Por uma anatomia das classes de sexo: Nicole

Transcrição

Por uma anatomia das classes de sexo: Nicole
Por uma anatomia das classes de sexo: Nicole-Claude Mathieu ou a
consciência das oprimidas1
Jules Falquet2
(tradução Maíra Kubík T. Mano, revisada pela autora)
Palavras-chave: relações sociais de sexo; antropologia; epistemologia; feminismo; opressão.
É difícil apresentar em algumas páginas a obra de uma intelectual tão importante como NicoleClaude Mathieu3, uma das teóricas mais estimulantes do movimento feminista francês da segunda
onda4. No entanto, diante da irrupção de “perspectivas de gênero”, por vezes pouco teorizadas e mal
dominadas, e da confusão crescente sobre o que é ou deveria ser o feminismo, esta perspectiva
colocada por Mathieu é hoje muito necessária.
Os trabalhos de Mathieu, pioneiros e afiados, relativamente pouco numerosos mas particularmente
densos – testemunhos de uma época em que a qualidade primava sobre a quantidade bibliométrica –
constituem um exemplo de rigor, mas também de audácia intelectual. Essa capacidade de questionar
sem cessar as bases dominantes do pensamento, permitida também pelo clima intelectual de todo
um movimento que ajudou a desafiar até as teorias mais sedimentadas, é ainda mais notável quando
se conhece a falta de abertura ou mesmo a agressividade da intelligentsia francesa no que diz
respeito à teoria feminista.
Antes de nos lançarmos a uma das travessias possíveis de sua obra, convém apresentar alguns
pontos de referência para balizar a viagem.
Três balizas para uma navegação de curso longo
1
Jules Falquet é Maîtresse de conférences HDR em Sociologia na Universidade Paris 7 - Diderot. Email:
[email protected]
2
Artigo publicado com a gentil autorização da Cahiers du Genre e de Jules Falquet. Publicação original em
francês: FALQUET, Jules. ”Pour une anatomie des classes de sexe : Nicole-Claude Mathieu ou la
conscience des opprimé·e·s" [Lecture d'une œuvre], Cahiers du Genre, n° 50, p. 193-217, 2011.
3
Nicole-Claude Mathieu faleceu em Paris em 9 de março de 2014 (N.T.)
4
Agradeço à Nasima Moujoud por nossas conversas sobre esse texto
Lembremos de partida que Nicole-Claude Mathieu possui uma dupla ancoragem disciplinar, na
Antropologia e na Sociologia, o que faz dela uma espécie de “duplo espírito” com capacidades de
percepção ampliadas – se é possível transpor assim a concepção relativa aos berdaches de certas
populações indígenas da América do Norte. Ou, para retomar os termos de sua cúmplice Paola
Tabet, Nicole-Claude Mathieu é uma mulher excepcionalmente “bem armada”, que apreendeu as
ferramentas das duas disciplinas, o que lhe permite desenvolver análises com perspetivas globais,
incluindo tanto as sociedades que qualificamos de não-ocidentais quanto as ocidentais, sem
estabelecer um corte a priori nem exclusivo.
Raramente adotada, essa posição é muitas vezes mal usada. No entanto, Mathieu consegue tirar o
melhor dela. Em primeiro lugar, ela não é dessas pessoas que ignoram soberbamente o que se passa
fora do Ocidente – sua vontade de expandir seu campo de visão é mais interessante ainda se
lembramos que o trabalho de Mathieu precede amplamente a globalização triunfante, com sua
pressão de pensar o mundo como uma “aldeia global” e suas facilidades tecnológicas de acesso à
informação. Mas Mathieu também não é dessas pessoas que estabelecem paralelos ou oposições
apressadas, muito menos de perspectivas “evolucionistas”. Ela de forma alguma ignora as relações
Sul-Norte:
Que a antropologia seja a filha do imperialismo ocidental, não apenas historicamente mais na
ideologia mesma que ela tem em grande parte transmitido por meio de suas descrições
“científicas”, é agora um ponto bastante estabelecido. (1985a, p. 132)
Ela é portanto bastante circunspecta diante de certos impulsos súbitos de retificadoras/es dos
erros:
Atualmente, muitos etnólogos adotam opções abertamente de “defesa” (e não apenas de
ilustração) de culturas minoritárias: denúncia do imperialismo, de genocídios, do fator
neocolonial ou da colonização interior de certas minorias por novas (ou antigas) culturas
nacionais, denúncias de “etnocídio” – a ênfase sendo colocada (o que já fazia parte da etnologia
tradicional) sobre os valores, as organizações socio-políticas e/ou as racionalidades econômicas,
julgadas melhores que as nossas, que produziram certas culturas em vias de desaparecimento
por “nossa” culpa. (id., p. 133)
Voltaremos a isso.
Lembremos a seguir que Mathieu é uma das fundadoras e das principais teóricas de uma das
correntes de pensamento mais ricas do fim do século XX, o feminismo materialista (e mais
particularmente sua componente francófona5), fruto de uma prática política coletiva bem mais
ampla, que se cristaliza em torno das revistas Questions féministes, na França, da qual ela era uma
das organizadoras desde 1977 até a ruptura de 19806, e da Feminist Issues, em Berkeley. Sua
definição do feminismo constitui um ponto de orientação útil:
Eu darei […] à palavra “feminismo” o sentido corrente e mínimo de: análise feita pelas
mulheres (ou seja, a partir da experiência minoritária) dos mecanismos de opressão das
mulheres enquanto grupo ou classe pelos homens enquanto grupo ou classe, nas diversas
sociedades, e a vontade de agir pela sua abolição. Acho que não é aqui o lugar para expor os
debates políticos internos aos movimentos de mulheres no que diz respeito às definições ou
táticas. Mas é útil apontar agora que as mesmas divergências entre políticas “feministas” podem
ser encontradas de país em país, sejam eles desenvolvidos ou não, capitalistas ou não. (1985a, p.
172)7.
