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II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte 13 a 15 de setembro de 2010 - Belém (PA) Grupo de Trabalho: Sociologia das Interpretações da Amazônia Desafios da Amazônia na visão atual de Gilberto Freyre Autor Edgard Costa Oliveira Universidade de Brasília – UnB, Campus Gama Co-autor Josiane de Socorro Aguiar de Souza Universidade de Brasília – UnB, Campus Gama Resumo Este artigo apresenta a visão do sociólogo Gilberto Freyre acerca dos desafios impostos de ocupação humana na Amazônia e como as engenharias podem colaborar para o desenvolvimento nessa região. O autor apresenta no livro Homens, engenharias e rumos sociais, obra publicada no ano de sua morte (1987), dois capítulos referentes a como o país pode lidar com as questões de desenvolvimento nas selvas brasileiras, em especial a Amazônia. Para tanto, Gilberto Freyre apresenta o conceito de: engenharia física manifestada em todas as coisas técnicas ou construções, a serviço essencial e imediato dos homens; a engenharia humana - cuida das relações antropométricas do homem com os produtos da engenharia física; e a engenharia social - responde pelas inter-relações de ordem social entre os homens uns com os outros e com as instituições. Fala da questão de como a rodovia Transamazônica poderá ser habitada ou domesticada por meio de engenheiros humanos e sociais associados aos engenheiros físicos, por meio de soluções tecnologicamente pós-modernas de vida. Faz ver que a Transamazônica não pode ser um simples empreendimento de engenharia física sobre um espaço considerado apenas na sua ecologia biofísica. O autor traz de maneira polêmica questões como a importância de agregar a Amazônia ao complexo nacional, revelado por meio da ocupação ordenada dos espaços rurais e urbanos com base em uma política social estruturada em parceria com a política econômica de subsistência formada por três tipos de lideranças: o científico-técnico, o humanistacientífico e o político. Finaliza a obra relembrando que para a construção da transamazônica, assim como na construção de Brasília, os engenheiros físicos não consultaram engenheiros sociais e humanos para considerar as repercussões dessa arquitetura estética. Palavras-chave: Amazônia, Transamazônica, BR-163, engenharia física, engenharia humana, engenharia social. Apresentação A área amazônica representa uma das últimas reservas de energia feminina num mundo excessivamente dominado, através das grandes forças civilizadoras que vêm submetendo a natureza a seu jugo, pelo poder apenas masculino. G.F. A obra Homens, engenharias e rumos sociais de Gilberto Freyre foi, aparentemente, o último livro escrito pelo grande Mestre de Apipucos. O livro foi publicado em 1987, ano de sua morte, com o subtítulo Em torno das relações entre os homens de hoje, sobretudo os brasileiros, e as três engenharias indispensáveis a políticas de desenvolvimento e segurança, por um lado, e, por outro, a ajustamentos a espaços e a tempos – a engenharia física, a humana e a social – considerando-se, inclusive, o desafio, a essas engenharias, das selvas do Brasil: em particular, das amazônicas. O grande brasileiro deixou esta vida concluindo, em suas 200 páginas, o que é a engenharia na prática real brasileira, em especial como ela pode, colaborar, por meio de suas três expressões, física, social e humana, com o desenvolvimento da Amazônia. O autor, consagrado internacionalmente por suas grandes obras-primas – como Casa Grande e Senzala de 1933; Sobrados e Mucambos de 1936 – é também reconhecido por ter revelado na obra Nordeste de 1937, pela primeira vez em língua portuguesa o uso dos termos ecologia, equilíbrio ecológico e poluição, termos que outrora não haviam sido utilizados na literatura nacional. A segunda edição do livro acaba de ser lançada, em agosto de 2010, durante a FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty-RJ, cuja oitava edição homenageou o próprio Gilberto Freyre e seus 110 anos de nascença e histórias contadas sobre o Brasil. Durante os 5 dias de Flip, um público de duas mil pessoas, composto por diversos estudiosos, críticos, escritores, sociólogos e leitores discutiram e leram Freyre. As edições anteriores da Flip já homenagearam nos últimos oito anos autores consagrados: Manuel Bandeira, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Jorge Amado, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Vinícius de Moraes. Em um momento em que as idéias de Gilberto Freyre estão tão em voga na pauta literária e acadêmica brasileira, diversas obras suas foram reeditadas e lançadas, a citar a própria Flip e a Bienal do Livro de São Paulo, ambas em agosto de 2010. Nesse embalo, a obra Homens, engenharias e rumos sociais ganhou uma nova e segunda edição. A primeira edição da obra é pouco conhecida pelos seus leitores e pesquisadores em geral. Os leitores de Freyre e os acadêmicos da sociologia ainda não a utilizam como base para o entendimento do pensamento do autor, assim como referência para estudos sociológicos sobre a questão da ocupação e exploração ecológica da Amazônia. A pluralidade de programas de governo do Brasil, derivados das políticas públicas com tema de desenvolvimento da Amazônia, se destaca quando esses programas são comparados com os de outras regiões do país. Apesar disso, o cenário de desenvolvimento da região teve pouca mudança. Permanecem as desigualdades demográficas, sociais e econômicas. O país ainda carece de mecanismos políticos que se articulem com as ações de órgãos federados, com os movimentos sociais e com as dinâmicas de mercado, o que revelaria um pouco da interdisciplinaridade proposta por Freyre para resolver os desafios da Amazônia, a qual apresentaremos neste artigo. Na década de 1960, sob o lema de propaganda “Terra sem homens para homens sem terra”, o planejamento público federal criou a rodovia BR- 230 (Transamazônica) assim como a BR-163 e seus respectivos assentamento rurais. A rodovia Transamazônica é a terceira maior do país, ligando a Paraíba a Lábrea no Amazonas, com 4.000 km de comprimento, sem pavimentação. Ela foi projetada durante do governo do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969 