do “Mutus Liber”.
O fogo corresponde claramente ao poder
gerativo que é primeiro despertado e então domado para servir à
contemplação interior. A partir disso pode-se imediatamente
entender por que os alquimistas sempre se acautelaram contra
um fogo violento e instável. Uma chama violenta pode
perfeitamente consumir as “flores de ouro”. O calor indireto da
cova de cinzas, que pode ser “moderado, envolvente e
penetrante” – significa a concentração da alma, que é
indiretamente trazida e mantida pelo fogo “aberto”. A cinza é
matéria viva queimada, que não pode mais inflamar-se – vale
dizer que não é mais alcancável pelas paixões. Algumas vezes se
diz que as cinzas devem ser de madeira de carvalho. O carvalho
é o símbolo do homem, e especialmente do corpo humano.
Finalmente o calor que se desenvolve na matéria enclausurada, e
a qual, de acordo com os alquimistas, já está presente em todos
os corpos e substâncias, e apenas deve ser despertada, é um
símbolo da força vital mais interior.
149
Athanor, o livro de Basilius Valentinus: “A respeito da Grande
Pedra dos antigos...”, Leipzig M. DC. J ii.
Os mestres alquimistas também falam de
três fogos: um artificial, um natural e um “anti-natural”. Isso
corresponde à distinção entre a contemplação metódica, a
“vibração” da alma que é posta em movimento pelo primeiro e à
intervenção do Espírito espontaneamente ocorrida, que é também
descrita como um “enxofre incombustível”, e que é um modo de
graça.
O fogo é revigorado tanto por uma
corrente de ar que entra através dos buracos de oxigenação do
forno como pelo uso dos foles. Isso é uma indicação de que na
concentração espiritual, como praticada pelos alquimistas, a
150
regulação da respiração desempenha um papel, assim como na
yoga.
O fato de que o vaso hermético ou “ovo” é
feito de vidro ou de cristal, e é assim transparente, indica sua
conexão com a alma. Ele não é mais que consciência defletida do
mundo exterior, que veio para dentro, constituindo, por assim
dizer, uma esfera isolada. Durante a “ebulição”, ele deve
permanecer “hermeticamente fechado”. Os poderes que são
desenvolvidos nele não devem vazar, se o trabalho alcançou seu
êxito. Dependendo do processo no qual se pretende usá-lo, o
vaso hermético pode ter diversas formas. Pode ser estrangulado
no meio, como uma abóbora. Ele pode ter uma ou mais
protuberâncias bulbosas. Ele pode consistir em uma ilha de
filtração, ou para o método “seco” de um cadinho aberto. Cada
uma dessas formas corresponde tanto a um uso artesanal como a
um determinado aspecto do trabalho espiritual. A forma mais
genérica do vaso, porém, é em forma de ovo. A posição do vaso
no corpo humano corresponde ao plexo solar.
Athanor, do Livro da
Santíssima Trindade
Alambique com balão
O ovo hermético é o reflexo microcósmico
do “ovo universal” (hiranyagarbha) da mitologia hindu, que
151
representa o “embrião” sutil do mundo visível. Como o ovo
universal, o ovo hermético contém sinteticamente todos os
elementos e propriedades a partir dos quais o mundo corporal se
desenvolve. Essa é a razão por que o progresso do trabalho
alquímico é comparado com a criação do mundo.
Recipiente hermético que contém as três forças primárias
(enxofre, mercúrio e sal) e o dragão “volátil” e “sólido” (ou
espiritual e corporal) da natureza. De Basilius Valentinus: “A
respeito da Grande Pedra dos antigos...”.
Uma réplica muito singular do forno
alquímico pode ser encontrada no cachimbo sagrado dos índios
norte-americanos, que da mesma forma representam o corpo
humano. Como o athanor, ele não é tanto uma “imagem” do
corpo, mas uma espécie de paradigma daqueles poderes e
processos vitais que ligam o corpo com o mundo da alma, e
também com todo o cosmos. Para os indianos, o fogo que
queima no forno, ou no cachimbo sagrado, é derivado do sol. A
materia, entretanto, que ele consuma e transmuta em fumaça,
vem de todas as coisas e seres. Antes de encher o cachimbo, o
sacerdote indiano distribui o tabaco sobre os diferentes
152
elementos de uma figura geométrica do universo, uma espécie de
rosa dos ventos. Então ele coloca no cachimbo, invocando todos
os variados poderes cósmicos que esses elementos representam.
Então, através do oferecimento da fumaça, o mundo inteiro, e
também toda a alma humana, pode ser transmutada 89. A ascensão
da fumaça simboliza a ascensão da alma individual ao Infinito, e
assim corresponde à sublimação alquímica. Quando os índios em
oração oferecem seu cachimbo primeiro aos céus, e depois à
terra, isso é análogo à “espiritualização do corpo” e à
“incorporação da espírito” alquímicos. O fogo no cachimbo
sagrado é revivido pelo ar. O canal do cachimbo corresponde à
coluna vertebral, ou mais exatamente ao canal sutil que é a via
do espírito vital.
Em oposição ao vaso hermético, no qual a
materia apenas se move dentro de um circuito fechado, o bojo do
cachimbo sagrado é aberto. A fumaça escapa. Mas mesmo na
alquimia há um processo similar a esse. De acordo com o então
chamado método “seco”, a materia é exposta diretamente ao
fogo, e esse método é o mais curto, mas também o mais perigoso
caminho para o conhecimento profundo.
O cachimbo sagrado dos índios é o
protótipo e a garantia da mais alta dignidade do homem, sua
capacidade de reconciliar o céu com a terra. No mesmo sentido,
embora com menos obviedade, também está presente na forma
do athanor.
*
As considerações seguintes, que podem
parecer saídas de nossa subjetividade, podem ajudar a clarificar a
relação mútua de espírito e corpo. Primeiramente, deixe-nos
recordar que em determinadas doenças mentais é impossível
determinar se a causa é mental ou física. Em tais casos, de fato,
os distúrbios de equilíbrio se seguem alternadamente. A doença
mental resulta em veneno acumulado no corpo, e esse por sua
vez confunde ou paralisa a mente, sem que seja possível saber se
a causa inicial pode ser procurada na mente ou no corpo. –
89 Ver The Sacred Pipe, de Black Elk. Editado por Joseph Epes Brown,
Universidade de Oklahoma Press, 1953.
153
Determinadas doenças, sem dúvida alguma, surgem de causas
mais fundamentais. Elas são, em certo sentido, condicionadas
pelo tipo humano.
Semelhante, até certo ponto, são os estados
psíquicos produzidos pelos narcóticos. Tais estados devem ter
um conteúdo espiritual, mas apenas sob condições particulares,
porque o narcótico não pode fazer nada além de induzir um
processo interior, ele não pode determinar sua qualidade.
Quando, em determinados cultos, bebidas intoxicantes são
usadas para promover estados espirituais extraordinários, não é a
bebida intoxicante como tal que produz os estados em questão. A
sua função apenas pode ser preparatória. O ímpeto “qualitativo”
deve vir de um domínio diferente.
A maturidade sexual no homem não é a
verdadeira razão pela qual ele reconhecer a beleza na mulher. E
até mesmo a ausência dessa maturidade – como resultado de um
defeito físico – pode muito bem indicar que uma beleza que em
si mesma é independente da atração sexual nunca penetrará a
porta da consciência. Finalmente deve ser dito que mesmo a
atividade do cérebro, sem a qual determinadas intuições
espirituais são irrealizáveis, é dependente do corpo. De outro
modo, é também possível que estados espirituais incomuns, para
os quais a mente como tal não está adaptada, podem temporária
ou permanentemente danificar o cérebro. Nesse caso – que é
mais conhecido em civilizações com uma tradição espiritual – o
conteúdo, por assim dizer, rompe o vaso, e isso prova, em um
sentido negativo, quão importante é a base corporal, física, de
uma arte espiritual.
A interação natural do espírito e do corpo
seduz o observador superficial em direção ao materialismo. Até
mesmo aquele que vê as proporções verdadeiras das coisas irá
pelo contrário chegar à intuição de que os dois níveis da
realidade correspondem um ao outro como protótipo (espiritual)
e reflexo (corporal). Todo o cosmos é construído
simbolicamente. O olho não pode vê-lo porque ele é capaz, de
um certo modo, de focalizar raios de luz; ele vê porque, em um
nível corporal, ele reflete o olho espiritual; daí porque ele
também tem a mesma forma que os corpos celestes. O ouvido
ouve porque ele assemelha-se ao espaço cósmico, no qual a
154
palavra eterna ressoa. As leis da acústica, de acordo com as quais
ele é formado, não é senão uma expressão do mesmo protótipo.
Então, assim também é que as faculdades interiores trabalham
apenas em virtude de sua consonância simbólica com realidades
superiores. A memória não seria capaz de armazenar as
impressões das coisas se ela, no mesmo plano da alma, não se
assemelhasse à permanência eterna das possibilidades principais
do Divino Espírito. A imaginação seria sem significado se ela, a
seu modo, não participasse da capacidade plástica da materia
prima, e as palavras não teriam significado se o Espirito não
fosse a palavra de Deus.
É assim inerente à natureza de uma arte
sagrada, que naturalmente nasce em formato simbólico, utilizar o
desenho do corpo em seus trabalhos, e mesmo para fazer dele
sua base “metódica”. O desprezo ascético pelo corpo se aplica
apenas ao corpo como sede das paixões, e não ao corpo como
símbolo.
