e as elites paulistas
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e as elites paulistas
retrato doBRASIL O NÓ DE LULA Por que o governo não baixa os juros e aumenta as despesas para combater a crise WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 8,00 | NO 22 | MAIO DE 2009 ÀS ARMAS! A nova política de defesa do País, candidato a grande potência BURLE MARX Cem anos de nascimento de um mestre do paisagismo ISRAEL O mal-estar de um país que segue cada vez mais à direita COMPUTAÇÃO A mecânica quântica pode trazer outra revolução SERRA E AS ELITES PAULISTAS De olho em 2010, o governador de São Paulo quer revalorizar a Revolução Constitucionalista de 1932 na história política brasileira PEDOFILIA O escândalo predomina e pouco se fala em tratar os que sofrem do distúrbio fale conosco: WWW.RETRATODOBRASIL.COM ASSINATURAS [email protected] tel. 11 | 3813 1527 de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 17h ATENDIMENTO AO ASSINANTE [email protected] tel. 31 | 3281 4431 de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h PARA ANUNCIAR [email protected] tel. 11 | 3813 1527 de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 17h CIRCULAÇÃO EM BANCAS [email protected] EDIÇÕES ANTERIORES [email protected] REDAÇÃO [email protected] tel. 11 | 3814 9030 CARTAS À REDAÇÃO www.retratodobrasil.com [email protected] rua fidalga, 146 conj.42 - vila madalena cep 05432-000 são paulo - sp Entre em contato com a redação de Retrato do Brasil. Dê sua sugestão, critique, opine. Reservamo-nos o direito de editar as mensagens recebidas para adequá-las ao espaço disponível ou para facilitar a compreensão. doBRASIL retrato WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 8,00 | N O 22 | MAIO DE 2009 Ponto de vista O GOVERNADOR E SUA HISTÓRIA À PAULISTA A Imprensa Oficial de São Paulo lançou livros que revalorizam a elite paulista. Uma manobra de Serra, de olho na sucessão 6 Clima OS MALES DO AQUECIMENTO LOCAL O inverno se aproxima e com ele agravam-se os problemas de saúde. Mas não apenas a natureza é responsável por isso Rafael Hernandes 9 Crise O NÓ DO ORÇAMENTO O governo está reduzindo as previsões de gasto. É porque está amarrado a um modelo que não está voltado para o crescimento do País Lia Imanishi Rodrigues 12 Sociedade UM DRAMA EM BUSCA DE EXPIAÇÃO A mídia e políticos conservadores confundem a opinião pública ao dizerem que a pedofilia é coisa de “monstros” Léo Arcoverde 22 Defesa O PAÍS VAI ÀS ARMAS O governo faz grandes planos para modernizar as Forças Armadas e se prepara para defender a Amazônia da ambição de “uma grande potência” Carlos Azevedo 30 Israel UM ACORDO. E MUITO MAL-ESTAR O governo liderado pelo Likud confirma o rumo que o país tomou há anos Armando Sartori e Yuri Martins Fontes 36 Ciência A PRÓXIMA REVOLUÇÃO Os computadores pessoais promoveram mudanças em escala planetária. A computação quântica pode ser ainda mais avassaladora Flavio de Carvalho Serpa 41 Paisagismo O MARX DOS CACTOS E DAS CURVAS Um dos principais paisagistas do século XX, Burle Marx completaria cem anos se fosse vivo Ana Castro 45 Política CASO DANTAS: UM DEBATE O presidente da Previ, Sérgio Rosa, e o repórter Raimundo Rodrigues Pereira discutem as conclusões do artigo publicado na última edição de Retrato do Brasil 48 EXPEDIENTE SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira EDIÇÃO Armando Sartori REDAÇÃO Carlos Azevedo • Lia Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht EDIÇÃO DE ARTE Ana Castro • Pedro Ivo Sartori REVISÃO Silvio Lourenço • Gabriela Ghetti [OK Linguística] COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Alex Silva • Carlinhos Mueller • Flavio de Carvalho Serpa • Giuseppe Bizarri • Léo Arcoverde • Yuri Martins Fontes CARTAS AS FORMAS DE DITADURA O artigo “As formas de ditadura”, publicado na edição 21, foi muito elucidativo e didático. Ao usar o termo “presidente” e “regime militar”, quando se referem à ditadura brasileira, entretanto, o texto corrobora a afirmação da imprensa burguesa de que houve realmente uma “ditabranda”, já que não houve ditadores e ditadura e sim uma variante da democracia, chamada de “regime miltar” por oposição ao “regime civil”, que é o que estamos vivendo agora. Miguel Boeira Vianna [por e-mail] 45 ANOS DO GOLPE Em 31 de março último, o Clube Militar, em sessão solene realizada no Rio de Janeiro, convidou mais de 2,5 mil membros das Forças Armadas para a comemoração do quadragésimo quinto aniversário do golpe militar de 1964. Dada a manifesta ilicitude da solenidade e o nefasto silêncio da mídia, inúmeros intelectuais firmaram um manifesto de repúdio, reproduzido abaixo. Entre outros, subscreveram o texto Dalmo de Abreu Dallari, Fábio Konder Comparato, Ivan Valente , Margarida Genevois, Maria Luiza Marcilio, Maria Victoria Benevides e Roberto Romano da Silva. Miguel Chibani Bakr Filho, presidente da “Associação E vamos à luta” [por e-mail] Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. EDITORA MANIFESTO S.A. PRESIDENTE Roberto Davis DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Marcos Montenegro DIRETOR EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira COMERCIAL [[email protected]] GERENTE Daniela Dornellas • Tel 11 3813 1527 • 11 3037 7316 REPRESENTANTE EM BRASÍLIA Joaquim Barroncas • Tel 61 3328 8046 ADMINISTRAÇÃO [[email protected]] Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho OPERAÇÃO EM BANCAS ASSESSORIA EDICASE [www.edicase.com.br] DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA EM BANCAS Fernando Chinaglia Comercial e Distribuidora S/A MANUSEIO FG Press CAPA Governador José Serra (20/8/2007)/ Foto Ed Viggiani/ AE Manifesto de repúdio: “Lastimável equívoco. Profundo gravame à consciência coletiva do povo brasileiro, que, por mais de 20 anos de violência política institucionalizada, assistiu ao desmantelamento dos mais altos princípios da democracia e dos direitos humanos. Afinal, comemora-se o quê? [...] A sobredita festividade não tem mínima justificação ética. Não há oratória que possa acobertar o espancamento da cidadania levada a feito no Regime Militar. Não há jogo de palavras que dissimule os excessos cometidos no exercício do poder. Não há qualquer apelo emocional destinado à sedução do auditório que contrafaça os atentados à integridade física e moral perpetrados pelos idealizadores do Estado de Exceção.” Ponto de vista: O GOVERNADOR E SUA HISTÓRIA À PAULISTA A Imprensa Oficial de São Paulo lançou livros que reinterpretam o passado e revalorizam a elite paulista. Uma manobra de Serra, de olho na sucessão O PAPEL DAS ELITES PAULISTAS na história do País está sendo revalorizado pelo governador José Serra. No fim de 2007, por meio da Imprensa Oficial (Imesp), o governo de São Paulo lançou a Coleção Paulista, conjunto de livros que se propõe a levar aos estudantes e ao público em geral “a história de São Paulo e dos seus personagens” que influenciaram a vida brasileira. No lançamento, o organizador da coleção, o historiador Marco Antônio Villa, disse que ela tinha um objetivo político: “acabar com o mito de que todo político paulista tem o ranço do conservadorismo e desmascarar a história de que resgatar o discurso político paulista é conspiração da elite do estado de São Paulo”. Nas comemorações do 76º aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932, a polêmica rebelião de São Paulo contra o governo de Getulio Vargas, o governador escreveu na Folha de S.Paulo sobre o movimento. Em 2007, em seu primeiro ano à frente do governo, Serra foi vaiado nas comemorações do 9 de Julho, data da deflagração da revolta. Com certeza, para muitos conservadores paulistas – que consideram o golpe militar de 1964 como a Revolução de 1932 que deu certo –, Serra ainda é o político de esquerda que foi presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e o aliado de João Goulart, o presidente deposto pelo golpe. O texto do governador, surpreendentemente, foi uma defesa da Revolução de 1932. Ele escreveu que o movimento tinha sido demonizado como separatista, mas que seu significado era outro: a sua direção “era exercida por setores identificados com valores democráticos, com a modernidade de então”, e que isso explicaria “o amplo apoio” obtido pelo movimento “em todas as camadas sociais”. Serra colocou a rebelião paulista no primeiro plano da história do País. “Enganam-se os que imaginam que recordar 1932 é simplesmente remexer no velho baú da história. É muito mais que isso: é uma bela data da história do Brasil e de São Paulo”, escreveu, em conclusão. Uma semana depois, reafirmou esse ponto de vista. Compareceu ao lançamento, na Casa das Rosas, na avenida Paulista, de 1932: imagens de uma revolução, livro do mesmo Villa, também editado pela Imesp (imagem na pág. ao lado). Lá, repetiu que a guerra paulista foi “um movimento hegemonicamente democrático” e elogiou o livro de Villa como uma grande contribuição histórica. A Coleção Paulista é parte de um projeto maior. Ainda neste ano, o governo quer criar um Museu da Memória Paulista, na Mooca, tradicional bairro operário paulistano onde o go6 vernador nasceu. O museu abrigará um Centro de Memória e Documentação de São Paulo. O modelo é o Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea (Cpdoc), que funciona na Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro. Pela escolha de Villa como organizador da Coleção Paulista, a linha editorial a ser seguida não é de complementação, mas de contestação ao trabalho do Cpdoc, criado em 1973 e administrado durante longo tempo pela neta de Getulio, Celina Vargas. Villa é autor de uma biografia de Goulart, considerado o herdeiro de Vargas, na qual multiplica detalhes da vida íntima do ex-presidente, com o intuito claro de desmoralizá-lo. E, sem qualquer documento relevante para provar sua tese, atribui às fraquezas pessoais de Goulart pelo menos metade da responsabilidade pelo próprio golpe que o depôs. O historiador também é o criador do extravagante conceito de “ditabranda” (ver a edição anterior de Retrato do Brasil), com o qual tentou caracterizar como não ditatorial metade do período dos governos militares pós-1964 – os primeiros anos, do golpe até o AI-5, em 1968, e os últimos, a partir da anistia de 1978 até a posse do governo Tancredo Neves–José Sarney, no começo de 1985. VARGAS E OS “TENENTES” Na história da Revolução de 1932, Villa comete um desatino semelhante. A guerra paulista é a rebelião armada contra o governo Vargas, organizada a partir de dois partidos políticos do estado: o pequeno e novo Partido Democrático (PD, de 1926) e o grande e antigo Partido Republicano Paulista (PRP, de 1873). O PD apoiara a Revolução de 1930. Já o PRP pode ser considerado a viga mestra das forças derrotadas pelo movimento liderado por Vargas. Representava o grande poder econômico do País na época, o dos cafeicultores paulistas. Indicara o paulista Júlio Prestes para presidente nas eleições de 1930, na disputa contra Vargas, da Aliança Liberal. Prestes ganhou, mas não chegou a tomar posse, em virtude da vitória armada dos aliancistas. Vargas chegou ao poder como comandante militar e líder de um grupo de jovens oficiais das Forças Armadas, conhecidos genericamente como “tenentes” e que, ao longo dos anos 1920, tinham se rebelado contra o coronelismo e os costumes políticos corrompidos da Primeira República (1889-1930), também chamada de República Velha. Com a vitória em 1930, “tenentismo” passou a caracterizar uma corrente política. A definição clássica do termo é a de Virgínio Santa Rosa (1905-2001), intelectual e político paraense. No livro O sentido do tenentismo, de 1933, Rosa diz que os “tenentes” constituem a corrente mais radical dos vitoriosos na Revolução de 1930, a dos que pleiteavam profundas modificações sociais no País, ao contrário da corrente moderada, dos que desejavam realizar somente as reformas de natureza política. Villa redefine o significado do tenentismo a partir da Revolução de 1932, que, segundo ele, opôs dois grupos. De um lado, estavam os “tenentes”, um “grupo eclético que pressionava pelo adiamento das eleições para a Constituinte, previstas para 1933”. Eles “não tinham um projeto claro para o País”, diz Villa. Seus adversários “eram as reivindicações dos paulistas”. E, do lado paulista, completa Villa, estavam os democratas. É uma redefinição tão radical quanto sem fundamento. É claro que o conceito de tenentismo de Santa Rosa merece – como de fato já mereceu – estudo e crítica. A questão levantada por Villa é outra, no entanto. Ele endeusa o PRP e define a revolta da aliança PD-PRP como uma defesa da “questão democrática”, pura e simples, como “uma espécie de tesouro perdido, muito valioso, especialmente em um país marcado por uma tradição conservadora, elitista e antidemocrática”. Esquece que o PRP era justamente o representante da tradição conservadora, elitista e antidemocrática da República Velha. Villa faz o milagre ideológico de recuperar o PRP na escolha dos cinco primeiros títulos da Coleção Paulista e seus trabalhos de apresentação. O personagem e o livro principais desses primeiros títulos são Manuel Ferraz de Campos Salles (1841-1913), e o livro de sua autoria Manifestos e mensagens. Campos Salles, o paulista que governou o Brasil de 1898 a 1902, foi também governador de São Paulo e um dos criadores do PRP. No texto de apresentação do livro, Campos Salles aparece, com razão, como o homem que montou o “mecanismo central da Primeira República”, uma combinação da chamada política dos governadores – o acordo entre os chefes considerados naturais das oligarquias nos estados – com uma política federal de arrocho fiscal e saneamento monetário, feita a partir de um acordo com os credores externos da dívida brasileira. Esse mecanismo, diz a apresentação, permitiu ao PRP “controlar o centro da política brasileira por meio de negociações regulares com as demais oligarquias locais e o comando contínuo dos processos sucessórios”. O problema dessa apresentação é que seu autor, Júlio Pimentel, do Departamento de História da Uni- retratodoBRASIL 22 nejas e Procellarias; o professor Paulo Duarte (1899-1984), com a edição de seu livro Agora nós!, sobre a Revolução Paulista de 1924; e Joaquim Floriano (1826-1902), com a reedição de sua A província de S. Paulo, um trabalho estatístico e geográfico que D. Pedro II levou à Exposição Industrial da Filadélfia, em 1876. 1924, A OUTRA REVOLUÇÃO A seleção de nomes sugere uma diversidade de opiniões dentro do campo liberal paulista que é bem maior que a importância dos políticos apresentados. O moço Bonifácio, sobrinho de José Bonifácio, o “Patriarca da Independência”, apresentado pelo próprio Villa, é um liberal cujos melhores momentos parlamentares ocorreram no combate à escravidão. Nessa frente, no entanto, é um retardatário: ainda em 1867, em defesa dos fazendeiros, pedia tempo para substituir o “braço escravo” que garantia as exportações do País. Ribeiro é mais conhecido por seu romance naturalista A carne. No livro da Coleção, é crítico das eleições de Campos Salles e Prudente de Morais pelo PRP. Mostra-se um republicano decidido, ateu e abolicionista radical. Mas não se vê sinal de que tenha tido qualquer peso na política das elites paulistas. Dos outros dois autores, merece destaque Paulo Duarte, que foi do PD, fundado por republicanos divergentes do PRP. Ele comandou, em 1932, o trem blindado que apoiava as tropas rebeladas no Vale do Paraíba, entre São Paulo e Rio de Janeiro. O texto de apresentação de Duarte é do conhecido historiador Boris Fausto. Ele lembra que Duarte é autor de Palmares ao avesso, sobre sua experiência na Revolução de 1932, livro no qual manifesta sua dúvida sobre o próprio movimento: admite que ele pode servir para fortalecer o reacionário PRP. Em Agora nós!, o tema é outro: o movimento dirigido pelo outro grupo político presente na história de São Paulo daqueles anos, o dos “tenentes” – a Revolução de 1924, contra o PRP e contra a República Velha. Derrotados depois de sofrerem intensa repressão – quase 500 mortos e mais de 4,5 mil feridos –, os “tenentes”, sob o comando de Miguel Costa, retiraram-se para o Sul do País após controlarem a cidade por cerca de um mês. No Sul, os revoltosos se uniram Gilberto Marques/ Divulgação versidade de São Paulo (DH-USP), a despeito das cores aparentemente sombrias com que pinta a ação política de Campos Salles, considera “que não havia alternativa” à sua política econômica de submissão aos interesses dos banqueiros internacionais, especificamente, aos “termos ditados pelos Rothschild”, os donos da banca inglesa. E, por esse motivo, acaba chegando à conclusão de que a política conservadora de Campos Salles também era a única possível. Ele termina sua apresentação afirmando que “Campos Salles, dentro dos limites da política oligárquica da Primeira República, pensou o Brasil de forma ampla, concebeu seu papel na América, achou o lugar para o liberalismo possível, governou com austeridade incomum para os padrões brasileiros, deixou sua atuação documentada e comentada”. Campos Salles, cujo reacionarismo é assim disfarçado, é acompanhado na Coleção Paulista por quatro outros personagens: José Bonifácio, o Moço (1827-1886), que teve reeditados seus Discursos parlamentares; o escritor Júlio Ribeiro (1845-1890), com a publicação de duas séries de seus artigos políticos e sociais, Cartas serta- retratodoBRASIL 22 7 Reprodução do livro 1932, Imagens de uma Revolução vou à escolha de Júlio Ribeiro – filho de pai americano e nascido em Minas Gerais –, como um personagem da história das elites paulistas, Costa também merecia um título. Mas a Coleção Paulista, pelo menos nessa sua primeira fornada de obras, não aparenta ser voltada para esse lado do espectro político. Sua preocupação se parece mais com a de Washington Luiz, o paulista que presidia o Brasil nos idos da Revolução de 1930 e considerava a questão social como um caso de polícia. às tropas de Luiz Carlos Prestes, com as quais formaram a famosa coluna Miguel Costa–Prestes (1925-1927), que percorreu o País fazendo propaganda armada da ampliação dos direitos democráticos e de reformas sociais. Costa se refugiou com Prestes primeiro na Bolívia, depois na Argentina. De lá, Prestes aderiu ao Partido Comunista e recusou a Aliança Liberal. Costa voltou com Vargas, passou com ele por São Paulo, vitorioso. Ali, tornou-se comandante da Força Pública e auxiliar do interventor no estado, o “tenente” João Alberto. Miguel Costa fundou em São Paulo o Partido Popular Paulista. É na tentativa de in8 vasão da sede do PPP, na rua Barão de Itapetininga, perto da praça da República, no Centro paulistano, que, a 23 de maio, são feridos e depois morrem os famosos Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo, da sigla MMDC, da Revolução de 1932. No seu livro, ao contar o fato, Villa fala de uma grande batalha na qual os estudantes paulistas mobilizaram armas e recursos em todo o Centro da cidade para, depois de horas, vencer os militantes do PPP – que eram, afinal, apenas seis pessoas. Costa nasceu em Buenos Aires, filho de pais espanhóis, mas viveu em São Paulo praticamente toda a sua vida. Pelo mesmo critério que le- DISPUTA DE PREFERÊNCIA A adulação da elite paulista nos termos das citadas iniciativas do governo de São Paulo é uma operação com objetivo claro: as eleições de 2010. O governador Serra é o grande candidato à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, desde o segundo turno da eleição de 2002, que ele perdeu para Lula, seu partido, o PSDB, compete com dificuldade com o PT pelas doações de campanha do grande empresariado. Sua adversária provável na disputa pela preferência da elite endinheirada, concentrada em São Paulo, é a ministra Dilma Rousseff, candidata de Lula. Infelizmente, no contexto atual, de baixa mobilização popular, as eleições muitas vezes se convertem num espetáculo midiático, financiado por essa elite. Adular as elites paulistas é uma lástima. Debatê-las é um tema atual. O vencedor do mais recente festival de documentários “É tudo verdade” foi Cidadão Boilesen, de Chain Litewski, sobre o assassinato, por guerrilheiros urbanos, em 1971, no bairro paulistano dos Jardins, de Henning Boilesen, presidente do Grupo Ultra. O empresário dinamarquês é considerado o principal mediador dos contatos entre os empresários paulistas e os militares no apoio financeiro para a montagem da Operação Bandeirantes (Oban), responsável pela criação do centro de tortura sistemática de presos políticos em São Paulo. Em A ditadura escancarada (Companhia das Letras, 2002), Elio Gaspari conta detalhes do encontro entre o então ministro Delfim Netto e banqueiros, cerca de 15 pessoas, no qual cada um contribuiu para a Oban com o equivalente, na época, a 110 mil dólares. Gaspari afirma que, na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), eram feitas reuniões ao cabo das quais se recolhiam as contribuições com o mesmo objetivo. Diz que empresas também participavam com contribuições em espécie: a Ford e a Volkswagen forneciam carros; o Grupo Ultra, caminhões; e a Supergel, refeições congeladas para o centro de torturas. retratodoBRASIL 22 Folha Imagem Clima: OS MALES DO AQUECIMENTO LOCAL O inverno se aproxima e, com ele, agravam-se os problemas de saúde. Mas não apenas a natureza é responsável por isso | Rafael Hernandes Maio já foi conhecido como o “mês das noivas”, numa referência à grande quantidade de casamentos realizados no período. Hoje, segundo as estatísticas oficiais, maio perde em número de casamentos para setembro e dezembro. O mês, que corresponde à segunda metade do outono e antecede, portanto, o inverno, é mais lembrado atualmente pelo aumento do número de ocorrências de problemas respiratórios em algumas grandes cidades brasileiras. O inverno é naturalmente propício para a elevação do número desses casos. Durante a estação, diversos fatores, alguns naturais, contribuem para a piora das condições de saúde da população. Redução de ventos e chuvas, as bruscas mudanças de temperatura (as chamadas inversões térmicas), além da tendência à concentração de pessoas em lugares fechados e sem ventilação, favorecendo o contágio por agentes infecciosos, são algumas delas. E, claro, a queda da temperatura, que exige um dispêndio maior de retratodoBRASIL 22 energia por parte do organismo para se manter aquecido, o que contribui para a redução de sua resistência. No inverno, registra-se um índice até 40% maior de casos de resfriado, gripe, bronquite, asma e até pneumonia. As principais vítimas estão entre os grupos com menor proteção imunológica, idosos e crianças. Pesquisa realizada pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) sobre mortes por causas não externas (mortes naturais) constatou que, para cada diminuição de um grau na temperatura abaixo de 20°C (o que é comum no inverno), há um aumento de 4% no número de mortes de crianças e de 5,5% no de idosos. EMARANHADO DE CLIMAS Além dos aspectos naturais, muitos dos problemas de saúde são produzidos por mudanças decorrentes da ação humana. São Paulo é um dos locais do País onde o clima tem sido mais intensamente alterado devido a elas. Isso ocorreu especialmente no século passado, em consequência do processo de urbanização, como mostra o Atlas Ambiental do Município, elaborado pelas secretarias municipais do Verde e Meio Ambiente e de Planejamento. Trata-se de um estudo que compara o clima atual da cidade e sua diversidade com o encontrado pelos europeus no século XVI, quando ali só habitavam poucas tribos in- dígenas. Na época da colonização, predominavam quatro climas em toda a área ocupada hoje pela cidade, os quais, devido a fatores como relevo, altitude e circulação dos ventos, dividiam-se em 26 microclimas – que, como o próprio nome dá a entender, são uma variação do clima geral da região que os cerca, encontrados em uma área de pequena extensão. “Existiam elementos naturais na cidade que condicionavam diferenças microclimáticas. Por exemplo, os dois grandes rios [Tietê e Pinheiros] correm por dois grandes vales em que há um microclima natural”, diz a geóloga Patrícia Sepe, uma das organizadoras do estudo. “Na várzea do Tietê, havia um tipo de clima; na do Pinheiros, outro.” Ela destaca também que, devido à altitude, locais como aquele onde hoje está a avenida Paulista e a Serra da Cantareira também tinham climas diferenciados. Hoje, devido às intervenções humanas, a variedade do século XVI foi multiplicada por três, transformaram-se em um emaranhado de ao menos 77 microclimas. Diferentes tipos de construção (vertical ou horizontal), a existência de bairros arborizados, a predominância de comércio ou indústria, a presença de favelas, parques e áreas de proteção ambiental, etc. criaram essa diversidade. As maiores diferenças produzidas por essas modificações realizadas pelo homem, chamadas antrópicas, são sentidas com as mudanças 9 QUANTO MAIS URBANIZADO... NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, AS ZONAS CENTRAL E LESTE SÃO AS MAIS QUENTES E ONDE OCORREM MAIS MORTES POR DOENÇAS RESPIRATÓRIAS E CARDÍACAS de temperatura, de umidade do ar e até do regime de chuvas. Segundo a professora Magda Lombardo, do Centro de Análise e Planejamento Ambiental da Universidade Estadual Paulista (Ceapla-Unesp), a raiz do problema está na forma como a cidade foi urbanizada: “Asfalto, depois construções, que