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Entre fingir e forjar:
a construção de um museu de arte contemporânea para Lima.
É sabido que nas décadas finais do século XX certa tradição historicista
euro-ocidental foi posta em questão de modo veemente devido a um descrédito em
relação aos grandes esquemas explicativos do mundo. Tal crítica permitiu uma
reflexão sobre as características construtivas das narrativas históricas em
contraposição a certa noção de “verdade universal”. Isto posto, foi possível enfim
matizar o valor da ficção dentro das representações do passado e mesmo
considerar sua contribuição (WHITE, 2010). Nessa concessão, porém, o ficcional
não é conotado como algo falso, mas como o aspecto imaginativo necessário à
composição de um discurso. Trata-se, em outras palavras, de compreender “a
‘ficção’, em geral, não [como] a bela história ou a vil mentira que se opõem à
realidade ou que se [quer] fazer passar por ela. Fingire não significa inicialmente
fingir, mas forjar” (RANCIÈRE, 2010: 180). E esse forjar, segundo Ernst Van Alphen
(1999), é imprescindível à qualquer narrativa, pois não existe relato de experiência
sem uma fabulação pela linguagem, e a explanação histórica está estritamente
ligada à ela.
Mas se no campo da história o encontro com a ficção é bem regulado, nas
artes visuais contemporâneas essa relação é intérmina, e ela tem se apresentado
por meio de uma extensa exploração de estruturas e materiais ligados à produção
do conhecimento histórico. Em The Big Archive: art from bureaucracy (2008) e em
Archive Fever: Uses of the Document in Contemporary Art (2008), Sven Spieker e
Okwui Enwezor, respectivamente, discutem como a lógica do arquivo e a
propriedade do documento têm sido utilizadas nas artes visuais. Já o norteamericano James Edward Young (1993a; 1993b; 2000), para citar outro exemplo,
produz uma série de estudos nos quais analisa certa inversão do monumento
celebrativo por parte de uma geração de artistas na Alemanha, que a partir dos anos
1980 elabora uma crítica à abordagem da memória do pós-Segunda Guerra
mundial. Tendo por base formas já bem conhecidas nas malhas urbanas, eles
realizam os chamados Countermonuments [Contramonumento] a fim de reativar a
memória pública.
Além de arquivos, documentos e monumentos, muitos trabalhos versam
ainda sobre a prática do colecionismo, dos usos de registos fotográficos em suas
qualidades mnêmicas e documentais, e sobre os testemunhos. Não obstante essa
variedade, há um ponto comum entre esses usos. O que parece estar em jogo na
apropriação dessas materialidades por uma parcela das artes contemporâneas é o
préstimo de certa “autoridade histórica” para a dinâmica dos trabalhos. Por um lado,
coloca-se em pauta a vulnerabilidade da propriedade documental, como construída
a partir de uma rede de relações ao invés de inerente ao objeto. Por outro, empregase sua autoridade como ferramenta de legitimação de histórias possíveis, que
podem estar baseadas em acontecimentos verídicos ou acordarem com o sentido
de ficção enquanto invenção.
Embora possam ser reconhecidas em momentos distintos do campo das
artes, desde os anos 1990 essas duas investigações coincidem em muitas práticas
artísticas que têm como tema central a história. São trabalhos que se utilizam desse
jogo entre o falso e o fabular (enquanto exercício de criação de uma história
verossímil) para sugerir outras narrativas. Em geral esses projetos se desenrolam
progressivamente,
estendendo-se
por
vários
anos
e
sendo
alimentados
continuamente; uma vida corrente que intensifica sua aproximação para com um
dispositivo arquivístico autêntico.
Esse é o caso do projeto LiMAC, fundado em 2002 pela artista plástica
Sandra Gamarra Heshiki (Peru, 1972). A sigla é uma abreviação para o Museo de
Arte Contemporáneo de Lima. Tido sob o título de falso, LiMAC deve ser melhor
definido como uma instituição não-oficial. Isto porque, apesar de apresentar-se
como um museu da cidade de Lima, no Peru, e não o ser de fato, o projeto cumpre o
papel de dar visibilidade a uma produção artística contemporânea. Esse seu
desempenho faz parte da crítica para a qual ele foi planejado: questionar a falta de
espaços como esse em Lima, aonde galerias acabam por se incumbirem de
preencher um vazio institucional, existente em razão de uma má administração da
produção cultural (ESTÉVEZ, 2009). A estratégia para potencializar essa denúncia é
justamente a criação de um museu, mesmo que este não possua um endereço
permanente 1.
