a ação afirmativa na suprema corte dos eua e sua

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a ação afirmativa na suprema corte dos eua e sua
JOÃO FERES
OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA
E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL
A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE
DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL
João Feres Júnior
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IESP/UERJ)
[email protected]
Resumo: O presente artigo examina criticamente a recepção por parte da grande mídia brasileira da
notícia de que a Suprema Corte dos EUA permitiu que os estados, se assim decidirem, revoguem suas
políticas de ação afirmativa de recorte étnico racial. Mostro que a notícia foi enquadrada pela Folha de S.
Paulo como se a corte tivesse declarado a inconstitucionalidade da política, enquanto o jornal O
Globo retratou corretamente a decisão da corte no texto da reportagem, ainda que a notícia em si contivesse
títulos que indicavam interpretação adversa, ou seja, que a constitucionalidade das ações afirmativa de fato
tivesse sido atingidas pela decisão da corte. Em seguida, interpreto a decisão da corte norte-americana à luz
de sua jurisprudência sobre ação afirmativa para mostrar que os enquadramentos dos dois jornais, a Folha
mais do que o Globo, são francamente distorcidos e enviesados.
Palavras-chave: grande mídia; ação afirmativa; Suprema Corte; Estados Unidos.
Abstract: The present article critically examines the reception by part of the great Brazilian media of the
news that the Supreme Court of the USA has allowed the states to, if so desired, revoke their affirmative
action policies of an ethnic and racial nature. I present how the news were framed by Folha de Sao Paulo
as if the Court had declared the unconstitutionality of such policies; whereas the newspaper O Globo
correctly presented the decision of the Court in the text of the article, although the article itself contained
titles that indicated an adverse interpretation, that is, that the constitutionality of affirmative actions had
truly been affected by such decision. Following, I interpret the decision of the North-American court in
light of its jurisprudence concerning affirmative action in order to show that the framing of both
newspapers, Folha more than O Globo, are openly distorted and biased.
Keywords: great media, affirmative action, Supreme Court, United States.
No dia 22 de abril, em pleno feriado, recebi telefonemas de alguns
jornalistas que me pediram para “repercutir” a notícia de que a Suprema Corte
dos EUA teria permitido, em votação cujo resultado foi 6 a 2, aos estados
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daquele país abolir, se assim decidirem, políticas de ação afirmativa baseadas
em critérios étnicos e raciais.
Respondi diligentemente às perguntas, mas como nunca se pode garantir
que opiniões sejam reproduzidas de maneira fidedigna ou de modo
suficientemente extenso para fazerem sentido, desenvolvo abaixo o que penso
sobre o assunto.
É preciso ressaltar que o interesse maior dos jornalistas era saber quais as
consequências desse ocorrido para as políticas de ação afirmativa no Brasil.
Um até me perguntou se a partir de agora começaria um novo movimento de
rechaço às cotas raciais em nosso país. A demanda por previsão já é, em si,
incômoda. Sou do tipo de cientista social que prefere falar mais sobre o que é
e o que já foi do que sobre o que pode ser. Isto é ainda mais verdadeiro
quando o serviço é gratuito, como no caso em que nos prestamos a informar
a imprensa, imprensa essa, por seu turno, quase toda privada e oligopolizada.
Isto é, ganhamos quase nada de prestígio se acertamos a previsão e passamos
por incompetentes se erramos, para os poucos que prestam atenção a estas
matérias.
Ainda assim, escolhi responder. Descontando a vaidade, há sempre o
perigo de o espaço ser ocupado por uma opinião ainda pior do que a minha.
Claro que, ao responder, levei em consideração alguns fatos importantes.
Nossos estudos no Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa GEMAA1 revelam que a grande mídia brasileira apresentou viés contrário às
políticas de ação afirmativa durante os dez anos que se seguiram à
implantação das primeiras iniciativas, na UERJ e na UNEB2, distorcendo
fatos, dando ênfase a enquadramentos negativos, dando mais destaque às
opiniões contrárias do que às favoráveis, etc. Há também o imperativo do
jornalismo diário de produzir notícias mesmo quando o que há para ser
1 Grupo
2
de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa - GEMAA http://gemaa.iesp.uerj.br/
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
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noticiado não é tão relevante assim. Ou seja, repórteres frequentemente se
esforçam para tirar leite de pedra. E, por fim, há também o despreparo
frequente de jornalistas no que toca às matérias que se aventuram a fazer. A
dinâmica da produção já empurra naturalmente para a superficialidade, pois os
repórteres têm que cobrir um sem número de assuntos. Se juntarmos a isto a
crise econômica dos jornais e da mídia tradicional em geral, o que contribui
para deprimir os salários da categoria, temos uma combinação explosiva (ou
seria implosiva?). O caso em questão me pareceu sofrer de uma mistura de
todas estas coisas. Mas vamos aos argumentos.
