UMA TEOLOGIA BÍBLICA DE REIS

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UMA TEOLOGIA BÍBLICA DE REIS
UMA TEOLOGIA BÍBLICA DE REIS
 INTRODUÇÃO
Os dois livros de Reis compreendem, na verdade, uma única obra literária, que a tradição
judaica preservou como uma unidade chamada “reis". Esta obra foi dividida em duas
partes pelos tradutores da Septuaginta, uma tradição continuada pela Vulgata e outras
traduções. Uma edição judaica de 1448 foi a primeira Bíblia hebraica a apresentar a divisão
de Reis.
As antigas versões relacionavam Samuel e Reis por título numa tentativa de refletir o tema
básico comum, a história da monarquia em Israel. A Septuaginta os chama de Primeiro a
Quarto dos Reinos, enquanto a Vulgata usa a palavra "Reis" e mantém a divisão em quatro
partes.
A presente divisão de Reis é bastante arbitrária, pois divide ao meio o reinado de Acazias, o
ministério de Elias, e o período de aliança entre os reinos de Judá e Israel.
Reis é uma obra anônima e não há certeza quanto à sua autoria. O livro dá evidências de
uma origem profética por suas freqüentes referências a profetas, nomeados ou anônimos,
tanto em Israel quanto em Judá. Outra razão para afirmarmos uma origem profética é a
ênfase em profecia e cumprimento (1Re 8.20 cf. 2Sm 7.13; 2Re 23.16-18 cf. 1Re 13.1-3, e outras
passagens).
Uma tradição judaica, preservada no Talmude, 1 atribui a obra ao profeta Jeremias, uma
possibilidade lógica, já que ele foi o profeta mais destacado da parte final do período préexílico.2 As várias ocorrências da expressão "até o dia de hoje" sugerem que o autor foi uma
pessoa que vivia em Judá durante os anos cruciais da deterioração daquele reino. Não é
historicamente impossível que Jeremias e/ou Baruque, seu colega e secretário, tenha(m)
escrito até mesmo o epílogo sobre a reabilitação política de Joaquim estabelece. As
semelhanças entre o epílogo de Jeremias (cap. 52) e os capítulos finais de Reis sugerem que
têm uma fonte comum. Uma vez que Jeremias 51.64 contém um cólofon que diz Aqui
terminam as palavras de Jeremias, e o capítulo 52 se tornou parte do livro, há uma boa
probabilidade que Baruque, "editor associado" de parte do livro (cf. Jr 36.18, 36), tenha
sido responsável pela inclusão do último capítulo e pela edição final do livro de Reis.
Quem quer que tenha sido o autor de Reis, certamente fez uso de fontes. Três são
mencionadas com freqüência. o livro das crônicas de Salomão, o livro das crônicas dos reis
de Israel, e o livro das crônicas dos reis de Judá. Não é certo se tais fontes eram registros
oficiais das cortes, que teriam de alguma forma sobrevividas à invasão e exílio, ou se eram
registros proféticos, mantidos por uma sucessão aparentemente ininterrupta de profetas
de Yahweh em Israel e Judá. Um argumento a favor desta última posição é a presença de
observações desairosas e negativas aos governantes, algo notável por sua ausência em
"diários oficiais". Além disso, o livro de Crônicas contém evidências de que os profetas de
Judá mantinham um registro de acontecimentos históricos (cf. 2 Cr 20.34; 26.22).
A data final de compilação deve ser colocada por volta de 550 a.C., à luz do epílogo, que
1
2
Talmud, Baba Bathra. p.15a.
John Gray afirma que a maior parte dos livros de Reis é de origem pré-exílica, com alguma atividade editorial
durante o exílio (I & II Kings, OTL, 7).
relata a reabilitação de Joaquim por Evil-Merodaque em 561 a.C.3
 CONTEXTO HISTÓRICO
Primeiro e segundo Reis traçam a história da monarquia de Israel durante quatro séculos
tumultuados, desde o reinado de Salomão (971 a.C) até a prisão de Joaquim na Babilônia
(562 a.C.). Eles retratam o reinado de Salomão, incluindo a construção do templo (1Rs 111), a era do reino dividido até a queda de Samaria (1Rs 12-2Rs 17) e os últimos anos de Judá
até o exílio babilônico (2Rs 18-15).