a 1974), sob a justificativa de integração nacional e inaugurada em 1972. A BR-163 liga Santarém a Cuiabá e tem 1780 km. Visando melhorar esse cenário de desigualdades socioeconômicas e de degradação ambiental, foram elaborados o programa Plano Amazônia Sustentável e Plano da BR-163 sustentável (tabela 1). Os desafios no entorno da BR-163 e Transamazônica são semelhantes a outras partes da Amazônia. O inicio da problemática foi com a política de ocupação que visou ocupar a região e dar direcionamento ao êxodo rural do nordeste, na década de 1970. Hoje a justificativa é a necessidade de desenvolver a infraestrutura de energia e transporte. Para situar o leitor sobre as iniciativas do governo com relação à Amazônia, listamos na tabela 1 as principais políticas e programas públicos federais criados para levar desenvolvimento à Amazônia, que enfocam as causas sociais e de desenvolvimento das populações locais como um elemento determinante. O quadro pode ser usado como base para uma análise atual de como estão evidentes o objetivos das políticas de governo apresentadas, frente aos desafios listados por Freyre na obra em questão. Tabela 1 – Políticas Nacionais para o desenvolvimento da Amazônia Identificação Objetivos/ Responsável/instrumentos Política Nacional A preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando do Meio Ambiente assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança (PNMA) nacional e à proteção da dignidade da vida humana Ministério do Meio Ambiente. Os instrumentos a serem utilizados pelo Poder Público e pela sociedade indefinidos Política Nacional Estimular o uso e a ocupação racional e sustentável do território, com base na distribuição mais de Ordenamento equânime da população e das atividades produtivas; valorizando as potencialidades econômicas Territorial (PNOT) e as diversidades socioculturais das regiões brasileiras; e reduzindo as disparidades e desigualdades espaciais, inter e intra-regionais. Ministério da Integração Nacional. Política não normatizada Política Nacional A redução das desigualdades de nível de vida entre as regiões brasileiras e a promoção da de eqüidade no acesso a oportunidades de desenvolvimento, e deve orientar os programas e ações Desenvolvimento federais no Território Nacional. Regional (PNDR) Ministério da Integração Nacional Os principais instrumentos são: Orçamento Geral da União; Fundos Constitucionais de Financiamento das regiões Norte (FNO), Fundos de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE); Fundo de Desenvolvimento da Amazônia (FDA) e Incentivos e Benefícios Fiscais. Política Nacional Contribuir para uma ação institucional capaz de implantar e consolidar estratégias de de Assistência desenvolvimento rural sustentável, estimulando a geração de renda e de novos postos de Técnica e Extensão trabalho. Rural (PNATER) Ministério do Desenvolvimento Agrário Política Nacional Promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no de reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, Desenvolvimento econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização Sustentável de e suas instituições. Povos e Ministério do Desenvolvimento Social. Comunidades Tradicionais Plano Amazônia A promoção do desenvolvimento sustentável da Amazônia brasileira, mediante a implantação de Sustentável um novo modelo pautado na valorização de seu enorme patrimônio natural e no aporte de investimentos em tecnologia e infra-estrutura, voltado para a viabilização de atividades econômicas dinâmicas e inovadoras com a geração de emprego e renda, compatível com o uso sustentável dos recursos naturais e a preservação dos biomas, e visando a elevação do nível de vida da população. Plano da BR-163 Implementar um novo modelo de desenvolvimento local e regional e organizar a ação de sustentável Governo, com base na valorização do patrimônio sócio-cultural e natural, na viabilização de atividades econômicas dinâmicas e inovadoras e no uso sustentável dos recursos naturais, visando à elevação do bem estar da população em geral. Promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de cidadania por Programa meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável Territórios da Cidadania (2008) O planejamento e a ação para asfaltamento da BR-163 tem provocado discussões sobre as prováveis ameaças à sustentabilidade da região amazônica. Isso tem gerado argumentos favoráveis e não-favoráveis. Dentre os principais argumentos favoráveis para a pavimentação da BR-163 citamos a facilidade do acesso à região, melhorando a mobilidade social e o escoamento da produção agrícola, em especial a soja. Dentre os não-favoráveis salientam-se o aumento do desmatamento; aumento da violência e acidentes automobilísticos; risco de êxodo rural; acesso e uso indevido dos recursos naturais, tanto em áreas privadas como de conservação; aumento do risco de fogo nas florestas onde houve retirada de madeira, servidas por uma expansão de malha rodoviária; aumento dos conflitos fundiários e grilagem de terras públicas; risco de transformação das áreas de florestas e cerrado em zonas antrópicas de agropecuária com o empobrecimento dos solos e redução da biodiversidade, podendo limitar as futuras opções econômicas da região. As lideranças na Amazônia tiveram visibilidade internacional por meio das ações do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS). De acordo com as suas necessidades surgem espaços de manifestação pública. O Fórum dos movimentos sociais da BR-163, criado em 2003, é uma instância consultiva de gestão e monitoramento do Plano de BR-163 Sustentável. Ele é composto por representantes da sociedade civil, da iniciativa privada e representantes do governo. É um espaço para discussão das organizações locais com instância decisória o comitê da BR- 163. O Fórum e o comitê da BR-163 foram resultantes da mobilização da sociedade antes da ação do Governo Federal de elaboração do Plano da BR163. No inicio houve um debate sobre o modelo de desenvolvimento que os movimentos socioambientais desejariam para a sua região. Diante disso, o governo assumiu o papel de buscar algo inovador e diferenciado, consultando a população e validando as contribuições. À luz