educação e filosofia

Transcrição

educação e filosofia
EDUCAÇÃO
E FILOSOFIA
Reitor: Lourisvaldo Valentim da Silva; Vice-Reitora: Adriana dos Santos Marmori Lima
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I
Diretora: Carla Liane N. dos Santos
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC – Coordenador: Eduardo José Fernandes Nunes
GRUPO GESTOR
Editora Geral: Tânia Regina Dantas
Editora Executiva: Liége Maria Sitja Fornari
Coordenadora Administrativa: Noélia Teixeira de Matos
Carla Liane N. dos Santos (DEDC I), Eduardo José Fernandes Nunes (PPGEduC), Adailton Ferreira dos Santos, Walter
Von Czekus Garrido, Maria Nadija Nunes Bittencourt, Lynn Rosalina Gama Alves (Suplente), Tatiana Santos Borba
(representante discente)
Conselheiros nacionais
Antônio Amorim
Universidade do Estado da Bahia-UNEB
Ana Chrystina Venâncio Mignot
Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ
Betânia Leite Ramalho
Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN
Cipriano Carlos Luckesi
Universidade Federal da Bahia-UFBA
Dalila Oliveira
Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG
Edivaldo Machado Boaventura
Universidade Federal da Bahia-UFBA
Edla Eggert
Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS
Elizeu Clementino de Souza
Universidade do Estado da Bahia-UNEB
Jaci Maria Ferraz de Menezes
Universidade do Estado da Bahia-UNEB
João Wanderley Geraldi
Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP
José Carlos Sebe Bom Meihy
Universidade de São Paulo-USP
Liége Maria Sitja Fornari
Universidade do Estado da Bahia-UNEB
Maria Elly Hertz Genro
Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS
Maria Teresa Santos Cunha
Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC
Nádia Hage Fialho
Universidade do Estado da Bahia-UNEB
Paula Perin Vicentini
Universidade de São Paulo-USP
Robert Evan Verhine
Universidade Federal da Bahia - UFBA
Tânia Regina Dantas
Universidade do Estado da Bahia-UNEB
Walter Esteves Garcia
Associação Brasileira de Tecnologia Educacional / Instituto
Paulo Freire
Conselheiros internacionais
Adeline Becker
Brown University, Providence, USA
Antônio Gomes Ferreira
Universidade de Coimbra, Portugal
António Nóvoa
Universidade de Lisboa- Portugal
Cristine Delory-Momberger
Universidade de Paris 13 – França
Daniel Suarez
Universidade Buenos Aires- UBA- Argentina
Ellen Bigler
Rhode Island College, USA
Edmundo Anibal Heredia
Universidade Nacional de Córdoba- Argentina
Francisco Antonio Loiola
Université Laval, Québec, Canada
Giuseppe Milan
Universitá di Padova – Itália
Julio César Díaz Argueta
Universidad de San Carlos de Guatemala
Mercedes Villanova
Universidade de Barcelona, España
Paolo Orefice
Universitá di Firenze - Itália
Coordenadores do n. 39: Prof. Dr. Adailton Ferreira dos Santos e Prof. Dr. Luciano Costa Santos
Revisão: Luiz Fernando Sarno; Tradução/revisão: Profa. Dra. Valquíria C. M. Borba; Capa e Editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh
(“A Luz”, de Carybé – Escola Parque, Salvador/BA); Secretária: Dinamar Ferreira. Bibliotecária: Maura Icléia C. de Castro.
REVISTA FINANCIADA COM RECURSOS DA PETROBRAS S.A.
Revista da FAEEBA
Educação
e Contemporaneidade
Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
Revista do Departamento de Educação – Campus I
(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)
Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural. Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.
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deve ser dirigida à:
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
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- BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)
- Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação
- EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP
- Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação
- Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.
www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html
- CLASE - Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca
Latinoamericana - Universidade Nacional Autônoma do México:
E-mails: [email protected] e [email protected] / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx
- INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la Recherche
Scientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr
- IRESIE - Índice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Instituto de
Investigaciones sobre la Universidad y la Educación - México)
- Latindex (Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el
Caribe, España y Portugal)
- SEER - Sistema Eletrônico de Editoração de Periódicos
Pede-se permuta / We ask for exchange.
Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade / Universidade do
Estado da Bahia, Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun.,
1992) - Salvador: UNEB, 1992Periodicidade semestral
ISSN 0104-7043
1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título. CDD: 370.5
CDU: 37(05)
Tiragem: 1.000 exemplares
SUMÁRIO
9
Editorial
10
Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA Educação e Contemporaneidade
EDUCAÇÃO E FILOSOFIA
15
Apresentação
Adailton Ferreira dos Santos e Luciano Costa Santos
19
Entre a educação e a Filosofia: aspectos históricos da Filosofia da Educação como disciplina acadêmica e campo de investigação
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
31
Natureza da Educação e Filosofia da Educação
Maria Judith Sucupira da Costa Lins
41 Educação e Filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na Educação
Básica – considerações polilógicas
Dante Augusto Galeffi
55
Filosofia, filósofo, professor de Filosofia
Izilda Johanson
63 O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética
Fátima Maria Nobre Lopes
73
A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de Sartre
Cássio Donizete Marques
85
Emmanuel Levinas: Educação e interpelação ética
Antônio Sidekum
95
O ato de caminhar e a Educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau
Jordi Garcia Farrero
105 A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire
Jorge Miranda de Almeida
117 O não saber socrático e a Educação: o desafio de aprender a pensar
Giorgio Borghi
129 La Filosofía y la Cultura ante la globalización
Alejandro Serrano Caldera
139 Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo
Roberto Bartholo Jr
151
Identidad y Educación
Renato Huarte Cuéllar
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 1-250, jan./jun. 2013
159 A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo
Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz
171 Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos
Alvino Moser; Daniel Soczek
183 Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na História da Ciência
Fumikazu Saito
195 A importância do ensino de Ciências da Natureza integrado à História da Ciência e à
Filosofia da Ciência: uma abordagem contextual
Adailton Ferreira dos Santos e Elisa Cristina Oliosi
205 O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna
Luciano Costa Santos
ESTUDOS
217 A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina
Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt
229 O processo de formação de conceitos na perspectiva vigotskiana
Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes; Elieuza Aparecida de Lima
RESUMOS DE TESES E DISSERTAÇÕES
241 O tempo escolar e o encontro com o outro: do ritmo à simultaneidade
Ana Sueli Teixeira de Pinho
242 Macabéas às avessas: trajetórias de professoras de Geografia da cidade na roça – narrativas sobre docência e escolas rurais
Mariana Martins de Meireles
243 Normas para publicação
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 1-250, jan./jun. 2013
CONTENTS
11
Editorial
12
Themes and Terms to Submit Manuscript for the Next Volumes of Revista da FAEEBA Education and Contemporaneity
Education and Philosophy
15
Presentation
Adailton Ferreira dos Santos e Luciano Costa Santos
19
Education and philosophy: historical aspects of philosophy of education as an academic discipline and an investigative field
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
31
Nature of education and philosophy of education
Maria Judith Sucupira da Costa Lins
41
Education and philosophy: philosophizing as a transdisciplinary formativeactivity for basic education - polylogical considerations
Dante Augusto Galeffi
55
Philosophy, philosopher, professor of philosophy
Izilda Johanson
63 The double aspect of education: way of estrangement constitution or way of estrangement overcoming through ethics
Fátima Maria Nobre Lopes
73 Education - between the individual and the collective according to Sartre´s critique of dialectical reason Cássio Donizete Marques
85
Emmanuel Levinas: Educação e interpelação ética
Antônio Sidekum
95
The act of walking and education: 300 years after Rousseau´s birth
Jordi Garcia Farrero
105 Education as ethics and ethics as education in Kierkegaard and Paulo Freire
Jorge Miranda de Almeida
117 The not-knowing socratic and education: the challenge of learning how to think
Giorgio Borghi
129 Philosophy and culture in the face of globalization Alejandro Serrano Caldera
139 Untying the imagination: brief notes on ethics and criticism in the contemporary world
Roberto Bartholo Jr
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 1-250, jan./jun. 2013
151
Identidad y Educación
Renato Huarte Cuéllar
159 The school and the seven complex lessons: reflecting on innovative advances in education
Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz
171 Philosofy for children: a brief reflection
Alvino Moser; Daniel Soczek
183 “Continuity” and “discontinuity”: the process of constructing scientific knowledge in the history of science
Fumikazu Saito
195 The importance of teaching integrated Natural Sciences, History of Science and Philosophy of Science: a contextual approach
Adailton Ferreira dos Santos e Elisa Cristina Oliosi
205 Fruitful thought: elements for a transmodern rationality
Luciano Costa Santos
217 Ethos Transformation in The West of Santa Catarina
Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt
229 The process of formation of concepts in a vygotskyan perspective Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes; Elieuza Aparecida de Lima
241 The school time and the encounter with other: from the rhythm to the concurrency
Ana Sueli Teixeira de Pinho
242 Macabéa in reverse: the trajectories of Geography teachers from the city to the countryside – narratives of teaching and rural schools
Mariana Martins de Meireles
247 Instructions for publication
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 1-250, jan./jun. 2013
Pensar a Educação no plano filosófico e a Filosofia no plano educacional é um desafio a ser enfrentado nos tempos atuais marcados pela fragmentação e pelo pragmatismo
utilitarista. A Filosofia, se considerada como um pensar radical sobre o ser da Educação,
instiga a indagação sobre a natureza do ato educativo, as possibilidades da educação como
projeto de hominização, e as condições históricas do educar nas diversas temporalidades.
A Educação, compreendida em perspectiva mais alargada do que a educação formal e
institucionalizada, trata de processos de construção de subjetividades comprometidas
com determinados projetos de mundo. O nascimento biológico por si não é suficiente
para inserir o sujeito no mundo da cultura, no qual a educação tem função instituidora.
A natureza das problematizações sobre Educação enquanto formação humana remete
ao pensamento de Martin Heidegger, quando ele evidencia a ocorrência de uma mutilação do pensamento na modernidade por conta do gigantismo utilitarista e pragmático do
conhecimento moderno. A razão instrumental funcionou como uma barreira de contenção
para o pensamento autêntico. Esta posição encontra-se também amplamente defendida
por Boaventura Santos, que qualifica o conhecimento gerado pela razão instrumental com
a designação impactante de “conhecimento-lixo”. O conhecimento-lixo é aquele incessantemente produzido, movido por uma lógica do fluxo rápido e utilitarista da produção
capitalista. Tal lixo cognitivo descarta as questões fundamentais da experiência humana
ao tempo em que se autorreproduz, produzindo uma epistemologia da superficialidade,
ou, dito de outro modo, uma epistemologia negativa. Daí a pertinência da Filosofia no
combate a essa epistemologia da superficialidade.
Em contraponto, o filósofo Edgar Morin traz uma grande contribuição para as ciências sociais, particularmente para a educação, ao se opor ao paradigma clássico da
simplificação. Apresenta a epistemologia da complexidade como um grande desafio ao
conhecimento reducionista, propõe uma reforma do sistema de pensamento, a transformação do conhecimento da complexidade em pensamento da complexidade, questionando
as grandes narrativas e as certezas consideradas absolutas e imutáveis, descortinando a
aventura do conhecimento e da construção de novo paradigma científico que incorpore
a probabilidade, o acaso, a ordem, a desordem, as incertezas.
É com satisfação que colocamos à disposição do público o número 39 da Revista
da FAEEBA, cuja temática é Educação e Filosofia. Nesta edição os autores propõem,
mediante 18 artigos e 2 textos da Seção Estudos, um encontro alentador entre Educação
e Filosofia. Em tempos de lógica produtivista e tecnocrática, esse encontro, acreditamos, é de grande potencialidade formativa. Precisamos, para responder aos desafios
e inquietações contemporâneas, impulsionar pensamentos criativos e inconformados.
Agradecemos aos protagonistas que colaboraram para a produção deste número temático
e desejamos uma boa leitura a todos!
As Editoras
Tânia Regina Dantas
Editora Geral
Liége Sitja Fornari
Editora Executiva
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
9
Nº
Tema
Prazo de entrega
dos artigos
Lançamento previsto
Coordenadores
40
Pesquisa em Educação
30.05.2013
Novembro de 2013
Eliseu Clementino de Souza
Liége Maria Sitja Fornari
30.10.2013
Abril de 2014
Valquíria Claudete M. Borba
Kátia Maria Santos Mota
30.05.2014
Novembro de 2014
Alfredo Eurico Rodrigues
Matta
Maria Olívia Matos Oliveira
41 Educação: cognição, aprendizagem
e formação de professores
42
Educação, Mídias e
Design Pedagógico
Enviar textos para Liége Fornari:
[email protected] / [email protected] /[email protected]
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
Thinking Education in terms of Philosophy and thinking Philosophy in terms of
Education is a challenge nowadays once we are living in times of fragmented identity
and pragmatic utilitarianism. Philosophy, if it is considered as a way of a radical
thinking on the person of Education, invites us to question the nature of the education
act, the possibilities of education as a project of hominization, and the historical
conditions of education through times. Education, in a broad perspective that goes
beyond the formal and institutionalized education, is about processes of construction
of subjectivities according to specific world projects. Birth is not enough to a man be
considered a cultural subject. Education has an institutional function in the insertion
of the subject into culture.
The nature of the questions on Education as institution for human formation leads
us to Martin Heidegger ideas. He shows the mutilation of thinking in modern times
because of the great pragmatic utilitarianism of the modern knowledge. The instrumental
reason has been a barrier to the authentic thinking. This position has been also broadly
defended by Boaventura Santos who says the knowledge generated by the instrumental
reason is “garbage knowledge”. The garbage knowledge is the one that is continuously
produced, oriented by the logic of the fast flux and the capitalist production. This
cognitive garbage does not consider the fundamental questions of the human experience
and reproduce itself, and this produces an epistemology of superficiality, a negative
epistemology. Hence, we can see the relevance of Philosophy on the struggle against
the epistemology of superficiality.
In counterpoint, the philosopher Edgar Morin contributes enormously to the social
sciences and in special to education when he opposes to the classical paradigm of
simplification. He introduces the epistemology of complexity as a great challenge
to the principle of reduction. Morin proposes a reform in thinking, a changing of the
knowledge of the complexity into complex thought. He criticizes the great narratives
and the absolute and immutable certainties, unveiling the adventure of knowledge and
the construction of a scientific paradigm that incorporates probability, chance, order,
disorder, uncertainties.
We are very pleased to present the 39th issue of the FAEEBA Journal, which theme is
Education and Philosophy. In this edition, the authors propose an encouraging meeting
between Education and Philosophy in 18 papers and 2 texts in the Studies Section. In
times of productivist and technocratic logic, we believe this meeting may be considered
a great opportunity for people to grow in their formation. In order to face challenges and
contemporary concerns we need to encourage creative and nonconformist thoughts. We
are grateful to the protagonists who collaborated on this issue and we wish everybody
a good reading!
The Editors
Tânia Regina Dantas
General Editor
Liége Sitja Fornari
Executive Editor
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
11
Nº
Theme
Submission
deadline
Publication date
Coordinators
40
Research in Education
05.30.2013
November 2013
Eliseu Clementino de Souza
Liége Maria Sitja Fornari
41
Education: cognition, learning and
teacher formation
10.30.2013
April 2014
Valquíria Claudete M. Borba
Kátia Maria Santos Mota
42
Education, Media and
Pedagogical Design
05.30.2014
November 2014
Alfredo Eurico Rodrigues
Matta
Maria Olívia Matos Oliveira
Email papers to Liége Fornari:
[email protected] / [email protected] /[email protected]
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
EDUCAÇÃO
E FILOSOFIA
Adailton Ferreira Santos; Luciano Costa Santos
No ano em que completa seu 21º aniversário, a Revista da FAEEBA oferece ao
público esta edição de número 39, dedicada à interface de Educação e Filosofia, justo
quando tramita o projeto de criação do Curso de Graduação em Filosofia no Campus
I da UNEB, com o que a nossa Universidade afinal se junta às outras quatro universidades públicas baianas que já dão abrigo à Coruja em seus domínios.
Além de pôr fim a uma decisão arbitrária perpetrada pelo Regime Militar, a retomada da obrigatoriedade da Filosofia no Ensino Médio nos anos 2000, aliada à franca
expansão da abertura de cursos universitários de Filosofia em instituições públicas e
privadas, sinaliza para a sociedade brasileira a possibilidade de uma virada histórica,
caso a oportunidade seja bem aproveitada.
Com efeito, mais do que prover um amplo repertório de matrizes conceituais
que estão na base da construção das ciências nas mais diversas áreas – o que não é
pouco –, a Filosofia compromete o educando de todos os níveis com uma exigência
epistemológica irrecusável: a de submeter o conjunto de seus saberes a uma profunda
apropriação reflexiva e rigorosa justificação argumentativa. Sem esse apurado crivo
reflexivo, o cabedal informativo a que se tem acesso pode vir a depositar-se na zona
morta das falsas certezas e das “meias verdades”, ensejando a indesejada proliferação
de sujeitos institucionalmente capitalizados e pedagogicamente mal formados. Nesse
sentido de educação do pensar e para o pensar, a Filosofia é não somente condição
propedêutica da Educação, mas garantia de seu próprio escopo. Nesses tempos em
que as instituições de ensino são pressionadas a se converterem em bancos de dados
a serviço de demandas mercadológicas, tal exigência inscrita no labor filosófico transcende sua relevância educacional e ganha status de imperativo civilizatório.
Os artigos reunidos nesta edição foram selecionados de um conjunto de textos
enviados – cujo volume, aliás, cresce a cada nova edição –, a partir da avaliação de
especialistas de acordo com os cuidadosos critérios que pautam a Revista.
O primeiro artigo, intitulado “Entre a Educação e a Filosofia: aspectos históricos
da Filosofia da Educação como disciplina acadêmica e campo de investigação”, de
autoria de Fernanda Antônia Barbosa da Mota, objetiva mostrar que a Filosofia da
Educação, como disciplina e campo investigativo, tem sua história perpassada pelo
entrecruzamento das áreas da Educação e da Filosofia, asseverando a relevância da
investigação dessa temática em âmbito acadêmico.
No artigo “Natureza da Educação e Filosofia da Educação”, a autora Maria Judith
Sucupira da Costa Lins focaliza o problema da natureza da Educação e sua relação
com a Filosofia da Educação. Reflete sobre o sentido do fenômeno educacional a fim
de entender o conceito de educação e, a partir daí, estabelecer o campo epistemológico
da Filosofia da Educação. Para a autora, entender a natureza da educação é importante
para os que estão comprometidos com o desenvolvimento de pessoas face aos desafios
de construir um mundo novo.
Em “Educação e Filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar
na Educação Básica – considerações polilógicas”, de Dante Augusto Galeffi, discute-se a relação entre Educação e Filosofia a partir da implicação decorrente do retorno
obrigatório da Filosofia ao Ensino Médio nacional, tendo em vista o crescente interesse
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 15-18, jan./jun. 2013
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Apresentação
pela Filosofia em todos os níveis da Educação Básica, pelo reconhecimento de que se
trata de uma atividade de pensamento dialógico fundamental para o desenvolvimento
humano saudável e criador.
Segundo a autora Izilda Johanson, no artigo “Filosofia, filósofo, professor de
Filosofia”, o exercício da docência em Filosofia traz implícita uma compreensão
prévia sobre o próprio sentido do filosofar. Isto significa que a referência ao “ensino
de Filosofia” já compreende a necessidade de enfrentar questões próprias à atividade
filosófica, tais como: “Por que Filosofia?” e “Em que consiste a Filosofia?”.
O artigo seguinte, intitulado “O duplo aspecto da Educação: via de constituição
do estranhamento ou de sua superação mediada pela Ética”, de Fátima Maria Nobre
Lopes, aborda a posição do filósofo húngaro György Lukács acerca da centralidade do
trabalho e do seu caráter teleológico, evidenciando a gênese ontológica da Educação
como formação humana e o seu desenvolvimento no âmbito das teleologias secundárias
por meio das quais pode ocorrer a constituição e/ou a superação de estranhamentos.
Dando destaque a outro importante nome da História da Filosofia, em “A Educação entre o singular e o coletivo a partir da Crítica da Razão Dialética de Sartre”, o
articulista Cássio Donizete Marques mostra que a Educação, como formação do ser
humano, permite vivenciar, na dialética da história, a relação entre o individual e o
coletivo, constituindo-se na plena liberdade do sujeito que constrói seu projeto em
meio a uma dada situação.
No artigo “Emmanuel Levinas: Educação e interpelação ética”, o autor Antônio
Sidekum apresenta subsídios filosóficos para o campo educacional a partir do pensador
judeu lituano Levinas, o qual descerra novos horizontes na reconstrução de utopias
para a História contemporânea, ao pôr em questão o caráter egolátrico da subjetividade moderna que tem o seu fundamento no cogito cartesiano e chega ao máximo
idealismo monológico em Kant.
Em seu artigo sugestivamente intitulado “O ato de caminhar e a Educação: a
propósito dos 300 anos de nascimento de Rousseau”, Jordi Garcia Farrero foca as
bucólicas perambulações do filósofo genebrino como metáfora de um modo de pensar
e existir à margem do racionalismo hegemônico em seu tempo. Por extensão, realiza
uma reflexão sobre a tendência educativa que surgiu em fins do século XIX – o neonomadismo pedagógico –, já que a ação pedestre de Rousseau, que podia ser concebida
como excursão, é um claro antecedente do Romantismo pedagógico.
O autor Jorge Miranda de Almeida, em “A Educação como Ética e a Ética como
Educação em Kierkegaard e Paulo Freire”, estabelece um confronto/encontro entre
estes dois pensadores do profundo do humano. Em suas respectivas épocas, ambos
se posicionaram criticamente em relação às concepções vigentes de Educação e Ética, postas a serviço do poder e do ajustamento social, mas será justamente a partir
de Educação e Ética que, para estes pensadores, os seres humanos em processo de
inconclusividade poderão construir estratégias para superarem as barreiras que impedem a sua realização.
Revisitando as matrizes filosóficas gregas no artigo “O não saber socrático e a
Educação: o desafio de aprender a pensar”, Giorgio Borghi analisa o problema do
tipo de saber que está em jogo na educação, refletindo sobre o sentido do não saber
socrático que se contrapõe ao saber tradicional da pólis e ao novo saber dos sofistas.
Considerando a relação entre saber e pensar, o autor se concentra no diálogo platônico
Apologia de Sócrates, em que encontra a primeira tematização do conflito entre a
visão tradicional e a visão filosófica da Educação.
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 15-18, jan./jun. 2013
Adailton Ferreira Santos; Luciano Costa Santos
A seguir, o artigo “La Filosofia y la Cultura ante la globalización”, de Alejandro
Serrano Caldera, aprofunda a crise de valores e o risco à pluralidade cultural trazidos
com a globalização, sob cuja imposição os Estados-Nações viram correias de transmissão de uma só vontade de dominação. Diante disso, segundo o autor, a Filosofia
deve contribuir para construir uma ética dos valores, fundada numa racionalidade
moral e conceitual que substitua a racionalidade instrumental.
Apoiado em contribuições teóricas de Vilém Flusser, no artigo “Desatando a
imaginação: breves notas sobre Ética e Crítica no mundo contemporâneo”, Roberto
Bartholo Jr. discute o lugar do diálogo e do discurso no mundo contemporâneo e destaca implicações da programação e da produção de imagens técnicas para os modos
hegemônicos de organização da cultura e exercício de dominação. Por fim, aponta
desafios confrontados para as instituições acadêmicas contemporâneas, particularmente, as universidades.
Renato Huarte Cuéllar, no artigo intitulado “Identidad y Educación”, parte de uma
definição filosófica de identidade para entender como o ser humano, eminentemente
social, se vincula a processos educativos e de transmissão que dependem de cada grupo
em seu respectivo contexto, numa complexa trama que vai do individual ao coletivo
e vice-versa. Com base nisso, tenta entender o processo educativo dos tlamatimine
ou sábios nahuas no México Tenochtitlan anterior à Conquista, investigando sua
contribuição para repensar a educação no século XXI.
“A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo”, dos autores Ricardo Antunes de Sá, Sonia Maria Marchioratto Carneiro e Araci
Asinelli da Luz, objetiva trazer contribuições aos educadores quanto aos processos de
ensino e aprendizagem na escola, com base no pensamento complexo de Edgar Morin e
considerando as discussões da Conferência Internacional “Os Sete Saberes Necessários
para a Educação do Presente”, realizada em setembro de 2010, em Fortaleza (CE).
No artigo “Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos”, a dupla de autores
Alvino Moser e Daniel Soczek desenvolve considerações sobre o ensino de Filosofia
para crianças, partindo do pressuposto de que o filosofar é uma atividade própria do
ser humano, mas poucos são os alunos de Ensino Médio e Superior que, de fato, se
interessam pelas aulas de Filosofia que são obrigados a cursar. A hipótese dos autores é
de que a postura filosófica dos alunos lhes é subtraída devido a processos educacionais
que os limitam à perspectiva instrumental da cultura de massas.
O autor Fumikazu Saito, em “‘Continuidade’ e descontinuidade’: o processo da
construção do conhecimento científico na História da Ciência”, toma distância de
enfoques formalistas e propõe uma abordagem contextualizada do ensino de ciências,
pautada em tendências historiográficas mais atualizadas, dando especial atenção ao
contexto cultural em que surgem as ciências, segundo os estudos das epistemologias
de Bachelard e de Kuhn.
Em “A importância do ensino de Ciências da Natureza integrado à História da
Ciência e à Filosofia da Ciência: uma abordagem contextual”, Adailton Ferreira dos
Santos e Elisa Cristina Oliosi refletem sobre o ensino de ciências da natureza, na perspectiva de uma abordagem contextual, a fim de compreender melhor a relação entre
ciência e sociedade. Tal abordagem do ensino tem sido recomendada por organização
internacional, pela legislação brasileira e por pesquisadores que defendem outro tipo
de ensino na sociedade contemporânea, globalizada e tecnológica. Assim, almeja-se
que o ensino das ciências da natureza possibilite a compreensão da atividade científica e, por sua vez, contribua para superação das ideias distorcidas sobre as ciências.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 15-18, jan./jun. 2013
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Apresentação
O artigo “O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna”, de Luciano Costa Santos, apresenta o paradigma da transmodernidade, que
consiste na reapropriação do legado científico e crítico da racionalidade moderna a
partir da revisita a fontes hermenêuticas por esta relegadas. Tais fontes – a exemplo
de transcendência, alteridade e tradição – propiciam uma fecundidade de sentido que
a razão crítica não pode produzir por si mesma, e constituem uma reserva sapiencial
ante o dissolvente pragmatismo pós-moderno que tanto afeta a área educacional.
A seção “Estudos” apresenta dois artigos. No primeiro deles, intitulado “A transformação do ethos no Oeste de Santa Catarina”, os autores Anderson Luiz Tedesco
e Paulino Eidt têm como objetivo compreender as transformações societárias – especialmente no campo educacional – decorrentes da sociedade de consumo e dos
demais processos verticalizadores da globalização no espaço regional do Oeste de
Santa Catarina.
Com base no método “instrumental cultural” de Vygotsky, o artigo “O processo
de formação de conceitos na perspectiva vygotskyana”, das autoras Cristiane Regina
Xavier Fonseca-Janes e Elieuza Aparecida de Lima, analisa a constituição da natureza
social do homem a partir de processos de apropriação e objetivação de conhecimentos,
que tornam individuais as conquistas historicamente construídas pela humanidade,
dentre as quais a do pensamento conceitual.
Este número traz ainda dois resumos de pesquisas monográficas, o primeiro de tese
e o segundo de dissertação. O resumo de tese, elaborado por Ana Sueli Teixeira de
Pinho, refere-se à pesquisa intitulada “O tempo escolar e o encontro com o outro: do
ritmo à simultaneidade. O resumo de dissertação, de autoria de Mariana Martins de
Meireles, apresenta a síntese do trabalho intitulado “ Macabéas às avessas:trajetórias de
professoras de geografia da cidade na roça - narrativa sobre docência e escolas rurais”.
Agradecemos aos que enviaram seus artigos – publicados ou não –, bem como
aos pareceristas e demais colaboradores que ajudaram a trazer esta edição à luz. Aos
leitores e aos comprometidos com a formação educacional, esperamos que os textos
que seguem os estimulem a cultivar com cada vez mais denodo o exercício do filosofar, entendido como exigência radical de sentido que contribui para desconstruir
falsas certezas, destituir poderes ilegítimos e favorecer o advento do que realmente
precisa nascer.
Adailton Ferreira Santos
Luciano Costa Santos
18
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 15-18, jan./jun. 2013
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
ENTRE A EDUCAÇÃO E A FILOSOFIA:
ASPECTOS HISTÓRICOS DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO COMO
DISCIPLINA ACADÊMICA E CAMPO DE INVESTIGAÇÃO
Fernanda Antônia Barbosa da Mota*
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo mostrar que a filosofia da educação como
disciplina acadêmica e como campo investigativo tem sua história perpassada pelo
entrecruzamento das áreas da Educação e da Filosofia. É no âmbito das complexas
relações entre a Educação e a Filosofia que tanto a institucionalização do ensino de
filosofia da educação, quanto a constituição e consolidação do campo filosóficoeducacional são registrados historicamente, num percurso marcado por abordagens
filosóficas acerca de temas educacionais e pela investigação de temas educacionais
nos pensamentos filosóficos. Trata-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico,
fundamentada na construção de conhecimentos oriundos das contribuições de autores
clássicos e contemporâneos, além de estudos posteriores feitos por estudiosos e
pesquisadores sobre as ideias de tais autores. Os aportes teóricos que fundamentaram
o estudo foram: Cambi (1999), Severino (2000; 2011), Saviani (1991, 2002a, 2002b),
Albuquerque (2003), Tomazetti (2003, 2010), Gallo (2007), Pagni (2008) e Henning
(2010), dentre outros. A partir da compreensão crítica da trajetória da filosofia da
educação e suas especificidades nas dimensões teórica (pesquisa) e prática (ensino),
defendemos a relevância do estudo dessa temática no âmbito acadêmico, pois,
conforme acreditamos, a filosofia da educação constitui um dos principais campos
teóricos na contribuição para a formação de futuros educadores.
Palavras-chave: Educação. Filosofia. Ensino de Filosofia da Educação.
ABSTRACT
EDUCATION AND PHILOSOPHY: HISTORICAL ASPECTS OF
PHILOSOPHY OF EDUCATION AS AN ACADEMIC DISCIPLINE AND AN
INVESTIGATIVE FIELD
This paper aims to show that philosophy of education as an academic discipline and
an investigative field has its history permeated by the intercrossing areas of Education
and Philosophy. It is in the context of the complex relationship between Education and
Philosophy that both the institutionalization of the teaching of philosophy of education
and the formation and consolidation of philosophical and educational field are recorded
* Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professora Efetiva de Filosofia da Educação na UFPI.
Endereço para correspondência: Departamento de Fundamentos da Educação, Campus Universitário “Ministro Petrônio Portella”,
Bairro Ininga, CEP-64049-550, Teresina-PI. [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
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Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação
historically, a journey marked by philosophical approaches to educational issues
and research on educational topics in philosophical thoughts. This is a bibliographic
research, based on the construction of knowledge that comes from the contributions of
classical and contemporary authors, and later studies made by scholars and researchers
on the ideas of such authors. The theoretical contributions we have based our study
on includes authors such as Cambi (1999), Severino (2000, 2011), Saviani (1991,
2002a, 2002b), Albuquerque (2003), Tomazetti (2003, 2010), Gallo (2007), Pagni
(2008) and Henning (2010), among others. Based on the critical understanding of the
trajectory of philosophy of education and its specificity in theoretical (research) and
practical (teaching) dimensions, we believe in the relevance of studying this theme in
the academic sphere, once the philosophy of education is a very important theoretical
field that contributes enormously to the formation of educators.
Keywords: Education. Philosophy. Teaching of Philosophy of Education.
Introdução
O ensino de filosofia da educação tem sido alvo
de discussões por autores, pesquisadores e demais
profissionais da área na tentativa de consolidar a
filosofia da educação como um campo de saber
legitimado pela teoria e pela prática. Dentre as
questões mais polêmicas, o ponto nevrálgico é a
forma como o ensino dessa disciplina tem sido
praticado pelos professores.
Por meio deste estudo, pretendemos ampliar
os debates no campo filosófico-educacional para a
construção de uma base de conhecimentos que contribuam significativamente para expandir o diálogo
no campo acadêmico para futuras pesquisas sobre o
ensino de filosofia da educação. Nessa perspectiva,
abordaremos alguns de seus aspectos históricos,
enfatizando nessa trajetória sua conversão em
disciplina acadêmica institucionalizada e também
sua constituição e consolidação como campo de
estudos e pesquisas no Brasil.
Breve histórico da trajetória da filosofia
da educação: disciplina e campo
A filosofia da educação como disciplina acadêmica e como campo investigativo tem sua história
perpassada pelo entrecruzamento das áreas da
Educação e da Filosofia. É no âmbito das complexas relações entre a Educação e a Filosofia que
tanto a institucionalização do ensino de filosofia
da educação quanto a constituição e consolidação
20
do campo filosófico-educacional são registrados
historicamente, num percurso marcado por abordagens filosóficas acerca de temas educacionais
e pela investigação de temas educacionais nos
pensamentos filosóficos.
No âmbito internacional, é importante destacar
que a partir do final do século XVIII até o início
do século XX, embora os conteúdos filosófico-educacionais fossem trabalhados nas disciplinas
em instituições educativas e figurassem nos manuais de história da pedagogia, a expressão filosofia
da educação não era especificamente utilizada e
tampouco era preponderante. Nesse período, além
da referida terminologia, uma abrangente nomenclatura era utilizada indistintamente para tratar de
qualquer tópico que relacionasse filosofia e educação. Tanto na produção teórica da época quanto na
organização disciplinar os seguintes designativos
eram considerados como correlatos a filosofia da
educação: Filosofia, Pedagogia, Pedagogia Geral,
Pedagogia Teórica, Teoria da Educação, Filosofia
Geral, Princípios da Educação, Introdução à Filosofia, Pedagogia Filosófica, Filosofia Pedagógica e
Ciência da Educação. A despeito da profusão de termos, o saber filosófico era considerado fundamental
para os estudos pedagógicos (TOMAZETTI, 2003).
Essa relativa indistinção entre o saber filosófico e o saber pedagógico predominou até o início
do século XX. Enquanto perdurou essa suposta
equivalência entre os dois saberes, os conteúdos
filosófico-educacionais foram diluídos nos estudos
pedagógicos, principalmente, no âmbito da discipli-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
na Pedagogia Teórica. Tal situação somente mudou
quando a própria Pedagogia deixou de ser uma disciplina subdividida nas vertentes teórica e prática, a
fim de buscar sua consolidação como campo teórico
relacionado às Ciências da Educação.
A tentativa de cientifização da Pedagogia foi
permeada pelo embate entre discursos fundamentadores do saber pedagógico. Nesse embate, o
decadente discurso filosófico perdeu sua hegemonia por ser considerado demasiadamente teórico,
generalista, normativo, especulativo e totalizante,
enquanto o ascendente discurso científico ganhou
cada vez mais espaço no âmbito acadêmico ao
propor uma compreensão sistemática do fenômeno
educacional a partir de perspectivas interdisciplinares distintas oriundas da biologia, da psicologia e
da sociologia (as chamadas ciências da educação),
compreendidas como ciências experimentais humanas e sociais.
O contexto do referido debate foi permeado
pelo uso deletério que Durkheim fez da expressão
especialista de generalidades, criada originalmente
por Comte para se referir ao papel do filósofo diante
das ciências positivas (TOMAZETTI, 2003). No
positivismo, a Filosofia é compreendida como uma
disciplina pré-científica, constituída por ideias
gerais e cujo objeto de estudo principal seria os
universais. Na célebre Lei dos Três Estados, Comte
defende a ideia evolucionista segundo a qual o desenvolvimento intelectual da humanidade pode ser
historicamente classificado em três fases distintas:
a teológica (ficcional), a metafísica (abstrata) e a
positiva (científica). Em cada uma delas o pensamento humano opera de uma forma característica.
No estágio teológico, predominam as crendices e
superstições, expressas nas explicações que apelam para forças sobre-humanas como espíritos e
divindades. No estágio metafísico, as explicações
anteriores cedem lugar para elucidações baseadas
em causas finais, essências e outras generalizações
teóricas. E no estágio positivo, considerado o ápice
do desenvolvimento intelectual humano, tanto a
transcendência quanto a especulação generalizante
são superadas em prol da ciência, definida pela
verificação e comprovação das leis originadas a
partir da experiência (COMTE, 1983).
A partir da classificação comtiana, a filosofia
fica restrita a um segundo plano, o estágio pré-
-científico da abstração e das generalidades, ao
passo que disciplinas como biologia, psicologia
e sociologia, por serem consideradas ciências experimentais, estariam situadas num patamar mais
elevado no que se refere à evolução do pensamento
humano. Como o filósofo da educação não poderia
ser considerado um cientista e como a filosofia
remete a um saber de caráter amplo, panorâmico
e de conjunto, então, foi-lhe atribuído o título de
especialista em generalidades. Assim, a filosofia
da educação associada às generalidades foi amplamente prejudicada porque tudo aquilo que não
tinha lugar na ciência era destinado ao campo de
saberes filosóficos da educação.
Nesse contexto, os especialistas das ciências da
educação concebiam a perspectiva filosófica como
irrelevante para a educação porque consideravam
que nenhuma proposta de melhoria concreta podia
advir dela, visto que, diferentemente das positivas
explicações oriundas das ciências da educação, as
propostas filosóficas acerca da educação eram negativistas e utópicas. No esquema de Durkheim, por
exemplo, a filosofia educacional não poderia fixar a
finalidade da educação em razão de seu caráter negativista e utópico e, por isso, deveria forçosamente
abdicar de tal tarefa em prol da sociologia e da
psicologia, as positivas ciências da educação que,
por efetivamente cuidarem dos aspectos coletivos
e individuais de uma sociedade, saberiam identificar as reais necessidades educacionais a fim de
estabelecer metas realizáveis (DURKHEIM, 1978).
Durkheim também usa pejorativamente a associação da filosofia com a amplitude de ideias e ausência
de especificidades com o propósito estratégico de
minar a influência filosófica exercida no campo universitário e, assim, ocupar seu lugar com outros
campos do saber que não são generalistas, mas
devidamente demarcados, hierarquizados e com
competências específicas: a psicologia da educação e a sociologia da educação. A partir dessa
consideração de Durkheim, as referidas ciências da
educação são qualificadas como saberes positivos
aptos a fundamentar e legitimar a prática educativa,
enquanto a filosofia, por não possuir uma competência específica, é considerada um saber negativo
e sem cientificidade, inapto para a fundamentação
e legitimação da educação, e que ainda precisa ser
avaliado a fim de encontrar o seu lugar na hierarquia
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
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Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação
do território universitário (TOMAZETTI, 2003).
Essa estratégia partiu inicialmente da constatação de uma nítida confusão entre os termos educação e pedagogia, que para Durkheim, deveriam
ser meticulosamente diferenciados, pois enquanto
a educação se refere a ações, a pedagogia concerne
a teorias. Essa distinção entre o campo educativo e
o campo pedagógico também serviu ao propósito
de atrelar a sociologia ao campo experimental
(científico) e a filosofia ao campo pedagógico
(especulativo) e, assim, justificar a exclusão do
saber filosófico do âmbito das ciências da educação
(DURKHEIM, 1978).
Ainda no cenário acadêmico mundial, é preciso
destacar dois fatores relevantes para o entendimento do processo de constituição e consolidação da filosofia da educação como disciplina e como campo
especializado de produção de saberes. Primeiro, o
afastamento da filosofia da educação do âmbito das
ciências da educação acarretou também uma visão
generalizada de que ela constituía uma disciplina
demasiadamente teórica (frequentemente associada aos sistemas filosóficos e à história da ideias
pedagógicas) e apartada dos problemas práticos
do trabalho pedagógico. Por isso, a erudita disciplina filosofia da educação passou a ser vista com
suspeita e descaso pelos educadores entusiastas
da cientifização educacional e ávidos por técnicas
de ensino baseadas na sociologia e na psicologia,
disciplinas consideradas úteis para a formação
profissional e prática dos professores.
A despeito dos dilemas relativos ao pertencimento da filosofia da educação a um território
educacional ou a um território filosófico, o cenário mundial no final do século XIX, sobretudo na
Europa, foi marcado pelo predomínio das concepções científicas em detrimento das concepções
filosóficas. Nesse período, até o início da I Guerra
Mundial (1914-1918), a própria disciplina história
da educação era ministrada por professores com
formação filosófica cuja abordagem era centrada
nas contribuições teóricas dos grandes pensadores
para o campo educacional (NÓVOA, 1994). Tal
característica fazia da própria história da educação
uma filosofia da educação, já que o estudo dos
aspectos históricos e dos aspectos pedagógicos
era delineado no domínio da própria história das
ideias filosóficas (CAMBI, 1999). Esse contexto
22
mudou significativamente a partir dos anos de 1950,
quando a história da educação passou a ser orientada por novas concepções historiográficas que
privilegiavam não a história das ideias filosóficas,
mas o processo histórico das instituições e práticas
educacionais. Por meio dessa nova percepção que
questiona a centralidade das teorias filosóficas no
âmbito dos estudos históricos ocorre um distanciamento entre o campo histórico da educação e o
campo filosófico da educação.
A partir dos anos 1960, em decorrência da
exacerbação do fosso acadêmico existente entre as
disciplinas científicas (sociologia, psicologia etc.) e
as disciplinas teóricas (filosofia, história etc.), podemos identificar dois contextos distintos nos quais a
disciplina filosofia da educação evolui, em ambos a
orientação dominante não sendo pedagógica, mas
filosófica. Nos países europeus sob influência intelectual e cultural francesa, há uma nítida distinção
entre as áreas das ciências da educação e a área da
filosofia da educação, sendo a disciplina filosofia
da educação concebida e praticada em conformidade com a orientação filosófica predominante do
professor ministrante (tomista, fenomenológica,
marxista etc.). Já nos países europeus sob influência
inglesa e nos Estados Unidos, a filosofia da educação conta com um prestígio acadêmico maior, visto
que até mesmo a expressão ciências da educação
é evitada sob a alegação de que a utilização de
tal nomenclatura poderia conduzir ao erro de que
os cursos de formação de professores teriam por
objetivo formar os futuros cientistas da educação
e não os futuros práticos da educação. Como tanto
a Inglaterra quanto os Estados Unidos produziram
estilos próprios de filosofia, respectivamente a filosofia analítica e o pragmatismo, suas concepções
de filosofia da educação também são amplamente
orientadas por tais tradições filosóficas.
A Filosofia da Educação no Brasil
Os primórdios da Filosofia da Educação no
Brasil remontam à introdução de conteúdos de
natureza filosófica relacionados com temas ou
questões educacionais nos currículos das escolas
normais a partir dos anos 30 do século XX. Nessa
época, o conteúdo da filosofia da educação consta
de forma diluída na disciplina Pedagogia Geral.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
Posteriormente, como disciplina independente da
pedagogia teórica, ela aparece vinculada aos estudos históricos na cátedra de História e Filosofia
da Educação. No século seguinte, entre os anos
de 1920 e 1930, a Filosofia da Educação figura
como uma das últimas disciplinas de formação
pedagógica a integrar institucionalmente o conjunto curricular no ensino normal (TOMAZETTI,
2003). Entre os anos de 1940 e 1960, a filosofia da
educação desponta como disciplina autônoma e
institucionalizada no cenário acadêmico universitário. Sobre isso, é preciso mencionar que a inserção
da disciplina filosofia da educação no âmbito das
universidades brasileiras foi marcada, desde o
início, por um forte compromisso com a formação
de professores (PAGNI, 2008).
Assim como acontecia nas universidades estrangeiras, a filosofia da educação professada e ensinada
nos cursos de formação de professores das universidades brasileiras variava em conformidade com
a orientação filosófica predominante na formação
dos professores responsáveis pela disciplina. No
período compreendido entre os anos de 1930 e 1960,
a filosofia europeia constituía a influência teórica
preponderante, principalmente na vertente francesa,
seguida pela vertente alemã e, distante de ambas, no
que diz respeito à inserção nos conteúdos disciplinares acadêmicos, a vertente filosófica americana do
pragmatismo. A vertente inglesa, responsável pela
emergente filosofia analítica da educação, surgiu
historicamente a partir dos anos de 1960, e embora
sua proposta de análise conceitual de termos éticos
e epistemológicos ligados aos empreendimentos
educacionais tenha sido considerada revolucionária
nos países anglófonos, ela teve escassa recepção no
Brasil. Além da referida proposta, a grande repercussão obtida pelos filósofos analíticos da educação
deveu-se principalmente às críticas que fizeram à
então consensual prática no âmbito da disciplina
Filosofia da Educação nos cursos de formação de
professores, que para eles consistia em um estudo
panorâmico e acrítico das ideias dos filósofos clássicos (TOMAZETTI, 2010).
Anísio Teixeira, um dos principais reformadores
da educação brasileira, foi também responsável
pela tentativa de difundir no meio acadêmico nacional uma filosofia da educação inspirada nas ideias
do pragmatista John Dewey. Paradoxalmente,
embora seu projeto reformista vinculado ao ideário
escolanovista tenha relativamente obtido êxito, sua
filosofia da educação inspirada no pragmatismo foi
amplamente combatida pelos representantes das
outras vertentes filosóficas. É importante mencionar que, diferentemente de Durkheim, que havia
separado filosofia e educação, Dewey propôs uma
reaproximação ainda mais forte entre ambas, ao
sustentar que a filosofia poderia ser conceituada
como uma teoria geral da educação.
A partir dessa nova configuração, a filosofia
era concebida como educação e a educação como
uma atividade imbuída de sentido somente se fosse
amparada pela perspectiva filosófica. Resultante
dessa compreensão subjaz a ideia que tanto a filosofia quanto a educação dependem da sociedade:
a atual em que vivemos e a futura que objetivamos
construir. Duas implicações decorrem dessa visão
que situa a filosofia e a educação como dependentes do tipo de sociedade na qual estão inseridas.
Primeiro, a ideia de que nenhuma filosofia poderia
ser tomada como fundamento, pois numa sociedade
em constante transformação não haveria lugar para
soluções dogmáticas e supostamente definitivas,
mas somente para uma filosofia de hipóteses e
soluções provisórias. E, também, a ideia de que a
filosofia da educação seria um instrumento mais útil
para o progresso da sociedade democrática se, em
vez de manter os olhos permanentemente voltados
para o passado buscando um ideal de formação
canônica, ela prestasse mais atenção aos problemas culturais, morais e educacionais modernos
(TEIXEIRA, 1978).
Assim, enquanto as orientações filosóficas
europeias professavam que o ensino de filosofia
da educação deveria estar atrelado ao estudo da
história da filosofia e das ideias pedagógicas,
Anísio Teixeira defendia que era possível praticar
uma filosofia da educação abordando os problemas
atuais da sociedade, sem menosprezar os estudos
de caráter histórico. Como nesse momento inicial
de institucionalização da disciplina filosofia da
educação os catedráticos de algumas universidades
responsáveis pelo seu ensino nos cursos de Pedagogia ou Filosofia tinham sua própria formação
vinculada a uma influência filosófica francesa ou
alemã, tal proposta de fazer uma filosofia da educação pareceu-lhes herética, visto que a própria
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
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Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação
possibilidade de se ensinar alguém a filosofar é algo
considerado questionável. A alternativa teórica proposta por Teixeira era expressa na prática de uma
filosofia da educação de orientação pragmatista
centrada na reflexão e tratamento de problemas
atuais emergentes do campo educacional e cultural
brasileiros (PAGNI, 2008).
Nessa época, entre os anos de 30 e 60 do século
XX, constatamos a presença institucionalizada
da disciplina filosofia da educação nos currículos
das escolas normais e nos currículos universitários brasileiros. Todavia, ainda não é possível
sustentar a existência de um campo de estudos e
pesquisas filosófico-educacional, visto que poucas
obras abordavam questões próprias da filosofia
da educação. Também nesse aspecto é preciso
destacar o pioneirismo de Anísio Teixeira, cujas
obras Educação Progressiva: uma Introdução à
Filosofia da Educação (1934) e Educação para
a Democracia (1937) constituem um importante
marco inaugural da investigação filosófica sobre
educação no Brasil. Entretanto, as décadas subsequentes mostraram que tal empreendimento
inovador foi uma exceção, visto que as publicações
específicas na área eram escassas, além de serem
teoricamente fracas ou marcadas pelo proselitismo.
Até os anos de 1960, também era bastante comum
a ausência de livros específicos sobre Filosofia da
Educação nas bibliografias básicas da referida disciplina, sendo prática comum entre os professores
responsáveis pelo seu ensino encaminhar os alunos
para a leitura dos textos clássicos em Filosofia e
Educação (TOMAZETTI, 2003).
Essa mudança nos rumos da filosofia da educação no Brasil ocorreu, em parte, em razão do
embate travado no decorrer dos anos de 1940 e
1950 entre os defensores dos ideais da Escola
Nova e os partidários da Igreja Católica. Além
do contraste entre as duas respectivas concepções
vislumbradas para a disciplina filosofia da educação
(crítica e implicada com as práticas escolares cotidianas, pela vertente escolanovista; e moralmente
doutrinária e pedagogicamente transmissiva, pela
vertente católica), o pano de fundo dessa disputa
teórica foi marcado por divergências de natureza
política e ideológica.
A produção intelectual dos teóricos cristãos era
baseada principalmente nas ideias de São Tomás
24
de Aquino e em outros autores vinculados ao catolicismo. Dois fatores foram decisivos para que a
disciplina filosofia da educação, na versão tomista,
se tornasse hegemônica nos currículos dos cursos
de formação de professores. Em primeiro lugar, a
filosofia da educação cristã vinculou sua imagem
à defesa dos valores morais e à tradição dos bons
costumes, associando a filosofia da educação escolanovista, aos valores ateus e modernistas. Em
seguida, em virtude de seu amplo poder editorial,
suas ideias foram disseminadas maciçamente em
periódicos educacionais da época e em manuais de
filosofia da educação.
É importante lembrar que, nesse período, a
própria criação das pontifícias universidades católicas no Brasil corresponde a uma estratégia da
Igreja Católica de combater a influência política e
ideológica da Escola Nova nos sistemas públicos de
ensino e nas recém-criadas universidades públicas,
pautadas nos ideais laicos e democráticos. Nesse
contexto, autores como Leonardo Van Acker, Maria
Izabel Pitombo e Dom Geraldo de Proença Sigaud
são destaques na defesa dos ideais católicos. Para
os teóricos católicos, a disciplina filosofia da educação era constituída por um inquebrantável nexo
entre pedagogia e religião, por um lado, e filosofia
e teologia, por outro. Mediante essa concepção,
caberia a ela não apenas definir os fins e os valores
da educação para a sociedade, mas defini-los em
conformidade com os ideais cristãos, cuja orientação estava expressa nos referidos manuais de
ensino de filosofia da educação.
Uma crítica destacada ao papel estritamente
curricular da disciplina filosofia da educação é
feita quando se conecta a tardia constituição de um
campo de investigação filosófico educacional com
a própria história da inserção da disciplina filosofia
da educação nas universidades brasileiras. Muito
antes da institucionalização da disciplina filosofia
da educação, a forma como a própria filosofia ingressou na cultura brasileira, ainda no período colonial, foi marcada pelo dogmatismo, autoritarismo e
ideologização no molde escolástico. Desse modo, a
experiência filosófica brasileira não foi caracteriza
pelo estímulo ao pensamento crítico e questionador,
mas pela exigência de um pensamento subserviente
que se limita a legitimar e referendar as posições
impostas pelo poder vigente (SEVERINO, 2000).
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
No decorrer dos anos de 1950 até meados
dos anos de 1960, as propostas curriculares da
disciplina filosofia da educação foram baseadas
predominantemente nos programas e bibliografias
de orientação tomista, cuja influência delineou
uma identidade filosófico-teológica para a filosofia da educação. Essa hegemonia não se limitava
ao âmbito das universidades católicas, pois nas
universidades públicas os conteúdos programáticos de orientação tomista compartilhavam sua
presença majoritária com uma modesta parcela de
conteúdos orientados pelo existencialismo. Nessa
mesma época, a partir do final dos anos de 1950,
os conteúdos programáticos baseados nas ideias
pragmatistas de Dewey ou relacionados com
temáticas escolanovistas são quase inexistentes.
Posteriormente, o personalismo, a fenomenologia e o marxismo também passaram a concorrer
como alternativas teóricas norteadoras das teorias
e práticas educacionais (ALBUQUERQUE, 2003;
TOMAZETTI, 2003).
A partir dos anos de 1970, em virtude do surgimento da filosofia da educação também como
programa ou área de concentração de alguns dos
recém-criados cursos de pós-graduação em educação (em nível de mestrado e doutorado), houve
a constituição do campo da filosofia da educação.
O programa de pós-graduação em Filosofia da
Educação da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), criado em 1971 por iniciativa
de Joel Martins, teve uma destacada participação
na trajetória de constituição do campo filosófico educacional no país porque atuou como um
centro irradiador de estudos e pesquisas na área.
A primeira geração de docentes, constituída por
Dermeval Saviani, Newton Aquiles Von Zuben,
Antônio Joaquim Severino e Geraldo Tonaco, era
considerada o núcleo básico desse programa. Até
o final dos anos de 1970, a partir das experiências
do referido grupo, outros programas com área de
concentração em filosofia da educação ou em áreas
afins foram criados na Universidade Metodista de
Piracicaba, na Universidade Estadual de Campinas
e na Universidade Federal de São Carlos. As atividades de ensino, pesquisa e produção dos mestres
e doutores formados nessas instituições repercutiu
significativamente para a difusão das investigações
acadêmicas e para formação de novos quadros
para o trabalho docente em outras universidades
brasileiras (SAVIANI, 2002b).
Embora a maioria dos programas de pós-graduação em educação fosse centrada em outras
áreas de concentração, havia condições curriculares
para a investigação especializada na área filosófico-educacional, de modo que a consolidação de tais
programas deve ser ressaltada como um importante
marco inicial para a constituição de uma tradição
investigativa brasileira no campo da Filosofia da
Educação (SEVERINO, 2000).
Nesse período, Saviani produziu dois trabalhos
relevantes para a prática da pesquisa em filosofia da
educação. O primeiro estudo defende uma concepção de filosofia da educação que, principalmente na
década de 1980, foi bastante propagada, tornando-se um tipo de princípio norteador para estudiosos
e professores vinculados com a área. O argumento
principal consistia na recusa tanto da ideia que a
filosofia da educação tenha como tarefa a fixação
apriorística de princípios e objetivos para a educação, quanto da ideia de que a filosofia da educação
deva ser reduzida a uma teoria geral da educação
responsável pela sistematização dos seus resultados. Ao contrário, a tarefa da filosofia da educação
não seria apenas reflexiva e crítica em relação à
prática educacional, mas também elucidativa tanto
no que concerne ao papel das diversas disciplinas
pedagógicas nos processos educativos, quanto no
que diz respeito à avaliação das soluções propostas
e dos resultados obtidos (SAVIANI, 1991).
No segundo estudo, Saviani elabora uma classificação das principais tendências e correntes da
educação brasileira e, no âmbito dessa pesquisa
centrada em livros, dissertações e teses da área
educacional produzidas até o ano de 1977, distingue quatro concepções ou tendências filosófico-educacionais predominantes na história recente
da educação brasileira: a humanista tradicional,
a humanista moderna, a analítica e a dialética. A
humanista tradicional predominou nos anos de
1930. A humanista moderna dividiu o cenário com
a tendência predecessora entre os anos de 1930 e
1945 e prevaleceu no período entre 1945 e 1960.
A analítica ganhou evidência a partir dos anos de
1960, mas sua ênfase é situada no período posterior
a 1969. E a dialética tem suas referências teóricas
encontradas majoritariamente nos trabalhos pro-
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Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação
duzidos a partir de 1974. A orientação teórica humanista tradicional centra-se na visão essencialista
do ser humano e está relacionada com as vertentes
religiosas do tomismo e do neotomismo. O humanismo moderno é fundado numa visão centrada
na existência, na vida prática da atividade humana
e possui distintas expressões representadas pelo
historicismo, pragmatismo, existencialismo e fenomenologia. A vertente analítica é representada pela
filosofia analítica da educação, que tem como princípio fundamental a análise da linguagem lógica
educacional, isto é, a investigação e compreensão
dos termos educacionais no contexto linguístico e
formal de sua utilização. A literatura educacional
que tem como referência a dialética é constituída
fundamentalmente por autores vinculados à tradição marxista que sustentam que os problemas
educacionais somente podem ser efetivamente
compreendidos a partir de seu contexto histórico,
político, econômico e social (SAVIANI, 2002a).
A fim de evitar imprecisões teóricas, Saviani
sugere pensar a filosofia da educação a partir de
uma dupla abordagem: como processo e como
produto. O caráter processual da filosofia da
educação remonta à sua conceituação como uma
reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os
problemas suscitados na realidade educacional
brasileira. Já como produto, a filosofia da educação é compreendida num sentido mais abrangente
como uma concepção teórica norteadora a partir da
qual se privilegia uma ação com o objetivo de dar
um determinado direcionamento para o processo
educativo. Seja como processo ou como produto,
a filosofia da educação não pode ser considerada
isoladamente, pois seus dois significados estão
intimamente relacionados e apenas a tendência dialética proporciona e harmoniza ambos os aspectos
(SAVIANI, 2002a).
A respeito disso, Severino adverte que embora o
mencionado texto de Saviani constitua um clássico,
sua abordagem também encerra uma versão interpretativa acerca da filosofia da educação similar a
dos autores por ele criticados (SEVERINO, 2000).
Isso fica evidenciado pela própria afirmação de Saviani, que sustenta que dentre as quatro tendências
mencionadas, a concepção dialética seria a única
capaz de articular corretamente as exigências teóricas com a concretude histórica e social (SAVIANI,
26
2002a). Aqui, a ressalva não está relacionada com
a sistematização de Saviani em torno da proposta
classificatória das tendências teóricas, mas refere-se
à sua enfática defesa da dialética como uma concepção teoricamente superior e ideologicamente isenta.
Severino ainda sugere que cada época apresenta
discursos e referências filosóficas explícitas ou implícitas que, além de pensar a realidade educacional
no país, contribuíram igualmente para delinear a
tradição filosófico-educacional brasileira. Assim,
não é possível conceituar a filosofia da educação
ou delimitar a sua prática a partir de apenas uma
vertente filosófica. Na trajetória da filosofia da
educação no Brasil, o pensamento sistemático sobre
a educação está sempre vinculado a pressupostos
teóricos emprestados de paradigmas filosóficos
universais (SEVERINO, 2000).
O delineamento da tradição filosófico-educacional brasileira é atravessado por referências
explícitas ou implícitas aos pressupostos essencialistas, naturalistas e historicistas. Assim, embora
o pensamento filosófico-educacional atual esteja
desvinculado das perspectivas metafísica e teológica, até a primeira metade do século XX havia autores cujas ideias eram baseadas no essencialismo
neotomista, como o padre jesuíta Leonel Franca
(1893-1948), fundador da PUC-RJ, e Leonardo
Van Acker (1886-1986), professor de filosofia da
educação da PUC-SP, que fez críticas vigorosas
ao movimento da Escola Nova, pois acreditava
que nesta concepção a filosofia ficava reduzida à
epistemologia e a pedagogia reduzida a um misto
de psicologia e biologia.
Após o predomínio dos pressupostos essencialistas na educação tradicional, a perspectiva
científica passa a ter grande relevância para o
conhecimento do processo educacional e das práticas pedagógicas. A mudança mais representativa
dessa tendência foi o modelo da Escola Nova,
proposto pelos Pioneiros da Educação (os principais foram Fernando Azevedo, Lourenço Filho e
Anísio Teixeira), que entre os anos de 1920 e 1930
defendiam que a sociedade brasileira precisava de
uma educação inspirada pelas teorias científicas e
voltada para a democracia, e não de uma educação controlada pela autoridade religiosa. A partir
da segunda metade do século XX, o marxismo
e o existencialismo, as duas principais correntes
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
filosóficas da época, também influenciaram as
reflexões filosóficas no Brasil, sendo Paulo Freire
(1921-1997), o autor mais representativo dessa
perspectiva histórico-social.
Severino defende que a filosofia da educação
possui três tarefas peculiares, distintas e inter-relacionadas: a epistemológica, encarregada da
análise crítica do conhecimento e discurso educacional; a axiológica, responsável pela indicação de
valores para a prática educacional; e a ontológica,
incumbida de construir uma imagem do ser humano
como sujeito educativo. É no âmbito dessa última
tarefa que nossa atual discussão está inserida. Assim, a filosofia da educação somente pode indicar
valores se estiver amparada por uma antropologia
filosófica. Todavia, tanto a abordagem antropológica metafísica quanto a cientificista revelam-se
insuficientes para conceituar a especificidade humana: enquanto a primeira se perde no idealismo
apriorista, a segunda se equivoca num emaranhado
de determinismos (SEVERINO, 2011).
Além das três indissociáveis tarefas que configuram a filosofia da educação, Severino também
propõe que elas são desempenhadas conceitualmente a partir de quatro círculos hermenêuticos,
que atribuem e sistematizam significações à educação. Essa sistematização expressa nos círculos
hermenêuticos não dispõe de uma nomenclatura
específica para cada uma de suas quatro expressões. Entretanto, os círculos hermenêuticos são tão
abrangentes teoricamente que todas as perspectivas
filosófico-educacionais individuais ou coletivas são
abarcadas por eles. Essa proposta corrobora a ideia
de que as produções acadêmicas da cultura filosófica brasileira na abordagem de temas educacionais
também são vinculadas a algum tipo de modelo
teórico fundamental oriundo da tradição filosófica
ocidental (SEVERINO, 2011).
Na trajetória histórica da filosofia da educação,
vimos que após a sua conversão em disciplina
acadêmica institucionalizada, sua constituição
como campo de estudos e pesquisas foi precedida e
marcada por embates travados entre intelectuais de
distintas orientações teóricas. Por isso, alguns autores consideram que durante os anos de 1930 a 1960
não é possível sustentar a existência de um projeto
filosófico-educacional no Brasil, em decorrência da
hegemonia católica. A orientação neotomista nor-
teava intelectuais, programas, bibliografias e, posteriormente, instituições que conferiam à filosofia
da educação uma identidade filosófico-teológica.
Após o declínio da hegemonia neotomista e do
advento dos programas de pós-graduação, entre
os anos de 1970 e 1980, a filosofia da educação
ensinada e produzida nas principais universidades
brasileiras foi gradualmente se transformando,
passando a cultivar uma identidade laica vinculada
com a antropologia da existência, posteriormente
associada com a fenomenologia e, finalmente, de
forma mais longeva, subsidiada pelo marxismo.
As décadas subsequentes de 1980 e 1990 são
consideradas cruciais para a consolidação da filosofia da educação como campo de investigação
teórica e de prática profissional. Esse período é
considerado o mais fértil no que tange à produção
de estudos e pesquisas oriundos do campo investigativo filosófico-educacional. Inclusive, a própria
identidade e objeto de estudo da filosofia da educação passam a ser problematizados.
Acerca dos anos de 1980, Tomazetti alega que
o suporte marxista não ofereceu subsídios necessários para que a filosofia da educação tivesse uma
identidade disciplinar própria, com conteúdos e
objetivos definidos como disciplina de formação de
professores. Por sua vez, Albuquerque contesta tal
posicionamento e defende que foi sob o paradigma
marxista que a filosofia da educação, no contexto
dos cursos de pós-graduação, configurou-se especificamente como uma disciplina formativa voltada
para a reflexão de problemas oriundos da realidade
educacional. A intensa produção acadêmica orientada pelo referencial dialético marxista no âmbito
filosófico-educacional, produzida entre as décadas
de 1970 e 1980, também entrou em declínio no
final dos anos de 1980, coincidindo com a crise
do marxismo no cenário mundial (TOMAZETTI,
2003; ALBUQUERQUE, 2003).
Albuquerque explica ainda que, sob a perspectiva crítica do marxismo, a filosofia da educação
colocou de lado seu caráter especulativo e voltou-se
para a realidade educacional prática, a fim de questionar o estreito nexo entre as instituições escolares,
as estruturas de poder e os aparelhos ideológicos.
Nesse sentido, uma das principais medidas para a
consolidação hegemônica do paradigma marxista
no âmbito da filosofia educacional foi a bipolariza-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
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Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação
ção teórica entre a emergente concepção dialética
da educação e as demais concepções que, independente de suas matizes teóricas, deveriam ser
superadas por encerrarem concepções burguesas
de educação (ALBUQUERQUE, 2003).
Na releitura de Gadotti, as tendências teóricas
que Saviani havia dividido em quatro vertentes
(a humanista tradicional, a humanista moderna,
a analítica e a dialética) são divididas em apenas
duas tendências radicalmente opositoras: a concepção dialética e a concepção tecnoburocrática.
Enquanto a tendência dialética representava o
comprometimento com as classes populares, a
tendência burguesa congregava as três tendências
restantes que deveriam ser superadas em razão do
compartilhamento de um pressuposto metafísico
que negava a existência de classes sociais (GADOTTI, 1983). Assim, nessa argumentação, os
intelectuais católicos e os reformadores liberais
escolanovistas constituíram tendências distintas
dentro de uma única concepção burguesa de
educação.
Quando a filosofia da educação presenciou
a substituição da perspectiva neotomista pela
perspectiva marxista como orientação norteadora
hegemônica, tal evento procedeu a partir de fatores
externos, tais como mudanças no cenário político-cultural brasileiro, e também a partir de fatores
internos, particularmente a presença de novos professores e novos currículos. No âmbito pedagógico,
Libâneo critica que no decorrer dos anos de 1980 a
forte influência marxista no campo educacional fez
com que muitos educadores adotassem um discurso
teórico oriundo das ciências sociais que menosprezava a própria Pedagogia (LIBÂNEO, 2010).
A sucessão histórica de uma orientação teórica
por outra não evita que erros antigos sejam novamente cometidos na área da filosofia da educação,
sendo o principal deles a repercussão do silêncio
hegemônico acerca das correntes opositoras consideradas superadas. Essa prática academicamente
sectária faz com que muitos profissionais que atuam
na área, em vez de reavaliarem continuamente seus
programas de ensino e práticas pedagógicas à luz
de novas teorias filosóficas e educacionais, prefiram
simplesmente reeditar as categorizações, conteúdos
e procedimentos de décadas passadas sem, entretanto, articulá-los com fatos históricos relevantes,
28
novidades teóricas ou questões educacionais atuais.
A respeito disso, Albuquerque argumenta que a
própria disciplina filosofia da educação carece de
uma revisão crítica interna que contemple seus
principais problemas, autores, correntes e categorizações, além de seu objeto de estudo e ensino
(ALBUQUERQUE, 2003).
Após a década de 1990, a intensa produção de
artigos e livros que predominaram nas décadas
anteriores diminuiu consideravelmente. Gallo
considera que esse declínio ocorreu em decorrência
da reformulação do Curso de Pedagogia, no qual
a disciplina filosofia da educação teve sua carga
horária reduzida ou seu conteúdo diluído em outras
disciplinas, assim como ocorreu em outras revisões
curriculares nos demais cursos de formação de
professores (GALLO, 2007).
A despeito do relativo declínio no âmbito das
publicações da área, o período compreendido
entre meados dos anos de 1990 e o início dos
anos de 2000 é bastante rico no que concerne aos
esforços em prol da organização e mapeamento
da produção teórica, delimitação temática e demais estudos sobre a identidade e especificidade
da filosofia da educação. Esse esforço teórico e
de sistematização ocorre a partir da criação do
Grupo de Trabalho (GT) – Filosofia da Educação,
cujo primeiro encontro ocorre na 17ª reunião da
ANPED, realizado no ano de 1994. A partir daí,
os encontros subsequentes são marcados por intensos debates entre os principais pesquisadores
da área em torno de perspectivas, caminhos e
delineamentos predominantes para o campo da
filosofia da educação.
Albuquerque sustenta que os debates identitários travados no âmbito do GT – Filosofia da
Educação a partir de 1997 não resultaram em
modificações significativas nos rumos da investigação filosófica e educacional porque a produção
acadêmica dessa área continuou amplamente
baseada na produção de estudos de autores vinculados a tradição filosófica (ALBUQUERQUE,
2003). Por sua vez, Gallo considera essa tendência
na produção de trabalhos vinculados ao pensamento de um determinado teórico sob uma dupla
perspectiva. Por um lado, cumpre um importante
papel na consolidação da filosofia da educação
como uma tradição de pesquisa. Por outro lado,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
tem o efeito nocivo de conduzir ao fechamento da
investigação em torno dessa perspectiva, acarretando a perda do potencial criativo do pensamento
(GALLO, 2007). Em nosso entendimento, essa
dualidade constitui um dos principais problemas
que circundam a pesquisa e o ensino em Filosofia
da Educação no Brasil.
Considerações finais
No âmbito da discussão explicitada no decorrer
desse estudo, evidenciamos o fato que distintas
orientações teóricas produzem diferentes concepções de filosofia da educação e, consequentemente,
diferentes formas para o seu ensino. Tal quadro
torna-se ainda mais complexo quando consideramos a diversidade da formação inicial e continuada
dos professores que atuam no campo da filosofia
da educação. Isso porque, ainda que seja possível
encontrar profissionais detentores das mais diversificadas formações, a maioria é formada em
pedagogia ou filosofia, ou em ambos os cursos,
ou, ainda, têm graduação em pedagogia com pós-graduação em filosofia, ou graduação em filosofia
com pós-graduação em educação.
Se considerarmos que a formação (graduação e
pós-graduação) do professor de filosofia da educação não é consensual, resta saber como e até que
ponto essa formação diversificada pode implicar
em compreensões distintas do lugar e função do
campo da Filosofia da Educação no curso de pedagogia e, consequentemente, como tal enfoque
teórico-metodológico distinto orienta a sua prática
em sala de aula, afetando assim a sua contribuição
à formação do pedagogo e dos demais estudantes
de outras licenciaturas.
Diante do exposto até aqui, é possível constatar
que nos dias atuais o campo da Filosofia da Educação continua permeado pelo antigo dilema que
faz com que teóricos, pesquisadores e professores
tenham que eleger a vertente filosófica ou a pedagógica como predominantes tanto na formulação
de sua concepção de filosofia da educação, quanto
para o seu ensino. Em ambos os casos persiste uma
indesejável priorização de uma área em detrimento
de outra. Não obstante, tais questões constituem importantes lacunas na literatura especializada acerca
da formação docente, visto que ainda são escassos
os estudos acerca do ensino dos professores de
Filosofia da Educação no Brasil.
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Recebido em 12.11.2012
Aprovado em 07.01.2013
30
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013
Maria Judith Sucupira da Costa Lins
NATUREZA DA EDUCAÇÃO E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
Maria Judith Sucupira da Costa Lins*
RESUMO
Este artigo focaliza o problema da natureza da educação e sua relação com a filosofia
da educação. É apresentada uma discussão sobre a natureza da educação e enfatizada
a necessidade de se entender o conceito de educação para se prosseguir através da
filosofia da educação. O propósito deste artigo não é trazer uma filosofia da educação
específica como modelo. O objetivo é discutir educação a partir da perspectiva da
filosofia da educação. A filosofia da educação tem sido pensada para investigar a
natureza e fins da educação de modo a oferecer elementos para a prática educativa.
Questões sobre educação levam as pessoas a questionar sobre a natureza da educação
e por esse motivo é importante desenvolver o campo da filosofia da educação.
Diferentes concepções de educação têm um aspecto comum concernente à necessidade
de discussão mais profunda sobre fins e processos educativos. A investigação sobre
educação é interminável e a tradição contemporânea e histórica da filosofia da educação
nos convida a continuar a investigação sobre a natureza da educação na modernidade.
Entender a natureza da educação é importante para todos os que estão interessados
no desenvolvimento de pessoas para o desafio de um mundo novo.
Palavras-chave: Natureza da Educação. Filosofia da Educação. Concepção de
Educação. Fins da Educação.
ABSTRACT
NATURE OF EDUCATION AND PHILOSOPHY OF EDUCATION
This paper focuses on the problem of the nature of education and its relation to the
philosophy of education. We present a discussion of the nature of education and we
emphasize the importance of understanding the concept of education in order to go
through the philosophy of education. The purpose of this article is not to show a
specific philosophy of education as a model. We intend to discuss education from the
perspective of the philosophy of education. The philosophy of education has been
treated as a way of investigating the nature and aims and objectives of education in
order to offer elements to educational practice. Questions on education lead people to
ask about the nature of education and that is why it is important to develop the field of
philosophy of education. Different conceptions of education have a common aspect
concerning the need of deeper discussion on educational aims and objectives and
processes. The inquiry about education is endless and the historical and contemporary
* Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Associada
do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da UFRJ. Endereço para correspondência: Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avenida Pasteur, 250, fundos - 2º andar. CEP: 22290-240 – Rio de
Janeiro, RJ. [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013
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Natureza da educação e filosofia da educação
tradition of philosophy of education invites us to continue the investigation about
the nature of education in modern times. Understanding the nature of education is
important for all who are interested in developing people for the challenge of a new
world.
Keywords: Nature of Education. Philosophy of Education. Conception of
Education. Aims and Objectives of Education.
1. Introdução
A ideia da discussão da Natureza da Educação
em relação à Filosofia da Educação se fundamenta
em sua característica conceitual necessária para a
compreensão de todos os demais temas presentes na
atividade de um professor de Filosofia da Educação.
Natureza é o que há de mais peculiar a algo, aquilo
que é em si mesmo e que o define. A natureza de
uma coisa é o que faz com que esta coisa seja o que
é, ao mesmo tempo em que a distingue de todas as
outras coisas. Por isso, ao nos aproximarmos do
problema da Filosofia da Educação necessitamos
entender a Natureza da Educação.
Em recente obra sobre Filosofia da Educação,
no capítulo escrito especialmente sobre Natureza
da Educação, lê-se: “começo com a observação
que o termo ‘Educação’ se refere, em seu sentido
primeiro, a práticas mais ou menos sistemáticas de
supervisão e orientação das atividades de pessoas
de modo a pretender promover formas válidas de
aprendizagem e desenvolvimento.” (CURREN,
2007, p. 3). O referido autor passa então a analisar
a questão proposta a partir da discussão sobre o
estabelecimento dos fins da Educação, pensando
sobre como esta deve ser realizada e chegando ao
problema da seleção do seu conteúdo. Ainda sobre
a centralidade desse tema, o mesmo autor diz: “a
maioria das questões sobre educação nos conduzirão, cedo ou tarde, a perguntar sobre a Natureza da
Educação”, e, ainda, que pensar sobre a Natureza
da Educação é “um bom ponto para começar a
aprender a pensar filosoficamente sobre educação”
(CURREN, 2007, p. 7, grifo do autor).
Nosso objetivo aqui é refletir sobre a Natureza
da Educação com o olhar voltado para a Filosofia
da Educação, a fim de que seja possível se chegar
a algumas considerações sobre a relação existente
entre elas. Uma definição é um complexo conceitual que busca delimitar de forma mais precisa
32
possível a natureza de uma coisa, e por isso é difícil
a sua elaboração. Aristóteles (MCKEON, 1941),
no Livro VII, 1028b, identifica a questão: o que é
o ser? com a questão: o que é substância? Em sua
reflexão, analisa a aplicabilidade do conceito de ser
inicialmente a coisas sensíveis apenas e a estende
para as não-sensíveis, de modo a afirmar que um
ser é tudo o que pode ser tomado como sujeito de
uma proposição afirmativa. Tal consideração nos
leva a olhar a Educação como um ser na medida
em que sobre Educação são apresentadas proposições afirmativas. Surgem então dois momentos do
conhecimento sobre Educação:
1. Existencial, que é a consciência de que a
coisa está aí.
2. O segundo momento: o que é isto?, nos
eleva acima do plano puramente sensorial
da informação para o plano cognitivo da
coisa, o que é função da razão.
Não é uma das mais fáceis tarefas buscar o
entendimento da Educação, no entanto, clarificar
as ideias sobre conceito de Educação “é uma necessidade urgente”, já mostrava Peters (1965, p.
88), fundador da London School of Philosophy of
Education nos anos 1960, acrescentando que “tal
clarificação conceitual é eminentemente a tarefa do
filósofo da educação” (PETERS 1965, p. 88). Essa
necessidade permanece ainda não completamente
satisfeita, e por isso continuamos a nos debruçar
sobre esse problema na tentativa de encontrar uma
solução.
Quando se tem o propósito de refletir sobre
questões de Filosofia da Educação, o primeiro
ponto que surge é, assim, a questão da Natureza.
A compreensão do ser da Educação é fundamental
para que se prossiga indagando sobre outros aspectos da Educação. O objeto da educação é o homem
concreto, que é indivíduo e ao mesmo tempo em
si mesmo é ente de humanidade, ente universal.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013
Maria Judith Sucupira da Costa Lins
Esse é um problema fundamental enfrentado pela
Educação. Cada ser humano é específico e ao
mesmo tempo pertence à humanidade. Em sua
individualidade, a pessoa é incomunicável em seu
ato de ser, sem, contudo, deixar de ser uma pessoa
de comunicação, tema este que é central na reflexão
de Habermas (1981) ao analisar o agir das pessoas
nos diferentes sistemas de organização social. Segundo o referido filósofo, a complexidade do agir
comunicativo é de tal ordem que parece não haver
uma saída para essa situação, nem na linguagem
nem no comportamento. Habermas (1981) faz críticas ao estudo parcial do ser humano e objeções à
fragmentação do estudo do homem.
Toda ciência estuda seres, mas somente a Filosofia se preocupa com o ser enquanto ser e continuamente está a questionar o ser. A Educação como
ciência que busca um agir sobre o homem segundo
finalidades específicas encontra grande dificuldade
porque seu objeto é um ser ambivalente, é sujeito/
objeto; ser de liberdade/ser de natureza; espírito/
matéria. É um ser de contradições que se descobre
continuamente como um desconhecido, que se
revela e se oculta, de modo que precisa ser guiado
por fins (MARITAIN, 1961), os quais constituem
a base de sustentação da atividade educativa.
Entendemos que o ser humano é um ser da
experiência. É nessa perspectiva que Heidegger
(1963) afirma que o homem é o ser que indaga
sobre o ser, e ao se indagar sobre o ser o homem
encontra tudo aquilo que lhe diz respeito, iniciando o caminho da Filosofia. A Filosofia expressa
uma base de critérios que inspiram e orientam
um agir, especialmente o agir educativo. É nesse
sentido que vai se incluir a Educação. Heidegger
(1963), em suas reflexões sobre o problema filosófico, diz não ter chegado a uma resposta, mas
nos oferece pistas para uma continuidade dessa
investigação. Compreender o ser humano como
tal aparece então como indispensável para a atividade filosófica e educativa. A Filosofia enquanto
questionamento da totalidade envolve o próprio
ser humano, pois este é parte da totalidade, e desse
modo a Filosofia é um questionamento do próprio
ser humano. O ser humano é um ser que filosofa e
nesta ação busca saber sobre si e sobre o mundo
a sua volta. A Filosofia, ação realizada pelo ser
humano, não é uma atividade puramente especu-
lativa ou teórica do universo, mas envolve a sua
existência e o seu fazer. O problema no homem, de
ser o sujeito e o objeto do conhecimento, reveste a
Filosofia da Educação de peculiares dificuldades.
Toda vez que o homem se conhece a si mesmo,
nas formas conceituais, tende a tornar-se objeto
para si mesmo, mas ao mesmo tempo continua
sujeito da sua busca.
O fenômeno da Educação acontece e é um fato
tanto individual como social. Apresentar uma descrição do acontecimento da Educação não é nosso
objetivo e também não pretendemos nos estender
na múltipla questão de conceitos. Entendemos
que é preciso indagar sobre Educação e Filosofia,
lembrando que em referência à última, pode-se
dizer que “O único guia adequado para filosofia é
a própria filosofia.” (DANTO, 1971, p. 9). É ainda
o mesmo autor quem afirma:
Pode-se descobrir muito sobre filosofia – pode-se saber sua história e os nomes de seus grandes mestres e
mesmo suas doutrinas características, famosas e não
saber realmente o que é filosofia [...]. Só se aprende
o que é filosofia fazendo filosofia, lendo filosoficamente. Não há outro meio. O único caminho para
filosofia é por meio da própria filosofia. (DANTO,
1971, p. 11).
Ampliamos esse comentário para o domínio
da Filosofia da Educação, sobre o qual estamos
refletindo, e afirmamos que somente se aprende
Filosofia da Educação fazendo Filosofia da Educação, ou seja, abordando os temas da Educação no
questionamento próprio da Filosofia da Educação.
Para que isso se torne realidade, temos que iniciar
refletindo sobre o que é a Educação, procurando
apreender o que é a Natureza da Educação e em
seguida relacioná-la com a Filosofia para começarmos os questionamentos referentes à Filosofia
da Educação.
2. Reflexões sobre a Natureza da Educação
Passemos assim à questão propriamente dita da
Natureza da Educação. Pode-se entender que Educação é uma atividade exercida normalmente por
adultos sobre sujeitos imaturos e caracteriza-se por
ser teleológica, com o fim de desenvolver estruturas
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013
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Natureza da educação e filosofia da educação
de aprendizagem que levam a comportamentos
considerados úteis, necessários e valiosos. Essa
apresentação da Educação no conceito que agora
organizamos tem caráter estipulativo e tenta iniciar
a questão da sua Natureza.
Pensar sobre a Educação muitas vezes pode
levar alguém a tomá-la apenas como um processo,
no entanto, segundo Standish (2007a), questionar a
Natureza da Educação posiciona-se como prioridade. Faz-se imperiosa a discussão sobre a Natureza
da Educação. A concepção de Educação tem uma
base anterior à própria evolução do seu processo, de
modo que o já citado filósofo Peters, ao se perguntar
sobre o que é um processo educacional analisa a
questão respondendo que “Educação não se refere
a nenhum processo; mais precisamente, ela encerra
critérios aos quais qualquer processo deve se adequar” (PETERS, 1967, p. 1). Essa afirmativa não
nega o processo educacional, apenas procura evitar
o reducionismo do conceito de Educação à realização de um processo, enfatizando a perspectiva
mais ampla e filosófica da Educação.
Isso não impede que alguém, ao ser educado,
realize a sua construção e efetue aprendizagens que
compõem um processo. No entanto, não esqueçamos que “Educação é inseparável do julgamento
de valor” (PETERS, 1967, p. 3), e se concordamos
com esta afirmativa, a Educação acontece a partir
do momento em que podemos identificar valores
para a vida do ser humano, o que é central à Filosofia.
Embora não pretendendo analisar esse ou
outro filósofo da Educação mais extensivamente,
as ideias sobre Educação apresentadas por Peters
foram destacadas por serem significativas na medida em que estão voltadas para questões filosóficas
numa concepção da Educação visando a finalidade
de aperfeiçoamento do ser humano. Note-se ainda
que suas ideias e propostas permanecem na atualidade, conforme explica Palmer (2001) ao incluí-lo
entre os 50 maiores filósofos modernos que pensam
sobre Educação.
Em trabalhos de diferentes autores, Peters tem
sua obra analisada e comentada, como, por exemplo, por Barrow (2009), que destaca o pioneirismo
e importância do referido filósofo inglês nessa
área, e aponta a contribuição de seu pensamento
para o entendimento da Filosofia da Educação. A
34
atualidade dessa Filosofia da Educação é também
ressaltada por Katz (2009), afirmando que para se
educar cidadãos para o século XXI precisamos recorrer aos conceitos apresentados por Peters em sua
proposta de Filosofia da Educação. Acrescente-se
ainda Cuypers e Martin (2009) atribuindo o desenvolvimento da moderna Filosofia da Educação ao
papel fundamental daquele filósofo e ressaltando
sua originalidade e atualidade. O fato de termos
destacado nesse momento o nome de um filósofo
em nossas reflexões não significa que sua teoria
servirá de linha condutora ao nosso pensamento.
As citações justificam-se na medida em que se
pode considerar sua importância no que tange ao
nosso objetivo, que é a Natureza da Educação e sua
relação com a Filosofia da Educação.
Educação não se expressa por meio de um
conceito abstrato, pelo contrário, é uma atividade
concreta que envolve pessoas comprometidas com
valores e engajadas na prática pedagógica. Transformar é a ideia central da Educação, a qual envolve
aprendizagens, lembrando-se sempre que nem toda
aprendizagem, principalmente pelas características
de intenção, será educacional. Por ser concreta,
datada e situada, a importância da historicidade da
Educação é inegável e esta é realçada pela ação das
pessoas concernentes à prática social. Educação é
uma atividade sistemática intencional, ao mesmo
tempo em que é uma relação ético/existencial.
Dessas reflexões iniciais podemos dizer que a
Educação é um fato e ao mesmo tempo uma disciplina que trata deste fato. É prática e teórica, é
in fieri e in facto. Acrescentamos que a Educação
é uma atividade própria do homem na sociedade,
mesmo sem que este disso se dê conta. Desse
modo, é possível dizer que os ritos de iniciação
praticados pelo homem primitivo configuraram
um fazer da Educação e tinham sua eficácia em
determinado contexto histórico e social. A despeito de a autoconsciência da Educação se verificar
como problema somente no que se convencionou
chamar a Antiguidade Clássica Grega, existia, no
entanto, a Educação anteriormente, se bem que de
formas e com objetivos diferentes de uma situação
de problema do ser do homem.
Tomando-se a questão do problema do ser do
homem como o marco fundamental da atividade
educativa, pode-se considerar que é a partir da
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Maria Judith Sucupira da Costa Lins
reflexão grega que propriamente surge a Educação
como inquietação da consciência. No entanto, a
partir dessa perspectiva do papel dos ritos na vida
social, cabe dizer que os povos primitivos anteriores à antiguidade clássica faziam Educação. Esta
atividade era exercida, insistimos, embora ainda
sem se caracterizar por uma forma plenamente
consciente, de modo que, à sua própria maneira, a
Educação também ali acontecia.
A partir do século XIX a Educação tende a
se fazer também científica e procura auxílio nas
teorias científicas, principalmente aquelas que
se iniciavam com referência ao comportamento.
Em 1879, Wundt inaugura em Leipzig o primeiro
laboratório com essa intenção, o que é um marco
frequentemente citado. Não seguiremos aqui o
tentador fio da História, apenas observamos quando
a Educação começa a ser vista com possibilidades
científicas e por isso recorre a estudos de cunho
científico.
Esse é um problema que já havia sido tratado
por Herbart (1776-1841) ao tentar não só aproximar a Educação da cientificidade, mas extrair da
Psicologia os meios e da Filosofia os fins para sua
realização. Herbart (2010) tentou situar a Educação
como a aplicação da Psicologia. Essa afirmação
não se mantém, nem poderia ser considerada ao
se refletir sobre a Natureza da Educação, e se a
aceitássemos entraríamos em contradição com
nosso objetivo de identificar a própria Natureza
da Educação. Embora Herbart (2010) seja citado
como um dos pioneiros quanto à preocupação com
a cientificidade da Educação, na realidade, quando
faz uso do termo ciência esta aplicação se dá em
um sentido bem mais amplo do que se conhece hoje
em dia. A questão da Educação em sua relação com
a ciência continua a ser altamente controvertida.
Em Educação, o cientista não pode ser apenas o
cientista como é conceituado em referência à Física,
mas tem que passar a um plano valorativo e ser
fundamentalmente um filósofo com preocupação
científica.
Educação é fato e valor. Ser e dever ser. Realidade e norma. Além disso, vem sendo fortalecida
uma concepção de educação que reconhece tanto
a permanência quanto a mudança; experiência
registrada como a experiência direta; o domínio
das ideias quanto o domínio da matéria, conforme
aponta Chambliss (2009). A Educação é uma atividade prática e um constante refletir teórico, sendo
marcada pela dinâmica da relação na composição
dialética enriquecedora de sua própria natureza.
3. Questões sobre Filosofia da Educação
Passando a uma reflexão mais especificamente
dirigida para questões sobre a Filosofia da Educação, vejamos em primeiro lugar o que se pode
entender por Filosofia. A Filosofia é a disciplina
que consiste em discutir seu problema interno. Ao
mesmo tempo é possível afirmar que a Filosofia não
é uma disciplina, pois a rigor não tem um objeto
como as outras disciplinas. É uma indagação sobre
a raiz das coisas, um constante questionamento
e um deslumbramento diante destas. Podemos
encontrar três ordens de problemas filosóficos
fundamentais:
1. Saber crítico a partir da reflexão;
2. Saber sobre o mundo e se situar na realidade;
3. Reflexão e construção sobre o sentido da
vida. Atitude diante da vida. O homem
antecipa o que vai ser.
Essas ordens de problemas filosóficos exemplificam a dificuldade da construção de um sistema
de pensamento filosófico. Podemos ainda esquematizar o problema, para efeitos didáticos, nos
seguintes aspectos:
1. Método de pensamento que se refere à
reflexão crítica sobre condições e responsabilidades da ciência do saber;
2. Atitude diante da existência visando conhecer a totalidade, a multiplicidade à luz dos
princípios fundamentais;
3. Saber das coisas, o que é fundamental para o
homem porque é o ser que age racionalmente e toma consciência crítica do seu existir.
Na realidade, poucos filósofos tentam abarcar
essa totalidade do problema da inteligibilidade do
ser, e do fundamento do agir do ser, em razão de
sua ampla extensão. Uma das funções da Filosofia
é a análise crítica das condições de possibilidade
do saber em geral e de cada uma de suas formas
especiais. Sendo assim, podemos desde logo inferir
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013
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Natureza da educação e filosofia da educação
que constitui uma das tarefas básicas da Filosofia da
Educação definir a natureza do saber pedagógico.
A atividade prática e a reflexão são características, mas não são suficientes para explicar a
Filosofia. Considerando que a Filosofia venha a
se constituir uma disciplina própria, ainda assim
observamos, como salienta Archambault (1965, p.
8, grifo do autor), que se pode entender também que
a “Filosofia é, naturalmente, sempre a filosofia de
alguma coisa: filosofia da arte, da ciência, da política. Filosofia tem um objeto próprio tradicional”.
Com essa perspectiva se começa a compreender
a Filosofia da Educação. A Filosofia tem como
conceito a exigência da consciência em sua função
de trabalhar problemas da indagação do homem
sobre si mesmo e a realidade à sua volta. Essa é a
centralidade da atividade filosófica, por isso não se
propõe a apresentar respostas, mas criar problemas.
Nesse sentido, a Educação segue outra vertente
porque se apresenta como prática pedagógica. O
problema de ser a filosofia filosofante é se o sujeito
pode de certo modo transcender a situação e neste
esforço reflexivo chegar a se dar conta de todos os
fatores que exercem influência sobre ela própria e
a realidade.
A Educação tem a função de indagar e problematizar, acontecendo, deste modo, a aproximação
com a Filosofia, pois também a Educação se propõe
questões muito mais do que consegue encontrar
respostas. A Filosofia se apresenta como ação e
reflexão, o que nos permite pensar que a Filosofia
é o momento em que o espírito atinge a si mesmo. A partir desse conceito específico, pensemos
também a Filosofia da Educação, unindo esta
ação e reflexão. Embora se possa considerar que
a análise filosófica da realidade educativa existiu
desde a época dos diálogos platônicos, enquanto
disciplina autônoma, a Filosofia da Educação é de
criação recente. Há inúmeras publicações alemãs
que são incontestavelmente obras de Filosofia da
Educação, no entanto, a disciplina propriamente
dita e assim enunciada surge no final do século
XIX, nos Estados Unidos.
A atitude metodológica proposta para a Filosofia da Educação pretende imprimir um caráter
científico, pois é semelhante à existente em outras
ciências, embora as afirmativas não sejam precisas
e os questionamentos persistam. A Filosofia pres36
supõe necessariamente a análise crítica, mas tem
que oferecer uma visão do mundo, o que mostra
que não se reduz a um diletantismo intelectual.
A Filosofia tem necessidade de estar conectada
com a realidade e, analogamente, ao pensamento
de MacIntyre (1984), que afirma ser estéril para a
filosofia refletir no recolhimento “de uma poltrona”, também nós consideramos esta esterilidade
para a Filosofia da Educação que se afastasse da
vida real.
A atividade da Filosofia se realiza no plano do
conhecimento e dos valores, de certo modo o que
vem a constituir o sentido fundamental da Filosofia,
mas que reflete sem se distanciar da realidade concreta dos fatos históricos e socioculturais. Filosofia
da Educação é a atividade prática de reflexão sobre
o significado e o agir educativo e ela está fortemente
inserida na realidade concreta. É também com essa
preocupação que Pollack (2007) se questiona sobre
o que seja a Filosofia da Educação, lembrando que
é preciso situá-la no campo social para que esta se
realize. Entendemos que a Filosofia da Educação,
que é uma atividade de crítica, no plano do conhecimento e dos valores, se encontra inserida na
realidade sociocultural. A ausência de valores como
base na Filosofia (KENAN, 2009) é uma crítica
pertinente que vem se fortalecendo cada vez mais
no que se refere à ideia de Educação.
Essas são características, mas não são suficientes. A Filosofia da Educação é uma disciplina cujo
problema é discutir as realidades educativas. O
homem é o ser capaz de pensar além do que é imediatamente exigido pela sua adaptação biológica.
Tem consciência de si inserido no mundo e é um
ser que se autoconstitui, ao mesmo tempo em que é
uma liberdade que atua em função de valores. Portanto, a Filosofia da Educação, num sentido prático,
se apresenta também como uma teoria de valores
na construção do ser humano. Embora tenhamos
que compreender que “a ética só indiretamente tem
algo a ver com o problema da filosofia da educação”
(ALVAREZ, 1969, p. 19). Isso porque a Filosofia
da Educação não se limita a problemas da ética,
embora eles tenham vital importância.
A Filosofia da Educação tem um papel que se
amplia além dessa discussão, o que nos leva a pensar sobre qual é o lugar da Filosofia no estudo da
Educação e sua significação. Standish (2007b) tenta
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013
Maria Judith Sucupira da Costa Lins
responder a essa questão examinando a Filosofia da
Educação como um campo de estudo com característica própria, sem com isto se distanciar da relação
com a Filosofia. Diferentes concepções filosóficas,
desse modo, devem compor o estudo da Filosofia
da Educação. Poder-se-ia pensar que a ciência, tal
como hoje se apresenta, em seu formato rígido,
condiciona o pensamento filosófico, no entanto
a Filosofia não se restringe aos limites impostos
pela ciência. A natureza própria da Filosofia é lidar
com problemas universais, o que não a impede
de construir um olhar histórico, enquanto a Educação procura conciliar o universal ao particular,
debruçando-se sobre cada educando enquanto uma
pessoa única. Desse modo, é preciso não esquecer
que “o estratagema da filosofia consiste em jamais
se deixar determinar por um campo único” (GROUPE DE RECHERCHES SUR L’ENSEIGNMENT
PHILOSOPHIQUE, 1977, p. 7).
Para a Associação Latino-Americana de Filosofia da Educação (ALAFE), em documento divulgado no congresso realizado no início de agosto de
2011 (CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, 2011), a Filosofia
da Educação é, antes de tudo, campo da filosofia.
Se a Filosofia é uma indagação sobre a raiz das
coisas, pensemos na Filosofia da Educação como a
indagação sobre a raiz da Educação. É um constante
questionamento que busca ser crítico e conhecer o
mundo para se situar na realidade educativa. É uma
reflexão que antecipa e oferece condições para a
construção de significados no campo da educação.
E, principalmente, a Filosofia da Educação tem a
marca dos valores (O’CONNOR, 1967), a qual não
pode ser menosprezada.
Resumindo, a Filosofia da Educação é uma
atitude diante da vida educativa, na medida em que
as questões filosóficas são centrais para a Educação
na teoria e na prática. A Filosofia alimenta o debate
sobre a Educação (OANCEA; BRIDGES, 2009),
permitindo deliberações concretas para a prática
pedagógica. Diante dessas reflexões, ousamos afirmar que não é possível compreender Educação sem
uma concepção filosófica, ou seja, uma teoria da
educação está relacionada à filosofia, à antropologia filosófica, à ética e ao conceito de ser humano.
Teoria e prática em Educação revelam uma opção
filosófica daqueles que estão envolvidos neste
empreendimento fundamental para o ser humano.
Filosofia da Educação pode ser entendida conforme
a seguinte argumentação:
Não é seu objeto que distingue a filosofia de outras
disciplinas. São as suas finalidades, suas preocupações e sua maneira de investigação. [...] Na medida
em que os problemas de educação oferecem um
campo rico para a análise filosófica, e a educação é
uma atividade complexa, vital e baseada em valores,
parece que o estudo de filosofia da educação pode
ser um estudo legítimo, válido e proveitoso. (ARCHAMBAULT, 1965, p. 8).
É nesse contexto que a experiência ganha a
centralidade do problema filosófico da educação,
notadamente em Dewey (1952), que apresenta
fortemente o conceito de experiência como nuclear
para uma Filosofia da Educação ao dizer que Educação é a contínua reconstrução da experiência.
A presença do pensamento de Dewey (1958) na
Filosofia da Educação torna-se consistente por sua
exigência de que esta seja entendida necessariamente como uma prática que surge das condições
sociais na qual ela é exercida.
A junção dos termos “Filosofia” e “Educação”
com a preposição de genitivo encaminha-nos para
a ideia de posse. Seria a Educação a dona da Filosofia? Submete-se, desse modo, o pensar filosófico
à Educação? Nossas pesquisas nos respondem
negativamente e nos mostram que uma Filosofia
da Educação exige a discussão de componentes
básicos diversos, dos quais se destacam a finalidade
da educação, propostas de sistemas educacionais e
organização de currículos, além do significado do
papel de todos envolvidos nessa atividade.
Pensar sobre Filosofia da Educação nos conduz
a caminhos diversos, a transformações e linhas de
pensamento que se multiplicam. Da Filosofia da
Educação se chega à Teoria Pedagógica, que por
sua vez se relaciona à Psicologia da Educação,
Sociologia da Educação, Economia da Educação
e outras formas de expressão do conteúdo educativo. Não estamos no momento abordando esses
diferentes e importantes campos de relação da
Educação, mas sim refletindo sobre a Filosofia
da Educação, entendendo sua importância para
os desafios que se apresentam para a construção
de um novo mundo.
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37
Natureza da educação e filosofia da educação
4. Considerações finais
O tema aqui desenvolvido nos permitiu uma
reflexão que tem prolongamentos na prática educacional ao mesmo tempo em que suas raízes se
fincam no aprofundamento teórico. Filosofia da
Educação é uma permanente indagação e, precisamente por essa característica, nos instiga a
continuar buscando não só novas respostas, mas
também perguntas outras que surgem do contexto
atual.
Retornando ao objetivo proposto inicialmente,
é bom que não nos esqueçamos da importância do
conhecimento cada vez mais preciso do que é a
natureza da Educação. Para que se possa caminhar
no plano da Filosofia da Educação, a identificação
dessa natureza se nos apresenta como indispensável. Não há um conceito rígido e fechado sobre
o que é Educação, de maneira que sua natureza
pudesse facilmente revelar-se. Pelo contrário, qual
uma interminável cebola, é preciso tirar todas as
peles, remover todas as camadas para se chegar
ao núcleo do conceito de Educação. O tempo e a
História provocam o pensar contínuo sobre a natureza da educação, que tem suas bases na tradição
(ARENDT, 1983) e, simultaneamente, se lança
para o futuro.
Trata-se de um problema permanente para a
Filosofia da Educação, iluminar o significado dessa
atividade essencial do ser humano, de modo que
não nos contentemos com simples rótulos e fáceis
descrições do que, aparentemente, seria a natureza
da educação.
Finalizando, propomos que a discussão seja
continuada, pois sabemos que, na realidade, esse
tema não pode ser concluído. Muitos debates se
fazem necessários para que tenhamos pistas para
seguirmos na caminhada educativa. Natureza da
Educação não é um objeto, não é um dado estático,
nem muito menos uma informação que se consiga
ao estalar dos dedos. A Filosofia da Educação, em
sua complexidade e riqueza de análises e reflexões,
é o campo privilegiado para que o educador busque
e descubra essa identidade.
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Recebido em 12.11.2012
Aprovado em 26.01.2013
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013
39
Dante Augusto Galeffi
EDUCAÇÃO E FILOSOFIA: O FILOSOFAR COMO ATIVIDADE
FORMATIVA TRANSDISCIPLINAR NA EDUCAÇÃO BÁSICA –
CONSIDERAÇÕES POLILÓGICAS
Dante Augusto Galeffi*
Resumo
Trata-se de um ensaio que aborda a relação entre Educação e Filosofia a partir da
implicação decorrente do retorno obrigatório da Filosofia ao ensino médio nacional.
É também evidente o crescente interesse pela filosofia em todos os níveis da educação
básica, pelo reconhecimento de que se trata de uma atividade de pensamento dialógico
fundamental para o desenvolvimento humano saudável e criador. A abordagem
privilegia a experiência do pensar apropriador, próprio e apropriado, buscando-se
esclarecer a diferença entre uma filosofia para todos (básica) e uma filosofia profissional
(superior). Procura-se destacar o empoderamento do sujeito conhecedor como foco
primacial do filosofar na prática educativa, abordando diferentes instâncias propositivas
para tratar da relação de educação e filosofia. Estas aparecem nos tópicos escolhidos,
desenhando uma polilógica, formando um conjunto de tensores fundamentais que
mostram a investigação da questão filosófica da educação a partir do imperativo da
complexidade e do cuidado que se deve ter para não reduzir o acontecimento do pensar
apropriador ao domínio da linguagem explicativa. Trata-se também de um esforço
de compreensão a partir de si mesmo. Algo além da mensuração e da previsão. Algo
que se cultiva no tempo e que ganha densidade com a duração imprevisível do existir
singular.
Palavras-chave: Educação e Filosofia. Sócrates. Filosofia na educação básica. Método
dialógico. Abordagem polilógica e transdisciplinar.
Abstract
E D U C AT I O N A N D P H I L O S O P H Y: P H I L O S O P H I Z I N G A S A
TRANSDISCIPLINARY FORMATIVEACTIVITY FOR BASIC EDUCATION
- POLYLOGICAL CONSIDERATIONS
This paper aims to analyse the relationship between Education and Philosophy,
considering the implications of the mandatory return of Philosophy as a subject in the
National High School. It is clear the increasing interest in Philosophy at all levels of
basic education once there is recognition that it is dialogical thought activity for the
healthy and creative human development. The approach we deal with emphasizes the
* Doutor em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Associado III – DE
(UFBA). Coordenador do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (2011-2013) (UFBA).