Assim, não há “sujeito” único nem essencializado do feminismo, mas um conjunto de
posições sóciopolíticas (o que, junto com Colette Guillaumin e Danielle Juteau, ela chama de
experiência minoritária – cf. Guillaumin, 1981; Juteau, 1981) a partir das quais elabora as análises e
lutas, lutas que não são em nenhum caso monolíticas. Longe de toda “sororidade universal”,
Mathieu ressalta que a classe das mulheres e suas organizações são atravessadas por conflitos, nos
quais ela sempre situou-se claramente, e que não separam o Sul do Norte, nem o capitalismo do
socialismo, mas são o fruto de dinâmicas e de lutas no seio da classe de mulheres e no exterior dela,
para definir as orientações do movimento. Para as feministas materialistas, nem identitarismo, nem
naturalismo, nem irrealismo. Não se trata de defender todas as mulheres ou qualquer mulher, nem
de obter a igualdade ou a paridade, nem de fazer a revolução num lar somente ou num país apenas.
O objetivo é bem mais radical e, sobretudo, radicalmente diferente: como escreveu Monique Wittig
(1969), citada por Mathieu na epígrafe de A anatomia política (L’anatomie politique): “cada
palavra deve passar pelo crivo da crítica” para acabar com a ideologia da “diferença dos sexos” e,
simultaneamente, com os rapports8 sociais de poder e a divisão sexual do trabalho que constituem
as pessoas em mulheres ou homens.
5
Uma das principais características dessa corrente é afirmar que as mulheres não são uma categoria
biológica, mas uma classe social definida por rapports [ver nota 7] sociais de sexo, historicamente e
geograficamente variáveis, centralmente organizados em torno da apropriação individual e coletiva da
classe de mulheres por aquela dos homens, por meio do que Colette Guillaumin (1978, 1992) denominou
sexage (sexagem). Esses rapports são solidamente apoiados no que ela chamou de ideologia da Natureza –
na qual estão subjacentes também os rapports sociais de “raça”.
6
Sobre esse ponto, destacamos Duchen (1986), Fougeyrollas-Schwebel (2005), Bourcier (2007).
7
Grifo meu.
8
A tradução usual de “rapports” para o português é “relações” (de classe, “raça”, sexo etc.), mas optamos
aqui por deixar o termo em francês por compreender que ela não seria suficiente para explicar o pensamento
Terceira baliza: o relativo desconhecimento sobre o trabalho de Mathieu, mesmo tratando-se de
reflexões fundadoras, que conduzam a uma renovação completa do pensamento, e mesmo que ela
tenha sido a primeira a discutir com seriedade os trabalhos de um certo número de “grandes
homens” à respeito dos rapports sociais de sexo. Assim, ela metodicamente debateu os trabalhos de
Bernard Saladin d’Anglure (sobre o sentido da existência de um “terceiro sexo” nos Inuits – 1992)
e de Maurice Godelier (sua teoria do consentimento das mulheres à dominação – 1982), mas
também de Pierre Bourdieu (sua “descoberta” da dominação masculina e seu conceito de violência
simbólica – 1998) e de Claude Lévi-Strauss (sua interpretação da divisão sexual do trabalho, mas
sobretudo da relatividade de seus resultados sobre “a troca das mulheres” em função,
principalmente, de seu enfoque redutor sobre as sociedades patrilineares e virilocais – 1949). Ela
também esteve entre as primeiras na França a reagir as reflexões de Judith Butler sobre o gênero
(Butler 1990).
De fato, seu trabalho não é desconhecido das especialistas, pelo contrário. Seu primeiro artigo, uma
contribuição ao VIIº Congresso mundial de Sociologia, foi publicado em francês e em inglês em
inúmeras revistas, entre elas a International Journal of Sociology. Durante sua carreira, Mathieu
escreveu principalmente no L’Homme, no Bulletin de l’Association française des anthropologues,
no Journal des anthropologues, publicou nas Presses universitaires de France, nas editoras da
EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales) e na Maison des sciences de l’Homme, e
contribui com diversos dicionários. No que diz respeito ao campo feminista, ela co-fundou a
Questions féministes, e seus principais trabalhos foram rapidamente publicados em inglês, nada
menos que seis deles na Feminist Issues. De maneira geral, Mathieu foi traduzida em sete línguas
(espanhol, inglês, alemão, japonês, sérvio-croata, italiano e grego) e foi Doutora honoris causa em
Ciências Sociais na Universidade de Laval, no Quebec (Canadá).
No entanto, suas análises continuam amplamente ignoradas na França, assim como pela grande
maioria das/os autoras/os anglo-saxãs/ões, incluindo-se aquelas e aqueles que se reivindicam da
french theory e do french feminism9. É irônico assistir a vinda (ou a volta) dos Estados Unidos,
simplificados e enfraquecidos por uma ou duas traduções, dos debates de fundo já abordados pelas
materialistas, e aos quais Mathieu tinha contribuído com respostas completas e rigorosas. Essa
constatação questiona as lógicas científicas da Antropologia e da Sociologia, bem como os
da autora. Em francês, “rapports” trata das ligações estruturais da sociedade, em nível macro, enquanto a
expressão “relations”, que também é traduzida “relações” diz respeito às relações cotidianas, em nível micro
(N.T.).
9
Sobre a invenção de um French Feminism nos departamentos de literatura das universidades anglo-norteamericanas, particularmente distante do que são de fato as teorias feministas na França, destacamos Varikas
(1993), Delphy (1996), Jackson (1996).
mecanismos de difusão, transmissão e discussão das teorias feministas. Em todo caso, os trabalhos
de Mathieu constituem uma base historicamente pioneira e particularmente sólida para teorizar as
relações sociais de sexo e para continuar a pensar mais além delas.
Uma epistemologia pioneira
Rapports sociaux de sexe: antes do conceito de gênero e além
A epistemologia é sem dúvida um dos assuntos sobre o qual Mathieu mais trabalhou e de maneira
fundadora ao menos em três pontos.