dessas políticas de governo para enfrentar os desafios que rondam a ocupação da região Amazônia, assim como os movimentos sociais necessários para a consecução de obras de engenharia que visem essa ocupação de maneira ordenada e sistematizada, iremos dissertar sobre as idéias de Freyre presentes na obra Homens, engenharias e rumos sociais, de 1987. Considerações acerca da introdução do livro Homens, engenharias e rumos sociais Para Gilberto Freyre, o homem e a mulher modernos que se realizam por meio de suas existências, são, por natureza, plurais, ou seja, contém em si próprios vários tipos de homens e mulheres sociais que se alternam e se ajustam a diversas formas de convivência em cada situação. Esta colocação, em introdução ao assunto do livro, justifica a necessidade deste mesmo homem e mulher terem de ser situacionais, ou seja, devem considerar suas existências de maneira concreta, e não abstrata, social, que se ajustam a diversas formas de convivência e desenvolvimento dos grupos a que pertencem e de suas situações pessoais também. Para tanto, as ciências sociais devem ser consideradas elas próprias sob uma ótica situacional, ou seja, a aplicação da sociologia para situações concretas, o que a torna, segundo o autor, também uma sociologia que depende de informações oriundas dessas três engenharias, cunhadas pelo autor em: i) ii) iii) engenharia física – “se manifesta em quase todas as coisas técnicas ou construções, a serviço essencial e imediato dos homens: casas, pontes, instrumentos de trabalho, veículos, equipamentos: inclusive o culinário” engenharia humana – cuida das “relações técnicas ao mesmo tempo que antropométricas, dos homens com tais coisas” engenharia social – cuida das “inter-relações de ordem social entre homens uns com os outros e de métodos com instituições de várias espécies dentro de uma sociedade humana.” Estas são definições recentes e exclusivas do autor, as quais ficaram esquecidas dentro desta obra e que servem, hoje, para classificar as formas de atuação das engenharias, que, particularmente, sofrem com a superespecialização de suas expressões e revelam uma crise de identidade ou um cabo de guerra: de um lado, os superespecialistas que defendem a conceituação específica de práticas de engenharia (alimentar, aeroespacial, biomédica, etc.) e os tradicionalistas-preciosistas que pretendem reduzir a quantidade de nomes de subespecializações das engenharias, como é o que está em discussão hoje em dia no âmbito do ministério da educação do Brasil e do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia CONFEA e suas entidades regionais, os CREAS. Poderíamos pensar que a classificação dos diversos sub-tipos de engenharias podem ser divididos sob as três categorias citadas por Freyre, podendo um sub-tipo permear um ou mais dos três tipos de engenharias: a física, a humana e a social. Para Freyre: “Vem sendo crescentemente particularizado o uso da palavra engenharia para caracterizar especialidades restritas: engenharia médica, por exemplo. Engenharia dos alimentos. Engenharia militar e engenharia naval são caracterizações já antigas de especialismos ligados a institucionalizações de técnicas de engenharia: da engenharia física. De modo geral, entende-se por engenharia toda técnica de manipulação de coisas através de máquinas, por coisas podendo-se entender até partes ou órgãos do corpo humano susceptíveis de ser controlados, mantidos em funcionamento ou reajustados por meios mecânicos. Daí – em parte – uma engenharia que, intitulada de humana, regule relações extramédicas e não apenas médicas, entre homens e coisas. Homens e máquinas. Entre homens e veículos. Outros ainda, os fatores de uma engenharia humana ao lado da física e que, em alguns pontos, desdobre-se na social. Esta, a mais abrangente pelo que, sociológica, psicológica, econômica e até politicamente é uma complementação das duas outras.” Ele tinha a visão de que a engenharia física deveria deixar claros os impactos que as obras e tecnologias têm sobre os homens, como por exemplo as construções que trazem como conseqüência qualquer implicação social. Na engenharia humana o mesmo, a necessidade de explicitar as “relações socioantropológicas” que existem entre os homens e a tecnologia em geral, todo o maquinário (veículos, elevadores, máquinas). A engenharia social atuando na questão de como os problemas resultantes de “desentendimento, distância, segregação entre homens ou grupos humanos susceptíveis de serem resolvidos por meio de equivalentes de pontes, isto é, de formas de contato, comunicação, compreensão de efeitos ou alcances sociais.” As três engenharias estão associadas, para Freyre, a uma filosofia social preocupada com o impacto dos avanços tecnológicos sem que estes resultem em prejuízos da condição humana, da vida e do comportamento humano, visando uma qualidade de vida para as populações. Uma filosofia social que dialogue com os diversos atores da sociedade como o governo, as empresas privadas, as universidades e o sistema educacional como um todo, das religiões, dos movimentos sociais, todos esses responsáveis por amenizar o desequilíbrio ecológico, social e humano decorrente dos avanços tecnológicos. Essa filosofia social deve reger os princípios e valores sociológicos que devem ser respeitados pelas tecnologias e também pelas “economias invasoras” em contraposição às vantagens tecnológicas que colocam, historicamente, as engenharias humana e social em conflito com a engenharia física – a vilã da história quando usada de maneira irresponsável ou intencionalmente excludente aos interesses sociais. Nas palavras do autor: “Pois se o mundo, quer na sua parte tecnologicamente desenvolvida, quer naquela em desenvolvimento, depende de apoios da engenharia física, à engenharia humana e à engenharia social cabe importantíssima tarefa de resguardar valores humanos – universais, locais, regionais, pessoais, mas sempre qualitativos – contra avanços puramente quantitativos de tecnologias acompanhadas de economias quantitativas. Tecnologias e economias capazes de afetar, em áreas que invadam, com suas forças quantitativamente progressistas, a qualidade de vida de populações.” O autor compara o desequilíbrio