- Programa de Pós Graduação em História
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REJANE PEREIRA SANTI A AÇÃO DA CODEMATO NA COLONIZAÇÃO OFICIAL DE MATO GROSSO: Revisitando o Projeto Juina (1978 – 1997) CUIABÁ – MT 2016 REJANE PEREIRA SANTI A AÇÃO DA CODEMATO NA COLONIZAÇÃO OFICIAL DE MATO GROSSO: Revisitando o Projeto Juina (1978 – 1997) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso na Àrea de Concentração “História, Territórios e Fronteiras.”, sob a orientação do Prof. Dr. Vitale Joanoni Neto. Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação de Mestrado examinado pela Comissão Julgadora em 30/11/2015. BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz (UFMT – Presidente) Prof. Dr. Carlos Eduardo Souza de Carvalho (UFMT – Examinador Interno) Prof. Ms. Edison Antonio de Souza (UNEMAT – Examinador Externo) Prof. Dr. José Manuel Carvalho Marta (UFMT – Examinador Suplente) CUIABÁ – MT 2016 Resumo A CODEMAT – Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso S/A, criada pelo governo do Estado de Mato Grosso em 1968 para promover o desenvolvimento econômico se colocou no cenário político mato-grossense como colonizadora oficial do Estado a partir do final dos anos 1970. Na época o país vivia sob a égide do regime de um Estado autoritário da Ditadura Militar. O “desenvolvimento econômico” foi entendido pelo Estado e suas autarquias, e mais ainda pela CODEMAT como competência para alienar e comercializar as terras devolutas pertencentes ao Estado de MT nos limites da fronteira amazônica mato-grossense, o que incluía o Noroeste de MT. Estas terras passaram em sua maioria à tutela da União e do Conselho de Segurança Nacional. Foi dessa forma que se implantou em MT, seguindo a idealização de segurança e integração nacional; os pólos de desenvolvimento como o POLOAMAZONIA, POLOCENTRO, POLONOROESTE que serviam ao incentivo fiscal para o desenvolvimento dos projetos voltados não para o assentamento do trabalhador do campo ou mesmo do pequeno proprietário; mas antes, ao interesse das empresas agropecuárias e à exploração de recursos minerais. As ações fundiárias que competiam à União foram desenvolvidas pelo INCRA e aquelas de responsabilidade do governo estadual, entregues à CODEMAT para o desenvolvimento do Projeto Juina. Para que fosse endossado pelo Estado e contasse com os recursos/subsídios advindos dos programas federais voltados para a colonização na Amazônia, a CODEMAT elaborou e apresentou ao governo do estado de MT o Projeto Estadual de Colonização Juina - Volume I. Sendo as ações da CODEMAT nosso objeto de investigação, esta se faz a partir da problematização do Programa Estadual de Colonização; aqui entendida como o ato de “historicizar sobre”. Isto é, trata-se do trabalho de transformar o problema em análise historiográfica partindo da investigação das ações da CODEMAT enquanto colonizadora e até que ponto esse documento cumpriu suas propostas originaisde assentamento ou não passou de uma propaganda em si das ações da CODEMAT sobre o projeto de colonização que se realmente pretendia, o Projeto Juina. Palavras-chave: CODEMAT, Projeto Juina, Colonização, Estado, Documento. Abstract The CODEMAT – Mato Grosso State Development Company S/A, created by the Mato Grosso state government in 1968 to promote economic development, is placed in Mato Grosso political scene as the official colonial state company in the late 1970s. At the time the country was under the aegis of an authoritarian state regime: a military dictatorship. Then, the "economic development" was understood by the State and its municipalities, and even more so by CODEMAT, as the power to sell and market the vacant lands owned by the MT state, within the limits of Mato Grosso Amazon frontier, which included the Northwest of Mato Grosso. These lands have gone mostly to the protection of the Union and the National Security Council. That's how it was implemented in MT, following the regime’s idealization of security and national integration; development poles such as POLOAMAZONIA, POLOCENTRO, POLONOROESTE served as tax incentives not for the development of projects related to the rural workers’ settlement, let alone to the small land owners; but rather to the interests of big agricultural enterprises and exploitation of mineral resources. The agrarian actions due to the Union were developed by INCRA, and those of the MT state government's responsibility, delivered to CODEMAT for the development of Juina Project. In order to be endorsed by the State and count on the resources/subsidies arising from federal programs for colonization in the Amazon, CODEMAT prepared and presented to the MT state government the Juina State Colonization Project Volume I. As the actions of CODEMAT are our object of research, it is done by questioning the State Program of Colonization; here understood as the act of "historicizing on". That means, it is the job of turning the matter into historiographical analysis, starting from the investigation of CODEMAT actions as a colonizing institution, and how much of the State Program of Colonization original purposes were fulfilled, or if the Program was merely a propaganda of CODEMAT actions for the actual colonization project intended, the Juina Project. Keywords: CODEMAT, Juina Project, Colonization, State Document. Dedicatória Para Eduardo Valentin. Por sua alegria de viver e pureza de espírito que me inspira, fascina e fortalece. Agradecimentos Todo o esforço dedicado à realização deste trabalho só foi possível graças ao apoio que recebi de algumas pessoas em vários aspectos. Especialmente no sentido moral quando me incentivaram a não desistir e por acreditarem no meu potencial. Assim, muito obrigada às amigas que são como irmãs para mim: à Simone Berte por sua serenidade e suavidade nas palavras cuja presença sempre me acalma a alma e por sua ajuda ímpar ao dedicar-se à revisão textual da dissertação. À Ana Áurea Cavalcante com seu humor que me anima. Às amigas Lorena Torres, Diana Martinez, Sara Evelin e Luciana Gama, amizades que fiz durante o mestrado e que se tornaram pessoas tão próximas do meu coração. A essas moças minha gratidão pelos revigorantes cafés e os chás da tarde ou da manhã que recarregavam minhas baterias de ânimo e esperança de que ia dar tudo certo. Às companheiras de profissão e trabalho, Sidneia Rosana, Maria Lucia Coradine e Ana Elizabeth por me incentivarem a ir em frente. Agradeço às amigas Tatiane Melo Mariana Thomas por nossas conversas tão reconfortantes, por suas palavras e os gestos de incentivo. À essas mulheres lindas que digo serem todas da “galáxia de Esparta”, meu muito obrigada. Obrigada especial ao José Antonio, querido Zé com seu jeito todo especial, com sua ternura em gestos e palavras de incentivo, foi a pessoa com quem mais pude contar nos últimos meses. Sua atenção e seu carinho me deram impulso no sentido físico ajudando a cuidar do nosso filho enquanto eu me dedicava à dissertação e intelectual me ajudando nas articulações das ideias. Obrigada também à sua mãe, Dona Aparecida pela paciência, pela compreensão e por sua fé que contagia de forma muito positiva. Obrigada à minha mãe, a doce Dona Susanete pelas palavras de incentivo, por seus gestos de amor sem limites, seu carinho, seu aconchego, e principalmente, por suas orações tão fervorosas que me dão aquela sensação de segurança tão necessária nos momentos mais difíceis da vida. Agradeço ao Eduardo Valentin, meu filho amado, por sua alegria contagiante que me entusiasma e impulsiona a não fraquejar diante das dificuldades e me faz querer ser uma pessoa melhor nesse mundo. E especialmente, muito obrigada ao Professor Vitale Joanoni Neto, meu orientador, por confiar e acreditar que eu daria conta de realizar esse trabalho, por suas orientações sempre tão pacientes e esclarecedoras. Muito Obrigada. SUMÁRIO LISTA DE SIGLAS..................................................................................................... 01 INTRODUÇÃO............................................................................................................ 02 CAPÍTULO 1 - BRASIL E MATO GROSSO NA CONTRAMÃO DA REFORMA AGRÁRIA: A POLÍTICA DE COLONIZAÇÃO DA DITADURA....................... 10 1.1 Contexto político e econômico brasileiro nos anos 1960 e 1970............................. 10 1.2 Momentos decisivos, prelúdio do golpe................................................................... 14 1.3 O direcionamento do regime à questão agrária: a “Contra-reforma agrária”........... 17 1.4 A Doutrina de Segurança Nacional no contexto da Colonização............................. 21 1.5 O Estado de Mato Grosso durante o regime miliar.................................................. 26 1.5.1 Mato Grosso no contexto da Contrarreforma Agrária.......................................... 31 CAPÍTULO 2 – A COLONIZAÇÃO COMO PRÁTICA DO ESTADO AMPIIADO NAS AÇÕES DA CODEMAT ............................................................ 38 2.1 A institucionalização política da CODEMAT......................................................... 38 2.2 CODEMAT e o Projeto Juina.................................................................................. 44 2.3 O sentido político e a concepção de estado ampliado na avaliação das ações da CODEMAT.................................................................................................................... 51 2.4 O conceito de fronteira aplicado ao Projeto Juina.................................................. 56 CAPÍTULO 3 – O PROGRAMA ESTADUAL DE COLONIZAÇÃO PROJETO JUINA VOL. I: UMA CRÍTICA SOBRE O DOCUMENTO DA CODEMAT...... 63 3.1 O documento não é inócuo...................................................................................... 66 3.1.1 Uma montagem, o meio e o destino..................................................................... 67 3.2 O Documento: desmitificando-lhe seu significado aparente................................... 69 3.3 O Documento da legalidade à prática: as ações da CODEMAT como um desservir aos colonos..................................................................................................................... 71 3.4 Sepultar o Documento: fazer falar quem não se esperava ouvir a voz.................... 78 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 84 REFERÊNCIAS........................................................................................................... 86 ANEXOS ..................................................................................................................... 92 9 LISTA DE SIGLAS ADA – Agência de Desenvolvimento da Amazônia BASA – Banco da Amazônia CGT – Comando Geral dos Trabalhadores CIA – Central Intelligence Agency / Agência Central de Inteligência CODEMAT – Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso DNOCS – Departamento Nacional de Obras contra as Secas DSN – Doutrina de Segurança Nacional EMATER – Empresa Mato-grossense de Assistência Técnica Rural ESG – Escola Superior de Guerra FMP – Frente de Mobilização Popular IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária INCRA – Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária PIN – Plano de Integração Nacional PND – Plano Nacional de Desenvolvimento POLOAMAZONIA – Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste UNE – União Nacional de Estudantes. INTRODUÇÃO A colonização dirigida na fronteira amazônica mato-grossense nos anos 1970 e 1980 representa uma situação diferenciada dos planos de ocupação da Amazônia Legal em períodos anteriores. Densamente blindada de dispositivos e discursos que desarticularam a politização do trabalhador rural, essa política de ocupação das terras devolutas agravou-se pelo fato de estarmos nos referindo ao período de maior vigilância e repressão militar pelo qual o país passou desde o Estado Novo. Foram os anos do governo autoritário-militar instaurado com o golpe de 1964. Foi nesse cenário que o regime militar apoiando-se na Doutrina de Segurança Nacional colocou em prática suas ações de desenvolvimento e progresso, regados à repressão armada e censura a qualquer possibilidade de revolta contra a ordem estabelecida. Assim, Em síntese, é possível delinear a tendência que a política de colonização do regime autoritário-militar imprimiu ao processo de colonização: em primeiro lugar, definiu-se uma nova região de expansão agrícola, a Amazônia, onde foi implantada a maioria dos projetos de colonização. Segundo, a responsabilidade dos projetos coube tanto a órgãos públicos como a órgãos privados: empresas de colonização ou cooperativas de produtores já organizadas há bastante tempo no Centro-Sul do país. Em ambas as alternativas, o espaço e os homens foram rigorosamente controlados. Finalmente no que se refere à clientela empregada dos projetos, foram empregados métodos de seleção social, dando-se preferência a um tipo especifico de agricultor: o trabalhador rural minifundiário da região Sul do país. Em última análise, a colonização foi imposta para retirar do campo dos possíveis a execução de uma premente reforma agrária, reforma que, não obstante, continua na ordem das prioridades na questão agrária brasileira. (TAVARES DOS SANTOS, 1993). “Oficial” foi o termo usado para designar a colonização organizada pelo governo do estado de Mato Grosso através das ações da CODEMAT S/A – Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso. O termo por vezes foi usado para diferenciar a atuação direta do governo do Estado de Mato Grosso via CODEMAT das dos projetos de ocupação dirigida a partir da implementação de projetos organizados pelas empresas de colonização particulares. Mesmo que estas, assim como os projetos da CODEMAT, tenham contado com subsídios do governo federal através das agências criadas para o desenvolvimento econômico por regiões no Brasil, como a SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste, por exemplo. Neste estudo apresentamos as ações da CODEMAT voltadas ao projeto de colonização desenvolvido na região Noroeste do estado de MT entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, intitulado Projeto Juina. Esse projeto de colonização deu origem ao município mato-grossense de Juína. Note que na escrita do nome do projeto a palavra “Juina” está grafada sem o acento agudo. Isso tem a ver com a forma como a CODEMAT apresentou o projeto descrito no Programa Estadual de Colonização de 1978. Quando de sua emancipação, o município de Juína foi registrado com o acento gráfico. Desta forma, ao longo do desenvolvimento desse trabalho, sempre que nos referirmos ao projeto de colonização da CODEMAT, o respeitando da forma como o documento referente a esse projeto o apresenta. Quando nos relacionarmos à área de execução do projeto e à cidade, vamos usar o termo “Juína”. Com a extinção da CODEMAT pelo governo do estado de MT em fevereiro de 19981, boa parte da documentação ficou sem espaço disponível para ser armazenada. Como não foi feita uma catalogação precisa para criação de um acervo organizado, um número incontável de documentos foi depositado em pastas e guardados no galpão reservado para armazenamento de materiais variados cedido pela METAMAT2. Entre esses materiais variados encontram-se documentos referentes às atividades desenvolvidas pela CODEMAT ao longo de sua existência desde o final da década de 1960. Entre esses documentos encontramos aquele sobre o qual segmentamos a construção do texto de análise e crítica sobre a ação estruturada em memória/recordação por aquela instituição. Trata-se do documento intitulado Programa Estadual de Colonização – Projeto Juina Volume I. Esta dissertação apresenta como objeto de estudo a ação da CODEMAT na colonização oficial em MT partindo da análise documental do Programa Estadual de Colonização – Projeto Juina Volume I, no qual encontram-se as prospecções para o plano de implantação e execução do Projeto Juina para a colonização dirigida pelo governo de MT na região Noroeste do estado no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Trata-se do Volume I, aproximadamente 100 páginas contento a apresentação detalhada de como seria organizado e executado o projeto de colonização dirigido pela CODEMAT. 1 A CODEMAT foi extinta no governo de Dante Martins de Oliveira em 20 de fevereiro de 1998 de acordo com o DECRETO Nº 2.123 publicado no Diário Oficial do Estado de MT em 03 de Março desse mesmo ano. Disponível em:https://www.iomat.mt.gov.br/codemat - Acesso em 03/08/2015. 2 A METAMAT é a Companhia Mato-grossense de Mineração com sede em Cuiabá. Ainda de acordo com o Decreto 2.123 citado acima, as responsabilidades e/ou os projetos ainda não executados pela CODEMAT foram incorporados pela METAMAT. A partir da problematização das propostas apresentadas nesse documento pretendemos entender quais foram seus efeitos distintos, os quais direcionaram as ações da CODEMAT a partir do discurso construído, que ao legitimar o Projeto Juina, estruturou a memória oficial das ações da colonizadora. Nosso esforço encontra-se justamente em elaborar uma análise visando a construção de uma crítica historiográfica à forma como tal documento foi construído. Então, eis o problema que se pretende historicizado ao final dessa dissertação: quais foram os efeitos desse documento, o Programa Estadual de Colonização – Projeto Juina Volume I, apresentado pela CODEMAT ao governo do estado como parte das ações dessa Empresa no desenvolvimento de Mato Grosso através do Projeto Juina? Como coloca Mary Douglas (1998), “não basta ficar repetindo que a memória é socialmente estruturada. Ter chegado tão longe é um convite para se dar um passo adiante. Em seguida, é preciso descobrir quais qualidades da vida institucional exercem efeitos distintos sobre a recordação”. Assim, esse trabalho pretende aguçar o debate a respeito da forma como as instituições responsáveis pela colonização nas áreas da fronteira amazônica mato-grossense, destinadas pelo Estado para esse propósito, representavam em âmbito regional a política desenvolvimentista/integracionista do regime autoritário-militar. Buscamos na análise documental os indícios que possam “revelar com criticidade sua historicidade com a clareza de que “essas memórias, como outros documentos, não nasceram fontes. São partes de um conjunto deliberado de escolhas que nos possibilitarão um entendimento do presente”. (CASTRO GOMES, 2012, apud JOANONI NETO, 2014). Guimarães Neto (2007), afirmou que na busca incessante de integrar os diferentes espaços e culturas regionais no interior de uma hegemonia estatal, o discurso integracionista, desenvolvido ao longo das décadas de 60-70 pelos governos militares, encarnava o desejo de uma produção capitalista contemporânea assentada no movimento de ocupação e expansão das frentes pioneiras de colonização do CentroOeste e da Amazônia no qual Mato Grosso se inseria. A postura de organizar planos de política desenvolvimentista alinhada à lógica de exploração econômica dos espaços naturais, seguindo o modelo norte-americano praticado nos Estados Unidos ainda no século XIX com as campanhas de migração dirigida conhecidas popularmente como Marcha para Oeste, foram adotadas no Brasil desde o governo Vargas a partir dos anos 1940. Com a justificativa de solucionar a questão da distribuição de terras, o governo brasileiro via na Marcha para Oeste um modelo de estratégia governamental que resolveria os problemas relacionados às questões agrárias. A política desenvolvimentista de Vargas era evidenciada pela prática da colonização dirigida à fronteira amazônica. Em 1941 foram criadas as Colônias Agrícolas Nacionais. Elas tinham pretensão de orientar as migrações no interior do Brasil e receber os excedentes populacionais mediante a distribuição gratuita das terras. Além disso, pretendiam resolver o problema dos excedentes de mão de obra no Nordeste e no Sudeste do Brasil. Foi o caso, por exemplo, da formação da Colônia Agrícola de Dourados no Mato Grosso do Sul. Era a Marcha para Oeste aos moldes do governo Vargas (LEITE, C.R., 1970). O plano do governo Vargas não foi suficiente para conter os levantes de luta camponesa pelo acesso à terra. Exemplo disso foram as Ligas Camponesas3 em 1955 em Pernambuco; a Revolta Capanema em 1957 no Paraná, e o I Congresso dos Trabalhadores Agrícolas do Paraná em 1959. No início dos anos 1960 o movimento das Ligas Camponesas se expandiu por dez estados. Uma forma de identificar uma categoria que lutava contra um adversário comum – os abusos dos proprietários de terras – reivindicando, principalmente, a distribuição de terras e a extensão das leis trabalhistas ao setor rural. O plano varguista da Marcha para Oeste foi retomado durante a política de Integração Nacional e a Doutrina de Segurança Nacional do regime de Ditadura Militar através dos projetos de colonização dirigida pelo governo militar que se estabeleceu no Brasil a partir do golpe de 1964. O plano de distribuição gratuita das terras ficou para trás. O novo governo passou a incentivar a colonização através da compra e venda de lotes sob a direção das empresas colonizadoras particulares e raramente feita por agencias concessionárias como foi o caso da CODEMAT. No entendimento das camadas médias urbanas e da burguesia rural, as Reformas de Base propostas pelo governo João Goulart representavam uma ameaça à ordem O termo “camponês” foi utilizado para designar as Ligas Camponesas devido a um fator de auto identificação e de unidade originado da organização das SAPPP – Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, cujo motivo inicial de formação estava na unidade da comunidade de trabalhadores rurais do engenho Galileia, na cidade de Vitória de Santo Antão, no estado de Pernambuco nos anos 1950. De início a sociedade dos trabalhadores objetivava ajuda mútua entre as partes (os associados) a fim de não passarem por dificuldades materiais nos momentos mais difíceis da vida, como por exemplo, em situações de perda de um ente. Ganhando respaldo entre os trabalhadores descapitalizados, a organização ganhou fôlego e transformou-se nas Ligas camponesas. (MONTENEGRO, 2011). 3 estabelecida. Prato cheio para a justificativa do golpe que tomou o pé da situação como uma questão de segurança nacional. Distribuição de terras era “coisa de comunista”. Justamente o que contradizia o alinhamento do Brasil ao modelo norte-americano capitalista no contexto da Guerra Fria. Se até então, a ideia era ocupar os espaços menos povoados da fronteira amazônica como solução para os problemas no campo, o governo militar ampliou esse discurso e justificou tal estratégia como forma de integrar a Amazônia no cenário político nacional. Não era mais levar o povoamento à Amazônia, era colocar a Amazônia no contexto político econômico nacional e, assim, assegurar o controle de sua ocupação de forma disciplinada. Certamente, não seria a Reforma Agrária a disciplina da Ditadura Militar para ocupação desses espaços. A política de Colonização proposta ainda por Vargas, fora retomada. O Estatuto da Terra foi o instrumento de regulamentação das normas recaídas sobre a natureza da política de Colonização do governo militar. Segundo o Decreto número 59.428 de outubro de 1966: Colonização é toda atividade oficial ou privada destinada a dar acesso à propriedade de terra e a promover seu aproveitamento econômico, mediante exercício de atividades agrícolas, pecuárias e agroindustrial, através da divisão em lotes ou parcelas, dimensionados de acordo com as regiões definidas na regulamentação do Estatuto da Terra, ou através das cooperativas de produção nela previstas4. Para colocar essa regulamentação em prática, o Estado, sob o governo do presidente Castelo Branco, passou a estabelecer e subsidiar algumas instituições e estratégias. Ainda em 1966, no governo do presidente Castelo Branco foi criado o BASA – Banco da Amazônia, a SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia e estabelecida qual seria a área da Amazônia Legal Brasileira5. Em 1967 foi criada a SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste. Nesse sentido, foi criado um programa de financiamento aos projetos voltados para a 4 Este fragmento encontra-se em parte no artigo 4 do Estatuto da Terra e parte aparece como vetado. A Lei N.º1.806 de 1953, a princípio, criava a SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, e anexava ao seu território os Estados do Maranhão, Goiás e Mato Grosso. Assim passando a região a ser chamada de “Amazônia Legal”, não por características morfogeológicas ou de vegetação, mas apenas, para facilitar o planejamento econômico na região e sua integração ao restante do país. Em 1966, porém, foi aprovada uma nova lei, a N.º 5.173 que extinguiu a SPVEA e criou a SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia que foi extinta em 2001 após diversas denúncias e problemas envolvendo sua administração. Em substituição à SUDAM foi criada a Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA) no mesmo ano. E, por fim, em janeiro de 2008, o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva recriou a SUDAM extinguindo a ADA. Fonte: http://www.infoescola.com/ecologia/amazonia-legal/ Acesso em 25/03/2015. 5 colonização a partir de 1970; o PIN – Plano de Integração Nacional teria a finalidade de financiar as obras de infraestrutura nas regiões compreendidas pela SUDAM e pela SUDENE, esta criada ainda no governo Kubitschek6. O PIN – Plano de Integração Nacional, criado pelo Decreto Lei 7 Nº 1.106 de 16 de junho de 1970, destacava a intencionalidade do governo da Ditadura Militar em implementar projetos de colonização e de reforma agrária, paralelos à execução das obras de abertura das Rodovias Federais Cuiabá-Santarém (BR 163) e a Transamazônica. (...) O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 55, item II, da Constituição e considerando a urgência e o relevante interêsse público de promover a maior integração à economia nacional das regiões compreendidas nas áreas de atuação da SUDENE e da SUDAM, DECRETA: (...) Parágrafo único. Os recursos do Programa de Integração Nacional serão creditados, como receita da União, em conta especial no Banco do Brasil S.A. Art 2º A primeira etapa do Programa de Integração Nacional será constituída pela construção imediata das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém. § 1º Será reservada, para colonização e reforma agrária, faixa de terra de até dez quilômetros à esquerda e à direita das novas rodovias para, com os recursos do Programa de Integração Nacional, se executar a ocupação da terra e adequada e produtiva exploração econômica.8 Com a ocupação econômica nas áreas de fronteira amazônica através da colonização dirigida, a população nativa (indígenas, posseiros) acabou por sofrer as consequências da desterritorialização. Mas não somente a população nativa, também 6 A SUDENE - A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, criada pela Lei no 3.692, de 15 de dezembro de 1959, foi uma forma de intervenção do Estado no Nordeste, com o objetivo de promover e coordenar o desenvolvimento da região. (...) Como causa imediata da criação do órgão, pode-se citar uma nova seca, a de 1958, que aumentou o desemprego rural e o êxodo da população. Igualmente relevante foi uma série de denúncias que revelaram os escândalos da "indústria das secas": corrupção na administração da ajuda dada pelo governo federal através das frentes de trabalho, existência de trabalhadores fantasmas, construção de açudes nas fazendas dos "coronéis" etc. Ou seja, denunciava-se que o latifúndio e seus coronéis – a oligarquia agrária nordestina – tinham capturado o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), criado em 1945, da mesma forma como anteriormente tinham dominado a Inspetoria de Obras Contra as Secas, de 1909. Fonte:http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Economia/SUDENE – Acesso em 25/03/2015. 7 As leis impostas diretamente pelo Poder Executivo durante a Ditadura Militar instaurada no Brasil de 1964 a 1985 eram chamadas de Decreto-Lei. Eram ordens emitidas pelos presidentes militares sem a participação do legislativo. Com o fim da Ditadura Militar e Constituição de 1988 essas ações verticalizadas emanadas do Poder Executivo não são mais permitidas. 