Endereço para correspondência: Universidade Federal da Bahia / Faculdade de Educação – FACED/UFBA – Doutorado em
Difusão do Conhecimento. Av. Reitor Miguel Calmon - s/nº – Vale do Canela – Salvador-BA – CEP 40110-100. [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013
41
Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas
experience of the appropriaton (the dynamic relationship between being and being
there), appropiating and assigning. We try to show the difference between a philosophy
for all (basic) and a superior philosophy (top). We try to highlight the empowerment
of the knowing subject as the main focus of philosophizing in the educational practice.
In order to achieve our goals, we discuss different purposeful instances in a way to
understand the relationship between education and philosophy that appear in the
chosen topics where we draw a poly-logical approach. The analysis leads to a set
of fundamental tensors that shows the investigation of the philosophical question in
education from the imperative of complexity and care we must have in order not to
reduce the occurrence of appropriation to the domain of the language explanation. It
is also a comprehension effort of the self, something beyond the measurement and
prediction that grows over time and gets stronger in an unpredictable time of our
singular existence.
Keywords: Education and Philosophy. Philosophy for Basic Education. Dialogic
Method. Poly-logic and Transdiciplinary Approach.
Abertura: uma abordagem polilógica
do sentido – restabelecendo a relação
entre educação e filosofia em uma chave
radicalmente imprevisível, como uma
obra de arte
Filosofia e Educação encontram-se separadas
em virtude dos processos históricos da modernidade. Em uma civilização esquizofrênica e lábil
como a dominante, todos os movimentos tendem
à dissociação e à fragmentação, predominando um
estado inercial de desatenção e descuidado geral.
A filosofia se vê fora da educação, e a educação
se encontra apartada da atitude filosófica. A filosofia deixou de lado, já há muito tempo, a atitude
filosófica radical. A distância entre as academias
filosóficas e o senso comum da educação é tão intensa que se pode ouvir de longe sua dissonância
e atropelo. A insensatez domina o cenário dos personagens conceituais que desfilam suas erudições
nos palcos acadêmicos. E a vida ela mesma, como
fica a vidavividavivente de cada dia? Será essa uma
pergunta filosófica e pedagógica simultaneamente?
Filosofia e Educação tornaram-se dois territórios distantes, abissalmente, um do outro. A
modulação disciplinar da modernidade é relativamente responsável por isso. A Filosofia acadêmica
dedica-se às historiografias filosóficas, investigando pouco ou quase nunca as emergências da vida
humana de todas as idades, de incontáveis tempos.
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Mantida a dicotomia motivada pelo desconhecimento da vida sábia, qual é a serventia de uma
disciplina de Filosofia que não alcance o âmbito de
um questionamento radical? Um questionamento
acerca do ser que somos, e se limite a transmitir
conteúdos da suposta tradição filosófica hegemônica, para depois aplicar testes ou provas a serem
respondidas como treinamento para o sucesso nos
exames de acesso ao ensino superior?
Se não tivermos a coragem de colocar a questão filosófica da educação nacional em processo
de investigação rigorosa, deixaremos passar a
oportunidade histórica de decidirmos questões do
nosso próprio destino, ampliando, assim, o âmbito
dos estudos filosóficos fundamentais e formadores
de professores licenciados ou não em filosofia,
permitindo ampliar o campo de formação do
educador-filósofo. E como ainda não há esse educador de filosofia que já se encontre com tamanha
possibilidade filosófica viva, é preciso, também,
se ter a coragem para projetar os novos espaços e
tempos de convivência de um filosofar consequente
e transformador do estado de consciência de si
mesmo pelo agir corresponsável e comunitário.
O passo a ser dado é muito grande. Temos a
nosso favor a força do tempo ancestral que vem
ao nosso encontro, trazendo-nos de volta ao tempo instante. Somos levados a decidir pelo mais
antigo, o mais arcaico, o evidente, o mais sublime
dos modos de amar: o amar Sophia! Contudo, o
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Dante Augusto Galeffi
mais evidente e sublime dessa decisão encobre-se
na impossibilidade de se alcançar o fim último da
“verdade” por meio de representações eidéticas
puras ou por experimentações seriadas, porque o
próprio pensamento já se percebe “em outra parte
sempre”, justamente por ser “pensamento”, ser já
passado. Isso nos leva muito longe em relação à
função propriamente formativa da filosofia na educação básica, nos afastando da tradição que pensa
dicotomicamente a Filosofia em sua relação com
a Educação e com a Vida.
Temos aqui a delimitação de um campo de
pesquisa que se mostra emergente e necessário,
caso se tenha a coragem de levar a bom termo uma
radical maneira de experienciação da aprendizagem
filosófica básica, a partir de vivências consistentes
relativas aos principais desdobramentos de nossa
condição de seres pensantes e desejantes. Seres
estratificados sócio-historicamente de acordo com
cada caso específico que é sempre uma constelação
serial de casos. A tarefa não é a simples transmissão
de formas acabadas, e sim o exercício efetivo da
investigação filosófica permanente, que sempre se
renova e surpreende na ação própria de cada caso
implicado.
O mais antigo vem a nós como inspiração: Sócrates e o nexo indissociável de
filosofia e educação na perspectiva do
pleno desenvolvimento humano
Quando Sócrates inventa a filosofia abre-se um
abismo entre a forma tradicional de transmissão
da Sabedoria e sua maiêutica ou método de investigação de si mesmo, a partir de um movimento
dialógico de perguntas e respostas. A filosofia inaugurada por Sócrates é uma nova forma de educação,
não sendo possível dissociá-la do movimento de
formação do homem grego, uma nova Paideia,
que se apresenta como um desafio absolutamente
inusitado para a humanidade, e não apenas para o
povo grego. Como afirma Jaeger (1995, p. 512):
“Sócrates é o mais espantoso fenômeno pedagógico
da história do Ocidente”. Quer dizer, na origem da
filosofia ocorre o mais vistoso e brilhante fenômeno pedagógico de todo o Ocidente? Como isso se
mostra e procede?
Como assinala Figal (2003) em seu ensaio
Sócrates - O filósofo, o radicalmente novo em Sócrates pode melhor ser percebido em um diálogo de
Platão no qual, a partir de uma questão colocada por
Sócrates, dois personagens dialogam acerca da distinção entre o sofista, o político e o filósofo (Teeteto
e o Estrangeiro de Eléia). Sócrates aparece como
divisor de águas na tradição do pensamento grego,
justamente por sua atitude interrogante. Diz ele:
No ‘Sofista’ de Platão, fala-se dos pensadores importantes antes de Sócrates, de Parmênides e Heráclito,
e também de Empédocles, e se diz que tratavam
seus ouvintes como crianças: contavam histórias,
sem dar importância a que os pudessem seguir ou
não (Soph. 242c, 243ª-b). Essa censura é decidida e
também injusta como uma posição recém-inventada.
Que o gestual na fala dos nomeados se distinga pelo
contraste, perca sua força de persuasão e abra a perspectiva de desenvolver pensamentos como fala, em
perguntas e respostas, verificando se o interlocutor
pode acompanhar ou não, isso vem de Sócrates.
[...]
O que muda não é algo exterior, é decididamente
mais que uma questão de estilo. Pensamentos são
diferentes quando participados e partilhados, não
mais ensinados ou anunciados. Aliás, só agora os
tomam como pensamentos, pois exatamente porque
agora sua articulação linguística é levada a sério, é
conscientemente experimentada, eles se destacam
de sua respectiva forma linguística. Pensamentos,
agora se percebe, podem ser formulados de um
modo, mas também de outro, e só se tornam compreensíveis se pronunciados em diversos modos e
versões. Além disso, agora se vê a importância dos
pensamentos para a vida pessoal e em grupo: onde
se acha importante cuidar da sua articulação, eles
sempre já determinaram a vida pessoal; é possível
experimentar que eles nos dizem respeito como algo
comum. (FIGAL, 2003, p. 129-130).
Essas surpreendentes palavras ofertam o tom do
gesto radical de Sócrates ao realizar uma Paideia
reinventada no diálogo tensivo com a tradição.
O tradicional faz-se de novo desconhecido em
sua nascente. O que emerge é a possibilidade de
uma individuação implicada radicalmente com a
verdade comum. A comunidade é o fundamento
metodológico da filosofia nascida com Sócrates.
Ao transformar uma discussão retórica em uma
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013
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Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas
investigação continuada, ele inicia o movimento da
filosofia como aspiração à sabedoria. Tudo, então,
começa entre amigos. A filosofia acontece como
reunião de amigos: ela pressupõe o laço afetivo
que implica cada amigo em si mesmo, pela relação
dialógica com o desconhecido: o perguntado – ti
estin – o que é isto?
O perguntado da filosofia socrática mostra o
desconhecimento humano em relação ao seu estado existencial. A busca do conceito universal e
sua essência ideal, na perspectiva alcançada, não
é o principal foco da investigação socrática. Seu
principal foco é o acontecimento do desvelamento
da condição humana – sua verdade comum. Sócrates afirma a impossibilidade da investigação
filosófica fora do diálogo comum entre amigos do
Saber. Como alguém pode ser levado a investigar
a si mesmo – sua alma – se não despertar para a
“sua” alma na relação com outras almas?
Ninguém aprende a pensar a partir de si mesmo
sem se estranhar renovadamente no jogo dialógico
do perguntar e responder, jogo implicado com os
estados partilhados de percepção e possível intuição direta de si mesmo em relação à totalidade
conjuntural.
O movimento inaugurado por Sócrates chamado de filosofia permanece ainda fecundo em sua
abertura germinal, possibilitando repensar a educação filosófica interligada às emergências dos seres
humanos vivos, requisitando cuidado e dedicação,
empreendimentos de aprendizados significativos
conectados com as questões da existência comum
e suas singularidades. A aprendizagem filosófica
diz respeito ao autoconhecimento nessa implicação
comum e singular. A partir de Sócrates, o sentido da
educação humana se amplia em suas possibilidades,
adquirindo uma abertura convergente na direção do
trabalho infinito de compreensão teórica e racional
do ser que somos. Isso segundo uma potência para
a vida sábia, uma disposição para a autorrealização
que se configura como atitude radical na investigação do que é e do que não é, investigação de si
mesmo – seres que alcançam e realizam a consciência da consciência e da inconsciência ao longo
da existência própria e apropriada.
Esse ato inaugural de Sócrates – posto que
assim se mostre evidente nessa visada própria e
apropriada – não significou uma predominância
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de sua atitude filosófica em todos os momentos
da História do Ocidente, tornado-se a palavra e o
conceito “filosofia” uma derivação aberta a singulares desenvolvimentos. Isso significa reconhecer
as diferentes escolas filosóficas com suas diferentes
fundamentações metafísicas. O que também significa não tomar partido, não polarizar a produção
discursiva do sentido.
Assim, retomar a figura de Sócrates como fio
condutor para a realização de outra possibilidade
de educação humana – compreendendo a totalidade da condição de possibilidade – se dá nesse
contexto de modo semelhante ao que Edmund
Husserl fez com Descartes, ao tomar para si a
responsabilidade de investigar “os próprios pensamentos” em um movimento radical de retorno
a si mesmo. Em suas Meditações Cartesianas,
Husserl (2001) defende a ideia de uma fenomenologia como explicitação transcendental da
constituição da consciência imanente, a partir do
esclarecimento dos fundamentos da objetividade
como “concordância de uma pluralidade de subjetividades”. Ele toma como horizonte constitutivo
de sua investigação fenomenológica a alteridade
intermonádica da própria consciência transcendental, da consciência em si mesma no ato de tornar-se
consciente das possibilidades incomensuráveis
de fenômenos de existência, não dependendo,
portanto, do transcurso da experiência, sendo uma
intuição eidética purificada dos dados indutivos
e/ou dedutivos. Isso, entretanto, não significa a
ausência de um método, nem o desconhecimento
do que já se encontra-aí.
Com Sócrates nasce a filosofia da alma humana. Será? Ao longo de toda a História do Ocidente
isso ficou encoberto na medida em que corre solta
a imagem mítica de Sócrates. O importante, aqui,
não é a figura lendária, grandiosa e estática, e sim
aquilo que podemos fazer com a atitude filosófica inaugurada por Sócrates. Esse é o desafio: a
realização de uma prática filosófica radicalmente
dialógica. O importante é o trabalho efetivo na direção de aprendizados comuns que permita a cada
um construir o conhecimento de modo próprio e
apropriado.
Essa posição pode soar estranha e levantar
suspeita. Isso exige uma explicitação mais longa
do argumento, para que não pareça veleidade
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Dante Augusto Galeffi
o que se constitui como problema filosófico no
rigoroso e específico sentido do termo. A maior
dificuldade de exposição do argumento encontra-se
no preconceito generalizado relativo ao que deve
ser a disciplina escolar, por extensão, o que deve
ser a disciplina de filosofia no currículo do ensino
médio. O fundamento aqui utilizado, entretanto,
toma outro rumo, caminhando para a necessária
mudança de regime modulador da educação formal
como um todo. Trata-se de uma revolução necessária, já anunciada por muitos estudiosos do assunto
em nosso tempo, educadores e filósofos, filósofos
educadores, educadores filósofos ou simplesmente
filósofos amadores (amantes do saber-ser).
O próprio Sócrates não era um profissional do
conhecimento filosófico, e sim, simplesmente, um
“filósofo”, quer dizer: um amante de Sophia, um
aspirante ao saber-ser mais próprio.
Para começar do começo precisa-se por primeiro praticar uma filosofia radical, garantindo
um aprendizado consistente do que é necessário
para uma humanidade que precisa urgentemente
aprender a ser sua própria experiência, havendo
lugar para todos nesta convergência que requer o
aprendizado da arte de aprender: a ser, a conhecer,
a viver junto, a fazer, a transcender na imanência.
Evoquei acima os pilares da educação do século
presente expressos no Relatório para a UNESCO
organizado por Delors (2004). Considero que eles
apresentam a abertura de constituição de uma
humanidade solidária e fundada na plena liberdade partilhada, implicadamente corresponsável
e investigadora dos acontecimentos comuns, cuidadosa com suas próprias crias, sem preconceitos
ou preceitos de exclusão de qualquer gênero ou
espécie. Requer-se para isso a altivez do maior
quilate e potência.
Sócrates continua inspirando a possibilidade
de uma Paideia filosófica radical que dê acesso ao
mundo do sentido pela implicação de cada um com
sua própria vida de relação e pertencimento. Nessa
inspiração, é o problema ético que alcança a centralidade da questão filosófica emergente. Trata-se de
uma necessária atenção às “coisas humanas”, como
fez Sócrates ao inaugurar uma filosofia da alma,
sendo necessário que se pergunte: “para que serve
este estudo e qual é a meta da vida?” (JAEGER,
1995, p. 539).
Sem responder satisfatoriamente a tal pergunta
não se pode propriamente realizar uma educação
apropriadora da vida digna, comum e altiva: o cultivo do humano senhor de si e corresponsável pela
sua própria sustentabilidade conjuntural. O que se
põe em jogo são as formas de aprender a ser que
constituem as possibilidades diferenciais da comunidade humana. Muitas são as dimensões desse
empreendimento, e o maior obstáculo encontra-se
no modo como coletivamente os seres humanos
reafirmam suas virtudes e formas superiores de ser
e comandar outros.
O iniciante na investigação do sentido implicado
– o sentido que diz respeito a cada um em seu movimento de individuação singular – precisa saber,
desde o início, de que não se trata de uma matéria
para ser decorada pela repetição, e sim de ser um
caminho de investigação em que só se aprende
pela direta implicação com o aprender algo. Isso
requer experiência própria da atenção, que pode
perfeitamente ser equiparada à atitude filosófica – à
disposição ao saber-ser.
Com Sócrates ocorre a reestruturação da conexão entre a cultura espiritual e a cultura moral.
Isso não significa que Sócrates fosse apolítico e
que pregasse algo contrário ao alcance justo do
bem comum. Foi graças a Sócrates que o conceito
de autodomínio tornou-se central na cultura ética
do Ocidente. A conduta ética é algo que brota do
interior do próprio indivíduo tornando-o liberto
da mera submissão exterior à lei, segundo exigia
o conceito tradicional de justiça.
Tudo isso não é imediatamente claro e objetivo.
Portanto, não se trata de uma afirmação de “verdade” irrefutável, e sim de uma composição apropriada a dar passagem ao movimento de retorno radical
a si mesmo, próprio da atitude investigativa que
nasce com o nome próprio de Filosofia. Trata-se da
condição sem a qual toda a argumentação racional
acerca de situações e acontecimentos não passa de
produção discursiva que favorece a manutenção de
relações de poder baseadas em coerções e controles
desiguais. Nessa perspectiva, pode parecer infundada a emergência de outra Paideia filosófica para
a formação da humanidade emergente, e evocar
Sócrates pode soar como recurso persuasivo de
convencimento massivo e aligeirado. Este é o ponto
de tensão: não se trata de convencer ninguém de
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Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas
nada, e sim de fazer ver um problema concretamente comum, que requer, de todos os implicados,
decisões necessariamente responsáveis.
Não se trata, portanto, de conjectura e sim de
investigação rigorosa. O fim não é convencer pela
retórica literária, e sim persistir na senda interrogante, exaurindo o problema e dando acesso direto
ao seu sentido E como esse é um caminho infinito,
não se pode querer exaurir o problema de que
trata a filosofia por meio do mero exercício lógico
formal. A questão filosófica pensada como início e
nascente é muito mais implicada do que simplesmente aprender a lógica do raciocínio discursivo
e propositivamente certo.
As questões filosóficas do nosso tempo dizem
respeito aos modos de existência de humanos e
suas relações com seu ambiente vital. E por que a
filosofia de inspiração socrática nasce justamente
pela investigação da condição humana comum,
universal, a partir do autoconhecimento e da autocondução, para que este ideal de educação se torne
efetividade é preciso que se investigue, por primeiro, os meios necessários do poder fazer-aprender
filosofia como acontecimento da arte de aprender
a aprender e a desaprender.
Toda essa imagética é a maneira encontrada
para deixar ser a transparência da evidência implicada. Cada um de nós, cada ser humano precisa
e pode tornar-se um pesquisador da “verdade” e
da “não-verdade”, não para fazer disso a sua profissão, concorrendo, assim, com os especialistas
e profissionais da filosofia. Nessa compreensão,
o que se necessita não é de uma filosofia para
profissionais e sim de uma filosofia que permita
que cada um aprenda a pensar, aprenda a aprender
com autonomia e liberdade e possa descobrir por
si mesmo qual é a sua potência de ser, e possa
dedicar sua vida ao investimento de seu próprio
cuidado e dedicação com outros. Desse modo
é clara a diferença entre uma filosofia ao modo
socrático e uma filosofia profissional, sendo coerente afirmar que a educação filosófica adequada
à formação básica é aquela que promova os meios
para o aparecimento de seres humanos mais vigorosos e criativos, cuidadosos e justos, conscientes
e batalhadores, altivos e corajosos, respeitosos e
dignos. Seres humanos responsáveis pela própria
vida de relação.
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Essa filosofia da origem comum e da emergência planetária é simultaneamente ética e estética,
ontológica, lógica e epistemológica, política e
ecológica, mística, poética e pedagógica, não se
limitando exclusivamente ao campo formal dos
conceitos universais e necessários transmitidos por
repetições mnemônicas desconectadas do modo
aberto e sensível próprio do aprendizado humano comum. Sobretudo, com o método socrático
pode-se experienciar e conhecer a totalidade das
possibilidades humanas no sentido maior de sua
disposição amorosa, de seu ethos aberto à liberdade
do encontro instante: a medida do caminho sábio.
Nessa perspectiva, o cuidado humano próprio
da aprendizagem filosófica não pode prescrever
o caminho do outro, porque o outro é sempre um
mistério do próprio ser que ele é como outro, enquanto pode ser consciente de si como alteridade
e destino. A concepção de uma filosofia que é o
mesmo que educação da alma para sua liberdade
propriamente dita pode melhor ser apreendida pela
descrição do método socrático, como o mesmo foi
retido por Platão em seus Diálogos fundadores de
um novo gênero literário: a filosofia. Evocamos a
tese muito consistente de Colli (1996), para que se
possa caracterizar o que pode vir a ser o trabalho
filosófico na educação básica, expandindo-se para
todos os âmbitos da vida em comum e do que ainda
se desconhece.
A relação dialógica entre filosofia e educação
só pode inexistir quando se insistir em um conceito
de educação instrumental e conteudista e em uma
concepção de filosofia meramente técnica e maquínica. Mas, afinal, a quem serve uma filosofia que
nada tem a ver com a educação humana livre, que
nada diz em relação à vida concreta dos educandos?
O momento é de decisão coletiva e não de insistência em um modelo pedagógico que não dá mais
conta da emergência humana planetária, global e
local. É preciso, então, uma ação capaz de reunir
as forças e as possibilidades e não de separá-las. O
trabalho não pode ser feito de cima para baixo, pois
deste modo perpetua aquela forma de educação que
consiste no deixar as coisas como estão não implicando em nenhum novo investimento conceitual e
pedagógico para a educação filosófica daquele que
vai ocupar a função de “parteiro” e não de professor
de um saber de fachada. Ora, como fazer isso, se
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Dante Augusto Galeffi
aqueles que se encontram na ponta do processo
filosófico não estão atentos a essa emergência?
Como aprender a filosofar sem a implicação direta
com a verdade do ser, com o domínio de si próprio
pela firmeza e moderação?
O caráter dialógico do método socrático
e sua dinâmica processual comum: a
tarefa do educador-filósofo na educação
básica
Como se vê em Platão (2001), o método socrático é um procedimento de indagação filosófica
baseado no diálogo entre interlocutores. Devido à
sua intrínseca natureza é também chamado maiêutico. O termo maiêutica deriva do grego maieutiké,
subentendendo-se o conceito de techné. Em sentido
literal, significa a “arte das parteiras”. O termo
foi usado por Sócrates em homenagem à sua mãe
Fenarete, parteira de profissão, para significar o
ato de fazer vir à luz os pensamentos próprios de
quem se encontra grávido de sua própria autopercepção e compreensão clarificadora. O importante
na dialética socrática é mediar o nascimento de
ideias próprias, através do atritamento dialógico.
Esse procedimento supera a articulação da arte
retórica que consistia no domínio argumentativo
dos “professores” em relação ao seu público. Um
tipo de saber que só alguns dominavam e que só
estes tinham a autorização de transmitir.
Na arte retórica a argumentação dos sofistas calava a fala dos iniciantes, não permitindo nenhuma
investigação implicada e relacional. Compreendendo outro caminho para a investigação da verdade,
Sócrates faz valer uma formação da individuação
pela clarificação de si mesmo. Diz-se que o método
dialético de Sócrates recorria a frases ou respostas espirituosas breves e cortantes, irônicas – no
sentido da suspeita, de provocar desconforto, de
fazer ver a impropriedade de uma “crença” pela sua
inconsistência em relação ao que se pode alcançar
como desvelamento em si. Esse modo de caracterizar o método dialético captura apenas uma pequena
parcela de sua intencionalidade.
O método socrático só é propriamente maiêutico
em sua última fase: como a parteira traz à luz a
criança, Sócrates trazia à luz as pequenas verdades
dos interlocutores. Procedendo por confutação, por
eliminação sucessiva das hipóteses contraditórias e
infundadas, consiste em trazer gradualmente à luz
a inconsistência de todas as convicções pessoais
habitualmente consideradas como incontestáveis
que revelam, depois de um exame atento, sua natureza baseada em “opiniões”, mesmo as opiniões
sofisticadas dos oficiais do saber instituído.
Na prática, o método pode ser usado por um
professor-educador capaz de realizar a dialogia
interrogante, e não o ensino ostensivo de um conjunto de noções para serem repetidas sem reflexão
criteriosa. Isso quer dizer que essa prática estimula
o pensamento próprio do educando, levando-o
a experienciar estados de empoderamento de si
mesmo. Jaeger (1995) ressalta, a partir de um Diálogo encontrado nas Memoráveis de Xenofonte,
que a premissa fundamental da Paideia socrática
é a de que toda educação deve ser política. Tem
necessidade de educar o ser humano para uma das
duas coisas: para governar ou para ser governado.
Aprofundando o argumento:
Já na alimentação se começa a marcar a diferença
entre esses dois tipos de educação. O Homem que é
educado para governar tem de aprender a antepor o
cumprimento dos deveres mais prementes à satisfação das necessidades físicas. Tem de se sobrepor à
fome e à sede. Tem de se acostumar a dormir pouco,
a deitar-se tarde e a se levantar cedo. Nenhum trabalho o deve assustar, por árduo que seja. Não se deve
deixar atrair pelo engodo dos prazeres dos sentidos.
Tem de endurecer para o frio e para o calor. Não
deve preocupar-se se tiver de acampar a céu aberto.
Quem não é capaz de tudo isto fica condenado a
figurar entre as massas governadas. Sócrates designa
com a palavra grega askesis, equivalente à inglesa
training, esta educação para a abstinência e para o
autodomínio. (JAEGER, 1995, p. 546-547).
Estamos diante do ascetismo socrático. Este,
entretanto, não se confunde com a virtude monacal
e sim com a virtude do homem destinado a governar
pelo domínio de si próprio. Sócrates preconiza o
que se pode chamar de cidadania clássica, aquela
do ser humano enraizado em sua terra e que concebe a sua missão e a sua realização plena como a
educação para a ocupação do posto de governante,
através da “ascese” voluntária. De qualquer modo,
não se pode evocar a dialética socrática sem a
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Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas
presença do “domínio de si mesmo, firmeza e
moderação”. Trata-se da enkratéia, que não constituindo em si mesma uma virtude é, entretanto, a
“base de todas as virtudes”, segundo Xenofonte,
equivalendo à emancipação da razão da tirania da
natureza mecânica e compulsória das opiniões.
Como se vê, o método socrático possui uma
característica muito definida e ascética, o que não
quer dizer que em algum momento ocorra a “repressão” dos chamados instintos naturais. Mais do
que reprimir, a dialética permite que cada um tome
posse de um estado de atenção que se encaminha
para uma livre decisão e uma comum compreensão
da totalidade conjuntural. Como, então, realizar essa
formação em um sistema escolar na maioria das vezes contrário ao reconhecimento da individuação e
da incomunicabilidade de tais estados de compreensão? Como a dialética socrática diz ainda respeito ao
passo que pode ser dado na direção da emancipação
humana inteligente, sensível e inventiva?
O passo que se afigura necessário e inadiável
não está garantido em fórmulas e preceitos aptos
a serem transmitidos mecanicamente, justamente
porque o ser humano encontra-se diante de sua
efetividade como espécie e não é definível senão
por aquilo que ele mesmo é enquanto existe como
organização e perpetuação, projeto e processo, o
feito e o por fazer. O passo necessário significa
proteger-se da negligência ontológica que escraviza
e destitui a essência humana da sua vocação para a
realização da divindade suprema, sem objetivos e
metas, sem finalidades metafísicas e sem promessas
consoladoras, por isso mesmo livre para realizar
a passagem da vida para a vida, na vida. O passo
não faz concessões: o instante é sua alavanca e é
sua consistência infinita. Afinal, qual é o sentido
do autoconhecimento? Para que serve a filosofia
da alma humana? Qual é o sem-sentido da vida?
O passo necessário assinala a decisão de
autonomia do educador-filósofo a partir de sua
pertença comunitária. A filosofia tornada campo de
possibilidades para a construção de uma enkratéia
de inspiração socrática e husserliana: o domínio de
si próprio como firmeza e moderação. Ora, isso
não é algo que o professor ensina ao estudante por
meio de aulas expositivas, mas só pode acontecer
mediante a descoberta de um problema relevante
que mereça a atenção de todos. Significa, então,
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que o professor de filosofia precisa ser um filósofo
e não um mero repetidor de manuais canônicos.
O momento nos lança diante da necessidade
de uma nova maneira de transformar o professor
de filosofia e o educador em geral. Os percursos se ampliam e a complexidade requer outras
habilidades e outras possibilidades. Como um
regente de orquestra, o educador-filósofo precisa
conhecer muitos campos e funções, linguagens e
expressões, para que possa coordená-las em uma
atitude de radicalidade que transcenda a simples
disciplina e constitua-se na ação transformadora.
Nessa perspectiva, o trabalho do educador-filósofo
é especificamente transdisciplinar. Sua função
ativa não seria a de mais um especialista em uma
determinada área do conhecimento, e sim em sua
propriedade de fazer pensar propriamente, coligando isso com aquilo, desligando ideias equivocadas
de seu campo gerativo, propiciando vivências que
favoreçam a construção do “autodomínio” e da
“participação conjuntural polilógica”. Tudo isso
pela disposição amorosa ao saber-ser uma plenitude
vivente: partilha do que se oferece livre e disposto
ao acontecimento existencial único – seu ser e não-ser em um terceiro incluído.
Educação filosófica como eixo de conexão de todos os saberes na educação
básica
Permitir ao outro em desenvolvimento que
aprenda a ler diretamente as letras e signos do
mundo-aí significa deixar cada um florescer em
sua singularidade. O desafio da formação filosófica consiste no seguinte abismo: o ser humano
diferencia-se como organismo vivo e dá-se conta de
sua existência comum em relação à deriva cósmica
de sua gênese pela sua compleição psíquica. Esse
abismo é tão absurdamente incomensurável que
não se pode alcançar a sua outra margem através
de navegações certeiras. Não há passagem entre
a condição biológica e a condição psíquica da espécie humana e sim salto no abismo do ser que se
aprende em conjunto com outros tantos iguais seres
e diferentes entes, iguais entes e diferentes seres.
Está em questão uma pertinente emergência
ontológica. Os seres humanos necessitam de
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Dante Augusto Galeffi
cuidado e atenção em sua nascente. É emergente o aprendizado de si mesmo – o autodomínio
socrático – assim como o aprendizado do outro
mesmo – comum pertença cósmica. De que outra
forma se poderá constituir um mundo de seres
humanos livres e corresponsáveis senão através da
cooperação e do absoluto respeito pelas diferenças e pelas igualdades? Entretanto, essa questão
permanece vazia sem a sua realização política.
Aqui se encontra umas das escansões do abismo
entre vida biológica e vida psíquica. É impossível
superar o abismo sem o salto que inclui a terceira
margem do abissal.
Em sua obra A Cabeça bem-feita, Morin (2001)
alerta para os desafios do nosso tempo. Afirma
uma inadequação cada vez mais ampla, profunda
e grave entre os saberes separados, fragmentados,
compartimentados entre disciplinas e, por outro
lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais,
transnacionais, globais, planetários. Isso tem produzido a invisibilidade do que podemos chamar de
emergências do nosso tempo como os conjuntos
complexos, as interações e retroações entre as
partes e o todo, as entidades multidimensionais, os
problemas essenciais, assim como o acirramento
das desigualdades e a desvalorização do ser humano em si mesmo e da vida em sua dinâmica sensível.
Nas sociedades contemporâneas, dominadas
pelo imperativo de uma economia abstrata e deliberadamente especulativa, para ter valor o ser
humano tem que adquirir aparência de especialista,
tem que se tornar alguém que conhece bem uma
única coisa. Isso é bem o contrário do que se pode
compreender por aprendizagem filosófica. Por excelência, a atitude filosófica é uma disposição para
a investigação radical do sentido implicado do ser
humano e sua existência histórica. Isso significa
um ato de interligação de todas as partes de um
acontecimento compreensivo, do ponto de vista da
unidade cognitiva e acional da condição humana
comum, universal. Como se poderia, então, conciliar o ato filosófico germinal com qualquer que seja
o processo de especialização ou hiperespecialização? Afinal, por definição tradicional, a filosofia é
o saber que se ocupa do não-saber. Portanto, é mais
preciso concebê-la como atividade que só faz sentido para aqueles que a experimentam e realizam.
Como, então, pretender reduzir a aprendizagem
filosófica ao campo especializado da História da
Filosofia Ocidental?
Partindo da condição em que nos encontramos
como seres participantes da comunidade humana
real e ideal, concordamos com Morin (2001) ao
apontar três desafios para repensar a reforma e
reformar o pensamento: o contexto planetário
(globalidade), a complexidade (diferentes planos de
realidades paralelas) e a expansão descontrolada
do saber (a fragmentação fora de controle).
Tudo isso nos fala da transformação necessária
para se repensar a reforma escolar e para reformar
o pensamento acerca da formação humana emergente. Tudo isso nos instiga a pensar uma educação
filosófica configurada pelo diálogo efetivo entre
todos os aspectos e dimensões da experiência humana comum e singular.
A reforma da escola básica passa pelo repensar
a reforma do pensamento. Afinal, quais são os problemas emergentes do nosso tempo que requisitam
investigações conjugadas com a totalidade da condição humana? Esses problemas são imediatamente
gritantes para todos e podem ser reconhecidos
nas diversas dimensões da experiência humana
planetária. O momento requer o reconhecimento
radical da condição humana global. Nessa medida,
uma revolução da educação básica é uma consequência da metamorfose humana que se mostra
absolutamente inadiável caso se queira fazer o
esforço de ultrapassamento da fragmentação e da
barbárie generalizada, tendo em vista a solidez de
uma humanidade livre e curadora de sua própria
superação infinita.
Compreendendo os desafios do nosso tempo
como configuradores de outras formas de perceber,
de pensar e de agir, é preciso lidar com a leveza, a
rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade
e a consistência simultaneamente. Essas são as seis
imagens usadas por Calvino (2006) em sua obra
inacabada Seis propostas para o próximo milênio.
Ele oferece em breves imagens um horizonte de
amplas potencialidades criadoras, não apenas para
a literatura em processo, mas, sobretudo, para a
existência humana como um todo. Como, então,
separar abstratamente esses seis âmbitos figurados
com a atividade filosófica implicada com a experiência vivida e vivente?
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013
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Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas
De maneira apropriadora, à filosofia básica não
caberia a tarefa de isolar-se na disciplinaridade da
especialização lógica estritamente histórica e sim a
função de interligar tudo o que diz respeito ao sentido comum da compreensão humana e suas relações
de pertença à totalidade indivisível e incomensurável. Portanto, caber-lhe-ia uma tarefa transdisciplinar: ontológica, epistemológica, política, ética,
estética e ecológica simultaneamente. Cabe-lhe,
assim, a tarefa de unificar o saber das humanidades ao saber das ciências da natureza sem perder
de vista sua especificidade interrogante e aberta
ao acontecimento instante: espanto originário do
sentido do ser multiplicado na unidade indivisível
que a tudo reúne na comum-responsabilidade.
O próprio da atitude filosófica não é a memorização de conhecimentos sistematizados e sim o
aprendizado do pensar radical, além de todo metro
e de toda medida dada. Esse é um ponto crucial
porque afirma uma condição de princípio absolutamente livre de todo vínculo e compromisso
abstrato, pela concretização do vínculo com a vida
e do compromisso com a dignidade humana inalienável. Portanto, não pretende dizer ao outro o que
ele tem que fazer e aprender e sim fazer com que o
outro aprenda por si mesmo a investigar e suspeitar
dos dados da experiência comum e estabelecida,
para refazê-los em suas possibilidades implicadas.
Possibilidades que dizem respeito a um conjunto
maior de fatores e planos de existência e que aproximem da razoabilidade que só se pode aprender
diretamente, por compreensão leve, rápida, exata,
visível, múltipla e consistente. Isso requer outras
formas de trabalhar o aprendizado do pensar próprio e apropriado – apropriador: requer a criação
de outras possibilidades ainda impensadas. Requer
a coragem de saltar no abismo do ser-implicado:
ultrapassagem, metamorfose, tradição e inovação
em conjunção ativa e solidária.
A união da cultura filosófica com a cultura literária e com a cultura científica é uma questão de
sustentabilidade planetária. O nosso tempo tem produzido uma cultura da dispersão e da exclusão, da
separação e da especialização profissional. Apesar
dessa tendência, nunca como agora, se ouviu falar
tanto em inclusão e acolhimento das diferenças.
Estamos diante de uma ruptura paradigmática: o
aprendizado do pensamento próprio e apropriado é
50
o acontecimento mais precioso para os indivíduos
e as sociedades emergentes. A educação básica
não pode mais olvidar a conjuntura planetária, a
complexidade dos múltiplos âmbitos sistêmicos da
realidade e a dispersão acelerada de muita informação e pouco conhecimento apropriador. A inserção
da filosofia em sua dinâmica não pode deixar de
lado a peculiaridade do filosofar como atitude
aprendente radical. Trata-se do acontecimento da
consciência da consciência e da consciência da inconsciência como implicação radical na totalidade
vivente. A evidência implicada mostra-se aqui em
sua consistência apodítica: a conjuntura abrangente
do real, inegavelmente comum e diversificada em
infindáveis situações e contextos, a tudo abarca
e a todos inclui. A unidade que permite aos seres
humanos conjugar suas necessidades e operar
suas emergências não pode pertencer apenas a
uma determinada categoria cultural, aquela dos
especialistas e técnicos. Todos habitam no mesmo
planeta que é um organismo vivo em sua totalidade. Qualquer acontecimento pontual tem relação
com a totalidade. Isso é uma evidência implicada.
Mas esta não fornece a ninguém a lei oculta dos
acontecimentos, o que extrapolaria o caráter de uma
evidência para se tornar apenas um recorte e uma
deriva acional específica.
Como diz Morin (2001, p. 18), “o enfraquecimento de uma percepção global leva ao enfraquecimento do senso de responsabilidade – cada
um tende a ser responsável apenas por sua tarefa
especializada –, bem como ao enfraquecimento
da solidariedade – ninguém mais preserva seu elo
orgânico com a cidade e seus concidadãos”. Nossa
educação básica tem passado pelo mesmo processo
de dispersão e fragmentação, e este é o momento,
pela necessidade de mudança paradigmática, de se
repensar as bases da Educação Básica como forma
de enfrentamento responsável dos problemas que
afligem a humanidade em sua totalidade. A mudança que deve ocorrer na educação democrática – portanto, para todos e não simplesmente para alguns
poucos – mostra-se na convergência da reforma do
pensamento. Como, então, continuar considerando
a filosofia como uma atividade exclusiva de alguns
poucos especialistas, quando o momento reclama e
exige uma nova Paideia (formação) que dê horizonte e potência para os seres humanos constituírem-se
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013
Dante Augusto Galeffi
como pertencentes à totalidade conjuntural, a partir
de seus solos e contextos próprios e apropriados?
Estamos diante do mais assustador: o acontecimento da vida solidária e conjuntural. Nessa
medida, a identidade humana não é uma entidade
abstrata que se representa pelas formas mentais
disponíveis. A capacidade de abstrair é uma função
analógica conectiva do sentido implicado. Não passa de uma aproximação compreensiva que sempre
requer algo que já é compreendido: um mundo, um
contexto, uma história, uma linguagem. A vida em
sua dinâmica consciente de si, através da espécie
humana, não pode deixar de lado o sentido do que
é por constituição livre e aberto a possibilidades.
Isso quer dizer que tudo o que o ser humano é capaz
de fazer atende ao dinamismo de algo que não é
representável e compreensível em si mesmo, mas
se precipita em superfícies como efeitos reflexivos:
eis a consciência – um efeito de superfície, uma
apresentação que pode se tornar também uma
representação. Na dinâmica da individuação humana, base de toda cultura consciente e filosófica
no sentido próprio, o que importa não se encontra
presente em um modelo ideal fora do acontecimento do sentido. Essa é uma peculiaridade do ser
que somos, enquanto existimos. Essa, também, é a
forma própria da filosofia que cuida de investigar
o acontecimento implicado – o ser humano em sua
condição originária e em sua abertura para o aberto.
Ora, o acontecimento acontece! O acontecimento não é propriedade de alguns e nem muito menos
algo que se possa representar como conceito abstrato e monológico. O acontecimento é tudo o que
é. Portanto, está muito além do que o ser humano
é capaz de perceber e visualizar em sua compreensão humana condicionada. O acontecimento é,
na perspectiva da “autocondução” filosófica, uma
implicação efetiva do ser que somos com a totalidade conjuntural. Nesse âmbito não há lugar para
abstrações reducionistas, nem muito menos lugar
para excessos e abusos de claridade apodítica. O
acontecimento é sempre um salto em si mesmo,
porque cada lugar e tempo da vida é ponto de vida
em si mesmo. Como se encontra no fragmento 116
de Heráclito: “Em todos os homens está o conhecer
a si mesmo e bem-pensar” (COSTA, 2002, p. 179).
Então, como alguém pode fechar os olhos diante
dessa evidência apodítica e fazer acreditar em sua
verdade particular e exclusiva? Só os que dormem
podem cair nesta armadilha. É por isso que é preciso filosofar – despertar o sentido em nosso próprio
existir conjugado e aberto ao devir outro.
Tudo isso caminha na direção do passo no qual
o falar sobre filosofia dá lugar ao filosofar implicado. E porque, usando palavras de Morin (2001,
p. 19), “o saber tornou-se cada vez mais esotérico
(acessível somente aos especialistas) e anônimo
(quantitativo e formalizado)”, é preciso procurar
caminhos que condigam com a dinâmica instante dos processos em que seres humanos possam
experienciar conjuntamente a posse da comum-responsabilidade diante do cuidar de si mesmo
como totalidade segmentária vivente: um salto no
transcurso do que se destina ao ser sempre outro
ser-sendo: impermanência-permanente.
Considerações: o salto dialógico do filosofar próprio e apropriado
O diálogo não é em si mesmo uma simples
comunicação ou transmissão de mensagem com
específico conteúdo temático. O diálogo é a abertura para o conhecimento implicado: saber de si no
mundo-com. Dialogar significa, antes de tudo, saber
ouvir e saber falar, saber afirmar e saber negar,
saber aprender e saber desaprender. Ouvir e falar
são tensores complementares do campo linguístico
comum. Na comunicação humana há sempre um falar (transmitir) e um ouvir (receber) em momentos
intercalados e distintos. Isso não quer dizer ainda
diálogo. O diálogo é o meio através do qual os
seres humanos escutam e falam acerca daquilo que
vivenciam como desvelamento. O diálogo, assim,
deixa e faz ver aquilo que, conjugado, se apresenta
na compreensão articuladora. Isso significa que o
diálogo não se limita a transmitir o que já se sabe,
mas implica no tensionamento relativo ao não-saber: o diálogo procura o encoberto. Pelo diálogo,
o que se encontra encoberto descobre-se através
do investigar, voltando a encobrir-se no investigado. O investigar se consuma no investigado para
refazer-se sempre investigando. Pela investigação
configura-se o âmbito comum do sentido. O diálogo
investiga o desconhecido no encontro amoroso. No
diálogo, o antagônico torna-se o questionador e o
questionado é cada dialogante no diálogo.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013
51
Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas
Para Bohm (2001), o espírito do diálogo é
completamente diferente de uma simples comunicação ou de uma discussão entre opositores,
porque nele o que importa não é sair vencedor de
uma disputa qualquer, e se alguém ganha, todos os
implicados saem ganhando. Não se trata de uma
disputa pessoal, da obtenção de mais pontos para
sobressair-se diante dos outros, nem muito menos
do predomínio de uma perspectiva sobre as outras,
porque quando se descobre um erro, todos saem
ganhando. O diálogo, assim, é um jogo do ganhar-ou-ganhar, diferentemente do que ocorre no jogo
discursivo do tipo eu-ganho-tu-perdes. O fato é que
o diálogo é mais do que uma participação comum
porque através dele não se estará julgando contra
os demais e sim com eles.
A palavra “diálogo” é, na maior parte das vezes, usada como equivalente a “discussão”. Essa
confusão conceitual requer uma investigação
própria e apropriada para desfazer-se, inclusive
porque consideramos o diálogo como o exercício
filosófico por excelência, o que significa dizer que
a filosofia não é mera produção discursiva e sim
criação dialógica. Estamos diante de algo sempre
assustador: como alguém pode só ganhar-ganhar
e nunca perder para os outros?
A ausência da experiência dialógica efetiva,
radical, desafiante nas instâncias dos interesses
comuns, leva à impropriedade de considerar o jogar dialógico como uma forma retórica qualquer,
sendo uma ilusão metafísica a possibilidade de uma
lógica inclusiva e não exclusiva. Imagina-se logo,
pela dominância da metafísica polarizadora, que a
inclusão de um terceiro é algo além do efetivamente
dado. Ora, o ponto de mudança encontra-se justamente aí, na contraditoriedade dos polos opostos
e complementares. No movimento dialógico, os
opostos se dão “a saber” um pelo outro, o que se
caracteriza como uma reunião de diferentes, bem
distinta do princípio de exclusão da lógica da identidade e da exclusão do terceiro, por isso mesmo,
monológica, monofônica.
Pode-se, então, perguntar: se o diálogo distingue-se da arena das discussões públicas corriqueiras, que definem e delimitam territórios culturais
excludentes e colonizadores, ele serve para qual
fim? Qual é a serventia do dialogar assim apresentado, e como ele pode vir a acontecer na educação
52
básica de maneira consequente e rigorosa? O
que significa, de fato, a prática do diálogo como
caminho filosófico por excelência? Quem pode
garantir essa propriedade? Quem pode abalizar esse
acontecimento? Alguma autoridade externa pode
determinar as regras áureas de um diálogo? Ou o
diálogo, por propriedade, só pode acontecer no tensionamento entre iguais no comum-pertencimento?
Tomemos, então, o diálogo como caminho
apropriado para o acontecimento do filosofar vivo
e criador. Como seria isso na prática escolar?
Sabemos como andam cheias as turmas, de modo
geral. Como dialogar filosoficamente diante de um
grupo de 30, 40, 50, 60 ou mais pessoas? Para lidar
com tamanha complexidade é preciso que ocorra
um propósito bem definido. Se o diálogo não é
a mera discussão de opiniões díspares, mas uma
investigação relativa ao que é comum e ao que diz
respeito a todos em comum, sem a presença de um
mediador apropriado não é possível recorrer ao
método dialógico de maneira fecunda. Como fazer
para dar conta das diversas crenças e opiniões de
um grupo determinado? Como reunir a dispersão
em processos comuns de aprendizado dialógico,
investigativo, questionador?
Em geral, as pessoas não sabem tolerar facilmente o questionamento de suas crenças enraizadas
e procuram defendê-las tomadas de muita emoção.
Essas crenças são muito antigas, como o sentido
da vida, os interesses de sua família, de seu país,
seus interesses pessoais, religiosos, partidários.
Ora, tocar no campo da autoimagem e da convicção
pessoal significa desestabilizar o equilíbrio inercial
das crenças ou opiniões comuns, sejam elas incultas
ou cultas. O chamado senso comum associado ao
campo das “opiniões subjetivas” é o meio concreto
da existência humana. Desse modo, senso comum é
todo acervo partilhado por associações de indivíduos. Mesmo no âmbito acadêmico e erudito há senso
comum. As formas da experiência humana, a ciência, a arte, a filosofia, a religião, a moral, a política,
a ética, são todas comunitárias. Todas produzem
senso comum. Há, portanto, muitas categorias e níveis de senso comum. Diante do ato dialógico o seu
desenraizamento é inevitável. O diálogo, partindo
do senso comum, quer alcançar sempre um novo
senso comum. A diferença é que o senso comum
próprio ao diálogo é justamente a sua equalização
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013
Dante Augusto Galeffi
comunitária no sentido de um distanciamento do
meramente pessoal e idiossincrático, tendo-se em
vista o alcance de uma compreensão articuladora
partilhada, no sentido próprio e filosófico do termo.
Como afirma Bohm (2001, p. 33, tradução nossa), “o verdadeiro objetivo do diálogo é aquele de
penetrar no processo do pensamento e transformar
o processo do pensamento coletivo”. O diálogo,
portanto, não é um jogo inconsequente de perguntas abstratas e respostas meramente subjetivas. O
diálogo não tem a função de reforçar as crenças já
enraizadas e sim a propriedade de deslocar as crenças para um âmbito de comum-pertencimento, de
maneira direta e oportuna. O diálogo atém-se ao próprio processo do pensamento e não ao seu conteúdo
específico. O pensamento também é um processo
dinâmico, exigindo de nós um intenso estado de
atenção para ser compreendido sem subterfúgios.
Ao ater-se ao processo do pensamento, o diálogo
evidencia a natureza do pensar como um movimento
coletivo abrangente. Pelo diálogo é possível experienciar como os pensamentos individuais são em
sua maior parte resultados do pensamento coletivo
e de nossas interações com os outros.
O diálogo salta do disperso para o convergente.
O diálogo reúne a dispersão comum em feixes de
intensidade unívoca: conjugação das diferentes linhas de fuga em um campo comumente partilhado.
O diálogo tem a propriedade de desfazer a dispersão
dos pensamentos coletivos condicionados pela
convergência das ações comuns. Como diz Bohm
(2001), o poder de um grupo é muito superior ao das
pessoas que o compõem. E porque o pensamento
coletivo de nossa sociedade funciona de maneira
muito incoerente e dispersa, o diálogo é um meio
de potencialização similar ao laser, permitindo a
experiência de um pensamento comum transformador e dinâmico.
A filosofia necessária à educação básica é justamente aquela que favoreça a todos os educandos
uma aprendizagem do pensar de maneira própria
e apropriada, sem que seja preciso que se tornem
filósofos profissionais, ou que dominem os textos
canônicos como fazem os exegetas especializados.
Quem quiser seguir esse caminho especializado que
o faça em uma profissionalização superior. O fundamental de uma filosofia básica não é a transmissão
de uma tradição abstrata e sim possibilitar que cada
um, pelo diálogo, se dê conta de si mesmo e que
aprenda a ser o mais amplo de si, na convergência
de todos os feixes e campos dispersos e isolados
para a constituição de um comum-pertencimento
decidido e radical. Nessa perspectiva, o diálogo nos
encaminha para o âmbito justo e certeiro, não sendo
em nada parecido com um passatempo qualquer.
Pelo diálogo filosófico, no sentido próprio do
termo, se alcança a possibilidade voluntária de uma
construção humana fundada no absoluto respeito
à diversidade de opiniões e crenças, desde quando
nenhuma delas queira dominar outras e sobressair-se com violência diante delas. No diálogo, portanto, não tem quem ensina e quem aprende, porque
todos são aprendizes e mestres, simultaneamente.
O diálogo diz-se amoroso justamente porque conjuga interesses díspares na intensidade da reunião
integradora: cada um é responsável por si mesmo;
todos são participantes do comum-pertencimento.
Pelo diálogo, a má-fé coletiva é examinada como
experiência grupal: não se trata de esconder os
atos falhos e os comportamentos tácitos e sim de
observá-los e compreendê-los em sua dinâmica
gerativa. Esta análise dos próprios pensamentos
é o fio condutor de um aprendizado filosófico que
permita experienciar o clamor da vida com autonomia e liberdade partilhada.
De qualquer modo, para que esse acontecimento
dialógico possa vir a constituir uma prática efetiva e consequente é preciso não perder de vista o
caráter específico da aprendizagem filosófica: a
compreensão implicada de tudo o que é e de nada
que não é sendo. Para isso, faz-se necessária a
presença de educadores-filósofos que não sejam
meros repetidores de uma historiografia hegemônica, mas que aprendam com os próprios erros a
mediar processos de desenvolvimento implicado.
O acontecimento, assim, nos convoca a pensar a
emergência de outra educação básica que tenha a
atitude filosófica como campo de reunião de todos
os saberes e afazeres. E isso sem perder de vista
que tudo só faz sentido para quem se abre para a
experiência filosófica radicalmente livre de toda e
qualquer autoridade externa, seja esta simbólica
ou institucional, espiritual ou coorporativa. Esse é
o desafio emergente: cuidar para que o si mesmo
não se disperse na inconsciência coletiva e na
irresponsabilidade conjuntural; implicar cada um
na comum-responsabilidade da plenitude vivente:
admiração reluzente, evidência partilhada!
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013
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Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas
Referências
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CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução Ivo Barroso. 3. ed. São Paulo: Companhia
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COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
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sobre Educação para o século XXI. Tradução José Carlos Eufrázio. 9. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC/
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HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas. Introdução à Fenomenologia. Tradução Frank de Oliveira. São
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JAEGER, Werner. Paidéia – a Formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes,
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MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 3. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
PLATÃO. Diálogos: Teeteto – Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2001.
Recebido em 24.07.2012
Aprovado em 23.11.2012
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013
Izilda Johanson
FILOSOFIA, FILÓSOFO, PROFESSOR DE FILOSOFIA
Izilda Johanson*
RESUMO
A designação ensino de filosofia para o que surge com a atividade do professor de
filosofia, ou o que resulta dela, compreende a necessidade de respostas a determinadas
questões próprias à atividade filosófica. Ao declarar o que quer que seja sobre o
ensino de filosofia, mesmo que de modo não consciente, se responde a perguntas
pressupostas nessa afirmação, tais como: Por que filosofia? Em que consiste a filosofia?
É possível ensiná-la efetivamente? Qual filosofia ensinar? Qual é a especificidade
do filósofo? Qual é a especificidade do ensino de filosofia? E justamente porque
são pressupostas, tais questões são também aquilo que sela a ligação profunda entre
filosofia, filósofo, professor e aluno de filosofia e, por isso também, pode-se dizer,
são anteriores, antecedem a própria atividade docente. De modo que a busca pelo
lugar que o professor e a professora de filosofia ocupam numa sala de aula, em meio
aos alunos e alunas, numa instituição de ensino, é também a busca pelo seu lugar
em meio à própria filosofia. É também a busca pela constituição do que poderíamos
chamar aqui de problema filosófico da filosofia.
Palavras-chave: Filosofia. Professor de filosofia. Ensino de filosofia. Leitura filosófica.
ABSTRACT
PHILOSOPHY, PHILOSOPHER, PROFESSOR OF PHILOSOPHY
The definition of philosophy teaching for what comes as activity of the philosophy
professor, or what outcomes of it, comprises a need for answers to certain specific
questions of the philosophical activity. By declaring whatever is about teaching
philosophy, even though unconsciously , presupposed questions are already being
answered , such as: Why philosophy? What is philosophy? Is it possible an effective
teaching? What philosophy to teach? What is the specificity of the philosopher? What
is the specificity of the philosophy teaching? It is precisely because these questions are
presupposed, they are also what seal the deep bonds among philosophy, philosopher,
professor and the philosophy student, and that is what makes it possible to say, these
are issues prior to the teaching activity. In search of his/her place as a philosophy
professor in a classroom, among the pupils, he/she is also in search of his/her own
place amid the philosophy field. He/She is in search of the constitution of what we
could define as the philosophical problem of philosophy.
Keywords: Philosophy. Philosophy professor. Philosophy teaching. Philosophical
reading.
* Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo- USP. Professora-adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP). Linha de pesquisa: História da Filosofia francesa contemporânea. Endereço para correspondência: Estrada do Caminho Velho, 333, Guarulhos-SP. [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013
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Filosofia, filósofo, professor de filosofia
Estender logicamente uma conclusão, aplicá-la a outros
objetos sem ter realmente alargado o círculo de suas investigações, é uma inclinação natural do espírito humano,
mas à qual é preciso não ceder nunca.
H. Bergson
Ensinar e filosofar
O ponto estratégico que aqui interessará tocar
expressa uma proposição fundamental, com a qual
inicio este artigo dedicado à reflexão sobre a relação
entre a atividade propriamente filosófica e o ensino
dela. A proposição é a seguinte: o ensino de filosofia
não se separa da própria atividade filosófica.
No que se refere a uma proposta de curso e de
uma prática de ensino de filosofia, entende-se, a
partir disso, que é o próprio assunto ou a própria
matéria do ensino que modela sua prática, que
o conteúdo é determinante para a constituição
da forma e que, portanto, o ensino de filosofia é
modelado, acima de tudo, pela própria atividade
filosófica. E é por isso que é legítimo dizer também que a docência, que o trabalho de professor
(que monta cursos e aulas de filosofia) contribui,
por sua vez, para atividade de filósofo que se é.
Pois, em meio à atividade docente, e para além
dos conteúdos das aulas e planos de ensino, se
sobressai aquilo que podemos chamar de postura
do professor, não apenas em relação aos seus
alunos, à instituição de ensino, à sociedade, mas,
sobretudo, em relação à própria disciplina de
filosofia que ele ministrará.
É muito comum – no mundo pedagógico universitário, mas, ainda mais, e infelizmente, no mundo
da publicidade universitária – vermos a Filosofia
ser admitida como um meio que visa atingir os
mais diversos e variados fins, tais como aprimorar
logicamente o raciocínio, desenvolver agilidade
mental, ostentar erudição face à concorrência do
mercado de trabalho, ou, simplesmente, o que se
custuma chamar muito obscuramente de “cultivar
o espírito crítico do aluno”. De fato, o estudo filosófico pode muito bem nos preparar para isso tudo
e muito mais, entretanto, não parece nada sensato
reduzir a Filosofia a um instrumental apenas, isto
é, a um meio de se produzir algo de natureza di56
versa da sua própria. Em outros termos, sejam lá
quais forem os objetivos alegados, quase nunca
escutamos que o bom da filosofia é poder filosofar!
E é a esse benefício, principalmente, que me refiro
quando falo sobre a experiência docente. Ora, se
existe algum proveito em se aprender dança, qual
proveito seria este senão dançar? Da mesma forma,
para que se aprenderia a jogar xadrez se não fosse
para ter o prazer de jogá-lo? Portanto, a meu ver, se
o curso de filosofia traz algum benefício, este não
pode ser outro senão o de proporcionar aos alunos
e às alunas a oportunidade de filosofar!
A isso se segue uma questão crucial, que é a
seguinte: como conseguir fazer com que os alunos
e as alunas se aventurem no universo filosófico
com a dignidade que a filosofia exige, ou seja,
apreendendo ao menos esse essencial do filosofar, a
saber, a sua especificidade, o seu rigor? Procurando
responder a essas questões tão típicas da prática
docente, acabamos chegando um pouco mais perto,
pois, do que acredito ser também o essencial na
própria atividade profissional de estudar, de ler, de
escrever sobre filosofia, de falar sobre os filósofos
e sobre o que eles falam, de filosofar, enfim.
De modo que o pensar nessas questões, em
princípio de ordem pedagógica, pode nos conduzir
a um âmbito que ultrapassa o da sala de aula, estritamente falando, e o dos conteúdos programáticos,
e talvez até mesmo o do divórcio entre ensino
público e ensino privado, universidade pública e
universidade privada, alunos de filosofia e alunos de
outras áreas; isto porque se trata, antes de tudo, de
pensar e mesmo estabelecer o lugar que o professor
e a professora de filosofia ocupam, ou melhor, o
lugar de onde ele e ela falam enquanto professor
e professora de filosofia e mesmo – por que não?
– filósofo e filósofa. Gostaria de aprofundar aqui
um pouco mais essa questão e, assim, procurar
estabelecer de algum modo um possível ponto de
acolhida para todas essas afirmações prelimirares.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013
Izilda Johanson
Possibilidade de filosofar
Certa vez, acompanhando em determinada
escola uma aluna de estágio de filosofia, tive a
oportunidade de presenciar a apresentação que a
professora da classe de filosofia do ensino médio,
a qual a estagiária foi designada, fez desta. A professora disse o seguinte:
Esta pessoa que está aqui conosco veio para fazer
estágio, assistir nossas aulas e participar delas
também, ajudando a esclarecer dúvidas, discutindo
conosco as questões. Quer dizer, ajudando na medida do possível, porque, vocês sabem, filosofia é só
dúvida [sic]. A filosofia não tem respostas. A gente
responde na medida do possível, mas sabe que não há
respostas objetivas. Quanto mais a gente responde,
mas a gente tem dúvida.
Mesmo que essa apresentação tenha acontecido já há um bom tempo, lembro-me dessas frases
como se fosse hoje. Sobre tal acontecimento, o que
teríamos a dizer? Antes de tudo, está fora de questão
a imprudência dessa professora de manifestar tal
ideia para os alunos, pois diante dela, que sentido
teria para eles uma disciplina que só pergunta e
não dá respostas? Que sentido teria perder tempo
com algo que não os leva a parte alguma? O que tal
professora teria apreendido sobre a filosofia? Naturalmente, não vem ao caso respondermos a questão
de ordem pessoal, entretanto, no que concerne ao
que foi dito sobre a filosofia e sobre o que nos leva
a ela, podemos e devemos dizer algo.
Não parece sensato dizer que a filosofia não
ofereça respostas; sabemos, contudo, que ela não
cessa nunca de responder. Tomemos o texto de
Foucault (1984, p. 13) na seguinte passagem:
Mas o que é filosofar hoje em dia [...] senão consistir em tentar saber de que maneia e até onde seria
possível pensar diferentemente em vez de legitimar
o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório
no discurso filosófico quando ele quer, do exterior,
fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua
verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando se
pretende demonstrar-se por positividade ingênua;
mas é seu direito explorar o que pode ser mudado,
no seu próprio pensamento através do exercício de
um saber que lhe é estranho.
Seguindo por esse via, é possível afirmar que
talvez nossa professora só tenha conhecido o
discurso filosófico – ou reconhecido no discurso
filosófico – sua pretensão de, do exterior, procurar
fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a
verdade. Talvez suas pretensões ao ensinar filosofia para seus alunos fosse difundir esse propósito.
Digamos então que, nesse caso, foi desconhecido
por ela aquilo que em filosofia é verdadeiramente
relevante, o fundamental: “o corpo vivo da filosofia”, o “exercício de si no pensamento”, a atividade
da reflexão, afinal.
Dizemos que é o fundamental da filosofia, mas
dizemos com isso que é também o fundamental da
atividade do professor de filosofia. Nesse sentido,
nos aproximamos da posição de Lyotard (1986)
quando este nos fala sobre a relação entre filosofar
e ensinar, a qual, num sentido preciso, é de sobreposição, ou, talvez melhor, de um cruzamento,
pois há um ponto em que as duas figuras, a do
professor e do filósofo, e a atividade de ambos,
se cruzam. E é nesse cruzamento que o essencial
da atividade do professor de filosofia deve visar
inserir o estudante. Segundo o autor, a atividade
filosófica exige do professor de filosofia que refaça a cada curso o caminho do filosofar desde o
seu início, isto é, desde o ponto em que nada está
dado inteiramente, em que existe somente a possibilidade de formação do espírito. É preciso, pois,
que o professor de filosofia retome essa chamada
“infância do espírito”, esse ponto maleável e ainda
informe (é preciso reencontrá-lo com os alunos e
neles também, isto é, é preciso criá-lo juntamente
com eles), e que se abra em meio a esse campo
de indeterminação ao trabalho de construção,
de organização e, neste sentido, de invenção.
Assim como o filósofo, o professor caminhará
no sentido de certa “curiosidade”, a única, para
retomarmos as palavras de Foucault, que vale à
pena ser praticada com um pouco de obstinação:
“aquela que procura assimilar o que convém,
mas aquela que permite também separar-se de si
mesmo” (FOUCAULT, 1984, p. 13). Assim sendo,
em vez de expor um pensamento ou proferir um
ensinamento, “uma apropriação simplificadora
de outrem para fins de comunicação”, ao praticar
seus “ensaios”, não há como o professor não se
expor por meio de seus ensinamentos, “pois não
se pode expor uma questão sem se expor a ela; não
há como interrogar um assunto sem ser interro-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013
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Filosofia, filósofo, professor de filosofia
gado por ele, sem reatar, portanto, com a estação
de infância, que é a dos possíveis do espírito.”
(LYOTARD, 1986, p. 34).
Podemos dizer, então, que a atividade do professor de filosofia seria a de trazer os alunos para
filosofar consigo? Isto é o que, afinal, parece o
essencial.
Amizade do conceito
Em O que é a Filosofia?, Gilles Deleuze e F.
Guattari (1992) afirmam que todo filósofo não tem
muito prazer em discutir, que a discussão é muito
boa para mesas redondas, mas a mesa na qual a
filosofia “joga seus dados cifrados” é outra. Num
julgamento apressado poderíamos concluir que estamos, neste caso, diante de um puro contrassenso,
afinal, o que mais faz o filósofo a não ser discutir?
De fato, ele trabalha com questões e problemas,
mas não os discute propriamente, se tomarmos a
discussão por qualquer coisa como debate de posições e ideias exteriores à própria filosofia. Das
discussões,
O mínimo que se pode dizer, é que elas não fariam
avançar o trabalho (do filósofo), já que os interlocutores nunca falam da mesma coisa. Que alguém
tenha tal opinião, e pense antes isto que aquilo, o
que isso pode importar para a filosofia, na medida
em que os problemas em jogo não são enunciados?
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 41).
Os autores prosseguem dizendo ainda que,
quando esses problemas são enunciados, então
“não se trata mais de discutir, mas de criar indiscutíveis conceitos para o problema que nós nos
atribuímos” (DELEUZE E GUATTARI, 1992,
p. 260). A filosofia não é discussão, discussão é
dispersão, mas pode ser também, por outro lado,
restrição, estabelecimento de fins, de pontos finais
para o espírito: “a comunicação vem cedo demais
ou tarde demais, e a conversação está sempre
em excesso em relação ao criar” (DELEUZE E
GUATTARI, 1992, p. 260). Quanto à filosofia, ela
é concentração, organização do espírito investigativo, nunca imobilidade, contenção: ela é movimento, isto é, atitude de criar, de criar conceitos,
fundamentar ideias, organizar o pensamento. É,
pois, circunscrição no vasto e caótico universo das
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possibilidades dos pensamentos e acontecimentos.
Sua exigência de verdade, ou de validade, é antes
a de um acordo entre coisas e pensamento, selada
pela percepção, pela constatação sensível “que não
percebe o presente sem lhe impor uma conformidade com o passado” (DELEUZE E GUATTARI,
1992, p. 260).
O espírito reflexivo, a razão de ser da filosofia,
o que é senão a atitude crítica do pensamento filosófico sobre ele próprio no decorrer do tempo?
Nesse sentido, Deleuze e Guattari (1992, p. 42)
nos chamam a atenção para o fato de que criticar
não significa substituir conceitos uns pelos outros
(esta seria a atitude do comunicador, daquele que
discute) , mas “constatar que um conceito se esvanece, perde seus componentes, ou adquire outros
novos que o transformam, quando é mergulhado
em um novo meio”. À filosofia cabe colocar seus
próprios problemas, conhecer suas incertezas, em
uma palavra, resolver seus próprios problemas.
A filosofia tem horror a discussões. Ela tem mais o
que fazer. O debate lhe é insuportável, não porque
ela é segura demais de si mesma: ao contrário, são
suas incertezas que a arrastam para vias mais solitárias. Contudo, Sócrates não fazia da filosofia uma
livre discussão dos homens livres? Não é o auge da
sociabilidade grega como conversação entre amigos?
De fato, Sócrates tornou a discussão impossível... Ele
fez do amigo o amigo exclusivo do conceito, e do
conceito o piedoso monólogo que elimina, um após
outro, todos os rivais. (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 42).
Ao nos debruçarmos sobre a questão do filosofar, vemos cada vez mais que quanto mais
interesse se tem pela filosofia, isto é, quanto mais
forte vai se tornando o impulso que leva alguém
a se aprofundar em filosofia, mais nítido torna-se
para nós o sentimento de que este impulso já é, em
si, filosófico. Seria precipitado dizer que, de certa
forma, o próprio germe da filosofia em nós é o que
faz com que nós a busquemos? Talvez sim, pois
bem sabemos o quanto de esforço exige o caminho
do filosofar, o quanto é preciso que formemos (que
trans-formemos) nosso espírito para ele, pois, é
certo, o espírito filosófico não nasce pronto, ele
se faz, se constrói. Entretanto, tomando a questão
por outro lado, talvez a resposta possa ser outra,
pois existe certo impulso, ou sentimento, chame-se
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013
Izilda Johanson
como quiser, que faz com que a despeito de tudo
queiramos sempre mais, que garante a nossa resistência diante das intempéries e que nos mantém
firmes (ou, muitas vezes, quase firmes) durante todo
(ou quase todo) o percurso – percurso, no mais, que
não parece ter nem local nem data para encerrar-se.
Ora, não seria essa a questão principal do professor de filosofia, ou seu ponto de partida? Ou melhor,
procurar esse impulso nos alunos, incitá-lo neles,
não seria este o trabalho principal do professor de
filosofia? E isso não porque ele deva formar filósofos, mas porque, supõe-se, ele pretenda introduzir
seus alunos no espírito da filosofia?
Lebrun (1976), respondendo à pergunta “Por
que filósofo?”, diz que nunca acreditou que o que
orientasse um jovem em direção à filosofia fosse
sua “sede de verdade”. Afirma que tal fórmula é
vazia . Vale acrescentar: este jovem, com sede de
verdade que eventualmente procurasse a filosofia
com intuito de encontrar a verdade, não seria ele
um dos primeiros a abandoná-la, não seria ele o
primeiro a recusar a filosofia?
É de outra coisa que o jovem tem necessidade: falar
uma língua da segurança, instalar-se num vocabulário que se ajuste ao máximo às ‘dificuldades’ (no
sentido cartesiano), munir-se de um repertório de
topoi, em suma possuir uma retórica que lhe permitirá a todo instante denunciar a ‘ingenuidade’ do
‘cientista’ ou a ‘ideologia’ de quem não pensa como
ele. Qual melhor recurso se lhe apresenta senão tomar emprestado um discurso filosófico? (LEBRUN,
1976, p. 151).
Ora, é a própria instrumentalidade da filosofia
que está em questão. Ressaltamos, e ressaltaremos
o quanto for necessário, nossa consideração de que
a filosofia não se resume a uma instrumentalidade,
mas não há como ignorar o quanto esta deve estar
presente no horizonte de propostas e intenções do
professor e da professora de filosofia. O discurso
filosófico tem sua especificidade e talvez seja
justamente essa especificidade aquilo que primeiramente nos atraia nele, aquilo que esteja mais
próximo dos nossos olhos, mesmo quando ainda
não sabemos muito bem reconhecê-la. Conhecer de
perto o discurso filosófico é, portanto, o primeiro
passo em direção ao filosofar. Não há como escapar; somente mergulhando no discurso filosófico é
que se pode navegar pelos mares da filosofia. Não
há como filosofar pelo lado de fora. Ainda que não
se queira formar filósofos universitários, como é
o caso do professor de filosofia no ensino médio,
ainda assim é preciso lançar mão do instrumental
filosófico para que, por meio dele, a própria filosofia
possa dizer ao aluno o que ela é, o que ela pode e
o que ela deverá ser.
Mergulhar no discurso filosófico, apreender
sua forma e pautar-se nela para construir o próprio
discurso, disso nosso jovem aluno pode tirar bons
proveitos. Que bons proveitos seriam esses, Lebrun
(1976) bem os define quando diz, mencionando Hegel, que até mesmo as crianças gostam de encontrar
um encadeamento e uma conclusão nos contos. É
isso essencialmente que a filosofia nos proporciona,
diz ele, “ela nos educa – segundo o acaso das influências e leituras – para a inteligibilidade. Dá-nos
meio de discernir uma Gesetzmäszigkeit onde os
ingênuos só vêem fatos diversos, acontecimentos
amontoados” (LEBRUN, 1976, p. 152). É que o
filosofar consiste principalmente em “expulsar o
acaso, decifrar a todo custo uma legalidade sob o
fortuito que se dá na superfície [...], compreender
o funcionamento de uma configuração a partir de
uma lei que lhe é infusa (é preciso que haja uma),
conforme a ordem que se exprime nela (é preciso
que haja uma)” (LEBRUN, 1976, p. 152). Isso pode
ser, de fato, para qualquer um, inclusive para os
nossos alunos, muito estimulante e sedutor.
Leitura filosófica
Resta-nos ainda um ponto a ser esclarecido.
Falei da necessidade de o aluno apreender o essencial de um discurso filosófico. Entretanto, é preciso
que se diga também que esse discurso diz respeito,
principalmente, a uma forma de ser que, por si só,
não garante que a leitura que se faz dele seja uma
leitura filosófica. Uma leitura filosófica não se resume, pois, à aplicação de métodos ou metodologias
de leitura. Por outro lado, não basta ler textos “de
filosofia” para que se compreenda o filosofar: é
preciso que tais textos (ou outros de outros tipos
também) sejam lidos de maneira filosófica. Por isso
o instrumental apenas não é suficiente, ou então
bastaria repetir o que os filósofos reconhecidos
como tal dizem para que qualquer um de nós se
tornasse um filósofo. A imitação é algo muito mais
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013
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Filosofia, filósofo, professor de filosofia
simples que a filosofia. Ora, é preciso deixar claro
o que desejamos para os nossos futuros alunos.
Como bem ressalta Lyotard (1986, p. 35), “uma
leitura não é filosófica porque os textos lidos são
filosóficos – estes podem ser de artistas, de cientistas, como também de políticos, e pode-se ler
textos filosóficos sem filosofar – a leitura só o é
(filosófica) se é autodidata”. E com isso não se diz
que, em filosofia, não se aprende nada de ninguém,
mas antes, e acima de tudo, que o essencial de um
curso de filosofia é o diálogo: menos entre professor
e aluno do que entre o aluno e o texto que ele lê.
Nesse sentido, o trabalho do professor só pode ser
o de sugerir caminhos. Ou melhor, descaminhos,
pois uma leitura só é filosófica se é “um exercício de
desconcertação em relação ao texto, um exercício
de paciência. O longo curso da leitura filosófica
não ensina somente o que é preciso ler, mas que
não se acaba nunca de ler, que só se começa, que
não se leu o que se leu. Tal leitura é um exercício
de escuta” (LYOTARD, 1986, p. 36).
Assim sendo, é preciso que o aluno escute a
voz do próprio texto, é preciso que este seja lido
em voz alta, em bom tom, não para os outros, evidentemente, mas para o seu próprio pensamento, o
pensamento daquele que o lê. A leitura filosófica só
se realiza a partir da relação que o leitor estabelece
com ela: o que há no texto, no discurso expresso só
se realiza mais integralmente quando a leitura significa elaboração, desdobramento de pressupostos
e de subentendidos. Assim sendo, é preciso que o
jovem reconheça pontos de partida, percursos, que
os examine e os reexamine caminhando por eles; é
preciso, enfim, que o aluno conheça e reconheça,
num constante redobrar-se sobre os textos, o que
estes têm a lhe dizer sobre o que, para ele, já poderia
ter sido dito.
Há que se reconhecer que uma das maiores
virtudes da filosofia consiste no fato de ser ela a expressão desse esforço, já desde os antigos Gregos,
para dar à palavra o movimento do pensamento .
Eis o sentido da criação de conceitos, esforço que
incita o leitor a esforçar-se ele também, a colocar-se
nesse movimento ele também e ir tão longe quanto
possa, até mesmo ao ponto de descobrir que, em
filosofia, é o sentido do real que se sobrepõe às
palavras que procuram expressá-lo, e não o contrário. Em relação aos textos que lê, ao se envolver
60
verdadeiramente com eles, nosso jovem verá, mais
cedo ou mais tarde, que são as palavras que se subordinam ao sentido original, nunca o contrário, é
o pensamento, enfim, que lhes dá a vida:
O essencial daquilo a que chamamos elaboração, que
acompanha e desdobra a escuta paciente, consiste
na anamnese, na procura do que permanece ainda
impensado quando já foi pensado. É por isso que a
elaboração filosófica não tem nenhuma relação com
a teoria, nem a experiência dessa elaboração com
a aquisição de um saber (mathema). (LYOTARD,
1986, p. 36).
Tal trabalho exige que se tenha muita paciência,
principalmente da parte do professor. A ansiedade
por resultados precisa estar fora de questão na medida em que eles são exatamente o bem conduzir-se nos procedimentos. Assim, a atividade do
professor não pode ser outra coisa que não um
constante recomeçar, e recomeçar juntamente com
os alunos, pois não se pode avançar na aquisição de
um conhecimento filosófico, simplesmente porque
este não pode ser adquirido tal como um saber. A
elaboração filosófica não pode ser transmitida por
meio de conteúdos, ela é um trabalho solitário de
escuta e de anamnese, e é nesse sentido que podemos entendê-la como autodidata.
Crítica, reflexão e discernimento
Agora, chegando ao final desta reflexão, poder-se-ia perguntar se não teria sido sobre a formação
do espírito crítico do aluno, aquela coisa muito
indefinida sobre a qual a maioria das propostas
pedagógicas falam quando o assunto é filosofia,
que se teria falado desde o início. Se considerarmos
que o pensamento crítico do aluno advirá da simples discussão acrescida do trabalho do professor
em solucioná-la, dando bons exemplos de como
resolver problemas, certamente a resposta é não.
Acredito, contudo, ter-me referido aqui à formação
de um espírito crítico que pode ser avaliado pela
sua capacidade de formular proposições e objeções
de maneira consistente, quer dizer, organizada,
coerente, precisamente, rigorosa.
Fazemos, às vezes, da filosofia a ideia de uma perpétua discussão como ‘racionalidade comunicativa’ ou
como ‘conversação democrática universal’. Nada é
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013
Izilda Johanson
menos exato e, quando um filósofo critica o outro, é a
partir de problemas de um plano que não eram aqueles do outro, e que fazem fundir os antigos conceitos,
como se pode fundir um canhão para fabricar a partir
dele novas armas. Não estamos nunca sobre o mesmo
plano. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 41).
Um conceito, completam esses pensadores, não
é um conjunto de ideias associadas, como uma opinião. Para atingi-los, é preciso que “ultrapassemos
tanto as imagens quanto as abstrações e que atinjamos objetos mentais determináveis como seres
reais” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 261). A
filosofia também luta contra o caos, no entanto, não
se trata apenas de trabalhar para reforçar certa tendência natural do espírito humano, essa de, diante
do caos, fixar-se em algum tipo de porto familiar e,
por isso, seguro. O papel do professor, nesse sentido, deve ser o de estimular, de incentivar, por meio
do seu exemplo, o aluno, a aluna a arriscarem-se
a mergulhar no ambiente propriamente filosófico,
tal como um pescador que jogasse uma rede no
vasto mundo real, mas “arriscasse-se sempre a ser
arrastado e a se encontrar em pleno mar, quando
acreditava chegar ao porto” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 261).
Assim também está lançada nesse horizonte
pedagógico certa concepção de educação, a saber,
de uma educação formadora: não tecnicista, pois,
tampouco voltada para qualquer tipo de erudição
vazia, menos ainda direcionada a propósitos de
servilismos em relação aos interesses imediatos,
práticos, ou massificadores da sociedade; trata-se,
pois, da aposta em uma formação que visa contribuir, antes de tudo, à constituição de um indivíduo
capaz de distinguir, de discernir e, portanto, capaz
de julgar e de escolher.
Trata-se, assim, de priorizar e dar ênfase a uma
proposta pedagógica que procura, antes de tudo,
cultivar um hábito, mas um hábito cujos efeitos
são exatamente opostos àqueles que imobilizam
e fixam os sentidos e as ações num mesmo lugar.
Trata-se justamente de uma proposta de cultivar
e incitar o hábito de impedir o espírito de se acomodar em ideias e pensamentos já dados, prontos,
fixados pela linguagem e estagnados nos sentidos.
Trata-se, enfim, de cultivar certo hábito de colocar
o próprio espírito o mais próximo possível das próprias coisas e das próprias ideias. Em uma palavra,
visa a uma educação que enfatiza a percepção da
diferença, e incentiva esse esforçar-se para não
apenas apreender essa diferença, mas contribuir
para sua criação. Menos uma educação que procure
simplesmente encontrar um jeito de tornar tudo o
mais digerível e adaptável possível, mas que, ao
contrário, associe à tarefa de educar o cultivo da
percepção de diferenças, as quais não podem ser
simplesmente transpostas de um arranjo simbólico
a outro, pelo menos não sem que com isso se perca
justamente o seu sentido mais próprio e autêntico.
E perceber a realidade como diferença, e não
apenas como repetição do mesmo, parece ser a
condição para a escolha – ora, em relação a uma
realidade que se realiza como indiferença, não haveríamos que falar em escolha propriamente! Essa
possibilidade é ainda mais reforçada quando se
percebe, afinal, que essa possibilidade de escolher
se realiza menos a partir de opções dadas e prontas,
como alternativas preexistentes do tipo “pegar ou
largar”, mas antes e acima de tudo como alternativa
entre o que está dado e o que pode vir a surgir, isto
é, entre o mesmo e o novo, aquilo, enfim, que pode
vir a existir.
O jogo do sentido
Até agora, esteve aqui em jogo o desejo de provocar nos alunos certo estranhamento em relação
ao que é dado como posto, não porque a filosofia
seja “só dúvida”, mas porque a compreensão até
mesmo de uma experiência comum vivida por nós
demanda certo distanciamento e certa articulação
dos elementos a serem pensados. Queremos cumprir, então, nosso papel de professores de filosofia.
E isso se acentua quando nos vemos diante de fatos
como, por exemplo, o que segue.
Num dado momento do estágio referido anteriormente, a professora (ao que pareceu, com o
intuito de apresentar à estagiária uma espécie de
álibi que a absolvesse das acusações que porventura se pudesse dirigir a ela , ou aos seus propósitos
pedagógicos) trouxe às mãos da estagiária um
dos incontáveis questionários que ela gostava de
aplicar a seus alunos. Pretendia, ao que parecia,
que a estagiária reconhecesse nas respostas dadas
pelos alunos a incapacidade deles para o curso
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013
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Filosofia, filósofo, professor de filosofia
de filosofia. Tive o cuidado de copiar uma das
respostas dadas a uma de suas questões para ter
certeza, quando mais tarde voltasse a lê-la, de que
a professora estava enganada e que o que acabou
conseguindo foi mostrar o quanto um curso de
filosofia pode ser interessante. A pergunta foi a
seguinte: “O que importa não são os fatos, mas
sua visão. (Otto Lara Rezende) - Qual a opinião
de vocês sobre esta frase?” Veio então a respectiva
resposta, por escrito, de um determinado aluno:
“Isso quer dizer que não podemos nos preocupar
com as coisas que vêm acontecendo em nossas
vidas (problemas, tristezas, etc.). Temos sim é que
acreditar em nós mesmos, temos que ter fé, ter
garra. Força de vontade, pois só assim chegaremos
onde queremos.”
Ora, não podemos dizer que a resposta está
errada (ao contrário do que disse a professora que
perguntou). Perguntei-me, contudo, onde teria esse
aluno buscado tal resposta. Certamente em alguma
questão pessoal. Mas qual teria sido seu percurso?
Teria ele compreendido a pergunta que lhe faziam?
Teria ele pensado sobre a afirmação posta e articulado algum pensamento? Ao que parece, tudo se
passou em meio a um caos de ideias, sentimentos,
ideais, sonhos, desejos, tudo junto. E o “jogo do
sentido a todo custo” de que nos fala Lebrun? E
quanto à nossa professora, seu curso? Ao que parece, estava tão mergulhada no caos quanto seus
alunos. A filosofia não é certamente sua salvação,
nem a salvação dos seus alunos; contudo, como
poderia ser interessante vê-los filosofar!
REFERÊNCIAS
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: 34 Letras, 1992.
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres. História da sexualidade II. Rio de Janeiro: Graal. 1984.
LEBRUN, G. Por que filósofo? Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 15, p. 148-153, jan./mar. 1976.
LYOTARD, J-F. Le cours philosophique. In: DERRIDA, J. et al. Ecole et Philosophie – la grève des philosophes.
Paris: Osires, 1986. p. 34-40.
Recebido em 21.10.2012
Aprovado em 23.01.2013
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013
Fátima Maria Nobre Lopes
O DUPLO ASPECTO DA EDUCAÇÃO:
VIA DE CONSTITUIÇÃO DO ESTRANHAMENTO OU DE SUA
SUPERAÇÃO MEDIADA PELA ÉTICA
Fátima Maria Nobre Lopes*
RESUMO
Este artigo aborda a posição do filósofo húngaro György Lukács acerca da centralidade
do trabalho e do seu caráter teleológico, evidenciando a gênese ontológica da educação
como formação humana e o seu desenvolvimento no âmbito das teleologias secundárias
por meio das quais pode ocorrer a constituição e/ou a superação de estranhamentos.
Tal assunto está exposto na sua obra Ontologia do Ser Social, na qual ele desenvolve
as categorias centrais do homem enquanto ser social. Segundo Lukács, a malha social
da vida humana é resultante do estabelecimento e realização de posições teleológicas
dos homens, cujos resultados muitas vezes escapam do seu controle e vontade como
se fosse uma segunda natureza, principalmente quando o percurso ou o resultado do
processo dessa transformação torna-se estranhamento. Entretanto, mesmo diante de
resultados inesperados, pois o homem está sempre realizando posições teleológicas
“sob pena de fracasso”, Lukács afirma que não há uma contraposição entre teleologia
e causalidade e sim uma conexão recíproca e operante. Isso nos remete à liberdade
de escolhas e de buscas para soluções dos bloqueios à plena explicitação do gênero
humano que se exprime como estranhamento, cuja superação exige a mediação da
educação numa dimensão ética.
Palavras-chave: Trabalho. Teleologia. Estranhamento. Ética. Educação.
ABSTRACT
THE DOUBLE ASPECT OF EDUCATION: WAY OF ESTRANGEMENT
CONSTITUTION OR WAY OF ESTRANGEMENT OVERCOMING
THROUGH ETHICS
This article discusses the thought of the Hungarian philosopher György Lukács on the
centrality of work and its teleological aspects, pointing out the ontological genesis of
education as human formation and its development in the field of secondary teleology
through which estrangement can be constituted and/or overcome. This subject is
discussed at his work Ontology of Social Being, in which he develops the central
categories of man as a social being. According to Lukács, the social network of human
life is a result of men’s establishment and execution of teleological positions, which
* Doutora em Educação. Mestre e graduada em Filosofia. Professora Adjunta do Curso de Filosofia da Universidade Federal
do Ceará (UFC). Membro do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação Brasileira e do Laboratório de Estudos do
Trabalho e Qualificação Profissional (LABOR) da UFC/Fortaleza. Coordenadora do PIBID/Filosofia da UFC/Cariri e do Curso
Gratuito de Especialização em Ensino de Filosofia da UFC/Cariri. Líder do Grupo de Pesquisa Ontologia do Ser Social, Ética e
Formação Humana. Endereço para correspondência: Rua Chico Lemos, 1405, casa 10. Bairro: Cidade dos Funcionários. CEP:
60822-780. Fortaleza-Ceará. Fone: (85) 8837-4796. [email protected].
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013
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O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética
results often are often out of control and will, as in a second nature. This occurs mainly
when the path or the result of the process of this transformation becomes estrangement.
Nevertheless, even in front of unexpected results (man is always executing teleological
positions under penalty of failure), Lukács says there is no contraposition between
teleology and causality, but a reciprocal and operant connection. That leads us to
freedom of choice and of searches to find solutions to the hung-ups considering the
explicitness of the human being that is expressed as estrangement. Overcoming it
demands mediation in education in an ethical dimension.
Keywords: Work. Teleology. Estrangement. Ethics. Education.
Questões Introdutórias: a dimensão
ontológica da educação
A educação no seu sentido mais amplo é mediada e mediadora de outras práxis sociais, aliás,
é condição ontológica da práxis humana. Sabemos
que a educação exteriorizada nos sistemas formais
de ensino é instância de reprodução de interesses
ideológico-particulares, mas, no seu sentido amplo,
na sua dimensão ontológica, ela é instância de
produção e reprodução da vida social dos homens.
Nesse aspecto ela é também mediação para uma
práxis criadora e transformadora, caso contrário,
não haveria um desenvolvimento histórico do homem. Certamente, a educação (principalmente a
formal) não é a alavanca da transformação social;
mas ela é mediação para esse alcance, inclusive
é veículo para a geração de novos valores, principalmente aqueles voltados ao para-si, valores
emancipatórios que resgatem a dimensão humano-genérica dos homens. Essa educação com certeza
deve ter uma dimensão ética.
É nesse sentido que Marx, em suas obras juvenis, principalmente nos Manuscritos Econômicos
Filosóficos de 1844, fala da necessidade de uma
educação integral, omnilateral, ao afirmar que
“o homem apropria-se do seu ser omnilateral de
uma maneira omnicompreensiva, portanto, como
homem total” (MARX, 1989, p. 196). Trata-se do
potencial transformador dos sentidos quando eles
são desenvolvidos e estimulados por orientações
que proporcionem o aperfeiçoamento da existência
humana. A sensibilidade humana, que se forma mediante uma objetividade, compreende “não apenas
os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor,
etc.) [...] A formação dos sentidos é a obra de toda
64
a história mundial” (MARX, 1989, p. 119). Contudo, na sociedade capitalista, os sentidos físicos
e intelectuais dos homens foram substituídos pelo
sentido do ter, pois a alienação (o estranhamento)
imperante nessa sociedade bloqueia a atividade
intelectual, o desenvolvimento do pensamento
crítico e a capacidade de amar. Marx diz que o
homem esmagado pelas preocupações e pelas necessidades de sobrevivência não tem, por exemplo,
“qualquer sentido para o mais belo espetáculo [...]
A mais bela música nada significa para o ouvido
completamente amusical [...]” (MARX, 1989, p.
119, grifo do autor).
Georg Lukács, filósofo húngaro, tentando
desvelar os alicerces filosóficos do pensamento
de Marx, reexaminando as principais categorias
constitutivas do ser social na sua obra Ontologia do
Ser Social, admite a dimensão negativa da sociabilidade capitalista e o estranhamento (a alienação do
homem do seu próprio ser) que aí impera. Segundo
Lukács, o progresso intenso ao qual chegou a humanidade não deve ser interpretado simplesmente
como promoção do homem. Não resta dúvida de
que o desenvolvimento das forças produtivas via
trabalho promove a sociabilidade e o progresso; por
outro lado, esse desenvolvimento também produz,
ao mesmo tempo, e com intensidade crescente, a
opressão, a crueldade, as fraudes etc. No entanto, o
estranhamento, que são os bloqueios à plena explicitação do gênero humano, não abrange nunca toda
a totalidade do ser social. Portanto, os princípios
norteadores da vida social e sua influência sobre a
personalidade dos indivíduos não devem ser vistos
“somente como negativos, como estranhantes [...]
uma vez que a generidade em-si cria sempre um
campo de possibilidades para a generidade para-si”
(LUKÁCS, 1981, p. 601). Temos aqui um campo
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de possibilidades de superação do estranhamento, e
isso de modo bem intenso no plano das teleologias
secundárias nas quais se insere a educação e nas
quais se dá a superação do estranhamento por meio
de uma mediação ética. Lukács (1981) assevera
que as motivações morais, éticas etc. dos homens
se apresentam como momentos reais do ser social,
são determinações da prática social dos homens.
Toda a compreensão para essas questões reside
na centralidade ontológica do trabalho como categoria fundante da vida social dos homens e no seu
caráter teleológico. É a partir dessas considerações
que Lukács (1981), resgatando a posição de Marx
acerca da existência de qualquer posição teleológica somente no trabalho, afirma que só se pode
falar razoavelmente do ser social quando houver a
compreensão de que a sua gênese, o seu distinguir-se da sua própria base, o seu tornar-se autônomo,
baseiam-se no trabalho e, consequentemente, no
realizar-se contínuo de posições teleológicas. Portanto, a posição teleológica dos homens manifesta-se tanto no ato direto da produção (onde ocorrem
as teleologias primárias), quando eles transformam
a natureza em objetos de uso, ao mesmo tempo
em que se transformam a si mesmos, como nos
complexos sociais que dela decorrem (nos quais
são estabelecidas as teleologias secundárias), que
é o campo da superestrutura. Todo esse processo
resulta na produção do novo precedido por posições
teleológicas, quer sejam primárias ou secundárias,
pois há uma conexão recíproca e operante entre
essas duas esferas de teleologias que compreende
a vida social dos homens. Em suma, o homem
estabelece as suas teleologias (ideações) no ato do
trabalho, ao transformar uma causalidade natural,
a natureza, em causalidade posta que resulta nos
objetos de uso, o produto do trabalho. Para esse fim,
ocorre todo um processo de ensino e aprendizagem
que remete à esfera da educação.
Portanto, a concepção desse autor sobre as
teleologias primárias e secundárias, e o seu respectivo imbricamento, nos permite relacionar a
sua dinâmica também na educação. Vale dizer que
assim como outros complexos sociais (o direito, a
ciência, a política etc.), também a educação tem a
sua gênese no plano das teleologias primárias e,
por conseguinte, tem também uma dependência
ontológica do trabalho (e ainda da esfera econô-
mica) e, ao mesmo tempo, tem uma autonomia
relativa ao se situar no plano da superestrutura, que
compreende o campo das teleologias secundárias.
Defendendo a intrínseca relação que há entre as
duas teleologias, Lukács (1981) diz que somente
com as teleologias secundárias se completa a humanização do homem, e que o costume, os hábitos,
a tradição, a educação etc., que se edificam totalmente sobre posições teleológicas deste gênero,
com o desenvolvimento das forças produtivas vão
continuamente aumentando o seu raio de ação e a
sua importância, terminando por se constituírem
esferas ideológicas específicas para satisfazer estas
necessidades da totalidade social.
É sob esse prisma que podemos falar da gênese
ontológica da educação como formação humana
no âmbito das teleologias primárias e o seu desenvolver-se no campo das teleologias secundárias
quando se objetiva institucionalmente nas famílias,
nos grupos sociais, nas escolas etc. Aqui consiste a
possibilidade de superação dos diversos estranhamentos, típicos do modo de produção capitalista, se
a educação for desenvolvida numa dimensão ética,
pois, certamente, os objetivos emancipatórios só
podem ser concebidos com a intervenção de uma
educação, no seu sentido amplo, cuja orientação
esteja voltada para a formação humana.
Teleologias primárias: gênese ontológica da educação como formação humana
Não vamos aqui detalhar o tratamento teórico-metodológico que Lukács (1981) desenvolve acerca da centralidade do trabalho no desenvolvimento
social do gênero humano, porém, para falarmos
da gênese da educação como formação humana,
teremos que tomar alguns pontos dessa temática.
De início é importante destacar que embora
Lukács não expresse muito o termo educação em
sua Ontologia, no entanto, as formulações aí desenvolvidas dizem respeito, em última instância, à
formação humana, quer dizer, à educação no seu
sentido mais geral. O homem não nasce social,
gênero humano; para se atualizar enquanto tal faz-se necessário que ele se autoconstrua por meio da
atividade do trabalho. E o exercício dessa atividade
requer, sem sombra de dúvidas, um processo de
ensino e de aprendizagem que se dá num contexto
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013
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O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética
social, exigindo estruturas educativas para a sua
efetivação.
Estamos falando da educação no sentido mais
amplo do termo, aquela que transcende as particularidades do capitalismo ou de qualquer outro
sistema social e que desenvolve, em concomitância
com o trabalho, as potencialidades do homem na
produção da sua vida social, dirigindo-se ao pleno
desenvolvimento das suas capacidades intelectuais,
artísticas e criadoras e, portanto, à sua formação
enquanto gênero humano.
É nesse sentido que o afastamento da barreira
natural por meio do trabalho torna o homem cada
vez mais histórico e social. Quanto mais o homem
se distancia de sua origem natural (sem jamais
perder a sua dimensão biológica), tanto mais se
torna social e tanto mais se faz necessário uma
estrutura educativa que oriente a sua existência na
relação com a natureza e com os outros homens,
na produção da sua vida material e espiritual. Para
o mencionado autor, essa estrutura educativa deve
ter a finalidade de formar o homem de modo onilateral, num processo em que desenvolve ao mesmo
tempo as suas capacidades e a sua personalidade,
bem como a sociedade onde ele se insere. Nesse
aspecto é que se pode afirmar a necessária conexão do desenvolvimento individual e o social. É
por isso que a educação no sentido mais lato é um
processo contínuo na formação dos homens. Faz
parte da própria natureza humana desenvolver o
seu ser social, ou seja, há uma intenção espontâneo-voluntária do homem em realizar em si mesmo
os caracteres do gênero humano. Aqui “emerge a
peculiaridade específica do ser social naquele complexo de atividades que costumamos chamar educação” (LUKÁCS, 1981, p. 152, grifo do autor).
Não obstante, é importante frisar que mesmo
que a educação seja intrínseca ao próprio desenvolvimento do homem, ela não é natural ou biológica
e sim, social. É certo que o processo educativo
retroage sobre a constituição biológica do homem.
Lukács (1981, p. 150)1 cita como exemplo a fome
1 Falando das mudanças sociais em relação à sexualidade, no que se
refere à relação entre homem e mulher, Lukács cita como exemplo
o matriarcado, que transformou não somente o comportamento
social dos homens, como também incidiu de forma radical na relação sexual. Lukács menciona ainda que nos diálogos de Platão a
homossexualidade tem um “caráter erótico-ético” (LUKÁCS, 1981,
p. 150).
66
e o sexo, que são momentos insuprimíveis da vida
biológica, mas eles “são modificados no conteúdo
e na forma pelo desenvolvimento social, pelas suas
formas de reprodução”, ou seja, as mudanças que
aí operam têm uma causalidade social.
É sob esse prisma que, para Marx (1989), somente com o desenvolvimento objetivo da riqueza
do ser humano é que se desenvolve a riqueza da
sensibilidade subjetiva do homem, que compreende
não apenas os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais que se expressam nos
sentimentos, no amor etc. É por isso que os sentidos
são teóricos, pois eles não podem ficar aprisionados às necessidades imediatas. Um homem preso
às preocupações das suas necessidades não tem
qualquer sensibilidade para o mais belo espetáculo;
do mesmo modo que para o homem faminto não
existe a forma humana de alimento, mas somente o
seu caráter abstrato de alimento, na sua forma mais
rude, dificilmente distinguindo-se do modo de se
alimentar do animal. Por isso é necessário humanizar os sentidos do homem. Por meio do processo
de objetivação/exteriorização (todo processo de
objetivação, transformação da natureza em objetos
de uso, compreende um processo de exteriorização
do sujeito, imprimindo a sua marca no trabalho
que desenvolve), que tem a sua gênese no trabalho, é que se desenvolve a natureza humanizada, a
formação do gênero humano. “Essa educação [...]
produz o homem em toda a plenitude do seu ser,
produz o homem rico, dotado de todos os sentidos,
como sua permanente realidade” (MARX, 1989, p.
119-120, grifo do autor).2
A partir dessas considerações, podemos perceber a inerência da educação na formação do indivíduo como membro do gênero humano. Contudo,
isso não quer dizer que a educação seja fundante,
e sim o trabalho, pois sabemos que o desenvolvimento do gênero humano efetiva-se sobre a base
dessa atividade. Todavia, o próprio trabalho não se
realiza sem uma dimensão ideológica, isto é, sem
um sistema educativo que implica num processo de
ensino e de aprendizagem; produção e reprodução
da vida social, dos valores, costumes e normas, que
vão desembocar nas teleologias secundárias. Nesse
2Na Ideologia Alemã, Marx repete essa ideia ao dizer que “a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende da riqueza de suas
relações reais” (MARX, 1984, p. 54).
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sentido, a educação – cujo caráter é eminentemente
ideológico3 – consolida a formação humana dos homens ao contribuir para a sua inserção na atividade
do trabalho e na própria sociabilidade.
Portanto, ainda que a educação tenha o seu raio
de atuação no âmbito das teleologias secundárias,
ela tem a sua gênese ontológica no trabalho, no
âmbito das teleologias primárias. Como sabemos,
o trabalho é a categoria fundante do ser social
do homem, pois é por meio dele que o homem
transforma a natureza e a si mesmo. O processo
de objetivação/exteriorização, que aí tem lugar,
impõe critérios tanto em relação ao trabalho
em-si, como em relação ao comportamento dos
indivíduos. Nessa processualidade, a busca dos
meios mais adequados para a realização da posição
teleológica do trabalho remete ao conhecimento do
processo, das condições objetivas propícias para tal
realização. É justamente no exame das condições
objetivas para a realização teleológica do trabalho
que se gera o conhecimento e, portanto, a ciência.
Quanto mais o homem conhece a legalidade do
processo teleológico – e isso é requisito tanto para
as teleologias primárias como para as secundárias
–, mais preciso e bem-sucedido será o seu resultado.
É importante frisar que não se trata aqui de um
primado gnosiológico e sim ontológico, mas não
resta dúvida de que o conhecimento faz parte do
desenvolvimento do gênero humano. Aqui não há
o problema de se perguntar – como em Kant – pela
possibilidade do conhecimento, pois ele ocorre no
próprio ato do trabalho. E isso se dá por meio de
um longo processo de ensino e de aprendizagem,
quer dizer, de um processo formativo.
A educação, que tem a sua gênese nas teleologias primárias, ou seja, no trabalho, atua para
além dele detendo a sua atuação no campo da
superestrutura; sem esquecermos, no entanto,
que as teleologia primárias e as secundárias são
3 Segundo Lukács, a ideologia caracteriza-se como o momento ideal
das posições teleológicas dos homens. Trata-se aqui da ideologia no
sentido amplo, que está presente em todas as formas de existência
social. Desse modo, ele define a ideologia como “aquela forma de
elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social
dos homens consciente e operativa” (LUKÁCS, 1981, p. 446). Já
a ideologia no sentido restrito direciona-se mais para os conflitos
sociais, tornando-se um instrumento por meio do qual os homens e
as classes sociais se engajam e enfrentam as lutas sociais. Dependendo da sua direção, a ideologia no sentido restrito pode ser uma
ferramenta de transformação ou de conservação do status quo social.
Ver Lukács (1981, p. 452-453), principalmente.
amplamente imbricadas pois a práxis humana é
constituída por ambas. Podemos então afirmar que a
humanização do homem é uma construção histórica
e que a educação faz parte dessa humanização, pois
ela insere as novas gerações no universo social do
trabalho, mediando, orientando e acompanhando
o desenvolvimento social dos homens. Em cada
período histórico, diz Marx (1984, p. 56):
[...] encontra-se um resultado material, uma soma
de forças de produção, uma relação historicamente
criada com a natureza e entre os indivíduos, que cada
geração transmite à geração seguinte; uma massa de
forças produtivas, de capitais e de condições que,
embora sendo em parte modificada pela nova geração, prescreve a esta suas próprias condições de vida
e lhe imprime um determinado desenvolvimento,
um caráter especial [...] portanto, as circunstâncias
fazem os homens assim como os homens fazem as
circunstâncias.4
Essa longa citação nos mostra que a educação
é uma prática social e histórica, pois por meio dela
as pessoas compartilham as experiências vivenciadas pelas gerações anteriores e produzem novas
experiências, novos modos de agir, novos valores.
