Capítulo 13 A Igreja Una, Santa, Católica e

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Capítulo 13 A Igreja Una, Santa, Católica e
Capítulo 13
A Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica
Rev. Carlos Eduardo Calvani
Para meditar:
Vocês, portanto, já não são estrangeiros nem hóspedes, mas
concidadãos do povo de Deus e membros da família de Deus.
Vocês pertencem ao edifício que tem como alicerce os apóstolos
e profetas; e o próprio Jesus Cristo é a pedra principal dessa
construção. Em Cristo, toda construção se ergue, bem ajustada,
para formar um templo santo no Senhor. Em Cristo, vocês
também são integrados nessa construção, para se tornarem
morada de Deus, por meio do Espírito.
(Efésios 2.20-22)
Da Igreja o fundamento é Cristo, o Salvador
Em seu poder descansa e é forte em seu amor
Em Cristo bem firmada, segura sempre está
E sobre a rocha eterna, jamais se abalará
(Hino “A Pedra Fundamental” – Hinário Episcopal, n. 306)
Quando o Concílio de Nicéia (325 A.D.) afirmou as quatro marcas da
Igreja (unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade), estava dizendo que
essas características são propriedades essenciais a ela. Jamais poderemos
pensar na Igreja ou falar de seu ministério sem ter em vista essas quatro
marcas. Naturalmente, tal definição também respondia a questionamentos
levantados na época. Afirmar a unidade, por exemplo, era extremamente
importante face ao surgimento de grupos divisionistas, enquanto a afirmação
da apostolicidade remetia à tradição recebida dos primeiros apóstolos.
Havia também, na época, grupos que defendiam um conceito de
santidade no qual não havia espaço para erros. Ou seja, confundiam santidade
com perfeição. Era o caso dos donatistas, seguidores de dois bispos
homônimos, Donato de Cartago e Donato de Nigra. Esses bispos ensinavam
que os sacramentos só eram válidos se fossem ministrados por um clérigo
“santo” e digno, do contrário, perderiam seu valor. O conceito de “santo”, para
eles, era o de alguém sem fraquezas e praticamente sem pecados. Foi um
movimento influenciado também por Montano (estudamos o montanismo
alguns capítulos atrás), Cipriano de Cartago e Tertuliano, importante teólogo
que aderiu ao montanismo. Os donatistas afirmavam que a validade e
santidade de um sacramento dependiam do mérito daquele que o administrava.
Por isso, os donatistas rebatizavam seus adeptos e se consideravam a única
igreja verdadeira. Este grupo sobreviveu só até a conquista muçulmana do
norte da Africa no século VII, mas deixou marcas que até hoje influenciam
grupos cristãos que praticam o rebatismo, por exemplo.
Diante desses problemas fica mais fácil compreender a importância do
Credo afirmar que a Igreja é una, santa, católica e apostólica. No presente
capítulo meditaremos sobre essas “quatro marcas da Igreja”
Una
Quando dirigimos nosso olhar para as diversas denominações cristãs
que existem hoje, parece difícil confessar que a Igreja de Cristo seja una.
Porém, é bom lembrar que o Credo foi redigido quando as divisões ainda não
eram tão escandalosas como hoje. No século IV havia, sim, pequenos grupos
dissidentes (alguns deles já citados neste e em outros capítulos) que, por
razões políticas ou teológicas, optavam por viver sua fé de modo livre,
autônomo e independente. Porém, na época, nenhum desses grupos
consolidou-se como uma denominação cristã. Muitos deles preservaram
durante algum tempo influência apenas em uma ou outra região, enquanto a
maioria se dissolveu com o passar do tempo. A primeira grande divisão na
Igreja só aconteceu por volta do ano 1054, quando as igrejas do lado ocidental
da Europa, lideradas por Roma, desentenderam-se com as igrejas do lado
oriental, lideradas por Constantinopla. Mais tarde, na época das reformas
protestantes do século XVI é que começaram a surgir diferentes expressões do
cristianismo e desde então, esse fenômeno da divisão tem aumentado
crescentemente.