entre engenharia física, humana e social do caso da Transamazônica com o caso da construção de Brasília, em que não houve a participação de nenhum sociólogo, antropólogo, ecólogo, psicólogo, educador, engenheiro social, que resultou em uma cidade nada adaptada à ecologia tropical brasileira. Brasília é duramente criticada na obra com anti-exemplo do que poderá ocorrer na ocupação de partes ainda desabitadas da Amazônica. Em resposta a essa questão, Freyre relatou, em palestra proferida ao Conselho Técnico de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, em 1º de Abril de 1976: “O mesmo erro está se fazendo na Amazônia, no tocante à ocupação social de espaço, na autocolonização da Amazônia. Não se vêem convocando cientistas sociais, ecologistas, que orientem, que assessorem o Incra (Instituto de Colonização e Reforma Agrária), exclusivamente dirigido por homens públicos sem nenhum conhecimento científico da matéria. E sem esses dirigentes convocarem cientistas sociais para os orientarem na chamada colonização da Amazônia, que, aliás, não é colonização – tive lá ocasião de dizer – mas autocolonização. O brasileiro está autocolonizando heroicamente a Amazônia. A participação do exército nesse esforço está sendo magnífica, mas, de modo geral, está se autocolonizando a Amazônia sem orientação científica de espécie alguma no tocante à ocupação social de espaços tão virgens. E já se atribui a um dos ministros de Estado do governo anterior esta orientação messiânica – introduzir-se na Amazônia um boi em lugar de cada árvore abatida, como se uma árvore não fosse uma fonte tão séria de vida e pudesse ou devesse ser substituída por um boi. Temos todos um grande respeito pelos bois, mas devemos também ter um grande respeito pelas árvores.” Na mesma entrevista, o autor afirma que na ausência de cientistas sociais na resolução de problemas e administração do país, erros podem surgir caso eles sejam desprezados. Daí a importância de se terem não só especialistas considerando soluções aos problemas brasileiros, mas sim de generalistas, de métodos interdisciplinares com novas combinações entre si para problemas que apenas os brasileiros, situacionalmente possuem e podem resolver. Em Homens, engenharias e rumos sociais, o autor faz uma comparação entre o desafio da engenharia física em se construir a rodovia Transamazônica analogamente à construção de Brasília – em que erros foram cometidos em função de um empreendimento meramente estético – para cujos projetos em ambos os casos devem ser primadas soluções que estejam de acordo com as necessidades regionais e nacionais e demandam “cuidados inteligentemente situacionais das duas outras engenharias: a humana e a social.” Para o autor, os erros cometidos em ambos os casos deverão ser recuperados apenas por meio de uma “engenharia pansocial” apoiada nas ciências sociais com equipes multidisciplinares, com educadores e psicólogos de formação sociológica. Lembra o autor a questão de que a construção e manutenção, nos trópicos, de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, canais, infra-estruturas de comunicação é quatro vezes mais dispendiosa que em áreas temperadas. O tempo para realizá-las também é quatro vezes maior assim como o rendimento econômico é de menos de um terço do que se fosse uma tecnologia implementada em regiões temperadas. A título de exemplo, são citadas questões como, a alfabetização de pessoas em período noturno, em função do calor do dia nos trópicos; o desenvolvimento de produtos tropicais como óleos, sabonetes, loções, perfumes, frutos, sucos, essências, batidas, refrigerantes. Sobre o capítulo II de Homens, engenharias e rumos sociais “Pode-se discutir um ou outro aspecto ou pormenor já teluricamente amazônico ou neo-amazônico – a tão grandiosamente barroco projeto, como é a Transamazônica, em ainda tão incompleta execução nesse particular: falta de assessoramento de superburocratas por cientistas e pensadores sociais.” G.F. O capítulo II da obra Homens, engenharias e rumos sociais de Gilberto Freyre, intitulado “Em torno do desafio das selvas brasileiras às três engenharias” apresenta os primeiros desafios para a Amazônia, que é um elemento nacionalmente vital para o brasileiro, inda mais em um momento em que a ela tem sido questionada quanto à sua internacionalização, mas que depende das relações com os demais países da América espanhola. A começar por uma proposta de filosofia da Amazônia, que possa orientar os esforços de autocolonização, baseada em uma “sociologia filosófica, especulativa, futurológica, em que as aspirações realizáveis são consideradas como o objeto de estudo à parte das necessidades, embora os dois objetos se confundam.” Também uma filosofia da Transamazônica, identificada com as aspirações, necessidades e preocupações nacionais e internacionais, telúricas e ecológicas, do brasileiro que se identifica com o seu país por intermédio do amor e do estudo, um brasileiro inserido no conceito de tempo tríbio em que vive simultaneamente no passado, no presente e no futuro. Nessa visão freyreana, a Transamazônica deve ser compreendida sob estes critérios, por meio de uma filosofia que esclareça os impactos desse empreendimento tão abrangente, sob a ótica da engenharia física, da engenharia humana e da engenharia social. Assim, a proposta do autor para uma política da ecologia, que servirá para “definir a necessidade de serem encaminhadas as políticas nacionais para atitudes, métodos de ação e possíveis soluções que correspondam a situações ecológicas específicas”. Aí reside um desafio no plano econômico para a execução deste empreendimento, em que o homem do Nordeste, a exemplo do que aconteceu em Brasília, possui um papel determinante de construção da Transamazônica: “o brasileiro do Nordeste chamado, pelo Brasil, a desempenhar um papel dinamicamente transregional no desenvolvimento do país”, coisa que ocorre desde 1800 com os esforços de autocolonização e povoamento da Amazônia com sucesso, a despeito de iniciativas fracassadas de povoamento internacional (caso da Ford). O autor apresenta o conceito de rurbanidade – a harmonização entre o rural e o urbano, de vivência humana de relações de grupos sociais com