Capitulos vol-02.p65

Transcrição

Capitulos vol-02.p65
Capítulo CXV
Peppino
No mesmo momento em que o barco a vapor do conde desaparecia atrás do
cabo Morgiou, um homem, viajando em diligência de posta pela rota de Florença
a Roma, acabara de ultrapassar a pequena vila de Aquapendente. Ele rodava
bastante rápido para avançar pela estrada, sem todavia se tornar suspeito.
Usando um capote, ou melhor, um sobretudo, que a viagem tornara
infinitamente amarrotado, mas que deixava entrever, ainda brilhante e nova, uma
fita da Legião de Honra, decoração repetida em seu costume; este homem, não
apenas pelo duplo sinal, mas igualmente pelo sotaque com que falava aos cocheiros,
demonstrava ser um francês. Uma outra prova de que nascera no país da língua
universal, era que ele sabia algumas palavras em italiano, palavras utilizadas na
música, e igualmente universais.
Allegro! Dizia ele aos cocheiros, a cada subida.
Moderato! Exclamava a cada descida.
E somente Deus sabe quantas subidas e descidas existem indo de Florença a
Roma, pela rota de Aquapendente!
Estas duas palavras, de qualquer maneira, faziam rir muito as pessoas a quem
eram dirigidas.
Na presença da cidade eterna, isto é, chegando a Storta, ponto de onde se
percebe Roma, o viajante não experimentou nenhum sentimento de curiosidade
entusiasta que faz com que cada estrangeiro se erga do seu assento para tentar
perceber o famoso domo da basílica de São Pedro, que se percebe muito bem,
antes de se avistar qualquer outro detalhe da cidade.
Não, ele apenas tirou uma carteira do bolso, e de lá sacou um papel, dobrado
em quatro, que desdobrou e desamassou com uma atenção semelhante ao respeito,
contentando-se em dizer:
Bom! Eu ainda o tenho.
A viatura franqueou a porta Del Popolo, virou à esquerda e parou diante do
Hotel d’Espagne.
O senhor Pastrini, nosso antigo conhecido, recebeu o viajante na soleira da
porta de entrada, com o chapéu na mão.
O viajante desceu, ordenou um bom jantar, informando-se sobre o endereço
da firma Thomson & French, o que lhe foi informado imediatamente, já que esta
firma era uma das mais conhecidas de Roma.
Ela situava-se na Via Dei Banchi, perto da basílica de São Pedro.
Em Roma, como em todos os lugares da Europa, a chegada de uma viatura da
posta era um acontecimento notável. Dez jovens descendo pela rua Marius,
descalços, braços cruzados, mas com os punhos cerrados, olhavam o viajante, a
carruagem da posta e os cavalos; a estes moleques de rua juntaram-se uns cinqüenta
desocupados dos Estados de Sua Santidade, daqueles que ficam rondando pelas
pontes, cuspindo na água, quando o Tibre tem água.
Ora, como estes jovenzinhos de Roma, mais felizes do que os de Paris,
conhecem todas as línguas, e especialmente a francesa, escutaram o viajante
pedir um apartamento, um jantar, e finalmente perguntar pala firma Thomson &
French.
Disso resultou que quando o recém chegado saiu do hotel com o cicerone de
praxe, um homem destacou-se do grupo dos curiosos, e sem ser notado pelo viajante,
sem parecer ter sido percebido pelo guia, caminhou poucos passos atrás do
estrangeiro, seguindo-o com tanta desenvoltura quanto poderia ter um agente
policial parisiense.
O francês estava tão apressado em visitar a casa Thomson & French que não
esperara a troca de cavalos na carruagem; a viatura deveria encontra-lo no caminho,
ou aguardar diante da porta do banco.
Chegaram sem que a carruagem os reencontrasse.
O francês entrou, deixando o guia no saguão; este, imediatamente começou a
conversar com dois ou três industriais sem indústria, ou melhor, de mil indústrias,
que permanecem em Roma diante das portas dos bancos, das igrejas, das ruínas, dos
museus e dos teatros.
Ao mesmo tempo em que o francês, o homem que se destacara do grupo de
curiosos também entrou; o francês tocou a campainha e penetrou no primeiro
aposento; sua sombra o seguiu.
É a firma Thomson & French? Indagou o estrangeiro.
