Diário de Flores ou Lamento de um Blue

Transcrição

Diário de Flores ou Lamento de um Blue
Diário de Flores ou
Lamento de um Blue
Organizado por Tânia Lima
Diário de flores
Ou lamento de um blue
Diário de flores
Ou lamento de um blue
Tânia Lima
Lucgraf
Natal
2010
Capa
Thomaz Monteiro
Fotografia da capa:
Leila Aquino
Revisão
Da autora
Diagramação:
Rosângela Trajano
Este livro foi composto em 2010.
Copyright by Tânia Lima
Lucgraf - Editora Gráfica Ltda.
Todos os direitos reservados a autora.
Lei do Direito Autoral 9.610/98
Divisão de Serviços Técnicos
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila
Mamede
Lima, Tânia.
Diário de flores ou lamento de um blue / Tânia Lima. – Natal, RN: Lucgraf,
2010.
165 p.
ISBN 978-85-60621-13-2
1. Literatura brasileira. 2. Ficção brasileira. 3. Lima, Tânia.
RN/UF/BCZM
CDU 869.1
Nascemos num tempo verde.
(Carlos Emílio Corrêa Lima)
SUMÁRIO
1
AQUI COMEÇO .......................................................................... 06
2 AS ÁRVORES ME COMEÇAM.................................. ............... 12
2.1 Retrato do poeta quando coisa ................................. ............... 20
3 O VERÃO - MUNDO PEQUENO........... .................................32
3.1 As ruínas urbanas............................................................................49
4
O OUTONO - A NATUREZA COMO LUGAR DE SER
INÚTIL...................................................................................................54
4.1 A natureza das coisas..........................................................................60
4.2 Discussão sobre a utilidade das coisas....... ..................................69
4.3 A natureza e as coisas .....................................................................77
4.4 A natureza sob o olhar da ordinariedade.................................... 82
5 O INVERNO - A LINGUAGEM DO INUTENSÍLIO EM ARRANJOS
PARA ASSOBIO....................................................................................101
5.1 A natureza da linguagem inútil ...................................................105
5.2 Manoel de Barros e a escrita de João Cabal de Melo Neto........ 111
5.3 Manoel de Barros e Guimarães Rosa...........................................124
5.4 Os deslimites das palavras ........................................................... 128
5.5 As dificuldades da poética manoelina.............................................139
5.6 O arranjo das letras .....................................................................139
6 PALAVRAS INACABADAS .......................................................148
6.1 Árvores me terminam......................................................................148
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................156
1 . AQUI COMEÇO
6
É nosso objetivo ler a poesia de Manoel de Barros enquanto
poética da ordinariedade que, voltada para os objetos mais ínfimos
da natureza, elege o traste, o inútil, o ordinário, como elementos
providos de valor poético.
Devido à escassez de material teórico sobre o ordinário e
sua importância para à Literatura, pesquisamos o tema em diversos
autores até que pudéssemos revelar o ordinário como substrato
poético em Manoel de Barros. Em alguns momentos, estendemos
nossa leitura à própria filosofia. Contudo, não adentramos na
questão marxista sobre a análise de valor, o que poderia até nos
levar a uma posição mais profunda. Preferimos nos render aos
encantos da poesia manoelina e sermos conduzidos aos diversos
aspectos dessa poética. Nesse sentido, fomos levados pelas mãos
da arte, livres, na captura de imagens que sugerissem o imprestável.
Pois como diz Manoel de Barros(1991:58): “Quando as aves falam
com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando”.
Assim, saímos para ver a natureza em suas quatro estações:
primavera, verão, outono, inverno. E fomos sendo conduzidos pelos
autores: Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Guimarães
Rosa, Francis Ponge e Leyla Perrone-Moisés, que, entre diferenças,
semelhanças, rastros de influências, subsidiaram uma melhor
compreensão da poética da ordinariedade de Manoel de Barros.
Não se pense que há, aqui, uma pretensão de esgotar tal
estudo, solucionar todas as dúvidas e controvérsias. No entanto,
aproveitamos os cotejos, as opiniões e alguns conceitos sobre o tema
em estudo.
Em verdade, conhecemos a poesia de Manoel de Barros, em
1987, através de um recorte do jornal de Brasília, Diário Brasiliense.
A partir de então, começamos a nos interessar em conhecer um
pouco mais a poética consagrada pela harmonia do ser humano com
a natureza, pela eleição das coisas ínfimas e ordinárias. Por essa época,
Manoel de Barros ainda não era tão conhecido no Brasil e, mesmo
no Nordeste, o pouco que nos chegava de seus poéticos fragmentos,
vinha através de limitadas cópias xerografadas. Não sabíamos,
7
àquela época, que Manoel de Barros já comungava com sapos, com
aves, com árvore, enaltecendo a igualdade e as semelhanças entre os
mesmos.
Esse nosso encontro com a poética de Manoel de Barros
também foi sendo demarcado, posteriormente, através de pequenos
achados em revistas como: Bravo, Cult, Remates de Males e de
alguns jornais como Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Povo,
Diário do Nordeste e O Estado de São Paulo. Além de leituras da
dissertação de mestrado de Patrícia Pavas, O senhor cujo olhar se
dirige para baixo ( 1997), relemos a obra completa desse autor ao
longo desses breves anos.
Diante disso, saímos em direção à “biografia do orvalho”.
Nesse momento de nossa pesquisa, conhecemos a vida de Manoel
de Barros em sua natural simplicidade. Curiosamente, Manoel de
Barros é um sujeito tão desacontecido que, quando nos aparece,
vem de costas: “Tem saudade de puxar por um barbante sujo umas
latas tristes” ( Barros, 1998: 47). E quando aparece de frente: “Não
serve mais pra pessoa, é uma ruína concupiscente” ( Barros,
1996: 79).
Do lugar onde estávamos fomos embora, carregando a lembrança
tímida dali. Guardamos nossas palavras, seguimos nossas idéias,
nossa viagem. Chegamos à segunda parte de nosso trabalho, quando
o verão desamanhecia na cidade grande - nas páginas do livro Face
imóvel (1942), reeditado em o livro Poesia quase toda em uma
edição de 1990. Revelamos, aqui, a face urbana de um Manoel de
Barros da primeira fase, em dois momentos: “na cidade coisificada”
e em “as ruínas urbanas”. O Manoel de Barros, dessa primeira fase,
aproxima-se, de certa forma, da escrita do mestre Manuel Bandeira,
segundo Orlando Antunes Batista em seu livro Lodo e ludo ( 1989).
Entre imagens e fragmentos, também mostramos, nesta segunda
parte, que o poeta revela um culto à simplicidade como aspecto
imanifesto da realidade suburbana. A preferência de Manoel de Barros
pelos objetos elementares não ocorre em detrimento de outro propósito,
além de corrigir o exagero da racionalidade na vida humana .
8
“No cais, entre navios altos e velas brancas” ( Barros, 1956:9),
partimos em direção ao outono, a terceira parte de nossa pesquisa,
que designamos “ na oficina de transfazer as coisas da natureza em
inútil poesia”. Nessa parte, situamos a “natureza das coisas” no livro
Arranjos para assobio (1982).
Em seguida, com a chegada do inverno, veio a chuva e
lavou as palavras, molhou os desvios, renovou a linguagem. Nessa
última parte, mostramos “a linguagem do inutensílio”, “a natureza
da linguagem inútil”, “os deslimites das palavras” e os “arranjos das
letras”. Comparamos a linguagem de Manoel de Barros com a de
João Cabral de Melo Neto para afrontarmos suas diferenças, como
também apontamos possíveis similitudes da escrita manoelina com
a do escritor Guimarães Rosa. Constatamos que Manoel de Barros, em
sua poética do “Inutensílio”, passa a ser, ele mesmo, parte integrante
dos bichos, das árvores, das pequenas coisas e, principalmente, da
poesia: “Se a gente encostava em ser ave ganhava o poder de alçar
“ ( Barros, 1998:77). Como diz Fausto Wolff nas orelhas do livro
Retrato do artista quando coisa ( 1998): “suas metáforas cumprem a
função das metáforas”.
Finalmente: “Como é difícil provar que em abril as manhãs
recebem com mais ternura os passarinhos” ( Barros,1991:45),
ao vermos “o musgo e os limos a tomar conta do batente”(
Barros,1998:73), cotejamos a escrita humilde de Manoel de Barros
à escritura complexa de Francis Ponge, em O partido das coisas,
que, em um estudo mais aprofundado, acabaria por revelar uma
vasta rede intertextual entre os dois escritores.
E fica-se, de resto, com as sobras, com as migalhas, mas ficase sobretudo com esse sabor de querer ficar um pouco mais entre
palavras, pois na ilusão das palavras o impossível ganha a suposição
do visível. E na suposição do visível, é melhor “viajar por palavras
do que de trem”...
9
MANOEL DE BARROS
O Poeta das Coisas Mínimas
10
A PRIMAVERA
PRIMEIRA ESTAÇÃO: A biografia do orvalho
Nascemos num tempo verde.
Carlos Emílio Corrêa Lima
11
2 - As árvores me começam
"O brejo era bruto de tudo. Notícias duravam meses. Mosquito
de servo era nuvem. Entrava pela boca do vivente. Se bagualeava
com lua. Gado comia na larga." ( Barros,1985:69). A céu aberto,
concerto de pássaros em solo de frase. A natureza amanhece no beco
da Marinha, à beira do rio Cuiabá. No calendário, 19 de dezembro
de 1916 - na cidade escondida de Corumbá - Mato Grosso do Sul,
no Pantanal, brota Manoel de Barros, o poeta da natureza, poeta
do chão, poeta do barro, poeta com cheiro de terra, terra que já
nasce molhada:
Quando nasci
o silêncio foi aumentado
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
( Barros, 1991:16)
Filho de um capataz de fazenda que se torna fazendeiro e
de uma violinista amadora, Manoel de Barros tem uma infância
repleta de natureza por todos os lados: “Teias o alcançam. Lagarta
recortam seu dólmã verdoso. Formigas fazem-lhes estradas.
12
(Barros,1985:42) No desfolhar dos anos, Manoel de Barros passa a
ter um contato maior com o chão de sua infância: “Vai desremelar
esse olho, menino! Vai cortar esse cabelão, menino! Eram os gritos
de Nhanhá”(Barros,1990:35). Seus primeiros brinquedos eram o
de todo “menino montado no cavalo do vento”: subir em árvores,
andar descalços pelo mato, tomar leite no curral, pegar passarinho,
brincar com osso de arara, pedaços de pote, banhar no rio, fingir
que “pedra era lagarto”, que “lata era navio”, que “sabugo de milho
era boi,” ser aprendiz de pescaria, tomar banho de chuva, enfim
ser criado pelos ventos; coisas que ficam guardadas no lastro da
infância, o gosto pela insignificância, o cenário da sensibilidade,
memória do coração:
Remexo com um pedacinho de arame nas minhas
memórias fósseis
tem por lá um menino a brincar no terreiro
entre conchas, osso de arara, sabugos,
asas de caçarola etc.
E tem um carrinho quebrado de borco
no meio do terreiro.
O menino cangava dois sapos e os botava a arrastar
o carrinho.
Faz de conta que ele carregava areia no seu caminhão.
O menino também puxava nos becos de sua aldeia, por
um
barbante sujo, umas latas tristes.
Era sempre um barbante sujo
eram sempre umas latas tristes.
( Barros, 1999: 14)
A sua paixão pelas coisas da natureza vem dessa época em
que esmiuçava as coisas do chão, histórias de vaqueiros andarilhos
perdidos mundo a dentro, conversas de assombração em galpão,
ficção de lugares fascinantes que a simples vida se encarrega de
13
guardar ou de lembrar: vida feita em carros de boi, abrindo o
caminho da boiada para uma outra porteira, a da imaginação:
8.
Nasci para administrar o à toa
o em vão
o inútil.
............................................
( Barros,1996:51)
Sem muita habilidade, Manoel de Barros é alfabetizado por
sua tia, Rosa Pompeu Campos, que incentiva, logo cedo, o pequeno
aprendiz a lidar com a língua do brejo. E, assim, aos seis anos, Manoel
de Barros aprendeu a ler - tinha facilidades para errar a língua. Fazia
arranjos com os garranchos, soletrava baixinho , assobiava.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra para minha mãe.
A mãe falou:
- Agora você vai ter que assumir
as suas responsabilidades.
Eu assumi,
entrei no mundo da imagem.
( Barros, 2000:47)
Amanhecido demais para ficar ali, Manoel de Barros parte
para o internato Pestalozi, em Campo Grande. Por lá, ficou, entre
1927 e 1928, sofrendo daquela dor que, quando acontece, levamos
para o resto da vida.
14
Que vontade de voltar para a fazenda!
Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?
( Barros, 1990: 94)
Quando termina o primário, a condição da família Barros já
havia melhorado um pouco. Sem luxo ou desperdício, por imposição
do pai, vai estudar no Rio de Janeiro. Na capital, cursa ginásio no
colégio La-Fayette, mas o aluno Manoel de Barros, aqui e ali, era
pego rascunhando dispersão na carteira. Não tinha disciplina para
a realidade.
XXV ( Lembrança)
Perto do rio tenho sete anos.
( Penso que o rio me aprimorava.)
Acho vestígios de uma voz de pássaros nas
águas.
Viajo de trem para o Internato.
Vou conversando passarinhos pela janela do
trem.
......................................................................
( Barros, 1991:27)
No colégio, o menino bisonho vivia no mundo das nuvens,
lembrando-se do amanhecer no céu do seu coração: o Pantanal.
No entanto, as notas de Manoel de Barros não estavam nada bem.
Entre 3,0 e 4,0 no A mãe ainda quis mandar-lhe, em letra de forma,
um bilhete atrevido: - Não volte! Há muito bicho-de-pé no terreiro
da fazenda. Mas como há mais beleza nas fraquezas do coração de
mãe, do que sonha nossa vã Literatura, o pai é quem apografa a
Nequinho, apelido caseiro de Manoel de Barros, algumas palavras,
quase úmidas: boletim escolar, no final do ano, é reprovado no
terceiro ano ginasial. Sem muito tino para a aprovação da vida,
rascunha a lápis, em caderno de folha pautada, um bilhete à mãe:
15
Aprendeu alguma coisa com os anos
Só não aprendeu a odiar
Mas estava lhe parecendo
Que era uma coisa necessária nunca odiar.
( Barros, 1990:67)
A mãe ainda quis mandar-lhe, em letra de forma, um bilhete
atrevido: - Não volte! Há muito bicho-de-pé no terreiro da fazenda.
Mas como há mais beleza nas fraquezas do coração de mãe, do que
sonha nossa vã Literatura, o pai é quem apografa a Nequinho, apelido
caseiro de Manoel de Barros, algumas palavras, quase úmidas:
.....................................................
- Venha, meu filho,
Vamos a ver os bois no campo e as canas amadurecendo ao sol,
Ver a força obscura da terra que os frutos alimenta,
Vamos ouví-la e vê-la:
A terra está úmida e os potros ariscos a riscar de seus
empinos e de suas soltas crinas,
Vamos,
Venha ver as cacimbas dormindo repletas!
Venha ver que beleza!
- No bojo quieto das águas robafos engolem lodo!
( Barros, 1990: 106)
Depois desse ano, a vida de Manoel de Barros, entre
reviravoltas, dá uma queda para cima: resolve mudar para o colégio
São José na Tijuca, dos irmãos Maristas.
Era um sujeito desverbado,
que nem uma oração desverbada.
( Barros, 2000:33)
16
Na rotina da cidade grande, as longas cartas que Manoel de
Barros troca com sua mãe, Alice Pompeu Leite de Barros, sustentam
durante quase cinqüenta anos suas lembranças.
7.
Êta mundão
moça bonita
cavalo bão
este quarto de pensão
a dona da pensão
e a filha da dona da pensão
sem contar a paisagem da janela que é de se entrar de
soneto
e o problema sexual que, me disseram, sem roupa
alinhada não se resolve.
( Barros, 1990:39)
Do internato, de frente para a vida, um longo corredor de
mandamentos. A disciplina então?
Carta acróstica:
“Vovó aqui é tristão
ou fujo do colégio
Viro poeta
Ou mando os padres...”
Nota: se resolver pela segunda, mande dinheiro
para comprar um dicionário de rimas e um tratado
de versificação de Olavo Bilac e Guima, o do lenço.
( Barros, 1990:39)
Com o passar do vento, Manoel de Barros encontra o padre
Ezequiel, que, por sua vez, ensina ao poeta aprendiz um pouco de
grego, latim, português de Portugal, francês, exercícios de “transver”
o mundo:
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Na Igreja os padres reuniam os alunos e
tentavam falar a sério.
Mas eu sempre achei muita graça quando as
pessoas estão falando sério.
Acho que isso é um defeito alimentar.
( Barros, 1991:28)
Padre Ezequiel, um sacerdote meio jogado de lado à vida,
um padre subalterno, um poeta frustrado que preferia ler e escrever
a proferir as palavras de Deus.
5.
No recreio havia um menino que não brincava
com outros meninos
O padre teve um brilho de descobrimento nos olhos
- POETA!
O padre foi até ele:
- Pequeno, por que não brinca com os seus colegas?
- É que estou com uma baita dor de barriga desse feijão
bichado.
( Barros, 1990: 38)
Nos desfolhar das palavras, Manoel de Barros torna-se amigo
de padre Ezequiel que, um dia, presenteia-o com Os sermões do
padre Antônio Vieira.
Pode-se dizer que, inicialmente, a Literatura portuguesa
desperta, em Manoel de Barros, a vocação de armar as palavras, e
de sê-lhes fiel. O poeta de palavras desajeitadas descobre em padre
Ezequiel seu primeiro professor de “agramática”. Padre Ezequiel
ensina-o a entortar algumas construções sintáticas; a gostar das
exceções que alimentam a verdadeira alma de um idioma; a se
sentir acolhido pela língua como quem se sente protegido pelo
ventre materno; a degustar cada palavra, saboreando a sonoridade
que estas, misteriosamente, possuem; a ler diariamente o dicionário
18
como quem lê um romance, ou um livro de Olavo Bilac, e se alimenta
de estrelas, bebendo a seiva, o vinho do Graal, até alimentar o pão
nosso de cada dia: a poesia que nos dá hoje.
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
-Gostar de fazer defeitos na frase é muito
saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da
vida um certo gosto por nadas ...
E se riu
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os araticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi meu primeiro professor de
agramática.
( Barros, 1993: 87)
19
2.1 - Retrato de um poeta quando Coisa
Chove torrencialmente na cidade do Rio de Janeiro, enquanto
Manoel de Barros olha pela vidraça do internato pingos de chuvas
que mais parecem vidros a deslizar do céu. Fica horas, quieto,
ouvindo o barulho da música caindo - sinfonias de Beethoven.
Lentamente, sai andando pelos corredores e, quando chega à porta
que dava para uma rua de múltiplos becos, sai correndo, pulando,
feito aquela criança que um dia tinha nascido para abraçar a chuva.
O menino que sempre o visitara nas tardes de domingo, agora já é
um homem – homem de palavras avessas. Por essa página da vida,
Manoel de Barros já havia lido os clássicos Bernadim Ribeiro, Sá de
Miranda, Camões, Frei Luís de Sousa, Manoel Bernades, Molière,
Voltaire, Montaigne, Pascal, Montesquieu, Rousseau, Goethe,
Hölderlin, Musset, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Olavo Bilac. As
obras de Schopenhauer, ainda hoje, são constantes companheiras em
sua filosofia de vida.
.........................................
Passei anos me procurando por lugares nenhuns.
Até que me achei - e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um bulbo.
( Barros,1991:17)
20
O poeta pantaneiro tinha pouca paciência para conversas
citadinas espertas, apenas uma manhãzinha lhe servia alta noite.
Nas grandes metrópoles, as pessoas não se visitam sem razão.
Manoel de Barros se distraía fotografando o silêncio, as palavras.
Retrato de um artista quando coisa: borboletas
Já trocaram árvore por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca
em meu olho
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca para crescer
por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol.
( Barros, 1998: 11)
Às vezes que a manhã florescia à sombra de um bondinho, o
poeta deixava o canto das aves ir amanhecê-lo. Em 1934, faz vestibular
para Direito. Entra para a Esquerda ( apenas para contestar).
9.
Entrar na Academia já entrei
mas ninguém me explica por que essa torneira
aberta
nesse silêncio de noite
parece poesia jorrando ...
Sou bugre mesmo
me explica mesmo
21
me ensina modos de gente
me ensina a acompanhar um enterro de cabeça baixa
me explica por que que um olhar de piedade
cravado na condição humana
não brilha mais do que anúncio luminoso?
Qual, sou bugre mesmo
só sei pensar na hora ruim
na hora do azar que espanta até a ave da saudade
Sou bugre mesmo
me explica mesmo:
Se eu não sei parar o sangue, quê que adianta
não ser embecil ou borboleta?
Me explica por que penso naqueles moleques
como nos peixes
que deixava escapar do anzol
com o queixo arrebentado?
Qual, antes melhor fechar essa torneira, bugre velho...
( Barros, 1990:40 )
De 1935 a 1945, Manoel de Barros deixa o cabelo e o bigode
crescer, faz política universitária, picha nas paredes do mundo
aquelas frases surradas: “Viva o Partido Comunista”, “Viva Prestes”!
Totalmente absorvido pelas teorias marxistas, contesta o s
..............................................................
Não é sectarismo, titio.
Também se é comido pelas traças, como os vestidos.
A fome não é invenção de comunista, titio.
................................................................
( Barros, 1990: 54)
Manoel de Barros chega a relatar no livro de Maria da
Glória Sá-Rosa que, certa ocasião, três amigos haviam saído para
executar uns trabalhos do Partido Comunista, enquanto outros
22
três ficaram dormindo. Às três da manhã, a dona da pensão, que
também pertencia ao Partido, acordou os pensionistas, pedindo que
se escondessem, pois a polícia acabara de chegar. Como surpresa,
os militares acabam encontrando um revólver debaixo da cama de
um dos jovens pensionistas. A dona da pensão, procurando aliviar,
colocou-se à frente, em defesa dos jovens: - Veja, esse menino é
inclusive aluno do Padre, faz até ode. O menino era Manoel de
Barros e o livro tinha um título comprido, grande e bonito: NOSSA
SENHORA DA MINHA ESCURIDÃO. Manoel de Barros, tempos
depois, esclarece que a única coisa que prestava naquele livro que
fora levado pelos policiais era o título.
É certo que o regime comunista não lhes trouxera a felicidade
sonhada – prometida. Aliás, o homem não pode ser igualado, não
existe medida única, em que possam caber tantas cabeças distintas.
Manoel de Barros afina a ponta do lápis, faz nascimento com a
palavra:
........................
a esse tempo lê Marx
tem mil anos
tudo que vem da terra para ele sabe a lesma
é descoberto dentro de um beco
abraçado no esterco
que vão dinamitar
antes de preso fora atacado por uma depressão muito peculiar que o fizera invadir-se pela indigência:
...............................................................................
( Barros, 1990:157)
Impresso em uma gráfica, quase artesã, em 1937, sai
quentinho do forno vinte exemplares contados do livro Poemas
concebidos sem pecado. E como não se vende poesia a amigos,
Manoel de Barros presenteia a cada um dos companheiros, com
dedicatória em letrinhas de formiga, seu primeiro livro de poesia.
23
10.
..............................
Ao longo das calçadas algumas famílias
ainda conversam
velhas passam fumo nos dentes mexericando ...
Nhanhá está aborrecida com o neto que foi estudar
no Rio
e voltou de ateu
- Se é pra disaprender, não precisa mais estudar
Pasta um cavalo solto no fim escuro da rua
O rio calmo lá em baixo pisca luzes de lanchas
acordadas
Nhanhá choraminga:
- Tá perdido, diz que negro é igual com branco!
( Barros, 1990:41)
Em 1939, depois de formado, não quer saber de advogar, pois
tem uma aversão de falar em público; Manoel de Barros já sabia que
seu ofício era o de trabalhar em silêncio as palavras. Na primeira
audiência, em que é julgada uma causa trabalhista, fica tão nervoso,
que chega a vomitar na mesa do juiz. Entra em crise. E, para piorar
a situação em que se encontra, quando o líder político Luís Carlos
Prestes é posto em liberdade, depois de dez anos de prisão, Manoel
de Barros esperava que Prestes tomasse alguma atitude contra o
que os jornais comunistas chamavam de o “Governo Assassino
de Getúlio Vargas”. Apesar de ser emocionante ouvir Luís Carlos
Prestes , no largo do Machado, no Rio de Janeiro, nunca mais se
esqueceu de ter visto o discurso de Prestes, apoiando Getúlio - o
mesmo que havia entregue sua esposa, Olga Benário, aos nazistas. O
poeta não agüenta aquela cena, senta na calçada e começa a chorar.
Sai andando, desconsolado; dá adeus definitivamente ao Partido e
vai arejar as idéias no Pantanal.
Contudo, a idéia de ficar por lá ainda não havia se maturado
em sua cabeça desligada das utilidades da vida. Nesse enquanto, seu
24
pai ainda se dispõe encontrar alguma atividade em um cartório,
mas Manoel de Barros sem paciência às leis não aceita. Sem rumo,
vai vaguear um tempo fora do país. Resolve viajar. Durante essa fase,
percorre mundos: conhece os bugres bolivianos. De lá, segue direto
para Nova Iorque. Por esse tempo, dedica-se ao estudo de pintura.
Descobre Rômulo Quiroga, Picasso, Braque, Miró, Van Gogh,
Chagall; percebe que os delírios são reais em Rodin:
4
Me achei como aqueles des-heróis de Callais
que Rodim esculpiu: nus de seus orgulhos e
de suas esperanças. Só de camisolões e de
cordas no pescoço. Pesados de silêncio e da
tarefa de morrer.
(Morrer é uma coisa indestrutível.)
(Barros, 1998:65)
Vê-se que a poesia manoelina já se volta ao mundo das
imagens. Por essa época, Manoel de Barros conhece os trabalhos
cinematográficos de C. Chaplin, Frederico Feline, Akira Kurosawa,
Luís Bünel, Jim Jarmusch. Em cada paragem, faz de um tudo: dorme
na beira dos mundos literários; redescobre T.S. Eliot, Ezra Pound,
Stephen Spender, Walt Whitman, William Carlos William, Virgínia
Woolf, Lesama Lima, Allen Ginsberg e Emily Dickinson.
XIV
De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o
mato e a fome tomavam conta das casas,
dos seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados.
Ali me anonimei de árvore
Me arrastei por beiradas de muros cariados desde
Puerto Suares Chiquitos, Oruros e Santa Cruz
de La Sierra, na Bolívia.
Depois em Barranco, Tango Maria ( onde conheci
25
o poeta César Vallejo), e Mocomonco
- no Peru.
Achava que a partir de ser inseto o homem poderia
entender melhor a metafísica.
Eu precisava ficar pregado nas coisas vegetalmente
e achar que não procurava.
Naqueles relentos de pedra e lagarto, gostava de
conversar com idiotas de estrada e maluquinhos
de mosca.
Caminhei sobre grotas de laje de urubus.
Vi outonos mantidos por cigarras.
Vi lama fascinando borboletas.
E aquelas permanências nos relentos faziam-me
alcançar os deslimites do Ser.
Meu verbo adquiriu espessura de gosma.
Fui adotado em lodo.
Já se viam vestígios de mim no lagartos.
Todas as minhas palavras já estavam consagradas de
Pedras.