A despeito disso, continuamos confessando que a Igreja é “una”. Haverá
sentido ainda nessa afirmação? A constante afirmação da unidade da Igreja só
pode ser feita quando desviamos nosso olhar desses acidentes históricos que
fazem surgir as denominações. Confessar a unidade da Igreja é reconhecer
que o povo de Deus, formado por pessoas de todas as nações e culturas (Ap
5.7; Jo 17.20-23; I Co 12.12-14; Gl 3.26-28; Ef 2.11-22; 4.4), a despeito de sua
diversidade, é um só, embora se organize de diferentes formas. A Comunhão
Anglicana é apenas uma feição da totalidade da Igreja, e isso está bem claro
em nosso rito de confirmação, quando o bispo pergunta: “Crês que esta Igreja
é parte da verdadeira Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica de Cristo?” (Livro
de Oração Comum, p. 178).
A Igreja é una porque Deus é uno, embora se manifeste como Pai, Filho
e Espírito Santo (João 17.22). A Igreja é una por ser um só rebanho e ter um só
pastor (João 10.16). Trata-se de um só corpo, com uma só cabeça, que é
Cristo. Tal compreensão sempre garantiu aos anglicanos grande abertura
ecumênica. Além disso, a Igreja é una porque tem uma só missão, recebida de
Deus e definida em nosso Catecismo também com um apelo à unidade: “A
missão da igreja é restaurar todos os povos à unidade com Deus e de cada
pessoa em Cristo”.
Confessar a unidade da Igreja é um ato de fé, mas também de protesto
contra as divisões que nós, seres humanos, provocamos no Corpo de Cristo.
Tal confissão deve nos levar a participar ativamente nos diversos movimentos
ecumênicos, por serem esforços para manifestar a unidade da Igreja, tal como
Jesus rogou: “E para que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo
acredite que tu me enviaste. Eu mesmo dei a eles a glória que tu me deste,
para que eles sejam um, como nós somos um. Eu neles e tu em mim, para que
sejam perfeitos na unidade, e para que o mundo reconheça que tu me enviaste
e que os amaste, como amaste a mim” (João 17.21-23).
Santa
O mesmo princípio aplicado à confissão da unidade aplica-se também à
confissão da santidade da Igreja. Se detivermos nosso olhar nos muitos erros
que há nas denominações cristãs, será mais fácil confessar humildemente a
pecaminosidade da Igreja. Porém, o que dissemos sobre a unidade, vale
também para a santidade da Igreja. Ela é Santa porque Deus é Santo e ela
está a seu serviço. Os antigos pais da Igreja frisavam que, nas Escrituras, a
santidade está ligada ao conceito de sacrifício. Por isso, muitas vezes a mesma
palavra “hieron”, em grego, era traduzida como “sacrifício”, “sagrado” ou “santo.
O documento “A Confissão da Fé Apostólica” também observa que “santidade
refere-se ao fato que a Igreja pertence ao Santo e é chamada a ser fiel a Ele”.1
E Maraschin acrescenta que “a santidade da Igreja não está em nós, nem nas
estruturas canônicas, nem nas formulações dogmáticas, mas no serviço de
Deus. Ser santa, assim, quer dizer ‘estar separada’ para esse serviço”. 2 Desse
modo, a santidade da igreja deriva do santo serviço que ela presta a Deus e ao
mundo. Por isso, o povo de Deus é chamado de “nação santa” (I Pe 2.9) que
vive o sacrifício de Cristo em meio aos povos.
O movimento puritano desvirtuou muito o conceito bíblico de santidade,
vinculando-o a qualidades morais associadas a uma vida ascética, espartana e
à exigência de uma perfeição inalcançável. Porém, o povo de Deus é santo não
por ter qualidades morais superiores, e sim por ter sido separado por Deus
para testemunhar os valores do Reino e ser sinal de acolhida, reconciliação e
paz. Nossos erros e imperfeições, por piores que sejam, foram levados por
Cristo à cruz. Por isso, o documento “A Confissão da Fé Apostólica” lembra
que, “apesar do pecado da Igreja, quando ela celebra a eucaristia e escuta a
Palavra de Deus deixa-se tomar pelo Santo e é purificada”.3
Essa compreensão não nos exime de buscar a santificação. Esta é uma
advertência constante nas Escrituras: “Sejam santos, porque, Javé, o vosso
Deus, é santo” (Lv 19.1). O autor de Hebreus também alerta que devemos
“estar em paz com todos e progredir na santidade, porque sem ela ninguém
verá o Senhor” (Hb 12.14). Esses versículos nos ajudam a compreender que a
santidade está intimamente associada ao caráter do Deus que é santo e ao seu
desejo de paz (plena realização da vida).