Minha resposta à pergunta geral foi negativa, para desânimo dos
entrevistadores: não, não acho que essa decisão da Suprema Corte americana
vá ter consequências importantes para o funcionamento das políticas de ação
afirmativa em nosso país. As razões são muitas.
A decisão da Suprema Corte dos EUA, salvo melhor juízo, pois não a
examinei em detalhe ainda, parece não revogar qualquer decisão anterior e
simplesmente afirmar a autonomia dos estados em regular tais políticas. A
Suprema Corte norte-americana decidiu que não há impedimento
constitucional para que os estados legislem acerca deste assunto, isto é, que os
eleitores de Michigan ou seus representantes têm autonomia para legislar
sobre estes assuntos, e, por conseguinte, também os de outros estados. Isto
não significa qualquer declaração de inconstitucionalidade das políticas de
ação afirmativa baseadas em critérios raciais. Em suma, nos EUA tais políticas
continuam sendo consideradas constitucionais, segundo a decisão de Regents of
the University of California v. Bakke, de 1978, que ficou conhecido como caso
Bakke.
É preciso entender o que foi a decisão do caso Bakke para compreender
corretamente o que se passou agora. Allan P. Bakke, um candidato à escola de
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medicina da Universidade da Califórnia em Davis teve sua aplicação rejeitada3
por ser considerado muito velho. Ele então entrou com uma ação contra a
universidade, argumentando que o programa de reserva de cotas para negros,
então em funcionamento, violava os direitos dos candidatos brancos. O caso
foi aceito pela Suprema Corte norte-americana e seu julgamento criou o
padrão de interpretação para as políticas de ação afirmativa em vigor até hoje
nos EUA. Segundo o relator do caso, o juiz Lewis Powell, a diversidade na sala
de aula deveria ser considerada um interesse precípuo do Estado e portanto o
uso de critério racial estava de acordo com a Constituição e o Civil Rights Act,
de 1964. Contudo, o formato de reserva fixa de vagas, as cotas, foi
considerado excessivamente rígido e declarado inconstitucional. O relatório de
Powell foi aprovado por uma pluralidade de juízes da corte, isso acontece
quando vários juízes subscrevem partes da decisão. Em 2003, ao julgar outro
caso contra um programa de ação afirmativa racial, Grutter v. Bollinger, dessa
vez na Universidade de Michigan, a Corte ratificou a opinião de Powell, agora
por maioria.
Ainda no plano da ordem constitucional, é fato que nos EUA a
autonomia legislativa dos estados frente à união é muito maior que no Brasil.
Ainda que historicamente o problema do conflito federativo tenha sido
fundamental nos dois países, não raro dividindo o campo político em dois
polos opostos, as soluções dadas em cada país diferiram no grau de
A expressão “aplicação rejeitada” usada aqui é um anglicismo que tem por função descrever um sistema de
admissão diferente daquele praticado no Brasil e para o qual não temos um correspondente preciso. A
admissão à educação superior dos EUA é geralmente regulada por comitês de professores. Cada programa ou
curso forma um comitê, que por seu turno decide os critérios a serem avaliados e o peso de cada critério,
além de um exame geral chamado SAT (Scholastic Assessment Test) para a graduação e GRE (Graduate Record
Examination) para a pós-graduação, uma série de outros fatores influenciam na classificação final, tais como o
currículo do aluno, tanto as notas como seus interesses intelectuais, sua carta de apresentação, cartas de
recomendação, se é filho de ex-aluno da instituição, se é esportista, se tem alguma capacidade ou qualidade
especial. Quando há políticas de igualdade de oportunidades, dados como cor, gênero e origem dos
candidatos também são levados em consideração. Assim, cada candidato envia para as secretarias dos cursos
nos quais quer entrar pacote com um conjunto de documentos probatórios (application package) requeridos pela
instituição para que sua candidatura seja apreciada pelo comitê.
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centralização, sendo que no Brasil ele tem sido quase sempre maior do que
nos EUA. Contrário ao que muitos possam intuir, em ambos os contextos
foram os movimentos de centralização, e não seus adversários, que permitiram
a expansão de direitos e a inclusão de setores alijados da representação política
e dos serviços do Estado, quebrando os privilégios e poderes locais. A Guerra
Civil Americana é certamente o exemplo mais extremado deste conflito entre
dois projetos de nação, com os localistas em favor da escravidão. O
Movimento pelos Direitos Civis, cem anos depois, é outro importante
exemplo: nessa ocasião os localistas defendiam os direitos dos estados do sul à
segregação racial.