Dobravam-se lírios para os meus tropos.
Penso que essa viagem me socorreu a pássaros.
..............................................................................
(Barros, 1993:101)
Quando retorna ao Brasil, Manoel de Barros publica pela
editora “Século XX” o livro Face imóvel ( 1942), com capa elaborada
pelo pintor Enrico Biancho.
Em 1947, o poeta pantaneiro conhece Stella. O amor, uma
intuição à primeira vista , aconteceu logo; o casamento, em três
meses.
Stella, uma mineira polida nos gestos, muito simples com as lidas
da vida. A família da moça, sem muita empatia, faz vista grossa ao
jovem poeta, uma figura excêntrica, quase selvagem, com um certo
26
ar de hippie, óculos fundo de garrafa, cabelos longos e, que, uma vez
ou outra, chegava, ousadamente, usando um capotão preto; além
disso, o Pantanal era tido como um lugar exótico, bastante selvagem,
onde se tinha notícia de cobras, jacarés, onças pintadas, bichos
perigosos. Aos olhos da família de Stella, a última impressão não fica:
vai embora. E, para evitar qualquer tipo de constrangimento futuro,
pediram a um tio de Stella que procurasse o moço pretendente e
observasse suas intenções. Depois da longa conversa, o tio de Stella
ficara um pouco assustado com a declaração em poesia prosa,
daquele desajeitado versejador:
......................................................
Oh, Senhor, Vós bem sabeis como amarga a vida de um
homem o carinho das prostitutas!
Vós sabeis como tudo amarga naquelas vestes amassadas.
por tantas mãos truculentas ou tímidas ou cabeludas Vós bem sabeis tudo isso, e portanto permiti que eu
continue sonhando com a minha casinha azul.
Permiti que eu sonhe com a minha amada também
porque:
- de que me vale ter casa sem ter mulher amada dentro?
Permiti que eu sonhe com uma que ame andar sobre os montes
[descalças
e quando me vier beijar o faça como se vê nos cinemas...
O ideal seria uma que amasse fazer comparações de
nuvens com vestidos e peixes com avião; que gostasse
de passarinho pequeno, gostasse de escorregar no
[corrimão da escada;
e na sombra das tardes viesse pousar como a brisa nas
varandas abertas.
O ideal seria uma menina boba, que gostasse de ver folha
cair [de tarde...
que só pensasse coisas leves que nem existem na terra
e ficasse assustada quando ao cair da noite
27
um homem lhe dissesse palavras misteriosas...
O ideal seria uma criança sem dono, que aparecesse como
nuvem, que não tivesse destino nem nome - senão que um
sorriso triste, e que nesse sorriso estivessem encerrados
toda timidez e todo espanto das crianças que não têm
rumo
................................................................................
(Barros, 1956:44-45)
Depois de um “dedo de prosa” com o poeta, o tio desabafa
baixinho:
- deixem o rapaz de mão, tem futuro e boa literatura. A
família da moça sem muito tino, para tratar questão dessa natureza,
acabou entregando a filha às poesias do jovem escritor. Uma vez
Manoel de Barros reconhece, em entrevista concedida a Alberto
Pucheu ( 1994: 193-195):
Stella foi sempre o amor e o amparo. Eu andava
desgualepado, quando a conheci. Um amigo íntimo nosso
falou pra ela, o Manoel não presta pra nada, só pra fazer
poesia. Só você pode evitar que ele vá pra sarjeta. O amor
dela evitou.
Nesse sentido, Manoel de Barros, um vagabundo para
coisas burocráticas, sem muito dom à arte de ganhar dinheiro;
para sobreviver, na exigente cidade fluminense, abre, em habilidades
precárias, sociedade com mais duas pessoas. Mesmo assim, uma vez
ou outra, seu pai o ajudava. Apesar de as dificuldades serem muitas,
lia e escrevia todo dia.
XVlll.
Uma palavra está nascendo
28
Na boca de uma criança:
Mais atrasada do que um murmúrio.
Não tem história nem letras Está entre o coaxo e o arrulo.
( Barros,1991:21)
No outono de 1949, nascia o primeiro filho de Manoel de
Barros, Pedro; mais tarde, na primavera, veio Martha; João, o último
dos filhos, nasceu no verão. Por essa época, com as conseqüências da
guerra, o desemprego crescia.
.................................................
Senhor, nem é tanto deste emprego que eu preciso tanto
O que eu preciso e quanto! nesta mísera tarde
É daquela mulher com as coxas entreabertas na minha
frente.
E isso não tem mandamento e nem ofende a disciplina
militar.
( Barros, 1990: 71)
Depois que um dos sócios do poeta morre tragicamente
assassinado, na cidade “maravilhosa”, Manoel de Barros fica
desconsolado, entra em crise. Nesse intervalo, o pai enfarta. Morre,
deixando como herança uma fazenda de gado.
.........................................................................
Abro os olhos.
Não vejo mais meu pai.
Não ouço mais a voz de meu pai.
Estou só.
Estou simples:
(Barros, 1956: 55)
29
No ano de 1960, a conselho de Stella , Manoel de Barros
retorna, definitivamente, para o mundo do pântano:
Volto de sarjeta para casa.
( Barros, 1982:58)
Entre coisas ordinárias, inúteis, retiradas da natureza, a vida
se reconstrói no artefato literário da palavra. Palavra que fora do
contexto habitual desvia-se do lugar comum, vira descaminho nas
imagens da poesia de Manoel de Barros.
Por esse descaminho, o poeta do Pantanal labuta sua poética
da ordinariedade com quinze livros publicados: Compêndio para
uso do pássaro (1960), Gramática expositiva do chão (1966), Matéria
de poesia (1970), Arranjos para assobio (1982), Livro de Pré-coisas
(1985), O Guardador de água (1989), Poesia quase toda (1990),
Concerto a céu aberto para solo de ave (1991), Livro das ignorãças
(1993), Livro sobre nada (1996), Exercício de ser Criança (1998),
Para encontrar o azul eu uso pássaros (1999), Retrato do artista
quando coisa (1999), Ensaios fotográficos (2000).
30
O VERÃO
SEGUNDA ESTAÇÃO: mundo pequeno
Há uma cidade em ti que não sabemos.
Carlos Drummond de Andrade
31
3 - Na cidade coisificada
E nenhuma cidade disputará a glória de haver me dado luz.
Manoel de Barros
Sabemos que a vida de um poeta não justifica o tipo de arte
que produz; podemos, contudo, dizer que em Manoel de Barros
a temática das coisas simples da natureza se confirma a partir da
sua descrença nas coisas grandes da vida urbana. Podemos, desde
já, afirmar que, no conjunto, a poesia manoelina estabelece uma
conexão temática natureza/cidade, aparentemente, tendenciosa para
a natureza. Mas, para falar exclusivamente sobre objetos inúteis
retirados da natureza, a partir de uma linguagem que transita sobre
as coisas mais simples e fugidias do mundo natural, foi preciso que o
poeta atravessasse, inicialmente, o fascínio exercido pela cidade, que
recobre uma pequena carga expressiva do livro Face imóvel ( 1942).
Para entender o ponto de partida desta análise, chamamos a
atenção para a temática urbana, embora tenha um papel secundário
na poesia de Manoel de Barros, a ponto de essa se apresentar,
estatisticamente, com um percentual aproximado de 5% nos livros
iniciais: Face imóvel ( 1942), Poesia ( 1956) e Matéria de poesia (
1970).
32
Na dissertação, O Senhor cujo olhar se dirige para baixo,
Patrícia Pavas ( 1997:49) destaca: “A cidade aparece em escala bem
menor e quase sempre em estado de decadência”. O que, a nosso
ver, não deixa de ter sua relevância, para entendermos sua descrença
urbana. Em entrevista concedida a José Castelo, em 3 ago.1996,
no jornal O Estado de São Paulo, o poeta mostra suas errâncias na
urbe :
Alguns anos de minha vida ambulei por lugares decadentes.
Havia um certo fascínio por cidades, mortos, casas
abandonadas, vestígios de civilização. Um fascínio por ruínas
habitadas, por sapos e borboletas. Eu gostava de ver alguma
germinação da inércia sobre ervinhas doentes, paredes,
coisas desprezadas. As fontes de minha poesia, estou certo,
vem de errâncias desurbanas.
Quando o poeta sai do Pantanal, para enfrentar os grandes
centros urbanos, à procura de vasculhar a metáfora da cultura
e do conhecimento, mal sabia que a vida citadina mancava das
pernas, revelando os fenômenos urbanos. Em o livro Face imóvel
reeditado em Poesia quase toda (1990), por entre arranha-céus e
ruas da cidade, o poeta dribla a paisagem, transforma a experiência
individual em generalidade.
Noções de Rua
A rua inventa poetas que já nascem tristes.
As ruas descobrem esses cachorros gentis puxando suas
donas para debaixo dos postes.
De um modo geral os cachorros são bonitinhos e as
donas não correspondem
O que é uma pena.
Há ruas qu
Sabe-se que o poeta Manoel de Barros, apesar de ter
33
vivido durante muitos anos na cidade do Rio de Janeiro e de ter
experimentado a vida de outros países, tem seus limites no chão do
Pantanal. Não que Manoel de Barros seja alheio à vida das grandes
metrópoles, até porque a cidade na obra manoelina tem um papel
importante. Na realidade, o poeta descobre a cidade como metáfora
de um pequeno mapa do tempo, cujos acontecimentos banais e
corriqueiros assumem dimensão estética. O poeta do pântano
recombina os signos para atingir novos significados, faz da imagem
um desenho de poesia e da linguagem, um campo de pesquisa.
Sabe-se que, em 1937, Manoel de Barros envereda,
inicialmente, pelo submundo do pântano com seu livro Poemas
concebidos sem pecado. Por esse aspecto, quando Manoel de Barros
se reporta ao pântano, enfoca-o não pelo prisma memorialista,
mas da percepção: “o rio calmo lá em baixo pisca luzes de lanchas
acordadas. (Barros, 1990:41). Em Manoel de Barros, há uma
presentificação, sim, das percepções no verso: “Ele esfregava no rosto
as suas barriguinhas frias/ Geléia de sapos!” ( Barros, 1990:45).
No livro Poemas concebidos sem pecado ( 1937), o que se
observa é que o poeta já determina toda sua perspectiva com o tipo
de linguagem que irá usar e abusar posteriormente. Inicialmente, o
poeta brinca de infância, prepara-se através de suas memórias, toca
os ínfimos da natureza do pântano. Nota-se que os poemas iniciais
seguem timidamente pelo uso da linguagem coloquial em um ritmo
de poesia prosa . Manoel de Barros faz rodeios com as metáforas,
arruma a linguagem com o sotaque do pântano, para celebrar o
menino de sua infância. Começa, ali, a serena construção de imagens
apoiadas em sinestesias, imagem como “voz de arauto”. E, como diz
o poeta mais à frente das palavras que de seu tempo, ao Jornal O
Estado de São Paulo, em 15 maio 1995:
Quase sempre o primeiro livro é embrião dos outros. Eu
estava ainda escondido na infância e a palavra me achou
lá. A palavra até hoje me encontra na infância. Do primeiro
livro para cá devo ter evoluído no descaramento com que uso
as palavras. Cada vez fico mais descarado. (.. .) Então, o que
34
mudou em mim do primeiro para os livros foi que fiquei mais
íntimo das frases.
Ao engatinhar os primeiros passos de sua escrita, suas memórias,
Manoel de Barros diz muito do que veio a nos dizer ou desdizer, em
versos que se desvendam, atrás de uma linguagem rica em dimensão
coloquial.
......................................................
Havia no casarão umas velhas consolando Nhanhá
que chorava feito uma desmanchada
- Ele há de voltar ajuizado
- Home-de-bem, se Deus quiser.
Às quatro o auto baldeou o menino pro cais
Moleques do barranco assobiavam com todas as
cordas da lira
- Té a volta pessol, vou pra macumba.
( Barros, 1990:38)
Se, no primeiro livro, o poeta aventura-se na “errância” de
suas memórias, observamos que o sentimento de insatisfação do
poeta quanto às questões urbanas será visivelmente transparente
nos livros Face imóvel ( 1942) e Poesias( 1956), nesses livros, a
cidade, em Manoel de Barros tem a presença do que é negado.
Berta Waldman (1990: 13), no prefácio do livro Gramática
expositiva do chão ( poesia quase toda ), comenta:
Entende-se que a cidade tem um papel importante na poesia
de Manoel de Barros. Se na raiz da vocação poética há sempre
este sentimento de insatisfação contra a vida, que faz com que
o escritor a suprima para vertê-la em outra, feita de palavras,
a cidade nesta poesia, tem a presença do que é negado. Nesse
sentido é sobre a anulação que se reveste a matéria poética em
natureza.
35
Nota-se que o sentimento de insatisfação contra a vida,
que se arma na linguagem que constrói, une a poesia de Manoel de
Barros à poesia de Carlos Drummond de Andrade, ao falar de si e de
como entende a vida e o mundo que o cerca; assim, como o fato de
fazer de sua poesia um instrumento que coincide com a presença do
que é negado pela sociedade. Com isto, o gosto pelos “inutensílios”,
pelas coisas simples se desenha na poesia manoelina e assume a
dimensão estética que se manifesta na consciência do eu poético ao
contato curioso da palavra. Por esse aspecto, o vocabulário usado
por Manoel de Barros funde-se também à temática urbana, guarda
sua extensão coloquial, ultrapassa seus limites e abre uma nova
linguagem no sentido de compreender a vida, o homem, a cidade,
a natureza. Nesse sentido, a geografia das palavras em Manoel de
Barros exprime a integração com o mundo. Não obstante, o
mundo concebido é o das palavras. Observa-se também que em
Manoel de Barros o território das palavras funciona como uma
espécie de decifração das leis da natureza; enquanto, a poesia em
Carlos Drummond é concebida como saída para o “sentimento do
mundo. No meio dessa confluência, ambos os poetas contemplam
as palavras, nomeiam os seres, atingindo-lhes um significado muito
mais profundo. Pois como diz Drummond: “A rua é enorme. ( ... )/
Mas também a rua não cabe todos os homens/ A rua é menor que
o mundo./ o mundo é grande” ( 1988:56) . E como diz Manoel de
Barros:
UNS HOMENS ESTÃO SILENCIOSOS
Eu os vejo na rua quase que diariamente
São uns homens devagar, são uns homens quase que
Misteriosos.
Eles estão esperando.
Às vezes procuram um lugar bem escondido para esperar.
Estão esperando um grande acontecimento.
E estão silenciosos diante do mundo, silenciosos
36
Ah, mas como eles entendem a verdade
De seus infinitos segundos.
( Barros, 1990: 64-65)
Quando se observa a história da literatura, vê-se que Charles
Baudelaire foi o primeiro poeta da modernidade a aceitar a miséria e
a condição de solidão do cenário urbano:
A cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde
O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante!
Flui o mistério a cada esquina, cada fronde
Cada estreito canal do colosso possante.
(Baudelaire,1996 :311)
Em sua poesia, Baudelaire celebra suas alegorias de forma
simbólica e denuncia, da mesma forma que celebra, a cidade, onde a
velocidade modifica a relação do homem perante as coisas da vida,
onde a pressa dos grandes centros urbanos corrompe a possibilidade
de aprofundamento nos relacionamentos humanos, que a cada dia
se tornam efêmeros em encontros voltados para a oportunidade da
vida.
Segundo Guy Debord ( 1997: 116):
A história universal nasceu nas cidades e atingiu a maioridade no
momento da vitória decisiva da cidade sobre o campo. Mas considera
como um dos maiores méritos revolucionários da burguesia o fato
de ela ter sujeitado o campo à cidade, cujo ‘ar emancipa’. Mas se a
história da cidade é a história da liberdade, ela também foi o da tirania,
da administração estatal. Até agora, a cidade só pode ser o terreno de
batalha em que nossa liberdade se realizou. A cidade é o espaço da
história porque é ao mesmo tempo concentração do poder social.
Portanto atual tendência de liquidificação da cidade é outra forma de
expressar o atraso de uma subordinação da economia à consciência
histórica, de uma unificação em que a sociedade recupera os poderes
que se destacaram dela.
37
Sabemos que, no advento do modernismo de 22, a cidade é
cantada com suas diversas faces. Em verdade, a literatura modernista já nasce
declamando a cidade e os efeitos do progresso. Manuel Bandeira, Mário
de Andrade, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade fazem
versos urbanidade.
Sabemos, é certo, que Manuel Bandeira, inteiramente à volta as
imagens da vida urbana, acentua seu ritmo dissoluto à ressonância do verso
livre:
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
( Bandeira, 1997: 81)
Vê-se que Manuel Bandeira muda o ritmo do poema, para
alcançar a voz da urbanidade. Em verdade, o lirismo de Bandeira já nasce
de uma espontânea realidade, cujo espetáculo mundano se dá através de
seus enfoques mais simples. Seus versos livres derivam de espaços, onde se
avizinham objetos, colocados na mesma perspectiva. Mas isto é possível a
partir do processo de síntese que reduz o poema a uma estrutura que
ganha uma feição, um ritmo, um som, um sentido próprio. Por esse aspecto,
38
o poder de síntese de Manuel Bandeira influenciará a lírica de Manoel de
Barros da primeira fase.
Em Lodo e ludo, Orlando Antunes Batista (1989:19) enfatiza que a
obra de Manoel de Barros segue uma ordenação que o torna extremamente
singular dentre os grandes poetas do século XX:
A afinidade maior, todavia, é visível com relação a Manuel Bandeira,
dado o rigor com que persegue a montagem de sua produção artística.
À guisa de exemplo, revelamos que entre “Poemas concebidos sem
pecado e Livro de pré-coisas há uma espécie de reatamento entre
as pontas da existência lírica. Toda a produção parece escoar-se no
último livro, surgindo qual um remanso, uma baía pantaneira, onde
se espelha o ante-verso da natureza, livre de preconceitos políticos.
O lirismo da primeira fase de Manoel de Barros está
impregnado do ordenamento de Manuel Bandeira que, ligado ao
plano modernista no processo apurado de síntese das palavras,
recria o verso, muitas vezes, extraído em notícias de jornal. Manuel
Bandeira, em seu universo lírico, coleta seu material poético a
partir das cenas simples da vida urbana: “ Que importa a paisagem,
a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que vejo é o beco”
(Bandeira,1974:134).
O que se observa no lirismo da primeira fase de Manoel
de Barros é um dilema entre o urbano e o rural. Orlando Antunes
Batista ( op. cit.: 82) destaca: “Lendo a obra Poesias publicada em
1956, percebemos que o dilema entre o rural e o urbano se evidencia
claramente. As contradições entre o Pantanal e o Rio de Janeiro se
assenhoram do seu espírito”.
Manoel de Barros dialoga com as diversas faces de uma cidade,
onde o indivíduo cria sua ordem pessoal a partir da socialização, dos
espaços de interação e interesses comuns, a partir da própria solidão.
Sob esse ângulo, é na cidade que se perde a capacidade de olhar
verdadeiramente para as pessoas, pois as coisas se tornaram mais
importantes. É na cidade que os homens céticos de valores humanos
perambulam coisificados, sem horizontes, pois até mesmo o olhar
39
resultou inútil, perdido, meio à fugacidade das coisas; olhar, muitas
vezes, distante, identificado com a frieza realista da vida. Como diz
João Cabral de Melo Neto (1994:813): “Eu caminhava as ruas de
uma grande cidade/ Os acontecimentos nunca me encontravam./
Em vão dobrava as esquinas lia os jornais/ Todos os lugares do crime
estavam tomados”.
Essa perda da dimensão do olhar, eqüivale à perda da
própria condição de sujeito que Manoel de Barros, com sua poesia
codificada de coisas inúteis, sugere até os dias atuais. Vejamos o
poema “Rua dos arcos”:
A rua era assobradada
Decadente de ambos os lados
Toda espécie de gente ali
Circulava e bebia uniforme.
Uniforme era a feiúra das casas O ar triste que elas tinham;
Mas também o ar de traição
Atrás das cortinas vermelhas.
As portas intimidam mulheres
Portuguesas de músculos brancos
E até o coração das crianças se partia
Sob o peso da coroa caída da irmã.
A viola sustava a cabeça de um cego Angulosa cabeça onde os fados morriam.
E entre flores amarelas
Graves gatos o escutavam.
Foi aí que de tarde eu a vi
Eu a vi passar de verde
40
Varando o ar sério de um guarda
Sem veneno em seus dedos
- A mulata da lapa verde!
( Barros, 1990: 60-61
As imagens são criadas a partir da visão do autor que inverte
a ordem das coisas, para encontrar um sentido transfigurador à
poesia: “A viola sustava a cabeça onde os fados morriam”. As imagens
estão no movimento das ruas. O real e o irreal se interpenetram,
tornam-se indefiníveis à inteligência, mas bastante perceptíveis aos
sentidos: “Entre flores amarelas/ graves gatos o escutam”.
A construção da imagem, no poema , atravessa o cenário da
cidade mapeada e nos sugere a solidão urbana sob o ar triste da
traição das moradas, em caminhos enviesados: “As portas intimidam
mulheres”. No olhar enviesado de Manoel de Barros sobre a cidade,
há uma realidade de que não consegue fugir: “A rua era assobradada/
Decadente de ambos os lados”. Há, no verso, a palavra “assobradada”
que nos sugere a imagem de uma rua repleta de prédios, de gente
dispersa, sem perspectiva alguma para o presente e sem projeto
definido para o futuro.
O poeta recupera os fragmentos das imagens urbanas à mercê
das pressões comerciais, e que, diríamos hoje, mantém um diálogo
não somente com a cidade, mas com a sociedade, com a cultura:
“Uniforme era a feiúra das casas - o ar triste que elas tinham; / Mas
também o ar de traição / Atrás de cortinas vermelhas”.
Manoel de Barros apresenta, em síntese, uma cidade sob
ruínas, que diariamente se recria para uma vida propensa para o lado
transitório, onde: “Até o coração das crianças se partia sob o peso da
coroa caída da irmã”. Manoel de Barros faz experimentação no nível
da linguagem, desenha suas palavras carregadas de sonoridade:
“Graves gatos a escutavam”.
Os versos assimétricos seguem o ritmo de sua própria
cadência, aproveitam-se de elementos repetitivos (Foi aí que de tarde
41
eu a vi/ eu a vi passar de verde), sem trair sua função unificadora.
Experimentador da palavra, mas sem procurar convencer
ninguém de seus conteúdos equivocados, Manoel de Barros reúne, à
sua pesquisa estética, questionamentos da realidade que o circunda:
“Decadente da ambos os lados “.
Vejamos, logo abaixo, que no poema, NA ENSEADA DE
BOTAFOGO do livro Poesias ( 1956), a concepção de cidade não se
modifica, pelo contrário, apresenta-se como metáfora de abandono
e de solitude.
Como estou só! afago casas tortas
falo com o mar na rua suja ...
nu e liberto levo o vento
no ombro de losangos amarelos.
Ser menino aos 30 anos, que desgraça,
nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!
Por quê deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?
( Barros, 1956: 38)
O que se observa, em Manoel de Barros, é que as imagens
estão organizadas no poema por um fio seqüenciador que perfaz a
linha do poema tradicional à maneira de Carlos Drummond de
Andrade e Manuel Bandeira. Por essa linha, as imagens vão sendo
desmembradas sob um só foco: o do eu poético, que por sua vez
sugere um sentimento de insatisfação ao ambiente da urbe, em três
respectivos versos: “Ser menino aos trinta anos, que desgraça/ nesta
borda do Mar de Botafogo”, “Que vontade de voltar à fazenda!”,
“que vontade de chorar pelos mendigos!”. Em verdade, o poeta
demonstra-se insatisfeito com a violenta complexidade urbana e
42
nos sugere, em sua indagação existencial, seu amparo diante das
coisas mais simples: “ Por quê deixar um menino que é do mato/
amar o mar com tanta violência?”
Esse diálogo com a natureza, no poema, não está apenas
como imagem, mas também como símbolo e valor. Símbolo porque
o mar, à sombra da contemplação mítica da natureza, representa o
próprio nome do mistério. E valor, pela dimensão da grandeza,
em meio à insatisfação do poeta frente ao abandono da vida natural.
Nesse diálogo marítimo, o poeta mantém correspondência com
as coisas sutilmente delicadas, abandonadas pela ambição humana,
destruídas por esta doença que assola a natureza das cidades: o
excesso de racionalidade. O poeta rearticula seu discurso para
mostrar “na rua suja” o abandono da coisas urbanas: “Nu e liberto
levo o vento/ ... que vontade de voltar para a fazenda!/ que vontade
de chorar pelos mendigo!” Como diz Ítalo Calvino ( 1990:18) no
livro As cidades invisíveis: “O olhar percorre as ruas como se fossem
páginas escritas, a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você
repetir o discurso”.
Na mira de uma cidade que diz tudo, Manoel de Barros faz
escavação em suas páginas escritas, repete o discurso que o acolhe:
Vejamos, então, o poema “Incidente na praia”
Eram mil corpos fora de casa
E um menino que atravessa a infância
De automóvel, no asfalto.
Eram bêbados, eram operários
Que sendo governados pelas mesmas leis
Cochilavam sob árvores da lua.
Era um burro de homem projetado
Perpendicularmente aos edifícios
Que oferecia sorvete aos maiôs mais simpáticos
43
Nisto, o dia de papoila na lapela,
Delicadamente,
Vai até a onda e faz sua mijadinha
-É um garçom!
-É um poeta!
-É um jaburu!
Enquanto uns discutiam,
Outros iam tratar da vida
Isto é: iam jogar peteca.
( Barros, 1990: 71-72)
No poema, não se esgota o modo de olhar a cidade, pelo
contrário, o poeta dribla o lugar comum e nos faz enxergar além
do que se mostra como óbvio: “Eram bêbados, eram operários/Que
sendo governados pela mesmas leis/ Cochilavam sob árvores da lua”.
Observa-se que a cidade é transfigurada pela visão de inutilidade,
onde proletários ainda sonham sob “árvore da lua” .
Para Malcolm Bradbury e James Mcfarlane (1989:276),
“Maiakóvski vê com alegria o proletariado urbano como atores do
milênio”. Em Manoel de Barros, os operários, com suas verdades
reprimidas, são governados por leis, marginalizados como coisas;
úteis apenas enquanto servem para produzir. Fora disso, não são
nada.
No exercício de poetizar a temática urbana, Manoel de Barros
parte, então, de uma linguagem com intenção de um vôo lingüístico
que, ao renovar sua visão sobre a cidade, inova sua poesia pelo
lado travesso do verbo : “E um menino atravessa a infância de
automóvel”. Ao criar um estilo próprio a partir do que há de mais
simples, o poeta recria uma realidade que nos amplia à percepção
das coisas: “Vai até a onda e faz sua mijadinha”.
O poeta campeia a cidade à procura de imagens, à espera
44
de encontrar, pelo menos, a enorme ternura debaixo dos óculos:
“Enquanto uns discutiam/ Outros iam tratar da vida/ Isto é: iam
jogar peteca”. Nos diversos caminhos a serem trilhados na cidade, a
multidão faz parte de um espaço, onde a vida é apenas uma ordem,
meio à fragilidade do lugar comum, a vida chega a ser sinônimo
de jogos de disputa, de poder, de competição acirrada que amplia
ainda mais as cortinas da desigualdade social.
Manoel de Barros, “despossuído” de sua existência concreta
e histórica, vislumbra a liberdade vadia em ruas tortas.