a natureza – em que critica soluções de entusiastas: “progressistas lineares, quase absolutos na sua adesão a soluções verticais e maciçamente urbanas ou urbanóides para aqueles desenvolvimentos humanos tornados possíveis pela mecanização, quando não pela automação, de lavouras ou atividades rurais” em que, no caso da Amazônia, foram soluções definidas de maneira inteiramente urbana como forma de desafogar a ocupação de espaços rurais. Nesse ponto, Freyre apresenta a visão de que jovens ou filhos pródigos desencantados com a civilização industrial, no conceito de “nova era rural” que, ao contrário do fluxo praticado há séculos de migração do campo para a cidade, viriam estes jovens a popular a Amazônia por meio de comunidades agrárias, longe dos meios urbanos, em que há um resgate de condições sociais, ecológicas e de bem-estar na natureza, por meio de “formas rurbanas de vida, de trabalho e de ócio” em um “espaço tropical anfíbio” e agrestemente barroco – o predomínio de curvas sobre as retas - , em busca de um espaço atraente e sedutor, um ‘paraíso perdido’. Os jovens que fogem de requintes de artificialização de vida, seja por meio das vias alternativas de vivência, como os hippies, seja por meio de ‘alarmantes suicídios’ cometidos em países como a Suécia, Suíça e Japão. Para tanto, estudos antropológicos sobre o homem dos trópicos, orientados “pelas inter-relações entre modernidade e tropicalidade, entre universalidade e regionalidade, entre inovação tecnológica e tradição brasileira, governantes, empresários e artistas, voltados para a Amazônia brasileira. Inclusive para problemas de arquitetura que, em suas formas neobarrocas de casas de residência e de edifício público correspondam a situações especificamente amazônicas.” Esta característica barroca foi também historicamente imposta pela colonização européia da Amazônia na época da borracha, a exemplo da arquitetura de Manaus e Belém. Destarte, Freyre considera que os estadistas responsáveis por governar a região amazônica devem estar orientados sob a ótica das engenharias social e humana, e não só empolgados pelos arrojos da engenharia física, a conduzirem a gestão para a criação de espaços destinados ‘ao lazer, à recreação, à arte, ao amor, a contatos com a natureza, à meditação em jardins, a comícios políticos, a reuniões religiosas.” Essa é a visão do ‘novo político’ que baseia sua atuação em uma assessoria tanto do cientista quanto do humanista, que deve fomentar a aplicação das engenharias humana e social, associadas à tradicional engenharia física, na definição e soluções, tanto urbanas, quanto rurais, quanto das técnicas ecológicas de aproveitamento de materiais para, por exemplo, a construção de habitações econômicas. Desafio este em função da riqueza que a região possui em depósitos de carvão, ferro, aço e petróleo. Nesse momento, Freyre compara na obra o caso de países que, diante do mesmo desafio amazônico, puderam organizar os processos de desenvolvimento nos EUA, Rússia, Itália, Holanda, Alemanha, Inglaterra, em que esforços nacionais fora empregados para dirimir as deficiências regionais que ocorrem entre regiões de um mesmo país, entre Norte e sul, entre Sudeste e Nordeste, etc. Nesses países, houve uma tentativa de reajustamento do inter-regional por meio de obras que conjugaram a engenharia humana e social com a engenharia física por meio de processos democráticos, em alguns casos fracassados. O autor conclui neste capítulo que o perigo da internacionalização da Amazônica é um tema desprezível, historicamente revelado por meio de ações tendenciosas a primar a entrada dos estrangeiros e suas tecnologias meramente resultantes da engenharia física; pressões desnacionalizantes, politicamente antibrasileiro, antinacional, internacionalização oriunda de um ingênuo progressismo e liberalismo de autores nacionais citados (como Tavares Bastos), cujas idéias partiram de fora para dentro do Brasil: uma Amazônia sem mestiços, toda refrigerada para os nórdicos, associada a valores messiânicos, calvinistas ou protestantes, em desapego aos valores católicos da colonização portuguesa. Em síntese, listamos a seguir em forma de tópicos os principais desafios abordados, neste capítulo, da obra Homens, engenharias e rumos sociais de Gilberto Freyre. 1. Uma filosofia da Amazônia 2. Uma política de ecologia 3. A rurbanidade: o rural e o urbano harmonicamente considerados 4. Ocupação dos jovens em áreas propícias à rurbanidade 5. O barroco amazônico das formas sociais e da natureza 6. A antropologia ecológica – centro da tropicologia 7. A integração do complexo amazônico no complexo nacional 8. A Transamazônica como solução tecnológico-social 9. Uma filosofia social humanística 10. Orientação das engenharias humana e social para o estadista 11. A complexidade da Transamazônica: pressões do presente nacional e imposições de prováveis futuros 12. O uso de materiais ecológicos nas construções amazônicas 13. O papel do nordestino no povoamento da Amazônia, pela ligação entre Norte-Nordeste 14. A não internacionalização e a anti-anglo-saxonização da Amazônia O Cap. III e a redenção de Freyre à Amazônia A Transamazônica não pode ser um simples empreendimento de engenharia física sobre um espaço considerado apenas na sua ecologia biofísica. Necessita de ser grandioso – barrocamente grandioso – empreendimento de arquitetura ou de engenharia sociais, na execução do qual precisam ser considerados problemas talvez mais difíceis que os de ecologia biofísica, de ecologia sócio-cultural.” G.F. No capítulo III do livro Homens, engenharias e rumos sociais de Gilberto Freyre, intitulado “Ainda em torno do desafio das selvas brasileiras às três engenharias”, o Mestre de Apipucos retoma a discussão do capítulo anterior sobre os tópicos apresentados, trazendo o assunto da compatibilidade entre formas européias de vida com os trópicos, citando o caso da Austrália, em que, apesar de uma população ortodoxamente européia, também se situa em um espaço tropical. Traz exemplos sobre a importância de se considerarem diversas formas de ocupação por povos nacionais ou internacionais que não venham a “constituírem-se em grupos tão à parte da maioria autocolonizadora brasileira