Deste modo, durante esse período de
aproximadamente 410 anos, o foco de
poder no Oriente Médio se deslocou
várias vezes. No início do livro Israel era
esse foco, que eventualmente passou à
Assíria e, finalmente a Babilônia.
Ocasionalmente Egito e Síria se tornavam
focos
temporários
de
atenção
internacional devido ao seu freqüente
relacionamento com Israel (cuja história
era sempre a lente pela qual os
acontecimentos no Oriente Médio eram
observados e analisados).
O quadro seguinte retrata os períodos de dominação de cada império e os representantes
principais durante os períodos de hegemonia.
Os Reinos do Oriente Médio Antigo entre 971 e 561 a.C.
Israel
Assíria
Babilônia
Egito
Síria
Salomão (971-931)
Acabe (874-853)
Adad-Nirari II
(909-889)
Assurnasirpal II
(883-859)
Salmaneser III
(858-824)
Ben-Hadade I
Jeroboão II (793-753)
Azarias (792-740)
Peca (752-732)
Tiglate-Pileser III (745727)
Salmaneser V
(726-722)
Ezequias (729-686)
Senaqueribe
(704-681)
Josias
(640-609)
Jeoaquim (608-598)
Joaquim (598-597)
Zedequias (597-586)
Rezim
Merodaque-Baladã
Tiraca
Nabopolassar
(625-605)
Neco II
(609-593)
Nabucodonosor
(605-562)
A história de 1e 2Reis não é só uma história política da monarquia. É uma interpretação
3
PINTO, Carlos Osvaldo. Teologia bíblica do Antigo Testamento. Atibaia: Seminário Bíblico Palavra da Vida,
2000. p. 97.
profética de como cada rei afetou o declínio espiritual de Israel e Judá. Os reis que tiveram
maior impacto religioso recebem mais atenção. Por exemplo, Onri foi um dos reis mais
importantes na história do Antigo Oriente Próximo, mas seu reinado é mencionado em
poucos versículos apenas (1Rs 16.23-28).
Os reinos gêmeos de Judá e Israel surgiram
como resultado da infidelidade de Salomão à
aliança deuteronômica, que ao longo do
livro serve como um termômetro espiritual
para a nação e seus governantes. As dez
tribos do reino do Norte mantiveram o
nome Israel. O reino Sul recebeu o nome da
tribo dominante, Judá. Os livro de Reis
explicam, por meio dos reinos divididos,
como a história é regida pela lei moral de
Deus.
Todos os reis do reino do Norte foram condenados por causa do culto idólatra. Nisso,
seguiram os caminhos do primeiro rei de Israel, Jeroboão, que introduziu o culto a
bezerros em Dã e Betel (por exemplo, 15 1Rs 15.25-26, 33-34). Os reis do sul, Judá, foram
aprovados quando seguiram o pai deles, Davi (por exemplo, 15.13). Só Ezequias e Josias
encontraram plena aprovação porque eliminaram os lugares altos e reformaram o culto
corrompido do templo (2Rs 18.1-8; 23.24-25).4
As causas "humanas" para a divisão foram a excessiva taxação imposta a todas as tribos por
Salomão para sustentar seu mega-estado.
Como a união já vinha enfraquecida desde os dias das revoltas de Absalão e Seba ben-Bicri,
o benjamita (cf. 2Sm 20), a exploração econômica e social (trabalho forçado) durante o
reinado de Salomão precipitaram a crise no início do reinado de Reoboão. O que fora um
grito de revolta no caso de Seba (2Sm 20.2) acabou por se tornar o refrão popular do
movimento secessionista de Jeroboão (Que parte temos nós com Davi? Não há para nós
herança no filho de Jessé! Às vossas tendas, ó Israel; 1Re 12.16).
Como indicou Homer Heater,5 sempre houve duas forças em operação em Israel. A força
centrífuga era a tendência das tribos buscarem sua existência independente como nos
períodos da conquista e dos juízes, e essa força se manifestou quando, desiludidos com os
rumos da monarquia, os israelitas reivindicaram um alívio da centralização e do que viam
como uma exploração das demais tribos pela tribo de Judá.