Vadio e evadido
Vagabundeio só.
Amo a rua torta
E do mar o odor.
Dos muros as mossas,
Dos púcaros o frescor
Amo. E as uvas esmagadas.
E do mar o odor.
Vou tangido e raro!
Tangido vou.
Suspenso de ventos
Do mar, pelo odor.
( Barros,1990:77-78)
O poeta, entre a realidade e a fantasia, ensina-nos lições de
rua que traduzem a inexperiência do sofrimento vivido. Ao mesmo
tempo em que pareça dado pessoal, é o oposto que se verifica. Na
verdade, sempre de viés, o poeta sugere na eleição de elementos da
natureza a aceitação de si mesmo em sua parte mais significativa para
a aceitação do mundo. Manoel de Barros envereda em nova direção
tanto em relação ao mundo quanto em relação a si mesmo. O poeta
examina o mundo através de uma lente oblíqua. Por essa ótica, a
deformação chega a ser essencial para explicar parte da inadequação
do quadro social nas grandes cidades, onde as disputas, além
45
de constantes, incitam o apelo ao prazer e à vadiagem. Conforme
afirma um verso do poeta e pensador Fernando Pessoa (1980: 142):
“Na cidade, as grandes casas fecham a vista à chave,/ Escondem o
horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu”.
Cidade onde as diferenças sociais se acentuam, tornamse visíveis, onde homens se vestem com economias, onde casas
deixam de ser lar domiciliar para ser ponto comercial; cidade
onde as possibilidades estéticas, políticas, culturais e pessoais se
descortinam entre o isolamento e a alienação, pois é nas ruas da
cidade, onde tudo se movimenta, tudo se mostra, é nas ruas que
acontece a comercialização sem trégua dos espaços, onde se disputam
as relações efêmeras de valores, as relações de utilidade. Como disse
uma vez Walter Benjamim ( 1967:10): “É na rua que tudo se refugia”.
É na rua que se conhece a verdadeira história da cidade, como faz
sugerir Manoel de Barros ao interessa-se pelas pequenas coisas que
acontecem nas ruas da cidade grande.
Na contramão da vida, a cidade adormece nos bancos de
praça. Como diz Manoel de Barros ( 1990: 102) com suas palavras
de vogais: “A rua pega fama/ e se deita na lama” . Ruas em que os
homens mantêm interação social, manifestam-se como sujeitos em
busca de uma possível sociabilidade.
Em Sociologia e modernidade, José Maurice Domingues (
1999:21) destaca:
A cidade é local onde tipicamente se realiza a sociabilidade
moderna, isto é, o tipo de atitude manifestada pelos sujeitos
uns em relação aos outros no curso das interações sociais. É
certo que o campo mantém sua relevância como espaço social
específico onde tipos distintos de sociabilidade se constituem
assim como concretamente deparamos com estilos variados
de sociabilidade urbana que apenas de um modo geral
podemos resumir em tipo comum.
Em verdade, as cidades são fotografias de si mesmas que
Manoel de Barros nos apresenta povoada de anti-heróis que
46
perambulam sem destino em avenidas projetadas para receber o
progresso. Cidades em que as ruas são exílios para mendigos, loucos
andarilhos e poetas. Ruas em que pequenos edifícios são soterrados
enquanto os arranha-céus engolem vielas e botecos; ruas em que as
coisas são criadas para ter somente valor no comércio circunstancial
das mercadorias descartáveis.
.........................................
Círculo sob arranha-céus
Vivo debaixo de cubos:
Na direita, na esquerda
De lado, ao sul
Pelo norte ... Vou no meio assustado.
Um pequenino ser com a sua morte dentro,
Com meu ombro desabado
E seus braços descidos pelo caos do corpo.
Sou ligado por cordões e outros aparelhos secretos a um
escritório complicado
Portas mecânicas me subtraem e me devolvem súbito
ao negro asfalto
Entro e saio do edifício que come meu rosto e o cunha
na pedra.
Varo becos, brancos e buzinas.
À noite, porém, ( ó cidade tentacular!)
Me rendo.
Resfolegante como um boi, paro.
Vasta campina azul de água me olha, me contempla,
Me aglutina
E suja-me de iodo a roupa
É o mar!
Meu rosto recebe a brisa do mar.
.........................
( Barros, 1990:103-104)
47
O que se encontra no lirismo de Manoel de Barros é um
alerta às coisas que se perdem mundo à fora em função da utilidade.
Entre automóveis e asfalto, um reinado de surpresa, que fornece o
conteúdo ilusório de seus versos líricos.
Em ensaio sobre a lírica manoelina, publicado no jornal O
Povo de 9 de março de 1997, Rigaud Salmito assinala:
Sua lírica escapa à contemplação possível da natureza em grau
descritivo e belo. E não deixa de ser belo seu produto final,
contudo algo sobressai da dicotomia campo x cidade: o locus
de Manoel de Barros é a palavra.
O que se observa mesmo é que entre a temática urbana e
a rural, o poeta Manoel de Barros faz parte do grupo dos poetas
interessados com as palavras que contemplem ruínas mortas,
alamedas e abandonos. Palavras que dão concretude à sua poética da
ordinariedade.
Em verdade, o poeta repensa a realidade pela escolha de
coisas e pessoas marginalizadas, abrangendo, assim, aquela parte sem
nome, sem história, sem sentido, sem utilidade, que não é bem vista
na sociedade, ao exaltar as coisas ordinárias como objeto de poesia.
Ou como observa Patrícia Pavas (1997:76): “Ao considerar que
tudo pode ser objeto de poesia principalmente os seres desprezados,
Manoel de Barros está escolhendo não só a linguagem ideal, mas o
homem que deve ser um exemplo para os outros. A linguagem que
cultua define o homem que a usa, e vice-versa”. Afinal, urbanos ou
não, é certo, estamos presos à rua de nosso planeta, estamos ligados
culturalmente ao quintal de uma “cidade de pedra, lixo e dinheiro”.
48
3.1 - As ruínas urbanas
Somente depois de teres deixado a cidade, verás a que
altura suas torres se elevam acima das casas.
Nietzsche
Se o projeto da linguagem poética de Manoel de Barros já
começa a se configurar deslocado para as coisas ordinárias e sem
valor no comércio circunstancial da vida, já no primeiro livro,
Poemas concebidos sem pecados ( 1937), percebem-se as pegadas
de sua infância. Vê-se, no livro Face imóvel (1942), um lirismo
descomportado, um lirismo fragmentado que se entranha na
relação do poeta com a cidade grande, pela elevação das coisas que
ficaram para trás e das que estão por surgir em ruas que inventam
poetas que já nascem tristes. Poetas que, por não saberem ler outros
poetas, “só lêem as notícias tristes de jornal”, como nos alerta um
verso de Mário Quintana.
Manoel de Barros, ao ler as notícias tristes da urbe, apruma
o idioma, pela desordem das palavras desmetrificadas, dá ao poema
a possibilidade de ser um retrato três por quatro das condições de
decadência nos grandes centros urbanos. Se olharmos um pouco
além da janela das palavras, podemos perceber que vivemos no seio
49
de uma humanidade fragmentada para os sonhos, fragmentada para
a vida.
Sobre isso, Manoel de Barros ( 1990:309) aposta na edição de
sua Poesia quase toda :
Achava e acho que ainda não é hora de reconstrução. Sou
mais a palavra arrombada a ponto de escombro. Sou mais a
palavra a ponto de entulho ou traste. Li em Chestov que a
partir de Dostoievsky os escritores começaram a lutar por
destruir a realidade. Agora, a nossa realidade se desmorona.
Despencam-se Deuses, valores e paredes... Estamos entre
ruínas. A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos
que voam dentro dessas ruínas. Dos restos humanos fazendo
discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo sobrado
e dos rios podres que correm por dentro de nós e das casas.
Aos poetas do futuro caberá a reconstrução - se houver
reconstrução. Porém a nós, a nós, sem dúvida - resta falar
dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas
crenças, perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas falar
de tudo que sobrou das ruínas - e está cego. Cego e torto e
nutrido de cinzas. E se alguma alteração tem sofrido minha
poesia é a de tornar-se em cada livro, mais fragmentária. Mais
obtida por escombros.
É claro que, se repensarmos a condição da vida urbana na
poesia de Manoel de Barros da primeira fase, veremos que, na
“cidade grande”, a falta de sentido é o testemunho mais fiel da falta
de direção; é o quadro mais sugestivo do automatismo da associação
de idéias humanas, porém é também a revelação mais crua de que,
pelo menos por enquanto, estamos à sorte do acaso. Em verdade, o
poeta, ao tentar vencer as dificuldades da grande “cidade grande”,
procura libertar-se dos obstáculos fornecidos pela prisão da palavra.
Nos trocadilhos da lírica manoelina, a imagem enfeitiça
o olhar, redesenha palavras. Manoel de Barros inova sua poesia
com seus flashes na linguagem, demonstrando todo o complexo
de imagens que envolve sua inventividade. O poeta parte da
50
palavra substantivada e se banha na multiplicidade de imagens
incompatíveis entre si, que se abrem para um mundo, cujo ideal
de beleza está entre ruínas. Em verdade, são versos feitos para um
mundo em desordem.
Vê-se também que, na articulação das palavras, a linguagem
em si não se esgota, quer resistir entre a objetividade e o fulgor
ordenado pelo fio melódico, que se ordena entre sons e ritmos,
inaugurando novas experiências sonoras.
Por esse aspecto,
podemos afirmar que a imagem real é substituída pela urdidura
do signo em seus diversos níveis significantes. As figuras aparecem
como metáforas, remetendo-nos à destruição. O poeta, frente ao
espetáculo de um mundo em chamas, compadece-se: “O dia vai
morrer aberto em mim”( Barros, 1996:45).
O questionamento do processo de construção da arte
poética é um pequeno passo para o poeta Manoel de Barros que faz
do vocábulo um campo de pesquisa e do mundo, matéria de poesia.
Ao viajar pela cidade imaginada, Manoel de Barros acaba por
desencontrar-se dos valores do homem urbano. O poeta atravessa
de automóvel a urbanidade, deixa para trás a grande cidade, para
viajar entre palavras à procura de pequenas coisas encontradas
somente em contato com a natureza. O poeta retorna de vez ao meio
natural como uma forma de resgatar a tempo a simplicidade da vida
rural. A partir daí, o que se observa é que Manoel de Barros abandona
de vez a temática urbana e se embrenha em uma linguagem voltada
para as coisas ínfimas da natureza que em cada livro se apresenta
de forma cada vez mais freqüente à dimensão de exemplaridade que
essa tem em sua vida e em sua poesia.
Muda-se o poeta para o Pantanal, muda-se sua forma de
enxergar a natureza, mudam-se as palavras de lugar. “É no ínfimo
que vejo a exuberância” ( Barros, 1993:55).
O retorno ao ambiente natural ajudará Manoel de Barros
no exercício de burilar a linguagem, como também na mestria
de se deter sobre o animismo das imagens campesinas. Vê-se que
o animismo das palavras vai se metamorfoseando na seqüência
51
de cada livro em fragmentos, em imagens. O poeta entra de vez
no ambiente natural do pântano de onde parece não mais sair. E
é a partir desse ambiente que Manoel de Barros perfaz seu lento
caminho em direção ao universo das coisas que não tem valor, e
que, por isso mesmo, são muito importantes.
Conforme se vê, a seguir, a preferência de Manoel de Barros
pelos “inutensílios” visa a corrigir o exagero da racionalidade na
mente ocidental, assim como reflete, em sua predileção pelo
lado marginalizado, uma crítica ao intenso racionalismo que turva,
muitas vezes, a visão do homem civilizado. A preferência pelo traste
levará Manoel de Barros, em seus abismos inventados, a carregar a
“beleza como um prédio em ruínas”.
52
O OUTONO
TERCEIRA ESTAÇÃO:
Na oficina de transfazer as coisas
da natureza em inútil poesia
Nunca ele está mais ativo do que quando não faz nada.
Nunca está menos só que quando a sós consigo mesmo.
Catão
53
A natureza como lugar de ser inútil
Poesia é uma virtude do inútil.
Rabelais
Quando Manoel de Barros retorna ao Pantanal, com sua
cartilha de criar coisas inúteis, e escreve o livro Compêndio para
uso dos pássaros (1960), a partir daí começa a invenção de escrever
a palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. Vinte e dois
anos depois, encontramos em Arranjos para assobio (1982) o poeta
quase em estado de árvore, quase rã, com uma poética voltada
principalmente para harmonia do ser humano com a natureza pela
sugestão das coisas desprovidas de valor perante uma sociedade
movida pela ordem de consumo.
E se a natureza em Manoel de Barros representa, antes de
tudo, a palavra em desordem como fonte primordial, sua poesia tem
por objetivo a ascensão do que é considerado extremamente simples,
inútil, pois como diz: “O poema é antes de tudo um inutensílio”
(Barros,1982:23). Na labuta com seus objetos desúteis, o poeta se
apropria de abandono, joga com o verbo errante e procura entre
palavras o imprestável:
54
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam
a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.)
(Barros, 1996:57)
Com um olhar voltado para o chão de coisas menores, Manoel
de Barros busca uma comunhão com palavras, imagens, cores, sons.
Geralmente, o poeta utiliza-se de crianças, bêbados, loucos e objetos
sem função utilitária. O poeta do ludo e lodo recria sua escrita
para alcançar as “coisas desúteis”. Para ampliar a desnecessidade,
condensa o grau do verbo até encontrar uma miopia no pretérito
imperfeito, abona as substâncias dos substantivos faz, sem exemplo
de ciência, “lagarto a partir de uma parede”. Seu olho tem: “rio de
versos turvos por dentro”. Apalpa “bulbos com seus dourados olhos”
(Barros, 1982:24). É também um indivíduo que “enxerga semente
germinar e engole céu” (Barros, 1982:37). Antes, diríamos que os
“objetos sem função têm muito apego pelo abandono/ Também as
latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem
um dia milagrar violetas” (Barros,1996:57). Mas o que o poeta faz é
“adoecer de nós a natureza” (Barros, 1993: 19). As coisas pequenas
têm muita serventia para um poema manoelino, sua letra minúscula
corta o poema pelo meio, escreve palavras desconexas ainda não
domesticadas pelo significado.
Em busca de encontrar a ascensão das coisas diminutas,
Manoel de Barros é um poeta que não se deve levar muito a sério
o que diz, parece que é tudo invenção ou dispersão. A imagem que
podia ser um ruído de pássaros é antes anúncio de solidão. O verso
apura o ser em devaneio para ampliar o “delírio verbal”. Está mais
perto dos loucos e das crianças do que propriamente dos críticos.
Conforme diz o poeta em O livro sobre nada: “Eu queria avançar
para o começo./ Chegar ao criançamento das palavras. /Lá onde elas
ainda urinam na perna.” (Barros, 1996: 47). À semelhança dos loucos
e das crianças, redime-se às coisas do chão, principalmente quando
55
as palavras perdem o sentido, quando as palavras estão em contextos
estranhos para nossos sentidos, quando os despropósitos são mais
carregados de poesia que de bom senso, quando os absurdos são
virtudes de poesia. Em Arranjos para assobio (1982), o poema “Sabiá
com trevas”, sugere a busca de um canto humilde, sem pieguice:
Caminhoso em meu pântano,
dou num taquaral de pássaros
Um homem que estudava formigas e tendia para pedras,
me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO
CONHECIDO: Só me preocupo com as coisas
Inúteis
Sua língua era um depósito de sombras retorcidas, com
versos cobertos de hera e sarjetas que abriam asas
sobre nós
O homem estava parado mil anos nesse lugar sem
orelhas.
(Barros, 1982:15)
Com o desmantelamento da ordem visível, a metáfora
manoelina sugere-nos um traço de inocência em relação à linguagem
utilitária. Como diz Antônio Houaiss no prefácio de Arranjos para
assobios, “A poesia de Manoel de Barros é rigorosamente o que é. É
poesia em estado de água pura, de nascentes sem fórmulas. Poesia
que abre seu lugar próprio em seu próprio território que é a paisagem
da linguagem verbal” ( Barros, 1982: 10-11). Antes diríamos que
o poeta usa de uma linguagem complexa, inacabada, cobiçada
de transubstanciação: “Sua língua era um depósito de sombras
retorcidas, com versos cobertos de hera e sarjeta que abriam asas
sobre nós”.
Por essa extensão, amanhece, segundo Patrícia Pavas
(1997:37), uma linguagem em Manoel de Barros que: “reflete uma
preocupação constante com o despojamento. Esse despojamento
56
aparece sobretudo como uma simplificação”. Por esse aspecto,
segundo Patrícia Pavas, cada frase fragmentada, cada palavra fora do
lugar é um despojamento às normas gramaticais.
No arranjo dos vocábulos, as palavras, despojadas do sentido
usual, empreendem uma crítica da linguagem, quanto à sua utilidade
de expressão, não somente pelo uso de imagem, mas também pelo
poder que as palavras possuem ao resgatar o valor das coisas
menores: “Um homem que estudava formiga e tendia para pedras
me disse no último domicílio conhecido/ Só me preocupo com as
coisas inúteis”.
Como se sabe, quando empregamos a linguagem para
atender as necessidades quotidianas, a palavra tende a automatizarse, perdendo a ambigüidade original, a forma poética. Por ser a
linguagem do cotidiano automatizada, o ser humano tem necessidade
de entrar em contato com o jogo da linguagem literária que o leva
a um mundo mágico. Essa passagem do mundo real para o mundo
mágico traz para o leitor a sensação de uma linguagem dúbia,
diferente da quotidiana. O que existe de especial no texto literário
em relação aos outros textos que chamaremos de utilitários é que o
texto poético restaura a ambigüidade da linguagem poética, abrindo
a possibilidade de várias leituras.
Octávio Paz ( 1990:270), em seu livro Signo em rotação,
destaca :
Ao contrário das demais versões do real, como silogismo, descrições,
fórmulas científicas, comentários de ordem prática que se limitam
a representar ou descrever o que intentam expressar - e que neste
processo vai perdendo pouco a pouco a totalidade do objeto - a
imagem poética que irrompe no poema não é distinta da ambigüidade
da realidade tal como empreendemos no momento da percepção
imediata, contraditória, plural e não obstante dotada de um sentido
profundo. A revelação poética descobre a condição humana - a solidão
de ser jogado - e nos convida a realizá-las plenamente ao exprimila através da imagem que comporta a dualidade e o contraditório, a
representação e a realidade.
57
Manoel de Barros, em sua labuta com a linguagem, não entrega
as palavras ao sentido corriqueiro, habitual, apenas indica descaminhos,
metamorfoseia a palavra em um rol absurdo de pertences sem valor. O poeta
coloca desconfiança na palavra e duvida da utilidade de expressão da mesma.
Por essa desconfiança vocabular, a natureza sugerida não é um lugar externo,
mas um ponto de encontro, ou de desencontro, de imagens inventadas que,
segundo Orlando Antunes Batista (1989: 82): “Parece conclamar o espírito
manoelino que poderia significar para ver no claustro da natureza a vida, a
aprendizagem, o ser”.
O poeta do pântano entrega ao leitor um ilimitado jogo de palavras,
de sons da natureza, que têm a ver com as plantas, os animais, suas leis de
afinidade e de conveniência, suas analogias obrigatórias. O poeta prefere uma
vegetação brejeira das mais comuns possíveis, das mais inóspitas, como lodo,
raízes, árvores, liquens, musgos. Uma vegetação que, segundo Patrícia Pavas
(1997:50), sobrevive sem maiores cuidados, pois se embrenha ao vento, ao sol
e à chuva.
O poeta Manoel de Barros aposta em seus versos imagens inusitadas
da natureza selvagem, ao mostrar, em uma relação de animismo, seres
transformados em bichos, em pedras, em coisas, ou como diz em Gramática
expositiva do chão - poesia quase toda(1990:286): “Em suas ruínas/Homizia
sapos” (Barros, 1990: 286).
Manoel de Barros, o camaleão da palavra, dissimula como ninguém
a arte de humanizar os animais, com seu talento de observar a natureza,
captando com desenvoltura o mundo do pântano. Vê-se que o mundo animal,
na poesia manoelina, é visto não de forma hierárquica, mas de forma distinta:
“Do barranco uma rã lhe entarda os olhos” (Barros,1982:28).
O poeta faz peraltices com as palavras, espera a pedra florir, gosta
mais do vazio do que do cheio, vê até mesmo a cor do vento. É um poeta capaz
de atravessar um rio inventado, de fotografar o som, muito capaz também
de derreter o sol, colocando no final da tarde um ponto inicial. Um poeta
que, para chegar às margens do poema: “Desinventar objetos. O pente por
exemplo. Dar ao pente função de não pentear. Até que ele fique à disposição
de ser uma begônia. Ou uma gravanha” (Barros, 1993: 11). De novidade, tem
uma simpatia por pessoa pertencida de árvore, inventa poemas a ponto de
58
enxergar uma manhã atravessando os perfumes da aurora. “Se é vermelha tinge a
outra de vermelho/ Se é alva tinge a outra dos lírios da manhã (Barros, 1998: 67). A
natureza é metáfora da arte de transver: “Dentro da mata no entardecer o canto dos
pássaros é sinfônico” (Barros, 1991:61).
O livro Arranjos para assobio sugere-nos um modelo anormal de
expressão, que dessencializa a norma até torná-la mais pura: “Nos monturos
do poema os urubus me farreiam” (Barros, 1982:16). O poeta preza o que
é menor, o que não tem préstimo: “Urubus se ajoelham para ele” (Barros,
1990:275). É uma poesia cheia de coisinhas menores que: “Cada coisa
ordinária é um elemento de estima” (Barros, 1992: 180). A poesia manoelina
amplia o chão das coisas, o que é menor se torna imenso no campo poético.
“O chão é um ensino” (Barros,1982:40). O chão é um aprendizado, está
cheio de coisas, coisas que, para nós, muitas vezes, não têm como decifrar
ou mesmo traduzir, pois: “Influi na doçura de seu canto o gosto que pratica
de ser/ uma pequena coisa infinita do chão” (Barros, 1982:28). A realidade
poética dessa imagem não pode aspirar à verdade. O poema não diz o que
é, mas o que poderia ser. Seu reino não é apenas a natureza, mas também o
ser humano. Manoel de Barros vê o mundo, as palavras e as coisas de modo
completamente particularizado. Em sua incessante produção, o poeta busca
perseguir o fino ajuste entre as palavras e as coisas.
Em Manoel de Barros, as coisas se ajustam entre a realidade e a
realidade verbal. Assim, há um enquadramento possível para a realidade
nesse universo de coisas que, em eterno estado de esboço, se oferece repleto
de surpresa aos olhos do leitor. “Na verdade eu nem tenho ainda o sossego de
uma pedra” (Barros, 1998: 41).
59
4.1 - A natureza das coisas
Em Arranjos para assobio, o chão está repleto de coisas, de palavras.
Mas o que seria esse mundo de coisas que transita pela poesia manoelina?
Bom, para compreendermos melhor a sugestão da palavra coisa, na poesia
de Manoel de Barros, “cascavinhamos” e acabamos por encontrar a palavra
coisa representando muitas coisas para a poesia: “Só me preocupo com as
coisas inúteis” ( Barros,1982: 15). Em um mundo de coisas: “Coisa é Pessoa
que termina como sílaba” ( Barros,1982:40), ou uma ligeira metáfora: “Olho é uma
coisa que participa o silêncio dos outros” (Barros, 1982: 40). Manoel de Barros entre
as coisas natureza, sugere-nos aquelas que são desprezadas pelo olhar do homem:
“De manhã catando pelas ruas toda espécie de coisa que não pretendem”(Barros,
1982:17), o poeta revisa, com cuidado, a paisagem esquecida pelo desgaste da rotina:
“O tempo dele era só para não fazer as mesmas coisas todos os dias”( Barros, 1982:43).
Às vezes, para afirmar que “todas as coisas têm serventia”(Barros,1982:46). Ou coisa
sendo metamorfoseada em outra coisa: “Coisa latente, aurora crisálida em cima de
um ovo” (Barros,1982:43). Até mesmo “coisa” sendo suprimida pelo diminutivo:
“Coisinhas, osso de borboleta pedras” (Barros,1980:25). “Coisa” sendo revelada pelo
conceito de concretude: “Um verso se revela tanto mais concreto quanto seja seu
criador coisa adejante” (Barros,1982: 30). Ou já cansado de muita explicação, retruca:
“Coisa que não faz nome para explicar” (Barros, 1982:27). Deixando o fio do verso
falar por si, no reverso da linguagem poética, as coisas são mais coisas: “Consegui não
descobrir” ( Barros, 1996: 77).
O poeta Manoel de Barros não é o que nomeia as coisas, mas o que
deforma, decompõe, dissolve as coisas. Talvez porque as coisas não sejam
60
coisas, mas palavras que dizem outra coisa: metáfora pura. Talvez, em sua
linguagem de coisas, a linguagem manoelina, destecendo o tecido verbal, não fale
das coisas, nem do pântano: fale de si mesma.
Na visão de Leyla Perrone-Moisés ( 2000: 83), em Inútil poesia, o que
caracteriza uma coisa talvez seja a inviabilidade de essa não poder ser outra
coisa a não ser ela mesma:
O que caracteriza a coisa é sua impossibilidade de dizer outra coisa
senão ela mesma. O que caracteriza o homem é sua capacidade de
inventar, de variar, de dizer outra coisa.
Em uma ligação íntima com as coisas: “Coisa adejante, se infira, é o
sujeito que se quebra até de encontro com uma palavra”( Barros, 1982: 31), o
poeta não transforma a palavra em objeto, mas devolve ao signo a pluralidade
de seus significados. Nesta operação, o poeta percebe a palavra coisa existindo
por uma concretude de si mesma, como se quisesse ser ele próprio nas coisas
que recria:
...................................................
Três coisas importantes eu conheço: lugar apropriado
para um homem ser folha; pássaro que se encontra em
situação de água; e lagarto verde que canta de noite na
árvore vermelha. Natureza é uma força que imunda
como os desertos. Que me enche de flores, calores insetos, e
me entorpece até a paradeza total dos reatores
Então eu apodreço para a poesia
Em meu lavor se inclui o Paracleto.
.......................................................
( Barros , 1982:30)
À procura de uma explicação para o que seja coisa, pescamos
dicionário Aurélio (1986:427) :
no
Coisa [ Var. de cousa lat. Causa.] S. f. 1. Aquilo que existe
ou pode existir: todas as coisas do Universo. 2. Objeto
61
inanimado: os animais e as coisas. 3. Realidade, fato: Não
veremos palavras, mas coisas evidentes. 4. Negócio, interesse:
Saber tratar de suas coisas. 5. Empreendimento, empresa:
Agora a coisa vai. 6. Acontecimento, ocorrência, caso:
Foi assim que se deu a coisa. 7. Assunto, matéria: Tratase de coisa séria. 8. Causa motivo: que coisa provocou o
rompimento dos dois? 9. Mistério, enigma: Aí tem a coisa,
ninguém a entende.10. Perdas dos sentidos, ou mal estar ou
indisposição indeterminada; troço: Deu-lhe uma coisa.11.
Bras. Gír. Troço: Que coisa, a casa que ele comprou.12. Bras.,
PB. V. baseado. 13. Bras. pop. V. diabo - V. coisas de . Coisa do
arco-da-velha. Coisa espantosa, extraordinária, inverossímil.
