Náuseas e vómitos na gravidez - Biblioteca

Transcrição

Náuseas e vómitos na gravidez - Biblioteca
Revista bimestral de ciência e investigação em saúde
Nº5 - Ano 2007 - 4 | Maio/Junho
Náuseas e vómitos
na gravidez
Hiperplasia Benigna da
Próstata – terapêuticas
actuais
Aulas de natação e
desenvolvimento de
bebés
Campus Académico do ISAVE
Quinta de Matos - Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso
Tel. 253 639 800
Fax. 253 639 801
Email: [email protected]
www.isave.pt
Licenciaturas em:
Enfermagem
Fisioterapia
Terapêutica da Fala
Farmácia
Higiene Oral
Prótese Dentária
Radiologia
Análises Clínicas e Saúde Pública
Editorial
Educar para a saúde começa no nosso querer.
Parte de cada um de nós construir uma vida sã
em nós e nos outros. A Ser Saúde quer criar
os laços afectivos da educação em saúde para
profissionais, apresentar uma visão diferente e
global do que será o futuro em saúde.
A Ser Saúde fomenta o equilíbrio do
saber em saúde junto dos profissionais. Não
coloca barreiras, abre o caminho, deixa cada
texto educar na grandeza do que apresenta e
descreve.
No aumento contínuo de maus hábitos
de saúde, no aumento de doenças que limitam a qualidade de vida das pessoas, são os
profissionais que têm de alargar o âmbito de
intervenção, de saber, de procura em diferentes temas de saúde. Assim, criam unidade
entre profissionais na sabedoria, o que levará a
uma intervenção junto das pessoas mais atenta,
cuidada, humana.
A Ser Saúde, sem ilusões, cria na diversidade a unidade do saber. Na ciência, a Ser
Saúde promove os profissionais de saúde que
procuram construir a harmonia entre a prática
de saúde e todo o ser humano, no fundo, o
Ser Saúde…
Isabela Vieira
14
Daniel Serrão
O médico e os limites da
vida humana
O que desejei principalmente transmitirvos é que, quando um médico tem nas suas
mãos um ente vivo da espécie humana,
que vai morrer, seja ele um grande idoso,
um incurável ou um embrião, o médico é
muito mais do que um técnico competente e
dedicado. Ele tem de ser, ele é, um humanista
sensível e bom e um homem virtuoso que
compreende e respeita a luminosidade
fulgurante de um espírito que se extingue,
mas que irá perdurar na memória de quantos
o amaram. E que se deixa seduzir pela força e
beleza de toda a biologia do desenvolvimento
que faz de uma frágil e humilde célula. O
embrião, uma Pessoa Humana.
36
Entrevista a Fernando Menezes
PBL em saúde
O aluno como centro de
saber
Muitas pessoas associam aprendizagem apenas
a conhecimentos de conceitos, de factos
e mesmo de evidências. Não entendem a
aprendizagem como um processo mais amplo
que inclui a mudança, um novo comportamento diante de um facto. Na verdade,
aprendizagem significa mudança e não apenas
acumulação de factos.
28 50
Hiperplasia benigna da
Francisco Botelho, Carlos Silva
próstata – terapêuticas
actuais
Pode-se assim dizer que estão a surgir
diversas novas terapêuticas para o tratamento
da Hiperplasia Benigna da Próstata, com o
intuito de melhorar os sintomas urinários,
cada vez mais prevalentes com o envelhecimento da população. Algumas destas serão
rapidamente esquecidas por não apresentarem
nenhum benefício real, mas outras irão alargar o nosso leque de opções, com a vantagem
de apresentarem eficácias cada vezes maiores
com menos efeitos laterais.
Marta Martins, António Moreira, António Silva,
Felipe Aidar, Jaime Tolentino Miranda Neto,
Mônica Vieira
Aulas de natação e o
desenvolvimento de bebés
Este estudo tem como objectivo a caracterização do estado de desenvolvimento das
crianças, praticantes de natação para bebés
(dos 6 aos 36 meses de idade), em diversas
áreas (motricidade global, motricidade fina,
linguagem, área cognitiva e autonomia social).
É também objectivo deste estudo analisar a
importância que os pais atribuem a cada uma
das áreas do desenvolvimento e a sua relação
com a prática desta actividade aquática, bem
como os motivos pelos quais os pais inscreveram os seus filhos nestas aulas.
62
Adhemar Longatto Filho
O método citológico de
Papanicolaou e os novos
paradigmas da prevenção
de lesões cervicovaginais
induzidas pelo Papilomavírus
humano
Os horizontes da doença “carcinoma de
colo uterino” foram dramaticamente ampliados nos últimos anos.Tentar compreendê-los
vai muito além do teste de Papanicolaou,
convencionalmente preparado, corado,
analisado e relatado. O exame citológico não
pode mais ser avaliado como o centro de um
processo que envolve diagnóstico e conduta.
72
Ana Maria Aguiar de Lima, Isabel Cláudia
Batista Cardoso
Biologia das metástases
O processo de invasão tumoral e metastastização é constituído por uma cascata
complexa de acontecimentos bioquímicos e
genéticos orientados por diversas vias transdutoras de sinais e sistemas moleculares.
88
Rute Ferreira, Marta Moreira
Náuseas e vómitos na
gravidez
As náuseas e vómitos associados à gravidez
podem ocorrer em até 80% das mulheres
grávidas. Habitualmente têm início entre a 4ª
e a 7ª semana após a data da última menstruação, têm um pico entre a 8ª e a 12ª semanas
e, excepto em 10% das mulheres, resolve-se
até à 20ª semana de gestação. Na maioria dos
casos os sintomas são mais graves de manhã.
96
Gustavo Afonso, Lara Costa, Marta Miranda
Pé Diabético: prevenção e
tratamento
O Pé Diabético é uma das complicações
mais catastróficas da diabetes, uma vês que
ainda continua a ser responsável por elevados
números de amputações cirúrgicas dos
membros inferiores.
110
Mafalda Duarte, Constança Paúl
Avaliação do ambiente
institucional – estudo
ecológico comportamental
dos idosos
Tendo em conta as alterações demográficas
provocadas pelo envelhecimento em toda a
Europa, a que Portugal não fica alheio, e as
transformações que ocorrem nas sociedades
actuais, proporcionam-se as condições para
que considere o processo de envelhecimento
e a velhice como uma situação problemática
a necessitar de apoio social.
Poster
Rute Ferreira, Marta Moreira
Náuseas e vómitos na
gravidez
Actualidade
Tecnologias da Saúde Online
O Tecnologias da Saúde Online é um
website criado com o intuito de constituir o
ponto de encontro de todos os profissionais e
alunos da área das Tecnologias da Saúde. Desde
a sua criação, a 11 de Outubro de 2005, que
se verificou um crescimento exponencial em
termos de registos e participações. Tal facto
deve-se à participação de profissionais de diferentes áreas.
O website, em particular o webforúm, possui
secções relativas às diferentes 18 profissões,
uma dedicada à comunidade, onde se abordam
temas da actualidade, promoção de eventos
científicos, entre outros, e ainda uma secção de
procura e oferta de emprego.
Fruto desta realidade, temos vindo a criar
parcerias com diversas entidades, no sentido
de promover acções de interesse aos TDT’s,
de forma a promover a qualidade científica
dos mesmos, e a valorizar a discussão de temas
relevantes.
Através da parceria com a revista Ser Saúde,
divulgamos conhecimento de elevado valor
científico, promovemos a qualidade científica
dos profissionais de saúde, formando e informando.
Director
Eugénio Pinto
[email protected]
[email protected]
Impressão
Orgal, impressores
Rua do Godim, 272
4300-236 Porto
Editores
Isabela Vieira
Rui Castelar
Tiragem
5 mil exemplares / bimestral
Director de arte e grafismo
Ângelo Mendes
[email protected]
Publicidade
Celmira Dias
Propriedade
Ensinave – Educação e Ensino Superior do Alto
Ave
Campus Académico do ISAVE – Instituto Superior
de Saúde do Alto Ave
Quinta de Matos – Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso
NIF – 504 983 300
Contactos
Ser Saúde
Campus Académico do ISAVE – Instituto Superior
de Saúde do Alto Ave
Quinta de Matos – Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso
Telefone – 253 639 800
Fax – 253 639 801
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Nº de Registo na ERC 124994
ISSN 1646-5229
Depósito Legal 246971/06
---------------------------------------------------------------------------------------------------------Os artigos publicados nesta edição da Ser Saúde
são da responsabilidade dos autores. Proibida a
reprodução parcial ou total, sob qualquer forma,
sem prévia autorização escrita.
Agenda
MAIO
XX Jornadas de Ortopedia do
Hospital de S. João
03 de Maio
Ordem dos Médicos
X Encontro Nacional APEO: O
Enfermeiro Obstetra - Um Percurso de
Competência
03 de Maio
Escola Superior de Saúde de Viseu
Seminário de Integração Profissional
– Tecnologias da Saúde
4 de Maio
ISAVE, Póvoa de Lanhoso
2º Simpósio Internacional:
Perturbação pós-stresse traumático
04 de Maio
Centro de Congressos, Portalegre
Dinâmica da Intervenção da
Enfermagem na Prática Desportiva
04 de Maio
Centro de treinos e formação desportiva do Futebol Clube do Porto,Vila
Nova de Gaia
II Jornadas de Enfermagem em
Cardiologia do Hospital N. Sra.
Rosário
09 de Maio
Auditório Municipal Augusto Cabrita
no Parque da Cidade, Barreiro
Forum 07 - O Cidadão e a
Enfermagem
10 de Maio
Teatro Académico de Gil Vicente,
Instituto Português da Juventude,
Coimbra
Tratamentos Domiciliários
Aerosolterapia * Oxigenoterapia * Ventiloterapia
Screnning Domiciliário * Aspirador de Secreções
Ventilação Volumétrica * Apneia de Sono
Apneia do Lactente * Pulsoximetria *
Coughassist
Gasin – Gases Industriais S A
Rua do Progresso, 53
4451-801 Leça da Palmeira
Tel.: 229998300 Fax.: 229998317
EN 249-3-KM 1,8 –D S. Marcos
2735-307 Cacém
Tel.: 214270000 Fax.: 214264656
VIII Reunião dos Núcleos de
Diagnóstico Prénatal
11 de Maio
Anfiteatro do Hospital de S. Marcos,
Braga
I Congresso Internacional de
Neurociências
14 de Maio
Aula Magna do Instituto Superior
Politécnico,Viseu
Fórum transfronteiriço sobre Saúde
do Idoso e Cidadão Dependente
16 de Maio
Teatro Municipal da Guarda
Fórum de Neurologia 2007
17 de Maio
Luso
Congresso Internacional de
Investigação Científica em
Enfermagem
17 de Maio
Centro Cultural e de Congressos de
Angra do Heroísmo
II Jornadas de Enfermagem
Perioperatória - Inovações e
desenvolvimentos Cuidar no bloco
operatório
17 de Maio
Auditório Augusto Cabrita, Barreiro
II Jornadas de Radiologia
18 e 19 de Maio
ISAVE, Póvoa de Lanhoso
Simpósio de Nutrição Parentérica
19 de Maio
Universidade Lusófona, Campo Grande,
Lisboa
10ª Reunião da Sociedade Portuguesa
de Neurociências
23 de Maio
Ofir
23º Encontro Transmontano do
Clínico Geral
24 de Maio
Pavilhão Multiusos,Vimioso
XXI Congresso Português de
Nefrologia
24 de Maio
Centro de Congressos de Vilamoura,
Hotel Tivoli Marinotel,Vilamoura
Feridas: da investigação à prática
24 de Maio
FIL Parque das Nações
Curso de Formação para Instrutores
de Massagem Infantil
25 a 28 de Maio de 2007
ISAVE, Póvoa de Lanhoso
Estudos Urodinâmicos, Bexigas
Neurogénicas e Sexualidade
25 de Maio
Escola Superior de Enfermagem de
Viana do Castelo
II Jornadas de Enfermagem de
Reabilitação
25 de Maio
Auditório Principal da Exponor
O seguimento do indivíduo com
trissomia 21 em Medicina Dentária
31 de Maio
Instalações da FMDUP
XV Jornadas de Dermatologia
25 de Maio
Hotel Solverde da Granja
7º Congresso Internacional de
Segurança, Higiene e Saúde do
Trabalho
31 de Maio
Porto
II Jornadas Interdisciplinares da ESSA:
Sexualidade e Deficiência - Uma
Abordagem Multidisciplinar
25 de Maio
Auditório do CMR Alcoitão
II Encontro Luso-Espanhol de
Cuidados Farmacêuticos
26 de Maio
ULHT Auditório Agostinho da Silva,
Lisboa
Congresso Internacional de Medicina
Estética e Anti-Envelhecimento
26 de Maio
Centro de Congressos, Estoril
IV Encontro de Reflexão dos
Técnicos Superiores de Diagnóstico e
Terapêutica
26 de Maio
Hotel Golf Mar,Vimeiro
Radiografia Panorâmica em
Reabilitação Oral em Implantologia
30 de Maio
Instalações da FMDUP
JUNHO
Curso de Preparação de Manipulados
nas Áreas de Pediatria e
Dermatologia
1 e 2 de Junho de 2007
ISAVE, Póvoa de Lanhoso
8º Encontro de Medicina Geral e
Familiar do Alto Minho
01 de Junho
Caminha
1º Congresso de Enfermagem:
Desafios... no Cuidar... na
Continuidade dos Cuidados...
Competências
06 de Junho
Auditório da Escola Superior Saúde,
Faro
XXVII Congresso Nacional de
Gastrenterologia e Endoscopia
Digestiva
06 de Junho
Tivoli Marinotel, Algarve
Congresso da Associação Portuguesa
de Urologia 2007
07 de Junho
The Lake Resort,Vilamoura
Tratamento Endodontico em
Odontopediatria
11 de Junho
Le Meridien Park Atlantic, Porto
10
XII Jornadas de Cardiologia de Braga
XIII Jornadas de Cardiologia do
Minho
14/15 de Junho
Auditório do Hospital de São Marcos,
Braga
Fórum Enfermagem Reabilitação
26/27 de Junho
Auditório Municipal de Lousada
Fórum Nacional Enfermagem, o
Doente Crónico
27/28 de Junho
Auditório Municipal de Lousada
Encontro Nacional de Enfermagem
em Emergência
28 de Junho
Fórum da Maia
Conselho Científico Ser Saúde
Adelino Correia
Adília Rebelo
Adrian Llerena
A. Fernandes da Fonseca
Alberto Salgado
Alexandre Antunes
Alexandre Castro Caldas
Alexandre Quintanilha
Alves de Matos
Amílcar Falcão
Ana Preto
António Miranda
António Paiva
António Rosete
Armando Almeida
Arminda Mendes Costa
Artur Manuel Ferreira
Berta Nunes
Carla Matos
Carlos Alberto Bastos Ribeiro
Carlos Albuquerque
Carlos Pedro Castro
Carlos Pereira Alves
Carlos Valério
Carmen de la Cuesta
Catarina Tavares
Célia Cruz
Célia Franco
Constança Paúl
Daniel Montanelli
Daniel Pereira da Silva
Daniel Serrão
Delminda Lopes de Magalhães
Dinora Fantasia
Duarte Pignatelli
Elsa Pinto
Eurico Monteiro
Fátima Francisco Faria
Fátima Martel
Fernando Azevedo
Fernando Schmitt
Fernando Ventura
Freire Soares
Guilherme Macedo
Gustavo Afonso
Gustavo Valdigem
Helena Alves
Helena Martins
Henrique de Almeida
Henrique Lecour
Isabela Vieira
João Costa
João Luís Silva Carvalho
João Pedro Marcelino
João Queiroz
João Ramalho Santos
Joaquim Faias
Jónatas Pego
Jorge Correia Pinto
Jorge Delgado
Jorge Ferreira
Jorge Marques
Jorge Soares
Jorge Sousa Pinto
José Amarante
José Carlos Lemos Machado
José Eduardo Cavaco
José Luís Dória
José Manuel Araújo
José Matos Cruz
José M. Schiappa
José Rueff
Laura Simão
Liliana Osório
Lisete Madeira
Lucília Norton
Luís Basto
Luís Cunha
Luís Martins
Luiza Kent-Smith
Madalena Cunha
Manuel Domingos
Manuel Mendes Silva
Manuel Teixeira Veríssimo
Manuela Vieira da Silva
Marco Oliveira
Margarida Soveral Gonçalves
Mari Mesquita
Maria Júlia Silva Lopes
Maria Manuela Rojão
Maria Margarida Dias
Mário Rui Araújo
Mário Simões
Marta Marques
Marta Pinto
Miguel Álvares Pereira
Paulo Daniel Mendes
Pedro Azevedo
Pedro Vendeira
Piedade Barros
Querubim Ferreira
Ramiro Délio Borges de Menezes
Ramiro Veríssimo
Raquel Andrade
Regina Gonçalves
Rui L. Reis
Rui de Melo Pato
Rui Nunes
Sandra Cardoso
Sandra Clara Soares
Sérgio Branco
Sérgio Gonçalves
Sérgio Nabais
Sónia Magalhães
Susana Magadán
Tiago Barros
Tiago Osório de Barros
Wilson Abreu
Veloso Gomes
Victor Machado Reis
Virgílio Alves
11
Fotos LK Comunicação
Numa quinta de 17 hectares,
numa aldeia, o ISAVE integrase nas asas das aves que traçam
o azul do espaço. Aqui, o olhar
repousa na beleza e encontra a
serenidade para o
conhecimento, para a prática da
sabedoria.
O ISAVE é a concretização real
do sonho de todos os espaços
de ensino. Quando o homem
cria e interliga em saber a obra
com a biodiversidade, o mundo
prossegue o seu caminho de
equilíbrio e desenvolvimento.
Num meio rural, o ISAVE
investiga, cria, inova.
A nobreza das instalações, a
branco, dão claridade,
transmitem luminosidade. No
ISAVE todos os caminhos são os
que seguem a liberdade, são os
que traçam o futuro, criando,
em cada pormenor, a estética
perfeita da arte na prática da
saúde.
O ISAVE tem à sua disposição
um espaço único para
congressos, colóquios,
palestras, os mais diversos
eventos.
www.isave.pt
[email protected]
Daniel Serrão
14
Professor jubilado da Faculdade de Medicina
O médico e
os limites da
vida humana
1. Começo por agradecer o tema, apai-
xonante, que me foi atribuído para esta
conferência inaugural. Apaixonante para mim
que, tendo cultivado a Medicina durante mais
de 50 anos, estou agora próximo de um dos
limites da vida humana, que é o limite final.
Tenho, assim, o direito e o dever de mostrar
que sei bem do que vou falar.
Apaixonante, ainda, porque tendo as
Jornadas uma importante vertente oncológica,
quem me vai escutar enfrentou já, de muitas
formas, o processo de morrer do outro como
um caminho que conduz a pessoa humana ao
limite, sem retorno, que é a morte corporal.
Testemunhas privilegiadas que são do
processo de morrer dos seres humanos, os
médicos pressentem o mistério que nele
se oculta e se revela, para além da anemia
incontrolável, da falência progressiva do
coração, do rim que já não funciona e até da
situação global do graft versus host, na qual uma
neoplasia, difusamente metastizada, impede o
doente, portador e receptor involuntário de
um enxerto pleno de vitalidade, de continuar
a viver, provocando, com a sua morte, também
a morte do hóspede indesejado.
Para além desta morte corporal, dizia, o
médico pode aperceber-se de como está a
morrer a pessoa que, pelo corpo, enfraquecido
15
16
e fragilizado, ainda se manifesta; pessoa com
uma história biográfica única e irrepetível,
grandiosa ou modesta, cumprida no fausto
palaciano dos ricos ou nos tugúrios escuros
da miséria, longa como a dos velhos sábios ou
curta e ilusória, traídos que foram os sonhos
da adolescente por um sarcoma de Ewing de
evolução fulminante.
Também a mim, ao longo da minha vida
de médico, não me têm faltado oportunidades
para acompanhar o processo de morrer de
pessoas nas situações mais diversas, como aquelas que acabei de esboçar; e sempre reconhecia,
quando a morte chegava e a vida corporal/
espiritual se extinguia, que tinha aprendido
alguma coisa nova sobre a natureza humana,
ou, como disse luminosamente F. Pessoa,
sobre “a importância misteriosa de existir”. O
mesmo Pessoa que escreveu com uma radical
lucidez,“morrer é só não ser visto”.
Apaixonante, finalmente, porque se a vida
humana tem um limite final, de grande
riqueza e complexidade, mas com um toque
de tristeza, tem também um limite inicial
que foi a passagem do caos para a ordem, no
princípio dos tempos, com a emergência da
vida a partir do universo natural, e é agora, no
tempo de cada um de nós, pela libertação de
um programa de desenvolvimento, ocultado e
criptado na informação genómica do zigoto.
O zigoto é o limite inicial de cada ser humano;
tão frágil que só cerca de metade sobrevive
na fecundação natural e muitos milhares
sobrantes da fecundação in vitro aguardam,
no azoto líquido, o dia da sua morte; mas tão
poderoso que nele se manifesta e constrói
um corpo de homem ou de mulher. Por
isso, o estatuto biológico, ético e jurídico
do embrião humano preocupa e mobiliza
os grandes areópagos internacionais, como
o Conselho da Europa e a Organização das
Nações Unidas; e, no Parlamento Europeu,
discute-se neste momento a legitimidade
de a Comissão financiar investigações com
embriões humanos excedentários ou doados
que serão destruídos por essa investigação.
Porque tenho participado nestes debates
e porque presido ao Grupo de Trabalho do
Conselho da Europa que prepara um protocolo para a protecção do embrião e do feto
humanos, não posso evitar dar o meu testemunho sobre o limite inicial da vida; este outro
limite onde há também uma perplexidade e
dúvida ao lado, agora, de um toque de alegria,
por uma vida humana que já está no mundo e
nele se irá realizar.
2. Abordarei, assim, o meu tema em duas
reflexões: uma sobre o fim e outra sobre o
princípio da vida humana, olhando estes dois
tempos numa perspectiva de antropologia
médica; porque são os médicos quem pode
compreender melhor a vida humana e os
seus protagonistas, não na banalidade do viver
rotineiro, mas na ventura, no risco, no fio da
navalha, onde tudo se joga, se ganha ou se
perde.
Ninguém como o médico enfrenta o dilema de decidir sobre um outro ser humano
que é seu igual e seu irmão nesta fraternidade
genómica que a todos nos une. Alex Mauron,
interrogava-se na Science, em artigo publicado em 2001, se o genoma não seria, hoje, o
equivalente da alma.
Para este cientista de biologia molecular e
professor de Ética na Faculdade de Medicina
de Genève, com todo o genoma humano já
conhecido ganha força a noção de que o nosso
genoma é sinónimo da nossa humanitude, o
que é uma espécie de metafísica genómica;
para os defensores desta posição, o genoma
é considerado como o core, o núcleo central
da nossa natureza, determinante quer da nossa
individualidade quer da nossa identidade
como espécie. Ora se o genoma é visto como
a verdadeira essência da natureza humana e
as acções externas são consideradas eventos
acidentais, então aproximamo-nos do conceito aristotélico de eidos que S.Tomás de Aquino
transformou em “forma” ou alma. Mas é uma
ilusão. Ser pessoa humana significa muito mais
do que ter um genoma, porque cada pessoa
tem uma história biográfica própria. Pertencer
à família humana, implica um riquíssimo leque
de ligações culturais que não podem ser reduzidas à simples pertença taxonómica, a uma
espécie viva, neste caso a espécie humana.
17
3. O processo de morrer é temporal, no
envelhecimento, e é acidental, na doença grave,
designadamente neoplásica.
18
Todas estas vias de análise
do envelhecimento são
interessantes e necessárias,
mas não atingem o problema
fulcral que é o seguinte: como
envelhece a pessoa no corpo
que envelhece.
Abundam hoje os artigos, colóquios e
congressos, sobre o envelhecimento, tentando
defini-lo no plano biológico,classificá-lo como
a terceira e a quarta idades da vida, enquadrálo no contexto social e demográfico como
um risco no futuro próximo, apresentá-lo
como um difícil problema para os médicos
de família nos centros de saúde, porque são,
proporcionalmente, os maiores utilizadores
dos cuidados de saúde e grandes consumidores
de medicamentos, muitos deles de duvidosa
eficácia farmacológica, mas de incontestável
efeito como placebos.
Todas estas vias de análise do envelhecimento são interessantes e necessárias, mas não
atingem o problema fulcral que é o seguinte:
como envelhece a pessoa no corpo que envelhece.
Muito tenho escrito sobre este tópico e
não quero repetir-me. Dir-vos-ei que este
problema fulcral levanta a mais difícil de todas
as questões da antropologia filosófica actual
que é a questão do espírito humano – que já
vimos não ser igual ao ADN genómico.
Do espírito humano conhecemos bem as
suas manifestações, mas temos muitas dúvidas quanto à sua natureza. Marc Jeannerod,
conhecido neurofisiologista francês, publicou
recentemente um livro intitulado “La Nature
de l’ Esprit” no qual se esforça, na esteira de J. P.
Changeux, por “naturalizar” o espírito.
Depois de apresentar e comentar os resultados
das investigações com os novos métodos de
estudo do funcionamento do cérebro, como
a tomografia com a emissão de positrões, e a
electroencefalografia magnética e a ressonância
magnética funcional, depois de concluir que
o cérebro humano sempre funciona como
um todo, articulando as diferentes percepções
sensoriais para transformar percepção em
conhecimento, depois conhecimento em
consciência e finalmente consciência em
auto‑consciência, Marc Jeannerod afirma:
«Fortes de ces nouvelles possibilités, les
neurosciences cognitives se retrouvent pourtant
confrontés à un programme qui semble
encore les dépasser: décoder les mécanismes
de l’esprit, comprendre le fonctionnement de
la pensée, de la mémoire, de l’affectivité». Ou
seja, todos os resultados das neurociências, que
conseguiram esmiuçar as percepções sensoriais
e demonstrar que, por exemplo, num cego de
nascença, o chamado córtex visual, muda de
funções e passa a servir para a compreensão
das palavras e que a leitura táctil em Braille
activa as áreas corticais tácteis, mas também
as áreas dedicadas à cognição nisual, todos
estes resultados, não conseguem descodificar
os mecanismos do pensamento abstracto,
da categoria lógica e ética e da capacidade
de simbolizar a
percepção do mundo
exterior por meio de
objectos intencionais. Menos
ainda a capacidade do homem
agir como um ente moral e esta
espantosa capacidade de amar o
outro, para além da atracção sexual e do
prazer genital, que esses são neurológicos e
hormonais.
A estas capacidades, vistas em conjunto,
chamo eu, em sentido hegeliano, espírito,
sendo certo que cada pessoa concreta, cada
indivíduo, revela-se no mundo como unidade
substancial de corpo e espírito, unidade indestrutível, mesmo nos estados psicóticos, mesmo
no processo de morrer.
O pensamento hebraico ao tentar compreender o fundamento das manifestações da
inteligência reflexiva e simbolizadora nascente, que não estavam presentes na criança mas
apareciam progressivamente, atribuiu-as à
insuflação do espírito de Javé, ou seja, de algo
transcendente aos seres humanos e a todos os
outros seres vivos. Esta penetração do corpo
do homem, por algo emanado da forma de
ser do ser transcendente, foi representada, mais
tarde, pelo vocábulo nishmat que significa o
que é interiorizado, à maneira do ar que se
inspira; daqui o uso da palavra latina spiritus
que significa o que é soprado.
