DUPLA HOMENAGEM A JOHN CAGE

Transcrição

DUPLA HOMENAGEM A JOHN CAGE
l Segundo Caderno l
Sexta-feira 17.8.2012
O GLOBO
l 3
ANA BRANCO
Emiliano, de
Geni a Dirceu
‘Na sobremesa da vida’, que estreia hoje, retrata trajetória do
ator que interpretou mais de 300 personagens em 60 anos
MAURO VENTURA
[email protected]
A
o receber a ligação de Emiliano
Queiroz convidando-o para dirigir uma peça sobre sua vida, Ernesto Piccolo lembrou-se da Geni do
musical “Ópera do malandro”, do Dirceu Borboleta da novela “O bem-amado”, do Veludo da peça “A navalha na
carne” e de outros papéis marcantes.
— Chorei emocionado — diz Piccolo.
O resultado é “Na sobremesa da vida”,
que estreia hoje, às 19h, no Teatro dos
Quatro. É difícil mesmo resistir a Emiliano. Numa cena, ele simularia o que se
deu nos anos 1970, quando Chico Buarque telefonou chamando-o para viver Geni. Mas Chico surpreendeu o
ator e fez questão de gravar a ligação
para a peça, como se fosse na época.
Dessa forma, em vez de narrar o que
aconteceu, entra a voz de Chico.
A peça celebra 60 anos de carreira.
Uma trajetória profissional iniciada aos
15 anos em Fortaleza. Ao longo de 70
minutos, o espectador acompanha alguns dos seus mais de 300 personagens, além de episódios importantes,
como quando foi chamado pela autora
cubana Glória Magadan para escrever
“Anastácia, a mulher sem destino”, sob
a supervisão dela. Glória não ficou a
seu lado, e, diante dos problemas de
audiência, Emiliano sugeriu chamar Ja-
nete Clair, que estava na Tupi. Ela assumiu e matou mais de 300 personagens
num terremoto, menos quatro. Mais
tarde, Janete fez para o ator o Juca Cipó
de “Os irmãos coragem”.
— Ele era um cara péssimo — conta
Emiliano. — O primeiro estupro da TV
brasileira foi dele com a personagem
da Suzana Faini. Falei com o Daniel Filho (que dirigia a novela) que queria
amenizar isso. Achei, por exemplo, que
seria mais engraçado se ele viesse de
bicicleta em vez de a cavalo. Ele e Janete concordaram. Transformei o personagem. Virou gaiato e inconsequente.
A mesma liberdade ele ganhou em “O
bem-amado”, de Dias Gomes, marido
de Janete. A gagueira de Dirceu Borboleta surgiu por acaso.
— Numa cena o Odorico Paraguaçu
do Paulo Gracindo começou a brigar
comigo. Na discussão, minha voz não
vinha. Eu tentava, era interrompido pelo Paulo. Quando falei veio a gagueira.
Ao fim da novela, foi chamado ao departamento de pessoal da Globo. Diante do sucesso do personagem, achou
que ia receber aumento.
— Fui demitido. Sai dali em estado de
choque. E a novela foi reprisada em seguida. Ou seja, eu estava com a popularidade que não podia sair na rua e sem
um tostão no bolso. E não podia trabalhar em outro lugar porque estava no ar.
Ele e a mulher resolveram fazer uma
Celebração. Emiliano Queiroz, o Dirceu Borboleta de “O bem-amado” e a Geni de “Ópera do malandro”, é dirigido por Ernesto Piccolo
“Ela gritava:
‘A ssassino!’ E me
batia com o
guarda-chuvas.
Queria me punir”
Emiliano Queiroz
Ator
volta ao mundo. No Japão, fez cursos de
Nô e Kabuki. Em Nova York, foi ouvinte
das aulas de Lee Strasberg.
À medida que conta a história, Emiliano interpreta a narrativa. Após dizer
“quando tinha 6 anos subi num palco
pela primeira vez na vida”, se transforma no menino. Ao longo da peça, surgem projeções, que ajudam a ilustrar as
passagens. Aparecem figuras como Leila Diniz, Marília Pêra, Dulcina de Moraes, Dina Sfat, Fernanda Montenegro.
Também estão retratadas as dificuldades com a Censura, a ligação com a
mãe e até uma cena em que apanha de
uma senhora nas Lojas Brasileiras, na
época em que fazia um vilão em “O
sheik de Agadir” e seu personagem havia matado o de Claudio Marzo.
— Ela gritava: “Assassino! Assassino!”
E me batia com o guarda-chuvas. Queria me punir. Tinha assistido ao crime
na TV e me via livre no dia seguinte.
Três outros atores estão em cena. Ivone Hoffmann interpreta sete papéis,
como a mãe do ator e sua mulher, Letícia, que assina o texto do espetáculo. A
neta de Emiliano, Ana, oito. E Antonio
dos Santos, 13. O cenário de Rosa Magalhães, também responsável pelos figurinos, traz apenas dois blocos de madeira, que se transformam em banco de
praça, púlpito, boleia de caminhão —
ele saiu de seu Ceará natal para São
Paulo com pouco mais de 20 anos .