Coisa julgada .Jur. Sentença irrecorrível, decisória da lide, e
que tem força de lei nos limites das questões decididas. Coisa
pública. Os negócios ou os interesses do estado; o Estado.
Coisas e loisas.1. Misturas de coisa várias, assuntos vários. 2.
Coisa indeterminada; ou que não se quer especificar: disseme coisas e loisas. [Tb. Se usa no sing.] Aí é que a coisa fia
fino. V. aí é que são elas. Alguma coisa, um tanto; algum tanto,
algo: Todos a achavam imensamente estranha, e alguma coisa
feia. ( Antônio Patrício, Serão Inquieto. P. 124) E lá vai coisa.
Bras. Fam. V. e lá vai fumaça. Não dizer coisa com coisa. Falar
sem nexo ou propósitos; disparatar. Não sei fazer com coisa.
Agir despropositadamente; disparatar. Não ser lá grande
coisa. V. não ser lá para que digamos. Uma coisa. Bras. Fam. e
pop. 1. V. um amor: Depois de remodelada, a casa ficou uma
coisa. 2. Reação súbita e incontrolável; um troço: Senti uma
coisa quando vi a criança chorando, e chorei também.3. Coisa
ruim, de má qualidade; uma bomba: O programa de televisão,
ontem, foi uma coisa.
As coisas, segundo Edmund Husserl , equivalem a perder a
razão, perder a medida, o sentido:
Caracterizam-se pelo seu perspectivismo,
pelo seu
inacabamento, pela possibilidade de sempre serem visadas por
noeisis novas que se enriquecem e as modificam. ( 1996: 11)
62
Edmund Husserl de Investigações lógicas acredita que a coisa
pode ser pensada ou percebida. Quando pensada, é vista de forma definida
e acabada; no entanto, quando percebida, caracteriza-se pela variedade de
perspectivas que essas revelam.
Por exemplo: o cubo percebido pode ser objeto de infinitas
percepções porque é apenas a multiplicidade de perspectivas
que o apreendem. O cubo pensado, por outro lado, é objeto
geometricamente definido de uma vez por todas. ( 1996: 11)
Manoel de Barros percebe as coisas pelos sentidos; talvez,
por isso, veja os objetos mais simples, através de possibilidades
inovadoras, proporcionando novas formas de ver as coisas além do
sentido imposto pelo dicionário. A nosso ver, Manoel de Barros
procura dar às coisas simples um acontecimento inteiramente
composto de declarações inéditas.
....................................
Seu olho exagera o azul
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os
ocasos.
( Barros, 1993: 75)
Em uma similitude universal com as palavras , encontramos
a palavra coisa referenciada em o livro “As palavras e as coisas” de
Michel Foucault ( 1987:135): 63
As palavras
e as coisas estão muito rigorosamente
entrecruzadas: a natureza só se dá através do crivo das
denominações e ela que, sem tais nomes, permaneceria muda
e invisível, cintila ao longe, por trás deles, continuamente
presente para além desse quadriculado que, no entanto,
a oferece ao saber e só a torna visível quando inteiramente
atravessada pela linguagem.
Em correspondência com a adequação universal das coisas,
em
Manoel de Barros, as coisas são “inutensílios” de grande
utilidade no campo poético. Em Gramática expositiva do chão
(Barros,1990:278) aponta: “Aqui as palavras se esgarçam de lodo”.
O poeta “brincoleja” com as palavras e descreve sobre as “coisas”
em o livro Pré-coisa, livro esse escrito em poesia prosa: “Um cágado
é pois uma coisa sem margem” (Barros,1985: 48).
Em Retrato do artista quando coisa, encontramos a palavra
“coisa” sem designação alguma: “Assim é que foram feitas todas as
coisas - sem nome “ (Barros, 1998:49). Parece que em Manoel de
Barros: “As coisas sem nome apareciam melhor” (Barros, 1998:46).
Em verdade, “coisa” pode ser: “Duas aranhas com olho de estame/
um beija flor de rodas vermelhas/ um infrator de auroras - usado
pelos tordos/ três peneiras para desenvolver moscas”( Barros, 1990:
281).
Nessa perspectiva, é uma poesia tão coisificada que não
sabemos, é incerto, se o poeta tenta ver as coisas através das palavras,
ou se são as palavras que desejam encontrar a paisagem nas coisas,
pois como diz: “São minhas frases que desejam fazer esse trabalho” (
Barros,1998:59).
Ao fazer vadiagem com sons e cheiros, Manoel de Barros
atinge só o lado das coisas que não funciona: “Servia para não
funcionar: na direção que um canivete de papel não funciona” (
Barros,1998:45).
Com exercícios de infantilizar a palavra “coisa”, o poeta
encomprida o que parece não ter dimensão ou compreensão: “As
coisas me ampliaram para menos” (Barros,1993:67). Sem muito tino
64
para exatidão, Manoel de Barros faz novas descobertas: “ Uma coisa
que o homem descobre de tanto seu encosto no chão é o êxtase do
nada”( Barros, 1991: 57). E, nas suas paisagens, inaugura: “De escória
na boca do poeta beira de rio/ que é uma coisa muito passarinha/
Ruas entortadas de vaga-lume”( Barros, 1982:25).
Ao confabular um conceito para “coisas”, o poeta se arrisca:
“As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças”(
Barros, 1993:13). Mas lembra com piedade: “Coisa que não acaba no
mundo é gente besta e pau seco”( Barros, 1991:60). E sem exagero:
“Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas” ( Barros,
1993:77). Porque “Andar à toa é coisa de ave”, diz o poeta das virtudes
inúteis, em seu livro Ensaios fotográficos (Barros, 2000: 51). Entre
luxúria e escória: “O homem está coalescente às coisas como um
osso de ave” ( Barros, 1990: 283). Essas referências nos levaram a
acreditar que: “Nenhuma coisa ficava sem órgão ou boca”( Barros,
1990:285). E assim como as coisas são palavras, e as palavras são
coisas, todas as coisas em Manoel de Barros passam a ter desígnios:
“Raiz de minha fala chama-se escombro” ( Barros, 1982: 29).
Para situarmos Manoel de Barros, no livro Arranjos para
assobio, é preciso vê-lo em completo estado de metamorfose, ou,
sendo mais preciso, em estado animismo, enquanto expressão de
linguagem. A palavra escorre, em silêncio, nos espaços do mundo
da natureza pela sutileza das metáforas. A palavra que o poeta
usa o inclui. Conforme diz em O livro das ignorãças (1993:61): “A
palavra que eu uso me inclui nela.” Vê-se que a palavra é plasmada,
em si, e, por si, revelando o que deseja atingir na pureza das coisas
simples que desbrava: “A poesia me desbrava com água me alinhavo”(
Barros,1982: 16).
À procura de uma palavra que realize o exercício de coisa
simples, a poesia manoelina se aproveita de imagens, para iniciar a
sua engenharia literária. E se, para Oscar Wilde, “Toda a arte é inútil”,
a voz da poesia de Manoel de Barros se fará sobre os escombros,
sobre o traste, por isso que não serve para nada, porque serve para
inventar mundos, serve para criar palavras.
65
Em se tratando da poesia manoelina, o inútil é necessário,
porque o inútil da poesia não tem muito a ver com o inútil da
realidade. O inútil da poesia é diferente, porque tem outra função
que não é a de informar. A leitura de poesia não é como uma leitura
de uma carta impressa em “letra de câmbio”, uma leitura prática. A
leitura de poesia exige outros sentidos, exige o terceiro olho, o olho
de Tirésia, adivinho de Tebas; pois como diz Manoel de Barros em
seus arranjos, que são inventados assobios: “ Olho é uma coisa que
participa o silêncio dos outros” ( Barros, 1982: 40).
Por esses sentidos, na linha de inutilidade das palavras , o
texto poético não tem fim utilitário. Contudo como diz João Cabral
de Melo Neto. ( 1982:24): “Quando aquele que os sofre/ trabalha com
palavras,/ são úteis o relógio/ a bala, e mais a faca” . Em verdade,
a literatura é a arte inútil que se torna útil, quando serve para levar os
leitores a observar outras realidades - idealidade, outros mistérios.
Octávio Paz( 1990:246), em seu Signo em rotação, aviva-nos
a importância do mistério na arte:
O mundo da produção em série é um mundo de objetos,
de utensílios. E os utensílios nunca são misteriosos ou
enigmáticos, pois o mistério provém da indeterminação do ser
ou do objeto que o contém. Um anel misterioso se desprende
imediatamente do gênero anel; adquire vida própria, deixa de
ser um objeto. O mistério é uma força ou uma virtude oculta,
que não obedece e que não sabemos a que hora e como vai
manifestar-se. Mas o instrumento não oculta nada, e nada
nos indaga nem responde.
Se observarmos as frases que atravessam o poema pelo meio,
veremos que a Literatura é, acima de tudo, um verbo humano que
engana e nos leva por um caminho em que nada há de verdadeiro:
“Bastava estender as mãos que chegava no fim do mundo” ( Barros,
2000: 33).
Em Inútil poesia, Leyla Perrone-Moisés destaca: “Uma vez
decifradas as frases que atravessam o poema, verificamos que elas
66
não nos informam um nada de útil, e nem ao menos têm um sentido
seguro” ( 2000: 31).
Metamorfoseando o que não tem valor, na primeira páginas
do livro Arranjos para assobio, confessa: “Só me preocupo com as
coisas inúteis”. Manoel de Barros apropria-se das coisas inúteis assim
como Marcel Duchamp, que, artista por excelência da inutilidade,
também retirava das coisas “desúteis” matéria de valor à obra de
arte. Sabemos que Marcel Duchamp negou a própria essência da
pintura, destruiu também a noção tradicional de obra.
Em um mundo de signos, o poema de Manoel de Barros
é um emblema da linguagem da natureza, a tinta verde da caneta
manoelina pode criar signos que, por sua vez, sugerem a utilidade
das coisas e dos outros tipos de impressos. De certa forma, essa
questão dos “inutensílios” tão presente na poesia manoelina põe
em questão o valor de tudo que consumimos diariamente de forma
passiva sem duvidar de nada.
Encontramos, em livros posteriores a Arranjos para assobio,
também uma tendência para o lado menosprezado das coisas. O
poeta sabe o valor do que não presta: “ É um olhar para ser menor,
para o insignificante que eu me criei tendo/ O ser que na sociedade
é chutado como uma barata - cresce de importância para meu olho”
( Barros, 1998:27). Em Poesia quase toda, (Barros,1990: 275), o
poeta descortina para o dia: “O aparelho de ser inútil estava jogado
no chão, quase coberto de limos”. Ou como inscreve em Matéria de
poesia (Barros, 1974:180): “Cada coisa ordinária é um elemento de
estima”. Porque: “Tudo muito manchado de pobreza e miséria que
se não engana é da cor entre amarelo,” inclui o poeta em Gramática
expositiva do chão ( Barros,1990: 156).
Em sincronia com as coisas, o poeta apanha as ruínas com
as mãos e não encontra nada, em O livro sobre nada: “As coisas
tinham para nós uma desutilidade poética” ( Barros,1996:11). Vimos
até em Concerto a céu aberto para solo de ave” que: “Dentro do
abandono minha boca tem uma luxúria” (Barros,1991:20). O poeta
campeia em o livro Poesias uma despreocupação com as coisas
67
(Barros, 1956: 29): “Por toda parte o segredo das coisas vivas/ entrar
em caminhos ignorados./Sair por caminhos ignorados”. Chega até
mesmo: “Anunciar as virtudes do inútil” ( Barros, 2000:35).
68
4.2 - Discussão sobre a utilidade
Mas afinal, o que vem a ser utilidade; por que umas coisas
valem mais que outras; por que algumas são consideradas úteis e têm
valor elevado, enquanto outras nem valem tanto, têm valor nulo;
como podemos estabelecer o valor de uma coisa?
Sabe-se que o valor das coisas está, pois, fundado em seu
princípio de uso, de utilidade. Talvez, por isso, tudo que satisfaz a
necessidade tem, portanto, um valor no comércio circunstancial da
vida.
Para Michel Foucault:
Aquilo de que não se tem necessidade é igualmente desprovido
de valor enquanto não for usado para adquirir alguma coisa de
que necessite. Em outras palavras, para que uma coisa possa
representar outra é preciso que elas existam já carregadas de
valor. ( op.cit.: 205)
Por essa linha do pensar de Michel Foucault de que
aquilo de que não temos necessidade é desprovido de valor, de
que forma podemos afirmar que uma coisa nos é útil? Ora,
se pudermos nomear o que nos ajuda e (ou) estimula nossa
produtividade, bem como o que serve para facilitar nosso
69
esforço, possivelmente conceituaríamos como sinônimo de
uma coisa útil.
Sabemos que o princípio de utilidade tem como forte
referência o que o ser humano utiliza para produzir as coisas. Se
levarmos em consideração o conceito de utilidade pelo valor de uso
, veremos o homem como um fazedor de utensílios sendo movido
pela racionalidade, em um mundo de coisas que giram com as
necessidades e os valores de cada época.
Manoel de Barros subverte a referência da utilidade das
coisas, toma o inútil como útil. O inútil ganha função na utilidade das
palavras. Conforme diz o poeta no livro Matéria de poesia: “As coisas
sem importância são bens de poesia” ( Barros, 1992:181). O que é
tido pela regra ganha exceção, ao dar cintilância aos seres apagados:
“A noite me diminui” (Barros, 1993:51). Dá voz e valor àquilo que
não tem mais utilidade : “A lata morava no quintal da minha casa
entregue às ferrugens”(Barros, 2000:39). Divorcia o conceito de
utilidade da noção de uso: “Ele nunca realizava nada/ fazia tudo de
conta” ( Barros, 2000:53). O poeta dá às coisas pequenas um valor
imenso, enfatiza-nos a decadência cultural em que estamos inseridos
e, diante mão, aglutina o que não tem valor de uso, dá às coisas uma
função para lá de inegociável.
Em sua relação com as coisas ordinárias, Manoel de Barros
busca educar um novo mercado: o das coisas desúteis. Assim, o inútil
torna-se totalmente útil pela força de expressão do verbo, na medida
em que o mais útil torna-se menos útil fora do mundo da linguagem.
O poeta da inutilidade esvazia o conceito de utilidade de qualquer
referência de uso, conseguindo assim transformar o utilitarismo em
um arsenal de coisas inúteis. “Vi que as andorinhas sabem mais das
chuvas que os cientistas”( Barros,2000:59).
Michel Foucault questiona o valor que estipulamos às
coisas, bem como sobre a importância que oferecemos para as
coisas. O filósofo convida-nos a observar com mais cuidado o
reino das palavras: “Para tentar melhor observar através de uma
lente, é preciso renunciar a conhecer pelos outros sentidos ou pelo
70
ouvir dizer” ( op. cit.: 146). Na concepção Foucaultena, é a própria
coisa que aparece nos seus caracteres próprios e no interior de uma
realidade que desde o princípio foi recontada pelo nome. As palavras
significam as coisas, e as coisas se chamam nomes, que designamos
morfologicamente de substantivos, pois nomeiam seres, objetos,
coisas como: terra , sol, lodo, musgo, bichos, árvore, entre outros.
Sabemos que todas as coisas estão em constante mudança,
principalmente os valores da natureza humana, diariamente
subvertidos. Ao analisar o conceito de utilidade no livro A condição
humana, Hannah Arendt (1993: 322), mostra o conceito de
“utilidade” interligado não somente ao de produção, mas à
quantidade de dor e de prazer experimentado no consumo das
coisas:
Se é possível aplicar neste contexto o princípio de utilidade,
deve referir-se basicamente não a objetos de uso, e não ao
uso, mas ao processo de produção. Agora tudo o que ajuda a
estimular a produtividade e aliviar a dor e o esforço torna-se
útil. Em outras palavras, o critério final de avaliação não é
de forma alguma utilidade e o uso, mas a felicidade, isto é, a
quantidade de dor e prazer experimentado na produção ou
no consumo das coisas.
À procura de uma palavra que inverta o conceito de
utilidade, o poeta Manoel de Barros diminui o excesso pelo
aumento do que é considerado pequeno, indicando-nos que
a cultura da forma como está organizada sobrepõe o racional
deixando, à margem, as coisas simples e naturais. O poeta suscita
no leitor uma significação nova para as coisas desúteis, e, assim,
realiza novas significações com as coisas já conhecidas. A tarefa é
relacionar os objetos com o material de que são feitos e listar seres
vivos e não vivos.
Em O livro das ignorãças ( Barros, 1993:59), o poeta
pantaneiro viaja no rumo da imagem: “Uma ave me prende para
inútil”, como exercício para o descomportamento semântico que
71
consiste em desarrumar a palavra poética a ponto de chegar ao
“grau de brinquedo para ser séria”.
No primeiro livro, Poemas concebidos sem pecados , quando
o poema entardece suas memórias para trás, Manoel de Barros (
1990:54) afirma: “Falo de um menino do mato sem importância/
mas isto não tem importância”, confirmando, portanto, que há, desde
o princípio, uma certa propensão para falar dos desprotegidos, que se
tornam em cada livro mais presentes. Não obstante, o poeta sugere
uma íntima relação com os elementos da natureza do pântano ao
articular, à natureza do seu discurso, os elementos do brejo entre si.
Há, na poesia manoelina, um valor merecido às coisas insignificantes
que em Arranjos para assobio se confirma:
Me abandonaram sobre as pedras infinitamente nu,
[e meu canto.
e meu canto
Meu canto reboja.
Não tem margens a palavra.
Sapo é nuvem neste invento.
Minha voz é úmida como restos de comida.
A hera veste meus princípios e meus óculos.
Só sei por emanações por aderência por incrustações.
O que sou de parede os caramujos sagram.
A uma pedrada de mim é o limbo.
Nos monturos do poema os urubus me farreiam.
Estrela é que é meu penacho!
Sou fuga para flauta e pedra doce.
A poesia me desbrava.
Com águas me alinhavo.
( Barros, 1982: 16)
O poeta, em uma relação profunda com as palavras, acaba
falando das mesmas: “Não têm margens as palavras.” Mas também
nos reporta às imagens da vida natural: “Sapo é nuvem neste inverno”.
72
Desprende-se do conhecimento das coisas úteis a favor das coisas
simples: “Só sei por emanações, por aderência, por incrustações”.
O simples, em Manoel de Barros, é que diferencia as coisas da vida,
pois no simples está o resgate da vida, é no simples que há o resgate
das coisas mais puras: “Sou fuga para flauta e pedra doce”.
E, em uma sociedade em que se conclama apenas no
mundo da utilidade o que possa gerar produtividade, lucro, a
linguagem poética com sua ausência de sentido imediato ainda
é vista pelos racionalistas como se fosse um luxo inoperante,
impraticável, ou, para os mais criteriosos de razão, uma completa
falta de senso prático. No entanto: “Todas estas informações têm
soberba importância científica - como andar de costas” ( Barros,
1990: 290).
Observa, em Inútil poesia, Leyla Perrone-Moisés ( 2000:
33):
Aos racionalistas incomoda o vago da linguagem poética,
sua ausência de sentido imediato, claro e fixo. Como se isso
fosse um luxo indecente, um atentado contra a humanidade,
que necessita de respostas concretas e soluções rápidas. O
que esses críticos não vêem é que a abertura do sentido, na
poesia, é um luxo doado a todos os homens, o direito a todos
os desejos e a todos os futuros, a contracorrente do sentido
único da ética oficial, dos governos e das finanças.
Se os racionalistas ponderam lucros,
em uma
época fundada sobre a injustiça social e sustentada por uma
única ideologia, é por ruptura, e não por sincronia com as
coisas, que a poesia chega ao mundo, desconstruindo o real.
Nesse sentido, o poeta Manoel de Barros rever o que não se
apresenta, experimenta novos olhares para fotografar os
objetos, os lugares: “Escuta fazerem lama como um canto” (
Barros, 1982:22), e encontra na poesia um fixar de entrecorte,
eixo e signo, numa relação direta com os experimentos da
linguagem que, por sua vez, escapa a todo cânone:
73
O que eu queria fazer era brinquedos com as palavras.
Fazer coisa desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o
abandono por dentro e por fora.
( Barros,1996:7)
À procura das coisas inúteis, como verdadeiros bens de
poesia, como valor imprescindível para perceber melhor o que nunca
foi observado antes, o que é falta de percepção, o que é confusão
dos sentidos, Manoel de Barros (1982:26) sublinha seus utensílios
poéticos:
Os bens do poeta: um fazedor de inutensílio, um
travador de amanhecer, “uma teologia do traste”, uma
folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória
de brilhantes, “um parafuso de veludo” e um lado
primaveril.
Na reinvenção do mundo pela palavra, o poeta faz nascimento
às coisas inomináveis, e vai pelo escuro, onde não se pode utilizar
a lógica para entender, onde não se pode passar a régua para medir
o tamanho da beleza, pois a régua mede limites , e as palavras,
deslimites. Em Manoel de Barros, “o belo está na linguagem que fala
do desnecessário”. E o desnecessário é uma coisa muito importante
que o poeta apreende pelas margens da escrita.
No fundo da cozinha meu avô tentou cortar o phalo
com o lado grosso da faca.
Não cortou.
Ia pinchar aos urubus.
Não pinchou.
Bem antes, em 1922, na Vila do Livramento, onde
nascera, meu avô apregoava urinóis enferrujados.
Ele subia no Coreto do Jardim:
Olha o urinol enferrujado.
74
Serve para o desuso pessoal de cada um.
Já pertenceu de Dona Angida do Cocais, senhora de
nobrementes.
É barato e inútil.
Quem se abastece?
Meu avô sabia o valor das coisas imprestáveis.
Seria um autodidata?
Era o próprio indizível pessoal.
( Barros,1996: 27)
As coisas descartáveis são importantes ferramentas à poética
da ordinariedade de Manoel de Barros; são essas coisas que servem
para alimentar e conduzir o núcleo primordial do que escreve.
Conforme diz ao Jornal do Brasil em 17 out. 2000:
Poesia é virtude do inútil. É um objeto sonhante. É igual a um
caneco furado que não segura água, mas serve para guardar
besouros abstêmicos, mosca frita, lírio. Assim o caneco furado
vence o poder de não prestar.
Existe um foco demarcando a escrita de Manoel de Barros,
que é o olhar dirigido para as coisas mais rasteiras, coisas que o
homem perdido em sua complexidade já não consegue ver, ouvir,
sentir, falar, tocar.
Não é por me gavar
mas eu não tenho esplendor.
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente pra fulgor.
Trabalho arduamente para fazer o que é
desnecessário.
O que presta não tem confirmação,
O que não presta, tem.
Não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
75
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.
( Barros, 1996: 41)
O lirismo manoelino é manobrado por palavras encontradas
em terrenos baldios: “Estou apto para o trapo” (Barros,1990:185).
Palavras que viram trastes: “Só empós virar traste que o homem
é poesia” (Barros,1990: 186). Há uma corajosa e quase prazenteira
afirmação da simplicidade , para que se possa ver o mundo sem
o olhar de dominação, mas da imaginação: “Quando o meu olho
furado de beleza for esquecido pelo mundo/ Que hei de fazer?/
Dormir, talvez chorar “ (Barros,1998:75).
76
4.3 - A natureza e as coisas
Todas as coisas boas foram um dia coisas más.
Nietzsche
Em Arranjos para assobio; o poeta dedica-se aos pequenos
seres desprotegidos:
“Sete inutensílios de Aniceto”
Todas as coisas têm serventia sinimbus arvoredos
Você derruba os paus
de noite os passarinhos não tem onde descansar
(Barros, 1982: 46)
É importante que se diga que a poesia manoelina não está
sobre os seres da natureza, mas está com a natureza, uma vez que
descentra o homem de seu papel de inteira dominação sobre todos
os componentes da mesma, “nivelando-os à condição de coisa
entre coisas” , condição que vale, sem exceção, para todos os seres
da natureza.
Berta Waldman (1990:16), sobre a poesia de Manoel de
Barros, destaca: 77
Descentrado o homem de seu papel de dominação sobre os
seres da natureza, nivelando à condição de coisa entre coisas,
miúdo, ele é submetido a uma ordem que vale para todos os
seres. Todos, sem exceção, vivem, morrem e se transformam
continuamente, eqüivalendo-se em sua materialidade e em
seu destino.
Manoel de Barros inventa coisas cujo valor não pode ser
disputado, coisas cuja importância não levam a nada: “uma boca em
ruína”, “pessoa adaptada à fome e ao mar”, suas tripas embostando
de orvalho”, “homem numa sarjeta, “qualquer indivíduo encostado
à lata”.
Sem motor aceita-se entulho para poema.
( Barros,1982:25)
Patrícia Pavas ( 1997: 95), em sua dissertação O senhor cujo
olhar se dirige para baixo, assinala que, com o olhar voltado para o
menos favorecido, Manoel de Barros coloca a imagem como base de
seu processo criativo, como reação natural à mente racional:
Ajudar aos marginalizados define uma visão em que a prática
de dar é muito importante para comunicar, para transmitir
às futuras gerações quão sublimes, quão valiosas são a vida
humana e a vida diária. (....) Doar-se a esses seres é uma
reação natural da psique contra a prisão do egocentrismo e
o culto à mente racional característicos de nossa sociedade.
Para contrabalançar o excesso de racionalidade, o poeta
expressa o mundo como um incomensurável amontoado de
absurdos, que não serve à realidade, mas que serve à sua oficina
de transfazer as coisas mais simples da natureza em poesia.
“Silêncio rubro”
Crista de silêncio rubro, o galo
78
com frisos gelados de adaga no bico
madruga as veredas batidas
( Barros, 1982: 51)
Na visão holística de Fritjof Capra (1982:81): “Nunca podemos falar da
natureza, sem falar ao mesmo tempo de nós mesmos”. Curiosamente, Manoel
de Barros reduz a natureza, através do gesto de rasura, à peremptoriedade das
coisas, que se apresenta de maneira evidente, quando deixa falar o eu poético:
III
...................................
Intrigante: não sei de onde veio nem de que lado de mim
entrou esse besouro. Devo ter maltratado com os pés na
Minha infância algum pobre diabo. Pois como explicar o
Olhar ajoelhado desse besouro
.................................................................................
(Barros,1982:17)
Podemos dizer que vivemos, hoje, as conseqüências de nossas ações
e de todos nossos antepassados, perante a natureza. Vivemos uma crise de
valores, uma crise de humanidade, uma crise que se insere no sujeito com
uma visão unilateral, uma crise de tudo.
Para Theodor Adorno:
Os fins estabelecidos não estão reconciliados com a natureza,
por muito mediatizados que seja , quer dizer de si mesma.
Na técnica, a violência quanto à natureza não é refletida por
representações, mas entra imediatamente pelos olhos. Isso só
poderia ser modificado por uma reorientação das forças técnicas
de produção, que não se medem mais apenas pelos fins queridos,
mas também pela natureza, que não assume aqui uma forma
técnica. O desencadeamento das forças produtivas poderia, após
a supressão da penúria, estender-se por outra dimensão do que a
do simples aumento quantitativo de produção.
(1970:61)
79
Nessa perspectiva, Theodor Adorno afirma que em um mundo
devastado pela técnica, a condição levada a cabo pela consciência burguesa
sobre a natureza da paisagem, transformada pela indústria, diz respeito a
uma relação de dominação visível da natureza, onde a mesma vira para os
homens a fachada do não dominado. A relação dos homens com a natureza
perpetua a opressão, o caráter repressivo, insere-se, pois, na ideologia da
dominação.