acabam com as áreas verdes, arbóreas e corpos d’água. A cidade se tornou um grande concreto armado, verticalizado”, diz. Esse processo transformou aceleradamente, em pouco mais de cem anos, a pequena São Paulo da segunda metade do século XIX em uma megalópole, que viu sua população crescer de 30 mil para mais de 10 milhões de habitantes. Essa explosão fez a cidade, concentrada inicialmente em torno de seu centro histórico, espalhar-se pelas dezenas de bairros de periferia atuais, onde vive, muitas vezes em péssimas condições de moradia, a população mais pobre. Esse processo desorganizado de urbanização exigiu obras de “melhorias”, na tentativa de minorar o problema das inundações e enchentes, por exemplo. Muitas dessas realizações foram executadas com a canalização e a entubação de córregos que cortam o município, sobre os quais foi construída boa parte das grandes avenidas da cidade. Aos poucos, as várzeas dos cursos d’água foram ocupadas e a impermeabilização do solo acabou por comprometer a capacidade natural de absorção das águas das chuvas. O que era apresentado como uma solução para as enchentes acabou transformando-se numa de suas causas. Segundo Lombardo, com “a construção da cidade totalmente impermeável”, 10 sem arborização e a concentração da população nas zonas central e leste, estas se tornaram o epicentro das mudanças climáticas, especialmente do fenômeno das chamadas “ilhas de calor”. As ilhas de calor são eventos dinâmicos que ocorrem durante o dia, responsáveis por agudas variações de temperatura. Em São Paulo, em 2007, foi batido o recorde de variação de temperatura em um mesmo dia – num mesmo momento, foi registrada uma variação de 12°C em locais diferentes da cidade, diz Lombardo. DIFERENÇA DE 9°C Em menor intensidade, esse tipo de evento ocorre também em outras grandes e até médias cidades brasileiras. Medições já comprovaram diferenças de aproximadamente 8°C em Porto Alegre, de 4,6°C em Salvador e de quase 4°C em Belo Horizonte. Mesmo uma localidade menor, como Piracicaba, cidade do interior paulista, chegou a apresentar a assombrosa diferença de 9,2°C entre a temperatura medida nas zonas rural e urbana. De forma geral, as grandes e médias cidades brasileiras sofrem alterações climáticas devido a um conjunto de fatores. Um deles é o asfaltamento excessivo de ruas, o que faz que, durante o dia, o calor da radiação solar seja intensamente absorvido em vez de refletido. Isso eleva a temperatura e diminui a umidade do ar, um dos principais fatores para a criação das “ilhas”. A redução das áreas verdes também tem seu papel, já que a vegetação é responsável por manter umidade e temperaturas mais baixas por meio da evapotranspiração (eliminação da água capta- da pelas plantas e não utilizada na fotossíntese, realizada por meio da transpiração das folhas). As áreas verdes também contribuem para a redução da amplitude térmica, impedindo que haja grande variação entre os períodos mais quentes e frios do dia. A aglomeração de pessoas pode, igualmente, contribuir para a elevação da temperatura. Segundo Lombardo, ao contrário das plantas, cujas trocas de calor com o ambiente o esfriam, as nossas o aquecem, pois o ser humano emite calor e, quando reunido em grande quantidade, eleva a temperatura local como um todo. Em São Paulo, os bairros com maior aglomeração urbana, como a Lapa, também correspondem aos locais mais quentes. Helena Ribeiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, explica que essas alterações climáticas e atmosféricas aumentam a incidência de determinadas doenças, pois fragilizam sobremaneira o organismo dos habitantes dos centros urbanos. Da mesma forma que o corpo tem de gastar mais energia para se aquecer no frio, “quando você tem um aumento da temperatura atmosférica, o indivíduo força seu metabolismo para manter a temperatura corporal em nível constante de 37°C”. Dessa forma, a energia do corpo é desviada para manter sua temperatura na faixa de normalidade. Ele é obrigado a acelerar o metabolismo, a respiração e as trocas gasosas. O coração tem de trabalhar com maior intensidade, o que pode causar estresse nos sistemas circulatório e respiratório, ainda mais nas faixas mais suscetíveis da população. “É por isso que, quando há uma onda de calor na Europa, retratodoBRASIL 22 RICO X POBRE UMA FAVELA RODEADA POR UM BAIRRO DE ALTA RENDA É VÍTIMA DAS VARIAÇÕES CLIMÁTICAS são basicamente os idosos e cardíacos que falecem”, diz Ribeiro. A poluição do ar das cidades, favorecida pelas condições do inverno, é igualmente prejudicial. Como o organismo humano precisa de certa quantidade de oxigênio para funcionar, é necessário respirar mais vezes para compensar a composição alterada do ar. “Por isso não se recomenda fazer exercícios em lugares poluídos”, diz Ribeiro. Isso acelera ainda mais o metabolismo, o que pode levar ao desenvolvimento de doenças respiratórias e cardíacas. “As [doenças] respiratórias são causadas também pela poluição inalada, que causa a produção de muco no sistema respiratório, como uma defesa. Com isso, as pessoas têm os brônquios obstruídos, além de possíveis reações alérgicas”, diz a professora. Em São Paulo, as áreas mais densamente urbanizadas (zonas central e leste) são as campeãs em casos dessas enfermidades, não por coincidência. Além desses problemas, a mudança climática paulistana é responsável também pela alteração do regime de chuvas. Como a cidade está a apenas algumas dezenas de quilômetros da AE Lombardo: aquecimento local é confirmado Dentre o emaranhado de causas que levam às mudanças dos climas locais e a seus perversos efeitos sobre a população, destacam-se os relacionados com as condições de vida da população mais pobre. Uma amostra disso pode ser observada no estudo conduzido por Helena Ribeiro, vice-diretora da Faculdade de Saúde Pública da USP, juntamente com pesquisadores do Departamento de Saúde Ambiental da entidade. A pesquisa foi realizada no bairro do Morumbi, situado na zona sul paulistana. O trabalho comparou o microclima da favela Paraisópolis – local densamente urbanizado, sem arborização e sem ventilação, encravado em meio ao bairro (ver “Paraisópolis, um lugar como poucos” em Retrato do Brasil edição 21) – com o seu entorno. A região apresenta, no geral, características muito diferentes das específicas da favela: é muito arborizada e tem densidade populacional baixa (além da renda média muito superior). Segundo Ribeiro, “na favela existe uma oscilação térmica maior [que a do bairro ao redor] durante o dia. De madrugada é mais frio, e durante o dia é mais quente, o que leva a uma amplitude térmica maior, que faz mal à saúde. Há uma diferença entre calor e frio em um curto espaço de tempo”, diz. O resultado: entre os habitantes de Paraisópolis, ocorre uma proporção muito elevada de doenças do sistema respiratório, maior que a do restante do bairro. costa, recebe boa parte de umidade das brisas marítimas, trazidas pelos ventos. No entanto, quanto esta chega, não se espalha por toda a região, pois a brisa se depara com grandes massas de ar quente na parte central da cidade, onde ficam as maiores ilhas de calor. Quando esse encontro se dá, a umidade é carregada com o ar quente (e mais leve) para as camadas mais altas da atmosfera, onde se choca violentamente com o ar frio encontrado lá, causando as fortes e corriqueiras chuvas de verão, o que resulta em um número cada vez maior de enchentes, especialmente nas regiões sob as ilhas ou próximas a elas. Estudo do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP apontou que, entre 1999 e 2002, 60% das chuvas que ocasionaram enchentes na região foram causadas pelo encontro de ilhas de calor com brisas do mar. SEM COBERTURA VEGETAL No caso da capital paulista, há ainda um agravante: os locais onde costumam ocorrer essas precipitações são muito distantes das reservas de abastecimento de água da cidade, localizadas ao norte e ao sul do município. Parte da umidade e das chuvas que deveriam ocorrer nessas áreas e encher os reservatórios é “perdida” no meio do caminho, tornando mais complicado o abastecimento de milhões de pessoas. Como se percebe, as mudanças climáticas não são apenas algo que ocorre em escala global e cujas consequências só serão sentidas no futuro, quando, segundo pesquisadores, a elevação da temperatura da atmosfera terrestre, causada pelas emissões de poluentes, poderá retratodoBRASIL 22 levar ao derretimento do gelo dos polos, à elevação do nível dos mares e à savanização da Amazônia. Para Lombardo, “é preciso pensar primeiro no aquecimento local, porque esse já é verdadeiro, confirmado”. Segundo ela, a cidade de Nova York teve acréscimo de 0,8°C no último século, e São Paulo, de 1,2C°. “Tenho certeza da interferência do homem na questão local, pois é possível medir, localizar, mais fácil de aferir que as mudanças globais. Essas só são medidas por modelos, previsões”, diz. A geóloga Patrícia Sepe considera importante que sejam adotadas medidas para reduzir o número de ilhas de calor em São Paulo, para impedir que as enchentes se tornem ainda mais catastróficas: “Para uma cidade ser sadia, ela tem de ter 30% de cobertura vegetal espalhada de forma homogênea pelo território”, diz Lombardo. “Nas áreas centrais das regiões metropolitanas, esse índice às vezes não chega a 1%”. Em São Paulo, a prefeitura divulgou a meta de construir cem parques até 2012, prometendo a criação de áreas verdes por todo município, um objetivo que dificilmente se realizará. Sepe diz que parte do problema vem da falta de locais apropriados. “Toda vez que você vai lotear uma grande área, as chamadas glebas, o loteador é obrigado a doar um percentual da área ao município para a instalação de escolas, postos de saúde, ruas e áreas verdes. Muitas das áreas verdes atuais são resultantes desses loteamentos”, explica. Segundo ela, a partir da década de 1970, no entanto, a maior parte dos loteamentos localizados foi feita de modo irregular e não observou a doação obrigatória de áreas à prefeitura. 11 Crise: O NÓ DO ORÇAMENTO 1. NA ONDA No dia 3 de fevereiro, ao participar de uma cerimônia de entrega de casas populares a moradores do Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, o presidente Lula disse que estava otimista com os rumos da economia nacional, que estaria mais preparada do que outras para enfrentar a atual crise econômica mundial: “Sempre trabalho com a hipótese de que poderemos ter uma retração na economia brasileira, mas não acredito que o Brasil sofra o mal que estão sofrendo os países desenvolvidos. Estou convencido de que, se há um país no mundo preparado para a economia se recuperar mais rapidamente, esse país é o Brasil”. O presidente parece confiar no que fez antes e, para o Orçamento deste ano, não anunciou qualquer grande mudança. Sua grande esperança é o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007 e carro-chefe de seu segundo mandato, com previsão de investimentos em infraestrutura na ordem de 634 bilhões de reais, dos quais apenas 67,8 bilhões do Orçamento fiscal e da seguridade social – a parte do Orçamento que inclui a arrecadação de impostos e contribuições. O PAC é, principalmente, um programa de investimentos das estatais – a maior parte da Petrobras – e da iniciativa privada. Apesar do atraso no cronograma de muitas obras, o PAC até que vai bem. Os órgãos do governo desembolsaram, entre 2007 e 2008, 18,7 bilhões de reais, aproximafdamente 56% dos empenhos feitos no biênio. As estatais federais, por sua vez, investiram 50,6 bilhões em 2008, quase 83% do autorizado, ante 37,64 bilhões de reais no ano anterior, 78% do autorizado. Nos setores de energia, pe12 tróleo e gás, de cerca de 119,5 bilhões de reais em investimentos previstos por empresas estatais e privadas, foram investidos efetivamente 97,1 bilhões de reais nos dois anos, também perto de 80% do previsto. Boa parte da confiança do presidente vem também dos resultados obtidos nos últimos quatro anos. Nesse período, o Brasil mais do que dobrou seu ritmo de expansão em relação às décadas de 1980 e 1990. O Produto Interno Bruto (PIB), soma de todas as riquezas produzidas no País, teve crescimento médio anual de 4,7% entre 2004 e 2008. O aumento foi 5,7% em 2004, 3,2% em 2005 e 4% em 2006. E, mesmo após meados de 2007, quando irrompeu a crise no mercado de imóveis nos EUA, que acabou arrastando consigo outros setores da economia daquele país e o levou à recessão já em dezembro de 2007, o Brasil parecia distante do olho do furacão. O PIB brasileiro ainda cresceu 5,7% em 2007 e 5,1% em 2008. O País não crescia tanto assim desde o período 19761981. E, mesmo no segundo semestre de 2008, enquanto o PIB dos países ricos começava a se contrair, os economistas discutiam por aqui a tese de descolamento das economias emergentes – da nossa em particular – da crise que afetava gravemente o centro do mundo capitalista desenvolvido. Entre 2004 e 2008, de um modo geral, o governo Lula surfou numa onda de bonança. Bateu recordes de arrecadação, retomou investimentos e ampliou a rede de proteção social. Hoje 11 milhões de famílias, ou 40 milhões de pessoas, são atendidas pelo Bolsa Família. O salário mínimo também teve reajuste real de 45,5% no período – 17,8 milhões de pessoas recebem benefícios previdenciários e assistenciais de até um salário mínimo. Nesse ambiente otimista, em agosto do ano passado, o governo federal enviou ao Congresso sua proposta de Lei de Orçamento Anual (LOA) – que juntamente com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Plano Plurianual de Investimentos (PPA) são as três leis que concretizam o Orçamento Público, de acordo com a Constituição. A LOA previa um aumento expressivo das receitas, das despesas e dos investimentos do Poder Executivo para 2009. Além do reajuste de 12% do salário mínimo, que acabou definido em janeiro deste ano (de 415 reais para 464,72 reais), ela previa que o total de investimentos, incluindo verbas do governo federal e das estatais federais, deveria subir para 119,1 bilhões de reais em 2009, em comparação com os 95,8 bilhões de reais projetados para 2008. A LDO estimava que as receitas primárias do governo federal – obtidas com a arrecadação de impostos, contribuições e da seguridade social – teriam um aumento de 12,5% sobre os resultados de 2008. Já as despesas cresceriam por volta de 12%, cerca de 13% as despesas obrigatórias – com funcionários, previdência – e cerca de 11% as despesas livres, não obrigatórias, chamadas de discricionárias, dentre as quais também se incluem os investimentos, que passariam de cerca de 135 bilhões para pouco mais de 150 bilhões de reais. A proposta do Orçamento ainda previa um elevado “superávit primário”, de 3,8% do PIB. Esse superávit merece um capítulo à parte em nossa história. Para entendê-lo melhor, é preciso ver outro número importante do Orçamento apresentado pelo governo ao Congresso em mearetratodoBRASIL 22 Com a crise, para estimular a economia, as contas públicas deveriam prever mais despesas. Ao contrário, o governo está reduzindo as previsões de gasto. É porque está amarrado a um modelo que não está voltado para o crescimento do País | Lia Imanishi Rodrigues dos do ano passado: o das receitas totais a serem obtidas em 2009, de 1,664 trilhão de reais. Esse total correspondia a mais que o dobro das chamadas receitas primárias, estimadas em 805 bilhões de reais. A receita total não é composta apenas por impostos e contribuições devidas por pessoas físicas e empresas. Inclui dinheiro obtido pelo Estado brasileiro com a venda, a empresas e pessoas físicas, de títulos retratodoBRASIL 22 da dívida pública, feita para obter recursos suficientes para pagar, basicamente, essa própria dívida. A cada ano, o Orçamento deve prever o pagamento dos compromissos que vencem no ano e mais os juros desses compromissos. Além disso, o governo brasileiro, desde o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, comprometeu-se a reduzir a dívida do País nesses papéis, que atualmente é de cerca de 1,38 trilhão de reais. O superávit primário é justamente a quantidade de impostos e contribuições que devem ser arrecadados acima do necessário para que o governo pague todos os seus gastos obrigatórios, mais todos os gastos discricionários. Com esse excedente, deve pagar parte da dívida pública, para que ela não cresça a ponto de sair de controle. Mas isso é o que se verá, com mais detalhes, na terceira parte deste texto. 13 14 os com carteira assinada e os informais. Fevereiro, segundo ele, deu um alívio nessa queda: o saldo foi positivo em 9 mil postos de trabalho com carteira assinada. “Mas, se comparado a fevereiro do ano passado, quando foram contratados 200 mil com carteira assinada, o saldo é ridículo”, afirma Sicsú. O desemprego no Brasil, que foi de 6,8% no ano passado, em março estava em 8%. Em dezembro passado, o Congresso votou o projeto da LOA deste ano. Os parlamentares já não estavam tão otimistas quanto o governo quando elaborou o projeto. Cortaram 18,1 bilhões de reais nas despesas: 9,7 bilhões de reais de custeio, 8 bilhões de reais de investimentos e 0,4 bilhão em despesas de pessoal. Em janeiro, o próprio governo tinha tomado precauções: o Ministério do Planejamento determinou um contingenciamento, um bloqueio temporário de 37,2 bilhões de reais nas despesas não obrigatórias aprovadas pelo Congresso. O contingenciamento de despesas é promovido todo início do ano para, conforme determina a legislação, assegurar o cumprimento da meta de superávit primário, ou seja, da parcela da arrecadação destinada ao abatimento da dívida pública. Este ano, ele foi maior, quase o dobro do contingenciado no ano passado. Nos últimos anos, esse bloqueio era relaxado no correr do ano, à medida que a receita tributária sempre confirmava ou mesmo superava as projeções iniciais. Neste ano, no entanto, a arrecadação de impostos no bimestre janeiro–fevereiro caiu 10 bilhões de reais. Em março, continuou caindo. No dia 30 de março, depois de várias reuniões que envolveram o presidente da República, seus conselheiros econômicos – dentre os quais se destacam o ex-ministro Delfim Netto e Luiz Gonzaga Belluzzo –, o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, e os ministros da área econômica Guido Mantega e Paulo Bernardo, o Ministério do Planejamento publicou o decreto que determina o contingenciamento oficial. Para isso, o governo refez suas estimativas de desempenho da economia, basicamente para pior. O principal indicador revisto foi o do crescimento do PIB, estimado em 4,5%, cerca de um ano antes, reduzido para menos da metade, 2%. Com essa queda no crescimento da economia, a previsão de receita caiu muito. Estimava-se arrecadar 805,2 bilhões em impostos e contribuições na lei aprovada em dezembro (o Congresso cortou apenas 6 bilhões da estimativa do governo). Com a reprogramação, a estimativa foi para 756,9 bilhões de reais, mais de 50 bilhões abaixo da proposta original. Reprogramada a receita, fez-se a estimativa de reprogramação da despesa. O decreto do governo fixou em 25 bilhões de reais o contingenciamento de gastos não obrigatórios previstos na Lei do Orçamento, valor correspondente, basicamente, a investimento e custeio. Descontadas todas as despesas obrigatórias, a redução incide sobre dotações orçamen- DOS CUMES AO VALE AS DESPESAS COM JUROS , COMO PORCENTAGEM DO PIB, ALCANÇARAM PICOS EM 1999 E 2003, HOJE, ESTÃO QUASE NO NÍVEL DE 1997 MUITAS BOLSAS FAMÍLIAS POR ANO DESDE 2005, AS DESPESAS COM JUROS EQUIVALEM ANUALMENTE, EM MÉDIA, A 12 VEZES O VOLUME DO PROGRAMA SOCIAL 9 170 8 140 DESPESAS COM JUROS, EM BILHÕES DE REAIS (1997-2009) 7 100 6 DESPESAS COM JUROS COMO % DO PIB (1997-2009) 5 60 2000 Fonte: Banco Central do Brasil *estimativa, Paribas 2005 2009* 2009* 1997 2005 40 4 2000 Em fevereiro passado, já se via, nitidamente, que os tempos de bonança tinham passado. O Ministério do Trabalho e do Emprego anunciou que 655 mil postos de trabalho com carteira assinada haviam desaparecido em dezembro. Mas foi exatamente no dia 10 de março, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou as contas nacionais do último trimestre de 2008, que a mudança foi escancarada e mostrou-se dramática. Houve uma ruptura no padrão de crescimento dos últimos quatro anos, disse a pesquisadora Isabella Nunes, do órgão federal. “Nunca se viu uma queda tão forte num espaço de tempo tão curto.” A ruptura de padrão fez que a produção de bens e serviços – que crescia num ritmo anual de mais de 7% até setembro – no último trimestre sofresse uma retração que, se anualizada, seria de -13,6%. Os industriais decidiram cortar gastos com investimentos produtivos – aquisição de máquinas, equipamentos e construção civil –, e a produção fabril decresceu 7,4% de outubro a dezembro. No último mês do ano passado, a produção industrial chegou a cair 14,5% em relação a dezembro de 2007, o pior resultado da indústria desde 1991, quando a série do IBGE teve início. O instituto também mostrou que o consumo das famílias, que vinha crescendo há 21 trimestres consecutivos, mais de cinco anos, caiu 2% no último trimestre de 2008, no pior resultado desde o terceiro trimestre de 2003. Segundo Isabella, a atual crise bateu mais forte e mais rapidamente na indústria do que a crise do início de governo do presidente Fernando Collor de Mello, de 1990; a do México, em 1995; a do racionamento de energia, de 2001; e a crise política de 2002, ano da eleição de Lula. O resultado das Contas Nacionais do IBGE para o primeiro trimestre deste ano não apresentavam sinais de grande melhora no início de abril. O economista João Sicsú, diretor da Diretoria de Assuntos Macroeconômicos (Dimac) da Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, calcula que, de dezembro a março, o País perdeu mais de 1,2 milhão de postos de trabalho, entre 1997 2. A RUPTURA Fonte: Banco Central do Brasil *estimativa, Paribas retratodoBRASIL 22 O PESSIMISMO DA INDÚSTRIA EM APENAS 2 MESES, AS PROJEÇÕES DA CNI MUDARAM RADICALMENTE O ORÇAMENTO 2009, EM 3 ETAPAS COMO ERA O ORÇAMENTO, COMO FOI APROVADO E COMO FICOU APÓS O CONTINGENCIAMENTO Lei do Projeto da Lei Orçamento do Orçamento Anual 2009 Anual 2009* aprovada** PROJEÇÕES DO DESEMPENHO DA ECONOMIA BRASILEIRA EM 2009 1/12/2008 PIB 2,00 % PIB industrial 1,80 % Desemprego 8,20 % Consumo das famílias 3,00 % Investimento 3,00 % IPCA 4,80 % Selic 11,25 % Juros reais 6,60 % Déficit público nominal/PIB 1,90 % Superávit primário/PIB 3,35 % Dívida líquida/PIB 37,00 % Câmbio* 2,25 Exportações** 170,00 Importações** 155,00 Saldo balança comercial** 15,00 Saldo balanço conta corrente** -30,00 1/3/2009 0,00 % -4,40 % 9,10 % -0,90 % -4,40 % 4,20% 9,00 % 5,20 % 2,10 % 2,70 % 37,90 % 2,22 157,00 139,00 18,00 -25,00 Fonte: Confederação Nacional da Indústria *reais por dólar **em bilhões de dólares tárias de 151 bilhões de reais. Se for confirmada, representará um corte gigantesco. De suas despesas de custeio e investimento, o Ministério das Cidades perde 36,1%; o do Turismo, 86,4%; o da Defesa, 28,4%; o dos Esportes, 85,8%; o da Justiça, 43,3%; o da Integração Nacional, 35,7%; o da Agricultura, 51,5%; o do Desenvolvimento Agrário, 32,7%. Mesmo ministérios voltados para áreas sociais críticas teriam perdas expressivas: o do Desenvolvimento Social e Combate à Fome teria corte de 21,5%; o da Educação, de 10,6%; o da Saúde, 6,6%. Só o dos Transportes perderá pouco, 0,54%. O ministro Paulo Bernardo, do Planejamento, avalia que o contingenciamento, em vez de ser relaxado, pode aumentar: “É maior a chance de ter restrição adicional do que folga”, disse ele. E, para compensar a queda na receita, disse Bernardo, o governo começará por adiar a contratação de servidores aprovados em concursos públicos, com o que pretende economizar 1,1 bilhão de reais. Com o contingenciamento anunciado, que bloqueia as iniciativas de investimento de quase todos os ministérios, o governo Lula viu sua situação se inverter. O presidente gozava de uma popularidade enorme, de acordo com as pesquisas de opinião pública tradicionais. No início do ano, tivera uma reunião quase apoteótica com milhares de prefeitos, em Brasília. Com a crise, além de conter os gastos, começou a fazer esforços para reanimar a economia. Nem uma coisa nem outra foram bem recebidas por todos. O governo já tinha cortado o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos automóveis, para favorecer essa indústria. O IPI, juntamente com o Imposto de Renda (IR), é um dos tributos que fazem parte do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos EsretratodoBRASIL 22 Reprogramação da LOA 2009*** Crescimento real do PIB 4,50% 3,50% 2,00% IPCA no ano 4,55% 4,50% 4,50% Crescimento da massa salarial nominal 14,08% 12,95% 6,29% Câmbio R$/US$ 1,71 2,04 2,3 111,87 76,37 47,27 13,99% 13,57% 10,80% Barril de petróleo, em US$ Taxa Selic, no ano *agosto de 2008 ** dezembro de 2008 ***março de 2009 tados. A União é que os recolhe e os repassa regularmente para os outros dois entes da federação. No bimestre, a receita do IPI, especialmente em função da isenção, caiu 26%. O corte teve grande impacto na arrecadação dos estados e municípios mais pobres. O governador de Pernambuco e presidente do PSB, Eduardo Campos, no começo de abril, criticou duramente a medida. Segundo ele, a atual política de combate à crise do governo federal tem prejudicado estados e municípios do Norte e do Nordeste do País. Pouco industrializados, disse ele ao jornal Valor Econômico, eles só têm recebido o lado ruim das medidas, a redução dos repasses federais. A intenção da equipe econômica do governo, até o impacto da divulgação dos dados do IBGE, em março, era perseguir a meta de um superávit primário de 3,8% do PIB, estabelecida pelo governo na LDO e na LOA aprovadas em 2008. Não se pretendia utilizar um mecanismo, avalizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2005, que permite ao governo deduzir da meta de superávit primário 0,5 ponto percentual para gastos no Programa Piloto de Investimentos (PPI), no qual se inclui o PAC. O governo estimava ainda que poderia economizar mais 0,5% do PIB para alimentar o Fundo Soberano do Brasil (FSB), aprovado no Congresso para ser usado com vistas a aquecer a economia doméstica em momentos de crise. Na prática, o esforço de economia de receitas primárias seria, então, de 4,3% do PIB. Com a deterioração da situação, esses planos desmoronaram. O governo incluiu os gastos do PAC no PPI, reduzindo, na prática, o superávit para 3,3% do PIB. E até mesmo a oposição, que criou dificuldades e limites para a aprovação do FSB, passou a defender o seu uso para compensar municípios e estados afetados pela perda de receitas decorrentes das isenções feitas para estimular setores industriais. No início de abril, apesar de o ministro da Fazenda, Guido Mantega, continuar a afirmar que o governo não mexeria no superávit primário de 3,8% – ou de 3,3%, excluindo-se os investimentos do PPI –, no próprio ministério havia documentos que estimavam que, sem um corte maior na economia de recursos para pagar os juros da dívida pública, o governo federal teria de reduzir mais os investimentos e outros gastos programados, além do que foi contingenciado em março. Também não conseguiria realizar a meta que é considerada a prioridade das prioridades: as obras de infraestrutura do PAC programadas para o ano. Por que o governo Lula não faz o que a maioria dos países está fazendo? Por que não baixa os juros básicos? Por que não aumenta os gastos do governo incorrendo em déficits para estimular a economia? Por que o ministro Mantega fala em corte de despesas de custeio e o ministro Paulo Bernardo fala em interrupção da contratação de funcionários concursados? A taxa de juros americana, por exemplo, que já era baixa, de 1% ao ano, caiu para 0,25% em meados de dezembro passado. E o Orçamento dos EUA, anunciado no início de março, prevê um déficit de 1,75 trilhão de dólares para este ano, o equivalente a 12% do PIB americano. Com isso, a diferença entre o quanto o governo arrecadará e o quanto gastará será equivalente a mais do que o PIB do Brasil. 