Por outro lado, a força centrípeta era de natureza religiosa, pois o povo estava fortemente
ligado ao santuário central e ao sacerdócio levítico, que se achavam centralizados em
Jerusalém desde o tempo de Davi. Esse laço se tornara ainda mais forte com a construção
do magnífico templo de Salomão. Tirando proveito da força centrífuga latente desde o
tempo dos juízes, Jeroboão percebeu que seria necessário anular o efeito aglutinador da
religião, e por isso, junto com a nova (e supostamente menos estatizada) monarquia, criou
um novo culto sincrético,6 com sacerdócio próprio, calendário diferente e dois santuários,
4
5
6
MALKOMES, Robinson, SAYÃO, Luiz A., YOSHIMOTO, Daniel A. Manual bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova,
2001. p.283.
HEATER, Homer. A Theology of Samuel and Kings, em Biblical Theology of the Old Testament, editado por
Zuck, p.117.
William S. LaSor et al. sugerem que o culto de Jeroboão era originalmente a Yahweh, mas que os bezerros de ouro,
concebidos como o trono da divindade (como a Arca o era no Tabernáculo, cf. Sl 99:1) logo foram associados com os
Betel ao sul e Dã ao norte.
Essa estrutura de dois poderes e duas religiões dentro de uma mesma etnia gerou conflitos
político-econômicos e religiosos que contribuíram para agravar o problema espiritual de
desobediência à aliança e apressar o desaparecimento da monarquia como agente da
teocracia na história.
 CRONOLOGIA DE REIS
Para os intérpretes, é difícil entender como os cronistas calculavam as datas dos reinados.
Os reinados são datados pela comparação da data em que um governante começou a
reinar com o número de anos que seu par, no outro reino, havia reinado. O tempo do
reinado é fornecido para cada rei. Mas há dificuldades para conciliar as várias datas. Para
completar, Judá e Israel podem ter seguido calendários com o início do ano em diferentes
épocas. Por fim, pode ter havido diferenças em como governantes contavam o início de
seus reinados. Alguns começavam a contar pela coroação, enquanto outros começavam a
contra só após o primeiro ano do reinado. Assim, os estudiosos procuram fazer
reconstruções, até mesmo sobrepondo reinados de país e filhos, para ajudar a explicar as
datas.
Não há consenso entre os estudiosos sobre todas as datas dos reis. As diferenças não são
tão extraordinárias que impeçam nosso entendimento do cenário histórico do período. A
cronologia sugerida abaixo deriva a maior parte de seus dados da obra de Edwin Thiele: 7
Uma cronologia do livro de Reis
ISRAEL
Jeroboão
Nadabe
Baasa
Elá
Zinri
Onri
Acabe
Acazias
Jorão
Jeú
931-910
910-909
909-886
886-885
885
885-874
874-853
853-852
852-841
841-814
Jeoacaz
Jeoás
Jeroboão II
Zacaria
Salum
Menaém
Pecaías
Peca
Oséias
814-798
798-782
793-753
753
752
752-742
742-740
752-732
732-722
JUDÁ
Abias
Roboão
Asa
931-913
913-911
911-870
Josafá
873-848
Jeorão
Acazias
Atalia
Joás
Amazias
Azarias
848-841
841
841-835
835-796
796-767
792-740
Jotão
750-731
Acaz
Ezequias
Manassés
729-686
696-642
deuses de Canaã, principalmente Baal, que tinha por um de seus símbolos um touro (Old Testament Survey, 259).
7
Edwin Thiele: The Mysterious Numbers of the Hebrew Kings e de sua atualização por Leslie McFall.
Embora não seja a última palavra no assunto e padeça de algumas pressuposições inaceitáveis, o sistema proposto por
Thiele (a prática de co-regências, diferentes métodos de datar os reis em Israel e Judá,a existência de reinos rivais no Norte
e considerações relativas aos calendários civil e religioso) reduziu significativamente os problemas e produziu uma certa
medida de consenso entre estudiosos evangélicos. Leslie McFall retrabalhou o sistema de Thiele com pressuposições mais
bíblicas e propôs um modelo ainda mais próximo do que os autores bíblicos tinham em mente ("Has the Chronology of
the Hebrew kings been finally settled?", Themelios 17:1 (out.-nov. 1991): 6-11.