O que se vê, em Arranjos para assobios, é que Manoel de Barros,
ao falar de objetos abandonados, não emprega o termo à toa. Existe,
é certo, uma sugestão de desacordo ao que está estabelecido, o poeta
posiciona-se contra a situação em que se encontra a palavra que apenas
relaciona e nada cria, revelando a função que cabe à palavra no poema:
libertar-se do caráter repressivo, libertar-se do lugar comum, despojar-se
de tudo que esteja coberto de razão: “Sabedoria pode ser que seja estar
uma árvore” ( Barros, 1996:69).
Se há uma preocupação cada vez maior com as coisas inúteis da
natureza, é porque, ao falar da natureza, Manoel de Barros nos alerta para
os danos cada vez maiores e talvez irreversíveis que causamos, em nome
da civilização tecnológico-industrial, ao mundo natural. Em seus Arranjos
para assobio, Manoel de Barros ( 1982: 57) alerta-nos :
Achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.
Em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 15 maio
1995, caderno 2, página 1, Manoel de Barros estica os desvãos, os ínfimos:
Nossa arte é feita de resto. São aproveitamentos de materiais
e passarinhos de uma demolição. Acho que àquele tempo
eu falava da realidade do mundo. Me referia às injustiças
enquistadas no corpo do velho mundo. Me referia às
estruturas podres da civilização. E penso que é com os restos
dessa civilização que estamos fazendo arte hoje.
Sabemos que o diálogo com os restos reafirma a relação
do poeta com as estruturas podres da civilização, com as injustiças
80
enquistadas no corpo do “maravilhoso mundo novo”. No livro
Arranjos para assobio, o poeta trabalha com os restos de uma
civilização esquecida:
serviços: catar um por um os espinhos da água
restaurar nos homens uma telha de menos
respeitar e amar o puro traste em flor
(Barros, 1982: 61)
Não somos mais avantajados a exercer poder sobre o que
é inferior a nós, mas a exercer mais cuidados por aqueles que são
frágeis, inúteis, imprestáveis, descartados. Como diz Manoel de
Barros ( 1993: 69): “É a sensatez que aumenta os absurdos”.
81
4.4 - A natureza sob o olhar da ordinariedade
Para mim um quadro é a soma das destruições.
Pablo Picasso
Como se sabe, na alienação do mundo, a conquista da
natureza serviu como instrumento para produzir coisas mundanas
e úteis. Em virtude da excessiva ênfase no princípio de utilidade
que usa a matéria-prima para produzir coisas, e vê em todo
ambiente natural uma fonte inesgotável da qual podemos cortar,
tirar, mutilar, limar tudo, em benefício da fabricação de coisas úteis,
objetos artificiais, artigos de conforto, é que a natureza tem sofrido
um espetáculo de agressão ambiental, que vem justamente dessa
visão utilitária de tirar proveito de tudo.
“As lições de R. Q.”
.................................................
É preciso deformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
................................................
(Barros, 1996:75)
Manoel de Barros, sob o princípio de que as coisas da natureza
82
deveriam não ter utilidade, pois a visão utilitária da mesma tem
levado cada vez mais à exploração do ambiente natural, em o
Livro sobre nada, expõe em sua máquina de inventar coisas:
II
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formigas e musgo - elas
podem um dia milagrar de flores.
....................................................................................
( Barros,1996:57)
Em verdade, a preocupação do homem com as outras
espécies da natureza, pode-se dizer, é uma característica de
tempos recentes. Hoje, não ligamos a TV sem encontrar algum
tipo de informe sobre o corte de árvores, extinção de animais
selvagens, abate de jacarés, armamentos nucleares, bomba
atômica, entre outros.
10
........................................
Sábio não é o homem que inventou a primeira
bomba atômica.
Sábio é o menino que inventou a primeira
lagartixa.
( Barros, 1998:39)
Sabemos também que o planeta Terra vive, hoje, seu
período de intensa transformação tecnológica, em contrapartida,
engendra fenômenos de desequilíbrio ambiental que, se não
forem remediados a tempo, podem ameaçar o destino da própria
vida humana em sua superfície.
Acrescenta-nos em O ponto de mutação, Fritjof Capra
(1982:38) : 83
Hoje, está ficando cada vez mais evidente que a excessiva
ênfase no método científico e no pensamento racional,
analítico, levou a atitudes profundamente antiecológicas.
Na verdade, a compreensão dos ecossistemas é dificultada
pela própria natureza da mente racional. O pensamento
racional é linear, ao passo que a consciência ecológica
decorre de uma intuição de sistema não lineares. Uma das
coisas mais difíceis de serem entendidas pelas pessoas em
nossa cultura é o fato de que se fazemos algo que é bom,
continuar a fazê-lo não necessariamente é melhor.
Manoel de Barros, com seu discurso não linear e antiracional, procura mostrar a ligação do homem com as coisas
simples da natureza. Apesar de fazer questão de enfatizar que
sua literatura é descomprometida da questão política, e sua
preocupação maior é com a palavra:
Todas as minhas palavras já estavam consagradas de
pedras.
Dobram-se lírios para os meus tropos.
Penso que essa viagem me socorreu a pássaros.
Não era mais a denúncia das palavras que me
Importava mas a parte selvagem delas ,os seus
refolhos as suas entraduras.
Foi então que comecei a lecionar andorinhas.
( Barros, 1993: 102)
Muitas vezes, o desacordo é uma forma que se encontra para
defender certas posições em que se acredita. No livro Memória de
arte em Mato Grosso do Sul, de Rosa Maria da Glória Sá (1992:52) ,
Manoel de Barros expressa suas irreais intenções:
Minha poesia é uma reflexão permanente. A palavra me
atinge de tal modo, que a língua passa a inventar coisas.
Nunca empreguei uma palavra que não tenha roçado no meu
84
corpo. Minha poesia é marcada por um constante morrer e
renascer(...) A partir da palavra, aprendo a inventar.
Sendo o poema o monturo das palavras, Manoel de Barros
percorre a natureza do pântano para retirar os objetos inúteis e
reciclá-los enquanto texto poético. O poeta sugere aos leitores uma
via, ante a palavra inusitada, que não é comum de se tornar aceitável
na sociedade de consumo contemporânea: “ Nos monturos do poema
os urubus me farreiam”( Barros,1982: 16). Uma proposta que, diante
da realidade, desarma a percepção do leitor e coloca-o frente a uma
maneira diferente de perceber a realidade. Em Gramática expositiva
do chão - poesia quase toda, o poeta nos redimensiona :
VII
.......................................................
Na beira da pedra aquele cardeal,
você viu? Fez um lindo ninho
escondido bem
para a gente não ir apanhar
seus filhotes, que bom.
( Barros,1990:132)
Entre fragmentos, o poeta utiliza as palavras para que essas
possam aliciar a voz da natureza à criação que transparece na
imagem original. Manoel de Barros traduz sua imagística verbal com
extraordinária economia de meios e enganosa simplicidade formal.
XIII
As coisas não querem mais ser vistas por pessoas
razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul Que nem uma criança que você olha de ave.
( Barros,1993:21)
85
Sabe-se que, imersas em uma cultura racionalista, as pessoas
perdem seus valores, seus trinados, para viverem sob códigos. Como
diz Theodor Adorno ( 1970:68): “O objetivo de toda racionalidade,
da totalidade dos meios que dominam a natureza, seria o que já não
é meio, por conseguinte, algo de não racional”.
Manoel de Barros, pelo caminho da ordinariedade, arranca
os elementos de uma realidade natural, modifica-os profundamente
em si, atribuindo à poesia novos estados de coisas existentes pela
absurdidade de imagens, de aromas e de cores: “As violetas me
imensam” ( Barros, 1996:41).
O poeta escreve para voltar ao tempo em que as coisas
tinham para nós um sabor de desutilidade poética: “Tudo aquilo que
a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia”
(Barros,1990:180). A poesia, em Manoel de Barros, não serve para
nada, porque se torna um instrumento de grande serventia para
reconstruir a humanidade pelo delírio terapêutico da palavra. Na
visão de Theodor Adorno ( 1970:159): “Através da dominação do
dominante, a arte revê profundamente a dominação da natureza”.
Em nosso entender, a poesia de Manoel de Barros, ao falar
das coisas inúteis da natureza, revê profundamente a dominação
sobre os elementos da natureza. Por esse aspecto, a arte manoelina
transvê o mundo natural. No livro Concerto a céu aberto para solo
de ave, o poeta salva o mundo através da palavra :
X
Eis um araquã - um pássaro sem indústria.
O passado obscuro dele é um rio.
Sua voz tem um som vegetal.
( Barros, 1991:18)
A poesia de Manoel de Barros é de grande serventia, em
meio à inutilidade da arte. Tanto que em 15 maio 1995, em uma
entrevista para o jornal O Estado de São Paulo, o poeta reforça:
86
As coisas desimportantes, os inutensílios, são muito
importantes, porque servem para poesia. Tocar violão num
beco é muito mais importante para a poesia do que uma
jóia pendente. Um caneco furado que não carrega água é
mais importante do que um tanque de água. Isso claro pela
inutilidade do caneco furado. As coisas desprezadas pela
civilização são objetos de poesia. Digo aliás que os desobjetos
só prestam para poesia.
Em verdade, as coisas desprezadas pela civilização são
representadas de forma inédita em Arranjos para assobio:
XV
........................................................
E mosca de olho afastado dá flor?
Raiz de minha fala chama escombro
Meu olho perde as folhas quando a lesma
........................................................
( Barros, 1982: 29)
Na categoria das coisas inúteis ligadas à natureza, a poética de
Manoel de Barros no livro Arranjos para assobio está para a natureza
como um corpo único indivisível: “Em seu couro a manhã é sangüínea” (
Barros,1982: 24). Cada palavra escrita inclui a natureza: Estou arrumado
para pedra ( Barros,1982: 31). A natureza não se situa como lugar:
“Que me enche de flores” ( Barros,1982:30), pois não tem domicílio, é
expatriada, serve apenas como um mero motivo às imagens. Apesar
de encontrarmos inusitadas referências que nos levam a viajar: “Como
a luz que vegeta na roupa do pássaro” ( Barros, 1982:26), a natureza na
poesia manoelina não é descritiva, funciona antes e, de certa forma,
como invenção que irá nos conduzir a um processo de inovação das
imagens no verso: “Nossa grandeza tem muito cisco” ( Barros, 1982: 30).
Em entrevista concedida a José Castelo, em 03 de ago. 1996, ao
jornal O Estado de São Paulo, o poeta Manoel de Barros insinua seus
objetivos inventivos:
87
Não gosto de descrever lugares. Gosto de inventar. Quem
descreve não é dono do assunto. Quem inventa é. O que
desejo é me constar por meio de um trabalho estético. Se de
tudo resultar um cheiro de coisa do chão, é bom.
Percebemos que, em seu traço poético, o espaço da natureza
em Manoel de Barros é revisitado em sentido mais amplo, além
do cheiro de coisa do chão. A natureza, na poesia manoelina, é
revisitada entre o fragmento e a totalidade, através do olhar do
“sujeito inviável”. Manoel de Barros enquanto sujeito inviável
rompe com a lei do pensamento racionalizado, e, de certa forma,
não acata o princípio de identidade, expondo-se às contradições
das palavras. E como nada mais é o que apresenta ser, a natureza
é apresentada por partes, como fragmentos, para atingir o todo.
Assim, cada elemento da natureza instaura no verso um fragmento
solto que revela parte do mundo inventado por Manoel de Barros.
Arcado ser, eu sou o apogeu do chão. Deixa passar o meu estorvo o
meu trevo a minha corcova
senhor!
( este assobio vai para todas as pessoas pertencidas pelos
antros)
( Barros, 1982:59)
As coisas simples da natureza são revisitadas não apenas
como motivo literário de recriação de um lugar, mas simplesmente
por ser representante de uma área humana viva que transcende
sua tipicidade pela ampla dimensão lírica em que é descrita, uma
dimensão lírica que não encontra fronteiras. “Disse que tinha tino
para piano; mas só tocava borboletas” ( Barros, 1991:18).
Como observamos, ao longo dos desvios poéticos de
Manoel de Barros, a natureza, pela abundância de suas referências
geográficas, é sugerida de forma inusitada, como uma região que
88
foge a qualquer delimitação; é apresentada como se fosse, acima
de tudo, uma região do mundo e não de um lugar. A natureza, nos
poemas manoelinos, é menos uma região do pântano que uma
região costurada pelo verbo, a natureza aparece-nos como uma
região inventada pelo lado avesso do verso:
Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo
sapo ficou teso de flor!
e pulou no silêncio.
( Barros, 1982: 60)
As coisas da natureza se constróem, portanto, dentro
da linguagem,
espaço de referência que se reveste de estranhas
formas e sons para suscitar espanto, emoções e encantamentos.
Assim, a leitura do poema causa tanto mais prazer quanto maior a
disposição do leitor para descobrir o efeito tátil-visual das imagens
criadas pelo poeta. Entre flores e sapos, o poeta descobre a graça e
a ironia do inesgotável poder de surpresa, do defeito elementar de
ficcionalizar o mundo.
E em uma época em que o mundo segue em busca
de uma racionalidade desenfreada, no meio de uma sociedade com
valores completamente fetichizados, faz bem lembrar uma crença
antiga e profunda em Hesíodo (1992:64) de que as injustiças sociais
acarretam não só perturbações e danos às forças produtivas da
natureza, mas que também subestimam a própria ordem temporal
da mesma. E em uma época em que as necessidades humanas
parecem não ter fim, lutar contra as armas do progresso é querer
brigar contra o mundo. Em verdade, Manoel de Barros se incumbe
de anunciar o que já nasce torto ; pois, na proeza de cantar seus
versos em Concerto a céu aberto para solo de ave, o poeta vem
com essa “Para ser escravo da natureza o homem precisa de ser
independente” (Barros,1991:62).
Meio a perduráveis valores, perante às ordens sistematizadas,
fabricadas, a poesia manoelina revela outro sentido às coisas da
89
natureza pela linguagem, que “chega enferma de suas dores, de seus
limites, de suas derrotas” ( Barros, 1991: 19).
O exercício utilizado pelo poeta diante dos objetos da
natureza é a desordem, pois a desordem instaura o caos, e o caos é
a forma que o poeta encontra para onde converge a ordem. Cada
verso manoelino seduz pela dissonância, pelo desvio, pelo ilimitado
jogo de palavras que ilumina o silêncio das coisas inúteis, anônimas.
Ou como diz no Livro das ignorãças: “Esta tarefa de cessar é que
puxa minhas frases para antes de mim”( Barros,1996: 70). Ao revelar
o caos da linguagem pela eleição das coisas imprestáveis, o poeta em
Concerto para solo de ave afirma que “servia para não funcionar
na direção que um canivete de papel não funciona” ( Barros, 1991:
45). A poesia manoelina, reveladora de um mundo contraditório, se
encerra nas coisas mais banais e comuns.
90
O INVERNO
QUARTA ESTAÇÃO: A linguagem do “ inutensílio “
Não há regra que não se possa violar.
Por amor ao belo.
Ludwig Van Beethoven
91
5 - A linguagem do “inutensílio”
A poesia é antes de tudo um inutensílio.
Manoel de Barros
Em um momento em que os poetas se ajeitam como podem
na luta pela sobrevivência, em que os pássaros não cantam mais,
pois o canto resultou inútil, cabe ao poeta avivar nossa curiosidade,
balançar as palavras, para que essas façam os pássaros soltar seus
trinados “sobre uma boca em ruínas”
(Barros,1982:25). Afinal,
são as palavras que nos criam, traem-nos, repudiam-nos, salvamnos, silenciam-nos. Conhecemos o mundo através das palavras,
contamos o passado, o presente e o futuro também. Mudamos o
sentido do universo, quando as pronunciamos com intensidade.
Somos das palavras deuses, gurus, profetas, condutores, poetas. A
palavra poesia talvez seja das necessidades a mais sensível e precisa,
talvez a mais divina, pois simboliza diversas significações que
evocamos ou produzimos com a imaginação.
Ora, se passarmos a vista pelas páginas do livro Arranjos
para assobio ( 1982), veremos que o poeta Manoel de Barros, em
seu exercício de valorizar a condição da linguagem poética através
da palavra inventada, pela parte concreta que cabe a essa, utiliza as
92
palavras como objeto, como “inutensílio”, como ponto de entulho.
Graças ao poeta, as coisas ganham um novo sentido e qualquer
aspecto da realidade será recriado em imagens tomadas a contextos
semânticos diversos. Por analogia, Manoel de Barros aproxima as
palavras em função de suas camadas sensíveis, de suas colagens
bizarras de substantivos que se tocam pela junção de opostos.
VI
Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las pro
chão corrompê-las,
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
usá-las como quem usa brincos.
( Barros,1982:20)
Entre objetos insignificantes, a poesia manoelina inventa
seus “inutensílios” com participação lúdica: “usá-las como quem usa
brinco”. O poeta reclama novas formas à sintaxe como em Rimbaud,
que perdeu a inteligência das coisas para percebê-las pela alquimia
das palavras.
Com o olhar voltado para o menor, Manoel de Barros
acentua a fusão que se opera no plano sonoro ou imagístico
que, em combinação engenhosa, remete ao alheamento do
poeta em relação à natureza racional das coisas: “ Não vale
um cabelo/ Não serve nem pra remendo/ só presta pra cantar
e tocar violão” (Barros,1996:25). O verso de Manoel de Barros
é a própria “consagração do instante”, tem os pés fincados na
realidade do pântano, e, ao mesmo tempo, na consciência crítica
que lhe permite constatar que nas coisas mais simples se encerra
o próprio mistério da paisagem física, moral, verbal e estética:
93
Certas palavras têm ardimentos; outras, não./ A palavra jacaré
fere a voz” (Barros 1991: 19).
Se nos dispusermos a penetrar nas entrelinhas do poema,
as imagens inventadas são elementos tirados dos aspectos mais
comuns da natureza, que surgem associadas entre si, sem que
o leitor reconheça os passos que levam a tal aproximação: “ao
ponto de ninguém e de nuvem.” E é a partir de uma linguagem
que tudo subtrai e transforma a ordem anormal das coisas, que
Manoel de Barros se torna um poeta, acima de tudo, “inventador”
de coisas inúteis: “ Também as latrinas desprezadas que servem
para ter grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas”(
Barros, 1996: 57).
O poema se sustenta no jogo de palavras em que a imagem
ganha
sentidos inimagináveis, às vezes, impossíveis, mas
nunca por demais seguros. O poeta é inventor de um lirismo
que ganha força pela sugestão do verbo: “Meu avesso é mais
visível que um poste” ( Barros, 1996:68). Sendo conduzida pela
sensibilidade poética, a linguagem manoelina trilha caminhos
muitos pessoais, extravasa de uma realidade para outra, arrasta
para si o que é desconhecido, o que não tem limites claros. “ Há
certas frases que se iluminam pelo opaco” ( Barros, 1993:23 ).
Percebe-se que Manoel de Barros retira as palavras da
circulação normal e as coloca em um itinerário mais livre,
distante da linguagem habitual. Pela ruptura de certas frases, o
verso manoelez incorpora o ambíguo, o difuso, o descentrado;
e duma maneira ciscada, desvia as palavras e as coisas de suas
dimensões lineares. Em verdade, a experiência de deformar a
realidade leva o poeta Manoel de Barros a conhecer os objetos, os
“inutensílios”, as coisinhas sem valor, em seu estado primitivo.
Vale abrir, aqui, um parêntese e lembrar que essa
tendência à deformação da realidade não é inovadora, uma vez
que já teve seus antecessores no Barroco e no Romantismo. No
entanto, a deformação na poesia manoelina depura-se em um
estilo alinhavo bastante fragmentado:
94
XI
coisinhas: osso de borboletas pedras
com que as lavadeiras usam o rio
pessoa adapatada à fome e o mar
Encostado em seus andrajos como um tordo!
o hino na borra escova
Sem motor ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA
ferrugem de sol nas crianças raízes
de escória na boca do poeta beira de rio
que é uma coisa muito passarinhal ! ruas
entortadas de vagalumes
trastes de treze abas e seus favos empedrados de madeira
sujeito com ar de escolhos inseto
globoso de agosto árvore brotada
sobre uma boca em ruínas
retrato de sambixuga pomba estabelecida
no galho de uma estrela! riacho com osso de fora
coberto de aves pinicando
suas tripas e embostando de orvalho
suas pedras indivíduo que pratica nuvens ACEITA-SE
ENTULHO PARA O POEMA moço que tinha
seu lado principal caindo água e o outro lado
mais pequeno tocando larvas!
rãs de luaçal
( Barros, 1982: 25)
No poema, a natureza inventada é vista para além da visão
habitual que nos foi colocada, por isso que, muitas vezes, não
contribui para sustentar a realidade de onde emerge: “Retrato de
sambixuga pomba estabelecida”. E esse procedimento de um poeta
inventor como Manoel de Barros não é mero devaneio retórico; é,
sim, é armação de objetos lúdicos com emprego de palavras, imagens
cores sons. Seu lado principal caindo água e outro lado mais pequeno
tocando larvas/ rã de luaçal”. Para a imaginação manoelina, não há
95
certo ou errado, até o “o mais pequeno”, que poderia ser visto como
inadequação da linguagem, é utilizado referenciando algo muito
menor.
O poeta metaforiza termos como “ rã de luaçal”. Luaçal
sugerindo a lua refletida no lamaçal, dando assim continuidade à
associação de rã e charco. Esse tipo de artimanha inventiva produz
imagens de máxima perfeição na poesia de Manoel de Barros.
Aparentemente, as imagens parecem simples, mas em verdade
são complexas, pois associam realidades distintas em um mesmo
campo imagético: “ Traste de treze abas e seus favos empedrados
de madeira”/ “sujeito com ar de escolho inseto”/ “globoso agosto
árvore brotada”. Vejamos aí que a forma como estão organizados
os três versos aparece-nos como se o poeta utilizasse o processo de
colagem à construção dos mesmos.
O verso manoelino é um fragmento solto, que instaura uma
poética lúdica, cheia de cortes, em que toda significação estanca,
aparentemente, aos olhos do leitor: “sujeito com ar de escolho
inseto”. Desperta-nos para as coisas que diz como se inaugurasse
uma forma pura de escrever sobre as coisas mais simples da
natureza: “ferrugem de sol nas crianças raízes”. O poeta vê as letras e
as entorta, até descobrir: “que é uma coisa muita passarinhal ! ruas /
entortadas de vagalumes”.
Na verdade, Manoel de Barros inventa uma linguagem que
se utiliza de objetos, os “inutensílios”, que tomam significantes
novos de significados pouco definidos, mas que constituem uma
espécie de sistema, um código que o poeta denomina cordialmente
de “idioleto manoelês”, uma espécie de linguajar individual, cujo
substrato material da linguagem busca construir um sentido próprio,
diferente, pelo sacrifício do sentido automatizado. Uma linguagem
que percorre expressões novas para atingir o que essas têm de
inéditas.
Escrevo o idioleto manoelês archaico ( idioleto é
o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e
96
com as moscas). Preciso de atrapalhar as significâncias.
O despropósito é mais saudável do que o solene. ( Para
limpar das palavras alguma solenidade - uso bosta.)
Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de celebral
nos meus escritos é apenas uma vigilância pra não
cair
na tentação de me achar menos tolo que os outros.
Sou
bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão.
( Barros, 1996: 43)
Nas entrelinhas do “idioleto manolês”, descobre-se o
jogo sonoro de palavras “transfeitas” em poesia. Vê-se que os
“inutensílios” na poesia de Manoel de Barros servem como
elo para emprestar seus arranjos repletos de coisas “desúteis”,
como se precisasse exagerar para exprimir-se, utilizando uma
linguagem significante - imagem sonora que, por sua vez, evoca
sobre o leitor uma espécie de sedução, de feitiço das palavras.
Como diz o poeta de Retrato do artista quando coisa:
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílios nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
( Barros, 1998: 61)
É interessante notar que o poeta chega a se desfigurar
por entre palavras, como se procurasse incorporá-las através
de uma sensibilidade plástica aguçada, para esconder-se no
indizível. Há, com isso, uma valorização das coisas mais
diminutas através do que é inventado no mundo da escrita:
97
XV
............................
Palavras caídas no espinheiro parecem ser ( para mim é
muito importante que algumas palavras saiam tintas de
espinheiro).
............................................................................
( Barros, 1982: 29)
Em Manoel de Barros, as coisas mais simples e diminutas
constituem elos essenciais à criação da imagem visual que aguça
nossa percepção para o lado sonoro das palavras. Assim, quanto
mais estranhas as imagens se tornam, mais sensível é a linguagem. É
uma poesia dissonante, estranha e íntima ao mesmo tempo:
“Teologia do traste” - manuscrito do mesmo nome,
contendo
29 páginas, que foi encontrado nas ruínas de um coreto,
na cidade de Corumbá, por certo ancião adaptado a
pedras.
Contou-nos o referido ancião, pessoa saudavelmente insana de poesia, que sobre as ruínas do coreto BROTAVAM
ÁRVORES / OBRAVAM POBRES / MORAVAM
SAPOS/ TREPAVAM ERVAS/ CANTAVAM PÁSSA
ROS. E eis, que, ali, o cansanção que era muito desenvolvido,
bem como o amarra-pinto e o guspe-de-taquarizano.
( Barros 1982: 26)
Vê-se, no excerto acima, que as coisas desprezadas são objetos
de poesia. Também se observa que os despropósitos são muito mais
acertados que os cabimentos, pois as contradições se aliviam mais
com os absurdos. Manoel de Barros atrapalha as significâncias e
salva as palavras da mesmice. Graças à própria mobilidade do signo,
o poeta desinventa a linguagem, atinge as camadas sonoras da
98
mesma, encontra “des-sentidos” em um quadro de imagens não
lineares que nem de longe se assemelham entre si.
V
Usado por uma fivela, o homem tinha sido escolhido,
desde criança, para ser ninguém e nem nunca. De forma
que quando se pensou em fazer alguma coisa por ele, viuse que o caso era irremediável e escuro.
Ou uma vespa na espátula.
Esse homem pois apreciava as árvores de sons amareLos, - ele se merejava sobre a carne do muros
e era ignorante como as águas.
Nunca sabia direito qual o período necessário para um
sapato ser árvore. Muito menos era capaz de dizer qual a
quantidade de chuvas que uma pessoa necessita para que
o lodo apareça em suas paredes.
De modo que se fechou esse homem: na pedra: como os
tra: frase por frase, ferida por ferida, musgo por musgo:
moda um rio que secasse: até de nenhuma ave ou peixe.
Até de nunca ou durante. E de ninguém anterior. Moda
nada.
( Barros, 1982: 19)
Em Manoel de Barros, as palavras transfiguram o sentido
das coisas: “Nunca sabia direito qual o período necessário para um
sapato ser árvore. Muito menos era capaz de dizer qual a quantidade
de chuvas que uma pessoa necessita para que o lodo apareça em suas
paredes”. O poeta volta-se para imagens incomuns que tomam
a expressão de forma estranha e dissonante: “Moda um rio que
secasse: até de nenhuma ave ou peixe. Até de nunca ou durante. E de
ninguém. E de ninguém anterior. Moda nada”.
99
Das entranhas da linguagem, o poeta revela sua relação com
o mundo natural, sugerindo pelo estilo de alinhavo das imagens
criadas o fascínio que exerce a invenção da natureza através do
mundo da linguagem: “Esse homem que apreciava as árvores de sons
amarelos, - ele se merejava sobre a carne dos muros/ e era ignorante
como as águas”.