3. O NÓ Delfim Netto, um dos conselheiros econômicos do presidente, após a reunião com Lula do início de março para tratar da crise, apresentou aos jornalistas o que o governo não faria: tomar medidas que elevassem a relação entre a dívida líquida do setor público e o PIB, de 35,8% em 2008. É famosa a Carta aos Brasileiros, de meados de 2002, quando o então candidato Lula se comprometeu, se eleito, a manter a política de pagar a dívida pública contraída pelos governos liberais, até então duramente criticada por seu partido e outros grupos da oposição. De lá para cá, o governo Lula cumpriu rigorosamente essa sua promessa. 15 O governo Fernando Henrique Cardoso teve duas fases. A primeira, até 1998, quando manteve uma política de juros altíssimos para atrair capitais estrangeiros e valorizar a moeda nacional, para estabilizá-la. Nesse período, a dívida pública disparou para mais de 50% do PIB. As políticas atuais, a de pagamento da dívida pública com um superávit expressivo e a de juros altos internos para estimular os que tomam dólares lá fora a juros mais baixos, para se aproveitar da diferença entre as duas taxas, são uma continuidade da política de estabilização e foram adotadas com a crise vivida pela economia brasileira em fins de 1998. Naquela ocasião, o Brasil quebrou, teve de internar-se no FMI, que o socorreu com três pacotes de ajuda, o último dos quais no ano da eleição que Lula ganhou. E, simultaneamente, teve de criar uma Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – que Fernando Henrique Cardoso negociou secretamente com o FMI, como Retrato do Brasil já relatou diversas vezes. Essa norma estabeleceu o superávit primário expressivo como centro da política fiscal do País. Como vimos, no Orçamento Geral da União, as receitas primárias vêm dos impostos e contribuições e das chamadas receitas não administradas, que incluem venda de concessões pela União, dividendos recebidos por empresas das quais o governo participa e outras. Já as receitas financeiras vêm de empréstimos e, principalmente, da emissão de títulos da dívida pública federal (DPF), que é determinada pelo Tesouro. Embora os valores financeiros do Orçamento – tanto os das despesas quanto os das receitas – sejam iguais ou maiores do que os primários, mais que o dobro, no caso deste ano, como mostramos, essa parte do Orçamento é quase oculta, não há nenhum destaque na imprensa para os seus números. Os títulos da dívida do setor público – do dinheiro que o governo toma emprestado – vencem regularmente, e praticamente todas as semanas o BC, em nome do Tesouro Nacional, realiza leilões de venda de títulos novos para substituir os títulos que estão vencendo. A parte financeira do Orçamento seria, então, mera rolagem da dívida. Mas não é bem assim. Os juros brasileiros são uma espécie de anomalia inter16 nacional. O País tem as maiores taxas do mundo desde 1992, ainda no governo Collor, quando teve início o esforço de estabilização da moeda brasileira pela atração de capitais internacionais interessados em se aproveitar da diferença de taxas, entre nosso mercado financeiro e o dos países ricos do exterior. Ainda hoje, numa lista de mais de cem países produzida pela agência de avaliação de risco Standard & Poor’s, a Selic (Sistema de Liquidação e Custódia do Banco Central), a taxa básica praticada pelo BC, é a terceira mais alta do mundo (11,25% ao ano), só abaixo das praticadas na Islândia (18%) e na Turquia (11,50%). Até a quebra do País em 1998, a dívida externa e a dívida interna do Brasil cresceram. A partir do primeiro acordo com o FMI, do fim daquele ano, a dívida externa começou a ser paga. O superávit primário expressivo – de 2,92% do PIB em 1999 e crescente até 2005, quando chegou a 4,35% – foi a forma de conter a demanda interna e estimular as exportações, com as quais se obtiveram as divisas para pagar o endividamento no exterior. A dívida pública tem papel central nessa história. O BC usa a dívida para fazer uma política monetária de contração do mercado interno. Ele compra, no mercado secundário, os títulos públicos já vendidos ao mercado nos leilões públicos. E, com esses títulos, regula a oferta da moeda no mercado interno com vistas a conter o consumo. Para isso usa como referência a Selic, fixada pelo Comitê de Política Monetária (Copom). Quando há muito dinheiro no mercado e os juros começam a cair abaixo da meta estipulada pelo BC para a Selic, o banco oferece títulos do Tesouro a juros mais altos e paga mais pelo dinheiro – com isso tira dinheiro do mercado, ou seja, reduz a liquidez. Normalmente, qualquer banco central faz isso. Mas faz também a operação oposta. Quando tem pouco dinheiro no mercado, injeta dinheiro, compra títulos públicos, dá liquidez ao mercado, reduz a taxa de juros. Em relação aos juros praticados em outros países, no entanto, sistematicamente, desde 1992, o BC brasileiro, na média, sempre se empenhou em manter os juros mais altos. Durante o recente boom da economia mundial – entre 2002 e 2007 –, a econo- mia internacional cresceu como nunca, as commodities que o Brasil vende subiram de preço espetacularmente e o País acumulou, como muitos outros emergentes, grandes reservas – no caso, cerca de 200 bilhões de dólares, que seriam suficientes para cobrir a dívida externa pública e a dívida externa privada juntas. Isso permitiu ao presidente Lula dizer que nossa dívida externa estava zerada. Mas as reservas não vão efetivamente pagar a dívida. No mesmo período de crescimento da economia mundial, o capital estrangeiro realizou enormes aplicações aqui, principalmente na compra de empresas, mas, mais ainda, em investimentos de curto prazo, em aplicações na bolsa e mesmo em títulos do Tesouro. As reservas são, em boa medida, a contrapartida desses investimentos externos de curto prazo. Enquanto o investidor de fora mantiver o dinheiro aplicado no País, esse dinheiro compõe as reservas. Os prejuízos do País com a política de juros aparecem de várias formas. As reservas estão aplicadas a juros internacionais, que tradicionalmente já são baixos, mas, nesse primeiro trimestre de 2009, estão praticamente negativos. Enquanto isso, o BC está pagando ao investidor na dívida pública interna 11,25% ao ano. A diferença entre o juro externo e o interno vira prejuízo do BC que é inteiramente coberto pelo Tesouro. Outro problema das reservas é que, quando o investidor fica satisfeito com seus lucros, quer repatriar seu dinheiro. Se ele entrou com 1 milhão de dólares e a moeda estava cotada a 2 reais, ele converteu seu dinheiro em 2 milhões de reais. Se aplicou o montante a 10% ao ano, por exemplo, gerou 2,2 milhões de reais ao fim de 12 meses. Se, quando saiu, o dólar estava a 1,70 real, ele levou 1,3 milhão de dólares. Ganhou 30% no ano. Foi isso o que aconteceu no período em que o real se valorizou, de 2005 até setembro do ano passado. Foram realizados enormes ganhos pelos capitais que especularam na valorização de ações na bolsa brasileira, por exemplo, e na valorização do real, movimentos que lhes permitiam ganho duplo com a bolsa e a moeda nacionais. Nos discursos oficiais do governo, nos relatórios sobre as contas do País divulgados pelo BC, a economia parecia “blindada” contra a crise até pelo menos o fim retratodoBRASIL 22 do ano passado. Isso ficou claro quando, em 20 de março, o BC divulgou as atas das reuniões do Copom de outubro e dezembro. Em outubro, o comitê avaliou “que o risco de materialização de um cenário inflacionário menos benigno segue elevado” e, em dezembro, que havia “riscos para a dinâmica inflacionária, derivados da possível persistência da elevação da inflação observada neste ano [2008]”. Para afastar um suposto risco de inflação de demanda interna, o BC manteve a taxa de juros em 13,75% anuais nessas duas reuniões. Foi só em janeiro que ele resolveu adotar uma política monetária mais expansionista, baixando os juros em um ponto percentual, para 12,75%. E, dois dias depois da divulgação dos dados do IBGE, em março, uma segunda reunião do Copom reduziu em mais 1,5 ponto a taxa, para 11,25%. Esses dois cortes na Selic representam para o governo uma economia de até 14,5 bilhões de reais em gastos com juros da dívida pública em 2009 (caso a Selic continue em 11,25% até dezembro). Mas o dinheiro poupado, de acordo com a LRF, não pode servir para a realização de investimentos ou o pagamento de outras despesas que não aquelas com abatimento de encargos da dívida pública. A lei negociada com o FMI pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso em 1998 começou a valer em 2000. Ela alterou o Código Penal Brasileiro com o objetivo de estabelecer penas para “crimes contra as finanças públicas”. Como exemplo, “ordenar despesa não autorizada por lei”, que é autorizar despesa não prevista no Orçamento. A pena para o administrador público que transgride a regra é de um a quatro anos de prisão. A LRF também determina que, quando o BC lucra em suas transações, esse lucro não pode ser usado pelo Tesouro para gasto público; deve ser aplicado no pagamento da dívida pública. Já quando o BC tem prejuízo, o prejuízo é arcado pelo Tesouro. Entre o fim de 2006 e o de 2007, as reservas internacionais do País passaram de 85,8 bilhões de dólares para 180,3 bilhões de dólares. No mesmo período, a moeda americana se desvalorizou 16,8% frente ao real. Com o dólar valendo menos, todas as aplicações do banco nessa moeda (como os títulos da retratodoBRASIL 22 dívida americana, por exemplo) passaram a valer menos, dando prejuízo ao BC. Agora, com a disparada do dólar provocada pelo agravamento da crise internacional, a situação se inverteu. O BC lucrou 140 bilhões de reais em 2008, revertendo um prejuízo de 47,5 bilhões de reais que havia apurado em 2007. O resultado positivo do ano passado foi transferido ao Tesouro, mas os recursos só podem ser usados no abatimento de parcelas da dívida. Ou seja, existe um verdadeiro nó no Orçamento que impede que os recursos primários e financeiros sirvam à execução de obras e programas necessários para o crescimento e o desenvolvimento tecnológico do País. 4. A ESPADA Diz a lenda que Alexandre, o Grande, ganhou um presente de Zeus por ter cortado, com sua espada, o complicado “nó górdio”, que por 500 anos desafiava os que tentavam desamarrá-lo. Talvez o nó do Orçamento também não se resolva com delicadezas. Em uma entrevista coletiva concedida no início de março em Brasília, Sicsú espantou os jornalistas acostumados a cobrir as falas de autoridades econômicas e monetárias brasileiras quando defendeu que o BC deveria promover um corte de 5,75 pontos percentuais na taxa Selic até outubro. Ele disse que, com isso, o governo economizaria 30 bilhões de reais e poderia manter os gastos públicos. 17 “O BC tem de acelerar”, explicou ele a RB dias depois. “Tem de reduzir o espaço entre uma reunião e outra do Copom. Atualmente é de 45 dias, é muita coisa. Numa crise, o governo deve estar em assembleia permanente. O BC também tem de ter esse grau de mobilização.” Ele diz que o BC precisa parar de se preocupar com a inflação. “Só aqui no Brasil alguém pode ter essa desconexão com a realidade para pensar em inflação quando temos acumulados aí, em três meses, mais de 1,2 milhão de desempregados. A expectativa de inflação está em torno de 4%. Grande parte das instituições financeiras está dizendo que o Brasil vai crescer 1%, e algumas delas estão dizendo que o Brasil vai ter crescimento negativo. Se na cabeça desses analistas financeiros a economia, quando cresce, gera inflação, então, se ela não vai crescer, ela não vai gerar inflação.” Para Sicsú, não há “a menor conexão entre juros e inflação”, há ligação “entre juros e crescimento, geração de emprego. Na entrevista coletiva, os jornalistas perguntavam: ‘Mas, se baixarmos os juros dessa forma, não vamos ter inflação?’ Eu falei: ‘Vamos ter inflação por conta de quê? Porque as pessoas estão comprando muito, os produtos estão faltando nas prateleiras, os preços começaram a subir?’ Se acontecer isso, ótimo, nós seremos os únicos do mundo que teremos inflação de demanda em 2009. Se tivermos inflação por excesso de crescimento em 2009, que viva a inflação! Quando ela chegar, vamos tratar dela, porque já teremos resolvido o problema do desemprego”. Sicsú diz que a diferença dessa crise para as anteriores é que ela tem como núcleo os países ricos: “Nas outras, os países em desenvolvimento estavam em crise e as recomendações de aumentar os juros vinham dos países desenvolvidos. Mas os países desenvolvidos não fazem o que eles recomendam. Quando estão em crise, baixam a taxa de juros. Agora não dá para eles dizerem para aumentar os juros. Os EUA fizeram a redução da taxa de juros mais brusca de toda a sua história. Só os brasileiros que têm interesses de rentistas podem pensar em cortar gastos públicos e manter os juros nesse patamar”. Para ele, o Brasil pode crescer muito mais pelo estímulo dos gastos públicos do 18 que pelo investimento do setor privado: “O setor privado já se retraiu. Para impedir isso, o BC tinha de ter promovido uma redução drástica da taxa de juros já em agosto ou setembro do ano passado. Aí sim estimularia o investimento privado. Agora, há um espaço para o investimento público. Miséria e pobreza dão espaço para fazer políticas sociais. Quem mais empregava no período pré-crise, de janeiro a setembro, era o setor privado. De outubro até janeiro, o setor público empregou mais do que o privado. Isso mostra que o aparelhamento que o Estado brasileiro precisa está em curso. Tal como ocorria no período pré-crise, estavam sendo feitos concursos, gente estava sendo efetivada. Agora estão pressionando o governo, dizendo que não é hora de concurso, de contratar, mas acho que essa é uma oportunidade de transformarmos essa crise em mudanças estruturais que terão impactos macroeconômicos. Podemos sair dessa crise com taxas de juros e de câmbio compatíveis com os países mais desenvolvidos do mundo. Podemos sair com uma maior cobertura social. O gasto social mediante ampliação de programas como o Bolsa Família e o Bolsa Atleta tem velocidade máxima de impacto na capacidade de gerar emprego e renda, pois quem recebe esse gasto transforma-o quase imediatamente em consumo. Agora, o gasto com pagamento de juro, por exemplo, quase não gera renda e emprego”. Ouvindo Sicsú, parece coisa simples reduzir os juros e aumentar os gastos públicos para estimular a economia. Por que será que o governo não faz isso de modo mais radical? Em um subsolo do anexo II da Câmara dos Deputados, em Brasília, trabalha o economista e assessor parlamentar Flávio Tonelli, um dos maiores especialistas brasileiros quando o assunto é orçamento público. Em 2003, no primeiro ano do governo Lula, ele disse à repórter que o fato de as metas de resultado primário e as metas fiscais da LDO condicionarem o conteúdo e a execução do Orçamento era uma inversão que estava de acordo com o modelo econômico: sem capacidade de intervir na produção e construção de infraestrutura pública, o Estado se reduzia ao papel de fixar regras claras e estáveis para garantir o retorno financeiro dos investidores privados. Ele citou na ocasião uma frase do ex-ministro do Planejamento e atual banqueiro João Sayad: “O déficit público é o programa de renda mínima do capital”. “Essa expressão sintetiza o fato de que, atualmente, no Brasil, como em muitos países, um dos rendimentos do capital é obtido do Estado, por meio dos juros da dívida pública, que reduzem os gastos sociais dos orçamentos”, disse Tonelli. Hoje, ele afirma que, após dois mandatos do presidente Lula, a situação não mudou muito: “O programa de renda mínima do capital continua rolando. O dinheiro que o governo paga pelos títulos, para os especuladores, os rentistas, ele continua pagando a juros altos. Alguns dados mostram que o Bolsa Família melhorou a renda de 11 milhões de famílias. Mas, do ponto de vista do Estado, isso foi uma permissão. Ou seja, o Estado não diminuiu os juros para dar dinheiro ao Bolsa Família. Ele não diminuiu o que dá para o andar de cima para dar mais para o andar de baixo. Ele aproveitou a arrecadação recorde de 2008 para dar mais de 96 bilhões em juros para o andar de cima [os juros pagos pelo governo federal em 2008] e 13 bilhões para o de baixo, com o Bolsa Família”. Tonelli destaca outro aspecto que não se alterou entre 2003 e 2008: o excesso de superávit primário. “De 2003 a 2008, a meta de superávit não só foi mantida como foi praticado um superávit muito acima dos níveis legais. Mecanismos como o PPI não foram utilizados, mesmo estando à disposição do governo. O governo poderia ter lançado mão desse mecanismo desde 2005, quando o FMI deu aval para ele. Vamos ver se, com essa crise, ele realmente lança mão disso.” Usando dados da Secretaria do Orçamento Federal, da Receita Federal, do Orçamento de 2008, da Proposta Orçamentária de 2009 e de relatórios do IBGE, Tonelli mostra que desde 2006 o governo poderia ter gastado mais do que gastou descontando 0,5 ponto percentual da meta de superávit para fazer investimentos com o PPI. No ano passado, por exemplo, poderia ter empregado 20,2 bilhões, mas gastou apenas 7,8 bilhões. “Só nesses três anos deixou de investir mais de 15,3 bilhões de reais, que foram para baixo do colchão”, diz. retratodoBRASIL 22 Tonelli lembra que gasto público “não é necessariamente investimento. Muitas políticas públicas não funcionam sem despesas de custeio. Mas, se a arrecadação está caindo e a meta de superávit continua constante, alguém vai perder, e esse alguém, com certeza, vai ser o orçamento primário”, no qual estão as despesas de custeio. “Cortar no custeio é bastante grave”, diz. Serão afetadas as escolas, os hospitais, a proteção social, os assentamentos de reforma agrária, o financiamento dos demais programas de governo que não sejam a dívida, etc. Tonelli acrescenta que, além de ser a renda mínima do capital, “o déficit público é um entrave para a produção. Quem vai montar uma fábrica se pode ganhar, sem risco, 11,25% ao ano com os títulos do governo? Como o setor privado vai para o investimento produtivo, colocar em risco o seu capital, enquanto pode ter 11,25% sem risco?”. Ele concorda com Sicsú quanto ao corte radical da taxa de juros: “É preciso reduzir a taxa Selic. Não vou dizer nem para patamares europeus nem americanos, que estão praticando juros reais negativos [quando a taxa de inflação prevista é maior do que a dos juros praticados], mas, se o BC baixasse imediatamente quatro ou cinco pontos percentuais, de 12% para 8%, para 7%, nós teríamos investimentos produtivos, seria viável as pessoas colocarem o dinheiro em circulação”. Tonelli, assim como Sicsú, acha que a crise é uma oportunidade para o governo construir infraestrutura: “O País não tem estrutura, por exemplo, para explorar toda a riqueza do pré-sal. Precisamos de um determinado nível de maturidade de investimento. Vamos exportar gasolina, nafta, diesel, ou vamos exportar óleo cru? Com a infraestrutura atual, vamos exportar óleo cru, porque não temos refinaria suficiente para fazer outra coisa. Teríamos de aproveitar este momento para construir refinarias. Nós temos dinheiro e temos de fazer investimentos públicos. O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], por exemplo, deveria ter uma linha de crédito para montar fábricas de ração. Se o sujeito aparece querendo plantar soja, ele deveria dizer: ‘LaretratodoBRASIL 22 mento, mas agora o crédito é para fábrica de ração’. O BNDES está apoiando os exportadores antigos, porque não tem um projeto que condicione o crédito público a um determinado resultado de longo prazo. Falta ao governo a capacidade de dirigir o País para outros paradigmas”. O economista diz que “o governo, até agora, pôde dar uma esmola para os pobres, com o Bolsa Família, e um saco de dinheiro para os ricos, com os juros dos títulos da dívida pública. Mas, com a crise, ele vai ter de escolher. E ele tem de ser muito fiel aos interesses dos especuladores para manter esse superávit e os juros nesse patamar. Porque, em consequência dessa política econômica, a crise será ainda maior para os brasileiros, crescerá o desemprego e diminuirá a proteção social, os bilhões em cortes no Orçamento prejudicarão a vida de milhões”. 19 20 retratodoBRASIL 22 retratodoBRASIL 22 21 Sociedade: UM DRAMA EM BUSCA DE EXPIAÇÃO 22 retratodoBRASIL 22 A mídia e políticos conservadores confundem a opinião pública ao dizerem que a pedofilia é coisa de “monstros”. No entanto, nem todo agressor sexual de crianças é pedófilo e nem todo pedófilo agride crianças | Léo Arcoverde O pequeno bairro de Jardim Alpino II está situado na margem direita da rodovia Washington Luiz, na periferia de Catanduva, a 390 quilômetros a oeste da capital paulista, na região de São José do Rio Preto, interior do estado de São Paulo. É uma área desolada, que nasceu a partir da construção de 267 casas populares com 3 metros de largura por 4,5 metros de comprimento. O lugarejo começou a ser habitado em 1992, e seus primeiros moradores pagavam, na época, o equivalente a 17 reais de mensalidade (hoje pagam 97 reais). As ruas eram, até menos de cinco anos atrás, de barro. A maioria das casas permanece sem acabamento, com blocos de concreto cinza à vista, rejuntados precariamente com cimento. Até certa madrugada, em meados de dezembro do ano passado, o Jardim Alpino II era um lugar desconhecido e remoto até para a maior parte dos 115 mil catanduvenses. Foi quando policiais militares prenderam um homem de meia-idade no bairro vizinho, o Residencial Cidade Jardim. Tudo começou com a denúncia de Roseli Cristina Prudêncio, 30 anos, diarista, mãe de quatro filhos, que acionou o telefone 190 depois de estranhar o fato de sua filha, de 8 anos, ter chegado em casa, por volta das 22h de 14 de dezembro, com uma foto. “Na hora em que eu vi a foto da minha filha, da cintura para cima, de roupa, mas com os olhos cheios de lágrimas, o sangue subiu”, lembra Roseli. O autor da fotografia era José Barra Nova de Melo, o Zé da Pipa, retratodoBRASIL 22 bicicleteiro, 46 anos, que se apresentava a crianças da região como um fazedor de pipas, antes de levá-las para casa e supostamente abusar sexualmente delas. “Ah! Eu catei a foto e fui na casa dele. Chamei, chamei... E o Zé da Pipa não saía. Aí dois dos meus filhos o chamaram e ele saiu.” Não satisfeita com as explicações do bicicleteiro sobre a fotografia, Roseli ligou para a polícia. Uma hora e meia depois, os policiais chegaram e começaram o interrogatório. Qual o sentido daquela foto? O bicicleteiro se defendeu, dizendo que sua ideia era usar a imagem da menina numa pipa que ele e a menina fariam juntos: um “papagaio personalizado”. Já passava da meia-noite e a esquina da rua Ipatinga com a Marandiba concentrava um público que só situações dessa natureza são capazes de atrair. Intrigados com a história, os policiais resolveram revistar a bicicletaria. Queriam tirar a limpo tudo aquilo que os vizinhos vinham lhes contando desde que chegaram ao local: que crianças, muitas crianças, a maioria delas moradoras do Jardim Alpino II, eram molestadas pelo bicicleteiro ali dentro. Que ele teria, ainda, o hábito de filmá-las enquanto abusava delas. A bicicletaria ocupa um dos dois cômodos erguidos nos fundos de uma casa de esquina em construção na rua Ipatinga. Lá, os policiais constatam algo que batia, em tese, com o que diziam os vizinhos: eles apreenderam 28 fitas de vídeo VHS, aparelho MP4, que reproduz DVDs, brinquedos e balas. Zé da Pipa recebeu voz de prisão por suspeita de crime de atentado violento ao pudor com base no depoimento de duas crianças que afirmaram terem sido molestadas pelo bicicleteiro. Ele foi levado para o plantão policial. O boletim de ocorrência dizia: “No local, o suspeito teria foto de dois menores [...] Em contato com um dos menores, ele disse que teve contato sexual por diversas vezes com o suspeito e que o homem teria praticado sexo com o garoto. Entretanto, a última relação teria ocorrido há três meses. Na noite de domingo [14 de dezembro de 2008] os menores informaram que não houve contato sexual, mas o suspeito teria passado a mão nas costas e no cabelo de dois menores”. Com relação ao material apreendido, recaiu a suspeita de violação ao artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual sofrera alteração três semanas antes, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, em meio ao Congresso Mundial para o Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, no Rio de Janeiro, uma lei criada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, do Senado Federal, para punir pornografia infantil na internet. Segundo a nova legislação, quem produz, reproduz, dirige, fotografa, filma ou registra cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente passa a estar sujeito à pena de reclusão de quatro a oito anos, além de multa. 