O crescente desenvolvimento do trabalho, segundo
Lukács (1981, p. 561), “e o constante aperfeiçoar-se da ciência, que deriva dele mesmo movendo-se
paralelamente em direção à própria autonomia,
multiplicam e aprofundam os conhecimentos dos
homens, inclusive quanto à própria práxis social”.
Podemos afirmar que a educação se situa no mesmo
patamar da linguagem, que é considerada como
um “processo simultâneo à gênese do trabalho”
(LUKÁCS, 1981, p. 380)5. Acreditamos que também
a educação seja simultânea à gênese do trabalho,
4As circunstâncias feitas pelos homens não se realizam sem a mediação da educação, pois no processo de autoprodução os homens
simultaneamente se educam, por isso podemos dizer que a educação
é uma atividade mediadora da prática social global, havendo aí uma
ação recíproca entre educação e sociedade. Marx expressa muito
bem essa ideia quando diz que “as circunstâncias fazem os homens
assim como os homens fazem as circunstâncias” (MARX, 1984, p.
56).
5 Podemos lembrar aqui as posições de Manacorda (1991) ao expressar a ideia de que o homem se torna social pela educação. Nesse
mesmo sentido, Manfredo Oliveira afirma que “a especificidade
do ser humano emergiu como sua fundamental educacionalidade:
só o homem pode ser educado, pois educação pressupõe liberdade
e é a inauguração de sua efetivação” (OLIVEIRA, 1995, p. 108).
Em outra passagem, Manfredo diz que a educação é o processo
pelo qual o homem exerce a sua “auto-realização como homem”
(OLIVEIRA, 1995, p. 110).
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O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética
pois na sua realização o homem não somente precisa
falar alguma coisa, mas também conhecer, aprender
alguma coisa, ainda que, como já frisamos várias
vezes, a educação não seja um dado originário, e
sim o trabalho, porém, ela passa a ser exercida pelo
homem, independente da forma de sua utilização,
tão logo ele começa a produzir seus meios de vida.
Tudo isso evidencia a dimensão ontológica da
educação na práxis humana, determinando-se como
uma atividade mediada e mediadora da construção
sócio-histórica do gênero humano. Sabemos que o
solo genético dessa construção é o trabalho, mas
nele está sempre presente a posição teleológica
do homem, acompanhada por uma decisão alternativa, e isso requer, sem sombra de dúvidas, a
mediação da consciência. Portanto, o trabalho e o
processo educativo que dele brota são mediados
pela consciência humana. Como dissemos no
início, ainda que a educação seja parte essencial
do desenvolvimento do gênero humano, ela não
se realiza simplesmente por impulsos naturais ou
biológicos. Também não surge espontaneamente
de um espírito supra-histórico ou transcendente.
A educação é intencional, social e histórica. Como
diz Marx (1984, p. 119), “os indivíduos partiram
sempre de si mesmos, mas, naturalmente, dentro de
suas relações históricas dadas, e não do indivíduo
‘puro’, no sentido dos ideólogos”. A consciência
dos homens é um produto social, quer dizer, a sua
formação se dá histórica e socialmente. A partir
do modo de produção e reprodução da vida “os
indivíduos fazem-se uns aos outros, tanto física
como espiritualmente” (MARX, 1984, p. 55)6. É
por isso que para esses pensadores a personalidade
do homem é social, pois se forma no processo da
sua vida real. Resumindo, podemos dizer que a
posição teleológica que inaugura o ato do trabalho é estabelecida pelo homem como momento
da prévia-ideação. Isso remete a uma decisão
alternativa e requer a necessidade de mediação da
consciência, da subjetividade. Ela não atua senão
por um processo de formação, de conhecimento, de
aquisição de habilidades e atitudes, o que implica
um vasto processo educativo.
6 A esse respeito Lukács diz que o tipo tão persistente do aristocrata
inglês, por exemplo, “é muito mais um produto da marca recebida
pela educação em Eton ou Oxford-Cambridge do que pela transmissão hereditária” (LUKÁCS, 1981, p. 153).
68
No entanto, as referências relativas à educação
no seu sentido amplo, assim como também ao
trabalho em geral, são apenas pressupostos para
explicar a formação do homem como ser social,
uma vez que não existe trabalho, nem tampouco
educação às margens da sociedade. Ambas são
categorias sociais, historicamente situadas.
No que se refere à educação, embora tenha a
sua gênese ontológica no trabalho, no entanto, é
no âmbito das teleologias secundárias que ela se
desenvolve, iniciando-se por meio de processos
informais na família, nos grupos sociais e nas
demais vivências coletivas; difundindo-se em instituições formais, estruturadas e com finalidades
específicas. Emerge aqui o caráter inacabável da
educação no seu sentido lato e as suas diversas
formas de se organizar no sentido estrito. Lukács
(1981, p.152) diz que “entre educação no sentido
lato e educação no sentido estrito não se pode traçar
um limite preciso”. Todavia, não resta dúvida de
que toda sociedade reclama dos próprios membros
uma dada massa de conhecimentos, habilidades,
comportamentos etc. Essa requisição remete aos
métodos, conteúdos, duração etc. da educação em
sentido estrito que ocorre na superestrutura, ou seja,
no campo das teleologias secundárias.
O desenvolvimento da educação no âmbito das teleologias secundárias: constituição e superação do estranhamento
A totalidade social é a síntese das múltiplas
ações dos indivíduos singulares cuja gênese se dá
no trabalho. À medida que progride, com novos
caminhos, novas necessidades, o processo do
trabalho tende a um aperfeiçoamento crescente.
A estrutura social específica decorrente desse progresso “coloca-se frente aos indivíduos já como
uma forma autônoma do ser social retroagindo,
assim, sobre todo o seu modo de vida” (LUKÁCS,
1981, p. 154), quer dizer, sobre as diversas esferas
da sua vida. Dessa forma, as próprias posições teleológicas dos indivíduos, acompanhadas de suas
ações, tornam-se uma potência social retroagindo,
influenciando e determinando as suas ações e comportamentos, mas também impulsionando-os para
novas decisões alternativas.
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A educação é um dos complexos dessa potência
social, principalmente quando ela objetiva-se em
instituições como família, grupos, escolas etc.
Destacamos aqui a intervenção da educação no
modo de viver das pessoas e até mesmo a sua influência sobre o desenvolvimento físico delas. Em
uma passagem da sua Ontologia, o autor diz que a
essência da educação consiste “em influenciar os
homens a fim de que frente às novas alternativas
da vida reajam de modo socialmente desejado”
(LUKÁCS, 1981, p. 153). Entretanto, não se trata
de uma intervenção mecânica, a própria educação
é constituída pelos atos dos homens num determinado contexto histórico. Todavia, dependendo
do valor da posição teleológica desses atos, eles
podem incidir de modo positivo ou negativo, quer
sobre os indivíduos, quer sobre a totalidade social;
podem contribuir cada vez mais para o desenvolvimento do homem ou podem influenciar para a
degradação do patamar já alcançado da generidade
humana.
Cada modo de produção, cada sociedade tem
em sua constituição um processo educativo influenciando a sua dinâmica e sendo por ela influenciado. Nessa ótica “a educação é sempre situada
numa configuração determinada do ser-homem,
isto é, num certo contexto sócio-histórico, numa
relação de condicionamento recíproco com este
contexto” (OLIVEIRA, 1995, p. 110). De fato,
há essa reciprocidade entre a educação e o contexto social onde ela se aplica, mas não podemos
esquecer que o modo de produção tem sempre a
sua determinação predominante. É por isso que as
instituições educacionais formais (principalmente
a escolar) terminam por se submeter às regras da
esfera econômica.
No modo de produção capitalista essa submissão torna-se mais intensa, pois esse sistema busca
assegurar, principalmente por meio da educação,
que os indivíduos adotem suas posições, metas,
valores, a fim de internalizar a sua ideologia e facilitar a sua legitimação. Não precisamos detalhar
toda a depreciação que o capitalismo provoca no
ser humano, mas queremos destacar que a questão
ideológica que aí tem lugar torna-se um forte motor
para a constituição de estranhamentos, inclusive
na própria esfera da educação, principalmente no
âmbito formal.
Sabemos que, de um modo geral, a educação
refere-se à formação humana objetivada sob a
forma de conhecimento, transmissão de cultura,
hábitos, valores, símbolos, modos de comportamentos etc. Nesse sentido, a educação forma a
base ideológica pela qual o homem constrói a sua
vida social. É por isso que ela se desenvolve no
âmbito das teleologias secundárias, manifestando-se como uma atividade eminentemente ideológica.
As posições teleológicas secundárias já existem
em estágios muito iniciais e já não visam mais
diretamente a transformação de um objeto natural, como no caso das teleologias primárias, e sim
o surgimento de uma nova posição teleológica,
pois a sua intervenção dirige-se agora para outras
pessoas. Em suma, agora “o fim teleológico é o de
induzir outros homens a posições teleológicas que
eles mesmos deverão realizar” (LUKÁCS, 1981,
p. 78)7. Trata-se aqui de uma ação voltada para a
consciência dos outros homens, e nesta função a
educação tem um papel basilar.
Não é sem razão que na sociedade capitalista,
onde predomina o valor de troca (e, junto a este,
o individualismo e a competição), gera-se uma
educação voltada predominantemente para valores
competitivos, individualistas, opondo-se radicalmente à coletividade, à alteridade. Isso contribui
para manter os indivíduos na sua particularidade,
dificultando o seu elevar-se ao para-si. O resultado
é que a formação do indivíduo ocorre de modo
unilateral e empobrecido, dificultando a sua compreensão da própria vida, sentindo-se incapaz de
transformar a realidade, considerando-a como um
destino inevitável.
É desse modo que os sistemas formais de ensino, principalmente a educação escolar, terminam
por se transformar em instrumentos ideológicos
de reprodução das desigualdades, tornando-se um
veículo de manutenção e de geração de estranhamentos sob diversas formas. Falando do caráter
cosmopolita a que chegou a classe burguesa visando formar o mundo à sua imagem e semelhança,
7 Em outra passagem, Lukács repete essa ideia dizendo que as posições teleológicas secundárias têm como fim “em primeiro lugar agir
sobre a consciência de outros homens para induzi-los às posições
teleológicas desejadas” (LUKÁCS, 1981, p. 91). Ao dissertar sobre a
questão da ideologia, ele menciona mais uma vez que as teleologias
secundárias têm “como fim todo um campo de reações desejadas
(ou não desejadas) em direção a fatos, situações, obrigações, etc.
sociais” (LUKÁCS, 1981, p. 466).
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O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética
Marx (1986) diz que a burguesia fez da probidade
pessoal um simples valor de troca. “Transformou
o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem da
ciência em trabalhadores assalariados [...] A burguesia arrancou o véu sentimental que envolvia as
relações de família, reduzindo-as a simples relações
monetárias” (MARX, 1986, p. 21). É daqui que se
originam os estranhamentos mais gerais (tanto pessoais como sociais) que são decorrentes do caráter
predominante do valor de troca no capitalismo,
provocando essa reificação das relações humanas,
inclusive no campo da educação. E isso é tão atual
quanto no tempo de Marx.
Em que pese a forte determinação dos mecanismos do capitalismo na educação, a reprodução
ideológica8 que aí tem lugar não tem um caráter
apenas negativo, estranhante; mas também pode se
manifestar no seu aspecto positivo, no sentido de
conservar o patrimônio alcançado pela humanidade
e, portanto, de garantir a reprodução e a continuidade do gênero humano. Não queremos perder de
vista aqui essa natureza fundamental da educação
no seu sentido amplo, quer dizer, essa função que
ela exerce na formação humana, pois possibilita ao
homem a sua autoconstrução, proporcionando a sua
participação no processo de produção e reprodução
do ser social. Trata-se de um processo inacabado,
pois, a cada momento histórico, novos valores,
conhecimentos e habilidades vão sendo criados e
acrescidos aos que se mantiveram e se universalizaram até aquele tempo. Por isso os valores predominantes do capitalismo não são eternos, a partir
dele podem-se gerar outros. O próprio capitalismo
proporciona a objetivação de valores superiores-genéricos, principalmente no que se refere à luta
para a superação dos estranhamentos atuais. Tal luta
eleva a humanidade a patamares mais altos, como
ocorreu com a superação do estranhamento típico
do feudalismo para o sistema capitalista.
Sabemos que o processo de objetivação/exteriorização, que compreende a práxis social dos
homens, ocorre tanto na esfera econômica (que
possui as posições teleológicas primárias e também
8 Queremos frisar que a palavra “reprodução” utilizada nessas colocações ora tem um sentido negativo, quando se refere a interesses
privados, ora tem sentido positivo, quando se refere à dimensão
ontológica da formação humana. No contexto em que essa palavra
é empregada, é possível perceber quando se trata de um sentido ou
de outro.
70
as secundárias) como na superestrutura que dela
deriva, incluindo a educação. Esse processo comporta, ao mesmo tempo, uma contradição e uma
síntese, desenvolve e bloqueia a formação humana,
pois, como já frisamos, o processo de objetivação/
exteriorização não exclui a existência de conflitos
concretos. Portanto, o efeito causal que daí decorre
(já dissemos que os seus resultados retroagem sobre as novas posições teleológicas dos indivíduos,
bem como sobre a totalidade social) cria para os
homens “modelos positivos e negativos, para as
suas decisões futuras, e, por conseguinte quer seja
nos indivíduos quer seja nos grupos faz da continuidade dos seus pensamentos, sentimentos, atos,
etc. um componente dinâmico da sua consciência”
(LUKÁCS, 1981, p. 467). Em seguida, o autor
destaca que a consciência, tanto na sua dimensão
individual como social, só pode surgir sob o fundamento desses efeitos produzidos pela objetivação
do objeto e pela exteriorização do sujeito.
As posições teleológicas dos homens e as ações
que delas decorrem são duplamente condicionadas:
pela consciência que põe e pelas determinações
objetivas do real; trata-se da conexão recíproca
entre o individual e o social. Isso ocorre também na
educação, pois cada complexo social tem uma lógica e uma certa autonomia e, ao mesmo tempo, uma
relação com os demais, principalmente com a base
econômica. Tertulian (1996, p. 64) comenta que
com essa posição “Lukács exclui definitivamente
a concepção retilínea e monolítica do progresso
histórico”, afastando qualquer determinismo de
tipo economicista (fatalista) ou de um teleologismo
na história como na filosofia hegeliana.
Em diversas passagens da Ontologia, Lukács
(1981) menciona que mesmo no capitalismo, no
qual predomina uma sociabilidade estranhada,
há sempre possibilidades, no sentido da dynamis
aristotélica, de realização do para-si e, portanto,
de superação das atuais formas de estranhamentos. Essa superação ocorre com uma mediação
ética, cuja decisão e ação pertencem aos próprios
homens.
Considerações finais
A partir das posições de Lukács (1981) pudemos perceber que o desenvolvimento social dos
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013
Fátima Maria Nobre Lopes
homens, por meio do seu processo de produção
e reprodução, possibilita a elevação do seu ser
e da sua consciência no processo histórico. Essa
formação do gênero humano não pode ocorrer se
não for por meio de um processo educativo. Vimos que nesse processo os indivíduos conservam,
reproduzem e geram novas experiências. Desse
modo, a educação não somente contribui para a
reprodução social, como também, a partir dela,
gera o novo. Por isso não se pode colocá-la em
patamares mecanicistas, com a consideração de que
ela é unilateralmente determinada pelo econômico,
tornando-se diante dele totalmente impotente. Por
outro lado, não podemos também colocá-la em
patamares transcendentais, desconsiderando-se a
sua natureza sócio-histórica, que compreende tanto
a dimensão objetiva como subjetiva.
Disso resulta que a positividade da formação
do gênero humano, assim como a dinâmica do
estranhamento, é um fato social, e não natural,
mecânico, ou sobrenatural. Então, se são os homens
que geram os próprios estranhamentos, são eles
mesmos que irão superá-los. A educação como
componente da estrutura social compreende a
geração de estranhamentos, mas também gera condições para a sua superação. E dado que ela é uma
mediação essencial da atividade humana, no âmbito
das teleologias secundárias, poderá contribuir não
somente para a superação dos estranhamentos na
área específica da educação formal, mas também
para a superação dos estranhamentos em relação
à sociedade em geral, pois em qualquer dimensão
da práxis social está presente a educação. Como
diz Mészáros (2005, p. 47), adotando as ideias
de Paracelso, “a aprendizagem é a nossa própria
vida, desde a juventude até a velhice”. É evidente
que essa educação tem que ser eminentemente
ética. Trata-se de uma educação com a finalidade
de formar o homem de modo onilateral, uma educação voltada para a superação do estranhamento
e, portanto, comprometida com a emancipação
humana, e isso só pode ocorrer se ela tiver uma
dimensão ética.
Vale ressaltar, portanto, que a educação emancipatória, em sua dimensão ética, compreende
toda a vida da pessoa, e não somente a educação
formal, embora ela tenha um grande peso na formação humana. É claro que as instituições formais
são uma parte importante para a interiorização de
valores superiores, porém, somente a educação no
seu sentido mais amplo pode conduzir o homem a
uma mudança verdadeiramente radical, rompendo,
assim, a lógica mistificadora do capital. Nenhum
“dos objetivos emancipatórios é concebível sem a
intervenção mais ativa da educação, entendida na
sua orientação concreta, no sentido de uma ordem
social que vá para além do capital” (MÉSZÁROS,
2005, p. 43, grifo do autor). Não resta dúvida de
que uma educação para além do capital só pode
ter uma dimensão ética, que deve reportar-se ao
coletivo sem sacrificar nem eliminar o indivíduo,
mas também sem cair num individualismo que
tanto impera no atual sistema. Relacionando com
a posição de Marx (1980, p. 300), trata-se de “uma
educação de seres humanos, para o desenvolvimento intelectual, para a execução das funções sociais,
para as relações sociais e para o livre desempenho
das energias vitais físicas e mentais [...]”. Trata-se
de uma educação que proporcione o pleno desenvolvimento dos homens, a exteriorização das suas
faculdades físicas, mentais e criativas. Uma educação para além do capital que, segundo Mészáros
(2005), é necessária e urgente se quisermos garantir
as condições essenciais da sobrevivência humana.
É esse o fundamento ontológico que move a
nossa posição acerca da educação numa dimensão
ética como uma mediação necessária para a superação do estranhamento atual que, como vimos anteriormente, tem a sua gênese no trabalho enquanto
criador de valores de troca (o trabalho estranhado),
mas se estende para além dele, provocando um
pluralismo de estranhamentos nas diversas esferas
da vida das pessoas. Por isso a formação humana
pressupõe mediações que requerem uma educação
não somente para o trabalho, mas para além dele,
quer dizer, para além das teleologias primárias,
pois, como já frisamos, é no âmbito das teleologias
secundárias que se completa o desenvolvimento da
humanidade.
Por conseguinte, o pertencer do homem ao gênero humano não é decorrente de uma herança apenas
biológica, e sim desenvolvido por um processo
histórico e social que tem a sua gênese no trabalho,
mas perpassa toda a vida das pessoas por meio da
apropriação de valores, habilidades, conhecimentos
etc. que são adquiridos por todo um processo for-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013
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O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética
mativo. As teleologias estabelecidas nesse campo e
o modo de execução vão resultar em determinadas
causalidades. Percebe-se aqui a estreita conexão
recíproca entre teleologia e causalidade tanto no
âmbito do trabalho como nos complexos sociais
que dele derivam, principalmente na esfera da
educação, que sendo permeada por uma dimensão
ética, certamente, irá contribuir para a superação
do estranhamento do mundo atual e para a elevação
do gênero humano.
REFERÊNCIAS
LUKÁCS, György. Ontologia dell’essere sociale. A cura di Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. 3 v.
MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira. 1.
ed. São Paulo: Cortez, 1991.
MARX, Karl. Il capitale. Traduzione di Delio Cantimori e Altri. 8. ed. Roma: Editori Riuniti, 1980. 5 v.
______. Manifesto do partido comunista. 6. ed. São Paulo: Global, 1986.
______. A ideologia alemã. Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1984.
______. Manuscritos eonômico-filosóficos. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1989.
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005.
OLIVEIRA, Manfredo. Ética e práxis histórica. São Paulo: Ática, 1995.
TERTULIAN, Nicolas. Uma apresentação à ontologia do ser social, de Lukács. Tradução Ivo Tonet. Crítica Marxista, São Paulo, n. 3, p. 54-69, 1996.
Recebido em 31.10.2012
Aprovado em 02.02.2013
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013
Cássio Donizete Marques
A EDUCAÇÃO ENTRE O SINGULAR E O COLETIVO A PARTIR DA
CRÍTICA DA RAZÃO DIALÉTICA DE SARTRE
Cássio Donizete Marques*
RESUMO
A educação, como formação do homem, permite vivenciar, na dialética da história,
a relação entre o individual e o coletivo. Ela se dá na plena liberdade do homem que
constrói seu projeto em meio a uma dada situação. O coletivo, embora não tenha
existência ontológica, constitui uma das dimensões fundamentais para se pensar a
educação como dialeticidade entre o indivíduo e o coletivo, entre a subjetividade e a
objetividade, entre o projeto e a situação, entre a totalização e as totalidades parciais.
O sucinto texto aqui apresentado é parte da conclusão de meu trabalho de doutorado,
que tem como título Do Individual ao Coletivo na Crítica da Razão Dialética de
Sartre: Perspectivas Educacionais. A singularidade e a prática pedagógica expressam
os dois lados de uma mesma moeda, educar na e para a singularidade a partir de uma
prática pedagógica que se expressa na coletividade de um grupo em permanente
processo de totalização.
Palavras-chave: Educação. Individual. Coletivo. Práxis. Dialética.
ABSTRACT
EDUCATION - BETWEEN THE INDIVIDUAL AND THE COLLECTIVE
ACCORDING TO SARTRE´S CRITIQUE OF DIALECTICAL REASON
Education as formation of man let us experience, in the dialectic of history, the
relationship between the individual and the collective. It occurs in the full freedom
of man that builds up his project in a given situation. The collective, although it does
not have an ontological existence, is one of the fundamental dimensions to think of
education as dialectic between the individual and the collective, between subjectivity
and objectivity, between the project and the situation, between totalisation and totality.
The brief text presented here is part of my doctoral dissertation From Individual
to Collective according to Sartre´s Critique of Dialectical Reason: Educational
Perspectives. The singularity and the pedagogical practice are two sides of the same
coin, educating in and for the singularity according to a pedagogical practice based
on the collectivity that is in constant process of totalisation.
Keywords: Education. Individual. Collective. Praxis. Dialectic.
* Doutor em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade de Campinas (Unicamp). Professor do Centro Universitário
Nossa Senhora do Patrocínio – Itu e Salto. Endereço Institucional: Praça Antonio Vieira Tavares, 73 – Salto–SP. soumar.coruja@
uol.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013
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A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre
1. Introdução
Antes de discutir a temática central deste trabalho, é oportuno traçar algumas referências gerais
quando se pensa em educação e filosofia sartreana.
Tem havido certo consenso em atribuir a Sartre uma
filosofia da total negação de elementos positivos.
Sartre é visto por muitos como o filósofo que confere ao existente e à existência uma pura gratuidade,
consideradas como uma paixão inútil, um viver sem
objetivos ou finalidades em que o outro representa
um impedimento à minha liberdade, sendo considerado pelo próprio autor como o meu inferno. O
ser é o que não é e não é o que é. A filosofia sartreana é classificada por muitos como a filosofia da
angústia, do desespero, da total subjetividade, em
que a única relação estabelecida é a da objetivação
e coisificação do outro, ou seja, o meu olhar torna o
outro uma coisa, retirando dele a subjetividade e a
liberdade. Com essa leitura tornar-se-ia impossível
a dois sujeitos compartilharem um ponto de vista
comum, construir uma intersubjetividade, aspecto
fundamental à educação. Atribui-se a Sartre a total
falta de fundamentação nas relações humanas, que
são pura gratuidade, nas quais se confere valor
apenas ao existir e a cada escolha feita pelo homem. A escolha torna-se totalmente gratuita; é a
escolha que fundamenta o valor e não o valor que
fundamenta a escolha.
Como pensar a educação a partir de um modelo
que, numa primeira leitura, inviabiliza toda relação
humana e assim toda intersubjetividade? Como
pensar a educação sem nenhum referencial de valor a não ser a própria existência, sua gratuidade
e sua absoluta liberdade? Como pensar educação
num modelo de pensamento em que o outro é o
meu inferno?
É forçoso reconhecer, no processo educativo,
uma dialética entre o subjetivo e o intersubjetivo,
entre a parte e o todo, entre o singular e o universal.
A Educação constitui movimento constante do fazer
humano e do fazer-se humano, numa determinada
situação, que, aliás, é um dos pontos-chave do pensamento sartreano. Todo homem está em situação
e age a partir dela. Situação que se apresenta na
sua total facticidade. A Educação institui-se como
dinâmica entre a liberdade e a situação, entre o dado
e a possibilidade de superação, situação que traz
74
a presença do outro que, a despeito de ser limite
à minha liberdade, é quem me torna humano. Eu
só sou na presença do outro. Isso é um convite à
vivência em sociedade e ao reconhecimento do
outro não como limite, mas como possibilidade de
minha própria existência.
Enfim, ainda que haja quase um consenso em
relação a alguns aspectos do pensamento sartreano,
outros permanecem abertos a novas leituras e interpretações, um desafio do ponto de vista teórico.
Esse universo de possibilidades interpretativas
será investigado a seguir, buscando verificar que
perspectivas educacionais podem ser construídas,
ou pelo menos delineadas, a partir das categorias
presentes na Crítica da Razão Dialética.
2. A dialética entre o individual e o coletivo
O pensamento sartreano, presente na Crítica
da Razão Dialética, aponta para uma relação ao
mesmo tempo conflituosa e de complementaridade
entre o individual e o coletivo. Sartre não abre mão
do sujeito e de sua singularidade, porém não fecha
questão em relação ao coletivo e a tudo o que ele
representa. A tensão posta entre estes dois polos
não é completamente resolvida por Sartre, talvez,
em razão da própria característica dialética de seu
pensamento, de uma dialética histórica que se põe
num mundo marcado pela totalização (MORAVIA,
1985).
A peculiaridade do pensamento sartreano está
justamente na não aceitação de um pensamento
dualista (SARTRE, 1997), inclusive quando discute
a questão do individual e do coletivo. É possível
afirmar que para Sartre a existência de um implica
na existência do outro, ou melhor, que a despeito
da relação conflituosa, ambos se complementam na
dialeticidade1 da história. O existente é na medida
em que se “desenrola” na história, e a história é
este desenrolar do existente. Todo dualismo acaba
por simplificar e até mesmo camuflar uma dada
realidade. A afirmação do indivíduo ou do coletivo,
como alternativas mutuamente excludentes, não
1 Pensar na dialeticidade da história é reconhecê-la dialética. A razão
dialética é a razão que torna inteligível toda forma de totalização,
é toda unificação em curso. Sartre afirma que a razão dialética é
a lógica viva da ação que deve superar a razão analítica e a razão
positivista para se entender a totalização em processo.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013
Cássio Donizete Marques
expressa a compreensão que Sartre tem da história
e do próprio homem. Parece ser impossível pensar
tal relação se esta for compreendida somente a partir de uma oposição absoluta, ou o indivíduo ou o
coletivo. Em Sartre eu sou indivíduo no coletivo e
o coletivo é a expressão maior da individualidade
efetivada de cada práxis singular. Como eu posso
reafirmar minha práxis2 individual senão no coletivo? Como eu posso afirmar ser plena liberdade
senão em relação ao prático-inerte3 que me coloca
diante da objetividade das coisas? Não há liberdade no vazio e nem coletividade sem a adesão de
cada práxis individual (SARTRE, 1985).
Defender a subjetividade não é assumir, necessariamente, um discurso que negue toda e qualquer
objetividade, principalmente em Sartre, para quem
o meio e a rareté4 acompanham o homem ao longo
de sua existência. Uma existência totalmente subjetiva torna-se pura abstração, o que é impensável
para um filósofo existencialista. Entre a defesa
do indivíduo e sua possível abstração tem-se uma
realidade objetiva que, inclusive, viabiliza a práxis
comum que leva à construção do coletivo.
Sartre busca, a partir da defesa da razão dialética, estabelecer uma nova forma de compreensão
da relação entre pensamento e objeto, relação esta
que circunscreve toda possibilidade de conhecimento. A razão dialética possibilita superar a razão
analítica e a razão positivista que, de forma direta
ou indireta, estiveram presentes na construção de
diversas perspectivas educacionais. Numa perspectiva dialética, o saber especulativo não dá conta da
2 Em Sartre, práxis designa a ação de um sujeito (indivíduo ou grupo),
ela é uma forma de totalização, o esforço que todo indivíduo faz
para ganhar seu ser, ou para ser seu ser, no quadro da necessidade
(rareté). Sartre afirma em a Crítica da Razão Dialética que toda
dialética histórica repousa sobre a práxis individual.
3O prático-inerte é sinônimo de matéria trabalhada pelo homem,
marcada de significações humanas, ele é a inércia que nos faz escravos e Sartre luta o tempo todo para escapar de sua força, de sua
passividade, de sua totalidade a partir da razão dialética.
4 Rareté designa uma estrutura fundamental de nossa relação material
e social: o fato de nem a substância natural e nem o produto existir
em quantidade suficiente para todo mundo. Essa estrutura não é derivada do modo de produção, mas é uma estrutura original de nossa
relação com o mundo. Nós vivemos num mundo caracterizado pela
“escassez” objetiva de bens. Essa realidade faz com que a práxis seja
uma luta contra a morte, uma vez que em razão da rareté, o outro é
uma ameaça a minha existência, gerando assim a hostilidade entre
os homens. Sartre afirma que toda a aventura humana – pelo menos
até agora – tem sido uma luta encarniçada contra a escassez. Por
outro lado, é ela que faz com que o homem se organize em sociedade
para lutar contra ela (CABESTAN; TOMES, 2001).
realidade humana, que passa a ser mediada pela
própria história. A dialética procura explicar os
momentos da totalização e está integrada na própria
ação. Nesse sentido a razão dialética busca explicitar a universalidade dos conceitos e sua relação
com as singularidades da experiência e vice-versa
(SARTRE, 1985).
A relação sujeito-objeto não se dá de forma
automática e mecânica; ela não pode ser definida
previamente, sua definição se dá no próprio desenrolar da relação. Essa relação se dá dialeticamente,
a partir do método progressivo-regressivo5, defendido por Sartre. Essa afirmação aponta para a
ideia de uma educação na qual não é plenamente
possível estabelecer o resultado, uma vez que este
depende da forma como cada sujeito, envolvido
no processo, irá assimilar e com isso vivenciar a
situação apresentada. Uma coisa é a apresentação
da realidade dada a partir do processo educativo,
outra coisa é a efetiva assimilação, compreensão e
interpretação que cada indivíduo tem do que está
diante de si. A educação não determina, mas oferece
determinações que serão reconstruídas pela e na
liberdade de cada um. Porém, mesmo se aceitarmos
a ideia de que a educação oferece determinações,
cabe lembrar que elas são também o resultado da
aceitação e adesão de cada práxis individual, feita
num momento anterior e que se apresenta no presente. Com isso, pode-se efetivamente dizer que a
educação é uma relação entre práxis individuais
perpassada pelo coletivo, ou melhor, mediada pelo
coletivo. O que se apresenta no processo educativo
não é uma práxis individual, mas a adesão a um
determinado projeto comum, ou, pelo menos, supostamente comum.
A formação da realidade e do próprio homem se
dá no conflito entre o concreto singular da vida, historicamente datado, e as contradições gerais estabelecidas pelas forças produtivas e pelas relações de
produção. Existe no método progressivo-regressivo
um movimento de interiorização da multiplicidade
que começa na infância e estende-se por toda vida.
Assim, a formação humana se dá, num primeiro
momento, como movimento interno, ou melhor,
sem a necessária interiorização do real – entende-se
aqui real como aquilo determinado pela fenome5 Para a compreensão do método progressivo-regressivo, ver o texto
Questões de Método, cap. III, de Jean-Paul Sartre (SARTRE, 1985).
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A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre
nologia – a consciência não é. Aqui, explicita-se
a importância do movimento de interiorização do
mundo, a multiplicidade das coisas é vivenciada
por uma consciência que é plenamente individual
e é enquanto individualidade que percebe seu entorno e estabelece uma relação com o mesmo. A
formação começa pela tomada de consciência da
multiplicidade das coisas por um existente que é
pura abertura ao mundo. A diversidade do real é
assegurada e ao mesmo tempo colocada sob o olhar
atento de um indivíduo que, em última instância, é
subjetividade e liberdade (SARTRE, 1985).
Ao mesmo tempo em que atribui ao existente,
enquanto consciência, a abertura para o mundo,
Sartre reconhece neste mundo uma série de determinações específicas que retiram do existente
a plena capacidade de ser o que deseja ser, de
caminhar exclusivamente segundo suas regras e
possibilidades. O indivíduo é marcado pela sua
inserção em pequenos e grandes grupos, locais ou
não, que o pressionam, submetendo-o a um conflito permanente entre o grupo local, os interesses
gerais da classe à qual se pertence e seus próprios
interesses pessoais. Simont, em seu artigo Indivíduo
e Totalização: a dialética e seu resto, caracteriza
bem essa situação ao afirmar que
[...] o indivíduo é envolvente e envolvido, a história
é envolvida e envolvente, sem que se possa decidir
sobre a orientação dessa relação. Retomar as duas
dimensões num só movimento é dizer o seguinte:
não há situação senão para uma liberdade totalizante,
que dela se arranca, mas não há totalização a não ser
de uma situação multidimensional, fibrosa [...] com
suas inércias, seus pesadumes, sua sedimentação
de escolhas passadas, que curva, cola e desvia a
liberdade, tanto quanto a suscita. (SIMONT, 2005,
p. 21, grifo do autor).
Diante desse fato, urge compreender todas as
mediações que se fazem presentes ao longo da
construção do indivíduo, mediações que irão dar
ao indivíduo uma determinada formação e, com
isto, uma determinada leitura de mundo que levará
a uma práxis individual específica e única. Nesse
sentido, Sartre reconhece o peso do contexto na
formação do indivíduo; o que ele não aceita é a
possibilidade, em razão desse contexto, de prever
que humano está sendo formado e que decisões
este mesmo humano tomará ao longo de sua vida.
76
A formação/educação não consegue fazer com
que todos interiorizem a multiplicidade do real
de uma mesma forma, mas isso não retira dela
sua potencialidade de apontar caminhos comuns,
projetos comuns.
A educação é fundamentalmente um ato de significar o presente a partir da leitura do passado para
se projetar o futuro, visando dar conta da rareté que
marca toda caminhada do indivíduo. Ela, a educação,
é constante afirmação do acontecimento histórico
em suas múltiplas dimensões. É a rareté que impede o indivíduo de cair numa explicação de si e do
mundo exclusivamente subjetivista e muitas vezes
relativista, é ela que viabiliza uma formação coletiva,
ainda que cada um se relacione com ela de forma
individualizada. Ter um elemento comum, mesmo
não havendo determinação absoluta deste para com
os indivíduos, é um dado que historicamente precisa
ser confirmado. A questão é buscar compreender por
que determinado elemento é comum, uma vez que
ele só pode ser comum se individualmente cada um
aceitá-lo. Existiria, nesse sentido, a possibilidade
de uma formação comum, que levasse à aceitação
consensual de determinado elemento? Até que ponto
o contexto determina minha formação? Qual o limite
dessa interferência? Retomemos a ideia apresentada
por Sartre de que não há a possibilidade de existirem
dois Napoleões, mesmo se o contexto for exatamente igual, não pelo simples fato de ninguém nascer
pré-determinado, mas pelo fato de que cada um
responde ao meio de uma forma singular.
Podemos apresentar exemplos mais objetivos
e concretos para analisar a questão do elemento
comum, como a falta de água numa determinada
região. Ela leva um grupo de pessoas a tomar determinadas medidas comuns e a agir a partir de alguns
critérios comuns. Porém, a forma como cada um
assimila e prioriza a respectiva situação é bastante
particular, ou seja, é impossível estabelecer plenamente um conjunto de práticas e principalmente de
ideias que sejam comuns – exatamente as mesmas
– para todo o universo de pessoas envolvidas.
Segurança, progresso e falta de água existem
enquanto objetividade dada para cada existente?
Com certeza sim, mas o que importa é como eu
lido com eles, como efetivamente eles afetam o
meu dia a dia. O homem é ele e sua circunstância,
como afirmava Ortega y Gasset, ou ele é a cir-
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Cássio Donizete Marques
cunstância que ele mesmo cria? A circunstância,
criada por ele, passa, até certo ponto, a determiná-lo. Sartre tenta dar conta dessa situação, tendo a
dimensão ontológica como pano de fundo de sua
reflexão. Nesse sentido, ele afirma que ontologicamente não existe o coletivo. Porém, do ponto
de vista epistemológico e antropológico, parece
que o coletivo tem existência (SARTRE, 1985).
Na maioria das vezes, quando se discute a questão
da educação, a dimensão ontológica acaba sendo
absorvida pelas dimensões epistemológicas e antropológicas, tornando-se ela mesma secundária. De
fato, discutir educação não é pensar seu ser, mas
determinar um modelo de homem e a partir dele
um modelo de teoria do conhecimento, de ciência
que dê conta desse homem. Contudo, a partir destas
duas dimensões – antropológica e epistemológica
– abrem-se novas possibilidades para se pensar a
educação numa perspectiva sartreana, sem perder
de vista a questão ontológica.
Do ponto de vista sartreano, a práxis individual, centrada numa razão dialética, é sem dúvida o
ponto de partida para a formação tanto do indivíduo
como do coletivo. Em Sartre, práxis e teoria possuem reciprocidade ontológica e a práxis insere-se
nas ações coletivas a partir do processo histórico.
A práxis individual tem significação para além do
individualismo, uma vez que ela expressa os projetos dos homens como seres-no-mundo. Ao escolher,
escolho o homem. Nesse sentido, a formação, seja
do indivíduo ou do coletivo, é dada por uma práxis
individual que adquire significação no mundo concreto, espaço de existência das mediações. Segundo
Lima (2003, p. 92),
Pela mediação da razão dialética, que leva à inteligibilidade da práxis e da história, os indivíduos
saem primeiro de sua alteridade, depois são de
novo mediados pela situação criada pela urgência
da ação. Surge então alguma coisa de inédito que é
o resultado das sínteses passivas que a necessidade
exige e sínteses que se efetuam na dupla relação
para com o outrem e com a situação em movimento
[...] na perspectiva de Sartre, a história não se reduz
a procurar ‘motores’, mas tem por fim descobrir a
dinâmica própria a cada grupo ou subgrupo na sua
configuração particular.
O homem não tem como escapar do espaço ao
qual pertence, ele é cúmplice da situação que o
acompanha ao longo de sua existência. Quer queira
quer não, as suas escolhas são suas situações e suas
situações são resultados de suas escolhas. Escolher
para superar a situação é simultaneamente criar
uma nova situação que pode ser melhor ou pior
do que a anterior. Porém, a dialética que envolve
essa relação, escolha-situação, escapa ao âmbito
individual e passa a formar o coletivo. Somos as
múltiplas possibilidades de escolhas dos múltiplos
espaços e grupos que vivenciamos na nossa existência (SARTRE, 1985).
3. Implicações educacionais
O movimento realizado pelo indivíduo em direção à formação do grupo e toda sua complexidade
parece ser, independente da vertente filosófica,
uma das discussões centrais à filosofia da educação. Educação que se dá na complexidade do real,
perpassado pelas singularidades de seus atores e
seus diferentes projetos, mas também educação
enquanto ação coletiva, ou do coletivo, que se faz a
partir de projetos singulares ou educação enquanto
ações singulares que constroem o coletivo. Ou
ainda, educação enquanto tensão constante entre
o singular e o coletivo, vivenciada na dialética da
história. Educação enquanto acontecimento que
extrapola a pura subjetividade e singularidade,
mas que não se deixa absorver por uma coletividade pronta e determinista. São esses os desafios
maiores que se fazem presentes ao se pensar a
educação no âmbito da filosofia. Possivelmente
não seja possível afirmar unicamente uma ou outra posição, mas viver o processo educacional na
dialética constante, que supera ao ser superada e é
superada ao superar uma dada realidade, ou seja,
em que subjetividade e objetividade, singularidade
e coletividade movimentam-se e se reconhecem a
partir da existência de seu oposto.
Todas as colocações anteriores nos levam a
algumas questões-chave para se pensar a formação
e a educação do indivíduo e do seu grupo. Será
que vivemos numa torre de babel, sem a menor
possibilidade de compreensão e de construção de
um espaço comum? Será o homem em sociedade
uma ilusão necessária, mas que não existe efetivamente? As múltiplas possibilidades de ação invia-
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A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre
bilizariam a vida em comum, ou seja, no coletivo?
Se as respostas às questões aqui formuladas forem
afirmativas, conclui-se que não há possibilidade
de formação. Nessa situação é possível afirmar
que viveríamos em um puro estado de natureza.
Contudo, existe um elemento que se apresenta
como delineador de um processo comum. Na
singularidade não há formação, toda formação
é para o coletivo; mas só há coletivo quando as
singularidades estiverem de “comum acordo”
com algum projeto. O projeto comum é opção de
cada singularidade que se encontra mediada pela
mesma coisa, ou seja, o prático-inerte. O prático-inerte é o mesmo para um determinado conjunto
de sujeitos singulares, e a decisão de tê-lo como
mediação não é tão individual assim. O ônibus é
minha mediação para chegar até o local que desejo,
mas também se impõe como mediação a todos os
demais que também desejam fazer o mesmo trajeto; o agricultor é minha mediação entre mim e o
alimento, como também é a mediação de todos os
que desejam o mesmo alimento que eu. Assim, a
mediação é fundamental na formação do indivíduo
e do coletivo.
A educação se dá por mediações constantes
que se colocam entre a práxis individual, o outro
e o mundo. A mediação jamais se torna um determinismo, mas é ela a grande responsável pela
possibilidade de relações intersubjetivas, é ela
que permeia toda práxis, seja individual ou de um
grupo – é bom lembrar que, para Sartre, o sujeito
pode ser tanto um indivíduo como um grupo (organismo prático).
A educação é a ação de um sujeito, seja indivíduo ou grupo (organismo prático). Essa ação se dá
a partir de um fim que visa a construção não só do
social, como também do próprio ser. Ela é práxis
individual que se dá na história como movimento
de superação da alienação e da necessidade. Sendo
movimento constante entre a liberdade e a história,
a educação não pode ser vista como algo dado
externamente, construído de fora para dentro, mas
como afirmação da livre ação do homem sobre seu
contexto, porém uma livre ação que tem no combate à escassez seu objetivo maior. Nesse sentido, ela
pode ser concebida como ferramenta de união entre
todas as totalizações em curso (práxis individual)
para a superação da rareté.
78
A forma como eu vivencio a mediação é o elemento fundante de minha educação. Nesse sentido,
a educação é plena práxis individual permeada pela
mediação do prático-inerte, ela é uma circularidade
dialética, circularidade centrada na práxis individual que tem no prático-inerte sua “motivação”. A
leitura aqui apresentada torna necessário reconhecer que a educação expressa a práxis individual
de todos os envolvidos no processo e que buscam,
a partir da presença do prático-inerte, estabelecer
um projeto comum. Educar é ofertar um projeto
comum ou, pelo menos, apresentar uma determinada realidade a partir de uma leitura estabelecida,
buscando a adesão de cada singularidade envolvida. É um ato de convencimento do outro que, em
última instância, é impossível de se pensar numa
filosofia que defende a plena liberdade e a práxis
individual; o próprio convencimento é resultado de
alguém que, em sua liberdade, se convenceu. É o
outro, aquele que está em formação, que reconhece
e aceita o mediador entre a sua pessoa e o prático-inerte que se apresenta.
Foi afirmado, anteriormente, que no plano
ontológico ficaria difícil pensar a educação, uma
vez que, ontologicamente, o coletivo não existe e
que o ser, em última instância, é pura gratuidade
e liberdade – plena práxis individual. Contudo, a
despeito da inexistência ontológica do coletivo,
ele influência diretamente a práxis individual,
conforme já foi visto.
Foi afirmado também que a educação poderia
ser vista como ferramenta que tem o poder de unir
todas as totalizações em andamento, ou seja, todas
as singularidades em vista da superação da rareté.
Não se vence a rareté individualmente, ela é um
problema a ser enfrentado pelo coletivo. Entretanto,
no coletivo, trava-se uma luta permanente entre
a singularidade e o todo. É justamente aí que a
história, dialeticamente, é construída e, com ela, a
formação do sujeito. Formação que é diariamente
alimentada na luta constante pela liberdade e controle das relações estabelecidas internamente no
coletivo. Somos ontologicamente liberdade que,
historicamente, tem que ser reafirmada na relação
indivíduo-coletivo. É na própria liberdade que o
coletivo surge; ele é resultado de um ato livre. O
ato livre é fundante do coletivo que, por sua vez,
tem origem no trabalho.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013
Cássio Donizete Marques
4. A educação como possibilidade de
intermediação entre o individual e o
coletivo
A partir da compreensão das diferentes categorias trabalhadas e anteriormente expostas, pode-se
aproximá-las da educação, mantendo, porém, o
necessário grau de liberdade de interpretação, bem
como de rigor acadêmico. Pode-se antecipar que,
sob determinados aspectos, as categorias sartreanas
transpostas para a educação reforçam e aprofundam
pontos que já são discutidos e estão presentes em
diversos debates sobre educação. Por outro lado, é
possível perceber que essas categorias tanto abrem
novos pontos de discussão e reflexão como fecham
ou delimitam outros (BURSTOW, 2000).
A educação, sendo fundamentalmente uma
ação humana para humanos, é profundamente
marcada pela presença da liberdade, que, na ótica
sartreana, apresenta-se não como construção ou
conquista resultante da práxis, mas como dimensão
ontológica do próprio ser – eu não escolho nem
conquisto a liberdade: eu sou livre. Nesse sentido,
se a formação não é uma formação para a liberdade,
uma vez que eu sou livre, para que a formação? O
fato de sermos ontologicamente livres e, portanto,
da liberdade não ser uma conquista, não elimina a
possibilidade de que, mesmo na liberdade, eu esteja
alienado. A liberdade não minimiza toda complexidade e multiplicidade da realidade à nossa volta;
pelo contrário, ela nos proíbe de “apelar” para
qualquer possibilidade exterior ao próprio homem.
Diante dessa constatação torna-se necessário pensar
a relação liberdade e alienação.
Encontra-se uma leitura um tanto quanto
comum de que a educação serve tanto como instrumento de alienação como de superação desta
alienação. Se considerarmos esse ponto de vista,
faz-se necessário afirmar que a alienação não é
impedimento à liberdade, mas sim resultado da
própria liberdade. Podemos, na liberdade, optar
pela alienação? Ou ainda, o ato livre pode se
dar na alienação? Na perspectiva de Sartre, a
liberdade não é medida em grau – não se tem
mais ou menos liberdade, ou seja, liberdade é
um estado de ser do próprio homem, ou eu sou
plenamente livre ou eu não o sou, porém esta
última possibilidade não existe para o filósofo,
que tem na liberdade absoluta e incondicional
sua defesa maior.
Retomando as duas questões acima apresentadas, pode-se afirmar que a primeira alternativa, a
de que na liberdade é possível optar pela alienação,
não é válida, uma vez que a alienação não é opção,
mas ela é posta pelo estado das coisas; ela se dá no
momento em que eu torno o meu ato exterior, ou
melhor, no momento em que o meu ato é tornado
exterior pelo outro ou pelo grupo, objetivando-se a
partir da matéria dada e da força da rareté. A segunda
alternativa, a de que o ato livre pode se dar na alienação, parece atender a esta leitura de alienação: sou
livre mesmo na alienação, ou melhor, ser livre é ser
na alienação. A minha práxis, que é livre por definição, se submete às leis de objetividade que vem da
rareté. Consigo manter o ato livre no momento em
que se efetiva, mas imediatamente ele se aliena em
razão da própria objetividade das coisas e do olhar
do outro. Tem-se aqui não uma alienação no sentido
estritamente econômico ou sociológico, como em
Karl Marx, mas uma alienação ontológica. Não há
como eliminar a alienação da sociedade; ela não é
um desvio da sociedade, mas sua própria estrutura.
A impossibilidade de superar a alienação não retira a importância da educação no sentido de oferecer
espaços que garantam a própria vida em sociedade,
uma vez que somos, constantemente, ameaçados pela
serialidade6 que se produz a partir do prático-inerte;
a educação pode efetivar-se como concretização do
ato livre que se dá em meio à alienação ontológica
da estrutura em que vivemos. Cada práxis individual manifesta um momento de um processo maior
de educação, de um processo de totalização. Ela se
faz no ato livre e se efetiva no grupo, ou melhor, o
resultado do ato singular recai sobre o grupo, visto
que, ao escolher, escolho o homem. Essa ideia parece
constituir o cerne de uma possível reflexão sobre a
educação a partir de Sartre. Ao dizer que cada práxis
individual manifesta um momento de um processo
maior de educação não se está querendo dizer que
existe uma educação anterior e exterior ao próprio
homem e que só restaria a ele orientar sua liberdade
6A serialidade é entendida como um modo de relação que é consequência do prático-inerte, onde o sujeito entra num âmbito de
relações em que o comportamento está delimitado por atividades
sequenciadas e, muitas vezes, numeradas e catalogadas. O sujeito em
série está inserido numa rede de relacionamentos onde não possui
o controle das condições da relação (LIMA, 1998, p. 69)
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013
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A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre
na concretização deste modelo pré-determinado. O
que acontece é que, como vimos anteriormente, não
há liberdade abstrata, ela só é na relação dialética da
própria história e da objetividade das coisas. Somos
livres, mas ontologicamente somos seres incompletos
que se formam no ato livre da existência. Somos o
que somos e não o que deveríamos ser. O “dever ser”
não ocupa espaço nessa perspectiva, a não ser quando este “dever ser” é o próprio homem. Não temos
como não escolher o homem. Somos condenados a
escolher o homem em cada escolha livre, em meio
a uma alienação permanente que nos impulsiona ao
agir. Toda essa reflexão tem como base a defesa sartreana de que ao se falar do humano está se falando
em totalização e não em totalidade. A formação é
uma atividade que se dá na totalização pela qual se
estabelecem relações significantes entre o singular
e o coletivo. Lembremos, por exemplo, da necessidade do sujeito plenamente livre reconhecer, diante
do prático-inerte, uma necessidade comum e, então,
estabelecer um projeto comum. Só se estabelecem
projetos comuns quando se alcançou um mínimo de
significado comum. A formação do coletivo é uma
construção de significados comuns que não deixam
de contar com a adesão sempre livre de cada práxis
individual.
A educação deixa de ter, como muitas vezes a
ela foi e ainda é atribuído, um sentido salvífico e
idealista. Ontologicamente, minha liberdade não
está em risco; sendo assim, ela não precisa da
educação como sua salvação ou guardiã. Porém,
assim como o homem constrói a história e é por
ela construído, ele é senhor de sua educação como
plena liberdade, mas é também produto desta educação, enquanto liberdade plena. A afirmação de
que mesmo na alienação eu sou livre não elimina
a força e o poder que a alienação tem de conduzir
o ato livre para resultados que acabam produzindo
cada vez mais alienação, tendo-se, assim, um ato
livre que não corresponde à realidade, à verdade.
Todo ato livre tomado na alienação produz uma
realidade cada vez mais desfocada e, com isso,
mais alienada. Encontramo-nos diante de um grande desafio que é, por meio da liberdade conseguir
superar a alienação dada, não a fim de eliminá-la,
pois isto é impossível, mas a fim de dar conta de
uma dada realidade que exige uma ação, muitas
vezes até em nome da própria sobrevivência. A
80
inércia diante da serialidade representa o maior
risco à práxis individual. A série é plena negação
da liberdade. Retoma-se aqui a pergunta feita ao
longo do trabalho: por que se faz necessário romper
com a série em direção ao grupo? Se na série eu sou
somente um número, de onde vem a consciência
que me impulsiona a sair dela? A formação é superação do dado por intermédio da própria práxis
individual e da plena liberdade.
Salva-se a liberdade, mas não está vedada a possibilidade de se escolher errado a partir de minha
liberdade e do meu contexto, ou seja, a liberdade
não representa a garantia de uma escolha melhor,
mais justa e correta. A objetividade das coisas impede a subjetividade de optar de maneira mais clara
e consciente; eu sou constantemente bombardeado
pelo prático-inerte que impulsiona a práxis individual, mas, ao mesmo tempo, a impede de ser expressão plena de uma realidade. A educação aparece
primeiramente como possibilidade de intermediar
a relação entre o indivíduo e o prático-inerte, ou
seja, o mundo das coisas inorgânicas. A primeira
relação estabelecida é entre a práxis individual e
singular e a objetividade do mundo.
A partir da superação da relação aqui mencionada, tem-se o segundo momento, quer dizer, a
relação intersubjetiva que se efetiva entre subjetividades diferentes. A forma como eu dou conta da
primeira relação estabelecerá, de maneira profunda,
a segunda e mais importante relação quando se
pensa a educação. É lógico que não se pode perder
de vista que o próprio prático-inerte é também produto e produtor da subjetividade, num movimento
de síntese permanente. A maneira como cada indivíduo assimila e vivencia sua realidade irá fazer
com que as relações intersubjetivas sejam mais
ou menos complexas e variadas. Somos afetados
diariamente por nosso contexto e muitas vezes
manipulados para agir de uma determinada forma
diante de uma dada realidade. Ainda que sejamos livres, nem sempre a decisão tomada expressa maior
conscientização da realidade. Faz-se necessário que
a formação caminhe a fim de dar maior autonomia
diante do prático-inerte; contudo, não há nada de
mágico que venha facilitar ou possibilitar esse processo: ele só se realiza na caminhada. Autonomia
se constrói, se conquista, ao passo que a liberdade
é condição ontológica do existir humano. Não sou
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013
Cássio Donizete Marques
humano sem ser livre, mas posso ser humano sem
ter total autonomia.
Não há nenhum momento do coletivo que aponte para uma práxis que seja coletiva; aliás, não há
consciência de classe, uma vez que esta ideia supõe
um ser que seria superior a cada práxis individual.
A própria consciência se constrói no processo de escolha que efetiva os valores de uma dada sociedade.
O projeto comum, tão sonhado para a construção de
uma sociedade efetivamente melhor, não materializa uma consciência comum, mas conduz a ações
individuais que, em sua somatória, podem ou não
realizar o projeto. Nessa perspectiva, a educação
parece buscar algo que jamais irá alcançar, não por
limite dela, mas por estrutura da própria realidade
e do próprio ser humano. Retoma-se aqui uma das
ideias centrais da Crítica, a ideia de totalização em
curso: não há totalidade, mas totalizações.
A educação, como processo individual de formação do humano – entendendo humano não como
um a priori que nos delimita e nos determina –, só
acontece na superação constante do inerte, de tudo
o que ameaça a existência e coloca o homem sob o
risco permanente de viver em série. A série é a negação primeira de toda existência e, assim, de todo
projeto educacional. Na série não há processo de
formação, mas de negação de toda possibilidade de
formação, uma vez que nela somos apenas números
que compõem uma fila e não práxis singulares e livres; nela não há intersubjetividade. Superá-la para
viver a plenitude da existência é o grande desafio
da educação. Observa-se que a série é resultado
do prático-inerte, mas assume uma dimensão que
extrapola a pura objetividade, uma vez que é composta por possíveis práxis individuais.
Mesmo a série representando o risco maior
de toda existência, a questão não é saber por que
ela existe, mas sim entender que, mesmo nela, a
liberdade permanece. A série não é um existente
ontológico, mas um existente histórico, que não
pode ser evitado, quer dizer, ela acompanha o
homem em toda sua existência.
O indivíduo deve ser o foco primeiro e último
da educação, pois é ele, e somente ele, que, na
singularidade de sua práxis, pode possibilitar mudanças efetivas e estruturais em toda sociedade.
Porém, dizer que o indivíduo é o foco não significa
defender uma educação individualista, uma vez
que o coletivo é uma realidade inegável e que atua
junto à práxis individual. O coletivo constitui a
expressão maior de uma necessidade comum; só
nele nasce um projeto comum que se constrói na
e pela práxis individual. O projeto comum coloca
um grupo de pessoas numa mesma direção e só
poderá ser realizado com a participação efetiva
de cada um de seus componentes. Nesse sentido,
não há educação individualista; o que existe é a
defesa da individualidade no conjunto do campo
prático-inerte. O desafio da educação passa a ser
afirmar a individualidade no conjunto do coletivo
e, ao mesmo tempo, manter o coletivo – instituição
ou estado – para não cair na serialidade. Não há
indivíduo na serialidade.
A educação é movimento, passagem de um
estado para outro, superação do dado por meio da
práxis individual. Ela permeia toda história e está
permeada por ela. História e educação se confundem e se complementam. Temos de vencer o medo,
o risco constante de queda, de volta a um estado em
que somos meros números entre números. Ser livre
numa situação dada é o grande desafio do processo
de formação do homem, e ser livre é atuar sobre o
meio de forma a dotá-lo de sentido. Um sentido que,
ao mesmo tempo em que é individual, possa ser
partilhado pelo coletivo. Somente assim se mantém
o projeto comum e o próprio sentido da história.
As ideias acima trabalhadas nos permitem
chegar à afirmação da existência de dois sentidos
para a educação que, de certa forma, fazem parte
da filosofia da educação há muito tempo. Um dos
sentidos diz respeito à educação como formação
do homem e o outro como superação do dado
para a vida na coletividade. A questão é verificar
que contribuições as categorias sartreanas podem
dar para os dois sentidos apresentados. Pensando
o primeiro sentido, o que trabalha com a ideia de
educação como formação do homem, cabe ressaltar que o homem ainda não é; ele se faz ao existir;
sua existência é cercada pela coletividade e se dá
numa situação. Somos condenados à liberdade,
mas também somos chamados a vivenciá-la na
responsabilidade que a vida em sociedade nos
pede. Se o homem ainda não é, qualquer ideia de
formação passa a ter um caráter profundamente
histórico e particular, que conduz à ideia de práxis,
que só alcança significado no momento de sua re-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013
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A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre
alização. Ela só deixa de ser totalmente particular
por causa da presença da rareté e do prático-inerte,
que permeiam a história e a liberdade de cada um
e com isso criam necessidades comuns que levam
a projetos comuns.
Com relação ao segundo sentido, o que trabalha
com a ideia de que educação é superação do dado
para a vida na coletividade, cabe ressaltar que se
em Sartre o coletivo não tem existência ontológica, este espaço coletivo, em última instância, é o
resultado das práxis individuais e só se mantém
enquanto estas se mantiverem. Essa realidade abre
duas novas possibilidades de análise. A primeira
nos leva a pensar que o coletivo perde importância
como fator determinante na formação, uma vez que
ele não é um ser, mas a totalidade parcial que se
constitui pelas práxis individuais. Por outro lado,
o fato dele não ter existência ontológica contribui
para atribuir à educação uma importância maior,
pois além de formar o homem para a vida na coletividade, ela passa a ser responsável pela própria
existência do coletivo. É possível defender a tese
de que a educação constitui o movimento dialético
capaz de contribuir para que cada sujeito, na sua individualidade e liberdade, reconheça a objetividade
das coisas e a presença do outro enquanto terceiro.
5. Considerações finais
Formar o homem é abri-lo à sua existência e
possibilitar a ele vivenciar toda multiplicidade do
mundo, dotando-o de sentido, num movimento
permanente de síntese, pela qual a razão dialética
é a grande responsável. Essa formação, ainda que
se dê num ato pleno de liberdade, é permeada por
mediações que, de forma mais direta e efetiva, ou
de forma mais indireta e relativa, interferem na
construção do próprio homem e, assim, do próprio
coletivo. As totalizações que ocorrem ao longo
da história são expressões de amadurecimento e,
ao mesmo tempo, de maior responsabilidade do
homem. Amadurecimento porque toda totalização
é o resultado de sínteses sucessivas que realizam
a razão dialética no próprio percurso da história,
e responsabilidade no sentido de que o homem é
chamado a compreender a realidade e a construir
a sua história a partir de sua práxis individual. Ex82
periência e conceito assumem praticamente uma
mesma dimensão, encarnadas nas mais diversas
mediações que se apresentam ao longo do existir.
A formação se dá na assimilação e superação das
mediações que são vivenciadas na singularidade e
na coletividade de cada momento. Torna-se possível, portanto, pensar na existência de uma práxis
educativa que viabilize a inteligibilidade da história
a partir da abertura constante de projetos pedagógicos que são frutos da especificidade de cada
momento que se totaliza na dialética da história e
que supera a especificidade da práxis individual
rumo a um coletivo, única forma de vencer a rareté
e de garantir a própria existência do indivíduo para
além do prático-inerte.
A irredutibilidade do individual ao coletivo e
do coletivo ao individual expressa toda riqueza
pedagógica do ato de educar, demonstrando que,
levada às últimas consequências, nem uma liberdade puramente ontológica, nem um engajamento
histórico por si mesmo traduzem, com exatidão,
o sentido do existir humano e do ato pedagógico.
Sartre pode não dar conta, de forma conclusiva, da
relação entre o individual e o coletivo, mas isso não
ocorre por falta de rigor em suas análises e muito
menos por incapacidade intelectual. Talvez seja
possível afirmar que a aparente falta de conclusão
deve-se ao próprio objeto de estudo e ao método
adotado, ou seja, o individual e o coletivo caminham na dialeticidade da história e por isso se determinam mutuamente neste processo, ao existirem
e se colocarem diante da situação dada, marcada
pelo trabalho, pelo prático-inerte, pela rareté.
Educar é tender a algo novo, de forma singular,
e não realizar um a priori determinista presente em
cada um: pode-se dizer que a educação tanto é produto do homem como produtora do homem. Educação é
movimento constante do fazer humano e do fazer-se
humano, numa determinada situação. Ela se institui
na dinâmica entre a liberdade e a situação, entre o
dado e a possibilidade de superação, entre a complexidade e multiplicidade do real perpassado pelas
singularidades de seus atores e de seus diferentes
projetos que podem, na própria dialética do processo, vir a tornar-se comuns a um determinado grupo,
uma vez que a práxis individual tem significação
para além do individualismo, visto que expressa os
projetos dos homens como seres no mundo.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013
Cássio Donizete Marques
Estando o indivíduo situado numa história
cercada pelo prático-inerte, a mediação assume importante papel na relação intersubjetiva, que sempre
se dá de forma mediada. É ela que “provoca” o
outro na sua subjetividade para se colocar diante
de um terceiro que não é ele e, assim, reconhecer
uma situação posta da qual o outro é parte. Nesse
sentido, o método progressivo-regressivo viabiliza descobrir a dinâmica própria de cada grupo e
assim projetar a educação a partir da forma como
eu vivencio a mediação. Sou o único responsável
pela minha formação, mas não posso ser ingênuo a
ponto de negar toda força da história e do coletivo
nela presente.
Procuro sustentar a hipótese de que a passagem
do individual ao coletivo, a despeito de não se
mencionar a ideia de formação e nem de educação,
só possa acontecer num processo educacional, no
sentido de reconhecimento do mundo, da situação
à qual se pertence e do outro que, na sua liberdade, escolhe o homem e, assim, me escolhe. A
formação se dá numa dialética constante entre a
situação e o projeto, entre minha liberdade e a do
outro, entre minha subjetividade e o prático-inerte
e, principalmente, na intersubjetividade esboçada
pelo processo, uma intersubjetividade permeada
pela escassez e vivenciada pela razão dialética.
A intersubjetividade acontece no reconhecimento
do projeto comum e no encaminhamento dado em
direção a este projeto por meio do juramento. É
ele que viabiliza uma perspectiva de unidade perante a multiplicidade das coisas, possibilitando a
superação da inércia que permeia a tudo e a todos.
A relação entre o individual e o coletivo apresenta o conflito permanente de todo processo
educacional. Não há como pensar a educação e
a formação sem pensar o indivíduo, mas não se
pode pensar o indivíduo como pura abstração. Ele
só é na situação e na história que, por sua vez, é o
resultado de sua livre práxis individual. O coletivo
expressa um movimento de formação que resulta da
dialética da história e do processo de totalização.
O indivíduo não é uma totalidade fechada em si
mesma, que se basta a si mesmo, e enquanto relação com o outro e com o mundo das coisas, ele
se forma, ou melhor, ele se transforma sem jamais
perder sua liberdade. Eu não posso escolher não ser
livre como também não posso deixar de dar conta
da situação que se apresenta e que exige um projeto
de superação. Preciso do outro assim como o outro
precisa de mim: a história se faz no coletivo por
meio de cada práxis individual.
REFERÊNCIAS
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Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes), Campinas, SP, n. 70, p. 103-126, abr. 2000.
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MORAVIA, Sergio. Sartre. Tradução de José Eduardo Rodil. Lisboa: Edições 70, 1985.
SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique: théorie des ensembles pratiques. 2. ed. Tome I (précédé
de Questions de méthode). Paris: Gallimard, 1985.
_____. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 2. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997.
SIMONT, Juliette. Indivíduo e totalização: a dialética e seu resto. Impulso – Revista da Universidade Metodista
de Piracicaba (Unimep), Piracicaba, SP, v. 18, n. 41, p. 17-25, set./dez. 2005.
Recebido em 13.08.2012
Aprovado em 13.12.2012
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013
83
Antonio Sidekum
EMMANUEL LEVINAS:
EDUCAÇÃO E INTERPELAÇÃO ÉTICA
Antonio Sidekum*
RESUMO
Este artigo apresenta algumas reflexões sobre a Educação a partir do pensamento
de E. Levinas. O pensamento ético de Emmanuel Levinas abre novos horizontes e
delineia novos caminhos na reconstrução de utopias para a História contemporânea.
O que durante a Modernidade chegou ao fórum de uma subjetividade absoluta é a
constituição de um ideário que vem se desenvolvendo desde o cogito de Descartes e
tem seu idealismo máximo em Kant. Essa perspectiva do ego absoluto é classificada
por Levinas como egolatria. Da filosofia da alteridade de Levinas derivamos um
humanismo e novos conceitos de educação. De Levinas recebemos a interpelação ética,
conceito fundamental para uma nova compreensão da educação. A ética de Levinas
possibilita o desenvolvimento de perspectivas da práxis libertadora pela educação.
Na relação inter-humana, o Outro não é um objeto exposto a ser contemplado,
nem tampouco um objeto de conhecimento a ser tematizado, mas ele é um rosto
que inquieta, obriga, exige, ordena, enfim, sacode eticamente o eu exigindo-lhe
responsabilidade. Educar para a responsabilidade significa sair do estado de indiferença
frente às injustiças sofridas pelo Outro, questionar a espontaneidade da liberdade
como princípio primordial da consciência moral e escutar a palavra que vem do Outro.
Palavras-chave: E. Levinas. Alteridade. Interpelação ética. Educação libertadora.
ABSTRACT
EMMANUEL. LEVINAS: EDUCATION AND ETHICAL INTERPELLATION
This article presents some thoughts on education according to the ideas of E. Levinas.
Emmanuel Levinas´ ethical thought opens new horizons and outlines new ways to rebuild
utopias for Contemporary History. What for Modernity could be seen as an absolute
subjectivity is the constitution of an idea that has been developing since the cogito of
Descartes and Kant´s idealism. This view of the absolute ego is classified by Levinas as
egotism. From Levinas´ philosophy of alterity, we derive humanism and new concepts of
education. From Levinas, we may notice the ethical interpellation, fundamental concept to
a new understanding of education. Levinas’ ethics enables the development of prospects
of liberating praxis in education. In human relationship, the Other is not an exposed object
to be contemplated, nor an object of knowledge to be themed, but it is a face that worries,
requires, demands, orders, shakes its self ethically requiring responsibility. Educating
for responsibility means leaving the state of indifference to the injustices suffered by
the Other, it means questioning the spontaneity of freedom as a fundamental principle
of moral conscience and listening to the word that comes from the Other.
Keywords: Emmanuel. Levinas. Alterity. Ethical Interpellation. Liberating Education.
* Professor Visitante na Universidade Centro Americana de El Salvador, onde leciona Ética no Doutorado em Filosofia. Endereço
para correspondência: Antonio Sidekum. Caixa Postal, 60. Nova Petrópolis-RS. CEP: 95150-000. [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013
85
Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética
Introdução
A filosofia de Emmanuel Levinas é portadora de
inúmeros impulsos para uma atualidade da reflexão
ética para nossa época, que se encontra tão conturbada pela violência e crimes contra a humanidade.
O pensamento ético de Levinas abriu-nos novos horizontes e delineou novos caminhos na reconstrução
de utopias para a História contemporânea. Muitos
filósofos da Europa têm-se ocupado em discutir e
refletir sobre a nossa época de barbárie, leia-se a
história de holocaustos, totalitarismos e supressão
da dignidade humana. Esses acontecimentos não se
restringiram tão somente à Europa, mas a América
Latina também foi levada no repuxe sofrimento da
violência política institucionalizada. A violação dos
Direitos Humanos tornou-se uma constante, e principalmente pelo fracassado sistema político, que
cada vez mais causa a injusta desigualdade social.
Face a essa situação, surge a interpelação ética.
A filosofia na América Latina opta pela libertação,
pelo questionamento ao sistema epistemológico totalitário e unidimensional buscando uma plenitude
da vida do ser humano. As categorias da ética de
Levinas recebem um eco na América Latina por
um pequeno grupo de filósofos engajados com o
compromisso histórico da libertação e da promoção plena da dignidade humana. Um dos grandes
momentos foi revelar no espaço do horizonte ontológico que o Dasein latino-americano não é mais
neutro, como fora pensado na Europa, mas é um
Dasein que tem paixões, tem fome física, fome por
justiça e grita no desespero por uma interpelação
ética. Essa interpelação ética põe em questionamento a subjetividade originada da concepção da
Selbstbewusstsein (autoconsciência) sustentada na
fenomenologia do espírito concebida pelo idealismo filosófico. Na realidade latino-americana surge
a conscientização ( Bewusstseinbildung), de Paulo
Freire, que logo vai repercutir em toda a América
Latina, principalmente nos países subjugados pelo
terrível e sanguinário regime militar nazifascista.
As categorias de interpelação ética, conscientização e tomada de consciência histórica tornaram-se
paradigmas em nível de categoria de inimigo da lei
de segurança nacional. É nesse contexto histórico
que o pensamento de Levinas molda-se num novo
horizonte de uma utopia concreta que repercutirá
86
de modo especial, pois põe em questionamento o
modelo educacional domesticador.
A pós-modernidade da filosofia continua a
deparar-se com o grande desafio, que é o desafio
para encarar suficientemente a problemática da
recuperação do sentido originário e da verdadeira
autonomia do sujeito humano. O que durante a Modernidade chegou ao fórum de uma subjetividade
absoluta é a constituição de um ideário que vem se
desenvolvendo desde o cogito de Descartes e tem
seu idealismo máximo em Kant. Essa perspectiva
do ego absoluto é classificada por Levinas como
egolatria. Entretanto, na história da filosofia contemporânea encontra-se E. Husserl, que faz uma
releitura da obra Meditações, de Descartes, tratando do sujeito apodítico, dedicando uma análise
fenomenológica na obra Meditações Cartesianas.
A mesma crítica encontramos em Michel Foucault
na obra História da Sexualidade, na qual realiza
uma leitura crítica da subjetividade, ou melhor, uma
História do Sujeito, conhecida e reconhecida como
um início de uma História da Verdade partindo de
Platão, passando por Kant, Hegel, Kierkegaard e
Heidegger. Foucault evoca a História da Subjetivação do ser humano. Sua filosofia educacional
resume-se sobre o saber, o poder e a subjetivação.
Emmanuel Levinas: a interpelação ética
É preciso sublinhar, novamente, que a grande
novidade da filosofia moderna é a descoberta da
subjetividade como tal, dando-lhe inclusive a
primazia em toda reflexão filosófica. Contudo, a
subjetividade era interpretada na forma imanente do
“eu pensante”. Isso permitiu uma vasta exploração
filosófica do fenômeno do pensamento humano,
mas, por outro lado, reduziu a subjetividade ao
pensamento abstrato e desencarnado, com todas
as consequências para os sistemas filosóficos que
nasceram dessa concepção. Foram filosofias abstratas, racionalistas e predominantemente idealistas,
com pouco ou nenhum contato com os problemas
concretos do homem concreto, situado numa história concreta.
Levinas será o principal interlocutor da nossa
pesquisa. Nele se delineia uma crítica fundamental que é feita ao analisar-se o projeto da filosofia
moderna com intuito de tratar a concepção da sub-
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jetividade ética e do sujeito como responsabilidade
política. Um sujeito como sujeitado ao outro e de
um sujeito destituído, fraco, de uma fraqueza votada
a outrem. Desse modo, a questão da Subjetividade é
abordada a partir da Sensibilidade, como pulsão de
Alteridade – sensibilidade traumática e vulnerável.
Na exposição ao Outro, a subjetividade é portadora
de responsabilidade “para-com [...]” e responsabilidade por uma anterioridade anterior a qualquer
escolha e deliberação do sujeito responsabilizado
(de-posição da soberania autárquica do Eu), até a
condição de “refém”, no substituir-se. Pois todo o
desenvolvimento da filosofia de Levinas instaura
um novo humanismo dentro da perspectiva da afirmação da subjetividade. O eu somente poderá ser
afirmado por um princípio anterior à consciência
da existência. O ponto arqueológico é uma infinita
interpelação ética da alteridade do outro. Essa ética
parte da consciência de uma responsabilidade infinita para com a alteridade do outro. Uma ética que
tem sua exigência no reconhecimento da alteridade
do outro. Levinas é um pensador que vai além das
perspectivas da subjetividade, do psiquismo e da
egologia da Modernidade.
Levinas nasceu em 1905, na cidade de Kaunas,
Lituânia; emigrou como estudante universitário
para a cidade de Estrasburgo, na França, e foi
estudar em Freiburg in Breisgau, tendo visitado
as aulas de Edmund Husserl e Martin Heidegger.
Sua tese de doutorado foi sobre a teoria da intuição em Husserl. Tendo passado pelo campo de
concentração, tornou-se depois diretor do Colégio
Israelita de Paris e, a seguir, professor na Sorbonne. Suas principais obras, conhecidas entre nós,
são: Totalidade e Infinito e Outro modo de ser, ou
além da essência. Essas obras serão os principais
textos utilizados na elaboração de uma filosofia da
educação para a fundamentação de uma educação
ética e libertadora.
Para compreender melhor o pensamento filosófico de Levinas, é preciso ater-se a uma fidelidade
hermenêutica de sua obra, o que implica uma
transparadigmatização de categorias utilizadas
no contexto de sua ética e subjetividade. Levinas
permeia todo o seu pensamento com uma infinita
experiência da alteridade absoluta por meio do
paradigma da interpelação ética. A Ética e a subjetividade manifestam-se pela epifania do rosto do
Outro, cujo olhar coloca em total questionamento
a minha subjetividade por meio do clamor: Tu
não matarás. Essas categorias são desconhecidas
no pensamento grego e, consequentemente, na
tradição do pensamento ocidental, principalmente
da Modernidade. Elas tecem toda estrutura do pensamento de Levinas, expressando por meio dessa
nova hermenêutica a alteridade infinita e absoluta
do outro. Com essas categorias Levinas avança
além do pensamento dialógico de Martin Buber, em
sua dialogicidade da relação recíproca do “eu-tu”,
para ir ao encontro da misteriosa relação instaurada
pela justiça na interpelação ética.
A subjetividade , segundo Levinas, acontece
como Responsabilidade “para-com [...]”. Seguindo
os passos da construção feita por Kant, o conceito
de sujeito proporciona uma unidade das faculdades
cognoscitivas, a qual se considera por sua parte
como a base fundamental para a reconstrução racional da validez científica, e a liberdade é o necessário na concepção da subjetividade. “Kant define
o sujeito como liberdade que, por sua vez, funda
a autonomia do sujeito. Para Levinas, liberdade e
autonomia não são mais que secundárias e só aparecem no nível da fenomenalidade posteriormente.”
(CARRARA, 2010 p. 76). Pois, segundo Levinas,
a subjetividade estabelece-se além da egologia,
da autonomia absoluta do eu e da experiência na
ipseidade ou do em-si e do para-si, ou, nas palavras
de Levinas, de uma egolatria. Deve-se levar em
consideração uma nova introdução para se pensar a
subjetividade e alteridade. Trata-se de uma passividade anterior a toda receptividade. A subjetividade
é transcendente e é o Bem antes do ser. É diacronia.
São essas as principais teses do La Substitution, do
livro Autremment qu’être. A condição da subjetividade humana é possibilitada por meio da relação
do eu com o outro, na qual está implicada a relação
que se estabelece já anteriormente a qualquer arché,
ou seja, a subjetividade existe já anteriormente à
arché, ela é an-ârquica. Mesmo antes da minha
existência, já na subjetividade, o meu eu é infinitamente responsável pelo outro. Levinas busca,
por um lado, a intemporalidade e a temporalidade
das circunstâncias privilegiadas do vivido em que
se constitui a temporalidade, segundo Rosenzweig
(1988). Emmanuel Levinas vai ao encontro do
modo como Rosenzweig pensa o passado, isto é, a
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Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética
partir da consciência da transcendência da criação;
é o presente vivido a partir da escuta e da acolhida
da revelação; e o futuro, a partir da esperança da
redenção, elevando assim essas referências paradigmáticas bíblicas do pensamento a um nível da
própria temporalidade da subjetividade.
Ética e subjetividade
Levinas expressa a subjetividade a partir da
ideia da relação infinita do inter-humano e com a
ideia do infinito. A subjetividade se expressa por
meio da condição de ser refém do outro, o que
implica uma ruptura da totalidade e a instauração
da experiência do outro como uma experiência
da transcendência. Assim, a minha subjetividade
realiza-se concretamente na história por meio da
relação com o outro, que se manifesta por meio de
seu rosto, cujo olhar é uma constante interpelação
para o ato da radical justiça: Tu não matarás. A subjetividade acontece na existência humana mediante
a relação intersubjetiva e na exigência infinita de
justiça para com o outro.
Nessa perspectiva em que se desenvolve a experiência da alteridade, a subjetividade será despertada para a vida ética, da infinita responsabilidade
para com a alteridade do outro.
Em todos os juízos sou sempre o sujeito (Subjekt)
determinante da relação que constitui o juízo. Que
entretanto, eu, que penso, sempre tenha que valer
no pensamento como sujeito e algo que não poder
ser considerado simplesmente como predicado inerente no pensamento, é uma proposição apodítica
e mesmo idêntica; mas ela não significa que eu,
enquanto objeto, seja um ente subsistente para mim
mesmo, ou uma substancia. A última afirmação vai
muito longe e por isso também requer dados que
não se encontram de modo algum no pensamento
e que talvez (se considero simplesmente o sujeito
pensante como tal) sejam em número maior do que
se possa jamais encontrar nele. (KANT, 1983, p.
203, grifo do autor).
E segue a concepção da relação do si-próprio,
conforme o pensamento de Søren Kierkegaard:
O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu.
Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não
se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas
consigo própria. Mais e melhor do que na relação
88
propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa
relação a própria interioridade. O eu não é a relação
em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o
conhecimento que ela tem de si própria depois de
estabelecida. (KIERKEGAARD, 1979, p. 34, grifo
do autor).
Todavia, a subjetividade, além de ser autoconhecimento, autoconsciência e relação com a interioridade, é fundamentada e sustentada, segundo
Levinas, a partir da relação ética com o outro. A
subjetividade concretiza-se como fenômeno histórico a partir da experiência de transcendência.
Nisso reside o fundamento da ética da alteridade.
Levinas compreende a subjetividade como vivência
da interioridade. A subjetividade é essencialmente
uma experiência e consciência do gozo interior, e
ela caracteriza-se pela unicidade. O eu quer viver.
E viver na subjetividade significa experienciar a separação. A separação significa que a subjetividade
plenifica-se no egoísmo e no ateísmo. É, antes de
tudo, a experiência da solidão incomensurável da
criatura face ao ato criador, a vivência da separação
do criador do mundo e do outro. Entrementes, na
subjetividade, essa separação supera-se pela transcendência e pela infinita relação com a absoluta
alteridade do outro. Em Levinas, o “Outro” existe
independentemente da intencionalidade do “eu”.
É totalmente diferente do “eu”. Totalmente livre
diante do “eu”.
O Outro metafísico é outro de uma alteridade que
não é formal, de uma alteridade que não é simples
inverso da identidade nem de uma alteridade feita
de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade
anterior a toda a iniciativa, a todo imperialismo do
mesmo; outro de uma alteridade que constitui o
próprio conteúdo do Outro; outro de uma alteridade
que não limita o mesmo, porque nesse caso o Outro
não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da
fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo.
(LEVINAS, 1988, p. 26).
A categoria alteridade é um dos aspectos
centrais do pensamento de Levinas, pois sua compreensão possibilita o melhor entendimento das
manifestações do ser. Para ele, a alteridade do outro
só é garantida, pois se manifesta independentemente do eu. Ao introduzir a perspectiva da alteridade,
o rosto se torna a manifestação do outro. Rosto
para Levinas é concebido como um dos critérios
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fundamentais da ética. Não é apenas um conceito,
um tema para ser analisado. É, por excelência, a
expressão de alguém sendo, portanto, manifestação
do outro. “O rosto é a própria identidade de um ser”
(LEVINAS, 1997, p. 59). A partir do outro que vai
em direção ao “outro” em mim, Levinas contrapõe-se à filosofia ocidental, cuja relação entre o eu e o
outro é uma relação ontológica (LEVINAS, 1988).
O rosto fala, interpela a responsabilidade do eu.
Sua nudez mostra aquilo que realmente é. Portanto,
a ética para ele é a filosofia primeira e não a ontologia. Somente uma ética que parta do outro pode
abrir espaço para a dignidade do outro enquanto
radicalmente diferente do eu, o qual dá sentido ao
próprio eu (LEVINAS, 1988). Faz-se necessário
deixar-se interpelar pelo clamor do outro que requer resposta, acolhimento, direito de ser diferente,
único, outro em sua alteridade absoluta.
Entendo a interpelação ética a partir do clamor
pelo direito de ser outro, por parte dos oprimidos.
É na alteridade absoluta do outro que se exerce a
justiça. Falamos do outro, cujo rosto é desmascarado
pelo simulacro da imagem unidade e totalizante da
unidimensionalidade da propaganda utilizada pela
mídia, tendo sua voz calada pela provocação do
discurso da moral da ambiguidade e pela mentira
utilizada pela dominação das formas novas do imperialismo contemporâneo, que se lê como sendo o
culto às guerras, cuja justificativa não é a defesa dos
direitos humanos fundamentais, mas ela é uma nova
forma de um fundamentalismo sustentado pelo terror
e pela dominação e de um materialismo econômico,
cuja ontologia e invisibilidade é a violência exercida
pela inserção da economia capitalista, que, sem piedade e com total força destrutiva da ‘mão invisível’
do mercado, atua sobre a vida humana tanto individual como comunitária. (SIDEKUM, 2003, p. 14).
A vida do ser humano acontece sob o firmamento da transcendência; sua tentativa é romper com
a totalidade e poder irromper com a experiência
do Infinito. A subjetividade face à transcendência
define-se como refém e substituição do outro. O
eu é infinitamente responsável pelo outro. Essa
responsabilidade não poderá ser institucionalizada
ou fundamentada por leis, mas é a interpelação do
outro que provoca a minha experiência de subjetividade. É a necessidade do outro que provoca
a minha vulnerabilidade e faz-me irromper na
relação com a justiça. O ser humano responde,
e a resposta sempre é uma resposta para o outro, ele é interpelado eticamente pelo outro. “A
responsabilidade pelo outrem – responsabilidade
ilimitada que a rigorosa contabilidade do livre e do
não-livre não mede mais, reclama a subjetividade
como refém insubstituível que ela desnuda sob o
Eu numa passividade de persecução [... ] em Si.”
(LEVINAS, 1974, p. 159, tradução nossa). Dessa
forma, Levinas assume a transcendência de um
modo radical; isto lhe foi possível pelo fato de ter
questionado a tradição do pensamento ocidental
e ter introduzido uma inovação na filosofia pelas
categorias e paradigmas bíblicos. Essa seria também uma crítica radical à filosofia da Modernidade,
que mantém como pontos irradiadores o cogito e
o psiquismo a partir da totalidade absoluta do eu.
A concepção de subjetividade em Levinas não é
fragmentada, mas é exatamente a síntese da relação
e da experiência da radicalidade da fundamentação
última do ser humano.
Educação e alteridade ética
Levinas procura compreender a fenomenologia
de Husserl com a finalidade de compreender a
experiência metafísica. A fenomenologia husserliana tornou possível a passagem da ética para a
exterioridade metafísica.
O que há de fundamental e inovador no pensamento de Levinas é o seu caráter ético. O humanismo de Levinas sustenta-se em cima da interpelação
ética do outro, que se manifesta em sua alteridade
sob vários aspectos, como, por exemplo, na experiência concreta existencial pela fenomenologia
da corporeidade, da proximidade e da relação
concreta. Entretanto, a revelação ou a epifania
do outro não é meramente fenomenológica, e sim
manifestação de sua absoluta alteridade.
A tematização da alteridade quer dizer, antes
de tudo, incluir a ética numa nova perspectiva
filosófica. A relação com o outro realiza-se na
forma da bondade que se chama justiça e responsabilidade infinita para com outro e se concretiza
historicamente numa experiência de transcendência, solidariedade e responsabilidade pelo outro. A
alteridade é uma experiência de interpelação ética.
Essa experiência manifesta-se pelo rosto do outro.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013
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Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética
Com o conceito da alteridade, Levinas dimensiona sua crítica ética à filosofia da Modernidade.
A concepção fundamental da imagem do homem
levinasiano será correlacionada com o “humanismo
do outro homem”, com a ética e a solidariedade
como fundamento originário da ética da subjetivação e da libertação.
Levinas acentua a dimensão do absoluto da subjetividade, da subjetivação e dos polos do eu e do
outro. O outro é outro, isto é, unicidade; é exterior,
é estrangeiro para mim, não será alcançável, pois
encontra-se na distância infinita em relação com o
meu eu. Ele é sujeito absoluto. Contudo, a subjetividade do outro se apresenta diante de mim como o
desprotegido e sem forças; ele apresenta-se em sua
plena nudez diante do meu “eu”. O outro confirma
a minha unicidade. Ele encontra-se na exterioridade
de toda relação de poder e de liberdade do meu eu.
A ideia do infinito, em conjunto com a ideia
da bondade e a ideia do desejo, desperta a subjetividade do outro. Essa responsabilidade antecede
o próprio eu, da relação intersubjetiva segundo
Kierkegaard. Levinas fundamenta, por meio da
ideia do infinito, sua crítica à totalidade.
A totalidade da egolatria será rompida a partir
da subjetividade com a interpelação ética. A subjetividade aparece como abertura para a exterioridade,
sem poder escapar da relação assimétrica, pela qual,
por seu lado, se manifesta ao outro de maneira
diacrônica como culpada e responsável eticamente.
Temos vários projetos que pretendem discutir
a temática sobre a alteridade ética e subjetividade
na educação a partir da ética da responsabilidade
do Outro em Levinas. E para sublinhar bem essa
perspectiva, alguns pontos requererão cada vez
mais uma reflexão mais profunda e podem servir
como parâmetros e como respostas éticas aos enormes desafios que a história atual desencadeia tanto
na educação para a paz, como para a superação da
negação da dignidade humana.
O ser humano vivencia a presença concreta do
outro que se encontra na exterioridade e com isso
mesmo na interpelação ética. O que seria a vivência
do fato da angústia existencial segundo Kierkegaard e da apelação para uma subjetivação humana
na perspectiva da História do sujeito em Foucault.
Nesse sentido, a proximidade no horizonte do
ser-para-o-outro não tem nenhuma delimitação
90
espacial e temporal, porém abarca a totalidade da
humanidade. O ser-para-o-outro refere-se a um
saber moral, isto é, ao pensar moral, à bondade, à
diaconia, à substituição do outro e à justiça. A relação com o outro, no ser-para-o-outro, plenifica-se,
fundamentalmente, no ser da comunidade, o que
corresponde à responsabilidade ética para com o
outro, como uma experiência da alteridade.
Assim, nessa breve introdução ao pensamento
ético de Levinas, vamos destacar os desafios éticos
inerentes ao processo educativo. O desafio atual
fundamental é a formação dos professores em e
para Direitos Humanos, destacando-se a problemática principal da ética da alteridade na diversidade
cultural, resgatando a alteridade absoluta do Outro
que se revela como um rosto, segundo a filosofia
de Emmanuel Levinas.
Aqui se apresenta o tema dos Direitos Humanos
desde a complexidade de sua fundamentação filosófica e das políticas públicas para a formação dos
professores. Ao tratar do discurso sobre os Direitos
Humanos surge imediatamente a dificuldade encontrada no pensamento filosófico ocidental no que diz
respeito à alteridade do Outro, na sua absoluta alteridade e que é, por sua vez, reduzido pelo discurso
filosófico ocidental ao Mesmo. Surge a cada passo
a dificuldade em reconhecer a alteridade. O pensamento filosófico ocidental passa a ter sua egolatria
rompida pela fenomenologia da alteridade e da interpelação ética, que são temas centrais do pensamento
de Levinas e de seus discípulos, principalmente os
que atuam com o compromisso da filosofia libertadora e da educação popular na América Latina.
É nessa perspectiva que se quer fazer uma leitura
política da educação a partir de Emmanuel Levinas.
Como sabemos, a segunda metade do século XX
despertou para uma ênfase universal dos Direitos
Humanos, dando destaque especial ao direito à
educação, e contemplou o Direito à diversidade
Cultural. A diversidade cultural não é inata, pois,
enquanto processo, ela acontece lado a lado à
construção das identidades. A interação é um pressuposto para que a identidade se constitua como
realidade. O outro possibilita a intermediação para
o reconhecimento de si mesmo, de seu eu. Por isso,
tanto a identidade quanto a diversidade cultural não
se constituem mais uma realidade no isolamento e
na ipseidade moral.
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Antonio Sidekum
Conclusões
Observamos, entrementes, que a diversidade
cultural sofre variações significativas de um contexto para outro. O que determinada cultura concebe
como valor, outra poderá interpretar como não
valor. O conjunto de elementos que constituem uma
cultura, pelos quais os indivíduos e os grupos se
diferenciam dos demais e por eles são reconhecidos, depende significativamente do lugar que estes
ocupam no grupo e das formas de relações que são
estabelecidas entre si e com os outros. Afirma-se,
assim, que toda a diversidade precisa ser entendida
em uma perspectiva relacional. Com esses elementos pode-se sintetizar dialeticamente que:
1. Nesse sentido, Levinas chama atenção para
o discurso de dominação desenvolvido
pelo pensamento ocidental, fundamentado
na filosofia grega. Recordando-se de que a
ideia do Ser predominou na Antiguidade e
na Idade Média como um substitutivo da
ideia do eu. E com o início da Modernidade,
continua mantendo o centro unificador e
totalizante que não lhe permite o confronto
e valorização da diversidade, concebida
como uma abertura ao outro em sua alteridade infinita. E esta última situação é cada
vez mais desafiada e inclusive negada pelo
processo da globalização da economia e da
erradicação da simbólica do ethos cultural.
É assim que o pensamento da alteridade
esboça várias entradas filosóficas sobre a
Universalidade e a Diversidade Cultural,
que se apresentam como desafios à educação da atualidade. Segundo os primeiros
parágrafos da Introdução do livro Totalidade e Infinito, de Levinas, isso é, pela sua
formação na experiência no seio familiar,
na educação religiosa durante a adolescência, e pela sua vivência como professor
que tematiza no contexto existencial para
uma Diversidade Cultural. Com isso, se
finaliza essa parte abordando o contexto
dos Direitos Humanos e o reconhecimento
da Dignidade Humana.
2. Após essas considerações, podemos abordar a proposta Filosófica de Emmanuel
Levinas na perspectiva da Educação libertadora. Nesta proposta vai ser estudada
a ética como filosofia primeira. Levinas
traz-nos um redimensionamento da ética.
Poderíamos dizer que em Levinas emerge
um novo humanismo, que é o humanismo
do outro homem. Este Humanismo repensa o ser a partir do outro. Aqui reside a
inovação provocativa do pensamento de
Emmanuel Levinas que terá eco especial na
filosofia e pedagogia da libertação na América Latina, pois trata da Interpelação ética,
da Alteridade e da Responsabilidade ética
infinita diante do Rosto do Outro. Com isso,
o centro de nossa reflexão pretende sair da
pedagogia do mesmo para a práxis de uma
pedagogia da alteridade: na perspectiva de
Direitos Humanos.
3. O grande momento de nossa reflexão filosófica vai-se centralizando no tema da
formação de professores em e para Direitos
Humanos e questiona: É possível “formar”
o outro sem reduzi-lo ao mesmo? Como
alcançar uma formação humana na experiência histórica da nossa diversidade cultural
e no direito à diferença? Como enfrentar os
desafios dos professores: sujeitos históricos
e promotores de Direitos Humanos?
4. Nas considerações finais, queremos permanecer com a ocupação dos seguintes
questionamentos: Em que medida é possível pensar a Universalidade dos Direitos
Humanos frente à Pluralidade e Diversidade
Cultural? Como garantir a singularidade
cultural e a identidade de um povo e, ao
mesmo tempo, possibilitar a sua inserção no
processo de universalidade? Quais seriam
os critérios para garantir essa possibilidade?
Considera-se, mesmo de forma precária, que
essas questões por nós apontadas continuam a
revelar a complexidade que envolve a questão da
universalidade dos Direitos Humanos frente às diferenças culturais, frente às fracas políticas públicas
executadas em nosso país, no que diz respeito à uma
política educacional séria e libertadora. Jamais teremos um reconhecimento em plenitude existencial
da dignidade humana enquanto o sistema político
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Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética
for um sistema dominado pelo pensamento do Mesmo e pelas falácias do discurso da globalização. É
por isso que continuamos nossa crítica e proposta
de permanecer com o desafio de sensibilizar as
sociedades, culturas e grupos sociais para que possibilitem aos seus integrantes o desenvolvimento de
perspectivas teórico-práticas dos Direitos Humanos, tendo em vista uma efetiva transformação no
modo de conceber e tratar a pluralidade e diversidade cultural. No entanto, é nosso interesse refletir
em que medida a formação de professores na ótica
levinasiana poderia contribuir com esse processo.
E seria nossa proposta: como na sequência dos
trabalhos, adentraremos com maior frequência na
filosofia de Levinas, na qual poderemos visualizar
com maior clareza sua contribuição, tudo isso ao
propor uma ética que tenha como ponto de partida
a afirmação ética do outro, sendo esta archê capaz
de abrir espaço para a dignidade do outro enquanto
radicalmente diferente do eu.
Por isso, vamos centralizar nossa atenção na
relação da dignidade humana com a questão dos
Direitos Humanos, buscando compreender as suas
origens e seus princípios ou fundamentos que possibilitem pensar o reconhecimento da alteridade do
ser humano que, para Levinas, ocorre no encontro
do face-a-face, o qual desperta à interpelação ética
que vem da exterioridade, do rosto do outro.
Por isso, a filosofia levinasiana alerta para a necessidade ética de se repensar a filosofia e a educação num patamar no qual se presume também uma
formação dos professores que parta da alteridade
ética do outro, caso contrário, a possibilidade de
continuar convertendo-se a cultura em mercadoria
poderá levar à barbárie, de acordo com Adorno
(1995, p. 22).
Pensar a formação de professores na perspectiva
de e para Diretos Humanos com base em Levinas
supõe reconhecer esta dimensão do rosto que nos
interpela eticamente para inaugurar os processos
formativos e educacionais, tendo em vista a superação da indiferença e a prepotência em relação
ao outro, tanto por parte do educador quanto do
educando.
Na relação inter-humana, o Outro não é um
objeto exposto a ser contemplado, nem tampouco
um objeto de conhecimento a ser tematizado, mas
um rosto que inquieta, obriga, exige, ordena, enfim,
92
sacode eticamente o eu exigindo-lhe responsabilidade. “[...] Educar para a responsabilidade significa
sair do estado de indiferença frente às injustiças
sofridas pelo Outro, questionar a espontaneidade
da liberdade como princípio primordial da consciência moral e escutar a palavra que vem do Outro.”
(ALVES, 2011, p. 144).
Como escreve Alves (2011, p. 153), a violência
gera uma
perversão das relações entre o Mesmo e o Outro,
pois faz desaparecer o caráter horizontal da inter-relação, que é suscitada por uma relação hierárquica
de dominação-submissão entre o agressor e a vítima.
[...] A violência é versátil, multiforme, manifesta-se
de muitas maneiras e reflete muitas e distintas tendências e processos da nossa sociedade; é ubíqua,
aparece em todas as partes; é uma fonte de poder e
uma mercadoria que se compra e vende no mercado.
A violência gera sempre um estado de ansiedade e
insegurança, e às vezes quadros depressivos que
dificultam gravemente a atividade de ensino e aprendizagem dos que a padecem.
No entanto, em nossa compreensão, a complexidade não impede a construção democrática de
alicerces que podem ser consensualmente definidos
e aceitos pelas culturas e nações, respeitando-se
assim suas particularidades e autonomia enquanto
sociedades portadoras de uma determinada cosmovisão. Um passo significativo nessa construção é a
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, adotada por unanimidade pelos 181 Estados-Membros da UNESCO, na Conferência Geral
ocorrida em novembro de 2001, em Paris. No
artigo primeiro do referido documento se declara
que “a diversidade cultural é patrimônio comum
da humanidade” (UNESCO, 2001).
A Declaração reconhece o papel frutífero do
diálogo intercultural e refuta a noção de um conflito
de civilizações. Insiste no fato de que, apesar da
diversidade cultural, compartimos uma humanidade comum e, portanto, não somente uma responsabilidade e um respeito para como o Outro, mas
também, a crença na capacidade de compreender e
amar o Outro. “[...] A humanidade é uma, mas suas
culturas são numerosas. Deve-se ter presente que
cada vez que uma cultura desaparece, a comunidade, em particular, e a humanidade, como um todo,
empobrecem” (MONTIEL, 2003, p. 44).
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Antonio Sidekum
E o desafio para se sensibilizar a sociedade, as
culturas e os grupos sociais permanece para que
seus integrantes possam alcançar o desenvolvimento de perspectivas teórico-práticas que dizem
respeito aos direitos humanos, tendo em vista uma
efetiva transformação no modo de conceber e tratar
o direito humano fundamental da pluralidade e
diversidade cultural. Essa é uma clara contribuição
da filosofia de Levinas ao propor uma ética que
parte do outro, sendo esta capaz de abrir a história
para a dignidade do outro enquanto radicalmente
diferente do eu.
Para nós, a atenção pela dignidade humana na
questão dos Direitos Humanos deveria procurar
compreender as suas origens e seus princípios ou
fundamentos para pensar o reconhecimento da alteridade do ser humano que, para Levinas, ocorre
no encontro do traço infinito do face-a-face, o qual
desperta para a interpelação ética vindo da exterioridade, isto é, do rosto do outro. Pois, para Levinas:
A apresentação do ser no rosto não tem o estatuto de
um valor. O que chamamos rosto é precisamente a
excepcional apresentação de si por si, sem paralelo
com a apresentação de realidades simplesmente
dadas [...]. O rosto onde se apresenta o Outro – absolutamente outro – não nega o Mesmo, não o violenta
como a opinião ou a autoridade ou o sobrenatural
taumatúrgico. Fica à medida de quem o acolhe,
mantém-se terrestre. (LEVINAS, 1988, p. 181).
O rosto como tal sempre possui algo a mais
que a face. Nele pode ocorrer uma manifestação
que é única, singular. No rosto ficam registradas
as experiências da vida por meio de cicatrizes,
pele enrugada, olhares e demais expressões da
interioridade. Diferentemente das coisas, o rosto,
pela sua exterioridade, testemunha uma interioridade. Essa alteridade, por sua vez, jamais poderá
ser representada ou substituída, simplesmente
acolhida ou negada. Por isso, a relação exigida aí é
especificamente ética, não ontológica. De Levinas
aprendemos a consolidar a interpelação ética com
a epifania ética do rosto humano e a dignidade
humana, assim a dignidade humana é concebida
na anterioridade absoluta da consciência do eu e
de toda instituição política:
Como já vimos, a dignidade humana não provém
do Estado e nem é criada pela ordem jurídica ou
simplesmente atribuída ao ser humano. A dignidade
humana fundamenta-se no ser sujeito e pessoa, do
‘ser humano’ como tal. Ela implica numa existência
anterior ao princípio da ordem jurídica ou do Estado. Ela interpela eticamente pelo reconhecimento
da alteridade absoluta. Ela é conquista, afirma uma
nova consciência histórica para ser humanamente
no mundo social e político. É anterior a qualquer
direito estabelecido pelo Estado. Assim, com toda a
certeza, poderemos afirmar que o Estado de Direito
não outorga ao ser humano sua dignidade, mas ele
deverá garanti-la. (SIDEKUM, 2011, p. 40, grifo
do autor).
Aqui se requer um breve excurso filosófico,
pois em Kant encontramos a inviolabilidade da
dignidade humana como fundamento principal
dos Direitos Humanos, extinguindo todo tipo de
absolutismo, de cientificismo e de tecnocracismo. Proporciona espaço à tradição filosófica nos
campos da metafísica e da ética, as quais voltam a
figurar no processo de conscientização relacionado
aos direitos humanos. Para Kant, a dignidade humana não pode ser considerada um valor material
ou monetário, nem mesmo comparada a um objeto
qualquer. Por isso, “a dignidade de uma pessoa
não pode ser mediatizada pelo conjunto de uma
escala de valores objetivos, mas é fundamentada
na autonomia moral da pessoa [...].” (SIDEKUM,
2011, p. 83). A observação de Kant pode contribuir
na identificação das motivações que, na atualidade,
geram as discussões acerca dos direitos e da dignidade humana.
Por isso, percebemos que a razão de toda a discussão em torno da dignidade humana, enquanto
princípio fundamental dos direitos humanos, reside
na luta empenhada por tantas pessoas que, ao longo
da história e ainda hoje, reivindicam um reconhecimento de suas alteridades, expressas no direito
à cidadania, ao ser livre, com acesso à saúde e a
formação, tendo, enfim, tudo aquilo que fundamentalmente garante e potencializa a vida. Com isso
finalizo, pois, com as palavras de que “a dignidade
humana fundamenta-se na ética. Impõe-se como a
condição fundamental de toda possibilidade para as
práticas das virtudes e do exercício da cidadania”
(SIDEKUM, 2011, p. 43).