Mas a despeito dessa carência espacial, há uma série de outras
características que, operantes em conjunto, contribuem para se perceber o trabalho
de Gamarra enquanto um museu. A primeira delas é sem dúvida a sua coleção, em
contínua expansão, com obras de arte datadas dos últimos quarenta anos. Trata-se
de um acervo de mais de 2.000 itens, em sua maioria pictóricos.
1
Apesar da falta de uma sede física, o LiMAC foi arquitetonicamente projetado pela empresa
Productora, por demanda de Sandra Gamarra (que se apresenta como diretora do museu). Tendo em
vista que se trata de um projeto extenso e muito bem articulado, compreender seus reflexos nas
possibilidades de oficialidades futuras do Museo demanda um aprofundamento específico nesse
aspecto. De todo modo, a título de conhecimento, o desenho bem como a pesquisa para o
desenvolvimento do plano arquitetônico podem ser consultados em: http://li-mac.org/es/proyectoarquitectonico/ .
Essa grande incidência da pintura - mesmo que não seja uma exclusividade,
uma vez que dentre as 2.000 obras há peças realizadas outros médiuns - revela
muitos aspectos do trabalho de Gamarra. Boa parte dos objetos admitidos como
parte da coleção, quer por regime de doação ou por aquisição, tem sua imagem
fotográfica transposta para esse outro meio. Para alguns autores esse processo de
pictorialização da obra arte deve ser visto como uma engenhosidade para lidar com
a impossibilidade de adquirir algumas produções que já fazem parte de outros
acervos pelo mundo e/ou de driblar quaisquer problemas de locomoção das obras.
Essa hipótese não é de todo descartável. Todavia, ao notar-se os outros aspectos
que compõe LiMAC, a sagacidade de materializar uma coleção contemporânea por
meio da pintura não parece ser uma saída para um problema de logística. Antes,
essa ação deve ser percebida como um estratagema de legitimação dos trabalhos
que compõe o acervo.
Sobre esse aspecto é lícito retomar aqui a importância da pintura para
escritura da história da arte moderna. Ao analisarem certa “Olimpíada Cultural”
disputada entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União Soviética (URSS)
durante o período da Guerra Fria, David Caute (2003) e Serge Guibault (2007),
apesar de muitas discordâncias, são unânimes ao afirmarem o papel fundamental
que as artes tiveram na construção de uma filiação ideológica para com a Europa
ocidental e uma hereditariedade quanto à sua posição hegemônica. Nos EUA isso
significou erigir, baseados na narrativa elaborada pela produção textual do crítico
Clement Greenberg, o expressionismo abstrato enquanto arte oficial e ápice de uma
pintura moderna parisiense que teria alcançado o seu apogeu na vanguarda norteamericana (GUILBAUT, 2007: 315), criando-se assim uma genealogia coesa entre
os dois momentos de produção, em detrimento de todos os demais espaços
artísticos que friccionassem esse “percurso evolutivo”.
Esse tipo de história, nos moldes das grandes narrativas (RANCIÈRE, 2014),
teve seu fim decretado juntamente com os revisionismos do final do século XX, bem
considerados nos textos de Hans Belting (2006) e de Arthur Danto (2006)2. Dentre
2
Jacques Rancière, juntamente com outros filósofos que se esmeram sobre o campo das artes
plásticas, procura uma diferenciação entre os tempos moderno e contemporâneo. Para ele, a diferença
entre essas temporalidades é que a segunda é marcada pelo fim das grandes narrativas. Não porque
elas tenham deveras desaparecido. O fim “é, na verdade, uma nova montagem de seus elementos e
uma inversão de seu significado” (RANCIÈRE, 2014: 209). Nessa outra postura construtiva cabe um
questionamento da homogeneidade do tempo de “um processo global que submeta a suas regras
todos os ritmos do tempo individual e do tempo coletivo. Há vários tempos em um só tempo” (Idem, p.