8 Fonte:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1106.htm - Acesso em 25/03/2015 colonos sulistas e nordestinos que incentivados pela propaganda ou vendiam a preços muito baixos suas propriedades em seus locais de origem, ou, acreditando num futuro melhor nas novas frentes de trabalho que se estabeleciam na Amazônia Legal, deixavam sua terra natal e partiam rumo ao Norte ou ao Centro Oeste do país. É desse período o remanejamento/transferência de várias populações indígenas que viviam em Mato Grosso em terras ancestrais para o Parque Indígena do Xingu (antigo Parque Nacional Indígena do Xingu). O termo “reocupação” é a forma adequada de levar em consideração a presença de sociedades indígenas existente nessas terras desde tempos imemoriáveis e de posseiros desde as primeiras ondas migratórias, a considerar o período do ciclo econômico da borracha no início do século XX. Com a abertura da Rodovia Cuiabá-Santarém o estado de Mato Grosso, tendo parte de seu território integrado à área concebida como Amazônia Legal, passa a compor o palco da política de ocupação efetiva (leia-se dirigida pelo Estado) através dos projetos de colonização pública ou particular organizados por um grande número de empresas colonizadoras subsidiadas pelo Estado e regulamentadas pelas autarquias citadas acima, especialmente pelo INCRA. A fronteira amazônica mato-grossense, território ancestral das populações indígenas, terra de trabalho dos posseiros remanescentes das frentes de trabalho oriundas das campanhas da Marcha para Oeste de Vargas, transformou-se nos anos 1970 e 1980, segundo Marins (1997) no palco de implementação da política de Segurança Nacional da Ditadura Militar que combatia uma suposta ameaça de revolução agrária de orientação comunista que estaria em curso sob a liderança camponesa.9 A política integracionista desse período difundia-se através da ocupação ordenada desses espaços territoriais via projetos de colonização dirigida na fronteira Norte e Noroeste de Mato Grosso. A metodologia aplicada para a elaboração desse estudo foi a pesquisa documental no acerco da extinta CODEMAT, onde localizamos o documento Programa Estadual de Colonização - Projeto Juina I, que, de início, foi a fonte primária sobre a qual nos baseamos para entendermos o como o Estado organizou ou pelo menos institucionalizou o plano de concretizar um projeto de colonização dirigida no contexto 9 Martins está falando de como o governo da Ditadura tratava a existência das Ligas Camponesas e a ocupação da fronteira amazônica como uma questão de Segurança Nacional. No Capítulo 1 desse estudo levantaremos um debate acerca da Doutrina de Segurança Nacional implementada pelo regime estabelecido com o golpe de 1964 no Brasil. descrito. A partir de sua análise e interpretação foi possível depreendermos a crítica historiográfica desse documento. No primeiro capítulo vamos situar a CODEMAT como empresa de colonização oficial que representou em âmbito regional, assim como as muitas outras empresas de colonização particular que se instalaram com seus projetos de colonização em MT, o reflexo das estratégias justificadas pelo Estado militar para assegurar o plano de manutenção da doutrina de Segurança Nacional através de uma política de reocupação da Amazônia Legal a partir da década de 1970. No segundo capítulo será situado o objeto da pesquisa relacionando-o ao embasamento teórico à luz da História Política procurando relativizar o discurso apresentado no Programa Estadual de Colonização - Projeto Juina à sua “latência institucional” (MARY DOUGLAS, 1998) aplicada pela CODEMAT que ao praticá-la endossava e era endossada pelo contexto político em que se encontrava o país naquele momento. A história de fato não vive fora do tempo em que é escrita, ainda mais quando se trata da história política: suas variações são resultado tanto das mudanças que afetam o político como das que dizem respeito ao olhar que o historiador dirige ao político. Realidade e percepção interferem. (KOSELLECK, 2006). No terceiro capítulo pretendemos a problematização e/ou o gesto de historicizar sobre o nosso objeto de pesquisa com o esforço da construção de uma crítica historiográfica sobre o Programa Estadual de Colonização - Projeto Juina e com isso transformá-lo em um problema historicizado. Daí as indagações: de que forma o documento produzido pela CODEMAT para institucionalizar o Projeto Juina de colonização oficial em Mato Grosso estruturou-se ou não numa memória/recordação? E como a Operação Historiográfica de Certeau (2003) se relaciona à investigação dos efeitos daquilo que vem a ser nocivo para a memória construída a partir dos discursos estabelecidos nesse documento? A discussão levantada nesse capítulo se faz na perspectiva teórica dos estudos de historiografia sobre Documento e História em Jacques Le Goff (2003), “Documento/Monumento” da obra História e Memória e à luz do que Michel de Certeau (2008) levanta em “A operação historiográfica” na obra A Escrita da História. CAPÍTULO 1 – BRASIL E MATO GROSSO NA CONTRAMÃO DA REFORMA AGRÁRIA: A POLÍTICA DE COLONIZAÇÃO DA DITADURA 1.1 Contexto político e econômico brasileiro nos anos 1960 e 1970 O cenário aqui apresentado foi o que levou o governo estadual em Mato Grosso a institucionalizar sua política de colonização nas terras devolutas pertencentes ao Estado situadas na fronteira amazônica mato-grossense e dessa forma consolidar em âmbito regional os mesmos mecanismos e dispositivos de controle de acesso à terra que vinham sendo postos pelo governo estabelecido a partir de 1964 quando do golpe civil militar que estabeleceu o regime da Ditadura Militar no Brasil. Portanto, eram mecanismos e dispositivos que deveriam estar alinhados à política nacional do Estado autoritário do regime da Ditadura Militar. As ações voltadas para a colonização oficial em MT, desenvolvidas pela CODEMAT representam em termos regionais as políticas desenvolvidas no contexto político e econômico nacional que, por sua vez, alinhado à ideologia capitalista norteamericana do contexto da Guerra Fria10. Não nos cabe nesse momento darmos explicações detalhadas a respeito de como ou porque foi possível o golpe de 1964. Por isso, segue uma breve contextualização para darmos o sentido histórico que acreditamos ter levado o governo autoritário militar a desenvolver estratégias e regulamentações, bem como incentivos e subsídios para a ordenação da ocupação das terras das áreas de fronteira amazônica nos anos 1960 e 1970. As novas medidas de orientação econômica adotadas no governo do presidente João Goulart (1961-1964) foram chamadas de Reformas de Base. As propostas contidas no Plano Trienal que pretendiam o controle do déficit público e o refreamento do crescimento inflacionário estavam compostas pelas reformas assim resumidas: As Reformas de Base, condensadas, as principais nos seguintes itens da mensagem que o Presidente da República remeteria ao Congresso Nacional: 1) Reforma agrária, com emenda do artigo da Constituição 10 A partir de 1954, os serviços de inteligência norte-americanos participaram de golpes de estado contra governos latino-americanos. Após a Revolução cubana, o receio de que o comunismo se espalhasse pelas Américas cresceu muito. Governos simpáticos ao comunismo ou democraticamente eleitos, mas contrários aos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos foram removidos do poder. (MONIZ BANDEIRA, 2006). que previa a indenização prévia e em dinheiro; 2) Reforma política, com extensão do direito de voto aos analfabetos e praças de pré, segundo a doutrina de que “os alistáveis devem ser elegíveis”; 3) Reforma universitária, assegurando plena liberdade de ensino abolindo a vitaliciedade de cátedra; 4) Reforma da Constituição para delegação de poderes legislativos ao presidente da República; 5) Consulta à vontade popular, através de plebiscitos para o referendum das reformas de base. (BANDEIRA, 1983, P. 163-164). As Reformas incluíam propostas para resolver os problemas econômicos e sociais dos mais abrangentes: reformas bancária, fiscal, urbana, administrativa, universitária e eleitoral, e para os trabalhadores do campo, a tão sonhada reforma agrária. O carro-chefe do Plano Trienal – como foi denominado oficialmente o projeto de reformas - foi a Reforma Agrária, que visava eliminar os conflitos pela posse da terra e garantir o acesso à propriedade a milhões de trabalhadores rurais. Defendia Jango que, não só pretendia fazer a reforma agrária, como seria impossível desenvolver o país sem realizá-la, e para tanto, seria necessário alterar, inclusive, a constituição nacional. (DIAMICO, 2007, P. 69-86). O plano apresentava em seu discurso soluções que retomassem o desenvolvimento econômico, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), o controle das taxas inflacionárias, a distribuição mais equitativa da renda, a diminuição das desigualdades regionais e assim evitar uma convulsão social com as tensões provocadas por conta de todos esses problemas. Ainda assim, o Plano Trienal chegou ao final de 1963 fracassado. Os setores internacionais insatisfeitos por conta da questão da contenção da remessa de lucros. Segundo Toledo (1982), “o plano apesar de reconhecer o problema dos subsídios aos latifúndios não propunha sua extinção, mas apenas financiá-lo, ou seja, medidas paliativas que comprovavam a capitulação do governo aos latifundiários” (TOLEDO, 1982, p. 45). Para esta esquerda apresentada por Toledo (1982), era como se o governo estivesse apenas tentando amenizar avanço das manifestações sociais. Um discurso populista que tentava convencer a sociedade de que “os empresários deveriam tentar conter seus ímpetos por acumulação e os trabalhadores deixar de pressionar o governo com suas reivindicações, como nos planos “salvadores”: manutenção da poupança dos setores produtivos – latifundiários ou empresários – e por outro lado, maiores sacrifícios às classes populares, os trabalhadores. (TOLEDO, 1982). Quanto aos demais setores, a efervescência política aumentava. Mas naquele momento ainda havia espaço para a efervescência, o país ainda se encontrava sob o espírito da democracia. O movimento estudantil forte e bem articulado sob a organização da UNE, conseguia se destacar de forma séria aos olhos da opinião pública daqueles momentos. Também havia o CGT – Comando Geral dos Trabalhadores11. Organizava greves e reivindicava o aperfeiçoamento dos direitos trabalhistas e que fossem garantidos em lei. Estamos diante de um contexto em que o espectro da crise política estava pairando no Brasil. Diante deste contexto, João Goulart apegou-se à questão da Reforma Agrária como se esta representasse sua esperança de ainda fazer a diferença. Sem pretensão de tomar partido a favor ou contra os eventos que marcaram o fim trágico de seu governo; e nesse ponto temos que fazer uma autocrítica, pois só de usar o termo “trágico” para nos referirmos ao fim do governo Jango, mesmo sem querer tendemos à defesa daquele governo; mas há que reconhecer e admitir sua característica transformadora, senão na prática, pelo menos no plano das ideias. No livro O governo João Goulart – as lutas sociais no Brasil: 1961-1964, Moniz Bandeira (1983), expõe que a reforma agrária que propôs João Goulart nas Reformas de Base, orientava-se pelo princípio de que “o uso da propriedade é condicionado ao bem-estar social”, não sendo a ninguém “lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade”12. Goulart sugeria que indenizando os proprietários das terras destinadas à reforma agrária, então passariam à produção de gêneros alimentícios para o mercado interno, combatendo fatores de inflação, liquidaria o remanescente colonial da lavoura exportadora e afetaria a grande propriedade. Para a burguesia comercial e os latifundiários, a proposta de Goulart ia além da demagogia, representava uma medida populista e uma ameaça comunista. Ninguém faz populismo à custa da propriedade privada, o único direito inviolável para as classes dominantes. E Goulart o ferira. (BANDEIRA, 1983). Como resposta, a camada da sociedade brasileira que se sentira “ferida”, contando com o apoio da Igreja Católica e convenientemente do Exército brasileiro que 11 O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) foi uma organização intersindical brasileira, cujo objetivo era orientar, dirigir e coordenar o movimento sindical no Brasil. Foi criado em São Paulo, no ano de 1962, durante o IV Congresso Sindical Nacional dos Trabalhadores, e reunia vários sindicatos, federações e confederações. No entanto, nunca foi reconhecido pelo Ministério do Trabalho e acabou sendo desarticulado por ocasião do golpe militar de 1964. 12 Os trechos entre aspas referem-se à fala do próprio presidente João Goulart citadas no livro de Moniz Bandeira. há tempos mantinha correlações com a CIA através da ESG – Escola Superior de Guerra, para consolidação da formação dos militares na Doutrina de Segurança Nacional; articularam o plano para a saída de João Goulart da presidência da república sob o pretexto de que era preciso prevenir-se contra o inimigo, o comunismo personificado nas Reformas de Base que levariam à Reforma Agrária. Esta se tornou o centro de encontro, debate e aglutinação de partidos e frações partidárias, sindicatos e organizações inter-sindicais, entidades setoriais de estudantes, mulheres, profissionais liberais, etc. A bandeira unificadora dos movimentos organizados e informais era a luta pelas reformas de base. (GORENDER, 1987). Para Jacob Gorender (1987), aquele foi o período de maior representatividade da luta dos trabalhadores brasileiros no século XX. Apesar de considerar a imprecisão das Reformas de Base e da inclinação populista de Jango; a ideia correspondia às aspirações das massas trabalhadoras e também de setores das camadas médias e nacionalista da burguesia. (GORENDER, 1987). Mas sem dúvidas, de todas as propostas a de maior impacto para os contrariados com as Reformas de Base era o projeto da reforma agrária por envolver uma realidade que para Castro (1965) - ativista social que desenvolveu sua linha de pensamento nos anos 1960, especialmente, através do livro Geografia da Fome - era o principal problema social brasileiro. Desde os tempos coloniais o Brasil tem sido o palco do “desenvolvimento anti-nacional, colonialista e baseado no latifúndio improdutivo” (CASTRO, 1965). Nem João Goulart mostrou-se disposto a instigar uma revolução comunista com as Reformas de Base, tampouco podemos afirmar que todas elas foram completamente rejeitadas por todos os pertencentes às camadas médias urbanas. Assim como nem todos da esquerda concordavam com as propostas de Goulart. Ainda na análise de Gorender (1987) podemos observar: A luta pelas reformas de base não encerrava, por si mesma, caráter revolucionário e muito menos socialista. Enquadrava-se nos limites do regime burguês, porém o direcionava num sentido progressista avançado. Continha, portanto, virtualidades que, se efetivadas, tanto podiam fazer do Brasil um país capitalista de política independente e democrático popular, como poderia criar uma situação prérevolucionária e transbordar para o processo de transformação socialista. (GORENDER, 1987). Para Daniel Aarão Reis Filho (2014), o cenário que se formou entre 1963 com a real consolidação dos poderes plenos do presidente Jango e o início de 1964 quando da radicalização do movimento a favor das reformas, foi uma luta de cunho reformista, nacionalista, anti-imperialista e estadista. Nos primeiros meses de 1964 podia-se falar em movimento reformista revolucionário, principalmente se consideradas as alas mais radicais do Partido Trabalhista Brasileiro/PTB, do Partido Comunista Brasileiro/PCB, da Frente Parlamentar Nacionalista e da Frente de Mobilização Popular, miniparlamento alternativo construído pelas forças populares mais decididas. Ao mesmo tempo em que representava apoio público se não a Jango, às reformas, “configurava-se uma clara ofensiva política reformista-revolucionária dos movimentos mais radicalizados. Crescia a descrença de que as reformas podiam ser conquistadas nas margens da legalidade. ” (REIS FILHO, 2014). Se por um lado a mobilização a favor das reformas esquentava o clima político, por outro, a oposição organizava-se beirando à conspiração. Os movimentos organizados pela sociedade civil, somados aos comícios nos quais o presidente João Goulart discursava com veemência a emergência das reformas, especialmente a agrária, repercutiam entre as camadas médias, os udenistas e os grupos mais conservadores da Igreja Católica como uma ameaça à ordem social. 1.2 Momentos decisivos, prelúdio do golpe O comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964 marcou de forma emblemática aquele momento da política brasileira. Ao lado de Brizola o presidente João Goulart se posicionava convicto da decisão de dar um passo adiante nas reformas referentes à questão agrária ao anunciar a desapropriação de terras rurais acima de 500 hectares nas margens das estradas federais numa faixa de dez quilômetros e superiores a trinta hectares, marginais de açudes e obras de irrigação financiadas pelo Governo. Também reforçou a questão da encampação das refinarias. Para a oposição o conflito estava declarado. Poucos atos públicos tiveram ao longo da história da frágil democracia brasileira da época tanta repercussão. Em 15 de Março o presidente formalizou seus planos enviando ao Congresso Nacional a proposta das reformas, incluídas as propostas de emendas constitucionais; e a forma como seriam indenizadas as terras desapropriadas: pagamento de títulos públicos. Acreditando que colheria os frutos de um governo nacionalista, democrático e popular, na mesma proporção crescia o descontentamento das elites que expunham seus posicionamentos também com atos públicos. Quando dizemos que “poucos” atos tiveram tanta repercussão como o comício da Central do Brasil, incluímos a resposta ao comício denominada as Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, que foi uma organização liderada pela direita e pelos setores mais conservadores da Igreja Católica. Mesmo que orientadas pela direita golpista não se pode negar que também representavam um dos últimos atos de liberdade de expressão democrática antes de o país mergulhar na sombra da ditadura militar. Setores das classes médias e da burguesia, sob a bandeira do anticomunismo e da defesa da propriedade, da fé religiosa e da moral cristã, saíam às ruas nas maiores capitais do país em defesa do discurso contra o governo Goulart promovido por políticos do PSD e da UDN (representantes dos grandes proprietários de terras e setores conservadores da Igreja Católica). A real intenção de tais manifestações era criar um clima favorável à intervenção militar, bem como, incitar as Forças Armadas ao golpe de Estado. (SOUZA; COSTA; CARVALHO, 2007). Na noite de 31 de março para 01 de abril de 1964, as Forças Armadas, com várias unidades militares, marcharam para Brasília e Rio de Janeiro, onde depuseram o presidente João Goulart. Posteriormente foi instalado o Regime Militar no Brasil, tendo na figura do Militar Humberto Castello Branco um dos principais líderes da tomada de poder e o primeiro presidente dessa nova forma de governo. (DREIFUSS, 1986). Para Toledo (2004), que sem disfarce procurou construir dentro da historiografia a respeito da política brasileira desse período uma imagem de um João Goulart que quase nos leva a crer ser um populista, dando continuidade ao populismo de Vargas, em seu artigo postado para a Revista Brasileira de História, na ocasião das publicações envolvendo os 40 anos do golpe, admite que 1964 representou um golpe contra as reformas que propunham mudanças sociais reivindicadas pelos setores trabalhistas do campo e da cidade e contra a democracia. (...)procuramos argumentar que o movimento político-militar de abril de 1964 representou, de um lado, um golpe contra as reformas sociais que eram defendidas por amplos setores da sociedade brasileira e, de outro, representou um golpe contra a incipiente democracia política burguesa nascida em 1945, com a derrubada da ditadura do Estado Novo. (TOLEDO, 2004). Para Florestan Fernandes: O que se procurava impedir era a transição de uma democracia restrita para uma democracia de participação ampliada que ameaçava o início da consolidação de um regime democrático-burguês, no qual vários setores das classes trabalhadoras (mesmo de massas populares mais ou menos marginalizadas, no campo e na cidade) contávamos com crescente espaço político. (FERNANDES, F., 1980). Para Moniz Bandeira (2006), o golpe contou com efetiva influencia dos EUA. Para ele o cenário político internacional da Guerra Fria que polarizou o mundo entre EUA e URSS, levou o Brasil, assim como outros países da América Latina, a sofrer forte influência da política norte americana capitalista. O receio de que as ideias da Revolução Socialista Cubana se espalhassem e no esforço de manutenção do capitalismo no Continente, os EUA não apenas apoiaram as Forças Armadas (o Exército Brasileiro na aplicação do golpe) como enviou tropas armadas numa operação que ficou conhecida como “Operação Brother Sam” para intervir caso houvesse resistência ou uma possível insurreição ordenada por João Goulart. Não havendo resistência, a “Operação Brother Sam” foi desativada ainda no dia 3 de abril quando ainda se encontravam no Mar do Caribe a caminho do Brasil. Para Jacob Gorender mesmo que tivesse havido resistência, a julgar pelas circunstâncias, elas não teriam alcançado o Porto de Santos antes de 11 de abril. (GORENDER, 1987). Mas é preciso uma reflexão sobre tal intervenção ou influência norte-americana. Senão, criamos a impressão de que tínhamos uma esquerda desavisada e uma direita manipulável. Para Reis não era nem uma coisa nem outra. Mas o Brasil não conseguiria ficar imune àquela atmosfera circulante da Guerra Fria do capitalismo versus comunismo. Mas também, “não era um mero joguete nas mãos das superpotências. Nem as direitas eram manipuladas pelo imperialismo norte-americano, nem as esquerdas, pelo ouro, ou pelo dedo, de Moscou13. (REIS FILHO, 2004). O governo Jango terminou em meio aos embates ideológicos esquerda versus direita, o que até então seria um bom combate. Mas não foi só isso, viu-se solapado pela covardia antidemocrática de um golpe de Estado que, apesar do apoio de parte da sociedade civil, fora engendrado sob a influência estrangeira e pela instituição que em nome da soberania nacional deveria combater tal influência, mas ao contrário disso, absorvendo não somente o discurso, mas a ideia incutida pelos EUA de que as propostas do governo João Goulart representavam uma ameaça à segurança nacional, aplicaram-lhe um golpe militar. “A partir de 1º de abril de 1964, o país entrava na longa noite da ditadura militar. Encerrado o embate, no campo de luta, iniciaram-se imediatamente as batalhas de memória”. (REIS FILHO, 2004). 1.3 O direcionamento do regime à questão agrária: a “contra-reforma agrária” As reformas de base do governo João Goulart com relação à questão da distribuição de terras se tornaram o ponto chave que direcionou a forma como o novo governo estabelecido a partir do golpe civil militar definiria sua política de organização e controle nesse quesito. O problema do acesso à terra foi uma das questões prementes. Abafar o ritmo do movimento de luta, os conflitos e tensões sociais, frear e controlar as reivindicações populares impulsionadas pelas propostas de reformas de base visando, especialmente, a reforma agrária nos últimos meses do governo João Goulart, era uma das principais pautas da política de segurança nacional desenvolvida pelo governo militar. Sendo assim, em novembro de 1964, como um dos primeiros passos da busca de legitimação do regime que procurou se consolidar contando com a manutenção do apoio dos setores médios, industriais e dos grandes proprietários, foi aprovada a Lei 4.504 que criou o Estatuto da Terra. O Estatuto da Terra foi uma reformulação da antiga Lei de Terras de 1850 14 e não representou um projeto real de execução do programa de redistribuição de fundiária. É importante que seja dito, o Estatuto da Terra não foi apenas uma atitude voluntariosa do governo militar, esta lei foi encaminhada pela aprovação do Congresso Nacional. A finalidade era evitar a eclosão de uma revolução camponesa e tranquilizar os grandes proprietários. Institucionalizar o dever do Estado de garantir aos trabalhadores rurais o acesso à terra não queria necessariamente dizer que haveria uma transformação social que de fato revertesse o contexto da estrutura fundiária no Brasil. 14 A Lei de Terra de 1850 (Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850) tinha como finalidade organizar a propriedade privada da terra impedindo que os imigrantes se tornassem proprietários de terras. Vale lembrar que na segunda metade do século XIX, o Brasil passou a receber levas de imigrantes vindos especialmente de países europeus que estavam passando por crises sociais em função do movimento de luta dos operários das fábricas da Segunda Revolução Industrial e da crise da economia que atingia os trabalhadores do campo. Muitas das famílias imigrantes se instalavam nas antigas fazendas produtoras de café de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e no Sul do país. Algumas delas substituíam os trabalhadores escravos, principalmente após a abolição em 1888. Impedindo que os imigrantes e também os ex-escravos se tornassem proprietários, a lei favorecia os antigos senhores de escravos que continuariam privilegiados pela grande propriedade. A lei permitia a aquisição de terras somente por compra, venda ou doação do próprio Estado. Ou seja, essa lei favoreceu a má distribuição fundiária e privilegiou os antigos fazendeiros. Ainda mais porque reforçou a ideia de que a reforma agrária seria feita a partir da implementação da política de colonização. Sendo assim, os trabalhadores rurais descapitalizados, para não usar o termo “sem terra”, continuariam com dificuldades de acesso à posse da terra. O texto da mensagem presidencial ao Congresso apresentava o Estatuto da Terra como uma “solução democrática” para o problema da terra; à época leia-se “reforma agrária”. Por outro lado, apoiava as “grandes empresas rurais”, considerando-as formas legítimas de exploração da terra. Reiterava que a colonização estava associada à expansão das fronteiras agrícolas e à ocupação dos vazios demográficos do território. (TAVARES DOS SANTOS, 1993). “Considera-se “vazio” qualquer espaço ainda não integrado ao modo de produção capitalista, incluindo aí, especificamente, os territórios historicamente ocupados por povos indígenas ou camponeses” (MEIRA, 2011). Baseando-se ainda na Constituição de 1946 para definir quais seriam as áreas territoriais direcionadas para solucionar estas questões, o governo de Castelo Branco apoiou-se na Lei 9.760/1946 que definia que os vazios demográficos eram aqueles espaços das terras devolutas especialmente as da fronteira amazônica. Isso incluía o Norte do estado de Mato Grosso. Terras devolutas são terrenos públicos, ou seja, propriedades públicas que nunca pertenceram a um particular, mesmo estando ocupadas. Diferenciam-se destes por não estarem sendo aplicadas a algum uso público federal, estadual ou municipal, que não hajam sido legitimamente incorporadas ao domínio privado (Art 5º do DecretoLei n.