No Brasil, igualmente, exemplos deste tipo abundam. O livro Coronelismo,
Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal retrata bem as consequências deletérias
da descentralização ocorrida durante a república velha para as classes mais
baixas. Saltando também cem anos à frente, vemos como nos dias de hoje, por
não estarem submetidas à legislação federal, as universidades estaduais de São
Paulo resistem à implantação de programas de inclusão efetivos (ver nosso
estudo As políticas de ação afirmativa nas universidades estaduais (2013)4), mantendo
assim estudantes negros e alunos de escola pública com potencial fora de seus
domínios.
Em suma, discursos pseudorrepublicanos de defesa da autonomia local
foram concretamente agenciados para a defesa de privilégios e para a negação
de direitos para setores oprimidos de ambas as sociedades. O exemplo ora
discutido parece emblemático e não desprovido de consequências políticas,
contudo. Ao sinalizar explicitamente que a ação afirmativa racial compete à
autonomia estadual, a Suprema Corte dos EUA cria um incentivo para
políticos, movimentos e lideranças conservadoras daquele país tentarem
proibir tais iniciativas por meio de legislação estadual. Nem isso é em si
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http://gemaa.iesp.uerj.br/publicacoes/levantamento/levantamento1.html
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novidade, pois estados como a Califórnia e o Texas, sob o governador George
W. Bush, entre outros, já fizeram isso no passado.
Já no Brasil, a Lei nº 12.711/20125, também conhecida como Lei de
Cotas, é federal. Assim, ela não pode ser abolida por legislação estadual. Não
adianta aos conservadores brasileiros a mobilização no plano estadual, a não
ser, é claro, em estados onde o sistema estadual de educação superior é
extenso e prestigioso, como é o caso de São Paulo.
Os jornalistas perguntaram também se tal decisão não teria um efeito
simbólico no Brasil, uma vez que as políticas de ação afirmativa daqui eram
inspiradas nas dos EUA. Aqui temos uma concepção parcialmente falsa,
propalada pelos adversários das ações afirmativas no Brasil: a ideia de que
essas políticas foram, no Brasil, copiadas dos EUA. Ainda que o Movimento
dos Direitos Civis norte-americano tenha de fato inspirado movimentos
negros em vários países da chamada diáspora africana, as políticas de ação
afirmativa no Brasil são bem diferentes das norte-americanas. Só para ressaltar
algumas disparidades cruciais, naquele país as cotas foram declaradas
inconstitucionais justamente no julgamento do caso Bakke, de 1978, o mesmo
que declarou constitucional o uso da raça como na seleção de candidatos,
como explicado acima. Já no Brasil, o sistema de reserva de vagas conhecido
como cotas foi o mais adotado desde o começo, como mostrou nossa
pesquisa A ação afirmativa no ensino superior brasileiro (2011)6 e teve sua
constitucionalidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento
da ADPF 1867, de 2012, quando o tribunal por unanimidade rejeitou o pedido
de inconstitucionalidade contra as cotas raciais impetrado pelo partido
Democratas.
Mais importante é notar que nos EUA a ação afirmativa tem um perfil
étnico e racial diferente daquele adotado no Brasil. Lá, tal política é vista, em
5 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm
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http://gemaa.iesp.uerj.br/publicacoes/levantamento/levantamento3.html
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 – ADPF 186
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grande medida, como uma iniciativa para a promoção da diversidade que, por
seu turno, é compreendida como diversidade cultural. Isto é, há uma tendência
de se sobrepor raça e cultura e de se tratar a diferença como sendo ao mesmo
tempo cultural e racial. Assim, a ação afirmativa propriamente se estende a
blacks, ou African Americans, indígenas, mulheres, latinos e outras "minorias". A
ideia de minoria subrepresentada lá é crucial. No Brasil, por outro lado, a ação
afirmativa é raramente tratada sob o prisma da diferença cultural. Os
beneficiários da ação afirmativa de recorte racial são definidos pela Lei Federal
nº 12.711/2012 como pretos e pardos, duas categorias censitárias de
autoidentificação que, a princípio, não estão ancoradas em percepções de
diferença cultural.
Em suma, pelo menos neste plano mais diáfano da influência simbólica,
a decisão da Suprema Corte norte-americana não deverá ter muita
importância, pois as pessoas responsáveis pelo funcionamento destas políticas
aqui no Brasil não me parecem estar por demais preocupadas com os
acontecimentos da política doméstica norte-americana.