E, por fim, penso que seria bem recebida a
acolhida de uma ênfase dada à leitura política da
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013
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Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética
interpelação ética de Levinas para servir como pressuposto ético da filosofia da educação. Com tudo
isso, apontamos, fundamentalmente, para a nossa
situação educacional dos Direitos Humanos no
Brasil. Sabemos que isso não será uma tarefa fácil,
em virtude das falácias dos discursos ideológico-político-partidários, das vaidades pessoais dos
dirigentes políticos educacionais e das dificuldades
que surgem num bojo da autêntica proposta de uma
reconstrução da utopia.
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Recebido em 09.08.2012
Aprovado em 28.12.2012
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013
Jordi Garcia Farrero
O ATO DE CAMINHAR E A EDUCAÇÃO:
A PROPÓSITO DOS 300 ANOS DO NASCIMENTO DE ROUSSEAU
Jordi Garcia Farrero*
RESUMO
Este trabalho, que tem como finalidade estudar a maneira de caminhar de Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778), está configurado em duas partes. Por um lado, mostra a última
etapa da vida do autor como o momento em que se percebe mais explicitamente
seu verdadeiro homo viator. Durante esse período – tal como revelam suas obras
autobiográficas –, ele estava submetido a duras acusações dos enciclopedistas, e o ato
de caminhar acaba se convertendo na atividade mais adequada, visto que lhe permitia
pensar, relembrar o passado e, ao mesmo momento, satisfazer o seu eu doído, triste e
desprezado pela alta e ilustrada sociedade francesa. Nesse sentido, a forma de transitar
rousseauniana foi solitária – uma espécie de autoexílio das cidades e dos aparelhos
sociais – e caracterizada pelo contato com a natureza, como bem demonstra sua nova
e principal ocupação: a herborização. Por outro lado, este artigo pretende realizar uma
reflexão sobre a tendência educativa que surgiu no final do século XIX (neonomadismo
pedagógico), já que a ação pedestre desse autor, que podia ser concebida como uma
excursão, é um claro antecedente do Romantismo pedagógico.
Palavras-chave: Rousseau. Caminhar. Neonomadismo pedagógico. Excursão.
ABSTRACT
THE ACT OF WALKING AND EDUCATION: 300 YEARS AFTER
ROUSSEAU´S BIRTH
This paper aims to explore the way of walking of Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
It is organized as follows. On the one hand, it indicates the last stage of his life as
the one that makes possible more explicitly to observe his true Homo Viator. Over
this period, as we can see in his autobiographical works, he began to fall out with the
Encyclopedists, and the act of walking became a very appropriate activity as it allowed
him to think and to recall the past and, at the same time, to satisfy his hurt, sad and
unvalued ego by the high French society. Hence, the Rousseaunian way of walking
was lonely, a kind of self-exile from the cities and the social apparatus - characterized
by the contact with nature, his newest main occupation (herborization). On the other
side, this article tries to make a reflection on the educational trend that emerged in the
late nineteenth century (pedagogical neonomadism), because the pedestrian action
of this author, which could be conceived as an excursion, is a clear antecedent of the
pedagogical Romanticism.
Keywords: Rousseau. Walking. Pedagogical Neonomadism. Excursion.
* Doutorando em Pedagogia. Professor de História da Educação na Universidad de Barcelona. Endereço para correspondência:
Universidad de Barcelona. Pg. Vall d’Hebron, 171. Campus Mundet. Edifici Llevant. 3ª Planta. Despatx 332. CP: 08035 Barcelona, Espanha. [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013
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O ato de caminhar e a educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau
Abertura: quando caminhar é muito
mais que “deslocar-se a pé de um lugar
a outro”
Caminhar – ao lado de outras derivações, como
caminhada, caminhante ou encaminhar – provém
de caminho, palavra de origem céltica cuja primeira
forma foi cammīnus. Este termo foi alheio ao latim
arcaico e clássico, mas não é possível dizer o mesmo em relação à sua penetração no latim vulgar, já
que, com exceção do romeno (plimbáre), deixou
descendência em todas as línguas românicas: caminar (espanhol e catalão), caminhar (português),
cheminer (francês), camminare (italiano) e camiñar
(galego). Vale dizer que o seu abasto fraseológico
e semântico é mais restrito em francês e espanhol,
dado que marcher e andar costumam ser vocábulos
de uso mais recorrente. De todas as formas, não há
dúvida de que em todas as línguas latinas apresenta o mesmo significado. Quanto à sua sinonímia,
destaca-se a significativa quantidade de vocábulos
semelhantes com os quais se relaciona, tais como
dirigir-se, mover-se, deslocar-se, avançar, circular,
andar, rodar, passear, explorar, vagar, errar, marchar
ou peregrinar.
Dito isso, pode-se afirmar que – desde que os
nossos antepassados Australopithecus afarensis
conseguiram manter a coluna reta – caminhar é
a ação humana utilizada para o deslocamento de
forma autônoma. Portanto, é bastante possível que
caminhar seja a atividade mais ordinária e natural
que os seres humanos podem realizar.
Não obstante, se se observa mais atentamente,
pode-se constatar que a nossa maneira de nos
deslocar, ao longo da história, tranformou-se
em algo mais que dar um passo atrás do outro.
Tanto é assim que se tornou objeto de estudo de
algumas disciplinas científicas. Entre outras, convém destacar a Antropologia física ou biológica,
que estuda o milagre do bipedismo na família
denominada hominídeos (Hominidae) e as suas
consequências sociais e culturais na evolução
da espécie humana; a Psicologia evolutiva, que
examina o processo que necessita uma pessoa
para conseguir manter a postura ereta durante
os primeiros anos de vida; e algumas disciplinas
das Ciências da Saúde, que estudam a marcha
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humana normal e a patológica. Mesmo que
cada uma represente uma maneira bem distinta
de abordar o deslocamento humano, o conjunto
dessas disciplinas permite que o ato de caminhar
seja considerado uma categoria.
Nesse sentido, também é necessário mencionar
uma série de autores que tomaram consciência do
próprio movimento e passaram a considerar o ato
de caminhar uma autêntica experiência estética.
Entre outros, cabe citar os passeios românticos do
poeta William Hazlitt (Maidstone, 1778 – Soho,
1830) ou do escritor Robert Louis Stevenson
(Edimburgo, 1850 – Upolu, 1894), as explorações
naturalistas e humanistas por territórios exóticos de
Alexander von Humboldt (Berlim, 1769 – Berlim,
1859), o andar sem rumo pela capital da Modernidade de Honoré de Balzac (Tours, 1799 – Paris,
1850) ou Charles Baudelaire (Paris, 1821 – Paris,
1867) e as viagens que permitiram a Patrick Leigh Fermor (Londres, 1915 – Dumbleton, 2010) e
a Bruce Chatwin (Sheffield, 1940 – Nice, 1989)
metamorfosearem-se e conhecerem outras culturas.
Em realidade, poderiam ser citados outros tantos
exemplos – como as figuras arquetípicas de Abraão,
Ulisses ou Eneias – porque, como todos sabem,
cada pessoa tem uma maneira singular de caminhar
o mesmo caminho.
Em decorrência do abordado até o momento,
pode-se intuir que o autor aqui analisado – Jean-Jacques Rousseau (Genebra, 1712 – Ermenonville,
1778) – também foi um pensador que realizou
longas caminhadas ao londo da sua trajetória vital.
Sua forma de executá-las, inclusive, apresenta claras conotações educativas, como se verá a seguir
por meio da apresentação das práticas pedagógicas
pedestres e de plenair que se originaram graças
ao naturalismo pedagógico romântico. Este artigo
abordará, portanto, um dos pensadores mais importantes da História da Filosofia a partir de seus
passeios (promenades).
Aspectos biográficos de Rousseau
Sólo he viajado a pie en mis días de juventud, y
siempre con delicia. Pronto los deberes, los asuntos
y un equipaje que llevar me obligaron a dármelas
de señor y a utilizar vehículos, a los que conmigo
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013
Jordi Garcia Farrero
subían atormentadoras preocupaciones, apuros y
molestias; mientras que antes en mis viajes no sentía
otra cosa que el placer de caminar, desde entonces
no he sentido otra cosa que la necesidad de llegar.
(ROUSSEAU, 2007c, p. 91).
Tal com indica a citação acima, a vida de
Rousseau pode ser dividida em três etapas bem
definidas. A primeira seria sua infância e juventude (1712-1742); depois, a época em que viveu
em Paris entre os enciclopedistas e publicou suas
obras mais emblemáticas (1742-1762); e a última,
caracterizada pelo nascimento de sua forma de
transitar (as promenades) e, consequentemente,
pelo retorno à natureza por meio da herborização
(1762-1778).
Rousseau nasceu em 1712 em Genebra, filho
de Isaac Rousseau (1672-1747), um relojoeiro, e
de Suzanne Bernard (1673-1712), que morreu no
seu nascimento por culpa de uma febre puerperal. Por isso, a tia e o pai do pequeno Rousseau
tornaram-se responsáveis por sua educação. No
que se refere ao papel de seu progenitor, que tentou transmitir-lhe um espírito livre e republicano
sem adotar nenhum tipo de educação sistemática,
vale ressaltar que, praticamente todas as tardes,
o obrigava a ler algum romance sentimental da
época e obras de Plutarco, já que, para a Genebra
calvinista, cultivar tais hábitos era sinônimo de
ser um cidadão bem educado.
Dez anos depois de seu nascimento, e em razão da saída forçada de seu pai da cidade suíça
por causa de uma grave discussão com um antigo
chefe dos exércitos do eleito da Saxônia, a tutela de
Rousseau foi transferida às mãos de seu tio. Gabriel
Bernand toma certas decisões – como a de torná-lo
aprendiz de gravador ao lado de um mestre tirânico
chamado Abel Ducommun – que, de acordo com
o próprio filósofo genebrês, levaram ao fim da serenidade de sua vida infantil; em outras palavras,
ao início de sua etapa de mentiras e roubos. Em
1728, no entanto, deixou de sofrer a brutalidade de
seu mestre, já que, depois de encontrar as portas da
cidade fechadas quando voltava de uma excursão
com uns amigos, Rousseau decidiu distanciar-se
de seu país e de sua família para começar uma
nova vida tão miserável como independente. Dessa
maneira, começaram suas conhecidas viagens pe-
destres pelo continente europeu1 que, muito tempo
depois, foram motivo de interessantes reflexões
como estas: “Lo que más lamento de los detalles
de mi vida cuyo recuerdo he perdido es no haber
hecho diarios de mis viajes. Nunca pensé tanto, ni
existí tanto, ni viví tanto ni fui tanto yo mismo, si
es que puedo hablar así, como en los que hico solo
y a pié.” (ROUSSEAU, 2007c, p. 207).
Fruto dessa errância, que tinha o claro propósito
de buscar uma vida melhor e mais plácida, Rousseau conheceu vários nobres e preceptores, mas a
figura de Françoise-Louise de la Tour (Tour de Pil,
1699 – Annecy, 1762) – também conhecida como
Mme. de Warens – foi a que teve maior incidência
em sua trajetória vital, principalmente entre 1728
a 1741, como mostra a constante lembrança dessa
perceptora ao longo da vida de Rousseau. Não há
dúvida de que na maneira de ser e fazer de Mme.
de Warens – mais adiante conhecida como a amada
Maman – encontram-se os principais motivos pelos
quais o pensador suíço sempre manifestou que tinha
boas lembranças de sua infância e juventude. Ela o
tutelou e lhe proporcionou uma educação acurada,
iniciando-o no catolicismo2 e o ajudando em seu
interesse pela música3.
Dessa perspectiva, convém fazer uma pausa e
destacar sua estada – ao lado de Mme. de Warens
– numa pequena e acolhedora casa de Les Charmettes. Entre 1738 e 1740, Rousseau, que voltou
a desfrutar de uma vida sedentária depois de vários anos de errância contínua, idealizou, para ele
mesmo, um plano de vida que lhe permitiu ler e
instruir-se como autodidata. Não há dúvida de que,
durante aqueles anos, teve um progresso intelectual considerável. Se se observa atentamente seu
1Com o propósito de demonstrar que foi um grande caminhante,
indicar-se-ão, por ordem cronológica, todas as viagens a pé que fez
entre 1712 e 1742: Genebra–Confignon (6 km); Confignon–Annecy
(39 km); Annecy–Turim–Annecy (416 km); Annecy–Lion–Annecy
(268 km); Annecy–Genebra–Nyon–Freiburg–Lausanne–Neuchâtel
(160 km); Boudry–Berna (57 km); Berna–Soulere (700 km);
Soulere–Paris (700 km); Paris–Lion (400 km) e, por último, Lion–
Chambéry–Les Charmettes (100 km). Vale a pena lembrar que a
maioria dos seus deslocamentos vinham motivados pelas aulas de
música que ministrava.
2 De acordo com o segundo livro da obra Les confessions, sua conversão aconteceu na igreja metropolitana de São João de Turim, em
1728.
3 Não é de se estranhar, então, que mais tarde estreassem diferentes
óperas das quais ele era o autor. Entre outras, podem-se destacar
Les Muses Galantes (1745) e Devin de village (1752).
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O ato de caminhar e a educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau
plano de vida é possível entender e corroborar esta
última afirmação: antes de tomar café da manhã,
dava um passeio e fazia suas orações; depois lia
um pouco de algum clássico (Locke, Descartes,
Leibntz...). Após um tempo, estudava geometria,
latim, fisiologia ou astronomia. Almoçava e,
mais tarde, inspecionava as flores e estudava ou
lia, atividades que realizava com mais facilidade
que quando as fazia durante a jornada matutina.
Efetivamente, foram tempos de meditação no
recesso, de estudo da natureza e de contemplação
do universo, que forçaram um solitário a elevar-se
continuamente em direção ao autor das coisas e a
buscar com uma doce inquietude o fim de tudo o
que via e a causa de tudo o que sentia.
Mais tarde, decide romper definitivamente com
o mundo de sua amada Maman e muda-se para
Paris a fim de apresentar um novo sistema de notação musical4 na Academia, que lamentavelmente
foi rejeitado, e lançar-se à “torrente del mundo”5,
como se verá mais adiante. Rousseau entra então
no entorno dos ilustrados em qualidade de copista
de música e, dessa maneira, começa a estabelecer
relações com Denis Diderot (Langres, 1713 – Paris, 1784) e Jean d’Alembert (Paris, 1717 – Paris,
1783). Embora logo tenha recebido a incumbência
de escrever alguns artigos sobre música na Encyclopédie, seus primeiros anos na capital do Hexágono
não foram nada fáceis do ponto de vista material e,
por esse motivo, foi obrigado a aceitar o trabalho
de secretário do embaixador francês na capital da
ópera italiana, Veneza. Tal como expressa a citação
que encabeça este parágrafo, o deslocamento que
fazia em carroça de cavalos em direção à cidade
italiana possivelmente seja o melhor exemplo da
segunda etapa que acabava de começar na vida do
filósofo genebrês, em que buscava fama e posição
social. Não obstante, depois de dezoito meses,
voltou a Paris em razão de desentendimentos com
o cônsul e conheceu Thérèse Levasseur (Orléans,
1721 – Le Plessis, 1801), que logo seria a mãe de
seus cinco filhos e, tempos depois, sua esposa.
Em outra ordem das coisas, a detenção de
Diderot em razão da publicação de Lettre sur
4 Em poucas palavras: substituir a linguagem musical cifrada por uma
de números. Ver Ferrer (2010).
5 Expressão retirada da obra Las ensoñaciones del paseante solitario
(ROUSSEAU, 2008, p. 50).
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les aveugles à l’usage de ceux qui voient per
les encara autoritats de l’Ancien Régime (1749)
coincidiu com o momento em que o nosso autor
se encontrava mais ligado às ideias dos ilustrados
franceses. Tanto é assim que Rousseau o visitou
quase todos os dias enquanto esteve preso no
Chateau de Vincennes. Foi nessa época que, num
dos deslocamentos pedestres feitos entre Paris e
Vincennes (10 km), o autor suíço teve uma visão
súbita – conhecida como Illumination de Vincennes – sobre as contradições do sistema social tal
como demonstrou o Discours sur les sciences et
les arts (1750), em que afirma que as Ciências e as
Artes não fizeram progredir a felicidade humana
(ROUSSEAU, 1974, 2006). Como reconhecimento a essa obra, ganhou o prêmio da Académie
Dijon daquele ano. Alguns anos depois voltou a
inscrever-se no prêmio com um texto que se titulava Discours sur l’origine et les fondements de
l’inégalité parmi les hommes (1755)6, fruto da inspiração da viagem de sete ou oito dias que fez com
sua esposa a Saint-Germain. Naquela ocasião, não
teve tanta sorte porque a instituição douta citada
não lhe concedeu a premiação. Mesmo assim, mais
tarde voltou a provar o sucesso e as boas críticas
com seu primeiro romance, Julie, ou, la nouvelle
Héloïse (1761) (ROUSSEAU, 2007b).
Logo, no entanto, ficou claro que Rousseau não
havia nascido para aquele mundo de tanta pompa
e ornamento. Há unanimidade entre os estudiosos
de sua obra e vida sobre o fato de que, para os
enciclopedistas, a ruptura oficial foi causada pelas
ideias que defendeu em L’Émile ou de l’éducation
(1762) e Du contrat social (1762), as quais, posteriormente, evidencia em Letter to D’Alembert on
the Theatre (1758)7. A isso deve-se acrescentar que,
em 1765, tomou duas decisões que os ilustrados
dificilmente entenderiam: continuar com o seu
ofício de copista de música e abandonar Paris – ou,
6 Vale a pena lembrar que esse texto é considerado o primeiro em que
o nosso autor aborda o tema do Homo naturālis com o objetivo de
resolver o problema do direito natural e da desigualdade política.
Fruto de tudo isso, Voltaire lhe escreveu uma carta dizendo que se
tratava de um livro contra o gênero humano que dava vontade de
andar de quatro quando se lia.
7 Nesta obra epistolar, realiza uma crítica sem restrições contra o teatro
burguês. Frente a essa manifestação artística, o autor pré-romântico
era mais partidário de festas de caráter lúdico ao ar livre, já que
promoviam a inclusão de todos os cidadãos e os bons costumes, ao
invés do deterioramento das virtudes (ROUSSEAU, 2009) .
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013
Jordi Garcia Farrero
tal como dizia ele mesmo, o redemoinho da alta
sociedade – para viver ao lado do bosque Montmorency, já que tinha certeza de que sua preferência
pela vida rural estava arraigada no fundo da sua
sensibilidade. Em outras palavras, a ideia de que
a natureza sempre lhe havia dado mais instantes
de profundas alegrias e felicidade tiveram mais
força que o desejo de chegar à glória e conquistar
o reconhecimento na cidade.
Para concluir essa apresentação sobre a
trajetória vital de Rousseau, será analisada sua
última etapa (1762-1778), caracterizada pelas
consequências da condenação e proibição de seus
dois grandes livros (Émile e Du Contrat Social)
pelos poderes civis e eclesiásticos de Paris e de
Genebra. Durante esse período, foi obrigado
a abandonar precipitadamente a cidade de Les
Llums porque as autoridades correspondentes
emitiram uma ordem de busca e captura. Por
tudo isso, passou a ser conhecido como um “fugitivo nesse mundo”, já que voltou a vagar pelo
continente europeu, buscando asilo em Yberdon8,
Môtiers-Travers (Principado de Neuchâtel)9, Île
Saint-Pierre, Paris, Londres e, finalmente, Ermenonville, onde morreu, em 1778.
Por outro lado, convém advertir que a vida
de Rousseau durante essa época também esteve
sumamente condicionada pelas críticas constantes que recebia do mundo que havia rejeitado (os
philosophes) quando decidiu sair de Paris. No
entanto, a situação tornou-se ainda pior por causa
de uma publicação de Voltaire (Paris, 1694 – Paris,
1778) que denunciava o maior pecado de Rousseau como pedagogo da Modernidade: o envio de
todos os seus filhos a um hospício chamado Casa
de Enfants Trouvés10. A partir de então, tal como
8 Não se pode esquecer que, anos mais tarde (1805-1825), essa localidade suíça converteu-se no centro do pestalozzismo organizando
uma escola de ensino primário e secundário para meninos, uma escola para meninas, uma escola normal para professores e um centro
de formação profissional. Como se sabe, a obra de Johann Heinrich
Pestalozzi (Zuric, 1746 – Brugg, 1827) foi muito influenciada por
Emilio, o De la educación.
9Tal como explica em Las Confesiones (ROUSSEAU, 2007c, p.
727), foi então quando abandonou a indumentária típica do mundo ilustrado e adotou o armino. Graças ao pintor Allan Ramsay
(Edimburgo, 1713 – Dover, 1784), há um retrato que o demonstra
(National Gallery Scotland,1766).
10Trata-se do opúsculo El sentiment dels ciutadans (Le sentiment
des Citoyens, 1764). Nesse sentido, também é interessante ver
Boswell (1997).
ele mesmo constata, Rousseau passou de ser uma
pessoa incômoda no circuito intelectual da época,
chegando a considerar-se o “horror da raça humana”. Tendo em conta esse contexto, o nosso autor,
em vez de escrever uma carta para responder a Voltaire, como havia feito tantas vezes anteriormente,
decidiu começar uma nova empreitada: escrever
uma obra autobiográfica. Não obstante, vale dizer
que, ainda que seja constituída por Les confessions
(1782-1789), Dialogues de Rousseau juge de Jean-Jacques (1782) e Les Rêveries du promeneur solitaire (1782), faz-se referência somente ao primeiro
e ao último escrito, pois foram os que, mais tarde,
se tornaram referentes do gênero da autobiografia
moderna (ROUSSEAU, 2008).
Chegados a esse ponto, é o momento ideal para
apresentar brevemente Les confessions e Les Rêveries du promeneur solitaire, obras que tem dois
propósitos bem diferentes e, como se comprovará
mais adiante, são básicas para conhecer a paixão
que tinha Rousseau pelo ato de caminhar. Quanto
à primeira obra, diferentes aspectos podem ser
destacados. Tal como fez Santo Agostinho (354430) quando caía o Império Romano, o pedagogo
moderno recuperou a arte de se confessar publicamente com o objetivo de preservar sua figura.
Defendia que a única maneira de se proteger contra
os ataques severos que recebia era mostrando sua
verdadeira natureza. Dessa maneira, esse livro –
dividido em duas partes, e cada uma delas dividida
em seis capítulos – abarca todos os acontecimentos
que sucederam desde o seu nascimento até 1765
e, sem dúvida, poderia ser concebido como um
retrato um pouco intencionado em muitas ocasiões
porque, entre outros objetivos, tentou construir
mitos como o da infância perdida, aproveitando
suas lembranças.
No que se refere à outra obra autobiográfica,
publicada postumamente, será feito somente um
comentário, visto que, na apresentação da forma
de transitar que será abordada posteriormente,
estará muito presente por ser o livro que mostra
mais explícitamente o objeto de estudo deste artigo. Sendo assim, Rousseau, nos inacabados Les
Rêveries du promeneur solitaire, que está dividido
em dez passeios em vez de capítulos, já não tem
nenhuma pretensão de estabelecer um diálogo com
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O ato de caminhar e a educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau
os leitores. Ao contrário, é um texto que fez para
ele mesmo e pensado para sua evasão em direção
a uma ordem mais natural e menos contaminada
pela sociedade.
O caminhante solitário que rememora
e herboriza
Vê-se, então, que a obra Les Rêveries du promeneur solitaire confirma o que foi dito nessas
últimas páginas: Jean-Jacques Rousseau sempre foi
um grande caminhante. Para muitos, é considerado
um dos primeiros a praticar esse exercício em sua
época, já que seus contemporâneos – os ilustrados
– habitualmente preferiam circular com carroças
de cavalos durante seus deslocamentos. Para expressar melhor e confirmar a tese mencionada, é
preferível deixar falar o próprio autor: “la marcha
tiene algo que anima y aviva mis ideas: cuando
estoy quieto apenas puedo pensar; mi cuerpo ha de
estar en movimiento para poner en él mi espíritu”
(ROUSSEAU, 2007c, p. 207).
É portanto nessa última obra autobiográfica
que se pode perceber perfeitamente a figura desse
filósofo genebrês em movimento e, sobretudo, o
método que utilizou durante aqueles anos (17761778). A citação seguinte o explicita:
Pues habiendo formado el proyecto de describir
el estado habitual de mi alma en la posición más
extraña em que mortal alguno podrá encontrarse
nunca, no he visto manera más simple y más segura
de ejecutar esta empresa que llevar un registro fiel
de mis paseos solitarios y de las enseoñaciones que
los llenan cuando dejo mi cabeza enteramente libre
y a mis ideas seguir su inclinación sin resistencia ni
traba. Esas horas de soledad y meditación son las
únicas del día en que soy yo plenamente y para mí
sin distracción ni obstáculo, y en que verdaderamente
puedo decir que soy lo que la naturaleza ha querido.
(ROUSSEAU, 2008, p. 33).
Ainda assim não se pode esquecer que justamente naquela época o nosso autor era uma pessoa
atormentada pelas disputas e acusações feitas pelos enciclopedistas e, por esse motivo, decide dar
pequenos passeios para estar longe das cidades e
dos aparelhos sociais e, igualmente, para lembrar
do passado com o fim de satisfazer o seu eu doído,
100
triste e menosprezado pela alta sociedade francesa.
Tinha certeza que os negócios de Diderot e Voltaire
o haviam levado a começar o exercício de se perguntar “quem sou eu?” (ROUSSEAU, 2008, p. 17).
Tendo em conta que a principal finalidade de
suas obras autobiográficas foi descobrir o tipo de
homem que não havia sido desfigurado pela cultura
e pelas artes, cabe enunciar uma série de particularidades que constituem os passeios rousseaunianos.
Para começar, pode-se destacar o fato de que estava acostumado a caminhar pelas trilhas de forma
solitária. No entanto, a solidão rousseauniana, que
naquela época converteu-se num dos seus principais
ideais, passou por diferentes etapas, tal como indica
Todorov (1987). Inicialmente, era uma solidão que
queria recuperar a sociedade; logo se transformou
num tipo de solidão que desaprovava totalmente
todo o social. Depois, como indica Les Rêveries
du promeneur solitaire, aparece uma solidão feliz11,
quando Rousseau percebe sua situação como uma
oportunidade par dar vida e sentido ao que se encontra gravado no Templo de Delfos, “gnosi seauton”.
Depois, como é lógico, a natureza também desempenhou um papel muito relevante. É possível
dizer que as árvores e os animais foram seus únicos
acompanhantes enquanto caminhava. Podem demonstrá-lo suas grandes descrições paisagísticas12
e seus herbários (Hortus siccus, jardim de plantas
secas). É evidente que o prazer de descobrir e colher
plantas foi muito importante para Rousseau durante
seus últimos anos de vida (1764-1778)13 porque
11Nesse sentido, convém lembrar escritores e caminhantes tão importantes como William Hazlitt ou Robert Louis Stevenson, já que
caminharam de uma maneira muito parecida, como nos mostra a
seguinte citação: “uma excursão a pé, para aproveitá-la devidamente,
deve ser feita em solitário. Se se faz em grupo, ou inclusive em casal,
já só de nome não é uma excursão; é algo distinto, mais parecido
com um piquenique” (HAZLITT; STEVENSON, 2003, p. 38).
12No quinto passeio de Las ensoñaciones del paseante solitario
(ROUSSEAU, 2008), o pensador suíço faz um retrato bucólico
da Ilha de Saint Pierre (o lago Bienne, Suíça). Convém recordar,
igualmente, que a pintura, uns anos mais tarde, produziu uma série
de obras de montanhas, vales, mares e entardeceres, ou seja, sobre
a relação do homem com a natureza. Como se sabe, um dos melhores paisagistas da época foi Caspar David Friedrich (Greifswald,
1779 – Dresde, 1840). Desse autor, pode-se destacar El atardecer
(Schweinfurt, 1821), visto que retrata dois caminhantes – com semelhanças mais que evidentes com o nosso autor – contemplando
a natureza em meio a um bosque esteticamente sugestivo.
13Por ordem cronológica, pode-se citar alguns dos lugares onde realizou a atividade de herboritzar: Serralada del Jura, Val-de-Travers,
ilha de Saint Pierre, Strasbourg, Derbyshire, Lion, Grenoble, Bourgoin, Monquin e entorno de Paris (bosques de Boulogne, Fontaine-
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Jordi Garcia Farrero
lhe permitiu esquecer “seus inimigos” (Diderot e
D’Alembert) e, como consequência, sonhar com a
purificação da sua vida que, afinal de contas, era
seu objetivo principal naquela época.
Por sua vez, é importante destacar que a Botânica é uma ciência que foi favorecida pela vontade
prerromântica de querer conviver harmoniosamente com a natureza, tão típica da sociedade do final
do século XVIII. Nesse sentido, não se pode deixar
de citar autores tão importantes para a disciplina
mencionada como Adanson, Jussieu ou Buffon. De
toda maneira, é bem possível que o mais importante de todos tenha sido Carl von Linné (Rashult,
1707 – Uppsala, 1778), que com a obra Systema
naturae (1735) fundou a taxonomia moderna
(nomenclatura binomial e sistema de classificação
sexual das plantas).
Sendo assim, cabe ressaltar que Rousseau, se
comparado ao importante botânico sueco, deu um
sentido diferente ao trabalho de fazer conjuntos
de herbários recoletados durante suas passeios
botânicos. Tratava-se, então, de um estudo ocioso feito por um solitário sexagenário que amava
a natureza sem propósitos instrumentais (não
admitia que a Botânica fosse dividida em teórica
e prática) e, por esse motivo, a apresentou como
uma scientia amabilis para todas as pessoas
sensíveis e curiosas pela variedade e complexidade do mundo vegetal. Segundo esse filósofo,
o mais importante dessa disciplina era saber
observar a natureza e apreciar sua beleza em vez
de aprender todos os nomes do reino vegetal de
memória. Podem comprovar essa última ideia as
obras Fragments pour un dictionnaire des termes
d’usage en botanique (1781), com um total de 184
verbetes, e Lettres sur la botanique, na qual, com
um espírito de divulgação científica indiscutível,
apresentou distintas famílias do reino vegetal a
petite Madelon, Marguerite-Madeleine Delessert
(1767–1839) (ROUSSEAU, 2007c, p. 508).
Por último, faz-se necessário lembrar que o ato
de devanear (les Rêveries) também se configurou
como uma das singularidades mais relevantes do
universo de Rousseau em movimento. Para o autor
de Du contrat social, o devaneio sub divo, que o
bleau, Ermenonville e Montmorency). Além disso, no livro Cartas
sobre Botánica (ROUSSEAU, 2007a), se pode ver uma estátua (p.
6) e um gravado (p. 12) que demonstram sua dedicação.
permitia entreter-se e descansar, ao contrário da
atividade reflexiva, foi a ação mais natural para ele
durante aqueles dias. Não há nenhuma dúvida de
que, a despeito da situação em que se encontrava,
passear lhe permitiu pensar, lembrar, organizar todas as suas vivências e tirar particulares conclusões
a partir de ideias leves e doces, que não agitavam
muito o fundo da sua alma. Por último, cabe acrescentar que essa atividade imaginativa era passiva
porque as ideias sucediam sem obstáculos (sensibilidade física), mas, ao mesmo tempo, exatamente
o oposto, porque era o guia de suas meditações
(LÓPEZ HERNÁNDEZ, 1989, p. 161).
Em síntese, pode-se afirmar que as promenades
solitárias de Rousseau consistiam em um devaneio,
ou uma evasão pelo imaginário, e uma descoberta
constante de plantas do entorno de Paris ou da ilha
de Saint Pierre. Nesse contexto, há uma passagem
cuja reprodução integral é inevitável:
Nunca he podido hacer nada pluma en mano delante de una mesa y mi papel. Es durante el paseo en
medio de las rocas y los árbores, es de noche en mi
cama y durante mis insomnios cuando escribo en mi
cérebro: júzguese con qué lentitud, sobre todo para
un hombre absolutamente falto de memoria verbal,
y que en su vida no ha podido retener de memoria
seis versos. (ROUSSEAU, 2007c, p. 153).
Final: o encontro entre o ato de caminhar e a educação
Para finalizar este artigo, expor-se-ão duas
breves considerações. Por um lado, será realizado
um exercício histórico com a finalidade de identificar diferentes experiências educativas que têm
importantes semelhanças em relação à forma de
transitar de Rousseau, e, por outro, será sugerida a
possibilidade de estabelecer um território comum
tanto para as experiências educacionais, como para
as ações pedestres.
Primeira consideração. É importante destacar
que L’Émile ou de l’éducation é o sinal de saída à
pedagogia moderna e, ao mesmo tempo, a apresentação de um método que tem por objetivo chegar
à pureza de Emílio a partir da supressão de toda a
maldade acumulada pela cultura artificiosa e a desigualdade humana. Por meio da narração da trajetória vital de um indivíduo totalmente desvinculado
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013
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O ato de caminhar e a educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau
de sua história, família e sociedade14, Rousseau tem
a pretensão de reconciliar o homem com a natureza
(Retournons à la nature!); promover um otimismo
antropológico (o homem é bom por natureza e é a
civilização que o corrompe) frente a um pessimismo social e histórico; exaltar o exercício físico e o
contato com a natureza (o gosto pelo plenairismo)
e, além disso, construir uma pedagogia vivida e
espontânea para que a criança possa experimentar
por ela mesma e não por meio de outras pessoas
ou de livros (individualismo).
Tal concepção naturalista da educação, que, sem
dúvida, é completamente moderna e, mais ainda,
espiritualista, teve muito boa aceitação – com lógicas restrições (o papel da sociedade e da cultura)
– entre os denominados pedagogos do romantismo
(Pestalozzi ou Fröebel) e, posteriormente, entre os
principais representantes do movimento renovador
da Escola Nova (Montessori, Ferrière, Decroly
ou Dewey, entre outros). Podem comprová-la as
diferentes práticas educativas que desenvolveram
na natureza (colônias escolares, escoteirismo, banhos de mar, alpinismo, excursionismo etc.) sob a
influência do naturalismo pedagógico romântico do
final do século XIX e início do século XX. Dito de
outra maneira, foi a institucionalização do retorno
à natureza a partir de modelos pedagógicos lúdicos
e pedestres.
Vistas assim as coisas, fica claro que o livro
pedagógico romanceado citado anteriormente colocou sobre a mesa dois aspectos fundamentais: a
importância do meio e do corpo (em movimento)
do educando (a educação física) nos processos
de formação. É por esse motivo que, justo neste
momento, vale a pena lembrar a velha discussão
entre o nomadismo e o sedentarismo pedagógico
14 Vale recordar que esse livro está dividido em cinco partes e cada
uma delas corresponde a um estágio evolutivo concreto do personagem (ROUSSEAU, 2003). A primeira parte, que abarca a vida de
Emílio desde o seu nascimento até os dois anos de edade, aborda
a experiência sensível do mundo, as três educações e a missão nutricional e educativa das mães. Depois é o momento que começa a
configurar a sensibilidade, a desenvolver-se corporalmente e, além
disso, leva à prática a educação negativa. Na terceira parte, vê-se um
Emílio adolescente (12 a 15 anos), quando inicia a culturalização
(introdução da educação intelectual e leitura de seu primeiro livro,
Robinson Crusoe). Mais adiante (dos 15 anos ao casamento), narra
a necessidade de iniciar a educação sexual, moral, social e religiosa.
Por último, descreve a entrada de Emílio na sociedade, acompanhado
de sua esposa, Sofia. Aliás, antes de se casar, Emílio fez uma viagem
de dois anos pelo continente europeu com a intenção de conhecer
povos, governos e costumes.
102
surgida na Europa no início do século passado em
razão do estilo de vida urbano.15
Segunda consideração. É fundamental dizer que
este artigo, que teve a pretensão de apresentar a vertente mais pedestre do pedagogo da Modernidade,
também quer evidenciar que o ato de caminhar pode
ser entendido como uma interessante práxis educativa, dado que nela mesma coincidem o método
e a finalidade e, nesse sentido, o destino pelo qual
se começa uma travessia representa uma ocasião
perfeita para iniciar e viver um processo formativo.
Não obstante, vale a pena lembrar que, hoje
em dia, o fato de passear parece haver ficado subordinado a outros discursos, como o médico (um
exercício a mais para perder peso, reafirmar os
músculos, elevar a frequência cardíaca ou melhorar
a tolerância à glicose); o do crescimento pessoal
(dar um passo atrás do outro se converte em um tipo
de terapia para aprender a ter controle da própria
vida, reduzir ansiedades, melhorar o estado depressivo ou a fadiga emocional); ou o das atividades
de lazer (caminhar ou trilhas), que gradativamente
se colocaram como muito mais relevantes que o
própio ato em questão.
Por tudo isso, pode-se considerar que um dos
legados da vida e da obra de Rousseau também poderia ser a possibilidade de repensar as caminhadas
como uma atividade formativa de primeira ordem.
15Trata-se de uma época em que a excessiva concentração de população nas cidades estava gerando precárias condições de vida (falta
de consciência higiênica; alimentação pobre; déficit de salubridade
nas ruas e casas; falta de assistência médica; pobreza) e, consequentemente, uma alta taxa de mortalidade.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013
Jordi Garcia Farrero
REFERÊNCIAS
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FERRER, Anacleto. Rousseau: música y lenguaje. Valencia: Universidad de Valencia, 2010.
HAZLITT, William; STEVENSON, Robert. El arte de caminar. México, DF: UNAM, 2003.
LÓPEZ HERNÁNDEZ, José. La ley del corazón: un estudio sobre J.-J. Rousseau. Murcia: Universidad de Murcia,
1989.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre las ciencias y las artes. Buenos Aires: Aguilar Argentina SA de
Ediciones, 1974.
______. Emilio, o de la educación. Madrid: Alainza Editorial, 2003.
______. Discurso sobre las ciencias y las artes. Discurso sobre el origen y fundamento de la desigualdad entre
los hombres. Buenos Aires: Losada, 2006.
______. Cartas sobre botánica. Oviedo: KRK Ediciones, 2007a.
______. Julia, o la nueva Eloísa. Madrid: Ediciones Akal SA, 2007b.
______. Las confesiones. Madrid: Alianza Editorial, 2007c.
______. Las ensoñaciones del paseante solitario. Madrid: Alianza Editorial, 2008.
______. Carta a d’Alembert sobre los espectáculos. Madrid: Editorial Tecnos, 2009.
TODOROV, Tzvetan. Frágil felicidad. Un ensayo sobre Rousseau. Barcelona: Gedisa, 1987.
Recebido em 06.11.2012
Aprovado em 23.01.2013
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013
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Jorge Miranda de Almeida
A EDUCAÇÃO COMO ÉTICA E A ÉTICA COMO EDUCAÇÃO EM
KIERKEGAARD E PAULO FREIRE
Jorge Miranda de Almeida*
RESUMO
Kierkegaard e Paulo Freire se posicionam criticamente em relação às concepções
vigentes, nas respectivas épocas, da educação e da ética. Elas estão a serviço do poder
e do ajustamento social; mas, dialeticamente, será a partir da educação e da ética que
os homens em processo de inconclusividade e de inacabamento poderão construir
estratégias para superarem as barreiras que impedem a construção da dignidade
humana e da justiça social. Este artigo estabelece um confronto e um encontro entre
os dois pensadores do profundo do humano. Eles não se conheceram, mas dialogam
por meio dos discípulos kierkegaardianos como Sartre, Jaspers, Heidegger, MerleauPonty, Gabriel Marcel, entre outros que são muito familiares a Freire, e por causa
dessa comunicação indireta as principais categorias freireanas como subjetividade,
intersubjetividade, dialogicidade, alteridade, amorosidade, educação, ética, homem,
inacabamento, inconclusividade, responsabilidade, transcendência e dialética, têm
uma interface e uma proximidade que permite, mantendo as diferenças, um encontro
fecundo e frutífero para discutir novas possibilidades e potencialidades para a ética e
para a educação. O objetivo central deste artigo é refletir, a partir dessas categorias,
se e em que medida é possível a educação como ética e a ética como educação. E para
a realização desse escopo utilizou-se a metodologia bibliográfica e analítica.
Palavras-chave: Kierkegaard. Paulo Freire. Segunda ética. Educação.
ABSTRACT
EDUCATION AS ETHICS AND ETHICS AS EDUCATION IN KIERKEGAARD
AND PAULO FREIRE
Kierkegaard and Paulo Freire stand critically on the current concepts of education and
ethics in the respective periods. They are at the service of power and social adjustment;
but dialectically it will be from education and ethics that men in the process of
inconclusiveness and unfinishedness may build strategies to overcome obstacles that
hinder the construction of human dignity and social justice. This article establishes a
confrontation and a meeting between the two thinkers of the depth of human nature.
They have not met, but dialogue through their Kierkegaardian disciples as Sartre,
Jaspers, Heidegger, Merleau-Ponty, Gabriel Marcel, and others that are very familiar
to Freire. And because of this indirect communication, the main Freirian characteristics
as subjectivity, intersubjectivity, dialogism, alterity, lovingness, education, ethics,
man, incompleteness, inconclusiveness, responsibility, transcendence, dialectic
* Professor titular do Departamento de Filosofia e Ci^ncias Humanas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (DFCH-UESB). Professor permanente do programa de Pós-graduação (doutorado e mestrado) em Memória: Linguagem e Sociedade
da UESB. Professor convidado do Programa de Pós-graduação em Linguística da UESB. E-mail: [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
105
A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire
have an interface and a proximity which allows, keeping the differences, a fruitful
and prolific meeting to discuss new possibilities and potentialities for ethics and for
education. The main objective of this paper is to reflect upon these categories and
analyse if and to which extent it is possible education as ethics and ethics as education.
In order to reach our objective, our study was developed through the analytical and
bibliographical methods.
Keywords: Kierkegaard. Paulo Freire. Second ethics. Education.
Introdução
Assumindo a tese de que o ser humano está em
constante construção e por isso mesmo é um ser
inconcluso, ambíguo, de múltiplas possibilidades
que devem ser concretizadas em realidades humanas, a educação é fundamental para que ele possa
dominar suas próprias paixões, latências, tendências, inclinações. É importante que a educação
do homem seja edificada na ética, pois esse é o
remédio para a crise da ética e para a crise da própria educação. Pois a ética vigente em nosso país
é uma ética em estado de coma terminal, pois ela
tem se mantido omissa e silenciosa em relação aos
abusos praticados pelos que estão no poder político
e no poder econômico. A ética tem sido apenas um
jogo de palavras, de retóricas argumentativas para
legitimar o mesmo poder que oprime, que aliena,
que exclui, que mata. Afinal, a ética vigente no
Brasil, não é uma concepção de ética a serviço do
poder? Ela corrobora a tese de Levinas (2000) de
que a ética aliada ao poder é uma ética da tirania,
do totalitarismo e da injustiça.
Este artigo oferece possibilidades de pensar
outra variável para a educação por meio do encontro entre Kierkegaard e Paulo Freire. Encontro imaginário, pois os dois não se conheceram
e o pensador brasileiro não teve acesso direto à
produção do filósofo dinamarquês, contudo sofreu muita influência deste pensador mediante a
leitura e o diálogo que manteve com discípulos e
interlocutores kierkegaardianos de primeira mão,
como Sartre, Ricoeur, Jaspers, Lukacs, Berdiaeff,
Heidegger, Merleau-Ponty, Marcel, Amoroso Lima,
entre outros. A riqueza, originalidade e pertinência
deste estudo residem no primeiro ensaio brasileiro
com o objetivo de estabelecer uma conexão entre
dois pensadores que fizeram da ética e da educação
o eixo do respectivo pensar e de intervir em suas
106
respectivas sociedades. A partir deles é possível
afirmar a indissociabilidade entre educação e ética, pois a primeira só tem validade se muito mais
do que passar informações e conteúdos construir
caráter, e a segunda só se concretiza no interior de
práticas educativas, que se concretizam no interior
da ética e do testemunho ético do existente no movimento realizado para tornar-se humano.
O encontro entre Paulo Freire e Kierkegaard
pode parecer aos marxistas dogmáticos e aos
kierkegaardianos religiosos uma insensatez. Se
Paulo Freire utiliza do método do materialismo
histórico dialético, enquanto a preocupação de
Kierkegaard é com a singularidade do indivíduo e
utiliza do método da pseudonímia e da comunicação indireta, o que eles poderiam ter em comum?
Se o esforço kierkegaardiano é retirar o indivíduo
da massa e educar o singular, e se a tarefa de Freire
é combater na esfera do social, como conciliar, sem
forçar a barra, Freire e Kierkegaard? O esforço
dos dois consiste em impedir que a subjetividade
seja subjetivada em processos de objetivação e de
homogeneização.
Este estudo apresenta a relação entre a ética e
a educação no interior da crise que ambas vivem.
A presente reflexão desdobra-se em três partes. A
primeira é intitulada A relação entre educação e
ética em Kierkegaard e Paulo Freire, a segunda
denominamos O sentido e a exigência da ética em
Paulo Freire e Kierkegaard e na terceira discutiremos A alteridade ética e a subjetividade em Kierkegaard e Paulo Freire. O ponto de aproximação a
partir da relação entre ética e subjetividade e do
desdobramento dessa relação numa educação ética
está alicerçado na tese de Freire (2000), exposta
em Pedagogia da Indignação, quando afirma que
uma das tarefas primordiais da pedagogia crítica
radical libertadora é trabalhar efetiva e criticamente
a legitimidade do sonho ético-político da superação
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
Jorge Miranda de Almeida
da realidade injusta e a promoção da dignidade.
Educação é, então, um ato de liberdade humana,
ou melhor, como o próprio título da obra indica:
Educação como Prática da Liberdade. Educar é
muito mais do que ensinar a ler e a escrever, educar
é construir caráter, é construir personalidades fortes
e edificadas, como concebe Kierkegaard, para que
se possa vivenciar responsavelmente o desafio e as
exigências inerentes à liberdade. Esta é também a
tese de Trombetta, desenvolvida no verbete alteridade para o Dicionário Paulo Freire, recheada de
uma perspectiva eminentemente kierkegaardiana
ao demonstrar que
[...] a educação é, em sua essência, um processo
ético antes de ser consciência crítica, engajamento
político e ação transformadora. Ou a educação é
ética e respeitosa com a alteridade do outro em sua
singularidade, ou não é educação. É este respeito à
alteridade do outro a exigência ética de todo o pensamento de Freire. Toda a eticidade da existência
humana se dá no reconhecimento da alteridade, da
sua dignidade de pessoa e na luta por justiça social.
Sem este respeito e reconhecimento do outro não
podemos entrar no diálogo libertador. Seguindo o
legado ético-pedagógico de Freire, podemos concluir
dizendo que o resgate da dignidade do outro, da sua
alteridade é condição primeira para a edificação de
um projeto mundo/sociedade ‘em que seja menos
difícil de amar’. (TROMBETTA apud REDIN;
STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 35).
Em Kierkegaard, a educação é a tarefa de transformação do eu (indivíduo) em Si mesmo (singularidade). A educação é edificante porque deve ser
construída na interioridade, para que o singular
possa elaborar a própria personalidade e atingir
a maturidade necessária para se doar ao próximo
na condição de excesso ou transbordamento de si.
Permanecer em si mesmo é um ato de alienação
e desespero. Ir ao encontro do outro é a condição
para tornar-se cada vez mais um si mesmo como o
outro e com o outro. Por isso, é na subjetividade que
ocorre a mais difícil ação que o homem é capaz de
empreender: decidir, escolher sobre que ou quais
ações realizar, porque é na ação que o homem concretiza o bem e/ou o mal; é na ação que o homem
constrói a sua humanidade ou a sua inumanidade,
logo, é exatamente na decisão que ele opta pelo que
é mais humano ou o que é mais inumano.
1. A relação entre educação e ética em
Kierkegaard e Paulo Freire
Considerando a tese de que nada do que é humano é natural, é preciso admitir que a humanidade
do humano é fruto de um processo sócio-histórico-cultural e que implica em cada ação o deixar de
ser um eu-multidão para tornar-se um si-mesmo
relacional, por isto a tese exposta por Paulo Freire
em Educação e Mudança, que não é possível fazer
uma reflexão sobre educação sem refletir sobre o
próprio homem em virtude do seu inacabamento
ou inconclusão. Isso significa ter clareza que o
homem não é um ser determinado, mas um ser de
liberdade, portanto sua característica fundamental
não é a repetição como nos animais, mas o esforço
em conquistar e concretizar a liberdade. Esforço
que se reduplica porque não é possível entender a
liberdade deslocada da responsabilidade. A premissa, nesse sentido, é que a responsabilidade precede
a liberdade, por isso os homens se constroem em
comunhão, em relação, em doação de um para com
o outro, do si-mesmo como um outro conforme
desenvolve, por exemplo, Ricouer (1991) em O Si-mesmo como um Outro, Levinas (2008) em Outro
Modo de Ser ou Além da Essência e Kierkegaard
(2005) em As Obras do Amor. Edificação que
requer aprendizado, logo, uma concepção pedagógica que seja capaz de educar o homem em sua
abertura e ambiguidade, pois se não fosse ambíguo,
não seria homem livre e sim um ser predestinado
e determinado.
Considerando que o ser humano está em constante devir, é fundamental um processo pedagógico-educativo que possa contribuir significativamente
para a construção do caráter e da personalidade
da pessoa na condição de ser histórico-cultural no
interior da dialética da subjetividade (o si mesmo)
e da objetividade do meio (comunidade, escola,
trabalho, família etc.). As obras Pedagogia do
Oprimido e Pedagogia da Esperança demonstram a
intrínseca relação entre subjetividade e objetividade
que culminaria na intersubjetividade. Kierkegaard,
por sua vez, nas obras Post-scriptum Conclusivo
não Científico, em As Obras do Amor, no Conceito
de Angústia, na Alternativa e na Doença Mortal
utiliza de vários cenários e as várias perspectivas
para apresentar a subjetividade existencial, porque
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
107
A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire
compreende que ela não pode por coerência interna,
ser demonstrada.
Embora Freire (2005, p. 45), em Pedagogia
do Oprimido, afirme “que a intersubjetividade se
apresenta como pedagogia do Homem”, ela não
consegue atingir a educação ética como propõe
Kierkegaard na radicalização da assimetria. Entretanto, o diálogo sobre a subjetividade entre os
dois é fundamental porque assim como o pensador
dinamarquês, Freire também tem clareza que o
humano é subjetividade ética, conforme demonstra
Trombetta (apud REDIN; STRECK; ZITKOSKI,
2010, p. 34), no verbete alteridade no Dicionário
Paulo Freire: “o humano é subjetividade ética em
comunhão, diálogo com o outro; é um eu capaz de
amar o outro e, a partir desse amor, lutar por justiça
que representa a culminância da consciência ética.”
O exercício do diálogo é o primeiro passo para
a superação da dialética do senhor e do escravo. O
testemunho do mestre é a ocasião para que o discípulo possa construir o próprio saber e se posicionar
no interior da cultura em que existe. É por meio do
diálogo e existindo dialogicamente que, corroborando com Raúl Fernet-Betancourt, será decidido
“se somos capazes, ou não, de caminhar em direção
de uma cultura de convivência, cultivada como
‘bem universal’, porque nela todos e todas escrevem a universalidade elucidando a relacionalidade
das diferenças, construtoras de nossa diversidade”
(FERNET-BETANCOURT, 2010, p. 14). É urgente desenvolver o diálogo como condição ética
e existencial porque se trata da própria existência
do homem e do planeta, pois como existir em um
mundo plurocêntrico, com tantas diferenças que
devem ser mantidas como diferenças para não cair
no domínio do mesmo? Como dialogar com o outro
sem normatizá-lo como idêntico ao si mesmo? Não
foi essa a trajetória da civilização ocidental? Não
tem sido essa a postura da racionalidade instrumental filosófica e pedagógica?
Assumindo a concepção da pessoa humana
como um ser de abertura e de múltiplas possibilidades, Paulo Freire (1921-1977) e Soren Kierkegaard (1813-1855) fizeram da ética, da educação,
da política, do trabalho, da cultura, da dialogicidade, do ser em relação, da dignidade os temas
fundamentais dos seus escritos. Nesse sentido, a
verdadeira tarefa da educação ético-existencial é
108
libertar a pessoa humana; libertá-la da opressão
por meio do processo de construção de consciência
crítica-reflexiva e engajada; libertá-la da educação
ingênua e comprometida com o grande capital;
libertá-la do assistencialismo demagógico e cínico
de uma concepção de educação que mantém os
discentes acomodados, resignados e passivos diante
do clamor e da urgência de uma profunda transformação estrutural para que a dignidade humana se
concretize como um direito de cada pessoa humana
e não como um privilégio de classe como ocorre
hoje no Brasil. O que é significativo no processo
da educação ético-existencial é a intrínseca relação entre o ato de construir a si mesmo ao mesmo
tempo em que as ações são dirigidas para construir
o próximo, pois em verdade, segundo Freire, “não
há um eu que se constitua sem um não-eu. Por sua
vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na
constituição do eu constituído” (FREIRE, 2005, p.
81, grifo do autor). Kierkegaard concebe o homem
como uma síntese relacional e inconclusa, e a definição apresentada em A Doença para a Morte para
a condição humana oferece ao leitor a chave para
entender o profundo do si mesmo, como é possível
constatar em sua resposta à pergunta kantiana sobre
o que é o homem. Ele diz:
O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu.
Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não
se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas
consigo própria. Mais e melhor do que na relação
propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa
relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria,
o conhecimento que ela tem de si própria depois de
estabelecida. O homem é uma síntese de infinito e
de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de
necessidade, é, em suma, uma síntese. (KIERKEGAARD, 1979, p. 318).
E a relação que se desdobra sobre si mesmo é
a relação com o próximo, é o que produz a relação
dialógica, eminentemente portadora de sentido,
significado e existência, porque verdadeiramente
o eu não existe sem o tu, o tu é o constitutivo
do verdadeiro eu. O terceiro capítulo da obra
Pedagogia do Oprimido, intitulado A dialogicidade – essência da educação como prática da
liberdade, demonstra o que entendo por relação
dialógica e a sua importância no âmbito da edu-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
Jorge Miranda de Almeida
cação. Relação dialógica ou dialogicidade quer
dizer uma relação que se reduplica, uma relação
aberta que inclui enquanto mantém a separação
(o um não se anula ou sobressai ao outro). Não
se trata de reduzir a relação a uma subjetividade
egoísta e desencarnada, mas à receptividade e à
construção coletiva do conhecimento, que deve
ser vital para a própria qualidade do existir, do
existente e da existência.
A dialética da relação entre eu e tu é abundantemente tematizada em Kierkegaard (2010, p. 30),
como explicitamente afirma em O Conceito de
Angústia:
[...] o homem é um indivíduo e, como tal, é ao mesmo
tempo ele próprio e todo o gênero humano, de sorte
que o gênero participa todo inteiro do indivíduo,
assim como o indivíduo participa de todo o gênero
humano. [...] em qualquer momento, portanto, o
indivíduo é ele próprio e o gênero humano.
O que se fundamenta na perspectiva da educação ético-existencial é a necessidade do indivíduo
singular assumir a tarefa ética que ele coloca a si
mesmo, isto é, a de transformar a si mesmo em um
indivíduo universal. “Somente o indivíduo ético
exprime seriamente a si mesmo e tem uma familiaridade (intimidade) que é a sinceridade com si
mesmo” (KIERKEGAARD, 2001a, p. 155). Ora,
transformar a si mesmo implica no processo de
transformação do próximo, isto porque o ser humano só existe em relação. A existência do eu-singular
enquanto fruto de relação, como ensina Kierkegaard, precisa do outro para constituir o si mesmo,
pois o outro enquanto tu concreto é a condição da
constituição do si mesmo. Seguindo o raciocínio
desenvolvido por Ricouer (1991) em O Si-mesmo
como um Outro e invertendo a tese de Hegel de
que não há diverso de si sem um si, Levinas (apud
RICOUER, 1991, p. 219) afirma que “não há si
sem um outro que o convoque a responsabilidade”. Essa inversão é de um alcance extraordinário
porque estabelece a inter-subjetividade (aqui é
necessário manter o hífen para destacar a relação e
a separação da subjetividade que não se identifica
com a intersubjetividade) como a condição, o lugar
situado da construção da relação de libertação que
se dá a partir de lutas em que o indivíduo singular
adere a partir da própria escolha e não porque é um
componente do motor da história. A intersubjetividade é concebida neste estudo a partir da definição
de Antonio Sidekum na obra Interpelação Ética,
quando afirma que “a intersubjetividade implica a
abertura dialógica e, se considerada como tal, é o
reconhecimento incondicional da subjetividade do
outro” (SIDEKUM, 2003, p. 238).
A subjetividade radical retira o filósofo, o pedagogo ou o pensador de sua acomodação e indiferença depositadas na objetividade da especulação
pura, pois ele
[...] desenvolverá sua filosofia não mais numa pura
abstração especulativa, mas na busca da fundamentação originária de seu pensar no meio do povo sofredor a caminho da libertação. Sua ética será filosofia
primeira, não mais sustentada por uma dialética
abstrata neo-hegeliana. (SIDEKUM, 2003, p. 238).
Na perspectiva da educação, Freire (2005, p. 58)
está correto quando afirma que “ninguém liberta
ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens
se libertam em comunhão”. O que se entende
por libertar em comunhão? É a libertação que é
construída a partir da ação dialógica que é capaz
de construir os homens enquanto subjetividade
dotada de vontade, consciência, responsabilidade,
singularidade e liberdade. Existe uma profunda
relação entre tornar-se um si mesmo e sentir-se
responsável pelo próximo.
A obra freiriana Educação como Prática da
Liberdade é um livro de Filosofia da Existência da
primeira à última linha. A temática perpassa pelo
diálogo com Jaspers, Sartre, Marcel, que são discípulos de primeira grandeza do mestre dinamarquês,
que ironicamente não queria ter discípulos, apenas
leitor (sempre no singular), capaz de construir um
diálogo edificante, isto é, um diálogo ético. Freire
insiste que o “homem existe — existere — no
tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora.
Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge
dele. Banha-se nele. Temporaliza-se” (FREIRE,
1967, p. 41). A temporalidade é a condição humana. É no tempo que o homem humaniza-se ou
não, por isso, retomando a expressão que Freire
(1967) utiliza de Gabriel Marcel, é aí que o homem
é situado e datado. Sendo condenado a existir, ele
tem a possibilidade de escolher tornar-se um ser
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
109
A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire
vegetativo-sensitivo ou um ser psicossensorial ou
finalmente um homem.
Humanizar-se implica relacionar-se. Relacionar
significa tornar-se responsável pelo próximo no
interior dos atos limites ou situações-limites, como
Freire (2005) desenvolve em Pedagogia do Oprimido. O tornar-se do indivíduo singular em situação
é uma das categorias existenciais eminentemente
kierkegaardianas. Freire (2005, p. 105) afirma que
o próprio dos homens é estar, “como consciência de
si e do mundo, em relação de enfrentamento com
sua realidade em que, historicamente, se dão ‘as
situações-limites’”. O que Kierkegaard e Freire entendem por situações-limites? Freire embasa a sua
concepção das situações-limites em Álvaro Vieira
Pinto, que significa a margem real onde começam
todas as possibilidades. Para Kierkegaard, o que
é doado ao ser humano é exatamente a possibilidade de deixar de ser um eu para tornar-se um si
mesmo; de outra maneira, é utilizar da liberdade
para concretizar a possibilidade, transformando-a
em realidade.
A proposta de uma educação decente, uma educação de-gente, uma educação problematizadora,
libertadora e dialógica é uma alternativa para propiciar como condição, nunca imposição ou modelo, a
superação da necrofilia pela biofilia, termos herdados por Freire de Erich Fromm, sobretudo da obra
O Coração do Homem, amplamente dialogado em
Pedagogia do Oprimido. E qual é, então, a proposta
da educação decente? Uma educação que consiga
superar a dicotomia subjetividade e objetividade
e consiga constituir e construir uma pessoa humana comprometida consigo mesma, com o meio
ambiente, com a comunidade, com a dignidade
humana que se materializa no mundo do trabalho,
da arte, da socialização dos bens, do conhecimento
autêntico, da valorização e da partilha.
É a própria situação ou o estar-em-situação no
mundo e com o mundo que faz emergir o rosto do
próximo e se concretiza na urgência em não perder
tempo em assumir a responsabilidade diante da
visitação, porque, no nosso tempo, o que prevalece
não é o rosto do próximo, “[...] mas um aglomerado
tumultuado de massa que reflete o egoísmo universal e que é como um pântano” (KIERKEGAARD,
1994, p. 20). Freire também critica a época atual,
porque na estratégia utilizada pela ordem domi110
nante em massificar os homens padronizando-os,
ela acaba por desenraizá-los e destemporalizá-los,
tornando-os seres dóceis e ajustáveis ao sistema.
2 O sentido e a exigência da ética em
Paulo Freire e Kierkegaard
A educação brasileira, como é trabalhada nas
universidades e faculdades de educação, com
raríssimas exceções, está preocupada com currículos, conteúdos e estatísticas. Ela não discute as
questões da existência e da vida. Prova contundente
dessa afirmação é o fato de caminharmos para uma
barbárie da desigualdade social que culmina na
morte em vida, na morte silenciosa dos milhares
de adolescentes e jovens que, em sua invisibilidade
material e econômica, passam despercebidos dos
congressos educacionais. Freire (2005, p. 197) já
advertia que “não há vida sem morte, como não
há morte sem vida, mas há também uma ‘morte
em vida’. E a ‘morte em vida’ é exatamente a vida
proibida de ser vida”. Essa é uma questão que cada
educador brasileiro precisa responder a si e para
si mesmo. Que concepção de educação legitima
o silenciamento dos inocentes? Que concepção
de educação é capaz de comprar a consciência do
educador em nome de uma escola de referência com
um percentual a mais no salário? Que concepção
de educação perpetua e legitima os campos de concentração nas periferias, nas palafitas, nos cortiços,
nas comunidades carentes? Que tipo de educação
cria e mantém uma cultura que legitima a barbárie?
Diante desse quadro, ousamos afirmar que a
educação encontra-se diante de um antagonismo
sem precedentes em toda a trajetória humana. István Mészáros, em sua obra A educação para Além
do Capital, questiona como justificar as gritantes
desigualdades sociais com base nos dados das
Nações Unidas no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, explicitados por Minqi Li (apud
Mészáros, 2005, p. 74), onde afirma:
O 1% mais rico do mundo aufere tanta renda quanto
os 57% mais pobres. A proporção, no que se refere
aos rendimentos, entre os 20% mais ricos e os 20%
mais pobres no mundo aumentou de 30 para 1 em
1960, para 60 para 1 em 1990 e 74 para 1 em 1999,
e estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em
1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas estavam subnutri-
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dos, 2,4 bilhões não tinham acesso a nenhuma forma
aprimorada de serviço de saneamento, e uma em cada
seis crianças em idade de frequentar a escola primária
não estavam na escola. Estima-se que 50% da força
de trabalho não-agrícola (sic) esteja desempregada
ou subempregada.
Esses dados são suficientes para demonstrar
a crise que a humanidade atravessa. Mesmo que
não fossem bilhões, mas apenas uma única pessoa,
esse fator já serviria para denunciar a penúria da
educação e a crise que assola a humanidade. Por
isso, considerando a tese de Kant de que o homem
é a única criatura que precisa ser educada, a crise
da educação é a crise do próprio homem e existe
um entrelaçamento vital entre educação e humanização. Só somos porque estamos sendo. Estar
sendo é a condição, entre nós, para ser, dirá Freire
em Pedagogia da Autonomia. Dessa forma, a crise
de sentido, o vazio existencial, a indiferença diante
de questões fundamentais da existência humana,
e que apropriadamente Hannah Arendt definiu em
seus escritos como a banalidade do mal, é a mesma
crise existente no interior da dicotomia das teorias
e as práticas educacionais atreladas à estrutura
burocrática e dominante do estado neoliberal e
a necessidade de uma educação comprometida,
engajada e ética.
A estratégia coerente de combater estruturalmente essas questões é a ética. O filósofo e educador Paulo Freire (2008, p. 33), em Pedagogia da
Autonomia, desenvolve as relações entre educação
e ética, afirmando que “não é possível pensar os
seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais
fora dela. Estar longe, ou pior, fora da ética, entre
nós, mulheres e homens, é uma transgressão”. E
ainda explicita a relação ética e educação como
condição fundamental do querer ser mais, do
tornar-se humano mediante uma prática “fundamentalmente justa e ética contra a exploração dos
homens e das mulheres e em favor de sua vocação
de querer ser mais” (FREIRE, 2001, p. 23). No
interior dessa perspectiva, esta obra desenvolve
uma análise das relações entre Kierkegaard e
Paulo Freire na construção de uma perspectiva de
educação que seja embasada na ética da alteridade
e, reduplicativamente, seja a condição para que a
educação possa cumprir sua tarefa de construir
a singularidade com caráter, com personalidade
ética, possibilitando, dessa forma, relações mais
verdadeiras, mais justas e mais humanas.
Nesse contexto, é possível corroborar a tese da
inseparabilidade entre educação e ética, e com base
nesta constatação pretende-se pensar a educação
à luz das afinidades entre Kierkegaard e Paulo
Freire e como estes pensadores compreendiam
a inseparável relação entre a educação e a ética,
ou a educação como ética, ou ainda a ética como
educação. Freire não leu o filósofo dinamarquês em
primeira mão. Todavia, por coincidência ou não,
muitas das categorias fundamentais de Kierkegaard são reapropriadas por Freire como a própria
necessidade de uma crítica efetiva e madura da
ética à ética. José Andrade de Azevedo, no artigo
Fundamentos Filosóficos da Pedagogia de Paulo
Freire, é um dos poucos estudiosos a estabelecer
a influência que Freire recebeu de Kierkegaard ao
afirmar no referido ensaio:
Em seu pensamento também se pode encontrar a
presença da filosofia existencialista, pois essa aparece nas noções sobre a existência e sobre o caráter
histórico do homem. Assim, vemos Paulo Freire se
aproximar de Kierkegaard, tendo a mesma preocupação do filósofo dinamarquês, isto é, preocupação
com uma filosofia da existência na qual o homem é
realçado no seu existir concreto: o homem é um ser
concreto, diz Freire, que existe no mundo e com o
mundo. (AZEVEDO, 2010, p. 38).
Do estudo desses dois pensadores constata-se
que não é possível construir a humanidade do humano se não se construir uma educação ética, e a
ética não será concretizada se não for mediante uma
prática educativa fortemente embasada na ética.
Por isso, é retomada a sentença da ética como a
instância e a condição que dão sentido ao homem, à
relação e ao mundo. Em Pedagogia da Autonomia,
Freire (1996) estabelece que mais do que um ser
no mundo, o ser humano tornou-se uma Presença
no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um
“não-eu”, se reconhece como “si própria”, por isso:
[...] presença que se pensa si mesma, que se sabe
presença, que intervém, que transforma, que fala
do que faz mas também do que sonha, que constata,
comprar, avalia, valora, que decide, que rompe. E é
no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da
ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
111
A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire
ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna
inevitável e sua transgressão possível é um desvalor,
jamais uma virtude. (FREIRE, 1996, p. 18).
Educar é, em Freire e Kierkegaard, fundamentalmente, um processo de humanizar o homem,
pois ele precisa edificar ou por si mesmo, ou por
um outro (o estado, a igreja, o partido político, a
mídia.) o seu estar sendo no mundo. Não sendo
possível uma educação neutra ou imparcial ou ainda objetiva, como o educador se posiciona diante
da difícil tarefa de ser ao mesmo tempo mestre
e aprendiz? Tornar-se verdadeiramente mestre,
significa adquirir a capacidade de deixar seu saber
para aprender com o discípulo, a partir do olhar do
discípulo, como ensina Kierkegaard (1995, p. 45):
“entre o homem e homem não há relação mais alta
que esta: o discípulo é a ocasião para que o mestre
se compreenda a si mesmo, o mestre a ocasião para
que o discípulo compreenda a si mesmo.”
Na obra Migalhas Filosóficas, o processo de
educação se constrói na relação entre mestre e
aprendiz. O mestre nada mais é que a ocasião para
o aprendiz. “Aquele, porém, que dá ao aprendiz não
só a verdade, mas também junto com ele a condição, não é um mestre” (KIERKEGAARD, 1995,
p. 34). Tornar-se mestre, em Kierkegaard e Paulo
Freire, é problematizar a educação no interior dos
conflitos, dos contrastes e das contradições políticas, econômicas, culturais, sociais, simbólicas; é
participar ativamente com a maturidade necessária
para não direcionar o aprendiz, porque, nesse caso,
estaria reduplicando a si mesmo e reproduzindo a
si mesmo no outro.
Existir em razão dos outros requer a abnegação
como altruísmo radical em direção à forma mais
concreta de existência: a gratuidade do amor.
Paulo Freire, em Educação como Prática da
Liberdade, também assume a exigência do amor
como condição fundamental para a educação que
se pretende ser capaz de contribuir para construir
gente, pessoa insubstituível em sua unicidade e
singularidade. Ele afirma que “a educação é um
ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não
pode temer o debate. A análise da realidade. Não
pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser
uma farsa” (FREIRE, 1967, p. 97). Freire, ainda
na referida obra, relaciona o Amor como fonte da
112
transcendência, exatamente porque como ser finito
e indigente, tem o homem na transcendência, pelo
amor, o seu retorno à sua Fonte, que o liberta.
E em Pedagogia do Oprimido, reforça a tese da
“valentia de amar” (FREIRE, 2005, p. 203) como
compromisso inalienável do amor, porque o amor
não procura o que é seu, como dirá Kierkegaard
em As Obras do Amor, no IV capítulo da segunda
parte, intitulado O amor não procura o que é seu.
A exigência do amor é amar, e amar é sempre
uma ação dirigida para o outro. Está claro que, na
concepção ético-existencial da educação como
ferramenta indispensável à libertação das estruturas que impedem a concretização da dignidade
humana, não estamos pensando no amor como é
explorado de maneira superficial e sensacionalisticamente, como um produto comercial da marca
pedagogia do amor, pedagogia do afeto, pedagogia
da ternura. O amor não se deixa reduzir a práticas
de autoajuda, decididamente isso não é amor; amor
que é amor, transforma, se compromete, não utiliza
de si mesmo como forma de ganhar dinheiro.
Freire (1979, p. 15) é taxativo em Educação e
Mudança: “não há educação sem amor”; quem não
é capaz de amar os seres inacabados não é capaz
de amar. Sentença dura e corajosa, porque parte
do princípio do amor como componente ético-educativo-político da atividade pedagógica. Amar
é demarcar uma posição crítica e clara em relação
ao como se compreende a educação e a pessoa com
quem ela se ocupa, se entrega e se torna responsável. O educador brasileiro não conhecia e por isso
não teve acesso ao conteúdo de As Obras do Amor,
do filósofo dinamarquês, porque possivelmente
ele ampliaria sua compreensão sobre o amor, pois
Freire (1979, p. 15), ao afirmar que “é falso dizer
que o amor não espera retribuições”, não amplia
a dimensão do amor para além de uma dimensão
egoísta do amor. Mesmo tendo desenvolvido em
Pedagogia do Oprimido que o amor é um ato de
coragem, que a luta pela libertação do oprimido
será um ato de amor, que não existe diálogo sem
um verdadeiro gesto de amor ao mundo e aos
homens, Freire (2005) não supera a compreensão
do amor como retribuição, e por isso mesmo não
atinge a dimensão do amor crístico da gratuidade e
do engajamento radical e assimétrico como propõe
Kierkegaard.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
Jorge Miranda de Almeida
Freire, em Ação Cultural como Prática da
Liberdade, ao explicar o amor como um ato de
libertação e não um ato possessivo de amor,
consegue chegar próximo à concepção do amor
crístico, e ao utilizar Camilo Torres como exemplo
dessa generosidade própria do amor, explica que
“Torres se fez guerrilheiro não por desespero, mas
por amor verdadeiro” (FREIRE, 1981, p. 66). Em
Pedagogia da Esperança, citando Che Guerava,
Freire (1992, p. 23) diz que “o verdadeiro revolucionário é animado por fortes sentimentos de amor.
É impossível pensar um revolucionário autêntico
sem essa qualidade”. E ao citar o poeta Thiago de
Melo, afirma que “os interditados, os renegados,
os proibidos de ser não precisam da nossa ‘mornidade’ (FREIRE, 1992, p. 92), mas de nosso calor,
de nossa solidariedade e de nosso amor também,
mas de um amor sem manha, sem cavilações, sem
pieguismo, de um amor armado”. (FREIRE, 1992,
p. 78). O que seria esse amor armado?
O amor armado não utiliza armas, fuzis, bombas
atômicas; usa a ética como condição para ser mais
como vocação ontológica e existencial do homem.
O capítulo do livro Pedagogia do Oprimido, intitulado “O homem como ser inconcluso, consciente de
sua inconclusão, e seu permanente movimento em
busca de ser mais” (FREIRE, 2005), é, no fundo,
um esforço para que o constante deixar de ser para
tornar-se que é designado como vocação do humano seja realizada, é porque deseja ser mais que o
homem pode construir a futuridade revolucionária,
porque é um ser mais que ele se coloca como um
modo de melhor conhecer o que está sendo, para
melhor construir o futuro. “Daí que se identifique
com o movimento permanente em que se acham
inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o
seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo”
(FREIRE, 2005, p. 84).
A originalidade da ética da alteridade, que
denominamos, com base na relação entre Kierkegaard e Paulo Freire, de ético-existencial, é sua
intrínseca relação com a educação que consiste
na radicalização da ética como o sentido do sentido da tarefa do filosofar e do próprio existir.
Isso porque a ética é, então, fundamentalmente,
um processo de edificar o humano para o outro,
e condição de superar a lógica capitalista, e ao
superá-la tende-se a superar a educação técnica e
instrumentalizadora. Explicando melhor: a educação coloca-se como tarefa, desafio e responsabilidade, na condição de sinônimo da própria ética,
não dependendo de sistemas ou regras, mas do
acolhimento e da necessidade de assumi-la como
condição que garante a humanidade do humano. É
essa a tarefa que cabe à educação se realmente quiser superar a dicotomia entre o discurso eloquente
e estatístico sobre os avanços na educação, mas
que, na prática, reforça a tese do aniquilamento
do indivíduo para atender a demanda do mercado
e a realidade efetiva que aponta a precariedade
da educação no Brasil, no Ensino Fundamental,
Médio e Superior, e projeta novas estratégias
e possibilidades para uma educação que esteja
comprometida com a ética, com a decência e com
a dignidade da existência humana.
3 A alteridade ética e a subjetividade
em Kierkegaard e Paulo Freire
O eixo central desta reflexão é sustentar que
subjetividade é capaz de fundamentar a ética da alteridade e, segundo Freire (1996, p. 16), “a melhor
maneira de por ela lutar é vive-la em nossa prática,
é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas
relações com eles”. A polêmica entre primeira ética, que por diversas vezes Freire (1996) denomina
como ética do mercado ou ética menor, e a ética
da alteridade está fundamentalmente estabelecida
na distinção entre objetividade e subjetividade. A
validade da tese que desenvolvo só terá sentido se
houver a compreensão da subjetividade superando
a compreensão no âmbito do ser e da identidade e
relacionando e constituindo a própria ética como
si mesmo (singularidade) relacional. O que quero
afirmar? A exigência da prioridade do ético em
relação ao ontológico.
A subjetividade tem uma evolução histórica,
perpassa a subjetividade ontológica que não é capaz
de compreender o movimento da singularidade e
mantém o intervalo entre o sujeito e o objeto, o pensamento do ser. A subjetividade econômica, como
singularidade localizada no mundo e no relacionamento com o fazer as coisas do mundo, encontra
o seu sentido na realização do trabalho e não mais
fora dele. O trabalho, segundo Marx (2002), quando
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
113
A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire
superadas as contradições da divisão do trabalho,
possui uma tríplice qualidade: de me revelar para
mim mesmo, de revelar minha sociabilidade e de
transformar o mundo, pois “é somente nesse estágio
que a manifestação da atividade individual livre
coincide com a vida material, o que corresponde
à transformação dos indivíduos em indivíduos
completos” (MARX, 2002, p. 84). E, finalmente,
a subjetividade ética da segunda ética, que assume,
na relação concreta com o imediatamente mais
próximo, a condição que permite tornar-se um si
mesmo. Essa compreensão de subjetividade tem
um percurso que vai da abnegação ao sacrifício
radical, do compromisso à substituição.
Paulo Freire, em Pedagogia da Indignação,
corrobora a tese que fora apresentada por Kierkegaard. Ao conceber o homem como ser inconcluso
ele reafirma a necessidade da dialética da subjetividade com a objetividade para construir sentido e
coerência à ação e à realidade. É por isso que Freire
(2000, p. 57, grifo do autor) afirma:
É neste sentido que falo em subjetividade entre os
seres que, inacabados, se tornam capazes de saber-se
inacabados, entre os seres que se fizeram aptos de ir
mais além da determinação reduzida. [...] só na história como possibilidade e não como determinação
se percebe e se vive a subjetividade em sua dialética
relação com a objetividade. E percebendo e vivendo
a história como possibilidade que experimentando
plenamente a capacidade de comparar, de ajuizar,
de escolher, de decidir, de romper. E é assim que
mulheres e homens eticizam o mundo, podendo, por
outro lado, tornar-se transgressores da própria ética.
É preciso tomar cuidado, porque Kierkegaard e
Freire concebem a subjetividade em perspectivas
diferentes, mas com a mesma finalidade: ela deve
tornar-se ética. Freire é influenciado pela concepção
da dialética marxiana e não separa subjetividade da
objetividade. Ele ainda está envolvido pela concepção da dialética hegeliana, na qual os componentes
da tríade (tese, antítese e síntese) estão entrelaçados, e uma é condição para a outra na perspectiva
da superação até atingir o espírito absoluto. Para
o pensador dinamarquês, a dialética é inconclusa
porque se assim não fosse não haveria liberdade e a
ação procederia por necessidade. Por isso, diferente
de Freire, a subjetividade, em Kierkegaard, é identificada como verdade, interioridade, decisão, ética,
114
paixão infinita e amor. Em síntese: “a interioridade
é manter a ética em si mesmo” (KIERKEGAARD,
1993, p. 540).
É satisfatória a distinção da subjetividade
efetuada por Kierkegaard para que, no desdobramento do texto, o leitor possa situar-se quanto à
especificidade desta categoria. Na objetividade e
na universalidade do conceito, o Indivíduo Singular (den Enkelte) é dissolvido, é despersonalizado
de sua estrutura íntima, isto é, não existe uma
responsabilidade pessoal que assuma a tarefa de
ser o portador do sentido e a concretização da
assimetria ética, o que é o mesmo que afirmar que
não existe uma existência autêntica. Um leitor de
Levinas, acostumado apenas com as lentes de Heidegger e Husserl, certamente diria que Kierkegaard
apropriou-se da categoria fundamental da ética
levinasiana: a assimetria. Diria que foi exatamente
o contrário. Em As Obras do Amor está presente
e bem explicada a assimetria como a interioridade
que se sacrifica porque, sendo mais, pode por excesso de si ir ao encontro do próximo sem perder
a si mesmo. Dessa forma,
A interioridade exigida é aqui a abnegação ou renúncia de si, que não se define mais proximamente em
relação com a noção do amor da pessoa amada (do
objeto), mas sim em relação com auxiliar a pessoa
amada a amar a Deus. Daí segue que a relação de
amor, enquanto tal, pode constituir-se no sacrifício
que é exigido. A interioridade do amor deve estar
disposta ao sacrifício, e mais: sem exigir nenhuma
recompensa. (KIERKEGAARD, 2005, p. 156).
Entender e assumir que o fundamento do si
mesmo não se encontra em seu interior, mas na
abertura e na generosidade do existir para o próximo, denominada como subjetividade ética, como
ação capaz de compreender que “o eu nada tem a
significar se ele não se torna o tu”? (KIERKEGAARD, 2005, p. 113). Essa dialética do eu e do tu
é uma abertura significativa para uma educação
comprometida com a dignidade, com o decoro e
com a decência, como Freire costuma se referir a
uma educação ética. Freire (2005, p. 81, grifos do
autor), dialogando com Kierkegaard, também afirma que “na verdade, não há eu que se constitua sem
um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do
eu se constitui na constituição do eu constituído”.
Para os dois pensadores da existência, a alteridade
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013
Jorge Miranda de Almeida
é, então, uma obra de amor, enquanto sinônimo
de relação. É também uma obra de amor porque
o doar-se constitui a condição da ética da alteridade, uma vez que ao estabelecer o compromisso
de construir autenticamente a existência, esta só
se concretiza a partir da relação que se reduplica
com base em si mesmo. A alteridade promove a
igualdade na diferença, sem esta força vital o eu
não existe, porque a alteridade institui a “responsabilidade da dialética da alma” (KIERKEGAARD,
2001b, p. 480) que, por sua vez, é a garantia de
uma consciência comprometida.
Ao insistir na dimensão da subjetividade, o
objetivo é demonstrar a força e consistência da
tese “a subjetividade é ética”, tendo o respaldo
de Levinas (1984, p. 87) para justificar esta tese
quando, na Conferência Existência e Ética, afirma:
“a subjetividade está na responsabilidade (de mim
para com o outro) e somente uma subjetividade
irredutível pode assumir uma responsabilidade.”
Kierkegaard (1993, p. 432) adverte que “a única realidade que existe para um existente é a sua própria
realidade ética, no confronto com outras realidades
ele tem apenas uma relação de conhecimento, mas
o verdadeiro e próprio saber é uma transposição
da realidade na possibilidade”. Nesse contexto, o
que se explicita é a responsabilidade como o ápice
da subjetividade, na condição de eixo nodal da
singularidade humana. Como atribuir estatuto filosófico ou antropológico a uma concepção de ética
sem a pressuposição de uma comunidade ideal do
discurso, sem prescrição, sem fundamentação, sem
normatização, centralizada apenas na radicalidade
da substituição por um outro?
A dialética da subjetividade e objetividade
ocupa um lugar de destaque na obra freireana e
no pensamento de Kierekgaard, porque em seu
interior se reduplicam outras dimensões, como
sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, ética e direito, autonomia e hegemonia, existência e história,
interioridade e exterioridade etc. Contudo, o que
interessa nesse momento é estabelecer, com base
nessa relação, o nexo entre subjetividade e objetividade para produzir a intersubjetividade, que ocorre,
fundamentalmente, no processo dialógico, ou como
é também denominado em Freire, dialogicidade.
A intersubjetividade vem a ser, em Paulo Freire,
denominada como a pedagogia do homem, peda-
gogia capaz de humanizar e instaurar a verdadeira
relação, conforme sustenta Losso (apud REDIN;
STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 231):
Para Freire, é pela linguagem que o sujeito objetiva
sua subjetividade; esta por sua vez, emerge de um
processo de intersubjetividade. Assim, constituir o
eu pelo reconhecimento do tu é o princípio da subjetividade que está sempre condicionado ao princípio
da intersubjetividade.
Considerações finais
A temática da educação e da ética remonta à
própria origem da educação entendida no sentido
maior de paideia, isto é, a fim de educar para a humanização do humano em seu constante estado de
devir, de deixar de ser para tornar-se. É no interior
da educação entendida no sentido ético-existencial
que se realiza a passagem do estado de vida para o
da existência, como afirmam Kierkegaard e Paulo
Freire. Não há meio termo no que diz respeito às
condições da ética neste processo de transformação
do eu egoísta em um eu-relacional.
Considerando que o ser humano não é um ser
de natureza, mas fundamentalmente um ser de
cultura, e que as condições exteriores influenciam
e determinam sua maneira de ser, seu caráter, o
diálogo entre Paulo Freire e Kierkegaard, é uma
contribuição para concretizar uma pedagogia que
realmente esteja centrada na ética e não nos discursos sobre ética. O objetivo foi possibilitar ao
leitor uma chave de interpretação que possibilite
o discernimento necessário à compreensão de que
a educação, especialmente a educação pública no
Brasil no atual estágio em que se encontra, não
pode ser uma educação ética, nem engajada e nem
transformadora, simplesmente pelo pacto que o
Estado estabeleceu com o neoliberalismo.
Essa reflexão representa esforços a fim de oferecer em primeira mão uma reflexão contundente
sobre ética como educação e educação como ética a
partir de Paulo Freire e de Kierkegaard, considerando categorias como subjetividade, alteridade, ética,
existência, existir, existenciação, dialogicidade,
situação existencial, situação-limite, segunda-ética,
intersubjetividade, responsabilidade, engajamento
que se reduplicam a partir da relação entre uma e
outra categoria ou entre a categoria e o existente
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A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire
no ato de existir, possibilitando no diálogo que se
estabelece uma primeira síntese da existência em
Kierkegaard e Paulo Freire: se o indivíduo singular
é uma tarefa que está sempre em devir, ele não pode
ser, em momento algum, reduzido à objetivação
estanque do conceito.
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Recebido em 22.09.2012
Aprovado em 31.01.2013
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Giorgio Borghi
O NÃO SABER SOCRÁTICO E A EDUCAÇÃO:
O DESAFIO DE APRENDER A PENSAR
Giorgio Borghi*
RESUMO
Este artigo analisa o problema do tipo de saber que está em jogo na educação, refletindo
sobre o sentido do não saber socrático que se contrapõe ao saber tradicional da pólis e
ao novo saber dos sofistas. Considerando a relação entre saber e pensar, a nossa atenção
se concentra sobre o diálogo platônico Apologia de Sócrates, onde encontramos
a primeira tematização do conflito entre a visão tradicional e a visão filosófica da
educação. Para uma correta compreensão desse conflito é necessário entender a nova
relação que a filosofia inaugura com a dimensão transcendente da verdade, que se
torna decisiva para uma paideia de tipo socrático, a ponto de ser considerada motivo
suficiente para a condenação à morte do filósofo. O que torna ameaçadora a atitude de
Sócrates em relação à educação é o seu misticismo filosófico monoteísta, que relativiza
tanto o antropomorfismo das verdades consideradas intocáveis pelos religiosos, como
o antropocentrismo absoluto da visão dos sofistas.
Palavras-chave: Saber. Pensar. Educação. Filosofia.
ABSTRACT
THE NOT-KNOWING SOCRATIC AND EDUCATION: THE CHALLENGE
OF LEARNING HOW TO THINK
This article analyzes the problem of the kind of knowledge that is at stake in education.
We reflect on the Socratic meaning of not-knowing opposed to the traditional
knowledge of the polis and to the new knowledge of the Sophists. Considering the
relation between knowing and thinking, our attention focuses on the Platonic dialogue
Apology, in which we find the first thematization of the conflict between the traditional
view and the philosophical view of education. For a correct understanding of this
conflict it is necessary to understand the new relation that philosophy inaugurates
through the transcendent dimension of truth, which becomes decisive for a Socratic
kind of Paideia, that was considered enough to condemn the philosopher to death. What
makes the Socratic attitude threatening in relation to education is his monotheistic
philosophical mysticism, which shows the relativity of both anthropomorphism
of the truths that are considered untouchable by religious men and the absolute
anthropomorphism vision of the Sophists.
Keywords: Knowing. Thinking. Education. Philosophy.
* Doutor em Filosofia pela Universidade de Bologna. Professor Emérito da Faculdade São Bento da Bahia. Endereço para
correspondência: Avenida Oceânica, 2353, Ap. 804, Ondina, Salvador-BA. CEP: 40170-010. [email protected]
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O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar
A questão do saber e do não saber é considerada
central quando se fala em educação, mas, afinal, o
que significa ‘saber’? A filosofia e a prática educativa socrática colocam radicalmente o problema
do tipo de saber que está em jogo na educação e
é justamente este problema que o presente artigo
se propõe analisar. Somos desafiados a repensar
as dimensões do nosso conhecimento e os nossos
paradigmas pedagógicos, recuperando a doutrina
socrática do “conhece-te a ti mesmo e reconhece
quão pouco sabes”; uma doutrina que, conforme
observa Popper (2006, p. 34), “foi banida pela
crença de que a verdade é manifesta e pela nova
confiança do homem em si próprio, exemplificada e
ensinada de diferentes modos por Lutero e Calvino,
Bacon e Descartes”.
A visão moderna de conhecimento nos acostumou a identificar o saber com a certeza. Descartes
teoriza que os estudos devem ter por objeto somente
aquilo que estiver acima de qualquer dúvida e, na
terceira das Regras para a direção do espírito,
assim declara:
Sobre os objetos propostos ao nosso estudo, é necessário procurar não o que os outros pensaram ou
o que nós mesmos conjecturamos, mas aquilo de
que podemos ter uma intuição clara e evidente, ou
o que podemos deduzir com certeza. Pois não é de
outro modo que a ciência se adquire. (DESCARTES,
2010, p. 410).
Hoje sabemos que também o conhecimento
científico é sempre e somente conhecimento humano e, portanto, “está misturado com os nossos
erros, os nossos preconceitos, os nossos sonhos e as
nossas esperanças” (POPPER, 2006, p. 52). Além
disso, acreditamos que a dimensão de mistério é
constitutiva da nossa existência humana no mundo
e que o nosso conhecimento, enquanto conhecimento humano, jamais poderá prescindir desta
dimensão do nosso ser. Isso significa abrir-se a uma
dimensão transcendente do processo educativo, que
valoriza mais o pensar do que o saber. Existe uma
diferença entre pensar e saber.
Pois pensar não é saber. É não saber. Quando se
pensa não se pretende saber; e quando se pretende
já saber, não se pensa. [...] Por isso só aprende
quem pensa. Pois pensar significa acolher o mistério
da realidade irrompendo nas realizações do real.
(LEÃO, 2003, p. 27).
118
Somente quem reconhece o seu não saber frente
ao “mistério da realidade” encontra-se na condição de aprender a pensar e de aprender pensando.
Mais que simplesmente acumular conhecimento, o
importante é aprender a pensar. Já no século XVI,
Montaigne (1996, p. 140) escrevia que precisava
“indagar quem sabe melhor e não quem sabe mais”,
e não se preocupar “por guarnecer a memória,
deixando de lado, e vazios, juízo e consciência”.
Trata-se de integrar a “sociedade do conhecimento” com a “sociedade do pensamento”, para que
as pessoas, que hoje têm acesso a uma infinidade de
informações, possam desenvolver também a capacidade de pensar. O conhecimento é matéria-prima
do pensamento: mas o conhecimento adquire todo
o seu valor quando é administrado pela capacidade
de pensar. Por isso, é fundamental que a educação
ajude as pessoas a aprender a pensar, para poder
valorizar o conhecimento, porque o pensar humano
educado não leva à certeza, como queria Descartes,
mas à capacidade de lidar com as incertezas e a uma
atitude de diálogo e tolerância, que é decisiva para
a qualidade ética da convivência humana.
Tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe
enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito.
Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estoicos
ou dos epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ela escolha
se puder. E se não puder fique na dúvida, pois só os
loucos têm certeza absoluta em sua opinião. (MONTAIGNE, 1996, p. 152).
E continua com uma citação de Dante Alighieri: “Não menos que saber, duvidar me apraz”1
(MONTAIGNE, 1996, p. 152). Esse duvidar não
corresponde à dúvida metódica de Descartes, que
é finalizada ao adquirir a certeza do conhecimento,
mas coloca-se como alternativa a um tipo de saber
que exclui a dimensão transcendente da verdade.
Trata-se, portanto, de uma dimensão de espírito
que podemos chamar de espiritualidade do conhecimento e que entra constitutivamente numa nova
visão de educação; não é por acaso que Sócrates é
condenado como corruptor da juventude e corruptor
porque ímpio.
A figura de Sócrates encarna a nova visão de
educação que vem se definindo com o apareci1 “Che non men che saber, dubbiar m’ agrada”.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013
Giorgio Borghi
mento do pensar filosófico e é no diálogo platônico
Apologia de Sócrates que encontramos a primeira
tematização do conflito entre a visão tradicional e
a visão filosófica da educação. Conflito que articula
estritamente a questão da educação com a questão
da “piedade” e que tem um desfecho dramático
com a condenação à morte do filósofo, mostrando
a grande relevância que as questões da educação e
da religiosidade tinham para as pessoas envolvidas
nesse conflito.
Sócrates, que Jaeger (1979, p. 475) considera
como “o mais espantoso fenômeno pedagógico
da história do Ocidente”, é condenado como um
sujeito perigoso para a educação e é a falta de “piedade” que se torna prejudicial para a educação da
juventude, segundo a acusação de Meleto. Ora, o
nosso intento é mostrar que essa tese da acusação
contra Sócrates é correta, mas em sentido totalmente diferente daquilo que entendia Meleto, porque o
que entra em choque no processo de condenação
de Sócrates são visões profundamente diversas de
educação e do tipo de “espiritualidade” que orienta
o processo educativo e que é definido pela relação
que o educador tem com a verdade.
No diálogo platônico, a acusação formal do
processo é resumida pelo próprio Sócrates da seguinte maneira: Sócrates “é culpado de corromper
os moços e não acreditar nos deuses que a cidade
admite, além de aceitar divindades novas” (PLATÃO, 2001, p. 122-123). A ligação entre as duas
acusações aparece claramente pouco depois:
Não obstante, declara-nos, Méleto, porque motivo
andas a espalhar que eu corrompo os jovens? Segundo a queixa que apresentaste, deve ser por ensiná-los
a não acreditar nos deuses em que a cidade acredita,
porém em demônios de nova modalidade. Não é isso
o que afirmas: que com essa doutrina eu os corrompo? (PLATÃO, 2001, p. 125).
Meleto confirma que é precisamente isso que
ele está dizendo. Solicitado a esclarecer melhor
se a acusação refere-se simplesmente ao fato de
introduzir novos cultos ou à recusa de venerar aos
deuses, Meleto responde significativamente, embora de forma não muito coerente: “O que afirmo
é que não acreditas absolutamente na existência
dos deuses” (PLATÃO, 2001, p. 126). Com isso
estão colocados os elementos decisivos de um
confronto que, para além da aparente leviandade e
inconsistência da acusação, assume uma relevância
que atravessa os séculos, chegando até nós.
O que está em jogo no processo a Sócrates é
muito mais sério e profundo do que a formulação
verbal das acusações deixaria acreditar, adquirindo
a característica de um processo formal à filosofia
nascente. Não é por acaso que Sócrates precisa
esclarecer, mais de uma vez, que ele está sendo
acusado incorretamente de coisas que pertenciam
ao pensamento de filósofos naturalistas ou sofistas,
como já tinha acontecido na comédia As nuvens, de
Aristófanes. “Sócrates erra por investigar indevidamente o que se passa embaixo da terra e no céu,
por deixar bons os argumentos ruins e também por
induzir outros a fazerem a mesma coisa” (PLATÃO, 2001, p. 115).
Quando um povo precisa de um bode expiatório
contra uma suposta perigosa ameaça, não importa
a consistência ou a coerência do procedimento
inquisitório. Que Sócrates de fato compartilhasse
do pensamento dos naturalistas ou dos sofistas é um
detalhe insignificante tanto para Meleto quanto para
a maioria que o condenou. No tribunal, Sócrates estava representando a ameaça que provinha do novo
pensar filosófico e por isso estava sendo julgado.
A única saída possível, para ele, seria desistir de
filosofar, não tanto tentar justificar a sua filosofia ou
tentar esclarecer que não é a mesma de outros pensadores. Sócrates percebe claramente isso, quando
imagina o que poderiam propor-lhe os juízes:
Sócrates, não daremos atenção a Ânito; vamos
absolver-te, com a condição de parares com essa
investigação e não te dedicares de hoje em diante à filosofia; porém, se fores mais uma vez apanhado nessas
práticas, morrerás por isso. (PLATÃO, 2001, p. 130).
A condenação de Sócrates fica praticamente
decretada pela resposta que ele dá a essa proposta
que seria a única condição de absolvição: “Estimo-vos, atenienses, e a todos prezo, porém sou mais
obediente aos deuses do que a vós, e enquanto
tiver alento e capacidade, não deixarei de filosofar”
(PLATÃO, 2001, p. 130).
O perigo do não saber socrático
Nessa altura da nossa reflexão, torna-se necessário entender porque o tribunal ateniense consi-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013
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O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar
derava tão perigosa a prática filosófica, a ponto de
justificar a condenação à morte daquele que, no momento, era o seu mais significativo representante.
As acusações formuladas no processo indicam
claramente que o que mais preocupa os acusadores, em relação à filosofia, é justamente a questão
da educação, estritamente atrelada ao modo de
considerar a relação com o “divino”. Não é possível desvincular a questão do conhecimento da
questão da educação; e a filosofia se ocupa, desde
o seu nascimento, com uma nova concepção de
conhecimento, que encontra na atitude socrática o
seu desenvolvimento ético e que, por conta disso,
acaba envolvendo mais diretamente o problema
educacional. Sócrates não se refere à sua atividade
com a palavra educação (paideia), porque considera representantes oficiais da paideia do seu tempo
Górgias de Leontini, Pródico de Ceos e Hípias
de Élis (PLATÃO, 2001, p. 116), dos quais quer
claramente se diferenciar. Neste sentido, “nunca
ensinei pessoa alguma” (PLATÃO, 2001, p. 135),
declara Sócrates. Mas,
Através dele, a missão de toda a educação é banhada
por uma luz nova: já não consiste no desenvolvimento de certas capacidades nem na transmissão
de novos conhecimentos; [...]. Identifica-se com a
aspiração socrática ao conhecimento do bem, com
a phronesis. E esta aspiração não se pode restringir
aos poucos anos duma chamada cultura superior. Só
pode alcançar o seu objetivo ao longo de toda a vida
do Homem; de outro modo não o alcança. Isto faz
mudar o conceito de essência da paideia. A cultura
em sentido socrático converte-se na aspiração a
uma ordenação filosófica consciente da vida, que
se propõe cumprir o destino espiritual e moral do
Homem. (JAEGER, 1979, p. 532).
A questão do conhecimento como sabedoria
é tema central da Apologia de Sócrates, porque é
justamente o questionamento em relação à efetiva
sabedoria da cultura tradicional que mais incomoda
aqueles que se consideram os responsáveis pela
tradição e pelos bons costumes. “Semelhante fama,
atenienses, não me veio senão de certa sabedoria
que me é própria. Que espécie de sabedoria?”
(PLATÃO, 2001, p. 117). O oráculo que declara
Sócrates como o mais sábio provoca o filósofo a
empreender uma pesquisa sobre o sentido desta
afirmação que leva a uma nova definição de saber
120
e de sabedoria. Depois de sondar políticos, poetas
e artesãos, Sócrates sinaliza a lacuna comum do
tipo de conhecimento deles: “pelo fato de cada
um deles conhecer a fundo determinada profissão,
julgavam-se também proficientes nas questões mais
abstrusas, donde estragar esse defeito fundamental
de todos a sabedoria de cada um” (PLATÃO, 2001,
p. 120). Portanto, a superioridade da sabedoria socrática define uma nova atitude de conhecimento,
de relacionamento com a verdade, que desafia toda
a cultura vigente. Finalizando a sua entrevista com
um político, Sócrates declara:
Depois, ao retirar-me, falava a sós comigo: mais
sábio do que este homem terei de ser, realmente.
Pode bem dar-se que, em verdade, nenhum de nós
conheça nada belo e bom; mas este indivíduo, sem
saber nada, imagina que sabe, ao passo que eu, sem
saber, de fato, coisa alguma, não presumo saber algo.
(PLATÃO, 2001, p. 119).
Questionando o saber da pólis, representado
pelos seus mais cultos expoentes, o filósofo questiona também o sistema educacional e denuncia
que, na realidade, os dirigentes da cidade brincam
com coisas sérias, como Meleto, “com fingido
zelo, a respeito de assunto a que nunca atribuiu a
mínima importância” (PLATÃO, 2001, p. 123).
E essa leviandade em relação à educação aparece
claramente no único momento realmente dialógico
da Apologia, quando Sócrates interroga Meleto
sobre quem corrompe e quem torna melhores os
jovens. Se ele está acusando Sócrates de corromper
a juventude, deve ter claro o que significa educar os
jovens e quem os pode tornar melhores. A reticência
de Meleto em responder mostra a dificuldade dele
em acompanhar um diálogo reflexivo, por não estar
acostumado a “pensar”, mas estar simplesmente
expressando o senso comum daqueles que estão
convencidos de que “um celerado de nome Sócrates anda a corromper os moços. Mas, se alguém
lhes pergunta de que se ocupa e o que ensina,
não têm o que dizer, porque de todo o ignoram.
E, para encobrirem sua perplexidade, recorrem a
essas imputações vulgares comumente assacadas
contra os amantes da Sabedoria” (PLATÃO, 2001,
p. 121-122).
A dificuldade de Meleto em pensar a educação se mostra logo na sua resposta à insistência
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013
Giorgio Borghi
de Sócrates, que o obriga a dizer alguma coisa.
Sócrates está perguntando “quem” torna melhores
os jovens, e Meleto responde: “As leis”. Trata-se
de uma resposta particularmente significativa, que
revela muito da visão de educação tradicional que
se incomoda com a filosofia. Por que se preocupar
com “quem” deveria educar os jovens? As próprias
leis e instituições da cidade, por si mesmas, os
tornam virtuosos, levando-os a prestigiar o que a
cidade prestigia e a desprezar o que a cidade despreza. Nenhuma educação seria mais certa e eficaz,
se entre as instituições da pólis e os jovens não se
intrometessem os filósofos, contaminando-os com
a praga do pensamento reflexivo, que os afasta da
adesão espontânea e natural ao que todo mundo
sente e pensa.
Sócrates não desprezava as instituições da
pólis; muito pelo contrário, ele estava pronto a
testemunhar com a morte o seu respeito para as
leis da cidade. Contudo, para ele, quando se trata
de educação, não basta o contato direto com as
instituições da cidade sem a mediação de alguém
que pensa e que sabe ajudar os jovens a aprender
a pensar com a própria cabeça. Sócrates, portanto,
não pode aceitar a resposta de Meleto, que indica
as leis como responsáveis diretas pela educação da
juventude, e reformula de forma mais explícita a
sua pergunta. “Não foi isso que te perguntei, meu
caro, porém o homem, que terá, naturalmente, para
começar, de conhecer as leis” (PLATÃO, 2001,
p. 123).