que fiquem, como minorias isoladas, sem com essa maioria coexistirem, conviverem, contatarem ou coabitarem biológica e culturalmente”, a exemplo da presença japonesa na Amazônia, em que estes enriqueceriam o Brasil com outras influências culturais e de tipos físicos, favorecendo a miscigenação e novos modos saudáveis de vida, além de outras contribuições, como por exemplo, de aperfeiçoar as técnicas rurais assim como favorecer toda a sistemática econômica de exploração da região, além de “pesquisas de implicações sociais e não apenas econômicas”. A exemplo desta questão, Freyre apresenta uma crítica realista da presença européia na Amazônia, a partir da monumentalidade do Teatro Amazonas em Manaus, da arquitetura de Belém, dos mercados de estrutura francesa, os armazéns de caucho, os escritórios, cabarés, chalés, casa importadoras de artigos europeus, etc. O autor segue apresentando a tese de que os meios de comunicação como o rádio, a televisão e o cinema “deverão desempenhar um papel nada insignificante na educação de agricultores de um novo tipo assim como – é evidente – noutros tipos de educação do brasileiro amazônico.” Além disso, a união sistemática entre meios de transporte, unindo-se o transporte fluvial ao rodoviário e ao aéreo, para o escoamento da produção agrícola, assim como vem ocorrendo com o transporte de riquezas minerais, segmento que será, naturalmente, intensificado com a Transamazônica. Um modelo de construção desta rodovia calcado em uma conciliação entre inovação tecnológica com as constantes nacionais, embasadas no bandeirantismo de construir uma rodovia no meio do nada, assim como Brasília o foi, o que comprova a missão de se implantar tecnologias europeizadas em um espaço tropical: “Muito viva, essa constante, na construção de uma Transamazônica que, como Brasília, será também um afirmação da capacidade brasileira não só para assimilar técnicas avançadas de engenharia física a suas necessidades nacionais, como para desenvolver, experimental, aventurosa, pioneiramente, técnicas de todo ou quase de todo novas, que atendam a circunstâncias ou imposições inesperadas de uma ecologia tropical ainda por ser dominada: a anfibiamente amazônica. Uma estrada por sobre águas tanto quanto por sobre terras. Ou sobre águas que se tornam durante algum tempo terras e sobre terras que quase de repente mudam de sexo geográfico e se tornam águas.” Vale transpor aqui: “Se à Amazônia juntar-se um sistema complementar de comunicações interamazônicas, a Amazônia se integrará de todo no complexo nacional brasileiro, enriquecendo-o com as peculiaridades de sua ecologia em vez de comprometê-lo com a ameaça de uma separação desse complexo, por motivos supostamente ‘naturais’. Todo arrojo tecnológico a empreender-se na Amazônia brasileira precisará conformar-se com a realidade de um espaço e de um tempo já definidamente brasileiros; e não efetuar-se como se essa Amazônia fosse apenas natureza e, como tal, descomprometida com um sistema de vida, com uma cultura, com um tempo histórico de que já faz parte, por direito precisamente histórico, e nos quais precisa integrar-se plenamente, através de meios biológicos, sociológicos e econômicos, políticos, educacionais, tecnológicos – biossocioculturais em suma – mais efetivos e mais sistemáticos.“ Para o autor, o Brasil deve resguardar-se de qualquer projeto de ‘desbrasileiramento’ da Amazônia, ou seja, sua internacionalização, mesmo que sob pretextos humanitários ou ecologicamente demandados pelas grandes potências. O papel do Estado na autocolonização da Amazônia é decisivo neste momento de povoamento a partir do que as políticas preconizam, em termos da proteção à livre empresa que este mesmo Estado representa, em especial a favor do pequeno e médio agricultor e do pequeno e médio industrial, não um apoio de caridade mas um exercício pleno de cidadania e de justiça para a composição de uma sociedade economicamente democrática na região. Freyre vislumbrou a Amazônia como um local de escape da sociedade urbana cansada de suas falsas promessas e ilusões, fato este comprovado pela insistente e vasta procura pelo turismo amazônico hoje praticado, majoritariamente mais por estrangeiros do que por brasileiros, um tráfego aéreo que revela esta prática como sendo um dos elementos propulsores da economia local: refúgio de estrangeiros do mundo inteiro. Essa propensão a centro de encontro de nacionalidades representa o que no Brasil caracteriza a formação étnica e cultural de sua população, tão interpretada em obras como Casa grande e Senzala, em que está expressa a matriz do branco, negro e índio do Brasil, produtora da “morenidade”. Essa morenidade continuará se expandindo em função da Transamazônica e “não tardará a acentuar na Amazônia uma maior variedade na morenidade – ou morenitude – dos residentes nessa área, de modo algum só de ameríndios e de mestiços de ameríndios”, chegando então ao conceito de superação de raça por metarraça. Freyre conclui que a Transamazônica levará mais ainda para a região uma mistura de sangues e de valores de outras origens brasileiras que se combinarão com os valores dos nativos da região, o que irá resultar em outras expressões dessa já existente morenidade, viabilizados por uma prática em que os meios de produção irão determinar as formas sociais de vida, novos modelos de comunicação entre a Amazônia e outras partes do Brasil e do mundo, novas relações do homem com a natureza, novos tipos de relações inter-humanas, onde também se deve evitar a “cópia de modelos socioculturais de países diferentes do Brasil.” Para a implementação desses modelos de desenvolvimento, a partir das práticas na obra Homens, engenharias e rumos sociais, Freyre revela, em sintonia com os atuais estudos sobre a necessidade de engenheiros no Brasil para que se alcance os ritmos de crescimento do PIB no Brasil (vide estudos recentes do Ipea sobre a escassez de engenheiros), que “é evidente que a Amazônia e o Brasil vão precisar de grande número de engenheiros – físicos, humanos e sociais – e de técnicos, de sanitaristas e de operários qualificados de várias espécies” mas também dos chamados ‘técnicos em idéias gerais’, os generalistas que possam