º 9.760/46) enquanto que as terras públicas pertencentes ao patrimônio fundiário público são aquelas inscritas e reservadas para um determinado fim. (IBRHIN ROCHA, 2010). A implementação das políticas de ocupação das chamadas terras devolutas na fronteira amazônica era baseada na falsa ideia de que aqueles espaços territoriais seriam esvaziados de população na fronteira amazônica. A partir do momento em que o termo “fronteira” aparece nos discursos oficiais, é difundido pelos meios de comunicação, utilizado (manipulado) para designar a expansão da sociedade nacional e a integração territorial. “O significado da fronteira não é dado. Embora represente ela a conquista de novos espaços, seu significado é reescrito em função do contexto histórico” (BECKER, 1988). O período entre o final do governo Castelo Branco e o governo Costa e Silva, mais especificamente entre 1966 e 1969, foi marcado pela regulamentação da Reforma Agrária. Mas não se tratava de fazer política afirmativa ou justiça social para minimizar ou solucionar o problema do trabalhador do campo. Era antes, uma questão de segurança nacional. Tratava-se da forma encontrada pelo Estado para conter os ânimos dos movimentos de luta no campo por acesso à terra de trabalho. Além disso, a partir de 1966, com a criação da SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia e do BASA – Banco da Amazônia, as políticas governamentais do regime militar para a Amazônia passaram por uma reformulação que de fato atendia às exigências do modelo de capitalismo dependente; econômica e politicamente agressivo e repressivo, adotado desde o golpe de 1964 (IANNI, 1979 e OLIVEIRA, 1988). Ainda de acordo com Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1990), esses planos para a implementação da regulamentação da reforma agrária via colonização foram construídos sob a lógica da internacionalização dos recursos naturais e minerais da Amazônia e do Brasil, e esse processo foi iniciado com a “operação Amazônia”. Essa operação baseou-se na criação ou reformulação de incentivos fiscais e creditícios destinados a atrair “empresários e empreendedores”, além dos já estabelecidos para investir na Amazônia. Isso em parte explica a atuação de uma empresa mineradora na área do Projeto de colonização Juina em Mato Grosso. Desde 1976 a SOPEMI – Sociedade de Pesquisas Minerais, instalouse na área do Projeto Juina para identificar a presença de gemas de diamantes na região. Dez anos depois solicitou autorização junto ao governo para a lavra. ‘Em 1986, a SOPEMI extraiu 218.147 quilates de diamantes em Juína e em 1987 168.348 quilates’. (SANTI, 2005)15 A Constituição de 1967 previu o pagamento antecipado das terras desapropriadas para reforma agrária via colonização em títulos da dívida pública. O (IBRA) Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, depois substituído pelo INCRA – Instituto Nacional de Reforma Agrária, detinha a competência sobre a implementação da política de colonização; e sua função era “ampliar a participação da iniciativa privada na execução da Reforma Agrária”. Mas em abril de 1969, com o Ato Institucional nº 9, alterou o artigo 157 da Constituição de 1967, fazendo desaparecer a exigência da indenização antecipada das terras desapropriadas, mantendo o pagamento em títulos da dívida pública com 15 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de História da UFMT em 2005. Para esclarecimento da informação, consultar principalmente JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da Crença: Ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970. Cuiabá: EdUFMT/Carlini & Caniato, 2007. pagamento a longo prazo. Esta decisão não se sustentou. Foi derrubada pelo decreto lei nº 554, que dizia ser de competência da União a desapropriação de terras e que empresas rurais não poderiam ser desapropriadas; além de que o pagamento em títulos da dívida pública deveria ser sobre a “terra nua”, não sobre as benfeitorias. Estas deveriam ser pagas em dinheiro. O pagamento antecipado voltou a vigorar entre o governo Costa e Silva e Médici, de setembro a novembro de 1969, quando o país foi governado por uma Junta Militar. Nessa ocasião foi decidido que o pagamento das indenizações com títulos de dívida pública valeria apenas para a desapropriação de latifúndios. Para as benfeitorias nesses latifúndios e outros tipos de imóveis desapropriados, a indenização passaria a ser paga em dinheiro. (TAVARES DOS SANTOS, 1993). Durante governo do General Médici em novembro de 1969, com as regulamentações sobre a questão da reforma agrária estabelecidas, em 16 de junho de 1970 (pelo decreto lei nº. 1.106), foi criado o PIN - Programa de Integração Nacional. Esse programa, de acordo com Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1990), “iniciou uma campanha ufanista atravessada pelo ‘falso nacionalismo’ de que era necessário ‘integrar a Amazônia para não entregá-la aos estrangeiros’. O general Médici começou a colocar em prática o chamado processo de integração da Amazônia ao restante do país que, na realidade, constituiu o processo de integração para melhor permitir a entrega dos recursos nacionais da região aos grupos multinacionais”. Ou seja, na prática a campanha ‘integrar para não entregar’ significava o avesso do que dizia. O Estado brasileiro sob o governo da ditadura militar transformou tudo o que dizia respeito à questão agrária em assunto de segurança nacional. Ou pela forma como deveria ser tratado o problema social relacionado à posse da terra ou pelo espaço territorial onde deveriam se desenvolver as resoluções para esse problema: a Amazônia transformada politicamente em fronteira agrícola. Não tardou para surgirem escândalos envolvendo casos de corrupção relacionados à venda de terras. Para Ianni (1979b), A ideia de ‘economia aberta’ que fundamentou o chamado ‘modelo econômico’ brasileiro desde 1964, foi inspirada e alimentada pelos interesses da grande empresa imperialista. (...) Foi de tal vulto o interesse de estrangeiros pelas terras, riquezas ou potencialidades da Amazônia, que em 1968 a Câmara Federal foi levada a criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para apurar a venda de terras a estrangeiros. (IANNI, 1979b). Sob a política de segurança nacional e transformada em fronteira agrícola, o Estado passa a desenvolver na Amazônia suas estratégias de desenvolvimento econômico à luz da máxima nacionalista e de integração nacional cujas prospecções haviam sido traçadas ainda no Plano de Metas do governo JK; como por exemplo, a abertura de rodovias federais que ligassem as diversas regiões brasileiras: a rodovia Transamazônica ligando o Nordeste, Belém-Brasília à - Amazônia ocidental – Rondônia e Acre, e a rodovia Cuiabá-Santarém, ligando o estado de Mato Grosso à Transamazônica e à Santarém no estado do Pará. Além das rodovias, fazia parte das estratégias do PIN a implantação, em uma faixa de terra de 100 km de cada lado das novas rodovias, de um programa de “colonização e reforma agrária” e o inicio da primeira fase de irrigação do Nordeste a transferência de 30% dos recursos financeiros dos incentivos fiscais oriundos de abatimento do imposto de renda para aplicação no programa. Ao criar PIN, o governo substituiu o IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Decretolei n°. 1110, de 09 de julho de 1970). O INCRA ficava encarregado de executar a colonização disposta pelo PIN. A mudança de nomenclatura não é inocente. Havia nesse ato um propósito de reafirmação da regulamentação do governo autoritário militar para a questão agrária no Brasil: a reforma agrária, que até então não havia acontecido, foi transformada em colonização. Por isso, o termo contra-reforma (contrarreforma na Nova Ortografia da Língua Portuguesa) usado por Ianni (1979) ao se referir às políticas agrárias da ditadura militar no Brasil. A ideia da distribuição de terras para trabalhadores camponeses com base na desapropriação dos latifúndios, que por sinal não aconteceram antes do regime, naqueles anos do governo Médici, tampouco ocorreriam. 1.4 A Doutrina de Segurança Nacional no contexto da Colonização Colonizar significava para o regime autoritário militar a manutenção da ordem e da organização do país. Segundo Nilson Borges (2003), no final dos anos 1970, dois terços da população da América Latina, cerca de 400 milhões de pessoas, viviam em Estados dotados de regimes militares. A colonização foi o dispositivo usado pelo governo autoritário militar no Brasil que afirmava possuir o regime de organização política e economia alinhada ao modelo capitalista norte americano. Para a manutenção dessa ordem era necessário combater o inimigo interno – qualquer ideia, partido político ou ação individual que lembrasse o avesso do capitalismo: o comunismo era o inimigo. Nesse sentido, Nilson Borges (2003) colabora para a compreensão sobre a DSN - Doutrina de Segurança Nacional era originária dos Estados Unidos, chegou ao Brasil pelas mãos dos militares brasileiros, quando participaram da Segunda Guerra Mundial e lá tiveram grande influência militar norteamericana. A relação destes militares se reforçou ainda mais quando participaram e formaram em cursos das escolas de guerra dos Estados Unidos, especializadas em táticas contrarrevolucionárias. Sendo assim, fazer a reforma agrária com distribuição de terras a partir da desapropriação de latifúndios seria atender aos anseios das ideias e ações de caráter comunista. O que iria contra tudo aquilo que o regime considerava positivo para a manutenção da segurança nacional. Mas os problemas sociais e de conflitos no campo por questões fundiárias precisavam ser contidos. A saída foi fazer a reforma usando do dispositivo de colonização. A colonização é excludente, como o é o sistema capitalista. Dela participam aqueles indivíduos que o Estado considera como tipo ideal. Seja por questão monetária – a terra “distribuída” ou é comprada pelo Estado ou este se utiliza de suas antigas áreas devolutas transformando-as em produto de mercado. Como produto, seu valor é capitalizado. Ou seja, a camada da população que terá acesso à terra o faz por meio da compra. A colonização é a expansão do capitalismo no campo e a expressão da metamorfose que transforma o camponês com potencial político em consumidor. Vendo por esse ângulo, o termo contrarreforma de Ianni chega a ser generoso, para não dizer suave ao se referir ao dispositivo da colonização desenvolvido pelos governos da ditadura militar que tratou todo movimento de luta pela inclusão do trabalhador descapitalizado como um problema de segurança nacional ou de subversão da ordem, dignos de censura, perseguição e repressão. E mesmo como mercado, esse dispositivo possuía seu grau de exclusão ao deslocar os colonos de suas áreas originais, fosse nas regiões Sul ou Nordeste, para as áreas de fronteira Amazônica, onde se implantavam os principais núcleos de colonização dirigida ao longo principalmente das rodovias federais 163 Cuiabá-Santarém e 230 Transamazônica. A colonização por meio de empresas e/ou cooperativas agrícolas, denominada de Colonização Particular ou Privada, foi impulsionada, a partir de 1974, com o governo de Ernesto Geisel, colocando em segundo plano aquela executada pelo INCRA. Foi para concretizar esse modelo de colonização que o Governo Federal passou a ceder grandes extensões de terras e incentivos financeiros aos empresários para que eles dividissem e vendessem lotes de terras aos agricultores que chegassem atraídos pelas promessas de solos férteis, créditos bancários, infraestrutura e outras facilidades. Mato Grosso foi o estado, dentre os da Amazônia Legal, que registrou o maior número de projetos de colonização privada (REIS PEREIRA, 2013). Para Giorgio Agamben (2009), essa questão da Segurança é um paradigma de governo que não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem; o que se enquadra no sentido proposto pelo governo brasileiro nos anos de 1970 para resolução do “problema”, diga-se desordem da questão fundiária no Brasil do mesmo período. “Dispositivo passa a ser qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009). O dispositivo da colonização representa tal como em sua origem do termo elaborado por Foucault e ampliado por Agamben (2009), a subjetivação, que na prática nasce do “corpo a corpo” entre os viventes e a relação de forças que operam tal dispositivo. Assim, nessa lógica da subjetivação aplicada à colonização, o sujeito passa a ser o colono, aquele que o dispositivo da colonização pretende “capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos” em nome geralmente da segurança do núcleo ou projeto de colonização. No texto de Nilson Borges (2003) para a obra O Brasil Republicano - Volume 4, encontramos algumas análises sobre a DSN – Doutrina de Segurança Nacional no Brasil: Criada na época da Guerra Fria, nascida do antagonismo Leste-Oeste, a DSN fornece intrinsecamente a estrutura necessária para a instalação e manutenção de um Estado forte ou de uma determinada ordem social. Objetivamente, é a manifestação de uma ideologia que repousa sobre uma concepção de guerra entre o comunismo e os países ocidentais. No Brasil, a intervenção militar na prática já ocorrera diversas vezes. Em 1889 na Proclamação da República, em 1930 na derrubada da República Oligárquica e posse de Vargas, em 1945 na deposição de Vargas, em 1955 para garantir a posse de JK. Como consequência das constantes intervenções das Forças Armadas, criou-se uma cultura militar no Brasil: a ideia do destino manifesto do militar, onde sua missão é a de salvar a pátria. Assim a intervenção aparece como legítima e necessária para a preservação da ordem institucional. De 1889 até o golpe, as intervenções militares foram sempre justificadas em nome da missão constitucional do exército e do interesse nacional. Ao contrário das intervenções anteriores, onde os militares logo passavam o poder de volta aos civis, 1964 foi diferente: a justificação ideológica para a tomada do poder e a modificação de suas estruturas foi justificada de acordo com a DSN para combater o inimigo interno – a ameaça comunista. E foi sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional que os militares assumiram a condução do Estado, transformando os civis em coadjuvantes. A aplicação dessa conduta ideológica contra o inimigo interno leva o Estado a adotar dois tipos de estruturas defensivas: o aparato repressivo, responsável pela coerção, e a rede de informação formal ou informal, cuja principal atribuição responde pela identificação dos sujeitos e suas ações que representem uma ameaça ao estado de coisas posto pelo regime, esteja ele situado no próprio aparelho do Estado ou na sociedade civil. (BORGES, 2003). O PIN – Plano de Integração Nacional, partindo do discurso do regime militar de levar o progresso e o desenvolvimento à fronteira amazônica, desenvolveu seus projetos de colonização usando da prática doutrinária da DSN para a segurança nacional. Assim, a colonização foi um dos dispositivos da DSN. Para isso, o governo incentivou a atuação das diversas agencias de fomento a esse desenvolvimento como a SUDAM, a SUDECO e o INCRA que foram responsáveis pelos incentivos às empresas privadas e públicas, como foi o caso da CODEMAT em Mato Grosso. Essas empresas, junto com as agências do governo federal formavam a teia das relações de poder e das estratégias de execução dos projetos de ocupação das áreas pertencentes às terras da fronteira amazônica, chamados de “espaços vazios” nos territórios da Amazônia Legal redefinida a partir de 1972. Joanoni Neto (2007) relaciona tais práticas à análise que Deleuze e Guattari conceituam como diferença entre “terra” e “território”. O território é uma construção social, mas também natural e psicossocial, condiciona elementos culturais, políticos e econômicos e essa dinâmica produz uma constante criação/recriação, um fenômeno chamado territorialização, desterritorialização e reterritorialização, criando papéis sociais, interferindo nas relações de poder. Para Deleuze e Guattari, a terra seria o espaço primal e o território o lugar historicizado, muito mais do que a terra, pois tomado pelas tramas compostas pelas relações de coexistência, fluxos humanos e de mercadorias, codificado. Uma das faces desse território é o Estado, que usa de sua força legitimada e legitimadora para desterritorializar forças opostas, reterritorializando-o segundo seus interesses. É a mais-valia operando sobre a força de trabalho, maximizando o lucro sobre todo o processo produtivo. O Estado também orienta novas reterritorializações, caso dos processos de colonização vistos em todo o mundo e, particularmente, na Amazônia brasileira no final do século XX. Nesse caso, pessoas foram levadas a deixarem suas terras para migrar e reocupar territórios nos quais viviam índios, garimpeiros e posseiros. Esta ação, protagonizada pelo Estado, atendeu aos interesses do capital mercantil e foi chamada de “colonização” (cf. GUIMARÃES NETO, 2002; JOANONI NETO, 2007).16 Esse foi o cenário criado no Norte do estado de Mato Grosso durante a década de 1970 quando um número considerável de populações indígenas foi desterritorializada, remanejada e reterritorializada na reserva florestal Parque Indígena do Xingu antigo Parque Nacional Indígena do Xingu situado no nordeste de Mato Grosso, criado em 1961 durante o governo do presidente Jânio Quadros. Quanto aos posseiros, muitos dos quais também desterritorializados, passaram de trabalhadores rurais à peões de trecho a serviço das empresas colonizadoras e esses territórios foram reocupados por migrantes vindos especialmente da região Sul do Brasil. Também esses, desterritorializados em seus lugares de origem para serem reterritorializados na fronteira amazônica mato-grossense. Seguindo a trajetória de ordenar e controlar os conflitos sociais por conta do problema do acesso e da posse da terra no campo, em 1971 o governo criou o FUNRURAL- Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural e o PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulos à Agroindústria do Norte e Nordeste, que possibilitou a abertura de crédito agrícola às empresas de colonização privada. Paralelamente ao PIN, toda a política de resolução para os problemas agrários do governo Médici (1971-1974) foi mediada e ordenada pelo I Plano Nacional de Desenvolvimento. O PND devia servir de estímulo às iniciativas privadas e públicas para a ocupação dos chamados espaços vazios nas áreas de fronteira amazônica, tanto como estratégia de colonização que o regime autoritário militar usou como resolução dos problemas agrários que eram vistos como um problema de segurança nacional, bem como um discurso de desenvolvimento e progresso econômico que seria levado ao interior do Brasil e da “distribuição racional da população”. Discursos esses norteados pelas campanhas de propaganda do governo Médici a respeito do “milagre (econômico) 16 JOANONI NETO, Vitale. Território/Fronteira - Material de estudo de História e Pedagogia - apresenta os conceitos de Território e Fronteira considerando-os “polissêmicos, podendo ser usados para a compreensão de grandes enfrentamentos políticos e econômicos em escala mundial, ou para o entendimento de modos de ser e agir dos indivíduos (...)” – Conteúdo apresentado em HISTÓRIA: CONCEITOS, METODOLOGIA E ENSINO - UAB – UFMT. brasileiro”; “Brasil, ame-o ou deixe-o” e da integração das regiões brasileiras com a abertura das novas rodovias e a colonização das quais os projetos resultariam em pólos de desenvolvimento novas cidades no interior do Brasil, surgidas desses projetos de colonização. Em consequência dessa estratégia, surgiam também aquilo que José de Souza Martins (2009) chama de “novas frentes de trabalho” e Guimarães Neto (2006) afirma como “cidade do trabalho”. 1.5 O Estado de Mato Grosso durante o regime militar (...) o olhar do conquistador desconsidera o existente. Na Amazônia Legal Brasileira e no Centro Oeste não foi diferente. Foram vistos como algo dado, que não precede à ação do branco civilizador na missão sempre renovada de integração nacional, retórica fundamental muito utilizada pelos governos da Ditadura Militar. (JOANONI NETO, 2014). Somente em MT, entre anos 1970 e 1990 surgiram aproximadamente mais de 100 novas cidades/municípios. Para Guimarães Neto (2006), toda essa estratégia política não somente do governo Médici, mas dos governos militares, operaram de fato como impedimento do livre acesso – ou acesso regulado – de trabalhadores sem terra e pequenos proprietários às terras devolutas do Estado. A partir da conformação espacial da colonização na década de 1970, desenvolve-se uma rede urbana que se estende ao longo dos grandes eixos rodoviários, provocando uma reterritorialização dos “novos” e “velhos” espaços, com implicações políticas, econômicas e culturais duradouras. Os chamados núcleos de colonização constituir-se-ão em instrumentos políticos de controle não apenas do acesso à terra, mas ainda da formação de um mercado de mão- de - obra, recebendo vultosos incentivos financeiros do governo brasileiro, patrocinando a iniciativa privada. Resta destacar que a colonização como narrativa que participa da elaboração do mito do Eldorado, indicado como a terra da abundância e da fartura, é reveladora dessas práticas políticas. Nesse sentido, torna-se necessário chamar a atenção para a positividade que adquire o termo colonização, adotado pelos meios oficiais e empresas que atuaram em grandes áreas de terras dos estados que compõem a Amazônia. (GUIMARÃES NETO, 2006). Para Martins (1979), os diversos empreendimentos capitalistas (como os projetos de colonização agropecuárias, agroindústrias, entre outros) implantados ao longo da rodovia federal Cuiabá-Santarém (BR 163) fizeram com que o território matogrossense fosse gerido como fronteira em expansão, com novas empresas, novas técnicas e relações de trabalho. Lembremos que a partir de 1964 a Amazônia tinha se transformado num imenso cenário de ocupação territorial massivo, violento e rápido. A política de terras voltada para a ocupação daquilo que o Estado chamou de “espaços vazios” foi uma estratégia de combate às formas de manifestações contrárias ao novo regime. Os governadores de Mato Grosso neste período foram, respectivamente, Fernando Corrêa da Costa (1961-1966), Pedro Pedrossian (1966-1971) e José Manoel Fontanillas Fragelli (1971-1975). Estes políticos desenvolveram diversas ações junto ao governo militar que refletiram no sentido da manutenção do controle estabelecendo a reocupação das terras devolutas na Amazônia Legal mato-grossense. Assim, foram criadas várias instituições e programas que serviriam ao governo da ditadura militar para articular toda uma rede de controle, implementação e execução de um dispositivo maior que era o da colonização. Tais instituições eram assim representadas por agências públicas do próprio governo da Ditadura Militar, como foi o caso das Superintendências SUDAM, SUDENE e SUDECO e mesmo do INCRA que cumpria um papel de regulamentação dos projetos de colonização e das colonizadoras. Em 1971 o governo Federal criou o Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à Agroindústria do Norte e Nordeste (PROTERRA), medida que permitia aos empresários do ramo desenvolverem projetos privados de colonização, montando empresas de colonização. O Governo Militar afirmava ter por objetivo colonizar, entenda-se reocupar, o Norte de Mato Grosso, estimulando o deslocamento de milhares de pessoas para os citados projetos. Isso foi possível em parte em função da propaganda governamental que apresentava a Amazônia como possuidora de terras férteis, local portador de esperanças para os que para ela acorressem. As empresas, interessadas no sucesso dos empreendimentos imobiliários sob seu controle, faziam coro com tais campanhas, levando-as para sindicatos rurais, associações de produtores, comunidades religiosas, jornais, rádios e onde mais pudessem atingir sua clientela potencial. (JOANONI NETO, 2014). Composta principalmente por empresas que voltaram seus projetos e seu capital, contando com incentivos fiscais e subsídios do governo federal através das referidas agências, essas instituições implementaram e executaram os projetos de colonização dirigidos em Mato Grosso sob a égide da estratégia da política de ocupação territorial do governo militar partindo de uma ideia oficial de criação dos chamados pólos de desenvolvimento sobre os quais essas empresas, a maioria delas de capital privado, desenvolveram a maior parte de seus projetos de colonização ao longo do eixo da rodovia federal Cuiabá-Santarém (BR 163) na direção norte do estado de MT. Com a implantação de diversos projetos para a ocupação dos espaços territoriais nas áreas ainda não urbanizadas e que o Estado chama de vazios demográficos e do estabelecimento das empresas Colonizadoras, o estado de Mato Grosso tornou-se palco de um grande fluxo migratório principalmente na região compreendida pela Amazônia Legal. Ressaltamos que o meio utilizado pelo Estado e também pelas Colonizadoras para atrair este fluxo migratório foi a propaganda que exaltava a possibilidade de adquirir terras férteis a preços baixos. Em meio a esse cenário, a cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso, sofreu os efeitos do processo migratório. Segundo Joanoni Neto (2008), muitos migrantes por não terem estrutura financeira e sem condições de seguir viagem, ou por terem se decepcionado com as áreas de fronteira, fixaram-se na capital, o que teria resultado em grande quantidade de ocupações irregulares, que cresceram muito na década de 1970, formando os chamados “grilos”. Do ponto de vista estrutural, destacaram-se nessa época em Cuiabá medidas urbanísticas, as quais podemos citar: a criação de meios de comunicação como Emissoras de Televisão, Telex, Teletipo, Telefonia Interurbana, ampliação do corredor a partir da Igreja do Rosário até o Porto, canalização do córrego da Prainha e o asfaltamento de algumas ruas, a construção de pontes de concreto, asfaltamento e arborização da Avenida 15 de Novembro até a Ponte Júlio Muller. Outro aspecto importante e ainda bastante polêmico foi a demolição da Catedral do Senhor Bom Jesus de Cuiabá e construção da Basílica do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Além da pavimentação de duas das principais vias públicas que cortam o centro da cidade, a Rua 13 de Junho e a Avenida da Prainha como atesta Leonice Meira (2006), SERÁ PAVIMENTADA A RUA 13 DE JUNHO Fontes governamentais asseguraram que o governador Pedro Pedrossian dará toda a cobertura financeira para a pavimentação da Rua 13 de Junho, uma das principais vias públicas da Capital matogrossense. Contudo, desta feita a fiscalização dos serviços serão feitos diretamente pela municipalidade e não pela CODEMAT. O sistema a ser pavimentado é o de “brokret”. Os trabalhos serão iniciados tão logo o DERMAT tenha condições de fornecer o material necessário para o atendimento imediato da obra. (O ESTADO DE MATO GROSSO, Cuiabá-MT, 25 de fevereiro de 1969, p.01). Do ponto de vista político, se faz necessário mencionar que o estado de Mato Grosso durante os anos 1970, período que corresponde à efetivação e reorientação do discurso oficial da nova “Marcha para Oeste”, também assistiu à divisão política de seu território, que segundo Araújo (2007) é resultado de uma campanha que remonta ao século XIX reforçada durante o governo estadual de Pedro Pedrossian em 1965. (...) vale dizer que a passagem de Pedro Pedrossian pelo Governo do Estado é muito controvertida. Seus aliados a definem como um período de renovação nos hábitos e costumes políticos, materializadas em seu slogan “Novo Mato Grosso”. Se destacaram as mudanças na estrutura organizacional do Estado, a instalação das universidades em Cuiabá e Campo Grande e a nomeação de uma equipe de secretários jovem e com perfil técnico. Seus adversários, no entanto, consideram Pedrossian um aventureiro personalista, com pretensões de formar um novo grupo político à margem dos partidos, traidor daqueles que o elegeram (em particular o Senador Filinto Müller), com um governo desastroso no aspecto financeiro e de grande enriquecimento pessoal. (ARAÚJO, 2007). No que diz respeito à questão administrativa, consta-nos que houve uma reorganização da máquina do Estado no governo Pedrossian que refletiria diretamente na forma como Mato Grosso estaria alinhado à política nacional do regime militar que se voltava para a questão de terras, já que uma das agências criadas em Mato Grosso que além de outras atribuições ficaria responsável por esse papel, foi a CODEMAT. A estrutura organizacional do Estado passou de quatro para nove secretarias e adotou os conceitos de administração direta e indireta, mais tarde estendidos para a União com a edição do Decreto-Lei 200/67. A reforma trouxe também a proposta de descentralização por meio das regiões geo-econômicas. Agências estaduais importantes foram criadas neste momento, nas áreas de desenvolvimento (Codemat), saneamento (Sanemat), habitação (Cohab), estradas (Dermat) e trânsito (Detran). (ARAÚJO, 2007). Para Bittar (1999), o mudancismo de Pedrossian consistia na redução do atraso de Mato Grosso quando comparado economicamente com os demais Estados e numa adaptação às novas exigências funcionais do capital. Esse mudancismo de Pedrossian garantiu o impulso divisionista do estado de Mato Grosso que alguns anos depois passou a tramitar sob o aval da SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste. Abreu (2001) defende a tese de que essa agência teria articulado o III Plano de Desenvolvimento do Centro Oeste (Pladesco), que acompanhava o terceiro PND (1980-1985), à política nacional de integração espacial do desenvolvimento nacional, apontando algumas diretrizes de definição e especialização regional entre sul e norte de Mato Grosso. Para Abreu (2001), a articulação da SUDECO nesse processo divisionista de Mato Grosso durante o governo Pedrossiam pode ser descrita pela própria forma como essa agência se pronunciou, A divisão do Estado de Mato Grosso deverá se constituir num processo de longa maturação e consolidação, já que não havia uma linha divisória indiscutível que identificasse duas regiões distintas, independentes, auto-sustentáveis e cujas diferenças fossem visíveis e sugerissem a separação geográfica (...) A única certeza que ficou caracterizada quando da decisão foi sobre as diferenças de condições de desenvolvimento das regiões norte e sul, das potencialidades diferenciadas a curto e médio prazo, das desigualdades quanto à capacidade de geração de receitas públicas, e consequentemente, das condições de dependência das transferências de recurso federal. ABREU, 2001). Araújo (2007) alerta para alguns aspectos que teriam justificado o propósito da divisão do Estado de Mato Grosso dos quais podemos destacar o diagnóstico apresentado pelo IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas em 1977 que fazia apontamentos que dialogavam com os da SUDECO. O estudo apontava a criação do novo Estado (chamado ainda de “Campo Grande”) como “um imperativo geopolítico, pelas dimensões, caráter fronteiriço e riqueza potencial. Também tratava da diferença regional em função de sua articulação com o centro-sul do país e indicava que os dois Estados dependeriam de auxílio federal por algum período, sendo o Norte (o que hoje compreende o Mato Grosso) mais do que o Sul (Mato Grosso do Sul). No caso do Sul, a União deveria transferir recursos para instalação dos poderes na capital do estado nascente, Campo Grande, federalização da universidade, assunção da dívida estadual, etc. No caso do Norte, pela perda de arrecadação, a União deveria aportar um valor mensal que cobrisse o déficit. Além do mais, para que surgisse um novo estado na federação bastavam apenas institucionalizar a divisão política, pois as diferenças regionais entre o norte e o sul eram tão enfáticas do ponto de vista tanto econômico, político e administrativo, como demográfico tendo como cenário de articulação com as demais regiões brasileiras, “duas capitais”: Campo Grande e Cuiabá. Então, o Estado ficou dividido em duas regiões muito bem definidas, com o centro-norte polarizado por Cuiabá e o Sul por Campo Grande. Nos outros casos de separatismo, como Triângulo Mineiro, Oeste da Bahia, Paraná e Pará, as cidades interioranas que postulam a emancipação têm população inferior à capital, que se consolida desta forma como pólo de todo o Estado. (...) Quando se observa hierarquia da rede urbana de ambas as regiões, fica clara a diferença na articulação com o sudeste brasileiro. Campo Grande é um centro regional situado na estrutura urbana da região centro-sul (Bacia do Prata) e, dentro desta, no sistema urbano de São Paulo, polarizando toda a região que hoje compõe o Mato Grosso do Sul. Já Cuiabá é um centro regional no centro-norte (Bacia Amazônica e AraguaiaTocantins), que se relaciona com São Paulo por intermédio de Campo Grande e da região do Triângulo Mineiro (Uberlândia, Uberaba) e polariza uma ampla região ao norte de Mato Grosso, o Estado de Rondônia e do Acre, onde disputa espaço com Manaus (metrópole regional). (ARAÚJO, 2007). A divisão também aconteceu ainda segundo Araújo (2007) num contexto autoritário, quando as forças políticas e econômicas nacionais elaboraram um projeto para a Amazônia e os Cerrados, expresso no binômio “segurança e desenvolvimento” da Escola Superior de Guerra. Ou seja, para que o norte de Mato Grosso se visse incluído nesse projeto, suas elites políticas tiveram que reconhecer a superioridade política, demográfica e econômica do sul, a fim de que o norte fosse emancipado e englobado nessa rede de “desenvolvimento” do governo federal. Para corroborar este raciocínio, cabe lembrar que até a década de 1960, havia apenas 4 Estados nas regiões centro-oeste e norte (Amazonas, Pará, Mato Grosso e Goiás) e na atualidade são 11, com a conversão dos territórios de Rondônia, Acre, Roraima e Amapá e a criação do Tocantins, Distrito Federal e Mato Grosso do Sul. Isto pode ser explicado pelo projeto de “modernização conservadora” das relações de produção na região amazônica e do cerrado implementado pelo regime civil-militar. (ARAÚJO, 2007) Em 11 de outubro de 1977, o presidente Ernesto Geisel assinou a Lei Complementar 31 determinava que o estado de Mato Grosso do Sul passaria a ter sua organização política própria com a posse do novo corpo político legislativo e executivo em 1º de janeiro de 1979. 