19
20
A tradição hebraica teve sempre – e tem
ainda hoje nos comentadores rabínicos mais
exigentes – o cuidado de não confundir o
efeito com a causa. Nishmat não é Iavé, é uma
manifestação do poder de Iavé como criador
da vida e, em particular da vida humana.
Vida humana esta que, pelas capacidades
deste nishmat haveria, mais tarde, de atingir
o conhecimento do mundo – inteligência
simbolizadora e reflexiva – e a capacidade
do agir moral – distinguindo o bem do mal
– com os quais afrontou Iavé e, de certo modo,
“forçando-o” à promessa da salvação; para que
a grande obra por ele criada, o ser humano,
não redundasse, afinal, num fracasso. Há aqui,
neste aspecto particular da tradição hebraica,
uma dialéctica entre o ente criador e os entes
criados, que o haveriam de ser para a glória de
Iavé, mas que não queriam sê-lo, sem certas
condições, sem a promessa da vida boa. É uma
luta de poder, simbolizada no episódio de
Jacob e o Anjo e em outros lugares bíblicos,
que sempre termina por alguma concessão de
Iavé ao seu povo escolhido.
Este desvio bíblico na minha exposição, fico
a devê-lo à necessidade de tornar claro, até
onde é possível ser claro em matéria tão difícil,
que o espírito só é objectivamente conhecido
pelas suas manifestações e revela-se, a cada um
de nós, na auto-consciência. A auto-consciência, como percepção interior do self, do eu
próprio, não resulta das percepções sensoriais
– visuais, auditivas, olfactivas, tácteis e outras
– nem resulta da reflexão intelectual sobre
elas exercida e que as transforma de simples
percepções em conhecimento consciente ou
subconsciente, nem resulta da coloração afectiva que a inteligência emocional sempre lhes
atribui; mas resulta, sim, de uma estruturação
global de todas estas capacidades. Isoladamente,
para cada capacidade, podemos hoje descrever uma certa activação de redes neuronais
articuladas entre si. Mas nenhuma estrutura
anatómica cerebral, nenhuma função de redes,
nenhuma libertação e acção de mediadores
electroquímicos, pôde, até hoje, ser responsabilizada por esta estranha capacidade de
cada um de nós se ver a si próprio como um
outro, como um eu, reconhecível no presente,
arquivado como passado, mas evocável a todo
o momento e sobre o qual e para o qual eu
posso imaginar um futuro.
Pois bem, é a este eu auto-consciente que
cada um de nós irá referir o processo individual
de morrer. E é nele e por ele que se manifesta
a negação da vida, a vontade do suicídio e o
pedido para ser morto, ou seja, a eutanásia.
21
Deste modo, a atenção médica ao processo de morrer, quando a morte é horizonte
único da vida da pessoa, a curto ou a médio
prazo, tem de ter como prioridade o espírito
da pessoa que continua a manifestar-se num
corpo que progressivamente se degrada, de
forma irreversível, e sobre o qual não há já
lugar para exercer actividades médicas curativas, mas tão somente intervenções orientadas
para o conforto e o bem-estar físico possível.
O médico, por muito tecnicista que a si
próprio se considere, não deve afastar-se do
doente em fase terminal e entregá-lo aos
cuidados de enfermagem, ao apoio psicológico ou à presença do sacerdote ou ministro da
religião do doente.
Creiam que nenhuma outra figura está
mais qualificada, aos olhos do doente, do
que o médico, mesmo quando o doente tem
consciência da incurabilidade da doença que
o atinge. Quem lutou para o curar, para lhe
evitar a morte antecipada, é quem melhor
pode ajudá-lo a viver o processo de morrer.
E se o doente pede para ser ajudado a suicidar-se? Ou pede ao médico que o mate?
Que atitudes médicas são possíveis?
Analisemos a situação com objectividade
e sem estados de alma emocionais, sempre
inconvenientes neste tema.
O pedido de eutanásia, como o de ajuda ao
suicídio, é uma tragédia pessoal de quem pede.
Quando uma pessoa pede para ser morta ela
está a dizer-nos que, em sua auto-consciência, o outro que ela vê já não presta para
nada, já não tem o direito de continuar a ser
a estrutura orgânica na qual e pela qual um
espírito humano se manifesta; e por isso deve
ser destruído. Um eu que afirma o desejo
de destruir o corpo está a puni-lo por ele se
ter tornado numa estrutura de má qualidade
para suporte da manifestação da sua vida
pessoal como vida também espiritual. E esta
afirmação é uma tragédia. Mas mais trágica
é a situação em que uma auto-consciência
decide terminar a vida do corpo para que a
vida espiritual deixe de ser manifestada. Aqui,
o espírito pune-se a si próprio para que não
pense mais, não mais represente o mundo e os
outros, não faça juízos sobre o bem e o mal,
não ame e, dramaticamente, não queira ser
amado por ninguém.
A primeira situação acontece nos casos em
que o corpo é, todo ele, progressivamente
afectado como nas neoplasias metastizadas
22
sem tratamento; e a segunda, que podemos
identificar com o diagnóstico psicológico
de esgotamento do projecto pessoal de vida,
ocorre nos tetraplégicos e nos portadores de
degenerescências neurológicas, progressivamente mais incapacitantes.
dores, agora não precisa de estar a sofrer. O
acolhimento médico do sofrimento tem de
ser empático.
Se excluirmos a dor neurológica que, actualmente, pode sempre ser tratada ou tornada
suportável, resta, como causas do pedido de
eutanásia, o sofrimento e o esgotamento do
projecto pessoal de vida, uma e outra de natureza espiritual e não orgânica.
Só a empatia – conceito desenvolvido por
Freud – nos permitirá perceber a linguagem
cifrada na qual se exprime o sofrimento.
Acolher com a necessária, esclarecida e tecnicamente competente empatia, o sofrimento
da pessoa que está em processo de morrer,
significa dispor-se a ouvir, com todo o tempo
do mundo, uma narrativa pessoal, histórica,
por vezes incoerente e sobressaltada, na qual a
pessoa se despede dela própria, do que sentiu
e amou, do que não soube perdoar, do que
odiou, rejeitou e perdeu. Para que a pessoa
se despeça do eu que vai morrer, arrastado
pela morte corporal, e o possa fazer em paz,
necessita de uma testemunha – um familiar,
um amigo, se possível o médico. Se ninguém
está disponível para o acompanhar e ouvir,
ele pede, então, para ser morto. Claro que não
estou a referir-me à fase agónica.
O sofrimento é um estado de espírito,
essencialmente afectivo e emocional, mas
verbalizado, pelo doente, como um juízo
racional, uma relação de causa e efeito. Mas
não é um juízo racional, pelo que o acolhimento pelo médico não pode nem deve ser
argumentativo, do género: então, já lhe tirei as
Algumas sociedades modernas medicalizaram e banalizaram de tal forma o processo
de morrer que a eutanásia apareceu como
uma necessidade técnica. Na Holanda, matar
o doente que não pode ser curado é, na lei
actual, boa prática clínica o que, sendo monstruoso, é mais correcto do que chamar-lhe
Como pode o médico decidir? Deve aceitar
o pedido e provocar a morte antecipada destes
doentes?
Penso que não e vou justificar-me.
Pedir a morte é, na realidade, abrir um canal
de comunicação com o médico e este deve
saber receber a comunicação e descodificá-la.
Deste modo, a atenção médica ao processo de morrer, quando
a morte é horizonte único da vida da pessoa, a curto ou a
médio prazo, tem de ter como prioridade o espírito da pessoa
que continua a manifestar-se num corpo que progressivamente
se degrada, de forma irreversível, e sobre o qual não há já lugar
para exercer actividades médicas curativas, mas tão somente
intervenções orientadas para o conforto e o bem-estar físico
possível.
23
homicídio e despenalizá-lo. E no Estado de
Oregon, um dos Estados Unidos da América,
a autorização para a receita de uma dose
mortal de barbitúrico aos doentes terminais
é dada por uma Comissão da Sociedade Civil
porque entenderam que o assunto era social e
não médico, o que está correcto.
Quando existem médicos e outros profissionais que decidem dedicar-se ao acolhimento
competente dos pedidos de eutanásia e de
suicídio assistido, os pedidos desaparecem.
Todos os que trabalham em acolhimento de
doentes que vivem o processo de morrer,
confirmam que o desejo de serem mortos
desaparece do espírito da pessoa que reassume
o seu controle sobre o corpo, que se degrada
mas que a pessoa deixou de querer punir,
aceitando-o na sua fraqueza.
Mais difícil é acolher uma pessoa que não
está em processo de morrer, que pode ainda
viver muitos anos com limitações mas que
considera estas limitações incompatíveis com
o conceito pessoal de dignidade. Se estou
imobilizado, diz, e dependente, a minha vida é
indigna de ser vivida e tenho o direito de ser
morto, como é meu desejo.
O acolhimento nesta situação tem de ser
agora argumentativo e visará conseguir que a
pessoa reconstrua ela própria um projecto de
vida novo sobre os escombros da derrocada que,
por exemplo,o traumatismo vértebro‑medular
alto produziu. Não é fácil e exige competência
específica como, por exemplo, a capacidade de
executar a logoterapia de Viktor Frankl com
a qual se conseguem muito bons resultados.
Há exemplos célebres de tetraplégicos e de
portadores de neuropatias degenerativas que
usaram o seu cérebro e o seu espírito para
reconstruírem projectos de vida de grande
sucesso. Não vou citá-los porque são conhecidos de todos e porque os que me preocupam
não são os que venceram, mas são aqueles que
não recebem ajuda adequada para desenvolverem, no plano neurológico, as capacidades
restantes e, principalmente, para, no plano
espiritual, criarem uma nova imagem corporal, gostando tanto dela e das suas capacidades
limitadas, como gostavam do corpo ágil que
o desastre de viação atirou para a imobilidade
aos 20 anos. O sofrimento do paraplégico
exprime-se muitas vezes em violência verbal,
em comportamentos negativistas e no pedido
de ajuda ao suicídio.Também na recusa obstinada do amor dos outros.
O médico deve saber acolher a pessoa nesta
fase e orientar colaboradores de várias disciplinas que ajudem a pessoa a ultrapassar tal fase
até conseguir a aceitação da nova vida; depois
é todo um trabalho de reconstrução espiritual,
minucioso e delicado, feito de presença constante, de dedicação e de amor.
24
O médico tem de ser o perito das situações‑limite, porque só ele dispõe da preparação
necessária e da experiência vivida. Não pode
retirar-se do campo quando a batalha está
perdida porque ele ainda é necessário para
cuidar dos que sofrem mesmo não podendo
salvar-lhes a vida.
Cabe aos médicos lutar para que se desenvolvam, em Portugal, os princípios e as práticas
da atenção paliativa, institucional e domiciliária; para que não aconteça que o pedido de
eutanásia dos que sofrem sem serem acolhidos,
passe a ter justificação ética e a perturbar a
consciência dos médicos. Morre-se muito mal
em Portugal ou por obstinação em terapêuticas que já só causam dor e sofrimento ou por
abandono e solidão. Uma e outra destas mortes
são degradantes para a dignidade humana. Não
falemos de morte digna, que é uma expressão
sem sentido; falemos, isso sim, de uma vida
digna até à morte e é nossa obrigação, como
médicos, conseguir que todos, pobres ou ricos,
tenham vida digna até ao instante da morte.
Bastaria que Portugal aplicasse todos os
pontos da Recomendação do Conselho
da Europa de 1998, para que o espectro da
eutanásia, como solução de facilidade, economicamente favorável, deixasse de se perfilar no
horizonte da sociedade portuguesa.
Na Holanda, matar o
doente que não pode ser
curado é, na lei actual,
boa prática clínica o que,
sendo monstruoso, é mais
correcto do que chamar-lhe
homicídio e despenalizá-lo.
E no Estado de Oregon,
um dos Estados Unidos da
América, a autorização para
a receita de uma dose mortal
de barbitúrico aos doentes
terminais é dada por uma
Comissão da Sociedade Civil
porque entenderam que
o assunto era social e não
médico, o que está correcto.
4.
Já falei que chegasse sobre o limite final.
Passo agora para o limite inicial que é mais
alegre embora também possa ser preocupante.
Há pouco mais de 20 anos o “artificial”
entrou no processo de reprodução e o que se
passava, oculto, no corpo da mulher tornouse visível no laboratório: a conjugação de um
ovócito com um espermatozóide. A estrutura inicial de uma certa nova vida humana,
o embrião, vive fora do corpo da mulher,
crescendo durante alguns dias e depois ou é
transferido para um útero e aí continua o seu
desenvolvimento ou morre no laboratório ou
é crio-preservado, a muito baixa temperatura,
em azoto líquido.
Mas esta crio-preservação não é eterna.
Com o passar dos anos, os embriões vão
perdendo a possibilidade de serem transferidos
com sucesso para um útero de mulher, vão
perdendo a vitalidade para poderem ser utilizados em investigação científica e, finalmente,
morrem mesmo crio-preservados.
Temos, assim, uma nova entidade viva – o
embrião humano congelado excluído de um
projecto parental de desenvolvimento – que é
uma entidade paradoxal para o médico já que,
nesta nova entidade, o limite inicial da vida
humana transforma-se em limite final.
Imagino a perturbação do médico ginecologista que tendo constituído os embriões
humanos, em laboratório, para que um casal
infértil pudesse festejar o seu nascimento, se vê
agora a braços com um ente vivo da espécie
humana que, tendo sobrado do processo artificial de fertilização, vai morrer nas suas mãos.
Ninguém encontrou uma boa solução
para estes embriões excedentários que têm
uma mãe que não pode, ou não quer, recebê-los e por isso vão perecer. Destiná-los para
investigação científica não resolve o problema
insanável que é o da sua morte, embora os
utilitaristas defendam eticamente esta atitude:
usá-los em investigação destrutiva.
O médico deve olhar o embrião constituído fora do corpo da mulher não como
um instrumento ou um meio, para corrigir
a infertilidade conjugal, mas como um ser
humano, entregue à sua responsabilidade
profissional e que, por isso, ele tem o dever de
proteger.Assim sendo, deverá ter como objectivo não constituir embriões aos quais não
possa dar um destino digno, que é proteger a
sua vida e possibilitar o seu desenvolvimento.
A tendência actual em muitas clínicas de fertilização na Europa, Canadá e Estados Unidos
é não terem embriões excedentários, sendo
que, na Alemanha e na Áustria, criar embriões
excedentários é um crime previsto e punido
pelo Código Penal. Para o médico esta proibição é uma situação mais tranquilizadora desde
que a não constituição de embriões excedentários não signifique um pior rendimento do
processo de fertilização medicamente assistida,
claro está.
E os embriões clonados? É posição quase
25
26
unânime, em todo o mundo, que a técnica da
transferência nuclear de células somáticas não
pode servir, em nenhuma circunstância, para
produzir um corpo humano igual a outro já
existente, vivo ou morto.
Assim sendo, esta manipulação biotecnológica foi excluída da área médica, em
especial da medicina da reprodução e todos
nos regozijamos com isso. Como produto
de laboratório do qual se podem extrair
células estaminais que interessam à indústria
farmacêutica, talvez venham a ter futuro e
um Instituto do Reino Unido, o mesmo
que criou a falecida Dolly, já foi autorizado a
criar estas estruturas semelhantes a embriões,
utilizando células somáticas humanas. Mas o
debate ético que esta autorização suscitou no
Parlamento Europeu, poderá ter, em breve,
consequências negativas para o Reino Unido,
que ficará isolado na sua posição.
A manipulação das células somáticas com
transferência nuclear e a constituição de um
produto, que me repugna chamar embrião
pelo respeito que tenho ao embrião que todos
nós fomos um dia e marcou o limite inicial da
nossa vida, estão a ser consideradas, em grupos
jurídicos americanos, como ameaça global
para a espécie humana pelo que, tal como foi
feito com a fabricação, armazenamento e uso
das minas anti-pessoais, a ONU deve preparar
um tratado de proibição da clonagem humana
a ser assinado por todos os Estados Membros.
Aqui está uma iniciativa americana que deve
merecer apoio entusiástico.
Há pouco mais de 20 anos o
“artificial” entrou no processo
de reprodução e o que se
passava, oculto, no corpo da
mulher tornou-se visível no
laboratório: a conjugação
de um ovócito com um
espermatozóide. A estrutura
inicial de uma certa nova
vida humana, o embrião,
vive fora do corpo da mulher,
crescendo durante alguns
dias e depois ou é transferido
para um útero e aí continua
o seu desenvolvimento ou
morre no laboratório ou é
crio-preservado, a muito
baixa temperatura, em azoto
líquido.
27
5. Vou terminar. Ao sabor do correr da
pena desenvolvi o papel do médico quando
se defronta com os limites da vida que são
também limites à sua intervenção profissional.
O que desejei principalmente transmitirvos é que, quando um médico tem nas suas
mãos um ente vivo da espécie humana, que
vai morrer, seja ele um grande idoso, um incurável ou um embrião, o médico é muito mais
do que um técnico competente e dedicado.
Ele tem de ser, ele é, um humanista sensível e
bom e um homem virtuoso que compreende
e respeita a luminosidade fulgurante de um
espírito que se extingue, mas que irá perdurar
na memória de quantos o amaram. E que
se deixa seduzir pela força e beleza de toda
a biologia do desenvolvimento que faz de
uma frágil e humilde célula. O embrião, uma
Pessoa Humana.
Nota: Conferência realizada nas XVI Jornadas do Hospital
de S. José.
Francisco Botelho, Carlos Silva
28
Serviço de Urologia, Hospital S. João
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Hiperplasia benigna
da
terapêuticas actuais
próstata
29
Hiperplasia Benigna da Próstata e
seus sintomas
A Hiperplasia Benigna da Próstata (HBP) é
um diagnóstico histológico que corresponde
ao aumento da zona peri-uretral da próstata
(zona de transição) devido a hiperplasia das
células epiteliais e do tecido conjuntivo. A
incidência de HBP aumenta com a idade,
afectando de forma sintomática aproximadamente 25% dos homens com idade superior
a 40 anos e um em cada 3 homens com mais
de 65 anos.
Dado a próstata rodear a uretra masculina
na sua porção mais próxima do colo vesical,
um aumento do seu tamanho pode causar
obstrução do esvaziamento vesical que por
sua vez origina sintomas relacionados com a
obstrução da uretra e com alterações funcio-
nais da bexiga. Os sintomas provocados pela
HBP são o aumento da frequência urinária,
quer durante o dia (polaquiúria) quer durante
a noite (noctúria), a vontade súbita e inadiável
de urinar (imperiosidade), a incontinência,
o gotejamento no final da micção, a dificuldade em iniciar a micção (hesitação) e a
necessidade de esforço abdominal para urinar.
Estes sintomas, geralmente designados pelo
acrónimo inglês de LUTS (Lower Urinary
Tract Symptoms) condicionam a actividade
diária e o padrão de sono, alterando drasticamente a qualidade de vida destes doentes. No
entanto, não existe uma boa correlação entre
os LUTS e o tamanho da próstata e estes
sintomas também podem ser originados por
outras patologias, independentes ou associadas
à HBP.
30
Tratamentos
O objectivo do tratamento não é curar
a HBP, mas reduzir os sintomas e evitar as
complicações da doença. Deve ser ainda
salientado que o facto de um doente com
HBP ser submetido a tratamento não diminui
a probabilidade de aparecimento da patologia maligna da próstata; a HBP e a neoplasia
maligna da próstata são doenças diferentes e
esta última não é uma complicação da primeira. As opções terapêuticas actuais para a HBP
incluem vigilância, terapêuticas médicas e
terapêuticas cirúrgicas, das quais fazem parte
as chamadas técnicas minimamente invasivas.
A vigilância e controlo periódico, juntamente
com medidas gerais para evitar a congestão
pélvica, estão indicados se a sintomatologia
é ligeira e sem interferência significativa na
qualidade de vida.
Esta patologia prostática, dada a sua enorme
prevalência na população adulta, tem sido
objecto de várias terapêuticas inovadoras,
muitas das quais não sobreviveram à selecção
dos estudos de médio e longo prazo, o que nos
recomenda alguma prudência na utilização das
últimas novidades terapêuticas.
Alguns tratamentos que já foram experimentados, mas que actualmente estão
praticamente abandonados, são a Dilatação da
Uretra Prostática com Balão, com maus resultados a médio e longo prazo, e os Dispositivos
Intrauretrais, próteses colocadas na uretra prostática, com resultados controversos e altas taxas
de complicações. Uma alternativa terapêutica
que mantém as suas indicações é a Algaliação
permanente que, embora esteja associada a
uma taxa alta de complicações, é ainda uma
solução de último recurso em doentes com
mau estado geral.
Terapêutica médica
A terapêutica medicamentosa inclui várias
opções.
A fitoterapia consiste na terapêutica com
extractos vegetais e pode ser útil em doentes
com sintomas ligeiros ou moderados, com
a vantagem de praticamente não ter efeitos
laterais importantes; o extracto mais frequentemente usado é o da Serenoa repens.
Os bloqueadores dos receptores α1adrenégicos, que incluem a prazosina,
alfazosina, indoramina, terazosina, doxazosina
e tamsulosina (este específico dos receptores
α1A-adrenégicos), relaxam a musculatura do
estroma prostático, colo da bexiga e uretra
proximal, sendo os mais rápidos na diminuição
dos sintomas.
A Hiperplasia Benigna da Próstata é um diagnóstico histológico
que corresponde ao aumento da zona peri-uretral da próstata
(zona de transição) devido a hiperplasia das células epiteliais e
do tecido conjuntivo. A incidência de Hiperplasia Benigna da
Próstata aumenta com a idade, afectando de forma sintomática
aproximadamente 25% dos homens com idade superior a 40
anos e um em cada 3 homens com mais de 65 anos.
31
Os inibidores da 5α-redutase, actualmente
representados pelo dutasteride e finasteride
(este actuando apenas na isoforma tipo II),
bloqueiam a transformação na próstata da
hormona masculina, testosterona, na sua forma
activa, dihidrotestosterona. Diminuem parcialmente o volume deste órgão e os sintomas
urinários, embora demorem algumas semanas a actuar e só sejam eficazes nas próstatas
aumentadas, são os únicos que comprovadamente reduzem o risco de retenção urinária e
de necessidade de cirurgia.
Uma das novidades relativas a estas classes
terapêuticas são a introdução no mercado
de novas formulações de libertação prolongada de alguns bloqueadores dos receptores
α1-adrenégicos que apresentam um perfil
farmacocinético aparentemente mais favorável
a que poderão corresponder uma diminuição dos efeitos laterais e da interferência dos
alimentos na sua absorção1. A outra novidade
é o aparecimento de novos antagonistas dos
receptores α1-adrenégicos: silodosina (receptores α1A) e naftopidil (receptores α1D) cujos
ensaios clínicos recentemente publicados são
muito promissores2,3. Algo que não é uma
novidade mas que os ensaios clínicos dão cada
vez maior ênfase são as vantagens da associação
de dois ou mais fármacos, nomeadamente um
bloqueador dos receptores α1-adrenégicos e
um inibidor da 5α-redutase4.
Recentemente tem-se vindo a estudar
a utilização de medicamentos já utilizados
noutras patologias, no tratamento dos LUTS.
Como estes não são só causados pela HBP, e
também podem ser causados por patologia
vesical, faz sentido a associação de drogas
anti-muscarínicas à terapêutica padrão. Estão
publicados ensaios clínicos em que a associação de drogas anticolinérgicas apresentam
alguma vantagem, embora muitas vezes ligeira,
na diminuição dos sintomas, nomeadamente
irritativos5. O seu uso, ao contrário do que
se temia, aparenta ser seguro em doentes
com HBP, sem risco aumentado de retenção
urinária.Também a associação à terapêutica de
inibidores da fosfodiesterase tipo 5, utilizados
habitualmente na disfunção eréctil, aparenta
ter algumas vantagens no tratamento dos
LUTS6. Estas incluem não só contrariar alguns
efeitos laterais da terapêutica habitual, como a
disfunção eréctil ou alterações da ejaculação,
mas também na própria diminuição dos
sintomas urinários, possivelmente através do
relaxamento do tecido muscular liso prostático ou do colo vesical.
32
O objectivo do tratamento
não é curar a Hiperplasia
Benigna da Próstata, mas
reduzir os sintomas e
evitar as complicações da
doença. Deve ser ainda
salientado que o facto de
um doente com Hiperplasia
Benigna da Próstata ser
submetido a tratamento não
diminui a probabilidade de
aparecimento da patologia
maligna da próstata; a
Hiperplasia Benigna da
Próstata e a neoplasia maligna
da próstata são doenças
diferentes e esta última não é
uma complicação da primeira.
Terapêutica cirúrgica
A terapêutica cirúrgica actual inclui a
Ressecção Transuretral da Próstata (RTUP)
e a Cirurgia Aberta (Prostatectomia); a
primeira é uma cirurgia endoscópica utilizada
habitualmente quando a próstata é pouco
volumosa (menor que 50 cc) e a segunda é
utilizada quando a próstata é mais volumosa.
O objectivo destas cirurgias é a remoção do
tecido hipertrofiado e obstrutivo, mantendo‑se a próstata periférica íntegra. De notar que
a cirurgia não confere qualquer protecção em
relação às neoplasias malignas da próstata já
que é na zona periférica que estas aparecem
mais frequentemente.
As terapêuticas cirúrgicas são, sem dúvida, as
formas terapêuticas mais testadas a curto e a
longo prazo. A cirurgia, na maioria dos casos,
resolve ou alivia os sintomas, embora nem
sempre assim aconteça, nomeadamente com
os sintomas irritativos.
Estas técnicas apresentam alguma morbilidade frequente como a ejaculação retrógada
e outras mais raras como a estenose da uretra,
a impotência e a incontinência urinária.
Peri-operatoriamente existe ainda o risco
de hemorragias importantes e a síndroma
de RTUP que corresponde a uma hiponatrémia diluicional grave. Recentemente
tem-se utilizado uma variante da RTUP que
é a Ressecção por Vaporização Transuretral da
Próstata com ressectoscópicos adaptados que
permitem a utilização de alta voltagem que
origina a vaporização do tecido prostático e a
coagulação simultânea que sela os vasos afectados, originando uma diminuição das perdas
hemáticas intra-operatórias.
Técnicas minimamente invasivas
Têm sido desenvolvidas na última década
diversas técnicas designadas minimamente
invasivas. No geral apresentam como principais vantagens uma taxa de complicações
bastante reduzida e poderem ser utilizadas
com anestesia mínima ou até em regime de
ambulatório, embora algumas sejam apenas
aperfeiçoamentos da RTUP. São assim uma
alternativa interessante para quem quer evitar
tomar comprimidos e os seus efeitos laterais
e pretenda algo mais eficaz mas não possa
ser sujeito a uma cirurgia ou desejar evitar as
suas complicações, como doentes jovens sem
complicações ou doentes idosos com várias
comorbilidades.