— A peça também é um panorama da
história do teatro, da TV e do cinema
brasileiros — diz Piccolo. l
LEONARDO AVERSA
DUPLA HOMENAGEM A JOHN CAGE
Trienal de Ruhr começa na
Alemanha com a montagem
das ‘Europeras 1 & 2’
R
Inspiração. Paixão de Leonardo Lapagesse guia peça de Marcelo Pedreira
NA TRILHA DE
MICHAEL JACKSON
Inspirada na relação
entre fã e ícone pop,
‘Michael e eu’ chega
hoje aos palcos
LUIZ FELIPE REIS
[email protected]
N
o dia 25 de junho de
2009, o mundo de Leonardo Lapagesse parou.
Michael Jackson não iria mais
cantar, dançar ou se comunicar com ele. O maior ídolo pop
da História estava morto. E seu
maior fã brasileiro, em estado
de choque. Lapagesse passou
48 horas concedendo entrevistas e revelando aos jornalistas
o seu monumental acervo. Até
dar um basta. Largou jornalistas e emprego e voou para Los
Angeles, onde conseguiu uma
pulseira que lhe deu acesso ao
velório do ídolo. Na volta, ainda carregava a tal pulseira, que
permaneceu intocada por semanas. A saga emocionou
Marcelo Pedreira, que se inspirou na relação entre o fã e o
ícone pop para escrever “Michael e eu”, que estreia hoje no
Teatro do Leblon, com direção
de Ivan Sugahara.
— Larguei o emprego, perdi
dez quilos, deixei de ser vegetariano e decidi recomeçar a
minha vida — diz Lapagesse.
Hoje, ele é o diretor musical
da peça que tem a sua própria
vida como base:
— Eu choro todos os dias —
diz. — Apesar de saber que o
Marcelo criou uma ficção, me
reconheço em muitas cenas.
Não à toa, a peça, cujo protagonista se chama Leo, apresenta a história de um fã que,
após retornar do velório de Michael Jackson, se vê impossibilitado de se livrar de uma pulseira e de retornar à rotina.
— Na peça, a pulseira representa o aprisionamento, expressa simbolicamente o luto
desse fã em meio à tristeza de
perder seu ídolo — diz o autor.
É do fundo dessa depressão
que Leo (Pedro Henrique
Monteiro) procura ajuda médica. Encontra pela frente Doc
(Bruno Garcia), uma espécie
de Dr. House pop e excêntrico,
que o desafia a provar o porquê de seu fascínio. A partir
daí, o divã sai de cena, e a peça
vira show. Atores — e também
dois sósias de MJ — dançam
ao som de “Thriller” e respondem a imagens projetadas que
remontam a trajetória de MJ.
— Faço um paralelo entre os
astros pop e os deuses do
Olimpo, que, apesar de seus
dons fora do comum, tinham
limitações humanas, eram falhos. Revelamos esse lado humano do Michael. A tristeza de
não ter tido infância, e a sua
sensibilidade, que marca o talento como a vulnerabilidade.
Observando a cultura pop
tomar o espaço do sagrado, a
peça, no entanto, não condena
a idolatria, e nem prejulga a
obsessão do protagonista.
— O que ele tem é uma relação profunda, estável. Não é
um rompante juvenil. Cada
um escolhe o seu deus, de
acordo com suas tendências. O
meu é o John Lennon, o do Leo
é o Michael — diz o autor. l
ealizada desde 2002 em ciclos
trienais no Vale do Ruhr, na Alemanha, a Ruhrtriennale inicia
hoje a sua mais imponente edição.
Pensada como uma mostra de artes
multidisciplinar, até o dia 30 de setembro ela cumpre a sua primeira fase, reunindo alguns dos mais expressivos nomes das artes contemporâneas em performances de teatro, dança, ópera, ar-
tes visuais, live art e concertos. Com curadoria assinada pelo diretor teatral e
maestro Heiner Goebbels, a Ruhrtriennale 2012 presta uma homenagem ao
compositor John Cage em sua abertura, quando será apresentada a monumental “Europeras 1 & 2”, além de uma
leitura guiada pelo diretor Robert Wilson para o “Discurso sobre nada”, escrito pelo músico americano. Em 2012 celebra-se tanto o centenário como os 20
anos da sua morte, ocorrida em 1992.
Reconhecido como um dos mais inovadores diretores teatrais do mundo,
tendo conquistado o International Ibsen Awards 2012, Goebbels assina a di-
reção de “Europeras 1 & 2”. A obra,
apresentada pela primeira vez em
1987, é um marco na carreira de Cage, e
talvez seu mais engenhoso empreendimento. Reunindo 128 fragmentos de
óperas criadas por célebres compositores ao longo dos séculos XVIII e XIX, a
obra tomará um imenso galpão, onde
32 diferentes cenários se revezam ao
longo da execução. Até o fim da Ruhtriennale, apresentam-se diretores como
Romeo Castelucci (“Folk”), Robert Lepage (“Playing cards 1”), Jerôme Bel
(“Disabled theatre”) e Anne Teresa de
Keersmaeker, com sua companhia Rosas. (Luiz Felipe Reis) l