Outra razão pela qual tal influência não deve se dar são os momentos
históricos díspares vividos por cada sociedade. A partir do sucesso do
Movimento por Direitos Civis, que culminou com a abolição das Jim Crow
Laws e com a criação de políticas de ação afirmativa na década de 1960, os
EUA experimentaram um período de avanço progressista, com expansão de
direitos e inclusão social respaldadas inclusive pelas decisões da Suprema
Corte, em casos de constitucionalização. Desde a eleição de Ronald Reagan,
contudo, o país atravessa uma fase de acentuado conservadorismo que
perdura até os dias de hoje. Tal conservadorismo se reflete na contração do já
frágil estado de bem-estar social norte-americano, incluindo aí o ataque às
políticas de ação afirmativa, que, como já argumentei em outra ocasião, são
políticas próprias da concepção de igualdade em que se baseia o estado de
bem-estar.
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O Brasil, de seu lado, vive desde a redemocratização um processo de
contínuo avanço das instituições democráticas, expresso também no
aprimoramento de um sistema de direitos sociais para diversos setores
desprivilegiados de nossa população: deficientes, quilombolas, mulheres,
pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, etc. Ou seja, o Estado de BemEstar Social aqui tem se expandido e a criação de políticas de ação afirmativa,
que se espalharam pelo país muito rapidamente nos últimos dez anos, são
parte dessa história (ver nosso estudo A ação afirmativa no ensino superior brasileiro
– 2011).
A
decisão
do
Supremo
Tribunal
Federal,
de
2012,
pela
constitucionalidade das políticas de ação afirmativa racial por unanimidade
sinaliza bem este estado de coisas. Assim, não há porque supor que um fato
pertinente ao âmbito doméstico da política e sociedade norte-americanas
venha a influenciar a posição das instituições e da sociedade brasileira no
tocante a este assunto.
Minhas suspeitas foram, infelizmente, confirmadas em parte. O artigo de
O Globo, do dia 23 de abril, retrata de maneira mais correta os acontecimentos,
deixando claro que não se tratava da declaração de inconstitucionalidade das
políticas de ação afirmativa de recorte racial, mas somente do reconhecimento
da autonomia estadual de legislar sobre o assunto. É importante notar,
contudo, que os títulos da notícia não conduzem ao bom entendimento de seu
conteúdo. Eles são algo distorcidos. O título principal declara: “EUA: decisão
judicial põe em xeque ação afirmativa”. É irônico notar que o texto da matéria
deixa bem claro que não foi isso que ocorreu. Não houve questionamento da
legalidade da política por parte da Corte. O título não é somente bombástico,
ele é equivocado. O texto tem somente um subtítulo de seção, que ocorre no
corpo do texto e serve para separar uma seção de outra. Nele se lê: “COTAS
FERIRIAM CONSTITUIÇÃO”. Esta seção, a maior do texto, tem 7
parágrafos. No primeiro, os autores explicam claramente que o entendimento
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anterior da Suprema Corte norte-americana, a de que raça pode ser usada
como critério de seleção, foi mantido, e que, portanto, as políticas hora em
vigor continuam "válidas". No segundo parágrafo, os jornalistas citam o
argumento do advogado do estado de Michigan, que acusa a ação afirmativa
de violar o princípio da igualdade. Nos parágrafos seguintes até o final do
artigo o texto se volta para o caso brasileiro. Eu e Frei David somos
entrevistados, e, basicamente, concordamos acerca da pouca relevância do
ocorrido para a realidade da ação afirmativa em nosso país. Em suma, mais de
três quartos da seção expressam opinião segundo a qual a ação afirmativa é
constitucional, nos EUA e no Brasil, mas o título captura a opinião
minoritária, do advogado de Michigan. Caso clássico de forte viés de seleção.
A dissonância entre títulos e texto na reportagem de O Globo é
pronunciada a ponto de podermos duvidar se os autores do texto são também
autores dos títulos. Será que não haveria uma mão de editor aí? Será que um
jornalista escreveu os títulos e outro a matéria? Essas são questões que não
tenho como responder.