A Terapêutica Transuretral por Micro-ondas
(e.g. Prostaton®) é uma das técnicas mais
investigadas e consiste na transmissão de calor
à próstata através de um cateter transuretral ou
tansrectal, e utilizando também um sistema de
As terapêuticas cirúrgicas
são, sem dúvida, as formas
terapêuticas mais testadas
a curto e a longo prazo. A
cirurgia, na maioria dos casos,
resolve ou alivia os sintomas,
embora nem sempre assim
aconteça, nomeadamente com
os sintomas irritativos.
arrefecimento com água ou uma agulha intraprostática para avaliar a temperatura e assim
individualizar o tratamento. Estudos recentes
provam que a eficácia é independente do
tamanho prostático. Como complicação específica pode provocar algum edema da próstata
que obriga ao uso transitório de uma sonda
vesical e têm sido descritos casos de fístulas e
necrose penianas. A Ablação Transuretral com
Agulha (TUNA) envolve o uso de ondas de
rádio de alta-frequência para produzir calor.
Estas duas são as técnicas minimamente invasivas actualmente mais utilizadas mas ainda não
alcançaram a mesma eficácia dos tratamentos
cirúrgicos, necessitando por vezes de re-intervenções dentro de 2 a 5 anos7,8.
33
Pode-se assim dizer que estão a surgir diversas novas terapêuticas
para o tratamento da Hiperplasia Benigna da Próstata, com
o intuito de melhorar os sintomas urinários, cada vez mais
prevalentes com o envelhecimento da população. Algumas destas
serão rapidamente esquecidas por não apresentarem nenhum
benefício real, mas outras irão alargar o nosso leque de opções,
com a vantagem de apresentarem eficácias cada vezes maiores
com menos efeitos laterais.
34
A Terapêutica Térmica Intersticial por
Laser consiste na transmissão à próstata da
energia do laser através de um equipamento
de cistoscopia usando geradores de laser e
cabos de fibra óptica flexíveis. Aparentam
estar associados a infecções urinárias, disúria e
dor perineal no período pós-operatório, mas
estas complicações poderão ser ultrapassadas
com o contínuo aperfeiçoamento da técnica9.
Uma das mais promissoras das novas técnicas
já em utilização é a Enucleação Transuretral da
Próstata por Laser de Holmium que apresenta
a mesma eficácia a curto e médio prazo que a
RTUP clássica, mas com menos morbilidade
peri-operatória, complicações a médio prazo
e internamentos mais curtos10,11. É a única
técnica com laser que permite a recolha de
material para avaliação histológica, sendo uma
séria candidata a torna-se a próxima terapêutica standard, tendo como principal limitação
uma curva de aprendizagem longa.
Outra técnica muito recente é aVaporização
Foto-selectiva que utiliza um laser de alta
potência (na verdade de dupla frequência),
também designado laser verde ou KTP, só
absorvido pela hemoglobina, para rapidamente
vaporizar e remover o tecido prostático numa
profundidade menor que o laser tradicional.
Estudos iniciais descrevem rápida melhoria
sintomática, praticamente sem complicações,
rápida curva de aprendizagem e necessitando
apenas de um dia de internamento11. Esta
técnica apresenta assim um enorme potencial,
já que a sua eficácia a curto e médio prazo
é sobreponível à RTUP, mas a sua eficácia e
efeitos laterais a longo prazo ainda são incertos, embora já haja um estudo com resultados
favoráveis passados cerca de 5 anos.
A Termoterapia Induzida pela Água12 é
outro procedimento muito recente no qual
água aquecida circula num balão colocado na
uretra prostática através de um cateter especial
num sistema fechado acabando por provocar
necrose do tecido prostático. Esta técnica é
relativamente fácil de realizar mas ainda não
dispomos de dados suficiententes para avaliar a
sua eficácia, nomeadamente a médio e longoprazo.
Outras formas de tratamento desenvolvidas
recentemente consistem na injecção de substâncias na glândula prostática. As duas com
melhores resultados são a Ablação da Próstata
através da injecção de Etanol por via transrectal e a injecção intra-prostática de Toxina
Botulínica. O etanol desidratado por apresentar propriedade necrotizantes e a toxina
botulínica por provocar a quimiodesnervação
do órgão bloqueando o sistema colinérgico,
foram utilizados ambos com diminuição
significativa dos sintomas, melhoria do fluxo
urinário e diminuição do volume prostático
que se mantem um ano após o tratamento,
com raras complicações13,14. Embora ainda
sejam tratamentos experimentais, abrem novas
perspectivas para o futuro.
Conclusão
Pode-se assim dizer que estão a surgir diversas novas terapêuticas para o tratamento da HBP, com o intuito de melhorar os sintomas urinários, cada vez mais
prevalentes com o envelhecimento da população. Algumas destas serão rapidamente
esquecidas por não apresentarem nenhum benefício real, mas outras irão alargar
o nosso leque de opções, com a vantagem de apresentarem eficácias cada vezes
maiores com menos efeitos laterais. Para isso temos que aguardar com serenidade e
sem publicidade extemporânea e exagerada pelos resultados a médio e longo prazo
destas novas técnicas, que terão que ser comparados com os resultados das técnicas
padrão – RTUP e Prostatectomia.
35
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36
PBL em saúde
O aluno como centro de saber
Na sua essência, o homem aprende com problemas desde sempre. O que o faz
querer saber é a necessidade de dar respostas à realidade. Neste sentido, a aprendizagem é um processo amplo e dinâmico, de aquisição de novos comportamentos
diante de diferentes factos. Para aprender e educar em saúde é necessário partir de
princípios basilares, da problematização constante, e descobrir que saber saúde é
muito mais do que memorização. Saber saúde exige comunicação, atitude, comportamento. Hoje, os profissionais têm a necessidade de integrar e trabalhar em conjunto.
E, em PBL/ABP (Problem Based Learning/Aprendizagem Baseada em Problemas),
a partir de problemas procura-se o conhecimento. Essa abordagem de ensino em
saúde parte da necessidade de criação de conceitos comuns, sempre baseados em
problemas, de uma prática diária. O professor assume aqui um outro papel, de tutor,
guia os alunos pelos caminhos do saber, da descoberta, da procura incessante de
conhecimento. Na verdade, tudo faz parte de um processo contínuo de mudança. A
educação é processual, dinâmica. E, como em todas as áreas, muito mais em saúde,
pois lida com o Homem, aprende-se e procura-se toda a vida…
Entrevista a Fernando Menezes
37
38
Licenciado em Medicina, em 1979,
pela Faculdade de Ciências Médicas de
Pernambuco, Fernando Menezes fez especialização em cirurgia cancerígena Ao mesmo
tempo, começou uma carreira universitária.
Nessa altura já tinha trabalhado numa pesquisa de cancro de pénis com investigadores de
Oxford. No Recife, no Nordeste do Brasil, é
muito comum o cancro de pénis. Participou
nessa pesquisa pioneira, na identificação do
Papiloma Vírus Humano que está na génese
de muitos desses tumores.
Nesta área e a investigar, cresceu o interesse em Fernando Menezes para realizar
um doutoramento em cancro cirúrgico. Pela
primeira vez veio à Europa para visitar um
centro oncológico, em Londres, em 1984. Em
1990, começa a desenvolver o doutoramento
na Escócia numa área experimental (terapia
fotodinâmica dos tumores) relacionada a
tratamentos para cancro. Em 1991, conhece
o processo educacional da universidade de
Dundee, da escola de medicina, um modelo
híbrido, pois algumas disciplinas eram ensinadas com um formato de PBL. «Naquela
época, na minha visão de escolas médicas, e
refiro-me especificamente ao Brasil, não havia
um complemento pedagógico educacional
forte. O ensino era deixado para os próprios
médicos ou outros especialistas na esperança
de que eles fossem bons professores. Alguns
eram, mas não existia refinamento pedagógico ou entendimento maior do que seria um
adequado processo de ensino e aprendizagem.
Dundee foi algo que modificou muito essa
minha ideia de professor como puramente
um técnico. Vi dentro da escola médica a
importância de centros da educação».
Em 1995 volta ao Brasil. Na escola de medicina da Universidade Federal de Roraima,
no seu terceiro ano de fundação, Fernando
Menezes começou a colocar em prática
algumas das ideias que tinha visto na Escócia.
«Comecei um processo de capacitação dos
professores, não eram muitos. Foi uma vantagem. A partir daí visitamos diversos centros de
excelência em PBL no mundo, em particular
a Universidade de Maastricht, na Holanda, a
Universidade de McMaster, no Canadá, e a
Universidade do Novo México, nos Estados
Unidos. Optamos por um modelo próprio,
mas utilizamos componentes já testados com
sucesso nestes centros. Em conjunto com
as universidades estaduais de Marília (São
Paulo) e Londrina (Paraná), conseguimos ser
pioneiros na introdução do PBL no Brasil. De
facto, fomos a primeira universidade federal
a promover esta mudança do modelo pedagógico. Isto permitiu-me uma inserção na
educação médica brasileira, chegando a ser
eleito vice-presidente da Associação Brasileira
de Educação Médica – ABEM, em 2004».
Na Universidade Federal de Roraima foi
também reitor (2000-2004), e hoje, com 50
anos, dedica-se cada vez mais ao ensino, vive
na Holanda, actuando como professor visitante na universidade de Maastricht, onde realiza
investigação relacionada com os processos
de avaliação e aprendizagem. Em resumo,
Fernando Menezes prossegue o sonho de
tornar o ensino em saúde mais prático, crítico,
tornando os alunos o centro da aprendizagem.
Muitas pessoas associam aprendizagem apenas a
conhecimentos de conceitos, de factos e mesmo de evidências.
Não entendem a aprendizagem como um processo mais amplo
que inclui a mudança, um novo comportamento diante de
um facto. Na verdade, aprendizagem significa mudança e não
apenas acumulação de factos.
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40
O que é PBL
(Problem Based Learning)?
A aprendizagem baseada em problemas
é uma abordagem pedagógica para o ensino e aprendizagem. O ponto de partida é a
exposição de uma situação real (problema ou
caso). O conhecimento do estudante é construído por meio da aplicação de estratégias
de trabalho com problemas, em pequenos
grupos (tutoriais), com ênfase no processo
de obtenção da informação, análise crítica e
aplicabilidade (resolução). Apesar de poder
ser utilizado isoladamente, este método, na
minha opinião, deve abranger todo o currículo. Quando isto acontece, os processos de
ensino passam a ser centrados no aluno. Para
tal, os professores precisam de suporte e visão
educacional dentro do processo.
Aprender é resolver problemas.
O que é aprendizagem?
Muitas pessoas associam aprendizagem
apenas a conhecimentos de conceitos, de
factos e mesmo de evidências. Não entendem a aprendizagem como um processo
mais amplo que inclui a mudança, um novo
comportamento diante de um facto. Na
verdade, aprendizagem significa mudança
e não apenas acumulação de factos. Existe a
necessidade de desconstruir a ideia de que o
processo de aprendizagem é meramente uma
colecção de factos, em que se soma através de
conteúdos e espera-se que no final se obtenha
o resultado de um indivíduo formado.
Como se desenvolveu o PBL?
O PBL não é novo no seu formato
actual, começou no curso de medicina da
Universidade de McMaster, Canadá, há
mais de 30 anos. Na Europa, a Universidade
de Maastricht, na Holanda, desenvolve um
modelo curricular próprio que é adoptado
por outras áreas do conhecimento. Pode-se
dizer que estas escolas médicas são pioneiras
e serviram de referência para os cursos que
surgiram e utilizaram esta metodologia. Hoje,
há várias formas de PBL e algumas escolas
reinventaram o PBL. De facto, há uma série de
instituições de ensino que utilizam a terminologia, mas que são muito diferentes do que é o
modelo do Canadá ou da Holanda.
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O que cria o PBL, em termos práticos,
no ensino em saúde?
Na saúde, a aprendizagem baseada em
problemas é fundamental. Lidamos com
problemas no dia a dia.A saúde, pela complexidade, exige a quem a pratica como profissional
muito mais do que o uso do conhecimento
decorado durante o curso. Todas as profissões
exigem muito mais do que memorização, mas
a saúde tem componentes humanísticas, de
comunicação, que pertencem a outros domínios da aprendizagem que não o cognitivo. As
relações interpessoais, as atitudes profissionais,
os comportamentos, e a execução de procedimentos são importantes. No PBL trabalham-se
os domínios psico-motor e afectivo de forma
integrada, permitindo a aquisição dos saberes
e da habilidade de trabalhar em grupo. Não
se pode falar de um trabalho desenvolvido
criticamente na área da saúde se não se incorporar diversos seguimentos especializados
nessa área. Como se integra um médico com
a enfermagem, com o odontologista e todos
de um modo geral? A visão tradicional era
muito hegemónica da classe médica, o médico
como responsável por toda, não só teorização,
a área da saúde. Hoje, existe uma necessidade
cada vez maior para que os profissionais se
integrem e trabalhem em conjunto, porque
somente em conjunto vão poder dar solução
a alguns problemas em saúde. O PBL favorece
esta integração.
Qual a ideia primordial do PBL em
saúde?
A aquisição dos conteúdos, competências
e habilidades necessárias para a formação do
médico tem como ponto de partida uma
situação real. Os conceitos fundamentais para
a prática médica, seja de cunho científico ou
clínico, são discutidos em grupo. Ganha-se
para além do cognitivo, em primeiro lugar,
a ideia do trabalho colectivo entre profissionais, o aprender a trabalhar em grupo e a
necessidade de permanente aprendizagem.
Ao trabalhar em grupo, as outras habilidades
que consideramos importantíssimas dentro do
processo profissionalizante, são apreendidas,
discutidas, trabalhadas. Num grupo tutorial
existem diversos comportamentos e contribuições individuais que se destacam durante
o trabalho. De forma activa e colectivamente,
uma situação real transforma-se em termos
educacionais nos objectivos da aprendizagem.
Num modelo tradicional
dou ao aluno o conceito e
espero que ele memorize e
transforme o conceito em
algo prático. Em PBL dou
ao aluno um problema ou a
prática, o que chamamos de
acção, permito que reflicta na
discussão em grupo, permito
que vá ao encontro do
conhecimento.
42
Como é que determinado problema,
da forma como é colocado, vai
permitir que um aluno aprenda?
A curiosidade em nós é inata, o problema
é o estímulo para a procura do conhecimento. Do ponto de vista educacional há uma
inversão completa daquilo que é realizado no
ensino tradicional. Por exemplo, no ensino
tradicional, de forma passiva, o aluno recebe
conceitos, factos e descrições pormenorizadas.
Espera-se que, no final, ele consiga relacionar
teoria e prática e aprender. No PBL esta forma
está invertida. É levada a vida real, o contexto, o problema que pode ser apresentado
de diferentes formas, levamos o que mais se
aproxima da realidade ou a própria realidade,
e a partir daí o próprio estudante define quais
os conhecimentos necessários para o melhor
entendimento daquela realidade de forma a
entender e oferecer soluções para aquilo que
foi apresentado.
Que vantagens deste processo de
ensino em saúde?
Primeiro, são trabalhados comportamentos
em todos os momentos, fundamentais nas classes de saúde. Comunicar bem é fundamental,
pois muitos dos problemas têm como origem
a incapacidade de comunicar. Segundo, ter
atitudes éticas, esperar que o outro fale, uma
série de actos que estão relacionados com
atitudes e comportamentos são trabalhados no
grupo tutorial. Terceiro, colocar o estudante
no papel activo, no grande papel de que ele
é responsável pela sua aprendizagem. Nesse
papel, ele desenvolve outras habilidades, como
raciocínio crítico, pois começa a seleccionar
o que vai ler. O fundamento é trazer para o
grupo as suas conclusões para discutir aquilo
que foi apresentado. Ele selecciona a informação. Ao ter contacto com os colegas e ao
verificar o que cada um escolheu, vai poder
comparar e fazer uma auto-avaliação do seu
trabalho. A partir desse momento começa
a crescer interiormente, segue um processo
onde se conhece melhor, aprende com os
colegas e cria conceitos comuns. O importante no processo de aprendizagem é a criação
de conceitos comuns. Uma vez o conceito
comum estabelecido fica-se mais próximo do
que será necessário para que aquela situação
seja resolvida. Deixa de ser uma questão puramente individual, do como eu acho. Embora
esse componente esteja presente, prevalece o
como eu fiz para solucionar, o que eu estou
a trazer para o grupo para que o grupo
aprecie e, no final da sessão, o conceito novo
formado a partir, naturalmente, da escuta de
todos os membros do grupo. Este processo
coloca o estudante na posição de responsável,
juntamente com o professor, o tutor, do seu
processo de aprendizagem. Isso modifica radicalmente o processo educacional.
Um tutor, um professor, vem do
sistema de ensino tradicional?
Quando se fala em mudança pedagógica é necessário fazer uma capacitação dos
professores. Todos nós, formados pelo sistema
tradicional, temos tendência para utilizar aquilo
que nos foi colocado no passado. A mudança
não é simples. Alguns professores percebem
e adaptam-se rapidamente mas, regra geral,
todos os docentes necessitam de um processo
de interiorização conceptual, de prática simulada, de um processo de capacitação. O tutor,
neste processo, é uma figura fundamental, um
facilitador da aprendizagem, vai ter diversos
papéis, mas não o papel tradicional de alguém
que chega à sala e vai dar uma aula, não um
papel de alguém que vai apenas responder
a perguntas de alunos. Vai ter de possuir
sensibilidade para conduzir o grupo aos
objectivos propostos, mais aos objectivos que
aquele problema está a criar para o grupo, sem
nunca o dizer. Os alunos descobrem por eles
próprios.A função do tutor é servir de guia, de
orientador, de facilitador para que não se fuja
dos assuntos, um orientador que permita que
exista um grau de discussão elevado para que
finalmente se chegue aos objectivos que sejam
comuns para o grupo.
Será fácil integrar o PBL em qualquer
escola de saúde?
Não vejo dificuldade nenhuma. O PBL
é uma metodologia como qualquer outro
tipo de metodologia. É necessário, primeiro,
desejar mudar; segundo, capacitar-se para a
mudança. Se internamente se deseja a mudança, se existem razões internas que estimulem
suficientemente para mudar, podemos dizer
que é esse o caminho.A partir desse momento
tanto professores como alunos vão perceber
que não sabem. Quem trabalha em PBL
parte do princípio que só aprendemos aquilo
que conscientemente entendemos não saber.
Muitas das nossas dinâmicas apontam para
o estudante na direcção que eles definirem,
naquilo que precisam aprender, naquilo que
eles não sabem. Claro que isso está dentro de
um conteúdo e conhecimento prévio. Todos
temos conhecimentos prévios que podem ser
correctos, mas podem ser também incorrectos.
Dentro da sua função, o tutor tem de permitir
que o conhecimento prévio seja colocado,
mas, também, tem de estar atento para que
conhecimento prévio incorrecto seja transformado dentro do grupo, não dizendo apenas
que está errado, mas levando a que o aluno
reflicta e perceba as suas incongruências.
43
44
Os conteúdos programáticos são
idênticos tanto em PBL como num
sistema de ensino dito tradicional?
Diria que são os mesmos conceitos e temas.
Também posso afirmar que as habilidades são
as mesmas. O que modifica é a forma como
o aluno adquire o conceito. Num modelo
tradicional dou ao aluno o conceito e espero
que ele memorize e transforme o conceito
em algo prático. Em PBL dou ao aluno um
problema ou a prática, o que chamamos
de acção, permito que reflicta na discussão
em grupo, permito que vá ao encontro do
conhecimento. Numa segunda reunião, num
próximo momento de discussão, o aluno terá
adquirido conceitos que vai poder usar. É um
processo diferente.
Quem fica mais capaz?
Desde que surgiu o PBL na área da saúde
foram feitas várias comparações entre escolas
que faziam PBL e que não o faziam. Os resultados variam desde resultados semelhantes a
resultados melhores para o PBL. Os estudos
mostram diferenças nalguns casos, noutros não.
Em cursos de saúde há um valor intrínseco,
a motivação. Se tenho uma metodologia que
tem outras componentes, que não somente
a rememorização de conceitos e definições,
o PBL não é para ajudar a memorizar, mas
para desenvolver determinadas habilidades
que são importantes na profissão, temos de ter
um outro tipo de processo de avaliação que
possa, de facto, aferir essas mudanças de que
estamos a falar. Procuramos ao máximo, desde
o primeiro momento, fazer com que a prática
profissional guie o conhecimento. Tentamos
fazer com que a integração do aluno, por
exemplo, nos serviços de saúde, comece no
primeiro dia. Um aluno no ensino em PBL
vê coisas que os estudantes tradicionais só
vêem em estágio nos últimos anos. Na vida
real os problemas surgem sem eu contar. Estou
no hospital, nunca sei quem vai ser o próximo
paciente a chegar, pode ser algo simples ou não.
Cada pessoa que chegar para o atendimento
trará uma situação completamente diferente, não só do ponto de vista da doença, mas
trará uma situação do ponto de vista humano:
como se comporta o aluno, o que vai fazer,
qual a expectativa em relação aquele processo.
Tudo isso é novo. Em PBL colocamos todas
estas situações e a partir da prática o aluno cria
o conhecimento.
O que interessa em saúde, no fundo,
é que o paciente ganhe um benefício
com a formação de pessoas em
saúde.
Não há um fim dentro do processo educacional que não seja o bem-estar da pessoa
que vai ser tratada. Estamos a falar da saúde
como um todo. Tanto lidamos com questões individuais como podemos lidar com
questões colectivas. Há elementos da própria
dinâmica do processo de aprendizagem que
são essenciais para a formação de lideranças.
Falamos muito de que precisamos de pessoas
com sensibilidade, que sejam capazes de liderar, mas os nossos cursos tradicionais apenas
passam teoria e não permitem que o aluno
tenha uma prática diária. Haverá, como eixo
central, um processo de discussão permanente em grupo. O aluno, para que se resolvam
diversos problemas dentro do grupo, vai
perceber a importância de continuar a aprender a vida toda. O processo educacional não é
um processo que termina quando ele recebe
o diploma. Futuramente, será responsável pela
colecta de informação, tem de ir à procura.
Para mim, isso é fundamental.
Em termos futuros, os métodos
tradicionais de ensino têm tendência
a desaparecer?
Há escolas que seguem diferentes filosofias,
umas puro PBL, outras modelos híbridos, Há
uma grande variedade.Tenho absoluta convicção de que cursos tradicionais, da maneira
como os conhecemos hoje, vão acabar. Um
curso puramente baseado em disciplinas, em
memorização a partir de conceitos, terminará.
Todas as escolas médicas dos Estados Unidos,
sem excepção, mudaram. Todas têm processos
educacionais diferentes e nenhuma tem o
modelo tradicional.Algumas têm como âncora principal o PBL, outras a Medicina Baseada
na Evidência. Todas têm em consideração o
papel activo do aluno.
45
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Haverá uma mudança profunda
mesmo a nível curricular?
Em Maastricht, na Holanda, nos últimos dez
anos mudaram três vezes o curriculum.Talvez
não seja mudar. Entendem o curriculum como
processo dinâmico, que pode ser aperfeiçoado
de maneira contínua. Um dos grandes paradigmas do ensino é as alterações curriculares.
Por tradição, o curriculum sobrevive no tempo.
Somos conservadores, são intocáveis. A visão
de plano de estudos na Holanda é uma visão
colectiva. Não há disciplinas, há módulos, os
módulos integram as diversas áreas de conhecimento, o processo de avaliação é colectivo,
não tem um professor que prepara as questões
para as provas, há uma comissão que lida com
todos os aspectos do processo de avaliação,
incluindo como aprender com a avaliação.
Os professores contribuem para um banco
de dados de questões que vão ser trabalhadas
do ponto de vista científico e é aí que essas
questões fazem parte do processo de avaliação.
A orientação académica e curricular passa a
ser uma orientação comum, integrada.
Dê-me um exemplo de ensino
tradicional e PBL?
No ensino tradicional existe uma dicotomia
entre o que é básico e o que é profissional.
Uma divisão clara. Os primeiros anos são os
anos das ciências básicas para que se crie um
suporte para, mais tarde, o aluno poder praticar
de diversas maneiras o que aprendeu. O ensino tradicional fragmenta o conhecimento. O
professor de anatomia é responsável, e só, pelo
conteúdo de anatomia.Todas as disciplinas são
independentes, o que leva a uma fragmentação do conhecimento na nossa visão, cria
compartimentos. O professor trabalha, escolhe
a informação, decide o que é relevante, o
que não é, enfim, decido tudo. O aluno, no
processo futuro de avaliação, terá de repetir
ao professor aquilo que lhe foi dito. Não se
admite qualquer tipo de divagação.
E no PBL?
Nas escolas que partem de problemas, da
realidade, de contextos para adquirir conhecimentos, a primeira coisa que cai por terra
é essa divisão entre o que é básico e profissional. Desde o primeiro momento, problemas
clínicos e reais começam a ser tratados. Não
é necessário nenhum pré-requisito para
aprender. Evidentemente, temos de doar ao
aluno o bom estímulo, e se o bom estímulo
for dado, o conhecimento será adquirido. Não
é necessário fazer compartimentos. Se para
aquele determinado problema é necessário
um conhecimento de anatomia, estimulamos
a que o aluno o identifique. Todo o sistema
está preparado para que a partir de um problema, identificada a necessidade, essa necessidade
de conhecimento seja preenchida. E tanto
pode ser no começo do curso como no final.
Mas tudo é preparado de forma estruturada.
Acabamos com a dicotomia, com a divisão
daquilo que é básico e clínico, não se pensa
na necessidade do requisito ou pré-requisito enquanto disciplina para se progredir.
Trabalhamos com conhecimentos prévios e o
princípio de que o aluno descubra que não
sabe para poder aprender. Conceptualmente, é
completamente diferente.
Pode haver uma aprendizagem quase
autónoma em disciplinas de ciência
da saúde?
Quando se fala da metodologia, as pessoas
conseguem ver este modelo como algo sem
estrutura. Na verdade, o método é estruturado.
Ele é mais estruturado do que o método tradicional. A diferença é que nessa estruturação o
eixo é o curriculum e não a disciplina. Quando
se utiliza uma metodologia activa continuo
a dizer quais são os conteúdos importantes,
afinal de contas sou um especialista.
Não há um fim dentro do
processo educacional que não
seja o bem-estar da pessoa
que vai ser tratada. Estamos a
falar da saúde como um todo.
Tanto lidamos com questões
individuais como podemos
lidar com questões colectivas.
Como é que esses conteúdos se
encaixam dentro do curriculum,
dentro do todo? Como permitir
aos alunos que contribuam com
conteúdos que não pensou e que são
importantes, pois se são levantados
pelos alunos são pertinentes? E se
não forem relevantes como se pode
trabalhar os alunos para lhes mostrar
como identificar relevância de
conteúdos?
É necessária estruturação. Nas aulas tradicionais defino, preparo as aulas, o resumo, e sei o
que irei fazer em determinado período. No
PBL não é assim. Quando se trabalha com
problemas, a todo o momento vão surgir
coisas novas que os próprios alunos trazem,
vão aparecer outras questões no momento de
integração de conteúdos. Existe uma maior
independência do professor no processo tradicional, pois num processo inovador temos de
trabalhar em conjunto com outros professores
num processo de inovação curricular. Quando
há uma mudança para PBL o professor deixa
de ser o único. É lógico que será um dos actores que oferecerá definições, talvez até o mais
importante dentro da área dele, mas tem de
entender que não é o único. O fundamental
é fazer com que aquele conhecimento faça
sentido para os alunos e não apenas o sentido
que o professor lhe pretende dar. Claro que
as mudanças precisam de ser interiorizadas,
não dependem de vontades individuais. É
óbvio que a mudança começa com vontades
individuais, mas essas vontades têm de ser
trabalhadas.
47
48
Tem de haver uma adaptação
constante às novas necessidades
concretas de ensino?