23 Mesmo com tudo isso sobre seu costado, Zé da Pipa neg ou qualquer envolvimento com crianças do Jardim Alpino II e acabou liberado. O inquérito policial prosseguiu. ESCÂNDALO NACIONAL Fim do ano passado, 29 de dezembro, faltavam quinze minutos para as dez horas da manhã. Cristiane chegou à Escola Municipal Nelson Macedo Musa, onde três dos seus quatro filhos estudam, sem grandes expectativas: é o dia de entrega dos boletins com as notas obtidas pelos alunos na prova de recuperação e ela já sabe que seu filho de 10 anos terá de cursar, no ano que vem, novamente o terceiro ano (antiga segunda série) do ensino fundamental. Cristiane tem 38 anos e uma história triste. Nascida no Recife (PE) e criada em Olinda (PE), ela deixou a casa onde morou até os 11 anos ao ser expulsa pela mãe. O motivo? Cristiane se queixou a ela do fato de seu padrasto a molestar sempre, “quase todos os dias”, durante três anos, enquanto a mãe estava fora, trabalhando como diarista. “Eu tinha oito anos quando meu padrasto começou a me estuprar. E o pior: minha mãe achava que eu era a culpada, que eu dava corda para ele fazer aquilo comigo! Eu sou a segunda de quatro irmãos: eu e meu irmão mais velho, filhos do meu pai, que tinha deixado minha mãe quando eu era bem novinha, e outros dois menores, filhos do meu padrasto. Esses dois pequenos estudavam, e, como o meu irmão começou a trabalhar muito cedo, de ambulante, e minha mãe também trabalhava fora, eu passava a maior parte do tempo em casa, com esse meu padrasto.” O padrasto era quem a salvava dos espancamentos da mãe. “Ela pegava eu [sic] e meu irmão mais velho, amarrava a gente com uma corda e batia sem dó.” Cristiane conta que via nos olhos da mãe o ódio ressentido desde que o primeiro marido a deixou. O padrasto, enquanto a molestava, usava isso como moeda de troca: dizia que, se Cristiane contasse algo à mãe, não seria mais salva das surras que sofria junto com o irmãozinho... Mesmo assim, Cristiane contava. Cristiane deixou Olinda e foi trabalhar como empregada doméstica na Vila Mariana, bairro da zona sul paulistana. Seis anos depois, casou-se com o carteiro que 24 passava toda semana na casa da patroa, onde morava. O carteiro, que é de Catanduva, a levou para morar na cidade. É pai de sua filha de 17 anos e do filho de 10. Viveram juntos durante anos, até que se separaram. Pouco depois, Cristiane decidiu viver com Zé Jardineiro, seu vizinho. Cristiane conversava com o diretor da escola, Edmilson Sidnei Marques, 47 anos, pedagogo e professor de educação física, há quase duas décadas e meia trabalhando com crianças. A escola que dirige tem 840 alunos matriculados, uma média de 28 estudantes por funcionário. “Você sabia, Cris, que o Zé da Pipa foi preso?” “Sei, meu filho me contou que ele tava vendendo cerol [material composto de cola e vidro usado na confecção de pipas, proibido de ser comercializado] lá na bicicletaria. Por isso, os policiais o pegaram...”, respondeu ela já se encaminhando na direção do portão da escola para voltar para casa. “Não, não, não! Ele foi preso por pedofilia!” Para Cristiane, aquelas palavras foram como um soco. Um pensamento, de imediato, irrompeu em sua cabeça: “Esse não é o mesmo Zé da Pipa com quem meu filho anda faz uns seis meses?”. Daí, a lembrança: meses antes, no fim de julho, o menino pediu a ela e a Zé Jardineiro para ir até a casa de Zé da Pipa aprender a consertar bicicletas e fazer pipas. Na época, seu marido foi na casa do bicicleteiro para averiguar que tipo de ambiente o menino estaria frequentando e quais companhias teria por ali. “Não se preocupa, seu Zé Jardineiro, que seu filho vai ser sempre muito bem tratado aqui. Pode ficar sossegado...”, disse o bicicleteiro. A conversa de Cristiane com Edmilson não precisava ir adiante. Ela, enquanto juntava peça com peça do quebra-cabeça que se tornou a vida de seu filho nos últimos meses, culminando na sua reprovação, ensaiou passar mal ali mesmo. A volta para casa, uma caminhada de dez minutos, foi penosa. Ao chegar, aos prantos, o marido a acudiu. Queria saber o motivo daquilo tudo. Já não tinha conhecimento de que o menino seria reprovado? Foi quando Cristiane contou o que havia sabido por Edmilson. Zé Jardineiro, desnorteado sobre que rumo tomar – afinal, sabia-se, Zé da Pipa estava solto por aí, – decidiu seguir o conselho de um amigo do bairro: foi procurar a imprensa, botar a boca no mundo! À Rádio Jovem Pan Catanduva fez um apelo, em forma de entrevista de uns dez minutos, para que pais do lugar onde vive que tivessem qualquer desconfiança quanto ao comportamento de seus filhos e sobretudo desconfiassem de que eles frequentavam, por algum motivo, a bicicletaria do Zé da Pipa, denunciassem. A denúncia fez que mães, muitas que assistiram, acabrunhadas, ao episódio da prisão do Zé da Pipa com uma desconfiança martelando na cabeça, fossem à Justiça. Resultado: em menos de duas semanas a investigação teve de ser retomada. Dias depois, descobriu-se algo maior: que William Mello de Souza, 19 anos, sobrinho de Zé da Pipa, e dois travestis menores de idade participariam de um esquema de aliciamento de crianças. Zé da Pipa e o sobrinho foram presos e mantidos sob custódia no Centro de Detenção Provisória de São José do Rio Preto, enquanto os menores foram mandados para a Fundação Casa, antiga Febem. Todos foram denunciados pelo Ministério Público, e o inquérito, encerrado. Inconformadas, mães de crianças supostamente molestadas voltaram à carga para denunciar que havia muitos outros suspeitos além dos quatro detidos. A denúncia, que se desenhava a cada novo depoimento de uma criança que se dizia abusada, agora era outra – e muito mais grave: a de que Zé da Pipa e seus três comparsas integrariam uma rede de molestadores de crianças formada por outros seis suspeitos, dentre eles o médico Wagner Rodrigo Brida Gonçalves, filho do também médico Wagner Gonçalves, endocrinologista muito conhecido em Catanduva, e o empresário José Emanuel Volpon Diogo, casado com uma das herdeiras da poderosa usina de açúcar e álcool Cerradinho, uma das maiores da região. Depoimentos de quase 20 crianças dão conta de que as vítimas eram molestadas na casa do médico, sempre no período da tarde. Por quê? Simples: por participarem de um chamado projeto de contraturno escolar desenvolvido por meio de parcerias da prefeitura local com entidades do terceiro setor, alguns alunos da escola de Edmilson estudavam de manhã e passavam a tarde em retratodoBRASIL 22 Reprodução uma ONG ligada a uma importante escola particular da cidade, para onde eram levados num ônibus da prefeitura. Uma notícia especialmente devastadora para Zé Jardineiro, já que suas duas filhas menores, de 8 e 5 anos, participavam do projeto e afirmavam que eram levadas para a casa do médico para serem molestadas. Conseguiram precisar, por meio de fotografia, até o nome de cada um dos suspeitos. O ônibus da prefeitura pegava os alunos, por volta do meio-dia, num ponto que fica na parte lateral da escola, fora do campo de visão dos funcionários do estabelecimento. No esquema de aliciamento, de acordo com depoimentos de crianças que constam do inquérito policial, existiria uma caminhoneta modelo S10, de propriedade de um dos supostos molestadores, que apanhava as crianças no local em que elas aguardavam o ônibus. A essa altura, o caso tornou-se um escândalo nacional. Representantes da CPI da Pedofilia e da Polícia Federal (PF) foram a Catanduva para colher informações e tentar descobrir se a suposta rede local de molestadores de crianças tinha ramificações em São José do Rio Preto, São Paulo e Rondônia. Os parlamentares ouviram depoimentos de suspeitos e de familiares das vítimas, que falaram com o rosto coberto por máscara para preservar a identidade das crianças. Hoje, a suspeita é de que pelo menos retratodoBRASIL 22 dez pessoas componham uma rede de molestadores que abusaram de cerca de 50 crianças de 5 a 12 anos. O desafio da dupla de delegados Silas José dos Santos e Margarete Franco, nomeados para investigar o caso em meados de março, será justamente elaborar um inquérito que inclua provas materiais que sustentem os depoimentos das crianças supostamente molestadas, fazendo da suspeita uma tese de acusação que será analisada posteriormente pela Justiça após chancela do Ministério Público. A “CÓPULA VAGÊNICA” Instituído pelo decreto-lei número 2.848, de 7 de setembro de 1940, o Código Penal brasileiro não prevê um tipo específico para pedofilia. Por esse motivo, o repórter não usou (nem usará), em momento algum desta história, o termo pedófilo para descrever os molestadores ou autores de violência sexual contra crianças. Em vários países, há dispositivos que tornam a pedofilia um crime, mas, no Brasil, para punir essa modalidade de agressão sexual é necessário se valer de outros crimes tipificados pelo Código Penal, como estupro, atentado violento ao pudor, presunção de violência, lesão corporal, corrupção de menores e, se for o caso, homicídio. A punição, porém, se efetua basicamente condenando o agressor ou pelo crime de estupro – “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” – ou pelo crime de atentado violento ao pudor – “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Para ambos, a pena estipulada é de reclusão de seis a dez anos. O promotor de Justiça André Nogueira da Cunha, que está envolvido na investigação do caso de Catanduva, explica que inquéritos envolvendo molestadores de crianças não são investigações simples de serem feitas: “A investigação de pedofilia é complicada porque envolve, primeiro, uma questão muito íntima, que é o sexo. Segundo, pelo fato de envolver crianças e adolescentes como testemunhas, o que torna o processo mais dificultoso. Por isso se exigem os estudos sociais, técnicos e psicológicos que vão aferir até que ponto aquela informação presente no depoimento é imaginação ou fato”. Chegando ao Judiciário, os casos de crimes sexuais vão se diferenciar entre atentado violento ao pudor e estupro única e simplesmente por uma evidência: se houve ou não a conjunção carnal, conhecida no mundo jurídico, também, por “cópula vagênica”. “Tecnicamente, o ato sexual é a cópula vagênica”, diz Cunha. “O atentado violento ao pudor engloba todos os outros atos libidinosos que não envolvam a conjunção carnal. Por essa razão, o estupro só pode ser caracterizado quando envolve uma mulher como vítima.” O que quer dizer, na prática, que, se uma mulher de seus 40 anos obrigar, mediante violência, um menino de 6 anos a fazer sexo com ela, esse ato vai ser caracterizado como atentado violento ao pudor. Jamais estupro. Outro exemplo: se um homem maior de 18 anos praticar sexo anal com um menino ou menina e isso for comprovado judicialmente, ele será condenado, da mesma forma, pelo crime de atentado violento ao pudor. A instituição do ECA reforça a presunção da violência ao se praticar ato sexual com um menor de 14 anos, mesmo quando houver o alegado consentimento da criança ou adolescente. Isso acabou com a chance de o agressor afirmar que a menina ou o menino queria praticar sexo ou até pediu. Qualquer caso desse tipo pode recair sobre o costado do agressor o crime de estupro ou de atentado violento ao pudor. >> 25 Reprodução >> A popularização da internet mudou radicalmente tanto a prática de crimes sexuais contra crianças e adolescentes quando o seu combate. Ela estimulou a propagação desse crime ao facilitar a troca de material pornográfico infantil e aproximou os predadores de suas vítimas potenciais – inocentemente expostas nos chamados sites de relacionamento. Só em 2008, a Safernet Brasil, organização não governamental que cataloga denúncias de crimes cibernéticos, recebeu 57,5 mil denúncias de pornografia infantil eletrônica – uma média de quase 160 por dia. OS BOY LOVERS Com a sanção da lei criada pela CPI da Pedofilia para punir a pornografia infantil na internet, o cerco policial aos chamados boy lovers, como se denominam alguns desses agressores nos sites de relacionamento, se fechou, muito pelo fato de tornar crime a simples posse de material pornográfico infanto-juvenil. Quanto à competência sobre a investigação, a mudança trazida com a nova legislação é brusca: se o processo de veiculação e acesso de material pornográfico infantil se der no âmbito estadual, cabe à Polícia Civil, ao Ministério Público e à Justiça do estado dar curso ao processo. Agora, havendo a comprovação de que esse material pornográfico foi acessado em outros pontos do território nacional ou do exterior, o processo de elucidação do crime ficará a cargo da PF, do Ministério Público e da Justiça federal. Instalada em março de 2008, como consequência da Operação Carrossel I, da PF, que desbaratou uma rede de molestadores de crianças na internet, a CPI da Pedofilia, do Senado Federal, completou um ano sem que se atingisse o grande objetivo de seu presidente, o senador Magno Malta (DEM-ES): a tipificação, no Código Penal, do crime de abuso sexual contra crianças, denominado pedofilia e encarado como crime hediondo, com pena de 30 anos. “Não vou propor nada menor do que isso”, bradava o senador dias antes de a CPI ser instalada. “Hoje ficam juntando um monte de coisa: aliciamento de crianças, atentado violento ao pudor, formação de quadrilha... Chega um bom advogado e consegue descaracterizar. O cara sempre fica livre!” Malta prometeu: “Será uma CPI corajosa. Vamos pegar todo mundo. Tenho 28 muito material. Há muitas redes internacionais infiltradas no Brasil para a prática da pedofilia e do tráfico de pessoas”. A euforia, ao que parece, ocultava dois possíveis trunfos certamente calculados por Malta àquela altura. Primeiro: o impacto midiático que a CPI teria, pela natureza do tema tratado. Segundo: o lastro eleitoral que as notícias sobre as atividades da CPI dariam a seus integrantes de maior destaque. Malta sabe de cor e salteado que tipo de colheita se faz depois de protagonizar uma comissão de inquérito de grande popularidade: em 1999, ele presidiu a CPI do Narcotráfico, que ajudou a mandar para a cadeia 348 pessoas, incluindo o traficante Fernandinho Beira-Mar, e deu a visibilidade que ajudou Malta a, três anos mais tarde, na eleição de 2002, ser eleito com 867,5 mil votos, o senador mais votado na história do Espírito Santo, o que consagrou uma carreira política meteórica iniciada dez anos antes, quando Malta se elegeu vereador de Cachoeiro de Itapemirim. REAÇÕES DE VINGANÇA Como presidente da CPI da Pedofilia, Malta procura fundir a imagem de defensor das crianças vítimas de abuso sexual à sua condição de pastor evangélico da Igreja Batista, arvorando-se, ao final, como o líder religioso destemido que, ao lado de Deus, vai “enjaular” os pedófilos de toda parte do Brasil, onde quer que atuem. Sob esse manto nasceu a hoje badaladíssima disposição do Congresso para tratar de um assunto tão delicado, liderada por um parlamentar que acha que pedofilia não é doença, diferentemente do entendimento da medicina. “Só se for 5%, 95% é safadeza”, Malta costuma afirmar. As ações de Malta são reverberadas por parte dos jornalistas, sempre no encalço do senador em seu périplo em busca dos “monstros pedófilos”. É o caso de José Luiz Datena, ex-repórter esportivo e apresentador do telejornal policial Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes. O programa faz a mesma linha “sangue, suor e ouriço” que consagrou, em termos de audiência, na década de 1990, o lendário Aqui Agora, do SBT. Quem não se lembra do slogan “um jornal vibrante, uma arma do povo, que mostra, na TV, a vida como ela é”? Nesse contexto que se verifica o bombardeio de notícias sobre casos de agressão sexual contra crianças e adolescentes, como explica a psicanalista Fani Hisgail, em seu livro Pedofilia – Um estudo psicanalítico (Iluminuras, 2007), baseado em sua pesquisa de doutoramento em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), feita entre 1998 e 2001. “As mídias tradicionais e novas dão maior visibilidade ao problema, enfocando o caráter criminal da conduta do pedófilo. As informações, contidas nos meios de comunicação de massa, procuram reproduzir, na íntegra, a ação do transgressor e as penalidades envolvidas. Assim, a opinião pública continua desinformada, fomentando o preconceito e as reações de vingança.” A psicanalista cita, em outro trecho do livro, a pesquisa “O grito dos inocentes”, realizada em 2001 pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) em parceria com o Instituto WCF/Brasil e a Fundación Arcor, que trata justamente da cobertura pela imprensa brasileira de casos de crimes de exploração e abuso sexual infantil. Diz Hisgail que “a polícia figura como fonte principal dos noticiários [...] retratodoBRASIL 22 Do material classificado, 95% são reportagens enfatizando o crime, o que reduz o espaço dos especialistas e dos acadêmicos da área de saúde e de educação, além dos organismos internacionais. Nessa linha, quando a mídia expõe a identidade dos envolvidos, costuma induzir à prévia condenação social dos suspeitos e a visões preconceituosas sobre o ato pedófilo”. O QUE É PEDOFILIA A pedofilia é um transtorno de personalidade da preferência sexual por crianças, quer se trate de meninos ou meninas, geralmente pré-púberes ou no início da puberdade. É o que diz a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), compilação de todas as doenças e condições médicas conhecidas instituída pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no fim da década de 1940 e adotada desde então para diagnósticos no mundo inteiro. Segundo os critérios estabelecidos pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV), a classificação dos transtornos mentais feita pela Associação Americana de Psiquiatria, as crianças prépúberes ou no início da puberdade que são escolhidas pelos portadores do transtorno de pedofilia têm, geralmente, 13 anos de idade ou menos. O agressor deve ter 16 anos ou mais e ser pelo menos cinco anos mais velho que a criança. Do ponto de vista médico, só o indivíduo portador de pedofilia é considerado pedófilo. Não basta que sinta desejo sexual por menores de 14 anos e nutra fantasias constantes com eles. Isso não quer dizer que o diagnóstico de pedofilia corresponde ao de todo e qualquer indivíduo que cometa crimes sexuais contra crianças, os chamados molestadores de crianças. É o que explica Danilo Baltieri, psiquiatra e autor da tese de doutoramento Consumo de álcool e outras drogas e impulsividade sexual entre agressores sexuais, apresentada na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em 2006. O trabalho foi publicado em 2008 na americana Forensic Science International, uma das melhores revistas de medicina forense do mundo. Baltieri entrevistou 218 detentos na Penitenciária Doutor Antônio de Souza Neto, em Sorocaba, interior de São Paulo – todos condenados unicamente por crime de estupro ou por atentado violento ao pudor. retratodoBRASIL 22 “A pedofilia é uma doença com raízes neurobiológicas, neuropsicológicas, com características clínicas bastante distintas e diagnosticáveis. O fato de um indivíduo agredir sexualmente uma criança não significa que ele é portador de pedofilia. Significa que ele é um agressor sexual de crianças ou um molestador de crianças. Ponto. Se ele é ou não portador de pedofilia é um outro assunto. Existem indivíduos portadores de pedofilia que não vão para o ato sexual, não praticam o sexo com crianças. São indivíduos que apenas fantasiam intensamente, que se masturbam pensando em crianças, mas conseguem evitar esse passo grande que é ir da fantasia para o ato sexual.” Os números obtidos por Baltieri ao término da pesquisa não batem, em absoluto, com a convicção do senador Malta de que “95%” dos molestadores de crianças são nada menos que “safados”: “Numa amostra de cem molestadores de crianças, a porcentagem de indivíduos que padecem de pedofilia varia de 20% a 30%; de 40% a 55% são dependentes sérios de álcool – isso quer dizer que o álcool é um fator bastante intercambiável, um facilitador. Há, também, com abrangência de 20% a 25% desses indivíduos, histórias de abuso sexual durante a infância dos agressores”. Já entre os molestadores considerados seriais, que agridem de três a mais vítimas, explica Baltieri, há uma diferença de diagnóstico: “Eles têm, naturalmente, uma impulsividade sexual em geral muito maior. São indivíduos que tomam decisões de maneira súbita e agem sem pensar. Neles, a gente não vê muita diferença, em termos de consumo de álcool e droga, em relação àqueles que não são seriais. Entretanto, o risco de os seriais terem o diagnóstico de pedofilia é quase sete vezes maior. Eles têm fantasias recorrentes, intensas e impulsivas com relação a crianças e adolescentes”. TRATAR, NÃO PUNIR Os molestadores de crianças devem passar por um tratamento psiquiátrico específico. É fundamental saber se esses indivíduos sofrem de algum tipo de distúrbio. “A primeira coisa que deve ser feita é avaliálos do ponto de vista psiquiátrico, para ver se são portadores de algum transtorno psiquiátrico”, diz Baltieri. Os possíveis transtornos são de personalidade ou de pedofilia, dependência de álcool ou droga. “De acordo com a doença, esse indivíduo será tratado, desde que ele queira.” Ainda que nada seja diagnosticado e mesmo assim o indivíduo queira entender o que aconteceu, para chegar ao ponto de ter tido uma relação com crianças, ele será submetido a um processo psicoterapêutico, explica o psiquiatra. Há casos de portadores de pedofilia que não respondem a tratamento algum. Quando isso ocorre, o indivíduo pode solicitar uma medicação à base de hormônio feminino para aplacar seu impulso sexual, geralmente muito grande. Como explica Baltieri, o uso de hormônios “é algo realizado em vários locais do mundo e recomendado, do ponto de vista médico, apenas para aqueles indivíduos portadores de pedofilia que querem se tratar”. Nesses casos, é assinado um termo segundo o qual o paciente é plenamente capaz de entender o que está acontecendo. Estatísticas internacionais da área da medicina forense dão conta que apenas 5% do universo de pedófilos poderia necessitar desse tipo de tratamento, realizado com doses muito baixas de hormônios. “Nunca sozinhos, sempre com outras medicações. E a medicina entende que o tempo de uso dessas medicações é de, no máximo, três a seis meses”, diz o psiquiatra. Sobre o fato de o tratamento ser tachado, até por médicos, de “castração química”, Baltieri é incisivo: “A medicina abomina esse termo. Quando usado, é entre aspas e, mesmo assim, altamente criticado. Desde que administrada adequadamente, é mentira afirmar que a medicação hormonal provoca impotência sexual ou causa sérios efeitos colaterais”. Baltieri tem opinião formada com relação ao bombardeio de notícias sobre molestadores de crianças hoje em curso: “É chocante haver, dentro da sociedade, tantos casos de agressão sexual contra crianças. Entretanto, é um assunto que tem de ser tratado com a máxima seriedade. Se o indivíduo realmente cometeu algum ato sexual contra a criança e isso é provado – ele é julgado por isso –, ele tem de ser avaliado medicamente. É um direito de toda a sociedade. A Lei de Execução Penal prevê isso”. De acordo com o psiquiatra, quando o indivíduo é tratado, e isso não vale somente para o portador de pedofilia, o risco de ele reincidir é muito menor. “A sociedade paga menos tratando do que prendendo.” 