214). É sob esse viés que, ignorando o anacronismo que se instala entre os diferentes textos, Arthur
Danto considera o fim da arte ou que Hans Belting introduz o fim da história da arte. O encerramento
por eles diagnosticado se refere a uma mudança de paradigmas. É bem verdade que no caso de Danto
mais especificamente, sua tese do fim envolve uma alargamento formal no campo das artes. Mas ele
também soma a isso uma abertura das estruturas históricas vigentes até 1960. O fim se configura
as razões dessa revisão estão as reconfigurações geopolíticas do mundo, que
abriram espaços para outros tempos e localidades deixados a margem dos
esquemas explicativos gerais (HUYSSEN, 2014)3. Ademais, no que diz respeito ao
campo da arte, deve-se acrescentar a crise dos suportes formais na segunda
metade do mesmo século e a incapacidade de uma história que lhes tinha por base
dar conta das produções artísticas contemporâneas.
Diante dessas informações é curioso notar que ao organizar um museu de
arte contemporânea de um país enquadrado nessa periferia das historiografias
hegemônicas, Gamarra transporte a maior parte dessa coleção para o pictórico. É
bem verdade que a prática artística da artista se dá nesse suporte. Porém, a
utilização dessa técnica como um estágio de inserção dos objetos no acervo do
museu tem outro propósito.
Gamarra está ciente da conotação simbólica que a pintura ainda mantém no
circuito das artes visuais, mesmo diante das mudanças do mundo contemporâneo. A
demonstração clara dessa permanência é que embora as imagens pictóricas surjam
no LiMAC enquanto cópias de outros trabalhos, elas não são observadas como
imitações. “A pintura é o meio escolhido para a criação de verdadeiras obras”
(GAMARRA, 2014 (2005): 17). Ao invés de uma perda da aura, da qual a
reprodução fotográfica foi acusada, a pintura a partir da fotografia parece devolver
certa realidade ao objeto. Para Ruth Estévez (2009) isto ocorre porque o pictórico
“instaura uma nova legitimidade que, no momento em que perde – num certo
sentido – realidade, ganha, em outro, uma realidade diferente, ainda que conectada
com a original”. Ele se realiza como uma nova materialidade e não como o registro
de uma ausência, tal como o fotográfico na literatura clássica sobre o tema.
como uma abertura de possibilidades, inaugurando o tempo de uma arte pós-histórica, na qual o
eventos que sucedem estão libertos do peso de substituírem aqueles que os precederam. A ideia de
substituição sucessiva está pressente também no que Rancière define como narrativa moderna, as
grandes narrativas. Além de sua trama propor uma “compreensão da evolução global” (Idem, p. 204)
dos eventos do mundo vivido, e narrativa moderna se configura como uma “narrativa otimista que
torna a história tanto um princípio de inteligibilidade do ‘estado das coisas’ quanto o cenário de uma
possível transformação desse ‘estado das coisas’ ” (Idem, p. 204). Nesse sentido, a narrativa moderna
guarda para si um caráter marxista pela ideia de que não apenas o conhecimento sobre o capitalismo,
para resumir a tese de Rancière, acarretaria na libertação do mesmo e a possibilidade de uma
evolução histórica acarretaria na criação de um novo mundo: evolutivamente melhor e mais completo,
pois supera o tempo que lhe antecedeu (que necessariamente teria se esgotado). Para dar cabo a essa
“noção de esgotamento” seguida por outra “noção de superação” o conceito de “grandes narrativas” é
transpassado por uma lógica de coesão. É necessário que diferentes partes sejam combinadas de
modo coerente, continuo e progressivo, afinal, o desfecho é o elemento principal.