Associamos, muitas vezes, a mudança a
processos externos. A mudança é um processo
interno, as pessoas precisam de estar convencidas de que é necessário mudar e, a partir
desse desejo, gerar motivação para a mudança.
É necessário apresentar estímulos, mostrar
que é possível fazer diferente. Como tenho
experiência nos dois modelos, sei que é mais
interessante para os alunos quando começam
a entrar neste processo, em PBL. Há um estímulo e uma recompensa maior. Claro que há
coisas que se perdem, como esse pseudo poder
do professor, como só ele fosse detentor do
saber, só ele pudesse transmitir o saber.
Toda a realidade, mesmo no processo
de ensino em saúde, é um constante
momento de mudança?
Hoje temos um grupo de estudantes que
entram nas universidades que são muito diferentes do que eu era.Têm coisas que eu nunca
sonhei ter quando entrei aos 17 anos em medicina, têm habilidades que eu não tinha, têm
aberturas no cérebro, espaços neuronais, que
eu não tenho. Por vezes, ficamos amarrados às
situações e esquecemo-nos que nos temos de
adaptar a essa população que está a chegar, que
é diferente e que será sempre diferente. Nunca
se pode parar e essas novas habilidades têm de
ser utilizados para o processo do próprio aluno.
Temos que entender que o ensino tradicional
homogeneíza, torna todas as pessoas iguais,
quando sabemos que cada pessoa tem estilos
de aprendizagem diferentes, somos diferentes.
Esta é a grande vantagem da mudança, fazer
pensar, entender que os processos são dinâmicos, não são mais estáticos. A educação é
processual, é dinâmica e vou ter de continuar
a mudar. Aprender é para a toda a vida.
O que é importante no processo
educacional?
É dar oportunidades, é colocar o indivíduo
em questão dando diferentes visões e não
apenas a nossa única visão. Se vou dar uma
aula de cancro de estômago e, de uma forma
brilhante, ataco a epidemiologia, a cirurgia,
digo o que é sintoma, o que é sinal, etc., claro
que isso é parte importante. Mas, nesta forma,
em momento algum, o professor conseguirá
ver como o aluno se comporta quando estou
com um paciente à minha frente. Como é que
eu ajo, como o paciente me fala, se provoco
nele mais desespero ou conforto. É preciso
vivenciar. No PBL tentamos que o aluno
vivencie, tenha experiência, reflicta. Ele vai
criar o próprio processo de reflexão. A partir
da discussão, vai criar conceitos e seguir o seu
caminho de acção e aprendizagem.
Prémio Ser Saúde/ISAVE
O ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave, com desejo de contribuir para o
desenvolvimento da ciência e investigação em saúde, confere anualmente um prémio
denominado Prémio Ser Saúde/ISAVE de ciência e investigação em saúde.
O Prémio, no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros), será atribuído ao melhor trabalho
ou conjunto de trabalhos publicados durante 2006 e 2007 na Ser Saúde.
O vencedor do Prémio Ser Saúde/ISAVE será conhecido até 31 de Março de 2008.
O Prémio será entregue a 19 de Abril de 2008.
Júri do Prémio:
Amílcar Falcão, Daniel Serrão, Maria Júlia Silva Lopes, Rui L. Reis, Susana Magadán
Regulamento em www.isave.pt
Contactos: ISAVE | Campus de Geraz - Quinta de Matos | Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone – 253.639.800 | Fax – 253.639.801
Email - [email protected] | [email protected]
Marta Martins
Escola Superior de Desporto de Rio Maior, Portugal
António Moreira
Escola Superior de Desporto de Rio Maior, Portugal
António Silva
Universidade de Trás-os-montes e Alto Douro, Portugal
Felipe Aidar
Universidade de Trás-os-montes e Alto Douro, Portugal. Coordenadoria Estadual
de Defesa Civil de Minas Gerais, Gabinete Militar do Governador
(CEDEC/GMG - MG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Jaime Tolentino Miranda Neto
Faculdades Unidades do Norte de Minas (FUNORTE), Montes Claros, Minas
Gerais, Brasil
Mônica Vieira
Universidade de Trás-os-montes e Alto Douro, Portugal. Faculdades Unidades do
Norte de Minas (FUNORTE), Montes Claros, Minas Gerais, Brasil
Palavras-chave: bebés, meio aquático, desenvolvimento
50
Aulas de natação e o
desenvolvimento de bebés
Caracterização do desenvolvimento de crianças (6-36 meses)
participantes em aulas de adaptação ao meio aquático para bebés
Este artigo foi originalmente publicado na revista Motricidade, vol. 02, n.º 02, Abril 2006
De facto, quer
as diversas teorias da
aprendizagem elaboradas durante
a última metade do séc. XX, e hoje
perfeitamente admitidas, quer as actuais
tendências das neurociências são unânimes
em considerar que, especialmente nos
primeiros anos de vida, os estímulos
de natureza sensóriomotora são
a base do desenvolvimento
intelectual.
51
Resumo
Este trabalho tem como objectivo a caracterização do desenvolvimento de crianças (6-36
meses) participantes em aulas de adaptação
ao meio aquático para bebés, em diversas
áreas (motricidade global, motricidade fina,
linguagem, área cognitiva e autonomia social).
É também objectivo deste estudo analisar a
importância que os pais atribuem a cada uma
das áreas de desenvolvimento e à sua relação
com a práctica desta actividade aquática, assim
como os motivos pelos quais os pais inscreveram os seus filhos nestas aulas. Uma amostra
de 66 bebés integrou este estudo. Foi aplicado
aos pais das crianças um questionário adaptado
de Fonseca (1989)6, baseado num programa
de facilitação do desenvolvimento nas suas
diferentes áreas. Como principal conclusão
podemos dizer que os motivos que levaram
estes pais a escolher a “natação para bebés”
se enquadram na área da saúde e desenvolvimento e, em menor percentagem, na área do
lazer e relação social.A relação desta actividade
com a melhoria do domínio motor apresenta
maior expectativa por parte dos pais.
52
Introdução
A prática da natação para bebés tem vindo
a aumentar, sendo cada vez mais notória a
procura por parte dos pais de um espaço
aquático onde essa actividade decorra.
Os estudos sobre esta actividade apresentamse por isso com uma extrema importância,
de forma a poder disponibilizar um conhecimento científico sólido que permita aos
profissionais desta área utilizarem orientações
metodológicas fundamentadas12.
A razão pela qual os pais procuram a prática
de natação para bebés, quais as expectativas
em relação ao desenvolvimento do seu bebé
e as suas repercussões nos planos fisiológicos e
psicológicos são parte integrante de um vasto
conjunto de variáveis a analisar17.
Existe ainda falta de provas concretas de que
experiências aquáticas beneficiem outras áreas
do desenvolvimento de crianças8.
Num estudo vasto e longitudinal4, realçou o
desenvolvimento social, cognitivo e motor em
crianças em idade escolar que tiveram uma
experiência aquática como bebés.
Ahr2 sugere que as actividades aquáticas
proporcionam melhorias a nível motor,
tornando os bebés mais activos e, consequentemente, melhorando também o seu domínio
cognitivo.
A prática desta actividade aquática desenvolve a segurança, aumentando o conhecimento
e domínio do seu corpo, favorecendo a comunicação do bebé com o adulto e com as outras
crianças, melhorando assim a qualidade de
vida de um modo geral14.
Moreno9, apresenta um trabalho de revisão
sobre esta actividade, justificando a influência
que a prática aquática tem no desenvolvimento do bebé. No seu trabalho agrupa ainda as
principais propostas metodológicas de ensino
no meio aquático para bebés, partindo sempre
do pressuposto de que a actividade aquática
proporciona uma maior localização proprioceptiva e integração cinestésica, facilitando
assim o aumento do repertório motor.
Neste sentido parece-nos extremamente
apropriado a constatação de Dubois5, que
entende que a satisfação, que o contacto, o
divertimento, a actividade familiar saudável e
uma forte crença em todos os benefícios que
o nadar oferece aos pais e bebés que praticam
a actividade, faz com que estes nem pensam
em alcançar outros objectivos.
Por outro lado, o mesmo autor refere que
os pais parecem gostar de saber que estão a
trabalhar ao encontro de algo, tal como nadar
de forma independente e/ou conseguir que
o seu bebé seja capaz de emergir para uma
posição que lhe permita respirar.
Esta prática persegue uma “natação sem
nadar”. Saito13 entende “nadar” como quando
a criança pode mover-se na água de forma
autónoma, privilegiando os estímulos sensoriais obtidos pelo contacto do corpo do bebé
com a água, de forma a permitir uma integração da informação através de todas as vias
sensoriais, potenciando o contacto com estímulos agradáveis para promover um melhor
desenvolvimento emocional.
De facto, quer as diversas teorias da aprendizagem11,15,16 elaboradas durante a última
metade do séc. XX, e hoje perfeitamente
admitidas, quer as actuais tendências das neurociências3 são unânimes em considerar que,
especialmente nos primeiros anos de vida, os
estímulos de natureza sensório-motora, são a
base do desenvolvimento intelectual.
Pessoas felizes, com um desenvolvimento
integral (cognitivo, afectivo e motor), adequado, estarão mais perto de uma integração
perfeita.
Numminen e Sääklathi10 compararam o
desenvolvimento motor nos primeiros meses
de vida de bebés que participam em actividades aquáticas orientadas e acompanhados dos
seus pais, com bebés que não recebiam estes
tipos de estimulação. Estes autores encontraram diferenças significativas entre estas crianças
quanto ao tempo de aquisição das diferentes
habilidades, a favor do primeiro grupo.
As habilidades motoras aquáticas mudam
de acordo com a ordem das progressões,
com ou sem instrução formal, tal como se
verifica nas habilidades motoras terrestres.
Consequentemente, nas primeiras fases do
desenvolvimento das crianças, a maturação
biológica parece ser a determinante mais forte
das alterações que se observam no comportamento em meio aquático8.
É portanto para nós obvio que a prática
da natação para bebés encerra em si inúmeros benefícios, mas que se torna também
necessário conhecer melhor os mecanismos
psico-fisiológicos que a sua prática implica, de
forma a podermos potenciar estes benefícios e
evitar os perigos que porventura possam dela
decorrer.
Este estudo tem como objectivo a caracterização do estado de desenvolvimento das
crianças, praticantes de natação para bebés
(dos 6 aos 36 meses de idade), em diversas
áreas (motricidade global, motricidade fina,
linguagem, área cognitiva e autonomia social)6.
É também objectivo deste estudo analisar a
importância que os pais atribuem a cada uma
das áreas do desenvolvimento e a sua relação
com a prática desta actividade aquática, bem
como os motivos pelos quais os pais inscreveram os seus filhos nestas aulas.
53
54
Metodologia
áreas mencionadas, numa escala de 5 níveis;
Amostra
Os bebés que integram a amostra deste
estudo frequentaram pela 1ª vez as aulas de
“natação para bebés” ao longo do ano lectivo 2004/2005, com uma frequência de uma
sessão por semana, com a duração de 30
minutos (Tabela 1).
iii) O desenvolvimento do filho quando
comparado com outras crianças na mesma
idade, numa escala de 5 níveis;
Grupo
N
N= nº de sujeitos
A
B
C
D
6
11
16
33
6-12 12-18 18-24 24-36 Total
66
iv) Os principais motivos que levaram à
inscrição do filho nesta actividade.
A descrição dos motivos que levaram os
pais a escolherem esta actividade para os filhos
será efectuada após a análise das respostas à
pergunta aberta com a definição de categorias
à posteriori.
Tabela 1 – Distribuição dos sujeitos da amostra pelos diferentes grupos etários.
O inquérito aplicado foi adaptado de
Fonseca6, baseado num programa de facilitação
do desenvolvimento nas suas diferentes áreas.
Procedimentos
Foi realizado um inquérito aos pais de forma
a obter informação sobre:
Estatística
Os dados foram analisados com recurso a
técnicas de estatística descritiva. Foi utilizado o
programa SPSS para Windows para tratamento dos dados.
i) O desenvolvimento do seu filho em 5
áreas distintas – motricidade global, motricidade fina, área cognitiva, linguagem e autonomia
social numa escala de 3 níveis (raramente (r);
ocasionalmente (o) e frequentemente (f));
ii) A importância atribuída a cada uma das
Resultados
A questão que nos permitiu auferir sobre
os motivos que levaram os pais a inscrever o
seu filho nas classes de Adaptação ao Meio
Aquático (AMA) para bebés, foi colocada da
seguinte forma:
É portanto para
nós obvio que a prática da
natação para bebés encerra em si
inúmeros benefícios, mas que se torna
também necessário conhecer melhor os
mecanismos psico-fisiológicos que a sua
prática implica, de forma a podermos
potenciar estes benefícios e evitar
Este estudo
os perigos que porventura
tem como objectivo a
possam dela decorrer.
caracterização do estado de
desenvolvimento das crianças, praticantes
de natação para bebés (dos 6 aos 36 meses
de idade), em diversas áreas (motricidade global,
motricidade fina, linguagem, área cognitiva e
autonomia social). É também objectivo deste
estudo analisar a importância que os pais atribuem
a cada uma das áreas do desenvolvimento e a
sua relação com a prática desta actividade
aquática, bem como os motivos pelos
quais os pais inscreveram os seus
filhos nestas aulas.
Tente recordar-se do momento anterior à
decisão de inscrever o seu bebé nas aulas de
Adaptação ao Meio Aquáticas (AMA) para
bebés. Qual a razão que o/a levou a tomar
essa decisão? (não ultrapassar duas linhas)
Como já referimos anteriormente, a classificação dos motivos foi realizada depois de
uma análise e agrupamento das respostas dadas
pelos pais, nas seguintes categorias: motricidade global, motricidade fina, área cognitiva,
linguagem e autonomia social (Figura 1).
49%
Figura 1 – Gráfico representativo das principais
categorias de motivos que levaram os pais a inscrever
o seu filho na actividade, em percentagem.
55
É
definitivamente atribuída
pelos pais importância à prática
das aulas de adaptação ao meio
aquático enquanto promotora das
diversas áreas de desenvolvimento dos
bebés. A destacar o facto da linguagem
ser considerada a área que recolhe
menos frutos durante a prática
destas classes, na opinião dos
pais inquiridos neste
estudo.
56
Para clarificar a nossa opção nesta categorização, a tabela seguinte apresenta alguns
exemplos que ilustram os tipos de respostas
que deram origem a estes agrupamentos
(Tabela 2).
A maioria dos inquiridos aponta a saúde e
desenvolvimento como a principal motivação
para a inscrição do seu filho nesta actividade
(49%). O lazer e relação social que dela advém
foram apontados também com alguma expressão pelos sujeitos desta amostra (28%).
Lazer e relação
social
Prática de actividade
física e desportiva)
Saúde e desenvolvimento)
“Convivência com outras crianças...”;“para contactar
com o meio aquático...”
“Porque assim pratica uma actividade física...”;“porque a
natação é um desporto muito completo...”
“Porque é um desporto importante para o desenvolvimento...”;“recomendação do pediatra...”
Terapia
“Melhorar problemas respiratórios”
3
Segurança
“Não se afogar na praia ou em piscinas...”
4
TOTAL
61
Tabela 2 – Excertos de respostas com exemplos de motivações para a inscrição na actividade.
17
7
30
57
Áreas de desenvolvimento
Foram encontrados os valores médios
para cada área de desenvolvimento, de onde
podemos verificar que todas elas obtiveram
valores superiores a 2, significando que, em
média, todas as crianças se encontram dentro
dos parâmetros de desenvolvimento adequado
à idade.
A área da linguagem foi a que apresentou
uma média mais elevada, sendo por isso considerada pelos pais aquela que os seus filhos têm
mais plenamente desenvolvida.
Em oposição encontra-se a motricidade
fina, onde os bebés dos pais inquiridos não
completam tão satisfatória e frequentemente todos os requisitos de desenvolvimento
(Tabela 3).
A importância atribuída a cada uma
das áreas
Para analisar este parâmetro, foi colocada aos
pais a seguinte questão:
Considerando a prática da actividade
de adaptação ao meio aquático para bebés,
que importância atribui ao contributo para
o desenvolvimento do bebé cada uma das
seguintes áreas?
Durante a prática desta actividade, a área da
motricidade global foi claramente considerada
pelos pais a mais importante. Este facto permitiria especular sobre os motivos pelos quais os
pais inscrevem o seu bebé nestas classes: para
melhorar a sua motricidade global. Como
podemos observar o motivo mais apontado
pelos pais foi a saúde e desenvolvimento do
bebé.
Motricidade
Global (MG)
Motricidade
Fina (MF)
Linguagem
(L))
Área Cognitiva Autonomia
(AC)
Social (AS)
2,57 ± 0,3
2,26 ± 0,54
2,82 ± 0,29
2,05 ± 0,49
2,46 ± 0,35
Tabela 3 – O desenvolvimento do seu filho em 5 áreas distinguidas, numa escala de 3 níveis: raramente (r) 1 ponto; ocasionalmente (o) 2 pontos; frequentemente (f) 3 pontos. Media ± desvio padrão.
58
Por outro lado, e também considerada
importante por mais de metade dos inquiridos (54%), a linguagem foi considerado pelos
pais uma área na qual a natação para bebés traz
menor contribuição ao desenvolvimento do
seu filho (Tabela 4).
Área / Importância
Motricidade Glogal (MG)
Motricidade Fina (MF)
Claramente, a grande maioria dos pais
inquiridos reconhece a importância da prática desta actividade para o desenvolvimento
do seu filho, obtendo valores que se situam
na categoria “muito importante” (68,2%) e
“importante” (25,8%) na área de MG, “muito
importante” (47%) e “importante” (39,4%)
na área da MF, “muito importante” (12,1%)
e “importante” (42,4%) na área da L, “muito
importante” (15,2%) e “importante” (60,6%)
na área de AC e “muito importante” (31,8%)
e “importante” (57,6%) na área da AS.
Muito
importante /
Alguma (%)
importante (%)
94,0
86,49
Pouco (%))
6,1
0,0
12,1
1,5
Linguagem (L)
54,5
39,4
6,1
Área Cognitiva (AC)
75,8
22,7
1,5
Autonomia Social (AS)
89,4
10,6
0,0
Tabela 4 – Importância atribuída a cada área para o desenvolvimento do seu filho, no decorrer da prática de AMA para bebés.
Em nenhum dos casos foi atribuída “nenhuma importância”, tendo a destacar só 6,1%
dos pais que consideram a natação para bebés
pouco importante para o desenvolvimento da
linguagem do seu filho.
O desenvolvimento da criança
quando comparada com outras
crianças da mesma idade
Para analisar este parâmetro foi colocada a
seguinte questão aos pais dos bebés praticantes:
De que forma considera que o seu bebé está
desenvolvido, quando comparado com outras
crianças da mesma idade?
Esta é uma questão bastante delicada, pois
solicitámos aos pais que comparassem o seu
filho. Sabemos que existe sempre inabilidade
social que impede que os mesmos dêem uma
resposta tão fiel quanto o desejado.
59
Ainda assim, pensamos que a maioria dos
pais se apresentaram bastante desinibidos e
confortáveis para que respondessem o mais
sinceramente possível. Recordamos que este
questionário foi realizado no final de um ano
lectivo, de semanal relação entre a tríade criança/pai/professor (Tabela 5).
Área / Importância
Muito mais
desenvolvido
(%)
Tão
desenvolvido
(%)
Menos
desenvolvido
(%)
Motricidade Glogal (MG)
48,5
48,5
3,0
Motricidade Fina (MF)
37,9
59,1
3,0
Linguagem (L)
48,5
39,4
12,1
Área Cognitiva (AC)
39,4
59,1
1,5
Autonomia Social (AS)
43,9
53,0
3,0
Tabela 5 – Caracterização do desenvolvimento do seu filho em relação às crianças da mesma idade, em percentagem (%).
Podemos apreciar que os sujeitos da amostra têm em média uma opinião positiva sobre
o desenvolvimento do seu filho, quando
comparado com crianças da mesma idade. Só
3% para MG, MF e AS, 12,1% na L e 1,5% em
AC consideram o seu filho menos desenvolvido do que as outras crianças.
60
Quando analisamos estes resultados não
verificamos uma massificação de valores
pendentes sobre somente 1 a 2 categorias,
como aconteceu na questão anterior dedicada
à importância das áreas (muito importante e
importante).
Nesta questão observamos um repartir
das opiniões essencialmente por 3 categorias
(muito mais desenvolvido; mais desenvolvido;
tão desenvolvido).
Curioso que verifiquemos que, de acordo
com os resultados, os pais consideram uma
extrema contribuição desta actividade para
cada uma das áreas de desenvolvimento, mas
nem por isso os seus filhos se encontram, na
opinião dos pais, extremamente mais desenvolvidos nessas áreas.
Os pais consideram os seus filhos tão ou
mais desenvolvidos que as restantes crianças
da mesma idade mas fica por esclarecer se
para esse desenvolvimento contribui a prática
desta actividade (motivo pelo qual a maioria
dos pais do estudo optou por inscrever o seu
filho), ou se o mesmo se deve a outros factores
e implicações às quais as crianças estarão certamente expostas.
Discussão
Os principais motivos que levaram estes pais
a escolher a “natação para bebés” enquadramse na área da saúde e desenvolvimento e, em
menor percentagem, na área do lazer e relação
social, e isto tem amparo em outros estudos1.
Quando analisados os bebés nas diversas áreas de desenvolvimento, e segundo a
escala adoptada, verificamos que a maioria
se encontra dentro dos padrões normais
de desenvolvimento, manifestando uma
frequência média/elevada de ocorrências
nos comportamentos averiguados para cada
idade12,17.
A percepção que os pais têm dos filhos,
expressa na questão sobre o desenvolvimento,
acaba por coincidir, em média, com os dados
obtidos nas respostas a este questionário, em
relação aos diversos parâmetros questionados,
nas diversas áreas.
É definitivamente atribuída pelos pais
importância à prática das aulas de adaptação
ao meio aquático enquanto promotora das
diversas áreas de desenvolvimento dos bebés7.
A destacar o facto da linguagem ser considerada a área que recolhe menos frutos durante
a prática destas classes, na opinião dos pais
inquiridos neste estudo.
Quando questionados sobre o desenvolvimento dos seus filhos, os pais sentem que
estes se apresentam tão ou mais desenvolvidos
como os demais e, como era de esperar, a
relação desta actividade com a melhoria do
domínio motor apresenta maior expectativa
por parte dos pais. No entanto, é no domínio
da linguagem que estes encontram maiores
diferenças entre os seus filhos e as crianças da
mesma idade. Este é seguramente um aspecto
que merece ser mais aprofundado.
61
Referências
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juvenile neuromuscular locomotor development of
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Lisboa: Edições 70.
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A study of neonatal swimming (water therapy) applied in
clinical obstetrics. J Matern Fetal Neonatal Med.17(1):5962.
62
Adhemar Longatto Filho
Mestre e doutor em Patologia Experimental e Comparada pela Faculdade de
Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, Brasil. Professor
auxiliar convidado da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho.
Professional Member of International Academy of Cytology
63
O método citológico de Papanicolaou
e os
novos paradigmas da
prevenção de lesões cervicovaginais
induzidas pelo Papilomavírus humano
Introdução
O carcinoma de colo uterino tem sido estudado intensamente nas últimas décadas. Desde
os primeiros relatos de Papanicolaou há mais
de setenta anos atrás, a busca de soluções que
minimizassem o impacto que essa doença tem
na vida das mulheres tem crescido a cada dia
em numerosos laboratórios de todo o mundo.
A intensa actividade que gira em torno do
carcinoma de colo uterino é explicável pela
expressiva quantidade de novos casos diagnosticados anualmente, além das inúmeras mortes
associadas, apesar dos notáveis esforços realizados para sua contenção (4-6).
64
A história epidemiológica do carcinoma de colo uterino já foi muito pior que o
terrível quadro que ainda temos de enfrentar
em nossos dias. Há cerca de cinquenta anos
atrás, por exemplo, cerca de 35 mil mulheres
morriam anualmente só nos Estados Unidos
da América (EUA). Naquela época, era a causa
número um de mortalidade das mulheres
norte-americanas. A introdução do método
de Papanicolaou de raspados cérvico-vaginais,
colectados e examinados periodicamente, não
só reduziu a mortalidade, como viabilizou
a introdução de um meio de prevenção da
doença. Hoje, a mortalidade está em torno de
4000 mulheres por ano (4, 14).
O percurso da citologia na história do
carcinoma de colo uterino é notável. Apesar
disso, o método não ficou imune às críticas;
e sua existência, ao longo de tantas décadas,
é marcada por vários revezes e episódios de
renascimento. O tendão de Aquiles do método é sua incontestável baixa sensibilidade, sem
precedentes no meio médico.Adicionalmente,
por ser um método de avaliação subjectiva, e
por estar sujeito a um sem número de variáveis, a amostragem do colo uterino pode
oferecer dificuldades de interpretação mesmo
a observadores experientes. Assim, os valores
de sensibilidade disponíveis na literatura
apontam para variabilidades extraordinárias,
raramente ultrapassando os 70%, muitas vezes
E foi na maior fraqueza do teste de Papanicolaou que se
começou a delinear um grande esforço para a construção
de alternativas viáveis de melhoria diagnóstica em sintonia
com a moderna compreensão da história natural da doença.
A partir da constatação de sua baixa sensibilidade buscaram
alternativas que implementassem a sensibilidade e valor
preditivo negativo.
65
estabilizando ao redor dos 50%, mas não raramente inferior a casualidade de 50% (4, 14, 18,
19, 21). Essa crónica vulnerabilidade fez com
que inúmeras soluções fossem prontamente
propostas. E foi na maior fraqueza do teste de
Papanicolaou que se começou a delinear um
grande esforço para a construção de alternativas viáveis de melhoria diagnóstica em sintonia
com a moderna compreensão da história
natural da doença (3). A partir da constatação
de sua baixa sensibilidade buscaram alternativas que implementassem a sensibilidade e
valor preditivo negativo (4).
A monografia de Papanicolaou e Traut foi
publicada no início da década de 40. Àquela
altura, sabia-se que a citologia poderia reconhecer alterações compatíveis com a doença
carcinoma de colo uterino e, até mais conveniente, com alterações precursoras dessa lesão
(9). E como a prevalência da doença era extremamente elevada, o novo método encontrou
um terreno fértil para desempenhar o papel de
método de escolha para redução da mortalidade e, mais adiante, como instrumento oficial
de estratégias de prevenção da doença. Nos
países onde ele foi implantado com seriedade
e constância, e conduzido ao longo dos anos
com impecável qualidade, não demorou a
aparecerem os resultados que o notabilizariam
(4, 9, 14).
Avaliar-se o valor de um método diagnóstico em meio a uma população de altíssima
prevalência para uma doença requer cautela.
Hoje, em países onde o cancro de colo uterino continua endémico, como China e Índia, a
alternativa mais viável encontrada pelas autoridades de saúde tem sido a inspecção do canal
vaginal, feita a olho desarmado, por técnicos
de saúde treinados para esse fim. E, à semelhança da história do teste de Papanicolaou
nos anos cinquenta nos EUA, numerosos
casos são detectados anualmente, com perceptível diminuição da mortalidade. Da mesma
forma que o método de Papanicolaou, a
chamada inspecção visual peca também pela
baixíssima sensibilidade quando comparada
a outras opções diagnósticas. Entretanto,
quando comparada ao método citológico,
a inspecção visual apresenta, para países de
poucos recursos financeiros, a vantagem de
não requerer tantos meses de treinamento do
corpo técnico, e nem exigir qualquer estrutura laboratorial (16, 17). Pode ser realizada em
barracas de campanha e atender a uma grande
quantidade de mulheres, ao contrário do teste
de Papanicolaou, que exige extrema concentração do observador, e um número limitado
de casos a serem examinados diariamente, para
que a sensibilidade do método não seja ainda
mais comprometida (8).