Novamente a resposta de Meleto decepciona,
mostrando que sua aversão a Sócrates prejudicou
realmente a sua capacidade de pensar. A pergunta
de Sócrates tentava conduzir Meleto a se concentrar
sobre a figura humana do educador (não “o que”,
mas “quem”, qual pessoa), que naturalmente deverá
também conhecer as leis; Meleto considera somente o final da pergunta e responde que quem conhece
as leis são os juízes. Trata-se de uma resposta estrategicamente correta, na perspectiva do acusador,
mas que mostra, mais uma vez, a incapacidade de
pensar a educação. Será que os juízes deviam ser
considerados todos bons educadores, pelo simples
fato de serem bons conhecedores das leis?
E mais: além dos quinhentos juízes, havia muitas pessoas assistindo como ouvintes e um correto
senso democrático comportava reconhecer que
elas também tinham conhecimento das leis e, só
por isso, conforme a opinião de Meleto, elas também seriam idôneas para educar. O mesmo senso
democrático não podia deixar de fora os membros
do Senado (outra instituição de quinhentas pessoas)
e a Assembleia popular de todos os cidadãos com
direito de voto, que, naturalmente, conhecendo
as leis, se encontravam todos em condição de
serem bons educadores dos jovens. Então, conclui
Sócrates, “Ao que parece, todos os atenienses os
deixam bons e nobres, menos eu. Sou o único a
corrompê-los”. E Meleto confirma: “Exatamente”
(PLATÃO, 2001, p. 124).
Sócrates não quer contestar, diretamente, essa
extrapolação democrática que reconhece competência educativa a todos os cidadãos; por isso,
prefere continuar o diálogo dando uma volta estratégica no mundo dos cavalos e dos outros animais,
onde é incontestável que somente bem poucos
sabem como lidar com estes seres viventes para
torná-los melhores. Meleto acredita no automatismo educativo das instituições políticas e vê na
majestade das leis a eficácia formativa dos jovens;
Sócrates está constantemente interessado no valor
da pessoa singular e procura homens que saibam
educar individualmente.
A continuação do diálogo de Sócrates com Meleto, vertendo sobre a acusação de impiedade e de
ateísmo, evidencia o ponto crucial da divergência
das visões educacionais que aqui se confrontam.
Parece que a acusação de Meleto é uma brincadeira.
“Pois quer parecer-me que ele se contradiz na sua
acusação. É como se dissesse: Sócrates é culpado
por não acreditar nos deuses, mas acredita que
existem deuses. Positivamente, tudo isso não passa
de pilhéria” (PLATÃO, 2001, p. 126). Entretanto,
de novo, Meleto e os outros acusadores de Sócrates
consideram como detalhe que ele ensine a venerar
outros deuses ou a não venerar de modo algum aos
deuses. O que interessa e incomoda profundamente
é que a filosofia e a educação de Sócrates nascem e
se alimentam de uma atitude de espírito, uma “espiritualidade” outra, uma espiritualidade que pode
até ser considerada ateia pela religiosidade tradicional. A acusação é apresentada de forma ingênua
e incoerente, mas capta o que realmente é muito
perigoso e ameaçador no pensamento e na paideia
filosófica socrática. Como observa Jaeger (1979, p.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013
121
O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar
539-540), falando de Sócrates, “o conhecimento da
essência e da força do bem, que se apodera do seu
interior como força arrebatadora, converte-se para
ele num novo caminho para encontrar o Divino”.
A espiritualidade filosófica monoteísta
A questão da religiosidade na Apologia de
Sócrates coloca-se em estreita relação ao tema do
conhecimento e da sabedoria. A superior sabedoria
socrática, que se funda sobre a consciência de não
saber, comporta a seguinte convicção:
Mas o que eu penso, senhores, é que em verdade só
o deus é sábio, e que com esse oráculo queria ele
significar que a sabedoria humana vale muito pouco
e nada, parecendo que não se referia particularmente
a Sócrates e que se serviu do meu nome apenas como
exemplo, como se dissesse: Homens, o mais sábio
dentre vós é como Sócrates, que reconhece não valer,
realmente, nada no terreno da sabedoria. (PLATÃO,
2001, p. 121).
A verdadeira sabedoria implica o reconhecimento da dimensão transcendente da verdade, um reconhecimento que modifica radicalmente também
a atitude e a modalidade educacional.
Para Sócrates, viver filosofando significa dedicar-se ao conhecimento de si e dos outros e configura-se
como obediência a uma ordem divina, para o bem
individual e coletivo. “É o que me ordena fazer a
divindade, bem o sabeis, estando eu convencido de
que nunca nesta cidade vos tocou por sorte maior
bem do que o serviço por mim a ela prestado” (PLATÃO, 2001, p.131). A Apologia de Sócrates é talvez
o escrito platônico em que aparece com mais frequência a palavra deus, no singular. Esse monoteísmo
filosófico, no contexto de uma cultura religiosamente
politeísta, nos convida a um exame cuidadoso e aprofundado desta nova atitude espiritual, que aparece
desde o próprio nascimento da filosofia.
Maria Zambrano abre o primeiro capítulo do
seu livro O Homem e o Divino com a seguinte
afirmação: “Uma cultura depende da qualidade
dos seus deuses” (ZAMBRANO, 1995, p. 25).
Assim, podemos dizer que a passagem da mitologia à filosofia se apresenta como uma mudança
cultural determinada pela diferença qualitativa da
percepção do divino. “Pois a acção por excelência
122
da filosofia foi a transformação do sagrado no divino, na pura unidade do divino. E para realizar esta
acção impremeditada de transformar o sagrado no
divino, o pensamento filosófico teve de ignorar os
deuses, imagens” (ZAMBRANO, 1995, p. 67-68).
O sagrado nasce da pretensão do conhecimento
humano de conhecer e controlar o mistério. Transformar o sagrado no divino significa aceitar não
poder abarcar totalmente a riqueza inesgotável
do mistério da vida e do mundo e ter a coragem
de mergulhar na escuridão de um não saber, onde
formular novamente a pergunta mais simples e mais
radical: “o que é isso?”. É justamente essa pergunta
que caracteriza a pedagogia irônica e maiêutica
de Sócrates e que revela uma nova percepção da
transcendência da verdade.
É esse retorno ao divino que dá início ao pensamento filosófico. Um retorno que, descendo as
camadas cada vez mais profundas da ignorância,
nos leva no âmago das trevas originárias da realidade e do ser, onde as imagens sagradas da mitologia
não satisfazem mais. Sim, porque os antigos mitos
gregos não podem ser considerados, simplesmente,
curiosas histórias de seres fabulosos chamados deuses, mas como a tentativa de sondar e “compreender” a profundidade oculta da realidade. Q uando
Tales elabora a sua hipótese da água como princípio
ontológico e gnosiológico de todas as coisas, está
procurando uma nova forma de resposta à mesma
questão da qual tinha se originado o pensamento
mitológico. Por isso, mais que uma hipótese científica, no sentido atual da palavra, está propondo uma
nova atitude de conhecimento da realidade, que se
fundamenta numa nova concepção do divino.
O próprio Aristóteles lembra que Tales teria
apresentado uma segunda tese, aparentemente
contraditória com aquela, mais conhecida, da água:
“Tudo está cheio de deuses”. Será que essas duas
teses, a da água e a dos deuses, são afirmações conflitantes, ou será que elas indicam o caminho para a
verdadeira compreensão do sentido que a teoria de
Tales tinha, na época em que foi formulada? Quando Aristóteles fala de Tales, na Metafísica, inicia
apresentando aquela que poderíamos considerar a
primeira definição do método científico como aquilo que nos permite deduzir hipóteses e leis gerais
a partir de observações e experimentos: “Tales,
iniciador desse tipo de filosofia, diz que o princípio
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013
Giorgio Borghi
é a água [...], certamente tirando esta convicção da
constatação de que [...]” (ARISTÓTELES, 2001,
p. 17); mas depois continua, dizendo:
Há também quem acredite que os mais antigos, que
por primeiro discorreram sobre os deuses, muito antes da presente geração, também tiveram essa mesma
concepção da realidade natural. De fato, afirmaram
Oceano e Tétis como autores da geração das coisas,
e disseram que aquilo sobre o quê juram os deuses é
a água, chamada por eles Estige. (ARISTÓTELES,
2001, p. 17).
Essa evocação, feita por Aristóteles, do antiquíssimo saber mítico sobre o Oceano, Tétis e
Estige, o lendário rio original, e a surpreendente
menção aos “que por primeiro discorreram sobre
os deuses”, que coloca também Tales entre aqueles
que especularam a respeito dos deuses, nos oferece
uma preciosa sugestão interpretativa do pensamento dele, que supera o aparente conflito entre suas
teses. Quando fala de água, Tales está tentando
dizer algo sobre o mistério da origem, sem recorrer
às imagens sagradas da mitologia.
Do mesmo modo que a água dá vida às coisas, assim
também se passa com o fundamento divino originário: vivifica tudo o que penetra. Desse modo, a frase
de Tales sobre a originariedade da água pretende
afirmar o seguinte: em todo o real atua uma força
divina, de poder criador, assim como o rio originário
do mito, que tudo penetra como a mantenedora da
vida, a água (WEISCHEDEL, 2000, p. 22-23).
Segundo a interpretação de Nietzsche, no seu
escrito A Filosofia na Época Trágica dos Gregos,
a hipótese da água, que precisamos levar a sério
porque enuncia algo sobre a origem das coisas
“sem imagem e fabulação”, é algo que Tales não
poderia ter deduzido das “parcas e desordenadas
observações da natureza empírica”. O que levou
Tales àquela que Nietzsche chama de “monstruosa
generalização” foi um postulado metafísico, uma
crença que tem sua origem em uma intuição mística
e que encontramos em todos os filósofos, ao lado
dos esforços sempre renovados para exprimi-la melhor – a proposição: “Tudo é um”. (NIETZSCHE
apud PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 44).
Nietzsche destaca, assim, a intuição mística
como algo que pertence ao código genético da
filosofia enquanto tal.
O discípulo de Tales, Anaximandro, continua e
aprofunda esse novo caminho, com a ideia genial
do apeiron, que, pela própria formulação privativa,
indica, ainda mais claramente, aquele retrocesso à
ignorância de onde nasce a atitude filosófica, na
busca de um divino originário sem imagens, sem
definição (indefinido), sem limite (ilimitado). Todavia, quem primeiro tematizou a transformação
do sagrado no divino, operada pela filosofia, foi
Xenófanes de Cólofon, com sua crítica ao antropomorfismo da mitologia.
Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e
pudessem, com elas, pintar e produzir obras como
os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses
semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois,
cada (espécie animal) reproduzindo a sua própria
forma. (BORNHEIM, 2011, p. 32).
A vontade de verdade, como diria Nietzsche,
leva o ser humano a querer, de qualquer jeito, dispor dela, pintando-a a sua imagem e semelhança,
criando simulacros que possam dar a ilusão de
dispor dela quando e como deseja. Mas o filósofo
descobre que a verdade, na sua profundidade originária, é divina e, como tal, é sempre mais: “Um
único deus, o maior entre deuses e homens, nem
na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais” (BORNHEIM, 2011, p. 33). Esta ‘profissão de
razão’ monoteísta abre o caminho para a elaboração
ontológica de Parmênides e para a ideia do Ser,
como tradução da dimensão profunda e misteriosa
da realidade. Como observa Heidegger,
De há muito, o mistério nos foi proposto na palavra
‘ser’. É por isso que o ‘ser’ é apenas uma palavra
provisória, no sentido de palavra precursora. Cuidemos que nosso pensamento não lhe corra apenas
atrás, de olhos fechados. Pensemos que ‘ser’ significa
originariamente ‘vigência’ e ‘vigência’ significa
adiantar-se e perdurar no des-encobrimento da verdade. (HEIDEGGER, 2002, p. 203, grifo do autor).
Misticismo filosófico e educação
Esta volta às origens era necessária para entender melhor o deus de que tanto fala Sócrates, fonte
de sua piedade e motivo do conflito dramático que
o leva à morte. A acusação dele não acreditar nos
deuses que os atenienses acreditavam tinha algo de
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123
O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar
verdadeiro, embora ele não desprezasse a religião
popular. Mas a sua adesão incondicionada ao filosofar tinha operado nele a transformação do sagrado
no divino, uma transformação que se manifestava
na sua vida e na sua prática de educador. Uma
primeira consequência disso era sua concepção
de verdade.
Sócrates sempre desconfiou do óbvio e quase sempre
consegue mostrar que o óbvio é irreal e que a verdade
é muito raramente óbvia. O modo como mostra isso
é a substância da discussão e dá a ela empolgação e
dinamismo. Chegar a uma conclusão não é o objetivo. O objetivo é ensinar às pessoas com quem ele está
conversando como pensar e, principalmente, como
pensar por si mesmas. (JOHNSON, 2012, p. 72).
Considerar a verdade como não óbvia é a atitude
básica da espiritualidade filosófica monoteísta, que
já Xenófanes tinha delineado:
Pois homem algum viu e não haverá quem possa ver
a verdade acerca dos deuses e de todas as coisas das
quais eu falo; pois mesmo se alguém conseguisse
expressar-se com toda exatidão possível, ele próprio
não se aperceberia disso. A opinião reina em tudo.
(BORNHEIM, 2011, p. 33).
Ora, precisamos relembrar que é justamente a
falta dessa atitude de espírito, dessa “espiritualidade”, que prejudica a efetiva sabedoria dos sabidos
de Atenas que, pelo fato de conhecer bem alguma
coisa, consideram-se sapientíssimos mesmo “nas
questões mais abstrusas” (PLATÃO, 2001, p. 120).
Para saber quais são, para Sócrates, estas “outras
matérias de grande importância” podemos recorrer
a um resumo das recomendações dele ao cidadão
de Atenas:
Como se dá, caro amigo, que, na qualidade de cidadão de Atenas, a maior e mais famosa cidade, por
seu poder e sabedoria, não te envergonhes de só te
preocupares com dinheiro e de como ganhar o mais
possível, e quanto à honra e à fama, à prudência e
à verdade, e à maneira de aperfeiçoar a alma, disso
não cuidas nem cogitas? (PLATÃO, 2001, p. 130).
É interessante notar que, na hora de exercer a sua
missão educativa, Sócrates se dirige a um indivíduo,
no singular, não a um auditório anônimo, e ele sondará este indivíduo para ajudá-lo a verificar se ele
efetivamente é, ou somente pensa ser, sábio; “No
caso, porém, de convencer-me de que é carecente
124
de virtude, embora diga o contrário, repreendê-lo-ei
por dar pouca importância ao que é de mais valor e
ter em alta estima o que de nada vale” (PLATÃO,
2001, p. 130-131). Afinal, as coisas mais importantes têm a ver com a verdade e a virtude, duas
realidades que para Sócrates são inextricavelmente
unidas, a ponto de a virtude de uma pessoa depender
de como ela se relaciona com a verdade.
Ora, o relacionamento com a verdade muda
profundamente dependendo do relacionamento
com o transcendente, que essencialmente pode se
estruturar de três formas diferentes: religiosa, ateia
ou mística. O relacionamento de tipo religioso e
ateio é um tipo de relacionamento essencialmente
dogmático, que pressupõe encontrar nos deuses
(mitologia) ou nos homens (sofística) a medida última e inquestionável da verdade de todas as coisas.
O que torna ameaçadora a atitude de Sócrates em
relação à educação é o seu misticismo filosófico
monoteísta, que relativiza tanto o antropomorfismo
das verdades consideradas intocáveis pelos religiosos como o antropocentrismo absoluto da visão
dos sofistas. “É certo que, pelo seu modo de ser
espiritual, Sócrates é incapaz de ‘aceitar qualquer
dogma’. Mas um homem que vive e morre como
ele viveu e morreu tem em Deus as suas raízes”
(JAEGER, 1979, p. 540).
Na realidade, a espiritualidade filosófica monoteísta nasce dentro da religiosidade do sagrado mitológico, mas depois se distancia das suas origens
mitológicas e se apresenta com características que
modificam profundamente a percepção e a relação
do homem com a verdade, determinando o conflito
a que assistimos no processo a Sócrates, como também no enredo das tragédias deste mesmo período.
Tal como o filho se separa do pai e luta com ele e,
no entanto, não poderia ter existido sem ele, assim
o pensamento filosófico e a afirmação da pessoa
humana contida na tragédia denuncia a insuficiência
dos deuses, e entra mesmo em conflito com eles. É
o conflito específico que houve na piedade grega e
que tem as suas vítimas míticas e reais: Antígona e
Sócrates, vítimas, sem dúvida alguma, do sacrifício
que os deuses exigem para dar passagem à nova piedade, ao nascimento da consciência. (ZAMBRANO,
1995, p. 54).
A ‘nova piedade’ socrática se manifesta, de
forma incisiva e desafiante, numa frase emble-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013
Giorgio Borghi
mática da Apologia: “sou mais obediente aos
deuses do que a vós” (PLATÃO, 2001, p. 130).
Mas esta afirmação, poderíamos perguntar, não é
também uma declaração de intransigência e fundamentalismo religioso? Não, porque o ‘deus’ da
espiritualidade filosófica é justamente o apeiron,
o não-dogmaticamente definido. Na piedade mitológica antropomórfica deus se identifica com o
que é dogmaticamente por nós considerado como
verdade, mas Sócrates sempre desmonta ironicamente qualquer manifestação de dogmatismo; “é
sua hostilidade não apenas à ‘resposta certa’, mas
quanto à ideia de ser a resposta certa”. (JOHNSON,
2012, p. 72, grifo do autor).
Para destacar ainda mais a característica da
visão socrática de educação, falta dizer alguma
coisa sobre a forma ateia de relacionamento com o
transcendente. Johnson (2012, p. 71, grifo do autor)
observa que na época de Sócrates “havia – e há desde então, e haverá no futuro – dois tipos fundamentalmente distintos de filósofos. O primeiro lhe diz
o que pensar; o segundo como pensar”. O primeiro
tipo de filósofo, na época de Sócrates, era representado pelos sofistas, que, depois do nascimento
da filosofia, são os primeiros pensadores a cortar
o laço da verdade com o “divino”, se constituindo
como um movimento filosófico-cultural que tenta
encontrar uma saída do monoteísmo da filosofia
pré-socrática. Os sofistas percebem claramente que
o que está em jogo no debate filosófico é a própria
visão de verdade e que se pode procurar outro
significado dela e outro caminho de acesso a ela.
Se nós consideramos a verdade como determinada
unicamente pela convergência de opiniões e pela
autarquia da linguagem, não precisamos mais nos
preocupar com uma arcké, que preexistiria antes e
independentemente de nós.
Górgias, um dos mais importantes pensadores
sofistas, escreve uma obra cujo título expressa de
forma clara e provocatória o núcleo desta nova
visão: “Sobre a natureza, ou seja, sobre o não-ser”.
Isso significa: o Ser de Parmênides não existe,
como não existe nenhum outro princípio explicativo independente de nós e do poder criativo do
nosso logos. É o homem a medida hermenêutica,
criadora e ordenadora de todas as coisas, e não
uma arcké preexistente e independente de nós,
que teria necessariamente características divinas.
Esta “solução” sofistica tem como consequência
uma atitude educacional que, excluindo qualquer
transcendência da verdade, se exercita mais “no
que é chamado de retórica do que em discutir
(dialegesthai)” (PLATÃO, 2007, p. 44), como
encontramos no diálogo que Platão intitula com o
nome do famoso sofista. Nas palavras que Platão
coloca na boca de Górgias, a retórica torna-se
uma arte com um poder extraordinário. “De fato,
o orador é capaz de discursar contra todos e tratar
de qualquer questão de modo a conquistar o apoio
da multidão, abordando de maneira persuasiva praticamente qualquer assunto que deseje” (PLATÃO,
2007, p. 57).
A retórica sofista, porém, pode funcionar somente admitindo a visão de verdade sofista, coisa
que Sócrates não pode admitir. Ele concorda com
os sofistas sobre a importância decisiva do uso
inteligente do logos, mas não na forma da retórica
e sim na forma do diálogo (diá-logos). Enquanto
para os sofistas a retórica visa à criação da verdade, favorecendo eventualmente os mais expertos
e inescrupulosos, o diálogo socrático é uma arte
parecida à da parteira e visa ajudar as pessoas a
descobrir e trazer à luz a verdade escondida nas
entranhas da vida.
Nesse sentido, o diálogo socrático é também
bem mais democrático que a retórica sofista: no
diálogo socrático o saber e o saber falar não se
colocam a serviço do que é mais conveniente para
os mais sabidos, mas colocam-se a serviço de
uma Verdade que transcende os limites do nosso
conhecimento e que é igual para todos. Por isso,
o diálogo socrático comporta uma espiritualidade
que deixa o ser humano sinceramente consciente
da própria ignorância e aberto ao Mistério inesgotável de uma Verdade que não é posse exclusiva
de nenhum sabido, mas que se deixa vislumbrar
por todos aqueles que a procuram dia-logando
democraticamente. No Górgias de Platão há uma
passagem significativa onde Sócrates convida o
sofista Polo a uma atitude pedagógica democrática,
com as seguintes palavras: “respeita o sistema de
perguntar e ser perguntado alternadamente, [...]
podendo assim tanto refutar quanto ser refutado”
(PLATÃO, 2007, p. 64).
O distanciamento de Sócrates da paidéia sofista aparece logo na abertura da Apologia, onde se
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125
O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar
desculpa antecipadamente pelo seu jeito de falar,
declarando: “não sei absolutamente falar bem”; e
considera mentiroso o fato dos acusadores tê-lo
apresentado como um hábil orador que poderia
enganar qualquer um.
A menos que chamem de orador eloquente quem
só diz a verdade. Se é isso o que querem significar,
concordarei que também sou orador. Mas, quão diferente deles todos! [...] Não, atenienses, por Zeus,
uma oração arrebicada como a deles, com palavras
e torneios elegantes, porém de períodos simples e
com as expressões que naturalmente me ocorrerem.
(PLATÃO, 2001, p. 113).
O relacionamento socrático com a verdade,
marcado por uma espiritualidade filosófica monoteísta, caracteriza assim sua atividade educativa
mais como uma conversa ocasional e informal entre
amigos; uma conversa que se desenrola dentro do
rio da vida, com todas as suas desafiantes perguntas
que emanam de um fundo de mistério. Sócrates
[...] era parte da vida da cidade – uma parte pensante, com certeza, uma parte que conversa e debate,
porém não mais separada de sua atividade pulsante
e agitada do que o peixeiro, o cambista ou o sapateiro, o político fanfarrão, o poeta indigente ou o
advogado ardiloso. Sentia-se em casa na cidade e um
estranho no campus. Sabia que assim que a filosofia
se separasse da vida das pessoas, ela começaria a
perder a validade e seguiria na direção errada. [...]
Pois Sócrates viu e praticou a filosofia não como
uma atividade acadêmica, mas como uma atividade
humana. Estava relacionada com seres humanos
reais enfrentando escolhas reais e éticas entre certo
e errado, bem e mal. (JOHNSON, 2012, p. 138).
Considerações conclusivas
A missão divina do filósofo-educador concre-
tiza-se, portanto, em ajudar as pessoas a encarar a
busca da verdade e da justiça, percorrendo o estreito
caminho entre o dogmatismo e o relativismo absoluto. Isso se torna possível somente por meio de
uma atitude de espírito (espiritualidade) que, não
satisfeita com as formulações antropomórficas,
nem com as invenções antropocêntricas da verdade
e da justiça, sabe mergulhar na escuridão luminosa
do mistério da vida, experimentando a cada dia a
dor e a alegria do pensar.
Nessa altura da nossa análise, podemos então
dizer que é a falta “dessa” espiritualidade que se
torna prejudicial para a educação, não a falta da piedade tradicional que determinou a acusação contra
Sócrates. Essa nova atitude de espírito possibilita
uma educação que torna a vida digna de ser vivida,
porque nos liberta da arrogância do saber e da angústia da ignorância. Até no momento de encarar
nosso último destino, poderemos coerentemente
continuar acreditando que também a verdade sobre
a morte não nos pertence, repetindo com Sócrates:
“Mas, está na hora de nós irmos: eu, para morrer;
vós, para viver. A quem tocou a melhor parte, é o
que nenhum de nós pode saber, exceto a divindade”
(PLATÃO, 2001, p. 147). Reconhecendo, assim,
que, até depois de uma vida inteira dedicada à busca
da verdade, a nossa maior sabedoria consiste em
saber que não se sabe.
Talvez, para nós educadores, isso seja “um
modo, mesmo que ‘fraco’, de vivenciar a verdade,
não como objeto de que nos apropriamos e que
transmitimos, mas como horizonte e pano de fundo
no qual, discretamente, nos movemos” (VATTIMO,
2007, p. XX, grifo do autor). Assim, a verdade
“fraca” de um não saber socrático representa a
verdadeira força de uma nova atitude gnosiológica
e pedagógica, que se coloca como alternativa a
qualquer dogmatismo tanto religioso como ateu.
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Giorgio Borghi
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Recebido em 22.10.2012
Aprovado em 21.01.2013
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013
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Alejandro Serrano Caldera
LA FILOSOFÍA Y LA CULTURA ANTE LA GLOBALIZACIÓN
Alejandro Serrano Caldera*
Resumen
La globalización ha producido una crisis de valores y un riesgo a la pluralidad cultural.
Frente a la crisis integral de nuestro tiempo, la filosofía debe contribuir a forjar una
ética de los valores, fundada en una racionalidad moral y conceptual que enfrente
y sustituya a la racionalidad instrumental.La filosofía debe contribuir a construir un
mundo más humano, donde la tecnología esté al servicio de los valores y no los valores
y el ser humano al servicio de los instrumentos de dominación y de poder político
universal, para el que los Estados-Naciones no son más que correas de transmisión
de una sola voluntad de dominación.
Palabras clave: Globalización. Filosofía. Cultura. Etica. Valores
Abstract
PHILOSOPHY AND CULTURE IN THE FACE OF GLOBALIZATION
Globalization has produced a crisis of values ​​and a risk to cultural plurality. In the
face of the generalized crisis of our time, philosophy must help drawing up an ethic of
values, based on a moral and conceptual rationality to face and replace the instrumental
rationality. Philosophy must contribute to building a more humane world, where
technology serves values a​​ nd not values a​​ nd the human being serve the instruments of
domination and universal political power for which Nation-States are merely conduits
for a single will to dominate.
Keywords: Globalization. Philosophy. Culture. Ethics. Values.
La globalización consiste en una práctica y
un concepto que pretende convalidar un modelo
homogéneo, a partir del cual se van ge­nerando las
diferentes manifestaciones de la historia. Se trata
de un mo­delo único de sociedad, de un arquetipo
universal que pretende ser, en este momento, la
forma de todas las sociedades cualquiera sea su
na­turaleza, historia o identidad.
Este problema de la globalización se ve a través
de la generalización de determinadas categorías
económicas, políticas y sociales y de los efec­tos
producidos por una aceleración vertiginosa en
los cambios de la tec­nología. Categorías y realidades históricas que han sido fundamentales para
la Modernidad como las de política, soberanía,
Estado-Nación, para referirme a las que nos son
más próximas, se ven afectadas por un con­cepto
y una práctica central que pretende legitimarse
en la idea de la globalidad. Este modelo diseñado
en los centros de dominación mundial, se asume
valido para cualquier sociedad en cualquier parte
del mundo.
* Doctor en Derecho, Universidad Nacional Autónoma de Nicaragua, 1962. Profesor de diversas cátedras de grado y maestrías
en la Universidad Americana, UAM; Universidad Nacional Autónoma de Nicaragua, UNAN-Managua y Universidad Centroamericana, UCA.Endereço para correspondência: Mansión Teodolinda, 6 cuadras al Sur, 25 varas abajo, Bolonia, Managua,
Nicaragua. Tel: (505) 22 66 21 28. E-mail: [email protected]
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129
La filosofía y la cultura ante la globalización
La globalización es una realidad y como tal
debe considerarse. El rechazo pasional es estéril;
el silencio indiferente, cómplice. Lo importante es
tratar de señalar racionalmente que un proceso de
esta naturaleza no debe escapar a una moral exterior
que le sirva de referencia, ni a un juicio de valor
que deba justificarla. Las cosas no se justifican por
el solo hecho de existir. Hay que ver como existen
y para qué.
La globalización es necesaria siempre que se
la entienda como unidad en la diversidad. Si ha
de existir una cultura universal compatible con
la dignidad e identidad humanas, ésta debe ser
el resultado de la síntesis de múltiples afluentes
culturales y expresiones históricas. Si una cultura
planetaria llegara a surgir como consecuencia de
ese abrazo universal de las culturas, de ese diálogo
de las identidades, bienvenida sea. Si en cambio,
debemos disolvernos sin rostro en un modelo
unilateral, que además, no siempre representa una
cultura superior, sino, con frecuencia, los residuos
de una subcultura, que no es mejor, sino que solamente proviene de una sociedad más poderosa,
tenemos la obligación de resistir y luchar para que
una verdadera universalidad, producto de la multiculturalidad, florezca.
El concepto de globalización, como ha sido
formulado y aplicado, es lo contrario del de unidad
en la diversidad. Incluye la existencia de un paradigma y la propuesta de un mundo homogéneo. En
este sentido, globalización equivale a uniformidad,
pero no a igualdad, ni siquiera a proporcionalidad,
pues su esencia es, precisamente, la desigualdad y
la asimetría entre los diferentes componentes del
sistema.
En la base misma del poder del sistema se encuentran, los Estados y las corporaciones transnacionales, verdadero núcleo de todo el mecanismo.
Entre ambos, Estados y corporaciones, hay
una identidad de intereses y fines, pues son piezas
complementarias de la estructura principal y están
situados en la búsqueda de sus objetivos, en un
mismo o muy cercano plano jerárquico. En cambio,
los Estados de los países del llamado mundo subdesarrollado son piezas secundarias en el engranaje
del mecanismo.
La globalización se nos presenta así como un
mecanismo esencialmente asimétrico, compuesto
130
de una parte por las piezas claves que conforman
los centros vitales de planificación, decisión y
distribución de funciones: las corporaciones trasnacionales, los Estados del núcleo de poder mundial y
los organismos financieros encargados de formular
y aplicar las políticas correspondientes. De otra
parte, las sociedades periféricas, caracterizadas,
en medio de sus diferencias, por algunos referentes comunes: economías dependientes, escasa o
nula industrialización, retraso en la utilización
de la tecnología de punta, inestabilidad política,
fragilidad democrática, debilidad institucional,
concepto, estructura y funcionamiento anacrónicos
del Estado, masificación de la pobreza crítica, crisis
de sus sistemas educativos, para mencionar algunos
rasgos que podrían considerarse comunes a pesar
de sus diferentes grados de incidencia.
Entre estos dos rangos que conforman el sistema
no existe una estructura coherente, pues los dos
términos no son jerarquizables por pertenecer a
configuraciones cualitativamente diferentes. El sistema mundial, que se expresa en la globalización,
se construye a partir de un modelo único que no
toma en cuenta características e identidades de los
componentes periféricos los que por su naturaleza
y situación son colaterales.
¿Quiero esto decir que la globalización es mala
y la integración dañina? Depende. Lo sería, si la
globalización, de cualquier signo que sea, se logra
restringiendo o anulando las posibilidades de otras
expresiones culturales; es decir, si lo homogéneo
no es síntesis de diferentes manifestaciones, si no
es un nivel que se alcanza mediante un progresivo
escalonamiento que incluye las realidades nacionales y regionales.
Puesto en términos positivos quiere decir que
la integración, y la globalización, pueden ser
beneficiosas, si se realizan a partir del encadenamiento de situaciones y de la estructuración de
propuestas y alternativas que se van construyendo
escalonadamente. Expresado en forma más directa
y precisa, el desafío actual para nuestros pueblos
es el de construir planes estratégicos, nacionales,
subregionales y regionales, que den nuevo contenido a los procesos de globalización, que permitan
rescatar la circunstancia en la que vivimos y en la
que se forman el destino personal de cada quién y
la historia de cada pueblo.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013
Alejandro Serrano Caldera
Para nosotros, herederos de la pobreza mundial,
pero también de un universo cultural antiguo y
polivalente, es de ineludible obligación plantearnos
con lucidez el problema, sin beaterías de izquierda
ni de derecha que se resisten a pensar con libertad
sometidas a los dogmas; que satanizan o sacralizan
y niegan la oportunidad de irrupción de un pensamiento crítico, a cuya ausencia se deben casi todos
nuestros males.
La globalización no es en sí misma un mal o un
bien. Será lo primero, si prevalecen los criterios
que pretenden una sociedad uniformada. Será lo
segundo, si la globalización equivale a una verdadera universalidad, formada por la conjunción de las
más variadas expresiones de la creatividad humana.
La globalización y robotización de los fenómenos económicos, la transnacionalización de la
economía y de los procesos financieros, vie­nen
determinando una restricción a lo que ha constituido la esencia del Estado moderno: la soberanía.
Las realidades que en el campo político han
servido de base a la Modernidad, están afectadas
por el concepto y el fenómeno de la glo­balidad.
Pero además de este hecho económico y financiero,
y de la exis­tencia de un modelo económico transnacional y global, se da un proceso de tecnologización acelerada que produce también sus propias
conse­cuencias.
Es el caso de los avances tecnológicos, de las
redes que constituyen hoy por hoy una especie
de realidad sobrepuesta al mundo que nosotros
conocemos y definimos con sus posibilidades y
sus límites. Es el sistema de redes de comunicación que crean la posibi­lidad de una realidad y un
lenguaje universal. Esto nos plantea un enor­me
desafío político, cultural y teórico, en la medida
en que este sistema ofrece, como nunca antes, a
la par de inmensas oportunidades de inte­gración
y desarrollo, las posibilidades de un dominio total
ejercido por un poder planetario.
Están dadas las condiciones y elaborados los
instrumentos para es­tablecer una civilización
planetaria. Está por verse si ésta será fruto del diálogo y retroalimentación de las culturas, o si será
consecuencia de la implantación de un modelo en
el que los medios se habrán transforma­do en fines
produciéndose la inversión teleológica de la que
nos habla­ba Hegel a comienzos del siglo XIX.
El desafío está en definir la manera conforme
a la cual debemos integrarnos a estos sistemas,
contribuyen­do a la formación de una civilización
planetaria que sea fruto de la uni­dad en la diversidad, neutralizando los riesgos de transformarnos en
sólo consumidores de mensajes estandarizados que
erosionan nuestra identi­dad y valores y transforman
a la civilización en un engrana­je de la uniformidad.
El desarrollo del ser humano, de sus aptitudes y
capacidades, se forma a raíz del proceso de apropiación de la cultura, creada por medio del trabajo
a través de la historia.
Esto es un proceso activo, pues supone, no
sólo la asimilación de la cultura acumulada, sino
además, el desarrollo de actividades específicas en
el hombre, en virtud de la apropiación que hace de
los objetos sociales.
La transferencia cultural y tecnológica en las
sociedades dependientes no reproduce ni asimila
socialmente los instrumentos transferidos. La
adaptación es mecánica y por lo mismo no genera
un proceso cultural en sentido dinámico e histórico. Por el contrario, estos mecanismos culturales
producen actitudes pasivas que a la larga llevan a
la incapacidad creativa y generan, o más bien degeneran en una conducta de sometimiento mecánico.
El ser humano ajeno al proceso de producción
de la cultura se convierte en un prisionero de ella.
La enajenación de la cultura produce el efecto inverso que la creación de la cultura. Mientras ésta
por el trabajo produce al mundo y produce al hombre alejándolo de las leyes biológicas e incorporándolo a la vida histórico-social, aquella, la cultura
enajenada, suprime la capacidad de creación, y la
asimilación histórica y la vocación de cambio, que
son los rasgos esenciales del ser humano.
La cultura es el mundo vivencial del ser
humano. Pero no toda cultura es auténtica. La
inautenticidad de la cultura está ligada a la crisis
del humanismo. Es auténtica, cuando al mismo
tiempo que hace progresar al hombre lo hace cada
vez más humano. Cuando en el remoto amanecer
de la especie lo rescata de la zoología a la historia.
Cuando lo reafirma cada vez más en sus signos de
humanidad, como ser libre, creativo, productor
y feliz. Es inauténtica, cuando aún haciéndolo
progresar materialmente, lo niega como tal, al reducirlo pasivamente en sus redes, al regresarlo de
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131
La filosofía y la cultura ante la globalización
la historia que es proceso de creación del mundo y
de auto producción del hombre, a las orillas de la
vida biológica y de la naturaleza vegetal, aunque
este hecho ocurra en la era de las computadoras, la
cibernética y la conquista de universo.
La cultura como tal, en sentido humanista y
auténtico, es el proceso de creación, asimilación
y recreación del mundo, para el bienestar, la
libertad y la auto producción del hombre. Esta,
sin embargo, deshumaniza y esclaviza, cuando el
modo de producción persigue solamente el lucro,
la riqueza y el beneficio, y se sustenta en la explotación de los hombres y de los pueblos. Cuando
“la concentración de la riqueza material produce
la concentración de la riqueza espiritual”. Cuando
los valores de un sector preponderante, desde el
punto de vista de la economía, se internalizan
abstractamente como valores de toda la sociedad.
Cuando las diferentes situaciones económicas,
sociales y culturales, rompen “la unidad de la
especie” y generan condiciones de dependencia
interna y externa. Cuando en el campo cultural, y
al igual que en otros campos, el mundo se divide
en dos: los que producen la cultura y los que en el
mejor de los casos se adaptan, o se mal adaptan
a la cultura producida por otros. Es decir los que
viven al margen de la cultura, imposibilitados, y,
luego, incapacitados de crear su propio hábitat, de
modificar su medio y en disposición de adaptación
sin posibilidades ni intenciones creativas. Cuando
se acepta sin análisis crítico y sin racionalización,
la cultura y la tecnología de otras sociedades, sin
llegar a comprender el proceso científico de su
producción ni su necesidad histórica.
Este es el gran riesgo y el drama de nuestro
tiempo. Por una parte, seres enajenados culturalmente y caracterizados por una vida pasiva y
refleja, seres que ven al mundo frente a un espejo
hasta llegar a ser incapaces de conocer y concebir
otra realidad que no sea el reflejo de la imagen.
Pueblos con marcado subdesarrollo económico,
social, científico y técnico, colocados al borde del
abismo de la historia, ante la grave posibilidad que
el desarrollo científico y técnico ahonde aún más
las grietas que lo separan del mundo desarrollado
y lo dañen irreversiblemente.
La transposición de esa realidad, a un medio
que técnicamente no ha alcanzado tales niveles
132
de desarrollo, crea en éste, necesidades externas
y origina una fractura entre el grado de desarrollo
interno y la necesidad producida en forma externa.
En virtud de esa disociación, la cultura tecnológica
incorporada en los objetos, no es asimilada activamente y por ello genera una conducta pasiva de
adaptación y luego de sometimiento a los objetos
y a quienes los producen.
Es claro pues, en cualquiera de las dimensiones en que se enfoque el asunto, que el problema
esencial de nuestro tiempo es la pérdida de la
libertad, y por ello, la deshumanización colectiva,
como segregado de la forma de vida de la sociedad
contemporánea. El hombre, cegado por la ambición
de acumular riquezas, o abrumado por los problemas materiales, de supervivencia, está limitado
para concebir el sentido de la libertad más allá del
tejido de la realidad socio-económica en la que se
encuentra atrapado.
La lucha por la libertad es, en primera instancia la expresión del derecho de la supervivencia
biológica. Esta actitud legítima, aún y cuando es
condición necesaria para que aflore la libertad, pues
ésta no existe en la explotación y en la miseria, no
agota en ese nivel la plenitud a la que el ser humano
tiene derecho.
El riesgo para la cultura es muy grande, pues
estamos enfrentados a un desafío que puede permitirnos desarrollar de manera extraordinaria los
verdaderos valores universales, dentro de los cuales
están incluidos los propios, o perecer culturalmente en la ava­lancha de una tecnificación que no se
detiene ante la identidad de las cul­turas ni ante las
diferencias.
Estamos ante un proceso de globalización no
sólo de la economía, de transnacionalización no
sólo de los mecanismos financieros, sino de glo­
balización y transnacionalización de los modelos
sociales, políticos y cul­turales que de alguna forma
se van transmitiendo como paradigmas de la comunidad humana.
La supranacionalización del capital y la transnacionalización de la producción están modificando
los conceptos Norte y Sur basados origi­nalmente en
la relación entre la geografía, las condiciones económicas y sociales y la división internacional del
trabajo, por un nuevo concepto en el que las fronteras se mueven y la geografía cambia. En numerosas
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Alejandro Serrano Caldera
oca­siones hemos señalado de qué manera, con la
transnacionalización de la producción, la riqueza
y la pobreza devienen fenómenos supranaciona­
les en una geografía que se va adaptando a los
requerimientos de un sis­tema con pretensiones de
cobertura planetaria.
Frente a la razón instrumental que constituye
la lógica de este proce­so de transnacionalización
de la producción, es nuestro deber trabajar en la
elaboración de una filosofía moral que humanice
ese alucinante proce­so y que descodifique los
signos en clave que la realidad económica, polí­
tica, social y cultural postindustrial conllevan. Lo
primero es desmontar la identidad que se trata de
establecer entre transnacionalización, globalización
y uniformidad con universalidad. Globalidad no es
universalidad; lo homogéneo no es universal, pues
la homogeneidad se logra restringiendo o anulando
las posibilidades de otras expresiones culturales.
Lo que uniforma no une, somete.
Lo verdaderamente universal en la cultura es lo
que unifica en su pro­pia heterogeneidad dentro de
una articulación determinada que permite no sólo
que las culturas diferentes coexistan, sino también
que sean capa­ces de retroalimentarse. Esta es una
de las labores inmediatas a desarro­llar: construir
una ética de la racionalidad, del desarrollo y de la
democra­cia, para adaptar críticamente los sistemas
tecnológicos en forma tal que pueda aprovecharse
lo mejor que conlleva la maravillosa experiencia
de la ciencia y la tecnología y, a la vez, evitar que
una transferencia cultural acrítica e inconsciente
nos conduzca, en un tiempo no demasiado largo, a
la abolición de nuestro propio rostro y de nuestro
propio rastro.
Una ética de los valores exige desde el principio señalar la crisis mo­ral que, en buena parte, se
debe a la pérdida considerable de autentici­dad y
a la adopción mecánica de los paradigmas de la
sociedad de con­sumo que se perfilan detrás de la
deconstrucción y fragmentación de los arquetipos
de la Modernidad. Parte de esta crisis, es como dice
Bonete Perales (1989, p. 277), “vivir con las pautas
económico-morales de la sociedad de consumo, sin
haber llegado a la economía de consumo”.
Es imprescindible, de acuerdo con el mismo
autor,
recuperar la ac­titud moral partiendo de los problemas
concretos como el de la injusti­cia en el mundo, las
desigualdades económicas, el problema de la guerra,
el de la violencia, el problema de la corresponsabilidad de los hombres de ciencia, de los intelectuales,
de las universidades, etc. Es necesario no dejar la
responsabilidad moral a la tecnocracia. (BONETE
PERALES, 1989, p. 289-290).
Es inmoral adoptar, o simplemente aceptar de
modo pasivo, la lógi­ca del consumo por el consumo
en la que, como dice Arangu­ren (1965 apud BONETE PERALES, 1989, p. 276), “el despilfarro
es exaltado psicológicamente como símbolo de
perte­nencia a un status superior, signo de ascenso
social, éxito y triunfo. Del puritanismo se ha pasado
al hedonismo, a la moral del puro bienestar, que
se hace consistir en el mayor consumo posible de
todos los bienes posibles”.
Por su parte, una ética de la democracia, agrega
Aranguren (1965 apud BONETE PERALES,1989,
p. 293-294), indica que
la democracia no es un status en el que puede un
pueblo cómoda­mente instalarse. Es una conquista
ético-política de cada día, que sólo a través de una
autocrítica siempre vigilante puede mantenerse,
como de­cía Kant de la moral en general, una tarea
infinita en la que si no se pro­gresa se retrocede, pues
incluso lo ya ganado ha de reconquistarse cada día
[…] La democracia nunca puede dejar de ser lucha
por la democracia […] Antes y más profundamente
que un sistema de gobierno es un sis­tema de valores
que demanda una educación político-moral […] El
inte­lectual deberá ejercer una función moralizadora,
crítica, utópica y hete­rodoxa respecto a la democracia establecida.
Al identificar la crisis que enfrentamos, es importante descodificar el neoliberalismo y las teorías
del fin de la historia, hacer una crítica al con­cepto
de globalidad, fundamentar el concepto de universalidad a partir de la existencia de las diferencias
y fundamentar una nueva ética sobre la base del
reconocimiento del otro. En eso reside la clave de
una formula­ción ética para nuestro tiempo: reconocer al otro, lo diferente; reconocer que existen
culturas que no necesariamente coinciden, sino
que difieren en su riqueza y multivocidad con las
culturas hegemónicas que tratan de dar una forma
unilineal al mundo contemporáneo.
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133
La filosofía y la cultura ante la globalización
En la medida en que seamos capaces de generar
esas alternativas fi­losóficas y éticas, estaremos
preparándonos para insertarnos en este pro­ceso de
transformación tecnológica y cambios cualitativos
que produce una revolución sin precedentes en la
historia de la humanidad. En los úl­timos años se
han dado transformaciones profundas. La filosofía
no pue­de dejar pasar estos acontecimientos, ni dejar
de relacionar la crisis de la ética, con el vertiginoso desarrollo de la tecnología, el cual se produce
desprovisto de los necesarios sustentos morales y
conceptuales, ya que es justamente la unión de una
teoría y de una práctica lo que puede per­mitir al
mundo desembocar en una experiencia moralmente
enriquece­dora a través del uso racional y humano
de medios tecnológicos que tie­nen, asimismo, una
posibilidad de utilidad sin precedentes.
Es imprescindible, por tanto, ir a las raíces y,
en nues­tro caso, rescatar los elementos que nos
permitan construir esa filosofía moral y esa ética
del desarrollo y la democracia para forjar la nueva
racionalidad que en­frente a la racionalidad instrumental, la que constituye la lógica dominan­te de
nuestro tiempo. No se puede aceptar un mundo
robotizado. Quere­mos un mundo humano, donde la
técnica esté al servicio de los valores y no los valores y el ser humano al servicio de los instrumentos
de domina­ción y de poder político universal, para
el que los estados-naciones no son más que correas
de transmisión de una sola política de dominación.
Si no somos capaces de hacer una formulación
clara de los riesgos que conlleva la transnacionalización económica y política postmoderna y postindustrial, si no somos conscientes de la necesidad
de asumir con sentido crítico desde la plataforma
de nuestra propia cultura la idea y el proceso del
desarrollo contemporáneo, estaremos asistiendo a
la sepul­tura de las culturas, de las diferencias y de
las identidades.
Se trata de preservar la identidad histórica y la
pervivencia y acción recíproca de todas las culturas;
de forjar un concepto de universalidad a través del
diálogo de las culturas y de la unidad en la diversidad. Para ello hay que sustituir el juego de una
sola imagen y de espejos múltiples por un concepto
y una práctica de integración y retroalimentación
de todas las historias y todas las culturas. No debemos aceptar ser los espejos en que se multiplica
134
la imagen del poder absoluto que se mira en ellos
como Narciso en el estanque.
Es importante que seamos capaces de reivindicar el reconocimiento del otro reafirmando nuestras
culturas y planteando la ética de la alteri­dad, del
respeto a las diferencias y de la solidaridad; que
seamos capaces de proponer una nueva axiología,
una nueva filosofía política que entien­da la política
como el arte del bien común y que se dirija a la
identifica­ción y fortalecimiento de nuevos sujetos
históricos de la sociedad civil. Esta filosofía debe
revisar la vigencia de los actuales conceptos de
políti­ca, soberanía, Estado, nación, entendida esta
última como proyecto cul­tural, moral y humano,
abierto a una verdadera universalidad, frente a la
globalización uniformadora del neoliberalismo.
La filosofía latinoamericana ante la
globalización
La filosofía latinoamericana, desde su propia
situación espacio-temporal, desde su historia y
su geografía, debe enfrentar el reto del presente.
Para ello es imprescindible, de previo, apropiarse
teóricamente del pen­samiento, la cultura y la historia de América Latina, tener una visión global de
la historia de las ideas en la región, con el objeto
de reivindicar para ellas la universalidad que les
correspon­de y para sustentarse sobre ellas, como
sobre una plataforma teórica y moral, con el fin de
enfrentar los retos del momento actual. Es necesario
reiterar esa doble necesidad: la de apropiarnos de
nuestra historia de las ideas y la de trascenderla
necesariamente al abrirnos, con ella, al desafío de
un horizonte más ancho. No hacer cualquiera de
las dos cosas seña­ladas nos llevaría, en un caso, a
la abstracción y al vacío, y en el otro, al enclaustramiento y autocolonización.
Es fundamental filosofar sobre este tiempo desde la propia situa­ción espacio-temporal. El desafío
que se impone no es sólo pensar nues­tra historia,
sino, desde ella, pensar la historia de la humanidad.
En virtud de esa circunstancia mediante la cual
los contenidos del fu­turo se encuentran en germen
en el presente, es posible entrever, la figura borrosa
y todavía latente de las posibilidades del porvenir.
Que lo latente se haga patente, que lo ambiguo e
incierto se vuelva evidente, que lo posible devenga
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013
Alejandro Serrano Caldera
realidad, dependerá de la com­binación de una serie
de factores sobre los cuales el ser humano tiene la
posibilidad de actuar.
No existe sobre los pueblos y su historia un destino inflexible que no pueda ser cambiado mediante
la combinación de una visión adecua­da y una acción oportuna. No hay un determinismo hermético
que con­sagre a unos como dominadores eternos y
condene a otros como domi­nados perpetuos, pese
a que en ciertas circunstancias, como las actuales,
parecieran agotadas las posibilidades de cambio,
consagrado un arque­tipo universal y condenados a
la uniformidad total de un solo modelo que suprime
las diferencias y reproduce infinitamente su imagen
refle­jada en infinito número de espejos, reproductores de una visión unifor­me y única.
A pesar de todo, un observador medianamente
atento puede identi­ficar los cambios, las paradojas
y las contradicciones de lo que pareciera ser la
instauración del único modelo posible, y llegar
a la conclusión de que lejos del fin de la historia
nos encontramos más bien en las fronteras de la
Modernidad, detrás de las cuales se abren nuevos
horizontes.
La Modernidad que se inicia en el siglo XVII se
afianza en la racio­nalidad y en la libertad mediante
las cuales, y por medio de la ciencia y la técnica que
construyen, el ser humano se lanza a la aventura de
for­jar su propio mundo como obra de su voluntad y
destreza. “¿Quién du­dará de que la emancipación
humana sólo puede em­pezar en el momento en
que nos asumimos como actores de nuestra propia
historia? […] La racionalización de las relaciones
sociales es la característica más importante del paso
de las sociedades tradicionales a las modernas”
(VILLORO, 1992, p. 95-96).
Junto a esto, agrego, la afirmación de la libertad
individual, de la soberanía y del Estado-Nación,
en un plano histórico-institucional. Sin embargo,
estos valores cambiaron con la consolidación del
capitalismo. “Para la Organización burocrática de
las sociedades desarrolladas todos los individuos
son homogéneos, intercambiables, esclavos de los
pequeños intereses perso­nales, computables para
las encuestas electorales o los pronósticos del mercado” (VILLORO, 1992, p. 98-99).
Hemos llegado más bien a la frontera de la modernidad, de esa mo­dernidad construida sobre la libertad,
la soberanía, el Estado-Nación y la razón histórica.
La libertad se pierde desde el momento en que el ser
hu­mano deviene un número, un objeto intercambiable; la identidad, cuan­do el sujeto es estandarizado;
la soberanía y el Estado-Nación se diluyen cuando
las decisiones dependen cada vez menos de un
poder soberano y nacional, para devenir decisiones
sin rostro adoptadas por un sistema transnacional
que se sobrepone a cualquier interés genuinamente
nacio­nal. Es el reino de la razón instrumental, de la
deshumanización y de la uniformidad.
Pero, ¿es éste un destino inexorable? ¿No queda
ninguna posibilidad para la libertad, la pluralidad
y el derecho a la diferencia? Pienso que no es un
destino inexorable y que sí hay posibilidad para
reivindicar la liber­tad esencial al ser humano.
Lejos de terminar la historia, creo más bien que
es un cierto tipo de historia el que ha entrado en
crisis a pesar de las apariencias. Puedo de­cir con
Zea (1993, p. 386) “que se ha iniciado una segunda
etapa de la histo­ria universal, la de la realización
de la libertad como expresión propia del hombre
sin rebajamientos que aplacen su posibilidad. No es
así el fin de la historia, sino el auténtico inicio de la
historia” en la cual, considero, deberá ser también
universal la idea y la práctica de la libertad.
Aproximaciones a un proyecto filosófico. Algunas reflexiones sobre el humanismo de nuestro tiempo
El humanismo de nuestro tiempo debe rectificar,
reintegrar la unidad fracturada y devolver al hombre y a la mujer su plenitud como seres integrales,
intuitivos y ra­cionales, y no como sujetos parciales
que han fundado la vida únicamen­te en la mitad
racional del ser. Jano tiene dos rostros y ambos
forman su unidad.
La integración dialéctica de ambas tendencias,
o lo que es lo mismo, la realización de la unidad
en la diversidad de las dos formas de interpre­tar y
actuar la historia y la naturaleza humana, es lo que
puede permitir­nos “humanizar la vida y vitalizar
las humanidades” y así recuperar valo­res que transcienden la utilidad, el provecho y la acumulación,
de los que está lleno el lenguaje, la conducta y las
categorías morales de nuestro tiempo. El egoísmo
predominante debe dar paso a la solidaridad. Exis­
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La filosofía y la cultura ante la globalización
tir es una palabra que nos sugiere vivir para algo
más que para sí mismo. Ex-sí, fuera de sí, hacia
los otros, hacia el prójimo, que es el próximo, es
algo más que sobrevivir, es vivir, es más que vivir.
Hablar de un proyecto filosófico desde América
Latina exige aclarar que todo proyecto implica
una propuesta y toda propuesta es un intento de
abrir caminos cuando se considera que otros están
cerrados.
El proyecto de la Ilustración que en la filosofía,
el derecho y la política, se abre en Europa en el
siglo XVIII, lo mismo que el proyecto que propuso
el romanticismo y el positivismo en el siglo XIX,
parecieran agotados, o al menos en crisis. Con ellos,
de alguna forma, se ha construido el pensamiento y
la historia de América Latina, por lo que su crisis,
querámoslo o no, nos afecta.
El rechazo que la llamada filosofía postmoderna
presenta a la Ilus­tración, es el rechazo al autoritarismo de la razón y al universalismo abs­tracto de sus
principios absolutos e imperativos, confeccionados
desde el reino de la razón y desde el escenario
espacio-temporal europeo, con desconocimiento,
consciente o no, de otras realidades en la historia
y en el pensamiento. No obstante, lo que sería la
propuesta postmoderna, si es que se puede hablar
en esos términos de la Postmodernidad, no reco­
noce suficientemente el peso específico que las
expresiones de la razón, han tenido en la historia
concreta de la persona y de los pueblos.
Además, la sociedad postindustrial, contemporánea de la filosofía postmoderna y de alguna forma
emparentada con ella, ha producido al neoliberalismo y la globalización, expresiones imperiales y
autoritarias establecidas sobre valores absolutos y
principios inapelables en el mun­do transnacional,
que en una u otra forma vivimos y padecemos, a
pe­sar de la deconstrucción, la fragmentación de
los paradigmas y el “pen­samiento tenue o débil”
que proponen los filósofos postmodernos. Así, de
esa manera, estamos enfrentados también ante
el Doble Rostro de la Postmodernidad. Muchas
cosas de la Modernidad deben ser retomadas y
cumplidas, como la libertad no realizada; otras, de
la Postmodernidad, deben ser asumidas, como el
reconocimiento del otro, el respeto a la di­ferencia,
el diálogo de las culturas, la identidad y la diversidad, como for­mas de la universalidad.
136
En este marco general de la filosofía mundial
contemporánea, creo que el tra­bajo de los filósofos
latinoamericanos y de la filosofía desde América
La­tina, tiene un papel muy importante que desempeñar para construir una filosofía desde América
Latina, lo que significa más que una referencia
territorial, una situación en el tiempo, la historia y
la cultura, y una de­terminada perspectiva para enfocar los problemas universales de nues­tro tiempo
y para lanzar a un horizonte sin fronteras, es decir,
universal, los temas tenidos hasta hoy como locales,
circunscriptos a una específica historia y geografía.
La referencia histórica y cultural no es otra cosa
que un observatorio, un punto de vista, con todas
las connotaciones e impli­cancias que esto conlleva.
El proyecto filosófico que enfrente los retos del
siglo XXI, proyec­to de la unidad en la diversidad,
debe superar la separación entre realidad y razón,
pues la razón es vida pensada y pensamiento vivido;
debe ser entendido, al menos, desde tres puntos
de vista o posibilidades: como síntesis, en tanto
resultado de una nueva categoría formada por la
con­vergencia de varios afluentes que al dar forma a
la unidad resultante, pierden su identidad individual
que se disuelve en una dimensión uni­versal; como
articulación de diversidades que forman un todo
unitario, pero sin perder su particularidad; y como
coexistencia de diferentes si­tuaciones que no son
asimiladas ni por consenso ni por ninguna forma­
ción definida por un grupo hegemónico de poder,
sea éste político, so­cial o de otra índole.
Un ejemplo del primer caso podría ser el de
los Derechos Humanos; del segundo, el contrato
social, el consenso o el proyecto de Estado-Na­ción;
y del tercero, el reconocimiento de los derechos de
las minorías, cualquiera sea su naturaleza, en su
identidad y expresión particular. Ante las exigencias actuales que enfrentan la filosofía y la ética,
pro­ponemos las siguientes hipótesis:
•
•
•
la filosofía es un proceso dialéctico que va
de lo abstracto a lo con­creto en la búsqueda
de la verdad;
la historia de la filosofía es una función integradora y relacionado­ra de los resultados
de la filosofía a través del tiempo;
la filosofía, al buscar lo universal que resulta de las situaciones par­ticulares, es un
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013
Alejandro Serrano Caldera
•
quehacer estrechamente relacionado con el
desa­rrollo histórico y social
en consecuencia, la filosofía es una tarea de
reconstrucción, inte­gración e incorporación
entre la vida y el trabajo, el pensamiento y
la acción, la ciencia, la moral y el derecho,
el análisis y la síntesis.
Como resultado de estas hipótesis formulamos
las siguientes proposiciones:
•
•
•
•
•
•
todo pensamiento, en cuanto acción de la
inteligencia y la concien­cia, entra en la
historia, se historiza;
el ser humano es un desplegarse que deviene historia. No es una objetividad dada, es
movimiento en la historia; no está nunca
rea­lizado, pues está realizándose;
es la forma particular que el movimiento
toma en el tiempo a través de la existencia
personal o social;
hay dos elementos que conforman este devenir: la vocación y la vo­luntad del sujeto.
Juntos, vocación y voluntad, forman el ser;
el proceso de construcción de la historia es
el proceso de construc­ción del ser humano.
Éste se crea al crearla;
lo que el hombre hace forma parte de lo
que es; lo que el hombre es forma parte de
lo que hace. En este sentido, se entrelazan
la on­tología y la historia, la filosofía y la
práctica;
•
•
•
•
el ser, al manifestarse, lo hace históricamente; el propio ser es un manifestarse en
la historia;
la filosofía es la realidad que debe transformarse en concepto; pero es, a la vez, el concepto que debe transformarse en realidad;
la teoría es la razón de la práctica y ésta la
historicidad de la razón. La unidad de ambas
es la praxis;
así entendida, la historia, lejos de ser una
deidad implacable, el altar del sacrificio del
ser humano, es el tejido de relaciones del
ac­tuar del hombre, la esencia misma de un
humanismo concreto construido de penas
y esperanzas, triunfos y fracasos, ilusiones
y decepciones.
La realización de la filosofía como quehacer
humano, como diálo­go, como compromiso solidario, exige necesariamente asumir posición frente
al tema de la globalización y la cultura, reunificar
lo disperso, respetar las identidades y proyectarlas
al horizonte universal de la razón. Mientras haya
preguntas habrá filosofía. Mientras el ser humano
sienta la necesidad de explorar el fondo de su conciencia y de su razón, de interrogar al mundo sobre
sus contradicciones y de construir y construirse
una realidad habi­table, la filosofía estará presente
ofreciendo desde diferentes ángulos y diversas
perspectivas, una forma de construir la historia y
de compren­der y amar la vida.
REFERENCIAS
BONETE PERALES, Enrique. Aranguren: la ética entre la religión y la política. Madrid: Editorial Tecnos, 1989.
VILLORO, Luis. El pensamiento moderno. Filosofía del Renacimiento. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1992.
ZEA, Leopoldo. Filosofar a la altura del hombre: discrepar para comprender. México, DF: UNAM, 1993.
Recebido em 14.08.2012
Aprovado em 28.12.2012
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013
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Roberto Bartholo Jr
DESATANDO A IMAGINAÇÃO:
BREVES NOTAS SOBRE ÉTICA E CRÍTICA NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
Roberto Bartholo Jr*
Soy hombre: duro poco
Y es enorme la noche
Pero miro hacia arriba:
Las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
También soy escritura
Y en ese mismo instante
Alguien me deletrea
Octavio Paz
RESUMO
Apoiado em contribuições teóricas de Vilém Flusser, este artigo discute o lugar do
diálogo e do discurso no mundo contemporâneo e destaca implicações da programação
e da produção de imagens técnicas para os modos hegemônicos de organização
da cultura e exercício de dominação. Por fim, aponta desafios confrontados pelas
instituições acadêmicas contemporâneas.
Palavras-chave: Diálogo. Discurso. Programação. Crítica. Imaginação. Liberdade.
ABSTRACT
UNTYING THE IMAGINATION: BRIEF NOTES ON ETHICS AND
CRITICISM IN THE CONTEMPORARY WORLD
Supported by theoretical contributions of Vilém Flusser, this article discusses the place
of dialogue and discourse in the contemporary world and highlights implications of
programming and technical images for the hegemonic ways of organizing culture and
exercising domination. It ends with a warning on challenges faced by contemporary
academic institutions.
Keywords: Dialogue. Discourse. Programming. Critics. Imagination. Freedom.
* Doutor em iversidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Engenharia de Produção do Instituto Alberto Luis
Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ) na área de
Gestão e Inovação, onde chefia o Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS). Endereço para correspondência:
Programa de Engenharia de Produção (COPPE/UFRJ). Caixa Postal 68507. CEP: 21941-972. Rio de Janeiro - RJ. bartholo.
[email protected]
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Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo
1. Criação de sentido
Rafael Cardoso, organizador brasileiro de importante coletânea de escritos de Vilém Flusser publicada em 2007 com o título O Mundo Codificado:
por uma Filosofia do Design e da Comunicação,
abre a Introdução desse livro com as seguintes
palavras: “[...] um dos maiores pensadores da
segunda metade do século XX viveu durante mais
de trinta anos no Brasil” (FLUSSER, 2007a, p. 9).
Só posso concordar.
Flusser não apenas transitou pelo Brasil. Ele
dialogou com seus Mitmenschen1 brasileiros. Uma
de suas obras em português nos desvela encontros
e diálogos que marcaram sua vida (FLUSSER,
2007b). Em meio a fecundas relações com alteridades diversas, faz-se visível uma marca indelével
a ser reaprendida e identificada, a de um cidadão
praguense. Praga era, para Flusser, muito mais que
um mero dispositivo urbano. Era todo um “clima
existencial” que “[...] supera todas as diferenças
nacionais, sociais e religiosas. Se tcheco, alemão
ou judeu, católico, protestante ou marxista, burguês ou proletário: pouco importa. Antes de mais
nada se é praguense” (FLUSSER, 2007b, p. 23).
Essa tatuagem na alma flusseriana tem dupla face:
uma é a crença de viver em meio aos muros de
um abrigo seguro dos poderes do mundo e seus
perversos desvarios; a outra, a radical descrença
disso, imposta pela ocupação nazista. Flusser testemunhou a “desfeitura aos pedaços” de seu ilusório
domicílio perene: o desaparecimento, junto com a
pseudo-eternidade dos muros de sua Praga, de tudo
que mais queria de seu (família, amigos, faculdade,
filosofia, arte, planos para o futuro).
Um belo texto do capítulo final de Bodenlos nos
fala do tardio reencontro de Flusser com Praga:
O caminho impele para os becos bem estreitos e para
as vielas. E agora é preciso falar do difícil problema do
hábito. Quando eu era rapaz e residia em Praga, passava por essa região sem percebê-la. O hábito, para mim,
repousava sobre essa região como um cobertor. Agora,
uma vez que os 52 anos corroeram e dissolveram a cobertura do hábito, recebo nos olhos o impacto inabitual
das cenas. [...] Os 52 anos que repousam entre o hábito
e a redescoberta foram como um século, e não como a
1 Uma das palavras alemãs que Flusser deixa permear seus escritos,
e que traduzo por “co-humanos”.
140
cinza do Vesúvio, que soterrou a cidade de Pompéia,
mas também a conservou. Foram, sim, como um rio
de lavas que queimou e escavou as construções e suas
estátuas. Esta Kleinseite percorrida é uma transversal
dos dois açoites de Deus – o nazismo e o stalinismo – e
das cicatrizes abertas por suas chibatadas. (FLUSSER,
2007b, p. 244).
Para Flusser, em significativa convergência com
as filosofias da existência em voga na Europa após
a Segunda Grande Guerra (e com Albert Camus
em particular), a existência humana é jogada num
abismo de experiências absurdas, em condições
que podem ser designadas pela palavra alemã Bodenlosigkeit2. A condição humana é um vir a ser,
uma tarefa que nos exige o empenho pela criação
de sentido na confrontação com a contingência da
vida. Esta criação de sentido é uma resposta relacional, que requer conexão comunicativa e consciente
com outros, para o que se necessita de um código,
e podemos usar variadas tecnologias.
2. Diálogo e Discurso na Sociedade Telemática
Como bem aponta Andreas Ströhl, organizador
da mais importante coletânea de textos de Vilém
Flusser publicada em língua inglesa (FLUSSER,
2002), na perspectiva flusseriana o vir a ser humano
“[…] is an interpolation, a node in a network of
interactions and possibilities” e “dialogues spin the
threads that constitute the I [...] . But the Thou I
am in a dialogue with is also an extrapolation from
such relations”3 (STRÖHL, 2007). Assim, para
Flusser, nem sujeitos nem objetos são compreendidos como entidades determinantes do real e, numa
realidade entendida como um campo possibilista
de relações, o eu “[...] turns out to be a movable
node in an intersubjective fabric”4 (FLUSSER,
1994 apud STRÖHL, 2007).
Podem ser indicadas afinidades entre as perspectivas de Flusser e proposições de Martin Buber,
2 A tradução literal é “ausência de chão”. Prefiro, no entanto, a
tradução com alguma ressonância poética pela palavra portuguesa
“desterro”.
3 “[...] é uma interpelação, um nó em uma rede de interações e
possibilidades” e “os diálogos tecem os fios que constituem o eu
[...]. Mas a pessoa com quem eu esteja dialogando é também uma
extrapolação dessas relações.”(As traduções em nota de rodapé são
da profa Dra. Valquiria C. M. Borba)
4 “[...] torna-se um nó móvel em um tecido intersubjetivo.”
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
Roberto Bartholo Jr
relativas ao “princípio dialógico” na antropologia
filosófica (BARTHOLO, 2001a), e de Richard
Rorty relativas às infinitas teceduras de descrições
e re-descrições nos processos comunicativos e às
contingências da linguagem, da identidade e da
comunidade (RORTY, 2007). Entretanto algumas
diferenciações são significativas. A proposição
flusseriana traduzida em termos da antropologia
filosófica de Martin Buber nos diria que a referência
ao Isso é discursiva e a referência ao Tu é dialogal.
E mais ainda: para Flusser seria um empenho vão
o de se pretender uma experiência comunicativa
direta e de primeira mão do Isso das coisas do
mundo, pois as informações são produzidas nos
diálogos e podem ser sintetizadas de informações
já existentes, e somente depois disso é que se faz
possível sua difusão através dos discursos.
Analogamente a Buber, que dizia ser o homem
um ser relacional e apontava para dois modos
básicos de relação: o modo Eu-Tu e o modo Eu-Isso, Flusser caracteriza diálogo e discurso como
dois modos básicos de atos comunicativos que se
estabelecem entre as memórias de um eu e um (ou
vários) tu, enfatizando que a fonte dos novos conhecimentos é o diálogo e os nomes próprios nele
nomeados. Nas relações dialogais, informações são
produzidas. Os discursos apenas as transmitem.
A perspectiva flusseriana transpõe a concepção
de Edmund Husserl do “mundo da vida” como
uma rede de intencionalidades concretas para um
novo contexto: a antevisão da sociedade telemática
emergente. Este novo contexto vital do gênero humano se configura como uma sociedade em redes,
portadora de novos horizontes de possibilidades
relacionais para aquilo que Martin Buber chamou
de “a vida dialógica” (das dialogische Leben).
A perspectiva flusseriana é convergente com
a perspectiva de Rorty de que nessa “vida dialógica” tanto a identidade do eu, como o seu senso
de comunidade (sua aptidão a dizer “nós”) são
produtos da tecedura de uma rede de descrições e
redescrições. Nessa rede não há verdades perenes e
totais, apenas contingentes e interiores a discursos
passíveis de reconstruções.
O discurso flusseriano faz uma apologia da
liberdade e da criação num tempo de rupturas,
descontinuidades e transições críticas na organização da cultura. Ele aponta para o limiar de novas
institucionalidades, apoiadas em novos modos de
interação e tecnologias comunicativas. Andreas
Ströhl identifica que a mais importante contribuição
dos “innovative writings”5 flusserianos é teorizar,
e por fim abraçar “[…] the epochal shift that humanity is undergoing from what he termed linear
thinking (based on writing) toward a new form of
multidimensional, visual thinking (embodied by
digital culture)”6 (STRÖHL, 2007).
Flusser não é – nem quer ser – um observador
impassível. Seus textos nos comunicam uma aposta
(e nos querem seduzir a apostar junto com ele):
“que na nova cultura digital e na nova sociedade
telemática emergente o diálogo possa ser afirmado
como o ‘valor mais alto’” (FLUSSER, 1987, p. 98).
Em sua aposta Flusser não é ingênuo. Ele reconhece
e identifica o poder manipulador dos meios de comunicação de massa. Para isso constrói uma tipologia de padrões comunicativos discursivos e aponta
que foi o discurso anfiteatral que configurou os
modernos meios técnicos de comunicação de massa. Nesse tipo de discurso os diversos receptores
somente podem receber as mesmas informações.
Não lhes são disponíveis canais de transmissão que
possam servir de suporte para interações dialogais.
Para Flusser, a autêntica comunicação só é
possível quando “dialogue and discourse balance
each other out. If, as we see today, a discursive form
dominates, which prevents dialogues from taking
place, then society is dangerously close to decomposing into an amorphous crowd”7 (FLUSSER,
1993, p. 232). Ele identifica na televisão os mais
fortes exemplos do discurso anfiteatral, e aponta
como ela enfatiza as características do circo: “[...]
its massifying effect, the false freedom, the lack
of responsability, the impossibility of a dialogue,
the passivity vis-a-vis the black box, the magical
power of this box, the ontological alienation with
all its aesthetic, epistemological and political
consequences and the programmed behaviour”8
5 “escritos inovadores”
6 “[...] a mudança que a humanidade está passando, o que ele chamou de
pensamento linear (baseado na escrita) em direção a uma nova forma
de pensar multidimensional e visual (incorporada pela cultura digital)”
7 “diálogo e discurso estão em equilíbrio. Se, como vemos hoje, um
discurso prevalece, o que impede o diálogo, então, a sociedade fica
perigosamente perto de se transformar em uma multidão amorfa”
8 “[...] seu efeito massificante, a falsa liberdade, a falta de responsabilidade, a impossibilidade de diálogo, a passividade cara a cara com
a caixa preta, o poder mágico desta caixa, a alienação ontológica
com toda a sua estética, consequências epistemológicas e políticas
e o comportamento programado”
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
141
Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo
(FLUSSER, 1998, p. 285). Ele destaca que o poder
manipulador dos meios de comunicação de massa
repousa principalmente na influência exercida sobre
os receptores com a difusão de discursos eclipsando
os diálogos. Por fim ele adverte como podem ser
perversas as consequências da articulação simbiótica de duas estruturas eminentemente discursivas
e não dialogais: a anfiteatral dos meios de comunicação de massa e a piramidal dos partidos políticos.
A aposta flusseriana pode ser entendida como
um empenho pelo resgate de “vida dialógica”, tão
cara a Buber e Husserl. Mas apenas se isso não for
confundido com a nostalgia regressista de padrões
relacionais arcaicos. Flusser não quer se rebelar
contra a modernidade. Sua aposta é a radicalização
de uma de suas possibilidades modernas redesenhando formas e estruturas discursivas em formas
e estruturas dialogais, redesenhando o balanço entre
os campos dos discursos e dos diálogos na nova sociedade telemática emergente. Em síntese, a aposta
flusseriana aponta para a possibilidade de novos
desenhos institucionais, não apenas tecnológicos.
Para Flusser, a sociedade telemática emergente
reconfigura a rede de intencionalidades concretas
do “mundo da vida”. Peça-chave dessa reconfiguração é o “apparatus-operator complex” que
atua como vetor dinâmico das mudanças sociais
e tecnológicas contemporâneas redesenhando o
modo de organização da cultura. Para isso ele
“[...] devours texts, to spit them out again as
techno-images” (FLUSSER, 1998, p. 151). Assim, a escritura dos textos perde centralidade na
organização da cultura contemporânea, e com ela
também a consciência histórica. O “pensamento
em linha”, que se desdobra nos textos escritos e
na consciência histórica, é agora não mais que um
insumo do novo “apparatus-operator complex”
produtor de imagens técnicas, que são o suporte
para a hegemonia cultural de um novo modo de
pensamento: o “pensamento em superfície”, que
se desdobra nas imagens digitalizadas e na nova
consciência mágica, que redesenha os horizontes
e fronteiras do real e do virtual.
3. Uma nova imaginação
Para Flusser, a principal tarefa que se coloca
diante da humanidade contemporânea é a da crítica
142
da tecno-imaginação. Para isso necessitamos de
orientação e autonomia, o que pode ser uma das
principais funções das relações dialogais. Ele alerta
que, sem o exercício dessa crítica, o que se seguirá é
a reprodução ampliada do aparato de programação
da vida. Andreas Ströhl radicaliza as implicações
das tendências apontadas por Flusser, afirmando
que “[…] the apparatus’s pictorial diarrhea will
then make sure we will drown in a messy flood of
kitschy aesthetic pictorial shit”9 (STRÖHL, 2007).
O cenário flusseriano da projeção de futuro
é uma grande provocação. Sua intencionalidade
é nos provocar a responder: como podemos ser
críticos e viabilizar meios dialógicos de filtragem
e busca em meio às “contemporary media arts”10
e seu universo de imagens técnicas. Sem isso, a
tendência prevalecente será que tecnologias, textos
e imagens tradicionais serão engolidas pelo aparato. Nosso pensamento crítico vive um momento
de transição. Ele perdeu a velha “terra-firme” da
escritura textual e da consciência histórica, sobre
os quais havia se habituado a encontrar os meios
adequados de expressão. A modernidade contemporânea já atravessou um limiar que destituiu na nova
organização da cultura digitalizada a centralidade
desses velhos suportes (os textos superados pelas
imagens técnicas e a historicidade de um tempo linear superada por complexos e descontínuos modos
de imaginação). A crítica flusseriana implica mais
que uma simples apologia da interatividade. Ela
visa qualificar a interatividade, e nessa qualificação
afirmar uma interatividade a serviço da dialogicidade, não apenas da difusão de padrões discursivos.
Encontramos na atitude flusseriana significativa
convergência (mas também forte radicalização)
com relação a um velho texto de Bertolt Brecht
(datado de 1925) sobre os padrões comunicativos
do rádio:
[...] quite apart from the dubiousness of its functions,
radio is one-sided when it should be two. [...] It is
purely an apparatus for distribution, for mere sharing out. So here is a positive suggestion: change this
apparatus over from distribution to communication.
The radio would be the finest possible communicati9 “[...] a imagem do mecanismo da diarreia trará a certeza de que nos
afogaremos em poças imundas enquadradas em uma estética cafona
de sujeiras”
10 “artes da mídia contemporâneas”
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
Roberto Bartholo Jr
on apparatus in public life, a vast network of pipes.
That is to say, it would be if it knew how to receive
as well as to transmit, how to let the listener speak
as well as hear, how to bring him into a relationship
instead of isolating him. On this principle the radio
should step out of the supply business and organize
its listeners as suppliers. Any attempt by the radio
to give a truly public character to Public occasions
is a step in the right direction.11 (BRECHT, 1925).
A implicação mais radical da crítica flusseriana
do “apparatus-operator complex12” diz respeito a
uma dimensão nevrálgica da “produção de sentido”: o sentido da liberdade na condição humana.
Essa implicação é apontada por Andreas Ströhl na
indagação: “[...] how does the process of personalisation of the media, of their material possession,
of the environments they create, and of their surface
design affect our society and culture?13“ (STRÖHL,
2007).
Para Flusser, vivemos o limiar de novas condições de possibilidade, novos espaços de experiência e novos horizontes de expectativa para a
dialogicidade na condição humana. A ruptura com
uma relação servil aos discursos programados do
“apparatus-operator complex” nasce da aposta na
possibilidade de espaço para diálogos em meio à
interatividade propiciada pelo novo universo das
imagens técnicas. Isso implica ousar um redesenho
das institucionalidades no novo modo de organização da cultura. Um re-desenho que precisa
circunscrever e delimitar campos de vigência para
novos padrões de relações de poder, nascidos da
emergência de uma nova dualidade assimétrica,
imposta pelo novo par “programadores e programados”, como dualidade-chave nas novas relações
de poder e dominação no mundo contemporâneo.
11“[...] além das dúvidas sobre as suas funções, o rádio é parcial quando deveria ser imparcial. [...] É apenas um aparato de distribuição,
de mera partilha. Então, eis uma sugestão positiva: mudar este
aparato de distribuição para comunicação. O rádio seria o aparato
de comunicação de mais sucesso na vida pública, uma vasta rede
de canais. Isso significa dizer que seria se soubesse como receber
e como transmitir, como deixar o ouvinte falar assim como ouvir,
como trazê-lo para a relação ao invés de isolá-lo. A partir desse
princípio, o rádio deveria se afastar da comercialização e transformar
seus ouvintes em fornecedores. Qualquer tentativa do rádio de dar
um verdadeiro caráter público às ocasiões públicas é um passo na
direção correta.”
12 “complexo aparelho-operador”
13 “[...] como o processo de personalização da mídia, do seu poder
material, dos ambientes que cria, e de sua estruturação afetam nossa
sociedade, nossa cultura?”
A afirmação da liberdade no novo contexto não
se efetiva apenas pela possibilidade franqueada
pelas novíssimas tecnologias da comunicação do
usuário vir a se tornar um operador de “personalised media14” ou “media environments”15. A ampliação dos limites da interatividade através de fluxos
reversíveis e multidirecionais de informações pode
servir de suporte para transformar usuários em
operadores, mas isso não basta para fazer deles
autênticos programadores. Os operadores são
apenas aptos ao exercício de um nível de “controle de segunda ordem” vis-à-vis a programação
embutida nos novos dispositivos comunicativos
da cultura digital contemporânea. Nas palavras de
Andreas Ströhl:
[…] they do not have any access at all to the programme behind the apparatus whose operators
they have become, neither in a technological nor
in a political, theoretical/reflective or economic
sense. However, they enjoy what they have been programmed to believe they have gained: more mobility,
more freedom, and more self-determination. […]
iPods create iOperators. The more the apparatus
allows for a personal design, personal settings of
the software or the interface, the more they become
involved and dependent on the function they are
taking over in the black box apparatus-operator
complex. If everybody is programmed to be such
an operator, there will be only operators left, and
everybody will have become part of the machine:
robots.16 (STRÖHL, 2007).
“A exigência que se nos coloca é a de ousarmos dar o salto na nova imaginação” (FLUSSER,
2007a, p. 170)17. Essa é, para Flusser, a tarefa
14 mídia personalizada
15 ambientes digitais
16 “[...] eles não têm qualquer acesso ao programa por trás do aparelho
dos quais se tornaram operadores, nem em um sentido tecnológico,
nem em um sentido político, nem em um sentido teórico/reflexivo,
nem em um sentido econômico. Contudo, eles apreciam o que foram
levados a acreditar que ganharam: mais mobilidade, mais liberdade
e mais autonomia. [...] iPods criaram iOperadores. Quanto mais o
aparelho permite configurações pessoais, definições pessoais do
software ou interfaces, mais eles se tornam envolvidos e dependentes
das funções que estão adquirindo do complexo aparato-operador
na caixa preta. Se todo mundo é programado para ser tal operador,
sobrarão apenas operadores, e todo mundo se tornará parte da
máquina: robôs.”
17 A frase é uma citação literal da tradução do texto original alemão de
1990 Eine neue Einbildungskraft (Vilém Flusser Archiv – http://www.
flusser.khm.de) incluída na coletânea organizada por Rafael Cardoso.
A mesma questão já era apresentada no encerramento do livro clássico
Filosofia da Caixa Preta, primeira edição brasileira de 1985.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
143
Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo
urgente do filosofar contemporâneo. Para a aposta
flusseriana, a ousadia da nova imaginação não diz
apenas respeito ao re-desenho de categorias epistemológicas, nem diz apenas respeito ao discurso
da crítica intelectual que duvida e questiona as
certezas das crenças. Ela inclui essa crítica, sem
se fechar à “proximidade do em tudo diferente”.
E nisso se diferencia do percurso que hegemonicamente trilhou e trilha a cultura dita “ocidental”.
Sem a abertura para a proximidade com o em tudo
diverso, o discurso hegemônico ocidental se institui
a si mesmo como uma intelectualização autoreferida, e prolonga em infindável ritualização uma
“conversa fiada”. Nela se fala cada vez mais para
se significar cada vez menos.
A aposta flusseriana quer redesenhar o campo
de vigência de diálogos e discursos e quer, apoiada
na nova imaginação crítica, re-desenhar o mundo
da vida e sua rede de intencionalidades, valorações
e vivências concretas, abrindo campo para a efetivação de capacidades “[...] que até agora apenas
dormitavam em nós” (FLUSSER, 2007a, p. 177).
Mas para isso essa nova imaginação terá que, em
meio a um novo contexto de produção de sentido,
fazer suas a tarefa e a oportunidade de priorizar a
pergunta: liberdade para que? e desmitologizar
o rito dos discursos programados do “apparatus-operator complex”.
Recuperar a “proximidade do em tudo diferente” é antes de mais nada experienciar limites.
Inclusive limites para a pretensão de se vir a ser
programador de tudo. Não se trata apenas de
franquear aos programados o acesso aos códigos e
habilidades dos programadores. Trata-se, antes – e
principalmente –, de delimitar campos de vigência
para discursos e diálogos, e para atividades programadas e não programadas em nossas vidas.
Em termos buberianos, a relação programador/
programado é do tipo eu/isso. As relações do tipo
eu/isso não são intrinsecamente más. O que pode
ser ruim é a imposição de relações do tipo eu/isso
inviabilizando e excluindo espaços de encontros
e diálogos do tipo eu/tu. Mas também é possível
imaginar relações do tipo eu/isso operando a serviço de relações do tipo eu/tu.
Na perspectiva rortyana, discursos são descrições do mundo segundo o cânon de um vocabulário
instituído. Eles são sempre em prosa, reproduzem o
144
cânon e não o subvertem. Para Rorty, as redescrições começam com a subversão do cânon, propiciada pela ousadia poética de carregar as palavras
com novos significados. As palavras inaugurais de
novas descrições são metafóricas. É por isso que
elas podem expressar, com vocabulários antigos,
novas “dizibilidades”. A comunicação dialogal é
aberta à proximidade do “de todo diferente”, da
alteridade do outro. A mútua compreensão em
relações dialogais autênticas apoia-se em interpretações metafóricas que promovem recíprocas
interferências. A comunicação dialogal é aberta à
tecedura de uma infindável rede de descrições e
re-descrições. Assim, numa perspectiva rortyana
a nova imaginação flusseriana deve, portanto,
propiciar uma ampliação da permeabilidade dos
discursos aos diálogos, subvertendo os cânones
fixos das conversações em prosa, ampliando o campo de novas “dizibilidades”, de novas descrições
e re-descrições.
Vivemos hoje, na academia, um tempo marcado pelos efeitos mais perversos de um eclipse
da erudição, que Lindsay Waters, antigo editor da
Harvard University Press, nos alertou em livro
publicado em 2004 (WATERS, 2004): a produção
intelectual dita qualificada evidencia crescente insensibilidade para arriscar respostas face a face aos
apelos das presenças. Os caminhos de aprendizado
e formação terminam por se deixar identificar com
uma autodestrutiva corrida louca, que faz com que
o norte da atividade universitária se resuma em
atingir indicadores de produtividade em pesquisa,
concebidos como fruto de um mau uso e abuso da
cientometria. As novas gerações são empurradas a
escrever cada vez mais papers para publicação em
periódicos científicos de circulação internacional,
indexados e ranqueados segundo o cálculo de seus
“fatores de impacto”, sem permitir-lhes um minuto
sequer para se perguntarem sobre as condições de
produção (e comércio) de tais indicadores. Nesse
contexto é árdua tarefa se afirmar como um acadêmico erudito, cuja obra não se deixe reduzir unidimensionalmente a uma produção seriada de papers,
escritos para serem transformados em estatísticas
a serviço da gestão da produção de uma produção
intelectual dita qualificada que se fez surda para a
verdade da ácida ironia do Premio Nobel de Física
Wolfgang Pauli, ao dizer: “não me importo com
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
Roberto Bartholo Jr
seu pensamento lento. O que me incomoda mesmo
é você publicar mais rápido do que pode pensar.”
(PAULI apud WATERS, 2006, p. 5).
Em síntese: o grande desafio acadêmico contemporâneo é legar um testemunho para as novas
gerações de que é, sim, possível publicar sem
perecer. Tudo depende de como tecemos nossas
escrituras.
4. Uma advertência muito antiga
Exemplares nesse contexto são a vida e a obra
de Larissa Adler Lomnitz. Desde seu posto de observação na Universidad Nacional y Autonoma de
México (UNAM), Larissa tem papel de destaque
nos estudos das redes sociais, desde muito antes
que o tema se tornasse ponto focal da atenção num
mundo onde a web é peça-chave na organização
da cultura. Aberta aos apelos e surpresas da vida
vivida, sua obra dialoga com as realidades, desvela
teias de relações e elabora interpretações. O que se
nos apresenta em suas narrativas é um “mundo em
camadas”, que tem nas bonecas russas sua melhor
metáfora: realidades-matriochkas, onde outros
mundos se fazem presentes uns dentro dos outros
(LOMNITZ, 2009).
Assim, diálogos e interpretações constroem e
reconstroem nas teceduras do formal e do informal
os desenhos dos espaços relacionais inter-humanos.
Este é um ofício que exige rigorosos engenho e
arte. Mas, antes de tudo, requer o exercício de uma
liberdade muito especial: o desapego das certezas
fixas e pré-estabelecidas e uma disponibilidade para
renovados encontros com alteridades diversas. Isso
exige a aceitação dos riscos e surpresas inerentes
às autênticas relações dialogais. E assim permite
evitar o que a escritora nigeriana contemporânea
Chimamanda Adichie chamou, em notável palestra
incluída nos TED-talks, de “o perigo de uma história única” (ADICHIE, 2009).
A vida e obra de Larissa indicam os procedimentos e atitudes para encontrarmos as portas de acesso
a renovados mundos possíveis, sejam eles situados
nas favelas, nas universidades, nas empresas ou no
sistema político: dialogar e interpretar. E não se
satisfazer com a simples reafirmação do já sabido.
Nem ter medo de arriscar dizer novas palavras.
Ouso identificar nessa fecunda ousadia uma
convergência de atitudes com a mística judaica, o
que me foi despertado pela leitura de um texto de
Esther Cohen (COHEN, 1999).
Para a mística judaica medieval o território do
mundo pode ser identificado com o território do
texto, “um espaço povoado por letras e palavras que
no fundo não são outra coisa que a natureza mesma”
(COHEN, 1999, p. 18, tradução nossa). No livro
Gênese, a utilização do plural na palavra criadora
divina é indicativa de que, situado em meio a tal
Criação de caráter verbal, o ser humano recebe um
continuado chamado a ler e interpretar tal mundo
inconcluso. Como aponta Esther Cohen, ler o mundo criado “é situá-lo em perspectiva” e interpretá-lo
“é dar-lhe corpo e vida” (COHEN, 1999, p. 18,
tradução nossa). E é assim que “a mística judaica é
uma hermenêutica da ação” e a interpretação é uma
forma privilegiada de ação sobre o mundo.
A mística judaica medieval fez do dito do profeta Isaías (51:16) “pus minhas palavras em tua
boca” uma referência-chave para a compreensão
de como o ser humano, sabendo-se coautor e
copartícipe do universo, pode, pela interpretação
das escrituras do mundo, ser também responsável.
Nesse contexto, as interpretações são empenhos
dialogais que se estabelecem entre a pessoa estudiosa do Torah e Altísimo. E, como aponta Esther
Cohen, novas interpretações são palavras saídas da
boca da pessoa sábia que encontram acolhida com
gozo da parte do Altíssimo, “que as beija e saboreia seus aromas” (COHEN, 1999, p. 20). O mais
notável nessa perspectiva é que interpretar não se
deixa reduzir a um exercício estritamente cerebral,
lógico-racional: é um empenho arriscado que exige
a inteireza da pessoa, diz respeito a todo seu modo
de vida e mobiliza todos os sentidos de seu corpo.
Como adverte Esther Cohen, é somente dentro dos
rigores e exigências de tal empenho dialogal que
o Zohar (texto clássico da cabala medieval) abre a
Torah para um mundo que é, ele também, escritura,
e ao fazê-lo vislumbra “a possibilidade infinita de
recriá-lo interpretando-o”, para então afirmar que
“as novas interpretações sábias se convertem em
novos firmamentos” (COHEN, 1999, p. 20-21,
tradução nossa). Fica assim expressa uma estreita
relação entre as palavras e os mundos possíveis,
entre os atos de nomear e criar.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
145
Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo
George Steiner é um pensador crítico contemporâneo que faz um diagnóstico sombrio do chamado
pensamento pós-modernista:
A humanidade instruída se vê abordada cotidianamente por milhões de palavras, impressas, emitidas
por rádio ou televisão, que aludem a livros que nunca
se abrirão, música que nunca se escutará, obras de
arte sobre as que nunca vai pousar nenhum olhar.
Um perpétuo murmúrio de comentários estéticos,
juízos improvisados e pontificações enlatadas
inunda o ar. No plano da interpretação e valoração
crítico-acadêmica, o volume de discurso secundário
desafia qualquer inventário. (STEINER, 1991, p. 38,
tradução nossa).
O desequilíbrio entre o secundário e seu objeto, entre
o ‘texto’ – onde incluo o objeto de arte, a composição
musical ou a dança – e o comentário explicativo-valorativo que este gera, raia o grotesco. O discurso
parasitário se alimenta de enunciados vivos; e como
nas cadeias tróficas microbiológicas, o parasitário
por sua vez se alimenta de si mesmo. Abundam a
crítica, a diacrítica, e a crítica da crítica. (STEINER,
1991, p. 65, tradução nossa).
A crítica de Steiner aplicada aos espaços universitários contemporâneos denuncia a esterilidade de
exercícios formais de redação de papers apoiados
nas “imunidades dos saberes indiretos” (STEINER,
1991, p. 55, tradução nossa). Quando esta atividade
se institui a si mesma como um fim em si e pedra
angular da excelência acadêmica, passamos a
habitar um mundo onde palavras que não querem
dizer algo a outros nem tampouco fazer algo com
isso sustentam um palavrório irresponsável. Os
espaços do diálogo acadêmico podem ser sufocados
num “marasmo cinzento” (STEINER, 1991, p. 51,
tradução nossa).
É importante termos em mente que a crítica de
Steiner não é dirigida contra as interpretações per
se, mas sim contra os discursos estéreis e repetitivos, que somente aportam adições inócuas ao já
sabido e esgotam-se em confirmações repetidas de
si mesmos, como um cumulativo diálogo de surdos.
A mística judaica medieval advertia contra
riscos análogos aos da crítica de Steiner, reconhecendo que, se a palavra sábia pode criar mundos,
essa não é, infelizmente, uma prerrogativa que
lhe seja exclusiva, pois, como nos aponta Esther
Cohen, “também as más interpretações criam
146
firmamentos, ainda que confusos, falsos e abismais” (STEINER, 1991, p. 26, tradução nossa). E
no Zohar (65-67) está escrito que interpretações
vazias de entendimento e compreensão podem ser
apropriadas por línguas mentirosas e convertidas
em um falso universo chamado Tohu (confusão).
Este é um alerta muito forte, pois em meio ao
Tohu criam-se condições para que a morte venha
a vitimar multidões sem causa alguma. Se, por um
lado, há interpretações fecundas e vivificantes, por
outro também as há estéreis e mortais. Em síntese:
a sabedoria não é a única e exclusiva potência criativa. Daí o empenho da mística judaica medieval
em advertir que “havia que se estar atento para
deter o passo de interpretações que ‘matam’ ou que
nos conduzem a uma ‘fenda do grande abismo’”
(STEINER, 1991, p. 26, tradução nossa).
Diálogo e interpretação são os elementos de
uma reiterada confrontação com a alteridade e a
responsabilidade por interpretações elaboradas,
“sabendo que cada letra e cada palavra edificam um
bom pedaço de terra ou um corrupto pedaço de céu”
(STEINER, 1991, p. 26, tradução nossa). Se somos
herdeiros de uma “cultura do comentário”, isso não
tem necessariamente que implicar que neguemos
o texto para somente afirmar a existência e o valor
das interpretações. Ou, ainda pior, que dando um
passo adiante até uma fenda do abismo, percamos
também de vista quaisquer vestígios das presenças
das alteridades em nossas vidas vividas.
Essa é a violência maior do discurso monologal:
afirmar-se a si mesmo como o conhecedor da alteridade dos outros e o instituinte de uma história única
a esse respeito. Tal violência e desmesura podem
dar nascimento a “um corrupto pedaço de céu”.
Mas diálogos e interpretações também podem nos
abrir horizontes para “um bom pedaço de terra”.
5. Sobre miragens, desertos e travessias
Na abertura dialogal afirmam-se possibilidades
de interlocução que implicam resposta e responsabilidade. Os reducionismos maniqueístas das
“histórias únicas” são aqui de nula serventia. Disso
nos adverte exemplarmente Hans Jonas:
[...] num primeiro olhar parece fácil diferenciar
entre a técnica promotora do bem e a nociva, se
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
Roberto Bartholo Jr
considerarmos apenas os fins da utilização das ferramentas. Arados são bons, espadas são ruins. Na
era messiânica as espadas são transformadas em
arados, ou, traduzido em termos da tecnologia moderna: bombas atômicas são más, mas fertilizantes
químicos, que ajudam a alimentar a humanidade, são
bons. Aqui salta aos olhos o dilema mistificador da
técnica moderna. Suas ‘legiões de arados’ podem no
longo prazo ser tão nocivas quanto suas ‘espadas’.
(JONAS, 1987, p. 49, tradução nossa).
A imbricação entre ciência e técnica, característica da chamada “evolução” da tecnologia
moderna, pode ter sua estrutura formal descrita na
terminologia de Galileu Galilei como o empenho
por realizar uma sistemática transposição da via
resolutiva (ou seja, a análise) para a via compositiva (ou seja, a síntese). O percurso pode ser
caracterizado como uma sistemática recomposição
artificial do decomposto (ou seja, a produção de
novas sínteses). A abertura progressiva dos novos
horizontes de factibilidade para a intervenção
engenheiral se inicia no âmbito da mecânica, para
progressivamente se ampliar incorporando os da
química, da eletrodinâmica, da física nuclear, da
informática, da biologia molecular, num processo
que parece desconhecer limites e interdições.
Na instauração desse processo devemos ter em
mente que a Revolução Industrial foi uma mudança radical no modo de produção, não apenas
a introdução de novos produtos. Mesmo quando
os novos teares ingleses, movidos a vapor, ainda
produzem os mesmos produtos antigos, são veículos de radicais transformações. Emerge com forte
dinamismo um novo setor da economia, produtor
dos meios de produção necessários para as novas
unidades produtivas, com destaque para os insumos
fundamentais: ferro e carvão. As transformações
em curso implicam uma intricada rede de inter-relações: extração de matéria bruta, produção de
matéria-prima, instrumentalização econômica da
energia, transporte, mercado de trabalho. Somente
após isso a inovação pode se instaurar com todo
dinamismo nos setores de produção de produtos
finais. De início suprindo ainda as antigas necessidades, até por fim atingir a produção artificial de
novas necessidades de consumo e dos meios de
sua satisfação.
A química moderna abriu novos horizontes
de factibilidade para o novo modo de produção.
Emerge um novo ramo industrial como resultado
da concretização de possibilidades teóricas de
intervenção, na busca consciente de soluções para
a substituição artificial-sintética de substâncias
naturais escassas e caras. A petroquímica radicaliza
o processo, viabilizando a produção de substâncias
radicalmente novas, não meras cópias de um modelo de referência tradicional. E a produção do inteiramente novo propicia aplicações inéditas. Esboça-se
já a pulsão mais característica da modernidade
contemporânea, empreender uma intervenção que
atinja “[...] a infraestrutura da matéria, pela qual
são obtidas, através da reformulação de moléculas,
novas substâncias segundo especificações, isto é,
com características de utilidade planejadas” (JONAS, 1987, p. 34, tradução nossa).
A estrutura interior da matéria transforma-se
em objeto de engenharia, isto é, de reconstrução
sintética segundo um projeto abstrato. E a indústria
elétrica se associa a esse movimento, engendrando
uma força universal cuja emergência é fruto de uma
possibilidade teórica. Como situa Hans Jonas, “[...]
a eletricidade é um objeto abstrato, não-corpóreo,
não-material, invisível; na forma útil de ‘corrente’
ela é inteiramente um artefato, produzido pela transformação sutil de formas grosseiras de energia. Sua
teoria teve que de fato estar completa, antes de suas
aplicações práticas começarem” (JONAS, 1987, p.
36, tradução nossa). O percurso descrito foi levado
às últimas consequências pela indústria atômica.
A transição da indústria elétrica para a eletrônica
evidencia um novo padrão de expansão dos poderes
de intervenção da modernidade: a transição das
tecnologias “energéticas” para as “informacionais”.
Abrem-se novos horizontes de factibilidade para a
intervenção engenheiral, ao mesmo tempo em que
se insinua uma ruptura civilizatória, dada a radicalidade das transformações aportadas pelas chamadas
novas tecnologias nos campos da microeletrônica,
robótica, telemática, novos materiais, química fina,
engenharia genética etc.
Entretanto a instrumentalização engenheiral
da informação genética é hoje o campo onde a
transposição da via resolutiva para a via compositiva atinge certamente maior impacto. Se na
engenharia do anorgânico pressupõe-se uma livre
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
147
Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo
disponibilidade da matéria morta para a geração de
novas formas, na bioengenharia contemporânea a
morfologia dos organismos é o dado pré-existente,
cujo “[...] ‘plano’ (= forma, organização) tem que
ser descoberto, não inventado, para então, numa de
suas corporificações individuais, se tornar objeto de
‘aprimoramento’ inventivo” (JONAS, 1987, p. 165,
tradução nossa). E as experiências bioengenheirais
não são feitas em modelos protótipos simuladores,
passíveis de sucessivos testes e modificações, mas
sim requerem disponibilidade sobre os originais,
ou, nas palavras de Hans Jonas “[...] sobre o objeto
no sentido mais completo, real e autêntico” (JONAS, 1987, p. 166, tradução nossa).
Nesse contexto, toda produção de informação
tecnocientificamente significativa é uma interferência direta e irreversível: a introdução arbitrária de
modificações na cadeia genético-informacional da
cobaia. Nesse ato afirma-se uma radical assimetria
e unilateralidade de poder do presente sobre um
futuro inerme. Diante disso, o mínimo que podemos nos perguntar é: “[...] qual o direito de alguém
para, dessa forma predeterminar homens futuros; e
mesmo que se suponha esse direito, que sabedoria,
lhe capacita a exercê-lo?” (JONAS, 1987, p. 169,
grifo do autor, tradução nossa).
A situação presente é crítica porque o fundamento usual da legitimação dos poderes modernos,
a ideia de utilidade para o gênero humano, revela-se
uma miragem, quando o ponto fixo da referência
utilitarista, o gênero humano, torna-se variável e
objeto da manipulação.
A neutralização ética da ideia de verdade e sua
identificação com a mera correção preditiva de
proposições relativas a relações causais observáveis
(e mensuráveis) na descrição de eventos serve de
suporte para uma identificação entre saber e poder,
congruente com a clássica formulação de Francis
Bacon, em 1626, expressa no desenho utópico
da sua New Atlantis. Tal construção permeia o
redesenho Iluminista europeu do ideal do homem
culto. Nele se expressa uma postura diante da vida
a ser atingida com base numa atividade espiritual
autônoma, capaz de superar dialeticamente a tutela
imposta heteronomamente pela educação religiosa
popular. Essa perspectiva tem expressão de incomparável clareza e concisão nos versos do Zahme
Xenien, de J. W. Goethe (tradução nossa):
148
Quem possui ciência e arte,
tem também religião.
Quem ambas não possui,
tem religião.
A tecnociência contemporânea se constitui
em substância de coesão de um mundo artificial,
fundado em hibridismos vários em que não se vislumbra mais delimitação clara entre o natural e o
sintético. Os riscos de tutela, contra os quais o libelo
Iluminista se dirigia, mudam de face. Não se trata
mais de priorizar a necessidade de destutelarizar o
intelecto contra os grilhões mentais da escolástica
medieval. O anestesiamento do espírito crítico tem
novos portadores. Superar a dominação tutelar de
pedagogos, terapeutas e planejadores do sentido da
vida é um desafio que ganha renovadas dimensões.
Uma atualização dos versos de J. W. Goethe parece
ser imperativa:
Quem possui capacidade de confrontação ética com
a modernidade
tem também tecnociência.
Quem isso não possui,
tem tecnociência.