3
Tendo em mente a noção de que a geografia do modernismo clássico privilegiou cidades europeias,
Andreas Huyssen descreve que a ascensão dos estudos pós-coloniais colocaram em pauta “geografias
alternativas” (HUYSSEN, 2014:19), reconfigurando certa globalização cultural. À essas novas ligações
ele chama de “modernidades alternativas” (Idem, p.21). Para o autor, esse novo entendimento do
modernismo como fora da chave Europa-EUA, mas como algo que também pode ter ocorrido em
outras nações, dá margem para se refletir uma possível globalização cultural no mundo de hoje, a partir
de relações igualitárias em uma abordagem transnacional (p.26).
Assim, as cópias de Gamarra são na verdade originais. Esse seu uso de um
médium carregado de tradicionalidade empresta certa autoridade a seleção que ela
compõe. Mesmo quando esses elementos fazem parte do cotidiano de Lima, não é
o objeto que está em questão, mas a pintura que dele se fez. Essa estratégia
permite que Gamarra insira qualquer peça como parte do acervo, inclusive aquelas
artesanais, ligadas a cultura popular peruana, discussão a qual retornaremos mais
adiante.
Passando pela existência de uma coleção, chega-se às exposições
permanentes e temporárias, outro elemento que compõe a veracidade do Museo.
Uma vez que o LiMAC não possui sede física, seu acervo é mostrado de modo
itinerante, sendo exibido no interior de instituições oficiais ao redor do mundo. Em
cada mostra, as obras selecionadas são reunidas sob um título diretivo, que indica
uma leitura do conjunto (Figuras 1 e 2). Desta feita, o princípio de proveniência que
as reúne não advém de suas origens ou datas de realização, mas de uma possível
relação que elas possam manifestar para com os demais objetos da coleção. Sob
esse viés, no Museo de Arte Contemporáneo de Lima as configurações entre os
objetos são instalações que insinuam narrativas, de alguma maneira interligadas à
chave central do projeto de Gamarra. O display e a curadoria apresentam-se
enquanto trabalhos de arte, exigindo que o LiMAC também se mostre enquanto tal.
O museu se converte então “em um objeto quando se apropria de um espaço de
exposição para ser visto” (TRIVETTI, s/ data).
São nas exposições e nesse dar a ver-se como prática artística que revelase o caráter ficcional (no sentido de falso) da proposta de Gamarra. Juntamente com
as exibições permanentes ou temporárias é comum que uma parte da mostra seja
composta de um stand sobre a instituição não-oficial; uma espécie de tienda na qual
estão dispostos canecas, bonés, camisetas, sacolas em tecido, materiais de
papelaria, etc. (Figuras 3 – 5). Tudo devidamente marcado com o logo do LiMAC,
como em uma loja comum de museu. Nesse conjunto de souvenirs, há elementos
um pouco menos ordinários. São objetos que retomam algumas obras do acervo;
trabalhos estes que evocam a cultura popular peruana. No stand os utensílios de
cozinha e animais de pelúcia cobertos pelo tricô retomam uma prática peruana de
produzir capas para objetos do dia-a-dia utilizando essa técnica de costura
específica (Figura 06). Os relicários coloridos, as luvas de cozinha com bordados
salientes que lembram as arpilleras chilenas (Figura 07) também fazem parte de
uma produção popular de âmbito nacional. E todas essas práticas são inseridas na
seleção
museológica
do
contemporânea nacional.
LiMAC
como
parte
de
uma
produção
artística
Essa inclusão dessas artes populares está intrinsecamente ligada à prática
artística de Gamarra. Seus trabalhos, alguns dos quais são encontrados no acervo
do Museo, discutem sua própria identidade como artista a partir de fazeres
relacionados aos saberes femininos e aos espaços domésticos no Peru.
Conhecimentos estes que a artista pontua como ligados a memória artística nacional
e influentes nas artes contemporâneas locais, mas que são ignoradas na possível
escritura de uma história da arte peruana. Ao inserí-las no interior do LiMAC,
Gamarra determina novas aspectos a serem incluídos em um discurso museológico
e, portanto, na elaboração de uma memória. O que está em questão é o princípio de
escolha que o museu compartilha com o arquivo. Enquanto espaço de salvaguarda
da memória ambos são “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2008:
147). Sob esse aspecto, o museu de Gamarra é antes de tudo uma seleção na qual
os não-ditos acabam por receber um espaço de legitimidade; onde os elementos
fora (de um espaço do arkheion) são postos para dentro, abrigados.