O caso da Folha de S. Paulo é exatamente inverso na relação textomanchete, mas bem pior do ponto de vista da competência jornalística. A
manchete da matéria é bem descritiva: “Suprema Corte declara legítima lei de
Michigan que veta cotas raciais”. O texto que se segue é muito curto, um
resumo de agência de notícia e não uma reportagem propriamente dita. O
redator anônimo da notícia começa em tom peremptório: “A Suprema Corte
dos Estados Unidos decidiu nesta terça-feira que a raça dos estudantes não
pode mais ser um fator para a admissão nas universidades, em um revés ao
legado do movimento pelos direitos civis dos anos 1960”. Em seguida, o texto
afirma, corretamente, que a corte decidiu pela constitucionalidade da decisão
do referendo de Michigan contra a ação afirmativa racial. Novamente, não
tenho meios para descobrir a causa por trás de um erro tão grosseiro de
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interpretação. A corte nunca produziu tal decisão. O próprio texto, a despeito
de ser tão curto, é contraditório.
Os estudos do GEMAA sobre a cobertura jornalística da ação afirmativa
revelaram viés contrário à política por parte dos dois jornais, expresso no uso
de diferentes técnicas editoriais como uso desequilibrado de fontes,
manipulação de manchetes e títulos (como vimos aqui), desequilíbrio na
representação de opiniões, entre outras.8 Aqui temos mais dois exemplos desta
prática, com a ressalva de que, nos estudos, O Globo se mostra bem mais
militante do que a Folha e, em nosso exemplo, a distorção na pequena notícia
do jornal paulista é bem maior.
Conclusão
No final das contas, o que temos nos dois países é o embate político
entre dois projetos diversos para a democracia liberal. Um que coloca ênfase
no elemento democrático, que é também chamado social-democrático, e outro
que aposta na liberdade do usufruto individual da propriedade frente ao
coletivo. O pensamento de John Rawls em Uma Teoria da Justiça (RAWLS,
1997) continua sendo de grande valia para entendermos e tomarmos posição
nesse debate. Isto porque Rawls demonstra que por dentro da teoria liberal é
possível se justificar a igualdade de oportunidades. Na verdade, Rawls
desnaturaliza a própria ideia de mérito ao postular que as vantagens advindas
da posição social de nascimento são moralmente arbitrárias, pois não derivam
das escolhas das pessoas. Assim, é profundamente contraditório que uma
teoria que foca o indivíduo aceite que alguém tenha seu destino traçado pelo
acidente de ter nascido em uma família pobre e, assim, durante sua vida, seja
incapaz de obter os meios para competir com seus parceiros de sociedade por
Ver Textos para Discussão GEMAA no. 2, O Globo e as ações afirmativas: dez anos de cobertura (2001-2011) e
Textos para Discussão GEMAA no. 3, A Folha de S. Paulo e as ações afirmativas: dez anos de cobertura (2001-2011)
<http://gemaa.iesp.uerj.br/publicacoes/textos-para-discussao/tpd2.html>
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emprego e renda. Ou seja, só podemos falar de mérito quando as condições
iniciais são similares. Caso contrário, temos somente a reprodução do
privilégio. Como bem disse o advogado Oscar Vilhena em audiência do
Supremo Tribunal Federal, o vestibular que por tantos anos vigorou como
única porta de entrada para o ensino superior em nosso país é um sistema de
se premiar, não o mérito, mas a capacidade de investimento que a família tem
na educação de seus filhos. Assim, as famílias de classe alta e média-alta
conseguem pagar as mensalidades das escolas mais caras, que mais bem
treinam os estudantes para o vestibular, e seus filhos têm grandes vantagens
competitivas nestes exames. É difícil caracterizar este estado de coisas como
mérito verdadeiro.
No mais, o estudo da história ensina que nada é totalmente estável no
mundo. Não há garantia alguma de que Brasil e EUA continuem da mesma
maneira, nós mais progressistas e eles mais conservadores. As coisas podem se
reverter: a sociedade é muito complexa, a política está sujeita a uma enorme
gama de fatores de difícil previsão sistemática e de longo prazo, e há sempre a
deusa Fortuna operando sobre as coisas humanas, como já alertava o célebre
pensador florentino renascentista.
Referências
BARBOSA, Flavia; NETO, Lauro. EUA: Decisão Judicial Põe Em Xeque Ação Afirmativa.
O Globo, Rio de Janeiro, 23 abr. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/>
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada E Voto: O Município E O Regime Representativo No
Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1948.
RAWLS, John. Uma Teoria Da Justiça. Traduzido por Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
FOLHA DE SÃO PAULO. Suprema Corte Declara Legítima Lei De Michigan Que Veta
Cotas Raciais. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 abr. 2014. Caderno Mundo. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/04/1443915-suprema-corte-declara-legitimalei-de-michigan-que-veta-cotas-raciais.shtml Acesso em: 23 abr. 2014.
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BRASIL. Lei n° 12.711 de vinte e nove de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas
universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá
outras
providências.
Brasília,
2012.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>
Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014.
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