Uma espécie de criado levantou-se, ao sinal de um empregado de confiança,
guardião solene do primeiro escritório.
E a quem devo anunciar? Perguntou o criado, preparando-se para caminhar à
frente do estrangeiro.
O senhor barão Danglars, respondeu o viajante.
Siga-me, disse o criado.
Uma porta se abriu; o criado e o barão desapareceram por esta porta.
O homem que entrara depois de Danglars sentou-se num sofá do aposento.
O funcionário continuou a escrever por uns cinco minutos, pouco mais ou
menos; durante estes cinco minutos, o homem sentado guardou o mais profundo
silêncio, e a mais estrita imobilidade.
Em seguida a pluma do funcionário cessou de gritar sobre o papel: ergueu a
cabeça, olhou atentamente ao seu redor, e depois de ter se assegurado de estarem a
sós, exclamou:
Ah! Ah! Você aqui, Peppino?
Sim, respondeu laconicamente o homem.
Você farejou alguma coisa de bom com este gordão?
Não existe grande mérito nisso, fomos avisados.
Ah! Então você sabe o que ele veio fazer aqui, seu curioso?
Por Deus! Ele vem beliscar algum; apenas resta sabe quanto...
Você vai saber logo, logo, amigo.
Muito bom! Mas não vá fazer como no outro dia, em que me deu uma
informação furada!
O que está dizendo, do que está falando? Indagou o funcionário, seria daquele
inglês, que levou daqui três mil escudos num dia?
Não, esse estava com os três mil escudos, e nos os encontramos. Estou falando
daquele príncipe russo.
E então?
E então que você nos informou dizendo que ele tinha trinta mil libras, e
encontramos apenas vinte e duas mil!
Ora! Retrucou o funcionário, vocês não procuraram direito!
Foi o Luigi Vampa em pessoa quem revistou o homem.
Nesse caso ele deve ter pago alguma dívida...
Um russo?
Ou gasto o dinheiro...
É possível, no fim das contas.
Com certeza; mas...deixe-me ir ao meu observatório, o francês já pode ter
terminado a transação, e eu não saberei a quantia.
Peppino fez um gesto afirmativo, e tirando um rosário do bolso, pôs-se a
resmungar algumas preces, ao passo que o funcionário desaparecia pela mesma
porta que dera passagem ao criado e ao barão.
Ao final de dez minutos, aproximadamente, o funcionário reapareceu, radiante.
E então? Perguntou Peppino ao seu amigo.
Alerta! Alerta! Exclamou o empregado do banco, a soma é enorme!
Cinco a seis milhões, não é mesmo?
Sim. Mas como é que você conhece a quantia?
É um recibo de sua excelência, o conde de Monte Cristo.
Você conhece o conde?
A quantia foi creditada aqui em Roma, Veneza e em Viena.
Isso mesmo! Espantou-se o funcionário; como é que você sabe tantos detalhes?
Já lhe disse que fomos antecipadamente avisados.
Mas...então, por que está perguntando para mim?
Para ter a plena certeza de que este é o nosso homem.
O sujeito está montado no dinheiro...cinco milhões...uma bela quantia, hein,
amigo Peppino?
Sim.
Jamais teremos tanto dinheiro!
Ao menos, respondeu filosoficamente Peppino, tiraremos algumas lasquinhas.
Calado! Lá vem o homem, pediu o funcionário.
O bancário retomou a pluma, e Peppino o seu rosário; um escrevia, o outro
rezava quando a porta se abriu.
Danglars reapareceu, radiante ele também, acompanhado do banqueiro, que o
conduziu até a porta da saída do estabelecimento.
Atrás de Danglars saiu Peppino.
De acordo com o combinado, a viatura aguardava diante do banco. O cicerone
abriu a portinhola; estes guias se prestam a todo o tipo de serviço.
Danglars saltou para o seu interior, ligeiro como um homem de vinte anos.
O cicerone fechou a portinhola e subiu para a boleia, junto do cocheiro.
Peppino subiu para o banquinho de trás da carruagem.
Sua excelência gostaria de ir ver a basílica de São Pedro? Indagou o guia.
E para que? Respondeu o barão.
Diabo! Para ver!