Seu primeiro artigo, “Notas para uma definição sociológica das categorias de sexo” (“Notes pour
une définition sociologique des catégories de sexe”, 1971), coincide com o começo da segunda
onda do feminismo francês e merece permanecer nos anais como guia programático de Sociologia
aplicada aos rapports sociais de sexo e como exemplo de como o feminismo poderia contribuir para
a Sociologia. Mathieu traça nele um paralelo entre a “classe” ou a “categoria sócio-profissional”,
uma variável sociologicamente reconhecida porque historicamente desnaturalizada depois de muitas
lutas coletivas; a idade, ainda com frequência naturalizada mas tratada de maneira cada vez mais
séria à medida em que a “terceira idade” e a “juventude” tem causado um certo número de
problemas sociais; e por fim, o sexo. Mathieu mostra como essa última categoria, uma das mais
naturalizadas que existe, começa à época a poder ser concebida de maneira sociológica/científica
graças à aparição do movimento de mulheres. Ela insiste igualmente sobre a importância de pensar
as mulheres (até então quase invisibilizadas aos olhos de inúmeros pesquisadores), mas também os
homens (até então tomados como normalidade e modelo neutro da humanidade) como categorias
sociais, e sobretudo sobre a necessidade de estudar essas duas categorias de maneira relacional,
dialética.
O segundo golpe de mestra vem na continuidade do anterior: a partir de seu artigo seguinte,
publicado em 1973, Mathieu coloca “os sexos como produtos de um rapport social” (Mathieu,
1991, p. 43). Ao permitir pensar que o sexo não tem nada de biológico, ela faz com que uma parte
das francófonas se distancie das perspectivas anglo-saxãs que estavam em desenvolvimento na
linha de Margaret Mead (que tinha mostrado a relatividade cultural dos “papéis sociais” de sexo) e
da britânica Ann Oakley, que propõe, em 1972, reagrupar esses papeis arbitrários no conceito
“gênero”, para diferenciar-lhes do “natural”, o sexo. Não há nada disso em Mathieu, para quem o
conceito de rapports sociais de sexo permite fazer tanto a economia do sexo como do gênero – dois
conceitos intrincados – e com a vantagem de nomear claramente os rapports sociais e, portanto, de
colocar a questão do poder. Essas propriedades notáveis do conceito de rapports sociais de sexo
explicam porque o de gênero se impôs tardia e parcialmente na França. Paralelamente, se o conceito
de rapports sociais de sexo não foi exportado, apesar de suas qualidades, é porque existe em inglês,
espanhol ou português um só termo em vez de dois, para designar de uma vez os rapports sociais e
as relações sociais, o que leva à confundir os níveis micro (relações sociais, interações entre
indivíduos, mais facilmente negociáveis e modificáveis) e macro (rapports sociais, invisíveis à olho
nu e muito estáveis fora das lutas coletivas). Pode ser isso que explique a dificuldade de certas/os
teóricas/os do continente americano de aproveitar plenamente a perspectiva feminista materialista
francófona.
Antropologia das mulheres, antropologia feminista e ponto de vista situado
Em 1985, um vasto trabalho de síntese sobre a mulheres e a Antropologia feito por Mathieu para a
Unesco oferece referências epistemológicas importantes (Mathieu, 1985b). Ela traça os primórdios
da Antropologia das mulheres e da Antropologia feminista, mostrando suas continuidades e suas
profundas diferenças: como na História ou na Sociologia, é preciso fazer com que as mulheres
apareçam, mas “acrescentá-las” é amplamente insuficiente se não estudamos, dialéticamente, os
rapports sociais entre mulheres e homens. Acima de tudo, como ela disse ao retomar Edholm,
Harris e Young (1977) e preocupando-se sempre com os dois lados da relação antropológica:
Não se trata realmente de procurar as mulheres “atrás” das formas sociais manifestas, mas de
ver nas estruturas sociais estudadas o significado de sua ausência (acrescentarei que é preciso
ver também as estruturas das sociedades que produzem a etnologia). (Mathieu, 1985b, p. 126)
Nesse texto particularmente pedagógico, ela apresenta sistematicamente os “grandes antropólogos”
estruturalistas, funcionalistas e marxistas, para logo apresentar as contribuições críticas das
antropólogas feministas sobre os mesmos debates. Como vimos, esse diálogo com os trabalhos de
seus pares é uma constante em Mathieu, que refletiu muito sobre o que ela chama de a
“consciência”10 e que outros mais recentemente denominaram “ponto de vista situado”. Para
Mathieu, trata-se de contribuir para a construção da “ciência das/os oprimidas/os” anunciada por
Wittig, Guillaumin e Juteau. Assim, para uma plena compreensão dos rapports sociais de sexo, ela
recomenda ler e escutar as mulheres, que por ter uma experiência direta de dominação são as
10
No sentido marxiano e coletivo mais que psicológico e individual, mesmo se ela não descarte analisar os
sonhos das mulheres (Mathieu 1985c).
melhores conhecedoras de seus efeitos – o que bell hooks não desmentiu (1981). Contudo, ela
preconiza também uma leitura atenta dos homens, mesmo que os textos deles sejam impregnados de
um viés androcêntrico, já que enquanto dominantes eles são suscetíveis de oferecer uma melhor
compreensão dos mecanismos que lhes permitem dominar – uma posição não separatista que
Barbara Smith poderia aprovar (1983).
Androcentrismo e etnocentrismo: a crítica das sociedades ocidentais
Bem antes dos debates sobre sexismo e racismo que acompanharam a lei de 2004 sobre a interdição
dos símbolos religiosos na escola11, ao lançar um olhar crítico sobre as posições da antropologia
francesa diante da excisão, Mathieu propôs, em diversos artigos12, reflexões agudas não somente
sobre o etnocentrismo e suas ligações estreitas com o androcentrismo, mas também sobre o que
essas duas atitudes, juntas, mascaram nas sociedades estudadas, mas também e sobre tudo nas
sociedades ocidentais.
Em um texto com o belo título de “Mulheres do Eu, mulheres do Outro” (“Femmes du Soi, femmes
de l’Autre”), Mathieu ressalta que:
Com frequência, as mulheres ocidentais (etnólogas ou não) que insistem sobre a opressão física,
econômica e mental das mulheres de um grande número de sociedades são acusadas de se meter
em assuntos ‘interiores’ de outros grupos ou povos; elas são acusadas de etnocentrismo, de
imperialismo e até mesmo de racismo. (Mathieu, 1987, p. 606)
Mas em realidade:
a) Tem mulheres nas sociedades em questão, por exemplo africanas, que se opõem às
mutilações e à opressão […] e não se trata apenas de “valores modernos” […] b) as feministas
primeiro denunciaram a barbárie do Ocidente em relação às suas próprias mulheres (entre outras
a cliteridectomia do século XIX e a episiotomia do século XX, a escravidão sexual etc.)
contrariamente aos colonialistas e aos racistas que só denunciam a barbárie dos outros. (id., p.