29 Defesa: O governo faz grandes planos para modernizar as Forças Armadas e prepara-se para defender a Amazônia da ambição de “uma grande potência”. Por enquanto, o Exército mata guerrilheiros das Farc na fronteira | Carlos Azevedo A recente reunião do G20, os 20 países mais desenvolvidos do planeta, mostrou o Brasil como um de seus membros influentes. Entretanto, enquanto a maioria dos outros participantes pode calçar seus argumentos em sofisticados parques bélicos, inclusive nucleares, comparativamente, o Brasil é um país desarmado. Somente agora começa a implantar uma estratégia para adquirir a musculatura militar que lhe falta para, somada aos exuberantes recursos naturais existentes e ao poderio econômico e tecnológico que já vem alcançando, projetar-se efetivamente como potência em nível mundial. A Estratégia Nacional de Defesa (END) apresentada ao Congresso Nacional em dezembro de 2008 prevê a modernização das Forças Armadas tendo em vista a defesa da Amazônia, do Atlântico Sul, dos centros industriais e administrativos do Sudeste e da capital federal. A grande preocupação é com a vulnerabilidade da Amazônia, para cuja defesa as Forças Armadas vêm desenvolvendo cenários e traçando a estratégia de uma guerra de resistência, “guerra assimétrica”, com forças regulares e irregulares, que envolveria, inclusive, métodos de guerrilha para fazer frente a “um inimigo muito superior em força militar”. A ironia dessa história é que, enquanto essas estratégias de luta contra uma certa potência invasora se desenvolvem no plano teórico, o Exército brasileiro engaja efetivamente suas tropas especiais da Amazônia em choques com guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). De acordo com um estrategista 30 militar, o Exército já executou guerrilheiros surpreendidos na área de fronteira. Não fez prisioneiros, como não fazia na Guerrilha do Araguaia. Seja como for, o final de 2008 trouxe notícias relevantes sobre o projeto da construção do poder militar. Ao mesmo tempo em que anunciava a primeira Estratégia Nacional de Defesa da historia do País, o governo aproveitava a visita do presidente francês, Nicolas Sarkozy, ao Brasil, em dezembro do ano passado, para estabelecer o que chamou de uma “aliança estratégica” com a França. No primeiro momento, essa aliança se definiu pelo anúncio de grandes compras de armas e de cooperação tecnológica. A Marinha brasileira, em especial, se beneficiará desse acordo: a França deverá fabricar quatro submarinos Scorpène, convencionais, movidos a diesel, e se comprometeu a transferir tecnologia para o Brasil produzir outros do mesmo padrão. Além disso, participará do projeto Aramar, de construção de um submarino de propulsão nuclear, há anos em desenvolvimento, tudo a um custo de pelo menos 7 bilhões de dólares. Também se discutiu a aquisição, para a Força Aérea Brasileira (FAB), de 36 caças, ao custo de 2 bilhões de dólares. A França ofereceu o avião Rafale, da Dassault. Mas nesse caso tem concorrentes: o Gripen NG, da sueca Saab, e o F18, da Boeing, dos EUA. O Ministério da Defesa (MD) ainda debate com militares e técnicos a melhor proposta, que terá de envolver também transferência de tecnologia, para o que a França anuncia não colocar qualquer obstáculo, ao contrário dos EUA. A decisão está prevista para o fim de 2009. Ao Exército caberão 51 helicópteros Cougar, que serão fabricados em parceria com a Helibras, de Minas Gerais (1 bilhão de dólares), mais tanques, veículos de transporte e equipamento sofisticado de comunicações. Até então, o País nunca havia formulado uma estratégia abrangente para a questão da defesa. A END não é apenas um plano militar para ordenar a ação das Forças Armadas. Pretende ser parte de uma política de Estado que agrega o componente militar ao projeto nacional de desenvolvimento. Para isso, busca elevar a um novo status as Forças Armadas, a tecnologia militar própria e a indústria de defesa, com caráter dual, capaz de desenvolver armas e ao mesmo tempo produtos para o consumo civil, como faz a indústria americana. A proposta tem três eixos: a reorganização das Forças Armadas e de seu armamento; a reorganização da indústria nacional de defesa, com capacitação nacional (apoiar a Embraer, recuperar a Avibras e outras empresas) e investimentos em pesquisa para autonomia tecnológica; e a reestruturação da mobilização nacional e serviço militar obrigatório. Não se trata apenas de uma substituição de armamentos, mas de uma modernização do aparato bélico sob novas concepções de guerra. Para isso, propõe um planejamento de longo prazo de aquisição e produção própria, ou com parceiro internacional, de equipamentos os mais moretratodoBRASIL 22 Divulgação O PAÍS VAI ÀS ARMAS dernos. Em primeiro lugar, para tornar operacional a Marinha – submarinos, navios e sofisticados equipamentos de comunicação – e cumprir a tarefa central de proteger duas áreas estratégicas: a bacia marítima e petrolífera que vai do Espírito Santo ao Paraná e a embocadura da bacia amazônica, não apenas no limite de 200 milhas. O Brasil está negociando com a Organização das Nações Unidas (ONU) ampliar suas águas territoriais para 350 milhas, o que significaria 1 milhão de km² a mais, para estender sua soberania a toda a área petrolífera do pré-sal. Também a FAB receberá grandes investimentos para a indústria aeroespacial (projeto de desenvolvimento de mísseis em associação com os russos) e para desenvolver a capacidade de monitorar todo o espaço aéreo e marítimo do País. O Exército receberá novos armamentos e modernos equipamentos de informação e inteligência e será reorganizado para ter presença ou possibilidade de presença (flexibilidade) em todo o território nacional, articulado com as outras duas forças. Para isso, deverá deslocar a concentração de suas bases do Leste para o Centro-Oeste e Norte, tendo como tarefa central a defesa da Amazônia e de Brasília. O Exército terá de articular forças de grande mobilidade e elevado poder de fogo e especialização, que possam se deslocar com rapidez para qualquer área do território, com forças solidamente baseadas em suas sedes em grande sintonia com as populações locais. Também se dará grande ênfase à ampliação do serviço militar obrigatóretratodoBRASIL 22 rio e à mobilização civil para envolver a sociedade nos assuntos da Defesa. O documento da END deixa aberta a porta para a produção de armas nucleares ao afirmar que “o Brasil zelará por manter abertas as vias de acesso ao desenvolvimento de suas tecnologias de energia nuclear. Não aderirá a acréscimos ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares sem que as potências nucleares tenham avançado na premissa central do tratado: seu próprio desarmamento”. Serão necessários muitos recursos para viabilizar essas metas. Simulação do site Defesa BR, do Ministério da Defesa, estima ser necessário um gasto de 1% do PIB durante 15 anos para realizar esse esforço de modernização, equivalente a uma média de 16 bilhões de dólares anuais de 2008 a 2022. Atualmente, o orçamento das Forças Armadas corresponde a 0,3% do PIB, 4,6 bilhões de dólares. E 75% dele são gastos com pessoal, isto é, salários e aposentadorias para 600 mil militares, dos quais apenas 358 mil estão na ativa. Esse é só um exemplo da distância que vai da realidade atual das Forças Armadas e o que se pretende com os novos planos. FALTA PODER MILITAR Duas semanas antes da reunião do G20, um seminário realizado em Nova York sob o título “Brasil: parceiro global em uma nova economia” havia sido mais um episódio do esforço para a construção de uma imagem que o País ambiciona, a de potência mundial. A visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos EUA procurou revestir-se dessa roupagem. No encontro com o presidente americano, Barack Obama, nas palestras e entrevistas, nas repetidas menções à candidatura ao Conselho de Segurança da ONU, estava nítida a aspiração. É uma versão atualizada, agora com mais possibilidade, do projeto do Brasil Potência, acalentado pela ditadura militar – a partir de grandes obras, da indústria de armamentos, inclusive nucleares, e de investimento em tecnologia –, mas que fracassou na crise econômica dos anos 1970 e por pressão dos EUA, conforme relembram, com mágoa, setores militares. De fato, com grande população, abundância de recursos naturais, indústria e agricultura florescentes, grande exportador, desenvolvimento tecnológico em progresso, o Brasil já detém uma posição internacional de destaque. Na opinião do governo, a oportunidade histórica para se tornar uma potência está criada. O que falta então ao País para ser reconhecido como potência mundial? “Falta poder militar”, avalia Geraldo Cavagnari, coronel da reserva, estrategista militar e membro do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para quem a proposta da estratégia de defesa é positiva e oportuna. “O Brasil não será aceito no Conselho de Segurança da ONU enquanto não contar com poderio militar suficiente para respaldar uma decisão da organização que implique utilização de armas em qualquer país”, diz. Essas condições o Brasil não tem atualmente. Suas Forças Armadas, durante décadas ocupa31 Divulgação/ Radiobrás das em contrapor-se aos movimentos internos de oposição, são suficientemente fortes para dissuadir de uma aventura militar qualquer de seus vizinhos. Mas não estão preparadas para a defesa do imenso território contra um inimigo externo poderoso nem para atuação numa guerra no exterior. A END é uma consequência da Constituição de 1988, artigo 142, que não eliminou, mas amenizou o arbítrio dos militares de intervirem “em defesa da lei e da ordem”, o que havia dado justificativa a tantos golpes militares desde a Constituição de 1891. Os militares intervinham a seu critério. A partir de 1988, só podem intervir por iniciativa de um dos três Poderes. A criação do Ministério da Defesa, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, decorreu da nova disposição constitucional. Por ela, transfere-se ao poder civil a atribuição de definir as hipóteses de emprego dos meios militares. E às Forças Armadas cabe definir as estratégias e o uso da força militar. Essa questão foi tabu durante muitos anos. Os governos civis que sucederam a ditadura militar são acusados agora de ter se omitido do assunto defesa, deixando-o por conta dos militares, ao mesmo tempo em que reduziam à míngua os recursos para a manutenção e o rearmamento das forças. “OS CIVIS ASSUMIRAM” Para o ministro Nelson Jobim, “na Constituição de 1988, submetemos o poder militar aos poderes constituídos”. Visto com reservas por setores militares, o MD teve um começo frágil. Mas, aos 9 anos, está consolidado, na opinião de Jobim: “A fase de transição está encerrada. Os militares saíram da política e os civis assumiram”, disse ele em meados de março. O Congresso Nacional não começou ainda a examinar o projeto da END. Mas, no interior das Forças Armadas, principalmente no Exército, surgem reações. Na primeira reunião de 2009, realizada no início de março, o Alto Comando do Exército, que reúne os generais de quatro estrelas, criticou a END por, de acordo com o diário Folha de S.Paulo, “supostamente fortalecer o Ministério da Defesa em detrimento dos comandos das três Forças Armadas”. 32 Jobim: para o ministro, os militares deixaram a política e são os civis que mandam Três oficiais em fim de carreira, generais Luiz Cesário da Silveira Filho, Paulo César de Castro e Maynard Marques de Santa Rosa, apresentaram suas críticas por escrito na reunião do Alto Comando. O documento diz que “a END é de cunho político, não é de consenso nacional e não apresenta solução para o principal problema da defesa: orçamento incompatível com as necessidades de custeio das instituições e de investimento para a modernização de seus sistemas de armas”. O general Silveira Filho classificou o plano de “utópico” e ironizou: “Vai haver dinheiro para tudo isso?”. De acordo com a Tribuna da Imprensa e a Agência Estado, os oficiais disseram temer pela politização das Forças Armadas e que os militares possam ser “ainda mais afastados dos círculos decisórios”. Criticaram a centralização de compras no MD porque permite “a introdução de idiossincrasias típicas da administração civil, como a corrupção e o tráfico de influência”. FinalretratodoBRASIL 22 mente, manifestam insatisfação com a parte que coube ao Exército no plano de defesa, “que evidencia uma desproporção no que tange aos objetivos das Forças Armadas, não prevendo para o Exército nenhum projeto de modernidade, ao contrário do que ocorre com relação à Marinha e à Força Aérea”. Silveira Filho e Castro manifestaramse ao entrarem para a reserva, um “ato desleal”, segundo Cavagnari: “Deviam ter se manifestado enquanto estavam no posto”. Questionado pelo ministro Jobim, o general Enzo Peri, comandante do Exército, respondeu que a proposta havia sido, no geral, elogiada, com críticas secundárias, e que as manifestações de oposição eram individuais, de oficiais que estavam indo para a reserva. O comandante da Marinha, almirante Julio Soares de Moura Neto, entretanto, apresentou evidência de que o debate entre as forças segue aceso. Respondeu a Silveira Filho manifestando apoio à proposta da END: “Esse documento [o plano] não foi feito à revelia [dos militares]. Foi feito com a participação das três forças, que discutiram muito e houve grandes mudanças desde o primeiro documento até o definitivo”. Para o deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), parlamentar dedicado às questões militares, não é improvável que os generais que se manifestaram contra a END representem setores mais amplos dentro do Exército: “Os militares podem estar preocupados com o fato de que, com o poder decisório passando para o Ministério da Defesa, os assuntos militares fiquem sob a influência de ingerências políticas, que as decisões deixem de ser tomadas a tempo, prejudicando a defesa do País. Ou que as políticas para a Defesa oscilem conforme as tendências do governante no poder”. Por isso, ele recomenda um debate mais maduro no âmbito do Congresso Nacional para que a END se converta “efetivamente numa política de Estado, com atribuições e caráter permanentes, não sujeita a desvios e interrupções do governante do momento”. Quando os generais se referem à “desproporção no que coube ao Exército no plano de defesa”, externam um temor de que a força acabe perdendo importância relativa diante das duas outras. É porque, no orçamento previsto para os próximos retratodoBRASIL 22 anos, até 2022, a distribuição de verbas deverá ficar na proporção de 46% para a Marinha, 31% para a Força Aérea e 24% para o Exército, de acordo com documento do site do Ministério da Defesa. A justificativa é que os equipamentos e sistemas demandados pelas duas primeiras forças é muito sofisticado e mais caro, incluindo-se aí a construção do submarino movido a energia nuclear. Essa proporção é compreensível, pois, na guerra atual, o concurso da Marinha e da Aeronáutica é fundamental, mas, para que seja efetivo, demanda elevados recursos. Mas as divergências podem ter outros motivos além dos apresentados. Em 11 de março, ao deixar o Comando Militar do Leste para ir para a reserva, o general Silveira Filho despediu-se com um vigoroso discurso em defesa do golpe militar de 1964. Ele faz parte dos setores da oficialidade que se opõem à abertura dos arquivos da repressão durante a ditadura militar e ao julgamento de militares que naquele período tenham praticado tortura. Mesmo na ativa, participou, em agosto do ano passado, de ato público em reunião do Clube Militar em desagravo ao coronel Brilhante Ustra, condenado pela Justiça de São Paulo por haver torturado opositores políticos na década de 1970 (ver “Ferida aberta”, Retrato do Brasil edição 18). Dentro do governo, avalia-se que esses setores nunca aceitaram o controle civil das Forças Armadas. Em seu último pronunciamento, Silveira Filho afirmou: “Tenho levado minha preocupação ao Alto Comando do Exército. Vivemos atualmente dias de inquietude e incerteza”. ACORDO COM A COLÔMBIA A debilidade militar do País foi oficialmente reconhecida no texto de lançamento da Política de Defesa Nacional (PND), em meados de 2005, e se dá num cenário internacional em que “a unipolaridade [ou seja, a hegemonia americana] no campo militar, associada a assimetrias de poder, produz tensões e instabilidades. As economias nacionais tornaram-se mais vulneráveis às crises econômicas e financeiras. E a crescente exclusão de parcela significativa da população dos processos de produção, consumo e acesso à informação constitui fonte potencial de conflitos”. Além disso, “a questão ambiental permanece como uma das preocupações da hu- manidade. Países detentores de grande biodiversidade, enormes reservas de recursos naturais e imensas áreas para serem incorporadas ao sistema produtivo podem tornar-se objeto de interesse internacional”. Portanto, “neste século, poderão ser intensificadas disputas por áreas marítimas, pelo domínio aeroespacial e por fontes de água doce e de energia, cada vez mais escassas. Tais questões poderão levar a ingerências em assuntos internos e a conflitos”, refere o documento. Em outras palavras, o governo brasileiro teme pelos seus recursos naturais, principalmente pela integridade da Amazônia, e sabe que aí se encontra uma das maiores debilidades de seu sistema de defesa. E tem mais. O País é protagonista no cenário regional em que faz fronteira com dez países. Movimentos de afirmação nacional e de oposição às desigualdades sociais, que questionam tradicionais oligarquias, vêm chegando ao poder em vários desses vizinhos nos últimos anos – Venezuela, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai, Argentina –, com pendor antiEUA. Acentuam-se as tensões no interior de alguns desses países e também entre eles, com repercussão em toda a América do Sul. A invasão da Colômbia ao território do Equador para combater a guerrilha das Farc no ano passado criou um crispamento não resolvido, ainda mais que os colombianos afirmam-se decididos a invadir de novo o território de outros países quando julgarem “necessário para sua defesa”. O Brasil, que também elegeu um governo originário da oposição de esquerda, mas que derivou para uma política de contemporização na luta de classes, vem assumindo uma liderança “natural” por ser o país mais poderoso e o principal representante da “esquerda confiável”, que é como a diplomacia americana o classifica, juntamente com o Chile, e se posiciona como um intermediário, um poder moderador entre as contradições, como na atuação para ajudar no resgate de sequestrados das Farc, na Colômbia, e nos conflitos internos da Bolívia. Em certos episódios, porém, sua atuação parece indicar um viés mais conservador. Por exemplo, em acordo feito com a Colômbia, já vigente desde o governo FHC, mas que só agora veio a público, os dois países têm liberdade para entrar 33 “TODOS FORAM EXECUTADOS” PRIMEIRO, CAVAGNARI DISSE QUE MEMBROS DAS FARC FORAM EXECUTADOS. DEPOIS, DESDISSE... ÍNDIOS MILITARIZADOS Embora, na atualidade, não haja ameaças concretas contra o território brasileiro, a proposta da END elegeu como estratégia principal a preparação para uma guerra defensiva na Amazônia contra uma força muitas vezes superior em poder de fogo e sofisticação tecnológica. A opção é pela guerra assimétrica, isto é, não tentar confrontar-se com as forças inimigas superiores, mas resistir dentro do território combinando táticas de guerra convencional e irregular, concentrando tropas para atacar e desconcentrando para defender-se, apropriando-se de formas guerrilheiras de combate. Para isso, oficiais do Exército brasileiro estiveram há 34 Credito até 50 quilômetros no território do outro em perseguição aos guerrilheiros das Farc e a narcotraficantes. Jobim, em reunião realizada na primeira quinzena de março com o ministro das Relações Exteriores da Colômbia, Juan Manuel Santos, reforçou a decisão de colaboração entre os dois países: “Repito o que já disse em Bogotá: as Farc serão recebidas a bala se entrarem em território brasileiro”. Jobim sabe o que está dizendo, mas não conta tudo. O Exército brasileiro já está dando tiros nos guerrilheiros. Nos últimos tempos, teve dois confrontos com membros das Farc. Num deles, segundo relatou Cavagnari a Retrato do Brasil, “executou” um grupo de guerrilheiros. Outro exemplo: o governo boliviano expulsou funcionários da DEA, agência antidrogas dos EUA, que atuavam na Bolívia, acusando-os de ingerência política. Os americanos têm pressionado o Brasil por um papel mais ativo no combate ao narcotráfico na Bolívia. Seu argumento é de que 65% da cocaína boliviana passa por nosso território. Em seguida, o governo brasileiro concedeu autorização para que parte dos 50 agentes da DEA expulsos da Bolívia fosse realocada em Brasília. A contradição entre a retórica da estratégia de defesa anti-hegemônica e as ações concretas, militares e diplomáticas, do Brasil, no âmbito regional, dá espaço a um questionamento: para onde se dirige de fato o foco da política de defesa do Brasil? Para a defesa contra as ambições expansionistas de grandes países ou para se converter no xerife da América do Sul, abençoado pela diplomacia americana? Na primeira entrevista gravada que concedeu a RB no início de março, Geraldo Cavagnari (foto) referiu-se assim aos confrontos com os guerrilheiros colombianos: “Nós tivemos duas incursões, em território brasileiro, das Farcs, as duas nós conseguimos... Em uma delas roubaram armamento nosso, nós fomos atrás e pegamos e matamos todos. Todos os guerrilheiros foram mortos, executados. Todos foram executados. Pegou-se o material e executou-se [sic] todos eles. Disso o governo da Colômbia foi avisado. E teve uma segunda também. Então, eles não tentaram mais. Queriam fazer de homizio, área de santuário. Ficamos ali atentos para não deixar que aquilo se transforme em santuário. E eles sabem que, se forem pegos, serão executados”. Para o jurista Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), se confirmadas, essas ações do Exército foram ilegais, pois caracterizam “homicídio e abuso de poder”. Segundo ele, a Constituição brasileira, no artigo 5º, e a doutrina do direito têm um entendimento universal que é o da garantia do direito à vida de qualquer ser humano. Como o Brasil não está em guerra com outro país, não se trata de invasão por tropa estrangeira. A presença dessas pessoas em território nacional é caracterizada como entrada ilegal. Contra elas cabe ação de polícia, que é o que o Exército faz ao vigiar as fronteiras. Portanto, esses invasores deveriam ser presos e deportados para a Colômbia. “Só no caso de haver combate ou de reação à voz de prisão poderiam ser mortos, o que caracterizaria legítima defesa, como em qualquer ação policial”, diz o jurista. Voltando a falar com Cavagnari três semanas depois, o repórter lembrou o que ele havia dito. Ele respondeu: “Sim, foram executados. O Exército brasileiro retaliou e eles foram executados”. RB Sim, eles foram detidos? Cavagnari Executados é uma maneira meio forte... porque eles reagiram e foram mortos... RB Em combate? Cavagnari Sim, em combate, porque eles foram surpreendidos, não é? E, surpreendidos, reagiram. RB Sim, essa é uma situação, porque a situação de eles serem detidos, desarmados e, em seguida, executados... Cavagnari Não, eles não foram detidos [...] não houve prisão. RB Não houve prisão? Por que aí seria indicado entregá-los ao governo colombiano, não é? Cavagnari Não, ali foi o seguinte, eles deram de cara com os caras e começaram a atirar, dos dois lados provavelmente [...] O termo execução seria mais de maneira genérica, não é? [...] Eles surpreenderam eles [sic] nas selvas. [...] Foi rápido. Pelo que eu sei, nós estávamos em situação de superioridade, e eles foram surpreendidos... alguns anos no Vietnã com o objetivo de se familiarizar com as estratégias e táticas usadas na guerra de resistência contra os EUA nas décadas de 1960 e 1970. Essa parte da estratégia já vem sendo posta em prática. O Exército tem se empenhado, há alguns anos, na militarização ou naquilo que chama de “doutrinação” das populações indígenas e ribeirinhas da Amazônia, recrutando maciçamente os jovens para suas fileiras. Essas populações têm conhecimento privilegiado do terreno e capacidade incomparável de sobrevivência no ambiente de selva, têm tradição guerreira e também são de grande eficiência na vigilância e percepção de presenças estranhas no território, o que dá ao Exército condições vantajosas de combate em tal meio. Essa tropa já conta com 18 pelotões de fronteira, 17 mil solretratodoBRASIL 22 dados, 90% indígenas ou descendentes. Deverão ser ampliados para 40 pelotões, com 25 mil homens. Receberão fuzis novos, binóculos de visão noturna e chips para rastreamento. Todos são alfabetizados, recebem treinamento técnico e militar e, segundo Cavagnari, “imbuídos de sentimento patriótico e de defesa do território”. “Os jovens indígenas adoram a vida militar e se apresentam voluntariamente para o serviço”, diz o estrategista. Esses soldados fazem carreira exclusivamente na