Não vim a Roma para ver, retrucou Danglars em voz bem alta; em seguida,
murmurou, sorrindo com seu risinho cúpido: vim aqui para receber!
E, efetivamente, bateu no bolso onde estava a carteira, na qual acabara de
guardar uma carta.
Então sua excelência quer ir...?
Ao hotel.
Casa Pastrini, ordenou o guia.
E a viatura partiu, rápida como uma carruagem de gente rica.
Dez minutos depois o barão entrava em seu apartamento, e Peppino instalarase num banco ao lado da entrada do hotel, após ter dito algumas palavra junto à
orelha de um destes descendentes dos antigos romanos, que já assinalamos no
começo deste capítulo; o homem imediatamente tomou o caminho do Capitólio,
com toda a velocidade de suas pernas.
Danglars estava cansado, satisfeito, e tinha sono; assim, deitou-se, colocou a
carteira debaixo do travesseiro e dormiu imediatamente.
Desta maneira, Peppino tinha muito tempo; ficou jogando com alguns
desocupados, perdeu uns três escudos, e para se consolar, bebeu uma bela garrafa de
vinho tinto de Orvietto.
Na manhã seguinte, Danglars acordou tarde, embora tivesse ido dormir cedo;
afinal, havia cinco ou seis noites em que dormia mal, muito mal, quando dormia.
Tomou um copioso café da manhã, e pouco interessado, como ele mesmo
dissera, em ver as belezas da cidade eterna, ordenou seus cavalos de posta atrelados
à carruagem lá pelo meio dia.
Danglars, no entanto, fizera o pedido sem contar com as formalidades da polícia
e a preguiça do encarregado dos cavalos.
Os cavalos chegaram apenas às duas da tarde, e o cicerone trouxe o passaporte
com o visto apenas às três.
Todos estes preparativos tinham atraído para a frente da porta de mestre Pastrini
um bom número de moleques.
Os descendentes dos antigos romanos também compareceram.
O barão atravessou triunfalmente estes grupos, que o chamavam de excelência,
afinal sua aparência e carruagem lhe concediam esta deferência.
Como Danglars, homem do povo, como sabemos, sempre se contentara em ser
chamado de barão até aquele momento, e ainda não fora chamado de excelência,
este título o envaideceu, e distribuiu uma dezena de moedas a toda esta canalha,
muito pronta, por tantas moedas, a trata-lo como Alteza.
Qual a direção? Perguntou o cocheiro, em italiano.
O caminho de Ancona, respondeu o barão. Mestre Pastrini traduziu a resposta,
e a viatura partiu a galope.
E efetivamente, Danglars pretendia passar em Veneza, pegar uma parte da sua
fortuna, depois de Veneza ir para Viena, onde concluiria a retirada do dinheiro.
Sua intenção era se fixar nesta última cidade, tinham-lhe assegurado que era
uma cidade de prazeres intensos.
Apenas percorrera três léguas na região rural de Roma, a noite começou a cair;
Danglars não acreditara ter partido tão tarde, pois senão teria permanecido no
hotel; perguntou ao cocheiro quanto faltava para chegar à próxima cidade.
Non capisco! Respondeu o homem.
Danglars fez um movimento com a cabeça, como querendo dizer:
Muito bem!
A carruagem continuou seu caminho.
Na primeira parada, eu pernoitarei, disse o barão a si mesmo.
Danglars ainda experimentava um restinho do bem estar que sentira no dia
anterior, e que lhe permitira ter uma noite tão bem dormida. Estava
confortavelmente instalado numa carruagem inglesa, com amortecedores duplos;
sentia-se embalado pelo galope de dois bons cavalos; a muda seria dali a sete
léguas, como fora informado no hotel. O que faz um banqueiro quando conseguiu
uma feliz bancarrota?
Danglars sonhou uns dez minutos com sua mulher em Paris, outros dez minutos
com sua filha correndo o mundo com a senhorita d’Armilly; concedeu mais outros
dez minutos aos seus credores e com a maneira como empregaria o dinheiro dos
coitados; em seguida, nada mais tendo no que pensar, fechou os olhos e dormiu.