Amom
Zedequias
Jeoacaz
Jeoaquim
Joaquim
Josias
642-640
597-586
609
608-598
598-597
640-609
 FORMA LITERÁRIA
Reis não possui a complexa estrutura literária de Samuel. Seu plano é mais simples e
consiste basicamente de estabelecer contrastes e comparações ao que o autor/editor
percebia como os padrões máximos de fidelidade e infidelidade a Yahweh e Sua aliança,
Davi e Jeroboão.
Isso não significa que não haja arte ou teologia na maneira em que as narrativas e
avaliações foram ordenadas no livro.
Reis possui um propósito didático, que cumpre sem recorrer às distorções ou exageros
típicos das crônicas reais de outras nações do Oriente Médio Antigo, 8 pois os reis de Israel
e Judá são retratados como indivíduos sujeitos a fracassos morais, políticos e militares.
O propósito mais amplo do livro era oferecer às gerações exílica e pós-exílica uma
explicação coerente para o fato do povo escolhido por Yahweh ter-se reduzido a um
punhado de escravos em Babilônia, bem como uma esperança diante de tal fracasso. Para
atingir este propósito, o autor/editor dá atenção mais detalhada a certos eventos e
personagens, particularmente aqueles que demonstram mais claramente que o fracasso
temporal da monarquia teocrática não se deveu a alguma falta de poder ou falha de caráter
de Yahweh, mas pela falta de conformidade do povo à aliança assumida no Sinai e
renovada nas campinas de Moabe.
Um dos fatores que demonstram essa proposta é a proporção. Levando-se em conta que o
livro cobre um período de 410 anos em 47 capítulos, vemos que a descrição dos 40 anos do
reinado de Salomão cobre 11 capítulos, dos quais nada menos que 4 são dedicados à
construção e dedicação do Templo. Basicamente 3 capítulos são dedicados à ascensão e ao
reinado de Jeroboão, que tomaram 22 anos. Os ministérios de Elias e Eliseu, que juntos
duraram cerca de 40 anos, merecem nada menos que 19 capítulos, em que muitas vezes a
narrativa é extremamente detalhada. Em contraste, Onri, que fundou a terceira dinastia de
Israel e edificou Samaria, e foi tão importante aos olhos de seus contemporâneos que
Israel era frequentemente mencionado em inscrições do OMA como "a casa de Onri",
merece apenas um parágrafo.
Outro fator literário que orienta o leitor a essa dupla percepção de fracasso e esperança
com relação ao tema fundamental que é a monarquia teocrática, é o uso de um recurso
chamado inclusio, que consiste em utilizar o mesmo tema como uma espécie de
parênteses para indicar que o todo está tratando do mesmo assunto ou deve ser olhado da
mesma perspectiva teológica. Este parece ser o alvo da inclusão da luta fratricida no início
do livro (que mostra que divisão interna e intriga palaciana não puderam anular a aliança
davídica) e da inclusão da reabilitação de Joaquim como epílogo do livro (que mostra que
8
WALTON, John, Ancient Israelite Literature in Its Cultural Context, p. 119.
nem mesmo destruição e exílio puderam extinguir a esperança de que a linhagem davídica
viesse a produzir o Filho de Davi, cujo trono seria eterno).
Dois discursos contidos no livro focalizam o tema da observância à aliança e as
conseqüências de sua desobediência. O primeiro que focaliza o Templo como meio de
expressão da lealdade mútua exigida pelo pacto deuteronômico, está contido na bênção e
oração de Salomão (1Re 8.12-61). Esse discurso era importante porque a inauguração do
Templo marcou, de maneira efetiva aos olhos do povo, a total integração da vida de Israel
como monarquia teocrática. O segundo discurso vem do próprio autor/editor (2Re 17.723), ao explicar a causa do cativeiro das dez tribos do Norte, creditado à falta de lealdade
pactual (17.15). Prolepticamente, o autor/editor avança até o cativeiro babilônico ao
comentar sobre Judá e seu exílio (17.19-20). Por outro lado, a oração do rei na dedicação do
Templo, calcada em Deuteronômio 4 e 28, já acenava com a possibilidade do cativeiro sim,
mas também da restauração, que o autor/editor deixa em germe na reabilitação de
Joaquim (25.27-30).