1.5.1 Mato Grosso no contexto da Contrarreforma Agrária A criação da CODEMAT – Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso em 1968 pelo governo Pedro Pedrossian coincide tanto com o propósito divisionista do Estado de Mato Grosso quanto com o propósito daquele governo de reorganizar a máquina pública criando instituições (agências, secretarias) que aplicariam ao Estado o tecnicismo necessário para atender ao propósito do regime no momento de transição entre os governos dos presidentes Castelo Branco e Costa e Silva, coincide também com a fase em que a Ditadura havia apertado o cerco contra os levantes a favor da reforma agrária. Apresentadas como parte das políticas públicas implementadas pelo governo federal durante a Ditadura Militar para resolução dos problemas agrários no Brasil. Tais práticas eram travestidas de uma aura pseudo-democrática e empresas como a CODEMAT revestidas da concepção de competência para colocar em prática as ações do Estado fazendo parecer que este detinha o monopólio de tais práticas. Quando o que ocorria era a concessão à determinadas instituições para solucionar os problemas do Estado e em nome do discurso do desenvolvimento nacional assumiam o papel de gerenciar tais políticas públicas. Com o desmembramento do Sul, e a emancipação do Norte a reorientação da colonização das terras devolutas em Mato Grosso17 aproximava-se mais da fronteira amazônica. No sentido geográfico, os principais núcleos/projetos de colonização implementados e executados pelas empresas particulares se efetivaram no Norte do estado ao longo da BR 163 (basicamente podem ser citadas as INDECO - Integração Desenvolvimento e Colonização e SINOP – Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná) empresas de colonização particulares que desenvolveram seus projetos que deram origem principalmente às cidades de Alta Floresta e Sinop no Norte de Mato Grosso. Como bem salientou Sonia Regina de Mendonça (2007) tais práticas do Estado não eram monopólio ou vontade exclusiva deste, nem emanavam naturalmente do Estado. Senão não seriam “criadas” empresas como a CODEMAT. Todo esse contexto estava relacionado à política internacional da Guerra Fria no qual o Brasil estava inserido alinhado ao modelo econômico norte-americano. Não se trata de um liberalismo total à luz do lasse faire onde o Estado não intervém na economia, tampouco é o monopólio do Estado sobre as políticas públicas que organizam o desenvolvimento econômico. O governo da Ditadura regulamentava as práticas através, principalmente, dos Atos Institucionais e concedia a gerência de tais práticas, como a colonização, por exemplo, às “agências” ou “agentes” que ficavam responsáveis por desenvolvê-las partindo, como já dissemos, da ideia de segurança nacional e do modelo nacional desenvolvimentista sob a égide da DSN. 17 Segundo Joanoni Neto (2007), no qüinqüênio 1951/1955, mais de 20 empresas particulares foram contratadas pelo governo estadual para que se instalassem nas terras devolutas do Estado e implementassem projetos de colonização. Por isso a retomadas da política de colonização nos anos 1970 e início dos anos 1980 representava uma reorientação de tal prática. É bom que se diga, no entanto, que o maniqueísmo, inerente à matriz liberal da concepção do Estado, não é seu privilégio exclusivo. Ele igualmente se insinua, até mesmo, junto a certos estudos marxistas mais ortodoxos ou reducionistas, que focalizam o Estado como Objeto privilegiado da dominação dos interesses de uma classe ou fração específica. Por certo não se está aqui desconsiderando as enormes distinções existentes entre esta abordagem e a matriz liberal, sobretudo pelo fato de a matriz marxista admitir que a sociabilidade humana é coletiva, histórica e classista. No entanto, supor o Estado enquanto monopolizado por uma única classe ou fração, tem resultados igualmente empobrecedores e restritivos. (MENDONÇA, 2007). Foi a partir da implementação de tais políticas públicas que o estado de Mato Grosso passou por uma série de transformações sociais e econômicas, que influenciaram em sua formação populacional e, consequentemente, cultural. Contexto da regulamentação e do incentivo do governo federal para (re)ocupação dos vazios demográficos via política de colonização. Segundo Guimarães Neto (2006) essa via representou “instrumentos políticos de controle não apenas ao acesso à terra, mas ainda da formação de um mercado de mão de obra, recebendo vultosos incentivos financeiros do governo brasileiro, patrocinando a iniciativa privada”. Em 1971 o Decreto 1.164 de 1º de abril, ao declarar que as terras devolutas situadas nas margens de cem quilômetros das rodovias federais já construídas ou em construção seriam indispensáveis para a segurança nacional, declarava também que o Conselho de Segurança Nacional ficava responsável por estabelecer as normas para a implantação de projetos de colonização ou a concessão nas terras devolutas mencionadas. A brecha desse decreto estava no fato de admitir os projetos de colonização ao longo das rodovias em construção. Ou seja, as empresas de colonização implementariam os projetos em lugares de difícil acesso, pois é sabido que no caso do estado de Mato Grosso ainda hoje muitos trechos das BRs mencionadas nessa regulamentação não foram concluídos. Ou existem falhas na abertura dessas vias, como trechos sem pavimentação asfáltica, o que tornava a entrada ou saída das áreas dos núcleos de colonização quase inacessível principalmente no período das chuvas. A própria CODEMAT em determinados momentos da implementação do Projeto Juina no Noroeste de Mato Grosso, recorreu à justificativa da dificuldade de acesso ao núcleo devido às condições naturais da região. E isso porque foi a própria companhia (empresa) que ficou responsável pela abertura da estrada de acesso à área de implantação do projeto, a rodovia estadual AR-1 ligando a cidade de Vilhena no estado de Rondônia, num traçado horizontal no sentido Oeste-Leste até a área do projeto dentro dos limites do município de Aripuanã; abrindo um caminho de 400 quilômetros que passaria por territórios ancestrais de povos indígenas como os Erikibaktsa e os Cinta Larga. Em 1972, a Lei nº 3.307 de 18 de dezembro reservou extensa aérea de terra devoluta na região Noroeste de MT à CODEMAT, com a finalidade de desenvolver projetos de colonização. Esse território estava compreendido dentro da área pertencente ao município de Aripuanã. Foi nesse território que a CODEMAT desenvolveu o Projeto de colonização Juina. O Projeto Juína nasceu em 1976, foi consolidado pelo INCRA em 17 de setembro de 1978, através da Portaria 907. Em 10 de junho de 1979, a Lei 4.038 criava o distrito de Juína e já em 09 de maio de 1982, a Lei 4.456 desmembrava Juína de Aripuanã, oficializando a criação do município. (JOANONI NETO, 2008). Se para o Estado autoritário militar a colonização era apresentada como uma solução para o escoamento dos contingentes populacionais para as áreas territoriais brasileiras esvaziadas de população produtiva, pelo menos o discurso era esse; para as empresas colonizadoras privadas ou públicas como a CODEMAT, a colonização era a efetivação da fronteira natural da Amazônia legal em fronteira agrícola. Mas antes disso viria o desmatamento, a desterritorialização de um número considerável de população indígena e de posseiros, a mineração através dos garimpos de diamantes18. Segundo Guimarães Neto (2006) os projetos que se instalaram em Mato Grosso nesta fase entre 1970 e 1990, são analisados como estratégia política dos governos militares de controle dos conflitos agrários no Sul, Sudeste e Nordeste; mas impediam o livre acesso de trabalhadores sem terra e pequenos proprietários às terras devolutas do Estado. As medidas governamentais que estimularam a ocupação dirigida à Amazônia, em parceria com a iniciativa privada, foram implementadas no âmbito dos Planos Nacionais, que reestruturaram novas práticas de domínio político para o território 18 Sobre os garimpos de Juína consultar a dissertação de Mestrado de Júlio Cesar dos Santos apresentada ao PPGHis – UFMT – 2012: Garimpos de Juína: entre Histórias, Relatos e Memórias (1986-1094). Notese que pelo recorte temporal desse trabalho, os garimpos de Juína floresceram em meados da década de 1980. Nessa época a CODEMAT se retirou da área do núcleo de colonização, mas como apresentamos no TCC em 2005, o Projeto Juina, apesar de ter dado origem à cidade de Juina, atualmente reconhecida pelo Estado como uma cidade-pólo regional, na época não contou com a instituição que o criou, no caso a CODEMAT, para sua conclusão de acordo com o que havia sido acordado com o governo do Estado. Muito menos se cumpriu com o que havia sido prometido aos colonos vindos principalmente da região Sul do Brasil que adquiriram lotes na área do projeto através de compras. nacional. Os pólos de desenvolvimento econômico, as políticas de incentivos fiscais e a implementação de grandes eixos rodoviários na região Amazônica encontram-se entre as estratégias mais importantes para a exploração econômica dos “novos espaços”. Em Mato Grosso, o termo colonização foi empregado pelas empresas colonizadoras e pelo Estado no sentido mítico do Eldorado. Através de campanhas publicitárias que buscaram convencer e atrair contingentes populacionais para as áreas dos projetos, os pequenos proprietários de terras principalmente da região Sul do Brasil, entregavam suas pequenas posses de terras em troca de pagamentos bem abaixo do preço de mercado partiam rumo à fronteira amazônica no Norte de MT na esperança de multiplicarem em termos materiais o que deixaram para trás. Assim, o trabalhador do campo com capital mínimo para adquirir um lote nas áreas dos projetos de colonização, passava a ser chamado de colono. Colono era quem adquiria o direito à propriedade da terra no projeto de colonização através da compra. O colono não era um assentado. Assentado é o trabalhador do campo que adquiri o direito à terra via distribuição desta por meio da real desapropriação por parte do Estado que à redistribui formando núcleos rurais de pequenos produtores, o que condiz mais adequadamente às expectativas da Reforma Agrária. Nos núcleos de colonização oficial particular ou pública em MT nos anos 1970 e 1980 não havia espaço social ou geográfico para assentamentos rurais. O tipo ideal era o colono, ou seja, o mercado de terras. O outro lado mítico do termo era o de remontar ideologicamente à figura do bandeirante do Brasil Colonial, que, por sua vez, representava no imaginário da época e por que não dizer, na cultura de boa parte dos brasileiros, um personagem histórico cuja imagem construída, é a de um híbrido de valentia e bravura, daquele que é capaz de enfrentar as situações mais inesperadas e insalubres como a de encarar a floresta com todos os seus riscos do “mundo selvagem”: animais peçonhentos, onças, rios de corredeiras, árvores gigantes. Como descreve Guimarães Neto 2011, O termo colonização, adotado pelos meios oficiais e pelas empresas que atuaram em grandes áreas de terras nos estados que compões a Amazônia, emite signos de bravura e conquista e se apresenta como desafio onde só os fortes triunfarão. Assim, a política de instauração de um grande mercado de terras se apresenta associada também a uma dimensão heróica. Esta muitas vezes, aparece nos próprios relatos de memória de muitos homens e mulheres e entrevistados, misturada ao sofrimento, à exploração e às injustiças que também narram. (...) As empresas de colonização, que se constituíam para tais fins, coordenavam a instalação dos núcleos, onde se estabeleciam o grupo de agricultores – renomeados de colonos – o escritório da empresa e a cidade que ia sendo construída. (GUIMARÃES NETO, 2011). Para no final orgulhar-se de ter participado da empreitada da construção de uma cidade no meio da floresta como foi o caso de alguns colonos do Projeto Juina da CODEMAT. Mas poderia ser também o caso dos projetos de colonização empreendidos pelas empresas particulares. Tal orgulho acaba fazendo parte de uma memória que não é exatamente a representação do passado, mas antes é seletiva: “um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional” (ROUSSO in FERREIRA e AMADO, 2002). Além de seletiva, a memória é coletiva e concerne identidade ao grupo (HALBWACHS, 2006). Então, é responsável pela construção de uma ideia de pertencimento e dificilmente as pessoas querem que sua identidade seja associada ou pertencente à uma imagem de fracasso. Halbwachs (2006) trata a história como a responsável pela apreensão dos fatos que estão armazenados em determinados aspectos da memória. Para as empresas de colonização essa expectativa de esperança era o que movia o negócio da venda de terras. No estado de Mato Grosso, o maior remanescente dos chamados “espaços vazios” em volume de áreas contínuas de terras devolutas, encontrava-se localizado na parte pertencente à região Noroeste, nos limites territoriais do município de Aripuanã. Como o espaço geográfico “é um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de ações que variam conforme as épocas” (SANTOS, M. 1978), no final da década de 1970 e início dos anos 1980, as áreas que antes eram consideradas impenetráveis ou de difícil acesso, passaram a esta instituição, a CODEMAT. Ela, por sua vez, através de variadas ações latentes (MARY DOUGLAS, 1998) construiu a ideia de que os espaços que lhe reservara o Estado de Mato Grosso para implantação de uma política de reocupação territorial podia ser o palco para novas possibilidades de desenvolvimento econômico do país através da expansão das frentes de trabalho (MARTINS, 2009) na fronteira amazônica mato-grossense. Para finalizar esse capítulo, posiciono a CODEMAT como uma instituição que em meio ao cenário de alinhamento do Estado de Mato Grosso aos projetos do governo federal, sob um estado de exceção da democracia, foi aquela que, segundo Mary Douglas (1998) “criou lugares de sombreamentos no qual nada pode ser visto e nenhuma pergunta pode ser feita”. A fim de adquirir legitimidade, toda instituição precisa de uma fórmula que encontra sua correção na razão e na natureza. Metade de nossa tarefa consiste em demonstrar este processo cognitivo na fundamentação da ordem social. As instituições criam lugares sombreados no qual nada pode ser visto e nenhuma pergunta pode ser feita. Elas fazem com que outras áreas exibam detalhes muito bem discriminados, minuciosamente examinados e ordenados. A história surge sob uma forma não-intencional, como resultado de práticas direcionadas a fins imediatos, práticos. Observar essas práticas estabelecerem princípios seletivos que iluminam certos tipos de acontecimentos e obscurecem outros significa inspecionar a ordem social agindo sobre as mentes individuais (MARY DOUGLAS, 1998). Levantar um debate que historicize a respeito da CODEMAT nesse contexto da colonização em Mato Grosso é fazer a análise de como essa instituição deu luz àquilo que lhe convinha, através do discurso e da propaganda fomentando seu negócio da venda de terras com o aval do governo do Estado sob a égide do discurso do regime autoritário militar. A colonização seria a resolução para os problemas sociais no campo por conta do acesso à terra e que esse dispositivo criado era necessário por uma questão de segurança nacional pois envolveria a reocupação das terras devolutas da Amazônia Legal em Mato Grosso. No discurso criado propositalmente, foram obscurecidas as consequências sociais e econômicas de tais práticas. Algumas são: a exclusão da maioria de trabalhadores pobres descapitalizados da área do projeto que quando não acontecia pela via monetária, era pela violência estabelecida pelo uso da força dos chamados seguranças da colonizadora para manter quem não era bem vindo de fora; como já dissemos, a desterritorialização dos povos indígenas, posseiros; o desmatamento, quando não para formação do núcleo urbano ou rural, para atender às madeireiras; exploração mineral; e mais recentemente, o agronegócio. CAPÍTULO 2: A COLONIZAÇÃO COMO PRÁTICA DO ESTADO AMPLIADO NAS AÇÕES DA CODEMAT 2.1 A institucionalização política da CODEMAT Na retórica do discurso da Marcha para Oeste, concretizado pela inauguração da nova capital Brasília na região Centro-Oeste, os governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e das décadas de 1960 e 1970 com os governos do regime autoritário militar, deram sequência aos projetos de colonização outrora pretendidos por Vargas. Tal política passou a ser mais evidenciada quando da abertura das rodovias nacionais que ligariam as regiões brasileiras atraindo um expressivo contingente populacional para a fronteira amazônica nesse mesmo período. Para regulamentar, promover, executar, coordenar e controlar a colonização e as linhas de crédito para a aquisição de terras foram criados o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária que substituiu o Instituto de Reforma Agrária através do Decreto 1.110 de 9 de julho de 197019 e o PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terra e Estímulo à Agroindústria pelo Decreto-Lei 1.179 de 6 de julho de 197120. O Estado criou uma instituição que no próprio nome trazia a ideia de Reforma Agrária, o INCRA. Mas na sequência criou um programa para facilitar o acesso à terra pela compra, venda e desapropriação com os recursos do PROTERRA. Ou seja, privilegiou-se a colonização. Sendo assim, as empresas colonizadoras passavam a receber incentivos do Estado para mediarem a instalação dos projetos de colonização. Como conseqüência, facilitava-se o estabelecimento da grande propriedade, que nos anos 1990 efetivaria o agronegócio em Mato Grosso. Privilegiar a colonização foi a saída encontrada pelo regime para fazer aquilo que Ianni chamou de “contra-reforma agrária”. Tratava-se na prática de “distribuir alguma terra para não distribuir terra alguma” (IANNI, 1979). A Reforma Agrária passou a ser o principal motivo para os opositores ao regime (na fronteira amazônica) continuarem a luta pela posse da terra. Pesquisa documental realizada no arquivo da MATEMAT que guarda os documentos que restaram da CODEMAT, entre eles o Caderno Estadual de 19 Fonte: http://www.incra.gov.br/content/o-incra - Acesso em 25/03/2015 Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1179.htm - Acesso em 25/03/2015 20 Colonização Projeto Juina - Volume I somada à análise dos dados partindo da compreensão do contexto político sobre o qual tais documentos foram “produzidos”, ou seja, fabricados, têm servido de alavanca para construção da crítica a respeito da atuação da extinta companhia na condução da colonização endossada pelo governo do estado de MT no período apresentado. As ações da CODEMAT na colonização oficial de Mato Grosso através do Projeto Juina datam do ano de 1978. A Companhia já havia sido constituída há dez anos. Atravessou e sobreviveu à divisão política do Estado entre 1977 e 1979 que criou o Estado de Mato Grosso do Sul e é provável que o tenha conseguido justamente porque sua área de interesse estivesse situada no noroeste de Mato Grosso, já que a implantação do Projeto Juina seria desenvolvida nas terras devolutas situadas na área territorial que fazia parte do município de Aripuanã. A CODEMAT foi criada pelo governo do estado de Mato Grosso em 1968 em sincronia com a política desenvolvida pelo regime autoritário militar, seguindo a proposta de integração e desenvolvimento econômico e a Doutrina de Segurança Nacional. Sua criação correspondia para o estado de Mato Grosso o que a SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste21 representava, ou pelo menos deveria representar, para região Centro Oeste. Institucionalizada sob a forma de empresa pública de economia mista e sociedade anônima, a criação da CODEMAT pelo governo do Estado de Mato Grosso no período pré divisão se justificava para promover o desenvolvimento econômico em substituição às ações coordenadas pelo DTC – Departamento de Terra e Colonização criado em 1946 e em concomitância com a CPP – Comissão de Planejamento e Produção existente desde 1947 para orientar a colonização em MT. Depois de tantas vezes acusado por fraudes no tratamento dado às questões fundiárias do estado, o DTC teve seu fechamento em 1966 e a CPP deixou de existir como autarquia e suas competências transferidas à CODEMAT. Segundo Gisleane Moreno (1994), o fechamento do DTC no momento em que o Governo Federal abria as portas da Amazônia para a entrada do capital nacional e internacional, cujas bases de investimentos se assentavam na aquisição de grandes porções de terras devolutas, A SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste foi criada em 1º de dezembro de 1967 pela lei Nº 5.365, seria responsável por promover dentro da lógica do novo regime que se estabelecera em 1964, a Ditadura Militar, o desenvolvimento econômico da região Centro Oeste. 