Contudo, algumas vezes sacudido por um obstáculo mais forte do que os outros,
Danglars reabria os olhos; então ele se sentia conduzido com a mesma velocidade
através daquela mesma paisagem campestre em volta de Roma, toda recortada
com aquedutos quebrados, mais parecendo gigantes de granito petrificados junto
da estrada. No entanto, a noite era fria, sombria, chuvosa, e para um homem como
ele era melhor permanecer no fundo do assento, olhos fechados, do que meter a
cabeça para fora da portinhola e indagar onde estava, a um cocheiro que apenas
sabia responder uma coisa:
Non capisco!
Assim, Danglars continuou a dormir, dizendo a si mesmo que acordaria na hora
da troca de cavalos.
A carruagem parou; Danglars pensou que finalmente chegara a lugar seguro.
Reabriu os olhos, olhou através da vidraça da portinhola, esperando estar numa
cidade qualquer, ou ao menos numa vila; todavia, ele percebeu apenas uma espécie
de clareira isolada, e três ou quatro homens, indo e vindo, como sombras.
Danglars esperou um momento pelo cocheiro, que acabara o seu trajeto, e
certamente viria reclamar o dinheiro devido; contava aproveitar a ocasião para
indagar alguma coisa sobre o novo cocheiro; mas os cavalos foram desatrelados e
substituídos, sem que pessoa alguma viesse pedir-lhe dinheiro. Danglars, espantado,
abriu a portinhola; contudo, uma vigorosa mão o empurrou de volta, e a carruagem
continuou seu caminho.
O barão, estupefato, acordou totalmente.
Eh! Gritou ele ao cocheiro, eh! Mio caro!
Ainda era o italiano de romances lidos que Danglars havia retido, quando sua
filha cantava duetos com o príncipe Cavalcanti.
Porem o mio caro não respondeu.
Danglars abaixou o vidro da portinhola.
Ei, amigo! Para onde estamos indo? Perguntou ele, colocando a cabeça para
fora da carruagem.
“Dentro la testa”! Gritou uma voz grave e imperiosa, acompanhada por um
gesto ameaçador.
Danglars compreendeu imediatamente que “dentro la testa” significava: enfie
a cabeça de volta. Como notamos, ele fazia rápidos progressos na língua italiana.
Obedeceu, não sem inquietação, e como esta inquietação aumentava minuto
a minuto, ao fim de alguns instantes seu espírito, no lugar do vazio que assinalamos
quando se colocou a caminho, e que o fizera adormecer, seu espírito, dizíamos,
encontrou-se repleto de pensamentos próprios a manter alerta o interesse de um
viajante, especialmente um viajante na situação de Danglars.
Seus olhos tomaram nas trevas este grau de atenção que as emoções fortes
comunicam à pessoa num primeiro momento, e que posteriormente deixam tantas
lembranças amargas. Antes de ter medo, a pessoa enxerga bem; quando se tem
medo, a pessoa enxerga duas vezes melhor, e muitas vezes fica perturbada.
Danglars viu um homem envolto num capote, a galope num cavalo, ao lado
da carruagem.
Deve ser algum policial! Resmungou para si mesmo; será que fui denunciado
pelas autoridades francesas, pelo telégrafo, à policia pontifical?
Resolveu sair desta angústia, indagando:
Para onde vocês estão me levando?
“Dentro la testa”, repetiu a mesma voz, com o mesmo tom ameaçador.
Danglars voltou-se para a portinhola da esquerda.
Um outro homem a cavalo galopava ao lado da carruagem.
Decididamente, disse Danglars a si mesmo, decididamente fui preso!
Assim falando, jogou-se contra o assento da carruagem, desta vez não mais para
dormir, mas para sonhar.
Um instante após a lua apareceu no céu.
Do fundo da carruagem mergulhou o olhar no campo, revendo aqueles enormes
aquedutos, fantasmas de pedra, que observara anteriormente; apenas que, ao invés
de os ver à direita, agora os via à esquerda.
Compreendeu que tinham feito meia volta e o reconduziam até Roma.
Oh! Infeliz que sou! Murmurou para si mesmo, conseguiram minha extradição!
A viatura continuou sua carreira com uma assustadora velocidade. Uma hora
se passou, porque a cada novo indício de sua passagem, o fugitivo reconhecia, sem
dúvida alguma, que o reconduziam a Roma. Finalmente ele viu uma massa sombria,
contra a qual lhe pareceu que a carruagem iria bater. No entanto, a viatura desviou,
passando ao lado desta escura e enorme massa, que não era senão parte das muralhas
envolvendo Roma.