606)
Depois dessa útil recordação, ela acrescenta:
11
Na França, em 2004, foi aprovada uma lei que proíbe o uso, inclusive em vestimentas, de símbolos
religiosos nas escolas públicas do país. (N.T.)
12
Cf. Mathieu (1985b), (1987), (1993), (1995a).
Dissociar a noção de minoritária da noção de “mulher” nas outras culturas permite (pela
acusação de etnocentrismo) negar um problema do qual os/as etnólogos/as fazem parte em sua
própria sociedade: o androcentrismo resultando dos rapports de poder entre os sexos. […] Em
breve, falar de ingerência nos “assuntos interiores” de outras sociedades consiste, no que diz
respeito aos sexos, de uma parte a se recusar em pensar em nossas questões internas; de outra
parte e correlativamente, a continuar dissimulando uma realidade fundamental das sociedades
estudadas (id., p. 607).
Enfim, sem falsa culpabilidade, ela especifica em um outro texto:
Eu acredito que as acusações de etnocentrismo feitas contra aquelas que insistem sobre a
opressão das mulheres pelos homens em sociedades outras são justamente um novo avatar,
culpabilizado, do próprio etnocentrismo: considerar as sociedades ocidentais como “à parte”
sob o pretexto que oprimem as outras… (1991, p. 125)
Acusa-se muito hoje as feministas “brancas” de julgar tudo em termos de valores “ocidentais” ou
“burgueses” e de querer “universalizar” umas categorias ou experiências muito específicas. Isso
está claro no feminismo liberal – dentro do qual estão as instituições internacionais e muitas
organizações não-governamentais – e é ainda observável com frequência nas correntes “socialistas”
e “radical” (que de resto estão longe de serem compostas unicamente de “brancas”, “ocidentais” ou
de burguesas”). No entanto, Mathieu está em outra parte. No seu trabalho, não se trata de
universalizar, nem de guiar quem quer que seja, mas de pensar as diferenças e as semelhanças entre
as sociedades ditas não ocidentais e aquelas ditas ocidentais:
Parece mais esclarecedor reconhecer que, na maioria dos casos, existe, no que concerne o poder
dos homens sobre as mulheres, o “viriarcado”13, uma similitude estrutural entre nossas
sociedades e as outras – para além de conteúdos específicos […]. Esse caráter de proximidade
quanto aos rapports de sexo entre sociedades ocidentais e outras sociedades – especialmente
patrilineares, patrivirilocais e fortemente viriarcais (que representam mais de 80% das
sociedades conhecidas e sobre as quais são baseadas a maior parte das teorizações etnológicas)
– produz por vezes cegueiras e empatias entre as/os pesquisadoras/as e as/os etnólogos. (id., p.
125-126).
É graças à essa compreensão que Mathieu nos propõe suas análises mais apaixonantes.
Uma análise global mas não universalizante das ligações entre anatomia e economia política
Corpos que importam: a anatomia política
13
Trata-se de um conceito forjado por Mathieu para fazer referência ao poder dos homens enquanto pessoas
do sexo masculino, mais que como pais ou patriarcas – o conceito de patriarcado parecia-lhe insuficiente.
Depois de L’arraisonnement des femmes14 (que ela coordena em 1985), o livro que reúne apenas
artigos de Mathieu tem sido publicado graças à editora Côté-femmes, na coleção “Recherches”
(1991), que também publicou uma seleção muito útil de trabalhos de Colette Guillaumin (1992). O
título da obra de Mathieu é um programa por si mesmo: A anatomia política. Categorizações e
ideologias do sexo (L’anatomie politique. Catégorisations et idéologies du sexe). Prova de que as
materialistas não ignoram, de maneira nenhuma, o corpo, que há muito tempo importa para Mathieu
e que é, para ela, um construto social (modificável e modificado). Mas a originalidade de Mathieu
em relação àquelas que vêm depois é que ela constata muito claramente que, apesar de todas as
transformações do corpo, desvios [déviations] ou resistências, como ela conclui na penúltima
página de seu livro, “na base e embaixo da escala dos gêneros achamos sim as fêmeas: o sexo
social ‘mulher’” (id., p. 266). Mathieu não tem, no entanto, nada de vitimista: a última página de A
anatomia política apresenta a foto de uma mulher de 90 anos que carrega nas mãos duas armas com
as quais ela “capturou um ladrão que quis roubá-la na sua casa” (id., p. 267). Assim as mulheres,
mesmo na vulnerabilidade de uma idade avançada, podem resistir às agressões de maneira concreta,
direta, violenta e não unicamente simbólica. Entre as ferramentas para a transformação dos rapports
sociais de sexo, Mathieu nos mostra bem mais a arma de fogo do que a gravata.
Diversidade nas maneiras de conceber a articulação sexo, gênero e sexualidade
Para Mathieu então, a anatomia (construída) importa muito. No entanto, o mais importante é a
diversidade sociocultural e histórica das interpretações que são feitas dessa anatomia, como ela
demonstra em seu artigo magistral “Identidade sexual/sexuada/de sexo? Três modos de
conceitualização do rapport entre sexo e gênero”15. Nele, ela responde a Saladin d’Anglure,
segundo quem a existência de um “terceiro sexo” na sociedade inuit invalidaria a binariedade dos
gêneros e dos sexos – enfraquecendo a teoria da opressão das mulheres. Mathieu analisa essa
“descoberta” a partir do análises de numerosas outras práticas “desviantes”, individuais ou
coletivas, permanentes ou ocasionais, que dizem respeito à sexualidade, ao gênero ou ao sexo – que
um pensamento um pouco ingênuo ou ocidentalocêntrico qualificaria hoje, despreocupadamente,
sem contextualização suficiente, de queer. Ela demonstra então que numerosos casos de
14
Título de difícil tradução. “Arraisonnement" pode ser tanto no sentido ser voltada razoável, como
de prender, de amarrar, ancorar. Seria algo como O aprisonamento das mulheres. (N.T.)