A década de oitenta assistiu à mais avassaladora onda de inquéritos científicos e judiciais
que colocaram em causa a própria existência
do método de Papanicolaou (2). Nessa época,
numerosos trabalhos invocando um inusitado
mea culpa foram publicados demonstrando
que a sensibilidade da citologia era, sim, muito
mais baixa do que a presumida e que essa deficiência comprometia, sim, a vida de numerosas
mulheres (18). O Senado norte-americano
assistiu a acaloradas discussões sobre os volumosos recursos destinados a pagarem testes
de Papanicolaou que, ao invés de resultarem
em decréscimo da incidência de carcinomas
de colo uterino, ao contrário, àquela altura
mostravam registros ironicamente inversos.
66
As consequências foram uma série de
medidas correctivas postas em andamento
pela agência controladora das actividades da
citopatologia americana (8). Imediatamente,
autoridades da área da saúde de todo o mundo
movimentaram-se para minimizar os atritos
causados por tamanho expurgo. Num emocionado artigo escrito no conceituado jornal
JAMA (9) o mais respeitado citopatologista
vivo, Leopold Koss, pontuou no memorável
The Papanicolaou test for cervical cancer detection. A
triumph and a tragedy as potencialidades do teste
sem esquivar-se das limitações e das possíveis
causas de erro do método.
Há, ainda, muito a ser feito
para erradicação, ou pelo
menos, significativa redução
da mortalidade e prevalência
de carcinomas de colo uterino
e de suas lesões precursoras
no mundo.
Com tantos problemas, o que afinal
encanta no teste de Papanicolaou? O
que faz com que ele se mantenha por
tantos anos?
O também chamado PapTest é um método
de altíssima especificidade. Há uma tradição de
qualidade em reconhecer lesões precursoras
de cancro e lesões invasoras de inquestionável eficácia, mesmo às custas de reconhecida
variabilidade diagnóstica na reprodutibilidade
das graduações das lesões precursoras (3, 14).
A alta especificidade é crucial para a equação que determina o valor preditivo positivo
(VPP) de um método. OVPP é a meta de toda
autoridade de saúde: um método com valores
mínimos de falsos diagnósticos positivos mas
sem perder a capacidade de seleccionar os
casos com doença (3). Um sonho da política
de saúde das autoridades mundiais responsáveis pela prevenção de doenças. Algo que, em
relação ao carcinoma de colo uterino, a citologia sozinha provou reiteradas vezes não ter
capacidade de fazer. Mas que, por sua atávica e
notável especificidade, é imprescindível como
recurso a um algoritmo desenhado para seleccionar pacientes com lesões, orientar conduta,
e acompanhar tratamento (3). Apesar dessa
vantagem, a citologia esbarra ainda na grave
dificuldade de classificar certas alterações
cujo significado biológico é indefinido sob a
óptica morfológica e bastante complexos de
serem entendidos. Dependendo da origem
do tecido, se escamosos ou glandular, são
denominadas genericamente como “atipias de
células escamosas de significado indeterminado” (ASCUS do inglês), e “atipias de células
glandulares de significado indeterminado”
(AGC). Essas atipias indeterminadas merecem
um breve parêntese. A morfologia classifica
as alterações de proliferação e diferenciação
pelo tipo celular maduro correspondente
dessas vias e, em algum momento da evolução biológica dessas alterações, traça-se uma
correspondência reprodutível que acaba por
ter utilidade clínica. Assim, a especialização
em epitélio pavimentoso, estratificado ou
glandular, embora indique localizações e
características morfológicas e funcionais diferentes remete a uma interface onde o controle
estreito de diferenciação e a correspondente
característica histológica, favorecem a interacção com o agente do grupo de doenças que
a Citopatologia busca diagnosticar precocemente. Desta interacção, que expõe esta célula
precursora particular, surgem alterações difíceis de serem categorizadas e que compõem
o grupo genericamente conhecidos como
“atipias de significado indeterminado” (23).
Há, ainda, muito a ser feito para erradicação, ou pelo menos, significativa redução da
mortalidade e prevalência de carcinomas de
colo uterino e de suas lesões precursoras no
mundo. Mesmo o mundo desenvolvido ainda
sofre com algum indesejado percentual dessa
67
68
doença. Nos países em desenvolvimento
os dados são alarmantes, apesar da grande
distância entre o número de pessoas que
supostamente já entrou em contacto com o
HPV alguma vez na vida (presumidamente
80% da população humana) e as que de fato
desenvolvem carcinoma (ao redor de 1%). Mas
há ainda os países extremamente paupérrimos
e que não contam nem ao menos com serviço
de colecta de dados. Para esses, valem apenas as
conjecturas pessimistas (10).
Como consequência, uma série de perguntas podem ser feitas em relação a esse tema. A
mais dramática de todas as questões talvez seja,
por que ainda morrem tantas mulheres
de uma doença que, teoricamente, é
possível prevenir? E que doença é essa
de fato? Quais as reais condições de
desenvolvimento das lesões precursoras
ao carcinoma invasor? Usar a citologia
apenas, mesmo que em condições ideais,
é o suficiente? E o que fazer com os
casos de atipias citológicas de significado indeterminado? Muitas dessas perguntas
já começaram a ser respondidas. Algumas de
forma mais convincente que outras.
Hoje, o papel da citologia em relação ao
carcinoma de colo uterino é certamente
muito mais abrangente que há décadas atrás.
Sabe-se que o agente etiológico necessário
para o desenvolvimento neoplásico é o papilomavírus humano (HPV), mas que apenas a
infecção pelo HPV não é condição suficiente
para a carcinogénese. Para uma avaliação minimamente confiável da progressão da doença é
necessário saber o tipo de HPV envolvido, a
carga viral, factores de risco associados, avaliação da expressão proteica e das interacções
génicas relacionadas à infecção do HPV (1,
11-13, 15, 20).
Os horizontes da doença “carcinoma de
colo uterino” foram dramaticamente ampliados nos últimos anos. Tentar compreendê-los
vai muito além do teste de Papanicolaou,
convencionalmente preparado, corado, analisado e relatado. O exame citológico não
pode mais ser avaliado como o centro de um
processo que envolve diagnóstico e conduta.
O centro é a própria mulher, que tem uma
infecção por um dos tantos HPVs, e que como
hospedeiro tem características mais ou menos
adequadas para a persistência do vírus e para o
desenvolvimento de sua potencialidade como
agente carcinogénico.
O novo paradigma do rastreio de lesões de
colo uterino envolve directamente o método
de Captura Híbrida II (HC2) para HPVs de
alto risco, posto que é esse, por enquanto, o
único método disponibilizado em forma de
kit, e aprovado por várias entidades mundiais,
como a norte-americana FDA (Food and
Drugs Administration). A amostra cervicovaginal deverá ser colhida em meio de citologia
líquida que possibilite a realização de testes
biomoleculares. Os casos positivos para HPV
serão submetidos à análise citológica. O
intervalo de rastreio dos exames negativos
para HC2 poderão ser extendidos a cinco
anos, uma vez que o valor predictivo negativo da HC2 é de quase 100%. Isso representa
um poderoso algoritmo que já deu mostras
inequívocas de poder reduzir a mortalidade
por cancro de colo uterino (3) e de ser custoefectivo, sobretudo a países de poucos recursos
financeiros (5, 6).
Duas vacinas para HPV, cujos resultados
preliminares são muito encorajadores, estarão,
brevemente, disponíveis no mercado (7, 20).
Essas vacinas foram elaboradas para tentarem
erradicar ou minimizar ao máximo, a infecção
pelos dois tipos oncogénicos de HPV mais
prevalentes: os tipos 16 e 18 (7, 22). Com
isso, a prevalência da infecção por HPV tende
a cair e a sensibilidade da citologia, que já
compromete o rastreio das lesões precursoras,
será ainda mais baixa (3). Embora decano, o
método citológico terá nesse novo cenário um papel ainda mais importante que
o alardeado pela história da medicina.
Não mais como uma ferramenta central
de rastreio, mas como opção confiável e
específica para a identificação de lesões
já instaladas (3).
69
Os horizontes da doença
“carcinoma de colo uterino”
foram dramaticamente
ampliados nos últimos anos.
Tentar compreendê‑los
vai muito além do
teste de Papanicolaou,
convencionalmente
preparado, corado, analisado
e relatado.
O exame citológico não
pode mais ser avaliado como
o centro de um processo
que envolve diagnóstico e
conduta.
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Revista bimestral de ciência e investigação em saúde
Para submeter os trabalhos/artigos para publicação,
envie-os para:
Ser Saúde
Quinta de Matos – Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso
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72
Ana Maria Aguiar de Lima
Licenciatura em Enfermagem; pós-graduação em Enfermagem Oncológica;
formanda do curso pós-licenciatura de especialização em Enfermagem de Saúde
Infantil e Pediatria; exerce funções no Hospital Maria Pia – Porto
Isabel Cláudia Batista Cardoso
Licenciatura em Enfermagem; pós-graduação em Enfermagem Oncológica;
formanda do curso de mestrado em Oncologia; exerce funções no Centro
Hospitalar de Caldas da Rainha
Resumo
O estudo dos mecanismos inerentes ao
processo da biologia das metástases conduziu
a avanços importantes para a compreensão dos
processos de invasão e metastização, contribuindo para desenvolver melhores modalidades
preventivas, diagnosticas e terapêuticas.
A metastização consiste num processo
pelo qual as células neoplásicas circulantes
se deslocam para outros locais distantes do
tumor primário, pela via linfática, sanguínea e
pela carcinomatose. A maioria destas células é
destruída pela acção do sistema imunitário.
As células tumorais que poderão originar
metástases tem de sobreviver a uma série de
interacções potencialmente letais como são
os mecanismos homeostáticos do hospedeiro. Aquelas que resistem a esta destruição
agrupam-se, fixam-se ao endotélio vascular
e multiplicam-se, formando a metástase. De
seguida, criam-se novos vasos (neoangiogénese) levando a que a metástase seja autónoma e
tenha mecanismos de nutrição própria.
O resultado desta interacção pode variar
entre diferentes doentes com diferentes
neoplasias ou diferentes doentes com o
mesmo tipo de neoplasia.
73
Biologia das
Metástases
Introdução
As células normais do organismo coexistem
em perfeita harmonia. O crescimento celular
ocorre em função das necessidades do organismo através de mecanismos cuidadosamente
controlados. No entanto, nalguns momentos,
por intermédio de múltiplos factores, ocorre
uma ruptura desses mecanismos reguladores
da multiplicação celular, começando a crescer
uma célula e a dividir-se desordenadamente
(divisão anómala). Daqui resulta um clone de
células insensíveis aos mecanismos reguladores
normais, formando um tumor ou neoplasia.
Perante o diagnóstico de cancro, é extremamente importante determinar se a doença se
localiza no local de origem ou se já se expandiu aos nódulos linfáticos regionais e aos
órgãos distantes.
Ao longo deste trabalho pretendemos
contextualizar as neoplasias, caracterizar as vias
de disseminação das células tumorais, explicitar a inactividade das metástases, entender
a influência da imunidade do hospedeiro nas
metástases, compreender a heterogeneidade
biológica das metástases, perceber a instabilidade genética e fenotípica das células metastáticas
e interpretar a cascata metastática.
As células normais do organismo coexistem em perfeita harmonia.
O crescimento celular ocorre em função das necessidades do organismo
através de mecanismos cuidadosamente controlados. No entanto, nalguns
momentos, por intermédio de múltiplos factores, ocorre uma ruptura
74
Breve contextualização das
neoplasias
A célula é a unidade fundamental da vida.
Para assegurar o correcto funcionamento de
cada órgão tem de existir a renovação das
células danificadas.
A célula cancerígena é uma célula que cresce descontroladamente, ignora os sinais para
parar a sua divisão, podendo expandir-se a
áreas do corpo onde não pertencem. Algumas
células cancerígenas simplesmente se dividem
e produzem mais células e a massa tumoral
mantém-se no local onde se formou. Outras,
têm capacidade para invadir o tecido normal,
entrar na circulação sanguínea e/ou metastizarem-se noutros locais do corpo.
De acordo com FIDLER & HART (1988),
a maioria das neoplasias podem dividir-se em
três tipos principais: tumores benignos não
invasivos e não metastáticos, tumores
invasivos e não metastáticos (exemplo:
carcinoma in situ, carcinoma das células basais)
e tumores metastáticos (Fig.1).
Os tumores benignos caracterizam-se
por serem uma estrutura típica do tecido de
origem. São tumores bem diferenciados e que
crescem lentamente. As imagens de mitoses
são pouco frequentes e as que existem são
normais. Pelo contrário, os tumores malignos são geralmente indiferenciados e tem uma
grande percentagem de células em fase de
divisão. Estas células em fase de divisão podem
ter cromossomas anormais e podem ter vários
graus de anaplasia – perda de diferenciação e
funções celulares (FIDLER & HART, 1988).
A proliferação descontrolada de células pode
conduzir ao crescimento neoplásico, todavia
os aspectos que definem a neoplasia maligna
são invasão e metástase. «Neoplasia maligna é
o novo crescimento com potencial de invasão
local e/ou metastizar para locais distantes no
corpo» (KOHN & LIOTTA, 1998:554).
Nos países industrializados, as neoplasias
malignas são a segunda causa mais comum de
morte. A disseminação metastática é a principal responsável pelas falhas dos tratamentos e
mortes. Em mais de dois terços dos doentes,
na altura do diagnóstico inicial, já existem
metástases ocultas ou evidentes, habitualmente
multifocais, tornando falíveis a cirurgia localizada, a radioterapia e a quimioterapia (KOHN
& LIOTTA, 1998).
desses mecanismos reguladores da multiplicação celular, começando a
crescer uma célula e a dividir-se desordenadamente (divisão anómala).
Daqui resulta um clone de células insensíveis aos mecanismos reguladores
normais, formando um tumor ou neoplasia.
TUMOR BENIGNO
Células
normais
Células
neoplásicas
Cápsula do
tecido
conjuntivo
do tumor
benigno
Células
normai
75
Vias de disseminação tumoral
«O cancro pode permanecer como um
processo local invasivo ou expandir-se a áreas
não adjacentes …» (PFEIFER, 2000:17). A
expansão tumoral é um processo resultante
do crescimento do tumor. Inicialmente, o
tumor cresce localizado, deCápsula
forma do
contínua,
originando a difusão das tecido
células tumorais
conjuntivo
Células
eCélulas
a colonização
das áreas regionais.
Depois
normais
neoplásicas do tumor
origina o aparecimento de benigno
células tumorais
à distância, denominadas por metástases. Estas
ocorrem através de um mecanismo designado
disseminação. Esta concepção da disseminação
tumoral é generalista, uma vez que alguns
tumores se metastizam para órgãos distantes antes de se expandirem ou aquando da
sua expansão, através dos nódulos linfáticos
(PFEIFER, 2000).
PFEIFER (2000) esclarece que, a disseminação depende de um conjunto de factores
que ocorrem na superfície da célula tumoral e
no sistema vascular do indivíduo com cancro.
Assim sendo, a proliferação das células do
tumor primário ocorre através de dois processos: disseminação directa e disseminação
metastática.
TUMOR MALIGNO INVASIVO
Células
normais
Células
cancerosas
invasivas
Fig.1 – Representação esquemática do contraste existente
entre um tumor benigno e um tumor maligno. (Adaptado
de ALBERTS, Bruce et al., Molecular biology of the
cell, in Cancer as a microevolutionary process, http://www.ncbi.
nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?CMD=search&DB=books,
05-07-03.)
A – Disseminação directa
Segundo PFEIFER (2000), pensa-se que os
factores que estimulam a invasão directa são:
angiogénese tumoral, pressão mecânica e variação do crescimento tumoral,
mobilidade e perda de aderência celular
e as enzimas secretadas pelo tumor (capazes de destruir tecido normal).
76
GENTIL & LOPES (s.d.) referem que a
disseminação directa pode correr por diversas
formas: continuidade (a neoplasia durante
a sua proliferação ultrapassa os limites de
um órgão e infiltra outro), contiguidade
(o tumor ao crescer ultrapassa os limites do
órgão de origem e invade as estruturas adjacentes – conhecer este tipo de disseminação é
importante pois pode ser necessário para além
da cirurgia clássica remover em monobloco
mais estruturas ou órgãos que possam estar
envolvidos) e implante (a disseminação por
implante ocorre após infiltração da serosa e as
células neoplásicas livres podem ser libertadas
nas cavidades).
PFEIFER (2000) acrescenta que, também
o acto cirúrgico pode ser uma via directa, por
implante, para a expansão das células neoplásicas.A contaminação dos tecidos normais pode
ocorrer durante a manipulação do tumor,
libertando células na circulação ou pela forma
de retirar as agulhas (das biópsias) que podem
«semear» células na circulação.
A seguir passamos a esclarecer os processos
de disseminação directa.
Crescimento inicial da neoplasia e
angiogénese
Segundo FIDLER (1997), a proliferação e
crescimento das células dependem do adequado fornecimento de factores de crescimento
e da remoção de moléculas tóxicas. Assim, a
expansão da massa tumoral, a partir de 2 mm
de diâmetro, depende do desenvolvimento de
um adequado fornecimento de sangue, ou
seja, da angiogénese.
KOHN & LIOTTA (1998) definem a
angiogénese como o processo de formação
de vasos sanguíneos. Estes clarificam que,
no adulto, em condições normais, a neovascularização é limitada pela menstruação,
pela gravidez e pela cicatrização de feridas.
Durante o processo de angiogénese, as células
endoteliais habitualmente inactivas adquirem
um fenótipo invasivo, rompendo a própria
membrana basal para invadir o estroma intersticial durante o desenvolvimento de novos
capilares. Quando cessa o estímulo angiogénico, estas células voltam a ter um fenótipo
inactivo e não invasivo.
A indução da angiogénese é mediada por
múltiplas moléculas que são libertadas pelas
células tumorais e pelas células do hospedeiro,
incluindo células endoteliais, epiteliais, mesoteliais e leucócitos. Para o desenvolvimento dos
capilares é necessário que as células endoteliais
proliferem, migrem e penetrem no estroma do
hospedeiro, desenvolvendo-se na direcção das
A célula cancerígena é uma célula que cresce descontroladamente,
ignora os sinais para parar a sua divisão, podendo expandir-se a áreas do
corpo onde não pertencem. Algumas células cancerígenas simplesmente
se dividem e produzem mais células e a massa tumoral mantém-se no
local onde se formou. Outras, têm capacidade para invadir o tecido
normal, entrar na circulação sanguínea e/ou metastizarem-se noutros
locais do corpo.
moléculas angiogénicas. Posteriormente, os
capilares expandem-se e submetem a morfogénese, para induzir novos capilares. A maioria
dos tumores sólidos são altamente vascularizados e as suas veias não são idênticas às veias
normais do tecido normal. Existem diferenças
na composição celular, permeabilidade, estabilidade do sangue nas veias e na regulação do
crescimento (FIDLER, 1997).
A extensão da angiogénese é determinada
pelo balanço entre factores estimuladores e
inibidores do crescimento de novos vasos
sanguíneos. Em muitos tecidos normais
as influências inibitórias predominam, ao
contrário das células neoplásicas que alternam
da inibição da angiogénese com a estimulação
fenotípica desta. Esta alternância coincide com
a perda do alelo típico do gene supressor tumoral p53 e é o resultado da reduzida produção
do factor antigénico TSP-1 (FIDLER, 1997).
Os tumores benignos são pouco vascularizados tendendo a crescer devagar, como já foi
referido. Contrariamente, os tumores malignos são muito vascularizados e de crescimento
rápido. O aumento da vascularização aumenta
igualmente a probabilidade das células tumorais entrarem na circulação e se metastizarem
(FIDLER, 1997).Todavia, FIDLER & HART
(1988) alertam que nem todos os tumores
invasivos crescem rapidamente, pelo contrário,
alguns têm um crescimento lento.
O índice da angiogénese é útil no factor
de prognóstico. Todavia, a expectativa de que
este índice pode identificar todos os doentes
com doença metastática oculta ou aqueles
que já possuem metástases à distância, pode
ser surrealista. Primeiro, pelo tempo de diagnóstico, visto que os tumores humanos são
heterogéneos em subpopulações de células
com diferentes propriedades biológicas, que
induzem a invasão e a metastização. Segundo,
o processo de metastização é sequencial e
selectivo, consistindo numa série de passos
interdependentes e interligados. Clinicamente,
para produzir metástases relevantes, as células
tumorais tem de passar por todas as etapas do
processo. As células tumorais que conseguem
induzir uma intensa angiogénese mas que
não conseguirem sobreviver na circulação ou
proliferar em órgãos distantes não conseguem
produzir metástases. Como em todas as restantes etapas da cascata metastática, a angiogénese
é necessária mas não suficiente para a patógenese das metástases. Terceiro, embora nem
todos os grandes tumores angiogénicos possam
produzir metástases, a inibição da angiogénese
previne o crescimento das células tumorais,
tanto no primeiro como no segundo local e
assim podem prevenir o desenvolvimento das
metástases clinicamente relevantes (FIDLER,
1997).
77
Invasão: Aderência, Proteólise, Motilidade
Segundo KOHN & LIOTTA (1998: 554), «invasão é a translocação activa de células neoplásicas através de barreiras teciduais e de células da matriz extracelular e celular do hospedeiro».
KOHN & LIOTTA (1998) afirmam que, a tríade da invasão celular é constituída pela aderência, proteólise e motilidade. Todas estas fases são essenciais para o triunfo da metástase. LIOTTA
& KOHN (2003) acrescentam que o processo de invasão é dinâmico, havendo repetição cíclica
dos três passos referidos.
78
Aderência
A interacção das células com a matriz extracelular e a membrana basal envolve aderência
através de receptores específicos (KOHN &
LIOTTA, 1998).
Estudos revelaram várias classes de moléculas de aderência que desempenham papéis
críticos na tumorogénese. Essas moléculas de
aderência incluem: receptores proteicos na
matriz extracelular (integrinas), as moléculas
de aderência celular transmembranar (MAC),
e as moléculas de aderência extracelular
(caderinas). As caderinas e cateninas íntegras
suprimem a metástase (KOHN & LIOTTA,
1998).
As integrinas contêm elementos onde a
perda ou hiperexpressão foram associadas a
um fenótipo mais agressivo. A ocupação da
integrina e a aglomeração na superfície celular são componentes críticos da remodelação
da membrana basal durante a angiogénese.
A estimulação da integrina é necessária para
fornecer estímulos de sobrevivência em vários
contextos. Por outro lado, demonstrou-se que
a perda de estimulação de integrinas estimula
a apoptose. Assim, pode verificar-se que as
vias necessárias para o processamento celular
da informação da integrina para aderência,
migração e metástase podem, noutra situação,
causar a morte celular programada – apoptose.
Apesar da aderência não ser suficiente para
haver invasão e disseminação à distância, a
perda das funções de aderência normais pode
levar a invasões mais agressivas ou à perda do
potencial metastático (KOHN & LIOTTA,
1998).
Proteólise
Para que ocorra invasão, é necessário que
haja destruição da membrana basal local e do
estroma intersticial em seu redor (KOHN
& LIOTTA, 1998). Os mesmos autores em
2003 acrescentam que, o processo de invasão
não é passivo mas activo e dinâmico, pois para
além da pressão exercida pela proliferação
celular excessiva requer a síntese de proteínas
para degradação. Tal como a aderência e a
motilidade, a proteólise não é suficiente para a
disseminação de células malignas à distância.
Os componentes estruturais da membrana
basal e do estroma intersticial são os colagéneos, que são proteínas helicoidais triplas que
participam no entrelaçamento da arquitectura
matricial acelular.A principal barreira à invasão
é o colagéno.A diferença enzimática dos colagéneos é necessária para fornecer uma via de
fuga para as células tumorais, sendo executada
por metaloproteinases da matriz com selectividade por substrato. A produção e destruição
do colagéneo são funções das células normais
e das malignas (KOHN & LIOTTA, 1998).
KOHN & LIOTTA (1998) afirmam que,
as colagenases são proteases neutras. Estas são
uma família bem estudada de enzimas cujo
papel na disseminação metastática foi utilizada para avaliação prognostica e que são alvos
de intervenção terapêutica. As colagenases
são controladas por inibidores endógenos,
os inibidores teciduais das metaloproteinases
(ITMP). O excesso de colagenase possibilita
que a célula invada e cruze as barreiras da
membrana.
Motilidade
A capacidade de translocar-se pelas barreiras
estruturais do organismo implica que a célula
seja capaz de se locomover. Há um precedente
na invasão fisiológica normal para migração.
Durante a formação de vasos sanguíneos é
necessário que uma célula endotelial migre
para o estroma de maneira a iniciar a formação
de um broto vascular. Na infecção, os monócitos circulantes migram para o estroma com
o mesmo objectivo. Assim, também as células
tumorais necessitam de migrar desde a massa
inicial para alcançar um conduto vascular,
inserir-se nele de forma a serem transportadas
e alcançar um leito vascular distante, sair dele e
migrar para o sítio onde vai formar uma nova
colónia. A direcção da migração depende de
factores solúveis do hospedeiro e/ou factores
associados à matriz extracelular (KOHN &
LIOTTA, 1998).
Os factores solúveis incluem citocinas
como o factor de crescimento dos hepatócitos. Estes são produzidos por células do
estroma e células autócrinas estimuladoras
da motilidade, como é o caso da autotaxina,
produzida pelas células tumorais. O receptor
para o factor de crescimento dos hepatócitos é
o oncongene met, um receptor de membrana
que contém tirosinocinase. A activação do met
provoca a indução de um fenótipo invasivo
com aumento da colagenase, maior capacidade invasiva in vitro e produção de metástases
in vivo. Da hiperexpressão do met resulta um
fenótipo tumorigénico e metastático. A autotoxina é uma exocinase produzida e presa do
lado extracelular da célula tumoral, sendo um
factor de motilidade autócrino (KOHN &
LIOTTA, 1998).
Os factores de migração da fase sólida envolvem componentes da matriz extracelular e da
membrana basal. Glicoproteínas da matriz e
colagéno podem estimular a migração in vitro,
tanto em fase sólida como em solução. Os
fragmentos de proteínas da matriz exercem
uma forte atracção sobre células tumorais e
células envolvidas na cicatrização de feridas
(KOHN & LIOTTA, 1998).
Tal como a aderência e a proteólise, a motilidade necessita de um conjunto de factores
tais como: a interacção com o ambiente local,
o equilíbrio resultante da produção e da
secreção de factores estimuladores (factor de
crescimento dos hepatócitos e a autotaxina)
e a activação dos receptores (fosforilação do
met) e da resposta do tumor às células estromáticas (KOHN & LIOTTA, 1998).
79
B – Disseminação metastática
As células tumorais têm tendência para
se disseminarem através da via que oferece
menor resistência. A propagação ou disseminação metastática pode assim ocorrer por três
vias: via linfática, via sanguínea e carcinomatose.