1
A Confissão da Fé Apostólica, III.233, p. 107.
O Espelho e a Transparência, p. 230.
3
Idem, III.239. p. 111.
2
A conseqüência dessa compreensão é que o conceito cristão de
santificação não pode tornar-se cativo de um modelo que imperou na Europa e
Estados Unidos séculos atrás. Para nós, santificação é um princípio ativo, ou
seja, o que mais importa é o que fazemos em nome de santificação e não
propriamente certos interditos culturais. Santificação não é questão de deixar
de fazer certas coisas, e sim de fazer as coisas certas, de agir de modo
correto, de acordo com a nossa compreensão da Revelação divina. A
santidade de Deus e sua perfeição se revelam na sua gratuidade, amor e
acolhimento dos inacolhíveis. A santidade de Deus se revela no seu
compromisso com os que sofrem. A perfeição de Deus se revela na autodoação de sua vida, em Cristo. Assim, será possível a nós que buscamos a
santificação, compreender que essa palavra não se refere a restrições ou a
uma coleção de proibições. Santificação é, antes de tudo, um princípio ativo,
que nasce da compreensão do caráter inclusivo de Deus e se desdobra em
serviço ao mundo. Por isso o Arcebispo Rowan Williams lembra que “a
santidade é viver sob a cruz, o lugar onde Jesus se faz santo, de modo que
também possamos ser feitos santos”4.
Para meditar:
- “Peço que vocês se comportem de modo digno da vocação que receberam.
Sejam humildes, amáveis, pacientes e suportem-se uns aos outros no amor.
Mantenham entre vocês laços de paz, para conservar a unidade do Espírito.
Há um só corpo e um só Espírito, assim como a vocação de vocês os chamou
a uma só esperança: há um só Senhor, uma só fé, um só batismo. Há um só
Deus e Pai de todos, que está acima de todos, que age por meio de todos e
está presente em todos” (Efésios 4.1-7).
- Quais são as implicações deste versículo para nossa vida comunitária e para
a compreensão da unidade e santidade da Igreja?
Católica
Essa expressão não pode jamais ser compreendida como referência a
uma parte do Corpo de Cristo que é a Igreja Católica Romana. Quando o
Credo foi redigido, a Igreja de Roma não havia ainda se constituído como uma
igreja confessional, tal como hoje. Os redatores do Credo estavam pensando
simplesmente na Igreja, no Corpo de Cristo, e em sua extensão universal. Esse
é o significado da palavra “católica”. A Igreja é universal em sua abrangência e
dela faz parte a multidão de santos e santas que nos precederam na história e
4
R. Williams, “One Holy Catholic and Apostolic Church”, Archbishop's Address to the 3rd Global South
to South Encounter Ain al Sukhna, Egypt, 28th October 2005 (Trad. Richard Fermer). Ver também
FERMER, Richard . “As quatro marcas da Igreja e a tarefa de koinonia ecclesial no contexto da IEAB”.
Revista Inclusividade n. 13. Porto Alegre, CEA, 2005.
cujos atos servem-nos de inspiração para hoje. Desse modo, a catolicidade
também aponta para a comunhão. Quando celebramos a eucaristia estamos
em comunhão com gerações passadas que nos antecederam, a grande nuvem
de testemunhas (Hebreus 11) e com irmãos e irmãs em todas as partes do
mundo, por mais diferentes que sejam. O memorial dos falecidos (“lembra-te
dos que morreram na paz de Cristo...”) e a lembrança dos fiéis que estão
geograficamente distantes de nós e que nunca conheceremos nos ajuda a
perceber que a comunidade não é um gueto fechado.
A catolicidade da Igreja significa a sua fidelidade à totalidade da vida
redimida por Jesus, o Cristo”5. Essa catolicidade é dom de Deus para todo
povo sem distinção de país, raça, cultura, condição social ou língua. O texto do
Apocalipse que inspirou nosso cântico Dignus es (LOC, p.48), diz: “Tu és digno
de receber o livro e abrir seus selos, porque foste imolado, e com teu sangue
adquiriste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação. Deles fizeste
para o nosso Deus um reino de sacerdotes. E eles reinarão sobre a terra” (Ap
5.9-10). Isso significa que a catolicidade tem muito a ver também com
inclusividade, palavra que tem sido muito utilizada em nossa igreja nos últimos
tempos. Uma Igreja que se afirma “católica”, não pode ser uma igreja
exclusivista e discriminatória. Nesse sentido, Maraschin lembra que, “quando
dizemos que a Igreja é católica queremos dizer que nela se vê a possibilidade
da realização da humanidade plena que Jesus, o Cristo, nos revelou”6.