Oh! Oh! Resmungou o barão, não estamos entrando na cidade; assim, não é a
justiça que me prendeu. Bom Deus! Poderia ser...
Seus cabelos eriçaram-se.
Lembrou então as interessantes histórias dos bandidos romanos, quase lendas
em Paris, e que Albert de Morcef contara à senhora Danglars e Eugenie, quando
discutiam se o jovem visconde seria genro de uma e marido da outra.
Ladrões, talvez, murmurou ele.
De repente a carruagem rolou sobre um pavimento mais duro do que a estrada
de terra. Danglars arriscou um olhar para os dois lado da estrada; percebeu
monumentos de forma estranha, e seu preocupado pensamento em relação à narrativa
de Morcef, que ainda estava viva na memória, disse-lhe que devia estar na via
Ápia.
À esquerda da viatura, numa espécie de vale, via-se uma escavação circular.
Era o circo de Caracalla.
A uma ordem do homem galopando à direita da carruagem, ela se deteve.
Ao mesmo tempo a portinhola da esquerda abriu-se.
“Scindi”, comandou uma voz.
Danglars desceu no mesmo instante; ele não falava o italiano, mas já o entendia.
Mais morto do que vivo, o barão olhou ao seu redor.
Quatro homens o rodeavam, sem contar o cocheiro.
“Di qua”, disse um dos quatro homens, descendo um pequeno declive,
conduzindo da via Ápia até o meio destas desiguais fendas da campanha de Roma.
Danglars seguiu seu guia sem discussão, nem precisou se voltar para saber estar
sendo seguido de perto pelos outros três homens.
Contudo, pareceu-lhe que cada um desses homens parava, como sentinelas, à
distâncias mais ou menos iguais.
Após cerca de dez minutos de caminhada, durante a qual o barão não trocou
uma palavra sequer com seu guia, ele encontrou-se diante de um campo de grama
alta; três homens, de pé e mudos, formavam um triângulo, do qual ele era o centro.
Pretendeu falar, mas sua língua enroscou-se no medo.
“Avanti”, ordenou a mesma voz de acento breve e imperativo.
Desta vez Danglars compreendeu duplamente: compreendeu pela palavra, e
pelo gesto do homem caminhando atrás, empurrando-o tão rudemente que bateu
de encontro ao seu guia.
Este guia era o nosso amigo Peppino, que se enfiou pelo meio da grama alta por
uma sinuosidade que apenas as fuinhas e os lagartos poderiam reconhecer como
um caminho seguro.
Peppino deteve-se diante de um rochedo encimado por um molho de arbustos;
esta rocha, entreaberta como uma pupila, deu passagem ao jovem homem, que por
ali desapareceu, como desaparecem nas profundezas os diabos de nossos contos de
fadas.
A voz e o gesto daquele que seguia Danglars convidaram o banqueiro e seguir
o exemplo. Não havia mais qualquer dúvida: fora raptado por bandidos romanos.
Danglars agiu como um homem colocado entre dois perigos terríveis, e a quem
o medo torna corajoso. Apesar do seu avantajado ventre, mal arranjado para
penetrar nas fendas dos campos de Roma, ele enfiou-se atrás de Peppino, deixandose deslizar, e, fechando os olhos, caiu de pé.
Ao tocar o solo, reabriu os olhos.
O caminho era largo, mas negro. Peppino, pouco cuidadoso em se esconder,
agora que estava em seus domínios, bateu a pederneira, e acendeu uma tocha.
Dois outros homens desceram atrás de Danglars, formando a retaguarda,
empurrando Danglars quando ele hesitava; em breve o conduziram, por uma descida
suave, a uma espécie de praça, de sinistra aparência.
Com efeito, os buracos na muralha, cavados em círculos superpostos uns aos
outros, pareciam, no meio das pedras brancas, abrir olhos negros e profundos, que
se percebe nas cabeças dos mortos.
Uma sentinela deu um tapa na coronha de sua carabina.
Quem vem lá? Perguntou o homem.
Amigo! Amigo! Respondeu Peppino. Onde está o capitão?
Lá, disse a sentinela, mostrando por sobre seu ombro uma espécie de grande
salão, cavado na rocha, e cuja luz se refletia no corredor, por pequenas aberturas.