A simples ampliação do espectro de poderes
tecnocientíficos não deve ser identificada com
um benefício para uma humanidade abstrata e
genérica. Se tanto, é possível apenas associá-la ao
benefício de um subconjunto social e historicamente determinado de pessoas. E a identificação
desse subconjunto com a totalidade opera uma
perversão do ideal da liberdade, para dele fazer
elemento de uma retórica a serviço da perpetuação
de privilégios.
Já fomos advertidos por Max Weber em seu
texto clássico “Ciência como vocação”, publicado
por primeira vez em 1919, como edição ampliada
de uma palestra dada em evento de 7 de novembro
de 1917 promovido em Munique pela Liga Livre
Estudantil da Baviera, e incluído em coletânea publicada em 1981, de que nenhuma ciência é isenta
de pré-condições (WEBER, 1981). Uma pré-condição fundamental do produto do trabalho científico
é que ele seja algo valioso de ser conhecido. Esta
valoração é prévia ao trabalho científico em sentido
estrito. Sendo assim, Os objetos de conhecimento
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
Roberto Bartholo Jr
são vinculados a contextos de interesse não tematizados na pesquisa. É apenas nesse sentido que
pode ser lícito afirmar que a ciência em ato seja
valorativamente cega. Contudo, nas palavras do
próprio Weber, existem sempre diferentes deuses
a serviço dos quais a ciência pode ser praticada. É
em função de qual deus se segue que são fixadas
respostas à pergunta sobre o que é bom de ser conhecido. Na perspectiva weberiana, a ciência em si
não é valorativamente neutra, embora as decisões
sobre que deus seguir não possam ser consideradas
cientificamente certas ou erradas. Se o programa
de pesquisas tecnocientíficas contemporaneamente
hegemônico segue ou não o deus verdadeiro não é,
na perspectiva weberiana, uma pergunta passível
de ser respondida pelos saberes científicos especializados. Todavia ela pode e deve ser colocada
filosoficamente. Essa é uma condição para que a
prática científica possa ter o valor de sua liberdade.
Se a aposta originária do Iluminismo incluía a
formação ética da pessoa pelo valor pedagógico
da ciência, a práxis tecnocientífica corrente nos
centros universitários e institutos de pesquisa da
modernidade contemporânea dá cotidianas evidências de não corresponder a isso. Atribuir a tal
práxis uma potência etizante da vida seria uma
enganosa ilusão.
Mas se hoje a formação tecnocientífica não se
deixa identificar com uma formação ética da pessoa, isso não tem que implicar nossa desistência
de dar ao vínculo entre ciência e vida aquela efetividade que Wilhelm von Humboldt queria associar
à “ideia moral” (BARTHOLO, 2001b). Podemos
não abrir mão do empenho por unir os efeitos da
cientifização das condições de vida com as virtudes
da autêntica cientificidade: modéstia, prudência,
objetividade, crítica e autocrítica. Isso pode e deve
permanecer parte vinculante de uma pedagogia
da “razão razoável”. E justamente “razoável” por
não ser apenas racional e por não pretender fazer
da objetivização do racional a razão de ser de toda
realidade.
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iften+zur+Wissenschaftslehre/Wissenschaft+als+Beruf>. Acesso em: 20 mar. 2013.
.
Recebido em 15.11.2012
Aprovado em 20.02.2013
150
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013
Renato Huarte Cuéllar
IDENTIDAD Y EDUCACIÓN
Renato Huarte Cuéllar*
RESUMEN
En el presente trabajo se buscará dar cuenta de una mínima definición de lo que se ha
entendido como identidad desde una perspectiva filosófica para poder entender cómo
al ser eminentemente social, necesariamente está vinculado a procesos educativos y
de transmisión que dependerá de cada grupo en un contexto determinado. De esta
manera se pueden ir trazando lazos entre la identidad y la educación en este complejo
entramado que va de lo individual a lo colectivo y viceversa. Una vez hecho esto, se
pasará a la segunda parte del trabajo en donde, al final, podamos utilizar esta categoría
para entender de mejor forma el fenómeno educativo, ligado a un caso particular como
puede ser el de los tlamatimine o sabios nahuas en el México Tenochtitlan de antes
de la Conquista y su proceso educativo en su presencia y su carencia en su ausencia
para repensar la educación en el siglo XXI.
Palabras clave: Identidad. Educación. Tlamatine/tlamatimine. Filosofía náhuatl.
Filosofía de la educación.
ABSTRACT
IDENTITY AND EDUCATION
In this paper we try to explain how the concept of “identity” can be understood
philosophically, in order to understand how the social being is necessarily bound
up with educational and transmission processes which depend upon each group
in specific contexts. In this sense, these implications could build a bridge towards
the idea of understanding education through identity and the multiple contexts of
the individual and the collective processes. After having done that, we explain a
specific case in which education and identity are tightly bond. This is the case of the
tlamatimine (plural form of the náhuatl tlamatine) or náhuatl philosophers before the
Spanish Conquista. This could shed light on the analysis of the relationship between
education and identity in the 21st. Century.
Keywords: Identity. Education. Tlamatine/tlamatimine. Náhuatl philosophy.
Philosophy of education.
* Candidato a Doctor en Filosofìa por la UNAM. Profesor definitivo del Seminario de Filosofía de la Educación – Facultad de
Filosofía y Letras – Universidad Nacional Autónoma de México. Dirección institucional:Universidad Nacional Autónoma de
México –Facultad de Filosofía y Letras. Colegio de Pedagogía. Circuito escolar s/n. Ciudad Universitaria. 04310, México, D.F.
Endereço para correspondência: Caléndula 9, Xotepingo, Coyoacán. 04610, México, D.F. [email protected] / renato@
unam.mx
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013
151
Identidad y educación
I. Identidad
En este apartado abordaremos tres momentos
en los que la identidad podrá ser abordada mínimamente para efectos de este trabajo. En un primer
momento veremos cómo puede entenderse la identidad como una categoría filosófica. En un segundo
apartado veremos brevemente cómo podemos
entender la identidad como un proceso que no sólo
es individual, sino que requiere de lo colectivo para
poder fraguarse. En el tercer apartado veremos la
relación que guarda lo identitario con lo educativo
de manera general.
De la categoría de identidad
Tal vez una de las categorías a la cual más se
ha abocado la filosofía es al tema de la identidad.
A partir de esta larga trayectoria es que giran los
conceptos en torno al yo que, paradójicamente,
necesita de otro, de alguien más, para que le dé
sentido. Por más que la identidad sea el terreno
de lo más íntimo, somos nosotros en tanto existen
los otros. Como dice Adolfo Sánchez Vázquez:
“Durante veinticinco siglos la filosofía occidental
no ha hecho más que dar vueltas en torno a la noria
de la identidad.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1994,
p. 342). Es preciso aclarar que en este trabajo no
se pretende realizar un recorrido por esta cuestión,
sino partir de algunos puntos básicos para poder
vincular la identidad con la educación.
La identidad nace como parte de las múltiples
preocupaciones de la filosofía por lo menos desde
Heráclito, que al parecer la niega, y Parménides, en
el sentido de una aceptación del ser, ya que ambos
se preguntan por lo uno y lo múltiple y cómo es
que puede darse la mismidad en la multiplicidad
(KIRK; RAVEN, 1981). Aunque con respuestas
un tanto distintas, ambos filósofos responden a
preguntas tan cotidianas en torno a la posibilidad
de identificación con lo que hoy podría ser una fotografía de nosotros mismos cuando éramos niños.
Hay una posibilidad de identificarse, de decir soy
yo mismo, aunque en estricto sentido no seamos
los mismos. Hay una continuidad en el cambio,
una mismidad.
Dicha mismidad, de la que parte Aristóteles como
principio de identidad (A=A), sirve para establecer
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el principio de no contradicción en su Metafísica
(Γ, 1005b 19-21). Para Aristóteles (1982), todos los
entes, y no sólo los seres humanos, se conocen, se
hacen uno con el conocimiento (noein) en el momento en que pueden encontrar la esencia de los entes en
tanto que entes. En el caso de las cosas no humanas,
tienden naturalmente hacia su propio bien. En el caso
de los seres humanos, esto no siempre sucede así.
El ser humano necesita de ayuda para encontrar su
propia esencia. De ahí la necesidad de una ética y
de un proceso de educación. En cualquier caso, al
poder partir de que alguna cosa es eso mismo no otra,
estaremos en posibilidad de hablar de ontología, de
lo que las cosas son.
Para Hegel (apud SÁNCHEZ VÁSQUEZ,
1994), por su parte, esta definición de identidad
(A=A) era fútil, trivial e inútil. Hegel sostiene que
este principio es una mera tautología que no es
de mayor utilidad para el sentido que quiere dar a
la filosofía. La categoría se torna entonces social
como un elemento filosófico, cosa que no podría
haberse pensado en la Grecia Cláica, tal vez porque
no existía el principio de individuación – socialización que cobrará sentido en la Modernidad. En
cambio, Sánchez Vázquez propone las “señas de
identidad” que dan sentido a la identidad, unas
en mayor y otras en menor sentido. Es necesario
admitir señas de identidad que no nos pertenecen,
al igual que las que sí lo hacen, para construir la
identidad. Es entonces que la identidad tiene que
cargar necesariamente con la diferencia, con la
alteridad, con el otro. Además, Sánchez Vázquez
reitera que fue Marx, antes inclusive que Dilthey u
Ortega y Gasset, quien reconoció que esta identidad
es histórica y colectiva. Y no sólo la identidad es
histórica sino que también lo es la conciencia de
ella (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1994). Entonces, la
identidad necesariamente es colectiva. Pero, ¿acaso
no parecería ser una cuestión individual? ¿Cómo
puede llegar a funcionar esta categoría entre lo
individual y lo colectivo? Veremos una forma de
aproximarse a esto a continuación.
De lo individual a lo colectivo y de regreso
María Noel Lapoujade establece que la identidad
del yo es el camino intermedio entre la identidad ori-
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Renato Huarte Cuéllar
ginaria y las identidades múltiples (LAPOUJADE,
1994). La identidad originaria es lo que en la historia
de la filosofía se ha tratado de encontrar como identidad primigenia, arquetípica e ideal. Las identidades
múltiples son aquéllas que se dan en lo colectivo pero
que no dan cuenta del yo separado del colectivo.
Para poder hacer esta distinción, Lapoujade (1994)
sostiene que la identidad trascendental puede entenderse kantianamente al decantar lo empírico de lo
a priori. Esto quiere decir que de lo que sucede en
la realidad, iluminamos solamente las operaciones,
las actividades, las maneras universales y necesarias
dentro de ese dinamismo. En este sentido, Fichte –
según Lapoujade (1994) – expresa que el principio
de todo conocimiento humano es la identidad del yo.
Al delimitar al yo, existe automáticamente un no-yo
que es diferente al yo que se pregunta y delimita. Esta
posible paradoja se resuelve en Fichte de la siguiente
manera: “La medicación es pensada por Fichte del
lado de la recíproca limitación, en tanto ella implica
afirmación y negación, más aún, divisibilidad. La
noción de divisibilidad denota la oposición yo / noyo, pero a la vez los concilia.” (LAPOUJADE, 1994,
p. 407). La identidad entonces pasa a ser definitoria
del ser y podemos hablar de su ontología; algo muy
similar a lo que ya proponía Aristóteles en la Metafísica como veíamos líneas arriba.
En este sentido no existe identidad sin la otredad que, entre otras muchas metáforas, ha sido
retomada por Umberto Eco, Jacques Lacan y Jean
Baudrillard como el “espejo” (LAPOUJADE,
1994). Este espejo no es la concreción material
finita para el reconocimiento del yo según Eco. El
yo surge literalmente de un espejismo según Lacan;
una idea proyectiva de un yo que necesita de otra
imagen para afirmarse, para crearse. Baudrillard,
por su parte, dirá que el movimiento inverso a
la paulatina conquista de la identidad es la de la
pérdida que se da en la enajenación de la sociedad
contemporánea de la pantalla y la red en lugar de
la escena y el espejo. La pantalla a manera de superficie de proyección de imágenes caracteriza al
hombre contemporáneo enajenado. Ya no somos,
haciendo una paráfrasis shakespeariana, meros
actores en las escenas que hemos de interpretar en
nuestras vidas cotidianas.
Con certeza muchos otros autores han hablado
de la identidad desde las metáforas planteadas o
desde otros lugares, tiempos y espacios. Al parecer
también la identidad aristotélica ya implicaba este
juego “de espejos” en donde la identidad implica
otro elemento que le da sentido en similitud y en
diferencia. A pesar de las diferencias entre las distintas posibilidades de aproximación al problema de
la identidad, parece haber una constante en el uso de
metáforas que van de lo colectivo a lo individual.
Es de esta manera que lo que pensamos que lo
más íntimo y cercano a nosotros mismos, eso que
llamamos nuestra propia identidad resulta definida
desde la otredad, desde un todos que en conjunto
me representa y me dice en otra doble vía: “Yo no
soy el otro sino algo distinto.” Ambas vías, la del
yo y la de los otros, y la del nosotros y los otros,
son algo movible y en constante cambio. Las identidades son mutables y en ellas se reconfiguran.
Baudrillard, por ejemplo, por eso ya advertía del
peligro de desdibujar los procesos identitarios con
la globalización. Según su postura, el peligro de la
reconfiguración identitaria no se daría de manera
homogénea y neutral, sino desde los paradigmas
que la sociedad del consumo pretendiera para las
sociedades contemporáneas.
Es por esto que podemos sostener que en un ir y
venir que las identidades se van fijando, cambiando,
reconstruyéndose. Ahora corresponde analizar qué
ocurre con el vínculo entre identidad y educación.
La identidad es una categoría amplísima y difícil de
asir, pero indiscutiblemente está ligada a lo social.
Siendo la categoría de identidad una idea filosófica, al tratar de vincular ambas ideas, estaremos
tratando de realizar una aproximación filosófica al
fenómeno educativo.
La identidad en los procesos educativos
La identidad como categoría o pregunta filosófica pretende abarcar a todos los entes en tanto tales.
En el caso del ser humano, los procesos identitarios
a partir de la cotidianidad nos remiten a escenarios
distintos dependiendo de las relaciones que se den
en dichos espacios. Estas relaciones dependen de al
interacción con otros sujetos, idearios, imaginarios,
entre otros. Alfred Schütz, discípulo de Husserl,
da una explicación interesante al respecto desde
la introducción que hace a la fenomenología de la
de teoría sociológica contemporánea (SCHÜTZ,
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Identidad y educación
1974). Somos los mismos y sin embargo diferentes
en los distintos espacios en los que se desempeña
una persona. Un padre de familia lo es tal en tanto
tiene un hijo. Esa función social no es la misma
que la del esposo. Aunque el espacio sea la familia,
dentro de ésta, existen espacios distintos pero sobre
todo, relaciones distintas. En el trabajo esta misma
persona tendrá un jefe y tal vez subordinados, suponiendo cierto tipo de trabajos. Pero en ese espacio
no será tan importante el padre y el esposo sino
más bien qué tipo de relaciones sociales lleve en
la oficina. En cada uno de los espacios y dentro de
las funciones sociales que desempeñe, la identidad
específica será una distinta pero a la vez, parte de la
identidad unitaria del individuo. Es decir, no existe
una fragmentación esquizofrénica en las personas,
sino que las relaciones humanas que se van dando
en los distintos lugares en los que nos desenvolvemos nos van forjando y son relevantes en ese
momento dado. Todas estas relaciones son parte de
la socialización y se aprenden también socialmente,
inclusive sin necesidad de un espacio educativo
pensado ex professo. Es el mismo individuo con
el mismo nombre y apellido para todos los casos.
Si entendemos lo educativo mucho más allá de
lo escolar y que una de sus funciones más importantes es la de la socialización, podemos entender a la
vez esto que Aristóteles llamará la actualización de
las potencialidades, que algo que se tenía en ciernes
se lleve al aquí y al ahora. Esta es una forma tradicional de entender a la educación como un proceso
en donde se desarrollen (actualicen, en términos
aristotélicos) las potencialidades humanas.
Cada sociedad y grupo específico, pro más
pequeño que sea, encontrará en estos procesos
diversas formas de definir lo propio de lo que no
lo es. Si entendemos que los marcos identitarios
se supraponen, a la manera schütziana, y se tienen
identidades laborales, otras familiares otras nacionales, etc., entonces quedará claro que existirán
procesos identitarios que definirán a un individuo
o colectivo como parte de un conjunto más amplio
de individuos dependiendo de los espacios y las
relaciones que entre ellos se dé.
Todos estos procesos se dan en marcos de
transmisión con mayor o menor intencionalidad,
siempre socialmente. Sea la escuela, la familia,
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los medios masivos de comunicación o los amigos,
en todos ellos hay relaciones que determinan la
aceptación o rechazo en un grupo a partir de las
relaciones que ahí se den. Estas relaciones son
tramas sociales que se van dando y reconstruyendo
con el tiempo. Cada marco social determinará lo
que considera aceptable y lo que no, en esta multiplicidad de tramas de identidad. Además, estas
tramas son históricas y parten de lo individual a lo
social, de ida y vuelta.
La categoría de identidad, si bien compleja y con
un larga trayectoria, es asible y da oportunidad de
trabajar fenómenos educativos no menos complejos
y añejos. Existe la invitación a adentrarse en ellos y
desde ahí enriquecer la práctica a la que nos dediquemos, en especial desde nuestra identidad como
agentes interesados en los fenómenos educativos.
Pero, ¿qué es lo que podemos llamar propiamente identitario en los procesos educativos? Retomando las metáforas analizadas en apartados anteriores,
parecería que justamente la educación , en tanto
formación humana en el sentido más amplio que se
pueda dar de la palabra, busca ir encontrando eso
que en cada momento se considera fundamental
para el ideal de ser humano que se tenga. En el caso
de las poleis griegas, por ejemplo, era claro que los
ideales colectivos cambiarían entre Atenas y Esparta, por poner los casos paradigmáticos. A pesar de
que en lo individual cada uno de los miembros de
estas ciudades-Estado parecería fraguar su propia
vida a partir de principios e ideales propios, no se
distinguirían completamente del colectivo. Si bien
la idea de pertenencia a estos espacios estaba dada
más hacia el estudio de la dialéctica (lo que hoy
entendemos por filosofía) incluida la discusión en
torno a la guerra, sabemos que también había dialéctica, retórica y demás principios de la formación
del griego de ese entonces.
Cada pueblo tendrá estos rasgos de identidad,
de conservación y de ruptura de modelos que
conforman lo educativo y que también tienen que
servir de base para cuestionarlos. De esta manera,
pasaremos a la segunda parte de este trabajo en
donde se verá cómo podemos aproximarnos en
pleno siglo XXI a los tlamatimine o sabios nahuas
que vivieron en la ciudad de México-Tenochtitlan
hasta el siglo XVI.
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Renato Huarte Cuéllar
II. La identidad revisitada: el caso de los
tlamatimine nahuas
De ser cierto lo que hasta este momento se ha
planteado, se podría haber tomado para este ejemplo prácticamente cualquier ejemplo en cualquier
cultura, en cualquier momento y lugar. No obstante,
el caso de los tlamatimine resulta de particular interés por la cercanía y a la vez lejanía que implican
estos personajes.
Vincular identidad y educación nos remite a
pensarlos desde múltiples perspectivas. Sin embargo, siendo la identidad un tema de tan antiguo
raigambre dentro de la filosofía y la educación un
tema amplio debatido, en esta ocasión considero ineludible hacer una breve reflexión desde la filosofía
de la educación desde por lo menos dos perspectivas. La primera es, sin lugar a dudas, necesaria para
entender a estos personajes: su contextualización
y explicación, aunque sea de manera muy somera.
En segundo lugar, buscaremos dar cuenta por qué
justamente esta aproximación sigue siendo válida
aún para nuestros días.
Los tlamatimine: Los sabios o filósofos
Miguel León-Portilla, tal vez uno de los primeros en estudiarlos en el siglo XX, nos narra que
en las propias fuentes nahuas aparece la figura
del tlamatini, sabio o filósofo (y si se me permite:
pedagogo-psicólogo-maestro) náhuatl (LEÓNPORTILLA, 2001). Los tlamatimine (en plural) no
son lo que hoy podríamos considerar alguien con
un gran conocimiento “enciclopédico” o alguien
que se dedica exclusivamente a teorizar pero se
encuentra desvinculado del mundo cotidiano, que
“vive a un metro sobre el nivel del suelo” como se
dice cotidianamente.
De lo que los informantes narraron al cura Bernardino de Sahagún, todavía hoy tenemos varias
definiciones de lo que es un tlamatini De entre esas
definiciones hay dos que co-inciden en un factor
muy interesante. “Hace sabios los rostros ajenos,
hace a los otros tomar una cara (una personalidad),
los hace desarrollarla” (LEÓN PORTILLA, 2001,
p. 65). Parece ser que este hecho de dar rostro es
dar una personalidad. Para la filosofía náhuatl el
objetivo y fin último de lo humano era la capacidad
de tener un rostro (propio) y un corazón, como se
verá más adelante. Los personajes que se encargaban de esta labor eran los tlamatimine.
También nos dice Miguel León Portilla que este
sabio: “Pone un espejo delante de los otros, los hace
cuerdos, cuidadosos; hace que en ellos aparezca
una cara (una personalidad)” (LEÓN PORTILLA,
2001, p. 65). Resulta por demás interesante que la
metáfora que utiliza para la descripción de estos
sabios o filósofos sea justamente la del espejo. Parecería que el rostro puede desarrollarse únicamente
a partir del reflejo en el otro. Lo característico de
esta descripción sería que el espejo está horadado,
que tiene orificios. Veamos esto con mayor detenimiento.
En ambas citas podemos ver que se está hablando de hacer en los otros una cara, crearla y
hacerla sabia. Si, como indica León Portilla en la
traducción, entendemos que los nahuas entendían
por cara o rostro – el prefijo ix, como en ixtli (LEÓN
PORTILLA, 2001) – la conformación de una personalidad; entonces podemos entender que nuestra
cara es una forma de identidad. ¿De qué manera
nuestro rostro, ixtli, debe ser conformado como
identidad? ¿Cómo generar en los otros esta capacidad de poseer una cara y convertirse en personas?
Para poder contestar tal vez convenga recordar que
en náhuatl educación se dice justamente ixcuitia.
nite, que incluye la raíz ixtli, rostro.
El tlamatini también es descrito como un “espejo horadado”, aquel que permita que el rostro
del otro pueda adquirir una apariencia a través del
rostro propio, de nuestro rostro; pero horadado,
“agujereado por ambos lados” (LEÓN PORTILLA, 2001, p. 67) , perforado, porque a través de
este rostro, nuestra propia cara puede verse en los
otros, en el mundo (LEÓN PORTILLA, 2001).
Es una doble vía que permite que los otros se reconozcan en uno y uno se reconozca en los otros.
Re-conocerse es conocerse de vuelta. Conocer de
vuelta es identificar rasgos que había olvidado que
eran míos. También implica que los otros identifiquen rasgos en mí.
En esta doble vía en que podemos identificar
rasgos de los rostros, de las personalidades humanas, está guardado lo que en español llamamos
identidad. Podemos entender la identidad como
el concepto de que entre dos cosas no hay rasgo
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Identidad y educación
alguno que lo distinga, haciéndolo idéntico, pero
más bien es identificar rasgos comunes entre una
y otra cosa.
Recordemos, como tal vez hacía el Sócrates
platónico en los diálogos, que la función del filósofo
era la de educar en este sentido de paideia para la
cual no bastaba un espacio delimitado para la función educativa, sino el mercado, el taller del herrero
o cualquier otro lugar era el adecuado para entrar
en contacto con la filosofía. Parecería ser que algo
similar tendríamos en el papel de los tlamatimine
que entraban en contacto con la gente y al parecer
deambulaban por los espacios públicos conversando con los ciudadanos de esta gran metrópoli
México- Tenochtitlan.
Si se entiende al tlamatini como aquella persona que es capaz de guiar a los que guían y ser
quien despierta, ilumina, abre los oídos, enseña
la verdad sin olvidar amonestar de tanto en tanto
(LEÓN PORTILLA, 2001); entonces la función
que desempeñaba era una función compleja y de
suma importancia para la sociedades nahuas de ese
tiempo. Eran una fuerza vital que permitía a los
nahuas conformarse en lo colectivo pero también
en lo individual.
El ámbito del tlamatini no se reducía al Calmecac o al Telpochcalli. Era una asunción de vida
y un trabajo constante. Así como no se concebían
distintos el filósofo, el pedagogo, el psicólogo, el
maestro sino como una unidad en cada uno de los
tlamatimine, así tampoco su función social estaba
reducida al ámbito escolar. Eran parte de una sociedad en donde lo más importante era que cada
quien desarrollara un rostro propio en un juego de
espejos en donde las identidades cambiaban según
el orden de la flor de la palabra.
Entre las demás descripciones de estos sabios,
se nos dicen que son como una tea caliente que se
prende y apaga (LEÓN PORTILLA, 2001). Esto
puede ser interpretado de múltiples formas. Por lo
menos podemos decir junto con León Portilla que
estos sabios eran como esa brasa caliente que, con
el viento parece palpitar. Son el corazón de una
sociedad que les permitía vivir y encontrar su forma
de sentir que, en náhuatl, no se distingue del todo
de la forma de pensar. Esta función de desarrollar
un rostro y un corazón es la función educativa por
excelencia que estos sabios podían ejercer con su
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propia identidad y con su vulnerabilidad horadada
como espejo.
Basta decir que entonces adquirir un rostro
era ser educado. Ser educado en el pleno sentido
de la palabra: encontrar una identidad ligada a
las cuestiones más básicas y fundamentales de lo
que todo grupo social siempre se ha preguntado:
¿Quiénes somos? ¿Qué es aquello que sé y cómo
puedo lograrlo? ¿Qué es aquello que me rodea? y
otras tantas preguntas que, según el propio LeónPortilla, son las preguntas básicas que la filosofía
articula en cualquier sociedad y no solo la así llamada “occidental”. Los nahuas tenían filosofía en
tanto se hacían las mismas preguntas, aunque las
respuestas no siempre fueran las mismas (LEÓN
PORTILLA, 2001).
La ausencia del tlamatine y su presencia
Pero los tlamatimine ya no están aquí con nosotros de alguna manera. Fueron los primeros en ser
asesinados durante la Conquista. Apenas y tenemos
noticias de encuentros con los gobernantes nahuas
en 1524 cuando llegaron los primeros doce franciscanos a tierras hoy mexicanas. Este encuentro con
los gobernantes nahuas lo tenemos en la narración
del Coloquio de los Doce que, al pedir hablar con
los dirigentes indígenas, éstos respondieron:
Lamentamos una cosa, que los sabios y prudentes
señores, tan experimentados en el arte de la palabra
quienes tuvieron antes que nosotros la carga del gobierno estén ya muertos; si hubieran podido escuchar
de vuestra boca lo que nosotros hemos oído, ellos os
habrían dirigido un amable saludo y una respuesta
muy adecuada. Pero nosotros ¿qué podemos decir?
Somos personas modestas y de poco saber. Es cierto
que ahora tenemos la carga del reino y de los asuntos
públicos, pero nosotros no tenemos ni su saber ni su
sapiencia. (SAHAGÚN apud DUVERGER, 1990,
p. 78-79). 1
Esto, excelsamente narrado por Bernardino de
Sahagún en 1564 ya escribiendo desde Tlatelolco
hace referencia a un México sin los sabios nahuas
1 Bernardino de Sahagún “Coloquios y doctrina cristiana con que los
doce frailes de San Francisco enviados por el papa Adriano Sexto
y por el Emperador Carlos Quinto convirtieron a los indios de la
Nueva España, en lengua mexicana y española.” Libro I, Capítulo
6, equivalente a las págs. 78-79 de Duverger (1990).
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Renato Huarte Cuéllar
(DUVERGER, 1990). Difícil sería re-construir la
pérdida de los tlamatimine salvo tal vez honrosas
excepciones de algunos de los frailes españoles.
De cualquier forma no habría ya el mismo espejo,
ni el mismo rostro, ni la misma guía, ni la misma
luz (LEÓN PORTILLA, 2007).
Y sin embargo, considero que al hacer este
recorrido por una de las formas originarias que
existieron en un momento es también decir que
siguen estando con nosotros, como un elemento
identitario no sólo de lo indígena, sino como elemento que da identidad, junto con otros más, de
una forma de vincular y entender el vínculo que
se da entre educación e identidad.
Esto, ¿qué nos puede decir sobre la educación
y la identidad en México y las distintas regiones
de América Latina de principios del siglo XXI?
Sin lugar a dudas algo de nosotros mismos como
un gran espejo a la distancia de algunos siglos.
Vivimos en una época distinta en donde nadie, en
estricto sentido, vino a tomar el papel de los tlamatimine. ¿Quién nos guía? ¿Hacia dónde podemos
y queremos ir?
México, al igual que otros países, ha pasado por
varias etapas en donde el modelo de por lo menos
un siglo ha sido atribuirle a la escuela el mayor
peso educativo. Al vivir en una sociedad en donde
los padres no podían darle la mejor educación a los
hijos, el Estado, a través del sistema escolar hizo
patente lo que todavía es para nosotros ley a través
de las diferentes constituciones de nuestros países,
de una educación que en el mejor de los casos busca
ser laica, gratuita y obligatoria que lleve a la sociedad, basada en el progreso de la ciencia, a formar
parte de la sociedad de naciones. Al maestro se le
asignó el papel educativo preponderante.
La identidad que habría de construirse en el
México del siglo XX era básicamente la identidad
nacional. Aunque en cada país latinoamericano esto
puede llegar a ser muy particular, considero que
todos nuestros países estaban (o están) inmersos en
esta idea modernizante. Es así que tenemos hasta el
día de hoy, todos los ritos nacionales con un himno
y una bandera, libros de texto de Historia, Geografía, hasta hace algunos años Lengua Nacional, entre
otros. Los símbolos patrios existen ahí, ondeando
o llamados a ser leídos para recordarnos de una
identidad nacional colectiva que supuestamente es
parte de la educación cívica de todos los niños que
se viven en un territorio nacional.
La identidad personal, entonces, ha quedado
relegada a segundo término. Para una relación
identitaria considero que hace falta el conocimiento
de manera personal, cara a cara, rostro a rostro.
Esto es impensable en la dinámica actual tanto
por el número de estudiantes en cada grupo y por
la carga laboral y el trasfondo de lo que se concibe
como el deber magisterial, que en realidad es el
deber como seres humanos Todo esto es pensado
desde la asunción de que los profesores sean los que
primordialmente tengan esta labor de conformar
“identitariamente” a los niños y jóvenes del país.
Aunque los grupos fueran pequeños, tiene que haber una base de confianza y de relación mutua para
que pueda darse esta doble vía de comunicación.
De cualquier forma vamos consolidando un
rostro a lo largo de nuestras vidas. Encontramos
rasgos de identidad en los héroes que vamos encontrando o vamos construyendo a lo largo de nuestras
vidas. Vamos forjando en la cotidianidad espejos
que, en el mejor de los casos, no funcionan como
espejismos de la pregunta por el yo. ¿Dónde nos
encontramos?
Probablemente la mayoría de estas respuestas
apelen a ser fortuitas. Tal vez pensemos que estamos educados al tener un diploma o título dentro del
sistema “educativo”, pero entonces habremos desvinculado la idea de educación en una parcialización de agentes, temas, conceptos, etc. educativos.
¿Qué significa educar realmente? Es por esto que
retomar e incorporar al diálogo contemporáneo a
los grandes personajes de nuestras propias historias
es un acto filosófico que nos remite a una recolecta
de elementos perdidos pero presentes en cada una
de nuestras tradiciones.
Tomemos entonces a un noble grupo de nuestros
antepasados como espejo a la distancia para que
nos ayude a entender cómo es que la identidad y
la educación están vinculadas. Educar es generar
esa capacidad de ser uno mismo en plenitud, en
donde educar también es educarse. A pesar de las
barreras que puedan llegar a existir en los sistemas,
prácticas y discursos, cuestionemos nuestra labor
como educadores en distintos ámbitos y espacios:
como padres de familia, como profesores, como
guías, como amigos, como ciudadanos, como
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Identidad y educación
mexicanos que tenemos que compartir, desde
nuestra propia identidad una identidad colectiva
en diversos sentidos. Hablar de identidades individuales no está confrontado con las identidades
familiares, culturales, regionales, nacionales y
hasta mundiales. Traigamos de vuelta al tlamatini
para que gracias a él la gente humanice su querer,
reciba una estricta enseñanza, conforte el corazón,
conforte a la gente, ayude, remedie y a todos cure
(LEÓN PORTILLA, 2001).
REFERENCIAS
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DUVERGER, Christian. La conversión de los indios de la Nueva España con el texto de los Coloquios de los
Doce de Bernardino de Sahagún. Trad. de Victoria G. de Vela. Quito: Abya-Yala, 1990.
KIRK, G. S.; RAVEN, J. E. Los filósofos presocráticos. Historia crítica y selección de textos. Madrid: Gredos, 1981.
LAPOUJADE, María Noel. La identidad del yo. In: HÜLSZ, E.; ULACIA, M. (Eds.). Más allá del litoral. México:
UNAM, 1994. p. 405-412.
LEÓN PORTILLA, Miguel. Los sabios o filósofos. In: La filosofía náhuatl estudiada en sus fuentes con nuevo
apéndice. 10. ed. Pról. de Ángel María Garibay. México, DF: UNAM, 2001 p. 63-74.
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SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Identidad e historia. In: HÜLSZ, E.; ULACIA, M. (Eds.). Más allá del litoral.
México: UNA, 1994. p. 341-352.
SCHÜTZ, Alfred. El problema de la realidad social. Buenos Aires, Amorrortu, 1974.
Recebido em 03.08.2012
Aprovado em 05.01.2013
158
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013
Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz
A ESCOLA E OS SETE SABERES:
REFLEXÕES PARA AVANÇOS INOVADORES
NO PROCESSO EDUCATIVO
Ricardo Antunes de Sá*
Sonia Maria Marchioratto Carneiro**
Araci Asinelli da Luz***
RESUMO
Este artigo objetiva trazer contribuições aos educadores quanto aos processos de ensino
e de aprendizagem na escola, com base no pensamento complexo de Edgar Morin e
considerando as discussões da Conferência Internacional Os Sete Saberes Necessários
para a Educação do Presente, realizada em setembro de 2010, em Fortaleza (CE). É
desenvolvida uma análise compreensiva e dialógica sobre os princípios necessários
para se efetivar uma educação que possibilite aos educandos refletir e intervir no
mundo presente e futuro, sob um outro olhar epistêmico para enfrentar os desafios do
pensar e do conhecer hoje necessários, na busca de um novo modo de ser.
Palavras-chave: Teoria da complexidade. Educação. Escola.
ABSTRACT
THE SCHOOL AND THE SEVEN KNOWLEDGE: REFLECTING ON
INNOVATIVE ADVANCES WITHIN SCHOOL EDUCATION
The article aims at contributing to educators` advancement in teaching and learning
school processes, upon Edgar Morin’s book “The Seven Necessary Knowledge in
Education for the Future” (2003) and discussions held by the International Conference
The Seven Necessary Knowledge in Education for the Present, at Fortaleza (CE),
September of 2010. There follows a comprehensive and dialogic analysis about some
∗ Pedagogo. Doutor em Educação. Professor Adjunto III. Docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação,
do Setor de Educação na Linha Cultura, Escola e Ensino. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Ambiente e Sociedade, do
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Endereço: José Rebelato, 240 – Sobrado – 01 – Xaxim – CEP: 81710010 – Curitiba–PR. Telefone: (41) 31526146. [email protected]
∗∗ Geógrafa. Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Professora Adjunta IV. Professora do Programa de Pós-Graduação
em Educação na Linha de Cultura, Escola e Ensino. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Ambiente e Sociedade, do Setor
de Educação da Universidade Federal do Paraná. Endereço: Rua Carmelo Rangel, 1260 – CEP: 80440-050 – Curitiba–PR.
Telefone: (41) 3342-6681 / (41) 91124514. [email protected]
∗∗∗ Doutora em Educação. Professora Associada. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação, do
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de
Pesquisa Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Ambiente e Sociedade,
do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Membro do Conselho e do GT-Educação da SBPC. Endereço: Rua
João Luiz Costa, 21 – Jardim Social – CEP 82.530-140 – Curitiba–PR. Telefone: (41) 9162-4503. [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013
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A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo
principles in view of an education enabling children and youngsters to be reflective
and active in the world. Therefore, an in-the-present and for-the-future school needs
another epistemic sight to cope with thinking and knowing challenges in the search
of a new quality of well-being.
Keywords: Complexity theory. Education. School.
Introdução
Este texto foca a escola contemporânea a partir
da obra de Edgar Morin (2003) Os Sete Saberes
Necessários à Educação do Futuro e da Conferência Internacional Os Sete Saberes Necessários
para a Educação do Presente, realizada em setembro de 2010, em Fortaleza (CE). A Conferência,
com participação de diversos grupos de estudos
e pesquisas, de professores da Educação Básica
e dos representantes de Secretarias de Educação
Estaduais e Municipais de todo o Brasil, buscou
valorizar os pressupostos epistemológicos e metodológicos da Teoria da Complexidade – segundo
a sistematização de Edgar Morin – tendo em vista
as experiências e discussões de sua incorporação à
educação. Esse evento colocou em pauta preocupações recentes da educação brasileira, assim como
de outros países, trazendo ao debate acadêmico-científico instigantes e inquietantes contribuições
para a pesquisa e a formação de educadores e, a
mais, abrindo perspectivas de reflexão sobre paradigmas emergentes da ciência e suas implicações
na inovação das práticas educativas, presentes e
futuras.
A Conferência discutiu e clarificou pontos e
nós da rede de pesquisadores e estudiosos que
vêm tematizando o pensamento complexo, a fim
de religarem os saberes dispersos das áreas do conhecimento, em vista de novas conexões entre as
ciências da natureza e as sociais. Nessa perspectiva,
entram em jogo implicações da conhecida máxima
pascalina, na proposição de Morin (2005, p. 103):
“Considero impossível conhecer as partes enquanto
partes sem conhecer o todo, mas não considero
menos impossível a possibilidade de conhecer o
todo sem conhecer singularmente as partes.” O
evento foi uma iniciativa político-pedagógica que
objetivou “[...] iniciar um profícuo diálogo entre
escolas e universidades, para intercâmbio de saberes e de práticas pedagógicas capazes de iluminar
160
novos cursos de formação docente, a partir da
complexidade” (CONFERÊNCIA..., 2010, p. 10).
O artigo foi desenvolvido como um diálogo
reflexivo sobre a Teoria da Complexidade e os
desafios da escola contemporânea, com o especial
objetivo de trazer contribuições aos educadores
quanto aos processos de se ensinar e aprender na
escola, sob uma perspectiva epistemológica com
base no pensamento complexo de Edgar Morin e
tendo como referência os eixos temáticos da sua
obra – acima citada – e textos publicados nos Anais
da Conferência. Nesse rumo, a escola precisa rever
suas práticas sociopedagógicas para que as novas
gerações aprendam a pensar, compreender, contextualizar e globalizar os saberes que emergem
necessários à multidimensionalidade da vida-hoje.
Conforme Antônio (2009), a educação necessita
ser repensada sob uma nova epistemologia. Assim,
um dos grandes desafios das práticas pedagógicas,
atuais e do futuro, é transitar unitariamente pela
diversidade do conhecimento, rompendo as fronteiras disciplinaristas rígidas – e isto enquanto uma
questão filosófica central da Educação. Sobre isso,
Santos (2008, p. 81) argumenta que “A complexidade [constitui] um corpo teórico que possibilita o
resgate do elo perdido, o sentido do conhecimento
para a vida”.
As cegueiras do conhecimento e a escola
A assertiva em foco remete à compreensão
de que o conhecimento elaborado, notadamente
o científico, é uma interpretação da realidade e,
estendido à escola, privilegia o real pedagógico.
Essa interpretação comporta erros e desvios, perturbações e ruídos que interferem na percepção
intelectiva do educando, do professor e ou do
pesquisador. As interpretações, por mais racionais
e lógicas que possam parecer, incorporam sempre
interferências subjetivas, emocionais e culturais,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013
Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz
as quais são intrínsecas ao sujeito que opera a
elaboração do conhecimento.
É preciso considerar que – na escola, de maneira
específica, e na vida de maneira geral – o desenvolvimento das capacidades cognitivas implica
a inseparabilidade da paixão, da afetividade, da
curiosidade e da imaginação. No entanto, essas
dimensões só se tornam frutíferas para a emancipação e autonomia intelectual do indivíduo quando
mantêm um equilíbrio dinâmico, o que significa que
“A afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas
pode fortalecê-lo [...], a faculdade de raciocinar
pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de emoção; o enfraquecimento da capacidade
de reagir emocionalmente pode mesmo estar na
raiz de comportamentos irracionais” (MORIN,
2003, p. 20).
A teorização sobre a escola, a organização das
ações pedagógicas e a prática docente necessitam
integrar um permanente diálogo com a prática in
actu. Tal diálogo não é aleatório nem espontaneísta,
mas referenciado a fatos e fenômenos pensados
reflexivamente na construção de objetivações
mediadoras entre os processos de compreensão,
decisões e ações nos contextos culturais, para além
de sistemas de ideias enquanto certeza de conhecimento. Daí que, as grandes interrogações sobre o
conhecer pedagógico comportam “[...] desenvolver
nova geração de teorias abertas, racionais, críticas,
reflexivas, auto-críticas, aptas a se auto-reformar.”
(MORIN, 2003, p. 32).O fenômeno mais distorcido
que a racionalização pragmática pode trazer ao
trato com o conhecimento científico em relação à
educação é a fragmentação do conhecimento – sua
reificação em pressupostos que simulam a explicação da complexidade do real e não dialetizam
nem dialogam com a teia multidimensional da
sociedade, do humano, da vida.
Torna-se importante a escola contemporânea
assumir que a racionalidade, e não a racionalização,
é uma prerrogativa do conhecimento científico e da
ação educativa. Uma postura de permanente diálogo epistêmico abre caminho a todos os professores
e pedagogos que lidam com o conhecimento, para
o avanço da educação. A racionalidade é saudável
no diálogo com o real pedagógico em busca da
compreensão e da elaboração de estratégias de
intervenção para aprimorar, transformar e melhorar
o espaço da ação educativa, a fim de intervir para
humanizar, para criar uma ambiência cooperativa,
colaborativa e sinceramente democrática: “Opera
o ir e vir incessante entre a instância lógica e a instância empírica; é o fruto do debate argumentado
das ideias, e não a propriedade de um sistema de
ideias.” (MORIN, 2003, p. 23).
A racionalização, em suas particularidades,
pode causar distorção do exercício da racionalidade, com descambo ao autoritarismo teórico, para a
visão unidimensional da realidade escolar que, no
discurso, traveste-se de democrática e dialógica.
Distorções da racionalização estão frequentemente presentes na área de formação de professores
e estendem-se mecanicamente à prática escolar,
deixando os educadores imobilizados para uma
coerente reflexão crítica sobre o fenômeno educativo. Racionalizações pedagógicas acríticas cegam
o diálogo e a produção de um conhecimento válido frente às complexas tessituras da organização
escolar.
Os fenômenos que se manifestam no âmbito
da escola, sejam de ensino e de aprendizagem, de
gestão, de organização e planejamento, de relações
profissionais ou pessoais, comportam, por parte dos
profissionais da educação, uma posição epistemológica, profissional e política. A dimensão epistemológica compreende a racionalidade científica, o
método de investigação e a busca de respostas que
possibilitem intervenções pertinentes e qualificadas
na organização escolar, com o objetivo de que esta
instituição cumpra seu papel formativo social, científico, político e cultural. A dimensão profissional
articula-se às demais dimensões, na medida em que
professores, pedagogos e técnicos têm claro seu
papel e suas responsabilidades perante a natureza e
a especificidade da escola. Esta dimensão estriba-se
não apenas na básica questão salarial, mas evoca
pertinências teórico-metodológicas no trato com a
questão pedagógica. A dimensão política, por sua
vez, é o compromisso com a formação do cidadão,
sob os princípios da ação intersubjetiva no diálogo
entre os diferentes e os diversos e do respeito à
cooperação, à colaboração e à solidariedade.
Morin (2003) define muito bem o trato do conhecimento lúcido e pertinente, enfocando que o
saber necessário, para o presente e futuro, demanda
lides educacionais que incorporem o racional e o
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A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo
emocional, pois o conhecimento científico exige
observação e auto-observação, crítica e autocrítica
nos processos reflexivos e de intervenção.
Os textos divulgados pela Conferência em
foco (VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et al., 2010b;
SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000) destacam a
necessidade de o educador buscar sentidos e significados com os educandos, a partir de atividades
de observação e diálogo crítico-reflexivo sobre
a multidimensionalidade do objeto em estudo,
como maneira de se perceber as diferenças e as
contradições existentes no mundo. Nesse contexto,
surgem possibilidades de diálogo sobre a questão
da verdade absoluta, do erro, da ilusão e da incerteza na construção dos conhecimentos, dada a
subjetividade individual; esta, sempre vivenciada
em diferenciações culturais, leva a que um objeto
possa ser visto e olhado de várias maneiras, desde
a percepção sensorial e a interpretação do vivido,
passando por desejos, afetos e temores. Nessa linha
de reflexão, os educandos poderão compreender
a provisoriedade dos conhecimentos, alcançando
entender que nem tudo que se sabe hoje será válido
amanhã; além de visualizarem o erro não como
oposição ao conhecimento – o que é normalmente
entendido na cultura escolar –, mas sim como
critério de avanço da ciência, em perspectiva de
curiosidade epistemológica (FREIRE, 1996). Assim, quando o educando se percebe “[...] agente do
processo de construção do conhecimento, em que
o erro se torna parte integrante desse processo, sua
curiosidade torna-se mais viva, dinâmica e contributiva.” (VIEIRA et al., 2010b, p. 4).
Portanto, a consideração das cegueiras do
conhecimento — a serem trabalhadas na escola
— possibilita um dos saberes fundamentais para
que os educandos passem a ver o mundo numa
perspectiva contextual e flexível, em contraposição
a uma visão linear e reducionista.
Sob essa ótica, uma reforma de pensamento pedagógico - de natureza paradigmática e não programática, segundo Morin (2003) - faz-se necessária,
pondo como questão fundamental da educação os
pressupostos filosóficos para tratar e organizar o
conhecimento. Isso exige dos educadores processos de auto-organização frente ao imprevisível e,
consequentemente, capacidade de gerar mudanças e
transformações na maneira de perceber a realidade
162
educacional e de construir o conhecimento.
Os princípios do conhecimento e a escola
Organizar o conhecimento é uma aptidão
necessária para o cidadão de hoje, no acesso às
informações e no saber como articulá-las, de
modo a reconhecer e conhecer questões do mundo
contemporâneo. Assim, torna-se essencial saber
organizar os conhecimentos no sentido de aprender
a aprender (MORIN, 2013). Organizar os conhecimentos não se reduz, entretanto, à classificações
e categorizações externas, puramente conceituais,
mas em uma apropriação hermenêutica de seus
sentidos que possibilitem um estar-no-mundo mais
autônomo e consciente.
O conhecimento chamado “pertinente” relaciona-se à consideração da complexidade das diversas
dimensões que constituem a realidade – física,
biológica, histórica, econômica, cultural, política
etc. Para tanto, é necessário superar o conhecimento
disjuntivo, que impede a apreensão e compreensão
de realidades complexas, em suas múltiplas interconexões e relações.
Nesse sentido, é importante que os educadores,
comprometidos com as novas gerações, desenvolvam um ensino que possibilite aos educandos
pensar a realidade de forma complexa, em vista da
sua formação como cidadãos éticos. Sob essa ótica,
urge – na interação de interpretar e intervir – que a
escola reelabore categorias para o enfrentamento
dos desafios da atual sociedade globalizada, altamente científica e tecnológica. Com efeito, um
conhecimento pertinente, do e no mundo, requer a
evidenciação de eventos, fatos, fenômenos, dados,
experiências nas suas perspectivas contextuais,
globais, multidimensionais e complexas. Cabe,
pois, designar esses aspectos de inteligibilidade
conceitual como categorias.
A categoria contexto situa os dados e as informações, denotando significados, sentidos,
densidade etc., possibilitando a compreensão da
tessitura do objeto estudado; porquanto, o educando só apreende os conhecimentos quando são
contextualizados sob os aspectos global, geográfico
e histórico, pois conhecer um dado isolado não lhe
permite alcançar o entendimento do todo.
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Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz
Por sua parte, a categoria global vai além do
contexto, referindo-se ao conjunto das partes
ligadas a ele, de modo inter-retroativo ou organizacional; refere-se, portanto, às relações entre as
partes e destas com o todo e vice-versa. O todo
não é a soma das partes. As partes possuem características e especificidades que, na sua dinâmica
inter-relacional, auto-eco-organizativa, formam o
todo; e este tem qualidades que não são encontradas
nas partes, se estas estiverem separadas umas das
outras. Por isso, é preciso ter conhecimento do todo
para entender as partes.
A categoria multidimensionalidade relaciona-se aos diversos aspectos constitutivos do indivíduo
e às várias instâncias da sociedade (econômica,
histórica, política, jurídica, social etc.), interconectadas em configuração hologramática, isto é,
sob o aspecto da presença do todo nas partes. O
conhecimento pertinente, portanto, incorpora essa
característica multidimensional da realidade, pois
cada dimensão está inter-relacionada com a outra,
de forma inter-retroativa permanente, modificando-se constantemente.
Já a categoria complexo diz respeito às interligações presentes na natureza e na sociedade,
urdidas pelas inter-retro-eco-ações; é a junção
entre unidade e multiplicidade – o que foi tecido
junto. Portanto, “[...] há um tecido interdependente,
interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e
as partes, as partes entre si” (MORIN, 2003, p. 38).
Nessa perspectiva, a educação tem por finalidade promover o desenvolvimento da inteligência
dos educandos, para se tornarem aptos a raciocinar
sobre os objetos de estudo com base nas categorias
de contexto, do complexo e do multidimensional
dentro da concepção global; pois é dessa maneira
que aprenderão a (re) ligar os saberes e ter condições de compreender as questões sobre o mundo e
de intervir nele, criteriosa e responsavelmente, na
prevenção e solução de problemas. Observa-se que
um conhecimento pertinente não se caracteriza pela
quantidade de informações, mas pela sua organização simultaneamente analítica e sintética das partes
religadas ao todo e do todo religado às partes. É
dessa maneira que o educando terá condições de
apreender a complexidade, as conexões ocultas e
intrínsecas a toda a realidade. Tal encaminhamento
pedagógico opõe-se ao conhecimento disjunto,
em favor da articulação entre as diversas áreas de
ensino, a partir de uma relação dialógica, via um
planejamento aberto, flexível, que possibilite um
trabalho escolar problematizador (VIEIRA et al.,
2010a; VIEIRA et al., 2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000; MARTINAZZO, 2010a). Nessa
linha destaca-se a valorização da transversalidade
curricular e de projetos educacionais inter e transdisciplinares, que favoreçam a construção conjunta
e colaborativa do conhecimento escolar. Para Morin
(2003), esse é um dos desafios da educação do
presente, na medida em que há, de um lado, uma
inadequação profunda entre os saberes divididos
e, de outro, as realidades ou problemas multidisciplinares, multidimensionais, globais e planetários.
Assim, a inter-relação das áreas de ensino torna-se
uma exigência cognitiva-e-pedagogicamente natural para proporcionar a compreensão da realidade
complexa pelos educandos e, com isso, serem
capazes de enfrentar e resolver os problemas emergentes, na linha da cidadania planetária, portanto,
local-global. Além de tudo, de acordo com Santos
(2008, p. 76), “[...] trabalhar a educação com tal
visão supera a mesmice do padrão educativo, encanta o aprender e resgata o prazer de aventurar-se
no mundo das ideias”.
Ao ter a Escola a finalidade político-pedagógica
de formar cidadãos, incumbe-lhe assumir que eles
não existem sem conhecimentos de problematização, que não se constituem sem a capacidade
intelectual de pensar e de saber pensar:
A educação deve favorecer a aptidão natural da
mente em formular e resolver problemas essenciais
e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Esse uso total pede o livre exercício
da curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais
viva durante a infância e a adolescência, que com
frequência a instrução extingue e que, ao contrário,
se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, de
despertar. (MORIN, 2003, p. 39).
Ensinar a condição humana na escola
Ensinar a condição humana numa perspectiva
complexa é permitir o desvendamento de seus
diversos enraizamentos: cósmico, físico, terrestre
e do próprio ser humano. Morin (2003) traça uma
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013
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A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo
via de interligação e interdependência que revela,
primeiro, nossa dimensão cósmica. Somos cósmicos porque as partículas de nosso organismo, da
vida na Terra, são provenientes da formação inicial
do Universo, em constante auto-organização. A
condição física teve origem pela termodinâmica
sobre a Terra, ou seja, por meio das condições
energéticas provenientes do Sol; já a condição
terrestre relaciona-se à biosfera terrestre – nosso
Planeta Terra – quanto ao seu complexo biofísico.
E o humano é resultado de uma evolução de milhões de anos que se foram sucedendo, até chegar
à espécie Homo Sapiens, diferenciada das espécies
anteriores pela sua complexificação psicossocial e
cultural, especialmente pela linguagem. Na realidade, o conceito de homem implica duplo princípio:
um biofísico e, o outro, psico-sociocultural. Não há
como conceber o ser humano sem essa dupla raiz
de origens: o humano é ao mesmo tempo um ser
biológico e cultural, que traz em si uma unidualidade. Assim, entender o humano é compreender sua
unidade na diversidade e vice-versa, o que traduz
uma antropologia complexa (MORIN, 2003, 2013).
A escola, ao trabalhar esse saber, estará refletindo
sobre a complexidade humana – a sua unidade e
diversidade quanto aos constituintes biológicos,
psicológicos e socioculturais. Tal reflexão implica a
discussão triádica de indivíduo, sociedade e espécie
humana, em que cada sujeito é produto e produtor
da espécie e, no seu conjunto, forma a sociedade,
que produz cultura e é por ela produzida.
Essas perspectivas possibilitam a compreensão
da relação entre indivíduo e sociedade e, nesse
sentido, conduzem à tomada de conhecimento e
conscientização dos educandos sobre a condição
humana e da diversidade dos indivíduos, dos povos
e das culturas – “[...] sobre nosso enraizamento
como cidadãos da Terra [...].” (MORIN, 2003, p.
61). Assim, a importância da escola tratar a condição humana nos diferentes conteúdos curriculares,
entre os quais as questões socioambientais – tão
presentes nos dias atuais e que afetam a fragilidade
biossocial dos habitats humanos. Decorre daí a
noção de interdependência, necessidade do cuidado
por relações saudáveis entre os seres humanos e
desses com o meio natural, em vista do trato das
realidades de vida e desenvolvimento de condições
desejáveis. Além disso, vale ressaltar a importância
164
desse saber escolar, para os educadores poderem
entender melhor seus educandos, na medida em
que os entendam como seres biológicos, psíquicos,
afetivos, sociais e intuitivos e, sob essa ótica, reconhecendo suas subjetividades e problemas pessoais
no ato educativo (VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et
al., 2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000).
Ensinar a identidade terrestre na escola
Conceber a identidade terrena implica refletir
sobre os problemas do nosso mundo e as condições que foram produzidas pelo homem ao longo
dos tempos: a era planetária. Nesse sentido, é importante pensar as condições de vida que os seres
humanos vêm produzindo, especialmente a partir
do processo de globalização e mundialização, que
criou problemas vitais para a humanidade – a intersolidariedade de problemas, antagonismos, crises e
processos vários, aleatórios, senão descontrolados.
A globalização vem-se constituindo, notadamente
desde o século XV, pela dominação do ocidente
europeu que, ao mesmo tempo, produziu sérios
problemas civilizatórios – destruição, escravidão
e exploração, especialmente das Américas e da
África – e desencadeou planetariamente a expansão
do comércio e o encurtamento das distâncias entre
os povos. A globalização econômica pós-industrial,
capitaneada pelas forças produtivas do capitalismo,
que no século XX se generaliza como economia
de caráter neoliberal mundializada, cada vez mais
se faz interdependente pelo desenvolvimento das
telecomunicações e informática (MORIN, 2003).
A mundialização, na fase atual, tornou o Planeta
um todo, ou seja, cada parte do mundo faz parte
do mundo, e o mundo em sua totalidade está cada
vez mais presente em cada uma de suas partes –
isso se verifica não apenas para as nações e povos,
mas também para os indivíduos. Tal processo de
mundialização caracteriza-se por uma unificação
conflituosa, permeada por interesses políticos e
econômicos que impõem uma globalização cultural, afetando os modos de pensar e viver das
sociedades diversas do mundo, gerando conflitos
socioculturais; e além do mais, o mercado mundial
dominador visa essencialmente ao lucro e não à
qualidade de vida planetária. Como escreve Morin
(2003, p. 75), “A união planetária é a exigência
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013
Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz
racional mínima de um mundo encolhido e interdependente. Tal união pede a consciência e um
sentimento de pertencimento mútuo à Terra, considerada como [...] pátria”. Para tanto, é necessário
propiciar uma educação escolar cidadã e planetária
que possibilite o desenvolvimento nos educandos
da consciência ecológica e sociocultural, relacionada à conservação dos ambientes de vida, e uma
aceitação da diversidade cultural, reconhecendo-se
a unidade na diversidade. Com isso, reforça-se
a importância da coexistência de modos de vida
ante a intensificação de movimentos de pessoas e
grupos mediante as tecnologias de comunicação e
transporte.
Portanto, pensar uma identidade terrena significa que os seres humanos adotem posturas de
responsabilidade para com as diferentes realidades socioambientais. Na escola, essa premissa
deve perpassar todos os conteúdos curriculares,
ensejando uma prática educativa articuladora do
conhecimento, sob uma orientação ético-social.
Para tanto, é necessário o educando desenvolver
uma autopercepção de pertencimento ao Mundo-Terra e ao Universo, entendendo que somos
enquanto existentes, ao mesmo tempo, a unidade
e a diversidade juntas: unidade como um Planeta,
em suas características cósmicas e, ao mesmo
tempo, mais um e mais outros no todo do universo.
Também se faz ideativamente indispensável ao
educando compreender que nosso Planeta possui
características diferentes em cada ponto de sua
geografia – e que devem ser respeitadas. A responsabilidade da educação escolar, portanto, implica
ajudar os educandos a entenderem que o Planeta
Terra é único e deve ser conservado enquanto lugar
de habitar e conviver, para as gerações presentes
e as futuras (VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et al.,
2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000). E
aí está uma nova postura educacional, emergente
e urgente, para a busca de uma identidade terrena,
conforme alude Morin (2003, p. 78, grifo do autor):
O duplo imperativo antropológico impõe-se: salvar
a unidade humana e salvar a diversidade humana.
Desenvolver nossas identidades a um só tempo
concêntricas e plurais: a de nossa etnia, a de nossa
pátria, a de nossa comunidade de civilização, enfim,
a de cidadãos terrestres. [...] Civilizar e solidarizar
a Terra, transformar a espécie humana em verda-
deira humanidade torna-se o objetivo fundamental
e global de toda educação que aspira não apenas ao
progresso, mas à sobrevida da humanidade. [...] A
educação do futuro [e do presente deve] ensinar a
ética da compreensão planetária.
Enfrentar as incertezas na escola
É uma premissa que diferencia a educação-hoje
da tradicional, que ensinava a pensar os fenômenos
sob um foco de regularidade; um bom planejamento, por exemplo, poderia ordenar tudo, organizar
os processos de forma que funcionassem como um
relógio. Nos dias atuais, em vista da velocidade
acelerada das dinâmicas complexas e aleatórias da
era planetária, é necessário levar em consideração
o princípio da incerteza; isto é, entender que o
universo é jogo e risco da dialógica entre a ordem,
a desordem e a organização. E sob essa condição,
está a realidade humana – seja a história da humanidade, a história individual, a história da escola.
Assim, a educação do presente para o futuro precisa
defrontar-se com as incertezas do conhecimento,
pois, segundo Morin (2003, p. 84-85), existe:
[...] Um princípio de incerteza cérebro-mental, que
decorre do processo de tradução/reconstrução próprio a todo conhecimento. [...] Um princípio de incerteza lógica: como dizia Pascal muito claramente,
‘Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a não
contradição é sinal de verdade.’ [...] Um princípio
da incerteza racional, já que a racionalidade, se não
mantém autocrítica vigilante, cai na racionalização.
[...] Um princípio da incerteza psicológica: existe
a impossibilidade de ser totalmente consciente do
que se passa na maquinaria de nossa mente, que
conserva sempre algo de fundamentalmente inconsciente. Existe, portanto, a dificuldade do autoexame
crítico, para o qual nossa sinceridade não é garantia
de certeza, e existem limites para qualquer autoconhecimento.
Diante das incertezas inerentes à condição
humana, a realidade não é tão satisfatoriamente
legível quanto suposto por imediatismos pragmáticos. Ideias e teorias que pretendam traduzir a
realidade via esquemas simplistas podem sempre
equivocar-se. Nesse rumo, alerta Morin (2003, p.
85): “Por isso, importa não ser realista no sentido
trivial (adaptar-se ao imediato), nem irrealista no
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013
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A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo
sentido trivial (subtrair-se às limitações da realidade); importa ser realista no sentido complexo:
compreender a incerteza do real, saber que há algo
possível ainda invisível no real”.
Portanto, o conhecimento é passível de ilusão
e de erro, e nas certezas doutrinárias intolerantes
encontram-se as piores ilusões; ao contrário, numa
consciência do caráter incerto das cognições está
a oportunidade de se chegar ao conhecimento pertinente, o que requer verificações e convergências
de indícios. Para enfrentar a incerteza é importante
levar em consideração duas questões: o desafio e
a estratégia. O desafio relaciona-se à consciência
da aposta (hipótese), partir da qual entra em cena a
estratégia, como momento de se elaborar cenários
de ação e de examinar as certezas e as incertezas
de uma determinada situação – as probabilidades
e improbabilidades. É importante considerar-se a
prudência e a audácia no diálogo entre fins e meios,
tendo como base o contexto sob a análise. Além disso, na estratégia pesam as complexidades inerentes
às próprias finalidades previstas, máxime, no caso
de a estratégia comportar modificações, em vista
de imprevistos, de informações novas etc. Nesse
sentido, toda oportunidade envolve risco e vice-versa, de modo que ante a incerteza, o inesperado
e o improvável, tudo é possível. Aqui vale ressaltar
a ideia de “ecologia da ação”, de Morin (2003), isto
é, considerar a complexidade supondo o aleatório,
a iniciativa, a decisão, o imprevisto e a consciência
dos desvios e das transformações. Isso, conforme
Santos (2008), equivale a um jogo de ações e
inter-relações, significando que o conhecimento é
dinâmico, embora também possa ser submetido ao
“fenômeno do reducionismo”, seguindo caminhos
inesperados, nem sempre coincidentes com as expectativas iniciais.
Com efeito, a incerteza é um saber a ser ensinado na escola; o aluno passa a entender que todo
conhecimento – de senso comum ou científico –,
todo pensamento, planejamento e organização de
qualquer atividade raciocinada é permeado pela
incerteza e, por isso, passível de desconstrução e
reorganização. Essa visão de mundo permite aos
educandos entenderem que o futuro é aberto e
imprevisível, remetendo-os à incerteza histórica
e a um devir problematizador e, com isso, capacitando-os para uma relação mais amadurecida,
166
prudente e consciente com o real e suas injunções
circunstanciais (VIEIRA et al.,2010a; VIEIRA et
al., 2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000).
O entendimento de incerteza histórica pode ser
referendado por uma colocação de Petraglia (2000,
p. 13), ao lembrar que a “[...] base da epistemologia
da complexidade advém de três teorias surgidas
na década de 1940: a teoria da informação, a cibernética e a teoria dos sistemas, cujos impactos e
aplicações práticas, no entanto, só se manifestariam
mais tarde, nas décadas de 1960, 1970 e 1980”,
evidenciando a dinâmica de mudanças, de transformações epistemológicas da própria ciência. Em
suma, a velocidade das informações e as dinâmicas
complexas do mundo atual, marcado por profunda
crise de desacertos humanos (guerras, massacres,
desprezos e ódios interétnicos) e desequilíbrios
ecológicos (desastres ambientais e problemas
socioambientais), levam a humanidade a desafios
complexos, não facilmente legíveis e que, por
isso, demandam das escolas uma nova orientação
sociopedagógica para empoderar os educandos a
desenvolverem análises interpretativas criteriosas,
sob a luz dos saberes em foco.
Ensinar a compreensão na escola
A compreensão relaciona-se a dois sentidos:
um intelectual ou objetivo e o outro, intersubjetivo. O primeiro implica apreender em conjunto o
texto e seu contexto, o todo e as partes, o múltiplo
e o uno. Esse sentido intelectual da compreensão
passa pela racionalidade explicativa; já o segundo
sentido da compreensão vai além da dimensão
intelectual, racional, analítica ou explicativa: comporta a percepção do outro, como sujeito que não é
apenas percebido quantitativa e objetivamente, mas
implicando um processo de intersubjetividade – de
empatia, de identificação e de heteroprojeção. Sob
esse foco, a compreensão é sentimento de abertura
e de solidariedade, pelo qual o papel da escola está
no “Ensinar a compreensão entre as pessoas como
condição e garantia da solidariedade intelectual e
moral da humanidade” (MORIN, 2003, p. 93). No
entanto, é preciso ter-se presente que a compreensão envolve uma série de obstáculos geradores de
mal-entendidos ou não-entendidos, pela polissemia
de um termo, pela ignorância de costumes culturais
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013
Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz
e, nesse contexto, pelas dificuldades de abertura
subjetivo-social a uma outra visão de mundo.
A vivência da atitude compreensiva é a arte de
viver e do bem-pensar, a qual deve ser ensinada às
novas gerações: aprender a pensar em conjunto,
envolvendo-se com o texto e o contexto, o ser e
sua realidade ambiente, o local e o global, o multidimensional, enfim, o complexo. E nesse sentido,
pensar bem é compreender objetiva e subjetivamente as circunstâncias da vida, evitando-se o pensamento redutor, fragmentador e empobrecedor, seja
de um fato, de um evento, de um acontecimento, de
um sujeito etc. – pelo contrário, há que se prover e
promover o aprendizado sobre do bem-conviver,
pois nessa linha estaremos caminhando para mais
humanização das relações humanas.
Nesse âmbito, ressalta-se a importância desse
saber – ensinar a compreensão – quanto à relativização do que seja o verdadeiro em cada área do
conhecimento, requerendo-se do currículo escolar
a abertura das fronteiras disciplinares, a fim de
que os educandos compreendam o que cada olhar
sobre um mesmo fenômeno apreende, sistematiza
e elabora. Porquanto, urge mais e mais, nos espaços escolares, diálogos de conscientização sobre a
solidariedade intersubjetiva em vista da formação
de educandos que saibam conviver com as diferenças, em suas diversas dimensões. Há necessidade
da criação de um clima agradável e confiante nas
escolas, por meio da escuta sensível e de relações de
alteridade, na linha do respeito, da justiça e da dignidade – pilares da ética da convivência saudável
(VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et al., 2010b; LIRA
et al., 2010; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000).
A escola do futuro, mas já como escola do hoje
e do agora, não pode prescindir de ensinar e viver
a compreensão, não só no que se relaciona ao
pensamento complexo, mas enquanto demanda a
autocrítica de nossas falhas, beneficia a compreensão dos outros, desfaz a posição de juiz e fomenta
a prática da tolerância. Essa visão converge com o
pensamento de Freire (2004, p. 24, grifo do autor):
Falo da tolerância como virtude da convivência humana. Falo, por isso mesmo, da qualidade básica a
ser forjada por nós e aprendida pela assunção de sua
significação ética – a qualidade de conviver com o
diferente. Com o diferente, não com o inferior [...].
Na tolerância virtuosa não há lugar para discursos
ideológicos, explícitos ou ocultos, de sujeitos que,
julgando-se superiores aos outros, lhes deixam claro
ou insinuam o favor que lhes fazem por tolerá-los.
O desenvolvimento da Educação, sob essa
perspectiva, está no caminho de uma educação
para a cidadania planetária, em vista de sociedades democráticas abertas ao mundo. Com efeito,
a escola tem um grande desafio hodierno, que é
humanizar o homem sob a ética da solidariedade, a
partir “[...] da reforma planetária das mentalidades
[...]” (MORIN, 2003, p. 104).
Ética do gênero humano na escola
O sétimo saber compreende o gênero humano,
a partir da tríade inseparável: indivíduo, sociedade
e espécie, pois cada sujeito é coprodutor do outro:
o indivíduo pertencente à espécie humana, na dinâmica interacional com outros indivíduos, produz
a sociedade e esta retroage sobre os indivíduos.
Para conviver com o outro, é preciso reconhecê-lo como ser humano, em condições de igualdade
democrática. O sentimento democrático é um valor
fundamental no processo educativo, na medida
em que favorece a relação respeitosa entre indivíduo e sociedade – entendendo cada pessoa como
cidadão, sujeito responsável e detentor de direitos. Nesse contexto está o respeito à diversidade
sociocultural, o que exige busca de consenso nos
conflitos mediante o diálogo, para salvaguardar a
vida democrática.
O empenho pela vida democrática deve ser
um dos pilares do “novo” homem. É uma utopia
permanente que impedirá as aventuras autoritárias
e totalitárias, as quais impõem aos indivíduos
mecanismos coercitivos, com perda da liberdade.
A educação cidadã planetária tem, por isso, como
princípio básico o desenvolvimento do senso democrático, que supõe valores de responsabilidade
e solidariedade com a coletividade – a comunidade
local e planetária. É nessa orientação pedagógica
que são dadas aos educandos condições de se
apreenderem como seres interdependentes para a
preservação de si mesmos, da vida, do outro e do
Planeta (LIRA et al., 2010). Para tanto, torna-se
necessária a reforma da escola, tanto sob o aspecto
do conhecimento quanto da formação afetivo-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013
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A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo
-atitudinal. Por conseguinte, faz-se imperativa,
hoje, uma Educação que saiba lidar com a ciência,
com a técnica e com a ideologia, elucidando aos
educandos os fenômenos complexos da realidade
e auxiliando-os a intervir no mundo de maneira
a melhorar as condições de vida nos ambientes
locais e globais.
Assumir sociopedagogicamente a ética do
gênero humano é conceber a escola como espaço
e lugar de direitos humanos, onde a ética do conhecimento e a ética da responsabilidade não são
soluções e sim, caminhos. Nesse sentido, escola
como espaço de emancipação dos educandos é o
lugar de diálogo e reciprocidade da presença. Freire
(1996, p. 33, grifo do autor), sobre a ética do gênero
humano, expressa:
Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir,
de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso
nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos
sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para
ser. Não é possível pensar os seres humanos longe,
sequer da ética, quanto mais fora dela. [...] é uma
transgressão. Esse saber de referência, aos educadores, pressupõe uma educação integral em prol
das grandes mudanças ansiadas pela humanidade:
justiça social, igualdade entre os sexos, eliminação
do racismo, tolerância religiosa, respeito às minorias,
educação universal, equilíbrio ecológico e liberdade
política, no contexto de uma desejável e possível
sustentabilidade planetária. Considerações finais
As reflexões, em pauta, abrem motivações para
uma reforma da escola, tanto sob o aspecto dos
conteúdos de conhecimento, quanto da formação
afetivo-atitudinal dos educandos. Aos educadores,
sempre são bem-vindas perspectivas de uma educação que saiba lidar com a ciência, com a técnica
e com a ideologia, elucidando os fenômenos complexos da realidade e preparando os cidadãos-em-formação a intervir pela melhoraria das condições
de vida no mundo local-global. As contribuições
de Morin (2003) e da Conferência focada apontam
desafiadoras inovações de condutas cognitivas e
pedagógicas a serem vividas na escola hodierna,
enquanto espaço e lugar de aprender, desenvolver
e exercitar a humanização dos educandos. A escola
é um espaço privilegiado na vivência de interações
complexas que aproximam e unem as diversidades, as diferenças dos sujeitos, num movimento
dialógico que contempla complementaridades,
antagonismos e tensões. É o espaço e lugar onde
os educadores dialogam uns com os outros – seus
pares e os educandos – numa relação de convivência, de acolhimento e de compreensão. Nesse
sentido, é falsa qualquer dicotomia entre professor e
educando, pois, segundo Freire (1996, p. 21), “[...]
não há docência sem discência [...]”.
A escola precisa olhar para os novos desafios
do pensamento e do conhecimento humano; precisa
se transformar de modo a ser capaz de construir
conhecimentos em que docentes e educandos
aprendam a se situar e compreender no lugar onde
convivem e atuam, desvelando o processo histórico
de ser humanidade, desde os primórdios até a atual
era planetária, destacando exemplos solidários,
porém, sem ocultar a opressão e a dominação
(MARTINAZZO, 2010b) – e, nesse sentido, denunciando e repudiando males que poderiam e ser
evitados ou, pelo menos, minimizados.
Os sete saberes, necessários para a educação
do-presente-e-futuro, dão ensejo ao sonho e fundam a realidade do (re)encontro de educadores e
educandos com dimensões do pensar e fazer que
valorizem uma racionalidade humanamente compromissada com a felicidade e a identidade terrena
e cósmica, numa vinculação – tão construída quanto
espontânea – à Natureza, à História e à Cultura.
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Recebido em 13.08.2012
Aprovado em 11.01.2013
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013
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Alvino Moser; Daniel Soczek
FILOSOFIA PARA CRIANÇAS:
APONTAMENTOS REFLEXIVOS
Alvino Moser*
Daniel Soczek**
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar algumas considerações sobre o ensino, numa
perspectiva filosófica, para crianças. Partimos do pressuposto que o filosofar é uma
atividade própria do ser humano, mas poucos são os alunos de ensino médio e superior
que iniciam as aulas de Filosofia nela interessados. Nossa hipótese é de que a postura
filosófica da criança lhe é subtraída ou subjugada por processos educacionais formais
ou informais que, numa perspectiva instrumental, limitam a condição humana a
uma cultura de massas, na perspectiva de uma indústria cultural que assume novas
dimensões pelo desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs). Na tentativa de apresentar algumas reflexões críticas sobre o processo de
formação da criança, o percurso deste texto é, num primeiro momento, fazer uma breve
explanação sobre alguns significados do que é ser criança no mundo contemporâneo.
No segundo momento, defenderemos a ideia de que a predisposição ao filosofar é uma
capacidade que aparece nos anos iniciais da existência humana para, num terceiro
momento, discutir como aproveitar esta predisposição para a reflexão filosófica como
elemento fundante do processo educacional.
Palavras-chave: Filosofia. Ensino de Filosofia. Filosofia para crianças.
ABSTRACT
PHILOSOFY FOR CHILDREN: A BRIEF REFLECTION
This paper aims to present some reflection on teaching philosophy to children. We
believe philosophizing is a human activity, but there are only a few High School
and college students interested in it. Our hypothesis is that the formal and informal
educational processes discourage children in their dispositions toward philosophy.
That occurs because our contemporary society promotes the “mass culture” which
limits human condition. This perspective acquires new dimensions with the advent
and development of Information and Communication Technologies (ICTs). In order to
* Doutor em Ética pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Professor do Centro Universitário UNINTER. Pesquisador
do Núcleo de Pesquisas em Educação da UNINTER. Endereço para correspondência: UNINTER - Rua Saldanha Marinho,
131 – Centro, Curitiba-PR. CEP: 80410-150. moseral.am@gmail,com
** Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do Centro Universitário
UNINTER e da Secretaria do Estado de Educação do Estado do Paraná (SEED-PR). Pesquisador do Núcleo de Pesquisas em
Educação da UNINTER. Endereço para correspondência: Rua José Rodrigues Pinheiro, 565, Capão-Raso, Curitiba- PR. CEP:
81130-200. [email protected]; [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013
171
Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos
present some critical reflection on child’s education process, we follow three steps: first,
a brief explanation of what means to be a child in the contemporary world. Second, we
present the thesis that in their first years of life children are endowed with the capacity
for philosophizing. Finally, we discuss how we can take this child’s predisposition to
philosophy as a fundamental source of the educational process.
Keywords: Philosophy. Teaching Philosophy. Philosophy for Children
Introdução
Dentre as muitas problematizações construídas
e reconstruídas no âmbito filosófico, uma das mais
interessantes do nosso ponto de vista, atualmente,
refere-se à fundamentação epistemológica quanto
ao que seria importante, considerando as condições materiais de existência contemporâneas,
para embasar e/ou consolidar o que chamamos de
pensamento filosófico. Dentre os possíveis desdobramentos dessa problemática destacamos, dentre
outras, duas questões: como e por que ensinar/
aprender o filosofar.
Quanto à pergunta “por que ensinar/aprender
filosofia?”, existe um posicionamento “consensuado” no Brasil quanto à sua importância para
compreensão e (re)construção da realidade, ainda
que constituído por diversos vieses e perspectivas.
Basta, nesse sentido, ler a introdução ou algum capítulo específico da maioria dos livros ou manuais
de ensino de Filosofia. Contudo, quanto ao “como
se aprende filosofia”, o foco da questão requer o
olhar atento do professor que, em sala, é demandado a desenvolver processos dialógicos de construção da realidade com os estudantes, gerando,
necessariamente, conflitos derivados do contraste
entre posturas ideológicas diversas.
Em uma sala de aula, seja do ensino médio ou
da graduação (em cursos que não o de Filosofia),
temos uma realidade quali-quantitativa desafiadora: alguns poucos estudantes vêm até a sala de
aula interessados no estudo da Filosofia. Em sua
grande maioria, esses estudantes trazem consigo
preconceitos recorrentes quanto aos conteúdos e
abordagem da Filosofia em sala de aula. Esses preconceitos podem ser percebidos nos comentários
entre os estudantes no que diz respeito à Filosofia:
é comum associar a imagem do professor de filosofia como um “louco” ou ateu, por exemplo. Em
172
muitas situações, esses e outros preconceitos limitam a discussão filosófica, desviando o campo da
reflexão para o campo dos dogmatismos e falácias.
Eventos na sala de aula derivados dessas concepções equivocadas muitas vezes deixam implícito,
e outras claramente explicitado, que o estudante,
pelo menos nas primeiras aulas, não pretende fazer
parte dos processos de ensino e aprendizagem de
Filosofia. Sua permanência física na sala de aula
decorre muitas vezes da coerção exercida pelo
currículo numa perspectiva burocrática: se não fizer
a disciplina, reprova! Dificuldades dessa natureza
deixam os professores apreensivos. Frente a esse
quadro, o professor de Filosofia é desafiado a estimular os estudantes a aceitar o convite à Filosofia,
parafraseando o livro de Chauí (2004).
Dentre as possíveis respostas ao desafio acima
apontado, uma das possibilidades de abordagem
dessa questão está relacionada ao seguinte questionamento: a partir de que momento e sob quais
circunstâncias, efetivamente, o ser humano estaria
em condições de pensar sobre si mesmo e seu
mundo? Em que momento e como essa disposição
é negada ou, ao menos, não cultivada nos processos
de ensino? Se o estudante chega ao ensino médio
e superior com os preconceitos e posturas acima
mencionadas, tais condições e atitudes merecem
ser pensadas também na perspectiva dos processos
escolares aos quais as crianças foram anteriormente
submetidas. Nesse sentido, duas questões principais
norteiam nossa reflexão. A primeira, como (re)pensar a prática de formação das crianças para o exercício do pensamento filosófico? Segunda, como
essa experiência de significação e ressignificação
da realidade pelo pensamento filosófico pode ser
resgatada no estudante em processo de formação
mais adiantado (ensino médio e ensino superior)?
Partimos do pressuposto, adiante explicitado,
de que o filosofar é uma atividade própria do ser
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013
Alvino Moser; Daniel Soczek
humano, fundamental para o desenvolvimento
individual e coletivo dos sujeitos sociais. Nossa
hipótese é que a postura filosófica da criança lhe
é subtraída ou subjugada por processos educacionais formais ou informais que, numa perspectiva
instrumental, limitam a condição humana a uma
cultura de massas, continuamente reafirmada pelas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).
Este texto abordará, em grande parte, a primeira
questão com o objetivo de, a partir dessas reflexões,
lançar alguma luz sobre a segunda questão.
As discussões sobre os processos de ensino/
aprendizagem de Filosofia para o público infantil e
infanto-juvenil têm muitas perspectivas e estão em
desenvolvimento em muitas frentes como cursos
de extensão e especialização, eventos regionais,
nacionais e internacionais ligados a esta temática,
bem como produção de dissertações e teses1, além
de artigos de revistas científicas2 e, é claro, de
pesquisas realizadas em ferramentas de consulta
da internet como o Google. Ainda temos editoras
especializadas em obras de filosofia3 e a publicação de outros materiais como jornais disponibilizados em blogs4. Considerando a diversidade de
propostas e projetos quanto ao ensino de filosofia
para crianças, damos algum destaque às reflexões
aqui desenvolvidas para a proposta elaborada e
implantada por Lipman e seus colaboradores (LELEUX, 2008) na Universidade de Columbia, sem
desconsiderar as críticas a ela direcionadas. Essa
proposta tem origem entre os anos 60-70 do milênio
passado e foi discutida, (re)pensada e melhorada
nas décadas seguintes, sendo hoje trabalhada em
diversos países.
Para trabalhar as questões acima pontuadas,
este texto se divide em momentos articulados
entre si. Num primeiro momento será realizada
uma breve explanação sobre o que significa ser
1Estas dissertações ou teses podem ser acessadas pela consulta ao
banco de teses da Capes, disponível em: <http://capesdw.capes.gov.
br/capesdw/>.
2 Muitos desses artigos, avaliados criteriosamente e disponibilizados
em revistas, podem ser acessados em bases de periódicos como o
Scielo, pelo site <http://www.scielo.org.br>.
3 Destacamos aqui duas delas: a Vozes, <http://www.universovozes.
com.br/> e a Shofos, <http://www.editorasophos.com.br/>, cujos
catálogos estão disponíveis on-line nos referidos sites.
4 Existem centenas, talvez milhares de blogs sobre filosofia e seu
ensino. Dentre eles destaco o “Corujinha”, que surgiu de uma
tradição de 23 anos de publicações em Filosofia, disponível em
<http://jornalcorujinha.blogspot.com.br/>.
criança no mundo contemporâneo. Em seguida,
será defendida a ideia de que a predisposição ao
filosofar é uma capacidade humana que aparece
nos anos iniciais da existência para, num terceiro
momento, discutir como aproveitar esta predisposição para pensar ensino de filosofia para crianças
e jovens. Este texto conta, em alguns momentos,
com certa licença poética e está pautado pela nossa
experiência como professores, refletindo, portanto,
nossa concepção de ensino. Não afirmamos que as
opções teóricas aqui tomadas sejam as melhores
nem as piores linhas de análises e nem propomos
alguma sistematização quanto ao estado atual da
arte referente ao debate dessa temática. Apresentamos, tão somente, pontos de vista que nos parecem
convenientes no intuito de suscitar debates sobre o
ensino de filosofia para crianças e pensar como este
movimento pode ser aproveitado para qualificar a
formação dos estudantes ao longo de todo o seu
processo formativo e para além dele.
1. O surgimento da concepção contemporânea de criança como “nativas
digitais”
As globalizações e os processos de mundialização (HARVEY, 1993; IANNI, 1996; SANTOS,
M., 2000; SADER, 2004), o grande acúmulo e
disponibilização de informações pelo acelerado
desenvolvimento das tecnologias (CASTELLS,
2003), a crítica aos seus usos (JONAS, 2006) são alguns dos elementos que influenciam o processo de
desenvolvimento da pessoa e da sociedade. Discutir
a condição da criança no mundo contemporâneo
e sua presença na Escola (no Brasil, 96,7% das
crianças entre 7 e 14 anos, segundo o IBGE, estão
devidamente matriculadas), nesse ambiente pautado pelas TICs, é algo extremamente desafiador,
principalmente se propusermos uma reflexão sobre
o papel da Escola. Ao deixar uma criança adentrar
os muros da Escola, pelo menos duas perguntas
incitam nossa reflexão: o que a Escola espera de um
estudante em qualquer disciplina e qualquer grau de
ensino e o que a sociedade espera desta pessoa em
formação. Devemos considerar que, talvez, esses
dois conjuntos de expectativas sejam diferentes e,
inclusive, divergentes e conflitantes entre si como
abordado mais adiante.
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173
Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos
Em termos históricos, no mundo ocidental a representação da ideia de infância como concebemos
hoje remonta à França dos séculos XVII e XVIII
(ARIÈS, 1978). Até há alguns séculos a criança era
considerada apenas um homúnculo, ou seja, um
adulto em miniatura. Essa visão de mundo pode
ser percebida nas várias representações de crianças desse período histórico usando roupas, tendo
posturas e realizando atividades específicas “do
mundo adulto”. Foi Erasmo de Rotterdam (2008)
um dos pioneiros no mundo moderno ocidental
a pregar que as crianças não são adultos em miniatura e que, portanto, não deveriam ser tratadas
como adultos. As crianças teriam, segundo ele, um
modo próprio de ser, diferente do modo dos adultos
e que, fundamentalmente, deve ser respeitado. O
movimento histórico de construção e afirmação
de uma identidade infantil teve, como todo processo dialético, muitos avanços e retrocessos em
razão das mais diversas circunstâncias históricas,
e consideramos que o saldo atual desse processo
histórico é positivo. No Brasil, por exemplo, existe
até uma previsão legal de seguridade dos direitos
das crianças estabelecido pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990 (BRASIL, 1990).
Não obstante todo esforço histórico dos últimos séculos a fim de oferecer às crianças uma
visibilidade social diferenciada, respeitando as
idiossincrasias de sua condição, temos, em Postman
(1999), dentre outros, a tese de um grave retrocesso
neste movimento emancipador. Em sua obra O
Desaparecimento da Infância, esse autor constata
que a condição de ser criança estaria desaparecendo
por conta da alienação provocada pela televisão.
Isso se deveria ao fato de que, em geral, diante
da TV as pessoas ficam passivas e não têm como
interagir com a tela, sendo manipuladas por seus
enredos. Destaque-se nesse movimento, dentre
outros elementos, o forte apelo ao consumismo e
às questões referentes a disputas ideológicas implícitas e explícitas.
A utilização massiva da televisão como meio
de comunicação e entretenimento apresenta consequências nefastas para a infância, demonstradas,
entre outros, por Salgado, Pereira e Jobim e Souza
(2005), posto que a manutenção e perpetuação
de sua programação estão asseguradas pelo seu
174
potencial econômico, com o qual está comprometida. Como medir, por exemplo, os impactos
cognitivos e o que fazer com uma criança que, ao
chegar à pré-escola, já esteve exposta a milhares
de horas na frente de uma televisão, condição esta
que, possivelmente, perdurará durante longos anos?
Não podemos deixar de lembrar que crianças, em
seu processo de socialização, têm como uma de
suas características a imitação dos exemplos de seu
entorno social. Como diziam os clássicos, exempla
trahunt: os exemplos arrastam. A criança imita o
que vê e, assim, podemos observar a veracidade do
que afirma Dawkins (2007): não apenas os genes
se transmitem, mas também os memes, isto é,
certos traços culturais, nem sempre os melhores.
Não obstante todas as críticas a esse fenômeno e o
uso cada vez maior de outras mídias possibilitadas
pela internet, não podemos deixar de lembrar que
nunca se ganhou tanto com a propaganda televisa,
em razão de sua grande audiência5.
Os estímulos, a interação não só com a televisão, mas também com os mais diversos recursos
tecnológicos, como os aparelhos celulares e o
computador, acabam criando relações síncronas
e assíncronas, despertando novas compreensões
de mundo, interesses e linguagens . Participando
de jogos eletrônicos, interagindo com os também
conectados amigos no Orkut, Facebook e outras
comunidades virtuais, as crianças constroem novos
sentidos para a realidade, gerando discussões muito
interessantes sobre a condição humana na perspectiva do “pós-humano” (SANTAELLA, 2003). Do
ponto de vista da história da filosofia, ir “além das
aparências” ou superar a “doxa” (doxa, opinião)
era um dos lemas de Sócrates e Platão (PLATÃO,
1994), dentre muitos outros filósofos, preocupação
e meta sustentada heroicamente até a modernidade.
Entretanto, com a crise da razão moderna, fomos
confrontados com a hipótese da inexistência de
uma verdade universal e a inviabilidade teórica do
6
5 Na última novela da Rede Globo, por exemplo, no capítulo final, a
inserção de um comercial saiu por R$ 500 mil, e o merchandising
variou entre R$ 1 e 1,8 milhão de reais, segundo reportagem de
Almeida (2012).
6 Um levantamento de dados sobre o uso das tecnologias por crianças
e jovens encontra-se na pesquisa, publicada em 2012, intitulada
Gerações Interativas Brasil: Crianças e Adolescentes Diante da
Tela, disponível em <http://fundacaotelefonica.org.br/Uploads/
book_telefonica_2_final.pdf>.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013
Alvino Moser; Daniel Soczek
uso de conceitos como “evidência”. Pela guinada
linguística nos século XX, começamos a ponderar
os elementos simbólicos da linguagem, suas representações numa perspectiva cética, relativista,
culturalista. Ainda que Parmênides (1973) nos
alertasse para que não se fizesse confusão entre o
ser e o não ser, temos que admitir: Heráclito venceu,
pois “panta rei”, tudo muda.
Fruto dese processo histórico, uma das características das crianças dessa era digital marcada pela
liquidez (BAUMAN, 1998, 1999, 2003, 2005) é
a fuga do silêncio. O uso frequente de celulares,
iPhones, iPad, iPod e, sobretudo, das redes sociais
promove uma condição de ausência do silêncio
que consideramos aqui condição fundamental para
a reflexão. Como é possível realizar uma reflexão
com um livro na mão, na frente da televisão e
com algum aparelho de som ligado ao ouvido?
Somos “dinossauros” ou “vanguarda” ao propor o
silêncio como fundamento educativo dessa “nova
era”? A leitura e a escrita, quando realizadas em
diferenciadas plataformas de comunicação, seguem
padrões de aligeiramento que impedem a reflexão.
Basta olhar a forma escrita utilizada para além da
gramática escolar nos chats e redes sociais. Vale
perguntar quantos estudantes, de qualquer sala de
aula, que não compreendendo um conteúdo específico, tomasse por tarefa a releitura do assunto duas,
três, quatro vezes até entende-lo, numa perspectiva
obstinada pelo conhecimento. Não há espaço e
tempo para essa atitude – espaço e tempo possuem,
hoje, dimensões diversas. E se a filosofia precisa
ensinar a bem pensar, como nos adverte Lipman
(1990), é preciso que as pessoas de todas as idades,
principalmente as crianças, construam espaços de
silêncio e disposição para a retomada cuidadosa
e atenta daquilo que lhes escapa ou é dificultoso.
Nesse sentido, Tapscott (1997) assinalava a preocupação de psicólogos que previam uma geração
superficial, assim como Bauerlein (2008) em The
Dumbest Generation: How the Digital Age Stupefies Young Americans and Jeopardizes Our Future
(Or, Don’t Trust Anyone Under 30).
A origem de parte significativa dos problemas
das relações de ensino está relacionada ao fato dos
educadores ou docentes não se preocuparem em
adquirir conhecimentos sobre o perfil das crianças
que já não podem ser enquadradas em modelos/
padrões e expectativas estudadas e pesquisadas há
algumas décadas. É preciso levar em consideração
as novas dinâmicas sociais que interferem diretamente em todos os processos sociais e, em especial,
do nosso ponto de vista, as relações escolares.
É uma condição nova – as crianças são “nativas
digitais” (PRENSKY, 2001, 2010), expressão que
dele tomamos de empréstimo para o título desta
seção. Nesse sentido, vale destacar, dentre tantos
outros exemplos, o esforço de pesquisadores como
Fantin e Rivoletta (2010) no artigo Crianças na Era
Digial: Desafios da Comunicação e da Educação,
que traz vários relatos de pesquisas feitas em escolas de ensino fundamental com o uso de recursos
metodológicos como fotos pelo celular, projeção
de DVD e visualização de streamers em sites como
o Youtube. As crianças se animam, se interessam e
prestam atenção na medida em que esses recursos
saem da retórica tradicional e estabelecem, per si,
links com sua realidade num modal que se adéqua
aos seus interesses.
A importância da discussão sobre a condição da
criança no mundo contemporâneo está diretamente
relacionada à discussão sobre “como aprender”.
Então, o ensino teria como uma de suas metas
desenvolver a capacidade de formular perguntas, o
que, no sentido mais próprio do conceito, é o foco,
a meta de um pensamento que se propõe filosófico,
predisposto à discussão, “aberto ao mundo”. Daí a
importância de pensar a reflexão filosófica desde a
mais tenra infância.
2. As crianças e a Filosofia
No Brasil é sempre discutível e incerta a posição
sobre o ensino de Filosofia no que diz respeito à
política pública – só há alguns anos o ensino de
Filosofia voltou a fazer parte da matriz curricular do
ensino médio no Brasil; o que dizer sobre o ensino
de filosofia para crianças?
Do ponto de vista da discussão do ensino de
filosofia para crianças esbarramos em, pelo menos,
dois grandes preconceitos:
a) A premissa de que as crianças são incapazes
de refletir e abstrair;
b) A premissa de que o pensamento que “realmente importa” é, exclusivamente, aquele proposto
pela Escola.
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175
Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos
Para uma lógica neoliberal predominante no
contexto contemporâneo, que se apropria, se nutre,
valoriza e constrói uma racionalidade instrumental,
a Filosofia é algo dispensável e sua inclusão no
currículo “deve ser combatida”. Os detratores de
plantão do ensino de Filosofia preconizam que ela
não é para “qualquer um”. Essa postura perpassa
a história da Filosofia. Platão escreveu no frontispício de sua ACADEMIA: “não entre aqui quem
não souber Geometria” (DURANT, 1999, p. 67).
Para ele é somente após o domínio da aritmética, da
geometria, plana e estereométrica, e da astronomia
que o estudante estará apto a iniciar os estudos da
dialética que o levará para a vida teórica, própria
da Filosofia. Na Idade Média, a expressão magister
dixit prescinde de comentários. Em Kant (2005),
o esclarecimento é a passagem de uma “menoridade” para uma “maioridade”, concepção esta que
está fundada e reforça preconceitos e estereótipos
quanto a uma suposta “incompetência” para o
pensar. Esses são alguns exemplos que ainda hoje
fundamentam posturas educacionais, pressupondo
a dependência e capacidade de raciocínio e predisposição ao estudo em um sentido sui generis: a
Filosofia, para alguns professores, seria uma “pérola jogada aos porcos”, parodiando o ensinamento
bíblico de forma enviesada.
Opondo-se a essa perspectiva reducionista
quanto à potencialidade e predisposição universal
ao pensamento filosófico, vale destacar, dentre
outros, as interessantes observações de Kohan
(2009). Segundo esse autor, a Filosofia é uma
aposta na educação das crianças, sobretudo uma
aposta na infância, na sua força, na liberdade e na
alegria. Para Gaarden (1995), o que para o adulto
parece banal, é misterioso para a criança, pois ela
tem o poder de encantar-se com a realidade, posto
que existam coisas que julgamos impossíveis que
não as espantariam. Não valorizar essa postura
e as perguntas delas decorrentes, desencorajá-las, significa destruir o dubium admirationis (a
dúvida da admiração) de que tratava Aristóteles
(BORNHEIN, 1983), requisito fundamental para
o pensamento filosófico.
Portanto, a Filosofia não é um saber, mas uma
relação afetuosa, de amor, philo, com o saber. Como
bem o observa Kohan (2009), não se pode transmitir Filosofia, nem ensinar, do mesmo modo que não
176
se pode educar. Isso põe grandes problemas para as
instituições escolares que estão habituadas a ensinar
“conteúdos”. Predispor e motivar o pensamento
filosófico nas crianças não é ter que fazer que as
crianças aprendam um conteúdo, sobretudo o que se
encontra nos livros dos filósofos e dos manuais de
filosofia. A Filosofia não tem pretensões de ensinar
a pensar “corretamente” ou “ensinar a ser ético”
ou qualquer outra coisa do gênero. Resume-se,
tão somente, o que é muito, a um espaço aberto à
discussão. É nesse sentido que se pode dizer que a
filosofia não se ensina, mas se aprende. “[...] não
é um modo de saber, nem um modo de pensar [...]
Isso significa que não pode ser ensinada na base da
lógica da técnica e dos instrumentos.” (KOHAN,
2009, p. 62).
Na contramão dessas ponderações, ocorrem situações altamente questionáveis dentro do processo
educacional, como, por exemplo, a existência de
sistemas de avaliação que têm como um de seus
instrumentos mais usuais a “prova”. Esse instrumento gera e reafirma constantemente um absurdo
“medo de errar” frente ao “correto”, ou seja, aquilo
que é exclusivamente “passado” pelo professor ao
aluno, algo absolutamente assombroso. Saem desse
tipo de “formação” alunos tímidos intelectual e
eticamente, que não conseguem aceitar ou propor
a crítica. Esses estudantes estão, definitivamente,
excluídos do processo de construção do conhecimento. A destruição da capacidade de questionamento e da criatividade do aluno limita ou mesmo
elimina sua liberdade de expressão. Uma formação
normalizadora/disciplinar na perspectiva de como
Foucault nos apresenta estes conceitos suspende a
originalidade e a autonomia. Essa concepção crítica
quanto às consequências e efeitos desses processos
escolares perversos é compartilhada por vários
filósofos. Jaspers (1998) escreve que as crianças
até os sete anos são gênios, mas que a escola se
encarrega de torná-los “normais” ou de “bobificar”
(a expressão é do autor). Dewey (1959) criticava,
há muitas décadas, as péssimas condições nas quais
os estudantes chegam ao ensino superior. O que
é constatável, com algum grau de generalização
nas salas de aula, é que questionar e formular uma
pergunta já não são mais atos mentais espontâneos
e recorrentes nos alunos do final do ensino fundamental, ensino médio e ensino superior.
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Alvino Moser; Daniel Soczek
Para superar essa problemática, uma alternativa
é que o professor deixe, como esse ignorante que
se dizia Sócrates, que a criança se encante com o
mundo, com a realidade. Cabe ao educador, seja
pai ou docente, não tolher ou privar a criança dessa possibilidade, principalmente mediante o uso
acrítico e indevido dos recursos tecnológicos à
disposição das crianças. Hoje são ditas loas sobre
as maravilhas dos netbooks, smartphones e tablets;
a interrogação que paira sobre quem quer fazer a
educação pela Filosofia, ou educar sem mais, é a
questão sobre a disposição e uso destas tecnologias.
De acordo com Meirieu,
Há, no coração da ‘pedagogia socrática’ uma verdade
que é evidente, ‘a caixa preta’ nos escapa. Podemos
criar reflexos condicionados, aferrar-nos à dupla
estímulo-resposta, fazer levantar, sentar, andar,
correr, recitar, identificar, cortar, aplaudir nossos
alunos, mas não podemos jamais saber com certeza
o que se passa na caixa preta no momento de seu
comportamento. (MEIRIEU, 1994, p. 36).
Mediante essa condição da infância no mundo
contemporâneo, qual seria o telos da educação?
Segundo muitos autores, díspares em suas concepções de mundo e educação, como Rousseau,
Kant, Marx ou Adorno, pode-se afirmar de modo
generalista que todos eles, a despeito de diversos
fundamentos epistemológicos e propostas metodológicas divergentes e mesmo opostas entre eles,
pensam a educação como emancipação, como
autonomização do sujeito, como desenvolvimento
da consciência crítica. Seria essa condição possível
e desejável às crianças?
Bom, vale lembrar considerações de alguns filósofos a esse respeito. Segundo Montaigne (1987, p. 24),
“Visto que é a filosofia que nos instrui a viver e que é
nela que a infância, como todas as outras idades, tem
sua lição, por que não comunica-la? Ensinam-no a
viver quando a vida já passou. [...] É um grande erro
tornar a filosofia inacessível às crianças”.
A possibilidade de ensino de filosofia para
crianças é defendida enfaticamente por Benjamin
(1985, p. 236-237), quando afirma que “A criança
exige dos adultos explicações claras e inteligíveis,
mas não explicações infantis [...] A criança aceita
perfeitamente as coisas sérias, mesmo as mais
abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e
espontâneas”.
Alguns fatos confirmam que as crianças estão
predispostas ao pensamento filosófico. Vejamos
dois exemplos. Eu, Moser, lembro-me, com saudades, como qualquer pai ou mãe se lembra de seus
filhos, de quando minha filha tinha cinco anos.
Viajávamos de Santa Maria para Passo Fundo,
numa linda tarde. Então, a menina de cinco anos
disse-me: “Olha, paizinho: o sol está se pondo no
horizonte!!” Acompanhava-nos um professor amigo, e este perguntou à queima-roupa: “Mas, minha
filha, o que é o horizonte?” E ela, muito séria, olha
para ele como que estranhando a pergunta: “Ora,
tio Percy, o horizonte é a casinha do sol.”
Do mesmo modo, noutra ocasião, aprendeu a
palavra pensar, não sei com quem. E de repente,
chamei-a para algo. E a resposta veio (imitando o
pai): “Espera um pouco, estou pensando.” Imediatamente fiz-lhe a pergunta: “E o que é pensar, minha
princesa?” Ao que ela respondeu: “Ora, pensar é
falar baixinho para mim mesmo”. Certamente, essa
reflexão é filosófica.
Eu, Daniel, tenho diversas vezes me surpreendido com as atitudes de minha filha Amelie, que
está hoje com quatro anos. Ainda há alguns dias, ela
me comunicou que nossa cachorra (ainda filhote)
“não tem educação”, sendo, na sua concepção, que
educação é “não fazer bobeira”.
Outro momento que exemplifica o pensamento
filosófico ocorreu há quase um ano. Naquela época,
tínhamos em casa uma gata e um casal de coelhos.
Quando os coelhos começaram a procriar, a gata,
fatidicamente, caçou e matou um dos filhotes dos
coelhos. A ideia do que poderia acontecer depois
da morte a partir da experiência do enterro do coelhinho gerou vários comentários metafísicos sobre
a finitude da vida e a transcendência associada a
uma forte dose emocional. Foi, certamente, uma
experiência significativa em vários aspectos.
Desculpem-nos se lhes contamos exemplos de
nossas experiências. Acreditamos que cada leitor
também deve conhecer ou ter vivido situações
como essas, observáveis no contato com qualquer
criança.