80
Via linfática
O modo mais comum de expansão das
células tumorais é através do sistema linfático. As células tumorais invadem o sistema
linfático, separam-se e formam êmbolos
– embolização linfática – que por sua vez
se alojam nos gânglios linfáticos, originando
uma lesão metastática (FIDLER, 1997). Os
gânglios linfáticos mais próximos ao tumor
são os primeiros a serem comprometidos
(GENTIL e LOPES, s.d.).
Esta disseminação é um processo contínuo,
uma vez que as células tumorais iludem os
nódulos linfáticos locais, deslocam-se para
outros gânglios mais distantes na cadeia linfática e atingem outros órgãos. A presença de
células tumorais nos gânglios linfáticos é sinal
de que ocorreu disseminação, mesmo que não
hajam metástases nesses mesmos gânglios. Tal
deve-se ao facto de as células poderem passar
pelo gânglio linfático sem deixar vestígios e
desenvolver-se noutra região. «Em muitos
cancros a primeira evidência de disseminação
da doença é uma massa de linfonodos que
drenam a área ou região do corpo portador
do tumor» (PFEIFER, 2000:18).
FIDLER (1997) esclarece que o padrão
de envolvimento de nódulo linfático, ou seja,
crescimento de células tumorais dentro de um
nódulo linfático, depende do local do tumor
primário e da sua drenagem linfática.
SEELEY et al. (1997:748) afirmam que uma
vez alojadas nos nódulos linfáticos, as células
tumorais podem morrer devido ao desencadeamento de uma reacção inflamatória local. Isto
acontece porque uma das funções do sistema
linfático consiste em defender o organismo
contra as agressões externas a que é sujeito, tais
como microorganismos e outras substâncias
nocivas. PFEIFER (2000) acrescenta que, as
células malignas podem ainda proliferar num
pequeno espaço ou permanecer inactivas.
Os sistemas linfático e venoso estão interligados e são inseparáveis. O sistema linfático,
através do tronco principal linfático, entra
no sistema venoso, antes das veias entrarem
no coração, levando a que possamos afirmar
que existe comunicação venolinfática. Assim,
as células cancerígenas que atingem o sistema
linfático têm também capacidade para entrar
na corrente sanguínea e vice-versa (FIDLER,
1997).
Aquando o diagnóstico, um dos factores
prognósticos mais significativos é a presença
ou não de metástases nos gânglios linfáticos.
Este aspecto é importante conhecer antes de
efectuar uma abordagem cirúrgica da lesão
tumoral (FIDLER, 1997).
Frequentemente quando um tumor sólido
é removido através de cirurgia, o cirurgião
remove o tumor e as glândulas linfáticas vizinhas, mesmo que não haja nenhum sinal visível
de cancro nessas glândulas. Isto é determinado
como uma medida profilática porque se uma
célula tumoral migrou e se hospedou no
sistema linfático, o cancro poderia continuar a
crescer e metastizar. No entanto, depende do
tipo de tumor em causa e da opinião médica
pois nem todos os clínicos comungam desta
perspectiva (KELLY, 2000).
Via sanguínea
A disseminação tumoral também pode ocorrer
através do sistema sanguíneo, visto que as células
tumorais necessitam de um suplemento sanguíneo para sobreviverem.
Segundo PFEIFER (2000) a disseminação
hematogénica obedece a determinados passos
sequenciais, que iremos passar a referir. Alguns
deles já foram abordados mais profundamente
na via directa, pois esta ocorre antes de qualquer
outra.
Os passos são:
1 - Crescimento e progressão do tumor
primário
2 - Angiogénese no local primário
3 - Separação
4 - Circulação das células tumorais
5 - Prisão das células tumorais no
endotélio vascular
6 - Lugar de eleição
7 - Fuga da circulação
8 - Angiogénese e implantes metastáticos
9 - Prisão das células tumorais, sua
adesão e extravasamento
O êmbolo tumoral tem de se ligar firmemente
à camada interna do vaso. Após esta ligação, as
células tumorais devem penetrar a parede do vaso
para alcançar e proliferar nos tecidos extravasculares (FIDLER, 1997).
O derramamento das células endoteliais da
parede dos capilares é um processo normal e
contínuo – evento fisiológico. Desta forma, a
deterioração e ruptura do endotélio conduzem à existência de aberturas ou fendas, que
expõem a membrana basal. O que ocorre é
que as células tumorais unem-se firmemente
às paredes do endotélio, e se o mesmo está
danificado, penetram na circulação e interagem com as plaquetas (FIDLER, 1997).
O desenvolvimento de firmes e seguras
adesões requer a interacção de outras adesões
moleculares, que é outro processo selectivo
da metastização. A regulação destas adesões
é efectuada por diferentes classes de adesões
moleculares célula – célula. Nelas se incluem,
entre outros, o receptor hialuronase CD4 e
suas variantes e as integrinas ∞5β1, ∞6β1 e
β4 (FIDLER, 1997).
A adesão das células tumorais com as paredes dos capilares leva à retracção das células
endoteliais e à exposição das células tumorais à
matriz extracelular tecidular (ECM). A adesão
das células metastáticas aos componentes da
ECM facilita a metastização em tecidos específicos. Após esta adesão, as células tumorais
podem atravessar a parede do vaso para alcançar os tecidos extravasculares. Estas extravasam
no parênquima do órgão, por mecanismos
similares aos que são responsáveis pela invasão
local (FIDLER, 1997).
Após alcançarem parênquima do órgão, as
81
células tumorais crescem e destroem os vasos
circundantes, invadem por penetração do
endotélio da membrana basal ou migram para
a circulação (FIDLER, 1997).
82
Como foi referenciado, a maioria das
células tumorais que entram na circulação
morrem rapidamente. Esta morte pode ser
atribuída a inúmeras características da célula
tumoral, tais como, deformabilidade, agregação e adesão molecular célula-superfície. No
entanto, os factores inerentes ao hospedeiro
também contribuem para este facto, tais
como, turbulência do sangue, células naturalkiller, macrófagos e plaquetas.Adicionalmente,
a passagem das células tumorais através dos
capilares leva à sua lise, por acção de forças e
do óxido nítrico (FIDLER, 1997).
O óxido nítrico produz múltiplos efeitos
que podem influenciar a acção das metástases.
Especificamente, o óxido nítrico regula a vasodilatação e a agregação plaquetar, interferindo
assim na adesão das células tumorais às paredes
dos capilares. É ainda o maior mediador citotóxico secretado pelos macrófagos activados
e as células endoteliais, tornando-se assim
responsável pela destruição das células tumorais que atravessam as paredes dos capilares.
A produção endógena de óxido nítrico está
associada à apoptose das células tumorogénicas, ou seja, a sua produção pode ser prejudicial
à sobrevivência da célula tumoral e produção
das metástases (FIDLER, 1997).
Carcinomatose
Segundo PFEIFER (2000:19) entendese que carcinomatose é “(…) disseminação
extensiva das células tumorais por gravidade,
como factor causal da metástase.” Segundo o
mesmo autor, no decorrer da disseminação
das células tumorais na membrana serosa das
grandes cavidades, tais como a pleural e a
peritoneal, estas células soltam-se e gravitam,
alcançando deste modo as partes baixas da
cavidade.
As células tumorais
têm tendência para se
disseminarem através da
via que oferece menor
resistência. A propagação
ou disseminação metastática
pode assim ocorrer por
três vias: via linfática, via
sanguínea e carcinomatose.
Inactividade das metástases
A recorrência de doença muitos anos após
um tratamento de sucesso ou remoção do
tumor primitivo é uma observação clínica
frequente. Todavia, os mecanismos pelos quais
as células malignas permanecem inactivas, mas
viáveis e aptas para expressar o seu potencial
tumorigénico num momento tardio, permanecem obscuros (FIDLER, 1997).
É possível que as células neoplásicas existam,
isoladas ou em grupos na fase G0 do ciclo
celular, que estejam protegidas pelas defesas do
hospedeiro ou então por implantar, ou num
local isolado aparentemente rodeado por tecido conjuntivo. Como alternativa, estas células
tumorais podem estar continuamente em
divisão mas o tumor é restrito em tamanho
pelo equilíbrio entre divisão celular e a morte
celular. A morte celular pode ser mediada pela
imunidade específica ou defesas não especificas
do hospedeiro numa proporção comparável
ao crescimento celular. O fracasso do crescimento de micrometástases, para além de uns
pequenos milímetros, pode estar relacionada
com o fracasso da vascularização e produção
de nutrição suficiente para uma rápida expansão celular (FIDLER, 1997).
FIDLER (1997) diz-nos que, diferentes
mecanismos podem estar envolvidos no estabelecimento e manutenção da inactividade
dos diferentes tumores. As células normais
podem permanecer num estado de inactividade se forem introduzidas em órgãos ectópicos.
Exemplo disso são as células tiroideias que
podem sobreviver noutros tecidos, particularmente no pulmão. Assim, as células normais,
hipertróficas ou glândulas neoplásicas são
capazes de sobreviver num estado inactivo por
longos períodos.
A imunidade do hospedeiro e as
metástases
Para PFEIFER (2000), os factores do
hospedeiro são de extrema importância na
determinação do modo como os tumores se
vão metastizar.
Quando se aborda a questão relativa ao
papel do sistema imunitário nas metástases,
temos de nos dirigir à heterogeneidade antigénica das neoplasias, à imunogenecidade
intrínseca das células metastáticas e à aptidão
do hospedeiro em reconhecer e destruir as
células tumorais genuínas (FIDLER, 1997).
Segundo FIDLER (1997), foram efectuados vários estudos experimentais acerca do
papel da resposta imunitária nas metástases.
No entanto, nestes estudos, os resultados são
contraditórios. Assim, nalguns tumores, a
depressão da reactividade imunológica pode
aumentar a incidência de metástases espontâneas e experimentais. Noutros tumores
verificou-se precisamente o contrário: a
depressão da imunidade do hospedeiro diminui a metastização. Ainda noutros tumores,
as alterações da imunidade e sua reactividade, não influencia o crescimento local e a
disseminação tumoral. Conclui-se assim que
o papel do sistema imunitário varia para
diferentes tumores e não se poderá efectuar
qualquer generalização relativa ao papel da
imunidade do hospedeiro (FIDLER, 1997).
Sabe-se que as células metastáticas têm a
capacidade de iludir os mecanismos de vigilância da imunidade do hospedeiro, quando
estas se encontram diminuídas (FIDLER,
1997).
FIDLER (1997) diz que o passo final
83
na metastização é a proliferação das células
tumorais. Durante a interacção das células
metastáticas com os tecidos do hospedeiro há
factores que estimulam ou inibem a proliferação das células tumorais.A presença de factores
de crescimento estimuladores ou inibidores
em determinado tecido correlaciona-se com
sítios específicos das metástases. Os factores
de crescimento autócrinos e parácrinos do
hospedeiro que controlam a regeneração e
reparação do órgão podem afectar a proliferação das células tumorais malignas, ou seja, o
estimulo para que ocorra a normal reparação
dos tecidos também pode estimular a proliferação das células tumorais.
84
Para produzir lesões clinicamente detectáveis, as metástases devem desenvolver uma
rede vascular e ser capaz de iludir o sistema
imunitário do hospedeiro (FIDLER, 1997).
Heterogenidade biológica das
metástases
A explicação para apenas poucas células do
tumor primário poderem desenvolver metástases deve-se ao facto do organismo eliminar
qualquer célula tumoral que falhe qualquer
passo da cascata metastática. As neoplasias são
biologicamente heterogéneas, contêm subpopulações de células tumorais com diferentes
predisposições metastáticas e o processo de
triagem é altamente selectivo (FIDLER,
1997).
Para FIDLER (1997), a heterogeneidade
relaciona-se com a progressão, atribuindo-se
às diferenças entre as células individuais no
interior do tumor. As células do interior da
neoplasia podem ser distintas, relativamente
aos seguintes aspectos: capacidade de invasão
do tecido envolvente, composição genética,
proporção de crescimento, potencial metastático, receptores hormonais e susceptibilidade à
terapia antineoplásica.
Consoante a neoplasia aumenta de tamanho,
assim o grau de heterogeneidade aumenta
(PFEIFER, 2000).
Fig. 2 – A cascata metastática.(Adaptado de FIDLER, Isaiah J., Molecular biology of cancer: invasion and metastasis. In
DeVita,Vincent T. Jr. et al., Cancer: principles & practice of oncology. 5ª edição, volume 1. Philadelphia: Lippincott-Raven
Publishers, 1997,
No entanto, levanta-se a questão de como é
que é originada, mantida e controlada a heterogeneidade. Assim, após o desenvolvimento
de células neoplásicas e com o desenrolar do
tempo estas adquirem vantagens em relação às
células não metastáticas, pelo que as primeiras
acabam por perdurar no organismo. A heterogenidade biológica dos tumores de origem
clonal resulta da instabilidade genética e
fenotípica (FIDLER, 1997). PFEIFER (2000)
acrescenta que deve-se ao facto de as células
cancerígenas sofrerem inúmeras mutações
ocasionais devido à sua instabilidade genética.
Por sua vez, estas mutações originam clones,
cuja variabilidade genética adquirida resulta na
heterogeneidade no interior do tumor.
Ideologias mais recentes indicam que o
processo de metastização é selectivo para
células que progridem na indução da angiogénese, mobilidade, invasão, embolização,
sobrevivência na circulação, adesão à parede
do capilar distante, extravasam e se multiplicam no interior do parênquima do órgão. No
entanto, o resultado das metástases encontra-se dependente de múltiplas interacções
e interferências das células metastáticas com
mecanismos homeostáticos que as células
tumorais podem arrebatar. Face a esta questão,
estudos revelam que os tumores metastizam
para órgãos específicos, independentemente
da proporção de fluxo sanguíneo, vascularidade e número de células tumorais que atingem
o órgão (FIDLER, 1997).
85
A explicação para apenas
poucas células do tumor
primário poderem desenvolver
metástases deve-se ao facto
do organismo eliminar
qualquer célula tumoral
que falhe qualquer passo
da cascata metastática. As
neoplasias são biologicamente
heterogéneas, contêm
subpopulações de células
tumorais com diferentes
predisposições metastáticas
e o processo de triagem é
altamente selectivo.
Conclusão
O processo de invasão tumoral e metastastização é constituído por uma cascata
complexa de acontecimentos bioquímicos e
genéticos orientados por diversas vias transdutoras de sinais e sistemas moleculares (KOHN
& LIOTTA, 1998).
86
Segundo os mesmos autores, os passos
essenciais na formação da metástase são similares em todos os tumores (Fig. 2):
• Após a transformação neoplásica, inicia-se
a progressiva proliferação das células neoplásicas, que é suportada pelo fornecimento
de nutrientes a partir do microambiente do
órgão, pelo mecanismo de difusão;
• A neovascularização ou angiogénese tem
de ocorrer, para que a massa tumoral exceda
1 ou 2 mm de diâmetro. A síntese e secreção
das diferentes moléculas da angiogénese e a
supressão das células inibitórias são responsáveis pelo estabelecimento duma rede capilar, a
partir dos tecidos envolventes;
Bibliografia
1. FIDLER, Isaiah J., Molecular biology of cancer:
invasion and metastasis. In DeVita, Vincent T. Jr. et al.,
Cancer: principles & practice of oncology. 5ª edição,
volume 1. Philadelphia: Lippincott-Raven Publishers, 1997,
ISBN 0-397-51575-8.p.135-152.
2. FIDLER, Isaiah J., HART, Ian R., Principios de la
biología del cancer: biología de las metástasis. In
DeVita, Vincent T. Jr. et al., Cancer: principios y practica de oncologia.. 2ª edição, volume 1. Barcelona: Salvat
Editores,SA, 1988. ISBN 84-345-2612-3. p. 105 – 114.
3. GENTIL, Fernando C., LOPES, Ademar, Princípios de
• Algumas células tumorais podem desregular a coesão molecular e incrementar a
mobilidade, separando-se assim da lesão
primária. A invasão dos estromas do hospedeiro por algumas células tumorais ocorre por
mecanismos paralelos. Os capilares e os canais
linfáticos, oferecem muito pouca resistência à
penetração das células tumorais, promovendo
as vias mais comuns para as células tumorais
entrarem na circulação;
• Ocorre seguidamente o desprendimento
e embolização de células tumorais, isoladas ou
agregadas, sendo a sua maioria destruídas;
• As células tumorais circulantes que sobrevivem podem-se agarrar às paredes dos capilares
e prender-se aos receptores dos capilares dos
órgãos distantes, aderindo às células endoteliais dos capilares;
• As células tumorais, especialmente as que
se encontram agregadas, podem proliferar,
atingindo o lúmen dos capilares. No entanto,
a sua maioria extravasa no parênquima do
Cirurgia Oncológica. In SCWARTSMANN, Gilberto
et al., Oncologia Clínica: princípios e praticas. Porto
Alegre: Artes Médicas. s.d. P. 84 – 96.
4. HOGAN, Rosemarie, Cancro. In PHIPPS,Wilma et al.,
Enfermagem Médico-Cirúrgica – conceitos e prática
clínica, 2ª edição, volume I. Lusodidacta:Lisboa, 1991, ISBN
972-96610-0-6. p.333 – 413.
5. KOHN, Elise C., LIOTTA,Lance A., Invasão e metástase. In FAUCI, Anthony S. Et al., Harrison - Medicina
Interna, 14ª edição, volume I. Rio de Janeiro:McGraw-Hill,
1998, ISBN 85-86804-03-7.p.554 – 557.
6. PFEIFER, Karen A., Fisiopatologia. In OTTO, Shirley
órgão, através de mecanismos similares aos do
processo de invasão;
• As células tumorais produzem receptores da
superfície da célula apropriados para responder
aos factores de crescimento parácrinos a partir
daí proliferar no parênquima do órgão;
• As células metastáticas iludem o sistema
imunitário do hospedeiro e induzem assim, a
destruição das defesas do hospedeiro (incluem
as resposta imunitárias específicas e não específicas);
• Para exceder a massa tumoral em 1 ou
2 mm de diâmetro, as metástases devem
desenvolver um trabalho vascular (neoangiogénese);
• As metástases formadas podem depois
prolifera e dar origem a novas metástases
(fenómeno das metástases das metástases).
E., Enfermagem em Oncologia, 3ª edição. Lusociência:
Loures, 2000, ISBN 972-8383-12-6. p. 3 – 22.
7. SEELEY,Rod R. et al., Anatomia & Fisiologia, 1ª
edição. Lusodidacta:Lisboa, 1997, ISBN 972-96610-5-7. p.
753.
8. ALBERTS, Bruce et al., Molecular biology of the cell,
in Cancer as a microevolutionary process,
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?CMD=se
arch&DB=books, 05-07-03.
9. LIOTTA, Lance A., KOHN, Elisa C., Invasion and
metástases – Tumor-host and tumor-stromal interactions. In BAST, Robert C. et al., Cancer Medicine,
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?CMD=se
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10. KELLY, Jeanne, Metastasis or “mets” how cancer
spreads, http://www.phoenix5.org, 05-07-03.
11. Biology of tumor growth: growth of most
malignant
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class05/pathneos1, 05-07-03.
12. The cell biology of câncer, http://www.erin.
utoronto.ca/~w3bio315/cancer.htm, 05-07-03.
87
88
Rute Ferreira
Interna Complementar de Medicina Geral e Familiar,
Centro de Saúde S. João
Marta Moreira
Interna Complementar de Medicina Geral e Familiar,
Centro de Saúde Ermesinde
Náuseas e
vómitos na
gravidez
Resumo
Justificação: Náuseas e vómitos afectam cerca de 80% das grávidas, sendo mais
frequentes no primeiro trimestre da gravidez.
Embora não estejam associados a mau prognóstico podem ter um impacto na qualidade
de vida da grávida e da família.
Metodologia: Pesquisa de artigos de revisão e guidelines na Medline e em sites EBM,
publicados entre 2002 e 2006, com as palavras-chave “nausea”, “vomiting” e “pregnancy”.
Os resultados obtidos foram classificados
segundo a taxonomia SORT.
Revisão: As náuseas e vómitos na gravidez
têm uma etiologia multifactorial e é importante fazer o diagnóstico diferencial com
outras entidades clínicas. O tratamento deve
ser individualizado. Inicialmente deve-se optar
por um tratamento conservador (alterações
dietéticas, suporte emocional e tratamentos
alternativos). Em situações persistentes pode
ser necessário tratamento farmacológico
com piridoxina e/ou doxilamina. Casos com
critérios de gravidade (por exemplo, hiperemese gravídica) deverão ser referenciados aos
Cuidados de Saúde Secundários.
Conclusão: A maioria das situações de
náuseas e vómitos na gravidez são benignas
e auto-limitadas, podendo ser orientadas nos
Cuidados de Saúde Primários. O Médico de
Família deve, por isso, estar preparado para
diagnosticar e agir adequadamente. É proposto um algoritmo de actuação elaborado pelas
autoras.
Introdução
As náuseas e vómitos associados à gravidez
podem ocorrer em até 80% das mulheres
grávidas1-5. Habitualmente têm início entre
a 4ª e a 7ª semana após a data da última
menstruação, têm um pico entre a 8ª e a 12ª
semanas e, excepto em 10% das mulheres,
resolve-se até à 20ª semana de gestação1,4,6.
Na maioria dos casos os sintomas são mais
graves de manhã6.
A hiperemese gravídica é a forma mais
grave deste quadro e ocorre em 0,5 a 2%
das grávidas1,4. Caracteriza-se por vómitos
persistentes, desidratação, cetose, desequilíbrio hidroelectrolítico e perda de peso1,6.
Mesmo as apresentações mais leves de
náuseas e vómitos na gravidez podem ter um
impacto psicossocial importante (depressão/
humor depressivo, faltas no emprego, efeitos
negativos nos relacionamentos) nas mulheres grávidas e suas famílias4-6. Há, inclusive,
relatos de casos de interrupção de gravidezes
(desejadas) em mulheres com quadros graves
e prolongados6.
Os quadros não complicados de náuseas
e vómitos comportam um prognóstico
materno fetal favorável (inclusive está descrito um desfecho mais favorável da gravidez,
incluindo menos abortamentos, nascimentos
pré‑termo, nados-mortos, baixo peso ao
nascer, atraso do crescimento intra-uterino
e mortalidade)1,3. No entanto, a hiperemese gravídica pode afectar negativamente a
saúde e bem-estar tanto da grávida como do
feto1,4.
Há várias entidades mais frequentemente
associadas a este quadro: gestação múltipla,
doença gestacional trofoblástica, trissomia 21
e hidrópsia fetal1,4.
90
Metodologia
Foi realizada uma pesquisa de artigos de
revisão e guidelines na Medline/PubMed, sites
EBM, publicados em língua inglesa entre
2002 e 2006 com as palavras-chave “nausea”,
“vomiting” e “pregnancy”. Foram consultados,
também, artigos incluídos nas referências
bibliográficas dos referidos anteriormente.
Os resultados encontrados foram classificados
segundo a taxonomia SORT.
Revisão
A etiologia das náuseas e vómitos na gravidez permanece desconhecida1,3,4 mas pensa-se
ser multifactorial5. Possíveis causas apontadas
são: níveis elevados de hCG, de estradiol,
deficiência em vitamina B6 e infecção por
Helicobacter Pylori1,3,4. Também poderão estar
envolvidos factores psicológicos4.
São factores considerados predisponentes
para a ocorrência de náuseas e vómitos na
gravidez: gestação múltipla, primigestas, feto de
sexo feminino, adolescentes, história familiar
ou pessoal de náuseas ou vómitos na gravidez,
história de enxaqueca, factores psicológicos1,4.
Perante uma mulher grávida com náuseas
e vómitos é essencial uma avaliação cuidada envolvendo a anamnese e exame físico
completo para exclusão de outras causas1,4. Os
principais diagnósticos diferenciais a ter em
conta são: patologia gastrointestinal (gastroenterite, hepatite, apendicite aguda, patologia
biliar), patologia génito-urinária (pielonefrite,
litíase renal, torsão de ovário), cetoacidose
diabética, hipertireoidismo, enxaqueca, outras
condições associadas à gravidez (fígado gordo
agudo da gravidez, pré-eclâmpsia), intolerância/toxicidade a fármacos1,4,7. Caso os achados
da anamnese e/ou exame físico sugiram outra
causa poderão ser necessários exames auxiliares de diagnóstico para confirmar ou excluir
essa hipótese1,4. Nos casos mais graves e/ou
persistentes deverá ser pedido monograma e
análise da urina para excluir complicações do
quadro1,4.
Tratamento
O tratamento deve ser individualizado
tendo em conta que diferentes mulheres têm
necessidades diferentes. Por exemplo, o mesmo
número de episódios de vómitos diários pode
ter impactos diferentes em duas mulheres7. O
tratamento inclui medidas não farmacológicas
e medidas farmacológicas1,2,6.
91
Medidas não farmacológicas
Medidas dietéticas
O tratamento de mulheres com quadros
leves deve iniciar-se com medidas dietéticas:
− Refeições pequenas e frequentes;
− Evitar odores e texturas dos alimentos que
desencadeiem náuseas;
− Os alimentos sólidos devem ter um paladar
suave, ser ricos em hidratos de carbono, pobres
em gordura;
− Os alimentos “salgados” (bolachas água e
sal, batatas fritas) costumam ser bem tolerados
logo de manhã;
− As bebidas com sabor mais amargo (por
exemplo limonada) são frequentemente mais
bem toleradas do que a água1.
Apoio emocional
Embora não haja uma associação forte entre
as náuseas e vómitos da gravidez e doenças
do foro psicológico, algumas destas mulheres
podem manifestar alterações afectivas, nomeadamente depressão1. É, assim, importante que
recebam apoio adequado quer da família quer
da equipa de saúde que as acompanha1.
As náuseas e vómitos
associados à gravidez
podem ocorrer em até 80%
das mulheres grávidas.
Habitualmente têm início
entre a 4ª e a 7ª semana após
a data da última menstruação,
têm um pico entre a 8ª e
a 12ª semanas e, excepto
em 10% das mulheres,
resolve-se até à 20ª semana
de gestação. Na maioria dos
casos os sintomas são mais
graves de manhã.
92
São factores considerados predisponentes para a ocorrência de
náuseas e vómitos na gravidez: gestação múltipla, primigestas,
feto de sexo feminino, adolescentes, história familiar ou pessoal
de náuseas ou vómitos na gravidez, história de enxaqueca,
factores psicológicos.
Tratamentos alternativos
Há tratamentos alternativos como a acupressão, a acupunctura e suplementos de gengibre
que poderão ser benéficos, embora sejam
necessários mais estudos para estabelecer a
eficácia destes tratamentos1-3,5,8,9. O gengibre é
um tratamento alternativo popular usado em
muitas culturas para o tratamento das náuseas e
vómitos na gravidez. Pode ser usado na forma
de chã, ginger ale e cápsulas. Embora não haja
estudos que reportem a segurança do gengibre
na gravidez, há autores que defendem que o
seu uso em várias culturas e a ausência de
evidência de teratogenicidade são a favor do
seu uso na gravidez (força de recomendação
B, nível de evidência 2)1-3,5,8.
Terapêutica farmacológica
A piridoxina (força de recomendação
A, ensaio clínico randomizado)5 e a doxilamina podem ser usadas isoladamente ou
em combinação1,5,7. Está disponível em
Portugal uma combinação de piridoxina,
e diciclomina, doxilamina (Nausefe)3, que,
tipicamente se prescreve na posologia de 2
comprimidos à noite para os sintomas mais
leves e até 6 comprimidos por dia nos casos
mais graves1,2,6,7.