155
Figura 9 – O andrógino hermético representando a união das
duas forças primordiais homem-mulher. A águia corresponde
ao mercúrio homem-mulher perfeito e harmonioso. O morcego
e a lebre representam aqui o sutil e o corpóreo. Do manuscrito
Ph 172 na Biblioteca Central, Zurich.
156
Figuras 10 e 11 – A flor que brota das cinzas e a virgem branca
do elixir lunar. Representação das duas fases do trabalho
alquímico. De um manuscrito anônimo antigo MS Sloane 256 P
do Museu Britânico. – O vaso hermético, aqui, tem quase a
forma de um coração. Ele está sobre a terra. A flor dos sábios
brota de três raízes, que corresponde aos três princípios do
enxofre, do mercúrio e do sal.
157
Figura 12 – A lápide do alquimista Nicolas Flamel (ca. 13301417) da Igreja de St. Jacques-la-Boucherie; agora no Museu
Cluny em Paris. No painel superior esta Cristo com o globo do
mundo, entre o sol e a lua, acompanhado dos apóstolos Pedro e
Paulo. No painel inferior, está desenhado o corpo de Flamel
em decomposição. Da inscrição consta: “Feu Nicolas Flamel,
jadis escrivain a laissie par son testament a leuvre de ceste
eglise certaines rentes et maisons quil avoit acquestees et
achetees a son vivant pour faire certain service divin et
distribucions dargent chascun an par aumosne touchans les
quinze vins lostel dieu et autres eglises et hospitaux de París
Soit prie por les trespasses”.
158
CAPÍTULO 14
A HISTÓRIA DE NICOLAS FLAMEL E DE SUA
ESPOSA PERRENELLE
Através da ilustração do que já foi dito, e
como uma preparação ao que ainda resta dizer, uma versão –
com um breve comentário – da famosa história de Nicolas
Flamel e de sua esposa Perrenelle será reproduzida abaixo. Esta
história constitui a primeira parte do livro de Flamel, On the
hieroglyphic figures which he had depicted in the Cemetery of
the Holy Innocents in Paris90.
Registros e documentos a respeito da vida
de Flamel foram conservados. Ele nasceu em Pontoise em 1330
e trabalhou em Paris como escritor e notário público. Seu
escritório estava primeiramente situado ao lado da casa
mortuária do cemitério dos santos inocentes, e mais tarde perto
da Igreja de Saint Jacques-la-Boucherie, onde ele mesmo foi
enterrado em 1417. Sua sepultura é preservada no Museu Cluny.
O relato de Flamel está preocupado
principalmente com o primus agens do trabalho alquímico, sobre
o qual Sinésio disse: “A respeito do primus agens, os filósofos
sempre falaram apenas em parábolas em símbolos, para que sua
ciência não seja acessível aos tolos; pois se isso acontecesse tudo
poderia se perder. Ele deve estar disponível apenas para almas
pacientes e espíritos refinados que afastaram-se da corrupção do
mundo e purificaram-se a si mesmo da imundície viscosa da
avareza...”.
A história do próprio Nicolas Flamel assim
começa: “Durante o tempo em que, depois da morte de meus
pais, eu ganhava a vida através da arte da escrita – fazendo
inventários, preparando balanços e calculando as despesas dos
tutores e de seus pupilos – eu adquiri por dois florins um livro
bastante antigo, grande e finamente dourado. Ele não era feito
nem de papel nem de pergaminho, como eram os outros livros,
mas ao que me parecia estava feito de casca amansada de árvores
jovens. A sua encadernação era feita de cobre bem laminado e
90 Bibl. des phil. chim.
159
era gravado com estranhas letras e figuras – e eu pensei que elas
eram letras gregas, ou letras de alguma língua antiga similar. De
todo modo, eu não podia lê-lo, mas eu sabia que não se tratava
de letras latinas ou gálicas, porque delas eu compreendo alguma
coisa. Dentro, as páginas de córtex foram gravadas muito
habilmente com um instrumento de ferro e uma perfuração muito
bonita, e letras em latim, muito claras, que foram coloridas com
muita dedicação. O livro continha três conjuntos de sete páginas,
e elas eram juntas (em seções) desse modo, e na sétima página
não havia escritos. A primeira sétima página, no lugar de escrito
havia uma figura de uma vara, ao redor da qual duas serpentes
estavam enroscadas; na segunda sétima página havia uma cruz
na qual estava fixada uma serpente. E na última sétima página
estava representado o deserto no meio do qual havia diversas
fontes muito belas fora das quais as serpentes se espalhavam em
todas as direções...”.
Os três conjuntos de sete páginas, do livro,
relembrava as três principais fases do trabalho – escurecimento,
clareamento e avermelhamento – e os sete planetas ou metais.
A vara ao redor da qual as duas serpentes
estavam enroscadas é a vara de hermes, com as duas forças –
enxofre e mercúrio – que governam o eixo espiritual.
A cobra crucificada é o símbolo da fixação
do mercúrio volátil – a primeira “incorporação” do espírito. A
fixação do mercúrio corresponde à subjugação da força vital
cada vez mais inquieta, que se dissipa a si mesma em desejos e
imaginações. Ao mesmo tempo ela representa a transmutação do
pensamento dominado pelo tempo em uma consciência imóvel e
atemporal. A cruz na qual a serpente está fixada significa o
corpo, não como carne e sensualidade, mas como imagem da lei
cósmica, do eixo cósmico imóvel.
As fontes brotando no meio de um deserto
ou imensidão, a partir da qual as serpentes emergem,
representam um estado de reconquista da originalidade
espiritual. Todas as três gravuras são variações do símbolo da
serpente, que sempre representam o mesmo poder da alma (ou
poder cósmico): “Natureza” ou shakti.
“Na primeira página do livro está escrito
em letras douradas em caixa alta: ABRAÃO O JUDEU,
160
PRÍNCIPE, SACERDOTE, LEVITA, ASTRÓLOGO E
FILÓSOFO. AO POVO JUDEU, DISPERSADO PELA
CÓLERA DE DEUS ATÉ A GÁLIA, SAUDAÇÕES. D. I. O
resto da página estava preenchido por maldições terríveis (nas
quais a palavra MARANATHA frequentemente ocorria) contra
qualquer um que lesse este livro, a menos que se tratasse de um
sacerdote sacrificial ou um doutor nas leis sagradas.
“o homem que me vendeu este livro não
sabia seu valor – e assim também eu quando o adquiri. Eu pensei
que ele devesse ter sido tomado dos pobres judeus, ou talvez
tivesse sido achado em alguma de suas antigas habitações...”
Flamel possivelmente está se referindo
aqui a uma das expulsões dos judeus, que ocorreram várias vezes
naquela época. Que o livro pudesse ser de origem judaica é
significativo, já que os judeus foram a ligação natural entre os
mundos cristão e muçulmano. É sabido que a renascença da
alquimia da Eurpoa na baixa Idade Média despertou-se a partir
da influência da cultura islâmica.
“Na segunda página o autor consola seu
povo e o aconselha a afastar-se de todo o vício, especialmente da
idolatria, e a esperar com paciência mansa até que o Messias
possa vir e conquistar todos os reis na terra, e com seu povo
governar eternamente em sua majestade. Sem dúvida que isso foi
escrito por um homem muito sábio.
“Na terceira página e nas seguintes, ele
ensinou, em linguagem simples, a transmutação dos metais para
auxiliar seu povo cativo a pagar as taxas ao imperador romano e
a fazer outras coisas que eu não vou mencionar. Ao lado disso
ele trouxe ilustrações de vasos e deu detalhes das cores e de
outras questões, com exceção, sempre, do primus agens do qual
ele não falou. Em vez disso ele o pintou com grande habilidade
sobre toda a superfície da quarta e da quinta páginas; e embora
ele estivesse claramente delineado e retratado, ninguém poderia
compreendê-lo se não estivesse familiarizado com suas tradições
e não tivesse estudado com afinco os livros dos filósofos. A
quarta e quinta páginas estavam assim sem escrita, sendo
completamente preenchidas por belas e bem-executadas
miniaturas.
Na quarta página estava retratado, antes de
161
tudo, um jovem com asas sobre seus calcanhares, e com uma
vara em suas mãos – um caduceu entrelaçado por duas serpentes
– com o qual ele tocou o elmo na sua cabeça. Pareceu a mim que
ele representava o deus pagão Mercúrio. Na direção dele correu
e voou um homem velho e poderoso, em cuja cabeça havia uma
ampulheta, e que carregava uma foice em suas mãos – como a
morte – com o qual, repleto de raiva e fúria, ele tentava rancar os
pés de Mercúrio...”
Que o deus Mercúrio ou ou metal
Mercúrio possam ser despojados de sua volatilidade por SaturnoCronos, ou pelo tempo, como o próprio Flamel disse, pode
suscitar duas interpretações diferentes e, em certo sentido,
contraditórias, dependendo se o tempo é usado ativamente ou
meramente suportado; ou se a fixação do metal mercúrio é vista
como uma morte lenta de seu poder efetivo, ou como uma
domesticação desse último. A ampulheta na cabeça de Saturno,
contudo, parece sugerir que o tempo deve ser dominado
ativamente por meio de um ritmo que o converterá em um eterno
agora.
“No outro lado da quarta página estava
desenhada uma linda flor crescendo no topo de uma alta
montanha, que balançava violentamente pelo vento norte. Ela
tinha um talo azul e flores brancas e vermelhas, e folhas
brilhantes como um ouro maciço. Ao redor dela se aninhavam os
dragões e os grifos do Norte...”