orientar e coordenar as correlações entre as diversas áreas, interespecialistas e “que se transformem em políticos, administradores ou grandes empresários.” Estes atuando junto aos cientistas, especialistas, técnicos, dos humanistas, dos pensadores, dos artistas, dos poetas, dos místicos, com visão universal e pan-humana, na ética e na estética, integrando o conhecimento tradicional, da poesia popular, do folclore, do analfabeto com os saberes eruditos. ‘Um humanismo que modere extremos de cientificismo”. Freyre conclui adiante que a Transamazônica está de fato inacabada (até hoje!), pois precisa de uma força política capaz de integrar de forma complementar a engenharia física com a humana e social por meio de uma simultaneidade, para preencher os espaços com seus vazios humanos e culturais por meio da tecnologia socialmente justificada. Em especial, o caso da energia nuclear e do uso da energia solar como alternativas vantajosas que visam acelerar a integração da Amazônia com o mundo pós-moderno e os avanços pós-industriais. Para tanto, a importância da integração, nesses estudos, de orientações dos cientistas sociais e de humanistas científicos, atribuindo-se assim um papel fundamental às universidades para educar não só os jovens, mas também os técnicos já maduros e também idosos em soluções ainda desconhecidas e de tecnologias estranhas, “com novas combinações desses avanços com situações psicossociais: reeducação que, para tais combinações, precisará ser não só científica ou técnica como humanística.” Vale destacar mais um parágrafo do autor, tão atual, que diz: “Também de um novo tipo de relação entre arte e vida. Entre arte e Amazônia. Artistas, compositores, cineastas estão entre os brasileiros que mais têm o que dar à Amazônia de masculamente brasileiro: de procriador, de fecundante, de desvirginador em proveito de um Brasil. Um Brasil que precisa ter nele de todo integrada a Amazônia para ser plenamente brasileira na sua vida, na sua convivência e na sua cultura nacionais. E essas artes são das mais integrativas. Integrativas numa cultura nacionalmente brasileira”. Abaixo um resumo em forma de tópicos sobre os desafios pautados por Freyre neste capítulo III da obra Homens, engenharias e rumos sociais. 1. O pluralismo cultural e étnico da autocolonização da Amazônia 2. O papel dos meios de comunicação na educação de agricultores 3. A união da sistemática de transportes (aéreo, terrestre e fluvial) para escoamento da produção 4. A tropicalização dos valores europeus 5. A Transamazônica como obra de integração nacional e sociocultural da Amazônia 6. A democratização econômica da Amazônia do Estado para o pequeno e médio produtor 7. A combinação equilibrada de formas socioculturais tradicionais, modernas e pós-modernas 8. A Transamazônica irá acentuar uma maior variedade na morenidade dos residentes 9. O papel dos generalistas, interespecialistas, técnicos em idéias gerais na nova Amazônia 10. A Transamazônica, a energia nuclear e a energia solar no pós-industrialismo 11. A educação humanística e não só técnica de jovens, adultos e idosos em tecnologias sociais 12. As conseqüências extramilitares das Forças Armadas na Amazônia: transformação social 13. Os conhecimentos fitoterápicos indígenas da Amazônia para a promoção da saúde 14. A revolução biossocial da Amazônia: miscigenação e controle populacional Conclusões do autor sobre os desafios da Amazônia A integração da Amazônia no complexo nacional brasileiro não se realizará plenamente somente através de razões econômicas ou de operações racionais. Terá que ser mais do que isto. Terá que ser animada por um empenho amoroso, quase místico, da parte do Brasil, em apossar-se de todo de uma região incompletamente sua. Incompletamente da civilização moderna. Incompletamente do próprio homem. G.F. A despeito da fama de que Gilberto Freyre é inconclusivo em suas obras, causa esta recentemente levantada na Flip, em Paraty, onde ele foi o escritor brasileiro homenageado, conforme citado no início deste artigo, diversos parágrafos da obra Homens, engenharias e rumos sociais são precedidos do termo “em conclusão”. Talvez por ter sido esta sua última obra publicada no ano de sua morte, vê-se, ou melhor, lê-se claramente que Gilberto teve preocupação em concluir seus pensamentos sobre a Amazônia, sobre a Transamazônica, à luz das engenharias física, humana e social. Um dos elementos conclusivos na obra é quanto à presença militar no processo de integração da Amazônia com o complexo nacional brasileiro, que cumpre um papel de disciplina da selva por meio de ações civilizadoras, de cidadania, “abrasileirantes”. Brasileiros de todas as composições étnicas, por meio do Exército, Marinha e Aeronáutica, dentro do processo de abrasileiramento, são incluídos socialmente e por meio de preparação técnica – alemães, poloneses, italianos, japoneses, ameríndios, africanos, nordestinos, praieiros ou sertanejos, caipiras e caboclos – muitos dos quais outrora segregados do sistema nacional de convivência e cultura – no processo de ascensão social e política como agentes de transformação social, a exemplo do que ocorreu pessoalmente com o Marechal Cândido Rondon, de origem indígena: “a fase de esforços combativos e até heróicos que se abre, na Amazônia, para a mocidade brasileira cívica ou patrioticamente motivada, anuncia-se com possibilidades de ação que podem chegar a ser épicas. Trata-se de embrenhar-se o jovem, em muitos casos, por selvas nunca dantes penetradas com possibilidades de aí desenvolverem atividades construtivas inspiradas num combativo amor ao próximo: combativo e cristão. Solidário. Missionário além das convenções missionárias.” Nesse contexto, adiciona-se o papel das equipes de saúde e de enfermagem, de nutrição, educação física, atividades médicas e paramédicas para a defesa e saúde em situações agrestes. Em especial, a receptividade e internalização do conhecimento fitoterápico tradicional dos índios da Amazônia como recursos de promoção da saúde local e nacional. E mais: “resultem sugestões para novas modas de estilos de trajo, de penteado, de adornos pessoais, de jóias, cosméticos e óleos para embelezamento de cabelos, faces, corpos e que concorram