Tendo em mente que se trata de um acervo de pinturas de outros trabalhos,
a habitação oferecida pelo LiMAC não tem como preocupação uma preservação
material, isto é, não visa, em primeira mão, a proteção dos objetos das ações do
tempo. Ela é simbólica, dedicada a construção de um discurso, de uma narrativa
sobre as relações entre as práticas artísticas do Peru ao longo dos anos. O Museo
de Arte Contemporáneo é o requerimento de um lugar sobre uma produção nacional
e internacional, onde todos os elementos adquirem um valor semelhante através da
transposição para o meio pictórico. Isso inclui os utilitários pré-colombianos (Figuras
8 e 9) que durante séculos representaram a produção peruana nos esquemas
narrativos gerais da história da arte. Em LiMAC esse tipo de trabalho também é
transposto à pintura, sendo nivelados as outras peças de arte. Concomitantemente,
vê-se aí questionada o tipo de seleção efetuada sobre o Peru como participação nas
historiografias gerais da arte. Ao posicionar-se desta forma, o LiMAC determina
ainda suas percepções sobre as artes, observando a importância de preservar-se
um fundo cultural específico, sem o qual pouco se compreende sua produção
contemporânea.
Essa inserção da cultura popular no corpus do museu de arte vai na
contramão de outra máxima colocada pela narrativa moderna da arte: a separação
entre arte e artefato. Cabe lembrar aqui que essa discussão perdurou todos
períodos colonizadores e foi alvo da crítica, por exemplo, de muitos trabalhos
fotográficos de Man Ray, nos quais o artista questionava os motivos do porque os
objetos trazidos das explorações territoriais extracontinentais ocupavam um lugar
etnológico nos museus europeus. Essa discussão tem sido retomada pelos estudos
pós-coloniais e se manifesta claramente no museu de Gamarra. Ademais, a artista
inclui os problemas das divisões entre alta e baixa cultura no que diz respeito a
produção artística de países periféricos, problematizando essas binaridades. Ao
realizar essa crítica por meio da reunião de trabalhos, o Museo mais uma vez se
desvencilha do falso para adentrar a esfera do não-oficial, dado que o projeto se
conclui. Mais do que isso, a verossimilhança que ele produz em relação a outras
instituições museológicas irrompe uma barreira na medida em que conquista uma
autonomia. A mentira ganha pernas e passa do verossímil ao verídico.
Entretanto,
basta
um
retorno
a
outros
elementos
que
compõe
a
verossimilhança entre LiMAC e um museu oficial para que a linha tênue entre o falso
e o fabular se apresente novamente. Trata-se do website do Museo, alocado em
http://li-mac.org/. Nessa homepage estão dispostos todos os aspectos descritos
acima, organizados de modo semelhante à uma página eletrônica de qualquer outra
instituição museológica (Figura 10). No entanto, aos poucos notam-se os limites
dessa experiência virtual. A não funcionalidade de itens como a tienda ou los amigos
del museo, a percepção de que a biblioteca é composta, na realidade, de pinturas
das capaz de títulos que dialogam com o propósito do trabalho... são elementos que
devolvem o espectador a característica inventiva do LiMAC. Mas esse retorno a
qualidade imaginada do trabalho é capaz de desfazer a experiência verídica em
relação a seleção que o Museo dispõe? Mais importante do que isso, essas
falsificações impedem que o propósito do LiMAC seja exercido?
É bem verdade que o projeto de Gamarra imita aspectos de um museu oficial
para se elaborar como Museo de Arte Contemporáneo próprio de Lima. Mas, nesse
contexto, é necessário lembrar o que significa operar enquanto imitação na cultura
peruana. Durante os anos 1960 e 1970, diante da dificuldade de importação de
mercadorias estrangeiras, desenvolveu-se no país a chamada “economy of fake”
[economia do falso] na qual os produtos eram copiados com fabricações nacional
(os chamados bambas) e vendidos sem o acréscimo das conhecidas taxas
alfandegárias, mas com qualidades próprias para desempenharem as funções
necessárias.