As cores da flor representam as três
principais fases do trabalho, e os seus dois frutos,
especificamente a prata e o ouro. Aqui o azul toma o lugar do
preto, em consonância com a natureza de uma flor, mas com o
mesmo sentido de escuridão e noite. A flor cresce na montanha
solitária do Ser essencial, que é um com a montanha universal ao
redor da qual os céus circulam, através da qual os eixos polares
correm, e ao redor da qual deslizam os dragões dos poderes
cósmicos.
“Na quinta página, havia um arbusto de
rosas florido, no meio de um bonito jardim e inclinado num
carvalho oco. Ao pé do arbusto de rosas jorrou uma fonte de
água branca, que caiu de cascatas à distância, depois de passar
através das mãos de incontáveis pessoas, que cavaram na terra
162
para encontrar a fonte mas não a encontraram, já que elas eram
cegas, com a exceção de apenas uma, que pesava a água.
A fonte de mercúrio jorrou da “terra” da
materia prima, nas raízes da árvore florescente da alma, que é
protegida pelo tronco do carvalho oco do corpo. A água da vida
flui para todo lugar, ainda que ninguém a encontre senão o sábio
que a pesa sobre ela. Poder-se-ia esperar que ele pudesse
experimentá-la, mas a pesagem da água tem aqui o mesmo
significado que a captura do mercúrio pela medida do tempo.
Os alquimistas também ensinam agora a
unificar os elementos individuais ou as variadas propriedades
naturais um com o outro, de acordo com um relacionamento
definido de seus “pesos”. Jâbir ibn Hayyân chamou isso de arte
da balança. E ainda que possa parecer absurdo pesar elementos,
ou mesmo propriedades, como calor, frio, umidade e secura. O
que se quer dizer pela “pesagem” alquímica apenas pode ser
compreendido se se primeiro transpõe a medida de peso
quantitativa e exterior para a medida de tempo qualitativa e
interior (i. e. Ritmo). A pesagem alquímica, que parece se referir
à massa física, não é nada mais que um domínio do ritmo, por
meio do qual os poderes da alma podem ser influenciados. O
ritmo desempenha um importante papel em toda arte espiritual.
Na árabe o ritmo de um verso é conhecido como o seu “peso”
(wazn).
“Do outro lado da quinta página estava um
rei com uma grande faca, que por meio de soldados ao seu redor
causou a morte de um grande número de jovens crianças, cujas
mães choravam ao pé do homem impiedosamente armado,
enquanto o sangue fluente era recolhido pelos outros soldados e
colocados no largo vaso no qual o sol e a lua do céu vinham se
banhar. Isso porque essa ilustração recordava a história das
crianças inocentes mortas por Herodes, e porque foi por esse
livro que eu aprendi a parte mais significativa da arte, que eu
pintei os signos hieroglíficos dessas ciências sagradas no
Cemitério dos Santos Inocentes. Foi isso o que estava nas
primeiras cinco páginas...”
Como o próprio Flamel escreveu nas
páginas seguintes, o sangue dos inocentes sacrificados significa
“o espírito mineral contido em todos os metais, e especialmente
163
no ouro, na prata e no mercúrio”. Isso não é senão o “mercúrio
filosofal”, que é a primeira manifestação da materia prima. O
sangue é a matéria fundamental da vida. Os santos inocentes são
como movimentos imaculados ou exalações do Espírito vital que
antes de se desenvolverem em vontade consciente são
sacrificados pelo rei para preencher o vaso do coração com o seu
sangue. Então, sol e lua, espírito e alma, podem se banhar, ser
dissolvidos e então unificados nele e, tendo perdido sua velha
forma, emergem dele rejuvenescidos.
“Eu não posso relatar o que está escrito em
um belo e claro latim em todas as outras páginas, pois Deus me
puniria por isso, pois eu poderia estar fazendo algo pior do que
fez aquele de quem é dito que desejou que todo homem na terra
tivesse apenas uma cabeça para que ele pudesse cortá-la com
apenas um golpe.
“Agora que eu tenho esse maravilhoso
livro comigo, eu não faço nada mais durante o dia e durante a
noite que estudá-lo. Eu assim entendi muito bem todos os
processos que ele descreve, mas eu não sabia qual era o material
sobre o qual eu deveria trabalhar. E isso me deixou muito triste e
solitário e me fez suspirar incessantemente. Minha esposa
Perrenelle, a quem eu amava como a mim mesmo, e com quem
eu me casei apenas recentemente, estava grandemente
preocupada sobre isso e me perguntava continuamente se ela não
seria capaz de me tirar destas preocupações que obviamente
pesavam sobre mim. Eu não podia esconder nada dela, e disselhe tudo, mostrando a ela o lindo livro, com o qual ela se
apaixonou tanto quanto eu havia feito. Seu grande prazer era
olhar sobre sua bela capa, gravuras, imagens e representações,
das quais, contudo, ela entendia tão pouco como eu. Não
obstante, foi para mim uma grande consolação ser capaz de falar
com ela sobre isso, e discutir o que poderia ser feito para
encontrar a explicação dos símbolos.
“Finalmente eu copiei todas as figuras da
quarta e quinta páginas tão fielmente quanto possível, e eu as
mostrei a vários doutores, que não as entendiam melhor que eu.
Eu até mesmo expliquei a eles que essas figuras haviam sido
tiradas de um livro que ensinava a produção da pedra filosofal;
mas a maioria deles riu de mim e da pedra sagrada, com a
164
exceção de um certo mestre Anselmo, um licenciado em
medicina, que estudou esta arte diligentemente. Ele estava muito
ansioso para ver o meu livro, e fez tudo o que podia para dar
uma olhada nele. Eu lhe assegurei, contudo, que não o possuía,
mas lhe descrevi tudo o que nele continha. Ele me disse que a
primeira figura representava o tempo, que devorava todas as
coisas, e então, seguindo o número de páginas do livro, requererse-ia seis anos para aperfeiçoar a pedra. Depois desse período,
ele asseverou, dever-se-ia girar a ampulheta e não mais cozinhar.
Quando eu disse a ele que essa figura pretendia representar
apenas o primus agens (como estava escrito no livro mesmo), ele
me respondeu que cada um dos seis anos de cocção era como um
secundus agens. O primus agens, ele disse, cuja figura estava ali
diante de nós, era sem dúvida nenhum outro que não aquela água
branca e pesada – especificamente mercúrio – que não poderia
ser açambarcada, e cujos pés não poderiam ser cortados, quer
dizer, cuja volatilidade não pode ser removida exceto por longa
cocção no sangue puro de uma criança jovem. Nesse sangue, o
mercúrio, unindo-se com ouro e prata, poderia primeiro ser
transmutado em uma planta como aquela mostrada na figura.
Após isso, através da putrefação, ele poderia ser transformado
em serpentes, que, tendo sido completamente secadas e
cozinhadas no fogo, poderiam desintegrar em pó – e isso era a
pedra filosofal.
“Foi culpa desse conselheiro que por um
longo período de vinte e um anos eu tenha cometido milhares de
erros, sem entretanto usar sangue, o que teria sido cruel e vil.
Pois eu descobri, no meu livro, que o que os filósofos chamavam
sangue não eram nada além do que o espírito mineral contido
nos metais, principalmente no sol, na lua e no mercúrio, que eu
continuamente me empenhava em combinar. As interpretações
acima mencionadas, porém, eram mais ingênuas que exatas. Já
que em todas as minhas atividades eu nunca percebi os sinais
que de acordo com o livro deviam aparecer no tempo certo, eu
tive sempre que começar de novo do começo. Finalmente,
quando eu perdi toda esperança de até mesmo compreender
aquelas imagens, eu fiz uma promessa a Deus e a São Tiago de
Galícia, e decidi procurar a explicação com algum sacerdote
judeu ou com outra pessoas nas sinagogas da Espanha...”
165
São Tiago, o Ancião, cujo santuário está
em Compostela, foi o patrono dos alquimistas e também de todas
as artes e ciências cosmológicas. Certamente não é coincidência
que o bastão do peregrino (bourdon) de São Tiago – um bastão
atravessado por duas fitas e coroado com um botão redondo,
como eu pude ver nas mãos do santo na estátua romanesca em
Compostela – carregava uma memorável similitude com o bastão
de Hermes.
“Eu estabeleci, portanto, com a
concordância da minha esposa Perrenelle, trazer comigo uma
cópia dessas figuras, vestido com roupa de peregrino e com o
bastão do peregrino, como eu posso ser visto do lado de fora da
capela, no cemitério onde eu pintei as figuras hieroglíficas, e
onde também, nos muros de ambos os lados, eu pintei um cortejo
no qual todas as cores da pedra são vistas em ordem, aparecendo
e desaparecendo juntamente com uma inscrição em francês:
Moult plaist à Dieu Procession, s´elle est faite en dévotion (“Um
cortejo agrada a Deus grandemente, quando é feito com
devoção”). A inscrição repetia quase literalmente o começo do
livro do rei Hércules91, que lidou com as cores da pedra e
carregava o título Iris: operis processio multum naturae placet,
etc. Eu escolhi essas palavras deliberadamente, sabendo que o
sábio compreenderia a alusão.
“Vestido de peregrino, então, eu tomei meu
caminho, chegando finalmente em Montjoye, de onde eu parti
para São Tiago de Compostela, onde eu cumpri minha promessa.