 MENSAGEM
À luz destas observações, a seguinte mensagem é proposta para o livro de 1 e 2 Reis:9
A infidelidade nacional às alianças deuteronômica e davídica trouxe o inevitável
colapso da monarquia depois de repetidas manifestações de misericórdia divina,
que adiaram o castigo em Judá e preservaram um remanescente em Israel.
 TEOLOGIA DE REIS
Yahweh é apresentado no livro de Reis primariamente como o Deus das alianças. Ele é o
mesmo Deus que Se revelou a Israel no Sinai (cf. 1Re 19), e que agora Se mostra fiel das
demonstrações de misericórdia e na execução da justiça de acordo com as promessas da
aliança.
A. Yahweh é santo. Este atributo é visto mais frequentemente no julgamento contra os
que violam os preceitos da aliança mosaica do que em declarações formais encontradas
no texto. Reis é, ao lado de Juízes, o exemplo principal da justiça de Yahweh, isto é, de
Sua santidade em ação. Assim, o juízo contra Salomão vem porque a santidade e a
singularidade de Yahweh são ofendidas pela sua tolerância com a idolatria e posterior
adesão a ela (1Re 11). De igual modo, Jeroboão perde a bênção de Yahweh e traz
maldição sobre sua dinastia por causa de suas perversões idólatras, que se tornaram o
padrão pelo qual Israel media o mal.10
Talvez o exemplo mais dramático do zelo de Yahweh por Sua santidade é o do homem
de Deus que foi morto por um leão por não obedecer estritamente à ordem que havia
9
10
PINTO, Carlos Osvaldo. Teologia bíblica do Antigo Testamento. Atibaia: Seminário Bíblico Palavra da Vida,
2000. p.101.
A promessa feita a Jeroboão é marcadamente distinta daquela que foi feita a Davi. Seu caráter era eminentemente
condicional (1 Re 11:38), em contraste com a aliança de doação real feita a Davi (2 Sm 7:8-16, especialmente os
versículos 15-16).
recebido (1Re 13.11-33). O exemplo mais conhecido, é claro, é a confrontação entre Elias
e os profetas de Baal (18.16-40), onde a santidade e a singularidade de Yahweh foram
magnificamente vindicadas.
2. Yahweh é gracioso. Ele demonstra Seu amor leal a Seus servos (1Re 8.22), derrama
copiosamente riqueza e sabedoria (1Re 3.12-14), restringe o julgamento à vista do
arrependimento do mais vil pecador (1Re 21.28-29), cura estrangeiros e lhes revela o
Seu caráter (2Re 5.1-19a), e não abre mão de Seus propósitos graciosos mesmo quando
Seu próprio profeta sugere que um Israel crivado de pecados chegou "ao fim da picada"
pactual (1Re 19.9-18).
As profundezas da graça de Yahweh se encontram, todavia, na Sua preservação da
linhagem davídica mesmo em face da mais grosseira idolatria e infidelidade moral.
Salomão (1Re 11.35), Abias (1Re 15.4), e até mesmo o piedoso Ezequias (2Re 20.12-21) são
exemplos de tal graça preservadora expressa nos termos das promessas incondicionais
das alianças abraâmica e davídica.