Bela presa, capitão, bela presa, anunciou Peppino, em italiano.
E agarrando Danglars pela aba do seu colete, conduziu-o até uma abertura,
semelhante a uma porta, por onde se entrava no salão onde o capitão parecia ter
feito o seu alojamento.
Este é o homem? Perguntou o capitão, que estava lendo atentamente a vida de
Alexandre, narrada por Plutarco.
Ele mesmo, capitão, ele mesmo.
Muito bem, mostre-o melhor.
Atendendo a esta ordem, Peppino aproximou tão bruscamente sua tocha do
rosto do banqueiro, que este recuou vivamente, para não ter as sobrancelhas
queimadas.
Este rosto perturbado oferecia todos os sintomas de um terror pálido e horrível.
Este homem está fatigado, disse o capitão, conduzam-no ao seu leito.
Oh! Murmurou Danglars, entendendo a ordem, este leito é provavelmente um
desses buracos cavados na muralha; o sono é a morte que um desses punhais que eu
vejo brilhar à luz da tocha vai me procurar!
E realmente, das profundas sombras do imenso salão viam-se erguer, sobre seus
leitos de grama seca e de peles de lobo, os companheiros deste homem, que Albert
de Morcef encontrara lendo os “Comentários” de César, e Danglars reencontrava
lendo a vida de Alexandre.
O banqueiro soltou um gemido surdo e seguiu o guia; não tentou rezar ou
gritar. Não tinha mais forças, nem vontade, nem coragem, nem sentimento: ele ia
porque o empurraram.
Caminhou um pouco, e compreendendo que havia uma escada diante de si,
abaixou-se instintivamente, para não bater a testa no teto, e encontrou-se diante
de uma cela talhada em plena rocha.
Esta cela era limpa, apesar de sem móveis, seca, apesar de estar debaixo da
terra, numa profundidade que ele não conseguia calcular.
Um leito, preparado com capim seco, recoberto de peles de cabra, estava
estendido num dos cantos do local.
Danglars, percebendo o leito, acreditou ver nele um símbolo confiável para
sua saúde.
Oh! Deus seja louvado! Resmungou, afinal, é uma cama de verdade! Era a
segunda vez, em menos de uma hora, que ele invocava o nome de Deus; tal coisa
não lhe acontecera nos últimos dez anos.
“Ecco”, apontou o guia.
E empurrando Danglars para dentro da cela, fechou a porta atrás de si.
Um ferrolho rangeu; Danglars era um prisioneiro.
De qualquer maneira, mesmo sem ferrolho, mesmo sem porta, seria preciso ser
São Pedro e ter como guia um anjo do céu, para passar pelo meio da guarnição que
dominava as catacumbas de Saint Sebastien, acampada ao redor do seu chefe, no
qual nossos leitores certamente reconheceram o famoso Luigi Vampa.
Danglars também reconhecera o bandido, cuja existência não quisera aceitar
quando Morcef tentou autenticar em Paris. Não apenas o reconhecera, mas também
a cela, na qual Morcef fora encerrado, e que, segundo todas as probabilidades, era
o aposento destinado aos estrangeiros.
Estas lembranças, sobre as quais Danglars se estendia com uma certa alegria,
davam-lhe tranqüilidade. No momento em que não o mataram imediatamente,
pensou, os bandidos não tinham a menor intenção de liquida-lo.
Tinham-no detido para rouba-lo, e como não possuía consigo senão alguns
poucos luizes de ouro, certamente pediriam resgate.
Lembrou-se de que Morcef fora taxado em alguma coisa como quatro mil
escudos; ora, como sua aparência era muito mais próspera e importante do que a de
Morcef, ele mesmo fixou em seu espírito um resgate em torno de oito mil libras.
Ainda restariam para ele cinco milhões, pouco mais ou menos.
Com isto qualquer pessoa vive muito bem em qualquer lugar do mundo,
refletiu o banqueiro.
Assim, com a quase certeza de se livrar do incômodo, caso eles não soubessem
da enorme quantia de que era possuidor, Danglars estendeu-se sobre o seu leito,
onde, após ter se virado algumas vezes, dormiu, com a tranqüilidade do herói de
quem Luigi Vampa estudava a história.

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