Tendo feito isso, eu parti e encontrei no caminho em León, um
mercador de Bolonha, que me apresentou a um médico de
origem judia, mas um fiel cristão – chamado mestre Canches –,
que vivia lá e era conhecido pelos sua erudição. Quando eu lhe
mostrei as imagens copiadas do livro, ele foi dominado por
admiração e alegria e me perguntou se eu sabia do paradeiro do
livro do qual elas foram tiradas. Eu respondi em latim (em cuja
linguagem ele me havia questionado) e disse a ele que eu tinha
esperança de que se alguém pudesse resolver esses enigmas para
mim, eu esperava encontrar informações precisas a respeito do
livro. Com isso ele imediatamente começou, com grande zelo e
alegria, a explicar o começo para mim. Em breve ele ficou muito
91 Herakleios I, imperador de Bizâncio (610-641).
166
feliz em escutar onde o livro estava, e eu por ouvi-lo falar a seu
respeito. Ele provavelmente já havia ouvido muito sobre o livro,
mas, como me disse, pensava-se que ele estaria completamente
perdido. Nós decidimos, então, partir juntos. De León viajamos
para Oviedo e de lá para Sanson, de onde tomamos um navio
para a França. Nossa viagem seguiu alegremente, e mesmo antes
de alcançarmos o citado reino, ele me explicou fielmente a
maioria das minhas imagens, mostrando, mesmo em pequenos
detalhes grandes segredos (o que eu achei mais interessante).
Mas quando chegamos em Orléans, aquele sábio homem ficou
muito doente, tomado por crises de vômito, que não pararam
desde o momento em que começaram no mar. Ele estava muito
temeroso de que eu o deixasse, o que era compreensível. Embora
eu não tenha deixado sua companhia, ele conversava comigo
incessantemente. Finalmente ele morreu no final de sete dias de
enfermidade, o que me encheu-me de tristeza. Eu o enterrei o
melhor que pude na Igreja da Santa Cruz, em Orléans, onde ele
está até hoje. Deus tenha sua alma, pois ele morreu um bom
cristão. Se a morte não me impedir, eu darei àquela igreja uma
pequena renda, para que todos os dias algumas missas possam
ser ditas em benefício de sua alma.
“Quer quer que queira ver como eu
cheguei em casa e como Perrenelle se alegrou, que nos
contemple a ambos, na cidade de Paris, na porta da capela de
Saint-Jacques de la Boucherie, ao lado e próximo da minha casa.
Nós estamos lá retratados em ação de graças, eu aos pés de São
Tiago de Compostela, e Perrenelle aos pés de São João, a quem
ela tanto invocou. Assim, pela graça de Deus, e pela intercessão
da Santíssima Virgem, de São Tiago e de São João, eu aprendi o
que desejava, a saber, os primeiros princípios, embora não a sua
preparação inicial, que é mais difícil que qualquer coisa neste
mundo. Isso entretanto eu finalmente aprendi depois de cometer
diversos erros, por um período de aproximadamente cinco anos,
durante os quais eu continuamente estudei e trabalhei – como se
pode ver a mim no muro externo da capela (em cujos pilares eu
pintei o cortejo), aos pés de São Tiago e São João,
incessantemente orando a Deus, com o meu rosário na mão,
lendo atentamente em um livro, meditando nas palavras dos
filósofos e então realizando as várias operações que eu extraí de
167
suas palavras. “Finalmente eu encontrei o que eu tanto buscava,
e eu o reconheci imediatamente pelo seu forte odor; e quando eu
o tive eu completei o trabalho (magistère). Tendo aprendido a
preparação dos primeiros poderes (agens), eu deveria apenas
seguir meu livro palavra por palavra, e não poderia dar errado
nem que eu quisesse. Na primeira vez que eu fiz a projeção, eu a
apliquei ao mercúrio e transmutei aproximadamente uma libra e
meia em prata pura, que era melhor do que aquela extraídas das
minas – um fato que eu testei e tenho testado diversas vezes. Isso
aconteceu em 17 de janeiro de 1382, uma segunda-feira,
próximo do meio dia, em minha casa, na presença apenas de
Perrenelle. Mais tarde, seguindo o meu livro palavra por palavra,
eu completei o trabalho com a pedra vermelha, sobre uma
quantidade similar de mercúrio, de novo apenas na companhia de
Perrenelle, na mesma casa, no dia 25 de abril do mesmo ano, às
cinco horas da tarde, quando eu efetivamente transmutei o
mercúrio eu ouro, quase na mesma quantidade, que era
claramente melhor que o ouro comum, já que mais leve e mais
maleável. Isso eu posso dizer na verdade. Dessa forma eu
completei o trabalho três vezes com a ajuda de Perrenelle, que
entendeu tanto quanto eu mesmo fiz, pois ela me ajudou na
sequência das instruções; e quisesse ela completá-lo inteiramente
sozinha, ela poderia certamente alcançar a meta. Eu já estava
mais que satisfeito depois de tê-lo completado uma vez, mas eu
encontrei grande alegria em ver e em compreender o
maravilhoso trabalho da natureza nos vasos...”
O homem e a mulher, que na forma natural
encarnam os dois pólos do trabalho alquímico (enxofre e
mercúrio), podem por seu amor recíproco – quando ele é
espiritualmente elevado e interiorizado – desenvolver esse poder
cósmico, ou poder da alma, que opera a dissolução e a
coagulação alquímica (solve et coagula).
168
CAPÍTULO 15
OS ESTÁGIOS DO TRABALHO
Há vários modos de se subdividir os
múltiplos estágios do trabalho alquímico. Cada um deles carrega
uma simplificação esquemática do processo total. Apesar disso,
cada um deles é correto no sentido de que cada um é uma
expressão da lógica interna do “trabalho”. A mais antiga
subdivisão é aquela que designa os estágios individuais ou fases
por diferentes cores. Isso possivelmente remete a um processo
metalúrgico particular, tal como a purificação ou coloração dos
metais. De acordo com esse esquema o enegrecimento
(melanosis, nigredo) da materia ou “pedra” é seguido por um
branqueamento (leukosis, albedo), e esse, por sua vez, é seguido
por um “avermelhamento” (iosis, rubedo).
O preto é a ausência de cor e de luz.
Branco é pureza; ele é luz indivisa – a luz não se quebra em
cores. Vermelho é a essência da cor, seu ponto culminante e o
seu ponto de maior intensidade. Essa ordenação das coisas se
torna ainda mais evidente se entre o branco e o vermelho é
inserida toda uma série de cores intermediárias tais como o verde
limão, o amarelo ocre e o vermelho claro ou, novamente, se se
fala de uma “cauda de pavão” de cores gradualmente
desdobradas. Neste caso a cor púrpura é sempre a que fecha as
séries.
É de se notar que as três principais cores –
preto, branco e vermelho (que também podem ser encontradas na
heráldica hermeticamente influenciada) – designa na cosmologia
hindu as três tendências fundamentais (gunas) da materia
primordial (Prakriti). Aqui o preto é simbolicamente o
movimento “descendente” (tamas), que foge da origem
luminosa; branco é a aspiração “ascendente” em direção à luz
(sattva); e o vermelho é a tendência em direção à expansão no
plano da manifestação mesma (rajas). Com essas interpretações
em mente, pode-se ficar surpreso de descobrir que na alquimia
não é o branco, mas o vermelho, que representa o resultado final
do trabalho. De acordo com a doutrina hindu, o cosmos é
169
construído de tal maneira que primeiramente tamas, a força
descendente, joga para baixo a âncora até a escuridão, e então
rajas, expandindo-se na distância, desenvolve a multiplicidade; e
finalmente sattva, como uma chama luminosa com direção
ascendente, conduz tudo de volta à origem. A simples
comparação das três cores alquímicas com a cosmologia hindu já
é uma clara indicação do ponto de vista da alquimia e dos
precisos limites desse simbolismo. Depois da “espiritualização
do corpo” – que em certo sentido corresponde ao branqueamento
e substitui a inicial negritude ou corrupção –, vem, como um
acabamento, a “corporificação do espírito”, com sua cor
vermelho-púrpuro. O mesmo ritmo pode também ser transposto
a outros modos de realização espiritual. O ponto significante
aqui é que a ênfase está na manifestação do Espírito e não na
transcendência – ou na extinção – da existência limitada.
Por meio da putrefação, fermentação e
trituração – todas elas acontecendo na escuridão – a materia é
despojada de sua forma inicial. Por meio do clareamento, a um
branco prateado, ele é purificado, e pelo “envermelhamento” ele
é colorido novamente – e aqui a cor significa forma. O poder
purificador é o mercúrio, o poder “colorante”, o enxofre.
A tríplice divisão, de acordo com as cores,
não conflita com a dupla divisão entre trabalho “inferior” e
“superior”. Isso reflete a já descrita dualidade de materia e
forma, alma e espírito, lua e sol.
Tanto a divisão tríplice como a dúplice
ocorre na sétupla divisão baseada nos reinos (régimes) dos
planetas e propriedades dos metais.
Há duas concepções principais da gradação
sétupla. Em duas delas, os trabalhos “inferior” e “superior” são
combinados – algo de fato praticável – então prata e ouro, lua e
sol, como pares, representam o ponto final de toda a série,
enquanto que os outros planetas ou metais tomam os seus lugares
na série de acordo com a sua nobreza, vale dizer, sua maior ou
menor relação com o ouro ou com o sol. Essa ordem corresponde
à hierarquia das casas planetárias, como descritas no capítulo 5.
esse modelo é a ascensão do sol a partir da sua posição mais
inferior, na casa de Saturno, no solstício de primavera, ao seu
domínio na casa de Leão, que por sua vez representa o solstício
170
de verão. Na outra concepção, o trabalho “inferior”, tendo a lua
como ponto final, precede o trabalho “superior” ao ponto de
coroação, que é o sol. Essa última concepção, mencionada por
Philaletes, Bernardus Trevisanus, Basilius Valentinus e por
outros alquimistas – e que em razão de sua forma
particularmente lúcida será agora examinada em maiores
detalhes – aparece da forma como segue.
s
w
v
R
t
q
Mercúrio Saturno
Júpiter
Lua
Vênus
Marte
Sol
Mercúrio Chumbo
Estanho
Prata
Cobre
Ferro
Ouro
s
O símbolo de mercúrio, que vem antes de
todos os outros, não representa um estágio no trabalho, mas antes a
chave do todo; então o trabalho em si mesmo tem apenas seis fases.