3. Yahweh é fiel. A fidelidade divina já é reconhecida por Salomão como o elemento
chave em sua subida ao trono e na construção do templo (1Re 8.20). Falhas humanas
subseqüentes não invalidam as promessas de Deus assim como a presença de nuvens
escuras não invalida a realidade do sol. De fato, como Gerhard von Rad sugeriu, "a
crítica parcialmente destrutiva dos reis de Judá e Israel teve assim o seu aspecto
positivo e o Deuteronomista serviu-se dela para preservar de qualquer alteração ou
usurpação o que, na sua opinião, era o verdadeiro sentido da profecia de Natã". 11
O epílogo sobre a reabilitação de Joaquim é uma indicação clara da fidelidade pactual
de Yahweh. Além disso, o Deus que chama para Si a responsabilidade de cumprir Suas
alianças é também fiel em preservar um remanescente para o qual tais promessas
venham, eventualmente, a se tornar realidades (cf. 1Re 19.18). Uma nota de solene
advertência é que esta fidelidade às promessas inclui as promessas de juízo. Mesmo a
profunda conversão e devoção de um Josias é incapaz de deter a maré da ira pactual de
Yahweh contra o entulho idólatra e imoral acumulado por um Manassés (2Re 23.26),
cuja influência acompanhou Judá até 586 a.C., quando Nabucodonosor destruiu
Jerusalém.12
 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS
A. O decreto da permissão do mal. No livro de Reis o mal aparece na luta espiritual pelo
coração dos reis, primariamente os da linhagem de Davi, que são confrontados com a
escolha de seguir os passos de seu ilustre antepassado ou os caminhos tortuosos da
idolatria, quer em sua versão jeroboâmica, quer na versão baalística. Outras forças do mal
são a guerra entre os reinos (Norte-Sul) e, no plano político da teocracia, a subserviência a
potências estrangeiras com vistas à segurança e à sobrevivência da nação, muitas vezes às
custas dos tesouros sagrados de Israel. Tal prática foi condenada veementemente pelos
11
12
Teologia do Antigo Testamento, 1:332.
Este elemento corporativo que não se manifestou nos Juízes e esteve tão presente em Samuel e Reis é fonte de
inquietação para von Rad, Teologia 2:333. A diferença entre os períodos está ligada à escolha do povo e ao fato de
que uma vez assumida a autoridade real, a misteriosa identidade corporativa entrava em ação. Além disso, Israel de
fato assumira o estilo de vida cananeu e trouxera, com isso, sobre si a ira santa do Deus que pronunciara um 
 
(herem, "edito de aniquilamento") contra Canaã.
profetas como adultério pactual.
B. A ação divina em julgar o mal. Esta atividade assumiu formas diversas em Reis. O mal em
Israel e Judá foi muitas vezes purgado por meio de invasão e opressão estrangeira (Yahweh
usou egípcios, siros, moabitas, filisteus, assírios e babilônios para isso). No plano interno o
juízo foi mediado por profetas (Elias e Eliseu) e reis (Jeú, que desmantelou o aparato
estatal baalista montado por Acabe e Jezabel; [2Re 9-10] e Jeoás, que puniu o idólatra e
arrogante Amazias; cf. 2 Cr 25.14).
C. A promessa de libertar do mal. É esta promessa que garante a subsistência de Judá ao
tempo do cisma de Jeroboão (1Re 11.12-13), no tempo da apostasia de Abias (1Re 15.4-5), no
tempo da trama diabólica de Atalia para eliminar a linhagem de Davi (2Re 11.1), e no quase
aniquilamento de Judá durante a invasão de Senaqueribe (2Re 19.24; 20.6).
D. O decreto de abençoar os eleitos. Esta linha de ação divina está presa à aliança davídica,
que é mais notável no livro pelo fracasso de seus representantes; isso mantém acesa na
mente do leitor a questão de quando viria o Filho de Davi, tão esperado. O propósito
divino de restabelecer Seu governo por intermédio de um rei davídico exigia o surgimento
de alguém maior que Davi. Mesmo seus descendentes mais piedosos, Ezequias e Josias,
fracassaram na tarefa de conquistar o mal (cf. Gn 4.7). A linhagem davídica é preservada
no cativeiro, e os leitores chegam ao fim do relato insatisfeitos com o resultado, mas
esperançosos quanto ao futuro, aguardando a eventual aparição do Filho de Davi e do
pleno cumprimento da aliança.