15
É a partir de 1982, durante o Xº Congresso Mundial de Sociologia, no México, que Nicole-Claude
Mathieu apresenta os fundamentos desse trabalho. Ele foi publicado em 1989 em Daune-Richard, Hurtig e
Pichevin, e depois em A anatomia política (L’anatomie politique, 1991).
transgressão são, na realidade, mecanismos institucionalizados de adequação que não colocam em
questão a norma e, sobretudo, que não existe uma só maneira de conceber a articulação entre sexo,
gênero e sexualidade (a concepção ocidental dominante atualmente), mas três:
- Modo I: Identidade “sexual”, baseada sobre uma consciência individualista do sexo.
Correspondência homológica entre sexo e gênero: o gênero traduz o sexo;
- Modo II: Identidade “sexuada”, baseada sobre uma consciência de grupo. Correspondência
analógica entre sexo e gênero: o gênero simboliza o sexo (e vice-versa);
- Modo III: Identidade “de sexo”, baseada sobre uma consciência de classe. Correspondência
sociológica entre sexo e gênero: o gênero constrói o sexo (Mathieu, 1991 [1989]. p. 231).
Dessa maneira, Mathieu permite analisar três pontos cruciais. O primeiro é que nesse caso também,
as clivagens não passam entre sociedades ocidentais e não ocidentais, mas no próprio seio de cada
sociedade. Por exemplo, se o modo II é mais característico das sociedades ditas tradicionais,
alinham-se nele também certas correntes lésbicas ou feministas ocidentais (certas feministas
socialistas na Grã-Bretanha, a tendência “luta de classes” na França). As lésbicas políticas como
Wittig e as feministas materialistas como Tabet estão, por sua vez, convencidas do modo III, ao
qual aderem igualmente grupos de mulheres em luta na China ou em Serra Leoa. Já toda uma parte
dos movimentos homossexuais e lésbicos, mas também queer e trans, são fundados sobre uma
adesão inconsciente ao modo I, que é o mais naturalista – e o mais frequente nas sociedades
ocidentais. Enfim, as transgressões (reais ou supostas) do sexo, do gênero ou da sexualidade não
resolvem o problema de fundo, a saber, que as fêmeas são em todo caso quase sempre colocadas
embaixo na escala social16. É por isso que os movimentos homossexuais, sob hegemonia masculina,
não são naturalmente aliados dos movimentos feministas e lésbicos, que lutam em primeiro lugar
pelos interesses da classe de mulheres. Mathieu também nos lembra que o problema da classe de
mulheres não é tanto a definição arbitrária dos gêneros ou a obrigação às práticas sexuais
heterossexuais (consequências sociais da apropriação), mas sua inferioridade proclamada em
relação à classe dos homens, a obrigação à maternidade social e, sobretudo, a negação quase total
do
16
acesso
aos
recursos.
Mathieu destaca especialmente o exemplo de berdaches de sexo feminino, que mesmo que consideradas
socialmente como homens, podem ser estupradas e são, com frequência, vistas como tendo menos técnica e
menos poderes espirituais que os berdaches de sexo masculino (1991, p. 263-264).
“Eu prefiro problematizar a economia política do gênero em vez de simplemente turvar-lo”
[“Je préfère clarifier lʼéconomie politique du genre que le “troubler” à lʼéconomie"]17
Mathieu também escreveu sobre a cultura popular “ocidental”, publicando em 1994 um artigo sobre
Madonna, “Derivas do gênero/estabilidade dos sexos” (“Dérives du genre/stabilité des sexes”,
1994). Em um momento de grande debilidade do movimento feminista na França, ela critica o
pósmodernismo que está em desenvolvimento no outro lado do Atlântico, sua linguagem abstrusa e,
sobretudo, seu projeto de “atrapalhar o gênero”18 – notadamente os trabalhos de Judith Butler, então
praticamente desconhecida na França. De fato, o que começava a retornar à França, impregnado da
glória e da consagração do establishment universitário norte-americano, sob o nome de french
feminism e french theory, e que alimentará uma parte da “terceira onda” e principalmente o
movimento queer, não é outra coisa que o que sempre foi criticado pelo feminismo materialista, a
saber, um discurso filosófico-psicanalítico apoiado, do lado masculino, sobre Jacques Lacan,
Jacques Derrida e Michel Foucault, e do lado feminino, sobre a tríade muito pouco feminista, Julia
Kristeva, Hélène Cixous e Luce Irigaray19.
Nesse artigo, Mathieu se mostra respeitosa das palavras da artista – uma mulher, de origem
popular – citando uma passagem de uma entrevista de Madonna (em que esta afirma que nada
conhece do movimento das mulheres mas que luta por ser reconhecida como ser humano). Contudo,
ela não se mostra loucamente entusiasta com o travestimento da cantora nem com suas
performances cênicas plurirraciais e bissexuais, as quais, se fascinam certas/os universitárias/os,
dificilmente enganam as jovens dos meios populares, assim como o explica Mathieu. Essas, com
efeito, observam atentamente os espetáculos para “saber o que agrada aos homens”, mas sabem,
pertinentes, que na sua vida real essas fantasias fariam com que elas fossem imediatamente tratadas
como “putas”. Em sua análise, Mathieu não apenas demostra sua reflexão feminista materialista,
mas também uma sólida consciência de classe social: não nos esqueçamos que é “para Alice
Cartier, operária aos 13 anos” (sua avó) a quem está dedicado A anatomia política. E é isso a que
Mathieu conclama obstinadamente, muito mais que perturbar individualmente o gênero, é preciso
17
Mathieu (1994, p. 67). Mathieu faz um jogo de palavras com a tradução francesa do titulo do livro de
Butler « Trouble dans le genre » (« Problemas de gênero/Gender trouble »). Em francês, « trouble »
significa menos problematizar e mais turbar, atrapalhar.