Dessas as primeiras três são expressadas por símbolos puramente
lunares, e as últimas três por símbolos puramente solares. Apenas o
símbolo de mercúrio é andrógino, formado tanto do sol como da lua.
Já foi dito que para os alquimistas, o mercúrio
é o primus agens, o real significado do trabalho, a água dissolvente e o
alimento para o embrião espiritual. Ele é, por assim dizer, a
manifestação mais direta da materia prima, vista como matéria física
sutil ou sopro vital, que une o organismo corpo-alma individual com o
mar cósmico da vida. Nele a semente do ouro espiritual está
escondida, assim como o ouro no mercúrio comum.
Transposto para o modo “operativo” do
misticismo, o que aparece neste ponto é a influência espiritual, a
graça, ou outra forma de operação do Espírito Santo, que em certo
sentido penetra de fora o mundo aparentemente fechado da
consciência egóica, e a afasta de sua “coagulação” metálica. Na
alquimia, o mercúrio pode ser considerado como uma “benção
cósmica”, como Fra Marcantonio disse, “constantemente cai do céu
como uma névoa fina, para preencher os poros da terra”92; aqui, os
“poros” são o que salva os corpos sólidos da fossilização e da
sufocação; é através deles que a terra “respira”, assim como o homem
vive por manter-se aberto às influências celestiais presentes na
92 Ver capítulo 10, “Enxofre, mercúrio e sal”.
171
natureza.
A interpretação do signo de mercúrio como a
chave de todo o trabalho é confirmada pelo papel do deus Mecúrio, ou
Hermes, nos mistérios órficos. Os mensageiros dos deuses
acompanham a alma após sua morte – corporal ou mística – através de
todos os reinos das sombras até seu lugar final de descanso.
W O primeiro estágio do “trabalho inferior”,
que se dá sob o signo de Saturno, corresponde ao “enegrecimento”,
“putrefação” e “mortificação”. Ele é representado por uma caveira ou,
algumas vezes, por uma sepultura. Basilius Valentinus disse a respeito
dessa fase do trabalho: “Toda carne nascida na terra será destruída e
restituída de volta à terra, pois ela foi terra. Assim o sal terreno
produzirá um novo nascimento através do sopro da vida celestial.
Onde quer que a terra esteja ausente no começo, não pode haver
renascimento em nosso trabalho, já que a terra é o bálsamo da
natureza e o sal daqueles que procuram o conhecimento de todas as
coisas”93.
No começo de toda a realização espiritual está
a morte, na forma de “morrer para o mundo”. A consciência deve se
retirar dos sentidos e se voltar para dentro. Como a “luz interior”
ainda não ressuscitou, esse afastamento do mundo exterior é
experimentado como uma nox profunda. A este estado o misticismo
cristão aplica a parábola do grão de trigo, que deve permanecer
sozinho na terra e morrer, se é para dar frutos. Em diversos ritos
iniciáticos, essa morte da alma é expressada por um enterro simbólico,
e certas ordens cristãs observam um costume singular na investidura
dos monges.
Nos mistérios pré-cristãos, a morte do místico
era frequentemente trazida no relacionamento com a morte sacrificial
de um deus. Como o deus, que foi morto e desmembrado, o místico
devolvia seus membros e faculdades à natureza. Os poderes dos
mundos inferiores dividiam entre si os elementos da alma empírica,
que não pertenciam à essência imortal e, em determinados casos, esse
desmembramento era executado na efígie. O místico deve
experimentar, por si mesmo, a morte sacrificial de Deus, para
compreender em toda a extensão que Deus, que era aparentemente
desmembrado no mundo (a fim de conferir sua vida em sua
multiplicidade), na verdade não pereceu nele, mas permaneceu
imortal, eterno e indivisível. Assim o homem pode apenas conhecer
93 Da grande pedra dos antigos sábios, Estrasburgo, 1645.
172
sua essência imutável quando ele renunciou a tudo o que nele é
perecível. Isso inclui não apenas a carne, mas também a “alma imersa
na experiência sensorial”.
No começo do trabalho, o material mais
precioso que o alquimista produz é a cinza, que permanece após a
calcinação (calcinatio) do metal ordinário. Através dessa cinza, que
foi despojada de toda “unidade” passiva, ele será capaz de capturar o
“espírito” volátil. O primeiro estágio do trabalho corresponde ao
significado mitológico de Saturno, já que Saturno-Chronos, que
devorou seus próprios filhos, é a divindade que, através do tempo e da
morte, causa “o retorno do que surge” sua origem amorfa.
V
O segundo estágio do “trabalho menor”, é
dominado por Júpiter, cujo símbolo exibe o crescente lunar junto ao
eixo horizontal da cruz, enquanto que no caso de Saturno o mesmo
crescente está colocado na ponta de baixo do eixo: w. Sob a influência
de Júpiter, portanto, a alma levantou-se a si mesma da terra a qual ela
retornou e da noite do caos inicial, a fim de desenvolver seu poder. Na
linguagem da doutrina hindu, a respeito das tendências fundamentais
da materia (os gunas), deve ser dito que o poder da alma (Mercúrio)
foi libertado do tamas e unificado à rajas. Rajas, contudo, tem o
significado de expansão e desenvolvimento, que no presente caso
significa que o poder sutil foi dissolvido de sua coagulação na
consciência corporal, e tendo sido terra, por assim dizer, agora se
transformou em água e ar. Isso corresponde à sublimação.
Morenius disse: “Quem quer que saiba como
purificar e alvejar a alma e permitir-lhe subir acima, haverá
conservado bem o ser corpo e o libertado de toda a escuridão,
negrume e odor maléfico... ele será então capaz de trazer de volta a
alma ao corpo, e na hora de sua unificação grandes maravilhas
ocorrerão...”.
R Com o terceiro estágio, dominado pela Luz,
a cor branca é completada. O crescente lunar levantou-se a si mesmo
acima da cruz dos elementos ou tendências cósmicas e dissolveu suas
oposições. Todas as potencialidades da alma, contidas no caos inicial,
foram agora completamente desenvolvidas e foram unidas uma com a
outra em um estado de pureza indivisa. Este é o limite mais externo da
“solução”, e é seguido por uma nova “coagulação”. Do ponto de vista
cristão, esse estado da alma corresponde simbolicamente à Santíssima
Virgem, em sua prontidão para receber a Palavra Divina, e nesse
sentido é significativo que a Virgem seja frequentemente retratada
173
entronizada sobre o Crescente.
No livro The Forgotten Word94, Bernardus
Trevisanus escreveu sobre essa realização do “trabalho menor”: “Eu
lhe digo, tendo Deus como minha testemunha, que esse Mercúrio,
quando ele foi sublimado, foi revestido em tão puro branco que ele
parecia neve no topo de uma montanha muito alta. Ele tinha um brilho
fino e cristalino, do qual, quando o vaso foi aberto, emanou um
perfume tão doce que nada parecido poderia ser encontrado na terra.
Eu, contudo, que falou a você, sei bem que esse maravilhoso brilho
apareceu ante meus olhos, que eu toquei a natureza fina e cristalina
com as minhas próprias mãos e com o meu próprio olfato eu senti a
maravilhosa doçura. Eu chorei com alegria e espanto frente a tão
grande maravilha. Bendito seja o Eterno, Altíssimo e Glorioso Deus,
pois ele escondeu tantos presentes maravilhosos nos segredos da
natureza, e permitiu a alguns homens que o vissem. Eu sei que quando
você sabe as causas dessa disposição, você pode perguntar: que tipo
de natureza pode ser essa que, vindo de algo corruptível, apesar disso,
contém em si mesma algo de completamente celestial? Ninguém pode
narrar todas as maravilhas. Talvez, contudo, virá um tempo no qual eu
poderei falar a você algumas coisas especiais sobre essa natureza, que
o senhor ainda não me permitiu comunicar por escrito. Seja como for,
quando você tiver sublimado esse mercúrio, pegue ele fresco e jovem,
juntamente com o seu sangue, e então ele não se tornará velho, e o dê
a seus pais, o Sol e a Lua, então a partir dessas três coisas – Sol, Lua e
Mercúrio – nosso amálgama pode ser produzido...”.
Deve ficar claro, a partir dos símbolos
planetários, que os três estágios do “trabalho menor” correspondem ao
movimento ascendente, pois primeiramente a Lua estava debaixo da
cruz, então junto ao seu eixo horizontal, e finalmente ela reinava
sozinha: em contraposição, os três estágios seguintes do “grande
trabalho” descreve o movimento descendente:t U q, e aqui o sol
aparece primeiramente sobre a cruz, e então cruz abaixo quando
finalmente ele fica sozinho, trazendo tudo de volta ao centro.
