santos salles advogados associados

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santos salles advogados associados
101
EDIÇÃO 101 • DEZEmbrO DE 2008
16 O DESAFIO DA
12 NASpRESCRIçãO
AçõES DE
SEgURANçA
JURíDICA
RESSARCIMENTO DE
DANO AO ERÁRIO
Foto de capa: Assessoria de Imprensa/TJSP
ORpHEU SANTOS SALLES
EDITOR
TIAgO SANTOS SALLES
DIRETOR EXECUTIVO
DAvID RIbEIRO SANTOS SALLES
DIRETOR jURíDICO
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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
TRIbUNAL
DIgITAL
34
A EvOLUçãO DAS
COMpANHIAS
NO DIREITO
bRASILEIRO
44
SUMÁRIO
CONSELHO EDITORIAL
ALvARO MAIRINk DA COSTA
ANDRÉ FONTES
ANTONIO CARLOS MARTINS SOARES
ANTôNIO SOUzA pRUDENTE
ARNALDO ESTEvES LIMA
ARNALDO LOpES SüSSEkIND
AURÉLIO wANDER bASTOS
bERNARDO CAbRAL
CARLOS ANTôNIO NAvEgA
CARLOS AyRES bRITTO
CARLOS MÁRIO vELLOSO
CESAR ASFOR ROCHA
DALMO DE AbREU DALLARI
DARCI NORTE REbELO
DENISE FROSSARD
EDSON CARvALHO vIDIgAL
ELLIS HERMyDIO FIgUEIRA
ENRIqUE RICARDO LEwANDOwSkI
EROS RObERTO gRAU
FÁbIO DE SALLES MEIRELLES
FERNANDO NEvES
FRANCISCO vIANA
FRANCISCO pEçANHA MARTINS
FREDERICO JOSÉ gUEIROS
gILMAR FERREIRA MENDES
HUMbERTO gOMES DE bARROS
IvES gANDRA MARTINS
JERSON kELMAN
JOAqUIM ALvES bRITO
JOSÉ AUgUSTO DELgADO
JOSÉ CARLOS MURTA RIbEIRO
JOSÉ EDUARDO CARREIRA ALvIM
LUIS FELIpE SALOMãO
MANOEL CARpENA AMORIM
MARCO AURÉLIO MELLO
MASSAMI UyEDA
MAURICIO DINEpI
MAxIMINO gONçALvES FONTES
NEy pRADO
pAULO FREITAS bARATA
SERgIO CAvALIERI FILHO
SyLvIO CApANEMA DE SOUzA
THIAgO RIbAS FILHO
CAIU MAIS UMA FORTALEzA DA
IMpRENSA
4
EqUILíbRIO, pRUDêNCIA E UNIãO
5
A gESTãO DO MAIOR
TRIbUNAL DO MUNDO
6
ENSAIO SObRE O
TESTEMUNHO INFANTIL
22
pODER CONCEDENTE MUNICIpAL,
ESTADUAL E FEDERAL – CONFLITO DE
COMpETêNCIA
26
REMENDA, NãO; REFORMA, SIM
32
20 ANOS DO CASO DO NAvIO
“SOLANA STAR”
36
FERA ACUADA
40
O IMpLACÁvEL E ENvOLvENTE
pODER MIDIÁTICO
42
qUEM pAgA A CONTA?
48
ENCONTRO DE DIRETORES DE
ESCOLAS DE MAgISTRATURA
50
ASSINE
(21) 2240-0429
[email protected]
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3
Orpheu Santos Salles
E
4 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
OPINIÃO
EDITORIAL
Fábio de Salles Meirelles
Presidente da Faesp-Senar/SP e do Sebrae/SP
Membro do Consellho Editorial
Editor
stupefato, mas não surpreso, no dia 1º de dezembro
deste ano, li o editorial de Hélio Fernandes, comunicando o encerramento das atividades do seu jornal,
a Tribuna da Imprensa, soltando o rugido do tigre
enfurecido e impotente contra a adversidade, principalmente
governamental, que há muito vem se abatendo sobre os seus
posicionamentos contundentes, libertários e nacionalistas,
feitos incessantes e sempre intransigentes na defesa dos interesses da Povo e da Pátria.
Hélio é herói obstinado, corajoso, irreverente e até
atrevido na pregação de suas arengas panfletárias, defendendo
o que acredita e postula, o que lhe custou – além das prisões,
desterros e complicações de toda espécie – o fechamento do
seu vibrante bordão e da intemerata Tribuna da Imprensa.