Amazônia e o Exército tem para eles uma rotina adaptada, de tal modo que passam parte do tempo nos quartéis e outra parte no convívio de suas aldeias. A ideia é que liderem suas comunidades e as mobilizem para participar do esforço de guerra. No dizer de Cavagnari, “como no Vietnã, em que a mulher que lava roupa na beira do rio é uma informante do Exército”. Quem poderia tentar promover uma invasão da Amazônia? Na opinião do deputado Rebelo, “há uma consciência muito clara, tanto no meio militar como entre os especialistas civis, que o risco potencial de conflito do Brasil não é com nossos vizinhos. A pressão potencial que existe no nosso caso é com a presença de uma po- tência hegemônica no hemisfério, que nós tratamos com muito cuidado. Diante de vizinho poderoso, em certos momentos dotado de alguma agressividade e arrogância, o melhor procedimento é você tratar bem, manter alguma prudente distância e se precaver, tomar medidas. Mas todo mundo sabe de onde provém o risco potencial para o Brasil”, diz o parlamentar. VIETNÃ? AQUI? É possível às Forças Armadas de um Estado hegemonizado pela alta burguesia associada ao capital estrangeiro, os quais mantêm a sociedade submetida a uma grande concentração da riqueza, mobilizar os trabalhadores à maneira como os revolucionários do Vietnã mobilizaram seu povo? Rebelo responde: “Aqui, eu creio que é o desafio de pôr no centro da nossa tática a questão nacional. O fim da União Soviética trouxe inúmeras consequências. Primeiro, fortaleceu muito a potência hegemônica do planeta do ponto de vista econômico, político, ideológico, militar, os EUA. E fragilizou as nações da periferia, como o Brasil. Percebemos o primeiro movimento, mas não tiramos consequências quanto ao segundo. Ou seja, a luta pela Divulgação/ Radiobrás Rebelo: a quem interessa fomentar a desconfiança com relação aos militares? retratodoBRASIL 22 transformação social migrou para o terreno da sobrevivência da nação, para a ampla unidade de forças sociais, políticas, econômicas, intelectuais, capaz de fazer frente ao processo de fragilização das nações e Estados nacionais. Isso exige que nem as Forças Armadas passem a ver na ação das organizações avançadas do povo um risco, nem que essas organizações continuem a ver, nas Forças Armadas, uma ameaça”. O repórter insiste: “Mas a questão da ditadura militar, da tortura, da anistia não inteiramente resolvida, do debate que se trava até hoje, essa desconfiança que existe da população civil com relação às Forças Armadas, ela funciona como um elemento de dificuldade para a promoção dessa unidade, não?” A resposta de Rebelo: “A desconfiança também deve ser vista de forma crítica, a partir da seguinte questão: a quem interessa fundamentalmente alimentar essa desconfiança nos dias de hoje? [...] Eu acho que hoje essa desconfiança não serve aos interesses da construção da defesa do País. Pela minha experiência concreta, pelos debates dos quais tenho participado e pela minha convivência, no âmbito das três forças, não apenas na base, na visita aos quartéis, mas também na convivência no âmbito da oficialidade, creio que o Brasil está preparado para ir superando aos poucos as desconfianças e construindo, com base nessa relação sobre a defesa dos interesses nacionais, uma relação nova entre as forças civis e as forças militares. [...] Eu creio que a centralidade da questão nacional ajuda a resolver essas desconfianças e a criar um sentido mais geral de que a estratégia de defesa exige o concurso de forças políticas e sociais amplas, que o apoio popular é uma coisa importante e que as Forças Armadas também são instituições da nação”. Certamente, essa unidade seria facilitada se a União abrisse os arquivos da repressão do tempo da ditadura, se os restos mortais de inúmeros oposicionistas mortos fossem apresentados a seus familiares, se fosse alcançado um consenso sobre o julgamento dos agentes do Estado acusados de tortura durante o regime de exceção. É um desenlace que já tarda. Ainda mais agora que o Brasil quer se apresentar como potência no contexto das nações. 35 Israel: UM ACORDO. E MUITO MAL-ESTAR O governo liderado pelo Likud confirma o rumo que a sociedade tomou há anos, algo que causa desolação aos setores progressistas | Armando Sartori e Yuri Martins Fontes Como classificar as justificativas do primeiro-ministro israelense, Benyamin Netanyahu, do partido Likud, de extrema direita, para manter Ehud Barak, do Partido Trabalhista, de centro-esquerda, no posto de ministro da Defesa de Israel? Bibi (imagem da pág. ao lado, à direita, com Barak), como é conhecido Netanyahu, argumentou – e também Barak, cada um a seu modo – que a continuidade reasseguraria aos árabes e ao restante do mundo a contenção e a moderação de Israel. Com toda a razão, o semanário conservador britânico The Economist qualificou de “bizarro” esse arrazoado, lembrando-se do massacre resultante da Operação Chumbo Derretido, conduzida pelas Forças Armadas israelenses contra a Faixa de Gaza no início deste ano. Barak – que, como ministro da Defesa, foi o responsável político pela ação militar – alegou também, no sentido de justificar a aliança com Bibi, que, ingressando no governo comandado pelo Likud, os trabalhistas o tornariam menos direitista do que ele poderia vir a ser. Apesar de toda essa retórica, o processo de adesão a Bibi não foi tranquilo. Na convenção trabalhista que aprovou o acordo com o Likud, realizada na segunda quinzena de março, a adesão obteve apenas 55% dos votos dos mais de 1,2 mil delegados. E Barak teve ainda de ouvir de Ophir Pines-Paz, da ala esquerda do partido, que Golda Meir e Yitzhaki Rabin, dois dos ícones do trabalhismo israelense, estavam “se revirando em suas tumbas” diante de semelhante acordo. Pines-Paz pode ter expressado a opinião de muitos rebeldes trabalhistas, se36 gundo a qual o acordo fornece ao Likud uma cobertura para disfarçar uma política que pretende agradar os 470 mil assentados judeus no território palestino ocupado por Israel na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental ocupada, enquanto o processo de paz definha. Uma avaliação que se encaixa perfeitamente com as propostas que o Likud mantém. A sensação desses trabalhistas parece refletir, ao menos parcialmente, o desalento e o mal-estar que tomam conta de muitos judeus israelenses, sionistas ardorosos, alguns dos quais integraram as Forças Armadas israelenses, mas que agora observam a democracia praticada no “lar nacional dos judeus”, que foi sempre limitada, tornarse cada vez mais restrita. “EFEITO OBAMA” A manobra de trazer os trabalhistas para a composição do governo liderado pelo Likud parece ter relação principalmente com questões políticas mais amplas – como o que se pode denominar de “efeito Obama” – do que com uma estratégia para obter apoio parlamentar. No sistema de governo israelense, parlamentarista, o presidente da República nomeia primeiroministro um dos deputados (geralmente uma liderança de um dos partidos majoritários) e este tem um prazo determinado para negociar e submeter os nomes de seu gabinete à aprovação de seus pares. Quando foi chamado pelo presidente Shimon Peres para formar o novo governo logo após as eleições de fevereiro passado, esperava-se que Bibi tentasse armar um ministério estritamente de direita, que refletisse o resultado das urnas (das 120 cadeiras do Parlamento, três quartos foram ocu- pados por forças de direita, principalmente, e centro-direita). O Likud, segundo colocado nas eleições, elegeu 27 representantes e, a partir de alianças com partidos afins, deixou de lado o primeiro colocado Kadima (de centro-direita, com 28 parlamentares). Os principais aliados que viriam dar peso à aliança direitista foram o Israel Beiteinu (IB, terceiro colocado, com 15 representantes) e o Shas (a quinta maior bancada, com 11). Mas ainda faltava o apoio de pelo menos mais 8 parlamentares para atingir a necessária maioria de 61, que garantiria a aprovação do gabinete. O Likud poderia tê-los obtido junto a três pequenos partidos de seu campo, União Nacional, Judaísmo Torá Unida e Lar Judaico, que juntos elegeram 12 representantes. Mas só ingressou na aliança o Lar Judaico, com três parlamentares. Desse modo, vieram a calhar os 13 aliados trabalhistas, que deram a Bibi 69 parlamentares, uma maioria mais ampla que aquela que seria proporcionada somente com os pequenos aliados de direita. Já a oposição reúne 51 parlamentares, mas está longe de se constituir num bloco unitário. Inclui, a partir da esquerda, a Hadash (Frente para a Paz e a Igualdade), liderada pelo Partido Comunista (quatro deputados), o Meretz (socialista, três), a Assembleia Nacional Democrática e a Lista Árabe Unida (que representam os palestinos e, juntos, têm sete parlamentares), o Kadima e os dois partidos de direita preteridos por Bibi. Compondo-se com uma força mais à esquerda, o primeiro-ministro pode pretender entrar em sintonia com os leves retratodoBRASIL 22 Reuters tra maior disposição para negociar com os palestinos. Em 1992, a legenda tinha 44 parlamentares; no ano passado, 18; agora, tem 13. Já o fortalecido Likud claramente se opõe à criação do Estado palestino e admite, no máximo, conceder maior autonomia econômica sob a tutela israelense. Um indício de que Bibi manterá essa posição rígida é que, no início de abril, o novo ministro de Relações Exteriores israelense, Avigdor Lieberman, do IB, declarou que os acertos definidos no encontro de paz realizado em 2007 em Annapolis (EUA) não serão levados em consideração pelo governo. O aspecto mais notável desse encontro é que ficou explícita, pela primeira vez, a admissão da existência de dois Estados, um judaico e um palestino, convivendo lado a lado, como solução política para a paz. DEMOCRACIA MESQUINHA sinais de mudança da política externa dos EUA emitidos desde a posse de Barack Obama. Um deles veio de Hillary Clinton, a secretária de Estado estadunidense, que visitou a região no início de março e criticou as demolições de casas palestinas em Jerusalém Oriental, prática comum do governo israelense – que alega serem construções ilegais – e apontada pelos árabes como evidente prova de discriminação. Segundo relatório da União Europeia (UE) divulgado no fim do ano passado, as demolições são, no geral, “ilegais, de acordo com o direito internacional, não atendem a nenhum objetivo claro, têm graves efeitos humanitários e alimentam o rancor e o extremismo”. O mais forte sinal de mudança da política externa dos EUA no Oriente Médio, entretanto, atinge Israel por tabela. Obama parece empenhado em relaxar as tensões entre seu país e o Irã. Se essa distensão tiver bom êxito, Israel vai sentir a diferença, uma vez que Teerã é encarada como a maior ameaça externa à sua segurança. Talvez a possibilidade de ver os EUA, o grande patrocinador externo retratodoBRASIL 22 dos israelenses, aproximarem-se dos iraquianos pode ter levado Bibi a imaginar que comandar um governo de direita puro-sangue não seria um bom negócio. Até que ponto a presença dos trabalhistas no governo do Likud pode fazer diferença não é claro. Com relação ao Irã, por exemplo, não há, entre os principais partidos israelenses, distinção substancial de opinião: todos veem na eventual nuclearização do país uma ameaça à existência de Israel (os iranianos desenvolvem um programa nuclear que alegam ser voltado unicamente para fins pacíficos, mas Israel, EUA e potências europeias acusam o país de estar se preparando para produzir armas nucleares). Com relação aos palestinos, a situação é mais complexa. Mantê-los em regime de pão e água é uma ideia que ganha cada vez mais força em Israel, como indicam os últimos resultados eleitorais, obtidos logo após a operação militar contra a Faixa de Gaza. Sinal dessa tendência é a decadência dos trabalhistas, que, historicamente, entre as principais forças políticas israelenses, é a que mos- A tendência à direitização da opinião pública israelense – e mesmo ao crescimento da direita entre os próprios trabalhistas – não é nova, diz Michel Warschawski, diretor do Centro de Informação Alternativa em Jerusalém. O autor de Toward an open tumb: the crisis of Israel society (em tradução livre, À beira de um túmulo: a crise da sociedade israelense, Monthly Review Press, 2004) escreveu, em um artigo publicado na revista americana Monthly Review no fim de 2004, que, com o assassinato do primeiro-ministro Yitzhaki Rabin, em 1995, “um longo intervalo de relativa abertura, liberalização e tentativas de paz e relacionamento com o mundo árabe se encerrou”. Ele considera “particularmente significativo” o fato de Uri Avnery, entre outros sionistas e patriotas israelenses, ter chegado à conclusão de que a democracia israelense está em perigo. Avnery, um herói da guerra de 1948 (que os líderes sionistas de Israel intitulam de Guerra de Independência), ex-parlamentar e jornalista conhecido, manifestou seu desconsolo citando uma declaração de Aharon Barak, presidente da Alta Corte de Justiça israelense e sobrevivente do Holocausto, que comparou a situação interna de seu país nesta década com a da Alemanha nazista. De acordo com Warschawski, a mesquinha democracia israelense se baseou, 37 desde o princípio, na expressão da vontade da maioria sobre a minoria, por meio das eleições, e em ações do governo apoiadas pela maioria parlamentar. Como Israel não tem Constituição escrita – embora esse seja um dos compromissos assumidos na fundação do Estado –, abriuse aí um enorme campo para a violação dos direitos dos cidadãos, em especial os de origem árabe. Em geral, atribui-se a ausência de um texto constitucional à grande influência dos partidos religiosos, visto que estes acabam se beneficiando, pois, na falta de uma Carta Magna que torne claros os direitos e deveres dos cidadãos, muitos costumes religiosos judaicos são adotados. Warschawski acredita, no entanto, que a responsabilidade principal é dos líderes sionistas: “Israel tem sido sempre definido não somente como um Estado judaico (e democrático, de acordo com a sagrada formulação), mas também como um país em estado de emergência devido a muitas décadas de guerra. O estado de emergência é tão profundamente enraizado na cultura política israelense que nem a paz com o Egito, nem a paz com a Jordânia, nem a Declaração de Princípios conjunta com os palestinos têm sido capazes de colocá-lo em questão”, diz. Da flexibilidade legal que resulta dessa situação segue que “mesmo quando os direitos são mencionados explicitamente, são sempre condicionados: ‘contanto que não exista nenhuma lei em contrário’, ou ‘exceto no caso de emergência’ ou ‘se isto não contradisser o caráter judaico do Estado de Israel’”. Em resumo: os direitos fundamentais existem formalmente até que o Parlamento israelense resolva alterá-los “democraticamente”, isto é, por simples maioria. Outro aspecto destacado por Warschawski é o da grande influência militar na vida política israelense, diretamente ou por meio de altos oficiais que se voltam para a carreira política e continuam mantendo fortes laços com os antigos camaradas, como são os casos de Netanyahu e Ehud Barak (no atual gabinete israelense, dos 30 ministros, há pelo menos 12 que foram oficias de carreira ou reservistas). O analista diz que desde meados dos anos 1990 “o Exército tornou-se um poder genuíno”, que rivaliza com o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. Warschawski 38 classifica o comportamento atual dos militares como um golpe de Estado, pois altos oficias, sem sofrerem maiores punições, fazem pronunciamentos políticos ameaçando o governo quando consideram que a política militar não é suficientemente forte e dirigem-se diretamente ao público para “explicar” a gravidade da situação. O enorme peso dos religiosos ortodoxos judeus (representados pelo Shas e por outros partidos) e dos “russos” (populações que imigraram do Leste Europeu nas últimas duas décadas, representadas pelo IB) também é destacado por Warschawski: “Essas duas forças políticas representam e dão voz a correntes da sociedade israelense para as quais referências à democracia, governo pela lei, separação de poderes e liberdades civis não significam absolutamente nada”. As duas correntes, diz ele, dividem entre si o racismo antiárabe. O que as diferencia é o ódio e o desprezo dos “russos” pelos crentes e religiosos. PARANOIA GENERALIZADA Warschawski alerta que o peso das correntes políticas abertamente antidemocráticas na sociedade israelense é crescente. “Ideologicamente, a visão do antigo sionismo ‘judaico e democrático’ laico, com sua conotação liberal, está em pleno retraimento.” Para ele, o lugar está sendo tomado por uma nova ideologia “que combina quatro elementos principais: um militarismo nacionalista mais ou menos associado com fundamentalismo religioso; racismo pronunciado; um conservadorismo impregnado com messianismo; e uma tendência a questionar cada norma democrática”. Colocados juntos, diz, “esses elementos ajudam a moldar uma paranoia generalizada, a qual leva Israel a enxergar o mundo todo como uma ameaça à sobrevivência judaica no Oriente Médio e em qualquer outro lugar”. Esse ambiente tem produzido uma sensação de desgosto nos setores mais progressistas da sociedade israelense. Segundo o analista, famílias que pertencem a essas camadas “estão enviando seus filhos para o exterior, comprando propriedades na Europa e tentando obter um segundo passaporte”, enquanto “somente uma pequena minoria continua a lutar tanto pelos direitos dos palestinos quanto para parar a transformação de Israel num Estado fundamentalista que acabe com as últimas pretensões democráticas”. Entre os que examinam a sociedade israelense de modo crítico, está Avraham Burg, ex-presidente do Parlamento israelense pelo Partido Trabalhista. Ele está convicto de que a fórmula que define Israel como “Estado judaico e democrático” tornou-se um dos principais problemas políticos vividos pelo país. Numa entrevista concedida em 2007 ao diário Haaretz, ele disse que “definir o Estado de Israel como um Estado judaico é a chave para o seu fim”. “Um Estado judaico é explosivo, é dinamite”, concluiu. De fato, se o Estado é judaico e supostamente deve funcionar para abrigar privilegiadamente judeus, como pode ser democrático, já que isso requer tratar a todos que vivem no território israelense como iguais? As consequências dessa contradição são sentidas cotidianamente pelos palestinos, sejam eles cidadãos israelenses ou vivam na Cisjordânia ou em Gaza. Um quinto dos 7,3 milhões de cidadãos israelenses é árabe. Essa parcela da população constitui grande parte dos 20% de famílias israelenses que vivem abaixo da linha da pobreza, uma taxa das mais altas entre os países considerados desenvolvidos, grupo para o qual Israel entrou recentemente ao ser admitido na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Outro indicador social que tem o mesmo sentido é o do número de crianças vivendo na pobreza, que subiu para 36% em 2007, após o governo abolir, três anos antes, como parte das reformas neoliberais pelas quais o país passou, os benefícios dados às famílias com cinco ou mais crianças, atingindo principalmente a população árabe. Além de viverem em situação econômica difícil, os árabes israelenses também se queixam de diversas formas de segregação. Um exemplo é o da lei, aprovada em 2003 pelo Parlamento e confirmada em 2006 pela Alta Corte israelense, que praticamente proíbe o casamento entre árabes israelenses e palestinos que vivam nos territórios ocupados, uma das principais formas de os palestinos adquirirem cidadania israelense. Segundo essa lei, cidadãos israelenses que se casem com habitantes originários daquelas áreas não retratodoBRASIL 22 Reuters Demolição de casa em Jerusalém Oriental: para a UE, ação alimenta rancor e extremismo podem viver com os cônjuges em território israelense. Um dos juízes da Alta Corte declarou, quando da confirmação da legislação, que a medida se baseava no direito do Estado “de não permitir que residentes de um país inimigo entrem em seu território durante o tempo de guerra”. Há, no entanto, dúvidas quanto à veracidade dessa preocupação, pois a medida pode ter sido adotada com o objetivo de manter Israel com uma massiva maioria judaica, algo que ficou explícito nas palavras de Yoel Hhasson, do Kadima: “[a decisão foi] uma vitória dos que acreditam em Israel como um Estado judaico”. EXPULSÃO DOS ÁRABES Construir e manter um Estado com maioria judaica é uma questão que se apresentou aos líderes sionistas logo que se vislumbrou mais claramente a criação de Israel. O Estado judaico proposto pela ONU em 1947, ao lado do Estado palestino, teve, de início, de enfrentar a questão demográfica: o território a ele destinado, além de cercado de populações árabes, era habitado, em grande parte, por palestinos (no território designado originalmente a Israel, estima-se que vivessem antes de 1947 até 950 mil árabes). No entanto, quando a Guerra de Independência acabou (o conflito durou de dezembro de 1947 a junho de 1949), a situação era bem diferente. O Estado israelense tinha uma área cerca de 50% mais ampla que a originalmente a ele atribuída, que foi obtida à custa do território reservado ao Estado palestino, e a maior parte da população árabe havia fugido. Por meio de leis específicas, o Estado israelense tornou-se proprietário das terras que estavam anteriormente sob conretratodoBRASIL 22 trole da Grã-Bretanha (que detinha um mandato sobre toda a Palestina desde o fim da Primeira Guerra Mundial) e das propriedades privadas, urbanas e rurais, da população árabe que residia no território e que, por alguma razão, as abandonou durante o conflito. A legislação que regulamentou essa situação considerou como abandonada toda propriedade da qual o proprietário estivesse ausente, mesmo que este, temporariamente, tivesse se retirado para as proximidades à espera do encerramento dos conflitos. Os dados não são precisos, mas, de acordo com Don Peretz (Israel and the palestinian arabs, Middle East Institute, 1958), esse procedimento teve um papel crucial no sentido de tornar Israel um Estado viável. Em 1954, segundo ele, mais de um terço dos judeus israelenses vivia nas ex-propriedades árabes, e perto de um terço dos novos imigrantes (250 mil pessoas) foi assentado em áreas urbanas abandonadas por eles. Dos 370 novos assentamentos judaicos criados entre 1948 e 1954, 95% foram estabelecidos em antigas áreas de predominância árabe. O argumento central apresentado pelos líderes sionistas para explicar essas ausências é o de que os árabes deixaram suas propriedades em repulsa ao Estado judaico, estimulados por lideranças locais ou pelos governos árabes vizinhos. Essa versão, contestada desde cedo pelos palestinos, passou a sofrer críticas sérias por parte do grupo de pesquisadores israelenses conhecido como “novos historiadores”. Benny Morris, um dos destacados membros do grupo, é provavelmente quem mais contribuiu para abalar profundamente a versão sionista. Em 1948 and after : Israel and the Palestinians (Clarendon Press, 1994), por exemplo, Morris disseca um relatório produzido pelo Serviço de Inteligência das Forças de Defesa de Israel referente a seis meses de conflitos armados, que vão do início de dezembro de 1947 (logo após a ONU divulgar seu plano de partição da Palestina) ao começo de junho do ano seguinte (em seguida à proclamação da independência de Israel).Trata-se, portanto, de uma análise do que ocorreu apenas na fase inicial da guerra, quando o Estado israelense nem sequer existia formalmente. Segundo Morris, o relatório estima que perto de 390 mil árabes tornaram-se refugiados no período analisado, com uma margem de erro de 10% a 15%, e que pouco mais de 100 mil permaneceram nas localidades em que viviam. Sobre as causas do êxodo, Morris afirma que o Serviço de Inteligência aponta não para a “oposição ao estabelecimento do Estado ou oposição política à perspectiva de viver sob um governo judaico”. Em vez disso, o relatório conclui que “sem dúvida, as operações hostis” das forças oficiais sionistas “foram a causa principal”. E que essas ações, juntamente com a de grupos “dissidentes judaicos”, foram responsáveis por 70% do abandono de suas propriedades pelos árabes. As conclusões referem-se, como já dito, ao período inicial dos conflitos. O historiador deixou claro, entretanto, como citado por Noam Chomsky em Estados fracassados – o abuso do poder e o ataque à democracia (Bertrand Brasil, 2009), que elas devem ser estendidas para o conjunto do processo de expulsão dos árabes. Diz Morris: “Acima de tudo, quero reiterar, o problema dos refugiados foi causado pelos ataques das forças judaicas contra aldeias e cidades árabes e pelo medo que esses agressores inspiravam em seus habitantes, combinados com expulsões, atrocidades e rumores de atrocidades – além da decisão capital do gabinete de Israel, em junho de 1948, de impedir o retorno dos refugiados”. Apesar disso, Morris não atribui a ação das forças judaicas a um plano-mestre previamente arquitetado e executado pelos líderes sionistas. Essa conclusão, entretanto, é criticada pelo historiador palestino Nur Marsalha. Em The Israel/Palestine Question (Routledge, 1999), Marsalha diz que a posição de Morris é contraditória com a enorme quantidade de declarações 39 Reprodução Árabes abandonam área onde viviam na Palestina, 