18
De novo, Mathieu joga com os vários sentidos de “Gender trouble” (NT).
19
Como sabemos, apenas a última se reivindica do feminismo. Sobre a crítica do feminismo da “diferença”,
sugerimos, por exemplo, o editorial do primeiro número da revista Questions féministes (1977).
esclarecer coletivamente a “economia política do sexo”, um projeto que ela estabelece em linha
direta com a análise inicial de Gayle Rubin20.
As ferramentas e as armas contra o arraisonnement
A consciência das/s dominadas/os: uma ‘esquizofrenia’ constitutiva e potencialmente política?
Um dos textos mais conhecidos de Mathieu é, provavelmente, “Quando ceder não é
consentir…” (“Quand céder n’est pas consentir…”)21, em que ela analisa magistralmente os
determinantes materiais da consciência das/os dominadas/os a fim de contestar a ideia de
Godelier segundo a qual as mulheres “consentiriam” à sua situação. Ela também critica com
vivacidade o termo “dominação”, utilizado pelos majoritários que não deixam de se sentir
lisonjeados por serem “dominantes”, e descartado pelas/os minoritárias/os, para quem esse
termo confunde a compreensão:
A palavra “dominação” chama atenção para os aspectos relativamente estáticos, de “posição
acima”, tal como a montanha que domina; de “autoridade” e de “maior importância”. Enquanto
que o termo opressão implica e insiste sobre a ideia de violência exercida, de excesso, de
sufocamento […]. (1991 [1985], p. 236).
Vejamos três pontos importantes desse artigo. O primeiro, o peso dos determinantes
materiais, corporais da consciência, e mais particularmente do esgotamento físico crônico das
mulheres, aliado à desnutrição generalizada, sobre o qual Mathieu é uma das raras a ressaltar. A
segunda evidência a ser notada acaba sendo frequentemente silenciada: a divisão desigual da
“cultura” segundo o sexo. Mathieu nos faz lembrar em alto e bom tom que as mulheres geralmente
não tem acesso às mesmas informação sobre a “sua” cultura que os homens – seja no acesso à
alfabetização, à educação científica ou sexual, ou aos conhecimentos religiosos, filosóficos ou
esotéricos. Uma lembrança fundamental diante do crescimento dos nacionalismos, sejam
majoritários ou minoritários: Mathieu nos permite pensar que as mulheres não teriam que ser
20
A tradução de Mathieu do artigo de Rubin “The traffic in women: Notes on the ‘political economy’ of
sex” de 1975 é publicada em 1998 sob o título de “A economia política do sexo: transações sobre as
mulheres e sistemas de sexo/gênero” ("L économie politique du sexe : transactions sur les femmes et
systèmes de sexe/genre"). Cahiers du CEDREF, n 7. Mathieu também traduziu Gail Pheterson (Le
prisme de la prostitution, Paris, L Harmattan, 2001).
21
Publicado em 1985 em O aprisionamento das mulheres (1985a) e reproduzido em A anatomia política
(1991).
obrigadas a se alinhar a um campo ou a outro, já que “seus” próprios homens lhes excluem em geral
da definição, da plena participação e da possibilidade de encarnar a versão mais legítima de “sua”
cultura. Terceiro elemento importante: a explicação, no caso das mulheres, daquilo que outras
pessoas começaram a teorizar simultaneamente para “raça” ou na perspectiva da imbricação entre
sexo e “raça”, e que eu proponho chamar de esquizofrenia legítima e política das minorias. Mathieu
traz o exemplo das expectativas sociais diferentes sobre mulheres e homens durante certas
cerimônias de escarificação nas quais tem que se demonstrar coragem diante da dor (o ideal
“cultural” é : aguentar). Ora, se os homens tem que provar uma resistência máxima, as mulheres
devem se autolimitar, porque se elas demonstrarem “demasiada” coragem, elas serão consideradas
como futuras esposas más (se aguentam a dor, os golpes não terão efeito sobre elas). Em outros
termos, as mulheres devem aderir aos valores dominantes de “sua” sociedade, sabendo ao mesmo
tempo ficar “em seu lugar”, ou inclusive incarnando simultaneamente o contrário de tudo o que é
considerado como masculino e que constitui geralmente o ideal cultural. Ser e não ser: o problema é
complexo. Para solucioná-lo, muitas minorias desenvolvem uma espécie de esquizofrenia,
emocionalmente extenuante, por vezes patógena, mas que pode levar a uma lucidez individual
particularmente acentuada e tornar-se uma verdadeira base epistemológica para a luta coletiva,
como bem ressalta a teórica chicana Gloria Anzaldúa em sua análise da “consciência da Mestiça”,
assim como mulheres e feministas negras como, bell hooks e Patricia Hill Collins a propósito do
“privilégio epistêmico” das mulheres e das feministas negras, ou ainda Paul Gilroy em sua análise
da “dupla consciência” enraizada na experiência da escravidão22.
Bourdieu: riso e raiva com os “grandes homens”
Quinze anos depois da brilhante refutação, por Mathieu, do conceito de dominação, a qual ele
parece totalmente ignorar, Pierre Bordieu faz um grande sucesso com seu fino livreto A
dominação masculina (La domination masculine, 1998), que retoma um artigo já publicado
muito antes, em 1990, nos Actes de la recherche en sciences sociales. Se o sucesso desse livro
explica-se facilmente por sua brevidade, sua benignidade para com os dominantes e a
notoriedade do autor, trata-se, como demonstra Mathieu em um artigo publicado no ano
seguinte na revista Temps modernes (1999), de um trabalho de uma insustentável leviandade
22
Cf. Anzaldúa (1999 [1987]), hooks (1981, 1984), Hill Collins (1990), Gilroy (2003 [1993]).
científica. Com um humor corrosivo, Mathieu salienta a que ponto a publicação do grande
homem escapa às regras mínimas do trabalho científico23.