21 favoreceu ainda mais a especulação e a negociata de documentos “frios” (títulos voadores), protocolos sem valor legal, procurações falsas. Quando a CODEMAT foi criada, a regulamentação que definia uma empresa de economia mista e sociedade anônima era menos rígida do que hoje em dia. Com base na literatura relacionada é possível formar uma ideia de como era estabelecida a criação destas instituições. O jurista De Plácido e Silva (2009) expõe que sociedade de economia mista é “aquela que, criada por lei, tem personalidade jurídica de direito privado e se destina à exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito de voto pertençam majoritariamente ao Poder Público”. Portanto, dá-se o nome de sociedade de economia mista à pessoa jurídica de direito privado, com participação do poder público e de particulares em seu capital e em sua administração, para realização de atividades econômicas ou serviço de interesse coletivo outorgado ou delegado pelo Estado. Revestem-se a forma de empresas particulares, regendo-se pelas normas das sociedades por ações com as adaptações impostas pelas leis que autorizam sua formação. Daí se explica as atas das assembléias dos acionistas encontradas anexadas junto ao Programa Estadual de Colonização. A CODEMAT através de seus agentes, fazendo uma referência ao estudo de Sonia Regina de Mendonça (2007), a respeito das ações do Estado através das instituições por ele nomeadas para colocar em prática seus projetos de governança através de seus servidores públicos/agentes públicos, criada para cooptar recursos do governo federal através principalmente da SUDECO e do governo estadual, tratou de apresentar o resultado de sua Assembleia Geral dos Acionistas imediatamente após o decreto de sua criação. O documento constituído pela ata dessa assembleia expõe quais seriam as atividades votadas pelos acionistas para aprovação pelo Estado de seu Estatuto Social de Fundação, Importação e Exportação; Construção civil, inclusive projetos habitacionais para venda das unidades nas condições do Sistema Financeiro da Habitação; Programas com o objetivo de promover o aproveitamento econômico da terra, de garantir melhores condições de fixação do homem à terra visando seu progresso econômico e social.22 A concepção de desenvolvimento do Estado em contexto posicionava esse discurso como responsabilidades assumidas pela empresa nas áreas de construção civil, abertura de estradas, mineração, energia elétrica, retransmissão de sinais de TV e a 22 Trecho extraído da Ata da Assembleia Geral dos Acionistas da CODEMAT realizada em 10/02/1968. colonização que viria a ser o negócio do momento num país cujo plano nacional de desenvolvimento econômico estava focado em transformar o problema de acesso à terra em plataforma política a partir daquilo que o regime convenientemente chamou de “a solução para os conflitos sociais pela posse de terras” e Ianni (1979) atentamente chamou de contra-reforma agrária. Assim, o “desenvolvimento econômico” foi colocado pelo governo estadual e, mais ainda, pela CODEMAT como competência para alienar e comercializar as terras devolutas pertencentes ao Estado de MT. “Alienar” significava que em algum momento estas terras seriam entregues de volta ao domínio do Estado. Isso não aconteceu até o presente momento. Daí João Mariano de Oliveira (1982) cunhou a expressão “beliches fundiários” usado pelos próprios agentes públicos do antigo DTC e da CPP para se referir à titulação sobreposta numa demonstração clara tanto da especulação fundiária como da ocorrência de fraudes na documentação de posse de terras entre os anos 1960 e 1970 em MT. As terras devolutas situadas nas zonas de fronteira amazônica, o que incluía o Noroeste de MT, passaram em sua maioria à tutela da União e do Conselho de Segurança Nacional. Ao governo do estado de MT ficou a responsabilidade fundiária de 40% da área total de seu território entre 1971 e 1987 (Decreto nº 1.1164/71). As ações fundiárias que competiam à União foram desenvolvidas pelo INCRA e aquelas de responsabilidade do governo estadual, entregues à CODEMAT que por sua vez teria que estar regulamentada junto ao INCRA por caracterizar-se como colonizadora e, portanto, seus projetos de colonização teriam que ser aprovados e regulamentados. A autorização junto ao INCRA foi expedida na Portaria 683 de 13 de abril de 1978 (vide Anexos). Foi dessa forma que se implantou em Mato Grosso, seguindo a idealização de segurança e integração nacional como já discorremos a respeito; os pólos de desenvolvimento como o POLOAMAZONIA, POLOCENTRO, POLONOROESTE que serviam ao incentivo fiscal para o desenvolvimento dos projetos voltados não para o assentamento do trabalhador do campo ou mesmo do pequeno proprietário, mas ao interesse das empresas agropecuárias e à exploração de recursos minerais. Ou seja, para legitimar o processo de privatização desenfreada das terras devolutas do estado de Mato Grosso utilizando-se para isso do pretexto da reforma agrária sob a prática da colonização apresentada como política pública. A apresentação das políticas de colonização do governo federal sob o pretexto de aliviar as tensões sociais no campo provocadas pela forte concentração de terra em outras regiões do Brasil serviu em parte para deslocar o problema e a atenção para mais ao centro e ao Norte do país. E a maior parte das terras continuaria pertencendo aos grandes proprietários. O discurso de expansão da fronteira agrícola passaria ao agronegócio que presenciamos em Mato Grosso. Nas décadas de 70/80, foram implantados em Mato Grosso 268 projetos de “colonização empresarial”, sendo 84,9% voltados ao desenvolvimento da agropecuária. Muitos deles não foram executados, e outros se dedicaram à exploração extensiva da pecuária de corte. Entretanto, todos serviram de pretexto para a privatização de grandes áreas ocupadas por antigos posseiros, provocando o aumento de tensões e violências no campo e o fortalecimento da concentração fundiária no Estado. No mesmo período, foram implantados 87 projetos particulares de colonização e 14 projetos oficiais, excluindo os projetos de assentamento que se caracterizam pela regularização de áreas ocupadas, e incluindo o Projeto Juina da CODEMAT. (GISLEANE MORENO, 1999). Mediante a institucionalização da CODEMAT como a colonizadora oficial do Estado, por meio da política nacional de reocupação dos espaços vazios da Amazônia, a empresa dirigiu projetos públicos e particulares vinculando o surgimento de novos municípios no Noroeste de Mato Grosso à campanha desenvolvimentista de expansão das frentes de trabalho na fronteira amazônica. O resultado da atribuição dessa competência foi a alienação de áreas devolutas pela CODEMAT às colonizadoras particulares, a saber: dois milhões de hectares de terras foram alienados a quatro empresas particulares: RENDANYL, INDECO, COLONIZA E JURUENA para que implantassem seus projetos de colonização particulares nos últimos anos da década de 1970. Sendo que o prazo estipulado para efetivação desses projetos era de cinco anos. De acordo com a lei estadual 3.307 de 1972, todas as terras devolutas do espaço geográfico que abrangiam o município de Aripuanã foram reservadas aos programas que visassem a ocupação ordenada dos “espaços vazios” através da política de colonização. Em 1976, segundo a lei 3.744 de 10 de junho, o Estado destinou para alienação parte dessas terras. A alienação seria feita por licitação pública em lotes de até 3 mil hectares para fins agropecuários, independentes de projetos de colonização e comprovação da capacidade de uso do solo para lavoura. Podendo ocorrer de um mesmo interessado adquirir vários lotes e formar grandes fazendas favorecendo a formação de latifúndios. O produto da alienação das terras devolutas do município de Aripuanã foi assim distribuído: de 10% a 20% na implantação de obras de infraestrutura no município de Aripuanã, ao qual pertencia a área de projeto; de 80% a 90% na implantação do Centro Político Administrativo (CPA) da capital do estado, Cuiabá em 1979; o restante, se houvesse, em outros projetos específicos do governo estadual. O que nos leva a deduzir que parte do lucro da venda dos lotes teria sido aplicada na construção de prédios que sediam órgãos públicos estaduais com sede em Cuiabá. Inclusive para a construção do Palácio Paiaguás que se tornou a nova sede do governo após a divisão de Mato Grosso em 1979. Com o advento do Programa POLOAMAZONIA, deu-se início ao programa de colonização da região noroeste do estado. Cinco dos quinze pólos de desenvolvimento estabelecidos pelo POLOAMAZONIA, estavam no Centro Oeste, e destes, três em Mato Grosso, sendo dois no noroeste do Estado, um em Juruena e outro em Aripuanã, tornou possível não só a construção da Rodovia AR-1, como o desenvolvimento do Projeto Juina. (JOANONI NETO, 2004). A abertura da Rodovia AR-1 representa nesse contexto uma das primeiras ações da CODEMAT para os planos da colonização ligando a cidade de Vilhena (RO) a Aripuanã com a pretensão de instalação de uma cidade nascida de projetos de colonização a cada 100 quilômetros de seu percurso, o qual deveria se estender no sentido sul-norte até encontrar a Transamazônica. O Projeto Juina seria um deles. Mas acabou sendo o único de Vilhena a Aripuanã. Para as empresas colonizadoras, a abertura das novas rodovias federais e estaduais representavam a materialização do “desenvolvimento e do progresso” do qual tanto se falava. Progresso do aperfeiçoamento das técnicas usadas no desmatamento de grandes extensões da floresta nativa, da exploração e mercantilização da madeira e dos minérios. Seria através dessas estradas que chegaria a personificação do espírito colonizador que a CODEMAT tentava incutir na mentalidade dos colonos através da propaganda que podemos interpretar assim: ao colono cabia o “espírito colonizador”, à CODEMAT, a “missão de civilizar”. Esse plano levado a cabo causou um desequilíbrio ambiental impossível de se medir. Além da aculturação de povos indígenas; a transformação do posseiro em “peão de trecho”; dos trabalhadores do garimpo em “foras da lei”; e do trabalhador rural migrante em colono. Sendo este último atraído pela esperança da aquisição de terras férteis para o plantio e de uma vida mais próspera, pois convencido pela propaganda acreditava ser aquele sujeito social que de fato interessava economicamente à CODEMAT. 2.2 CODEMAT e o Projeto Juina Segundo Joanoni Neto (2007), a propaganda divulgada pela CODEMAT na região Sul do Brasil para atrair os colonos “garantia terras férteis, falava das possibilidades de desenvolvimento, progresso e lucros”. Pelas propostas apresentadas no Caderno Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I, estavam previstos três tipos de ligações terrestres à área do projeto: estradas de penetração, estradas rurais e caminhos vicinais. Essas ligações constituem em si mesmas a principal propaganda das ações da CODEMAT. Seriam então, em 1977, 68 quilômetros de abertura de estradas de acesso; 91,35 quilômetros de estradas rurais prontas até 1979 e 461,75 quilômetros de caminhos vicinais. Estes últimos seriam os caminhos de acesso curto aos lotes rurais que se localizassem fora do eixo das estradas rurais. O que a propaganda não falava era que ao chegarem à área do Projeto Juina, encontrariam um cenário bem diferente daquele descrito nos encartes de propaganda divulgados pelo CODEMAT. Como, por exemplo, o fato de não haver estradas de acesso entre o núcleo urbano e os lotes rurais. O que havia eram os “picadões”, trilhas nas quais só se passava a pé, sem nenhuma estrutura de apoio aos colonos. Os tais “picadões” eram mal traçados que rapidamente eram tomados pela mata. O aparelho ideológico da colonização é movido pelo motor da propaganda. Através dela, a “colonização é divulgada sob o signo da modernidade” (JOANONI NETO, 2001). Esta suposta modernidade era seletiva. Considerava os colonos sulistas como os ideais – os únicos capazes de empreender o desenvolvimento econômico na fronteira amazônica. Mas a seleção não pára por aí. Não bastava ser sulista para adentrar na área do projeto. Esta seleção era muito mais complexa. Envolvia desde a naturalidade, a cultura e principalmente as condições econômicas. A CODEMAT estabeleceu os critérios de seleção dos colonos baseada nas informações contidas no Cadastro Geral do Colono. Consta no Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I, no capítulo IV, p. 3 (ver anexo) quais seriam esses critérios. Entre outras exigências, os colonos que pretendessem adquirir um lote no Projeto Juina deviam apresentar: comprovante de crédito junto ao Banco do Brasil, comprovar experiência em atividades agrícolas que poderiam ser expedidas também pelo Banco do Brasil ou junto aos sindicatos rurais aos quais fosse credenciado e apresentar comprovação de bons antecedentes. A compra do lote era negociada ainda no estado de origem desses colonos, frequentemente vindos do Paraná. Também podia ser negociada nos escritórios que a CODEMAT mantinha em Cuiabá e na cidade de Vilhena (RO), por onde saía a principal estrada de acesso à área do projeto, a Rodovia AR123. Os colonos que não possuíssem a “carteira de colono” eram orientados pelos funcionários da CODEMAT a providenciarem o Cadastro Geral do Colono (ver anexo) na sede do INCRA em Cuiabá. Isso depois que passarem pelas triagens que checavam se as informações dadas a respeito de suas origens com experiência no campo eram reais e se possuíam de fato capacidade econômica para aquisição do lote e de sua produção agrícola. Era uma das formas que a CODEMAT encontrava de manter o controle sobre a entrada dos contingentes populacionais na área do Projeto Juina. Ou seja, seleção e exclusão eram as etapas pelas quais um candidato a colono do Projeto Juina podia passar. Outra forma era estabelecida através das barreiras físicas ao longo das estradas de acesso à área do projeto com o uso das cancelas, chamadas por muitos de “correntões”. Se uma família de colonos chegasse até o km 100, local de uma dessas cancelas sem o documento de identificação de colono, teria que retornar a Cuiabá para conseguir o documento. Quando isso acontecia, o pai/chefe da família voltava até a capital. A família ficava ali à beira do caminho onde geralmente montava-se um acampamento por dias, as vezes semanas dependendo da época do ano. No período das chuvas, por exemplo, levava-se muito mais tempo, pois os atoleiros da estrada e as precárias linhas de ônibus atrasavam ainda mais a viagem. Os colonos que adquiriram lotes no Projeto Juina recebiam da CODEMAT as propostas que lhes asseguravam vantagens irrecusáveis, a saber, a chance de melhorarem suas vidas, no sentido material do termo. Era a oportunidade de alcançarem o “sonho do eldorado”, a “terra prometida” e sagrada para os trabalhadores rurais, especialmente se fosse em abundância e com recursos para se fixarem e cultivarem como propunha o Programa Estadual de Colonização. A terra representava para eles uma condição de possibilidade de liberdade. “Tratava-se de possuir um espaço próprio 23 Nos anexos desse trabalho encontra-se um mapa geográfico do Estado de Mato Grosso através do qual é possível analisar a distância e a localização do Projeto Juina em relação as cidades de Cuiabá (MT) e Vilhena (RO), bem como a área de terras devolutas do município de Aripuanã com o traçado da Rodovia AR1. para nele viver como camponês, na independência, mas também representava a recusa da situação proletária” (TAVARES DOS SANTOS, 1993). Dentre as garantias de assistência econômica propostas aos colonos pela CODEMAT, destacavam-se: Criação e desenvolvimento de comunidade rural e urbana com toda a infraestrutura econômica e social que assegurasse à população condições dignas de vida. A fixação das famílias dos colonos em chácaras e lotes agrícolas, assegurando-lhes uma situação econômica definida. Criação de condições para a instalação de empresas agropecuárias, agro-florestais e agroindustriais no sentido de garantir a consolidação da economia regional e manter a oferta de empregos diretos, seja pela utilização da mão-de-obra assalariada. Promoção do homem rural proporcionando-lhe reais oportunidades de trabalho, organização de comunidades, assistências sociais e econômicas.24 Sendo que além dessas garantias, era dever da colonizadora assegurar dentre a infra-estrutura adequada para receber os colonos: condições de transporte, vias de acesso entre os lotes rurais, os sub-núcleos e o núcleo urbano, escolas, segurança pública e pelo menos um hospital para atender as famílias dos colonos nos primeiros três anos de implantação do projeto. Pela proposta da CODEMAT, a cidade que nasceria desse projeto de colonização apresentava-se de acordo com o descrito no Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I, com uma planta cuja estrutura do núcleo urbano seria organizada em módulos octogonais. Todos os módulos deveriam seguir o modelo do desenho arquitetônico do primeiro, intitulado Módulo Pioneiro. Quando chegavam ao Módulo Pioneiro na altura do km 180 da AR-1, onde se encontravam os alojamentos e a sede administrativa da CODEMAT, as famílias permaneciam por um tempo até a disposição do caminhão da CODEMAT que levava a mudança e as famílias até o local do lote adquirido. Entretanto, sabendo do isolamento ao qual se submeteram essas famílias, a falta de estradas e meios de acesso ao núcleo urbano, deduz que a estrutura prometida e anunciada pela CODEMAT não correspondeu às expectativas. Para Guimarães Neto (2001), que coletou depoimentos de algumas pessoas que haviam vivenciado essas experiências, fica a seguinte impressão: 24 Caderno do Programa Estadual de Colonização da CODEMAT / Projeto Juina. Vol. I, cap. IV p. 01. Quando o caminhão retornava, era como se rompesse o último elo com a vida civilizada. Dificilmente poderiam voltar. Além das dificuldades materiais para fazer o caminho de volta, a carga simbólica do retorno era incomensurável. Seria associado aos derrotados e perdedores. Assim procuravam permanecer. (GUIMARÃES NETO, 2002). Note que o termo “pioneiro” é recorrente quando se trata de projetos de colonização na fronteira Amazônica. Segundo o Dicionário Michaelis da língua portuguesa, o termo “pioneiro” significa “aquele que primeiro abre ou descobre caminho através de uma região mal conhecida”; ou ainda, “explorador de sertões”; “precursor”; “aquele que prepara os resultados futuros”. A origem o termo “pioneiro” vem do antigo vocabulário na língua francesa – “paonier”, e mais atualmente “pionnier”, que significava “infante, soldado que desloca a pé”, de “pied”, do latim pés, “pé”. Inicialmente designava o soldado que avançava antes dos outros para obter dados sobre o caminho25. Nos Estados Unidos, os colonizadores do norte do continente americano foram chamados “pais pioneiros” ou “pais peregrinos”, por terem sido os primeiros ingleses a cruzar o Oceano Atlântico na busca de novas terras para viver e criarem as primeiras colônias inglesas na América do Norte considerada por eles, um lugar inóspito a ser desbravado e civilizado nos séculos XVI e XVII. Mais tarde, após a Guerra de Secessão (1861-1864) os descendentes dos “pais pioneiros” justificavam a Doutrina do Destino Manifesto para ocupação das terras indígenas na Marcha para Oeste. Muito providencial para o contexto da colonização dirigida em Mato Grosso e para a pretensão do discurso oficial que remetia suas ações ao simbolismo do resgate da nova “Marcha para Oeste”. O termo “pioneiro” era empregado tanto no projeto de colonização quanto nas propagandas espalhadas Brasil a fora, mas principalmente no Sul e Sudeste para atrair interessados em adquirir lotes nos núcleos. Assim, convencidos pela esperança e da ideia do pioneirismo que vinha representada pelo estigma da busca e conquista da terra prometida e de fazer parte de algo grande que no futuro lhes fosse atribuído o status de herói, os colonos chegavam às áreas dos projetos de colonização em Mato Grosso. O planejamento da cidade de Juína em módulos continuou até o módulo 4. Sendo reservado um espaço para algum tempo depois de estabelecida a área urbana, serem erguidas a primeira escola e a primeira Igreja Católica de Juína no Módulo 1. A 25 É possível consultar esta informação no site: http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/pioneiro que por sua vez contem as devidas referências etimológicas. partir de então, a topografia do terreno fez com que o módulo 5 recebesse uma outra projeção. A partir dos anos 1980, alguns bairros periféricos como a Vila Operária surgiram. Em 1977 a construção das instalações administrativas e os alojamentos da CODEMAT foram concluídas para receber os colonos no núcleo urbano. Consta no registro do Balanço Patrimonial de 1978 que no final deste mesmo ano o Núcleo Urbano de Juína contava com 14 casas comerciais, 47 casas residenciais, 3 serrarias, 1 máquina de beneficiar arroz, 1 indústria de móveis, unidade sanitária da FUSMAT, 1 escola, 1 unidade de segurança e 1 posto de gasolina. Dividido pela CODEMAT em duas fases, o Projeto Juina apresentou em sua origem entre outros objetivos: “receber excedentes populacionais de outras regiões do país, ocupar racionalmente a região que se pretendia colonizar criando e desenvolvendo comunidades rurais e urbanas com implantação da infraestrutura econômica e social” (vide Anexo 1). Foram reservados 248 mil hectares para implantação da primeira fase do projeto, dos quais 182 mil seriam para o núcleo urbano e os sub-núcleos rurais e 66 mil reservados à alienação via licitação. Desenvolvido com as mesmas características dos demais projetos de colonização implantados por colonizadoras particulares, o Projeto Juina foi apresentado como uma política de Estado envolvendo os mecanismos que exigem a atuação de diferentes segmentos governamentais e em especial, dos responsáveis pelas atividades relacionadas com o crédito rural, assistência técnica, estradas rurais, saúde, educação, segurança. Os lotes eram vendidos de forma direta pela CODEMAT aos colonos ou poderiam ser adquiridos através de créditos fundiários do PROTERRA. Se o interessado optasse pela linha de crédito, as vendas eram efetuadas mediante pagamento à vista obedecendo as normas do PROTERRA. Vejamos bem o círculo vicioso que isso causa. O PROTERRA foi um programa do governo federal criado pelo decreto-lei 1.179 de julho de 197126. Esse programa foi criado com o objetivo de promover o acesso do homem à terra. Isso seria feito mediante desapropriações com indenizações, bem como, com liberação de empréstimos fundiários para os pequenos e médios produtores para aquisição de terras cultiváveis nas áreas de abrangência da SUDAM e da SUDENE. Acontece que o Projeto Juina foi desenvolvido nas terras devolutas do Noroeste de Mato Grosso. Sendo terras devolutas, pertenciam ao Estado. Ou seja, a 26 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1179.htm CODEMAT, se beneficiava com subsídios do Estado duplamente, pois de um lado captava recursos do governo federal para implantar o Projeto Juina e de outro, lucrava através da venda de terras diretamente e via financiamento do PROTERRA que ficava responsável pela alienação em caso de descumprimento do pagamento do financiamento. Para a venda direta a CODEMAT chegava a parcelar em até três anos o pagamento do lote com juros de 12% ao ano. Sendo que exigia 40% do valor cobrado de entrada. Uma das formas usadas pela empresa para convencer os interessados na compra dos lotes rurais foi oferecer–lhes um lote menor no núcleo urbano, se efetivassem a compra do lote rural ou chácara. As chácaras eram lotes menores e mais próximos do núcleo urbano. Eram vendidas aos interessados em desenvolver produção de hortaliças e granjas. Os lotes rurais chegavam a ter 210 hectares e eram vendidos preferencialmente aqueles interessados em desenvolver lavouras de cultura permanente e/ou de subsistência. Ao estabelecer planos de pagamento parcelados em até três anos, a CODEMAT assegurava a permanência do colono na área do Projeto Juina. Um prazo no qual o colono faria a derrubada da mata, revolveria o solo e começaria a plantar. Assim a empresa poderia ter maiores garantias de que esse colono não desistiria do projeto. Nos casos dos pagamentos parcelados o título definitivo de posse só seria fornecido após o pagamento total da última parcela. Além disso, o colono teria que comprovar estar livre de qualquer desabono no cumprimento das normas expressas na “carteira de colono”. Como por exemplo, devia ter pelo menos 20% da área de seu lote ocupada com lavoura. Pela experiência histórica, objetivos de “natureza ampla” como os da CODEMAT, figurados na ideologia da modernização e progresso através do desenvolvimento econômico nacional, acabavam se desvirtuando e diante de uma margem tão grande de possibilidades de atuação tornaram-se, por vezes, campo propício para os abusos de poder e mazelas na administração do dinheiro público, bem como das condutas sociais. Não tardou para que surgissem escândalos envolvendo a implantação do Projeto Juina, especialmente porque a CODEMAT não respeitou os limites das terras indígenas Salumã, Cinta Larga e Erikibaktsa. Além de o fato da região atrair um grande contingente de garimpeiros por conta da mineração de diamantes. Sendo esta uma das implicações mais expressivas que levou a conduzir algumas estratégias da CODEMAT no quesito “manutenção da ordem”, pois para a Companhia, os garimpeiros não eram bem-vindos. Por isso usou a situação como uma plataforma política para resolver o que considerava ser um problema. De acordo com Julio Cesar dos Santos (2012), a política no cenário regional também foi agitada pela atividade garimpeira. Diversas movimentações podem ser percebidas, através das entrevistas, publicações dos jornais locais, discursos realizados no plenário da câmara municipal, até a Assembleia Legislativa do estado entrou no debate. Quando eleito deputado estadual, Hilton Campos, engenheiro da CODEMAT e um dos protagonistas da implementação do Projeto Juina, demonstrou “preocupação” com as consequências da atividade garimpeira na região: O deputado Hilton Campos (PFL) disse que até certo ponto está preocupado com os rumos que poderão tomar as atividades econômicas na região noroeste, em especial, ao município de Juína, onde várias pessoas estão abandonando a atividade pioneira, para se dedicar a exploração dos garimpos.27 O discurso de Hilton Campos está permeado pela idealização do monopólio e exclusividade da colonização pela CODEMAT. O próprio termo “atividade pioneira” trazia em si a marca desse exclusivismo colonizador que se via no direito de fincar uma bandeira que simbolizasse um domínio. Ou seja, a ocupação das terras por meio das ações da CODEMAT estabelecia uma demarcação da fronteira social entre os colonos e os garimpeiros. Numa demonstração política de que para a empresa, interessava a presença daqueles que adquiriram as terras por meio da compra e não dos que adentrassem sem atender os requisitos exigidos pela colonizadora que os nivelasse numa determinada posição social, a de colono. Vemos nisso, a perpetuação secular da velha prática mercantilista do exclusivo colonial. Só que agora, revestida de um poder de coerção potencializada pelo Estado. Nesse sentido, a coerção e o objetivo de cooptação de recursos é a forma da presença desse Estado do qual estamos tratando, pois, em outros sentidos, via-se a precariedade e a escassez dessa presença. Ao adentrarmos na análise mais contundente do Projeto Juina Volume I, nos deparamos com falhas operacionais das mais primárias até as mais graves no atendimento e no cumprimento das propostas apresentadas como motivadoras da compra e venda dos lotes, principalmente no núcleo urbano do Projeto Juina. 27 Jornal O Imparcial, Juína, 1º quinzena de janeiro de 1989, p. 3. In: SANTOS, Júlio Cesar dos, 2012 2.3 O sentido político e a concepção de Estado Ampliado na avaliação das ações da CODEMAT As ações da CODEMAT para o Projeto Juina não se concretizaram apenas pela coerção. Elas se enquadram no conceito de Estado Ampliado desenvolvido por Antonio Gramsci (1978). O Estado posto pelo regime autoritário militar, no contexto em questão, representou aquilo que o pensador italiano chamou de “funções da sociedade civil – funções de hegemonia” ou “aparelho privado de hegemonia” que consiste num espaço de consenso e não apenas de coerção. Para Coutinho (1999), É a sociedade política que desenvolve as funções de ditadura, coerção e dominação, por meio dos aparelhos coercitivos e repressivos, enquanto a sociedade civil tem as funções de hegemonia, consenso e direção, mediante os aparelhos privados de hegemonia. Para Gramsci, a sociedade política e sociedade civil formam um "par conceitual" que marca uma "unidade na diversidade", e embora o autor insista na diversidade estrutural e funcional das duas esferas, não nega o seu momento unitário. (COUTINHO C., 1999, p. 130, apud TARSO VIOLIN, 2006) Como dissemos, esse Estado formava uma rede de imbricações e implicações de poder. O domínio se caracterizava por dois elementos: força e consenso. A força é exercida pelas instituições políticas e jurídicas e pelo controle do aparato policialmilitar. É a partir desse ponto que seguindo a linha de pensamento de Gramsci é possível identificarmos a dessacralização das ações do Estado autoritário militar. O Estado então naturaliza e universaliza suas ações através de suas agências ou instituições. A personificação do Estado está no fato de ser um organismo. Ele se personifica em organismo garantido pela vontade coletiva. Isso para dar conta das massas que Gramsci (1978) compara ao Príncipe de Maquiavel. O moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoal real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo; um elemento complexo de sociedade no qual já tenha se iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação. Este organismo já é determinado pelo desenvolvimento histórico, é o partido político: a primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais. (GRAMSCI, 1978). Para Mendonça (2007), o Estado pensado por Gramsci não pode ser tomado como Sujeito, nem tão pouco como Objeto, mas como uma condensação das relações sociais. Pensar o Estado gramscianamente é pensá-lo sob uma dupla perspectiva: (...) a das formas mediante as quais as frações de classe se consolidam e organizam para além do âmbito da produção, no seio da Sociedade Civil e 2) a das formas através das quais as agências ou órgãos públicos contemplam projetos e/ou atores sociais, emanados dos aparelhos privados de hegemonia, dos quais a Sociedade Civil se faz portadora. (MENDONÇA, 2007). Posicionemos a CODEMAT na perspectiva avaliada por Mendonça a partir da definição de Estado e de Sociedade Civil em Gramsci, mas ao mesmo tempo posicionemos as ações desta instituição como conseqüências reais do consenso e do convencimento, ou seja, como um aparelho privado de hegemonia. Fosse para o endosso do Estado ao apresentar o Programa Estadual de Colonização – Projeto Juina Volume I; ou através do convencimento ou “apatia das massas” (BOURDIEU, 2007) nesse caso, os colonos devem ser aqui identificados como os sujeitos coletivos. Em Gramsci (1978) a questão da hegemonia não deve ser entendida como uma questão de subordinação ao grupo hegemônico. Pelo contrário, ela pressupõe que se leve em conta os interesses dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida estabelecendo uma relação de compromisso e que faça sacrifícios de ordem econômicocorporativa. Entretanto, ele aponta que esses sacrifícios nunca envolvem os aspectos essenciais do grupo hegemônico, pois se a hegemonia é ético-política, ela é também econômica (GRAMSCI, 1978). Um outro ponto importante, pois estamos lidando com um momento histórico em que o Brasil se encontrava sob o regime político autoritário militar, é lembrar que para Gramsci o estabelecimento de um aparato hegemônico recorre ao recurso/uso das armas e da coerção como hipótese de método e sua única possibilidade concreta é o compromisso já que a força pode ser empregada contra os inimigos, mas não contra uma parte de si mesmo