As crianças são os verdadeiros poetas e filósofos
porque criam o mundo com sua linguagem, até o
momento em que são obrigadas a seguir o caminho
e a linguagem – o currículo escolar – que lhes são
impostos. Cedo demais são instadas a deixar a
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Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos
imaginação e a fantasia para se debaterem com a
dura realidade. É o momento em que se processa
o início da colonização das crianças, nas palavras
de Mandel (1973). Aliás, todas essas afirmações
podem ser cobertas pela monumental abertura do
Emílio, quando Rousseau (1990) afirma que a criança, ao nascer das mãos do “Supremo Arquiteto”, é
perfeita, mas a sociedade a corrompe.
A condição do ser humano como filósofo não
garante a perenidade de uma postura reflexiva
sobre o mundo. É necessário um processo de
construção dialógica para que essa predisposição
do espírito materialize-se nas práticas cotidianas.
Daí a importância da discussão sobre metodologias
de ensino de Filosofia para crianças, terceira parte
deste artigo.
3. Filosofia para crianças: aproximações
metodológicas
No Brasil, talvez, a primeira experiência do
ensino de Filosofia para crianças, trabalhada aos
moldes das proposições de Lipman, data de 1985,
em São Paulo, sendo expandida esta experiência
para diversos outros estados como Santa Catarina e
Paraná. Essa experiência está associada à fundação
do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças7.
As experiências com o ensino de Filosofia
propostas por Lipman levaram-no a produzir, em
1989, um texto intitulado Reforçar o Raciocínio e o
Julgamento pela Filosofia, trabalhando neste artigo
sua reprodução no livro Filosofia para Crianças,
o Modelo de Matthew Lipman em Discussão, de
2008. Neste texto, entre outros elementos, ele pontua algumas pressuposições de sua metodologia de
trabalho com filosofia para crianças, parafraseadas
abaixo.
Para Lipman (2008), o ensino de filosofia para
crianças deve considerar os seguintes aspectos: ser
imparcial (quanto às diferentes concepções filosóficas) e representativo (Filosofia em seu conjunto);
não dogmático; respeitar o cabedal linguístico das
crianças considerando sua predisposição ao pensamento filosófico; considerar que os problemas
filosóficos fazem parte do universo infantil como
7 Essa Fundação está hospedada no site <http://www.philosletera.org.
br/>.
178
os conceitos de justo, belo, vida; as crianças gostam
de perguntas e, portanto, a concepção de privação
da abstração pelas crianças é um erro, mas esta
abstração deve ser moderada; as crianças refletem
melhor quando têm modelos, mas o ideal é a deliberação coletiva, formando grupos de pesquisa;
as crianças aprendem melhor com narrativas, pois
apreendem as significações contextuais; a inteligência se expressa de várias formas, mas a linguagem
oral é fundamental, além da escrita; é importante
a realização de exercícios para o desenvolvimento
de aptidões cognitivas e planos de discussão, para
consolidar a conceitualização da realidade; os exercícios devem ser elaborados por especialistas e não
pelo professor da disciplina (algo questionável); o
raciocínio é uma técnica (pode ser ensinado) e o
julgamento é uma arte (aprende-se por si), necessitando um ambiente estimulante para ambos.
A partir dos tópicos anteriores e das considerações de Lipman (2008) e outros pesquisadores que
tratam do ensino de Filosofia para crianças, alguns
aspectos merecem destaque.
Em primeiro lugar, é necessário observar que
há um imenso abismo entre o saber do professor de
filosofia e o modo de pensar das crianças. Esquecemos, quase todos nós, que fomos crianças. Em
segundo lugar, ao aprender algo novo, desaprendemos algo: uma nova aprendizagem é um novo
comportamento, aprende-se desaprendendo, esta
é a lei. Há, portanto, muita distância entre a weltanschauung dos adultos e o modo de ver o mundo
das crianças. Basta que vejamos os filmes, por
exemplo, como História sem Fim, O Mistério do
Cristal ou O Jardim Secreto e comparemos nossas
interpretações com as das crianças. Quais são os desenhos animados que as crianças apreciam, e quais
apreciamos nós? As músicas? E assim por diante.
Podemos empregar palavras também usadas pelas
crianças, mas talvez apenas o ruído seja o mesmo:
não se processa a verdadeira comunicação, que é
uma comum + união, uma sintonia. Nessa linha
de raciocínio, qual seria uma das origens da indiferença/apatia dos alunos em sala de aula?
Em segundo lugar, é importante considerar se
seria mais importante pensar o método enquanto
incentivo à pesquisa e reflexão do que o conteúdo
propriamente dito. Resgata-se, aqui, duas experiências que poderiam ajudar a pensar essa problemá-
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Alvino Moser; Daniel Soczek
tica. Primeiro, a experiência Jacotot. No início do
século XIX, em razão de certas condições históricas
específicas, Jacotot lançou o desafio a seus alunos
para aprenderem uma segunda língua por meio da
apresentação de um texto bilíngue, sem intervenção
do professor, discutindo com isso o conceito de
emancipação do aluno, como bem trabalhado por
Rancière (2002). Segundo, a experiência proposta
por Postman e Weingartner (1973) sugerindo que
o professor de matemática lecione inglês ou geografia. E que os professores de geografia, história,
línguas ensinem disciplinas totalmente diferentes
daquelas a que estão acostumados a ensinar. Se não
o conseguem, segundo esses autores, é porque não
sabem se comunicar.
Em terceiro lugar, conceber o ensino de filosofia
para crianças não significa, necessariamente, criar
uma nova disciplina no currículo da educação
infantil. Implica, tão somente, que os educadores
ponham à disposição dos alunos metodologias
de aprendizagem eficazes. Com essas metodologias, porão à disposição das crianças materiais e
utensílios necessários (as informações básicas) e
lhes possibilitarão efetuar as operações mentais
indispensáveis: deduzir, antecipar, analisar, efetuar sínteses e outras. É uma das funções da escola
providenciar para que todos os alunos adquiram
essas competências.
Em quarto lugar, é necessária uma postura dialógica. Essa postura nega um ensino norteado pela
escola tradicional, ou seja, pelo uso indiscriminado
de mecanismos de respostas fechadas (ainda que
de “múltiplas escolhas”), “truques/pegadinhas” na
formulação das questões, o resumo de conteúdos
a “macetes”. Essas e outras práticas assemelhadas
transformam o processo educacional numa verdadeira tortura, já que o conhecimento apresentado
e cobrado é puro non sense para os estudantes.
Quando incentivado, o aluno pesquisa fora da sala:
a limitação do tempo e do espaço na escola para
discussão dos temas torna-se a motivação para
seu prolongamento em outros momentos, fazendo
a passagem da condição de a-luno (sem luz) para
estudante, pensador. É na infância que a reflexão
produzida coletivamente produz as condições necessárias para uma concepção democrática de sociedade. É necessária a (re)produção de uma cultura
da “pergunta”, na constituição de “comunidades de
investigação”. Não basta romper com a opinião:
é preciso problematizá-la. Essa comunidade de
investigação, como proposta por Wenger (1998,
2002) e propiciada pela TICs, corresponde a um
conjunto de procedimentos e atitudes que garantem
uma discussão coletiva sobre temas diversos, numa
perspectiva filosófica.
Na ótica do pensamento moderno, quando
Descartes escreve “Je”, este representa o sujeito
universal, o sujeito racional que fala tendo ideias
claras e evidentes e que devem ser aceitas por
todos. Repensar tal concepção é fundamental para
compreender as dinâmicas sociais contemporâneas,
em que o professor se apresenta como facilitador,
alguém que coopera para a aceitação da correção
lógica ou problematização da diversidade dos
argumentos pelos colegas ou pelo professor. O
aprender a pensar está relacionado à aplicação
de atividades a partir dos interesses manifestados
pelas crianças – reflexão provocada –, análise da
experiência e da atividade.
Enfim, é importante lembrar que todo conhecimento tem seu caráter social, posto que é
construído por homens em sociedade a partir de
seus problemas historicamente construídos. O que
é importante na existência humana é expressar
ideias e sentimentos – a violência, seja no seio
familiar, seja nas guerras internacionais, está
associada a uma impossibilidade de compreensão e conversação no que se refere a conteúdo
e sentimentos. Essa condição social demanda a
necessidade de produção de um “conhecimento
prudente para uma vida decente”, como nos ensina
Santos, B. S. (2004). A reflexão filosófica pode,
em muito, ajudar nesse processo.
Considerações finais
Como (re)pensar a prática de formação das
crianças para o exercício do pensamento filosófico?
Como essas experiências de significação e ressignificação da realidade pelo pensamento filosófico
podem ser resgatadas no estudante em processo
de formação?
Aprender por si mesmo é uma predisposição
da condição humana e, mesmo, uma necessidade.
Toda existência é tomada de posição e julgamento.
Nesse sentido, é fundamental pensar o processo
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179
Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos
educativo numa perspectiva filosófica, pela construção de comunidades de pesquisa.
É fundamental perceber o processo educacional
sob a ótica do prazer pela reflexão. Estabelecer
questionamentos que dizem respeito ao cotidiano
dos alunos, deixando de lado temas bizantinos e
abstratos que nada significam para as crianças e
jovens pós-modernos. Ensinar a aprender a viver.
Despertar o interesse filosófico é fazer perguntas
sobre questões que os estudantes queiram discutir.
Se o aluno não é chamado para a responsabilidade
do processo ele, definitivamente, é excluído dele.
A elaboração de uma agenda coletiva de discussão,
realizada entre pares, permite pensar o processo de
forma circular-colaborativa. Esse movimento contextualiza sentidos, desperta e valoriza a criatividade.
Entendemos que o objetivo do ensino de filosofia não é colocar o estudante, de qualquer idade, em
contato com algum filósofo e suas teses (elemento
acessório), mas, fundamentalmente, prepará-lo
para enfrentar os desafios do século XXI estimulando competências relacionadas à reflexão e ao
diálogo, fundamentos de um pensamento crítico,
que tenham por finalidade a busca por soluções
dos problemas cotidianos a partir de uma postura
democrática.
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Recebido em 08.12.2012
Aprovado em 05.02.2013
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013
Fumikazu Saito
“CONTINUIDADE” E “DESCONTINUIDADE”:
O PROCESSO DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
CIENTÍFICO NA HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Fumikazu Saito*
Resumo
Historiadores da ciência e educadores têm apresentado propostas que procuram
aproximar história da ciência do ensino de ciência há algum tempo. Essas propostas
enfatizam aspectos formais da ciência moderna, dedicando pouca atenção para o
processo da construção do conhecimento científico. Desse modo, tem-se valorizado
as epistemologias baseadas na ideia de ruptura, tais como as epistemologias de Gaston
Bachelard e de Thomas Kuhn. Para muitos educadores, as noções de “obstáculo
epistemológico” de Bachelard e de “mudança de paradigma” de Kuhn parecem romper
com a visão linear e progressista do desenvolvimento do conhecimento científico.
Dessa forma, educadores têm buscado pautar suas propostas em teses descontinuístas
sem levar em consideração de que elas próprias são resultados de uma forma de pensar
o mundo, e foram elaboradas e instituídas frente ao conhecimento científico de uma
época. Assim, mais do que pautar a aproximação da história do ensino em aspectos
formais, o autor propõe neste artigo uma abordagem contextualizada, pautada em
tendências historiográficas mais atualizadas. Especial atenção é dada ao contexto em
que as epistemologias de Bachelard e de Kuhn foram elaboradas.
Palavras-chave: História da ciência. Epistemologia. Continuidade e descontinuidade.
Construção do conhecimento científico. Natureza da ciência.
ABSTRACT
“CONTINUITY” AND “DISCONTINUITY”: THE PROCESS OF
CONSTRUCTING SCIENTIFIC KNOWLEDGE IN THE HISTORY OF
SCIENCE
Historians of science and educators have presented some proposals that aim to bring
together the history of science and the teaching of science. Such proposals have
emphasized the formal aspects of modern science without considering the process of
constructing scientific knowledge. Thus epistemologies based on the idea of rupture
such as Gaston Bachelard´s and Thomas Kuhn´s epistemologies are especially
appreciated. For many educators, the Bachelard´s concepts of “epistemological
obstacle” and Kuhn’s notion of “paradigm shift” seem to break with the linear
and progressive view of the development of the scientific knowledge. Under these
circumstances, educators have based their proposals upon the historical discontinuity
* Doutor em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisador do CESIMA
(PUC-SP). Professor do PEPG em História da Ciência (PUC-SP). Professor do PEPG em Educação Matemática (PUC-SP).
Endereço para correspondência: Rua Marquês de Paranaguá, 111, Prédio I, 2º andar – Consolação. CEP: 01303-050. São Paulo-SP-Brasil. [email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
183
“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
theses without taking into consideration that these very theses were the results of a
way of thinking the world which was designed and instituted facing the scientific
knowledge of a certain time. In this paper the author proposes that the approach of
the history of science to science teaching should be guided by an approach based
upon current trends in historiography rather than focusing it in the formal aspects of
science. Special attention is given to the context in which Bachelard´s and Kuhn´s
epistemologies were evolved.
Keywords: History of science. Epistemology. Continuity and discontinuity.
Constructing scientific knowledge. Nature of science.
Introdução
A epistemologia da ciência é atravessada por
problemáticas bem diversas e estabelece múltiplas
relações com a ciência e sua história. Dentre essas
diversas temáticas, provavelmente, a mais comum
seja aquela voltada para a natureza do conhecimento científico. No que diz respeito ao ensino
de ciências, essa temática tem recebido bastante
atenção de professores e pesquisadores da área de
educação, visto que boa parte dos problemas de
ensino de ciência parece estar relacionada às características do conhecimento que se pretende ensinar.
Desse modo, diferentes abordagens que buscam
aproximar história da ciência e ensino de ciência
têm sido propostas e discutidas já há algum tempo1
(MARTINS, 2007; SILVA, 2006; CACHAPUZ;
PRAIA; JORGE, 2004; KOMINSKY; GIORDAN,
2002; PRAIA; CACHAPUZ; GIL-PÉREZ, 2002;
MATTHEWS, 1994, 1995; SILVEIRA, 1992).
Contudo, ao abordar a natureza do conhecimento científico, esses estudos têm enfatizado apenas
aspectos formais da ciência, dedicando pouca atenção ao processo da construção do conhecimento
científico. O que é bastante compreensível, visto
que muitas das questões relacionadas à ciência partem de caracterizações do que é conhecimento científico para então compreender o processo histórico
de seu desenvolvimento. Assim, educadores, bem
como alguns historiadores da ciência, têm buscado
aproximar história da ciência do ensino de ciência
por um viés epistemológico sem, contudo, levar
em consideração que o próprio processo que os
conduzem a essa aproximação é também histórico.
1 Como a lista é longa, citamos aqui apenas algumas propostas e estudos. A lista inclui ainda, entre outros: Gil-Pérez (1983); Gagaliardi
(1988); Ayala (1992); Castro (1992); Giordan e Vecchi (1996).
184
Com efeito, uma das preocupações dos pesquisadores em educação quanto à questão da epistemologia diz respeito à predominância de visões de
índole empirista-indutivista entre os professores
de ciências (PRAIA; CACHAPUZ; GIL-PÉREZ,
2002). Para reverter tal situação, acredita-se que
a inclusão de estudos sobre tendências epistemológicas mais atualizadas nos cursos de formação
de professores seria fundamental. Nesse sentido,
as ideias de Gaston Bachelard (1884-1962), Karl
R. Popper (1902-1994), Thomas S. Kuhn (19221996), encontram-se entre as mais mencionadas
pelos pesquisadores em educação, mesmo entre
aqueles preocupados em atualizar as visões de ciência predominantes entre professores e estudantes
(BELTRAN; SAITO, 2012).
Dentre esses filósofos da ciência, provavelmente, os mais valorizados sejam Bachelard e Kuhn.
Podemos dizer que os educadores são atraídos
para os estudos de Bachelard e Kuhn por causa da
ideia de ruptura que se encontra na base de suas
epistemologias. Para muitos educadores, as noções
de obstáculo epistemológico de Bachelard e de
mudança de paradigma de Kuhn parecem romper
com a visão linear e progressista do desenvolvimento do conhecimento científico, visão esta que
caracterizaria uma epistemologia de viés positivista. Todavia, é preciso ter em conta que essas duas
noções, na verdade, mascaram as concepções de
natureza positivista que ainda permeiam essas duas
epistemologias (SAITO; BROMBERG, 2010).
Sem dúvidas que as ideias de Bachelard e de
Kuhn foram importantes para compreendermos
o desenvolvimento da ciência. Além disso, elas
valorizaram a história da ciência dando-lhe um
lugar entre as muitas propostas filosóficas que pretendiam refletir sobre o fazer científico. Contudo,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
Fumikazu Saito
como veremos mais adiante, as epistemologias de
Bachelard e de Kuhn não parecem dar conta do
processo histórico da construção do conhecimento
científico e são tomadas com muita cautela por alguns historiadores da ciência (BELTRAN, SAITO,
2012; SAITO; BROMBERG, 2010; ALFONSO-GOLDFARB, 1994).
Devemos ter em conta que a epistemologia é o
estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos
resultados das diversas ciências. Sua principal
característica é a reflexão sobre a argumentação
dos processos do conhecimento científico, argumentação essa que se desenvolve sobre um pano de
fundo em que se entrelaçam diferentes concepções
de ciência e outras posições de natureza ética, estética, filosófica, religiosa, política, ideológica etc.
Assim, é sobre esse cenário de fundo que devemos
situar as diferentes epistemologias da ciência para
podermos compreendê-las em seu aspecto mais essencial, tomando-se o cuidado de não extraí-las de
seu contexto de modo a subtrair-lhes a historicidade
que lhes é inerente. Isso porque toda epistemologia
é formulada e desenvolvida em meio a posições
conflituosas que conduzem a controvérsias. Em
outros termos, as epistemologias de Bachelard e
de Kuhn devem também ser contextualizadas e
analisadas segundo concepção de conhecimento de
suas respectivas épocas, visto que a epistemologia
(e também a filosofia da ciência)2 está ancorada a
certos pressupostos discursivos próprios de uma
época. Assim, como abordaremos a seguir, ao
aproximarmos história da ciência do ensino de
ciências é preciso ter-se em conta que a epistemologia também é resultado de uma forma de pensar
e ver o mundo e é elaborada e instituída frente ao
conhecimento científico de uma época.
Gaston Bachelard
Podemos dizer que a epistemologia de Bachelard surgiu num momento em que a reflexão sobre
a natureza do conhecimento científico se apresen2 Por escapar do escopo principal deste artigo, não discutiremos
aqui a diferença entre filosofia da ciência e epistemologia. Cabe,
entretanto, observar que esses dois domínios de conhecimento
referem-se a assuntos distintos. O que se entende por epistemology
em países de língua anglo-saxônica é entendido como philosophie
de la science na França, por exemplo, e vice-versa (CARRILHO;
SÀÁGUA, 1991).
tava essencialmente a-histórica. Na época em que
Bachelard formulou suas ideias, o neopositivismo,
expressão do conhecimento filosófico entre as duas
grandes guerras mundiais, tinha como meta chegar
a uma ciência unificada e, para atingi-la, propunha
restringir a própria concepção de ciência à lógica e
à matemática. Assim como o positivismo clássico,
proposto por Auguste Comte (1798-1857), o neopositivismo mantinha a tendência de privilegiar
a ciência empírica como forma de conhecimento
válido, buscando, entretanto, novos critérios para
fundamentá-la. Para os neopositivistas, a ciência
unificada deveria abranger todos os conhecimentos
fornecidos pelas ciências empíricas sobre os quais
se aplicaria o método lógico de análise que havia
sido desenvolvido por matemáticos como Giuseppe
Peano (1858-1932), Gottlob Frege (1848-1925),
Alfred North Whitehead (1861-1947) e Bertrand
Russell (1872-1970) (PASQUINELLI, 1983;
SCHILICK, 1975).
É fácil compreender por que razão a epistemologia dos neopositivistas buscou circunscrever a
ciência nos moldes lógico-matemáticos e relegar
a história a um segundo plano. Naquela época, era
generalizada a sensação de que o edifício da ciência
não demoraria a ficar pronto. Os cientistas, que já
não eram mais filósofos naturais, mas especialistas
em campos de conhecimento específicos e complexos, sentiram-se então preparados para falar de
sua própria área de conhecimento. Surgiu aí uma
espécie de cientista-filósofo ou cientista-historiador
cuja ordem do dia era assentar a ciência sobre bases
sólidas para garantir o aprimoramento do conhecimento científico (ALFONSO-GOLDFARB, 1994).
Foi nesse contexto, em que a ciência e a epistemologia estavam preocupadas com o presente, que
Bachelard renovou alguns pressupostos filosóficos.
Foi no confronto com as ideias neopositivistas que
ele anunciou que a ciência não tinha a filosofia que
merecia porque ela estaria sempre atrasada em
relação às mudanças do conhecimento científico
(BACHELARD, 2006).
Para Bachelard, o instrumento de análise privilegiado da epistemologia não era a lógica, mas
a história da ciência, concebida como área de
conhecimento que investiga e identifica as fases
efetivas atravessadas pelo desenvolvimento do
saber científico (BACHELARD, 1996).
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
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“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
Segundo Bachelard, “o ato de conhecer dá-se
contra um conhecimento anterior, superando o que,
no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização
[...] [Assim], aceder à ciência é rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que
contradiz o passado” (BACHELARD, 1996, p.
17-18, grifo do autor). Isso significa que as sucessivas contradições do passado, que se afiguram
como autênticas rupturas epistemológicas, seriam
as molas propulsoras do desenvolvimento do conhecimento científico. Nesse sentido, a história da
ciência avançaria com base em sucessivas rupturas
epistemológicas.
Cabe observar que a concepção que subjaz a
essa ideia tem por base a ruptura entre conhecimento de senso comum e científico (BACHELARD,
1977). Para Bachelard, o conhecimento de senso
comum era mera opinião. Para ele, “a ciência,
tanto por sua necessidade de coroamento como por
princípio, opõe-se absolutamente à opinião [...] A
opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades
em conhecimentos [...] Ela é o primeiro obstáculo
a ser superado” (BACHELARD, 1996, p. 18, grifo
do autor). Isso porque toda opinião já era resposta
a um problema, e o espírito científico proibia-nos
de termos opiniões sobre questões que não compreendemos. Assim, Bachelard alertava que, antes,
precisávamos aprender a formular claramente as
questões e considerar, em seguida, as teorias que
as responderiam. É nesse sentido que ele afirmava
que o conhecimento científico vivia da agitação
dos problemas. Em outros termos, o conhecimento
científico avançaria por meio de sucessivas retificações de erros anteriores. Desse modo, como “o
ato de conhecer dá-se contra um conhecimento
anterior” (BACHELARD, 1991, p. 17), a verdade
alcançaria pleno sentido quando um problema era
resolvido, ou seja, quando um erro do passado era
retificado:
Quando se procuram as condições psicológicas do
progresso da ciência, logo se chega à convicção de
que é em termos de obstáculos que o problema do
conhecimento científico deve ser colocado. E não
se trata de considerar obstáculos externos, como a
complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem
de incriminar a fragilidade dos sentidos do espírito
humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que
aparecem, por uma espécie de imperativo funcional,
186
lentidões e conflitos. É aí que mostraremos causas de
estagnação e até de regressão, detectaremos causas
de inércia à quais daremos o nome de obstáculos
epistemológicos. (BACHELARD, 1996, p. 17).
O obstáculo epistemológico era uma ideia que
impedia e bloqueava outras ideias, podendo esta
ser hábitos intelectuais cristalizados, teorias científicas dogmáticas, dogmas ideológicos entre outros.
Portanto, a história da ciência para Bachelard era
a história da superação desses obstáculos epistemológicos. Nesse sentido, o conhecimento sempre
avançaria de forma progressiva aproximando-se da
verdade por meio de um longo trabalho de construção e de retificação, ou seja, rompendo com o
conhecimento anterior.
Podemos dizer que Bachelard foi considerado
pelos educadores como o teórico da descontinuidade. E, talvez, do ponto de vista epistemológico (e
não histórico), a ideia de obstáculo epistemológico
tenha se mostrado bastante atrativa ao educador,
visto ser um conhecimento e não, como se poderia
supor à primeira vista, ausência de conhecimento.
Além disso, um obstáculo epistemológico não era
um conhecimento falso, uma vez que ele permitia produzir respostas satisfatórias, e até mesmo
corretas, a certos tipos de problemas. Todavia,
tal conhecimento tornava-se inadequado quando
era transposto ou aplicado a outras categorias
de problemas, estagnando assim o progresso do
conhecimento científico. Então, para promover o
avanço do conhecimento era preciso retificá-lo, ou
seja, corrigi-lo em nome do progresso da ciência.
No que diz respeito ao ensino de ciências,
essas ideias fundamentaram diversas pesquisas
e propostas de ensino de ciências que buscaram
determinar as concepções prévias dos alunos e
propor estratégias didático-metodológicas para
superá-las (BELTRAN, 2009), inclusive no ensino
de matemática (MIGUEL; MIORIM, 2005), cuja
área de referência, segundo Bachelard, não teve
que superar obstáculos epistemológicos em seu
desenvolvimento (BACHELARD, 1996). Além
disso, essas ideias foram aceitas por alguns educadores que se prontificaram a buscar obstáculos
epistemológicos enfrentados pelos cientistas no
desenvolvimento do conhecimento científico para
fundamentar suas propostas curriculares e de ensino
de ciência (GIORDAN; VECCHI, 1996). Muitas
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
Fumikazu Saito
dessas propostas, entretanto, buscaram estabelecer
um paralelo entre o desenvolvimento da ciência e
o desenvolvimento psicológico da criança (GIL-PÉREZ, 1983), tendo por base a tese de que, no
desenvolvimento psicogenético do indivíduo, da
mesma forma que na biologia, a ontogênese reproduziria a filogênese. Desse modo, tais propostas
acabaram se pautando na ideia de que existiria
um “paralelismo” entre a história do pensamento
científico e o desenvolvimento da inteligência da
criança (GARCIA; PIAGET, 1987).
Segundo Beltran (2009), surgiram críticas
severas em relação a essas ideias, visto que seria
um absurdo comparar o complexo pensamento de
Aristóteles ao de uma criança. Além disso, nem
o pensamento de Aristóteles é infantil, nem as
crianças deveriam ser pequenos filósofos gregos.
Desse modo, alguns educadores que inicialmente
defenderam a ideia do paralelismo teriam mudado
de posição.
No que diz respeito à historia da ciência, embora
a epistemologia de Bachelard muito tenha contribuído para elaborar perspectivas historiográficas
não continuístas, na medida em que rompera com
a visão linear do desenvolvimento da ciência, tão
cara aos positivistas e neo-positivistas, sua ideia
de progresso, entretanto, continuou fundamentada
naquelas escolas (BELTRAN; SAITO, 2012). Isso
porque, na época de Bachelard, a ciência era a mais
alta expressão do conhecimento. Era nela que deveriam espelhar-se não só a filosofia, mas também
a história da ciência. A reflexão sobre a ciência,
assim, deveria acompanhar seus novos desdobramentos que, em seu processo construtivo, rompera
com os erros do passado e avançaria e progrediria
rumo ao futuro. Consequentemente, nesse contexto,
faria sentido uma história da ciência que julgasse o
passado, como bem salientou Bachelard:
[...] o historiador da ciência, para bem julgar o
passado, deve conhecer o presente; deve aprender
o melhor possível a ciência cuja história se propõe
escrever. E é aqui que a história das ciências, quer
se queira quer não, tem uma forte ligação com a actualidade da ciência. (BACHELARD, 2006, p. 209).
Segundo Bachelard (2006, p. 209), era o presente que iluminava o passado, isto é, “a partir das
verdades que a ciência actual tornou mais claras e
melhor coordenadas”, que “o passado de verdade
surge mais claramente progressivo na própria qualidade de passado”. Em outros termos, Bachelard
referia-se a uma história que os historiadores da
ciência atualmente identificam como “presentista”,
isto é, uma história que busca pinçar no passado
somente o que é familiar, deixando de lado outros
aspectos, que na realidade foram importantes,
por serem incompreensíveis. Consequentemente,
estudos em história da ciência pautados nessa
perspectiva tenderam a reforçar a ideia de que
ciência era um corpo de conhecimentos acabado
e verdadeiro, visto que a ciência teria convergido
para o momento presente, que seria a etapa mais
aprimorada de seu desenvolvimento (BELTRAN;
SAITO, 2012).
Podemos dizer que, na acepção de Bachelard,
a história da ciência é apenas uma história daquilo
que deu certo e é verdadeiro, uma vez que é a
história da retificação dos erros do passado. Uma
proposta historiográfica que tenha a epistemologia
descontinuísta inspirada no modelo de Bachelard
tende, assim, a nos conduzir a uma história da
ciência descontextualizada, visto que deixa de
lado outros aspectos ligados à ciência. Em outros
termos, Bachelard refere-se a uma história que
valoriza apenas as condições internas do discurso
científico, deixando à margem outros desdobramentos de natureza social, política, econômica etc.
Em suma, para o historiador da ciência, a epistemologia de Bachelard rompera com uma concepção cumulativa e linear do conhecimento, embora
ainda admitisse a noção de progresso científico.
Entretanto, ainda na mesma esteira, defendendo a
descontinuidade no desenvolvimento do conhecimento científico, uma ideia mais radical seria ainda
proposta por outro filósofo natural, que também
viria a defender uma epistemologia da ruptura,
introduzindo as noções de incomensurabilidade e
paradigma, como veremos a seguir.
Thomas S. Kuhn
Em 1963, Kuhn, em A estrutura das revoluções
científicas, procurou apresentar um modelo para
o desenvolvimento da ciência com base nos momentos de grandes mudanças conceituais, ou seja,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
187
“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
nas revoluções científicas. Essa obra chegaria a
alcançar um público não especializado na reflexão
da filosofia da ciência, atraindo sociólogos, antropólogos e historiadores para a história da ciência.
Diferentemente da proposta de Bachelard, a de
Kuhn procurou redefinir as bases para se explicar
a quebra de processo do desenvolvimento do conhecimento.
Como já mencionamos, a diferença entre as
ideias de Kuhn e de Bachelard torna-se compreensível se contextualizarmos a concepção de
conhecimento em que tais epistemologias foram
elaboradas. E, nesse sentido, podemos dizer que a
epistemologia de Kuhn surgiu num momento em
que as reflexões sobre a natureza do conhecimento
científico estavam voltadas para as questões metodológicas da ciência.
Cabe observar que, embora a proposta epistemológica de Bachelard tenha valorizado a história
da ciência, tal como vimos anteriormente, grande
parte dos filósofos e pensadores da ciência ainda
consideravam-na apenas como um espaço da descrição do contexto das descobertas da ciência: “um
espaço eventual, exterior ao processo natural e lógico do conhecimento” (ALFONSO-GOLDFARB,
1994, p. 82).
Alguns filósofos da ciência, notadamente Popper, propuseram novos modelos para explicar
o desenvolvimento da ciência (POPPER, 1979,
1993). Essas propostas, entretanto, buscaram
explicar a transformação das teorias científicas
analisando sua coerência e estruturas lógicas.
Desse modo, dando ênfase ao método científico,
esses modelos buscaram dar uma explicação lógica
das razões pelas quais as teorias científicas não
se acumulavam como mera sequência umas das
outras, mas que uma suplantava a outra (POPPER,
2003). Isso porque do ponto de vista lógico (e não
histórico), o natural seria encontrar uma teoria
que explicasse melhor e de forma mais ampla os
fenômenos que a anterior explicava. A ciência
teria, assim, por propósito a eliminação dos erros
das teorias anteriores, substituindo-as por teorias
mais verossímeis de tal modo a aproximar-se da
verdade de modo progressivo.
Podemos dizer que foi sobre esse pano de fundo
que Kuhn desenvolveu sua tese descontinuísta.
Visto que as teorias não se sucediam de forma
188
acumulativa, o problema agora era explicar como
uma teoria substituía (ou substituíra) outra, ou seja,
entender como é que as teorias, que não se acumulavam meramente, eram formuladas e justificadas.
Kuhn então buscou estabelecer estreito contato com
a história da ciência, propondo a existência de momentos de rupturas no processo do desenvolvimento do conhecimento científico. Assim, procurando
suplantar as teses que defendiam o continuísmo,
ele buscou justificar a descontinuidade na ciência
por meio da noção de “paradigma”.
Em linhas gerais, o “paradigma” seria um
conjunto de regras, normas, crenças, teorias etc.
que forneceria o modelo de problemas e soluções
aceitáveis por certo período à comunidade científica. Esse período em que os problemas emergiam
e eram definidos e resolvidos pelo paradigma foi
denominado por Kuhn “ciência normal” (KUHN,
1997).
Podemos dizer que fazer ciência “normal” significava resolver quebra-cabeças. Segundo Kuhn:
A ciência normal esforça-se (e deve fazê-lo constantemente) para aproximar sempre mais a teoria e os
fatos. Essa atividade pode ser vista como um teste ou
uma busca de confirmação ou falsificação. Em lugar
disso, seu objeto consiste em resolver quebra-cabeça,
cuja simples existência supõe a validade do paradigma. O fracasso de uma solução desacredita somente
o cientista e não a teoria. (KUHN, 1997, p. 111).
Uma vez aceito o paradigma, a comunidade
científica adquiria também os problemas e os critérios para resolvê-los. O sucesso e o insucesso da
solução de problemas não estariam dessa maneira
necessariamente relacionados às regras impostas
pelo paradigma, mas à capacidade do pesquisador
em resolver um problema. Assim, a resolução de
problemas fortalecia a ciência “normal”, que procuraria elaborar instrumentos mais sofisticados e
potentes, ampliando a teoria e precisando seus
conceitos (KUHN, 1997).
A ciência “normal”, portanto, seria acumulativa, e o cientista “normal” não buscaria a novidade
(KUHN, 1997). Razão esta que explicaria os períodos em que uma teoria ganharia força e se aprimoraria progressivamente. Contudo, no processo
de articulação teórica e empírica dos paradigmas,
o conteúdo informativo de uma teoria aumentaria
gradativamente, acabando por colocá-la em risco.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
Fumikazu Saito
Assim, contra o pano de fundo proporcionado
pelo paradigma, surgiriam as “anomalias” que o
cientista em algum momento teria que dar conta.
Segundo Kuhn: “Quanto maior forem a precisão
e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível
este será como indicador de anomalias e, consequentemente, de uma ocasião para mudança de
paradigma” (KUHN, 1997, p. 92).
Com a crise do paradigma iniciar-se-ia um período de ciência “extraordinária”, em que os cientistas perderiam confiança na teoria que antes haviam
abraçado, colocando em crise o paradigma vigente
(KUHN, 1997). Essa crise geraria instabilidades
que se transformariam em verdadeiras revoluções
na ciência. Nesse período, vários novos paradigmas
concorreriam para substituir o anterior. Tais paradigmas, entretanto, ainda seriam incompletos por
não incorporarem a série de normas e explicações
que só o paradigma estabelecido poderia fornecer. É
nesse período que a comunidade científica pautaria
sua escolha em motivos nada racionais, ou seja, a
escolha do novo paradigma dar-se-ia por razões
estéticas, emocionais e até políticas e religiosas.
Todavia, uma vez acabada a crise e estabelecido o
novo paradigma, esse período de “irracionalidade”
seria esquecido. Ocorreria aqui uma verdadeira
mudança na concepção de mundo:
Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em
novas direções. E o que é ainda mais importante:
durante as revoluções, os cientistas veem coisas
novas e diferentes quando, empregando instrumentos
familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente [...] as mudanças de paradigma
realmente levam os cientistas a ver o mundo definido
por seus compromissos de pesquisa de uma maneira
diferente. (KUHN, 1997, p. 145-146).
Diferentemente de Bachelard, podemos dizer
que Kuhn relativizou o processo do desenvolvimento do conhecimento científico introduzindo
nele alguns aspectos não formais da lógica da
pesquisa científica. Com efeito, no que diz respeito
à história da ciência, a perspectiva epistemológica
de Bachelard reforça ainda a ideia de que o conhecimento científico avançaria e se aprimoraria
de modo natural, superando obstáculos epistemológicos. Nessa perspectiva, a ciência no seu
processo histórico de desenvolvimento elaboraria
teorias mais amplas que superariam as anteriores.
Aspecto este muito diferente do que encontramos
na proposta epistemológica de Kuhn. Em outros
termos, o novo paradigma na perspectiva de Kuhn
não explicaria nem mais, nem melhor os fenômenos
antes explicados pelo paradigma anterior. O que
significa que os conceitos e as teorias existentes
no velho paradigma e aqueles formulados dentro
do novo seriam incomensuráveis. Segundo Kuhn:
A maior parte dos leitores do meu texto supusera
que quando eu falei de teorias incomensuráveis,
queria dizer que elas não podiam ser comparadas.
Mas ‘incomensurabilidade’ é um termo retirado da
matemática onde não implica tal coisa [...] O que
falta não é a comparabilidade, mas uma medida
de comprimento em termos da qual ambos possam
ser medidos direta e exatamente. (KUHN, 1976, p.
190-191).
Dizer que duas teorias eram incomensuráveis
não significava necessariamente que não fossem
passíveis de comparação, mas que essa comparação
não poderia ser feita por meio de uma redução ou
de outros métodos habitualmente discutidos no contexto da filosofia da ciência (KUHN, 2006). Kuhn,
assim, abria as portas para a história da ciência
vasculhar o passado e o presente numa nova busca.
Ou seja, como bem observa Alfonso-Goldfarb,
A busca de como cada cultura, cada comunidade
científica e cada época construiu, de acordo com
seus objetivos e suas formas de ver o mundo, os
critérios das verdades que regeriam sua ciência. E
se as ciências de várias épocas e diversas culturas
teriam, cada uma, seus próprios critérios do que fosse
verdadeiro ou falso, a ciência moderna deixava de
ser o padrão. Tornava-se tão-só uma ciência entre
muitas, nem melhor nem mais completa, apesar de
sua pujança. A ciência moderna deveria, a partir
daí, ser estudada historicamente para que se pudesse
entender a constituição dos critérios que lhe deram
formação. (ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p. 86,
grifo do autor).
No que diz respeito ao ensino de ciência,
podemos dizer que, diferentemente das ideias de
Bachelard, as ideias de Kuhn não chegaram a ter
muita influência em propostas didático-pedagógicas. Entretanto, a noção de paradigma parece ter
influenciado alguns educadores porque o próprio
Kuhn teria observado que a função do paradigma
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
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“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
cumpria-se nos manuais científicos e livros didáticos por meio dos quais o jovem estudante é iniciado
na ciência (KUHN, 1997).
Contudo, no que diz respeito à história da ciência, o termo “paradigma” é utilizado com muita
cautela pelos historiadores, visto ter se transformado numa daquelas palavras mágicas que explicam
tudo.3 Além disso, do ponto de vista filosófico e
historiográfico, o termo é vago e não parece dar
conta do desenvolvimento progressivo do conhecimento científico.
A ideia de que a mudança de paradigma implica
em progresso da ciência é um problema bastante
complexo que tem recebido atenção de filósofos
da ciência. Contudo, na perspectiva da história da
ciência, não encontramos no passado pessoas dedicadas, de modo consciente, a promover mudanças
de paradigma, nem mesmo superando obstáculos
epistemológicos. Para alguns historiadores da
ciência, as epistemologias da ruptura de Kuhn e
Bachelard foram elaboradas num contexto em que a
própria ideia de progresso constituía um dos pilares
do fazer científico. Isso significa que é preciso também contextualizar a ideia de progresso4, evitando
assumi-la como um dado objetivo, tal como foram
admitidas nas epistemologias de Kuhn e Bachelard.
Novas perspectivas historiográficas
A despeito das críticas ao relativismo supostamente assumido por Kuhn, suas propostas tiveram
grande repercussão e juntaram-se à de muitos
estudiosos que buscavam novas abordagens para
a história da ciência. Dentre esses estudiosos podemos citar aqui Walter Pagel (1898-1983) com o
seu trabalho pioneiro sobre Paracelso, bem como
Frances Yates (1899-1981) sobre a retomada da
tradição hermética na época de Giordano Bruno,
entre outros5.
A partir desses estudos pioneiros, novas tendên3 Na verdade, Kuhn utiliza o termo “paradigma” em mais de
um sentido. A esse respeito, vide Masterman (1978).
4 Convém observar que a noção de “progresso”, que tem por
pressuposto a ideia de que é possível chegar a uma verdade
absoluta, não é um dado objetivo, mas um valor. A noção de
progresso também não pode ser desvinculada do contexto
histórico. Vide Rossi (2000) e Butterfield (2003).
5 Pagel (1960, 1961, 1982) e Yates (1988, 2001, 2003). Vide
também McGuire e Rattansi (1995); Rattansi (1972, 1988).
190
cias historiográficas passaram a ser propostas e,
nelas, levaram-se em consideração não só as continuidades, mas também as rupturas no desenvolvimento no processo de transmissão, transformação e
adaptação dos conhecimentos científicos. Todavia,
ao contrário das ideias de Bachelard e de Kuhn,
que tiveram grande penetração entre educadores,
essas novas perspectivas parecem não ter chegado
sequer a ser consideradas no campo do ensino
(TRINDADE et al., 2010).
Atualmente, história da ciência não mais se
confunde com epistemologia ou filosofia da ciência. A história da ciência renovou seus pressupostos e suas propostas historiográficas nos últimos
anos, fortalecendo laços com o campo da própria
história, da sociologia e de outras áreas das humanidades. Assim, nos dias de hoje, a história da
ciência, embora mantenha a epistemologia como
uma de suas possíveis abordagens, não se limita
a ela. Novas abordagens metodológicas propõem
escrever história da ciência envolvendo três esferas
de análise: epistemológica, historiográfica e contextual, conforme proposta historiográfica apresentada e discutida em recente seminário internacional
(ALFONSO-GOLDFARB, 2008).
Essa nova abordagem nos estudos de história da
ciência tem buscado contextualizar o conhecimento
científico, valorizando o processo da construção
deste conhecimento. Assim, diferentemente dos estudos pautados em tendências historiográficas mais
tradicionais, que têm apenas valorizado resultados,
novas propostas historiográficas têm enfocado
suas investigações nos processos que conduziram
a tais resultados, considerando agora uma rede de
inter-relações (ALFONSO-GOLDFARB, 2003;
ALFONSO-GOLDFARB; FERRAZ; BELTRAN,
2004). Desse modo, em vez de adotar uma perspectiva normativa e filosófica, atuais tendências
historiográficas da história da ciência têm insistido
na necessidade de contextualizar o conhecimento
científico, procurando compreender a ciência do
passado tal como ela era vista no passado, e não
como ela deveria ser vista segundo uma perspectiva
filosófica pré-concebida. Em outros termos, para
compreendermos a natureza da ciência, por meio
de seu processo de construção histórica, é preciso
avançar além da própria caracterização formal da
ciência moderna. Isso porque, como bem sugere
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
Fumikazu Saito
Canguilhem (1977, p. 15), “a ciência atual não se
confunde com essa mesma ciência no seu passado”.
Nesse sentido, tendências historiográficas atuais
têm procurado situar a ciência do passado no passado, analisando cada etapa do desenvolvimento
do conhecimento científico segundo uma rede de
relações. Assim, estudos recentes em história da
ciência têm mostrado que tanto as rupturas quanto
as continuidades devem ser consideradas relevantes, assim como as influências de fatores referentes à lógica interna dos conceitos e teorias e o
papel das influências externas à ciência do período
em que tais conceitos e teorias foram elaborados
(ALFONSO-GOLDFARB; BELTRAN, 2002,
2004, 2006; BELTRAN; SAITO, TRINDADE,
2010, 2011; SAITO, 2011).
Contudo, esses novos estudos ainda não chegaram a educadores e professores das várias disciplinas. A perspectiva histórica dominante que permeia
o material didático para o ensino de ciências, bem
como veiculadas pelos meios de divulgação científica, continua ainda a valorizar uma história linear
e progressista. A história da ciência geralmente é
utilizada como fonte de exemplos na apresentação
das teorias, e espera-se que os discentes construam
conhecimento sobre a natureza da ciência por meio
de conceitos científicos. Segundo Trindade et al
(2010, p. 125-126), tal forma de abordagem
apresenta alguns problemas: a aprendizagem não é
favorecida porque os alunos são colocados diante de
questões epistemológicas que sequer formularam e
acabam sendo conduzidos a interpretações sobre um
conceito sem terem estabelecido qualquer tipo de
crítica sobre eles. Decorre daí que é absolutamente
inútil a leitura de textos antigos, originais, sem que
se conheçam as condições históricas, sociais, e da
própria ciência do período em foco.
Os educadores têm buscado utilizar a história
da ciência para propiciar uma formação em que o
discente veja a ciência de modo crítico. Todavia,
ao pautarem-se em questões formais da ciência,
os educadores muitas vezes não percebem que, na
maioria das vezes, os estudantes não estão preparados para elaborar questões de natureza epistemológica. Além disso, uma história da ciência que
apenas ilustre ou encadeie logicamente as ideias
científicas do passado até o presente numa sequência cronológica e linear tende a reforçar a ideia de
que a ciência progride e aprimora-se deixando de
lado questões de ordem contextuais importantes.
Ao proceder dessa maneira, os conteúdos da ciência são organizados de tal modo a dar ênfase nos
encadeamentos lógicos dos conceitos sem relação
com as necessidades extracientíficas.
Por outro lado, dar ênfase apenas ao contexto
em que a ciência foi elaborada também apresenta
problemas. Como bem observam Trindade et al
(2010, p. 126), os alunos normalmente têm parco
conhecimentos de história e praticamente nenhum
de filosofia. Desse modo,
ao restringir apenas aos aspectos sociais que propiciaram o aparecimento de determinados conceitos,
o educando não é colocado frente aos debates que
envolveram os estudiosos da época e que propiciaram a formulação de novos conhecimentos, ou
ainda de novas formas de se compreender antigos
conhecimentos.
Assim, no que diz respeito ao ensino de ciências, é preciso começar pela história da ciência e
não pela epistemologia. Episódios da história da
ciência, pautada em tendências historiográficas
mais atualizadas, pode servir de porta de acesso
às questões epistemológicas da ciência. Para tanto
é preciso aproximar o historiador da ciência do
educador. Será somente por meio de um diálogo
entre historiadores da ciência e educadores que
poderemos superar os desafios que enfrentamos
na articulação dessas duas áreas de conhecimento
distintas, história e ensino (SAITO, 2010; TRINDADE et al., 2010).
Considerações finais
As epistemologias descontinuístas às vezes
mascaram a expectativa de que, por meio delas,
podemos superar o discurso positivista e progressista do conhecimento científico. A noção de ruptura,
certamente, desconstrói a ideia de acumulação de
conhecimento. Todavia, não rompe necessariamente com as ideias de linearidade e progresso. Para
que possamos compreender o desenvolvimento
do conhecimento científico, devemos voltar o
nosso olhar para o próprio processo de construção
da ciência. Devemos compreender que as várias
epistemologias da ciência também fazem parte
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“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
desse processo e que, portanto, elas também devem
ser contextualizadas. Diferentes épocas elaboram
diferentes epistemologias, assim como diferentes
concepções de ciência. Desse modo, ao articular
história e ensino é preciso levar em consideração
a visão historiográfica de referência.
Isso, entretanto, não significa que devemos
tornar o professor um historiador. Visto que muitos
manuais e livros didáticos de ciência, que buscam
aproximar história e ensino, ainda reforçam a ideia
linear e progressista do desenvolvimento do conhecimento científico, é preciso aproximar o educador
do historiador da ciência. Isso porque a história da
ciência pode ser um instrumento importante para
o professor que, utilizando-se de fontes adequadas
e atualizadas, possa promover entre seus alunos
uma visão mais crítica em relação à ciência e à
construção do conhecimento científico. Todavia,
é importante que o educador tenha consciência de
que a História da Ciência não se encontra pronta e
acabada. Ela não deve ser confundida pelo educador
como um repositório fixo de informações onde ele
poderia buscar recursos para articular história e
ensino em sala de aula. A História da Ciência deve
ser tomada como ponto de partida para resignificar
os conteúdos e levantar discussões sobre diferentes
modelos de conhecimento, preparando assim o
discente para as questões epistemológicas mais relevantes. É nesse sentido que temos dirigido nossos
esforços ao articular história e ensino de ciências.
Em outros termos, a História da Ciência pode contribuir na preparação dos alunos para que eles possam
formular questões epistemológicas importantes para
se compreender a natureza da ciência.
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Recebido em 28.11.2012
Aprovado em 29.01.2013
194
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE CIÊNCIAS DA NATUREZA
INTEGRADO À HISTÓRIA DA CIÊNCIA E À FILOSOFIA DA CIÊNCIA:
UMA ABORDAGEM CONTEXTUAL
Adailton Ferreira dos Santos*
Elisa Cristina Oliosi**
Resumo
Este artigo propõe-se a reflexão do ensino de ciências da natureza, na perspectiva
de uma abordagem contextual para melhor compreender a relação entre ciência e
sociedade. Tal abordagem para o ensino de ciências tem sido recomendada pela
UNESCO , pela legislação brasileira assim como por pesquisadores que defendem
a necessidade de repensar o ensino na sociedade contemporânea, globalizada e
tecnológica. Assim, almeja-se que o ensino das ciências da natureza possibilite a
compreensão da atividade científica e, por sua vez, contribua para a superação das
ideias distorcidas sobre as ciências. Com efeito, apontaremos trabalhos de estudiosos
como Matthews, Gil-Pérez, Martins, Freire Jr. e do filósofo das ciências Gaston
Bachelard, que defendem um ensino integrado entre a história da ciência e a filosofia
da ciência para permitir que o cidadão adquira um pensamento crítico das ciências e
de suas implicações no contexto atual. Além disso, essa concepção de ensino contribui
para entender a relação dos fatores históricos e sociais no processo de constituição
das ciências da natureza de uma época específica.
Palavras-chave: Ensino de ciências da natureza. Abordagem contextual. História da
ciência. Filosofia da ciência.
Abstract
THE IMPORTANCE OF TEACHING INTEGRATED NATURAL SCIENCES,
HISTORY OF SCIENCE AND PHILOSOPHY OF SCIENCE: A CONTEXTUAL
APPROACH
This article aims to reflect on teaching Natural Sciences in the perspective of a
contextual approach for better understanding of the relationship between science
and society. This approach to teaching has been recommended by international
organizations, by the Brazilian laws and also by researchers who advocate another
kind of education in the contemporary, globalized and technological society. Thus,
* Graduado em Filosofia e Pedagogia. Doutor em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), em 2012. Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Líder do Grupo de Pesquisa em História
e Filosofia da Ciência e Ensino de Ciência (GHFEC). Endereço para correspondência: Av. Silveira Martins, Cabula, nº 2555 Departamento de Educação I / UNEB – Salvador-Bahia. CEP: 41.150-000. [email protected]
** Graduada em Licenciatura em Química pelas Faculdades de Filosofia, Ciência e Letras Oswaldo Cruz. Doutora em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2010. Professora de História da Química,
Química Geral da Universidade Nove de Julho. Membro do Grupo de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência e Ensino de
Ciência (GHFEC). Endereço para correspondência: Rua Manoel de Souza Azevedo, 495 – São Paulo-SP. CEP: 02.809-040.
[email protected]
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
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A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual
it is expected that teaching natural sciences will enable students to understand the
scientific activity and contribute to overcoming distorted ideas about science. Our
reflections are based on the papers of scholars such as Matthews, Gil-Pérez, Martins,
Freire Jr. and the philosopher of science Bachelard, who advocate teaching integrated
History of Science and Philosophy of Science in order to allow critical thinking of
science and its implications for the current context. Moreover, this way of education
contributes to the understanding of the influence of historical and social factors on
the constitution process of natural sciences.
Keywords: Teaching Natural Science. Contextual Approach. History of Science.
Philosophy of Science.
1- Introdução
Neste estudo pretendemos fazer uma reflexão
sobre o ensino de ciências da natureza1 para melhor compreensão da relação ciência e sociedade,
considerando as discussões atuais que defendem
uma abordagem contextual do ensino na conjuntura da sociedade contemporânea, globalizada e
tecnológica. Tal abordagem toma como base uma
vertente construtivista, em que o sujeito crítico
dialoga com o conteúdo científico e se permite
compreender as ciências entrelaçadas aos fatores
social, histórico, filosófico, que, por sua vez, são
intrínsecos à atividade científica. Nessa perspectiva, mostraremos que a “história da ciência e da
filosofia da ciência”2 tem sido apontada como de
grande importância para o ensino das ciências da
natureza, almejado na chamada “sociedade do
conhecimento”3. Para tanto, enfoca-se neste estudo três momentos, considerando os aspectos que
privilegiam essa abordagem.
Inicialmente, focalizaremos o contexto do
ensino de ciências a partir do estudo de um grupo
de documentos que versam sobre a educação científica, publicados pela UNESCO (1999, 2003): a
Declaração de Budapeste Marco Geral de Ação
e A Ciência para o Século XXI: uma Nova Visão
e uma Base de Ação; e a legislação brasileira,
1 De acordo com os PCNs (BRASIL, 2000), as ciências da natureza
são: química, física e biologia, e adotaremos essa expressão para
nos referimos a essa área do saber.
2 A “história da ciência e filosofia da ciência” é um campo do conhecimento e tem sido bastante difundida no Brasil, por sua contribuição
para o ensino de ciências da natureza. Para melhor saber, ver Silva
(2006) e/ou Alfonso-Goldfarb (1994).
3 O termo é empregado nos documentos da UNESCO e do Brasil e
também por pesquisadores para se referir à sociedade globalizada
e tecnológica e dependente das ciências no contexto atual.
196
especialmente, a LDB, os PCNs e as Orientações
Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2000,
2006, 2011).
No segundo momento, destacaremos algumas
ideias distorcidas sobre as ciências da natureza,
que dificultam o ensino ao se pensar na atividade
científica fragmentada, a-histórica, com um rigor
absoluto e imutável, à luz de uma revisão bibliográfica estrangeira e brasileira, a qual inclui pesquisadores, reconhecidamente importantes, como
Matthews (1995), Gil-Pérez et al (2001), Martins,
L. (1998), Freire Jr. (2002) e o filósofo das ciências
Bachelard (1968).
No terceiro e último momento, abordaremos
estudos de especialistas para, a partir de suas propostas, refletir sobre o ensino de ciências da natureza integrado à “história da ciência e à filosofia da
ciência”. Os estudos sobre o ensino de ciências da
natureza assinalam a importância desse campo do
conhecimento para o cidadão adquirir um pensamento crítico das ciências e de suas implicações na
sociedade contemporânea. Além disso, é um saber
considerado fundamental para se entender melhor
a relação com os fatores históricos e sociais no
processo de constituição das ciências da natureza
de uma época específica
2 - Abordagem Contextual do Ensino de
Ciências da Natureza sob a Perspectiva
da Legislação
O saber científico é um dos conhecimentos considerados mais importantes na chamada sociedade
do conhecimento e, segundo a UNESCO (1999),
se tornou uma exigência para a formação de um
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“cidadão”4 consciente e crítico sobre os acontecimentos do mundo. É também uma condição
imprescindível para se entender a nova configuração da sociedade e o desenvolvimento científico,
e, ainda, para a inovação e o crescimento local e
nacional do país.
Tendo em consideração a maneira de pensar
supracitada, professores e pesquisadores têm discutido e manifestado suas preocupações quanto ao
ensino de ciências da natureza, conforme será visto
a seguir. Esses especialistas consideram essencial
para a aprendizagem que se tenha
[...] uma melhor compreensão do trabalho científico
[...], em si mesmo [e] um indubitável interesse [pela
ciência], em particular para os que são responsáveis,
em boa medida, pela educação científica de futuros
cidadãos de um mundo marcado pela ciência e pela
tecnologia. (GIL-PÉREZ et al., 2001, p. 139).
Nesse sentido, se diz ainda que,
Para que um país esteja em condições de atender
às necessidades fundamentais de sua população, o
ensino de ciências e da tecnologia é um imperativo
estratégico [...]. Hoje, mais do que nunca, é necessário fomentar e difundir a alfabetização científica em
todas as culturas e em todos os sectores da sociedade
(UNESCO, 1999) 5.
Tal preocupação com um ensino de ciências
da natureza, que possibilite o entendimento das
questões epistemológicas, históricas e filosóficas
que envolvem a ciência e, por outro lado, contribua
para o exercício da cidadania, tem sido constante e
tem aparecido de maneira contundente, nas últimas
décadas, nos documentos para a “educação científica”. Esta expressão é largamente empregada por
estudiosos e na legislação do ensino de ciências da
natureza para designar o “conhecimento necessário
para entender os debates públicos sobre as questões de ciência e tecnologia” (HAZEN; TREFIL,
1995, p. 12). Tal conceito envolve um conjunto de
4 A UNESCO (1999) e legislação brasileira (BRASIL, 2011) consideram que o aluno é um cidadão e como tal tem direito à cultura
científica, enquanto uma construção humana situada historicamente.
Doravante, utilizaremos esse termo por entendermos que ele agrega melhor a ideia de educação como um direito na sociedade do
conhecimento.
5Trata-se da Declaração de Budapeste, um importante documento
resultante dos primeiros encontros no âmbito internacional para a
educação científica nos países da América Latina e Caribe, realizados
em San Domingos e Budapeste, em 1999.
acontecimentos, vocabulários e fatores históricos
e filosóficos.
Nessa perspectiva, de um ensino de ciências da
natureza com base contextual, a UNESCO afirma
ainda em outro documento intitulado A Ciência
para o Século XXI: uma Nova Visão e uma Base
de Ação, que “A educação científica, em todos os
níveis e sem discriminação, é requisito fundamental
para a democracia. Igualdade no acesso à ciência
não é somente uma exigência social e ética. É uma
necessidade para a realização plena do potencial do
homem” (UNESCO, 2003).
No âmbito do Brasil, essa perspectiva de ensino
de ciências alinha-se às discussões internacionais.
O Ministério da Educação (MEC), desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20/12/1996,
afirma que: “A educação básica tem por finalidades
desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação
comum indispensável para o exercício da cidadania
e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e
em estudos posteriores” (BRASIL, 2011).
Essa fase da escolaridade abrange também o saber científico. Sendo assim, o ensino das ciências da
natureza, na educação básica, deve contribuir para a
formação do cidadão, por meio de uma abordagem
histórica, social e cultural da atividade científica,
para possibilitar a compreensão das ciências como
construções humanas.
De acordo com Matthews (1995, p. 165), tal
abordagem do ensino de ciências da natureza
contribui para “Tornar as aulas de ciências mais
desafiadoras e reflexivas, permitindo, deste modo,
o desenvolvimento do pensamento crítico e, além
disso, possibilitar um entendimento mais integral
da[s] matéria[s] científica[s]”.
Em consonância com o pensamento atual, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para
o ensino das ciências da natureza ressaltam que
o estudante não é só cidadão do futuro, mas já é
cidadão hoje, e, nesse sentido, conhecer ciências é
ampliar suas possibilidades presentes de participação social e desenvolvimento mental, para, assim,
viabilizar sua capacidade plena de exercício da
cidadania (BRASIL, 2000).
Tal perspectiva para o ensino de ciências da natureza perpassa todas as fases da educação básica.
As Orientações Curriculares para o Ensino Médio
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A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual
(BRASIL, 2006) recomendam uma organização
curricular do ensino brasileiro que contemple as
dimensões histórico-social e epistemológica. Este
documento vai além dos demais apontados, anteriormente. Preconiza-se aqui uma maior interação
entre o ensino, a abordagem contextual e o currículo, criando, desta forma, um entrelaçamento da
atividade científica com a dimensão humana.
Com efeito, a posição defendida nos documentos da UNESCO e pela legislação brasileira
implicam em modificações no ensino de ciências
da natureza. De acordo com essa abordagem, a
contextualização da ciência é imprescindível para
possibilitar outro tipo de ensino, se quisermos que
a educação científica atenda à nova configuração
da sociedade, que, por sua vez, coloca a aprendizagem no centro das atividades humanas, pois o
conhecimento torna-se necessário não só para a
inserção do cidadão no mundo contemporâneo,
mas também para usufruir dos bens decorrentes
do progresso da ciência.
3- Das ideias Distorcidas sobre as Ciências ao Ensino das Ciências da Natureza
A necessidade de compreensão das atividades
científicas na sociedade do conhecimento tornou-se uma questão premente no ensino de ciências da
natureza. Com isso, muitos pesquisadores têm procurado mostrar que a visão distorcida das ciências
existente entre os cidadãos pode ser superada. Para
entendimento da discussão, mostraremos a seguir
como se apresentam alguns problemas no ensino
de ciências da natureza.
Rosemberg e Birdzell (1990) e Rodrigues e Demeis (1996) nos mostram, por meio dos estudos da
história da ciência moderna, que a ciência da natureza apresentou um desenvolvimento considerável
a partir da segunda metade do século XIX, e estreitou cada vez mais seu vínculo com as instituições
dessa sociedade. A partir desse momento, tornou-se responsável por um aumento exponencial de
novos conhecimentos e tecnologias, que afetaram,
de maneira profunda e irreversível, a organização
e a vida cotidiana dos indivíduos. Nesse sentido,
assinalamos, por exemplo, a presença marcante
da ciência e da tecnologia nas residências, com a
utilização de eletrodomésticos, na sala de aula, com
198
a utilização dos aparelhos elétricos eletrônicos e
computadores e na comunicação entre os cidadãos,
através dos diversos modelos de celulares utilizados
por professores e alunos.
No entanto, Pozo (2004) assinala que, mesmo
assim, a percepção usual do cidadão acerca da
ciência parece advir mais do conhecimento tecnológico que ela propicia do que dos processos
de criação e descobertas a ela inerentes. Dentre
os fatores responsáveis por esse quadro, pode ser
destacado que o conhecimento científico apresentado no ensino é diferente das muitas suposições e
crenças que os estudantes têm sobre o mundo. Isso
decorre do fato do saber científico requerer [um
sistema de pensamento próprio onde se deve ter
em consideração] a incorporação do mundo, dos
modelos e teorias da ciência em lugar de um sistema
cognitivo [a maneira comumente utilizada para se
pensar no dia a dia], que é muito eficaz no mundo
cotidiano, mas que está estruturado por princípios
muito diferentes dos que estruturam tais teorias
e modelos. Assim, a ciência requer do cidadaão
outra maneira de pensar, ou seja, uma maneira que
incorpore as característica e peculiares inerentes
à própria ciência. Esse sistema é denominado de
natureza da ciência e deve ser ensinado em todas
as fases da escolaridade.
Um dos primeiros trabalhos, de maior repercussão, que destacou problemas no ensino de
ciências da natureza foi realizado pelo filósofo e
epistemólogo Bachelard (1884-1962), professor
de química e de física, que trabalhou com adolescentes na educação básica e com jovens no ensino
superior, e se dedicou ao estudo do ensino e da
epistemologia da ciência. Esclarecemos que não
temos a intenção de apresentar uma análise dos
trabalhos desse filósofo. É suficiente para o nosso
fim ressaltarmos um dos problemas do ensino das
ciências da natureza estudado por Bachelard (1968,
p. 138), em que ele aponta que
Existem situações de ensino onde se imaginam que
o espírito [saber científico] começa com uma aula,
que é sempre possível reconstruir uma cultura falha
[o saber comum] pela repetição da lição, que se
pode fazer entender uma demonstração repetindo-a
ponto a ponto. Não levam em conta que o jovem
entra na aula [...] com conhecimentos empíricos já
constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma
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Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
cultura experimental, mas sim de mudar de cultura
experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana.
Bachelard procura mostrar, com este exemplo, que o cidadão leva para a sala de aula uma
bagagem, um pensamento sobre o fenômeno ou
teoria científica que foi moldada com a cultura do
seu contexto e isso se constituí em um obstáculo
à aprendizagem. É importante que se compreenda que, para ocorrer outra aprendizagem, agora
fundamentada no saber científico, se faz necessário que o cidadão supere essa visão, ou seja, os
obstáculos enraizados, as concepções distorcidas
de ciência.
Nesse sentido, o citado autor chama atenção
para que se observe especialmente a maneira como
se ensina a ciência, ao dizer: “É indispensável que o
professor para explicar uma matéria passe continuamente da mesa de experiência para a lousa, a fim
de extrair, o mais depressa possível, o abstrato do
concreto. Quando voltar à experiência, estará mais
preparado para distinguir os aspectos orgânicos do
fenômeno [...]” (BACHELARD, 1968, p. 139).
A preocupação com o ensino e aprendizagem
é fundamental nos estudos desse filósofo e epistemólogo da ciência. Assim, ele sugere que, ao
ensinar ciências da natureza, deve-se procurar
observar a forma de trabalho, que explique de
maneira pormenorizada o fenômeno ou a teoria
científica, ininterruptamente, procurando fazer
com que esta seja compreendida, esclarecendo os
aspectos teóricos e distintos dos aspectos visíveis.
Bachelard recomenda, sobretudo, que para a explicação teórica do fenômeno ou teoria se levem em
consideração os fatores contextuais e como esses
fatores se entrelaçam formando um todo. Desse
modo, para Bachelard (1968) é indispensável que a
ciência seja compreendida em sua teia de relações,
ou, como já dissemos anteriormente, a partir de uma
abordagem contextual, logo, diretamente envolvida
com as dimensões humana e social.
Prosseguindo com o estudo, os pesquisadores
Melo (2005) e Mendes (2005) apontam que parte
dos professores considera a ciência como uma
construção individualista, particular e elitista, e que
existe entre eles o mito de que o saber científico
é fruto de mentes brilhantes. Para esses sujeitos,
os conhecimentos científicos aparecem como obras
de gênios isolados, ignorando-se o papel do trabalho coletivo e cooperativo, dos intercâmbios entre
equipes. Em particular faz-se crer que os resultados
obtidos por um só cientista ou equipe podem ser suficientes para verificação, confirmando ou refutando,
uma hipótese ou toda uma teoria (GIL-PÉREZ et al.,
2001, p. 133).
Conforme Santos et al (2010), é preciso compreender, ainda, que o conhecimento científico
não é obra somente de uma pessoa. Ele é resultado
do trabalho de muitas pessoas. Também é preciso
que se entenda que, muitas vezes, no processo
de construção do conhecimento se estabelecem
crises e conflitos entre as equipes, os colaboradores, o governo e/ou a sociedade em razão de
motivações diversas, como interesses e pontos de
vistas diferentes, relacionados mais diretamente às
questões metodológicas e teóricas da ciência, ou
relacionados mais diretamente às questões social,
política e/ou econômica da região onde a ciência
é criada. Portanto, o trabalho do cientista não é
individual, e sim construído por muitos “atores” e
condicionado a múltiplos fatores, em consonância
com a sociedade.
Corroboram para melhor compreensão dessa
problemática os estudos recentes que realizamos
sobre a história da ciência no Brasil, especialmente na Bahia, da segunda metade do século XIX:
A Presença das Ideias da Escola Tropicalista
Baiana nas Teses Doutorais da Faculdade de Medicina (1850-1889). Com esse estudo procuramos
mostrar que um grupo de médicos independentes,
chamados, posteriormente, de Escola Tropicalista
Baiana, baseado em teorias científicas mais modernas, deu início a práticas médicas diferentes
para a abordagem do saber científico, focalizando as doenças regionais reinantes, como a febre
amarela e o cólera, chamadas, tempos depois,
de doenças tropicais, que, na época, dizimaram
milhares de pessoas, sobretudo entre a população
negra e escravizados. Em razão do pensamento
diferente e da nova forma de trabalho científico,
os médicos tropicalistas enfrentaram, durante décadas, no ambiente científico, posições contrárias
de grupos influentes, como a Academia Imperial
de Medicina do Rio de Janeiro e as Faculdades
de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, além
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
199
A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual
de rejeições de corporações sociais e políticas
(SANTOS, 2012).
Além disso, os médicos da Escola Tropicalista
Baiana tiveram que lidar com a mentalidade existente na sociedade, com a resistência da população
à modificação de hábitos centenários e de comportamentos tradicionais como sepultamentos nas
igrejas, e também com a resistência dos médicos
do Império para adotarem outras atitudes e práticas
médicas que possibilitassem mudanças na saúde
pública. O grupo de médicos tropicalistas enfrentou
ainda fatores de ordem econômica impostas pelo
governo e as contingências determinadas pela
legislação, que impediram que se fizessem com
mais brevidade as transformações almejadas no
país. Passado muito tempo depois, os trabalhos dos
médicos tropicalistas foram considerados originais
para a época e contribuíram para as mudanças da
trajetória da medicina no Brasil (SANTOS, 2012).
Continuando com essa reflexão, Gil-Pérez et al.
(2001) apontam outro problema. Para uma parte
dos professores existe uma concepção empírico-indutivista da ciência, que resulta no distanciamento das ideias concretas sobre como se constrói e se
produz o conhecimento científico. Essa concepção
transmite uma crença sobre o papel neutro da ciência e, ainda, incorpora um pensamento ingênuo
do conhecimento científico atribuindo à atividade
científica a ‘descoberta’ científica. Em consequência disso, o pensamento desses professores revela
uma certeza de que o cientista sempre está consciente de seus métodos.
Podemos dizer, também, que tal pensamento
distorcido não leva em consideração os fatores
sociais e culturais, baseado na crença de que tal
contexto não interferiria na atividade científica,
pois seria um saber fundamentado na chamada
imparcialidade científica e na observação. Essa
visão no ensino de ciências transmite uma ideia
equivocada do trabalho científico e não considera
que a ciência é uma construção humana e, portanto,
sujeita às questões de todas as ordens, percalços,
intempéries e conflitos, de acordo com o lugar e a
conjuntura onde é criada, difundida e desenvolvida.
Aliás, o exemplo dos médicos da Escola Tropicalista Baiana também é importante para esclarecer
melhor a questão e demonstrar a pertinência da
ciência com o seu entorno.
200
Lembramos também outro fator, igualmente
importante, que pode interferir na atividade científica: as questões de fóruns pessoais dos cientistas
que, em muitas oportunidades, podem se constituir
como estímulos e se tornarem imprescindíveis para
o trabalho científico, ou ainda como empecilhos ao
desenvolvimento de um determinado trabalho. Em
outras palavras, nessa discussão “incluem-se ainda
os componentes pessoais que influenciam as atividades dos cientistas” (SCHWARTZ; LEDERMAN;
CRAWFORD, 2004, p. 611).
Dessa maneira, tudo leva a crer que boa parte
dos problemas existentes no ensino de ciências
da natureza é decorrente também de uma mentalidade que durou muito tempo. Conforme explica
Videira (2006), pensou-se que a ciência seria o
que é graças ao fato de que existiria o método
científico, e que, para a maioria das opiniões, ele
seria superior quando comparado a outro tipo de
conhecimento. Inclusive, a instauração da ciência
moderna somente teria ocorrido porque o físico e
astrônomo Galileu Galilei (1564-1642) e os filósofos naturais ingleses Francis Bacon (1561-1626),
William Harvard (1578-1657) e o filósofo francês
René Descartes (1596-1650), entre outros, criaram
o método científico.
Nesse sentido, ainda, Videira faz o seguinte
comentário: Esta é uma das ideias mais difundidas
e arraigadas a respeito do método científico, quando
este é entendido de forma tradicional, por exemplo,
concretizada nas diferentes formulações do empirismo e do positivismo, considera-o como capaz
de realizar corretamente duas funções: a) conduzir
com segurança os cientistas às descobertas que
almejam; e b) argumentar que aquelas descobertas
são, de fato, verdadeiras e bem fundamentadas
(2006, p. 23).
Assim, devido a pensamentos como esses,
surgiram mais distorções e problemas no ensino
de ciências da natureza. Por exemplo, se passou a
acreditar em um rigor inquestionável e nos procedimentos infalíveis utilizados pela ciência, e, logo,
não se cogitava a possibilidade de que o resultado
trazido pela utilização do método científico poderia
conter erros, seja no laboratório, no estudo de um
fenômeno, seja na coleta e análise de dados de
uma pesquisa. A visão tradicional e de perfeição
atribuída ao método científico forma um pensamen-
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Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
to distorcido da atividade científica, e leva a crer
que o cientista sempre tem certezas. Porém, isso
não é real. Em seu cotidiano, os cientistas lidam
também com dúvidas e erros, permanentemente
(SANTOS, 2011).
Gil-Pérez et al reiteram a discussão feita acima sobre o ensino de ciências da natureza. De
acordo com os trabalhos destes pesquisadores,
“trata-se de enxergar o método científico como
uma sequência de etapas definidas, destacando-se
o rigor do mesmo e o caráter exato dos resultados
obtidos” (GIL-PÉREZ et al., 2001, p. 130). Cabe
ressaltar, além disso, que ao idealizar o método
científico como infalível, ele se torna, desde então,
um método mecânico, com controle rigoroso que
traz resultados inquestionáveis, e descarta-se a
existência da criatividade, da tentativa e da dúvida,
rejeitando-se, assim, as características inerentes do
trabalho científico.
Considerando o exposto, acerca do ensino de
ciências da natureza no contexto atual, é imprescindível aos cidadãos o conhecimento das questões
epistemológicas, históricas e filosóficas como uma
importante contribuição para a superação dos
problemas do ensino, conforme foram apresentados. Por outro lado, os estudos realizados por
Abd-El-Khalick e Lederman (2000) e Shiang-Yao
e Lederman (2007) ressaltam que as concepções
distorcidas a respeito da natureza da ciência são
mais comuns entre aqueles cidadãos que se encontram mais afastados das discussões filosóficas. É
preciso compreender que o conhecimento científico
consiste de tentativas empíricas, pois se transforma
em função de observações sobre o mundo natural.
Além do mais, deve-se considerar a importância
da imaginação e da criatividade para a construção
de explicações científicas no ensino de ciências em
todas as fases da escolarização.
4- A Importância da História da Ciência
e Filosofia da Ciência no Contexto do
Ensino das Ciências da Natureza
De acordo com os estudos desenvolvidos por
Matthews (1995), na Inglaterra e nos Estados
Unidos, países de larga experiência com a educação científica, uma maneira de contribuir para a
melhoria dos problemas da educação em ciências
seria o ensino da história da ciência e da filosofia
da ciência no ensino de ciências da natureza. Em
suas pesquisas, Matthews (1995) argumenta que a
história das ciências possibilitaria o entendimento
de como e em que circunstâncias ocorreu a construção de um dado conhecimento, em um período
histórico, e, por outro lado, a filosofia das ciências
permitiria conhecer as questões epistemológicas
em que estão implicados os problemas científicos.
Assim, o ensino de ciências da natureza tomaria
outros encaminhamentos, ganharia características
mais humanas e oportunizaria uma melhoria na
aprendizagem. A necessidade de compreensão da
natureza da ciência, ou seja, como se desenvolve
a atividade científica, tornou-se uma questão premente no ensino para superar as ideias distorcidas
sobre as ciências. Essa maneira de pensar é tida
como consensual entre os estudiosos da área.
Sendo assim, é importante destacar que:
O crescimento dos estudos em história da ciência
e filosofia da ciência, intensificado na segunda metade do século XX, respondeu tanto a necessidades
estritamente intelectuais e conceituais, estas ligadas
ao desenvolvimento de certas disciplinas, quanto
a necessidades sociais, decorrentes de crescente
influência que a ciência e a tecnologia passaram a
ter nas sociedades contemporâneas. (FREIRE JR.,
2002, p. 15).
Nesse contexto, Melo (2005) defende que a
história da ciência e a filosofia da ciência são os
fundamentos ou os alicerces para atingir o conhecimento científico, pois a sua inserção no ensino
contribui para entender as relações da ciência com
a tecnologia, com a cultura e com a sociedade.
Mach (1960), por sua vez, afirma que o estudante com um conhecimento em história da ciência e
filosofia da ciência pode compreender exatamente
como a ciência apreende, e não apreende, o mundo
real, vivido e subjetivo. Contudo, o mais comum
é que o estudante fique sujeito à infeliz escolha
de renunciar ao seu próprio mundo, por ser uma
fantasia, ou renunciar ao mundo da ciência pela
mesma razão.
Esse pesquisador também adverte que o mundo
dos fenômenos vividos é vital para a educação em
ciência, pois é nesse cenário que a curiosidade e
a fascinação começam, mas ele não deve ser confundido com um mundo inerte, ou um mundo de
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201
A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual
gases ideais. Corroborando também esse enfoque,
os estudos da pesquisadora e professora Lilian
Martins destacam que a história e a filosofia da
ciência trazem importantes contribuições ao ensino
de ciências. Quais sejam:
Mostrar, através de episódios históricos, processo
gradativo e lento de construção do conhecimento,
permitindo que se tenha uma visão mais concreta
da natureza real da ciência, seus métodos, suas limitações. Isso possibilitará a formação de um espírito
crítico fazendo com que o conhecimento científico
seja desmitificado sem, entretanto, ser destituído de
valor. (MARTINS, L., 1998, p. 18).
Além disso,
Mostra, através de episódios históricos, que ocorreu
um processo lento de desenvolvimento de conceitos
até se chegar às concepções aceitas atualmente [...]
[e] o educando irá perceber que a aceitação e o ataque
a alguma proposta não dependem apenas de seu valor
intrínseco, de sua fundamentação, mas que também
nesse processo estão envolvidas outras forças tais
como as sociais, políticas, filosóficas e religiosas.
(MARTINS, L., 1998, p. 18).
E ainda segundo Roberto Martins,
Informações (preferencialmente bem fundamentadas) sobre a vida de cientistas, a evolução de
instituições, [...] o acidente geral de uma época,
as concepções alternativas do mesmo período, as
controvérsias e dificuldades de aceitação de novas
ideias [...] fornecidas através da história e filosofia da
ciência durante a formação dos professores podem
contribuir [...] para dar uma nova visão da ciência
e dos cientistas, dando maior motivação ao estudo.
(MARTINS, R., 1990, p. 4).
Dessa maneira, podemos observar a relevância
da história da ciência e da filosofia da ciência para
o ensino de ciências da natureza. As peculiaridades apresentadas com a apropriação desses saberes
tornam o ensino mais interessante, permitem a
compreensão da natureza da ciência e oportunizam uma aprendizagem mais significativa. Por
sua vez, retiram o cidadão do lugar ingênuo,
favorecendo o surgimento de uma posição crítica
em relação à ciência e a tecnologia na sociedade
do conhecimento, contemporânea e globalizada.
Além do mais, como bem nos lembra Matthews,
esse conhecimento permite enxergar “A ciência
202
numa dimensão mais humana e compreensível e
se pode explicar, de outra maneira, os fenômenos
como artefatos dignos de serem apreciados por si
mesmos. Isto é importante para os estudantes que
estão sendo apresentados ao mundo da ciência”
(MATTHEWS, 1995, p. 184).
É importante, porém, que se esclareça que a área
de história da ciência e filosofia da ciência não pretende substituir o ensino de ciências, ou, ainda, ser
a “solução” para todos os problemas do ensino. Na
verdade, os elementos oferecidos pelas abordagens
da história da ciência e da filosofia da ciência complementam o conteúdo das disciplinas científicas
de várias formas. Especialmente, quando se trata
de “compreender o conhecimento científico como
resultado de uma construção humana, inseridos em
um processo histórico e social” (BRASIL, 2010, p.
35). Por conseguinte, a inserção desses saberes no
ensino contribuiria, certamente, para a formação de
um pensamento mais reflexivo e crítico do cidadão
na educação básica.
5- Considerações finais
Procuramos com este trabalho fazer uma reflexão sobre as questões prementes do ensino de ciências. Focalizamos, especialmente, as discussões
que abarcam a abordagem contextual do ensino de
ciências da natureza. Assim, a educação científica,
entre outras questões, deve contribuir:
Para o domínio das técnicas de leitura e escrita; permitir o aprendizado dos conceitos básicos das ciências naturais e da aplicação dos princípios aprendidos
a situações práticas; possibilitar a compreensão das
relações entre a ciência e a sociedade e dos mecanismos de produção e apropriação dos conhecimentos
científicos e tecnológicos; garantir a transmissão e
a sistematização dos saberes e da cultura regional
e local. (FRACALANZA; AMARAL; GOUVEIA,
1986, p. 26-27).
As razões acima elencadas se contrapõem ao
ensino centrado no livro didático, memorístico,
acrítico e a-histórico ainda praticado em algumas
partes do país. Visando à mudança dessa realidade,
torna-se necessário desenvolver um ensino de ciências que tenha como foco, em todas as fases do
processo de escolarização, a ação do sujeito, a sua
participação ativa durante o processo de aquisição
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Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
do conhecimento, a partir de desafiadoras atividades de aprendizagem (FRIZZO; MARIN, 1989).
Nessa perspectiva, compreendemos que os
trabalhos dos estudiosos, pesquisadores, filósofos
e professores do ensino de ciências da natureza,
bem como a legislação brasileira, a LDB (1996), os
PCNs (2000) e as Orientações Curriculares para o
Ensino Médio (2006), convergem para o seguinte:
todos os cidadãos têm direitos a um ensino que
possibilite a sua formação cultural, uma vez que
o conhecimento científico é parte constituinte da
cultura da sociedade contemporânea e tecnológica.
Alinha-se a tal perspectiva a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que defende, especialmente para a América
Latina, que o ensino das ciências da natureza con-
tribua para o cidadão refletir criticamente sobre as
ciências e os produtos produzidos por ela, para essa
conjuntura da sociedade, globalizada e tecnológica
(UNESCO, 2005).
Consequentemente, a área de história da ciência e da filosofia da ciência pode oferecer uma
importante contribuição para o ensino de ciências.
Além disso, possibilitaria ao cidadão a superação
das ideias distorcidas sobre as ciências à medida
que este passar a conhecer em que circunstâncias
ocorre a construção do saber científico e entender as
questões epistemológicas que envolvem a ciência
e a tecnologia sem perder de vista a relação com
a dimensão humana e social. Assim, outro tipo de
ensino de ciências da natureza é imprescindível no
contexto na sociedade do conhecimento.
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Recebido em 08.12.2012
Aprovado em 07.03.2013
204
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
Luciano Costa Santos
O PENSAMENTO FECUNDO:
ELEMENTOS PARA UMA RACIONALIDADE TRANSMODERNA
Luciano Costa Santos*
Para Ana Cecília Costa
“Eis o paradoxo: como modernizar-se e retornar às fontes?”
Paul Ricoeur
RESUMO
Uma das principais marcas do contexto contemporâneo é o desgaste de ideais
iluministas fundadores da modernidade, em decorrência da expansão planetária de
um sistema civilizatório baseado na produtividade e competitividade. Esse transe
histórico atinge a escola “ilustrada” moderna, instrumentalizada como banco de
dados a serviço de demandas mercadológicas. Diante da encruzilhada “pós-moderna”,
propõe-se como perspectiva histórica o paradigma da transmodernidade, situado
além da negação ou reafirmação da modernidade, e que consiste na reapropriação
do legado científico e crítico da racionalidade moderna, a partir da revisita a fontes
hermenêuticas por ela relegadas. Tais fontes, como as dimensões de transcendência,
alteridade e tradição, propiciam uma fecundidade de sentido que a razão crítica não
pode produzir por si mesma, e constituem uma reserva sapiencial ante o dissolvente
pragmatismo pós-moderno.
Palavras-chave: Modernidade. Razão crítica. Pós-modernidade. Pensamento fecundo.
Transmodernidade.
ABSTRACT
FRUITFUL THOUGHT: ELEMENTS FOR A TRANSMODERN RATIONALITY
One of the main characteristics of the contemporary context is the deterioration of the
illuminist founding ideals of modernity. This fact is due to the planetary expansion
of a civilization system based on productivity and competitiveness. This historical
trance reaches the modern “aesthetic” school which acts as database for market
demanding. Facing the “postmodern” crossroad, we propose as a historical perspective
the transmodernity paradigm that is beyond negation or confirmation of modernity. It
consists of scientific and critical legacy appropriation of modern rationality through the
relegated hermeneutical sources. These sources, as the dimensions of transcendence,
* Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio no Institut Catholique
de Paris/Université de Poitiers. Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor do Programa de
Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEDUC). Pertence à Linha 1 (Processos Civilizatórios: Educação,
Memória e Pluralidade Cultural) do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEDUC) da UNEB.
Endereço para correspondência: Av. Araujo Pinho, nº 421, Cond. Edgar Degas, Apto. 601 – Canela. CEP: 40.110-150. SalvadorBA. [email protected]
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205
O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna
alterity and tradition, give fruitful meaning that cannot be given by critical reason
itself, and they are considered a kind of sapience stockpile facing the weak postmodern
pragmatism.
Keywords: Modernity. Critical Reason. Postmodernity. Fruitful Thought.
Transmodernity.
1. Modernidade
Não é fácil tomar pé na densa cerração dos
tempos atuais, e menos ainda vislumbrar a luz de
um possível horizonte histórico rumo ao qual se
destinariam nossas esperanças. Conforme o ângulo
que se eleja, há quem entenda os nossos tempos
como desdobramento, exacerbação ou desagregação do projeto civilizatório moderno, e nesse caso
seríamos – respectivamente – “modernos”, “hipermodernos” ou “pós-modernos”, ou, quem sabe
ainda, tudo isso ao mesmo tempo. Como quer que
se chamem as águas revoltas em que navegamos,
parece razoável partir do conceito de modernidade
como chave hermenêutica na tentativa de decifrar o
sentido e divisar as perspectivas que se abrem com
a contemporaneidade.
Antes de erigir-se em paradigma que se impõe
às mais diversas áreas de atuação humana, da
economia à educação, o conceito de modernidade
nasce colado à experiência histórica. É um conceito
histórico-filosófico. Refere-se a uma nova era que
se inaugura na Europa ocidental, a partir do século XV, com sucessivos movimentos de ruptura e
emancipação protagonizados, em vários níveis,
pela classe dos mercadores de bens aglomerados
nos centros urbanos – ou “burgos” – então em plena
efervescência.
Em nível econômico, os “burgueses” rompem
com a sujeição ao sistema feudal de produção, baseado na apropriação hereditária das terras, a partir
da conquista do poder de acumular bens pela transformação técnica da Natureza. Momentos-chave
dessa emancipação econômica são as revoluções
Comercial (séc. XVI) e Industrial (séc. XIX), que
impulsionam a conquista de novos mercados para
além das fronteiras do Velho Mundo. Em nível político, o homem burguês se insurge contra o poder
da aristocracia, legitimado por títulos hereditários
de nobreza, abrindo caminho para a construção
de uma ordem institucional pública pactuada pela
206
sociedade civil, cujos principais momentos são as
revoluções Gloriosa (séc. XVII) e Francesa (séc.
XVIII), que fincam os fundamentos do Estado democrático e de direito. Em nível cultural, o homem
moderno libera-se da tutela da Igreja, conquistando
o poder de entender o mundo pelo livre exercício
da razão, sendo marcos dessa emancipação mental
o Renascimento (séc. XV) e o Iluminismo (séc.
XVIII), que legam ao Ocidente o caldo de cultura
humanista do qual viriam a surgir, dentre outras,
instituições como o método científico e a escola
pública.
Ruptura, emancipação, inovação: tais atitudes
consubstanciam o espírito propulsor da era moderna, que preside a seus movimentos e momentos
sem deter-se em nenhum deles, inaugurando um
processo de incessante atualização histórica que
configura a modernidade como projeto inacabado.
Fruto da emancipação da classe burguesa impulsionada pelo avanço técnico-científico, a modernidade traz em seu próprio advento a compreensão de
si mesma como progresso face ao período histórico
anterior, consolidando uma interpretação do tempo
que tem o seu vetor axiológico fixado no futuro:
doravante, o novo é sempre melhor; ser atual é
estar à frente do que passou e o passado, em si
mesmo, já é ultrapassado. Em suma, ser moderno
é ser contemporâneo do futuro. Como afirma Paul
Ricoeur (1968) em Civilização universal e culturas nacionais, no livro História e Verdade, salta
aos olhos a presença de certa linha progressiva na
história das sociedades modernas, quer se tenha em
conta a conquista de cada vez mais objetividade
na ciência, eficácia na técnica, produtividade na
economia, conforto no consumo, planificação no
Estado, equanimidade no sistema jurídico, e assim
por diante. Em certa medida, a racionalidade moderna – emancipada, autônoma – vem se tornando
cada vez mais “razoável” de acordo com os seus
pressupostos internos de objetividade, eficácia, produtividade, conforto, planificação e equanimidade.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013
Luciano Costa Santos
No entanto, o que caberia questionar – e deixamos
a questão, por ora, em aberto – é se o fato do progresso, verificável em países ditos desenvolvidos,
implica que o ideal de progresso esteja destinado a
impor-se como horizonte às sociedades. De outro
lado, tendo em vista os graves desarranjos sociais
e ambientais decorrentes da expansão planetária da
civilização moderna, importa ainda questionar se o
próprio ideal de progresso é não somente viável (ou
“sustentável”), mas apropriado para corresponder
às mais exigentes aspirações humanas de sentido e
convivência. Noutras palavras, o que está em jogo é
a suposta equivalência de progresso e crescimento,
ou modernização e humanização.
Não é fácil, porém, levar adiante tal tarefa de
revisão paradigmática, pois isto obrigaria o pensamento a saltar para fora do campo de sentido que
parece ser o único possível ou, ao menos, o único
legítimo. Hegemônica nos espaços institucionais
da ciência e da academia, a racionalidade moderna
passa a confundir-se com a própria vida da razão,
longe da qual não restariam senão sombras e incertezas, fanatismos e fantasias. No interior dessa
jurisdição hermenêutica, questionar a objetividade
como critério de sentido é correr o risco de cair no
subjetivismo, questionar eficácia e produtividade
como critério de valor é correr o risco de resignar-se
ao inútil, questionar o progresso como sentido da
história é correr o risco de retroceder ao “arcaico”,
questionar a equanimidade normativa como critério de justiça é correr o risco de ceder ao arbítrio,
questionar, enfim, a modernidade como critério de
civilização é correr o risco de tornar-se “bárbaro”.
No entanto, assim como modernidade não é
sinônimo de humanidade, mas apenas uma versão
da aventura humana, a racionalidade moderna tampouco é a razão, mas um modo ou modelo desta,
com a respectiva oferta de sua força e a impossibilidade de seus limites.
2. “Crítica” da razão crítica
Ora, o que antes de tudo caracteriza a racionalidade moderna é a decisão de não contar com outra
fonte de sentido senão a que se origina do próprio
sujeito. Se for assim, só pode fazer sentido o que
não somente se apresenta ante a consciência do
sujeito, mas o que provém de seu ato intencional.
Trata-se, portanto, não apenas de obrigar toda faculdade ou forma de conhecimento a prestar contas
ante o crivo da razão reflexiva, mas de desautorizar, por princípio, a pretensão de inteligibilidade
de qualquer forma de conhecimento constituída
aquém ou além do campo de força da razão, seja
esta científica, especulativa ou crítica.
Segundo Gadamer (2011), situa-se aqui o nó
que leva o iluminismo (Aufklärung) a recusar a
contribuição de revelação, tradição, autoridade
e preconceito (ou, se quisermos, “pressuposto”)
como instâncias geradoras de sentido. Partindo da
posição amplamente estabelecida de que cabe à
razão reflexiva a prerrogativa de julgar a validade
de qualquer conhecimento, o iluminismo conclui
que todo conhecimento só pode ter o seu ponto de
partida na reflexão. A partir daí, julga procedente
cortar os fios que ligam a razão a pressupostos
pré-reflexivos de ordem histórica ou cultural,
preservando-a de qualquer contágio epistemológico
indevido e lançando-a num percurso lógico linear
e coerente, de certeza em certeza, de juízo em
juízo, de argumento em argumento, de conclusão
em conclusão. Com isso, a racionalidade iluminista livraria a razão de um círculo hermenêutico
“vicioso” que justamente Gadamer – e, antes dele,
Heidegger – assumem como virtuoso e levam às
últimas consequências: aquele círculo segundo o
qual a razão reflexiva já opera a partir de sentidos
histórico-culturais dos quais lhe cabe apropriar-se
para trazê-los à maior inteligibilidade possível.
Assumir o círculo hermenêutico significa, portanto,
reconhecer que a razão situa-se em um lugar e não
tem como escapar da finitude. Se essa perspectiva
parece degradar a razão – especialmente se considerada à luz ofuscante do Absoluto hegeliano, por
exemplo –, de outro lado lhe confere a inaudita
dignidade do que é vivo e mortal, reconhecendo
que ela pertence a uma comunidade, traz à luz um
tempo e mergulha num denso caldo de sentido, de
tal modo insondável que não tem como vir de todo
à luz na transparência do conceito.
De volta ao “nó” iluminista, o que leva a racionalidade moderna à destituição epistemológica de
tradição, revelação, autoridade e pressuposto é o
fato de, ademais de prévias à reflexão, tais instâncias supostamente usurparem uma credibilidade
que, de direito, pertenceria somente à razão, haven-
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207
O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna
do assim uma incompatibilidade de competências.
Desse modo, a tradição revelada tenderia a ocupar
o lugar da reflexão, a autoridade deslocaria o juízo,
o pressuposto substituiria a evidência.
De acordo com Gadamer (2011), porém, esses
polos não são nem separados, nem incompatíveis
como pretende a razão moderna. Em primeiro lugar,
falta ao iluminismo suficiente radicalidade reflexiva
para reconhecer o seu próprio preconceito quanto
à suposta supremacia da razão reflexiva face às
demais instâncias geradoras de sentido. Haveria,
assim, um preconceito do iluminismo contra todo
pressuposto, com exceção do pressuposto de que a
“luz” da razão é superior a qualquer outra. De outro
lado, embora pré-reflexivos, tradição, revelação,
autoridade e pressuposto não são necessariamente
alheios a certa compreensão intuitiva, uma vez que
a crença na revelação, o pertencimento à tradição,
a obediência a uma autoridade e a aceitação do
pressuposto por vezes supõem o reconhecimento
implícito da lucidez que os torna persuasivos ou
mesmo irrefutáveis. Por fim, mesmo atuando em
distintas áreas de sentido – ou por isso mesmo –,
razão e tradição carecem uma da competência da
outra, sem o que a razão periga privar-se de sentidos seminais e a tradição, estacionar em um grau
primário de compreensão que não faria jus à riqueza
do que ela guarda.
Crença e crítica não disputam espaço hermenêutico. A crença dá o que a crítica não pode dar; a
crítica tira o que a crença precisa perder para tornar-se mais dadivosa. No entanto, tal é a confusão
instalada sob a longa hegemonia do paradigma iluminista, que a razão crítica, por assim dizer, atraiu a
crença para si, dando lugar a uma inusitada crença
na crítica, como se a reflexão sobre os limites da
razão e a desconstrução de suas formas espúrias
– competências da crítica – tivessem o poder de
saciar a sede de sentido dos amantes da sabedoria.
Tanto mais cáustica a crítica, tanto mais ardorosa
a crença, até chegar-se ao extremo paradoxo de
ortodoxos devotos dos mestres da suspeita, para
os quais um pensamento se torna tanto mais digno
de crédito quanto menos restar a ser desconstruído.
No vórtice (já agora “pós-moderno”) dessa razão
hipercrítica, não somente tudo o que é sólido, mas
mesmo tudo o que é tenro se desmancha no ar,
como se até a possibilidade de nascer e frutificar
208
já fosse um atentado contra as suspeitas da razão.
Diga-se de passagem, para quem tem em torno
de si uma civilização viçosa como a latino-americana, com a pletora de suas criações populares
mestiças e tropicais, submeter-se, não propriamente
à razão crítica, mas ao criticismo herdado de uma
civilização vetusta como a europeia, não seria sintoma de... colonialismo cultural? Que acadêmico
“emancipado”, porém, estaria disposto a admiti-lo?
De desconstrução em desconstrução, à razão
crítica foi afinal reservada a grandiosa tarefa de
contribuir para “edificar o deserto”1 (UNGER, 2001,
p. 19), âmbito de despojamento no qual só sobrevive o que permanece ligado às fontes, e que aqui se
pode tomar como metáfora da possível passagem
para uma nova ordem civilizatória mais além da
modernidade. Nesses tempos de deserto, em que
a racionalidade moderna parece haver atingido a
exaustão após levar ao extremo o seu poder, não há
como pretender uma possível superação da razão
crítica por uma hipotética – e ainda mais engenhosa e rigorosa – crítica da razão crítica, que só nos
precipitaria mais para dentro do vórtice do qual se
espera escapar. A razão crítica não pode ser superada
por qualquer novo investimento reflexivo, porque
justamente lhe coube conduzir ao limite o esforço de
construção/desconstrução reflexiva do sentido. Em
tempo de deserto, já não se trata apenas de refletir
mais, investir mais, capacitar, produzir, construir,
desconstruir, reconstruir, progredir, mais (ou menos!), mas de preparar o dom de um novo começo.
Trata-se, portanto, de submeter a razão moderna a
um mortal rito de passagem pelo qual ela venha a
renascer para além de seu poder e de sua impotência.
3. Pensamento Fecundo
A alternativa à razão crítica não é, portanto, de
modo algum a razão acrítica – contradição nos termos –, mas o pensamento metacrítico ou fecundo. O
meta (“além de”), referido no termo “metacrítico”,
indica a abertura da razão a instâncias hermenêuticas – tais como as mencionadas tradição, revelação
e autoridade –, nas quais surpreende uma potência
de sentido que, por seus próprios recursos reflexivos, ela não tem como prover a si mesma. Uma
1 A frase é atribuída a Nietzsche, sobre a “desertificação” do mundo
contemporâneo.
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Luciano Costa Santos
das características diferenciadoras do pensamento
fecundo é, pois, a sua radical passividade, uma vez
que o sentido não resulta da iniciativa intencional
da consciência reflexiva, mas advém-lhe por dom. É
encontrado. O pensamento fecundo recebe o logos
daquele núcleo gerador de sentido a que pertence,
escuta e reverencia. E aqui reside a sua segunda
característica marcante, que é a de operar a partir de
– e em relação com – uma dimensão outra, diante da
qual o seu poder se detém. O pensamento fecundo é,
assim, antes de mais nada, pensamento fecundado,
ao fazer-se guardião de um sentido outro, novo, que o
invoca e insta para vir à luz. Nessa perspectiva, e para
continuar no rastro das metáforas que nos guiam,
talvez se possa dizer que, enquanto cabe à razão
crítica contribuir para enterrar ideias “semimortas”
(ou “natimortas”), que entulham os discursos mas
não geram acontecimento, o pensamento fecundo é
chamado a favorecer a insurgência de sentidos que
precisam vir à luz para que o mundo se renove. Sendo assim, é como se a tarefa do pensamento oscilasse
entre tomar a sério e questionar, em última instância,
ora o que precisa morrer, ora o que precisa nascer.
Opta-se, aqui, pelo termo “fonte” em vez, por
exemplo, de “fundamento”. O fundamento – metáfora arquitetônica – pode ser posto por alguém
– o fundador –, tem o seu começo demarcável, é
estável e atua como base sem, entretanto, influir
naquele que sobre ele se sustenta; a fonte, ao contrário, brota de si mesma, tem origem insondável, é
dinâmica, em permanente renovação, e comunica-se como dom àquele que dela vive, vivificando-o
a cada instante. Em resumo, a imagem da fonte
guarda as características do que é originário, gerativo, insondável, dinâmico, gratuito e dadivoso,
e por isso parece melhor apropriada para servir de
metáfora do princípio seminal (arké) que atua no
pensamento fecundo.
Exemplos desse princípio hermenêutico gerador são, dentre tantos – e para ficar apenas com
pensadores contemporâneos –, as categorias de
“mundo da vida” (Lebenswelt) em Husserl, “ser”
em Heidegger, “linguagem” em Gadamer, “mistério” em Gabriel Marcel, “carne” em Merleau-Ponty, “encontro” em Buber, “alteridade” em
Levinas, “núcleo ético mítico” em Paul Ricoeur,
“estar” em Rodolfo Kusch, para citar algumas das
mais evocativas. Essas categorias têm em comum
o deslocamento gravitacional levado ao “sol” da
subjetividade moderna, que tudo constitui como
objeto e reduz à própria medida e, no âmbito da
polis, espraia a luz do “humanismo progressista”
quando trata de prestar contas a parcelas esclarecidas da opinião pública.
A questão, para o pensamento metacrítico, não é
a criticidade em si mesma, ou o seu suposto excesso. Especialmente na esfera das relações públicas,
mas não apenas aí, a razão crítica é o mais eficaz
preventivo contra abuso de poder, desigualdade
de direitos, exploração e violência, e nunca será
exigida o bastante em países como o Brasil, cuja
pesada herança colonial expõe amplos setores da
população à privação de recursos, supressão de
direitos e falta de participação política. Criticidade
nunca é demais. A questão é o modelo hegemônico de subjetividade autocentrada que erige a
razão crítica em princípio soberano de sentido,
confiando-lhe a prerrogativa pedagógica de presidir
a formação do sujeito, a relação com os outros e
a transformação do mundo, como se a autonomia
de pensar por si (sapere aude!) e a consciência
dos direitos próprios e alheios fosse o que de mais
elevado se pudesse esperar do humano. A propósito de direitos, aliás, importa não perder de vista
que a igualdade jurídica iluminista não nasce da
solidariedade compartilhada, mas da concessão a
todos os cidadãos de direitos que, em princípio,
cada sujeito emancipado reivindica para si mesmo.
Noutras palavras, a concepção iluminista de justiça
tem como base uma antropologia individualista.
Não resta dúvida de que, sem razão crítica, não
é possível emancipação, e sem esta não há como
assegurar a dignidade humana. Isto posto, cabe
indagar se a garantia da liberdade e dos direitos
equivale ao ideal de vida humana ou constitui a
necessária passagem rumo à sua realização. Sendo
este o caso, o imperativo de emancipação estaria
para a humanização, por exemplo, como a saúde
para o esporte, o domínio da língua para a poesia,
ou o respeito para a relação interpessoal. Fincados os marcos da cidadania em firmes alicerces
jurídicos, estabelecidas as regras do jogo social
com base na liberdade e igualdade universal de
direitos, “resta” saber que sentido dar a felicidade,
bem, mal, sexo, amor, amizade, família, morte,
nascimento, valores, afetos, corpo, vício, transcen-
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O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna
dência etc.; resta, inclusive, saber que sentido dar
às próprias liberdade, dignidade e justiça retiradas
de seu enquadramento civil e jurídico, todas essas
questões viscerais para as quais a racionalidade
moderna reserva um tratamento raso ou evasivo,
quando não as relega sumariamente ao campo da
consciência “privada”. Se as fontes hermenêuticas
tradicionais foram interditadas como “irreflexivas”
e “acríticas”, de onde, afinal, haurir lucidez para
dar sentido à vida e à morte?