Sabemos que, para além da fragilidade do conceito de dominação, é sobretudo o conceito de
violência “simbólica” desenvolvido por Bourdieu que é problemático. Como socióloga bem
informada, Mathieu não pode deixar de destacar o imenso peso da violência real, material,
exercida contra as mulheres pelos homens, analisada durante já muitas décadas pelas
feministas e que a pesquisa nacional oficial ENVEFF (Ênquete nationale sur les violence
envers les femmes en France / Pesquisa nacional sobre as violências contra as mulheres na
França) confirmará em 2002 (cf. Jaspard et al. 2003). E enquanto Bourdieu apresentava o
amor como possível remédio à dominação masculina, com uma ingenuidade e uma ignorância
impressionantes para um cientista da sua idade e da sua categoria, a pesquisa ENVEFF
lembrará também que a violência contra as mulheres é exercida com mais frequência na
família, por pessoas que teoricamente as amam.
Enfim, lembremos as oito críticas dirigidas por Mathieu ao aluno Bourdieu, que seria
imediatamente reprovado se aplicássemos a seu trabalho os critérios científicos clássicos. 1)
Não citação de autoras importantes que tem trabalhado sobre o tema (como Françoise
Héritier, sua colega no Collège de France, mas também Christine Delphy, Colette Guillaumin,
Paola Tabet); 2) Referência rápida a certos grandes autores, deformando sua teoria (Claude
Lévi-Strauss); 3) Referência a certas autoras com alusões distorcidas às suas teorizações ou
sem alusão teórica e acerca de um detalhe (Gayle Rubin, Gail Pheterson); 4) Alusão, sem
citação do autor, a certas teorias diretamente relacionadas ao sujeito (Maurice Godelier); 5)
Polvilhar de referências (anglo-saxãs, principalmente); 6) Ter recorrido provavelmente a
notas de segunda mão (confundindo e misturando a Jeanne Favret-Saada com Nicole-Claude
Mathieu); 7) Utilizar um título abusivo e enganador para sua obra (“A parte simbólica
incorporada da dominação masculina” teria sido mais exato); e, por fim, 8) “ao trabalho do
candidato falta rigor técnico, metodológico e deontológico. Ele peca pelo pensamento, pela
ação, pela omissão e pela distorção. O conjunto é para ser interpretado como uma recusa a
dar lugar à confrontação entre diferentes análises, o que dá à sua tese um estatuto de
asserção, e não de demonstração” (Mathieu, 1999, p. 298). Agrega essa observação, que
poderia se aplicar a numerosos outros trabalhos: "Podemos nos perguntar se não se trata […]
de uma demonstração particularmente chamativa da dominação masculina, que redobra a
opressão das mulheres pela supressão ou a distorção das suas experiências e de suas análises”
(id.).
23
Podemos também aproveitar a leitura de Fougeyrollas-Schwebel (1993), Louis (1999), Devreux (2010).
Longe do viriarcado e do matriarcado: quando as filhas são uma benção
Nos últimos anos, Mathieu publicou principalmente artigos de síntese e de esclarecimento
conceitual. Entre eles, assinalamos uma clara crítica ao conceito de matriarcado (2004),
particularmente útil para encurtar discussões inúteis sobre o “poder oculto” das mulheres e o
espectro da inversão de papéis. Mathieu deplora a instrumentalização de um conjunto de
práticas supostamente “matriarcais” em certas sociedades para fins ideológicos ou mesmo
turísticos. Sobretudo, ela se volta para dois pontos-chave: o primeiro, que nós não
conhecemos sociedades “matriarcais” onde os homens seriam tratados como as mulheres o
são nas sociedades viriarcais. Em nenhum lugar no tempo e no espaço existe uma simetria na
brutalidade da opressão a que uns/umas submetem as/os outras/os. Segundo, essa simetria
não é de maneira nenhuma, nem o passado glorioso, nem o futuro radiante que reivindica o
feminismo materialista, para o qual o objetivo não é inverter a opressão, senão abolir os
rapports sociais de sexo viriarcais.
Esse texto constitui também uma espécie de introdução à grande obra a qual Mathieu se
dedicou durante a última década, co-editada com a jovem antropóloga Martine Gestin: Uma
casa sem filha é uma casa morta. A pessoa e o gênero nas sociedades matrilineares e/ou
uxorilocais (Une maison sans fille est une maison morte. La personne et le genre en sociétés
matrilinéaires et/ou uxorilocales, 2007).
Esperada há muito tempo, essa obra constitui uma luz na cegueira da Antropologia clássica
(de mais de 500 páginas): por mais surpreendente que possa parecer, além de Alice Schlegel
(1972), que havia trabalhado com 66 sociedades matrilineares, ninguém tinha ainda analisado
sistematicamente e de maneira comparativa as sociedades uxorilocais24. Estas representam
7% das 565 sociedades reconhecidas na World ethnographic sample de 1957 – mas elas
constituem 20% das sociedades na África, um quarto no Pacífico e chegam a um terço na
América do Norte. Quais são as razões para tal cegueira? Notaremos que, justamente, sem
constituírem “matriarcados”, essas sociedades são menos desiguais que as outras do ponto de
vista dos rapports sociais de sexo, ao tempo que são historicamente anteriores ao modo de
24
Sociedade onde os recém-casados se instalam na casa da família da esposa ou próximos dela. Do latim:
uxor=esposa
produção capitalista e que se situam fora do mundo ocidental – quem adora tanto acreditar
estar na dianteira dos “avanços” da igualdade dos sexos.
A obra reúne 15 autoras/es analisando 14 sociedades extremamente diversas – com
matrilinearidade ou uxorilocalidade mais ou menos forte, variações no grau de envolvimento
na sociedade nacional e pesos demográficos variados25. Uma boa metade são ainda vigorosas e
uma delas, a sociedade Ngada da Indonésia, constitui um dos raros casos conhecidos de
passagem da patriniliaridade virilocal à matrinilearidade uxorilocal (o inverso é geralmente
apresentado como a evolução “natural” das sociedades). As sociedades matrilinares e
sobretudo uxorilocais são particularmente interessantes por pelo menos quatro razões:
• A matrilinearidade coloca estruturalmente a produção das filhas na continuidade do grupo
que funda a identidade individual da sociedade;
• o poder masculino é mais fraco que nas sociedades patrilineares;
• eventualmente, a matrilocalidade reforça a matrilinearidade;
• enfim, a uxori-matrilocalidade reforçaria a consciência de grupo sexuado entre as mulheres
graças à sua estabilidade territorial.