que se quer assimilar rapidamente e do qual se requer o entusiasmo e a boa vontade (GRAMSCI, 1978). Ou seja, o recurso ao uso de sentinelas armados nas cancelas postas nas entradas dos núcleos de colonização, era um dispositivo de coerção e poder simbólico que intimidava numa demonstração de poder e de mando que servia para fazer transparecer quem dava o comando da organização daquele lugar. Isso tinha duas intenções: a primeira assustar e afastar os que não fossem bem-vindos, a segunda, passar uma falsa ideia de segurança aos colonos. Afinal estes, por consenso, eram uma parte do todo que era o Projeto Juina. Em Pierre Bourdieu (2007) encontramos a forma como os líderes se aproveitam da apatia da multidão para articular suas atuações políticas: “À apatia das multidões e à sua necessidade de serem guiadas corresponde, nos chefes, uma sede ilimitada de poder. E é assim que o desenvolvimento da oligarquia se acha favorecido, acelerado pelas propriedades gerais da natureza humana” (BOURDIEU, 2007). São os instrumentos de produção política que oportunizam o conhecimento a respeito de como o jogo político funciona, O que faz com que a vida política possa ser descrita na lógica da oferta e da procura é a desigual distribuição dos instrumentos de produção de uma representação do mundo social explicitamente formulada: o campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvida, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de “consumidores”, devem escolher, com probabilidades de mal-entendidos tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção. (BOUDIEU, 2007, p.167) Mas por mais que empreguemos o termo “apatia”, se o relacionamos à teoria gramsciana ao situar os colonos como os “sujeitos coletivos”, lhes privamos da couraça de vítimas da história, pois seja pelo consenso ou pelo convencimento, pela ilusão ou pela esperança, a adesão desses sujeitos é o que forma a “Contra-Hegemonia” (MENDONÇA, 2007). Estudar o Estado é verificar a que interesses – quase sempre conflitantes – suas várias agências privilegiam, ao definir e perpetrar suas mais distintas políticas. É também investigar que outros aparelhos, privados de hegemonia, contam com porta-vozes – ainda que em posição não hegemônica – junto a cada um dos “aparelhos” estatais. Estudar o Estado, enfim, é estudar o conflito e não a homogeneidade. (...) Ao mesmo tempo, o estudo do Estado e de uma política pública não consiste, meramente, em compilar a documentação oficial produzida pelos órgãos aos quais está ela afeta, sob pena de empreender-se o empobrecimento da construção do objeto e um reducionismo analítico que, muitas vezes, toma uma política pública, no Brasil, como a simples repetição acrítica do discurso oficial, tornado indício de “verdade” por parte do pesquisador. Por certo, a investigação junto aos documentos oficiais, produzidos por agência(s) estatal(is), consiste em procedimento indispensável a seu estudo. Entretanto, é imperioso que a abordagem de um corpus documental, com características tão específicas, como Relatórios, Anais e Boletins, seja feita à luz de uma definição bastante precisa do que se concebe como Estado. Somente assim será possível verificar toda a carga de conflitividade e relatividade junto a ele abrigada, à sombra do tom aparentemente monocórdio da narrativa documental, uma vez que, tais embates – inter e intra estatais – jamais estão descolados daqueles que constituem a própria Sociedade Civil como um todo. (MENDONÇA, 2007). Ao posicionarmos a CODEMAT como uma instituição que se enquadra como um aparelho de hegemonia e os colonos como sujeitos coletivos que conscientes ou inconscientemente promovem a Contra-Hegemonia, tomemos então de empréstimo a ideia trabalhada por Mary Douglas (1998) ao avaliar até que ponto o pensamento depende das instituições. Sob a influencia do método de Émile Durkheim (1858-1917), Mary Douglas (1998) desenvolveu a organização de um estudo sócio-antropológico a respeito de como as instituições costumam pensar e por conseqüência agir para conseguirem alcançar seus objetivos. Segundo Douglas (1998), para que uma instituição como a CODEMAT desenvolva suas ações, ela precisa que entre seus membros exista algum pensamento e algum sentimento que se assemelhem. Isto não quer dizer, porém, que um grupo que se associe possua atitudes próprias. Se ele possui algo, é devido à teoria legal que o reveste de uma personalidade fictícia. Neste caso, a personalidade de “colono”. A existência legal de uma instituição, entretanto, não basta. Souza (2013), reforça que “o Estado ampliado de Gramsci guarda uma outra dimensão, para além da força política, cuja base, por sua vez é a cultura”. E essa cultura enquanto visão de mundo de um dado grupo que se impõe sobre o conjunto dos demais, é por estes partilhada. Assim pode ter ocorrido entre os colonos com relação ao discurso das empresas colonizadoras. No mundo contemporâneo, nem sempre certos grupos conseguem desenvolver sua própria visão de mundo, por falta de organização em aparelhos privados de hegemonia dentro da sociedade civil, adotando, assim, a visão de mundo produzida por outros grupos, quase sempre os dominantes. (SOUZA, 2013, p. 25). Os pressupostos legais não atribuem emoções ao grupo que se associa. Somente pelo fato de ser legalmente constituído não se pode dizer que um grupo se comporte e muito menos que ele pense ou sinta exatamente como pretende a instituição que o está dirigindo. Nessas circunstâncias isso ocorre por meio da solidariedade orgânica durkheimiana que pode surgir nas sociedades modernas complexas em que é acentuada a divisão do trabalho social e em que a sociedade é fragmentada, como nas áreas dos projetos de colonização. No núcleo de colonização do Projeto Juina, a fragmentação estava assim distribuída28: os colonos eram aqueles indivíduos que, revestidos do poder de adentrar a área do projeto por terem adquirido o lote por meio da compra da colonizadora, cumpriam o papel de partícipes pelo fato de terem tido condições de adquirir a terra mesmo que para isso o tenham feito de forma parcelada; os indígenas e posseiros que já se encontravam na mesma área, serviriam de mão-de-obra para a colonizadora na abertura das estradas e no levantamento das cercas; e os garimpeiros, muitos deles nem sempre ocuparam essa posição social, suas origens se encontravam nas mais variadas atividades produtivas, desde lavradores pobres a trabalhadores urbanos. Como coloca Júlio Cesar dos Santos (2012) em seu trabalho específico sobre o tema do garimpo em Juína, Houve casos de homens letrados trabalhando nos catriados, inclusive com nível superior, o que era um feito para época e, em especial, para uma região de fronteira de colonização. Talvez pelo infortúnio no exercício da profissão ou quem sabe pelo fascínio do “mito da riqueza fácil”, mesmo para estes, registrar suas memórias representa raridade. Fato importante é a constatação de que, em geral, eram elementos oriundos de base cultural popular. (SANTOS, 2012). E indo mais além, já adiantando que do ponto de vista do conceito de fronteira do qual nos apropriamos, o de José de Souza Martins (2009), que o apresenta como o lugar da degradação do outro, tornou-se natural e comum que o lugar social no qual o indivíduo se encontrava naquele momento da implementação do Projeto Juina, nem sempre tenha sido o que ele tenha ocupado ao longo da vida adulta, com exceção dos indígenas. E nisso também há positividade para que ocupem o papel de indivíduos contra-hegemônicos e ao mesmo tempo partícipes consensuais. O consenso não caracteriza aqui a aceitação irrestrita às ações da colonizadora. Mas antes, o horizonte de expectativa e de esperança. Como colocou João Mariano Oliveira (1989): em seu estudo sobre os colonos que vieram para Mato Grosso ocupar as áreas dos projetos de colonização ao longo da BR 163 nos anos 1980, “a esperança vem na frente”. 28 Claro que essa definição é bastante sucinta. Temos que levar em consideração que a área do Projeto Juina era composta também pelos núcleos rurais e que o projeto foi dividido em fases; sendo assim, entre os colonos havia os mais e os menos capitalizados, entre outras variações. Entre os indígenas havia pelo menos três etnias diferentes. Quanto aos posseiros, só aí caberia um estudo específico, talvez até antropológico. Sobre os garimpeiros, temos os trabalhos desenvolvidos por Vitale Joanoni Neto, Fronteiras da Crença: Ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970 publicado em 2007 que reservou uma atenção especial para o assunto; e a dissertação de mestrado de Julio Cesar dos Santos apresentada ao PPGHIS – UFMT que possui um estudo detalhado a respeito desse assunto com o título de Garimpos de Juína: entre história, relatos e memórias (1986-1994). À CODEMAT, uma instituição da segunda metade do século XX no Brasil cujos principais projetos estavam voltados para a colonização recente em Mato Grosso, aplicar-se-á o conceito durkheimiano de solidariedade orgânica porque nos núcleos de colonização como foi o Projeto Juina, as práticas comuns são socialmente construídas a partir de regras verticalizadas estabelecidas pela instituição que organizou o projeto, constituindo-se naquilo que segundo Mary Douglas (1998) foi o que Durkheim chamou de fato social coercitivo legal. Para ela, as instituições se fundamentam na analogia, conferem identidade, lembram e esquecem. Uma instituição é uma convenção. Assim, nessa medida, por definição, uma convenção se auto-policia para se fazer presente naquilo que lhe convém ou que convenha àqueles que através dela levam alguma vantagem. 2.4 O conceito de fronteira aplicado ao Projeto Juina A fronteira até então vista como espaço vazio pelo Estado passa a ser vista como o espaço do avanço das relações capitalistas. Segundo Becker (1997), o mito dos ‘espaços vazios’ “serve de válvula de escape a conflitos sociais em áreas densamente povoadas e de campo aberto para investimentos”. O espaço possui um caráter importante por se tratar da Amazônia, “atraente e ao mesmo tempo inacessível”, com “valor econômico e estratégico”. Esse espaço torna-se o cenário ligado a projetos de internacionalização que, por sua vez, vieram a desencadear ocupação regional com apoio nacional e internacional. O espaço passa a ser controlado por uma estratégia de controle técnico-político envolvendo diferentes elementos que configuram a Amazônia: “Implantação de redes de integração espacial”, “Superposição de territórios federais sobre os estaduais” e “Subsídios ao fluxo de capital e indução dos fluxos migratórios” (BECKER, 1997). Outro ponto destacado por Bertha Becker (1997) é a nacionalização do território ligado à incorporação de terras, preservação de fronteiras e riquezas, vinculada à ideologia do Estado que tenta fortalecer o sentimento de pertencimento nacional. A territorialidade entra em discussão com a ação dos atores sociais públicos e privados; “entendida como estratégia que tenta afetar, influenciar ou controlar ações através do controle sobre uma área específica, a territorialidade estabelece limites à ação do Estado” (BECKER, 1997). Seria o investimento do Estado subsidiando as empresas colonizadoras. No caso a CODEMAT, criada pelo governo do estado de Mato Grosso para cooptar recursos do governo federal. Com o avanço do capitalismo sobre as áreas de fronteira, a frente de expansão é integrada a frente pioneira. O uso privado das terras devolutas é o que passa a caracterizar a frente de expansão e por isso mesmo estas terras são postas no mercado, entregues às empresas colonizadoras privadas ou públicas, como foi o caso do Projeto Juina pela CODEMAT. Valendo-nos dos conceitos estabelecidos por José de Souza Martins (1997), “a distinção entre frente pioneira e frente de expansão é, na melhor das hipóteses, um instrumento auxiliar na descrição e compreensão dos fatos e acontecimentos da fronteira.” A distinguir: a frente pioneira é interpretada aqui como uma subsequência da frente de expansão. Antes dela, a expansão na fronteira ocorria de acordo com o que Martins (1997) definiu como “o tempo das migrações espontâneas”. A frente pioneira escamoteia (esconde) o lado trágico da fronteira: o da violência material e simbólica e dos conflitos de classe, ou ainda, no caso dos projetos de colonização, da repressão policial ou da “segurança” armada articulada através das ações de homens armados – jagunços - sob as ordens das próprias empresas colonizadoras para manter fora das áreas dos projetos quem não apresentava as características exigidas conforme o Cadastro Nacional de Colono para adquirir um lote na área do projeto. Na medida em que a frente de expansão vai sendo entendida como frente econômica, a frente pioneira vê-se diluída. MARTINS (1996), ressalta que a primeira forma de ocupação, marcada pela presença de pequenos agricultores, pode ser considerada como frente de expansão, já a segunda que assume a forma de grandes fazendeiros é chamada de frente pioneira. É possível, assim, fazer uma primeira datação histórica: adiante da fronteira demográfica, da fronteira da “civilização”, estão as populações indígenas, sobre cujos territórios avança a frente de expansão. Entre a fronteira demográfica e a fronteira econômica está a frente de expansão, isto é, a frente da população não incluída na fronteira econômica. Atrás da linha da fronteira econômica está a frente pioneira, dominada não só pelos agentes da civilização, mas, nela, pelos agentes da modernização, sobretudo econômica, agentes da economia capitalista (mais do que simplesmente agentes da economia de mercado), da mentalidade inovadora, urbana e empreendedora. Digo que se trata de uma primeira datação histórica porque cada uma dessas faixas está ocupada por populações que, ou estão no limite da História, como é o caso das populações indígenas; ou estão inseridas diversamente na História, como é o caso dos não índios, sejam eles camponeses, peões ou empresários. (MARTINS, 1996). O cenário no qual se estabelece a recriação de formas arcaicas de dominação e reprodução do capital, como a escravidão por dívida ou também conhecida como peonagem, é o cenário controverso da colonização dirigida na fronteira amazônica mato-grossense. A contradição está no fato de a colonização representar, pelo menos teoricamente, a modernização e a racionalização do uso dos espaços aqui representados por terras devolutas. A posse da terra adquirida pelo uso e trabalho era uma concepção herdada do século XVIII. Muito comum entre os posseiros, seringueiros e comunidades indígenas. Prática contraditória ao latifúndio e ao agronegócio que se efetiva através das leis de mercado. É nesse contexto que o conflito é marcado. O conflito nasce em razão da completa desconsideração ao costume e ao costumeiro. Mais do que luta pela terra, estamos em face de uma luta por concepções antagônicas de direito. Um direito moral fundado sobre a precedência do trabalho e um direito racional fundado sobre a terra equivalente de mercadoria. (MARTINS, 1998). Por isso, “o que há de sociologicamente mais relevante para caracterizar e definir a fronteira no Brasil é, justamente, a situação de conflito social. Na minha interpretação, nesse conflito, a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade” (MARTINS, 2009). Se a fronteira definida por José de Souza Martins (2009) é o lugar da alteridade, é relevante que complementemos esse debate. Para Todorov (2003) em A Conquista da América: a questão do outro, a alteridade deve ser reconhecida quando da compreensão do outro. Significa o outro que o eu reconhece. Essa ideia implica no reconhecimento da alteridade: não pode haver hierarquização entre aqueles que são distintos entre si, mas que coexistem num mesmo plano; sendo o eu um e o outro, outro. Seria o contato da compreensão. Qualquer tentativa de assimilação de uma das partes levaria à pretensão de superioridade e assim querer transformar o outro no eu. Mas a total ignorância do outro também se reflete numa pretensão de superioridade. Quando o espanhol Hernan Cortez se admirava pela beleza arquitetônica das cidades mexicanas no século XVI, o fazia ignorando a grandeza da habilidade dos construtores e artesãos astecas que as haviam construído. Longe de esclarecer-se, portanto, o mistério só aumenta: não somente os espanhois compreendiam bastante bem os astecas como também sentiam admiração por eles; no entanto, os aniquilaram (...); Comparável ao turista atual, que admira a qualidade do artesanato quando viaja para a África ou a Ásia, sem que por isso lhe ocorra a ideia de conviver com os artesãos que produzem esses objetos. Cortez fica em êxtase diante das produções astecas, mas não reconhece seus autores como individualidades humanas equiparáveis a ele. (TODOROV, 2003). Mas o próprio Todorov (2003) ao apresentar em seu texto uma defesa da evolução mental a partir do desenvolvimento da escrita posiciona os espanhóis num plano de superioridade em relação aos astecas colocando-os como os que seriam capazes de reconhecer o outro em função da comunicação inter-humana que seria facilitada por conta de sua escrita. Para ele a comunicação existe de duas formas: a inter-humana – entre os homens; e a comunicação entre os homens e o mundo; sendo esta última a forma de comunicação usual dos astecas observada por Todorov. Porém, foram os nativos e não o contrário, quem tiveram que aprender a língua dos espanhóis. Da mesma forma que as populações de indígenas e posseiros existentes na área de implantação do Projeto Juina o tiveram que fazer diante da chegada do outro – imigrantes sulistas que formariam a camada dos colonos pretendidos pela empresa colonizadora. Os garimpeiros, bem como os mais variados tipos de pessoas que adentravam a área do projeto e tornavam-se personagens do que eu chamaria de “a história da alteridade em Juina”, vindos de várias partes do Brasil, formavam a camada social dos preteridos da empresa colonizadora. Assim, para Todorov (2003), os espanhóis não equiparavam os nativos a eles; É antes um estado intermediário que devem ocupar em seu espírito: são sujeitos sim, mas sujeitos reduzidos ao papel de produtores de objetos, de artesãos ou de malabaristas, cujo desempenho é admirado, mas com uma admiração que, em vez de apagá-la, marca a distância que os separa dele. (TODOROV, 2003). Na área do projeto de colonização desenvolvido pela CODEMAT existiam práticas de exclusão dos indígenas que ocupavam aqueles territórios, definindo-se para isso, reservas territoriais para onde esses habitantes mais antigos eram removidos por não se considerar adequada a convivência entre indígenas e colonos na área do projeto. Quanto aos que chegavam e não eram colonos, pois não haviam adquirido um lote através da compra na colonizadora, quando não eram barrados pelas cancelas que controlavam a entrada das pessoas na área do projeto, eram usados como mão de obra no árduo serviço de abrir os picadões, construir cercas e cortar madeira. A violência começava pela representação simbólica da exclusão ao passar por cima de um direito universal para homem no Ocidente, o direito de ir e vir, pois nas entradas das áreas territoriais dos projetos de colonização era comum encontrar barreiras com cancelas que controlavam a entrada e a saída das pessoas. A CODEMAT instalou suas barreiras ao longo da Rodovia estadual AR-1 com a justificativa de que era preciso controlar o acesso ao núcleo do Projeto Juina a fim de evitar a entrada de grileiros. Mas de fato o que ocorria era a violência simbólica impedindo o direito de ir e vir numa via pública aberta pelo Estado, usando de sua autoridade, numa clara representação da exclusão. Joanoni Neto (2007), ao discorrer sobre estas práticas nos expõe a gravidade do problema que parecia comum aos núcleos de colonização do mesmo período em MT. Sob o eufemismo “controle de acesso” estava na verdade uma ação de força para impedir a possível ocupação de terras da empresa por pessoas sem condições financeiras para comprá-las. Os colonos residentes no local sentiam-se constrangidos com tal iniciativa, pois ela acabava cerceando também seu acesso e controlando sua movimentação. (...). No Projeto Juina, tal controle de acesso constava das peças de propaganda da empresa (a CODEMAT, grifo nosso) como uma das vantagens oferecidas aos futuros colonos. (...) A rodovia de acesso na qual se instalou tal posto de controle era uma Rodovia Estadual, do mesmo modo, como nos projetos Cotriguaçu, Juruena e os outros, e o impedimento do trânsito pela mesma era, portanto, ilegal segundo as leis do país, mas implantado, exercido e divulgado como ponto positivo, no caso de Juína, pelo próprio Estado. (JOANONI NETO, 2007). E mesmo na condição de colono, no dizer de Guimarães Neto (1986), “Os colonos foram verdadeiros peões da colonização”. O colono do Sul foi transformado em um excluído, foi destituído material e simbolicamente de seu espaço e de seu direito ao espaço. Uma vez na área, as condições postas a essas pessoas não lhes permitiram mais que a reprodução de sua condição de pequeno proprietário e se, a princípio, com um lote maior, bastaram alguns anos para que voltassem à condição original de minifundiários. No caso do projeto Juína da CODEMAT (Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso), o único acesso à área era controlado por uma cancela localizada na rodovia AR 1, uma rodovia estadual, que cerceava o livre trânsito. A pessoa só passava pelo controle se trouxesse uma autorização da empresa emitida em um de seus escritórios (Cuiabá/MT ou Vilhena/RO). O posto também era controlado por militares que prestavam serviços à empresa. (JOANONI NETO, 2014). Fazendo uma analogia à descrição de Todorov (2003, p.190) eram “produtores de objetos” sob as ordens da colonização. “Ora, é falando ao outro (não ordenando, mas dialogando com ele), e somente então, que reconheço nele uma qualidade de sujeito, comparável ao que eu mesmo sou”. Chegamos a um ponto em que podemos recorrer a Reinhart Koselleck (2006) para compreensão desta ideia, levando em consideração que: “A história concreta amadurece em determinadas experiências e determinadas expectativas” (KOSELLECK, 2006). Neste caso, o da colonização recente em MT, esperança e recordação aplicamse bem à história contada do ponto de vista dos “pioneiros”, sobre os quais José de Souza Martins (1997) construiu sua crítica em torno do discurso das frentes pioneiras de ocupação da Amazônia, ou das empresas colonizadoras, cujas práticas encontram-se estabelecidas sob a justificativa do “progresso” e do “desenvolvimento”. Tanto esperança quanto recordação são categorias aplicáveis à história, como expectativa e experiência o são. Agora, quando mudamos de esperança para a categoria da expectativa e de recordação para a de experiência, Koselleck (2006) propõe que “a expectativa abarca mais que a esperança, e a experiência é mais profunda que a recordação”. Sendo assim, para que a história da colonização recente no noroeste de MT na área do Projeto Juina não fique apenas na reprodução de uma memória forjada na esperança e na recordação “pioneira”, a pesquisa sobre a CODEMAT e sua ação na colonização do estado de Mato Grosso não pode ser representada apenas pelo Programa Estadual de Colonização – Projeto Juina Volume I. Senão, estaríamos recorrendo à esperança de que o projeto de colonização do qual trata esse documento tenha sido de fato um modelo e exemplo de solução para a ocupação dos “espaços vazios” na fronteira amazônica mato-grossense do inicio ao fim sob a égide do governo do estado. E então, escreveríamos das ações da CODEMAT idealizando um modelo de política de distribuição de terras através da colonização dirigida. Assim não estaríamos problematizando, apenas recordando. A recordação pela recordação esvazia de conteúdo e não levanta o compromisso da construção de um pensamento reflexivo e da aproximação entre a teoria e os fatos ordenando-os de forma significativa. Quando falamos da ocupação ou reocupação populacional recente em MT nas áreas territoriais da fronteira amazônica, estamos trazendo à tona todas as implicações que se encontram imbricadas na teia política que se formou no Brasil durante os anos de governo da Ditadura Militar. Há que se considerar que a História Política recente ou como tratamos aqui, é ela própria um reflexo desse jogo maniqueísta do regime para justificar suas práticas políticas sob a chancela do uso indiscriminado da violência física, material e simbólica. No Brasil, nenhuma legislação, regulamentação e forma de controle sobre a propriedade e posse da terra até então esteve tão em evidência como questão de primeira ordem como o fora no período do Estado autoritário militar dos anos 1960 e 1970. Nunca haviam sido feitas tantas regulamentações e programas de incentivo ou subsidiado a implementação de tantas instituições voltadas ao direcionamento de projetos que visassem a ocupação ou reocupação de terras no Brasil como nesse período. Isso pode tanto ter sido devido à agitação social que essa questão espalhava pelo país na luta pela reforma agrária, levando à formação de grupos de esquerda vistos como subversivos por terem idealizações comunistas do ponto de vista dos governantes e da elite agrária, como ter relação com o contexto político internacional no qual o governo do Brasil se inseria alinhado às práticas econômicas do bloco capitalista. É sabido por uma abrangente literatura o quanto o Brasil se comprometeu economicamente junto ao Fundo Monetário Internacional durante esse período e é bem provável que não o conseguiria se não apertasse o cerco contra qualquer tipo de ação social que remetesse à ideia de propagação comunista como seria fazer a reforma agrária. A saída, como já fora disposto nesse trabalho foi a implementação de uma legislação rígida para controle da “distribuição” de terras via mercado: a Colonização. Levantar um debate a respeito da colonização em MT nos remete à sua formação política e social, pois nos possibilita esmiuçar o discurso oficial a fim de ir além do contexto histórico construído, que tudo insere e sugere ser o estado de Mato Grosso o lugar da riqueza material, da opulência do agronegócio. Como se todas as levas de migrantes que para cá vieram atraídos pelo discurso difundido pela propaganda oficial da terra da abundância, do enriquecimento, do Eldorado de fato tenham tido suas vidas elevadas a tal nível sócio-econômico (o do agronegócio) e como se somente isso fosse o suficiente para justificar a desterritorialização, a exclusão, a censura e toda forma de institucionalização da violência em nome da segurança nas áreas de implantação dos projetos de colonização. CAPÍTULO 3: O PROGRAMA ESTADUAL DE COLONIZAÇÃO PROJETO JUINA VOL I: UMA CRÍTICA SOBRE O DOCUMENTO DA CODEMAT Ao nos debruçarmos sobre a análise da principal fonte documental que temos, pautamo-nos na ideia de ser o Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I, a representação de um determinado “poder simbólico dado da transformação e da legitimação de outras formas de poder” (BOURDIEU,1989). Os símbolos são instrumentos de integração social. Como instrumentos de conhecimento e comunicação eles tornam possível o consenso acerca do sentido do mundo social que contribui para a reprodução da ordem social que se pretende: a dominação travestida de ordem ou ordenação social pelo Estado autoritário militar – com duas das representações largamente difundidas, a saber, a reprodução e a distinção respectivamente. A reprodução, usada como forma de discurso a luz do projeto de desenvolvimento nacional típico do momento político pelo qual o Brasil estava passando e a distinção, esta última uma demarcação da fronteira cultural entre os segmentos que participaram do projeto de colonização Juina na pretensão de que a sociedade acreditasse que todo aquele movimento se relacionasse somente ao fator econômico. Segundo Bourdieu (1989), os sistemas simbólicos exercem um poder estruturante, na medida em que são também estruturados. A estruturação decorre da função que os sistemas simbólicos possuem de integração social para um determinado consenso. O Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I é um símbolo que reproduz a ideia e o consenso acerca da colonização enquanto política de Estado que objetiva a “ordem social” via reprodução de formas de dominação econômica e expansão do capitalismo na fronteira amazônica mato-grossense através do comércio de terras devolutas como justificativa política para a questão do problema social agrário no Brasil do período estudado e que na prática significou a esperança da terra de trabalho para os colonos e a cooptação