1948: a principal causa do êxodo foi a atuação das forças armadas sionistas de líderes sionistas que ele mesmo coletou. Nessas declarações, ocorridas entre os anos 1930 e o período imediatamente anterior à criação do Estado judaico, os líderes sionistas falam diversas vezes da possibilidade de “limpar”, total ou parcialmente, a área da presença árabe. SOLUÇÃO BIZARRA Um exemplo: num artigo publicado na imprensa israelense, Morris diz que, em 1948, o futuro primeiro-ministro Ben Gurion (o principal líder do Mapai, partido que daria origem ao Trabalhista) compreendeu que “a guerra havia mudado tudo; um novo conjunto de ‘regras’ tinha de ser aplicado. Terra poderia e deveria ser conquistada e retida; poderia haver mudanças demográficas”, escreveu o historiador. Isso ficou claro num pronunciamento feito por Ben Gurion em fevereiro de 1948, quando, nas palavras de Morris, ele concluiu que “os distritos árabes de Jerusalém Ocidental tinham de ser evacuados e uma mudança demográfica similar poderia ser esperada em muitas áreas do país à medida que a guerra se alastrasse”. Ben Gurion não foi o único. Outro proeminente líder do Mapai, 40 Shlomo Lavi, ecoou o mesmo pensamento de forma ainda mais enfática num debate interno do partido, realizado no fim de julho de 1948. Ele disse, referindo-se a dois casos de expulsão de populações, que, a seus olhos, “a transferência de árabes para fora do país” era “uma das mais justas, morais e corretas coisas que podem ser feitas”. Como essas preocupações se articularam com o que afinal ocorreu não é claro ainda. O que é evidente é que os líderes sionistas consideravam vital resolver a questão demográfica e isso aconteceu. A partir daí, foi gerada a chamada questão palestina, que inclui o direito de retorno dos refugiados árabes às suas propriedades em território israelense, ou, pelo menos, indenização material como compensação pela expropriação, conforme definido pela ONU. As Nações Unidas estimam que na década de 1950 esses refugiados eram 914 mil e que hoje essa população é de mais de 4 milhões. O direito de retorno dos palestinos, no entanto, choca-se com a Lei do Retorno israelense. Foi essa legislação que permitiu transformar os imigrantes judeus de qualquer parte do mundo em cidadãos israelenses. Encontrar uma solu- ção para a contradição entre essas duas proposições parece hoje muito difícil. A criação de um Estado palestino pode contribuir para que se chegue a uma saída, desde que não se repitam graves erros cometidos no passado. Não é o que parece estar ocorrendo, entretanto. Segundo The Economist, o medo de que os árabes israelenses possam ameaçar a supremacia numérica da população judaica em Israel (o índice de crescimento demográfico da população árabe é bem maior que o da média dos não árabes) tem levado muitos judeus a apoiar a solução dos dois Estados com o objetivo de transferir uma parte dos árabes israelenses para o Estado palestino. Conforme a revista, é cada vez mais aberta em Israel a discussão da proposta de retirar a cidadania israelense dos árabes que vivem nas proximidades da fronteira com a Cisjordânia, alterando a linha demarcatória entre as duas áreas, de forma a incluí-los no futuro Estado palestino. Em troca, Israel ficaria com as áreas de alguns dos assentamentos judaicos na Cisjordânia. Uma ideia tão bizarra quanto as justificativas de Netanyahu e Barak para participarem juntos do governo israelense. retratodoBRASIL 22 Ciência: A PRÓXIMA REVOLUÇÃO Os computadores pessoais promoveram mudanças em escala planetária. O próximo salto, da computação quântica, pode ser ainda mais avassalador | Flavio de Carvalho Serpa Uma transformação radical pode acontecer nas próximas décadas, mandando para o museu os mais poderosos computadores atuais. E, como quase toda mudança científica e tecnológica arrasta para frente (ou para trás) as relações humanas, as transformações econômicas e sociais também podem ser formidáveis, levando – quem sabe? – a globalização produzida pela internet a um patamar muito superior. As possibilidades são mirabolantes. Cálculos e simulações que exigem milhões de anos de trabalho a todo o vapor dos computadores atuais poderiam ser executados em frações de segundo. São promessas ainda distantes, mas o computador quântico (CQ), que ainda está em estágio de pesquisa e experimentação básica, pode ser um salto espetacular para a humanidade. Por exemplo: os mais poderosos computadores atuais gastam semanas de trabalho para simular como uma única molécula simples ou uma droga interferem no metabolismo de uma célula, numa doença. Um computador quântico carregado com as instruções do DNA, o material hereditário biológico, vai eventualmente simular eletronicamente o desenvolvimento e funcionamento de uma célula, levando em conta todos os fatores genéticos e ambientais para descobrir onde aparecem as doenças. Outro exemplo, mais concreto: os números primos, aqueles que só são divisíveis por si mesmos e pelo numeral 1 formam a base da criptografia que protege as transações bancárias e informações secretas. Quanto maior o número primo usado na chave de criptografia, mais difícil para um hacker descobrir as senhas. Um supercomputador atual leva semanas para decompor uma chave de 130 dígitos em núretratodoBRASIL 22 meros primos. Levaria nada menos que 10 bilhões de anos, funcionando dia e noite, o fatoramento (decomposição nos fatores que o constituem) de uma chave de 400 dígitos. Pois bem, o CQ faria isso em apenas um minuto. Isso é possível, em princípio, porque o computador quântico, em vez de usar um sistema operacional ou programas criados pela Microsoft ou IBM, vai usar como “software” as próprias leis da mecânica quântica e da física atômica, as mesmas que regem o funcionamento de todos os sistemas naturais. Isso quer dizer que hipóteses da ficção científica, do seriado de TV e do cinema Jor nada nas Estrelas, como o teletransporte, que exigem um CQ para funcionar, também já estão no radar de longo alcance dos cientistas. BONDE DA HISTÓRIA E como está o Brasil nessa corrida mundial preparatória de uma nova era da ciência, da tecnologia e de mudanças sociais? Há minguadas cinco dúzias de abnegados cientistas em todo o País tentando não perder, mais uma vez, o bonde da história. O Brasil não tem nenhuma estratégia detalhada, com o planejamento de estimativas de quantos físicos doutorados e pós-doutorados, técnicos, engenheiros, matemáticos, estruturas de apoio e equipamentos serão necessários ao menos para as pesquisas básicas. A culpa não é só do governo. Envolve uma vasta trama de atrasos de toda ordem, começando pela tradicional base da pirâmide cultural brasileira. “Há um fenômeno geral, válido para todas as áreas de ciência: são poucos os jovens que escolhem a pesquisa científica como atividade profissional, se considerarmos o tamanho da população brasileira”, argumenta o físico carioca Luiz Davidovich, 63 anos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Isso se deve, sem dúvida, à má qualidade da educação básica e, em especial, da educação em ciências.” A dificuldade de encontrar jovens interessados na iniciação científica no topo da pirâmide educacional é especialmente obser vada na área da computação quântica, segundo explica a física carioca Belita Koiller, da UFRJ, ganhadora, em 2005, do prêmio internacional da L’Oréal-Unesco para mulheres na ciência: “A computação quântica é uma área essencialmente multidisciplinar”. Depende de muitas especialidades, abrangendo áreas como matemática, ciência da computação, física quântica, além de outras áreas da física, como matéria condensada, atômica, óptica, fotônica, nanotecnologia, tanto em atividades teóricas como experimentais. A formação universitária no Brasil, entretanto, sempre foi e continua sendo excessivamente compartimentalizada – em cada carreira, os currículos são preenchidos praticamente por disciplinas obrigatórias restritas à respectiva especialização, dificultando uma formação interdisciplinar mais ampla e moderna. Além de serem poucos, os pesquisadores dessas diversas áreas estão unidos apenas virtualmente – o que já é alguma coisa – no recém-criado Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica. O físico Amir Caldeira, coordenador da instituição e professor do Departamento de Física da Matéria Condensada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica: “Temos um grupo de 66 pessoas coesas trabalhando nessa área, mas é só isso, um grupo de pessoas coesas. É um programa de ciência básica, não temos metas específicas ainda”. 41 Embora a ajuda do governo seja razoável para os padrões brasileiros, segundo Caldeira, o montante deixa a desejar se comparado com outros países semelhantes. “Ganhamos no projeto passado 2 milhões de reais para o Instituto do Milênio de Informação Quântica, para serem gastos ao longo de três anos por 12 instituições espalhadas pelo Brasil inteiro. Quando estive na Austrália e na Nova Zelândia, em 2005, vi que eles tinham um projeto semelhante, que envolvia quase o mesmo número de instituições, mas com um detalhe: o projeto deles recebia 2 milhões de reais por ano por instituição. A dotação para uma única universidade lá era equivalente ao total para todas as instituições brasileiras em três anos!”, lamenta ele. “Com a criação do instituto, melhorou – quase quadruplicou a verba – mas ainda é pouco para coisas mínimas, como convidar um figurão de fora para dar aqui um minicurso, participar de eventos no exterior, equipar melhor os laboratórios”, diz Caldeira. “Não temos um instituto do qual se possa esperar produtos num determi- nado prazo. Para isso acontecer, todo o direcionamento tem de ser diferente”, diz. GARGALOS DE HARDWARE O CQ está um pouco mais além do estágio em que estava a computação em 1936, quando Alan Turing criou uma máquina abstrata que permitiu definir precisamente, pela primeira vez, noções básicas como algoritmo, programa e computação. Por várias décadas, a máquina de Turing foi um modelo teórico que inspirou o amadurecimento de dispositivos de chaveamento sim/não (ou zero/ um), primeiramente das válvulas termiônicas e depois dos transistores. Na época, a empreitada foi tremendamente facilitada porque o dispositivo físico necessário à materialização do computador teórico de Turing já existia havia várias décadas – era a válvula termiônica dos antigos rádios. Mesmo assim, o primeiro computador, o Eniac, só funcionou em 1946, dez anos depois da solução demonstrada por Turing. Era um monstrengo de 30 toneladas que ocupava uma sala de 180 m2, mas tinha uma Giuseppe Bizarri Belita, pesquisadora: falta grupo experimental forte na área do silício potência equivalente às calculadoras de bolso atuais. Isso não acontece agora. Existe quase uma dezena de sistemas quânticos candidatos a serem o processador do CQ, cumprindo o papel das antigas válvulas ou dos modernos transistores. Considerando-se todos os aspectos relevantes, nenhum desses sistemas experimentais tem vantagens claras sobre os outros. Definir conclusivamente o hardware adequado para processar os algoritmos do CQ é a próxima etapa, ainda em discussão por físicos e engenheiros. “Nos próximos cinco anos, os sistemas estarão mais bem garimpados”, arrisca Belita, sem muita convicção. Os candidatos a hardware são os mais díspares possíveis, como elétrons flutuando em hélio líquido, íons presos em armadilhas eletrônicas e até dispositivos baseados no material clássico da computação moderna, o silício, cuja tecnologia é familiar aos fabricantes de microprocessadores. A viabilidade do silício para essa finalidade é assunto pesquisado teoricamente por Belita. A vantagem do silício é que sua tecnologia já é bem dominada no mundo, mas mesmo assim a preparação de bits quânticos no silício exigiria uma fabricação extremamente mais refinada do que a Intel faz hoje, por exemplo. Para entender a complexidade e o desafio da física, é preciso compreender como o computador quântico poderá funcionar. O CQ usa duas propriedades surpreendentes da mecânica quântica para realizar as operações de computação: a sobreposição e o emaranhamento. O GATO ZUMBI A primeira delas é a que viola a ideia aristotélica clássica de que duas coisas diferentes não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo. Um elétron, a partícula de carga básica, possui um atributo quântico, denominado spin, que poderia ser descrito classicamente em analogia com o giro de um pião. Mas, no mundo quântico, o giro do pião do elétron pode ocorrer no sentido horário (para baixo), no sentido anti-horário (para cima) ou, bizarramente, para cima e para baixo ao mesmo tempo. Isso ocorre porque a equação que descreve o spin do elétron pode fornecer o valor do spin para cima, para baixo e mais uma infinida42 retratodoBRASIL 22 de de soluções que são superposições das duas anteriores. Os físicos discutem até hoje o significado filosófico dessa bizarrice, mas ela já está exaustivamente provada. Não é um problema recente. A questão foi levantada em 1935 pelo físico Erwin Schrödinger e ficou conhecida como o “gato de Schrödinger”. Foi uma experiência hipotética na qual um gato era preso numa caixa com um vidro de gás letal que poderia ser quebrado por uma atividade nuclear probabilística. Quem não estivesse vendo o interior da caixa não saberia se o gato estava vivo ou morto. Logo, a função de onda – o objeto quântico que descreve coisas – daria um resultado que seria a sobreposição do gato vivo com o morto. O gato zumbi de Schrödinger atormenta até hoje os físicos. Existem outras interpretações consideradas igualmente inusitadas. Uma delas é que existem universos paralelos e que o gato está vivo num universo e morto em outro. Uma consequência extravagante é que, ao se abrir a caixa para verificar o estado do gato, caso ele esteja vivo ainda, o universo no qual ele está morto desaparece sem deixar rastro. Punk, não? retratodoBRASIL 22 Com essa propriedade esquisita, o CQ pode ter bits especiais diferentes dos usados pelo computador clássico. Em vez de ter apenas os valores um ou zero da lógica binária, o CQ pode ter os valores um, zero e um e zero. Pode parecer uma diferença modesta, mas, à medida que se amplia a quantidade de bits, o crescimento é exponencial. Com três bits, os valores clássicos são: 000, 001, 011, 111, 100, 110. Mas, nos bits quânticos, batizados de qubits, esses valores podem ser, além dos mencionados antes, também as superposições deles, como, por exemplo, [50% 000 + 50% 001] ou [90% 000 + 10% 011] e assim por diante, gerando um número infinito de possibilidades. O FANTASMA DE EINSTEIN A segunda propriedade da mecânica quântica que viabiliza o CQ é igualmente excêntrica e foi batizada por Albert Einstein como uma coisa “fantasmagórica”. Trata-se de algo absurdo no mundo clássico. Se duas partículas interagem intimamente, elas passam a fazer parte de um sistema único e ficam, como dizem os físicos, “emaranhadas”. Quer dizer que, se dois fótons são criados e cada um dispara em uma direção do universo, eles vão estar ligados. Se for feita uma observação em um deles, numa ponta da galáxia, isso se reflete imediatamente, num tempo zero, no outro lado da galáxia. Com essas duas características, já temos as propriedades necessárias para resolver problemas com o CQ. Vejamos um problema simples, como, por exemplo, achar a saída de um labirinto complexo. No computador clássico, o processador simularia uma partícula percorrendo o labirinto numa determinada ordem, como entrar sempre nas passagens à direita, por exemplo. Se não desse certo, voltaria ao começo e tentaria todas as portas à esquerda. Se não desse certo novamente, tentaria a primeira porta à direita e depois todas à esquerda e assim sucessivamente. É uma trabalheira. Mas, no caso do CQ, logo na primeira bifurcação, o processador usa a propriedade quântica da sobreposição e gera ondas que vão ao mesmo tempo pelas duas portas. Na bifurcação seguinte a mesma coisa, indefinidamente, gerando um batalhão de ondas fantasmas ou qubits. Aí entra a segunda propriedade fantasmagórica da mecânica quântica, o emaranhamento. Todos esses fantasmas estão emaranhados e fazem parte de um único sistema, 43 não importa quão longe estejam. O fantasma que achou a porta de saída do labirinto então transmite para todos os outros o caminho certo. Como dizem os físicos, todo esse emaranhado de fantasmas “colapsa” para apenas um valor certo. Os outros vão para seus universos paralelos, se é que isso tem algum sentido físico. Com os progressos da física experimental, descobriu-se que a equação de onda do gato zumbi, ou dos batalhões de fantasmas no labirinto, não ficaria muito tempo nessa situação de emaranhamento. A coerência entre os estados vivo/morto logo desaparece em laboratório. Depois de um certo tempo, o gato estaria morto ou vivo, mas de maneira excludente. Isso acontece espontaneamente sempre que há uma interferência externa, como uma carga elétrica ou algum ruído do mundo clássico. O curto tempo de coerência é um dos principais obstáculos ao desenvolvimento do CQ. Davidovich é um dos brasileiros que com frequência publicam pesquisas teóricas sobre o assunto em revistas internacionais. Recentemente ele conseguiu, pela primeira vez, medir a dinâmica de emaranhamento de pares de fótons, o que vai ajudar a definir quanto tempo o CQ pode funcionar antes de travar – no caso, antes de perder a coerência entre os qubits ou colapsar para um valor único, sem superposições. Essa é igualmente a área de trabalho de Caldeira. O Brasil tem também trabalhos na área teórica dos “softwares” do computador quântico, que, na verdade, são algoritmos para resolver os problemas. São basicamente duas áreas: os algoritmos de busca e os de fatoração, como os usados no desmembramento de números primos para a criptografia. Renato Portugal, do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), é um dos craques nessa área e tenta também disseminar o interesse pelo CQ. É um dos autores de um dos raros livros em português para iniciação dos interessados. Isso é um problema sério: “Com relação à divulgação para o público leigo, as iniciativas são muito poucas e esbarram em um problema geral da sociedade brasileira”, avalia Portugal. “Existe um enorme fosso entre os pesquisadores e a população em geral. Deve ter alguma relação com a desigualdade social, tipo da favela para a 44 classe alta. É muito difícil falar sobre computação quântica ou qualquer área de ponta da ciência para uma pessoa que não tenha nível universitário. Se não tiver nível secundário, aí o problema é sério. Já conversei com gente que tinha nível universitário e, depois de muito falar que uma das implementações da computação quântica usa átomos em uma molécula, acabei percebendo que a pessoa não estava entendendo nada. Era porque ela não sabia que moléculas são feitas de átomos.” O cientista acredita que parte da culpa vai para a ala acadêmica também. “Eu acho que há pouco estímulo, muito por causa dos próprios pesquisadores, que não investiram energia suficiente para mostrar que a área é estratégica e fundamental em médio prazo. Uma das coisas que mais freiam o desenvolvimento de áreas novas no Brasil é a característica dos pesquisadores brasileiros de serem resistentes a mudanças de área. Se um pesquisador fez um nome ou tem reconhecimento numa determinada área, ele não muda e não incentiva jovens a investirem em novas áreas”, lamenta ele. MONTANHA DE DINHEIRO Portugal já trabalhou na Universidade de Waterloo, no Canadá, um dos maiores centros mundiais de CQ, que rivaliza até mesmo com os centros americanos. “O investimento lá é muito maior. Somente no ano passado, a Universidade de Waterloo recebeu do bilionário e visionário Mike Lazaridis – fundador da RIM, criadora do celular BlackBerry – uma doação de 140 milhões de dólares para a computação quântica.” Uma montanha de dinheiro que humilha o orçamento de vários anos do LNCC. O maior gargalo, no entanto, é na área experimental, como explica Belita: “Sinto falta de um grupo experimental forte. Essa área de experimentação de silício não é tão desenvolvida no Brasil como seria desejável”, lamenta. Sua pesquisa é baseada em trabalhos experimentais realizados no exterior e busca um candidato a processador quântico viável do ponto de vista das operações lógicas e com tempo de coerência longo. Para isso é preciso projetar um sistema muito blindado do mundo exterior, evitando que as interferências clássicas destruam a coerência do qubit. Um bom lugar para fazer isso é a matriz cristalina do silício. “Essa é uma armadilha perfeita do ponto de vista da natureza, porque o átomo está lá e não sai”, diz ela. A armadilha pode ser feita injetando-se um átomo diferente, chamado dopante, na matriz cristalina pura do silício. “Esse átomo possui um elétron a mais com um spin desemparelhado. É o mesmo tipo de impureza que se usa na dopagem tradicional de semicondutores. A diferença é que essas impurezas têm de ser adicionadas uma a uma, em posições conhecidas, para que possam ser manipuladas por eletrodos, campos magnéticos, etc. O spin do elétron ligado ao dopante forma um qubit perfeito por ter dois estados (para cima e para baixo). Como é um atributo quântico, o spin interage fracamente com o meio ambiente, sendo menos contaminado pela ‘descoerência’ do que uma propriedade clássica, como a carga”, detalha ela. “O silício para o CQ tem de ter alto grau de pureza e cristalinidade e, além disso – o que difere da usinagem clássica da indústria de semicondutores –, tem de ser purificado isotopicamente, porque 5% dos isótopos desse material como encontrado na natureza têm spin nuclear que interage com o spin do elétron, representando um fator de ‘descoerência’. Idealmente deve ser utilizado o silício 28 purificado, cujo spin nuclear é nulo. Já foi demonstrado que isso aumenta muito o tempo de coerência. Se for comprovada a viabilidade de alguma das arquiteturas propostas, a indústria teria todo o interesse em produzir esse material”, diz a cientista. Apesar do trabalho pioneiro, Belita percebe certa falta de interesse pela ciência no País. Por exemplo, ao contrário da imprensa de outros países, inclusive da América Latina, a brasileira não dá muito destaque à ciência. “O esporte parece ofuscar todas as outras áreas. Isso se multiplica na opinião pública e os jovens tendem a escolher carreiras como economia, advocacia. Opções científicas, que podem ser bastante gratificantes, não são nem sequer consideradas.” Mas nem tudo está perdido. “Sou uma otimista. Acho importante o Brasil acompanhar essa nova área, que é estratégica. Quem dominar a ciência e a tecnologia garante o futuro. E a ocasião é boa, porque o hardware do computador quântico não está definido, temos uma chance de chegar na fronteira”, conclui a cientista. retratodoBRASIL 22 Paisagismo: C O Q O MARX DOS CACTOS E CURVAS Quem não conhece o calçadão de Copacabana? As curvas em mosaico português branco e preto emolduram a praia mais famosa do Brasil e fazem parte do imaginário dos brasileiros. Além do calçadão na avenida Atlântica, há o paisagismo do Aterro do Flamengo, os jardins do Museu de Arte Moderna do Rio, os jardins do Edifício Gustavo Capanema (antiga sede dos ministérios da Educação e da Saúde, também no Rio de Janeiro), o conjunto paisagístico da Pampulha, em Belo Horizonte, o projeto paisagístico para o parque do Ibirapuera em São Paulo (não construído), o paisagismo do Eixo Monumental em Brasília, os jardins de vários dos palácios na capital federal e, para não citar apenas projetos no Brasil, os jardins da sede da Unesco em Paris e do Parque del Este, em Caracas. Todos fazem parte da numerosa obra de Roberto Burle Marx, responsável por recriar a vegetação dos trópicos em espaços públicos (e privados) das cidades. Se fosse vivo, Burle Marx completaria cem anos em 2009. Considerado o maior paisagista brasileiro, esse pernambucano filho de pai alemão foi para a Europa na década de 1920 tratar-se de um problema ocular. Em Berlim, visitou o Jardim Botânico de Dahlen, onde se maravilhou com a flora nativa brasileira. Na seção das plantas tropicais, cactos, bananeiras, bromélias e toda sorte de plantas que não eram consideradas nobres o bastante para fazer parte de um jardim surgiram diante de seus olhos e o colocaram frente a um mundo novo. Nessa estada, estudou canto e tomou contato com a vanguarda Todas as imagens: Divulgação Cosac Naify Um dos principais paisagistas do século XX, pioneiro na criação de formas baseadas na flora brasileira, Burle Marx completaria cem anos se fosse vivo | Ana Castro Burle Marx no Sítio de Guaratiba em 1989 retratodoBRASIL 22 45 europeia, frequentou óperas, museus e galerias, conheceu as obras de Van Gogh, Picasso, Klee e visitou várias vezes o ateliê de pintura de Degner Klermn. “VERGONHA DA MATARIA” De volta ao Brasil, matriculou-se na Escola Nacional de Belas Artes, da qual frequentou os cursos de arquitetura e escultura. Em 1932, fez sua primeira obra – os jardins da Casa Schwartz em Copa- cabana, projeto de Lucio Costa e Gregori Warchavchik, considerados pais da arquitetura moderna brasileira. Mas foi na experiência recifense, entre 1934 e 1937, quando ocupou o cargo de diretor de Parques e Jardins da prefeitura, que o paisagista amadureceu. Tomando parte no governo progressista de Lima Cavalcanti, ao lado de outros nomes importantes da arquitetura