As aberturas teóricas contidas nessa obra são apaixonantes e impossíveis de serem resumidas
aqui. Contudo, ressaltaremos quatro. A primeira, sobre os fundamentos da opressão.
Geralmente se pensa que as religiões, em especial as monoteístas, reforçam o poder dos
homens sobre as mulheres. Mas no livro, achamos informações sobre populações
cristianizadas ou islamizadas, em que o destino das mulheres parece bastante invejável. Por
outro lado, constatamos que religiões e mitos podem de fato constituir uma importante fonte
de poder para as mulheres – sempre e quando elas se organizam para ficar com o monopólio
sobre a religiões. É o caso (muito raro, é verdade) da população Kavalan (Taiwan), onde por
muito tempo os homens foram rigorosamente excluídos do contato com as forças do além,
sendo que as práticas xamânicas eram estritamente um privilégio das mulheres. Nos mitos de
origem Kavalan ou naqueles das populações próximas, um pai mata seu filho por indolência, e
tambem dois irmãos matam seu pai: a morte do pai não é o pilar da exogamia que funda o
laço social, mas “a negação da transmissão do poder e dos objetos materiais ou das riquezas
entre um pai e seus filhos” (p. 394). Assim:
25
A sociedade Minangkabau, em Sumatra, conta com cerca de 3 milhões de pessoas.
O grupo de homens é privado da apropriação e da acumulação das riquezas. Além disso,
não são nem uma unidade de produção, nem uma unidade de consumo. Eles não caçam
nem pescam coletivamente no âmbito das classes de idade (p. 395)
Essas observações ajudam a compreender: 1) que mitos e religiões não tem sistematicamente
um impacto negativo sobre as mulheres; mas 2) que combinados com outros elementos de
organização de uma sociedade, têm um papel importante para privar de poder certos grupos
sociais.
A segunda pergunta teórica que o livro coloca tem a ver com o que esta em jogo na opressão:
será realmente e unicamente a obtenção de um sobretrabalho por parte dos grupos
dominados, para o lucro dos grupos dominantes? Diversos artigos demonstram que mesmo
nas sociedades em que seu estatuto é bem melhor que em outras, a quantidade de trabalho
que as mulheres têm que realizar é considerável – como na sociedade Na, na China, onde a
ociosidade dos homens é notória. Trata-se aqui de uma pista contra-intuitiva, a ser explorada.
A terceira pista é aquela do questionamento dos “fundamentos” da Antropologia, nesse caso a
“troca das mulheres”, à qual Martine Gestin consagrou um longo posfácio. Em primeiro
lugar, essa “troca” está longe de ser universal, como havia pensado Lévi-Strauss. Chantal
Collard já tinha demonstrado que as mulheres podem ser “trocadoras ativas”, mesmo em
sociedades patrilineares (Collard, 2000). Mas as sociedades analisadas na obra abrem
horizontes ainda mais vastos. Não apenas as mulheres podem serem “trocadoras” ativas, mas
sobretudo, o papel sociocultural fundamental atribuído pela Antropologia à troca
matrimonial merece ser relativizado. Assim, na população Kavalan, a circulação de riquezas
durante as trocas matrimoniais tem um papel menor comparado às trocas anuais de
alimentos durante a festa de iniciação xamânica das mulheres. O que é significativo nesse caso
para os rapports sociais de sexo, é que as mulheres sejam operadoras nessas duas redes de
troca.
Enfim, Uma casa sem filha lança uma nova luz sobre a articulação dos rapports sociais de sexo,
“raça” e classe (ainda que este não seja seu propósito central). Por exemplo: que é que
acontece com as uniões “mistas” entre mulheres de sociedades matrilineares ou uxorilocais
(geralmente dominadas na sociedade global) e homens de sociedades patrilineares e virilocais
(geralmente dominantes)? Como funcionam tais alianças matrimoniais onde, estruturalmente,
as desigualdades de “raça” e sexo não caminham na mesma direção? Uma outra questão
quente é aquela da co-extensividade (ou não) dos rapports de sexo e de classe. Vide os
Minangkabau, de Sumatra, onde as linhagens socialmente dominantes às vezes fazem uniões
assimétricas (entre um homem de categoria superior e uma mulher de linhagem inferior).
Nesse caso:
Para pagar o preço elevado do noivo, as mulheres de posição mediana estabelecem uma
relação de serviço com as mães ou as irmãs de seu marido de categoria superior,
constituindo uma reserva de mão-de-obra (mais frequentemente sob o modo de parceria).
[Aqui, no entanto] a matrilinearidade e a matrilocalidade, que colocam claramente as
mulheres do lado das riquezas, impedem que se imponha na troca matrimonial a
coextensão dos rapports de gênero e dos rapports de classe. (2007, p. 461).
Esse exemplo de institucionalização de um tipo de união matrimonial em que as desigualdades de
linhagem vão em sentido inverso das desigualdades de sexo abre muitas possibilidades de reflexão.
No final de nossa travessia, constatamos que a obra pioneira de Nicole-Claude Mathieu vai nos
alimentar por muito tempo ainda. A partir de 1973, a sua afirmação que os sexos são uma
construção social permite sair do impasse ao qual as correntes dominantes do “gênero” parecem ternos conduzido, onde, reagindo à ideia de que feminino e masculino seriam essências ou identidades
naturais, chegamos a analisá-los como pura ficção. A perspectiva dos rapports sociais de sexo
revela-se, nesse sentido, muito mais heurística que a do gênero. Falta, certamente, aprofundá-la, em
especial no domínio da co-formação dos rapports sociais de poder (de “raça” e classe
especialmente). Tomara que isso seja feito, na perspectiva aberta por Mathieu, partindo das/os
oprimidas/os elas/eles mesmas/os, a fim de estabelecer, a partir da sua consciência, uma verdadeira
ciência, não tanto sobre as/os oprimidas/os mas para colocar fim à opressão.
Publicações de Nicole-Claude Mathieu citadas no artigo
Para consultar a bibliografia completa de Nicole-Claude Mathieu acesse:
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