Outros fármacos
Caso as medidas anteriormente descritas
se demonstrem ineficazes, o passo seguinte
é o uso de outros fármacos nomeadamente
a prometazina (força de recomendação B)5,
a clorpromazina, antagonistas da serotonina
(ondasetron) e anti-histamínicos H1 (dimenidrinato e a meclizina)1-3,4,5,7 que demonstraram
a sua eficácia nestes quadros clínicos1,6. Outros
fármacos que são usados no tratamento das
náuseas e vómitos na gravidez são a metoclopramida e corticoides (metilprednisolona)1,3,5.
Dose
Dose
máxima
diária
Via de
administração
Piridoxina
25 mg 3x/dia
200 mg
Oral
Doxilamina
25 mg 1x/dia
25 mg
Oral
?
Doxilamina +
Piridoxina +
diciclomina
Nausefe®
(10+10+10mg)
3 comp/dia
6 comp
Oral
?
Força de recomendação A. Nível de
evidência 2
Dimenidrato
Enjomin®,
Viabom®,
Vomidrine®
50-10 mg, 4 a
6x/dia
400 mg (200
se associado
à doxilamina)
Oral, rectal
B
Força de recomendação B. Nível de
evidência 2
Prometazina
Fenergan®
12,5-25 mg,4
a 6x/dia
150 mg
Oral, intramuscular
C
Meclizina
Navicalm®
25 mg, 4 a
6x/dia
150 mg
Oral
B
Metoclopramida
Primperan®
5-10 mg,
3x/dia
40 mg
Oral, intramuscular,
endovenosa
B
Clorpromazina
Largactil®
10-25mg, 2 a
4x/dia
100 mg
Oral, intramuscular
C
Ondasetron
Zofran®
8 mg, 2 a
3x/dia
24 mg
Oral, endovenosa
B
Fármaco
Categoria
na gravidez
Notas
1ª linha
A
Força de recomendação A. Nível de
evidência 1
Força de recomendação B. Nível de
evidência 2
2ª linha
Força de recomendação B. Nível de
evidência 1
Força de recomendação B. Nível de
evidência 2
Outros
Quadro 1.Terapêutica medicamentosa1,4-6 comp: comprimidos
Conclusão
A maioria das situações de náuseas e vómitos na gravidez são benignas e auto-limitadas,
podendo ser orientadas nos Cuidados de
Saúde Primários. Podem, no entanto, ter um
impacto significativo nas grávidas e suas famílias. Médico de Família deve, por isso, estar
preparado para diagnosticar e agir adequadamente. É proposto um algoritmo de actuação
(figura 1).
93
A maioria das situações de náuseas e vómitos na gravidez
são benignas e autolimitadas, podendo ser orientadas nos
Cuidados de Saúde Primários. Podem, no entanto, ter um
impacto significativo nas grávidas e suas famílias. Médico de
Família deve, por isso, estar preparado para diagnosticar e agir
adequadamente.
94
Figura 1. Organigrama para a avaliação e tratamento de Náuseas e Vómitos na gravidez1,6.Ver texto e Quadro 1 para diagnósticos diferenciais e tratamento não farmacológico
95
Referências bibliográficas
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stimulation for relief of nausea and vomiting in pregnancy.
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96
Gustavo Afonso
Enfermeiro graduado. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá. Responsável
pela Assistência Domiciliária de Enfermagem ([email protected])
Lara Costa
Enfermeira graduada. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá
Marta Miranda
Enfermeira graduada. Pós-Graduação em Enfermagem de Emergência. Centro de Saúde de
Braga – Unidade de Saúde do Carandá
Pé Diabético:
prevenção e tratamento
Introdução
A prevalência da diabetes tem vindo a
aumentar em toda a população mundial,
provocada pela associação de diversos factores
como o aumento da longevidade das pessoas,
hábitos alimentares, obesidade e sedentarismo.
Esta patologia encontra-se também muito
associada a patologia vascular e a hipertensão
arterial, o que conduz a complicações cada vez
mais complexas, difíceis de tratar e causa de
grandes taxas de morbilidade e mortalidade.
dos números de amputações cirúrgicas dos
membros inferiores.
Resumidamente, existem dois tipos de Pé
Diabético e, assim, tipos de úlceras diferentes:
neuropático e isquémico. É essencial conhecer
a etiopatogenia de cada um deles para que o
tratamento seja o mais efectivo e eficaz e para
que se cumpra o objectivo da Declaração de
St. Vincent: em cinco anos, a diminuição a
metade do número de amputações pela perna
e coxa. (Foto 1)
De entre as complicações mais importantes
da diabetes surge-nos a retinopatia, a nefropatia, a neuropatia e a vasculopatia como aquelas
que condicionam elevada morbi-mortalidade.
O Pé Diabético é uma das complicações
mais catastróficas da diabetes, uma vez que
ainda continua a ser responsável por elevaFoto 1: amputação pela coxa.
97
98
Epidemiologia
Segundo a Organização Mundial de Saúde
(OMS) há, no mundo, mais de 180 milhões
de pessoas com diabetes, número que deverá
aumentar para mais do dobro em 2030.
Em 2000, a prevalência da diabetes era de
2,8% (171 milhões de pessoas) e em 2030 a
OMS prevê que será de 4,4% (366 milhões).
Estima-se que em 2005 ocorreram 1,1
milhões de mortes devidas à diabetes, número
que poderá aumentar mais de 50% nos próximos 10 anos. 8
Segundo a Associação Protectora dos
Diabéticos de Portugal (APDP), em Portugal
deverão existir entre 300.000 a 500.000 diabéticos, calculando-se que “a diabetes consuma
mais de 10% dos recursos globais da saúde.” 2
Segundo a Direcção Geral da Saúde (DGS),
cerca de 15% da população diabética tem
condições favoráveis ao aparecimento de patologia nos pés, sendo que o Pé Diabético será
responsável por cerca de 40% a 60% de todas
as amputações não traumáticas (1.200 amputações por ano). Cinco anos após a primeira
amputação, mais de metade dos doentes poderá sofrer amputação contralateral. 2,6
Classificação
O Pé Diabético pode ser classificado em
Neuropático e Isquémico (classificação de
Edmonds em 1987). Uma vez que o pé isquémico puro sem neuropatia é raro no doente
diabético, também pode receber o nome de
neuro-isquémico (classificação de Edmonds
em 1994). 9
Segundo a DGS, “a distinção principal
destes dois tipos de pé está na presença, ou
ausência, de pulsos periféricos. Por esta razão,
na prática clínica, os parâmetros diagnósticos
decisivos são os vasculares, enquanto que os
neurológicos apenas são confirmativos.” 2
Pé Neuropático
Definição
Presença de um ou dois pulsos palpáveis
(pedioso ou tibial posterior) e forte expressão
da neuropatia.
tais como dedos em garra (foto 2) e focos de
hiperpressão. Surgem, assim, hiperqueratoses,
calosidades e alterações distróficas das unhas
como resposta fisiológica à exposição continuada à pressão e posturas incorrectas.
Fisiopatologia
A causa exacta da neuropatia não é, ainda,
consensual. Acredita-se, no entanto, no papel
fundamental de um mau controlo glicémico,
ou seja, de hiperglicemias prolongadas.
As principais alterações provocadas pela
neuropatia autonómica referem-se à
diminuição da sudação, originando pele seca
com gretas e fissuras. Da disfunção autonómica (simpatectomia) resulta ainda a abertura
de shunts arterio-venosos com aumento do
fluxo sanguíneo que ocasiona um aumento da
reabsorção óssea (o que acarreta osteopenia,
colapso articular e diminuição da resistência
a fracturas), manifestando-se por pés quentes,
túrgidos e deformados.
A neuropatia revela-se a nível sensitivo,
motor e autonómico.
A neuropatia sensitiva origina diminuição da sensibilidade dolorosa e propioceptiva
e até anestesia completa do pé, o que facilita
traumatismos repetidos sem que o doente se
aperceba.
A nível motor, a neuropatia ocasiona atrofia muscular responsável pelo alinhamento do
pé, originando-se deformidades estruturais
Foto 2: dedos em garra.
A úlcera neuropática é provocada por
uma agressão contínua que é permitida pela
insensibilidade neuropática.
Esta agressão pode referir-se às próprias
deformidades apresentadas, focos de hiperpressão e calosidades. Pode ser ainda um factor
extrínseco como por exemplo o uso de calçado inapropriado, exposição a fontes de calor
ou uso de calicidas.7,9
99
100
Características da Úlcera Neuropática
Surge em zonas de hiperpressão, sendo
muito frequente na zona plantar do antepé e
nos dedos deformados.
Pé Isquémico
Definição
Caracterizado pela ausência de pulsos nas
duas artérias, tibial posterior e pediosa.
São profundas, com bordos hiperqueratósicos e com tendência para a operculização. O
leito da ferida apresenta predominantemente
tecido de granulação (foto 3). 4
Fisiopatologia
O Pé Isquémico resulta da doença aterosclerótica dos grandes vasos do membro inferior.
Foto 3: úlcera neuropática.
A fisiopatologia da aterosclerose nos doentes diabéticos é semelhante à da população
em geral. No entanto, é mais frequente nos
diabéticos, a sua incidência é igual entre
homens e mulheres, é sempre bilateral, progride distalmente e mais rapidamente do que nos
não diabéticos. Está directamente relacionada
com o tabagismo, a hipertensão arterial e a
hiperlipidémia.
O Pé Isquémico caracteriza-se por ter pele
pálida, fria, rarefacção pilosa, unhas deformadas, grossas e sem brilho, fica pálido quando
elevado, tornando-se cianosado em declive.
A úlcera isquémica ocorre habitualmente
como consequência de um pequeno traumatismo ocasional ou provocado pelo calçado.1,9
O Pé Diabético é uma das complicações mais catastróficas da
diabetes, uma vez que ainda continua a ser responsável por
elevados números de amputações cirúrgicas dos membros
inferiores.
Características da úlcera isquémica
A úlcera é de localização latero-digital
(dedos, face lateral externa do pé e posterior
do calcanhar). É muito dolorosa e com predominância de tecido necrosado. A evolução da
necrose é imprevisível, quase sempre rodeada
por um anel de eritema. Apresenta um eleva­
do risco de infecção (fotos 4 e 5). 4
Diagnóstico diferencial
Para tratamento do Pé Diabético é fundamental fazer a correcta distinção entre pé
neuropático e pé isquémico.
A palpação dos pulsos periféricos (tibial
posterior e pedioso) e a determinação do
IPTB (Índice de Pressão Tornozelo/Braço)
permite-nos confirmar ou excluir patologia
arterial (temática abordada no número 4 desta
publicação – “Úlceras arteriais e diagnóstico
diferencial”). Os valores aceitáveis de IPTB
nos doentes diabéticos situam-se entre 0,9 e
1,3. Quando o IPTB é superior a 1,3 podemos estar na presença de um caso em que
existe calcificação das paredes arteriais que
torna as artérias incompressíveis resultando
numa pressão arterial sistólica maleolar falsamente elevada, o que requer estudo vascular
mais profundo recorrendo a outros meios
auxiliares de diagnóstico (como por exemplo,
eco-doppler). 4,6
Para confirmação da neuropatia deve-se
avaliar a existência de sinais e sintomas como
parestesias, dor (sensação de queimadura, de
picada ou cãimbras), ausência total de dor e
sinais como calosidades ou deformidades ósseas. Para despistar a diminuição da sensibilidade
deve-se recorrer ao uso do monofilamento de
Semmes-Weinstein (percepção da pressão) e
do diapasão (percepção da vibração) (fotos 6,
7 e 8). 4,5,6
Fotos 4 e 5: úlceras isquémicas.
101
Foto 6: aplicação do monofilamento.
102
Foto 7: pontos de aplicação do monofilamento.
Foto 8: aplicação do diapasão.
Segundo a Organização
Mundial de Saúde (OMS)
há, no mundo, mais de 180
milhões de pessoas com
diabetes, número que deverá
aumentar para mais do dobro
em 2030.
…cerca de 15% da população
diabética tem condições
favoráveis ao aparecimento
de patologia nos pés, sendo
que o Pé Diabético será
responsável por cerca de
40% a 60% de todas as
amputações não traumáticas
(1.200 amputações por ano).
Cinco anos após a primeira
amputação, mais de metade
dos doentes poderão sofrer
amputação contralateral.
Tratamento do Pé Diabético
O Grupo de Trabalho Internacional
sobre o Pé Diabético elaborou o Consenso
Internacional sobre o Pé Diabético, no qual
se baseiam as Directivas Práticas sobre o
Tratamento e a Prevenção do Pé Diabético
que contemplam cinco princípios no tratamento do Pé Diabético: 5
1. Inspecção e exame frequentes do pé em
situação de risco;
2. Identificação do pé em situação de risco;
3. Educação do doente, dos familiares e dos
prestadores de cuidados de saúde;
4. Utilização de calçado apropriado;
5.Tratamento da patologia não ulcerada.
1. Inspecção e exame frequente do pé
em situação de risco
Deve ser efectuado pelo menos uma vez
por ano, excepto em situações de risco cujo
exame deve ser mais frequente.
Nesta altura deve ser elaborada a anamnese, a inspecção da pele (cor, temperatura,
turgescência) e anexos, ossos e articulações
(deformidades) e calçado.
É neste exame que é feita a avaliação neurológica e vascular.
2. Identificação do pé em situação de
risco
No Consenso Internacional sobre o pé
diabético, estão estabelecidas três categorias de
risco:
• Grau I: ausência de neuropatia sensitiva.
• Grau II: neuropatia sensitiva.
• Grau III: neuropatia sensitiva e/ou deformações dos pés ou proeminências ósseas e/ou
sinais de isquemia periférica e/ou úlcera anterior ou amputação.
A vigilância do pé diabético é feita de
acordo com a sua classificação em termos de
risco.
Segundo a DGS, o pé diabético pode ser
classificado em:
• Baixo risco: ausência de factores de risco.
A vigilância deve ser anual.
• Médio risco: ausência de neuropatia ou
vasculopatia e presença de, pelo menos, outro
factor de risco. A sua vigilância deve ser
semestral.
• Alto risco: existência de neuropatia ou
isquemia, ou úlcera cicatrizada ou amputação
prévia. O doente deve ser avaliado de um a
três meses.
103
104
3. Educação do doente, dos familiares
e dos prestadores de cuidados de
saúde
O conhecimento do risco de ulceração e
dos cuidados com os pés é um passo importante para a prevenção da ulceração e suas
complicações.
O profissional de saúde deve estar realmente
formado acerca da problemática e deve conseguir educar o doente/família no sentido de o
motivar a levar a adquirir aptidões e capacidades para o cuidado aos pés.
4. Utilização de calçado apropriado
O calçado inadequado é, com muita
frequência, a causa da ulceração.
O ideal seria a aquisição de calçado, palmilhas e ortoses perfeitamente adequados ao pé,
às suas deformações e alterações biomecânicas.
No entanto, as condições sócio-económicas
dos doentes muitas vezes não o permitem.
(Foto 9)
As questões mais pertinentes a abordar no
processo educativo são:
• Inspecção diária dos pés pelo doente ou
outra pessoa quando este não é capaz.
• Cuidados de higiene regulares com aplicação de creme hidratante exceptuando nos
espaços interdigitais que devem permanecer
secos.
• Evitar agressões externas: fontes de calor,
produtos químicos (ex.: calicidas), evitar andar
descalço, cortar as unhas a direito, tratamento
das calosidades por profissionais de saúde.
• Alimentação cuidada e rigoroso controlo
metabólico.
Foto 9: palmilhas.
Contudo, há aspectos a que os doentes
devem atender na utilização do calçado. O
sapato deve ter um centímetro mais que o dedo
mais comprido e deve ser suficientemente alto
e amplo para evitar a lesão dorsal e lateral dos
dedos.A altura do tacão não deve ter mais que
dois centímetros e o calcanhar deve ser firme
para conter o pé sem deslizar.
A fisiopatologia da aterosclerose nos doentes diabéticos é
semelhante à da população em geral. No entanto, é mais
frequente nos diabéticos, a sua incidência é igual entre homens
e mulheres, é sempre bilateral, progride distalmente e mais
rapidamente do que nos não diabéticos.
5. Tratamento da patologia não
ulcerada
Devem ser tratadas todas as patologias
associadas a alterações cutâneas e das unhas
(calosidades, hiperqueratoses e onicomicoses).
As deformações devem ser tratadas através da
utilização de ortoses. (Foto 10)
• Controlo metabólico e da co-morbilidade;
• Educação dos doentes e familiares;
• Determinação da causa e prevenção da
recorrência (prevenção de lesões no pé contralateral e inclusão do doente num programa de
avaliação contínua);
• Cuidados locais da ferida.
Tratamento local
Tratar localmente a ferida segundo princípios de tratamento em meio húmido (temática
abordada no número 1 desta publicação –
“Abordagem da Ferida Crónica – Tratamento
Local”), atendendo a cuidados particulares:
Foto 10: tratamento de patologia não ulcerada.
Tratamento da úlcera
Segundo as Directivas Práticas, o tratamento
pode obter taxas de cura de 80% a 90% se for
baseado nos seguintes princípios: 5
• Alívio da pressão (com calçado apropriado
e palmilhas);
• Melhoria da irrigação cutânea (revascularização arterial cirúrgica, tratamento do
tabagismo, hipertensão arterial e dislipidémia);
• Tratamento da infecção (com antibioterapia sistémica; não utilizar antibióticos
tópicos);
• Úlcera Neuropática: desbridar calosidades, vigiar pseudo-cicatrização e fazer pensos
de pequenas dimensões (de modo a que o
doente possa continuar a utilizar o calçado
apropriado).
• Úlcera Isquémica: avaliar sempre e em
primeiro lugar a possibilidade de revascularização. No tratamento local instituir medidas
não traumáticas ou agressivas para não ocorrer
agravamento da necrose. Assim, não está indicado desbridamento com bisturi ou tesoura
e está indicada a aplicação de iodopovidona
dérmica para ocorrer a formação de necrose
seca com a finalidade da auto-amputação das
áreas necrosadas (ex.: dedos), principalmente
nos casos em que não é possível proceder à
revascularização. 3
105
Conclusão
A diabetes não tem tratamento. É possível,
no entanto, prevenir as suas complicações para
que as suas manifestações sejam cada vez mais
tardias e menos agressivas. Neste aspecto, a
prevenção secundária desempenha um papel
fundamental e benéfico para a qualidade de
vida individual e para o reflexo em termos de
custos sócio-económicos da doença.
O Pé Diabético é uma complicação grave e
provocada na maior parte dos casos pelo uso
de calçado inadequado.
106
E, apesar de cada vez melhor conhecida a
sua problemática, a possibilidade da ocorrência
de lesões e o potencial de uma lesão já instalada são muitas vezes negligenciados.
É cada vez mais importante a formação
dos profissionais de saúde no âmbito desta
temática, a par da educação dos doentes/
família/cuidadores para cuidados preventivos
relativos à doença em geral e ao pé diabético
em particular.
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9. SERRA, Luís M. Alvim et al (1996). O pé diabético e a
prevenção da catástrofe. Publicação da Associação de Apoio ao
Serviço de Endocrinologia do HGSA e Associação de Apoio
ao Serviço de Ortopedia do HGSA. Porto, Portugal.
Casos clínicos
107
Caso 1
• Idade: 79 anos.
• Sexo: Feminino.
• Patologias e factores de risco associados: Diabetes tipo 1 (diagnosticada há cerca
de 20 anos e a fazer actualmente insulina 28U
+ 12U); HTA; dislipidemia; antecedentes de
AVC (Julho 2005).
• Localização: leito ungueal do hálux direito.
• IPTB = 0.54.
• Duração deste tratamento: 21 semanas.
Tratamento:
De 01/09/2006 a 05/10/2006: aplicação
diária de iodopovidona.
De 05/10/2006 a 26/01/2007: aplicação de
colagénio + hidropolímero 2x/semana.
108
Caso 2
• Idade: 66 anos.
• Sexo: Feminino.
• Patologias e factores de risco associados: Diabetes tipo 2.
• Localização: hálux direito.
• IPTB = 1.5 (PA sistólica maleolar >250
mmHg).
• Duração deste tratamento: 17 dias.
Tratamento:
De 05/01/2007 a 22/01/2007: aplicação
de carboximetilcelulose sódica 3x/semana.
Mafalda Duarte
Docente do ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave, Psicóloga, Mestre
em Gerontologia pelo European Master Gerontology (EuMaG), Mestre em
Gerontologia Social (ICBAS)
Constança Paúl
Professora Doutora no ICBAS, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar,
Universidade do Porto, coordenadora da UNIFAI, Unidade de Investigação e
Formação sobre Adultos e Idosos
Palavras-chave: idoso, avaliação ambiental, saúde, comportamento
110
111
Avaliação do ambiente institucional
– estudo ecológico comportamental dos idosos
Resumo
Este estudo visa estudar a influência do meio
e dos factores sociais no comportamento do
idoso institucionalizado.Conta com a aplicação
do SERA – Sistema de Evaluación de Residencias
de Ancianos de Fernández-Ballesteros (1998)
em contexto ecológico institucional. Tem
como objectivos: averiguar a relação entre
variáveis individuais (como saúde objectiva e
subjectiva) e variáveis subjectivas (avaliação do
conforto físico), predizer o poder das características ambientais (como a possibilidade
de interferir nas políticas institucionais) na
influência das capacidades funcionais (como
nível de actividades) dos idosos e, por fim,
verificar quais as relações entre o clima social e
outros factores ambientais experienciados no
contexto institucional.
112
Introdução
Tendo em conta as alterações demográficas
provocadas pelo envelhecimento em toda a
Europa, a que Portugal não fica alheio, e as
transformações que ocorrem nas sociedades
actuais,proporcionam-se as condições para que
se considere o processo de envelhecimento e
a velhice como uma área a necessitar de apoio
social. O reconhecimento da necessidade de
intervir com políticas sociais orientadas para
o desenvolvimento e optimização de respostas
sociais, levou ao surgimento de equipamentos
do tipo lar de idosos.
em residências para idosos, propôs o Modelo
Ecológico Comportamental.
Em Portugal, cerca de 51 017 pessoas idosas
residem em lares (num total de 1 702 120
pessoas com mais de 65 anos), são maioritariamente mulheres (69%) e 85% dos residentes
tem mais de 75 anos de idade (INE, 2002).
Este modelo atribui grande importância às
condições ambientais e sua interacção com
variáveis pessoais, considerando estas últimas
na perspectiva do comportamento social
(Fernández-Ballesteros, 2000). Para a autora,
as condições ambientais devem ser analisadas
tendo em conta a trajectória de vida e a história
passada do sujeito. Sendo assim, as condições
ambientais podem ser afectadas, num determinado momento, pelos próprios reportórios
de comportamento do sujeito apreendidos
pela transacção e interacção entre a pessoa e as
circunstâncias do seu passado.
No âmbito da Psicologia Ambiental foram
realizados estudos acerca dos ambientes
residenciais que apontam para uma forte interacção entre condições pessoais e ambientais
no seio do contexto institucional. Baseandose no modelo de Moos e Lemke (1984),
estudado em Portugal por Paúl (1995), e
com o intuito de incorporar outras variáveis
pessoais e ambientais relevantes para o estudo pessoa/ambiente, Fernández-Ballesteros
(1998) baseada na investigação que efectuou
A principal variável acrescentada faz referência ao tempo nas suas várias percepções: social,
histórico e pessoal como factor que afecta e
redefine o contexto e as próprias condições
pessoais. Por outro lado, este modelo valoriza
a existência de uma relação directa entre as
condições de saúde e os níveis de desempenho comportamental. Esta relação influencia
e é influenciada por variáreis contextuais e
pessoais.
Em suma, a saúde ou qualquer outro tipo de
variáveis psicossociais (por exemplo: bem-estar
e o nível de satisfação) podem ser explicadas
em função da interacção entre as condições
pessoais e as circunstâncias contextuais e
ambientais – características físicas e arquitectónicas, organizativas e sócio-demográficas.
Este estudo visou o conhecimento aprofundado de duas realidades institucionais
distintas, através da aplicação do SERA
– Sistema de Evaluación de Residencias de
Ancianos, de Fernández-Ballesteros (1998),
dando particular ênfase às seguintes escalas
– QIP (Questionário de Informação Pessoal)
e à ECS (Escala do Clima Social) que visam
o comportamento dos idosos e a sua relação
com aspectos contextuais.
Tendo em conta as alterações
demográficas provocadas
pelo envelhecimento em
toda a Europa, a que
Portugal não fica alheio, e as
transformações que ocorrem
nas sociedades actuais,
proporcionam-se as condições
para que considere o processo
de envelhecimento e a velhice
como uma área a necessitar
de apoio social.
113
114
Metodologia
i) Caracterização da amostra
A amostra é constituída por um número
total de 64 idosos, 44 a residirem em contexto institucional público e 20 a residirem em
contexto institucional privado. Esta foi criada
a pensar na sua homogeneidade, isto porque
apesar de ser composta por idosos a residir em
contextos institucionais diferentes, estes apresentam algumas semelhanças.
Assim, a franja etária dos idosos institucionalizados distribui-se entre 50 e 88 anos de idade
(média etária de 76 anos). Relativamente ao
género, 51,6% são do sexo feminino e 48,4%
são do sexo masculino. Quanto ao estado
civil, esta amostra contempla 40,6% de idosos
viúvos, 32,8% solteiros, 17,2% casados e 9,4%
separados/divorciados. Isto significa que
grande parte destes idosos que recorreram
à institucionalização encontravam-se sem
cônjuge e/ou sem companheiro/a.
No que se refere ao nível educacional, 43%
não tem qualquer habilitação académica, são
analfabetos, 26,5% sabem ler e escrever, tendo
alguns frequentado a 3.ª e 4.ª classe. Os restantes 30,5% enveredaram por cursos profissionais
e superiores.
Em termos de actividade laboral durante a
vida activa, 37% foram agricultores e domésticas. Seguidamente, com 28%, encontram-se
sujeitos que desenvolveram actividades como
“empregados de escritório” e “ funcionários
de empresas”. A terceira categoria com mais
peso (19%) prende-se com actividades que
estão associadas a costura (nomeadamente o
modelismo), comércio e hotelaria.
Quanto ao tempo de permanência na instituição, 45,3% dos idosos residem há menos
de 5 anos, 37,5% residem entre 5 a 10 anos e
17,2% estão a residir há mais de 10 anos em
contexto institucional.
No que diz respeito aos motivos que
levaram estes idosos a tomarem a decisão da
institucionalização, estes estão directamente
associados, numa primeira instância, a razões
como “medo da solidão” (32,8%) e “motivos
familiares” (28%). Isto reflecte que o receio
dos idosos estarem sós e de se sentirem sós
constitui um dos motivos que contribui para a
tomada de decisão. Paralelamente, os conflitos
com a família, o facto de, muitas vezes, sentirem que são uma sobrecarga, um “fardo” no
seio familiar, são outros factores preponderantes que influenciam na decisão da opção
pela institucionalização. Por fim, é importante
salientar que a maioria dos idosos (87,5%)
partilham o seu quarto com mais do que um
companheiro/a na instituição onde residem.
ii) Variáveis e instrumentos utilizados
Para se estudar as relações ambientais foi
necessário uma recolha exaustiva de dados
acerca das características individuais de cada
idoso a residir em contexto institucional, bem
como do ambiente social. Para tal, recorreu-se
a instrumentos de avaliação que fazem parte do
SERA – Sistema de Evaluación de Residencias
de Ancianos, de Fernández-Ballesteros (1998).