Os primeiros três estágios correspondem à
“espiritualização do corpo”; os últimos três à “corporificação do
espírito” ou à “fixação do volátil”. Enquanto o “trabalho menor” tem
como sua meta a reconquista da pureza e receptividade original da
alma, a meta do “trabalho menor” é a iluminação da alma pela
revelação do Espírito dentro dela. Essa sequência de seis estágios
94 La Parole délaissée em Le Voile d´Isis, Paris, 1931, p. 461.
174
pode ser transposta a todos os tipos de realização espiritual, mas
apesar disso continua sendo não mais que um esquema, pois nenhum
dos dois movimentos (o ascendente da alma e o descendente do
Espírito), podem ser inteiramente separados um do outro. O
desenvolvimento de uma flor é o trabalho do Sol, mesmo que o Sol
apenas comece a ter seu verdadeiro e completo efeito quando a flor
está madura o suficiente para se abrir aos raios do Sol.
T O quarto estágio – o primeiro do “grande
trabalho” – é dominado por Vênus. Em seu signo, o Sol de ouro, e o
Espírito, o enxofre incombustível, aparece sobre o mastro da cruz. O
Sol engole a Lua, e o seu poder formador imprime mais uma vez a
cruz dos elementos. “No começo”, diz a Turba Philosophorum95, a
mulher em cima do homem, e no fim o homem está em cima da
mulher”. Primeiramente o poder “volátil” do Mercúrio feminino
prevalece sobre os corpos sólidos, cuja forma é manifestada de modo
passivo pelo enxofre. Mais tarde, entretanto, o poder fixador do
enxofre prevalece sobre o Mercúrio volátil e engendra uma
cristalização nova, e agora ativa, da forma alma-corpo.
Essa “nova criação”, contudo, ainda não é
perfeita, já que o Sol espiritual, como aparece aqui, continua ligado à
cruz dos elementos, e esta é a razão pela qual os alquimistas dizem a
respeito do cobre, o metal de Vênus, que nele o poder corante do
Enxofre (a essência do ouro) realmente torna-se visível, mas ele
permanece instável e grosseiro em razão da oposição contida nos
quatro elementos.
U O quinto estágio – o segundo do “grande
trabalho” – é dominado por Marte. No signo de Marte (as razões para
escrever desta forma já foram explicadas) o Sol ocupa uma posição
similar à da Lua no signo de Saturno. Os significados dos dois
símbolos – Saturno e Marte – são, todavia, opostos um ao outro,
embora ambos efetivamente representem um tipo de morte e extinção;
mas sob o “balançar” de Marte, não há dúvida sobre a condição
caótica; pelo contrário, há aqui uma descida ativa do Espírito ao nível
mais baixo da consciência humana, de modo que o corpo, em si
mesmo, está completamente penetrado pelo “enxofre incombustível”.
Assim como o ferro, o metal de Marte, o poder fixativo do enxofre,
embora inteiramente presente, não pode ainda manifestar
completamente o seu brilho, já que nesse estágio do trabalho, o
Espírito aparece submergido no corpo e como que extinto nele. Essa é
95 Bibl. des phil. chim.
175
a coagulação “externa”, e o limiar da realização final – a
transformação do corpo em Espírito feito forma.
O mais alto significado contido no símbolo de
Marte – aquele que se prolonga para fora da alquimia mesma – é a
“encarnação da Palavra Divina”. Em um certo sentido, isso implica
uma certa humilhação do Divino, já que como “Luz” ele aparece nas
trevas do mundo. A realização alquímica, todavia, pode apenas ser um
reflexo distante dessa encarnação.
Artephius escreveu: “... As duas naturezas
modificam-se reciprocamente, o corpo “incorporando” o Espírito, e o
Espírito transmutando o corpo em um Espírito colorido (i. e.
qualitativo) e branco (i. e. puro)... fervê-lo (i. e. o corpo) em nossa
água branca, ou seja, no Mercúrio, até que ela seja dissolvida na
escuridão. Ao fervê-la por um longo tempo, ela irá perder sua
escuridão e finalmente o corpo dissolvido surgirá juntamente com a
alma branca, um misturado com o outro. Eles irão se mesclar de tal
forma que nunca mais novamente serão separados um do outro. Então
de fato o Espírito irá se unir com o corpo em perfeita harmonia, e
então juntos eles se tornarão algo imutável. Essa é a dissolução do
corpo e a fixação do Espírito, ambos os processos constituindo um e o
mesmo trabalho”96.
Q
A realização do “grande trabalho” é
expressada pelo símbolo do Sol. Ele é distinto do disco solar como
parte constituinte dos outros símbolos planetários por ter seu ponto
central representado. Assim o que estava apenas incipiente e
potencialmente presente nos primeiros estágios é aqui manifesto. Na
forma completa, que em si mesma permanece finita, o conteúdo
infinito é visível – está presente visível e invisivelmente.
O mesmo símbolo também relembra a
amêndoa na fruta, e o embrião no útero. Isso está de acordo com o
simbolismo genético da alquimia.
Essa fase do trabalho é também a realização da
cor vermelha, da qual Nicolas Flamel, em sua elucidação das “figuras
hieroglíficas”, escreveu: “No campo das violetas escuras, um homem
violeta-vermelho segura o pé de um leão vermelho-escarlate, que tem
asas e aparentemente está carregando o homem. O campo de violetas
escuras significa que a pedra, através de uma cuidadosa fervura,
recebeu lindas vestes laranjadas e vermelhas, e que a sua completa
digestão (indicada pela cor laranja) a despojou de suas antigas vestes
96 Bibl. des. phil. chim.
176
cor laranja. A cor vermelho-escarlate do leão voador, que se assemelha
ao puro e caro escarlate das sementes de romã, indica que essa cor está
agora genuína e harmoniosamente completada. É como um leão que
devora toda a natureza puramente metálica e a transforma em sua
própria substância, especificamente em ouro verdadeiro e puro, mais
fino que aqueles das melhores minas.
“Em razão disso, a cor em questão tem o poder
de afastar o homem desse vale de lágrimas, vale dizer, do mal, da
miséria e da doença, ao levantá-lo com suas próprias asas da água suja
do Egito (os pensamentos ordinários dos mortais), e então ele irá
desprezar a vida mundana com suas riquezas, e pensar dia e noite em
Deus e em seus santos, desejando o Empíreo, e sedento das doces
fontes da eterna esperança.
“Deus seja louvado eternamente por nos dar a
graça de ver essa maravilhosa e completamente perfeita cor púrpura,
essa maravilhosa cor dos crisântemos dos campos e rochas, essa cor
de Tiro97, brilhante e ardente, incapaz de qualquer adulteração ou
mudança, sobre a qual nem mesmo o Céu ou o Zodíaco tem poder ou
força, e cujo radiante e ofuscante esplendor parece, em certo sentido,
comunicar ao homem alguma coisa supraceleste, espantando-o,
amedrontando-o, ou aterrorizando-o quando ele o olha”98.
Representação do Mercúrio bissexual (“Rebis” = res bis), da
“Aurelia Occulta Philosophorum” de Basilius Valentinus, e no
97 O púrpura é produzido em Tiro.
98 Bibl. des. phil. chim.
177
“Theatrum Chemicum”, Argentorati, 1613, vol. IV. – O andrógino
hermético se coloca sobre o dragão da Natureza, que está sobre a
esfera alada da materia prima. O compasso e o esquadro nas mãos
do andrógino correspondem ao Céu e à Terra, aos poderes
masculino e feminino. No lado masculino está Vênus, Marte e o Sol,
e do lado feminino estão Saturno, Júpiter e a Lua. No topo está o
Mercúrio perfeito.
Em um texto de Basilius Valentinus há uma
representação do andrógino masculino-feminino, que simboliza a
realização do trabalho alquímico, com os símbolos dos sete planetas,
em tal ordem que os três signos solares correspondem ao lado
masculino do andrógino, e os três signos lunares, ao lado feminino,
enquanto o símbolo andrógino de Mercúrio representa a “pedra
angular” entre as duas séries. Isso dá origem ao seguinte esquema, no
qual os estágios dos trabalhos “menor” e “maior” serão de novo
reconhecidos.
s
R
v
w
q
t
Em um certo sentido (e independentemente
do significado astrológico dos mesmos símbolos), os símbolos à
direita podem ser chamados ativos, e aqueles à esquerda,
passivos, já que o “trabalho menor” efetua a prontidão ou
preparação da alma, e o “trabalho maior” a revelação espiritual.
Contudo, para ser capaz de reconhecer que os símbolos
individuais correspondem um ao outro em pares, é necessário
recordar que a ordem de cada série (como descrita até agora) está
na direção oposta daquela da outra, pois uma delas está
subordinada à subida da Lua, e a outra, à descida do Sol (esses
dois movimentos ocorrem no curso do trabalho). Quando, pelo
contrário, ambos os movimentos são vistos em paralelo, os
símbolos serão ordenados como segue:
178
s
R
v
w
q
t
A partir disso pode-se ver claramente que
para todo aspecto ativo há um correspondente aspecto passivo.
Saturno representa o “rebaixamento”, Marte uma “descendência
ativa”. O primeiro símbolo expressa a extinção da alma egóica, o
segundo a vitória do Espírito. No próximo nível, Júpiter
corresponde ao desenvolvimento da receptividade da alma,
enquanto Vênus corresponde ao despertar do Sol interior. A Lua
e o Sol, em si mesmos, encarnam os dois polos em seu estado
puro, e o Mercúrio comporta ambas as essências em si mesmo99.
99 Para ver como esses seis estágios constantemente ocorrem como estágios
fundamentais em qualquer espécie de realização espiritual, pode-se consultar
Stations of Wisdow, de Fritjof Schuon, em especial o capítulo final, que traz o
mesmo título. (John Murray, Londres, 1961).