 CULTO E PROFECIA COMO INSTRUMENTOS DA TEOCRACIA
A. O Culto. Uma grande parte da teologia do Antigo Testamento gira em torno do culto
mosaico e do lugar onde era realizado. A própria nação só ganhou tal status quando o
Tabernáculo foi inaugurado e a presença de Yahweh se tornou visível ao povo. Com a
entrada em Canaã tornou-se necessário definir claramente o que era um culto aceitável,
principalmente pelas semelhanças conceituais e verbais entre o yahwismo e as religiões
cananitas.
Uma aparente tensão que existiu desde o começo da habitação em Canaã foi a
centralização do culto exigida em Deuteronômio 12, 14 e 16 e a existência dos famosos
(bamôt, "altos"), onde todo Israel, dos camponeses aos monarcas, adorou. A ala
liberal da erudição fez dessa aparente tensão uma tensão real e a base de sua datação
recente para Deuteronômio e outras partes do AT. Talvez seja mais apropriado aceitar a
idéia proposta por M. H. Segal de que Deuteronômio não insistia num lugar único, mas
em que o lugar fosse divinamente aprovado (i.e., não fosse um local de culto sincrético). 13
Isso explicaria a nota crítica com respeito a alguns reis."Os altos, todavia, não foram
removidos" (1Re 15.14; 22.44).
Quando o Templo foi construído, Israel partiu de uma premissa básica, a de que o Templo
não poderia conter ou limitar a Yahweh, que era universal e onipresente (cf. 1Re 8.27). O
templo era o local de Sua manifestação em glória, beleza, santidade e justiça, onde o
desfavorecido e explorado podia buscar ajuda (8.21). A universalidade de Yahweh era vista
no fato do estrangeiro poder orar a Ele, caso tivesse se identificado com Seu povo (8.41-43),
13
The Book of Deuteronomy, Jewish Quarterly Review 48 (1957-8):315-51.
e no fato de que a oração de Israel no Exílio seria ouvida se dirigida ao Templo (8.46-51).
Certamente esta passagem é a base da ação de Daniel quando confrontado com o edito de
Dario (Dn 6) e com o fato dos setenta anos de cativeiro preditos por Jeremias estarem se
cumprindo (Dn 9). Essa prática permanece na mentalidade islâmica.
Infelizmente, com o passar dos séculos, a confiança foi desviada dAquele que habitava no
Templo para o Templo em si, o mesmo erro que Israel praticou em relação à Arca (1 Sm 4).
Jeremias foi o profeta que mais veementemente atacou tal hierolatria (cf. Jr 7).
B. A Profecia. O movimento profético teve em Samuel o seu "fundador" oficial. A "escola de
profetas" ainda incipiente e "carismática" em 1 Samuel 10 aparece mais organizada e
"teológica" nas narrativas de Elias e Eliseu.
Os profetas aparentemente gozavam de uma condição implicitamente aceita pela nação,
que os colocava acima dos reis. Isso pode ser creditado ao fato de que Moisés era visto
como o profeta por excelência, e que servira de intermediário entre Yahweh e Israel. A
etimologia da palavra hebraica profeta (aybin") é incerta, mas o certo é que em Reis,
profetas ungem e repreendem reis, dão conselho baseado em revelação divina, 14 e
acompanham os exércitos à guerra (Odebe e Eliseu são dois exemplos) como porta-vozes
de Deus.
Elias e Eliseu são dois casos únicos no movimento profético em Reis, pois cumprem uma
função sócio-político-religiosa singular, a de ministrar a graça pactual de Yahweh na
resistência ao Baalismo e no desmantelamento do aparato religioso criado para sustentar
essa falsa religião.
Enquanto o ministério de Elias foi primariamente de julgamento, o de Eliseu foi de
misericórdia, o que fornece um paralelo marcante aos ministérios de João Batista e de
Jesus.15
14
15
É verdade que Natã dá precedente para vermos que o profeta era, ocasionalmente, o amigo do rei que dava
conselhos baseados em opinião pessoal e bom senso. Sem dúvida Isaías exerceu tal papel em relação a Ezequias,
e Jeremias.
PINTO, Carlos Osvaldo. Teologia bíblica do Antigo Testamento. Atibaia: Seminário Bíblico Palavra da Vida,
2000. pp.101-103

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