Por essa margem da linguagem, as palavras se deslocam,
arremessam para lados que não planejavam ir, perturbam, equivocam
sentidos que ali estão para desmentir o real, para fazer o que bem
desejam: “frase por frase, ferida por ferida, musgo por musgo: moda
que um rio que secasse: até de nenhuma ave ou peixe. Até de nunca
ou durante.”
Em Manoel de Barros, as palavras aceitam todo tipo
de distorção, de descomportamento, de inadequação. O poeta
experimenta propor, a partir de restos, uma realidade inventada que
tira o possível do impossível. Para realizar o contrário, as palavras
nas mãos do poeta perdem seus significados, convertem-se em
coisas que aderem a sentidos novos, inesperados. Afinal, no reino
das palavras, terra do tudo pode: “Esse homem pois que apreciava
as árvores de sons amarelos, - ele /se merejava sobre a carne dos
muros.”
100
5.1- A natureza da linguagem inútil Ah! / Seremos apenas imagens inúteis deitadas no barro.
Cecília Meireles
Se verificarmos um pouco mais além a linguagem
manoelina, veremos que enquanto nossos poetas urbanos utilizam
uma linguagem mais próxima do europeu e do que há de mais
estrangeiro em nós, os poetas localistas, por sua vez, desenvolvem,
no campo, um tipo de linguagem que retrata não somente a aquarela
de nossa fauna, de nossa flora, de nossas aves, de nossas árvores,
mas também de nosso falar brasileiro do interior.
Apesar de sabermos que o campo já está absorvido por alguns
caracteres da cidade, devido aos próprios meios de informação,
ainda assim as mudanças são mais lentas. Com isso, o linguajar
interiorano acaba por preservar
dentro de cada região suas
respectivas variantes regionais, os dialetos, de forma mais intensa.
A partir do brado do modernismo de 22, algo de essencial
ocorre na forma de labutar a poesia brasileira pela pesquisa estética:
Mário de Andrade deixa a “ terra da garoa” e percorre a região Norte e
Nordeste, à procura de uma linguagem brasileira, catando expressões
folclóricas, ditos populares, lendas indígenas -Macunaíma; Oswald
de Andrade, no Primeiro caderno de poesia - Pau-brasil, recorre
101
às frases tiradas dos viajantes da época do descobrimento; Manuel
Bandeira, entre a dúvida contida da escrita Capibaribe e Capiberibe,
faz volteios através de suas memórias que atravessam o Recife;
Raul Bopp aventura-se na floresta amazônica à procura de Cobra
Norato; Cassiano Ricardo, em seu Martim Cererê, revisa com
cuidado a paisagem do livro Vamos caçar papagaios; enquanto
Carlos Drummond faz versos à fazenda de sua infância.
A leitura desses poetas servirá de grande importância no
processo de invenção da palavra em Manoel de Barros, que, no livro
Poesias, chega a “campear” um poema a Mário de Andrade: “Ainda
não sei como é/ a rua Mário de Andrade;/ mas vou - a campear - /
que sou um campeador de ruas/ pequenas... É um fraco que tenho”
(Barros,1990:115).
O poema campeia pela rua Mário de Andrade, mistura o
erudito e o popular, usa e divulga os recursos expressivos do verso
livre, através do mapeamento de uma cultura folclórica rica e
diversificada, cheia de imagens, sons e cores sugestivas, constituindo
um registro valioso de ritmos.
E é para desvendar os novos rumos de uma linguagem que,
se apodera do inútil como virtude de poesia, Manoel de Barros
possui uma preocupação intrínseca aos poetas de sua geração que é
o valor merecido à natureza da linguagem.
Inserido, apenas historicamente, dentro do contexto de
1945, Manoel de Barros recria uma poesia cujo vocabulário faz a
literatura alçar vôos. Ou como diz o autor
em seu livro das
Ignorãças: “Poesia é voar fora de asa” ( Barros, 1993: 21).
À procura de uma sustentação que fundamente a linguagem
do “inutensílio” de Manoel de Barros, podemos afirmar que esse
poeta faz parte, apenas, cronologicamente, da Geração de 45, que,
por sua vez, é marcada pelo retorno das formas fixas do verso. No
fundo, esse enquadramento acontece mais pelo momento histórico
que propriamente estético, pois Manoel de Barros não se considera
dentro dos ideais defendidos pela Geração de 45, no processo de
reconstrução do verso: 102
Acho que não pertenço à Geração de 45 senão
cronologicamente. Não sofri aquelas reações de retesar os
versos frouxos ou indireitar sintaxes tortas. A mim não
beliscava voltar ao soneto. Achava e acho ainda que não é
hora de construção. Sou mais a palavra arrombada a ponto
de escombro. Li em Chestov que a partir de Dostoievsky os
escritores começam a lutar por destruir a realidade. Agora a
nossa realidade se desmorona. Despencam-se deuses, valores,
paredes. Portanto não tenho nada em comum com a Geração
de 45.
(Barros, 1990: 308)
Como realmente há uma disciplina no que se refere à
extensão de conquistas advindas à poesia desde a vanguarda
modernista de 22, que se legitima no romance regionalista de 1930,
mas cuja continuidade se percebe a valer a partir de 1945, quando
autores da estirpe de Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto,
Guimarães Rosa, Clarice Lispector, enquadram a palavra como
motivo e voz de poesia. Sabe-se que, em Manoel de Barros, João
Cabral, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, a linguagem necessita
explicar-se a si mesma, assume a função de metalinguagem. Na
arquitetura do verso, João Cabral constrói O engenheiro; Manoel
de Barros aproxima sua lente da escrita sertaneja de Guimarães Rosa
e desbrava mundos inventados por coisas desprovidas de valor.
Manoel de Barros recria, em cada página de seus livros,
admiráveis efeitos repletos de surpresa, em Concerto a céu aberto para
solo de ave: “ Eu vi um êxtase no cisco” ( Barros,1991:58). Somemse a isto as purezas e brincadeiras no Livro sobre nada: “Aonde eu
não estou as palavras me acham” (Barros,1996: 69). No entanto,
constitui, para boa parte de seus leitores, um tipo de poeta difícil,
incompreensível e visionário. Contudo, não tem importância, pois
sua arte não tem “pensa”, não tem habilidade para clareza: “Os loucos
me interpretam” (Barros, 1996:85). O que há é uma aposta visceral,
“o antesmente verbal a despalavra mesmo” ( Barros,1998:53). Em
seus arranjos com as letras, prefere o lado obscuro das palavras: “Não
103
gosto da palavra acostumada”( Barros,1996:71).O estilo manoelino
é torto, avesso, conforme diz no Livro sobre nada “Estilo é um
modelo anormal de expressão: é estigma” (Barros, 1996: 69).
E, para se perceber com outro olhar a poesia de Manoel de
Barros, há de se monumentar “as pobres coisas do chão mijadas/
de orvalho” (Barros, 1996:61), faz-se necessário, primeiramente,
entrar de cabeça no mundo da imagem , e isso já é uma grande
delicadeza pois, para entrar no universo da imagem manoelina.
XV.
................ ............................
- É de um ser inseguro a imagem plástica?
- Nos resíduos das primeiras falas eu cisco meu verso
A partir do inominado
e do insignificante
é que eu canto
O som inaugural é tatibitate e vento
Um verso se revela tanto mais concreto quanto seja eu
..................................................
( Barros , 1982:30-31)
104
5.2 - Manoel de Barros e a escrita de João Cabral de Melo Neto
Para Afonso Ávila ( 1975: 67), a poesia a partir da escrita de
João Cabral começa a repensar a si mesma :
A partir da poesia de João Cabral de Melo Neto e dos
movimentos de vanguarda surgida à altura do concretismo
de 1956, ocorreu na poesia brasileira um espessamento da
escrita historicamente proveniente de Mallarmé. O texto
começou a falar de si mesmo e não da realidade exterior. A
literatura se assumiu como assunto de si mesma, centrandose na escrita como objeto autônomo. Nesse sentido ela não
fala do que ocorre lá fora, mas se propõe como um discurso
sistêmico.
Ora, se a partir de João Cabral de Melo Neto, o texto começa
a falar de si mesmo, observa-se que tanto em Manoel de Barros
quanto em João Cabral, a preocupação com a linguagem se ratifica.
Em verdade, ao vislumbrarmos com cuidado o processo criativo de
João Cabral e o processo inventivo de Manoel de Barros vê-se que
eles se distanciam em vários pontos.
Em primeiro lugar, João Cabral de Melo Neto se detém às
pequenas coisas do chão do sertão. O autor de A escola das facas
mostra a figura humana desamparada diante de uma natureza hostil,
em condições sociais bem adversas, como elemento da palavra
105
poética; enquanto Manoel de Barros, por sua vez, quase exclui o
homem e centraliza as coisas da natureza como referência de suas
imagens criativas que se orientam para a natureza dos objetos mais
diminutos.
O que se observa de interessante entre os dois poetas
expoentes da geração “pós-guerra” é que, em João Cabral de Melo
Neto trabalha seus versos com o rigor “construtivista”, em que se
podem observar a labuta com a palavra, ao limar a matéria discursiva,
à procura de fornecer ao leitor a sugestão de que o vocábulo possui
valor por si mesmo. Nesse sentido, os versos cabralinos assumem
o caráter de uma composição. Vê-se que João Cabral constrói seus
versos na estrutura da linha do poema, que segundo Antônio
Cândido (1994: 10):
A tendência, vamos dizer, construtivista do Sr. João Cabral de
Melo Neto se mostra na sua incapacidade quase completa de
fazer poemas em que não haja um número maior ou menor de
imagens materiais. As suas emoções se organizam em torno
de objetos precisos que servem como sinais significativos do
poema - cada imagem material tendo de fato , em si, um valor
que a torna fonte da poesia esqueleto que é do poema. O verso
vive exclusivamente dela.
Em João Cabral de Melo Neto, os versos são livremente associados
dentro de um fio melódico e seqüencial que perfaz a construção de seu
poema, cujo acentos, pausas, choques ou uniões inesperadas de um som
com outro, constituem a parte concreta e permanente do metro:
O Artista Inconfessável
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
106
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
( Melo Neto, 1982: 05)
Vê-se, no poema cabralino, uma construção geométrica
com um rigor que chega a dispor cada palavra, na exata
medida do verso. Nota-se, no poema de João Cabal de Melo
Neto, uma forma de escrita vicentina, com traço barroco, com
a qual se poderia falar de qualquer coisa de forma paradoxal. O
poeta expressa poeticamente suas contradições sobre o ofício
inconfessável do artista: “Fazer o que seja é inútil. / Não fazer
nada é inútil”.
A poesia de Manoel de Barros, por sua vez, decompõe
até mesmo a matéria inorgânica, buscando não o ser das coisas,
mas o ser da linguagem nos versos que reinventa. O autor de
Arranjos para assobio constrói o verso na linha do verso e não do
poema. Manoel de Barros é o poeta do verso por excelência, tanto
que não há uma linha esquemática para os versos nos poemas
manoelinos, uma vez que os versos desse autor se apresentam a
cada livro de forma cada vez mais fragmentados. Em verdade,
não há um seqüenciamento na estrutura do poema de Manoel de
Barros, tanto que podemos ler sua poesia de várias formas:
de cima para baixo, do meio para o fim, do fim para o meio.
Até porque o verso se desliga do poema e ganha independência;
como se percebe no poema abaixo, os versos são montados de
forma fragmentada, de forma independente:
107
XIII
Depende a criatura para ter grandeza de sua infinita
[ deserção
A gente é cria de frases!
Escrever é cheio de casca e de pérola.
Ai desde gema sou borra.
Alegria é apanhar caracóis nas paredes bichadas!
Coisa que não faz nome para explicar
Como a luz que vegeta na roupa do pássaro.
( Barros, 1982:27)
Em entrevista concedida, em 08 de set. 1993, ao jornal O
Estado de São Paulo, Manoel de Barros assume sua poesia de versos
independentes:
Meus versos são independentes um dos outros e podem ser
montados no poema de diversas maneiras - é assim que eu
crio deslocando as frases no papel (...). Cada poema meu é
uma colagem, uma reunião de fragmentos( ...). Sou um poeta
da visão, me impus um desafio - uma paisagem pobre.
O que se observa desses versos independentes de Manoel de
Barros é que não há um seqüenciamento no que se refere à ligação
discursiva dos versos entre si. O que há mesmo é uma preocupação
com a linguagem, e com a forma que a palavra está expressa ali.
Manoel de Barros pesca suas imagens, que se estruturam como se
estivessem desligadas entre si no arcabouço do poema.
XV
Natureza é fonte primordial?
- Três coisas importantes eu conheço: lugar apropriado
para um homem ser folha; pássaro que se encontra em
situação de água; e lagarto verde que canta de noite na
árvore vermelha. Natureza é uma força que inunda como
os desertos. Que me enche de flores, calores, insetos, e
108
me entorpece até a paradeza total dos reatores
Então eu apodreço para a poesia
Em meu lavor se inclui o Paracleto.
( Barros, 1982: 30)
O que se observa, nesse poema manoelino, é que, em seu
novo ângulo de visão, as imagens se fragmentaram mais ainda,
pondo em pauta a percepção de um mundo, também fragmentado.
Agora, o veículo expressivo é cheio de cortes e fragmentos que, por
sua vez, são precedidos pelas imagens, acentos e pausas, pelo refluxo
rítmico de palavras. Por esse viés, o núcleo do verso não obedece
à regularidade silábica, mas à pancada dos acentos e à combinação
destes com sílabas fortes e fracas.
Em Manoel de Barros, a poesia assume a configuração
propriamente estética, a palavra se despede, pelo menos por
enquanto, da musicalidade excessiva, e se propõe a um tipo de
musicalidade cheia de cortes, de pausas; uma musicalidade mais
rítmica que, conforme diz Manoel de Barros ( 1998:53). em Retrato
do artista quando coisa: “A palavra sem pronúncia, ágrafa/ Quero o
som que não deu liga”. Ou seja, uma poesia que nos apresenta a sua
própria música: a palavra.
O que se nota, realmente, na poesia manoelina, é que há
uma musicalidade intrínseca em cada verso, uma musicalidade
em que a pausa comanda o ritmo e interliga os versos entre si.
Vale observar que o deseqüenciamento das imagens na poesia
manoelina contribuiu e muito para a quebra do ritmo, bem como
para a vadiagem das palavras no verso, que: “Não carecem de
conjunções nem de abotoaduras/ se comunica por encantamento”
(Barros, 1998:67).
Em Manoel de Barros, nada exceto ela a imagem, pode dizer
o que quer dizer. Por essa perspectiva, sentido e imagem acabam se
confundindo, acabam sendo a mesma coisa.
No meio desse processo, o sentido do poema é o próprio
verso, realidade se confunde com ilusão; as imagens, de forma
109
alquímica, aglomeram-se, tomam forma. O poeta é daquela espécie
rara de profeta, que descerra a linguagem com suas leis específicas
e convida-nos a superar o estado de inércia que há dentro de nós.
E Manoel de Barros nos induz, principalmente, a reconhecer, nas
diferentes formas de uso da linguagem, que a natureza, com sua
geografia, rasteja na terra, partilha das águas, imprime suas cores,
revela seus arco-íris, conclui amanheceres.
“Linha Avelã”
A linha avelã de um pêssego
E o lado núbil de um canto
São com a aurora gotejante de uma semente líquida
( Barros, 1982: 54)
110
5.3 - Manoel de Barros e Guimarães Rosa
A capacidade de harmonia com os elementos da natureza, a
riqueza do texto poético, o hábito de inventar palavras, a linguagem
beirando no popular, sem desdizer erudição, leva-nos a acreditar
que se a escrita de Manoel de Barros se diferencia da poesia de
João Cabral de Melo Neto, por outro lado, dialoga e muito com a
linguagem - prosa de Guimarães Rosa.
Em entrevista à Roberta Jansen, ao Jornal do Brasil, em 15
maio 1995, Manoel de Barros, sem forjar, descreve e mede :
Se me comparam ao Rosa, será por que elegemos dobrar a
linguagem ao nosso jeito? Rosa fez isso. É um mágico. Usou as
virtualidades todas do nosso idioma. Não respeitou porteiras.
Inventou por cima. Renovou tudo. Virou e destripou as
palavras. Remexeu, desvendou mil caminhos para dizer.
Enriqueceu a língua portuguesa. Tirou-a de sua paradeza.
Pintou e bordou. Mas eu não tenho proporções para Rosa.
Acho que persigo as mesmas coisas, só que despreparado. Ele
estudou quase vinte idiomas do mundo. Eu só sei as ciências
que analfabetam. E tenho um gosto doentio de molecar as
sintaxes. Acho também que temos em comum com a infância
vivida em vagos sertões sem tamanho. Essa infância deixou
no homem um sentimento de ilha lingüística. Um abandono
que protege e enriquece a imaginação.
111
A linguagem do autor de Sagarana talvez seja com que
Manoel de Barros mais dialoga, seja pela invenção de coisas
amanhecidas de abandono, seja pela possibilidade de expandir-se
no jogo curioso da palavras, nas mais estranhas formas de sons,
no apreço pelo banal e pelo ordinário que afrontam a descoberta
da coisas vestidas por um colorido orvalhado de simplicidade
e, principalmente, pela importância que cabe à palavra, quando
atravessa a paisagem física e atinge a poesia que se abre, quando se
lê em Retrato do artista quando coisa :
8
Levei Rosa na beira dos pássaros que fica no
Meio da Ilha Lingüística.
Rosa gostava muito de frases em que entrassem
Pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no olho das garças.
E completou com Job:
Sabedoria se tira das coisas que não existem.
A tarde verde no olho das garças não existia
mas era fonte de ser.
Era poesia.
Era o néctar do ser.
Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.
Veja a palavra bunda, Manoel
Ela tem um bonito corpo fônico além do
propriamente.
Apresentei-lhe a palavra gravanha.
Por instinto lingüístico achou que gravanha seria
um lugar entrançado de espinhos e bem
emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.
E era.
( Barros, 1998:33)
112
Para que se tenha uma melhor compreensão da linguagem
do “inutensílio” utilizada pelo poeta do Pantanal, bem como o que
se delimita, ao eleger as pobres coisas do chão como reveladoras, não
do que é vulgar, mas do que oblitera o sentido vulgar e apresenta-se
como sublime, que se observa certa confluência entre a poesia de
Manoel de Barros e a prosa de Guimarães Rosa.
Em entrevista concedida à revista Bravo, em 1998, o poeta
da ordinariedade diz escutar “a cor dos passarinhos” e desenhar
o “cheiro das árvores”, dilui em sua postura de inventor, uma
“parecença” com o escritor Guimarães Rosa:
Tenho muita parecença com o Rosa. Nós temos uma relação
saudável com a linguagem erudita. Porém, ele mostra mais o
caipirismo, e eu mostro mais o meu lado de leitor. Mas ele era
muito mais culto do que eu. Tive uma convivência pequena
com ele. Ele também tinha um caderninho onde anotava as
coisas mais banais que via, era muito descritivo.
Em Tradição e talento individual, T.S. Eliot afirma que uma
obra é tanto mais original, quanto mais encontramos, nessa, as
influências de outros autores no texto:
As passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas
em que os poetas mortos revelam mais vigorosamente sua
imortalidade.
( 1989:38)
Diante mão, afirmamos que Guimarães Rosa não exerceu
influência inicial sobre Manoel de Barros, até porque o primeiro livro de
Manoel de Barros, Poemas concebidos sem pecados, foi escrito em 1937,
como esboço da linguagem enviesada do poeta. Enquanto Guimarães Rosa
irá publicar seu primeiro exemplar de Sagarana, em 1946, demarcando seu
projeto estético de recriar palavras, bem como seu exercício de costurá-las
pela “desintegração da sintaxe tradicional”, conforme assinala Antônio
Cândido:
À recriação do vocabulário, a esse rejuvenescimento
113
das expressões correntes, cabe acrescentar a desintegração
da sintaxe tradicional (inversões ousadas, pontuações que
rompem a estrutura da frase, tornando o sentido da frase
inequívoco. ( um exemplo: é preciso de Deus existir a gente,
mais). Só então se terá idéia da subversão radical operada na
linguagem pelo Sr. Guimarães Rosa.
(1994:105)
Encontramos em o livro Memória da arte em Mato Grosso do Sul,
de Maria da Glória Sá-Rosa (1992:59-60), um relato do poeta da natureza
sobre um possível encontro, um episódio inédito, com o autor de Tutaméia:
Sempre tive vontade de conhecer pessoalmente Guimarães
Rosa. Mas ficava acovardado. Quando soube que ele tinha
uma viagem marcada para o Pantanal, tomei o navio de
Fernandes Vieira, em que ele havia embarcado, rumo a
Corumbá. Isso aconteceu em 1953. Quando li Sagarana, fiquei
nocaute. Sua linguagem me humilha. Rosa faz tudo com a
palavra, enlouquece nosso verbo, adoece-o de nós, a ponto
de que esse verbo possa transfigurar a natureza. Pois tomei
Fernandes Vieira só para vê-lo. Mas não tive coragem de me
aproximar. Era aquele respeito, aquele suor, aquelas mãos
frias. De repente, eu disse qualquer coisa de literatura que
tinha lido. Ele se virou para mim: - Venha cá rapaz, vamos
conversar. Não falei dos livros dele, não toquei em assunto de
literatura. Só de vez em quando uma piadinha, para descobrir
as intenções dele a respeito da literatura. Numa hora, ele
me puxou pelo braço e me tornou seu guia pantaneiro. Ele
queria saber de tudo, a letra do canto do tordo, o folclore,
nome de árvore, passarinho. Queria saber guarani, aplicando
nas palavras com o fundo indagar.
Esse diálogo, entre os dois autores, estender-se-á da realidade
para a fantasia, do papel de ofício sertanejo à arte erguida entre a
face do mundo do pântano, pela desautomatização da palavra que
se estende por trás do signo. O estilo de Guimarães Rosa muito
comunga com a escrita alinhavo de Manoel de Barros. Tanto no
114
autor de Arranjos para assobio quanto no autor de Conversa de
boi , a linguagem ainda que erudita quer chegar à ignorância, quer
desaprender. O que se observa também é que na medida em que
esses escritores modificam as palavras do contexto usual, ajudam a
modificar as idéias preconcebidas, ao atuar sobre os leitores, levando
à reflexão da realidade que o circunda. Afinal, do que serviria essa
busca de restauração da palavra, senão para valorizar o que se tem
de mais importante na história de um povo: a linguagem.
Aqui vem a propósito uma observação de Michel Foucault (
1987: 103) :
O que nos deixam as civilizações e os povos como monumentos
de seus pensamentos não são tanto os textos, mas sim
os vocabulários e as sintaxes, os sons que pronunciaram
seus discursos menos que o que os tornam possíveis: a
discursividade de sua linguagem.
Explorar a originalidade da linguagem é renovar o poder que essa
tem na vida das pessoas. Em verdade, o poeta subverte a linguagem
para modificar a realidade da palavra, sugerindo, assim, em cada
leitor, a possibilidade de esse reencontrar, em cada imagem, uma
variação de sentido. No Livro das Ignorãças, o poeta fala de sua
decomposição lírica:
SEGUNDO DIA
Não oblitero mosca com palavras.
Uma espécie de canto me ocasiona.
Respeito as oralidades.
Eu escrevo o rumor das palavras.
Não sou sandeu de gramáticas.
Só sei o nada aumentado.
Eu sou culpado de mim.
115
Vou nunca mais ter nascido em agosto.
No chão de minha voz tem um outono.
Sobre meu rosto vem dormir a noite.
( Barros, 1993: 47)
A linguagem de Manoel de Barros toma corpo, torna-se
autônoma de significação, com um valor diferenciado. É uma
linguagem que encerra em si palavras e expressões para subsidiar
reflexões de um mundo inventado. O poeta nada deixa sem sinais,
sem marcas especiais, a fim de que se possa reencontrá-lo. Os
fragmentos manoelinos se emendam, se atraem, aumenta o mundo
com suas metáforas. “Dava sempre a impressão que estivesse saindo
de um bueiro cheio de estátuas. - conforme o viver de um homem,
seu ermo cede, - ensinava.”(Barros,1985:51) . Em Manoel de Barros,
os fragmentos são meras colagens, montagens que se emendam
à artesania de seu trabalho poético que, por sua vez, se detém às
cascas da inutilidade, para reconhecer uma outra forma de encarar
as utilidade das coisas do mundo: “Diz-se também de quando um
homem caminha para nada” (Barros,1982: 39).
A desarticulação da linguagem manoelina deforma o
conceito que temos sobre a utilidade das coisas que não servem para
nada. Quando o poeta retira a palavra do seu sentido habitual,
inevitavelmente, modifica nossa visão das cores, dos valores, através
da aventura de substantivos adjetivados, advérbios substantivados,
de verbos derivados de substantivos, em um jogo lingüístico, bizarro,
absurdo; que, por sua vez, leva os objetos, as coisas da natureza,
a assumir outros contornos pela inversão da ordem tradicional do
sintagma no universo do texto poético.
Ao se aventurar em uma nova maneira de labutar a linguagem,
o poeta acaba por criar uma nova concepção representativa da palavra
no verso. Eis o porquê de a face do mundo manoelino ser coberta
de palavras obscuras, de figuras estranhas que se entrecruzam e, por
vezes, até remetem a imagens sugestivas:
116
IV
( A um Pierrô de Picasso)
Pierrô é desfigura errante,
andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
Se expressa melhor em inseto.
Pierrô tem um rosto de água
que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
Como um rosto de vidro na água.
Pierrô tem sua vareja íntima:
é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto.
Pierrô tem o seu lado esquerdo
atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.
...............................................
Solidão tem um rosto de antro.
( Barros, 1982: 18)
A inversão da ordem tradicional do sintagma, no contexto
oracional, é um dos traços que marca a linguagem de Manoel de
Barros; constitui ferramenta essencial, para dar sentido à arte das
coisas sem valor, das coisas atreladas aos escombros.
No prefácio do livro Arranjos para assobio, Antônio
Houaiss ( 1982: 11) descreve:
O concreto se exprime pelo traste ou vermes ou coisinhas
impoéticas; em que o traste ( e afins) é realmente nossocoisinha à-toa de infância à-toa de brasil à-toa de lugar à-toa
117
de homem à-toa de rã à-toa de sapo à-toa de parede à-toa ou
de raiz à-toa ou de raiz de parede à- toa, à-toa. De envolta, o
que é que aí freme e é, sem pieguice, só pungência e piedade?
Só compaixão e perdão e resignação? Só iluminação de nossa
pequena grandeza interior inútil entretanto tão salvadora
dessa própria esperança pequenez.
Ao valorizar a grandeza das coisas ordinárias, Manoel de
Barros se embrenha à procura de outras margens para a linguagem.
E se pensarmos Guimarães Rosa no conto “A terceira margem
do rio” ( V. Anexos), vê-se que lá “também está o criador sem
fronteiras, a expressão ímpar para a percepção aguda da tragédia
humana. A crispação do gesto crítico, o inconformismo com a
mesmice repetitiva.” Relembrando, aqui, as palavras do crítico
Fábio Lucas, em seu ensaio O inumerável coração das margens,
em 14 de fevereiro. 1999, ao caderno mais da Folha de S. Paulo.