de recursos públicos do governo federal para o governo do Estado de Mato Grosso com o lucro em relação à venda das terras do Projeto Juina. Essa dominação se faz produto de sua legitimação através da comunicação deste documento como suporte norteador para que a colonizadora, a CODEMAT, pudesse contar com o consenso de um lado do governo que a endossava, de outro, dos colonos. A mesma cultura que une e legitima por meio da comunicação, é a que separa por meio do dispositivo da distinção. A mesma prática que posiciona cada personagem os nivela dando o sentido da dominação: a colonização como política pública endossada pelo Estado e o documento que legitima a colonizadora como agente dessa política; os imigrantes transformados em colonos, muitos deles endividados junto à CODEMAT por terem adquirido o lote para pagá-lo em várias prestações; os indígenas que se viam obrigados a se retirar de suas terras; os garimpeiros, personagens mal quistos pela colonizadora; os posseiros, que empregavam sua mão-de-obra na abertura dos primeiros caminhos no meio da floresta e das cercas a serviço da colonizadora. Sendo assim, o consenso era o reflexo de uma dada forma de relação de poder que se instaurou como desdobramento da ideia de legitimação da dominação da empresa colonizadora que por sua vez o efetivou através da comunicação do documento aqui analisado, bem como do desdobramento deste nas relações da vida cotidiana das categorias sociais apresentadas. Relações estas enunciadas por José de Souza Martins (2012), A vida cotidiana se instaura quando as pessoas são levadas a agir, a repetir gestos e atos numa rotina de procedimentos que não lhes pertenceu nem está sob seu domínio. A vida cotidiana começa a nascer quando as ações e relações sociais já não se relacionam com a necessidade e a possibilidade de compreendê-las e de explicá-las, ainda por meios místicos ou religiosos; quando o resultado do que se faz não é necessariamente produto do que se quer ou do que se pensa ter feito. O vivido torna-se o vivido sem sentido, alienado. Ou, melhor, seu sentido se restringe às conexões visíveis dos diferentes momentos do que se faz. (MARTINS, 2012, p. 71). Essas conexões das quais Martins (2012) está falando são as mesmas que podem constituir a memória que se quer ter de tais vivências. Memória projetada em expectativas pessoais de uma vida que se pretendia alcançar quando da decisão de fazer parte desse todo que foi o Projeto Juina. Talvez, uma expectativa nunca alcançada por alguns daqueles que participaram do Projeto Juina. Mas o Programa Estadual de Colonização foi o documento oficial que cumpriu dupla função: por um lado a justificativa do Estado para criação e implantação do Projeto Juina e para cooptar recursos do governo federal através das agências ou programas criados especialmente para isso, como foi o caso da SUDECO e do PROTERRA como já dissemos. Por outro, uma propaganda de si mesmo para convencer os colonos da seriedade de suas propostas e consequentemente juntar interessados na compra de terras. Seu compromisso, portanto, não era social e sim institucional. Se as expectativas dos demais envolvidos seria alcançada, importava menos. A partir deste ponto, vamos analisar o Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I utilizando-nos dos conceitos desenvolvidos por Jacques Le Goff, (2003) e Michel de Certeau, (2008) sobre os documentos e a operação historiográfica no desenvolvimento da pesquisa e da escrita da História. Para tanto, em primeiro lugar façamos um passeio sobre o conceito de documento abordado por Le Goff, (2003) na obra História e Memória a fim de marcarmos uma posição definida a respeito do conceito de documento do qual nos apropriamos. Mas até chegarmos à uma marcação definida de nossa posição em relação ao conceito de documento que queremos apresentar, foi necessário também entendermos qual o nosso papel como historiadores diante da escrita do resultado dessa análise. Por isso recorremos a Michel de Certeau, (2008) a respeito da operação historiográfica. Os fundadores da Escola dos Annales (1930) insistiram na necessidade de se ampliar a noção de documento, afirmando que a história se faz com documentos escritos, mas que também pode fazer-se e deve fazer-se sem documentos escritos quando os mesmos não existem. A partir dos anos 1970 a ênfase dos historiadores dos Annales esteve voltada para a crítica da escrita da história da história e propunham como alternativa a concepção de novas abordagens dos objetos, que por sua vez também novos, seriam alvo de novas formas de problematização; especialmente no que se refere ao tratamento das fontes materiais relacionadas aos objetos. Sendo que as fontes passariam a ensejar documentos escritos ou não, que serviriam à pesquisa sobre o sentido de sua construção material. A descrição só pela descrição dessas fontes, constrói uma narrativa memorial e apenas reafirma o valor monumental que a sociedade que criou ou o preservou pretendia. A necessidade de se pensar os processos históricos de maneira mais ampla, a partir de múltiplos olhares e de maneira mais total, buscando compreender as diversas formas como uma sociedade pode falar de si mesma através dos silêncios, das relações de poder, dos índices econômicos, da cultura, dos lugares sociais ocupados pelos sujeitos dos discursos, da arquitetura e vários outros, tornaram-se objeto de análise dos historiadores. Le Goff, (2003) fala da necessidade que houve em romper com a limitação da definição de documento como aquilo que é escrito. O Programa Estadual de Colonização está voltado para aquilo que é estabelecido pela instituição que elaborou: a posição de poder institucional dado à CODEMAT, pois era um dos instrumentos pelo qual a mesma podia se estabelecer oficialmente como responsável por desenvolver economicamente o estado de MT. Esse documento foi elaborado e tomado como algo monumental tanto para a CODEMAT quanto para o governo do estado de MT porque para estas duas instituições, ele era ao mesmo tempo a representação da legalidade da ação política que estava sendo posta e a garantia da aceitação dessa pelo governo federal via INCRA. O que significava a garantia de que o projeto de colonização que o documento apresentava poderia contar com os subsídios do governo federal para seu desenvolvimento, além do lucro com a venda das terras revertido para o governo estadual. Outro aspecto desse documento era o que lhe revestia do poder de instituir o Projeto Juina estabelecendo os lugares sociais aos quais cada segmento social que dele participasse pertencia, criando as categorias de colono e não colono. Mas, não é o documento escrito e encerrado em si mesmo que permite a formulação de sua crítica e sim aquilo que ele não diz; ou melhor, não escreve, mas se circunscreve ao estabelecer os “silêncios”, “as relações de poder” e “os lugares sociais ocupados pelos sujeitos” que participaram direta e indiretamente do Projeto Juina. Pois são estes aspectos do documento causados propositadamente ou culturalmente por quem o produziu, os reflexos das causas humanas sobre as quais podemos buscar através de uma crítica interna a intencionalidade consciente e/ou inconsciente do documento, as condições de sua produção histórica e as relações de poder ali estabelecidas que não podem passar despercebidas. 3.1 O documento não é inócuo O primeiro ponto que deve ser levado em consideração é o fato de podermos deduzir que o documento em questão tenha sido produzido após o início das ações da CODEMAT para a implantação do Projeto Juina. Mas sua escrita formalmente é colocada como se sua produção fosse condição necessária para o início do desenvolvimento do projeto. Ao longo do documento encontra-se a informação de que a CODEMAT já havia colocado terras a venda nos limites do território do município de Aripuanã já que estas terras foram reservadas à alienação desde 1976 pelo decreto 3.744 de 10 de junho. Mesmo que isso venha a ser interpretado como ações anteriores, pois diziam respeito ao município de Aripuanã, há que se levar em consideração o fato de que, estes lotes passaram depois a integrar o Projeto Juina e este foi o único na região a ser implantado de fato pela CODEMAT. Os outros projetos de colonização que foram desenvolvidos naquele espaço territorial, foram conseqüência da alienação das terras que a CODEMAT entregou às empresas colonizadoras particulares. Como foi o caso do Projeto Coloniza que deu origem ao município mato-grossense de Colniza, por exemplo. Além disso, na sequência justifica que parte dos recursos que seriam usados na implementação do Projeto Juina viria do dinheiro obtido da venda das terras. O que também pode ter sido posto no documento como parte integrante da produção de seu texto que muito provavelmente - a julgar pelo cenário político posto: um regime de exceção da democracia, o Estado entregue às mãos de uma ditadura militar, cujas muitas de suas decisões eram tomadas sob o pretexto da Segurança Nacional - não fosse a publicização de um ato governamental. A produção ou redação do Caderno Estadual de Colonização Projeto - Juina Volume I pode ter se tratado apenas do cumprimento de um protocolo no andamento do ato de institucionalização da CODEMAT para dar sequência às suas ações como colonizadora. Ao longo de todo o documento da CODEMAT que compõe o Programa de Colonização Projeto Juina é possível percebermos as marcas das características descritas por Le Goff, (2003). O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados, desmistificandolhe o seu significado aparente. (LE GOFF, 2003, p. 537-538). 3.1.1 Uma montagem, o meio e o destino Para a época em que foi elaborado, como o seria em qualquer outra época, o documento em questão tinha um objetivo que atravessava o meio ao qual foi elaborado e para o qual se destinava. O Projeto Juina enquanto documento elaborado para a execução de um projeto de colonização oficial no estado de Mato Grosso, devia atender as expectativas de um Estado que vivia sob a lógica da máxima desenvolvimentista do Governo Federal. Mas ao mesmo tempo devia manter-se alinhado à Doutrina de Segurança Nacional. Se o “problema” de acesso à terra havia se tornado um problema de segurança nacional e a solução para tal estava nos programas nacionais de reocupação dos “espaços vazios” da Amazônia, projetos estes incentivados pelos programas do governo federal entre os anos 1970 e 1980, então o primeiro passo do documento foi se justificar o motivo pelo qual o Projeto Juina seria viável. Mas é preciso entender até onde o acesso à terra era de fato um problema ou se isso não passava de um discurso forjado para servir de justificativa para os projetos de colonização em MT em sua maioria organizados por empresas de colonização privada; levou o governo do estado de MT a buscar formas de organizar seu próprio meio de garantir participação naquilo que havia se transformado em um grande mercado de terras, a colonização. Via de regra, a colonização devia ser desenvolvida por empresas credenciadas no INCRA, como já dissemos. Assim, foi passada à CODEMAT, que entre outras responsabilidades recebia a de colonizadora oficial do Estado cuja área de interesse voltou-se para a venda de terras no noroeste do estado, também parte da Amazônia Legal, onde se encontravam as terras devolutas que seriam destinadas a venda justificada pelo Projeto Juina. Desta forma, o documento contém em sua elaboração a marca do discurso oficial do momento histórico e da situação política que pretendia atender por um lado, o Estado de MT, por outro, fomentava a pretensão de idoneidade do projeto de colonização que para funcionar como se pretendia, ou seja, para obter sucesso na venda das terras aos futuros colonos, devia atender às regras gerais dos projetos de colonização como a de estar devidamente cadastrada junto ao INCRA. Além disso, havia duas outras regras, estas subentendidas, implícitas: a de que como coloca Mary Douglas, (1998) “as instituições dão segurança” e a outra a de que com a aprovação do projeto, o documento em si era uma forte propaganda não apenas da venda das terras, mas da colonizadora – a CODEMAT e do governo do estado. Para a CODEMAT isso representava a segurança de que o projeto seria aprovado tanto pelo INCRA quanto pelo governo do Estado. Para o governo, a segurança da venda das terras e o recebimento de recursos dos programas e instituições do governo federal. Já a propaganda foi a técnica utilizada pelas colonizadoras para divulgar seus projetos em outras regiões do país prevendo atrair interessados capitalizados uma espécie de aprovação da sociedade. Essa soma de situações formava um pacto que garantia à Empresa o consenso entre a sociedade civil – os colonos e a política da colonização do Estado atendendo aquela ideia de Estado Ampliado sobre o qual já discorremos. Disso deduzimos que até aqui, o Programa Estadual de Colonização - Projeto Juina Volume I tem se colocado como uma montagem consciente (LE GOFF, 2003), pois é a elaboração de um discurso que dizia justamente aquilo que as instituições que dele dependesse para pôr o projeto de colonização em prática precisava para justificar suas ações e justificava também os recursos/subsídios que se pretendia captar além do modus operandi sobre o qual pretendia agir com relação à venda das terras. O contrário também pode ter ocorrido, já que está implícito no documento que a venda das terras pode ter começado antes de sua elaboração, então é possível também invertermos a ordem das coisas e situá-lo como um documento elaborado fora de seu tempo, posterior à implantação das ações da CODEMAT na área do Projeto Juina, atendendo a forma como o comércio das terras devolutas do noroeste de MT já estava posto pela colonizadora. Nessa inversão é mais aplicável ainda a ideia de “montagem consciente” do mesmo. 3.2 O documento: desmistificando-lhe o seu significado aparente Para Le Goff, (2003) a ideia desenvolvida por Paul Zumthor, (1960) de que o que transforma o documento em monumento é a utilização deste pelo poder, nos dá o alerta a respeito de nossa análise do Programa Estadual de Colonização; pois nossa análise não pode se desvirtuar para a afirmação de sua função enquanto monumento. Não nos devemos contentar com esta constatação da revolução documental e com uma reflexão crítica sobre a história quantitativa de que esta revolução é o aspecto mais espetacular. Recolhido pela memória coletiva e transformado em documento pela história tradicional (“na história, tudo começa como gesto de pôr à parte, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outro modo”, como escreve Certeau [1974, I, p. 20]), ou transformado em dado nos novos sistemas de montagem da história serial, o documento deve ser submetido a uma crítica mais radical. (LE GOFF, 2003, p. 533). Antes, pelo contrário, comparando as propostas apresentadas ao longo de suas páginas com os estudos apresentados por pesquisadores29 que se dedicaram a avaliar as Em 1997 o Departamento de História da UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso deu início ao primeiro curso de Graduação no interior de MT e a partir daí começaram os primeiros projetos de 29 conseqüências reais das ações da CODEMAT na área onde foi desenvolvido o Projeto Juina, bem como a análise da cópia de uma carta-denúncia feita por um dos primeiros prefeitos da cidade de Juína após a emancipação que transformou a área do projeto de colonização em município de MT (ver documento em anexo), verifica-se que grande parte dos compromissos assumidos pela Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso para implantação desse projeto de colonização não foram executados como propõe o documento. Algumas dessas ações já foram expostas no capítulo anterior, outras encontram-se na sequência. Mesmo que alguns anos tenham se passado desde os primeiros contatos que tivemos com esse documento, ainda assim é possível lhe empregar uma nova avaliação partindo de um novo ponto de vista como sugere Le Goff, (2003). A concepção do documento/monumento é, pois, independente da revolução documental, e entre os seus objetivos está o de evitar que esta revolução necessária se transforme num derivativo e desvie o historiador do seu dever principal: a crítica do documento – qualquer que ele seja – enquanto monumento. O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. (LE GOFF, 2003. p. 535-536). Um projeto de colonização - independentemente de qual venha a ser a sua origem, oficial ou particular; ou quem quer que seja o colonizador ou a empresa colonizadora, depende de um elemento essencial para sua execução: o colono. Ele é a figura social mais importante na implementação de um núcleo de colonização. Mas o que é preciso lembrar é que para estas áreas, não iam apenas os colonos. Outros grupos sociais atraídos pelas mesmas propagandas e mesmo sem condições de comprar um lote, se pesquisas acadêmicas relacionadas ao município de Juína. Os precursores dessas pesquisas foram os professores Vitale Joanoni Neto e Regina Beatriz Guimarães Neto, que organizaram pelo Departamento de História da UFMT através do apoio técnico o CNPq o projeto de pesquisa Movimentos Populacionais, cidades e culturas na Amazônia cujas investigações se concentraram no município de Juína. Segundo Guimarães Neto, (2007), “(...) a pesquisa formou um acervo que reúne documentos inéditos, entrevistas orais gravadas, fotografias e registros escritos diversos”. Dando continuidade ao trabalho, o professor Vitale Joanoni Neto passou a estudar a colonização em Juína a partir das análises de fontes eclesiais. Com o andamento dado ao projeto de pesquisa, a missão dos orientandos desses professores em Juína foi sair a campo em busca de entrevistas com os moradores da cidade que havia participado da implantação do Projeto Juina desde o início. Essas entrevistas formam o acervo documental do Núcleo de Pesquisa História Terra e Trabalho. Em 2004, tivemos a oportunidade de acesso ao acervo documental da CODEMAT. Foi quando na ocasião encontramos entre outros documentos, uma cópia do Programa Estadual de Colonização - Projeto Juina Volume I. Na época foi possível sob a orientação do professor Vitale Joanoni Neto a produção do TCC/Monografia A Ação da CODEMAT na colonização oficial de MT, trabalho que agora estamos ampliando nesta dissertação. instalavam com suas famílias, sua mão-de-obra e suas necessidades comuns aos colonos. Mas independentemente de ser ou não colono, no Projeto Juina, a maior parte das prospecções estabelecidas pelo Programa Estadual de Colonização da CODEMAT, não se concretizaram. 3.3 O documento da legalidade à prática: as ações da CODEMAT como um desservir aos colonos30 Um termo apresentado pela CODEMAT para designar a forma como faria a organização dos limites dos lotes urbanos do Projeto Juina é o de Módulo. O que o documento descreve como Módulo faz parecer um termo de arquitetura moderna, mas ocorre que para o INCRA, a instituição com a qual a Empresa contava e dependia da aprovação para Programa Estadual de Colonização, esse termo tinha um significado mais abrangente. O conceito de módulo rural é importante nas atividades do INCRA, constituindo uma unidade de medida, expressa em hectare, que busca refletir a interdependência entre a dimensão, a situação geográfica do imóvel rural, a forma e as condições do seu aproveitamento econômico. Deriva do conceito de propriedade familiar, que nos termos do inciso II, do artigo 4º da Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra), entende-se como: "o imóvel rural que, direta e pessoalmente, explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalhado com ajuda de terceiros". (...) O módulo rural é utilizado para: determinação da Fração Mínima de Parcelamento - FMP, que corresponde à área mínima que uma área rural pode ser fracionada no Registro de Imóveis, para fins de transmissão; enquadramento sindical rural dos proprietários, com base no número de módulos rurais calculado; limitação da aquisição de imóvel rural por estrangeiro, pessoa física ou jurídica; definição do universo de beneficiários do antigo Banco da Terra, atual Crédito Fundiário; parâmetro bancário de área penhorável.31 Ou seja, por trás de um termo usual ao longo do documento, aparentemente despretensioso, existia implícita a preocupação com os rumos futuros do projeto: dependendo de quem adquirisse o lote, fosse no núcleo urbano ou rural, a empresa 30 As informações contidas nessa seção formam uma compilação das contidas no trabalho anterior a esse: a Monografia A Ação da CODEMAT na colonização oficial de MT apresentada ao Departamento de História da UFMT em 2005 de minha autoria. 31 http://www.incra.gov.br/institucionall/legislacao poderia fazer ou não os parcelamentos, além da garantia da penhora, se necessário fosse, sem maiores complicações legais futuras. De acordo com as leis ambientais da época em que o documento foi elaborado e com o IBDF32, uma autarquia do governo federal para esses assuntos, era possível ao colono que adquirisse um lote no módulo rural desmatar até 50% da área. Mas a falta de fiscalização permitiu que alguns parceleiros ultrapassassem esta estimativa, desmatando até mais de 80% da área verde de suas propriedades. Uma conveniência para a colonizadora que poderia requerer o lote caso não cumprido o contrato de compra e venda por parte do colono; e o revenderia a outro sem ter custo com aquilo que na época era considerado “trabalhar a terra”, que na realidade significava ter desmatado e levantado a cerca. Segundo o Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I, o colono tinha que ocupar a área desmatada com a plantação da lavoura. Acontece que para isso, dependia da assistência técnica e dos incentivos agrícolas descritos no documento no Projeto Juina. Mas em muitos casos, esse apoio técnico não esteve à disposição, levando o pequeno proprietário a buscar créditos financeiros em empréstimos bancários, o que o levava a contrair dívidas tão altas que não restava outra saída senão vender ou arrendar o lote. A CODEMAT saía ganhando duplamente: com a venda do lote e com o trabalho que havia sido feito pelo colono e sua família. Como nos casos apresentados em pesquisas sobre o tema, assim como em projeto de colonização privada, no Projeto Juina foi comum a exploração do trabalho daqueles que viviam na área do projeto e não eram colonos foram tratados como peões pela colonizadora. Exemplo disso são os depoimentos a respeito da derrubada das matas na área do Projeto Juina, um trabalho difícil e perigoso. Uma atividade na qual muitos homens perderam a vida em acidentes causados na hora do trabalho com os motosserras. Esse tipo de exploração do trabalho na área do Projeto Juina foi descrito por Joanoni Neto (2003) como produto da exploração do trabalho de peões, trabalhadores braçais, ou de grupos de pessoas –nesse caso de uma mesma família por um proprietário rural, sujeitando-os à superexploração, a saber, escravidão por dívida. IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal foi criado em 1967 pelo Decreto-lei 289. Era vinculado ao Ministério da Agricultura encarregado dos assuntos pertinentes e relativos a florestas e afins. Existiu até 1989 quando foi extinto tendo suas competências, atribuições, pessoal (inclusive inativos e pensionistas) transferidos ou delegados à Secretaria Especial do Meio Ambiente – SEMA. 32 Cabe também chamar a atenção para um fato fartamente verificado na região, qual seja, o trabalho análogo ao escravo. Famílias inteiras foram trazidas do Paraná, onde tinham casa e vida própria, atraídas por ofertas de emprego e que, ao se verem dentro das propriedades, presas e submetidas pela força das armas, aviltadas em sua integridade e dignidade, vendo seus entes queridos ameaçados, expostos à fome e obrigados ao trabalho forçado, pouco puderam fazer. (JOANONI NETO, 2008). Os colonos tinham motivos de sobra para sentirem-se desestimulados e desencorajados, pois o tempo passava e muitas das promessas e vantagens anunciadas pela CODEMAT não se cumpriam. A começar pela realidade dos precários caminhos de acesso ao núcleo urbano. Se ocorria um acidente com motosserra, vítimas da malária (comum na região na época) ou de picadas de cobras, por exemplo, dificilmente a vítima chegaria ao núcleo urbano a tempo de receber o atendimento de que precisava. Além do fato da falta de assistência médica e de medicamentos. O Hospital que deveria estar funcionando de acordo com as normas técnicas dos projetos de colonização, não conseguia atender à demanda, não tinha centro cirúrgico e até 1979 contou com os serviços de um único médico. Como escreveu Tavares dos Santos (1993), “o sonho da terra se transformou na clausura”. Vieram para MT na esperança de que poderiam ter maiores possibilidades para manter a tradição do trabalho familiar na pequena propriedade rural. Compraram a terra pensando no direito de apropriar-se da renda que esta lhes proporcionaria por meio desse trabalho; no entanto, a vida cara e difícil fez com que muitas famílias desistissem e abrissem mão do lote, migrando de atividade produtiva, alguns homens indo para o garimpo; ou se deslocando novamente para outra região, como foi o caso das famílias de colonos que migraram para novas frentes de trabalho em Rondônia que na época ainda era um Território, mas logo seria elevado à categoria de Estado da Federação. Um fenômeno social dessas migrações é que dificilmente voltavam para o Paraná. A explicação, também social, é a de que para os colonos, culturalmente, voltar para trás é uma possibilidade inexistente. As promessas expostas pela CODEMAT no Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I que falavam a respeito de como fazer a terra “render” e a esperança de que tudo melhoraria com o tempo, convenceram a maioria das famílias a permanecerem em Juína. Nem estas podem ser consideradas mais corajosas, nem as que evacuaram da área fracassadas. Os problemas do Projeto Juina estavam diretamente relacionados às ações desservidas da CODEMAT e não na força de vontade dos colonos. E também nisso, podemos afirmar o consenso do qual tratávamos no capítulo anterior, bem como de não apenas dessacralizarmos o papel do Estado nessas ações e de desconstruirmos a ideia do colono como vítima e posicioná-lo como sujeito partícipe do processo, contradizendo assim a afirmação de que durante o período em que o país esteve sob regime do governo autoritário militar da ditadura, os trabalhadores do campo teriam sofrido certa desarticulação de seu movimento político e de luta pelo acesso à terra. Abandonar a área do projeto em busca de outras alternativas ou permanecer acreditando na esperança de que a vida iria melhorar ali mesmo também é uma forma de resistência ao estado de coisas e ao Estado que estava posto. Nos planos da CODEMAT a produção de café e de cacau, seriam as culturas permanentes e principal fonte de receita dos colonos de acordo as informações que o Projeto Juina descrevia, porém há indícios de que esses estudos, se realmente executados, deixaram a desejar, aja visto o fracasso no investimento nessa cultura. O fato é que a empresa contava com a experiência no manejo das plantações de café que os colonos trouxeram do Paraná. Quanto ao cacau, a empresa se comprometeu em enviar técnicos da EMATER para instruírem os colonos que se interessassem. O problema foi que muitos dos técnicos não conheciam a capacidade do solo na região; o que prejudicou ainda mais a situação dos colonos parceleiros e causou prejuízos perceptíveis nos rendimentos com a colheita. Rendimentos estes com os quais os parceleiros contavam para pagar parte da dívida da compra do lote junto à CODEMAT. Uma fonte de renda alternativa explorada foi o comércio da madeira advinda do desmatamento para abertura dos lotes; uma atividade incentivada pela CODEMAT que chegou a oferecer descontos no valor das parcelas para quem conseguisse extrair a quantidade prevista na primeira fase do projeto. Mais uma forma da empresa lucrar em cima da exploração do trabalho dos colonos. Também estava prevista pela CODEMAT a produção de guaraná, arroz, feijão, milho, mandioca e pimenta do reino que segundo a empresa serviria de cultura de subsistência para as famílias até o excedente das culturas permanentes (de café principalmente) conseguisse dar o suporte econômico esperado pelos parceleiros. Assim, a CASEMAT implantou armazéns na área do Projeto Juina para guardar e conservar os produtos destinados ao comércio. A partir daí surgiu a Cooperjuína, uma cooperativa para complementar o desenvolvimento da cultura da lavoura nos lotes rurais do Projeto Juina. No sentido clássico do termo a