Pode-se dizer que o desempenho de LiMAC se assemelha aos bambas. Mas
o Museo vai além ao apregoar um discurso que lhe é próprio e característico, a
saber, uma história da arte peruana a partir de uma coleção que lhe pertence. O
trabalho retruca sobre a própria história da arte, moderna e eurocêntrica,
interpelando a respeito dos esquecimentos efetuados em sua escrita, realizados
com o propósito de estabelecer uma espécie genealogia consoante entre a arte
moderna europeia e certa pintura norte-americana. Nessa ação, ele não tenta se
inserir em uma narrativa já composta, mas avança em relação ao seu modelo.
Segundo Homi Bhabha (1998) essa ampliação no tocante ao objeto imitado é
o estágio ao qual raramente se chega no processo de “mímica colonial”. Tal conceito
é empregado pelo autor para explicar uma dinâmica cruel de ambivalência que pode
existir entre o Império e sua colônia, na qual o primeiro coloca-se como modelo a ser
imitado, mas cria barreira para que o imitador o alcance, e mesmo o ultrapasse
tornando-se Outro4. No LiMAC essa autoridade do imitado é desestabilizada. Ao
erigir um museu próprio de Lima, Gamarra demonstra que a cópia avançou e
produziu uma imagem de si mesma, independente, autônoma. O verossímil projetase enquanto objeto único, singular. Suas ações de fingimento são transformadas em
etapas para o exercício de forjar um museu único, não-oficial, porém verídico.
Vivian Braga dos Santos
São Paulo, 2016.
4
O fundamento convocado pelo autor para embasar sua análise da crueldade de uma ambivalência
entre colônia e os Impérios está pautado na chamada Fase do Espelho [stade du miroir] de Jacques
Lacan. De acordo com os Seminários proferidos pelo psicanalista, essa fase (ocorrida entre crianças de
seis a dezoito meses de idade) caracteriza-se por seu aspecto formador do sujeito. Em outras palavras,
é o momento no qual a criança se percebe enquanto eu. Antes desse estágio, ela reconheceria o
mundo apenas como extensão de si, como se tudo ao seu entorno fizesse parte de uma coisa única
(orientada pela sua própria vontade). Porém, ao perceber o espelho e enxergar-se, a criança vê os
limites de seu corpo. Ela identifica primeiramente não a si mesmo, mas o Outro apresentado como
reflexo no espelho. Através dessa percepção do tu ela é então capaz de dar-se conta da existência do
je. No entanto, quando Bhabha considera esse modo de um eu relacionar-se com um outro no âmbito
do exercício da colonização, adverte que a percepção do Outro (como fora de mim) é deturpada.
Negada a existência independente do tu também não se efetua um pensar sobre si mesmo nos moldes
que indica a Filosofia da Libertação de Dussel. Antes, porém, rege nessa negação um modelo
enclausurado de mímica. Na Fase do Espelho o eu percebe-se despregado de seu reflexo, mas na
“mímica colonial” aquele que se apresenta como modelo a ser copiado observa seu imitador como uma
espécie de cópia da qual ele mesmo exige uma maior semelhança. Em breves palavras, se a Fase do
Espelho traz a consciência do eu por meio de um não eu, a “mímica colonial” é uma relação de
anteposição, onde o ser continua operando o reflexo no espelho enquanto parte de si, rendida as suas
próprias vontades e cativa aos seus movimentos. À promessa de que tal contrafação conduzirá a uma
igualdade completa entre os pólos, a “imitação colonial”, na verdade, jamais permite tamanha
ocorrência. Isto porque, a regra a partir da qual essa imitação se produz é aquela do trompe d’oeil; uma
semelhança que nunca se completa, um sujeito colonial que sempre é “parcial”, “virtual”. Ele é sempre
um mímico, em tempo nenhum uma mimesis. Ele permanece um outro que nunca existe, pois não é
reconhecido na congruência da realidade infinita que lhe é própria. Antes, ele serve apenas a completar
a ontologia do eu.
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