brasileira, como Luís Nunes – que dirigia o Departamento de Obras da Jardins do MAM do Rio: gramado em ondas dá continuidade ao piso em mosaico capital pernambucana –, o paisagista projetou uma série de praças e jardins públicos e criou o primeiro Parque Ecológico do Recife. O Cactário da Madalena (hoje praça Euclides da Cunha), um exemplo desse período, provocou horror na elite pernambucana. Acostumada às perspectivas francesas dos jardins europeus, a presença de plantas da caatinga em praça pública foi demais para a oligarquia local. “Vergonha das intimidades exageradas da mataria”, diria Mario Pedrosa. Para essa elite, tratava-se de devolver a cidade à selva. O contato com artistas e intelectuais na década de 1930, como Portinari (de quem se tornou assistente) e Mario de Andrade (de quem seguiu aulas na Universidade do Distrito Federal), e a ligação com os arquitetos modernos, como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Rino Levi, entre outros, o colocaram no centro da renovação arquitetônica nacional – e sua obra não tem menos importância nesse aspecto. A integração entre arte, paisagem e arquitetura, que marca a moderna arquitetura brasileira, deve muito ao talento do paisagista, que pensava os jardins integrados à arquitetura, fazendo parte da construção tanto quanto as colunas do Palácio do Itamaraty, por exemplo, são parte daquele edifício. Nessa época, o paisagista passou a experimentar formas orgânicas e sinuosas, projetando suas obras mais conhecidas no Brasil, como as citadas anteriormente. INTERPRETAÇÃO DA PAISAGEM Apaixonado por botânica, em 1949 Burle Marx deu início a uma coleção de plantas ao adquirir uma área de 800 mil m² em Guaratiba, no Rio (antigo sítio Santo Antônio da Bica, hoje sítio Burle Marx, pertencente ao Ministério da Cultura e aberto à visitação), e ali criou um imenso viveiro de plantas que passou a alimentar seus jardins. Burle Marx realizou viagens para as diferentes regiões do País, onde coletou e catalogou exemplares, que depois seriam introduzidos em seus projetos paisagísticos. Não foi, entretanto, a introdução da flora nativa o seu maior feito – alguns jardins cariocas do início do século também contavam com essas plantas –, e sim “transferir para o projeto de seu jardim a diversi46 retratodoBRASIL 22 Ministério das Relações Exteriores, Brasília: além dos paisagismo do Eixo Monumental, os jardins internos também foram contemplados no projeto dade, a instabilidade e os complexos processos de associações naturais de plantas tropicais, o que pressupunha um intenso trabalho de interpretação da paisagem”, como explica Vera Siqueira em Burle Marx (Cosac Naify, 2001). Em seus projetos, nota-se a preocupação com as massas de cor, que são construídas a partir da disposição de arbustos e árvores em grupos homogêneos, cujo potencial de variação cromática ao longo das estações do ano também é levado em conta. São formas orgânicas dentro de contornos precisos; muitas vezes, canteiros construídos; outras, massas de vegetação que pouco se diferenciam aos olhos do leigo da própria natureza, como é o caso dos jardins da casa dos Moreira Salles, na Gávea, no Rio (atualmente Instituto Moreira Salles, também aberto à visitação). Ali, tem-se a impressão de estar num trecho de mata atlântica – o que não é de todo falso, pois o jardim foi projetado pelo paisagista de forma a integrálo à mata circundante do sopé da Pedra da Gávea. Próximo de completar 80 anos, esse “arquiteto de jardins” – como lhe chamou um dia Pietro Maria Bardi –, que foi também pintor, escultor e tapeceiro, foi tema de enredo de escola de samba no Rio e retratodoBRASIL 22 sua obra teve a consagração definitiva com a retrospectiva “Roberto Burle Marx – The unnatural art of the garden”, no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, em 1991, ano em que foi agraciado com mais um título de doutor honoris causa, pela Faculdade de Arquitetura da Università degli Studi di Firenzi, na Itália, que o considerou o mais eminente paisagista do século XX. OBRA EXCEPCIONAL Burle Marx faleceu em 1994, aos 84 anos, tendo projetado mais de 2 mil jardins ao longo da vida, nos quais buscou subordinar a natureza à linguagem paisagística que criou. Segundo o professor de Paisagismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Euler Sandeville, para perceber a excepcionalidade da obra de Burle Marx no contexto da modernidade, basta confrontar sua produção com as correntes principais dos paisagismos europeu e americano contemporâneos, como Theo Van Doesburg ou Robert Mallet-Stevens. Para Sandeville, “trata-se de um desenvolvimento para além do gosto, da moda, da maneira, no âmbito essencial da estética”. Hoje, algumas das principais obras de Burle Marx encontram-se num precário estado de conservação, como os jardins do aeroporto Santos Dumont e do Museu de Arte Moderna – ambos em aterros na Baía de Guanabara –, os calçadões de Copacabana, parcialmente desfigurados, ou mesmo o Cactário da Madalena, este em processo de restauro pela associação de um grupo de profissionais da Prefeitura do Recife e da Universidade Federal de Pernambuco. No começo deste ano, a prefeitura carioca anunciou o tombamento de 88 obras do paisagista inventariadas na cidade, 22 das quais em espaços privados, decisão anunciada pelo arquiteto Washington Fajardo, subsecretário de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design do Rio. Segundo Fajardo, entretanto, o tombamento – que ele considera a forma de reconhecimento da responsabilidade do poder público – não basta para a conservação dos jardins. Seria necessária a criação de um fundo com o objetivo de “assegurar recursos para manutenção”, disse o arquiteto em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em janeiro deste ano. E o centenário do paisagista tem se mostrado uma boa data para se começar a pensar sobre isso. 47 Política CASO DANTAS: UM DEBATE O presidente da Previ, Sérgio Rosa, e o repórter Raimundo Rodrigues Pereira discutem as conclusões do artigo publicado na última edição de Retrato do Brasil UMA VISÃO DESEQUILIBRADA Caro Raimundo, Em primeiro lugar, e sem ironia, devo dizer que seu texto será considerado, sem sombra de dúvida, a maior matéria publicada em revista em defesa do sr. Daniel Dantas. Claramente você elegeu o próprio personagem principal como sua principal e mais acreditada fonte, e a maior parte do texto aborda os argumentos que ele próprio e seus advogados construíram para sua autodefesa. Creio que, independente das crenças próprias do jornalista, uma vez que parece não haver problema de espaço, faltou maior equilíbrio na apresentação de argumentos de todas as partes envolvidas no conflito. Os argumentos do sr. Dantas tomaram a quase totalidade da matéria, seja na remontagem do histórico da legislação pertinente aos fundos destinados a investidores estrangeiros, seja na descrição de todos os demais fatos selecionados. Aliás, a seleção dos fatos também me parece um tanto curiosa. As sentenças (ainda que preliminares) proferidas tanto pela corte de Cayman quanto pela de Nova York; as questões relativas ao Consórcio Voa e outros do tipo; a curiosa matéria de Veja sobre contas de autoridades no exterior; a polêmica contratação da Kroll; a venda do controle da Brasil Telecom (BrT) para a Telecom Italia (TI), bloqueada pela Justiça; o acordo “Umbrella”; a tomada de empréstimos junto à BrT para a compra de participação acionária em outra empresa; todos esses fatos e outros passam completamente esquecidos, apesar da extensão da matéria. Quanto à parte que diz respeito aos fundos de pensão e particularmente à Previ, gostaria que constasse a nossa versão, ainda que ela não conte com a simpatia do repórter. Os fundos de pen48 são iniciaram seus conflitos com o Opportunity a partir do ano 2000 (portanto, antes do governo do presidente Lula), por razões bastante objetivas, tais como cobrança indevida de taxas de administração, falta de prestação de contas e fragilidade dos investimentos realizados através do CVC (perguntamos, por exemplo, se o fundo brasileiro teria tag along em relação ao fundo estrangeiro, e o Opportunity nunca nos assegurou esse direito). A destituição do Opportunity como gestor do fundo foi baseada em fatos, apresentados à Assembleia de Cotistas, que caracterizavam, em seu conjunto, a “quebra do dever fiduciário”. Ficou demonstrado que o Opportunity tomou medidas contrárias aos interesses do próprio fundo, vale dizer, dos seus cotistas, assim como utilizou as prerrogativas de gestor do fundo para realizar operações e estabelecer acordos em benefício próprio. A Previ não empreendeu “campanha” contra o Opportunity, muito menos em nome do governo. A Previ agiu como investidor diligente, tomando as providências necessárias para proteger seus interesses, que em última instância são os interesses dos associados da entidade. Os fundos não “ficaram com a TI desde 2000”, em assunto que o jornalista considera relevante e demanda que seja mais bem examinado mais adiante. Quem escolheu a TI como sócia do consórcio foi o Opportunity. Quem negociou os acordos que regiam os direitos da TI na empresa foi o Opportunity. Quem chegou a vender o controle da BrT para a TI foi o Opportunity, de maneira irregular, o que resultou na suspensão dessa venda pela Justiça e posterior suspensão da maior parte desse acordo (embora o Opportunity tenha recebido uma parcela dessa transação). A relação dos fundos com a TI ocorria em torno das matérias tratadas no Conselho de Administração da BrT, que eram objeto de reunião prévia de acionistas. O repórter parece ter confundido meus comentários sobre a consolidação do setor de telefonia envolvendo os celulares no início dos anos 2000 (quando o Opportunity posicionou-se de forma a prejudicar eventual unificação de empresas como Telemig, Americel e Telet) com a tentativa de negociação com a TI posteriormente, quando ela manifestou interesse em adquirir o controle da BrT. No caso da aquisição da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT), os fundos em nenhum momento participaram de qualquer negociação ou tomaram qualquer decisão que não fossem as apresentadas pela diretoria da BrT, que defendeu a aquisição como estratégica e apresentou as faixas de valores para a negociação, bem como a proposta final que foi finalmente fechada. A indicação dos diretores da Previ por parte da patrocinadora do plano (vale dizer, o Banco do Brasil) é de responsabilidade do Conselho Diretor do Banco do Brasil, que está formalmente vinculado ao Ministério da Fazenda. Os acordos firmados entre os fundos de pensão e o Citibank representaram o amadurecimento das partes na busca de uma saída comum e adequada para seus investimentos. Ambos chegaram à conclusão de que a gestão do Opportunity não seria capaz de oferecer uma saída justa e satisfatória para as partes. A evolução da posição do Citi ao longo do tempo não se deveu a pressões, mas sim ao surgimento de fatos sucessivos que indicavam o risco que todos os investidores estavam correndo. Todas as divergências entre o Citi e o Opportunity foram expostas em processo aberto na corte de Nova York. Seria demais imaginar que o Citi se arriscaria num processo desse tipo apenas por pressão dos fundos brasileiros. A demissão do sr. Humberto Braz da Brasil Telecom Participações e a auditoria empreendida pela nova gestão da empresa foram providências tomadas no âmbito da própria empresa e podem ser consideradas de praxe. A troca dos exeretratodoBRASIL 22 UMA SIMPLIFICAÇÃO EXAGERADA Prezado Sérgio, 1. Você se engana quanto ao método do trabalho jornalístico. Contar a história de um conflito não é relatar todos os fatos e buscar um “equilíbrio” na apresentação de argumentos de todas as partes envolvidas. O jornalista não é um anjo, equilibrado acima do bem e do mal, de onde expõe todos os fatos. Faz a sua crítica a partir de posições, interesses. Fatos e argumentos, há uma miríade deles; uns e outros cercados por um cipoal de interesses, de contradições. Um jornalista não deve terceirizar suas obrigações diante da aparente confusão; não deve contar uma história dizendo que a verdade é que fulano diz isso e sicrano diz aquilo. Deve selecionar o que é relevante e dispensar o que não é. Pode errar, é claro. Você cita sete assuntos que deixei, a seu ver, “completamente esquecidos”. Não tem razão: de fato, examinei todos eles. Para ficar num exemplo: o que é a “matéria de Veja sobre contas de autoridades no exterior”? São várias matérias. A revista, aparentemente aproveitando informações de Daniel Dantas, em 2005, foi atrás de retratodoBRASIL 22 A expulsão de Daniel Dantas das telecomunicações foi como o descarrego de um demônio que instabilizaria o setor. Esse exorcismo confundiu a compreensão dos complexos problemas nascidos da privatização das estatais brasileiras | Raimundo Rodrigues Pereira 1. Quem é Daniel Dantas? Mundo, mundo, vasto mundo. Se você não se chamasse Raimundo, Faltaria uma rima, Mas já seria uma solução. Um abraço, Sérgio Rosa um ex-agente da CIA e da Kroll, em busca de contas secretas do presidente Lula e de outros dirigentes do governo. Não achou prova alguma. Engavetou o assunto por meio ano. No clima da campanha contra o governo Lula, a partir da denúncia do chamado “mensalão”, resolveu publicar a história, mesmo sem provas. Atacada depois, por muita gente, Veja se saiu com a desculpa de que Dantas poderia ser um chantagista. O que você viu de relevante nessa história? Acho que foi mais uma oportunidade para demonizar Dantas. Você diz que enfiei no artigo uma “suposta contradição” entre ser contra as privatizações e ter lucrado com elas, mais com a intenção de prejudicar a imagem dos fundos e defender a de Dantas. É um erro. Não fiz uma avaliação mais geral da pessoa de Daniel Dantas. Conto uma história diferente: dos interesses que ele defendeu e dos que se opuseram a ele. E fiz isso de um ponto vista explícito: o de quem acha que a privatização das estatais brasileiras – das teles, inclusive – causou dano ao País. Nesse sentido, nossas posições divergem porque você não vê essa contradição e para mim ela é importantíssima. Historicamente, nas lutas sociais, entre as camadas de trabalhadores, formam-se setores privilegiados que podem ser cooptados a defender os interesses do grande empresariado. E, na história que conto, acho que foi isso que aconteceu: os fundos de pen- Política Alex Silva cutivos mais relevantes e a realização de uma due diligence legal são comuns em qualquer caso de troca de comando. Quanto aos comentários sobre “o esquema de controle da BrT por Dantas” e a suposta regra geral em que os “fundos põem muito dinheiro e mandam pouco”, o repórter parece encontrar aí uma espécie de justificativa para tudo que aconteceu na BrT, como se o Opportunity não tivesse feito nada demais, mas apenas e tão somente repetido a regra geral. Não é o caso. Se é verdade que os gestores de fundos de private equity têm mandato para realizar inúmeras operações em nome do fundo (afinal, são contratados e remunerados para isso), não podem e não devem faltar com a prestação de contas e com a fidelidade aos seus cotistas. Ademais, no presente caso, os fundos tinham investimentos diretos fora do fundo gerido pelo Opportunity, e o Opportunity tomou medidas (como a assinatura do “Umbrella”) que só o beneficiavam. Quanto à suposta contradição entre o posicionamento pessoal com relação às privatizações e o dever de defender os interesses dos fundos nas empresas, bem, não sei bem o que esses comentários fazem nessa matéria. Poderíamos discutir longamente o assunto, com direito e respeito à opinião das partes interessadas neste debate. Mas, no presente caso (na presente matéria), o fechamento parece apenas buscar mais uma contradição dos fundos, mais uma incongruência a dizer que não deveríamos realmente estar onde estivemos, atrapalhando e incomodando o personagem principal que, mandatado e pago para fazer o que fazia, bem-nascido e desde sempre a favor das privatizações, iluminado e com competência comprovada desde os bancos escolares, este sim deveria ter sido deixado em paz a fazer o seu trabalho, posto que, ao contrário das citações da abertura, o referido cidadão está mais para cristão injustiçado e perseguido do que para demônio. O DIABO DAS TELES 12 retratodoBRASIL 21 Para alguns, Daniel Dantas seria o símbolo da “privataria”, nome que muitos dão, com fundadas razões, ao processo de venda das estatais brasileiras. Talvez, para mais gente ainda, Dantas é pior que isso – é o demônio. • Um amigo do repórter, que conhece pessoalmente o personagem e acompanha sua história há mais de uma década, responde, em síntese, numa conversa de uma hora e meia no fim de fevereiro: “É um gênio do mal, comandante de forças poderosíssimas, articulado com o que há de pior nas estruturas do Estado brasileiro”. • O juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Federal Criminal, especializada em crimes contra o sistema financeiro nacional e em lavagem de valores, dedicou quatro páginas de sentença em que condenou Dantas a uma espécie de avaliação psicológica. Diz que ele é de “uma individualidade ímpar e irracional, egocêntrico”, “se desvincula facilmente dos parâmetros sociais para satisfação de seus interesses” e conclui: “sem hesitar, acredita no dinheiro, não como instrumento legítimo para circulação de bens, mas como algo determinante de suas ações ou omissões, bem como de todas as pessoas que passam por seu caminho”. • A senadora Heloísa Helena (PSOL-AL), falando a Dantas na reunião conjunta das comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs) “dos Correios” e da “Compra de Votos”, em setembro de 2005: “DuDANTAS, COMO LÚCIFER, O ANJO EXPULSO DOS CÉUS Ilustração com base em desenho do romance gráfico Prelúdios e Noturnos, de Neil Gaiman. No original, o rosto do anjo é do compositor David Bowie retratodoBRASIL 21 rante toda a minha militância no PT, eu sempre ouvi falar de Vossa Senhoria [...] meio como um Lúcifer, o gênio do mal, alguém preparado para as piores coisas, para tudo aquilo que, na minha opinião, é da essência do capitalismo: a chantagem, o suborno, a espionagem, a corrupção”. • A senadora Ideli Salvatti (PT-SC), atacando Dantas na reunião da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em meados de 2006, à qual ele compareceu para esclarecer a denúncia da revista Veja de ter sido a origem das informações que levaram o semanário a publicar uma lista apócrifa de pessoas com contas ilícitas em paraísos fiscais, dentre as quais o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Paulo Lacerda, então chefe da Polícia Federal (PF): “Eu tenho o convencimento de que o senhor faz o que for preciso, com quem quer que seja, utilizando todo e qualquer instrumento, legal, ilegal, [...] todo o elenco possível e imaginável; com este, com outro, com qualquer governo, porque, para o senhor, eu acho que só interessa o seu interesse financeiro, em primeiro, em segundo, em terceiro e até o último lugar”. • A revista Veja, na edição de 16 de julho do ano passado, comentando a prisão de Dantas, por duas vezes, uma semana antes, na Operação Satiagraha: “Ele é expoente entre os negociantes e sistemas empresariais que nunca se expuseram ao poder purificador da concorrência, que se escondem sob as asas estatais para fugir dos rigores da lei e do vento trazido pela abertura econômica. Nada sabem sobre inovação ou produtividade, os reais motores da criação de riqueza no sistema capitalista. Nesta condi- ção, Dantas envolveu-se em praticamente todos os grandes escândalos de economia mista – estatal e privada – da última década no Brasil”. Demonizar alguém não é uma boa solução para um grande problema – no caso, o processo de privatização do sistema brasileiro de telecomunicações. Este repórter buscou uma outra saída; e, nas três primeiras partes desta história, procurou dizer quem é Dantas e qual o seu negócio. No processo em que foi condenado pelo juiz De Sanctis a dez anos de prisão em regime fechado e ao pagamento de multa de 12 milhões de reais, Dantas chegou a ser acusado pelo delegado federal Protógenes Queiroz de ter oferecido dinheiro para tentar livrar o filho da prisão. Dantas não tem filho, mas uma filha, que vive na França. Ele mora no Rio de Janeiro, com a mulher, num apartamento na Vieira Souto, a avenida mais famosa de Ipanema. O repórter o visitou em meados de setembro passado, cerca de um mês depois de seu depoimento à “CPI do Grampo”, durante a qual ele convidou qualquer dos parlamentares presentes a ir a sua residência para confirmar a mentira disseminada pelo noticiário sobre a existência de uma parede falsa atrás da qual os agentes da PF, durante sua prisão, teriam encontrado discos rígidos de computador com registros criptografados. De fato, a parede falsa não existe. O apartamento é grande, com cerca de 600 metros quadrados. O escritório onde estaria a suposta parede, ao lado do quarto do casal, tem, de fato, um enorme armário com portas de correr, sem qualquer sinal de arrombamento. Dantas mostra, sobre uma mesa próxima ao armário, o monitor Apple solitário, 13 49 2. Sua posição fica mais clara quando tenta contar o que teria sido a verdadeira história. Você diz, em resumo, que os conflitos com o Opportunity decorreram de causas objetivas. Não fizeram parte de campanhas mais amplas, não tiveram a interferência de posições de governo. Os fundos e o Citi se acertaram, por exemplo, pelo “amadurecimento” de ambos “na busca de uma saída comum”. É uma simplificação exagerada da história. A disputa pelo controle das teles brasileiras se dá no contexto das violentas crises do final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Evidentemente, ela se materializa em torno de inúmeras divergências quanto a taxas, preços, avaliações, procedimentos, que podem ser consideradas de praxe. Mas a característica básica do processo é de violentas disputas entre grandes grupos capitalistas, estrangeiros e locais. O Estado brasileiro e o aparato sob seu comando – o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Banco do Brasil (a Previ aí incluída) – serviram a esse processo. Você diz que a disputa da Previ com o Opportunity é “bastante objetiva” e que não é do governo Lula, é de 2000, do governo Fernando Henrique Cardoso, como se a continuidade assegurasse o seu conteúdo apolítico. Não foi assim. As estatais brasileiras foram vendidas num processo de intensa luta política, após a vitória dos liberais em 1989 e 1994, com as eleições de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. As privatizações poderiam ser revistas depois, com relativa facilidade, do ponto de vista econômico, porque elas foram feitas com dinheiro público, com grande participação de entidades que o Estado brasileiro controla 50 Folha Imagem são de nossas grandes estatais pegaram o bonde andando de uma privatização que representou a divisão do patrimônio público entre diversos grandes grupos empresariais e o mantiveram na mesma linha. E acabaram perdidos, sem uma posição estratégica independente, na disputa entre os vários grupos, aliando-se ora a uns, ora a outros. A demonização de Dantas serviu, falsamente, para caracterizar uma posição independente. Sérgio Rosa entre Wagner Pinheiro, da Petros, e Guilherme Lacerda, da Funcef – como os citados BNDES, Banco do Brasil, Previ e outros fundos. Até 1998, no movimento oposicionista, prevalecia a tese de rever as privatizações. Isso começou a mudar por uma decisão política, de 1999, quando o alto comando do Partido dos Trabalhadores (PT) abandonou a campanha do “Fora, FHC” e buscou um caminho para chegar ao poder por meio de um acordo essencialmente por cima, que menosprezou o papel da mobilização dos trabalhadores. Isso fez que muitos de seus dirigentes passassem inicialmente a considerar irreversíveis as privatizações – deveriam ser apenas aprimoradas – e, posteriormente, como um bem para o País. As decisões da Previ no ano 2000, dirigida por uma coligação de petistas eleitos e dirigentes nomeados pelo governo FHC, correspondem a esse contexto, o das disputas para aprimorar o processo de privatização. E é nesse contexto que se encaixa a figura do demônio Daniel Dantas: exorcizá-lo já seria um avanço. Um episódio mostra como isso se deu. Em maio de 2000, o novo presidente da TI, Roberto Colaninno, veio ao Brasil para, explicitamente, iniciar uma guerra para mudar o contrato da BrT e assumir o comando da companhia. Na Europa, Colaninno tinha iniciado um movimento de aliança e luta com a Telefónica de Espanha. No Brasil, a Telefónica era obrigada a vender a CRT à BrT em função da legislação, como se sabe. O primeiro grande lance de Colaninno no Brasil foi obter o apoio do governo FHC para sua proposta de compra da CRT nos termos em que ele definiu, em oposição aos interesses que Dantas defendia. O negócio só foi feito depois de enormes pressões do governo FHC contra o bloco liderado por Dantas, que apelou para os dirigentes da Previ, você, inclusive. Nesse negócio, seu argumento, ao dizer que o papel da Previ foi o de apoiadora desinteressada a decisões que lhe chegaram prontas e acabadas do Opportunity, só deve ser aceito por aqueles que acham que: a) Dantas é Lúcifer; b) este repórter é seu seguidor; e c) a Previ é um covil de anjos. Um abraço, Raimundo Rodrigues Pereira retratodoBRASIL 22 retratodoBRASIL 22 51