Este é um denso instrumento multidimensional de avaliação ambiental composto por 9
escalas (as primeiras 5 retiradas do instrumento
original MEAP – Multiphasic Enviornmental
Assessment Procedure de Moos & Lemke (1984)
– e mais 4 escalas acrescentadas) que são:
Inventário das Características Arquitectónicas
e Físicas (ICAF); Inventário das Características
Organizativas – Funcionamento (ICOF);
Inventário das Características do Pessoal e
Residente (ICPR); Escala do Clima Social
(ECS); Escala de Avaliação (EA); Lista
das Necessidades (LN); Questionário de
Informação Pessoal (QIP); Questionário
de Satisfação (QS) e Mapa de Interacção
Ambiental do Comportamento (MICA).
Esta investigação contou com a aplicação
do QIP (Questionário de Informação Pessoal)
em que se exploraram as condições específicas
de cada idoso. Esta escala tem como objectivo
avaliar variáveis pessoais dos residentes, inclui
44 elementos, divididos por 4 dimensões
relevantes: “Habilidades Funcionais” (N= 9)
– mede o nível de independência, autonomia
dos residentes no desempenho de actividades de vida diária; “Actividade Pessoal” (N=
13) – avalia o índice de actividades levadas
a cabo pela própria iniciativa dos residentes;
“Integração na Comunidade” (N= 13) – avalia
o índice de actividades fora da instituição e,
por fim, questões relacionadas com a “ Saúde”
(N= 9) dos residentes, nomeadamente a:
• Saúde Objectiva: é avaliada através de
indicadores objectivos da saúde, tais como o
número de doenças que são diagnosticadas
(no presente), número de vezes que foi ao
médico (durante o último mês), número de
medicamentos que toma actualmente, etc.;
• Saúde Subjectiva: avalia o sentimento de
se sentir saudável, de acordo com uma escala
de “1” a “5” (mau, regular, normal, boa, excelente);
Em suma, a saúde ou
qualquer outro tipo de
variáveis psicossociais (por
exemplo: bem-estar e o
nível de satisfação) podem
ser explicadas em função da
interacção entre as condições
pessoais e as circunstâncias
contextuais e ambientais
– características físicas e
arquitectónicas, organizativas
e sócio-demográficas.
115
116
• Queixas de memória: avalia se o sujeito se
queixa de problemas associadas à funcionalidade da memória;
• Queixas associadas à depressão
(Sintomatologia Depressiva).
Paralelamente, para se avaliar o ambiente
social baseamo-nos na ECS (Escala do Clima
Social). Esta é composta por 63 questões a
partir das quais se obtém um perfil do estabelecimento com sete dimensões que abrangem
o relacionamento entre os indivíduos, o
desenvolvimento do pessoal e a manutenção e
mudança do sistema. As dimensões relacionais
englobam uma medida de 1) “Coesão” – grau
de apoio que os funcionários dão aos residentes;
2) “Conflito” – expressão de descontentamento e crítica entre os residentes e em relação à
instituição; 3) “Independência” – encorajar a
auto-suficiência, autodeterminação e a responsabilidade dos residentes; 4) “Autoexploração”
– avalia comportamentos que visam encorajar
a expressão aberta de sentimentos e preocupação dos residentes; 5) “Organização” – mede
a importância da ordem e da organização da
instituição; 6) “Influência dos Residentes”
– avalia a medida em que os residentes podem
influenciar as regras e a política da instituição
e 7) “Conforto Físico” – aprecia o conforto, a
privacidade, a decoração e agradabilidade do
estabelecimento.
Através das análises de regressão linear por
passos (SPSS.Versão 14.0) as variáveis pessoais,
como variáveis dependentes,foram relacionadas
uma a uma com todas as características pessoais
dos residentes (sexo; estado civil; escolaridade;
tempo de permanência na instituição; motivos
de ingresso; capacidades funcionais; nível de
actividades; integração na comunidade; saúde
física – número de medicamentos tomados,
queixas relacionadas com problemas de saúde
actuais, queixas relacionadas com a memória e
com a depressão, bem como com problemas
em relação à capacidade visual e auditiva – a
saúde percepcionada pelos mesmos) e com
todas as variáveis ambientais (a coesão vivida
na instituição; o conflito experenciado; a independência dos residentes; a autoexploração; a
organização geral do equipamento; a influência dos residentes e o conforto físico avaliado)
considerando-as variáveis independentes.
Seguidamente, a totalidade destas dimensões
sociais foram consideradas variáveis dependentes e relacionadas com todas as variáveis
pessoais e ambientais (independentes).
É importante salientar que um ambiente que proporcione a
partilha de sentimentos e emoções acaba por ser um meio
que potencia a exteriorização de sentimentos de tristeza e
angústia vividos pelo idoso. Assim, cada unidade ecológica
deve ter em atenção que, para além de prestarem cuidados
formais, acompanhamento nas actividades de vida diária e nas
actividades instrumentais de vida diária, devem assegurar um
ambiente facilitador à exploração afectiva e emocional do “eu”
do idoso.
117
Variável
Dependente
Variável Independente
Saúde Percepcionada
Queixas de Memória
Organização
Nível de Actividades
Queixas de Memória
Saúde Objectiva
Saúde Percepcionada
Queixas Depressivas
(depressão)
118
Saúde Objectiva
Autoexploração
iii) Resultados e conclusão
A partir da análise dos coeficientes de
regressão obtiveram-se os seguintes resultados
mais significativos que estão ilustrados na
Tabela 1.Todas as outras variáveis introduzidas
nos modelos não se relacionaram de forma
significativa com as restantes.
Quando a saúde percebida foi utilizada
como variável dependente, os resultados
demonstram que as variáveis preditoras eram
as queixas de memória, organização da instituição e o nível de actividades do idoso. Este
conjunto de variáveis explica 43% da variância
da saúde percebida dos residentes (R²= 0.43,
P <0.001). Desta forma, a avaliação da saúde
percebida do idoso institucionalizado depende
da apreciação que este faz das suas queixas de
memória (β = - 0.28), da organização geral
do equipamento (β = 0.34) e do número de
actividades sócio-recreativas e de lazer em que
participa na instituição (β = 0.25).
Nível de Actividades
Saúde percepcionada
Independência
Coesão
Independência
Organização
Conflito
Coesão
Autoexploração
Depressão
Influências
Influências
Autoexploração
Conforto
Conforto
Tempo de permanência
Saúde percepcionada
Influência dos residentes
R²
F
Sig
0.43
11.4
0.000
0,23
0.20
0.28
0.45
0.06
0.23
0.26
0.38
6.1
5.2
12.27
9.72
4.34
9.2
5.38
5.88
β
T
Sig
0.28
-2.88
0.007
0.34
1.38
0.002
0.25
1.82
0.026
0.25
2.17
0.034
- 0.25
- 2.07
0.042
- 2.27
- 2.29
0.020
0.23
1.99
0.050
0.44
4.08
0.000
0.25
2.32
0.023
0.26
2.36
0.021
0.44
3.75
0.000
-0.25
-2.09
0.041
0.29
2.64
0.010
0.39
3.52
0.001
0.33
2.92
0.005
0.26
2.14
0.036
-0.22
-2.03
0.046
0.25
2.13
0.037
0.25
2.32
0.024
Relações pessoais
e ambientais entre
idosos que habitam em
contexto institucional
Tabela 1. Resultados:
Coeficientes de análise
de regressão linear
0.001
0.003
0.000
0.001
0.041
0.000
0.001
0.000
119
120
Numa segunda análise tentamos estudar a
influência de algumas dimensões pessoais e
físicas na avaliação das queixas de memória
dos residentes. Os resultados mostram que a
saúde objectiva do idoso é influenciada pela
capacidade de visão e pela sua autopercepção
de saúde (R²= 0,23, P <0.001). Estas são as
variáveis que mais significativamente influenciam as queixas relacionadas com capacidade
de recordar e explicam 23% da sua variância.
Assim, pode-se observar que as queixas relacionadas com a avaliação deste processo cognitivo
são influenciadas pela autopercepção de saúde
(β = -0.25) e pela alteração da capacidade
visual (β = 0.25) dos idosos.
Seguidamente estudamos a possível influência de variáveis pessoais e organizacionais
nas queixas de depressão dos residentes. Os
resultados mostram que a variável saúde
objectiva (β = -2.27), mais especificamente
o número de medicamentos administrados
pelo residente e a avaliação que este faz acerca da possibilidade/oportunidade que tem
para expressar de forma aberta sentimentos
e preocupações (β = 0.23), explicam 20%
da variância da depressão. Isto significa que
as queixas relacionadas com a sintomatologia
depressiva no idoso institucionalizado dependem essencialmente de duas componentes:
uma componente objectiva (número de
medicamentos ingeridos diariamente) e uma
componente subjectiva (características de
exploração afectiva e emocional do meio).
Quando o nível de actividades dos residentes foi utilizado como variável dependente os
resultados demonstram que as variáveis saúde
percepcionada dos residentes (β = 0.44) e o
grau de independência (β = 0.25) explicam
28% da sua variância (R²= 0.28, P <0.001).
Assim, o nível de actividades sócio-recreativas e de lazer, tais como: ver televisão, ouvir
música, ler um jornal ou livro, escrever (cartas,
poemas, etc.), coser, bordar, participar em jogos,
desenhar ou pintar, cuidar de plantas, etc., realizadas pelo idoso na instituição, prendem-se,
essencialmente, com a sua percepção de saúde
e com a sua auto-suficiência, autodeterminação e a sua própria responsabilidade enquanto
sujeito activo no seu meio envolvente.
No que se refere às dimensões sociais, mais
precisamente à coesão, verificamos a partir
dos resultados obtidos que duas variáveis, uma
pessoal e outra de características organizacionais, têm uma relevância significativa (R²=
0.46, P <0.001) explicando 45% da variância
de coesão.Assim, o grau de independência dos
residentes – autonomia (β = 0.26) e a forma
como a instituição está organizada (β = 0.44),
numa forma geral, condicionam o apoio que
o pessoal funcionário canaliza para os idosos a
residir na instituição.
Na tentativa de se perceber o que influencia
a expressão de descontentamento e de crítica entre os residentes para com a instituição,
foram efectuadas análises de regressão, em que
apenas uma característica do clima social, a
coesão (R²= 0.45, P <0.001), explica 45% da
variância de conflito. Isto significa que o grau
de apoio que os funcionários disponibilizam
para os residentes (coesão – β = - 2.09) prediz
Neste estudo constatamos
que a intenção do idoso em
participar nas actividades
sócio-recreativas e de lazer
levadas a cabo na instituição
depende da sua condição
física (estado funcional). Por
sua vez, o idoso que participa
dinamicamente é aquele
que se sente melhor com o
seu estilo de vida e com a
sua saúde. Assim, o meio
institucional ao optimizar a
independência dos residentes,
dando-lhes oportunidade para
desenvolverem determinadas
tarefas (concedendo o tempo
necessário para tal), e ao
potenciar a participação nas
actividades, está a contribuir
para um processo de
envelhecimento activo e, por
isso, saudável.
as relações interpessoais dos residentes e o
desagrado com o próprio equipamento.
Analisando a influência de variáveis pessoais
e ambientais na avaliação da autoexploração
dos idosos, os resultados demonstram que
dois factores, um de ordem pessoal – queixas
de depressão (β = 0.29) e outro de ordem
ambiental – influência dos residentes (β =
0.39), predizem significativamente (R² = 0.23,
P <0.001) a sua variação (23%). Isto é, a avaliação da capacidade e oportunidade dos idosos
expressarem e manifestarem de forma aberta os
seus sentimentos, emoções e desejos, depende
das queixas de depressão apresentadas e da
apreciação que os próprios sustentam acerca
da sua influência na implementação de regras
e políticas de gestão no meio residencial.
Seguidamente, ao estudarmos a interferência das variáveis ambientais na capacidade
de influência dos residentes no seu contexto
habitacional, e a partir dos resultados obtidos,
constatamos que a avaliação da autoexploração (β = 0.33) e do conforto físico (β =
0.26) explicam parte dessa variação (26%). É
do ponto de vista estatisticamente significativo (R²= 0.26, P <0.001) que estas variáveis
ambientais interferem na forma como os
idosos influenciam na implementação de
regras e políticas da instituição. Sendo assim, a
capacidade de influência dos idosos a residirem
num equipamento para idosos depende das
condições ambientais do contexto institucional em que estão inseridos, mais precisamente
da avaliação da possibilidade de partilha do
“eu” e pela apreciação de conforto físico.
121
122
Por fim, estudamos a influência das características individuais e organizacionais na
percepção do conforto físico dos idosos institucionalizados. Os resultados mostram que
é estatisticamente significativo (R²= 0.38, P
<0.001) a influência das seguintes variáveis na
sua diferenciação (38%): o tempo de permanência na instituição (β =- 0.22), a saúde
percepcionada pelo residente (β = 0.25) e a
influência do mesmo na implementação de
regras e normas no seu ambiente habitacional. Ou seja, a noção de conforto do idoso a
residir num equipamento para idosos depende, essencialmente, do tempo que reside na
instituição, da sua autopercepção de saúde e da
liberdade que lhe proporcionam para participar activamente nas políticas organizativas da
instituição.
De acordo com os resultados obtidos, observa-se uma rede densa de inter-relações entre
condições pessoais e ambientais em idosos a
viverem num equipamento do tipo lar para
idosos. Numa tentativa de se sintetizar estas
relações foi elaborado o seguinte quadro, no
qual estão apresentadas as mais significativas
considerando a interacção ambiente/ residente.
A partir deste quadro (tabela 2) observa-se
um sumário das relações constatadas neste
estudo. Desta forma, torna-se pertinente
debruçarmo-nos sobre elas para se poder tirar
ilações importantes acerca das interacções entre
características pessoais e ambientais (físicas e
organizacionais), com objectivo de se perceber
e perspectivar até que ponto estas interferem
na conduta comportamental do residente.
Interacções Ambiente / Residente
Variáveis do Idoso
Saúde Percepcionada
Queixas de Memória
Queixas Depressivas
(depressão)
Nível de Actividades
Variáveis Ambientais
Coesão
Conflito
Autoexploração
Influências no Meio
Tabela 2. Principais resultados referentes à influência do
meio no comportamento do idoso institucionalizado
Conforto
Quanto mais queixas de memória apresentadas pelo residente pior é percepcionada a sua saúde.
A organização geral da instituição influencia a saúde percebida do sujeito idoso. Assim, uma instituição que funciona com método e ordem potencia uma boa autopercepção de saúde.
As actividades sócio-recreativas e de lazer em que o idoso participa/colabora na instituição interferem
positivamente na sua avaliação de saúde. O idoso activo na instituição percepciona melhor a sua
saúde.
As queixas relacionadas com capacidade visual estão directamente relacionadas com as queixas de
memória apresentadas pelo idoso institucionalizado.
Quanto mais problemas relacionados com a visão mais mencionadas são as queixas de memória.
Quanto melhor o idoso se sente de saúde menor são as
queixas relacionadas com os problemas de memória.
Quanto menor for a ingestão diária de medicamentos mais persistem as queixas relacionadas com a
sintomatologia depressiva (depressão).
Quanto mais o meio proporcionar condições para a partilha de sentimentos, emoções e desejos dos
residentes, maior são as queixas de depressão salientadas pelos mesmos.
Quanto melhor se sentir de saúde, mais o idoso participa activamente nas actividades sociais, recreativas e de lazer, levadas a cabo pela instituição.
Quanto mais autónomo funcionalmente for o idoso mais apresenta capacidade e motivação para
colaborar nas actividades diversas programadas pelo equipamento.
Quanto maior for o apoio funcional e emocional do pessoal funcionário disponível para os residentes
mais independentes os idosos se tornam.
Quanto melhor estiver organizada a instituição, melhor é gerido este apoio aos residentes, em função
das suas capacidades físicas, mentais e emocionais.
Quanto menor o apoio dado aos residentes pelo pessoal funcionário, mais conflituosas são as relações
interpessoais entre ambos.
Prevalecem as queixas de depressão, no meio habitacional em que mais se permite a partilha de
sentimentos e a exploração do “eu”.
Quanto mais o idoso participa activamente na implementação das regras e normas, assumindo uma
postura dinâmica no meio onde reside, mais o seu contexto envolvente permite a exploração afectiva
e emocional do sujeito idoso.
Quanto mais o meio residencial permite a exploração do sujeito em relação ao seu “eu”, mais este
tende a assumir uma postura interventora.
Quanto mais confortável se sentir o idoso em relação ao meio onde reside, mais este participa activamente na implementação de medidas e programas no seio habitacional.
À medida que o idoso permanece na instituição, menos confortável se sente.
Quanto melhor a sua autopercepção de saúde melhor é a sua noção de conforto físico.
Quanto mais influente for o sujeito no seu meio envolvente, mais confortavelmente se sente a residir
nesse mesmo meio habitacional.
123
Conclusão
Globalmente, observa-se uma íntima
relação entre variáveis pessoais, tais como:
saúde percepcionada, nível de actividades e
independência como é postulado em alguns
modelos teóricos, (Lawton, 1977; Baltes, 1982;
Fernandez-Ballesteros, 1983; Moos e Lemke,
1996) citados anteriormente.
O estudo da avaliação da saúde (tanto a
objectiva como a subjectiva) do idoso institucionalizado é um importante factor que
influencia não só aspectos subjectivos, como
queixas de memória e nível de actividades,
como a própria noção de conforto físico.
124
Ressalta-se a influência do ambiente residencial sobre factores pessoais como muitos
autores afirmam (Kahana, 1975; Lawton,
1997; Carp e Carp, 1984; Kodama, 1988).
Especificamente, neste estudo, os resultados
mostram que as seguintes características
ambientais: 1) capacidade de influência no
meio (políticas de escolha); 2) características
organizacionais; 3) grau de apoio canalizado
para os residentes e 4) a noção de conforto
físico, predizem o comportamento do idoso a
residir em contexto institucional. Outras relações encontradas são exemplos interessantes
da influência ambiental na conduta comportamental do idoso.
De facto, as condições do ambiente
predizem a autodeclaração da depressão nos
residentes. É importante salientar que um
ambiente que proporcione a partilha de sentimentos e emoções acaba por ser um meio que
potencia a exteriorização de sentimentos de
tristeza e angústia vividos pelo idoso. Assim,
cada unidade ecológica deve ter em atenção
que, para além de prestarem cuidados formais,
acompanhamento nas actividades de vida
diária (AVD) e nas actividades instrumentais
de vida diária (AIVD), devem assegurar um
ambiente facilitador à exploração afectiva e
emocional do “eu” do idoso.
Outro aspecto importante a salientar diz
respeito à promoção da independência que
acarreta um relacionamento próximo com
o nível de actividades dos residentes no seu
meio habitacional. Como tem sido realçado
por vários autores, a influência de características ambientais num estilo de vida saudável
(tal como o elevado nível de actividades e
independência) conduz à promoção de um
envelhecimento saudável (WHO, 1990). Neste
estudo constatamos que a intenção do idoso
em participar nas actividades sócio-recreativas
e de lazer levadas a cabo na instituição depende
da sua condição física (estado funcional). Por
sua vez, o idoso que participa dinamicamente
é aquele que se sente melhor com o seu estilo de vida e com a sua saúde. Assim, o meio
institucional ao optimizar a independência
dos residentes, dando-lhes oportunidade para
desenvolverem determinadas tarefas (concedendo o tempo necessário para tal), e ao
potenciar a participação nas actividades, está
a contribuir para um processo de envelhecimento activo e, por isso, saudável.
Em relação à saúde percepcionada pelo
idoso institucionalizado concluímos que esta é
compreensível à luz de dois tipos de variáveis,
considerando-se as condições pessoais, queixas
de memória e actividade pessoal, bem como
por condições ambientais, como as características organizacionais do equipamento. Segundo
Little (1988), as expectativas do ambiente social
e a forma como este se apresenta predizem a
saúde subjectiva dos intervenientes ambientais. Assim, salienta-se a importância de uma
boa gestão organizacional, pois esta interfere
no comportamento adaptativo do idoso. É
importante que o equipamento tenha presente esta interacção, porque todos os membros
da equipa institucional contribuem de algum
modo para a percepção de saúde do idoso que
é, por outro lado, um critério crucial para a
saúde e bem-estar do mesmo (Fillenbaum,
1984).
No que diz respeito à interacção entre
dimensões psicossociais, a relação mais
evidente prende-se com o conflito e com
a coesão. Isto significa que o apoio que o
pessoal funcionário despende para os residentes é um factor importante para minimizar
o descontentamento, os comportamentos
agressivos, desafiadores e destrutivos entre os
residentes. Desta forma, apela-se à informação
e ao conhecimento do staff para a pertinência
destas questões, pois o desempenho dos agentes de geriatria contribui para a estabilidade
do ambiente vivido entre os idosos institucionalizados.
Isto significa que o apoio
que o pessoal funcionário
despende para os
residentes é um factor
importante para minimizar
o descontentamento, os
comportamentos agressivos,
desafiadores e destrutivos
entre os residentes.
Posteriormente, estudadas as dimensões do
clima social, constatamos que a avaliação do
conforto bem como da coesão entre residentes
são prenunciadas por outros factores, também
ambientais, ao contrário dos estudos de Izal
(1992), em que as várias dimensões do clima
social eram apenas associadas ao tamanho das
instalações da instituição, e não com outras
características ambientais.
Assim sendo, a avaliação do conforto físico
feito por um idoso institucionalizado depende
do tempo que ele reside na instituição, pois à
medida que o idoso permanece mais tempo
na instituição, mais negativamente avalia os
aspectos físicos do meio onde reside. Por
outro lado, esta mesma avaliação do conforto depende da autopercepção de saúde do
idoso institucionalizado. Isto significa que se
o sujeito se sentir bem com a sua saúde física
e psicológica, tende a estimar melhor o seu
meio físico envolvente. Por fim, a postura activa do sujeito no seu meio residencial também
interfere na sua avaliação de conforto físico.
Desta forma, o idoso que participa activamente na implementação de normas e políticas na
instituição onde reside, avalia mais satisfatoriamente este aspecto físico do ambiente em que
está inserido. Estas relações tornam-se bastante
importantes para percebermos que sendo o
contexto físico sempre o mesmo, a avaliação
deste depende bastante de variáveis temporais,
pessoais e ambientais.
Outra dimensão do clima social, importante
para este estudo, refere-se à coesão observada
em contexto institucional. O desempenho do
pessoal funcionário depende do estado funcional (autonomia) dos residentes e da organização
da instituição. Isto quer dizer que quanto mais
dependentes forem os idosos mais disponibilidade apresenta o pessoal funcionário para o
acompanhamento ao idoso. Este acompanhamento técnico qualificado é importante para
potenciar a independência dos idosos residentes. Estas relações tornam-se cruciais, pois de
alguma forma apelam para a importância da
informação e do conhecimento que o agente de geriatria deve assegurar. Isto porque o
desempenho da sua conduta profissional tem
impacto no idoso ao nível físico e emocional. Outro ponto importante diz respeito à
própria organização da instituição. Ressalva-se
que quanto melhor estiver organizado o equipamento, melhor é gerido este apoio dado aos
residentes em função das suas características
físicas, mentais e emocionais. Assim sendo, os
modelos de gestão de um equipamento para a
terceira idade têm de ter em atenção questões
tão importantes como esta. Uma administração que lide com método e ordem acaba por
promover, de alguma forma, uma intervenção
ajustada aos residentes.
Até agora discutimos algumas relações entre
diferentes tipos de características pessoais e
dimensões ambientais em equipamentos para
125
idosos, que foram consideradas especialmente
relevantes, tendo como base os resultados deste
e de outros estudos. Salienta-se os resultados
do trabalho desenvolvido por FernándezBallesteros (1998), em que se observaram
relações ambientais coincidentes com o estudo
agora desenvolvido. Denote-se que o trabalho desta autora tem uma mais-valia por ser
representativo das residências para idosos em
Espanha e porque, nos seus resultados, acrescem um ponto essencial no que diz respeito
à exploração da variável pessoal – a satisfação
dos idosos.
126
Indubitavelmente, este trabalho não esgota
todas as possibilidades de relações e interacções em contexto institucional. Contudo,
em jeito de conclusão final, gostaríamos de
sublinhar os principais pontos deste estudo.
Primeiro, a importância das relações de diferentes variáveis pessoais nos idosos, realçando
a influência da autopercepção de saúde entre
muitos outros aspectos. Segundo, o poder de
predizer as características ambientais (físicas e
organizacionais) que influenciam a conduta
comportamental do idoso a residir em equipamentos para idosos. Terceiro, a forte relação
entre condições específicas do ambiente institucional.
Resumindo, este estudo tentou explorar a
interacção entre variáveis pessoais e ambientais com contexto institucional para idosos. A
continuidade deste trabalho através de outros
estudos empíricos, com o objectivo de fornecer evidências, proporciona mudanças positivas
nestes contextos e contribui para a promoção
de saúde e bem-estar nos idosos que vivem
nas instituições.
Referências
Baltes, M. M. (1982). Environmental factors in dependency
among nursing home residents: a social ecology analysis.
In: Wills, T.A. ( Ed), Basic Process in Helping Relationship.
Academic Press, New York.
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Próxima Edição
Sandra Morais Cardoso
As células estaminais
e o futuro da medicina
regenerativa
128
As células estaminais são células indiferenciadas com capacidade proliferativa ilimitada
que se podem diferenciar em diversos tipos
celulares em resposta a diferentes estímulos.
A célula estaminal por excelência é o zigoto;
este e as células resultantes das duas primeiras
divisões são células totipotenciais, isto é, células que podem dar origem a um indivíduo,
pois podem diferenciar-se em todos os tipos
celulares do organismo e ainda nas células
que compõem os tecidos extra-embrionários.
Raquel Brito, Teresa Almeida Santos, João
Ramalho-Santos
Criopreservação de ovócitos
e tecido ovárico: implicações
para a fertilidade
É absolutamente necessário discutir com
os doentes oncológicos as opções disponíveis
em termos de fertilidade e de possibilidades
reprodutivas futuras. Esta realidade é particularmente importante nas mulheres jovens
com cancro da mama, antes de proceder a
quimioterapia.
Fábio Salgado, Carla Xavier
Próteses parciais removíveis
acrílicas funcionais
Este trabalho visa dar a conhecer uma
técnica simples que vem incrementar a qualidade funcional das próteses parciais acrílicas,
que são próteses de baixo custo, ainda hoje
muito solicitadas por uma grande maioria da
população.
Maria Júlia Silva Lopes
Percepção da qualidade de
vida dos idosos maiores de
75 anos no concelho de Vila
Nova de Gaia
Estratégias educativas para a
mudança
O envelhecimento populacional constitui
uma realidade e um desafio às sociedades
modernas. A sociedade portuguesa, à
semelhança de outros países, vive alterações
demográficas com reflexos profundos no
tecido social, familiar, laboral e educativo.
Sónia Pereira
Projecto de intervenção
em crianças e adolescentes
obesos
Tratar e investigar a obesidade antes da idade
adulta é extremamente importante, pois
os hábitos e estilos de vida da criança e do
jovem são mais fáceis de mudar do que os
hábitos e estilos de vida do adulto. Além disso,
os jovens sofrem mais a pressão da sociedade
para que fiquem magros e a preocupação
com o peso é maior, pois a gordura impede
que os jovens se sintam integrados no seu
grupo de pares.
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