Como se observa, em “A terceira margem do rio”,
Guimarães Rosa (1994: 409) conta a história de um pai que, de
“caso pensado”, se instala num barco no meio de um rio e passa a
vagar sem rumo, cumprindo apenas o destino à margem da vida,
ligado apenas à singela dedicação humana do filho. Condição essa
que, segundo Fábio Lucas, “tem “margem, mas a terceira; e tem
história transubstantivada em estória, substantivo comum”.
Assim, ao retirar o personagem do lugar comum,
Guimarães Rosa cria, para esse, um novo habitat à margem do
rio; dá ao mesmo o poder de ficar à margem da história, o poder
de optar pelo que não faz sentido, de não servir para nada; apenas
uma margem a mais para o rio, apenas um bicho silencioso no
meio do rio, dentro da vida.
Capaz de modificar a ordem, a lógica, a razão, as coisas, em
“A terceira margem do rio”, o autor quebra a dicotomia cartesiana,
ao criar um modo estranho de se viver dentro de uma canoa ,
que, por sua vez, acaba também por acarretar uma mudança no
estilo de vida dos que estão fora dela. Com isso, o personagem que
passa a viver dentro da canoa cria uma terceira margem do rio para
118
si e, conseqüentemente, para o mundo em volta .
O que faz o autor ao criar “A terceira margem do rio” é
posicionar-se a favor de uma pluralidade de discurso, pois retira o
homem da condição de normalidade, para o exercício de inutilidade,
de silêncio dentro do rio. Homem e rio são um só. E o que não
serve mais para a vida, serve como elo principal às construções das
histórias de Guimarães Rosa.
Ao realizar a desorganização do discurso, o autor de Tutaméia
penetra em novas possibilidades que não cedem lugar às certezas.
Em verdade, Guimarães Rosa desenvolve, em seus textos, uma
qualidade das mais caras: o poder de visualizar as coisas menores.
O autor valoriza as pequenas coisas, que acabam sendo as maiores,
sendo as mais importantes. Se verificarmos com cuidado, veremos
que são as pequenas coisas que nos escapam e que acabam por se
perderem meio a nossa visão pragmática, despoetizada para o olhar.
Assim como o autor de Grande sertão veredas, Manoel de
Barros utiliza-se das pequenas coisas, dos pequenos acontecimentos,
para trabalhar sua linguagem inventada, que se volta para o
desprendimento das coisas, ao configurar num vocabulário
inumerável marcas coruscante de um estilo enviesado. Em verdade,
o poeta se volta para as pequenas coisas e para a rejeição do discurso
organizado. Tal como o escritor Guimarães Rosa, o poeta Manoel de
Barros ( 1982: 15). em seu livro das Ignorãças assinala nova margem
para a escrita: “O homem estava parado mil anos nesse lugar sem
orelha”.
Fábio Lucas em seu Inumerável coração das margens destacanos o parentesco verbal entre os dois autores:
Escrever no estilo Guimarães Rosa tornou-se tarefa apetecível.
Dois dos melhores escritores da comunidade dos países de
língua portuguesa, um, o poeta brasileiro Manoel de Barros o
outro , prosador moçambicano, Mia Couto, deixam à mostra
o parentesco verbal.
119
Por esses laços de parentesco verbal, Manoel de Barros
sofre dessa consciência que contagia inúmeros autores: de que
são os injustiçados, os inúteis, os verdadeiros merecedores de
reconhecimento universal.
Andar à toa é coisa de ave.
Meu avô andava à toa.
Não prestava pra quase nunca.
Mas sabia o nome dos ventos
E todos os assobios para chamar passarinhos.
( Barros, 2000: 51)
Como se vê, a ruptura dos modelos, para lá de estabelecidos,
tão percebida na obra de Manoel de Barros, longe de constituir uma
mera preocupação formal, expressa também uma forma de trazer
a poesia originária , que se desloca em um princípio de signo, aos
olhos do leitor.
Desse modo, por não se submeter a nenhuma ordem
estabelecida pelo verbo, o poeta, em desacordo com a linguagem
prática, elege sua atenção, na fala de coisas simples, aos “inutensílios”:
IX
O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir roupa de trapo.
Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.
Faz bem uma janela aberta
Uma veia aberta.
Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
120
Enquanto vida houver
Ninguém é pai de um poema sem morrer.
( Barros 1982:23)
Vê-se, aí, a construção fragmentada do verso pela frase
síntese que se revela, por meio das incidências de cortes e por meio
de rimas sonoras, em: “trapo” x “carro”, “aberta” x “aberta”, “houver”
x “morrer”. O poema, mesmo sendo lido em ritmo quebrado, ou
fragmentado, sugere uma musicalidade que está incutida na sonora
melodia das palavras: “Hora de iniciar algum/ convém vestir roupa
de trapo”.
Observa-se também que a maneira de sugerir a realidade
da linguagem é outra. “Ninguém é pai de um poema sem morrer.”
Ocorre, na escrita manoelina, uma estranheza de sentido que não
cabe aqui interpretar, pois “há certas frases que se iluminam pelo
opaco “ ( Barros, 1993: 23).
O poeta, em seus arranjos verbais, sintetiza a palavra poética
como instrumento que exalta os objetos desúteis a um plano de
igualdade. Seu desprendimento sensível chega a despojar-se até
mesmo do valor que as palavras poéticas possam conter: “Pra mim
é uma coisa que serve de nada, o poema enquanto vida houver”.
Vê-se que a poesia de Manoel de Barros nasce das torpezas
do idioma, das incertezas das palavras e da intensidade das coisas
mais banais para a realidade. O que se observa, de ontem para
hoje, em Manoel de Barros, é um caminho cada vez mais assíduo
para o uso de imagens fragmentadas.
No bojo de uma percepção fragmentada da realidade, o
autor de Retrato do artista quando coisa constrói sua poética da
pauperez. “E me ensinou mais: que as cigarras do exílio são os únicos
seres que sabem de cor quando a noite está coberta de abandono”
(Barros,1998:63). O autor busca atingir uma leitura de mundo que
não seja a única que aí está, por sua vez, privilegiando a cada dia os
mais fortes. O repensar a linguagem é importante contra essa visão
121
unilateral que favorece em ordem crescente os privilegiados.
Em Retrato do artista quando coisa , Manoel de Barros
assume seus propósitos poéticos: “Preciso de atingir a escuridão
com clareza./ Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar/ o meu
aspro./ Palavras têm de adoecer de mim para que se/ tornem mais
saudáveis” ( Barros, 1998:21). E o mínimo que faz o poeta, com receio
da normalidade das palavras, é dar voz e vez aos marginalizados
pelas mesmas. Entre um objeto pequeno, visto de perto, e um objeto
grande, visto de longe, o poeta transporta para o papel qualquer
traste, arrancado da sarjeta.
GLOSSÁRIO DE TRANSNOMINAÇÕES EM QUE
NÃO EXPLICAM ALGUMAS DELAS
NENHUMA OU MENOS
Cisco, s.m.
Pessoa esbarrada em raiz de parede
Qualquer indivíduo adequado a lata
Quem ouve zoadas de brenha. Chamou-se de O CISCO
DE DEUS a São Francisco de Assis
Diz-se também de homem numa sarjeta
( Barros, 1982: 35)
As palavras, à procura de sacudir o aparelho da linguagem
para arrancar-lhe um som novo, tateiam em torno de uma intenção
de significar que não se guia por um texto, caminham intransigentes,
recebem particularidades, burilam novidades no espaço que é criado
para elas:
- Quem é sua poesia?!
- Os nervos do entulho, como disse o poeta português
José Gomes Ferreira
Um menino que obrava atrás de Cuiabá também
Mel de ostras
122
Palavras caídas no espinheiro parecem ser ( para mim é
muito importante que algumas palavras saiam tintas de
espinheiro).
( Barros, 1982:29)
Se “escrever é “os nervos do entulho”, como disse o poeta
Gomes Ferreira; inventar é uma mistura confusa de seres ao acaso
que nada parecem ter de aproximados, entre si, nem mesmo com
“Mel de ostras”. Porque, a poesia de Manoel de Barros é uma “coisa
que não faz nome para explicar”, há similitudes obscuras até com “o
menino que obrava atrás de Cuiabá também”.
Em uma tarefa lídima de trabalhar com os “entulhos”,
as palavras
inventadas por Manoel de Barros
ganham
descomportamentos, adquirem desvios semânticos. Os desvios
manoelinos sugerem novos sentidos às coisas, envesgam a língua ao
ponto de enxergar no entulho um valioso tesouro: “A limpeza de
um verso pode estar ligada a um termo sujo” ( Barros,1998:81).
123
5.4 - Os deslimites das palavras
Só as palavras não foram castigadas com a ordem natural das coisas
As palavras continuam com os seus deslimites.
Manoel de Barros
Como vimos anteriormente, palavras são coisas, são
inutilidades, são objetos concretos, propondo novas significações.
“Mas isso é apenas um descomportamento lingüístico que não
ofende a natureza dos pássaros, nem das grotas/ Mudo apenas os
verbos e às vezes nem mudo/ Mudo os substantivos e às vezes nem
mudo” ( Barros, 2000: 66).
Aos olhos da norma gramatical, as palavras manoelinas
estão fora do lugar, saem da sarjeta, das ruínas, em frases soltas,
sem conectivo algum, sem ligação lógica. No entanto, quando
se misturam entre si, a fórmula manoelina aparece como um
acontecimento significativo. Conforme diz o poeta no Glossário
de Transnominações em que não se explicam algumas delas (
nenhumas) ou menos:
Pedra, f. s.
Pequeno sítio árido em que o lagarto de pernas areientas
124
Medra ( como à beira de um livro)
Indivíduo que tem nas ruínas prosperantes de sua boca
Avidez de raiz
Designa o fim das águas e o restolho a que o homem
tende
Lugar de uma pessoa haver musgo
Palavra que certos poetas emprestam para dar concretude
à solidão
( Barros, 1982: 39)
Através de um estilo alinhavado no papel, um subtexto se aloja
e, instala-se uma “agramaticalidade” quase insana que “empoema”
o sentido das palavras. Aflora, então, uma linguagem inaugural, de
defloramento: “Lugar de uma pessoa haver musgo”. O poeta vai
sendo levado pelas ruínas do mundo, como um “Indivíduo que tem
nas ruínas prosperantes de sua boca/ Avidez de raiz”.
A palavra, quando chega ao verso, já é outra coisa do que era.
Com isso, o mundo e suas metamorfoses também parecem outro, até
mesmo porque mudou a imagem do mundo e a idéia que o homem
fazia de si mesmo. Ou como diz Octávio Paz (1990:101), “Agora, o
espaço se desagrega e se expande, o tempo se torna descontínuo, e
o mundo, o todo, se desfaz em pedaços”. Não obstante essa visão do
escritor mexicano, Manoel de Barros (1998:79) inova: “Eu penso
renovar o homem usando borboletas”.
O olhar do poeta pantaneiro, perante o mundo, privilegia o
ser menor:
6
Aprendo com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
125
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata - cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem;
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.
( Barros, 1998: 27)
O poeta perfaz uma poética que movimenta a matéria do
mundo natural ainda em estado bruto. Muitas vezes, chega às
iluminuras a partir de: “ um olhar para baixo”, um olhar para as
coisas menores do mundo. Pois como diz o poeta: “É um olhar para
ser menor, para o insignificante”.
A linguagem de Manoel de Barros valoriza: “O ser que na
sociedade é chutado como uma barata”. As marcas verbais invertem
os valores e tomam as coisas em seu estado bruto.
Sobre o estado bruto do material poético, Maria Luíza
Ramos (1974: 73) assinala:
Para o poeta, as palavras permanecem em estado bruto
selvagem. Daí a eleição de palavras que mais exprimam de
perto determinado significado. Daí as palavras serem antes
de tudo objetos que constituem por si matéria imprescindível
do poema.
Em Arranjos para assobio, o poeta impõe desregramentos,
para jogar com as palavras, dessacraliza as convenções de significação,
muda as regras do jogo lingüistico, subverte o dicionário, rompe
com o código, cria novos laços significados, e revela pelo signo o
126
que, muitas vezes, se mascara : o apreço pelo traste.
Manoel de Barros faz as palavras caminharem sem elo de
interpretação perante o código lingüístico, contudo quanto mais
se penetra na tessitura do signo, mais se observa a deformação da
realidade inventada: “Bom é corromper o silêncio das palavras” (
Barros, 1998:13).
A textura que produz o material poético leva ao desconhecido,
à incoerência, ao absurdo. O complexo de imagens nasce da mistura
de coisas inconciliáveis entre si, que por sua vez confere ao leitor o
efeito de estranhamento.
127
5.5 - A Dificuldade da poética manoelina
Sujeito
Usava um Dicionário do Ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
Do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.
( Barros, 1982:57)
Para melhor observar a linguagem em Arranjo para
assobio, é preciso notar que sua aparente simplicidade é um modo
de proceder que engana, afinal, quem já ouviu falar nessa palavra
inventada: “bestego”? A palavra não tem sinônimo, mas tem uma
função sonora imprescindível para esse poema meio “sem pé nem
cabeça”.
128
De longe, parece ingênuo acreditar que a loucura das palavras
no poema soa de forma simples. Há muitos que dizem ser fácil fazer
um negócio desses: “inclusive bêbado / Ia entre azul e sarjeta”. Mas não
nos enganemos, esse estilo alinhavo de Manoel de Barros, exposto
pelo estranhamento das coisas organizadas de forma caótica, não é
tão simples quanto parece, pois não é de fácil acesso soar de maneira
obscura e, ao mesmo, enigmática.
Podemos afirmar que o poema manoelino é complexo
mesmo, complicado, para se compreender. Por isso que, para
incorporá-lo, é melhor entrever as dilacerações e divagações contida
nas entrelinhas, que resumem, entre experimentos, as estratégias e
procedimentos estilísticos de uma sintaxe desmembrada.
Hugo Friedrich (1978:18), sobre o processo inventivo da
linguagem poética, destaca:
A língua poética adquire o caráter de um experimento, do
que emergem combinações não pretendidas pelo significado,
ou melhor, só então criam o significado. O vocabulário útil
aparece com significações insólitas; palavras provenientes da
linguagem técnica mais remota vem eletrizadas liricamente.
A sintaxe desmembra-se.
Entre o experimento e o inconciliável no poema, paira no
leitor uma impressão de que ler Manoel de Barros é complexo;
é difícil mesmo, não é de muito fácil acesso. Concordamos. Até por
que essa dificuldade de leitura é uma forma de proporcionar ao
leitor um tipo de leitura que não traz a vantagem da informação
prática.
E é justamente essa falta de compensação de compreensão
do texto poético que cria resistência nos leitores de entender a
obra poética de Manoel de Barros. Vivemos em uma sociedade
acostumada a observar o fácil de perto, a fugir do pensar e do
que possa ser visto e questionado com mais profundidade. Daí a
excentricidade da escrita manoelina não ser muito tolerada.
Ouvimos quase diariamente aquela velha ladainha renitente
129
de que “poesia é difícil, para se entender”. Mas será mesmo tão difícil?
Em verdade, nem pensamos direito sobre as coisas que estão ao
nosso redor, há sempre o outro que fala por nós, que nos representa.
Com isso, não opinamos, somos condicionados a ser pensados.
Pensar dá trabalho, ler um texto que não nos informa nada de útil,
então? “É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez”
(Barros 1996:67).
Vem a propósito a observação de Roland Barthes de que,
para o escritor, o texto afirma pela inutilidade sua real significância:
O texto é sempre algo que procura esquivar-se às redes da
economia de troca, afirmando-se pela sua inutilidade, pela sua
significância irredutível e qualquer mítica criadora, mesmo
que o texto saiba que a sua inutilidade acaba sempre por ser
recuperada. (1973: 21)
Nesse sentido, segundo Roland Barthes, o texto, pela sua
própria significância, se esquiva às leis do mercado, opõe-se ao
mercado das coisas utilitárias, por isso seu aspecto de inutilidade,
pois “escrever estremece o sentido do mundo” . Assim, o que é inútil
para a sociedade acaba sendo lampejos poéticos para Manoel de
Barros:
Leyla Perrone-Moisés observa:
Usando as palavras com outros fins que não os práticos,
sendo um “inutensílio”( Paulo Leminski), o poema põe em
questão a utilidade dos outros textos e da própria linguagem.
Afirmando coisas inverificáveis, irredutíveis a um referente,
o poema questiona a verificabilidade e a referencialidade
das mensagens que nos chegam cotidianamente. O poema
vem lembrar, imperiosamente, que tudo é linguagem, e que
esta engana. Que a linguagem está o tempo todo fingindose de transparente, de prática e de unívoca, e nos enreda
num comércio que nada tem de essencialmente verdadeiro e
necessário. ( 2000: 32)
130
As palavras, em Manoel de Barros, afirmam coisas
inverificáveis, fingem o tempo todo, nada têm essencialmente de
verdadeiro e necessário. “Tudo que não invento é falso” ( Barros,
1996:67).
O poeta da “ordinariedade” usa uma linguagem que
desconstrói o real, experimenta o exercício de uma nova linguagem
poética pelo lado avesso do signo: “Meu avesso é mais visível do
que um poste “ ( Barros, 1996:68). E se lhe acontece significar
diretamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas de um
poder secundário, derivado de sua percepção desconexa. Portanto,
como criador de verso, o poeta é um erro da natureza e Manoel de
Barros é um erro perfeito, porque até mesmo o que não sabe fazer,
desmancha em verso.
“serviço: catar um por um os espinhos da água
restaurar nos homens uma telha de menos
respeitar e amar o puro traste em flor
( Barros,1982: 61)
Regido pela “desrazão” das palavras, o delírio em Manoel
de Barros se revela diante da dimensão do mundo que expressa.
O poeta revela coisas que, para melhor perceber, exigem uma
aprendizagem de desaprender: “Palavra poética tem que chegar ao
grau de brinquedo para ser séria” (Barros,1996: 71).
Sobre o modo como não vemos as coisas, Leyla PerroneMoisés observa ainda:
O modo como não vemos as coisas habitualmente decorre
do modo como entramos em contato com elas, e de um
modo de ouvir falar delas. Um modo de entrar em contato: o
utilitarismo. Usamos as coisas e, encarando-as como utilidade,
não a vemos. Um modo de ouvir falar delas: muito se tem dito
sobre as coisas, ou melhor , usando as coisas como pretexto.
(2000: 76)
131
Vítima de uma linguagem obscura, Manoel de Barros quer
descrever as coisas sob o ponto de vista das mesmas, para isso,
procura encontrar uma linguagem que possibilite valorizar as coisas
que normalmente não têm valor. O poeta quer sugerir as coisas fora
de seu valor habitual de significação, quer sugerir também, através
da linguagem, que as coisas, em contato com o mundo movido pela
cultura econômica, corromperam-se, desgastaram-se.
Para termos uma idéia do que acontece com os versos
em Arranjos para assobio, é necessário observarmos que algumas
palavras atravessam o texto completamente obscuras, pois como
diz: “Prefiro as palavras obscuras que moram no fundo de uma
cozinha - tipo borra, lata, cisco “ (Barros, 2000: 61).
Sobre os desvios manifestados pela linguagem literária, Jean
Maurice Lefebve ( 1975: 27) destaca:
Os desvios manifestados pela linguagem literária podem ser
de dois gêneros. Ou se trata de desestruturação, quando certas
regras do código são violadas: como a inversão em casos onde
não é ordinariamente admitida. Ou de estruturação, quando
novas estruturas que não contradizem as regras usuais vêm
acrescentar-se no discurso.
O que Manoel de Barros faz é encontrar novos arranjos à
linguagem da poesia contemporânea; é desestruturar a organização
do discurso poético, violar as regras de forma diferenciada,
alimentando-se, por sua vez, de uma deformação do real cuja
mostra da realidade inventada soa de forma diferente, uma vez que
exprime, de maneira dissonante, o que não tem significado preciso.
Rolinhas casimiras
Rolas
pisam
a manhã
132
Lagartixas pastam
o sobrado
Um leque de peixe abana o rio
Meninos atrás de gralhas contraem piolhos de cerrado
Um lagarto de pernas areientas
Medra na beira de um livro
Adeus rolinhas casimiras !
O poeta descerra um cardume de nuvens
A estrada se abre como um pertence
(Barros, 1992: 50)
Ora, enquanto a nossa humanidade técnica une os espaços
e materiais entre si, o poeta, de modo singular, dilacera os espaços
e, o que é materialmente impossível relacionar é organizado, no
poema, sem a ajuda de conectores preposicionais. O que se vê
com isso é que Manoel de Barros opta pela desestruturação da
linguagem na medida em que afasta a palavra do sentido que lhe é
próprio. Reenvia-nos um significante cujo significado fecunda uma
linguagem diferente, onde o signo eqüivale por si. Como vimos
em Roman Jakobson( 1980:33), citando Peirce : “Todo signo acaba
sendo mesmo traduzido em outro signo mais explícito”.
Segundo Roman Jakobson ( op. cit. 39), a linguagem poética
se articula pela combinação e seleção.
Todo signo lingüístico implica dois modos de arranjo. A)
combinação. Todo signo é composto de signos constituintes
e/ ou aparece em combinação com outros signos. Isso significa
que qualquer unidade lingüística serve, ao mesmo tempo,
de contexto para unidades mais simples e, ou, encontra seu
133
próprio contexto em uma unidade lingüística mais complexa.
Segue-se daí que todo agrupamento efetivo de unidades
lingüísticas liga-as numa unidade superior: combinação e
contextura são as duas faces de uma mesma operação. B)
Seleção. Uma seleção entre termos alternativos implica a
possibilidade de substituir um pelo outro, eqüivalente ao
primeiro num aspecto e diferente em outro. De fato, seleção e
substituição são as duas faces de uma mesma operação.
Mas o que constitui o signo no seu valor de signo, combinação
de frases, seleção de palavra ? Em Manoel de Barros, a linguagem
poética se alinhava tanto pela combinação de frase sem conexão
alguma, quanto pela seleção de palavras. A seleção de palavras
acaba facilitando a combinação de frases que, no contexto poético,
aparentam duplo contraste, na medida em que têm dessemelhanças
e não querem dizer coisa alguma. Mas a intenção é essa mesma,
de renúncia aos meios de conexão, sem intenção de utilidade. E
se por descuido comunica, é só para nos mostrar que “gostava de
encantações do que desinformações.” ( Barros, 1998:43). Eis um
exemplo dessa encantação que nos permite constatar em cada
página, em cada verso do livro Arranjos para assobio :
XV
.............................................
E mosca de olho afastado dá flor?
Raiz de minha fala chama escombro
Meu olho perde as folhas quando a lesma
A gente comunga é sapo
Nossa maçã é que come Eva
Estrela que tem firmamento
Mas se estrela fosse brejo eu brejava.
......................................................
( Barros, 1982:29)
134
Como se percebe, na vasta sintaxe da natureza, diferentes
seres se imbricam no estranho caminho da poesia: “Nossa maçã
é que come Eva”. Palavras ao acaso não têm nada de semelhantes:
“Mas se estrela fosse brejo eu brejava’”. No fundo da linguagem,
o poeta garante a função do verso, sustenta o papel que cabe às
palavras, atira-se no jogo proposto pelo verso livre, põe-se a favor
de uma escrita cujo código viável é o ilogismo: “A gente comunga é
sapo”.
Os versos são organizados através da montagem. Tudo se
entrelaça aparentemente, os objetos incoerentes, mencionados de
forma concisa, sinalizam para a desestruturação da linguagem
na reconstrução das imagens. Observa-se que as imagens são
incoerentes entre si, de modo que delas resulta uma mistura de
imagens que objetivamente são inconciliáveis entre si, mas que
descobrem uma fundamentação lógica de uma nova linguagem
à poesia. O poeta cria portanto uma proposta de linguagem que
confirma a gestação do que ele mesmo denomina de “agramática”.
O poeta explora “palavras desacontecidas”, que de tão desprendidas
recebe, a ousada denominação de “agramática” ou “dicionário do
ordinário”.
A “agramática” manoelina é o registro de uma linguagem
que se perfaz entre o coloquial e o erudito com deslizes para uma
estranha construção de um estilo que beira no alinhavo. Nesse
estilo de alinhavo, as palavras seguem umas às outras através do
ritmo, das figuras de linguagens, da desconstrução e do próprio
“desnomeamento” das coisas. Pois como diz em Concerto a céu
aberto para solo de ave: “Assim que foram feitas (todas as coisas)/ sem nome.” ( 1991:49).
Essa façanha de “desnomeação das coisas”, em Manoel
de Barros, está para a natureza em uma relação de significação
transitória, inversamente dissociada de descrições exatas. Cada
verso endereça, à natureza, um discurso que lhe promete como
recompensa uma novidade, uma descoberta. Manoel de Barros
fala sobre o fundo de uma escrita que incorpora o conhecimento
135
das coisas inúteis da natureza, acercando-se dessas, para dizer
coisas dessemelhantes que cintilam de forma inesperada, coisas
que nada têm a dizer, mas a desdizer, a desfazer.
EXERCÍCIOS CADOVEOS
O tempo dele era só para não fazer as mesmas coisas
todos os dias
Quase passarinho arrumou casa no seu chapéu
Estava para pegar bicho no osso da bunda
Com pouco ele escorre uma resina
(Ainda não desceu da copa dos coqueiros, será?)
De noite come caroço de égua no cupim
Ai que vontade de encostar!
Se arruma por desvãos como os lagartos
Se propaga no sol
Macega invade seus domínios ele guspe
Coisa latente: aurora crisálida em cima de um ovo
Passarinho caga no seu olho nem xum
Maribondo sanhara seu vulto põe língua
Ai abandono de cócoras! Esse bugre Aniceto quase não
pára de pé como os cadarços mas usa um instrumento de
voar que prende nos cabelos como os poetas
( Barros, 1982:43)
Parece-nos que só podemos reconhecer o que acontece com
a linguagem manoelina , se considerarmos o erro que ela contém
em si própria, se observarmos seus elementos invariáveis, e isso se
observa tanto em nível de significante, de sonoridade, quanto de
significado, de sentido: “Quase passarinho arrumou casa no seu
chapéu”. Para compreendermos a dicotomia que perfaz o signo
como arbitrário, é preciso vermos que existe uma combinação de
vocábulos distintos que estabelecem entre si as mais diferentes
possibilidades que, na poesia desse autor, vem sendo usada de
forma bastante diversificada.
136
Para Roman Jakobson ( op. cit.:41):
Duas referências servem para interpretar o signo - uma
ao código e outra ao contexto, seja ele codificado ou livre;
em cada um desses casos o signo está relacionado com
outro conjunto de signos lingüísticos, por uma relação de
alteração no primeiro caso, de justaposição no segundo.
Uma dada unidade significativa pode ser substituída por
outros signos mais explícitos do mesmo código, por via de
que seu significado geral se revela, ao passo que seu sentido
contextual é determinado por sua conexão com outros
signos no interior da mesma seqüência.
Se levarmos em conta Roman Jakobson, a combinação de
palavras no universo poético é delimitada tanto pela relação que
o signo mantém com as coisas, quanto pela relação que os signos
mantêm entre si. Evidentemente, dentro desses delimites, o poeta
ordena seus versos pela seleção e combinação de palavras, em um
contexto totalmente diverso: “De noite come caroço de égua no
cupim”.
Vê-se,
na fusão de elementos díspares, que as coisas
fundem entre si, grupos isolados de frases: “ Ai que vontade de
encostar/ Se arruma por desvãos como os lagartos/ Se propaga no
Sol”. As frases estão desconexas, não têm pretensão de significar
coisa alguma. É pura invenção: “O tempo dele era só para não fazer
as mesmas coisas/ todos os dias”.