179
CAPÍTULO 16
A TÁBUA DE ESMERALDA
O significado e estrutura do trabalho
alquímico estão resumidos na “Tábua de Esmeralda” (Tabula
Smaragdina). Ela se apresenta a si mesma como uma revelação
de Hermes Trismegistos, e como tal foi aceita pelos alquimistas
medievais. A mais antiga menção a esse respeito pode ser
encontrada em um texto do século VIII, por Jâbir ibn Hayyân, e
uma tradução latina já era conhecida de Santo Alberto Magno.
Seu estilo, contudo, indica que é claramente de origem préislâmica. E como está em completo acordo com o espírito da
tradição hermética – como os alquimistas concordam à
unanimidade – não há razão convincente para duvidar de sua
conexão com as origens do hermetismo. Isso deixa aberta a
questão sobre se o nome Hermes representava um nome ou uma
função profético-sacerdotal decorrente de Hermes-Thoth.
Uma tradução da “Tábua de Esmeralda”,
de sua versão latina, é dada abaixo. Para o esclarecimento de
certos pontos, foi feita menção também à versão arábica100.
“1. A verdade, certamente e sem dúvida, o
que está abaixo é como o que está acima, e o que está acima é
como o que está abaixo, para realizar os milagres de algo.
2. Assim como todas as coisas procedem
do Uno, através da meditação desse Uno, então também elas são
nascidas dessa coisas única por adaptação.
3. Seu pai é o Sol e sua mãe é a Lua. O
vento o levou em seu ventre e sua protetora é a terra.
4. É o pai de todas as maravilhas do mundo
inteiro.
5. Sua força é perfeita se é convertida em
terra.
6. Separar a terra do fogo e o sutil do
grosseiro, suavemente e com grande prudência.
7. Ele emerge da terra ao céu e desce
novamente do céu à terra, e assim adquire o poder das realidades
100Ver J. F. Ruska, Tabula Smaragdina, Heidelberg, 1926.
180
acima e das realidades abaixo. Desse modo você adquirirá a
glória do mundo inteiro, e toda a escuridão se apartará de você.
8. Essa é a força das forças, pois ela
conquista tudo o que é sutil e penetra em todo o sólido.
9. Assim o pequeno mundo é criado de
acordo com o protótipo do grande mundo.
10. A partir disso, e desse modo,
maravilhosas aplicações são feitas.
11. Por essa razão eu me chamo Hermes
Trismegistos, pois eu possuo as três partes da sabedoria do
mundo inteiro.
12. Terminado está o que eu disse a
respeito da obra do Sol”.
*
“1. A verdade, certamente e sem dúvida, o
que está abaixo é como o que está acima, e o que está acima é
como o que está abaixo, para realizar os milagres de algo.”
Na versão latina, o começo é como se
segue: Verum, sine mendacio, certum et verissimum, mas a
interpretação de Jâbir da expressão “Na verdade, certamente e
sem dúvida” (haqqân, yaqînân, lâ shakka fih) é clara, pois as
palavras “em verdade” se referem à fonte objetiva da revelação,
enquanto as palavras “certamente e sem dúvida” referem-se a
seu reflexo subjetivo no homem. A próxima sentença (a parte
principal da primeira cláusula) tem uma formulação ligeiramente
diferente na versão árabe, e aparentemente dá um diferente
significado: “O mais alto vem do mais baixo e o mais baixo, do
mais alto”. Isso se refere à dependência recíproca do ativo e do
passivo, no sentido de que a forma essencial não pode ser
manifestada sem a materia passiva, assim como, por outro lado,
o passivo potencialmente pode apenas alcançar desenvolvimento
sob a influência do polo ativo. Ademais, no “grande trabalho”, a
eficácia do poder espiritual depende da preparação do
“receptáculo” humano e vice-versa. Tudo isso, porém, é apenas
mais um exemplo da “correspondência recíproca” de “acima” e
“abaixo”, como o texto latino expressa. - “Para realizar os
181
milagres de algo”, quer dizer, do trabalho interior. “Acima” e
“abaixo” estão assim relacionados a essa coisa, e se
complementam em suas relações.
“2. Assim como todas as coisas procedem
do Uno, através da meditação desse Uno, então também elas são
nascidas dessa coisas única por adaptação.”
Isso significa que o trabalho hermético vem
de uma única substância, seguindo o padrão (e como o inverso, a
imagem “substancial”) da emanação do mundo a partir do Único
Ser Divino, por meio do Espírito Uno.
Em vez de meditatione unius (“pela
meditação do Uno”) alguns manuscritos registram mediatione
unius (“pela mediação do Uno”). Isso não altera essencialmente
o sentido, já que o que é significado aqui é que a luz indivisa e
invisível do Uno incondicionado é refratada na multiplicidade
pelo prisma do Espírito. Platino ensinou que o Espírito (nous)
constantemente contempla a Unidade Suprema, sem nunca ser
capaz de compreendê-lo ou penetrá-lo complemente, e que por
essa contínua contemplação ele manifesta o todo “multilateral”,
assim como uma lente transmite a luz que ela recebe como um
feixe de raios. A expressão árabe tadbîr, que em algumas versões
aparece neste ponto, tem o duplo significado de “consideração” e
“exposição” ou “dedução”. Em vez de adaptatione (“por
adaptação”) Basilius Valentinus diz conjuntione (“por
combinação”).
“3. Seu pai é o Sol e sua mãe é a Lua. O
vento o levou em seu ventre e sua protetora é a terra.”
O Sol como pai da “pedra” é o espírito
(nous), enquanto a Lua é a alma (psyque). “O vento o levou em
seu ventre”: O vento, que carrega a semente espiritual em seu
corpo, é o sopro vital, e mais genericamente a “matéria sutil” do
mundo intermediário que se estende entre o céu e a terra – ou
seja, entre o mundo supraformal (ou puramente espiritual) e o
mundo corporal. O sopro vital é também o mercúrio, que contém
a semente do ouro em estado líquido - “A sua protetora é a
terra”, ou seja, o corpo como realidade interna.
182
“4. É o pai de todas as maravilhas do
mundo inteiro.” “Maravilhas” é a tradução aproximada de
thelesma, do qual “talismã” é derivado. Um talismã (do árabe
tilism) é, estritamente falando, um símbolo no qual alguma coisa
do poder do seu protótipo entrou. O símbolo foi idealizado em
uma situação cósmica particular (constelação) e com uma
concentração espiritual correspondente. Uma ação teúrgica dessa
sorte é baseada na correspondência qualitativa entre a forma
visível e o modelo invisível, e também na possibilidade de tornar
essa correspondência efetiva por meio de uma espécie de
“condensação” no plano sutil de um estado espiritual. Isso
explica a similaridade entre o talismã como o portador de uma
influência invisível e o elixir alquímico como o fermento da
transformação metálica.
“5. Sua força é perfeita se é convertida em
terra.” Vale dizer, quando o espírito está “incorporado”, o volátil
se torna fixo.
“6. Separar a terra do fogo e o sutil do
grosseiro, suavemente e com grande prudência.” A separação da
terra, do fogo e do grosseiro, significa a “extração” da alma a
partir do corpo.
“7. Ele emerge da terra ao céu e desce
novamente do céu à terra, e assim adquire o poder das realidades
acima e das realidades abaixo.” – A “dissolução” da consciência
de toda “coagulação” formal é seguida por uma “cristalização”
do Espírito, e então ativo e passivo são perfeitamente unidos.
Assim a luz do Espírito se torna constante. – “Desse modo você
adquirirá a glória do mundo inteiro”, especificamente pela sua
união com o Espírito, que é a fonte de toda a luz. – “E toda a
escuridão se apartará de você.”: Isso significa que a ignorância, o
engano, a incerteza, a dúvida e a tolice serão removidas da
consciência.
“8. Essa é a força das forças, pois ela
conquista tudo o que é sutil e penetra em todo o sólido.” – O
183
sutil ou o volátil (do árabe latîf) apenas pode ser conquistado
pela sua união com o sólido ou corporal, assim como só se pode
reter um estado de espírito associando-o a uma imagem concreta.
A fixação alquímica é, apesar de tudo, mais interior, e é
relacionada àquilo que foi dito acima sobre o papel da
consciência corporal como suporte de estados espirituais.
Através de sua união com o Espírito, a consciência corporal
mesma se torna um poder puro e penetrante que pode até mesmo
ter um efeito exterior.
Sobre isso Jabîr escreveu: “Quando o
corpo, em seu estado de solidez e dureza, tiver sido tão alterado a
ponto de se tornar puro e luminoso, ele se torna como se fosse
uma coisa espiritual, que penetra os corpos, embora ele
mantenha a sua própria natureza, que o faz resistente ao fogo.
Nesse momento, ele se mistura com o Espírito, pois ele se tornou
puro e livre, e seu efeito sobre o Espirito é torná-lo constante. A
fixação do Espírito neste corpo segue o primeiro processo, e
ambos são transformados, cada um assumindo a natureza do
outro. O corpo se torna um Espírito, e assume dele sua pureza,
brilho, extensibilidade, colocação e todas as outras propriedades
do Espírito. O Espírito, por sua vez, torna-se um corpo e adquire
deste último a resistência ao fogo, a imobilidade e a dureza. De
ambos os elementos nasce uma substância iluminada, que não
possui nem a solidez dos corpos nem a pureza dos espíritos, mas
precisamente assume uma posição intermediária entre os dois
extremos...”101
“9. Assim o pequeno mundo é criado de
acordo com o protótipo do grande mundo.” – Na versão latina,
essa cláusula está assim escrita: “Assim o mundo é criado”. O
texto árabe, seguido aqui, é obviamente mais completo. O
“pequeno mundo”, perfeita imagem do “grande mundo”, é o
homem, quando ele realizou sua natureza original, que foi “feita
à imagem de Deus”.