A esse respeito, é bastante sugestivo que da
velha França revolucionária um filósofo como
Ferry (2007) tenha suscitado, no início deste século, o retorno a certa “espiritualidade laica” de
matriz clássica greco-romana, com o propósito
de enfrentar a crise de sentido da sociedade pós-metafísica a partir de uma perspectiva sapiencial
que a comunidade acadêmica sequer parecia
considerar digna de ser trazida ao debate público.
Ainda mais significativo é que, na mesma França,
nos anos 1970, após haver elaborado uma rigorosa
desconstrução arqueológica da relação entre ciência
e poder, ninguém menos que Foucault enceta uma
guinada sapiencial em pleno reduto estruturalista. Valendo-se de uma releitura nietzschiana de
filósofos helenistas, Foucault (2004) concebe a
ética como estética da existência ou cuidado de si
mesmo, tendo como base a compreensão da vida
como obra de arte trabalhada pelo indivíduo a partir
da vigilância criativa exercida sobre os próprios
afetos e desejos.
Quaisquer que fossem as águas hermenêuticas
aí em jogo, gregas ou outras, o sintomático nesses
casos é, de um lado, a sede de sentido que leva à
retomada de questões quase demitidas do campo
filosófico; e, de outro, a busca de fontes sapienciais
para além da razão crítica, por parte de filósofos
que a manejam com maestria. Fica sugerido por
esses exemplos que, reduzida a si mesma, a racionalidade moderna parece ter pouco a dizer sobre o
enigma humano.
Dono de recursos, sujeito de saberes e direitos,
desvencilhado de laços comunitários, o homem moderno não reconhece qualquer sentido extrínseco
ao seu poder de pensar, produzir e gerir a vida por
si mesmo, vindo a cristalizar-se a percepção de si
como identidade autoconstitutiva e fundamento do
real: penso, logo existo. Em última instância, ser
210
eu é fundar a existência a partir da própria consciência. O ego cogito cartesiano não é, portanto,
senão o correlato filosófico do poder – técnico,
econômico, político e intelectual – que se libera
no homem moderno.
4. Pós-modernidade
Um dos mais significativos paradoxos entranhados na modernidade reside, entretanto, no fato
de que a emancipação do sujeito não se dá sem
que ele mesmo acabe se sujeitando a mecanismos
técnicos, econômicos e políticos que vão além de
sua esfera individual de decisão e dele se apropriam
como instrumento. Nos tempos atuais, consolida-se em nível planetário a expansão do sistema de
acumulação econômica baseado na exploração da
força de trabalho (a que Marx chama mais valia),
articulado ao sistema tecnológico de exploração
dos recursos naturais, sob a pressão de uma avassaladora força de apropriação que tudo submete a
objeto de cálculo, uso e produção, e a que Heidegger (1995) denomina Gestell.
A expansão planetária desse sistema integrado
de acumulação econômica e exploração tecnológica
já não se encontra (se é que algum dia esteve) sob o
controle de nenhum sujeito histórico. Trata-se, antes,
de uma irresistível e ilimitada “mobilização total”
(JÜNGER, 2002) que irrompe do coração da história,
arranca e arrasta instituições seculares e cuja superação não parece sequer concebível, pois somente
a custo se poderia imaginar a possibilidade de uma
civilização futura pós-tecnológica e pós-industrial.
Contrariando uma perspectiva “humanista” que
se estende até o século XIX, ciência (objetividade), técnica (eficácia), economia (produtividade)
e política (planificação estatal) já não são meros
recursos racionais à disposição de desígnios de
emancipação, mas configuram hoje um único
sistema civilizatório científico-técnico-econômico-político, cujo raio de atuação cobre todo o planeta
e põe a seu serviço a sociedade toda de todas as
sociedades. É a consumação da internacionalização
compulsória desse sistema tecnológico-capitalista
que se conhece com o nome de globalização,
preferindo o pensador Milton Santos cunhá-lo
de “globalitarismo” para sublinhar o seu aspecto
totalitário, apontando como fatores de sua consti-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013
Luciano Costa Santos
tuição: a mais-valia globalizada como único motor
da história; a unificação do sistema das técnicas
por intermédio da informática; a sincronização do
tempo mundial mediante técnicas de informática
e comunicação; e a possibilidade de se tomar
conhecimento de todas as sociedades do planeta
(SANTOS, 2001).
Zygmunt Bauman chama “modernidade líquida” ao estágio atual da civilização moderna, para
destacar o caráter fluido, volátil, desse poder global
que não se fixa em parte alguma, invade todos os
espaços e tende a desobstruir o que resiste à sua
livre expansão (BAUMAN, 2001). Tal ação dissolvente não somente contribui para consumar o
desmonte de estruturas tradicionais desconstruídas
pela modernidade, mas atinge os fundamentos de
sólidos marcos institucionais da própria modernidade. Assim, e para citar alguns dos mais representativos, o estado democrático e de direito recebe
uma formatação “neoliberal” light que reduz sua
ingerência em áreas vitais da sociedade; partidos
políticos de fundo ideológico flexibilizam princípios em função de premências fisiológicas; escolas
acomodam programas em vista da competitividade
no mercado de trabalho; e a ciência desliga-se de
ideais humanistas para converter-se em banco de
dados à disposição de demandas mercadológicas
(LYOTARD, 2008).
Na base dessa fragilizada arquitetura institucional legada pelas Luzes, o que se vê atingido é o
modelo de racionalidade que lhe sustenta. Como
se a própria razão moderna tivesse se tornado pesada demais para os fluídicos circuitos dos tempos
atuais. Doravante, a ciência tende a se apossar da
consciência, o cálculo esvazia a reflexão, a funcionalidade absorve o valor e a busca de bem-estar
desloca o ideal de emancipação e outras “grandes
narrativas” modernas (LYOTARD, 2008). Mesmo
a razão crítica, com sua exaustiva exigência de
lucidez, a desconfiar de Deus, do mundo e de si
mesma, torna-se indesejável barreira ao fluxo do
capital simbólico, e dá lugar a uma conveniente
razão cínica, que se dispõe a tocar qualquer questão
uma vez combinado que nenhuma deve ser levada a
sério. Chega-se, assim, à imanência total do sentido
– ou ao totalitarismo do sentido imanente –2, e o
sujeito vem sujeitar-se ao sistema civilizatório que
em suas origens parecia assegurar a sua libertação.
Já não há novo mundo – utópico – a construir, nem
velho mundo a pôr abaixo, apenas uma imensa
vontade de poder, que é de todos e de ninguém, a
pedir passagem.
Tendo em vista a dissolução de paradigmas
modernos em curso, o mencionado Bauman (2001)
e outros autores se referem aos tempos atuais como
“pós-modernidade”, na qual estaria em transe a
passagem para outra ordem civilizatória.
Se na modernidade o sujeito emerge como indivíduo autônomo, em luta contra a opressão e a
privação de direitos, na pós-modernidade encontra-se a reboque de um processo de atomização social
que o isola dos demais e, no espelho da cultura da
imagem, o torna cativo do culto a si mesmo. Eis o
paradoxo: o eu moderno, emancipado, revolucionário, criador, elevado a princípio transcendental
na categoria romântica de gênio, vê-se doravante
hipertrofiado à condição de deus narcísico e, ao
mesmo tempo, reduzido a simulacro de si mesmo.
Se antes havia princípios a defender e causas por
que lutar, agora se move à deriva do que o seduz: a
consciência cede ao desejo, e a razão não tem mais
força que a motivação.
Numa época acostumada a tantos obituários –
“morte de Deus”, “fim da metafísica”, cultura do
“pós-humano” –, já não parece consequente proscrever a perspectiva ontoteológica sem renunciar
às chamadas questões últimas. O reconhecimento
da própria debilidade impõe-se, assim, como gesto
mais radical do pensamento pós-moderno.3 Esvaziado de certezas e princípios, e abandonado aos
próprios desejos, o sujeito oscila entre a segurança
de posições fundamentalistas que lhe deem eixo
em meio à dissolução geral, e a comodidade de
soluções híbridas, à la carte, à medida de suas preferências e no limite de suas conveniências. Nessa
perspectiva, a ética de oportunidade substitui a ética
de princípios, numa flutuação de normas e valores
em função dos interesses de cada um.4
Sem horizonte utópico a que destinar-se, a
cultura pós-moderna leva à saturação sua ingênita
dinâmica de superação. Premida pela ânsia de
novidade, mas impossibilitada de gerar o novo,
2 Para um aprofundamento da categoria de “totalidade”, ver Levinas
([198-?]).
3 Sobre o conceito de “pensamento fraco”, ver Vattimo (1995).
4 Sobre o conceito de “ética de oportunidade”, ver Susin (1996).
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O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna
inventa sucessivos prefixos paroxísticos, como
“supra”, “ultra”, “mega”, “super”, “hiper”, a fim
de bater recordes de rendimento, sem, entretanto,
lograr remediar o estéril vazio de sentido em torno
do qual se agita. Contra as aporias da civilização
pós-moderna e a insuficiência da razão cínica,
sempre restam as exigências da razão crítica, a desconfiar de objetividade, funcionalidade, bem-estar,
qualidade total, otimização e semelhantes relatos
pós-modernos hegemônicos. Como vimos, porém,
se à razão crítica é dado colaborar para “edificar
o deserto”, nem mesmo seus recursos bastam para
fazer jorrar novas fontes.
5. Conclusão: transmodernidade
Diante dos impasses da civilização pós-moderna, há os que – “antimodernos” –vislumbram
a saída na contramão da sociedade tecnológica,
industrial e republicana. Outros, ao contrário –
“modernos” –, como Marx e Freud, apostam às
últimas consequências na possibilidade de que a
própria razão científica ou crítica venha a sanar as
fraturas da civilização moderna e abrir-lhe o futuro.
Outros, por fim – propriamente “pós-modernos”
–, rendem-se à dissolução de instituições e ideais
iluministas, resignam-se à implosão do tempo e
assumem o sistema globalitário como seu reino.
Como toda época da história humana – aliás,
como tudo o que é humano –, a pós-modernidade
traz a ambiguidade em seu coração: se de um lado
exacerba o desenraizamento existencial5 levado a
cabo pelos tempos modernos, de outro contribui
para abrir brechas na rígida ordem institucional
moderna e dilatar a racionalidade que lhe subjaz,
propiciando condições para o advento de um
novo tempo histórico. Assim, do “pensamento
fraco” pode-se abrir caminho ao senso do mistério; do culto narcísico do indivíduo, ao cultivo da
interioridade; do refluxo da normatização à ética
das relações interpessoais; da crise das utopias às
transformações setoriais e locais; do retraimento
do Estado ao protagonismo da sociedade civil, e
assim por diante.
No entanto, para que os desertos pós-modernos
sejam oportunidade de renascimento, é preciso
5 Sobre o conceito de “desenraizamento”, ver Weil (2001).
212
encontrar as fontes pelas quais renascer. Noutras
palavras, é preciso encontrar a arké de um novo
começo civilizatório. Se a contemporaneidade é
o momento atual da história em que coexistem
desdobramentos da modernidade, desconstruções
pós-modernas e novas possibilidades latentes, trata-se de saber que perspectiva de contemporaneidade
está à altura do futuro.
A nosso ver, a perspectiva de contemporaneidade a ser cultivada não é moderna, antimoderna ou
pós-moderna, mas – com licença para o neologismo
– transmoderna, isto é, aquela que não se posiciona
nem em estrita continuidade ao projeto da modernidade nem (muito menos) contra este, mas busca
ligá-lo a núcleos geradores de sentido que, de um
lado, confiram sapiencialidade e responsabilização
ética às suas conquistas científicas, tecnológicas,
econômicas, jurídicas e políticas; e, de outro, atuem
como eixo existencial ante a generalizada dissolução pós-moderna. Não se trata, portanto, de mera
reafirmação ou dissolução da modernidade, mas de
reapropriação desta a partir de fontes alternativas
de sentido que ela ignora e não pode recuperar por
seus próprios recursos.
Principais exemplos desses núcleos sapienciais
são a transcendência ou relação com a gratuidade
do mistério; a alteridade ou não indiferença pela
diferença do Outro; e a tradição ou pertença à
memória de uma comunidade. Reverenciar o mistério, se responsabilizar pelo Outro ou guardar a
memória de um povo são gestos seminais que, por
si mesma, a racionalidade moderna jamais teria
como produzir.
De modo apenas indicativo, e para finalizar,
assim resumiríamos os principais elementos de
uma possível hermenêutica do paradigma transmoderno:
Sentido de emancipação, sem reduzir a esta a
libertação humana;
Composição de liberdade e autoridade;
Sentido de autonomia do sujeito, sem confundi-la com independência;
Composição de autonomia e obediência;
Sentido de progresso, sem reduzir a este o crescimento humano;
Composição de progresso e tradição.
Na base do novo paradigma, subjaz a compreensão de uma racionalidade fecundada pelo sentido
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Luciano Costa Santos
e de uma subjetividade despertada pelo outro. Em
ambos os casos, o humano é visto em tensão para
uma dimensão gratuita – a fonte de sentido ou o outro
– que tanto mais o constitui quanto mais o ultrapassa.
REFERÊNCIAS
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FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Língua de tradição e língua técnica. Lisboa: Vega, 1995.
JÜNGER, Ernst. A mobilização total. Natureza Humana – Revista do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas
Psicoterápicas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, São Paulo, v. 4, n. 1, p.
189-216, jan./jun. 2002.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, [198-?].
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
RICOEUR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
SUSIN, Luiz Carlos. Por uma ética da liberdade e da libertação – panorama das questões éticas hoje In: BEOZZO,
José Oscar (Org.). Por uma ética da liberdade e da libertação. São Paulo: Paulus,1996. p. 13-71.
UNGER, Nancy Mangabeira. Da nascente à foz – o recado do rio. Campinas, SP: Cortez, 2001.
VATTIMO, Gianni. El pensamiento débil. Madrid: Cátedra, 1995.
WEIL, Simone. O enraizamento. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
Recebido em 22.10.2012
Aprovado em 13.01.2013
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ESTUDOS
Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt
A TRANSFORMAÇÃO DO ETHOS NO OESTE
DE SANTA CATARINA1
Anderson Luiz Tedesco*
Paulino Eidt**
Resumo
Este artigo tem como objetivo compreender as transformações societárias decorrentes
da sociedade de consumo e dos demais processos verticalizadores da globalização
no espaço regional do Oeste de Santa Catarina. Trata-se de uma leitura a partir da
constituição histórica do ethos dos povos pré-capitalistas da região e a sua lenta e
gradual mudança, quando da ocupação do território, no início do século XX, pelos
migrantes de descendência europeia. Desta forma, num primeiro momento expressa
os fatores objetivos e subjetivos que constituíram o ethos dos povos pré-capitalistas
e, no final, descreve as transformações decorrentes da incorporação do espaço
regional aos circuitos internacionais da economia por meio da institucionalização
da propriedade privada, implantação de um modelo agroindustrial e do processo de
homogeneização da cultura. Para alcançar os objetivos propostos, realizou-se um
estudo bibliográfico, abordando aspectos filosóficos, históricos e sociológicos, no
que tange a origem do conceito de ethos ocidental e a sua transformação no decorrer
do tempo – estendendo-se até o século XX, embasando-se nessa busca reflexiva no
pensamento dos filósofos Henrique C. de Lima Vaz, Michel Foucault, no historiador
Werner Jaeger e no sociólogo Zygmunt Bauman, entre outros, a fim de compreender
as consequências trazidas com as transformações do ethos no Oeste de Santa Catarina.
Palavras-chave: Ethos. Solidariedade. Ética. Capitalismo.
ABSTRACT
ETHOS TRANSFORMATION IN THE WEST OF SANTA CATARINA
The main purpose of this paper is to understand the societal changes due to the
consumer society and the globalization vertical processes in the west of Santa
Catarina. It brings a reading comprehension of the historical constitution of the ethos
of the pre-capitalist ruling classes in the region and its slow and gradual change at
the time of the occupation of the territory in the early twentieth century by European
migrants. We first show the objective and subjective factors that have constituted the
ethos of the pre-capitalist ruling classes and then we describe the changes that have
1 O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Observatório da Educação, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES/Brasil.
* Licenciado em Filosofia. Especialista em Bioética e Pastoral da Saúde pelo Centro Universitário São Camilo (CUSC). Mestre
em Educação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Atua na área da Filosofia na UNOESC. Endereço para
correspondência: Linha Jaborazinho. CEP: 89677-000 – Jaborá-SC. [email protected]
** Licenciado em História e Geografia. Mestre em Educação nas Ciências (Unijuí- RS). Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UOESC). Endereço
para correspondência: Linha Santa Fé. CEP: 89896-000 – Itapiranga-SC. [email protected]
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A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina
occurred due to the incorporation of the regional economy into the international
circuits through the institutionalization of private property, implementation of an
agro-industrial model and the process of homogenization of culture. In order to
achieve the proposed objectives, we have made a bibliographic study on philosophical,
historical and sociological approaches regarding the origin of the concept of Western
ethos and its transformation over time - throughout the twentieth century. We have
based our study on the philosophers Henrique C. Vaz de Lima and Michel Foucault,
the historian Werner Jaeger and the sociologist Zygmunt Bauman, among others, in
order to understand the consequences brought by the ethos transformation in the west
of Santa Catarina.
Keywords: Ethos. Solidarity. Ethics. Capitalism.
1 Considerações iniciais
Imbuído pelo desejo de compreender a formação do ethos constituído no meio Oeste catarinense,
buscou-se analisar, num primeiro momento, a construção da identidade dos povos pré-capitalistas da
região Oeste de Santa Catarina: Kaingang, Xokleng
e os Tupi-Guarani e, posteriormente, os Bugres e
os Caboclos.
Num Segundo momento, a análise se dá a partir
da ocupação da região por migrantes de descendência europeia e a formação do ethos comunitário
como condição necessária para a sobrevivência
em meio à floresta. Essas “ilhas de ocupação”,
atormentadas e extasiadas com doenças epidêmicas, tiveram de conjugar esforços que, necessariamente, passavam pela solidariedade horizontal. A
solidariedade constituiu uma blindagem contra a
insegurança e a instabilidade e, em última instância,
condição necessária para a sobrevivência do
próprio tecido social. Presos ao mundo natural
e linear, e avessos ao moderno, seus personagens
encontraram um campo privilegiado para práticas
coletivas, solidárias e coesas. Comunidades organizadas na pequena propriedade de subsistência,
utilização da mão de obra familiar e intenso espírito
comunitário com ampliação e aprofundamento de
valores como igualdade e solidariedade. Portanto,
acentuou-se a compreensão de que eram comunidades forjadas em valores de igualdade, solidariedade
e espiritualidade na formação do ethos. Tornando-se oportuno na discussão sobre a formação do
ethos no meio Oeste Catarinense apresentar definições conceituais a respeito das compreensões
históricas acerca do próprio termo ethos.
218
Por fim, a análise se atém ao período mais
recente da região (final do século XX e primeira
década do século XXI), quando o espaço regional é
incorporado aos circuitos internacionais da economia por meio do processo de agroindustrialização.
Surgem novos atores, novas relações e novas interdependências forjadas pelo mundo da mercadoria.
2 A formação do ethos no Oeste catarinense
Desde a formação2 do espírito grego, uma das
primeiras expressões argumentadas por Jaeger
(2010, p. 43) é de que “todos têm algo de humano
e amável; nos seus discursos e experiências domina
o que a retórica posterior apelidou de ethos”. Essa
expressão corroborou a apresentação da essência
humana constituída nas primeiras comunidades do
Oeste Catarinense. Encontrou-se também, na mesma obra clássica, outra constatação do historiador
alemão, quando ele definiu a constituição do ethos
como as raízes mais profundas do ser humano ao
argumentar que o ethos é “um anseio espiritual,
2 Procurou-se esclarecer o conceito de formação utilizado no texto a
partir de um artigo do professor Dr. Antônio Joaquim Severino, intitulado “A busca do sentido da formação humana: tarefa da Filosofia
da Educação”, compreendendo que a palavra formação “significa a
própria humanização do homem, que sempre foi concebido como
um ente que não nasce pronto, que tem necessidade de cuidar de
si mesmo como buscando um estágio de maior humanidade, uma
condição de maior perfeição em seu modo de ser humano. Portanto,
a formação é processo do devir humano como devir humanizador,
mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural, uma
pessoa – é bom lembrar que o sentido dessa categoria envolve um
complexo conjunto de dimensões que o verbo formar tenta expressar: constituir, compor, ordenar, fundar, criar, instruir-se, colocar-se
ao lado de, desenvolver-se, dar-se um ser”(SEVERINO, 2006, p.
621).
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Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt
uma imagem do humano capaz de se tornar uma
obrigação e um dever” (JAEGER, 2010, p. 63).
Portanto, essas constatações colaboraram nas primeiras características da formação do espírito grego
e, claro, séculos mais tarde na formação dos povos
do Oeste Catarinense.
Compreende-se nas palavras de Vaz (2004)
que, para Aristóteles (Ret. I 11, 1370 a 7; Ét. Nic.
VII, 9, 1152 a 31), querer demonstrar a existência
do ethos é, na verdade, se propor a construir um
devaneio mental, porque na formação do espírito
grego, tanto o ethos quanto a physis são considerados as primeiras manifestações do ser. Portanto,
são os primeiros fundamentos que colaboraram na
constituição mais íntima do ser humano, ou seja,
a sua ontologia.
Por conseguinte, se o ethos para os gregos era
compreendido como a própria ontologia, não o
foi diferente para as primeiras comunidades do
Oeste Catarinense, pois elas caracterizavam-se
pelo espírito comunitário, pela igualdade e pela
solidariedade; como diria Vaz (2004, p. 11), pela
“transformação da physis (natureza) através da
práxis (ação humana)”, buscando com isso, nas
palavras de Woloszyn (2005, p. 2), implantar uma
cultura da subsistência com o “cultivo do feijão,
do amendoim, do arroz, sobretudo a mandioca e
o milho tinha lugar de destaque na horticultura
cabocla”, transformando a natureza para garantir
a sobrevivência das comunidades. E o mais significativo desse processo todo de cultivo, seguindo
argumentação da historiadora, é a existência das
“bodegas onde trocavam, nesses pequenos estabelecimentos comerciais, de produtos agrícolas
como o fumo, o milho, o feijão, a erva-mate, etc.
por sal, bebidas, querosene, pólvora, instrumentos
de trabalho etc”.
Percebe-se que essas primeiras comunidades
nativas e caboclas eram organizadas de modo a
relacionar-se bem com a natureza, utilizando-a para
a própria sobrevivência, sem interesse comercial,
mesmo por que nem dinheiro existia, ou seja, construindo impressões de felicidade pela simplicidade
de vida que tinham, nos possibilitando, desse modo,
pensar em mais uma característica do ethos, que
nas palavras de Vaz (2002, p. 118, grifo do autor)
representa:
O ser humano, dotado de razão, o Bem ou fim deve
ter os predicados que possam ser aceitos e justificados pela razão. Sua posse causa no ser racional,
pela mediação da arete ou virtude, o estado de
auto-realização ou auto-satisfação que Aristóteles
designa com o termo eudaimonia3.
Quando designado o ethos como eudaimonia,
ou seja, como felicidade, concebe-se a ideia de comunidades nativas autorrealizadas por viverem na
simplicidade. Com isso acredita-se que ethos seja
o supra summo da ética expressado nas palavras de
Aristóteles, pois ao realizar um estudo etimológico
sobre a origem do termo ethos, descobriu-se que
sua terminologia se divide em dois vocábulos gregos. Segundo Vaz (2004, p. 12) “o ethos encontra-se dividido em um ethos (com eta inicial) e um
ethos (com épsilon inicial)”4. Semelhante análise
etimológica do ethos encontramos no pensamento
de Boff (2000, p. 34): “essa palavra se escreve de
duas formas: com eta, (a letra e em tamanho pequeno) e com epsílon (a letra E em tamanho grande).”
Ora, na primeira definição do ethos (com eta
inicial) sendo a casa do ser humano no pensamento
vaziano, caracterizou-se como a morada do ser:
O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos. Este sentido de um lugar de
estada permanente e habitual, de um abrigo protetor,
constitui a raiz semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema praxeológico
durável, estilo de vida e ação (VAZ, 2004, p. 13).
Por conseguinte, ao comparar o ethos como uma
casa simbólica, possíveis interpretações poderiam
ser inferidas, uma delas é de que essa morada do
ser humano se constrói de forma segura, dando-lhe abrigo e proteção no decorrer da sua existência. Assemelhando-se com o que aconteceu nas
primeiras comunidades nativas que habitaram o
3 Segundo Vaz (2002, p. 118) “o termo eudaimonia costuma ser traduzido na linguagem usual por felicidade, denotando o sentimento
de bem-estar ou auto-satisfação do agente, o que realça seu caráter
contingente e transitório. No sentido original, porém, eudaimonia,
literalmente ‘proteção de um bom daimon’, significa a excelência
ou perfeição resultante no agente da posse do bem ou bens que nele
realizam melhor sua capacidade de ser bom”.
4 Ver em Vaz (2002, p. 13): “na língua filosófica grega, ethike procede
do substantivo ethos, que receberá duas grafias distintas, designando matizes diferentes da mesma realidade: ethos (com eta inical)
designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo
social, ao passo que ethos (com epsilon) refere-se à constância do
comportamento do indivíduo cuja vida é regida pelo ethos-costume.”
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A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina
Oeste de Santa Catarina, transformando a physis
e, como diria Vaz (2004, p. 13), inscrevendo “os
costumes, os hábitos, as normas e os interditos, os
valores e as ações”. Portanto, segundo Vaz (2004,
p. 13), “o ethos não é dado ao ser humano, mas por
ele construído ou incessantemente reconstruído”.
Retomando-se a ideia metafórica do ethos como
a casa espiritual das comunidades nativas, nas
palavras de Woloszyn (2005, p. 3) “a mata virgem
era o lócus espacial de comunidades produtoras
formadas de nativos e caboclos” que contribuíam
na construção e na proteção do simbólico, ou seja,
do mundo da cultura5. Configurando-se essa casa
espiritual como o próprio ethos que nunca está
pronto e acabado propriamente, ou seja, sempre em
construção ou reconstrução, graças a essa constituição do ethos (enquanto casa) que o logos passou a
compreendê-lo e a traduzi-lo como manifestações
culturais distintas que colaboram na gênese ética:
O ethos é a morada do animal e passa a ser a ‘casa’
(oikos) do ser humano, não já a casa material que
lhe proporciona fisicamente abrigo e proteção, mas
a casa simbólica que o acolhe espiritualmente e da
qual irradia a própria casa material uma significação propriamente humana, entretecida por relações
afetivas, éticas e mesmo estéticas, que ultrapassam
suas finalidades puramente utilitárias e a integram
plenamente no plano da cultura. (VAZ, 2002, p. 40,
grifo do autor).
Para contribuir com a definição etimológica do
primeiro ethos (com eta inicial), Boff (2000, p. 34)
esclarece que “o ethos com e pequeno que significa
a morada, o abrigo permanente seja dos animais
(estábulos), seja dos seres humanos (casa)”. Essa
concepção filosófica de Boff sobre o ethos se tra5 Ver na obra de Morin (2007, p. 35): “a Cultura é, repitamos, constituída pelo conjunto de hábitos, costumes, práticas, savoir-faire,
saberes, normas, interditos, estratégias, crenças, idéias, valores,
mitos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se em cada
individuo, gera e regenera a complexidade social. A cultura acumula
o que é conservado, transmitido, apresentado e comporta vários princípios de aquisição e programas de ação. O primeiro capital humano
é a cultura. O ser humano, sem ela, seria um primata do mais baixo
escalão.” Além disso, é importante ver a ideia de cultura simbólica
no pensamente de Cassirer (1994, p. 48): “o homem não pode fugir
à sua própria realização. Não pode senão adotar as condições de
sua própria vida. Não estando mais num universo meramente físico,
o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a
arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que
tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Todo
progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa
rede, e a fortalece.”
220
duz na casa não espiritual construída pelos seres
humanos no âmbito da natureza compreendida
como Gaia (mãe) a Mãe-Natureza (physis), que
passa a ser transformada em cultura. Portanto, para
Boff (2000, p. 35), “esse ethos se traduz, então,
por ética”.
Vale reforçar na argumentação que, tanto no
pensamento de Vaz (2002) quanto em Boff (2000)
articula-se a ideia de uma ciência do ethos, e o
caminho para essa articulação não poderia ser
outro que não o filosófico na busca racional por
compreender essa ciência, ou seja, a de que a ética é a ciência real do ethos. Segundo Vaz (2002,
p. 37), o seu objeto de estudo da ciência ética é
o ethos que se apresenta como “um fenômeno
histórico-cultural dotado de evidência imediata e
impondo-se à experiência do indivíduo tão logo
este alcance a primeira idade da razão”.
Mantendo essa estrutura de ciência do ethos,
a ética passa a refletir sobre uma gama conceitual
no âmbito filosófico como a “vida no bem” (eu
zen), o “agir segundo o bem” (eu prattein) a “vida
melhor” ou “mais feliz” (eudaimonia). Além disso,
na “excelência” ou “virtude” (areté) de nosso agir
e de nosso ser, mas de todas essas categorias, Vaz
(2002, p. 38) aponta-nos que “o ‘bem’ deve ser realizado (agathon=deon), embora não pela coação,
mas pela persuasão”. Logo, percebeu-se que esse
agir segundo o bem era prática comum entre as
comunidades nativas que buscavam ser solidarias
na formação de um ethos intimamente ligado ao
social e ao individual:
O ethos é, inseparavelmente, social e individual. É
uma realidade sócio-histórica. Mas só existe, concretamente, na práxis dos indivíduos; e é essa práxis
que deixa seus traços nos documentos e testemunhos
que nos permitem o acesso à fisionomia própria de
um determinado ethos histórico. (VAZ, 2002, p. 38).
Já o segundo vocábulo do ethos (com épsilon
inicial), segundo Vaz (2004, p. 14), “diz respeito
ao comportamento que resulta de um constante
repetir-se dos mesmos atos”. Foi traduzindo essa
compreensão vaziana de pensar o ethos como a
essência do ser que se chegou aos fundamentos
de toda a constituição do hábito, características
próprias da segunda acepção do ethos. Somando
forças com essa argumentação, encontra-se em
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013
Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt
Boff a compreensão do ethos com E (o épsilon,
em grego):
Ele significa os costumes, vale dizer, o conjunto de
valores e de hábitos consagrados pela tradição cultural de um povo. Ethos como o conjunto dos meios
ordenados ao fim (bem/auto-realização) se traduz
comumente por moral. Moral (mos-mores, em latim)
significa, exatamente, os costumes e valores de uma
determinada cultura (BOFF, 2000, p. 36).
Com essa rememoração etimológica acerca do
conceito ethos, percebeu-se que suas duas acepções
configuraram-se nos vocábulos gregos: um ethos
que caracterizou a essência nas comunidades do
Oeste Catarinense, e um ethos que correspondeu
à constituição dos hábitos dessas comunidades,
sendo impossível sobreviver sem um ethos, como
argumenta Vaz (2002, p. 40): “o ethos é constitutivamente tradicional, pois o ser humano não
conseguiria refazer continuamente sua morada
espiritual.”
Seguindo esse pensamento vaziano, esse ethos
nunca morre, pois se encontra sempre em transformação, correspondendo, na compreensão de Küng
(1990, p. 9), ao “propósito moral6 que designa
frequentemente códigos, costumes e condutas de
indivíduos ou grupos, bem como um aspecto da
natureza humana”. Portanto, mesmo com a vinda
do caboclo7 para a formação social e cultural da
região, não houve tamanhas modificações na cultura de subsistência:
O povo – caboclo luso-brasileiro, na maioria – vivia
em solidão, longe dos recursos que a modernidade
proporcionava às pessoas dos centros maiores. Suas
principais atividades econômicas resumiam-se em
extração da erva-mate, tropeirismo, lavouras de
subsistências, criação de gado bovino e de suínos
e, produção de derivados da pecuária. (THOMÉ,
2007, p. 75).
Por conseguinte, ao ser construído esse ethos no
6 Ver em Vaz (2002, p. 14): “o vocábulo moral, tradução do latim
moralis, apresenta uma evolução semântica análoga à do termo
ético(a). Etimologicamente a raiz de moralis é o substantivo mos
(mores) que corresponde ao grego ethos, mas é dotado de uma
polissemia mais rica, pois seu uso se estende a um amplo campo
de expressões como pode ser verificado nos léxicos latinos.”
7 Ver em Ribeiro (2006, p. 281): “Os protagonistas desses esforços
foram alguns lusitanos, muitos neobrasileiros mestiços, saídos
daquelas primeiras células - Brasil, e a indiada engajada como
mão-de-obra escrava para todas as tarefas pesadas e gasta nesse
duro trabalho.”
Oeste Catarinense, ele jamais morreu nas mãos das
primeiras comunidades que o forjaram no espírito
da solidariedade, da simplicidade, da comunidade
unida em prol da transformação da natureza para
o bem coletivo. Porém, com as adversidades do
tempo e a chegada dos colonizadores, rupturas
culturais passaram a surgir em âmbito cultural,
porque, como diria Vaz (2002, p. 40), “trata-se de
um legado – o mais precioso – que as gerações se
transmitem (tradere, traditio) ao longo do tempo
e mostra, por outro lado, não menos extraordinária
capacidade de assimilação de novos valores e de
adaptação a novas situações”.
3 O espaço natural transformado em
mercadoria: novo ethos
O Oeste de Santa Catarina aparece, na segunda e
terceira décadas do século XX, no cenário nacional
como recorte geográfico e espaço de acolhimento
de diferentes grupos étnicos. Alemães, italianos e
poloneses, descendentes da segunda e terceira gerações de imigrantes que povoaram a encosta inferior
do Rio Grande do Sul e Santa Catarina no século
XIX, foram recrutados por companhias colonizadoras e pela Igreja para reinventar suas tradições
negligenciadas ou eclipsadas nos locais de origem.
Os “vazios demográficos” eram também prescritos
pelo Estado para proteger o território contra incursões estrangeiras. Dessa forma, as novas fronteiras
do Sul do Brasil foram incorporadas para alimentar
a máquina capitalista dos séculos XIX e XX.
A ação pública, por meio da concessão de imensas áreas do território para Companhias Colonizadoras, deliberada ou inadvertidamente contribuiu
para o aniquilamento dos povos imersos na floresta
(índios e caboclos) que possuíam a posse coletiva
da terra. Os silvícolas foram coagidos a conviverem com a “opção legal”, ou seja, as leis grupais
tornaram-se incompatíveis com a estrutura capitalista imposta pelas colonizadoras. Dessa forma,
o processo de titulação da terra tornou concreta a
lógica capitalista na região:
As novas fronteiras foram incorporadas para alimentar a máquina capitalista. Deliberada ou inadvertidamente, não se reconhecia a humanidade dos
que já ocupavam tais territórios. A economia dita
natural (índio e negro) foi substituída pelo mundo
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013
221
A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina
da mercadoria, colocando-os em conformidade com
os padrões que identificam o capitalismo.Por isso, o
processo de colonização anuncia-se preliminarmente
pelo estabelecimento da propriedade privada capitalista da terra onde ela não existe com força, levando
a uma complexificação da troca, fazendo com que se
instale o mundo da mercadoria. O universo pioneiro
encontra-se, desde o início, imbricadamente articulado à reprodução social capitalista. (MARTINS,
1996, p. 129).
Em algumas parcelas do espaço regional, juridicamente devoluto, a Igreja atuou como epicentro
das decisões e ressuscitou experiências utópicas do
passado, formando comunidades orantes, étnica e
confessionalmente iguais. O espaço fechado, em
meio à mata virgem, com a quase total ausência
do Estado, dava ampla liberdade de organização
das colônias. O isolamento e a vida de subsistência
contribuíram para uma forte coesão social.
Toda a organização dos “pioneiros” de origem
europeia gravitava em torno da família e da vivência comunitária. No universo pioneiro, algumas características serviam de andaime e alicerce. Ideais
se cruzavam no espaço da família, na escola e na
vida social. Regras sociais e costumes foram paulatinamente incorporados a partir de mecanismos
de coerção social. Sem parâmetros exógenos, as
instâncias da família, escola, comunidade e religião
transmitiram os valores e os ideais da cultura.
3.1 A vida comunitária: proteção, necessidade ou virtude?
O fracionamento da área colonizada em comunidades criou um profundo sentimento comunitário
e religioso, que foi determinante para a edificação
de estabelecimentos escolares, religiosos e sociais, sustentados por uma rede de associações,
o que encobria a ausência do Estado nas regiões
colonizadas.
A estruturação física e a demarcação das terras das comunidades rurais foram definidas de
maneira a facilitar a integração das famílias. Os
lotes deveriam convergir para um ponto central da
comunidade (onde se expressava de maneira muito
prática a vida em comum). Dessa forma, as pequenas comunidades rurais traziam um envolvimento
de todos pelo controle a partir do centro.
222
O caráter coletivo e comunitário das colonizações do Oeste de Santa Catarina foi condição
necessária para a reprodução da família camponesa.
A visão holística do meio, onde o conjunto e o todo
se encontram ligados inextricavelmente, inscreve-se, em última análise, no modelo estacionário a
que o colonizador foi submetido. Essas “ilhas de
ocupação”, atormentadas e extasiadas com doenças epidêmicas, tiveram de conjugar esforços que,
necessariamente, passavam pela solidariedade horizontal. A solidariedade constituiu uma blindagem
contra a insegurança e a instabilidade e, em última
instância, condição necessária para a sobrevivência
grupal. As comunidades constituíram-se numa célula fechada e harmônica. As contradições, injustiças e arbitrariedades eram quase sempre suprimidas
pela identidade social e coletiva. Bauman (2003,
p. 8), ao se referir à força comunitária, enfatiza:
Numa comunidade, todos nos entendemos bem,
podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos
desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca
somos estranhos entre nós. Podemos discutir – mas
são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais
agradável do que até aqui e, embora levados pela
mesma vontade de melhorar nossa vida em comum,
podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca
desejamos má sorte uns aos outros, e podemos estar
certos de que os outros à nossa volta nos querem
bem .
Presos ao mundo natural e linear, avessos ao
moderno, seus personagens encontraram um campo privilegiado para práticas coletivas, solidárias
e coesas. Numa região, pensada e criada a partir
do epicentro religioso, a compartimentação horizontal refazia-se, continuamente, por meio de um
permanente debate interno. Princípios uniformes
e intocáveis coordenavam as ações individuais e
coletivas. A intolerância era total para tudo o que
pudesse despertar a desconfiança e a indisposição
da comunidade. Nas comunidades, líderes tinham
a função de registrar, diferenciar e comparar. Esses
grupos eram investidos de poder, davam vida ao
panóptico comunitário.
No coletivo, a população buscava o sentido para a
vida local. Um cotidiano compartido e complementar,
embora conflitivo e hierárquico, constituiu a garantia
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Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt
de sobrevivência. Mutirões comunitários para edificar obras públicas e ajudar famílias desestabilizadas
envolviam a todos: “trata-se acima de tudo de um
ato de solidariedade”, afirma Candido (2003, p. 89).
Morin (2003, p. 124) enfatiza que “A fraternidade solda a comunidade”. O verdadeiro “mosaico
cultural” que se instalou na região, pautado na
homogeneidade étnica (alemães, italianos e poloneses), produziu espécies de “ilhas europeias” em
meio à mata densa e fechada. Um espaço natural,
recortado e afastado do mundo moderno da época. As famílias se fecham ao moderno e abrem as
portas para a natureza. O arcabouço das relações
próprias de cada uma das colônias, com o mínimo
de intercâmbio externo, exigia cooperação entre
as famílias. Os mutirões suprimiam as limitações
individuais. A máxima das sociedades arcaicas “dar
é receber” assume aqui todo o seu significado. A
exemplo dos Parceiros do Rio Bonito, de Antonio
Candido, também nas colonizações organizadas
a obrigação moral do beneficiário em atender aos
chamados eventuais dos que o auxiliaram perpetuou essa forma de solidariedade:
A necessidade de ajuda imposta pela técnica agrícola e a sua retribuição automática determinava a
formação duma rede ampla de relações, ligando uns
aos outros os habitantes do grupo de vizinhança e
contribuindo para a unidade estrutural e funcional.
(CANDIDO, 2003, p. 89).
O isolamento da região provocou condicionamentos adaptativos. Uma multiplicidade de técnicas locais, geradas espontaneamente, movia os
“pioneiros”. Todas as famílias eram potencialmente
produtoras de alimentos, objetos de trabalho, roupas, calçados, móveis e outros. A necessidade fez
aflorar a criatividade das pessoas. Inventaram-se
moinhos, prensas, rodas d´água, instrumentos de
trabalho, cachaça, vinho, cerveja. Em cada família se gestava um cientista natural, um mecânico,
um construtor, um sapateiro, uma costureira, um
farmacêutico, uma parteira... “Na aurora dos tempos históricos, o homem dependia diretamente do
espaço circundante para a reprodução de sua vida.
Era necessário conhecer seus segredos para sobreviver”, afirmava Santos (2003, p.23).
O isolamento da região originou um refluxo da
circulação da moeda pelo mercado de escambo.
Em consequência, trocas sem a mediação da moeda
eram práticas comuns entre todas as famílias. Famílias desestabilizadas por doenças ou catástrofes
eram socorridas, tendo em vista o caráter funcionalista da comunidade. Patologias eram resolvidas
com intuito de restituir o membro ao corpo social
único. A formação coletiva exige um jogo de obrigações e trocas:
A hospitalidade é um sustentáculo do laço social. O
laço social é concebido segundo a forma de reciprocidade: o hóspede é tanto aquele que recebe como
o que é recebido. E cada um deles pode se tornar
estrangeiro. A hospitalidade assegura a possibilidade
de viajar, de encontrar o outro em geral. Pela hospitalidade, aquele que é separado, diferente, estranho,
é acolhido, integrado, incluído em uma comunidade.
A hospitalidade consiste em atar o indivíduo ao coletivo. Contrapõe-se inteiramente ao ato de exclusão.
(LÉVY, 1998, p. 37).
As pequenas comunidades são locais centrípetos, na versão de Antonio Candido (2003), de
vida social e cultural mais rica, favorecendo a
convergência de pessoas em atividades comuns.
Esparsos em grupos ralos e disseminados por uma
extensão imensa, o projeto comunitário, com sua
força religiosa, foi um fator de sociabilidade e de
sobrevivência do próprio grupo.
3.2 Globalização, verticalização e rompimento do ethos historicamente construído
A dinâmica socioeconômica que se estabeleceu
desde o início da colonização da região Oeste de
Santa Catarina caracterizou-se pela predominância
da família como unidade organizadora do processo
produtivo e do trabalho. Nesse modelo, predomina
a propriedade direta dos instrumentos de trabalho
por parte de quem trabalha. O que se obtém é fruto da jornada de trabalho gratuito da família, que
executa praticamente todas as operações relativas
à produção (seleção de sementes, plantio, colheita,
estocagem, transporte...). Fatores como a falta de
mercado, famílias numerosas, meios de transportes
e comunicações rudimentares, terras montanhosas,
além do transplante do modelo de propriedade das
regiões de origem, fizeram com que se pautasse
a colonização em cima da propriedade familiar e
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013
223
A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina
da produção de subsistência. Os recursos naturais
da região viabilizaram um modelo de desenvolvimento econômico de reduzida orientação para
o mercado.
A modernização, introduzida em toda a região
Oeste de Santa Catarina a partir da década de 1970,
transformou o “espaço natural” e rompeu com a
sociabilidade tradicional, integrando a região aos
circuitos internacionais da economia. À medida
que o espaço regional tornou-se mais aberto e
interdependente, as mudanças aconteceram de
forma muito rápida. O desenvolvimento dos meios
de comunicação e transportes, a interação com
outros espaços, a preocupação do Estado e, ainda,
o fascínio do capital (agroindústrias) pela região na
qual pudesse espalhar seus interesses implantaram a
denominada modernidade tecnológica. A interação
cultural e econômica transformou o espaço fechado. A entrada mais agressiva do capitalismo rompeu
com os laços de solidariedade que soldavam, até
então, o tecido social.
As grandes agroindústrias (leite, aves e suínos)
colocam-se como centrais irradiadoras da modernidade da região e implantam relações verticalizadas
no campo. Para o capital, houve e há uma dualidade
clara na região: de um lado, os empreendedores
do movimento, da fluidez, da oxigenação, da
instabilidade, da racionalização; de outro lado,
os considerados como inadequados aos padrões
de produtividade e competitividade. Aqueles da
vida linear e da lentidão. Pessoas só adaptadas às
oscilações sazonais do tempo e sintonizadas com
o “circuito inferior da economia”.
As empresas hegemônicas, além da modernização das atividades agrícolas, redirecionaram
drasticamente a forma de vida de suas populações.
Agem sobre uma parcela do território e governam
por metas. As metas e os prêmios contagiam, classificam, excluem, humilham e criam o espetáculo
da denúncia. A eficácia produtiva é instrumento
inibidor de resistências e criador de docilidades.
A competitividade destroçou antigas solidariedades horizontais e implantou a verticalidade.
“Nexos verticais se superpõem à compartimentação
horizontal, característica da história humana até
data recente” (SANTOS, 2001, p. 84). Essas empresas, a partir do seu epicentro de atuação, mudam
224
as formas de ser e de agir. Quebram resistências,
fidelidades, sequestram autonomias, potencializam
vocações e impõem velocidades.
Os filhos dos antigos camponeses são agora
operários das agroindústrias, nas quais são, igualmente, enquadrados. No espaço fechado e recortado da empresa, o poder é exercido pela coerção.
Os dispositivos disciplinares vão desde a ameaça
de demissão à cobrança dos que o circundam. “A
pirâmide disciplinar constitui a pequena célula do
poder no interior da qual a separação, a coordenação e o controle das tarefas foram impostas e
tornaram-se eficazes”(FOUCAULT, 1992, p. 173).
Dessa forma, a rede assimétrica de poderes sustenta
um poder central (chefe da empresa) que, por sua
vez, mantém a multidão de operários compactados
e vigiados. O senso de honra alimentado pelo operário, aliado à vergonha e ao embaraço, o tornam
um ser altamente disciplinado e previsível.
O operário, posto ao ritmo da máquina, é
forçado a uma disciplina de trabalho. A partir de
Foucault (1988) é possível traçar um diagrama disciplinar que cabe no debate anterior; existe, para os
operários, um mecanismo de organização do espaço
(perfilação), controle do tempo (produção máxima
no mínimo de tempo), vigilância (observação de
um pelo outro e, consequentemente, de todos por
todos) e, por fim, o registro contínuo do conhecimento (que se constitui num mapeamento completo
de cada um e de suas potencialidades). Aos colonos remanescentes, agora denominados empresários rurais, resta a obediência às regras
da racionalidade e a adaptação ao mercado global.
Enfim, no espaço rural introduziu-se um processo
de produção que cumpre a estrita obediência aos
mandamentos científicos e técnicos, enquanto no
espaço urbano a hegemonia das empresas estabelece suas relações. É o enquadramento, o assujeitamento e a racionalidade atropelando a diversidade,
a pluralidade e a autodeterminação.
Os hábitos, normas, conduta e comportamento
são ditados pelas empresas hegemônicas e pela
sociedade de consumo, e antigos valores são vistos
com estranheza pelos mais jovens. O abrandamento
dos costumes, o desprendimento da vida comunitária, o excesso de desregramento e a multiplicidade
de religiões constituíram-se em uma desordem
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013
Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt
aos olhos dos mais velhos. A diversidade, para os
velhos, transformou o lugar onde tiveram laços de
cultura, memória e afetividade no que Augé (1994)
denomina de não-lugar.
As gerações mais jovens cortaram do presente
o passado, e grande parte deles considera inútil o
que os mais velhos sempre tiveram como certezas.
Nesse sentido, a preocupação demasiada dos homens com o curso de sua própria vida os despojou
daquilo que sempre foi elementar para os velhos:
o conhecimento da natureza e de seus enigmas.
Consequentemente, o meticuloso trabalho de décadas em constituir uma unidade de sentimentos e
fidelidades foi desarraigado. A individualidade e a
corrida tecnológica solaparam os preceitos morais
e éticos que, de certa forma, guiaram as populações hoje envelhecidas. Estas, hoje, se encontram
na encruzilhada da vida, com sua temporalidade
estilhaçada e as referências sem suporte.
4 A desordem das lógicas exógenas: o
moderno avança
A modernidade opera com fissuras e rupturas
e está em contínua desordem. Tudo é apreendido
sob o aspecto do “movimento”. “A modernidade
é a impossibilidade de permanecer fixo [...], despedaça a rocha a qual repousa a segurança da vida
diária”, afirmou Bauman (1998, p. 19). Ela exige a
adequação ao proposto. Há necessidade contínua de
dominar o estranho e perseguir o novo. As certezas
se dissipam a cada momento e a insegurança é a
tônica diária que persegue seus protagonistas.
Para Balandier (1997), o movimento desfaz a
ordem e produz incessantemente o desconhecido
e o novo. O homem preocupa-se em demasia com
o curso da vida e abdica da tolerância e da solidariedade. Para o homem moderno, as ações coletivas
deixaram de existir e o coletivo foi transferido para
o individualismo. É como afirma Bauman (1998, p.
92): “A modernidade não retarda o contentamento,
mas impossibilita de alcançá-lo. Todos são nômades e depois de cada curva surgem novas curvas e
ninguém consegue se fixar. [...] A pegada de ontem
deve ser negada e apagada”.
A modernidade criou um abismo entre o presente e o passado. Em toda região Oeste de Santa
Catarina, idiomas estão sendo extintos, fidelidades
negligenciadas, medicina natural completamente
solapada e experiências camponesas ridicularizadas. Os velhos cansaram e perderam o poder e estão
sendo substituídos por gerações da obsolescência,
da contingência, da habitação de mundo e do outro.
O mundo técnico-científico rompeu com o homem natural e sua sabedoria. Sabedoria que nasceu
por meio de um exercício de bricolagem, da interação e da necessidade. Processos técno-biológicos
implantam um meio artificial de produtividade,
rapidez e fluidez. Não há qualquer solda entre
povos indígenas, o camponês antigo e o moderno
que se desenha.
5 Considerações finais
Ao longo deste ensaio teórico se discorreu a
respeito da formação dos povos nativos do Oeste de
Santa Catarina, pontuando-se que entre eles eram
construídas ações de solidariedade, fraternidade
e, sobretudo, de ajuda mútua na disseminação dos
saberes em prol da transformação da natureza (physis) para a própria sobrevivência das comunidades.
Portanto, esse modo de ser constituiu-se o próprio
ethos dos nativos daquela época.
No entanto, como o ethos é constituído no espaço e tempo e, por conseguinte, passa por transformações, com a chegada dos migrantes a cultura
nativa sofreu um forte impacto, caracterizando-se
como de ordem ontológica, pois causou uma ruptura na cultura de subsistência a fim de implantar uma
cultura mercantilista, ou seja, de transformação da
natureza em lucro e não mais de apropriação dela,
como a mãe natureza (Gaia) que protege e cuida
fornecendo os alimentos para a sobrevivência da
comunidade.
Com a chegada dos migrantes de origem
europeia, que já haviam vivenciado a ascensão
capitalista na Europa, o ethos oestino tomou outra
forma. Dado o isolamento da região, uma trama de
relações se entrelaçaram e se sustentaram no espaço
ocupado. A solidariedade foi condição necessária
para a sobrevivências desses migrantes. Os novos
protagonistas, invariavelmente, empreenderam
uma peregrinação para a formação de comunidades
abnegadas, humildes e altruístas. E, para atingir
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013
225
A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina
tal intuito, tiveram que modelar a vida social, o
amor, o trabalho e o lazer pelo coletivo. Houve
poucos pontos de oposição, conflito e contradição
no interior da colonização.
Por sua vez, a partir da década de 1970, as
políticas públicas no espaço agrário, o avanço dos
meios de comunicação e de transportes desagregou,
de múltiplas maneiras, algumas explicitamente brutais, o padrão cultural e social deveras homogêneo.
A funcionalidade do modelo de desenvolvimento
que o capital desenhou para a região demoliu as
bases de uma sociedade, até então, bastante virtuosa
e horizontal.
A ascensão do poder econômico alterou o ethos
da região e uma nova correlação de forças se estabeleceu. Mais excludente? Mais verticalizada?
Mais danosa à mãe terra? Mais solidária?
Edgar Morin (2003, p. 224) preconiza: “A
História desafia qualquer predição. Seu devir é
aleatório, sua aventura sempre foi, sem que se
saiba, mas agora deveria saber, uma aventura
desconhecida.”
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Recebido em 30.05.2012
Aprovado em 23.11.2012
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Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE CONCEITOS
NA PERSPECTIVA VIGOTSKIANA
Cristiane Regina Xavier Fonseca–Janes*
Elieuza Aparecida de Lima**
RESUMO
Em seus trabalhos sobre o conhecimento humano, Vigotski revela a segunda
natureza humana, aquela de cunho histórico-cultural, decorrente de aprendizagens
que cada pessoa realiza no decurso de sua vida, por meio da mediação do outro e de
condições concretas de vida e de educação. Nesse processo eminentemente social,
a criança penetra na vida intelectual da geração adulta e se apropria de capacidades
especificamente humanas. Isso significa que, para se trabalhar no plano abstrato,
são necessárias formulações de conceitos, entendidos como um ato complexo,
dinâmico e interfuncional, construídos por meio da atuação e inserção do indivíduo
na cultura, mediado pelas relações com as outras pessoas. Nesse meio, o indivíduo
recebe conhecimentos por meio de aprendizados formais e não-formais promotores
de subsídios para construção dos conceitos científicos e cotidianos. Para realizar seus
estudos sobre o processo de formação de conceitos, Vigotski utilizou um método
experimental pautado nos pressupostos filosóficos da teoria marxista do funcionamento
dos processos mentais, porque percebia estes processos como em constante mudança
e movimento. Assim, o método denominado “Instrumental Cultural e Histórico”
diferenciava-se dos estudos experimentais convencionais centrados no desempenho
da tarefa em si. O método utilizado por Vigotski preocupava-se com o processo de
formação de conceitos e não apenas com recortes estáticos dos processos cognitivos.
Depreendemos, em nosso estudo, a constituição da natureza social do homem a partir
de processos de apropriação e objetivação de conhecimentos, que torna individuais
as conquistas historicamente construídas pela humanidade, dentre as quais tipos
sofisticados de pensamento, o que requer discutir a formação de conceitos.
Palavras-chave: Vigotski. Epistemologia. Formação de conceitos. Ontogênese.
ABSTRACT
THE PROCESS OF FORMATION OF CONCEPTS IN A VYGOTSKYAN
PERSPECTIVE
In his work on human knowledge, Vygotsky reveals the second human nature, the one
* Pesquisadora e pós-doutoranda pelo Grupo de Pesquisa: Diferença, Desvio e Estigma. Doutora em Educação. Mestre em
Filosofia. Pedagoga pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. [email protected]; [email protected]
** Docente do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências,
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus de Marília. Doutora em Educação. Mestre em
Educação. Pedagoga pela Unesp. Membro dos grupos de Pesquisa “Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural”;
“GP FORME – Formação do Educador”e “Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil” [email protected]; elieuza@
marilia.unesp.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
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A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual
which is historical and cultural, due to people´s learning throughout life, through the
mediation of others and the concrete conditions of life and education. In this eminently
social process, the child grows into the intellectual life having the adult as a peer and
learns human skills from this adult-child interaction. This means that, for working
with abstract formulation, it is necessary understanding it as a complex, dynamic and
functional act that is built by the insertion of individual performance into culture that is
mediated by interaction with others. In this setting, each individual reaches knowledge
through formal and non-formal learning that help on the formulation of scientific and
everyday concepts. To make studies on the process of concept formation, Vygotsky
adopted an experimental methodology based on the philosophical assumptions of
Marxist theory of how mental processes occur, once he perceived these processes in
a constantly changing and moving. Thus, the method called “Instrumental, Cultural
and Historical” differed from conventional experimental studies focused on the
performance of the task itself. The method adopted by Vygotsky was concerned with
the process of concept formation and not only with fragmentary cutouts of cognitive
processes. According to our study, the formation of the social nature of man develops
from processes of appropriation and objectification of knowledge, which makes
individual the historically constructed achievements by mankind, as, for example,
types of sophisticated thinking, which requires the discussion of concept formation.
Keywords: Vygotsky. Epistemology. Concept formation. Ontogenesis
Introdução
Neste texto, enfatizamos questões sobre a
natureza cultural do homem, ressaltando o papel
essencial que as condições de vida e educação
têm no desenvolvimento humano. De modo geral,
assinalamos os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural,1 conhecida no Brasil como Escola de
Vigotski, 2 cujas proposições fundamentam as
reflexões propostas neste artigo.
A partir de 1920, fundamentados na concepção
materialista-dialética do desenvolvimento humano,
pesquisadores russos buscaram reestruturar a Psicologia com base no ideário da filosofia marxista,
com a perspectiva de superar o subjetivismo, o determinismo e o fenomenalismo presentes na ciência
psicológica, e de romper os limites do mecanicismo
que descaracterizava a constituição da inteligência
e da personalidade do homem.
1 Na pesquisa de Lima (2001, p. 13), localizamos o seguinte destaque:
“no decorrer do trabalho, utilizaremos o termo Escola de Vigotski,
apontando como Teoria Histórico-Cultural o conjunto de estudos
realizados por Vigotski, colaboradores e discípulos [...]”
2Em razão dos diversos modos de grafar o nome do estudioso
russo Lev Semenovich Vigotski: Vigotsky, Vygotsky, Vygotski,
Vigotskii, Vigotski, dentre outras, neste trabalho, a forma usual será
VIGOTSKI, salvo as referências bibliográficas, que terão a escrita
do texto original.
230
Os estudos de Talízina (1988, p. 16) indicam
que esse mecanicismo revelava-se pela negação
“[...] do caráter específico do psíquico, que levava
à liquidação da psicologia como ciência”. E o
primeiro passo importante nessa direção foi dado
por L. S. Vigotski, que, já em seus trabalhos iniciais, mostrou que o defeito fundamental tanto da
psicologia subjetivo-idealista como da reflexologia
consiste na separação da psique da conduta, o qual
conduz inevitavelmente ao mecanicismo na análise da conduta e, de fato, a este mesmo idealismo
subjetivo na compreensão da psique.
Os estudos de Lima (2001) sintetizam que,
já naquele momento, os trabalhos de Vigotski
revelaram que a psique é formada por meio da
vida concreta do homem, condicionada, pois,
pelas relações sociais. Nessa perspectiva teórica,
a psique não existe sem a conduta, isto é, o modo
de agir do homem, e a conduta tampouco existe
sem a psique (TALÍZINA, 1988). Em outras
palavras, no processo dialético em que o homem
se humaniza, o desenvolvimento das capacidades
psíquicas possibilita-lhe o domínio da conduta e,
assim, redimensiona a direção da ação humana
mediante novos modos de ação e compreensão
da realidade objetiva.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
Nessa direção, é possível destacar que a teoria
vigotskiana apresenta o princípio da unidade do
psiquismo e da atividade humana. Esse princípio
constituiu a base fundamental dos estudos elaborados pela Escola de Vigotski. Nas bases filosóficas
marxistas, Vigotski encontrou os fundamentos
para desenvolver uma reflexão sobre o desenvolvimento dos processos psíquicos superiores: as
leis culturais, históricas e sociais influenciando
decisivamente a constituição dos processos superiores especificamente humanos. Analisou como a
natureza biológica humana (o processo de maturação) entrelaça-se e relaciona-se com os processos
culturais que condicionarão o desenvolvimento do
psiquismo humano. A análise dos fatores internos e
externos envolvidos no processo de humanização
do homem caracterizou-se como determinante para
a compreensão do desenvolvimento das capacidades psíquicas humanas.3
Conforme já ressaltado por Lima (2001), esse
modo de estudo denominou-se Método Instrumental Cultural e Histórico. De acordo com a autora:
[...] Instrumental, referindo-se à natureza mediada
das funções psicológicas superiores através de objetos e signos – os estímulos auxiliares; Cultural,
por envolver meios sociais e instrumentos mentais e
físicos como fatores sem os quais não há desenvolvimento das funções psíquicas superiores; e Histórico
– visto que os instrumentos criados pelos homens
carregam significados e conceitos generalizados,
fonte de todo o desenvolvimento superior humano.
(LIMA, 2001, p. 15).4
No processo de desenvolvimento infantil, com
base em estudos focados na Escola de Vigotski, o
adulto e outros parceiros mais experientes tornam-se mediadores e criadores de mediações entre a
criança e o conhecimento a ser apropriado. Nessa
corrente teórica é possível notar que a constante
presença e mediação da geração adulta, seja por
3“É importante esclarecer que a humanização do homem é uma
tendência, ou seja, é uma possibilidade no processo de formação
humana, isso porque, existem categorias que elevam o homem a
esse patamar, englobando o trabalho, a socialidade, a consciência,
a universalidade e a liberdade e exigindo a superação das condições
sociais alienadoras que não permitem ao homem a apropriação das
máximas possibilidades humanas” (LIMA, 2001, p. 15).
4 “Estímulo auxiliar pode ser designado como um meio externo com
auxílio do qual o indivíduo atua. Sob essa designação estão os
termos: estímulo-meio (p. 56, 57); estímulo exterior (p. 56 e 128);
e estímulo [catalisador] (p. 76 e 77)” (LIMA, 2001, p. 15).
meio da figura do adulto, seja por meio do próprio
conhecimento acumulado por gerações, possibilita
que os processos psicológicos desenvolvam-se
desde os primeiros dias de vida. As crianças, ao
apropriarem-se e objetivarem conhecimentos,
atribuem sentidos a eles. Ao longo de seu desenvolvimento cultural, essas objetivações poderão
ser cada vez mais objetivas e próximas do conhecimento científico.
Essa breve retomada acerca de alguns dos fundamentos do pensamento de Vigotski é necessária
para reflexões a respeito de questões pertinentes ao
processo de formação de conceitos na perspectiva
desse estudioso russo.
Formação de conceitos: a perspectiva
de Vigotski
A Teoria Histórico-Cultural – também conhecida como Escola Soviética de Psicologia, em sua
vertente histórico-cultural –, ou Escola de Vigotski,
tem no pensamento de Vigotski e de seus colaboradores seu aporte epistemológico. Alguns dos
estudiosos dessa escola conviveram e trabalharam
com Vigotski no início do século XX, outros são
discípulos que, atualmente, em pleno século XXI,
continuam as investigações acerca do desenvolvimento do psiquismo humano. Dentre os estudiosos
dessa escola estão nomes notáveis como Leontiev
(1978, 1988), Luria (1982), Elkonin (1987), Talízina (1988), Bozhóvich (1987), Davydov (1995). O
legado dessa corrente histórico-cultural de produção do conhecimento traz análises relevantes sobre
a natureza social humana, sobre o desenvolvimento
cultural da consciência e da conduta humanas
e contribui para repensarmos a Educação, com
apontamento de teses que norteiam a reflexão de
uma práxis pedagógica preocupada com a educação
das formas superiores de conduta, considerando
as máximas possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento cultural do homem (LIMA, 2001).
Esse aporte teórico ressalta que o desenvolvimento da inteligência, da personalidade, das
emoções, da consciência e do relacionamento da
criança, do adolescente ou do adulto com outras
pessoas – o desenvolvimento de capacidades especificamente humanas – acontece no processo
da vida social do sujeito, por meio da atividade,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
231
A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual
a partir das condições de vida e em processos de
educação e comunicação. Nessa perspectiva, o
desenvolvimento cultural constitui-se na atividade
humana mediada pelas relações e pelas objetivações humanas social e historicamente produzidas
(LIMA, 2001).
Dessas ideias decorre a tese segundo a qual a natureza humana é social. O homem torna-se homem
durante sua vida no seio sociocultural. Cada pessoa
não nasce pronta e acabada. As características humanas são externas a ela no nascimento. Com base
em sua atividade e da sua vivência em sociedade,
mediante processos de educação e comunicação,
o homem humaniza-se, apropria-se da experiência
social, transformando-a em sua própria experiência individual (LIMA, 2001). Além da herança
congênita, biológica, e da experiência individual
estruturada sobre essa herança biológica, o homem,
diferentemente dos animais, assimila a prática
histórica e social, a experiência humana construída e acumulada. De acordo com Leontiev (1988),
trata-se de processo de desenvolvimento individual,
único e particular, típico por seus mecanismos
de apropriação e objetivação, e qualitativamente
distinto dos processos de adaptação; cada pessoa
forma suas aptidões e capacidades humanas.
Já no início do século XX, na Rússia, Vygotsky
(1998) argumentava, dentre outras defesas, a respeito de estudos sobre a formação de conceitos, os
quais não possuíam um método experimental que
propiciasse observar a dinâmica interna ocorrida
nesse processo. Para entendermos a argumentação
de Vigotski, se faz necessário uma explanação
sobre os métodos tradicionais que existiam até o
momento de sua pesquisa.5 Segundo o autor, os
métodos tradicionais se dividem em dois grupos,
a saber: 1) método por definição e 2) método por
abstração.
No primeiro grupo, investiga-se a definição dos
conteúdos verbais já formados na criança. Para
o autor, esse método não possibilita um estudo
aprofundado da formação de conceitos, por lidar
com o produto acabado e não com o ínterim que
ocorre no processo; centra-se ainda na palavra,
5 Salientamos que não desconhecemos as inúmeras pesquisas do século XXI realizadas, principalmente, nas neurociências, na psicologia
e nas ciências cognitivas sobre a formação de conceitos. Entretanto,
optamos por manter as análises de Vigotski, uma vez que muitas
dessas pesquisas se baseiam nos estudos deste autor.
232
não levando em conta a percepção e a elaboração
processual do material sensorial que origina um
conceito. Esse método não explora a relação entre
o conceito e a realidade.
No método por abstração, investigam-se os processos psíquicos que levam à formação de conceitos. De acordo Vygotsky (1998, p. 66), esse método
não analisa a complexidade do processo, uma vez
que faz recortes parciais dele, negligenciando “o
papel desempenhado pelo símbolo (a palavra) na
formação de conceitos”.
Segundo o autor, esses métodos por definição
ou por abstração não fazem a correlação exigida
no processo de formação de conceitos, ou seja,
separam “a palavra do material perceptual e operam
ora com um ora com outro”6 (VYGOTSKY, 1962,
p. 53, tradução nossa).
Para Vygotsky (1998), houve um significativo
avanço nos estudos sobre a formação de conceitos,
a partir das pesquisas e elaborações teóricas de
Ach e Ritmat. Ambos tentaram relacionar os dois
métodos tradicionais anteriores e propuseram um
método que se centrava nas “condições funcionais
da formação de conceitos” (VYGOTSKY, 1998, p.
67). Nesse método, a formação de conceitos não
é um processo mecânico, mas um processo criativo. Um conceito, nessa perspectiva, não é algo
isolado, fossilizado e imutável, mas um processo
cognitivo dinâmico a serviço da comunicação,
do entendimento e da resolução de problemas. O
único equívoco desse método, na compreensão de
Vygotsky (1998, p. 70), é o de direcioná-lo a uma
visão teleológica do processo, com uma tendência
ao determinismo, ou seja, esses estudos resumem-se “na afirmação de que o próprio objetivo cria a
atividade adequada, por meio da tendência determinante – isto é, que o problema traz em si a sua
própria solução”.
Pautado nessas considerações, para a investigação do processo de formação de conceitos,
Vygotsky (1998) utiliza um método que relaciona
os dois métodos tradicionais supracitados, sem
cair em uma tendência ao determinismo. O método
dupla estimulação7 foi desenvolvido pelo seu colaborador L. S. Sakaharov, e consiste em:
6Na versão original: “the word from the perceptual material and
operates with one or the other”.
7 Optamos por manter a descrição do método na íntegra, para evitar
possíveis equívocos.
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Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
[...] 22 blocos de madeira, de cores, formas, alturas e
larguras diferentes. Existiam cinco cores diferentes,
seis formas diferentes, duas alturas (os blocos altos
e os baixos) e duas larguras da superfície horizontal
(larga e estreita). Na face inferior de cada bloco, que
não é vista pelo sujeito observado, está escrita uma
das quatro palavras sem sentido: lag, bik, mur, cev.
Sem considerar a cor ou a forma, lag está escrita em
todos os blocos altos e largos, bik em todos os blocos
baixos e largos, mur nos blocos altos e estreitos, e
cev nos blocos baixos e estreitos. No início do experimento todos os blocos, bem misturados quanto
às cores, tamanhos e formas, estão espalhados sobre
uma mesa à frente do sujeito [...] O examinador vira
um dos blocos, mostra-o e lê seu nome para o sujeito
e pede a ele que pegue todos os blocos que pareçam
ser do mesmo tipo. Após o sujeito ter feito isso [...]
o examinador vira um dos blocos ‘erradamente’
selecionados, mostra que aquele bloco é de um tipo
diferente e incentiva o sujeito a continuar tentando.
Depois de cada nova tentativa, outro dos blocos erradamente retirados é virado. À medida que o número
de blocos virados aumenta, o sujeito gradualmente
adquire uma base para descobrir a que características dos blocos as palavras sem sentidos se referem.
Assim que faz essa descoberta, as [...] palavras [...]
passam a referir-se a tipos definidos de objetos (por
exemplo, lag para os blocos [altos] e largos, bik para
baixos e largos),e assim são criados novos conceitos
para os quais a linguagem [língua] não dá nomes. O
sujeito é então capaz de completar a tarefa de separar
os quatro tipos de blocos indicados pelas palavras
sem sentidos. Dessa forma, o uso de conceitos tem
um valor funcional definido para o desempenho
exigido por este teste. Se o sujeito realmente usa o
pensamento conceitual ao tentar resolver o problema [...] é o que se pode deduzir a partir da natureza
dos grupos que ele constrói e de seu procedimento
ao construí-los: praticamente cada passo de seu raciocínio reflete-se na sua manipulação dos blocos.
A primeira abordagem do problema, o manuseio
da mostra, a resposta à correção, a descoberta da
solução – todos esses estágios do experimento fornecem dados que podem servir de indicadores do
nível de raciocínio do sujeito. (VYGOTSKY, 1998,
p. 70-71, grifos nossos).
De acordo com Vygotsky (1998), no método de
dupla estimulação, o problema da tarefa é mostrado
ao indivíduo desde o início da realização da tarefa
e permanece até o seu final, sendo as chaves para
solução do problema introduzidas paulatinamente.
Isso o diferencia do método de Ach, no qual o indivíduo, antes de saber qual é a tarefa, pode ler e
manusear as palavras sem sentidos.
O método de dupla estimulação evidencia
algumas importantes considerações, a saber: 1)
o processo de formação de conceitos se inicia na
infância; 2) existe uma interfuncionalidade entre
as funções intelectuais; e 3) para se trabalhar com
os conceitos verdadeiros há a necessidade do desenvolvimento das funções intelectuais.
Para Vygotsky (1998), as funções intelectuais
que formaram a base psicológica da formação
dos conceitos verdadeiros irão amadurecer, se
configurar e se desenvolver na puberdade. Anteriormente a esse período, o que ocorre no processo
de formação de um conceito são os equivalentes
funcionais, que mantêm “uma relação semelhante
à do embrião com o organismo plenamente desenvolvido” (VYGOTSKY, 1998, p. 72). Segundo
o autor, a formação de conceitos é resultante de
uma atividade complexa, da qual todas as funções
intelectuais básicas fazem parte, tais como: memória, atenção, formação de imagens, inferências ou
tendências determinantes. Entretanto, todas essas
funções, sem o uso do signo – ou palavras –, não
são suficientes.
Outro fator relevante, mas não único, para a
formação de conceitos são as exigências, as tarefas
ou os problemas que o meio sociocultural oferece
ao adolescente, considerando-se que se esse meio
não oferecer novas exigências “o seu raciocínio não
conseguirá atingir os estágios mais elevados ou só
os alcançará com grande atraso” (VYGOTSKY,
1998, p. 73). Entretanto, essas exigências por si
só não explicam o mecanismo de desenvolvimento da formação de um conceito. A função dessas
exigências é a ampliação sociocultural global do
adolescente, a qual afeta, significativamente, o
conteúdo e o desenvolvimento do seu raciocínio. Se
na adolescência não existe nenhuma nova função
elementar, o que de fato existe é uma reorganização
das funções já existentes:
[...] as funções existentes são incorporadas a uma
nova estrutura, formam uma nova síntese, tornam-se
partes de um novo todo complexo; as leis que regem
esse todo também determinam o destino de cada
uma das partes. Aprender a direcionar os próprios
processos mentais com a ajuda de palavras ou signos
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A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual
é uma parte integrante do processo de formação de
conceitos. (VYGOTSKY, 1998, p. 73-74).
Para a verificação empírica do método da dupla
estimulação, Vigotski e seus colaboradores, Kotelova e Pashakovskaja, fizeram algumas alterações
e o aplicaram a mais de 300 pessoas, dentre elas
crianças, adolescentes, adultos e pessoas com distúrbios patológicos (intelectuais ou linguísticos).
No texto de Vygotsky (1998) não há descrição dos
procedimentos adotados para uma replicação literal
de seu método, mas o autor conclui que o processo de formação de conceitos passa por três fases
básicas que se subdividem em vários estágios8. As
três fases básicas na formação de um conceito são o
pensamento sincrético9, o pensamento por complexos e o pensamento conceitual. O pensamento sincrético, por sua vez, se subdivide em três estágios:
1) os amontoados sincréticos são manifestados pela
tentativa e erro; 2) os amontoados sincréticos são
determinados pelo campo visual da criança; e 3) a
imagem sincrética tem uma base mais complexa.
A primeira fase, aqui denominada pensamento
sincrético é caracterizada pela agregação desorganizada ou amontoados que se utiliza para solucionar uma tarefa. Esse é o primeiro passo dado pela
criança para formação de conceitos. Nessa fase,
as crianças agrupam os objetos de forma desigual,
sem fundamento algum, revelando “uma extensão
difusa e não direcionada do significado do signo
a objetos naturalmente não relacionados entre si”
(VYGOTSKY, 1998, p. 74), ou de forma ocasional
na percepção que a criança tem do objeto. Assim,
nessa fase, o significado da palavra para a criança
é um conglomerado vago e sincrético de objetos
isolados. Em razão desse sincretismo, no significado da palavra, a imagem dos signos na mente da
criança é extremamente instável.
Nessa fase, a percepção, o pensamento e a ação
da criança tendem a se misturar em diversificados
“elementos em uma imagem desarticulada, por for8 Salientamos que o autor em voga, apenas para fins metodológicos,
faz essa divisão, pois ele próprio é crítico do atomismo na ciência.
Assim, acredita-se que o autor tem como pano de fundo a visão
global e dialética do processo de formação de conceitos (FONSECA-JANES, 2010).
9Vygotsky (1998) não dá uma denominação a essa fase, apenas
evidencia que Claparède a chama de sincretismo e Blonsky, de coerência incoerente. Entretanto, para fins metodológicos, optou-se por
denominá-la de pensamento sincrético (FONSECA-JANES, 2010).
234
ça de alguma impressão ocasional” (VYGOTSKY,
1998, p. 74). Assim, a criança tende a confundir
os elos reais entre as coisas. Para elucidar tal fase
destacamos as próprias palavras do autor, que a
descreve como:
[...] o resultado de uma tendência a compensar,
por uma superabundância de conexões subjetivas,
a insuficiência das relações objetivas bem apreendidas, e a confundir esses elos subjetivos com elos
reais entre as coisas. Essas relações sincréticas e o
acúmulo desordenado de objetos agrupados sob o
significado de uma palavra também refletem elos
objetivos na medida em que estes últimos coincidem
com as relações entre as percepções ou impressões
da criança. (VYGOTSKY, 1998, p. 75).
Para o autor, muitas palavras coincidem no significado tanto para o adulto quanto para a criança
por coincidirem com objetos concretos, a exemplo
de copo, prato, mesa etc.10 Assim, percebemos
desde os primórdios da formação de um conceito,
na ontogênese, que o mundo real ou vivenciado é
fator relevante para o seu desenvolvimento, embora
não o único.
Os estudos experimentais de Vygotsky (1998)
evidenciaram existir, na primeira fase da formação
de conceitos, três estágios distintos. No primeiro, os
amontoados sincréticos são manifestados pela tentativa e erro, os grupos são desarticulados e criados
ao acaso, cada objeto apresentado à criança é uma
mera suposição que pode ser confirmada ou não
pela experimentação. No segundo, os amontoados
sincréticos são determinados pelo campo visual
da criança, que determinaram a posição espacial
dos objetos experimentais; assim, neste estágio, a
“[...] imagem ou grupo sincréticos formam-se como
resultado da contigüidade no tempo ou no espaço
dos elementos isolados, ou pelo fato de serem
inseridos em alguma outra relação mais complexa
pela percepção imediata da criança” (VYGOTSKY,
1998, p. 75). No terceiro, a imagem sincrética tem
uma base mais complexa, pois, tendo passado pelos
estágios anteriores, já elabora com mais coerência
seus amontoados de objetos. Pode-se dizer que
existe uma coerência incoerente, pois ainda não
existem, nos elementos recombinados, elos intrínsecos entre si. O que diferencia esse estágio dos
10 Exemplos nossos (FONSECA-JANES, 2010).
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
demais é que ao tentar dar significado a uma nova
palavra, a criança o faria por meio de uma operação
processual de duas etapas, entretanto, “[...] essa
operação mais elaborada permanece sincrética e
não resulta em uma ordem maior do que a simples
agregação dos amontoados” (VYGOTSKY, 1998,
p. 76).
A segunda fase, denominada pelo autor como
pensamento por complexos, é caracterizada pela
transitoriedade e variabilidade do pensamento, ou
seja, as crianças agrupam os objetos por suas próprias características e não por um traço estável. As
crianças agrupam os objetos por traços distintos e
mutáveis, como se elas fossem famílias separadas
e relacionais. As associações dos objetos são realizadas mais pelas impressões concretas do que pelas
impressões subjetivas, uma vez que a criança já superou em grande parte seu egocentrismo. A função
principal desse tipo de pensamento é estabelecer
elos e relações entre os elementos para que ocorram
as generalizações futuras. Assim, as ligações entre
os elementos são concretas e reais, com traços de
objetividade, pois é uma evolução do sincretismo
ao pensamento conceitual (VYGOTSKY, 1998).
De acordo com Vygotski (1998, p. 77), esse estágio do desenvolvimento na formação de conceitos
é marcado pelas relações “concretas e factuais, e
não abstratas e lógicas”. Essas relações ocorrem
mediante a experiência direta da criança com o
objeto. A diferença entre esse tipo de pensamento
e um conceito verdadeiro é que, no primeiro, os
agrupamentos dos elementos ocorrem por causa das
ligações factuais que estão presentes no momento de
escolha, enquanto no último os agrupamentos ocorrem de acordo com um atributo do próprio objeto.
Os estudos experimentais sobre a formação de
conceitos de Vigotski evidenciaram ainda que essa
segunda fase subdivide-se em cinco estágios que
se sucedem uns após os outros, dificultando indicar quando um se inicia e quando o outro termina.
Esses estágios são: o complexo tipo associativo, o
complexo de coleções, o complexo em cadeia, o
complexo difuso e o complexo de pseudoconceito.
No complexo associativo, a criança estabelece
ligações entre os objetos por uma semelhança,
em contraste ou pela proximidade do espaço. No
complexo de coleções, a criança agrupa os objetos,
ou sua impressão concreta do objeto, com base em
características que os tornam diferentes e complementares entre si. Esse agrupamento dos objetos é
realizado com a participação da operação prática,
que poderíamos chamar de cooperação funcional.
No complexo em cadeia, os agrupamentos são realizados pela característica de um objeto isolado,
sendo um agrupamento vago e flutuante. É, antes
de tudo, uma junção dinâmica e consecutiva de elos
isolados em uma única corrente, com a transmissão
de significado de um elo para o outro. No complexo
difuso, os agrupamentos são feitos por meio de
conexões difusas, indeterminadas e instáveis, que
extrapolam os limites da experiência. No complexo
de pseudoconceitos, as crianças pensam por pseudoconceitos, ou seja, palavras designam complexos
de objetos concretos estabelecendo conexões com
uma lógica própria. Esse complexo é o elo entre
o pensamento por complexos e o estágio final da
formação de conceitos. Nesse estágio, a criança
é capaz de realizar generalizações semelhantes à
de adultos, justificada pela ocorrência de muitas
interações com os adultos por meio da comunicação verbal. Esse processo de interação intensifica
o processo de formação de conceitos. Entretanto,
a criança não tem consciência de estar iniciando a
prática do pensamento conceitual.
Na fase do pensamento conceitual ocorre o amadurecimento intelectual. A criança está próxima do
pensar abstratamente sem a necessidade da experiência concreta. O germe dessa fase é enlaçado no
pensamento por complexos. Essa fase subdivide-se
em dois estágios: o desenvolvimento por abstração
e o dos conceitos potenciais. No estágio do desenvolvimento da abstração, a criança agrupa objetos
com base no grau máximo de semelhanças entre os
componentes. Em tal estágio, a criança abstrai todo
um conjunto de características sem distingui-las
claramente entre si. Essa abstração é baseada numa
atribuição superficial dos objetos. No estágio dos
conceitos potenciais, a criança realiza agrupamentos com base num único atributo do objeto. Esses
conceitos potenciais podem ser formados tanto na
esfera do pensamento perceptual como do prático.
Na esfera do pensamento perceptual, os agrupamentos pautam-se nas impressões semelhantes que
a criança tem do objeto. A esfera do pensamento
prático está pautada nos significados funcionais
semelhantes que a criança tem do objeto.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
235
A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual
Segundo Vygotsky (1998), no adolescente os
pensamentos sincréticos e por complexos vão
desaparecendo gradualmente, e os conceitos potenciais são usados com menor intensidade para a
formação de conceitos verdadeiros. Mesmo tendo
aprendido a formar conceitos, o adolescente continua a operar com os elementos anteriores, ora
com os sincréticos, ora com os por complexos, por
muito tempo. A adolescência passa a ser o momento
de transição para a formação plena dos conceitos
abstratos racionais sem, necessariamente, precisar
da experiência.
Outro fator diretamente ligado à formação de
conceitos em Vygotsky (1962, 1996, 1998) é a influência da linguagem, uma vez que o pensamento
humano está intrinsecamente ligado à linguagem.
Vygotsky (1962, 1996, 1998) argumenta que
o pensamento e a linguagem refletem a realidade
de uma forma diferente daquela da percepção,
constituindo-se as chaves para compreensão da
natureza da consciência humana. Para o autor, as
palavras desempenham um papel central não só no
desenvolvimento do pensamento, mas também na
evolução histórica da consciência, uma vez que a
palavra é um microcosmo da consciência humana.
Considerações finais
Pelo exposto ao longo deste texto, em seus trabalhos sobre o conhecimento humano, Vygotsky
(1996, p. 115) demonstra que o “aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e
um processo por meio do qual as crianças penetram
na vida intelectual daquelas que as cercam”.
Isso significa que, para se trabalhar no plano
abstrato, são necessárias formulações de conceitos,
entendidos como um ato complexo, dinâmico e
interfuncional, construídos por meio da atuação
e inserção do indivíduo na cultura, mediado pelas
relações com as outras pessoas. Nesse entorno
sociocultural, o indivíduo se apropria de conhecimentos por meio de aprendizados formais e não-formais promotores de subsídios para construção
dos conceitos científicos e cotidianos.
236
Para realizar seus estudos sobre o processo
de formação de conceitos, Vigotski utilizou um
método experimental pautado nos pressupostos
filosóficos da teoria marxista do funcionamento
dos processos mentais, porque percebia estes processos como em constante mudança e movimento.
Assim, todo seu método diferenciava-se dos estudos experimentais convencionais centrados no
desempenho da tarefa em si. O método utilizado
por Vigotski preocupava-se com o processo de
formação de conceitos e não apenas com recortes
estáticos dos processos cognitivos. Acreditamos
que se uma pessoa tiver clareza sobre um conceito
específico, isto pode vir a gerar mudança de atitudes, de hábitos e de comportamentos (FONSECA-JANES, 2010).
A literatura especializada sobre atitudes sociais
e pesquisas anteriores (FONSECA-JANES, 2010)
tem evidenciado que a aquisição de informação
sobre conceitos pode ser um dos mecanismos para
a mudança de atitudes, mas não o único. Essa ideia
é embasada, sobretudo, nas premissas assinaladas
neste artigo, ao discutirmos sobre a formação de
conceitos na perspectiva vigotskiana.
Pela exposição realizada, defendemos a tese
de que a formação/apropriação de conceitos científicos pode vir a modificar qualitativamente a
inteligência e a personalidade de crianças, jovens e
adultos de maneira a torná-los mais humanizados,
considerando que os estudos de Lima (2001, p. 15)
assinalam, mediante sistematizações teóricas com
base na Escola de Vigotski, que “a humanização
do homem é uma tendência”.
Com essa defesa e perspectiva, os apontamentos anteriores nos impulsionam a refletir acerca da
função da escola e dos professores atuantes desde a
Educação Infantil ao Ensino Superior, tendo como
referências as especificidades de cada momento
da vida e da escolaridade e as mediações necessárias para que formas sofisticadas de humanização
sejam potencializadas, o que requer discussões
fundamentadas teórica e cientificamente, o que
envolve revisões e aprendizados sobre a formação
de conceitos.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi
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______. Pensamento e linguagem. Tradução Jeferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
(Série Psicologia e Pedagogia).
Recebido em 21.10.2012
Aprovado em 17.01.2013
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013
237
RESUMOS
DE TESES E
DISSERTAÇÕES
PINHO, Ana Sueli Teixeira de*. O tempo escolar e o encontro com o outro: do
ritmo à simultaneidade, 2012. 274f. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós
Graduação em Educação e Contemporaneidade** Universidade do Estado da Bahia,
UNEB, Salvador.
Esta tese tem por objetivo compreender a relação
entre o tempo escolar, os outros tempos sociais e as
temporalidades dos sujeitos, a partir de narrativas
biográficas de professoras, em duas escolas com
classes multisseriadas, e sujeitos das comunidades de
Botelho e Praia Grande, em Ilha de Maré. A análise
do campo empírico fez emergir o problema do tempo
escolar reduzido a ritmo, ora compreendido como uma
propriedade individual, ora como uma imposição de
um tempo hegemônico, o do relógio. Para problematizar essa noção, foram utilizados autores como
Elias (1993), Faraco (2010a) e Bakhtin (2003). Com
base na relação entre tempo e diferença, retomou-se a
discussão com Bakhtin (2003; 2010) para, junto com
Levinas (2011a, 2011b), propor outra concepção, a de
tempo como simultaneidade, concebida como coexistência e interação. A pesquisa empírica adotou, como
abordagem metodológica, a narrativa (auto)biográfica
que se constitui na oportunidade do outro dizer de si
e, ao fazê-lo, através da entrevista narrativa, deixar
entrever traços de uma experiência, ao mesmo tempo
pessoal e social. A pesquisa conclui que a compreensão do tempo escolar, de um lado, depende de um
olhar atento para os outros tempos sociais que atravessam a escola, e de outro, de uma atenção especial
às interações realizadas entre os sujeitos no interior da
sala de aula. Afinal, o tempo escolar é acontecimento
que se dá no encontro com o outro.
ABSTRACT: The school time and the encounter with the other: from rhythm to simultaneity
Palavras-chave: Tempo Escolar. Tempo Social.
Autobiografia. Tempo e Diferença. Tempo e Outro.
Ritmo e Simultaneidade.
Keywords: School Time. Social Time. Autobiography. Time
and Difference. Time and the Other. Rhythm and Simultaneity.
This thesis aims to understand the relationship between
the school time, the other social times and the temporalities
of the subjects. It is based on the analysis of biographical
narratives of female teachers who work in two schools with
multiserial classes and individuals from the communities of
Botelho and Praia Grande, in Ilha de Maré. The analysis of
the empirical field shows the problem of the school time that
is reduced to rhythm, sometimes understood as an individual
property, sometimes as an imposition of a hegemonic time, the
clock. In order to problematize this notion, we bring authors
such as Elias (1993), Faraco (2010a) and Bakhtin(2003) to
discuss it. On the basis of the relationship between time and
difference, the discussion has been done according to Bakhtin
(2003; 2010) and Levinas (2011a, 2011b) studies, which, led
us to another conception, time as simultaneity, understood as
coexistence and interaction. For our empirical research, we
chose as a methodological approach the (auto) Biographical
narrative that allows the opportunity for the other talk about
itself and, in so doing, through the narrative interview, let us
see traces of a personal and social experience at the same time.
According to our research, we may say that the understanding
of the school time, on the one hand, relies on attention to the
other social times that are present at school, and on the other
hand, a particular attention to the interactions between the
subjects inside the classroom. After all, the school time is an
event that happens in the encounter with the other.
* Doutora em Educação e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da
Bahia. Professora Assistente da Universidade Católica do Salvador, atuando no Curso de Pedagogia. Pesquisa temas da Formação de Professores:
Currículo, Tempo Escolar, Educação Rural, Classes Multisseriadas e (auto)biografia. Endereço para correspondência: Avenida Professor Manoel
Ribeiro, nº 1315, Condomínio Boulevard Iguatemi Jardim, Ap. 904, STIEP, Cep: 41 750 160. Salvador – BA. [email protected]
** Orientador: Prof. Dr. Elizeu Clementino de Souza (Universidade do Estado da Bahia- UNEB); data da defesa: 17 de dezembro de 2012;
banca examinadora: Rita de Cássia Gallego (Faculdade de Educação da Universidade do Estado de São Paulo - FEUSP) – Coorientadora; António Carlos da Luz Correia (Instituto de Educação da Universidade de Lisboa - UL); Luciano Costa Santos (Programa de Pós Graduação em
Educação e Contemporaneidade/UNEB); Antônio Dias Nascimento (Programa de Pós Graduação em Educação e Contemporaneidade/UNEB).
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
241
MEIRELES, Mariana Martins de* . Macabéas às avessas: trajetórias de professoras
de Geografia da cidade na roça – narrativas sobre docência e escolas rurais, 2013.
f. 245. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Salvador- BA.**
A pesquisa objetivou apreender trajetórias de seis
professoras de Geografia que moram na cidade e exercem
a docência na roça, buscando, através de suas narrativas, compreender os sentidos que atribuem à docência
e às escolas rurais. O estudo pautou-se nos princípios
epistemológicos da pesquisa qualitativa, ancorado
nos pressupostos da abordagem (auto)biográfica, com
ênfase nas narrativas docentes. Foram utilizados como
instrumentos de recolha de dados: as entrevistas narrativas e as observações, analisados a partir de princípios
da hermenêutica (RICOUER, 1976), na perspectiva
interpretativa-compreensiva, além das contribuições
de Schütze (1987), sobre a análise das narrativas. O
estudo apontou questões importantes para problematizar
o ensino de Geografia em contextos rurais, a partir do
movimento de compreender as trajetórias das professoras, revelando as implicações que os percursos de
vida-formação-profissão tiveram sobre suas identidades
e performatividades docentes, bem como nas condições
de trabalho que lhes são impostas no exercício diário da
profissão. A pesquisa apontou, ainda, que o deslocamento
geográfico (cidade-roça-cidade) vivenciado pelas professoras constitui-se como um espaço-tempo produtor da
profissão, ou seja, uma “ritualização” diária que fornece
elementos para construção da identidade docente, com
implicações diretas no território da profissão, revelando
modos de fazer docência na contemporaneidade. Nessa
docência em travessia, as professoras reconstroem a si
mesmas como pessoas e professoras, pensam/reelaboram
suas práticas e projetos profissionais, mediante táticas
singulares, suscitadas, sobretudo, em seus trajetos cotidianos em contextos rurais tão diversos e tão singulares.
ABSTRACT: Macabéa in reverse: the trajectories of Geography teachers from the city to
the countryside – narratives of teaching and
rural schools
Palavras-chave: Docência. Escolas rurais. Narrativas. Pesquisa (auto)biográfica. Trajetórias de professoras
de Geografia.
Keywords: Teaching. Rural Schools. Narratives.
(Auto) Biographical Research. Trajectories of Geography
Teachers.
This research paper aimed to understand the trajectories of
six Geography teachers who lived in the city and worked in the
countryside. Through their narratives, we tried to comprehend
the meanings they gave to teaching and to rural schools. Our
study was based on the epistemological principles of the
qualitative research and on the (auto) biographical approach.
Its emphasis was on the teachers narratives. Our research
instruments were: the narratives and observation that have
been analyzed according to the hermeneutical principles
(RICCOUER, 1976), on the interpretative-comprehensive
perspective, and on Schütze´s contributions (1987) on the
analysis of narratives. Through our analysis we identified
important questions that led us to problematize the teaching
of Geography in rural contexts. This is due to our attempt
to understand the teachers´ trajectories, the implications of
their ways of life-formation-profession in their identities
and teaching, the work conditions that they face every day.
Our data indicated that the geographical displacement (citycountryside-city) of the teachers was like a space and time
that has had a great influence on their profession. In other
words, an everyday “ritualization” which gave elements for
the construction of the teacher identity with direct implications
for the profession, what revealed ways of teaching in the
contemporary times. In this crossing teaching, the teachers
reconstruct themselves as persons and teachers, they think/
redesign their practices and professional projects through
particular tactics mainly from their everyday paths in so
diverse and unique rural contexts.
* Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Universidade do Estado da Bahia. Endereço para
correspondência: Avenida José Penedo, 486, centro. Cep: 48 793 000. Caldas do Jorro – Tucano/[email protected]
** Orientador Prof. Dr. Elizeu Clementino de Souza (UNEB). Data da defesa: 26 de Abril de 2013. Banca examinadora: Profa. Drª Ana Chrystina
Venâncio Mignot (UERJ); Prof. Dr. Nestor André Kaercher (UFRGS); Profa. Drª Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios (UNEB)
242
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
A Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade é um periódico temático e semestral,
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
243
Após a revisão gramatical do texto, a correção das referências e a revisão das partes em inglês, o(s)
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dados em relação a cada autor), telefones (para contato emergencial), e-mail; c) titulação principal; d)
instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m).
2. Resumo e Abstract: cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resultado
e conclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de, no mínimo,
três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo e do resumo, assim como do trabalho
resenhado. Atenção: cabe aos autores entregar traduções em inglês de boa qualidade.
3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias (em formato TIF, cor cinza, dpi 300), quando apresentados em separado, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar
referências de sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida
pelo Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.
4. Sob o título Referências deve vir, após a parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos
autores e das publicações conforme as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).
Vide os seguintes exemplos:
a) Livro de um só autor:
BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.
b) Livro até três autores:
NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.
244
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013
c) Livro de mais de três autores:
CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
d) Capítulo de livro:
BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.). Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.
e) Artigo de periódico:
MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma
breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade,
Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.
f) Artigo de jornais:
SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público.
O Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.
g) Artigo de periódico (formato eletrônico):
TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000.
h) Livro em formato eletrônico:
SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://
www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.
i) Decreto, Leis:
BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para
despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São
Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.
j) Dissertações e teses:
SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
k) Trabalho publicado em Congresso:
LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridades brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO
NORDESTE: história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.
IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego da
pontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme.
5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR 10520
de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou,
quando ultrapassa três linhas, em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor
faz parte do texto, este deve aparecer em letra cursiva e submeter-se aos procedimentos gramaticais da
língua. Exemplo: De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este
deve aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir:
A pedagogia das minorias está à disposição de todos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídas de
sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data de acesso. Para
qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginas
do texto devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias, que devem obedecer à
NBR 10520, de 2003.
6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os
agradecimentos, apêndices e informes complementares.
7. Os artigos devem ter, no máximo, 50 mil caracteres com espaços e, no mínimo, 30 mil caracteres
com espaços; as resenhas podem ter até 20 mil caracteres com espaço. Os títulos devem ter no máximo 90
caracteres, incluindo os espaços. Os resumos de teses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras,
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e conter título, número de folhas, autor (e seus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição, e
data da defesa pública, assim como a tradução em inglês do título, resumo e das palavras-chave.
8-As referências bibliográficas devem listar somente os autores efetivamente citados no corpo do texto.
Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no processador Word for Windows ou
equivalente:
• letra: Times New Roman 12
• tamanho da folha: A4
• margens: 2,5 cm
• espaçamento entre as linhas: 1,5;
• parágrafo justificado.
Os autores são convidados a conferir todos os itens das Normas para Publicação antes de encaminhar
os textos. Deste modo, será mais rápido o processo de avaliação e possível publicação.
Para contatos e informações:
Administração:
Secretária: Dinamar Ferreira
E-mail: [email protected]
Tel. 71.3117.2316
Editora Geral:
Tânia Regina Dantas
E-mail: [email protected]
Editora Executiva:
Liége Maria Sitja Fornari
E-mail: [email protected]
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Site da Revista da FAEEBA: www.revistadafaeeba.uneb.br
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The Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade is a thematic and semestral periodic
which have for objective to stimulate and promote the exchange of informations and of results of scientific research, in the field of education, interacting with the other social sciences, interconnected to the
regional, national and international community.
The Revista da FAEEBA receive only original works which analyze and discuss matters of scientific
and cultural interest and that can be classified according to one of the following modalities:
- essays: theoretical studies with analysis of concepts;
- research results: text based on research data
- reviews of literatures: ample critical analysis of the literature upon some specific theme;
- critical review of a recent publication;
- interviews with recognized researchers;
- abstract of PhD and master thesis.
Submitted works should be unpublished and should not be submitted simultaneously to other journal.
Papers written in Portuguese, Spanish, French and English are received. Views published remain their
authors’ responsibility. Texts originally in French and English may be translated into Portuguese and
published after a revision made by the author or by someone he has suggested. Authors who published
in this journal should wait two volumes to become newly authorized to publish. No paper should have
more than 4 authors.
Themes and terms of the futures volumes are published in the last volumes are also available on-line
at www.revistadafaeeba.uneb.br. In each volume, appears also the list of academic journals with which
the Revista da FAEEBA have established cooperation.
Texts submitted are initially appreciated by the Editor which will confirm reception. If they are edited
in accordance with the norms, they will be sent, anonymously so to assure neutrality, to other member
of the editorial committee or to ad hoc evaluators of known competence .
Evaluators’ reports will confer the submitted work scientific quality and class them in four categories:
a) publishable without restrictions b) publishable with restrictions; c) publishable with restrictions and
modifications after new evaluation; d) unpublishable. Evaluators’ reports are sent anonymously to the
authors.
In the b) or c) case, the works should be modified according to the report’ suggestion in the terms
determined by the editor in agreement with the authors. Modifications made should appear in red so as
to permit verification.
After the grammatical revision of the text, the correction of the bibliography, and the revision of the
part in English, the authors(s) will receive the text for an ultimate opportunity to make small corrections
in a week.
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Submitting text to the journal means authorizing for publication. Accepting a text for publication imply
the transfer of copyrights to the journal. Whatever complete or partial reproduction (more than 500 hundreds words) requires the written authorization of the editorial committee. Papers’ authors should assume
juridical responsibility for divulging interviews, photographies or images. As the Revista da FAEEBA:
Educação e Contemporaneidade is a periodic journal, preference will be given to the publication of texts
related to the theme of each volume. Other selected approved text may only be published in a special
section called Studies depending of available space in each volume or in a future volume more in touch
with the text content. If, after a year, no possibility of a publication emerges, the text can be liberated for
publication in another journal if this is the will of the author.
The main author of a paper will receive three copies of the volume in which his paper was published.
The author of an abstract or a review will receive one.
Texts as well as ulterior communication should be sent exclusively to the e-mail address of the editor
([email protected]/ [email protected] ). In should be explicited initially a) at which modality the
text pertains; b) ethical procedures; c) copyrights concession to the Revista da FAEEBA: Educação e
Contemporaneidade.
Works should respect the following norms:
1. In the first page, should appear: a) the paper’s title; b) authors’ name, address, telephones, e-mail;
c) main title; d) institutional affiliation and post.
2. Resumo and Abstract: each with no more than 200 words including objective, method, results and
conclusion. Immediately after, the Palavras-chave and Keywords, which desired number is between 3
and 5. Authors should submit high quality translation.
3. Figures, graphics, tables and photographies (TIF, grey, dpi 300), if presented separately should
come with indication of their localization in the text, have a title and indicates author and reference. In
this sense, the tabular norms of tabular presentation, established by the Brazilian Conselho Nacional de
Estatística and published by the IBGE in 1979.
4. Under the title Referências should appear, at the end of the paper, in alphabetic order, the list of
authors and publication according to the norms of the ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). See the following examples:
a) Book of one author only:
BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.
b) Book of two or three authors:
NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.
c) Book of more than three authors:
CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
d) Book chapter:
BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.). Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.
e) Journal’s paper:
MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma
breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade,
Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.
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f) Newspaper:
SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público.
O Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.
g) On-line paper :
TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Available at: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000.
h) E-book:
SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.
bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.
i) Laws:
BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para
despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo,
v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.
j) Thesis:
SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
k) Congress annals:
LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridades brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO
NORDESTE: história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.
IMPORTANT: Organizing references, the author should take care of punctuation correct use, so as
to preserve uniformity.
5. This journal use the author-date quote system, according to the NBR 10520 de 2003. Bibliographical quotes or quotes from on-line publications, if inserted into the text, should appear between
quotation marks or if the quotation is more than three lines long, distanced and without quotation marks
with author reference. Examples: 1- According to Freire (1982: p.35), etc. 2-Minority pedagogy is for
all (Freire, 1982, p.35). On-line quotes should indicate the URL and access date. Footnotes should only
contain explanatory notes strictly necessary respecting the NBR 10520, of 2003.
6. Texts can contain footnotes, thanks, annexes and complementary informations.
7. Papers should have no more than 50.000 characteres and no less than 20.000 characteres including spaces. Titles should have no more than 90 characteres including spaces. Reviews are limited to 5
pages. Thesis abstracts should contain no more than 250 words and should include title, number of page,
author data, key-words, name of the director and university affiliation, as well as the date of the defense
and the English translation of text, abstract and key-words.
Look out: texts will only be accepted formated in Word for Windows or equivalent:
• font: Times New Roman 12
• paper dimension: A4
• margins: 2,5 cm
• line spacing: 1,5;
• paragraph justified.
Authors are invited to check the norms for publication before sending their work. It will ease the
process of evaluation and facilitate an eventual publication.
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