para dar ao Brasil a posição que lhe compete, de nação com excepcionais recursos naturais para criar modas, masculinas e femininas...” Outra conclusão importante é com relação à continuação da miscigenação da população brasileira, uma verdadeira ‘revolução biossocial’ presente em todas as regiões do país e também em Estados-nações modernos, que refletem e são refletidas por formas de governo e de administração que orientam seus desenvolvimentos qualitativos e quantitativos, que permitem um planejamento do futuro dessas nações. Tal fato é presente na Amazônia e na futurologia que se impõe a ela. Outro aspecto é com relação ao aumento da média de vida do brasileiro, em que a presença de um homem-sênior poderá equilibrar-se com a do homemjunior: “a ancianidade poderá vir a ter importância igual à maturidade ou á juventude nas sociedades atuais. O autor lista, nesse momento, diversos aspectos dessa revolução biossocial: desaparecimento de fronteira entre os sexos, formas intermediárias de sexo e de amor homossexual favorável ao controle da natalidade; desaparecimento de fronteiras entre etnias e suas culturas; valorização de tipos bioculturalmente ou biossocialmente mistos ou mestiços, metarraciais, de homem e de mulher. Tais aspectos que naturalmente irão impactar nas formas de trabalho manual, na alimentação, na produção, na indústria, nas expressões sociais e ortodoxas. A revolução biossocial também caracterizada pela alternância entre trabalho e lazer, este último valorizado cada vez mais como um fator econômico viabilizador da produtividade do trabalhador, o fim do time is money! Ademais, o controle de natalidade no Brasil, não necessariamente uma redução drástica do crescimento populacional, a exemplo do que deveria ocorrer na China e na Índia. No Brasil “a redução é necessária a um saudável desenvolvimento nacional (...) sem reduzir a dois o número de famílias outrora de treze. E sim a três ou quatro” para que o Brasil possa preencher os espaços vazios com brasileiros natos e também com imigrantes que correspondam às aspirações nacionais. Freyre segue concluindo que o Brasil tende à morenidade: “o brasileiro moreno é uma expressão ecológica de brasileiro, quer a sua morenidade resulte de mistura de sangues europeus a sangues teluricamente tropicais – ameríndio ou afronegro – quer do amorenamento de descendentes só de europeus pela ação, sobre eles, do sol das Copacabanas: amorenamento ecológico em vez de biológico”. Os conceitos de branquitude, negritude e morenidade como prova dessa revolução, justificados pelas diversas origens étnicas do Brasil, de cujos desdobramentos Freyre tão amplamente estudou e escreveu sobre. “Precisamos, cada dia mais, nos empenhar na total valorização dos muitos brasileiros de origem afronegra tanto quanto pela dos de procedência ameríndia. Valorização que leve uns e outros a serem seus próprios Joaquim Nabuco. (...) Bom será que eles estejam mais presentes entre os próximos governadores e senadores brasileiros. Os próximos acadêmicos das academias de letras e de medicina.” O autor compreende que a predominância dos tipos amorenados do Brasil, inclusive os caucasianos que se bronzeiam semi-nus sob o sol tropical, sejam “excepcionais indivíduos de figura eugênica e de formas esteticamente superiores” em oposição a visões arianas de desqualificação da formação étnica – de “melanização” e miscigenação brasileira ou de concepções do brasileiro como ente feio. Freyre enumera um conjunto de pessoas belas, morenas, miscigenadas, que compuseram o rol dos bonitos e célebres homens de letras e público, em especial Joaquim Nabuco, um “bonito homem” (nas palavras de Oliveira Lima). Leva a pensar que o brasileiro caminha para um tipo “saudavelmente harmonioso nas suas qualidades de corpo e de inteligência” . O brasileiro típico formado a partir da diferenciação que ele mesmo fez de si próprio das suas origens européias ou até africanas, determinadas pelas revoluções, guerras, processos de independência, que tornou o brasileiro historicamente revoltoso contra uma unidade dominadora que o originou, buscando diferenciar-se delas, ao mesmo tempo que “o Brasil passou a constitui-se em pré-nação e, posteriormente, a definir-se a estabilizar-se em nação, num como equilíbrio entre essas duas tendências: a de continuar preso a valores europeus básicos de sua formação sociocultural e a de reagir contra extremos de submissão às nações européias, suas colonizadoras – Portugal, a principal – autocolonizando-se, diferenciando-se, tropicalizando-se, nacionalizando-se.” Freyre finaliza a obra com um grande apanhado bibliográfico e onomástico das artes, da cultura, da academia, da música, da literatura, que provam, por A+B que toda a brasilidade é formada por uma revolução biossocial legítima, oriunda de representantes das diversas correntes étnicas, sociais, culturais, revolução essa em transformação no presente, calcada no passado e realizada no futuro, no tempo tríbio (ora eterno) do Freyre de então e no futuro de quem lê a obra, tão atual e tão verídica em sua clara interpretação do Brasil, dos brasileiros e dos abrasileirados. Conclui a obra dizendo, com muita veemência, que “creio ter sido o único talvez um tanto entendido nessas outras engenharias sondado, a certa altura para traçar o que se apresentou como uma ‘filosofia de uma ocupação sistemática da Amazônia brasileira’. Ao que objetei que essa tentativa de filosofia, em grande parte, teria que ser precedida pela presença de engenheiros humanos e de engenheiros sociais no complexo esforço brasileiro de autocolonização. Presença – a de engenheiros humanos e de engenheiros sociais – que, tanto quanto se sabe, ainda não se verificou de modo expressivo.” De fato, Gilberto era um homem à frente de seu tempo, visionário, futurólogo, moderno e sobretudo humanístico, cujos desafios apresentados na obra em 1987, e relembrados hoje neste artigo, revelam o grau de atualidade das questões trazias e ainda em busca de soluções inerentes, e tão vivas no livro Homens, engenharias e rumos sociais. Viva Gilberto Freyre! Bibliografia FREYRE, Gilberto. Homens, engenharias e rumos sociais. Prefácio Edgard Costa Oliveira – São Paulo: É Realizações, 2010.