cooperativa deve servir para ajudar a solucionar os problemas de administração econômica de uma comunidade e atender às necessidades coletivas do grupo de seus associados. As cooperativas constituíram uma prática comum nos núcleos de colonização em MT nesse período, onde geralmente a proposta partia da própria empresa colonizadora, que acabava deturpando a ideia original das cooperativas e a transformando em mais um dispositivo de controle sobre a produção e o trabalho dos colonos. Elas eram exigência do INCRA em todos os projetos. Em tese uma cooperativa nasce da necessidade do grupo envolvido. No Mato Grosso, dentro dos projetos particulares de colonização, elas surgiram impostas pela colonizadora, ou seja, “de cima para baixo”, logo não contaram com a participação de todos os colonos, mesmo assim ao comprarem um lote, tornavam-se futuros cooperados. Por isso, quando elas faliram e isso aconteceu com a maioria delas as dívidas recaíram sobre os ombros dos colonos. Em Juina isso aconteceu (JOANONI NETO, 2008). A Cooperjuína – Cooperativa Agropecuária Mista de Juína funcionou de 1980 a 1988. Chegou a contar com 2.335 cooperados. Tinha por objetivos o beneficiamento e a comercialização do excedente agrícola; viabilizar o abastecimento de insumos necessários à qualidade da produção; cooperar para as visitas periódicas dos técnicos agrícolas aos lotes e fornecer informações sobre um melhor desenvolvimento da capacidade do solo na área do Projeto Juina. Mas, a proposta inicial que visava assegurar os rendimentos econômicos da comunidade entrou em controvérsia. A falta de operacionalidade da Cooperjuína foi um duro golpe nas pretensões de avanço econômico e diversificação da produção para os cooperados. A ideia que em teoria seria satisfatória para potencializar o sistema de comercialização dos excedentes agrícolas foi distorcida e mais uma vez os colonos se viam diante do desconsolo por não conseguirem recuperar o que investiram. A execução das obras de infraestrutura urbana na área do Projeto Juina estava prevista para o terceiro ano do projeto. A CODEMAT se encarregou da compra e instalação dos equipamentos técnicos das unidades responsáveis pelos setores de saúde, escolas e postos de segurança. A empresa faria a transferência das responsabilidades desses setores de forma gradativa até o término das obras. Os recursos financeiros destinados ficariam sob a custódia da CODEMAT no período de um ano após a transferência administrativa. Em 10 de Junho de 1979, Juína foi transformada em Distrito do município de Aripuanã. E uma lei estadual de 1982 (Lei 4.456 de 9 de maio de 1982) deu a emancipação política ao projeto da CODEMAT e transformou Juína em município do Estado de MT. O primeiro prefeito da cidade foi Orlando Pereira do PMDB. Ele venceu as eleições concorrendo com o candidato lançado pela CODEMAT que foi um de seus engenheiros, o Dr. Hilton de Campos. A disputa foi acirrada e Orlando venceu por uma diferença de apenas nove votos de vantagem sobre o candidato da colonizadora. As conseqüências desse resultado infelizmente não foram nada boas para a cidade. Formaram-se dois grupos políticos rivais: de um lado o poder público local e de outro, a CODEMAT que ainda detinha a administração dos recursos financeiros que deveriam ser passados para a administração pública. A empresa reteve a liberação desses recursos ocasionando uma situação lamentável de estagnação no desenvolvimento do novo município. Na época o Jornal Diário de Cuiabá publicou a seguinte nota de apoio ao município: O município de Juína, localizado no extremo norte de Mato Grosso, está ameaçado de entrar em colapso administrativo, em conseqüência da falta de apoio de alguns órgãos do governo (...) a situação se agrava dia a dia devido ao fato da CODEMAT não ter entregue à prefeitura os serviços essenciais tão necessários para a sobrevivência de seus moradores. A cidade além da falta de verba não possui um serviço regular de coleta de lixo e muito menos de distribuição de água. A CODEMAT recolheu todos os caminhões que prestavam serviços em Juína, criando uma situação delicada. (DIÁRIO DE CUIABÁ, 1993, in mimeo, apud BIANCHIM, 1994). Essa tal “situação delicada” causada pelo abandono da CODEMAT na execução de suas ações para o fechamento do Projeto Juina teve conseqüências por toda a década de 1980. O segundo prefeito da cidade a partir de 1989 foi Liceu Alberto Veronese que nos primeiros momentos de mandato expediu uma carta denúncia pedindo a atenção do então governador do Estado de MT, Carlos Gomes Bezerra. O prefeito começou a carta relatando as necessidades primárias pelas quais o município passava. O fato era que se tratava de uma situação de emergência: na cidade faltavam ruas transitáveis, escolas e assistência médica e até água potável. (Em anexo temos uma cópia desse documento). Por conta das ações articuladas no Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I não terem sido cumpridas pela CODEMAT, o novo município - uma pequena cidade do interior do Brasil, logo de seu nascimento submeteu sua população à égide dos velhos problemas que ocorrem nas grandes e antigas áreas das periferias das metrópoles brasileiras. A CODEMAT atuou em Mato Grosso até 1997, quando do período da política de privatização e enxugamento da máquina pública do Governo Federal do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi extinta por um decreto do governador do Estado de MT seguindo a mesma política de Estado mínimo desenvolvida por FHC.33 A temática da reforma do Estado ganhou maior expressão a partir da década de 1980, quando as ideias liberais nortearam as propostas de reforma do Estado na Inglaterra da primeira ministra Margaret Thatcher e nos Estados Unidos. O caráter liberal conservador de Margaret Thatcher na Inglaterra durante toda a década de 1980 se propagou na América já nos anos 1990 como neoliberalismo. Esse neoliberalismo no Brasil foi desenvolvido durante o governo Fernando Henrique Cardoso, que seguia a mesma lógica de materialização dos valores liberais em política conservadora e padrões agressivos de negociar do neoliberalismo internacional. O caráter marcante desse governo de política de Estado mínimo foram as privatizações de várias empresas estatais ao longo dos dois mandatos do presidente FHC. Quando não foram as privatizações foram as liquidações ou as extinções de algumas dessas empresas. Em MT, o governo Dante Martins de Oliveira, contemporâneo do governo FHC e compartilhando da mesma política neoliberal de Estado Mínimo, privatizou, liquidou e extinguiu algumas empresas públicas estaduais. Foi o caso da CODEMAT. Segundo o Decreto 2.123 de 20 de fevereiro de 1998 estabelecia, O GOVERNADOR DO ESTADO DE MATO GROSSO, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 66, inciso III e V, da Constituição Estadual e com fundamento no artigo 46 da Lei Complementar nº 14, de 16 de janeiro de 1992, e considerando a necessidade de adotar os meios judiciais, no sentido de agilizar o processo de extinção da Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso – CODEMAT e da Companhia de Armazéns e Silos de Mato Grosso – CASEMAT. DECRETA: Art. 1º Ficam os Secretários de Estado de Planejamento e Coordenação Geral e da Agricultura e Assuntos Fundiários, representantes do Governo do Estado, acionista majoritário da CODEMAT e CASEMAT, na qualidade de representante nas Assembléias Gerais destas, autorizados a deliberar pela extinção das companhias citadas neste artigo, utilizando a modalidade de incorporação, na forma dos artigos 223 a 227 da Lei nº 6.404/76 que dispõe sobre as sociedades por ações. Art. 2º Fica o Secretário de Estado de Indústria, Comércio e Mineração, representante do Governo do Estado, acionista majoritário da Companhia de Mineração do Estado de Mato Grosso – 33 Ver anexo sobre carta do governador do estado de Mato Grosso anunciando a liquidação e extinção da CODEMAT no final desse trabalho. Conferir os decretos nº 1.167 de 22/01/92; 2.000 de 03/10/92; 770 de 14/02/96 e 1415 de 21/02/97 e o DECRETO 2.123 que dispõe no Diário Oficial de MT a extinção da CODEMAT. METAMAT, na Assembléia Geral desta, autorizado a deliberar pela, aprovação do protocolo de incorporação da companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso – CODEMAT pela METAMAT, bem como assumir todos os seus direitos e obrigações contratuais, após efetivada a referida incorporação. Art. 3º Fica o Secretário de Estado de Agricultura e Assuntos Fundiários, representante do Governo do Estado, acionistas majoritário da Empresa Mato-Grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural-EMPAER, na Assembléia geral desta, autorizado a deliberar pela aprovação do protocolo de incorporação da companhia de Armazéns e Silos de Mato Grosso – CASEMAT pela EMPAER, bem como assumir todos os seus direitos e obrigações contratuais, após efetivada a referida incorporação. Art. 4º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. Art 5º Revogam-se as disposições em contrário. Palácio Paiaguás, em Cuiabá, 20 de fevereiro de 1998, 177º da Independência e 110º da república. DANTE MARTINS DE OLIVEIRA/Governador do Estado. (DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DE MATO GROSSO/MARÇO DE 1998 – Cópia em anexo). 3.4 Sepultar o documento: fazer falar quem não se esperava ouvir a voz Para Michel de Certeau (2011), a reflexão teórica em história tem um lugar preciso: ela [...] é pertinente quando a prática histórica torna-se o lugar de um questionamento; caso contrário, teríamos uma problemática do tipo ideológico, uma forma de sonho desvinculado das questões que, efetivamente, se formulam no decorrer de um procedimento científico na área de história (CERTEAU 2011, p. 163). É o questionamento do qual fala Certeau (2011) que nos possibilita problematizar o Programa Estadual de Colonização. Mas para isso, lembremos que é em Certeau (2008) que encontramos o sentido dos passos tomados até chegarmos nesse ponto. Como já colocamos, todo trabalho histórico “(...) começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documento’ certos objetos distribuídos de outra maneira (CERTEAU, 2008, p. 81). Para a CODEMAT e as instituições a ela ligadas como o próprio Estado, o Programa era um documento oficial. Mas era antes um dos requisitos a ser cumprido para que a Empresa desenvolvesse suas ações enquanto colonizadora. É antes uma propaganda de si, que talvez se pretendesse um marco monumental das ações da CODEMAT. Não necessariamente uma garantia de que as propostas de desenvolvimento do Projeto Juina ali estabelecidas, de fato se cumprissem. Essa é a fronteira que o torna constitutivo da nossa intenção voltada ao procedimento de análise dos seus elementos dispersos no plano da experiência e organizando-os segundo um critério imaginado pelo nosso ofício: após a separação dos materiais, investigá-los, questioná-los, problematizá-los na tentativa da formulação de nossa narrativa. “Desse momento, escalonado incessantemente no tempo, é que data o nascimento do historiador; essa ausência é que constitui o discurso histórico” (CERTEAU 2011, p. 164, grifo do autor). Se tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documento’, vejamos um dos enunciados iniciais descrito no Projeto Juina Volume I que apresenta quais seriam os antecedentes que justificavam a atuação da CODEMAT na colonização oficial de Mato Grosso. Antecedentes: O Decreto nº 411 de 10 de novembro de 1962, reserva para colonização todas as terras devolutas, de domínio Estadual existentes em Mato Grosso. A partir de então, embora sem muitos estudos de viabilidade econômica, alguns programas de colonização foram desenvolvidos, mais no sentido de regularização fundiária de áreas de acesso favorável já ocupadas por “posseiros”. Ficando desocupadas as terras mais distantes e de difícil acesso. O maior remanescente destas, em volume de áreas contínuas, ainda hoje estão localizadas no Município de Aripuanã. Já a lei 3.307 de 18 de dezembro de 1972, reserva a CODEMAT, todas as terras devolutas do Município de Aripuanã para fins de colonização. Em 1973, sentido a responsabilidade de participar da integração da Amazônia, o Governo Estadual resolveu dar início à ocupação da área através da iniciativa privada. (...) Com o advento do Programa POLAMAZONIA, pôde então o Governo pensar na colonização das terras remanescentes diretamente pela CODEMAT, que é o órgão responsável pela execução da política de colonização no Estado. (Fragmento extraído do Projeto Juina Volume I – Programa Estadual de Colonização da CODEMAT. 1978 – Ver anexo 2). Incide no fragmento acima o fato de que as terras devolutas às quais a CODEMAT se refere não são completamente tratadas como “espaço vazio” por considerar a presença de “posseiros” na região. Porém, como já mencionamos, nesta região encontravam-se os espaços territoriais seculares de populações indígenas as quais são aqui ignoradas, o não dito. A falta de estudos de viabilidade econômica exposta no fragmento é contraditória com o propósito do dispositivo da colonização. Que por sua vez, faz sentido no mundo do capital contando com a mercantilização da terra perante um discurso de progresso e desenvolvimento e a própria prática de ações voltadas ao subsidio da frente de expansão na fronteira Amazônica, dadas as circunstâncias. Outra contradição está na afirmativa de que a responsabilidade pela colonização passaria à CODEMAT e antes havia sido entregue à iniciativa privada. Ora, a CODEMAT por ser uma empresa de economia mista e sociedade anônima era constituída também de capital privado, além do fato de que durante o processo de institucionalização do Projeto Juina a empresa também alienou boa parte dessas terras. Outro trecho que merece uma atenção especial diz respeito à fertilidade do solo já ao longo da implantação do projeto muitas famílias de colonos que adquiriram lotes nos núcleos rurais enfrentaram dificuldades para desenvolver a pequena lavoura, como foi o caso das experiências com o plantio de determinadas espécies de café. Os estudos preliminares foram desenvolvidos com base nos levantamentos feitos através de fotografias aéreas, coletas de amostras de solos no eixo da Rodovia AR-1 em seu primeiro trecho (...) Tais estudos, revelaram que nem todas as terras da área eram de fertilidade suficientes para a implantação de projetos específicos de colonização. Deste modo, o Governo sancionou a Lei nº 3.744 de 10 de junho de 1976, destinando as terras à colonização e alienação. Entendendo-se que a alienação pública em lotes de até 3.000 ha para fins agropecuários, independente de projetos de colonização e de comprovação da capacidade de uso do solo para lavoura. (Fragmento extraído do Projeto Juina Volume I – Programa Estadual de Colonização da CODEMAT. 1978 – Ver anexo 2). O primeiro ponto falho tem a ver com a geografia do espaço de implantação do projeto. Os lotes dos núcleos rurais do Projeto Juina se localizavam em estradas vicinais, portanto fora do eixo da Rodovia AR-1. Isso nos leva a interpretar que, ou a CODEMAT não levou em consideração os tais estudos preliminares e tocou em frente a venda desses lotes mesmo sabendo que o solo precisaria de investimento tecnológico de custo oneroso para que se tornasse produtivo, ou não foram feitos outros estudos mais aprofundados a respeito. Além de que neste trecho o documento abre uma brecha que deixa clara uma preferência por projetos agropecuários. Mas a propaganda a respeito da implantação do Projeto Juina em sua maioria destinava-se a atrair pequenos produtores rurais. Poucas páginas adiante, encontramos mais contradições sobre o que foi Projeto Juina no papel e o que foi na prática como também podemos inferir que o documento oficial da CODEMAT apresentado ao Estado e ao INCRA pode nem sequer ter passado por algum tipo de revisão ou análise das ideias expostas. Ao estabelecer quatro motivos que levaram a definir a escolha da área onde o Projeto Juina seria executado, um deles diz o inverso do fragmento anterior ao afirmar a fertilidade do solo. Os principais fatores que levaram a essa localização foram: A) Complementar a ação do Governo Federal na área, cujos projetos definidos no Pólo Aripuanã, tiveram aí seu início. B) Estudos preliminares realizados por técnicos do Ministério da Agricultura através de exploração “in loco” juntamente com técnicos da CODEMAT, coletando material para análise no eixo da Rodovia AR-1 evidenciam a boa fertilidade das terras. C) Um estudo florestal revelou a existência na área de um grande potencial explorável de madeira, sendo identificada inclusive mais de 30 espécies de árvores próprias para extração de madeira até então desconhecidas. D) A presença destes recursos naturais em uma grande área contínua de terras públicas. (Fragmento extraído do Projeto Juina Volume I – Programa Estadual de Colonização da CODEMAT. 1978 – Ver anexo 2). Não fosse pela constatação de que muitos colonos tiveram que vender seus lotes ou até mesmo abandonar suas pequenas propriedades por falta de recursos para investir em técnicas agrícolas que melhorassem a produtividade da terra, a dúvida se o solo era ou não fértil ou se os estudos foram ou não de fato realizados pairaria no ar. Outra situação delicada exposta por este trecho do documento é a respeito do “potencial explorável de madeira” denunciando aqui que a CODEMAT não teve preocupação com relação a preservação ambiental, o que explica porque houve tanto desmatamento naquela região, mesmo quando levamos em consideração leis ambientais da época. O Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I é um documento oficial da CODEMAT elaborado com o propósito de justificar a implantação do Projeto Juina de colonização oficial direcionada pelo Estado em Mato Grosso. É um documento extenso e denso de discursos elaborados sob a égide de um propósito maior que ele, principalmente a política nacional do regime autoritário da Ditadura Militar, a política desenvolvida por este para a questão do acesso à terra e a própria Doutrina de Segurança Nacional que endossava a prática do desenvolvimento desses projetos próximos à fronteira amazônica. Diversos pontos poderiam ser destacados e analisados como fora feito com os dois exemplos acima. Mas a ideia aqui é demonstrar de que forma ou quais as formas um documento oficial constituído em memória a respeito das ações de uma dada instituição, pode ser objeto de análise a partir da prático do oficio do historiador. O importante aqui não é a quantidade de fragmentos ou mesmo de documentos. Mas sim a relação entre estes e os limites que seu emprego proporciona ao criar a capacidade de transformar estes limites em problemas tecnicamente tratáveis; ou seja, historicizar sobre o objeto. O importante não é a combinação de séries, obtida graças a um isolamento prévio de traços significantes, de acordo com modelos pré- concebidos, mas, por um lado, a relação entre estes modelos e os limites que seu emprego sistemático faz aparecer e, por outro lado, a capacidade de transformar estes limites em problemas tecnicamente tratáveis. Estes dois aspectos são, aliás, coordenados, pois se a diferença é manifestada graças à extensão rigorosa dos modelos construídos, ela é significante graças à extensão que mantém com eles a título de desvio – e é assim que leva a um retorno aos modelos para corrigi-los. Poder-se-ia dizer que a formalização da pesquisa tem, precisamente, por objetivo produzir “erros” – insuficiências, falhas – cientificamente utilizáveis. (CERTEAU, 2008). Aplicando o que Certeau (2008) propõe a respeito da operação historiográfica sua definição a respeito das fontes e dos documento selecionados, bem como do escalonamento que o historiador faz dos mesmos; é possível afirmar que o Programa Estadual de Colonização Projeto Juina Volume I, é um dos principais documentos depositado entre centenas de outros documentos da CODEMAT, sem catalogação nenhuma, despejado em meio aos escombros que restaram depois da extinção daquela instituição, os quais poderíamos considerar uma sepultura onde descansam os restos mortais da empresa. Representava aquilo que os profissionais que atuam sobre a organização de documentos chamariam de “Arquivo de terceira idade” ou “Arquivo permanente”, pois para os arquivistas, não existe arquivo morto como é de praxe vermos esse termo recorrente na linguagem popular para se referir aos documentos que já não possuem mais importância jurídica ou administrativa, nem social. Ao contrário, se fosse o caso de o documento em questão de fato ter sido deixado entre os documentos que restaram da empresa partindo da premissa de uma séria catalogação, então seria posto na categoria descrita acima: perdeu a vigência administrativa, porém seu valor secundário ou histórico-cultural continuou. Mas, a julgar pelas condições nas quais foi encontrado, e levando em consideração que Certeau (2008) nos dá um certo direito à imaginação enquanto historiadores; podemos supor que esse documento foi guardado simplesmente por acidente, despropositadamente por aqueles agentes públicos que ficaram responsáveis pela guarda de tudo o que restou de registro burocrático da empresa; daí nenhum comprometimento com a organização do acervo ou a falta de condições materiais que favorecessem a isso. Já que a CODEMAT foi extinta definitivamente em 1998 e seus funcionários foram remanejados para outras instituições e/ou órgãos públicos do Estado de MT. Ou, aquilo que vem a ser o embasamento sobre o qual segmentamos o sentido de nossa investigação e análise: esse documento teria sido deixado junto aos demais, na esperança de que poderia servir como a representação de história simbólica das ações da CODEMAT como colonizadora e assim, cumprir seu papel de monumento para a Companhia e para a história oficial contada do ponto de vista do Estado a respeito do desenvolvimento da colonização como política pública em MT. Mas isso foi no momento de sua criação. Pois com o passar do tempo, vimos que quando da extinção da CODEMAT, suas falhas operacionais eram tão contundentes que mesmo um documento como esse, foi deixado de lado e sua sobrevivência, até o presente nos leva a acreditar que tenha sido apenas um acaso. Também nisso é preciso refletir sobre o nosso papel como historiadores. É aquele ponto em que se deve parar e perguntar como o fez Certeau (2008) sobre o que fabricamos quando fazemos história. Como enfatizou Certeau (2008), esse documento está morto. Não no sentido de que não tem qualquer relevância para o mundo dos vivos, mas que já não pode se pronunciar por si próprio. Pelo tratamento que a historiografia lhe confere, é o historiador quem fala por ele agora. A historiografia produz uma escrita, um discurso que trata dos mortos para dar lugar aos vivos; o objetivo é claro: trata-se de sepultar o morto a fim de evitar que seu fantasma tenha efeitos destrutivos sobre os vivos (CERTEAU, M. 2008). O discurso sobre o passado tem como estatuto ser o discurso do morto. O objeto que nele circula não é senão o ausente, enquanto que o seu sentido é o de ser uma linguagem entre o narrador e os seus leitores, quer dizer, entre presentes. (...) O morto é a figura objetiva de uma troca entre vivos. Ele é o enunciado do discurso que o transporta como objeto, mas em função de uma interlocução remetida para fora do discurso, no não-dito. (CERTEAU, M. 2008). Certamente não se trata de ressuscitar ou resgatar o passado. É justamente o contrário disso. Pois se o fosse, estaríamos afirmando a intenção de tornar o documento em questão em memória monumental. Antes, pelo contrário, é o não-dito que esse documento apresenta que o torna passível da crítica historiográfica pretendida partindo de um lugar social, uma prática e uma escrita (CERTEAU, 2008). É o não-dito que faz com que a escrita da história não seja mais tomada como um espelho do real, ou como verdade universal. Ele é possibilitado quando o pesquisador consegue capturar na pesquisa fragmentos do vivido, os subtrai do seu ambiente e os reorganiza montando formas que através da pesquisa, fazemos falar aquilo de quem não se espera ouvir a voz. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na prática, as ações da CODEMAT representaram mais uma das facetas do regime autoritário militar que sob o pretexto de solucionar os problemas agrários do período, tocou em frente a desterritorialização das populações indígenas e de posseiros, a dominação por meio de formas arcaicas de exploração da mão de obra, o desmatamento e a vinda de centenas de famílias de migrantes sulistas ou nordestinos que incentivados e algumas vezes ludibriados pelas propagandas, vendiam suas pequenas propriedades em seus locais de origem e partiam rumo à esperança de vida mais próspera. Leia-se mais capitalizada nas áreas de fronteira amazônica matogrossense. As conjecturas mostraram que a política de colonização dirigida pelo Estado em MT assumiu as mesmas características dos projetos de colonização privada. De fato, nas décadas de 1970 e 1980, o Estado de MT concentrou o maior número de empresas de colonização privada do país. Dos seus projetos surgiram novas cidades, muitas delas na fronteira amazônica. Esses novos espaços urbanos têm por vezes se tornado o palco da reprodução dos velhos hábitos de exploração do trabalho e da natureza especialmente em nome do agronegócio sob o discurso midiático de ser o Estado de Mato Grosso a terra das oportunidades. Mas que na realidade exclui e segrega homens e mulheres descapitalizados, aceitos apenas pelo único aspecto de atenderem o que foi colocado por Todorov (2003), “reduzidos ao papel de produtores de objetos, de artesãos ou de malabaristas, cujo desempenho é admirado, mas com uma admiração que, em vez de apagá-la, marca a distância que os separa” dos donos da “terra da oportunidade”. Com o avanço do capitalismo sobre as áreas de fronteira, a frente de expansão é integrada à frente pioneira. O uso privado das terras devolutas do Estado de MT foi o que caracterizou a frente de expansão e por isso mesmo estas terras foram colocadas no mercado, entregues às empresas colonizadoras privadas ou públicas, como foi o caso do Projeto Juina pela CODEMAT. Por isso, na primeira parte desse capítulo expomos algumas das ações desservidas da CODEMAT no desenvolvimento e execução do Projeto Juina. É dessa descrição/narrativa que nasce o deslocamento e a redistribuição entre aquilo que o documento apresenta, aquilo que a instituição que o elaborou pretende e o que nos serve de análise e a partir dela, a escrita sobre o objeto de nossa pesquisa. Assim, reforçando Certeau (2008) ser a escrita uma espécie de sepultamento do morto que é o documento. Por um lado, no sentido etnológico e quase religioso do termo, a escrita representa o papel de um rito de sepultamento; ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso. Por outro lado, tem uma função simbolizadora; permite a uma sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço próprio para o presente: “marcar” um passado, é dar um lugar à morte, mas também redistribuir o espaço das possibilidades, determinar negativamente aquilo que está por fazer e, consequentemente, utilizar a narratividade, que enterra os mortos, como um meio de estabelecer um lugar para os vivos. A arrumação dos ausentes é o inverso de uma normatividade que visa o leitor vivo, e que instaura uma relação didática entre o remetente e o destinatário. (CERTEAU, M., 2008). Para finalizarmos, interpretar não é encontrar um sentido que está para além da aparência, mas é avaliar algo, pensar a sua estrutura em função das relações que ela mantém com seus supostos e com seus suportes. A história não é o vivido. É “a arrumação dos ausentes”. O vivido não existe a não ser quando relatado. A história não é algo que nos acontece e que depois contamos para outros. É algo que acontece porque é contado. E porque é contado, nos dá a possibilidade de desconstruirmos algumas “verdades” construídas sobre uma parte da história recente do Estado de Mato Grosso. É assim que pretendemos como escreve Montenegro (2010), “(...) rachar as palavras, romper seus liames naturalizados e evidentes com as coisas, com o que se denomina real. A história como o digladiar de sentidos”. REFERÊNCIAS Livros AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil: 1961 – 1964. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: Do Sonho à Utopia. Cuiabá: EdUFMT / Carlini e Caniato, 2008. BECKER, Bertha. Amazônia. São Paulo: Ática, 1997 BITTAR, Marisa. Geopolítica e Separatismo na Elevação de Campo Grande a Capital. Campo Grande: Editora UFMS, 1999. BORGES, Nilson. 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