Violência urbana adquire dimensões de guerra civil

Transcrição

Violência urbana adquire dimensões de guerra civil
Especial
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Violência urbana adquire dimensões de guerra civil
A principal motivação dos jovens das camadas médias, atualmente, é a aquisição de bens
materiais. Sua adesão ao crime tem a ver não só com os apelos ao consumismo,
mas, sobretudo, com a ausência de uma utopia e de projetos coletivos.
Sandra Ortegosa
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A recente onda de violencia
urbana no Rio de Janeiro colocou o Brasil
inteiro em estado de alerta e tornou
evidente o quadro de debilidade política
da sociedade civil, especialmente nos
domínios territoriais das quadrilhas de
traficantes. Carros e ônibus incendiados,
invasões às favelas comandadas por
facções inimigas, arrastões, caos geral os acontecimentos traumáticos que
marcaram o mês de novembro, ganharam
repercussão na mídia mundial (tendo em
vista que o Rio irá sediar a próxima Copa
do Mundo e as Olimpíadas), merecendo
uma reflexão mais profunda sobre suas
causas.
Nos debates cada vez mais
freqüentes em torno da escalada da
violencia nas grandes metrópoles do
mundo inteiro, está se esboçando um
preocupante consenso, tanto por parte
dos intelectuais, como da mídia e do
cidadão comum, quanto à visão de que
esse fenômeno já atingiu as dimensões
de uma guerra civil molecular sem
conteúdo ideológico. Como adverte Hans
Enzensberger, “dela não participam
apenas terroristas e agentes secretos,
mafiosos e skinheads, traficantes de
drogas e esquadrões da morte,
neonazistas e seguranças, mas também
cidadãos discretos que à noite se
transformam em hooligans, incendiários,
dementes violentos e serial killers”.
Esse surto epidêmico de
violencia nos faz pensar que cenas de
filmes como Assassinos por Natureza,
Collors, Cães de Aluguel, Pulp Fiction,
Um Dia de Fúria e Tropa de Elite, entre
tantos outros, há muito deixaram de ser
ficção para se transformarem em
realidades bastante concretas e, de
alguma forma, já vivenciadas por grande
parte dos habitantes de metrópoles como
o Rio de Janeiro, São Paulo ou Los
Angeles. Essas manifestações
descabidas de violencia cotidiana
constituem, sem dúvida, sérios alertas da
relação entre a criminalidade e a
deterioração aguda da qualidade de vida
nas metrópoles, levando um número
crescente de pessoas a buscarem outros
locais mais tranquilos e seguros.
Busca de explicações
As explicações para esse
fenômeno são de diversas ordens, desde
o aprofundamento dos contrastes sociais
e a elevação das taxas de desemprego,
em decorrência dos avanços técnico-
científicos e ajustes ao neoliberalismo;
a crise generalizada dos valores
culturais, éticos e ideológicos; o
desmesurado crescimento urbano; e
todo um quadro de desequilíbrios
psíquicos associado a um aumento
assustador dos níveis de agressividade
individual e coletiva.
Segurança na insegurança
As estratégias de segurança
frente às ameaças decorrentes do
aumento da criminalidade e da
proximidade entre os bolsões de miséria
e riqueza, têm levado ao aparecimento
de uma “estética da violencia”, visível
nas grades pontiagudas, muros, cercas
eletrificadas, guardas, guaritas, câmeras
e outros dispositivos de vigilância que
pontuam, cada vez mais, a paisagem
urbana. Os espaços públicos deixaram
de ser lugares de congregação social,
transformando-se em cenários de pavor
urbano. As pessoas passam pelas ruas
e praças como se estivessem se
arriscando numa missão perigosa, com
bolsas grudadas ao corpo, olhos atentos
em todas as direções e passos
acelerados. Mas todos esses cuidados,
na maioria das vezes, não são
suficientes para evitar os assaltos ou
até mesmo ameaças com armas em
plena luz do dia.
A falta de perspectiva de
emprego numa sociedade cujos valores
se baseiam na capacidade de aquisição
e posse, a frustração e perda de
autoestima, especialmente entre os
jovens, cotidianamente submetidos aos
apelos de consumo e impossibilitados
de concretizar seus sonhos, transmutase em agressividade e delito. O mais
assustador é que as pessoas estão se
matando nas relações de convivência e
pelos motivos mais banais. Mata-se por
pequenas dívidas do tráfico ou por
pequenos roubos para se obter droga,
além de apoiados sob seu efeito. Com
medo da banalidade dos assassinatos,
os moradores desses territórios, onde
a ausência do poder público é absoluta,
enclausuram-se e obedecem à “lei do
silêncio”, submetendo-se às regras das
gangues.
Um fenômeno social
Este fenômeno pode ser
observado também nos índices de
violencia representativa dos guetos de
elite, como os condomínios de luxo,
onde apesar de todo o patrulhamento e
dos gastos com segurança, os filhos
dos condôminos são os próprios
formadores de quadrilha. A falta de
perspectiva desses indivíduos, somada
à confiança num suposto poder absoluto
das famílias influentes, são a alavanca
para o encontro com as drogas e a
delinqüência. A perpetuação de
privilégios dos assassinos e agressores
faz a justiça cair em descrédito,
colaborando para que o jovem agressor
confie ainda mais na impunidade de
seus atos.
A delinquencia infanto-juvenil
resulta, também, do mercantilismo
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antiético do show business, da crise da
família e da desestruturação escolar.
Alguns setores da indústria de
entretenimento, apoiados no conceito
de liberdade de expressão, produzem
programas onde a violencia passou a
ser a diversão mais rotineira (Programa
do Ratinho, Cidade Alerta, Linha Direta,
Leão Livre etc.), subestimando a
influencia da violencia ficcional. A
psicologia explica que a promoção do
sadismo como instrumento de diversão
não produz a sublimação da
agressividade, antes representa um
perigoso incitamento a comportamentos
antissociais. No início de 98, o país se
chocou com a notícia de que, em
Brasília, um garoto de apenas nove
anos havia esfaqueado quarenta vezes
a vizinha de sete anos, após assistir
ao filme “Brinquedo Assassino 2”,
exibido pela SBT.
A miséria, as desigualdades
sociais e o desemprego não são,
portanto, os únicos fatores
responsáveis pela escalada da
criminalidade. A crescente participação
de jovens de classe média em
quadrilhas do crime organizado e em
diversos episódios marcados pela
violencia, denota a erosão de valores na
sociedade contemporânea, pautada,
cada vez mais, no individualismo e
numa concepção de mundo
absolutamente materialista. A principal
motivação dos jovens das camadas
médias, atualmente, é a aquisição de
bens materiais. Sua adesão ao crime
tem a ver não só com os apelos ao
consumismo, mas, sobretudo, com a
ausência de utopia e de projetos
coletivos.
Para concluir, transcrevo aqui
uma frase do Prof. Hermógenes que nos
traz uma centelha de esperança: “o
mundo está chegando num ponto tão
crítico que vai ser obrigado a retomar
um caminho saudável. É preciso
acender a chama do amor no coração
de cada um para resgatar a
humanidade”. De nada adianta reforçar
o policiamento e aperfeiçoar os códigos
penais quando o crime é onipresente e
onisciente. Como afirma Gandhi, “se um
único homem chegar à plenitude do
amor, neutraliza o ódio de milhões”.
Sandra Mara Ortegosa
Organizadora da Feira da Terra
Arquiteta e socióloga pela USP
Phd emAntropologia pela PUC-SP

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