O trabalho de Manoel de Barros com
as coisas
incongruentes: “De noite come caroço de égua no cupim”; assim
como seu distanciamento do mundo real, leva-nos a imaginar que
sua poesia ocupa uma percepção visual que necessita aniquilar os
objetos que encontra pela frente, para elevá-los a um procedimento
intencional do signo lingüístico: “Com pouco ele escorre uma
resina”.
A linguagem, em Arranjos para assobio, nutre-se de
objetos simples, está ligada aos constituintes do código, cuja regra
137
principal é a de inverter a ordem habitual, de emprestar defeitos à
frase, a ponto de criar uma proposta para o poema que se imbrica
muito mais à prosa. Nesse sentido, o poeta desarruma a poesia, e,
se permite enveredar por construções que anunciam onde Manoel
de Barros se sente melhor. “Quase passarinho arrumou casa no
seu chapéu.” Vê nesse excerto que o desconexo é a perfeição de
que o poeta se cerca. O incompleto é o que o completa. É pelo
incompleto que a desarticulação de palavras se revela, adquire a
categoria de uma linguagem apropriada para exprimir no limite
do impossível, pois conforme descreve em Retrato do artista
quando coisa : “Só quem está em estado de palavra, pode enxergar
as coisas sem feitio” (Barros,1998:35).
138
5.6 - O arranjo das letras
Quero escrever a sucata das palavras.
Clarice Lispector
Há uma frase que a escritora Clarice Lispector gostava de
repartir entre amigos: “Eu te invento, ó realidade!” Em verdade, há,
na vida como na poesia, poetas que, por não saberem fazer outra
coisa, escrevem para nos dizer como as coisas são. Mas também
há poetas que escrevem pela simples missão de inventar, para nos
dizer que as coisas não são, mas poderiam ser. Esses poetas parece
que, quando escrevem, encantam tudo que tocam e dizem.
Por isso, o que eles dizem, acaba por ficar mais desverdadeiro,
pois inventam mais coisas do que havia antes de terem dito,
porque falam de coisas que se transformam para existir, ou falam
simplesmente de coisas que nem precisam existir:
No sonho havia uma rampa mole o túnel e uma lagartixa
de
rabo cortado
Pela porta da frente eu não podia sair de dentro de mim
Mesmo com vida, porque não havia porta da frente.
(Barros, 1982: 21) 139
Para fazer o que é desnecessário, Manoel de Barros
desmancha as frases, “desvia as normas da linguagem”, dilui
as metonímias, entorta as imagens, alimenta-se de fantasia,
faz poesia com sotaque bugre. Entre a fantasia e a realidade, o
verbo em Manoel de Barros tem apego por todo tipo de migalha:
“Minha voz é úmida como restos de comida” ( Barros, 1982:
16). No exílio de coisas ordinárias, entre árvores, pedras, rãs,
borboletas, sua obra simboliza a renovação do mundo através
das coisas mais simples: “Anda em lugares vazios/ em que
inúteis borboletas o adotam” ( Barros, 1990:287) . O poeta anda
por atalhos, esmiuça a linguagem para arrevesar as imagens
para “transver” o mundo, em um itinerário feito a partir de
elipses.
Na arte de transver o mundo, o poeta retira da natureza
as coisas simples, dá forma ao mundo, através da escolha das
coisas desúteis, capaz de atrapalhar as significâncias como
sinal de negação, de recusa; também, como resgate de pureza
e ingenuidade, como elo de possibilidades não fixáveis para a
linguagem e novos elos de possibilidade de descoberta do
próprio ser: “Notei que descobrir novos lados de uma palavra
era o mesmo que descobrir novos lados ser” ( Barros, 1991:
27).
No livro Arranjos para assobio ( 1982), o desencontro
com a linguagem vai sendo incorporado pelo cheiro, pelo
som, pela cor, numa linha crescente que amadurece a arte
de “esticar horizontes” às coisas imprestáveis. Para desdizer
o que há muito foi dito, seu olho exagera a imagem: “É um
azul arriscado a pássaro”( Barros,1990: 282), desregula a
natureza, inverte o acaso, cria ocaso, ajeita os sons para voar :
“As garças descem no brejo que nem brisa todas as manhãs” (
Barros,1996:31). O poeta não embeleza a natureza, reaprende
a ver as coisas diferentemente das estabelecidas, despojandose de ritmos isentos de sentido. O poeta Manoel de Barros vê,
no mínimo, a exuberância no ínfimo:
140
12.1
Choveu de noite até encostar em mim. O rio deve
estar
mais gordo. Escutei um perfume de sol nas águas.
( Barros, 1996: 32)
Quando as palavras caminham sob um papel inventado,
vê-se que os cantos podem ser ouvidos em forma de metáforas;
o poeta desenha o aroma das frases: “Nos monturos do poema
os urubus me farreiam” (Barros,1982:16). Em verdade, não há
um fio condutor entre as coisas e as imagens no Arranjos para
assobio.
Trapo, s.m.
Pessoa que tendo passado muito trabalho e fome
deambula com olhar de água-suja no meio das ruínas
Quem as aves preferem para fazer seus ninhos
Diz-se também de quando um homem caminha para
nada
( Barros, 1982: 39)
Ao eleger o trapo, o poeta fragmenta as imagens,
desanda o poema, desafia a palavra do “sentido de dicionário”,
desfaz qualquer tipo de relação com as imagens às quais alude:
“Diz-se também de quando um homem caminha para nada.”
A partir dessa intenção, o poeta ilumina-nos para o difícil
exercício de entendê-lo:
XV.
...............................................................................
- Difícil de entender, me dizem, é sua poesia, o senhor
concorda?
- Para entender nós temos dois caminhos: o da
sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da
141
inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo
Poesia não é para compreender mas para incorporar
Entender é parede: procure ser uma árvore.
.................................................
( Barros, 1982, 29)
Em Manoel de Barros, escrever é um exercício em que
a labuta com a escrita serve para incorporar, dialogar com as
idéias do seu corpo, para perder sua consciência: “Entender é
parede: procure ser árvore”.
E, nesse sentido de escrever para perder a consciência,
nota-se que a palavra “parede” está no lugar da palavra razão,
transportando, assim, aos limites da escrita, uma linguagem
que não quer ser confundida com a ciência. Uma linguagem que
consegue a liberdade de projetar sua criação no nada. Pois, em
se tratando de Manoel de Barros, são as palavras que o ensinam
a ser interiorano com a linguagem, de forma recolhida, onde
até o silêncio faz sentido, ao se encostar no ritmo do verso
com mais representatividade.
Pelo quintal da “despalavra”, o poeta escapa à descrição
contemplativa da natureza, para mostrar a linguagem de que
essa é feita: de forma cinematográfica, cheia de cortes rápidos
e simultâneos, de imagens partidas em superfície, com um
estilo marcado principalmente pela experimento lingüístico.
Manoel de Barros apenas desinventa um “dialeto coisal, larval”,
encara a natureza como uma criação incompleta da palavra
que constrói. Segundo Berta Waldman ( 1990:19):
Iniciada a trajetória de poeta, Manoel de Barros irá
fazendo escola no aprendizado de errar a língua
(escrever é reaprender a errar a língua) com o propósito
de urdir um universo imagético próprio, de tal forma que
o sentido se arme na própria linguagem que o constrói.
142
Em sua trajetória de errar o idioma, é difícil de conceber
claramente a poesia manoelina, pois como diz “Poesia não
é para compreender, mas para incorporar/ Entender é parede:
procure ser árvore”. Sabe-se que a compreensão é objeto da razão,
e a poesia é objeto da sugestão, resultado da reinvenção:
Poesia, s.f.
Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de
um
homem
Designa também a armação de objetos lúdicos com
emprego de palavras imagens cores sons etc. geralmente
feitos por criança pessoa esquisita loucos bêbados
( Barros, 1982: 35)
Para além da letra, há muitas formas de dizer a verdade
mas, em Manoel de Barros, parece que só existe uma: versificar.
Ou para usar, aqui, as palavras de Camões (1993:134): “Uma
verdade que nas coisas anda/ Que mora no visível e invisível”.
Longe das verdades sacramentadas, Manoel de Barros
leva a fantasia muito a sério, inventa mentiras verdadeiras. Vêse isso no Livro sobre nada, onde, para chegar às suas verdades
inventadas, parodia José Américo de Almeida: “Há muitas
maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”.
Na realidade, é um inventador, que cria para se tornar verdadeiro.
Para Ezra Pound ( 1990:10), em ABC da literatura,
inventores são: “Homens que descobriram um novo processo, ou
cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”.
No livro Memória da arte matogrossense, de Maria da
Glória de Sá- Rosa ( 1992: 45), Manoel de Barros mostra seu
processo inventivo :
143
O prazer de inventar vem da consciência do quanto é chata
a verdade. Só tem um lado, enquanto uma árvore dispõe de
todos os lados para a ser apreendida, é como invenção que
pode ser iluminada em todas as direções. Quando falo, não
garanto a verdade, apenas a verossimilhança, lembrando John
Ruskin, para quem as melhores verdades são as inventadas.
Pela invenção, Manoel de Barros atinge o poético pelo
incomum, e mostra-nos o desconhecido, que valoriza, pelo regresso,
o que há de mais primitivo pela associação de coisas distintas.
Sol, s.m.
Quem tira a roupa da manhã e acende o mar
Quem assanha as formigas e os touros
Diz-se que:
se a mulher espirar o seu corpo num ribeiro florescido de
Sol, sazona
Estar sol: o que a invenção de um verso contém
( Barros, 1982:38)
Como se vê, o fio condutor que perfaz o poema se fragmenta
a cada verso; o poeta inicia o primeiro verso, depois interrompe e
prossegue com outra imagem num contexto distinto totalmente
“sincopado” : “Quem tira a roupa da manhã e acende o mar/ Quem
assanha as formigas e os touros”. Vê-se, nesses dois versos, que os
mesmos são independentes entre si, sustentam-se sozinhos, como
se fossem uma miragem de uma imagem, um filme expresso em
palavras, uma reunião de fragmentos montados com todo cuidado
do mundo.
Manoel de Barros é o poeta da cosmovisão: “ Estar sol: o que
a invenção de um verso contém”. Explora os mistérios irracionais,
bota em prova a própria linguagem que impõe a nosso ver sua
própria lógica. São versos que bebem no ilogismo . Essa artimanha,
é certo, não deve ser confundida com a estética surrealista, em que
o subconsciente impõe-se à razão. Em verdade, o delírio de frases
144
soltas, em interconexão com o todo, ou seja, com o verso por inteiro,
é defendido por Manoel de Barros como ideal estético, o que não
se confunde com a concepção metafórica surrealista de elaborar o
verso.
Segundo Anna Regina Accioly, no jornal do Brasil de 14
dezembro 1995, o escritor João Antônio, ao se referir sobre a poesia
de Manoel de Barros, chegou certa vez a declarar: “Sua poesia tem a
força de um estampido em surdina. Carrega a alegria do choro.”
O que se observa em Manoel de Barros é um compromisso
com o jogo imagético imbricado às estruturas sonoras do verso:
“Seu canto é o próprio sol tocado na flauta”. A poesia manoelina
conserva uma liberdade expressiva sem perder o rigor no processo
de laboração da linguagem.
Esse enfoque surpreende o leitor da lírica atual, uma vez
que esse autor dá, à sua obra, uma característica bem pessoal,
que ultrapassa a ordem estrutural do poema, ao deixar de lado a
linearidade dos versos tradicionais. Com isso, amplia o universo
teórico do verso livre, na medida em que vai costurando sua lírica
com um tipo de linguagem inventiva: “Talvez um desvio de poeta na
voz”. Pois consegue livrar-se da linguagem descritiva, de aparência
simplista, e traz, à tona, uma linguagem de “barulhos impossíveis”,
repleta de trastes: “Para as crianças da estrada eu sou o homem do
saco./ Carrego latas furadas, pregos, papéis usados” ( Barros, 1996:
85).
Em o livro A poética do espaço, há uma concepção que
traduz, em síntese, o que os poetas conseguem fazer com as
palavras:
Os poetas nos fazem freqüentemente entrar no mundo
dos barulhos impossíveis, de uma impossibilidade tal que
bem podemos tachar de fantasia sem interesse. Sorrimos e
passamos. E, entretanto, muitas vezes, o poeta não tomou seu
poema como um jogo, pois existe uma certa ternura nessas
imagens.
(Bachelard, 1974:469) 145
O que observamos também é que, em Manoel de Barros,
a poesia de verso livre é recriada pelo contraste de jogos de
efeito fascinantes, estabelecendo diversas leituras, dando lugar a
mecanismos de compreensão que beiram no simples, mas que, em
verdade, alcançam imagens bastante inusitadas. Até por que a poética
desse autor representa o mundo em alto grau de fragmentação,
uma visão de mundo tomada indiretamente pela reflexão. Um
juízo que emite valores sobre o mundo. Mundo em que as formas
se reinventam, a cada instante, e tomam como significantes novos
significados. Mundo em que as imagens são dessas espécies raras
que segregam os frutos da poesia. Imagens com pertinência para
árvores, com simbologia à harmonia. Imagens que vão se alargando,
palavras a fora, raízes a dentro.
Há de se notar também que os recursos dessa visão imagética
sejam, na poesia, as figuras: sintáticas ( silepse, elipse, inversão,
anacoluto), semânticas ( sinédoque, metonímia, metáfora) e,
principalmente, sonoras( onomatopéias, aliteração, eco assonâncias),
redefinem a linguagem cotidiana em função da linguagem poética.
São versos que bebem no ilogismo . Essa artimanha, é
certo, não deve ser confundida com a estética surrealista, em que
o subconsciente impõe-se à razão. Em verdade, o delírio de frases
soltas, em interconexão com o todo, ou seja, com o verso por inteiro,
é defendido por Manoel de Barros como ideal estético, o que não
se confunde com a concepção metafórica surrealista de elaborar o
verso.
No desalinho do ilogismo, é no silêncio das coisas esquecidas
e sem importância nenhuma que a poesia manoelina tem pertinência
para andar de costas, ao contrário, às avessas, com o propósito
de exceder o limite do dizível. Por isso, se quisermos realmente
incorporar essa poesia, temos que nos dispersar da realidade, para
alçarmos vôo nessa poética de elementos inomináveis, de coisas
colocadas ao contrário: “O vento se harpava em minhas lapelas
desatadas”. Vê-se, no verso, que a palavra vento é quem realiza
a ação poética, desorientando, assim, o nosso olhar sobre as coisas
146
do velho mundo. Em verdade, o poeta se impõe, como tarefa, limpar da
linguagem a normalidade da expressão, pelo viés inventivo de fundar uma
poesia que confronte o mundo das coisas da natureza com o mundo da
própria linguagem.
Ao tomarmos, portanto, o “roteiro do luar com o mapa da
mina”, veremos que além da linguagem limpa de normalidade que
toma tudo e seu contrário por uma coisa, a poesia manoelina está
longe de ser entendida , porque, para isso, é preciso abrirmos as
porteiras dos sentidos, transformando sobretudo os olhos para uma
nova visão das coisas da vida e dos homens.
Em suma, colhe-se, na poesia manoelina, a pureza e a
intensidade das coisas diminutas, colhe-se a poesia como virtude
do inútil e o poeta como fazedor de inutensílio, colhe-se na água
da memória a experiência do ínfimo e da des-nomeação, colhe-se
o verbo gerador, a palavra inaugural, a partir do inominado e do
insignificante: “O som inaugural é tatibitate e vento.”
147
6 . PALAVRAS INACABADAS
6.1 - As árvores me terminam
Não preciso do fim para chegar.
Manoel de Barros
A poesia termina em cor, a cor floresce nas ramagens da
palavra que mudam de folhagem com o tempo. A poesia de Manoel
de Barros é uma árvore de cor inventada, brota frutos que não têm
valor. Talvez por isso que escrever sobre a poesia manoelina é um
“exercício de ser criança”, pois diz “falar a partir de ninguém,” no
entanto, quando escreve “faz comunhão com os bichos”, pensa
renovar o homem usando borboletas. Nesse exercício, que compõe a
vida a escrita, “ a palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo
para ser séria. ( Barros, 1996:71). O poeta vira o mundo de cabeça
para baixo, por certo, com uma visão diferente dos homens e das
coisas. Manoel de Barros reduz as coisas à cor da irrealidade, funde
o dessemelhante ao inverossímil, dá uma nova imagem à natureza
do ordinário. Utiliza o que pode e o que não pode, para sugerir
148
que o que resta de grandeza são as coisas pequenas. Estamos diante
de um poeta que cria o que não faz sentido só para mostrar que a
irrealidade faz parte de seu verdadeiro mundo. Manoel de Barros
gosta tanto do que é menor, que é nas coisas mínimas que encontra
o encanto de ver a vida além de seu itinerário.
A poesia manoelina não limita, muito menos esgota, à sua
maneira, o mundo. Pelo contrário, atiça nossa visão para a surpresa,
expande nossa imaginação para a novidade. É um poeta que dá
às costas à mesmice, dribla o comum e faz-nos perceber além do
óbvio: “Vimos até que os cantos podem ser ouvidos em forma de
asa”( Barros, 1991: 46).
E por se entende que o mais longe leva-nos à serena relação
do homem com os espaços humanos, é que se percebe o quanto
o poeta está atento às questões de seu tempo. No entanto, não se
deixa vencer pelos grandes acontecimentos, volta o olhar para os
pequenos objetos, para o ordinário. Nesse ponto, o musgo é uma
palavra úmida, lê-la pelo que é, à primeira vista, nada mais é que
uma simples coisa, um tecido aveludado, capaz de vestir uma rocha
inteira:
Se no meio da náusea a lesma gosma
no que sofro de musgo e cuja lasma
Se no vinco da folha a lesma escuma
Nas calçadas do poema a vaca empluma.
( Barros, 1985: 56)
Ao conjugar o verbo pela exceção da rima ( gosma x lasma/
escuma x empluma), Manoel de Barros procura descer o olhar para
as coisas do chão.
O que podemos constatar também é que a
paisagem passa a ser ela própria integrante de uma linguagem que
se refaz constantemente como parte das coisas tiradas do chão, que,
por sua vez, se elevam a cada livro de forma mais fragmentada.
Averiguamos também que há um salto grande entre o livro
Face imóvel ( 1942) e o livro Arranjos para assobio ( 1982), no que se
149
refere à construção do poema. Em Face imóvel, o material poético
retirado da seiva urbana se estrutura dentro do fio que perfaz
a construção do poema. Pode-se dizer que, nessa primeira fase,
Manoel de Barros é o poeta do poema e não do verso, pois as imagens
mesmo fragmentadas passam por um tipo de seqüenciamento que
prende os versos entre si à estrutura organizada do poema.
ENSEADA DE BOTAFOGO
O corpo quase que morava ali, equilibrado nas curvas
da enseada
Ao lado dos carros vermelhos que transportavam os
donos da vida para seus escritórios
Ao lado dos emigrantes subjugados ao infinito
E crianças reclinadas sobre as ondas azuis.
Tantas vezes o corpo sobre as curvas, tantas
Que ficou como certas casinhas tortas que jamais
podem ser evocadas fora da paisagem.
( Barros, 1990: 69)
Vê-se que os versos livres dão ao poema uma liberdade (entre
parêntese) equivalendo, em sua materialidade e em seu destino,
à experiência do homem urbano nivelado à condição de coisa,
constituindo, assim, um desenho do espaço urbano, quando dele
apresenta um itinerário: “O corpo quase que morava ali, equilibrado
nas curvas da enseada”.
No plano das figuras, com seus versos compassados, aproxima
realidades distintas pelo jogo inventivo de imagens, que voam para
ousadas combinações. No plano alto e complexo de integração das
palavras, dissemina, a nosso ver, no nível da linguagem, mundos
verbais que jamais podem ser evocados fora da paisagem.
Por outro lado, o ordenamento dos versos no livro Face
imóvel ainda não sofreu o processo de fragmentação que se nota
com tanta veemência nos livros posteriores a esse. Nota-se que os
150
versos estão alinhados em uma seqüência temporal-espacial ainda
bastante indefinida, e isso se observa não somente em Face Imóvel
(1942) mas também nos livros Poemas concebidos sem pecado (
1937), Poesia ( 1956), Compêndio para uso dos pássaros(1960) e
Gramática expositiva do chão (1966).
O que se observa no livro Arranjos para assobio ( 1982) é
que cada poema é uma colagem, uma reunião de fragmentos, assim
como cada verso extravasa os limites definidos pelo fio do poema,
e aparece-nos com tantos fragmentos que se revela, ao contrário,
como um jogo intricando entre a contextura imagética e a textura
sonora. Percebe-se que a intenção do autor é chocar o leitor, é leválo a fazer uma leitura do poema pelos fragmentos:
XV
...................................................
- E o poema é seus fragmentos?
- É muito complicado dar ossos à água .Passei anos
enganchado num pedaço de serrote na beira do rio
Coxim. Veio uma formiguinha de tamanho médio, me
Carregou. Eu ia aos troncos como mala de louco.
...................................................
( Barros, 1982: 30)
O poeta se embrenha no que há de mais elementar em toda
sua obra: o traço ilógico, compreendendo sobretudo textos curtos,
bem fragmentados, como se quisesse atingir sua máxima incoerência
de sentido: “É muito complicado dar ossos à água”. Em suas “tacadas”
com a linguagem, Manoel de Barros consegue monumentalizar as
coisas mais banais, das quais seu poema faz intensamente parte.
Ao proceder dessa maneira com as coisas mais simples e
quotidianas, faz de seu próprio mundinho, um mundão de imagens
que acolhe os seres e encolhe a linguagem para isso: “Passei anos
enganchado num pedaço de serrote na beira do rio”. Percebemos
a inquietadora estranheza de tais formulações, mas não é possível
151
reconhecer o encontro situável das imagens na seqüência tempoespacial.
Manoel de Barros usa de artifícios que bem nos remetem
à poética do autor de O partido das coisas, Francis Ponge, poeta
francês que assistiu a importantes movimentos poéticos na França
do século XX. Francis Ponge, também, revela em sua poética
a importância dos pequenos objetos da natureza como valor e
significado. Na poesia de Francis Ponge, o musgo, por exemplo,
readquire uma estranheza primitiva que extravasa os limites do
dizível ao exceder, na linguagem, uma tensão mimética entre a coisa
e o poema. Em suas mais belas imagens, Francis Ponge nos leva
a interrogar a representação das coisas na linguagem, bem como a
representação da linguagem nas coisas mais banais e corriqueiras.
Trilhando caminhos bem pessoais, tanto Francis Ponge
quanto Manoel de Barros falam do menor, para que se descubra,
em plenitude, a recôndita beleza que existe por trás das instâncias
dos objetos mais simples. No livro O partido das coisas ( ed. Bras.
2000:61), Francis Ponge revela o partido de sua poesia:
O Engradado
A meio caminho de engraçado e degradado a língua
portuguesa
possui engradado, simples caixote de ripas espaçadas
fadado ao
transporte dessas frutas que, com a mínima sufocação
adquirem
fatalmente uma moléstia.
Armado de maneira que no termo de seu uso possa ser
quebrado
sem esforço, não serve duas vezes. Desse modo, dura menos
ainda que os gêneros fundentes ou nebulosos que encerra.
Assim, em todas as esquinas das ruas que levam aos
mercados
reluz com o brilho sem vaidade do pinho branco. Novinho
152
em folha
ainda e um tanto aturdido por se encontrar numa pose
desajeitada
Na via pública jogado fora sem retorno, esse objeto é, em
suma, dos mais simpáticos - sobre a sorte do qual todavia,
convém não repisar muito.
O que nos ensina Francis Ponge é que a palavra deve falar
desses pequenos objetos, para que um valor merecido advenha aos
mesmos. Talvez por isso que Francis Ponge exponha, em suas
descrições, não o mistério das coisas inatingíveis, mas a linguagem
das coisas nas coisas.
O poeta francês se esmera em uma procura assídua pela
disciplina em trabalhar a síntese em seus versos tendenciosos
para sua matéria-prima, que são, ao mesmo tempo, as coisas e o
texto. Ou como diz Francis Ponge (2000:97): “As coisas simples da
natureza não se abordam sem mesuras necessárias, sem que sejam
preenchidas formas e formalidades, nem as coisas mais espessas,
sem sofrer algum desgaste”.
Como se invencionasse alcançar a descrição das coisas pela
simplicidade e pela objetividade das imagens, Francis Ponge se
aproxima de uma linguagem-síntese que , distante ainda de “sofrer
algum desgaste”, chega a apanhar, de forma despojada, as imagens
mais simples da natureza .
O que se observa, pois, é que , tanto em Francis Ponge
quanto em Manoel de Barros, a poesia identifica-se com as coisas
despidas de idéias prontas. Ambos buscam descrever as coisas pelo
efeito de uma linguagem entranhada de coisas ordinárias.
Em Retrato do artista quando coisa, Manoel de Barros (
1998: 41) chega a fazer uma referência ao poema “O engradado” de
Francis Ponge:
11
.................................................................
153
Não consegui ainda a solidão de um caixote tipo aquele engradado de madeira que o poeta
Francis Ponge faz dele um objeto de poesia.
Não sou sequer uma tapera, senhor.
Não sou um traste que se preze.
Eu não sou digno de receber no meu corpo os
orvalhos da manhã.
( Barros,1998: 41)
Nota-se que quando Manoel de Barros faz referência ao
poeta Francis Ponge: “Faz dele um objeto de poesia”, para estudar
o funcionamento da linguagem, que, por sua vez, leva o mesmo a
entender o próprio funcionamento da humanidade a partir daquilo
que a cerca. Observamos que tanto em Manoel de Barros quanto
em Francis Ponge, a linguagem se distribui, entre fragmentos,
repletas de espaços e silêncios, para mostrar a forma de que é feita
seus abismos verbais. Esses dois autores se predispõem a uma
desobediência à norma gramatical, originando-se aí todas aquelas
tentativas vãs de ajuste e à realidade verbal, a serviço das quais se
põem as alquimias do verbo humano em total desalinho com o que
se faz em volta.
A suprema sabedoria de Manoel de Barros é que esse segrega por
si , em sua medida, através das coisas simples, o recôndito universo
das coisas do pântano, onde cada palavra toca sentidos impossíveis
e possíveis, bem próximos do inesgotável poder de surpresa que nos
apresenta, despindo-se das dimensões lineares do verso.
Cumpre finalmente ressaltar, ou reforçar, que Manoel de Barros,
ao estabelecer uma relação com o universo poético, irmanado à
inutilidade, aponta com isso para a constante mutação das coisas, nas
escolhas de materiais simples, que imprimem um surto inaugural ,
em sua poesia, a partir do inominado e do insignificante. “Sua língua
era um depósito de sombras retorcidas com versos cobertos de hera
e sarjeta que abriam asas sobre nós” (Barros,1982:15).
Entre sombras retorcidas e sarjeta, chegamos ao final desta
154
travessia, buscando acima de tudo desler o mundo real, buscando
reler as palavras manoelinas que se abastecem do abandono das
coisas ordinárias. E como de tudo fica um pouco: (...) “haveria de
ficar para nós um sentimento de coisa esquecida na terra - como
um lápis numa península”( Barros,1996:17). Resta-nos essa pequena
península que, por alguns instantes, vale a pena incorporar:
“Entender é parede. Procure ser árvore” .
155
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