“10. A partir disso, e desse modo,
maravilhosas aplicações são feitas.” – No texto arábico está
assim: “Esse caminho é atravessado pelos sábios”.
101Ver Paul Krauss, Jabîr ibn Hayyân, Cairo, 1942-43.
184
“11. Por essa razão eu me chamo Hermes
Trismegistos, pois eu possuo as três partes da sabedoria do
mundo inteiro.” – Trismegistos quer dizer “três vezes grande” ou
“três vezes poderoso”. As “três partes da sabedoria”
correspondem às “três grandes divisões do universo”,
especificamente os domínios espiritual, psíquico e corporal,
cujos símbolos são o céu, o ar e a terra.
“12. Terminado está o que eu disse a
respeito da obra do Sol” – De operatione solis: “do trabalho do
sol”; mas isso também pode significar: “a respeito do trabalho do
ouro” ou “a respeito da produção do ouro”.
Todo o conteúdo da Tábua da Esmeralda é
como que uma explicação do Selo de Salomão, cujos dois
triângulos, respectivamente, representam a essência e a
substância, forma e matéria, espírito e alma, enxofre e mercúrio,
o volátil e o estável, o poder espiritual e existência corporal:
185
CAPÍTULO 17
CONCLUSÃO
Eu espero que a exposição feita possa
servir para resgatar o horizonte espiritual próprio da alquimia –
“a arte real” – das suas simplificações enganadoras,
inevitavelmente presentes em uma abordagem puramente
histórica. Assim como os objetos no espaço parecem menores
quanto mais distantes eles estão, assim o que quer que esteja
distante no tempo aparece para nós reduzido e simplificado na
forma – e quanto maior é o hiato entre uma era e a outra, tanto
mais isso acontece. Entre nossa era e a era à qual a alquimia
pertence, o hiato é incomensuravelmente largo. Assim, não é
surpresa que o pesquisador moderno, sem qualquer
conhecimento das artes espirituais, que em certas culturas são
praticadas até hoje, veja a alquimia como se olhasse a partir do
outro lado do telescópio. Ele não tem, em regra, não apenas o
suporte doutrinal que poderia permitir-lhe compreender a
linguagem simbólica dos alquimistas, mas – o que é mais
relevante – ele não tem a possibilidade de nenhuma comparação
prática, que poderia tornar claro para ele o que, nesse domínio, é
possível e provável.
A natureza – ou seja, a natureza corporal e
psíquica do homem e das coisas – pode ser abordada por
diversos ângulos e, sendo assim, cada uma das “dimensões”
corresponde a um dado ponto de vista, tanto lógica como
praticamente inexaurível. Assim, por exemplo, a química
empírica moderna pode ser estendida indefinidamente sem que
suas descobertas nunca tenham partido daquela dimensão
ontológica particular que é determinada por suas premissas. Por
outro lado, uma ciência tradicional, como a alquimia, pode
considerar e lidar com as mesmas informações naturais (com não
menos lógica) de um ponto de vista completamente diferente –
mas do mesmo modo inexaurível. Um exemplo disso é a
medicina tradicional dos chineses, indianos e tibetanos, métodos
os quais são bastante estranhos às concepções modernas de
natureza, mas que não são, por essa razão, menos eficazes.
186
A ciência moderna tem um olhar
implacável para os erros “infantis” que existem “à margem” da
cosmologia tradicional – mas que não tem consequências sérias.
O que não se verá, porém (mas o que o olhar de uma arte
espiritual tal qual a alquimia vê como algo de um significado
irresistível) são suas próprias infrações – bastante imprevisíveis
em suas consequências – contra o equilíbrio do homem e da
natureza, para não falar da reivindicação completamente
injustificável à totalidade e do inalcançável e quase absoluto
repúdio do suprassensível e do incorpóreo, que caracterizam a
ciência moderna.
O relacionamento do homem com o meio
ambiente natural varia não apenas teoreticamente, mas também
praticamente, e não apenas subjetivamente, mas também do
ponto de vista do meio ambiente mesmo.
O mundo físico não é independente do
psíquico, muito embora a perspectiva particular do ego permita
que a esfera psíquica do ser individual apareça como algo
inteiramente separado e isolado em si mesmo. Em épocas e
culturas onde a consciência egóica é menos “coagulada” e a
relação com meio ambiente natural não é dominada por
preconceitos de uma perspectiva puramente racionalista, pode
acontecer mais facilmente que os poderes da alma exerçam uma
influência direta e sem intervenções mecânicas no mundo
externo. Isso é especialmente verdade a respeito de tradições de
forma “arcaica” para as quais fenômenos como iluminação,
chuva, vento e crescimento são essencialmente símbolos. Aqui
pode acontecer que ações particulares sagradas provoquem um
eco cósmico externo. Isso pode ser observado ainda hoje entre
certos povos xamânicos, tais como os índios norte-americanos.
Nós devemos situar a alquimia em tais
cenários, que são seu “lar” original e adequado, para fazer justiça
a certos ensinamentos sobre o efeito do elixir, dos quais nem
todos devem ser tomados meramente no sentido não-literal mais
alto. A transmutação dos metais comuns em ouro não é
certamente a verdadeira meta da alquimia, e nem poderá ser
alcançada quando é procurada apenas para o seu próprio bem.
Apesar disso há evidências em favor das realizações visíveis do
magistério, que não podem simplesmente ser postas de lado com
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um tapa. O simbolismo dos metais é tão organicamente
relacionado com o trabalho interior da alquimia, que em poucos
casos em que ele foi realizado internamente, também ocorreu no
plano externo – não como resultado de qualquer operação
química, mas como uma operação externa concomitante e
espontânea de um estado espiritual extraordinário. A ocorrência
da transformação espiritual é também um milagre, e certamente
um milagre não é menor que a súbita produção de ouro a partir
de um metal comum.
O arqueiro japonês, iniciado nos mistérios
do zen, pode atingir o alvo de olhos fechados, em razão de sua
concentração interna e união íntima com a essência atemporal no
momento do disparo102. Do mesmo modo, a transformação física
dos metais foi um símbolo que manifestou exteriormente a
santidade interna tanto do ouro como do homem – do homem,
quer dizer, que completou o trabalho interno.
102Ver Eugen Herrigel (Bungaku Hakushi), Zen in the Art of Archery, Routledge
and Kegan Paul, Londres, 1953.
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LISTA CRONOLÓGICA DOS AUTORES
HERMÉTICOS E MÍSTICOS CITADOS
Hermes Trismegistos: data indeterminada, pré-cristão
Plotino: 203-69
Synesius: (ou Synesios): século IV
Herakleios I (Heraclius), Imperador Bizentino: 640-1
Khalid: final do século VII
Morienus: final do século VII
Jâbir Ibn Hayyân: século VIII
ar-Razi, Abu-Bekr: 826-925
Senior Zadith (Turba Philosophorum): provavelmente século IX
Artephius: data desconhecida, medieval
Su Tung-P´o: cerca de 1110
Muhyi ´d-Dîn Ibn “Arabî: 1165-240
St. Alberto Magno (Albertus Magnus): 1193-280
Dante Alighieri: 1265-321
'Abd al-Karîm al-Jîlî: nascido em 1366
Po Yu-shuan: século XIII
Abul-Qâsim al-Irâqî: século XIII
Geber: provavelmente século XIII
Ruysbroek, Jan van: 1294-381
Nicolas Flamel: 1330-417
Bernardus Trevisanus: 1406-90
Basilius Valentinus: final do século XV
Denis Zachaire: começo do século XVI
William Shakespeare: 1564-616
Jakob Boheme: 1575-624
Johann Valentin Andreae: 1586-654
Fra Marcantonio: data desconhecida
Johann Georg Gichtel: 1638-710
Philatetes, Irenaeus: final do século XVII
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BIBLIOGRAFIA DOS TRABALHOS CLÁSSICOS
1. Fontes primárias
M. Berthelot, La chimie au moyen âge, I-III. Paris, 1893.
M. Berthelot, Collection des alchimistes grecs, I-III. Paris, 18878.
Bibliothèque des philosophes chimiques. Paris, 1741.
E. Darmstaedter, Die Alchemie des Geber, 1922.
A.-J. Festugière, Corpus Hermeticum, French translation. Paris,
1945.
Paul Krauss, Jâbir ibn Hayyân, I-II. Cairo, 1942-3.
Manget, Bibliotheca chemica curiosa, I-II. Geneva, 1702.
J. F. Ruska, Arabische Alchemisten, I-II. 1924.
J. F. Ruska, Tabula Smaragdina. Heidelberg, 1926.
J. F. Ruska, Turba Philosophorum. 1931.
Theatrum Chemicum, I-VI. Strasbourg, 1659.
Claude d´Ygé, Nouvelle Assemblé des philosophes chymiques.
Paris, 1957.
2. Trabalhos gerais
Maurice Aniane, Notes sur l´alchimie, em Yoga, science de l
´homme intégral. Cahiers du Sud. Paris, 1956.
Mircea Éliade, Forgerons et alchimistes. Paris, 1956.
Julius Evola, La tradizione ermetica, Bari, 1931 e 1948.
E. J. Holmyard, Alchemy. Pelican Books. Londres, 1956.
Edmund von Lippmann, Entstehung und Ausbreitung der
Alchemie. I. 1919, II, 1931.
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