Apostólica
Por que a Igreja é descrita como Apostólica? A resposta que o
Catecismo Anglicano oferece a essa indagação, diz: “A Igreja é apostólica, pois
continua no ensinamento e tradição dos Apóstolos e é enviada para levar a
missão de Cristo a todos os povos”. Nessa definição há dois aspectos que
devem ser considerados: a tradição apostólica e a missão.
O primeiro elemento da tradição apostólica é o próprio fato de seguir a
Jesus, reconhecendo-o como Senhor. Os discípulos por ele chamados e
enviados em missão foram os primeiros apóstolos. No livro de Atos, outras
pessoas que se agregaram à missão também são chamadas de apóstolos.
Uma delas é São Paulo. Em um de seus textos, ele diz que transmitiu
ensinamentos que ele também recebeu (I Co 11.23). Vemos aí o sinal de uma
tradição que é preservada e transmitida, fielmente, por gerações, através de
pessoas que são chamadas por Deus e que são reconhecidas oficialmente
pela Igreja como preservadores e continuadores da tradição.
O primeiro documento da Tradição Apostólica é a própria Escritura. Nela
nos é preservado o testemunho das boas novas de Jesus. Essa afirmação tem
grande relevância nas discussões, muitas vezes inócuas, sobre a prioridade da
Bíblia ou da Tradição. Geralmente esse debate esquece o fato de que a Bíblia
é o primeiro documento da Tradição Apostólica. Além disso, no rito da
confirmação, uma das perguntas feitas pelo bispo é “Perseverarás na doutrina
5
O Espelho e a Transparência, p. 234.
Idem, p. 234.
6
dos Apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações?” (p.179). Tudo
isso faz parte da Tradição Apostólica.
A responsabilidade pela preservação e transmissão da Tradição
Apostólica não é apenas dos bispos, mas de toda Igreja porque toda ela é
apostólica. Contudo, na Igreja há diferentes dons e ministérios. Um deles,
intimamente ligado a essa responsabilidade de preservação e transmissão é o
dom do episcopado. Os bispos e as bispas são pessoas reconhecidas por toda
Igreja e têm grande responsabilidade de zelar pela tradição, pastorear uma
área geográfica chamada Diocese, acompanhar a administração dos assuntos
temporais da Igreja, incentivar a missão e zelar pela continuidade do
testemunho do Evangelho através do acompanhamento de novas vocações,
ordenando pessoas ao ministério e participando da sagração de outros bispos
e bispas. Toda essa responsabilidade aponta para o fato de que a Tradição
Apostólica é partilhada entre as pessoas chamadas ao episcopado. Para nós,
anglicanos, essa dimensão é muito importante. O Quadrilátero de Lambeth, por
exemplo (ver capítulo 1), considera o ministério episcopal essencial à Igreja,
mas admite que tal ministério (o “episcopado”) pode ser articulado de formas
diferentes da nossa.
O outro aspecto da apostolicidade que o Catecismo Anglicano enfatiza,
é a missão. A apostolicidade aponta para a dimensão missionária da Igreja, e
isso inclui a evangelização, o testemunho e o serviço, tal como rezamos na
oração eucarística A de nosso LOC: “faze com que nos aproximemos desta
mesa para o serviço e não apenas para a satisfação pessoal” (LOC, p. 83).
Afirmar a apostolicidade da Igreja significa dizer que esta não se compraz em si
mesma e jamais pode acomodar-se. Na mesma oração eucarística acima
citada, rogamos: “Permite que a graça desta santa Comunhão nos torne um só
corpo e um só espírito em Cristo, para que trabalhemos na transformação dos
reinos deste mundo no Reino de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Para meditar:
Que relações
“inclusividade”?
são
possíveis
estabelecer
entre
“catolicidade”
e
Você já participou da sagração de algum bispo anglicano? Nesses
ofícios sempre há a presença de, pelo menos, três outros bispos de diferentes
dioceses. Geralmente também são convidados bispos ou bispas de outras
dioceses longínquas, inclusive do exterior. Por que isso é importante? Trata-se
apenas de educação, amizade e bons relacionamentos ou tem um significado
teológico?