Dos 60 anos de existência da Tribuna, os primeiros 14
correram por conta do apoteótico jornalista e controvertido
político Carlos Lacerda; os seguintes 46 foram exercidos por
Hélio Fernandes, até este 1º de dezembro. Foram anos de
lutas e verdadeiras guerras contra os detentores do poder,
protegidos e apaniguados, que, na sua maioria, aviltaram as
funções exercidas com desmandos e desbragada corrupção.
Durante essas quase 5 décadas, Hélio não transigiu, não
perdoou, usando sempre da sua verrina mais inflamada,
causticante, desabrida contra os ladrões dos dinheiros
públicos, a infundir-lhes com contundência a pecha e o labéu
da infâmia e do descrédito.
As posições e atitudes de Hélio, entretanto, têm lhe
custado caro. Sofreu prisões, agressões, desterro na sua própria
Pátria, processos de várias procedências e inúmeras tentativas
visando a falência e o fechamento do jornal.
Além das prisões e sofrimentos pessoais, também a
“Tribuna” foi violentada, com a invasão, depredação, quebra
das impressoras, incêndio, destruição da Redação e a perene
EqUILíbRIO,
PRUDêNCIA
E UNIÃO
Foto: Faesp
Foto: Sandra Fado
CAIU MAIS UMA
FORTALEZA DA
IMPRENSA
e constante censura sofrida durante os 20 anos da Ditadura
Militar.
Com a democratização e volta das garantias constitucionais,
retomou no jornal o seu pendor libertário, nacionalista, defensor
do patrimônio público, da moralidade política-administrativa
e passou a desancar, com rigor, as medidas liberais do Governo,
principalmente do presidente Fernando Henrique Cardoso –
em especial contra a estatização de empresas públicas rentáveis,
contra os juros escorchantes, o pagamento da dívida pública,
a supressão de direitos dos trabalhadores, tornando-se, com o
seu jornal, o mais ferrenho opositor de FHC, pondo à nu as
mazelas públicas, os políticos e a corrupção, principalmente
a prorrogação do mandato presidencial, que considerou um
escárnio contra a democracia, pela compra desbragada de votos
no Congresso Nacional.
Saudou com laudatórias matérias jornalísticas a eleição
do presidente Lula, mas, logo de início, passou a criticar,
com fundamentadas razões, as escolhas governamentais, se
indispondo com a cúpula petista que riscou a “Tribuna” da
distribuição da propaganda oficial. Com isto, voltou ao que
sempre foi: o mais combativo jornalista brasileiro a externar
suas opiniões sempre sarcásticas, cruéis e malévolas contra tudo
e todos, que, na sua opinião, no exercício de cargos públicos,
não defendem os legítimos interesses do Povo e da Nação.
A pendência judicial que mantém contra a União,
pleiteando indenização e ressarcimento pelos prejuízos sofridos
com as violências e a censura ao jornal, além de danos morais,
postergada como são todas as demandas contra o Governo
e agravada com a difícil situação comercial e financeira da
“Tribuna”, produziu a debacle explicitada em seu libelo de 1º
de dezembro.
É uma lástima. Mais uma trincheira livre da imprensa que
cai. Prazo aos céus que possa ser temporária.
O
avanço do conhecimento tecnológico nos
vários setores da atividade humana e o
relacionamento entre os países, notadamente
nas transações comerciais, proporcionaram
o cenário global que estamos presenciando,
de tal forma que um fato ocorrido em um continente pode
repercutir em outro.
Embora não queiramos, já estamos sentindo o início de
uma crise econômica global iniciada em outro continente,
conforme as afirmações e fatos seguintes.
O Diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional
afirmou que a economia global pode cair em uma crise
prolongada se os governos não implementarem os estímulos
prometidos; o Presidente da China, por sua vez, declara
que o mercado de trabalho em 2009 será, naquele país,
impiedoso; e, segundo as notícias veiculadas pela imprensa,
está se prevendo uma redução nas arrecadações públicas, o
que poderá, em consequência, diminuir a manutenção do
equilíbrio das contas públicas.
Por outro lado, em nosso País, o Presidente do Banco Central afirmou que podemos experimentar uma desaceleração do
forte ritmo de crescimento que vínhamos ostentando. Várias
multinacionais já demitiram empregados, ainda que, em alguns
casos, sob temor da crise; outras preparam cortes nos investimentos; o Presidente da Vale iniciou uma pressão junto aos
sindicatos e ao Governo objetivando a flexibilização temporária
das normas trabalhistas como forma de evitar a demissão em
massa. Inegavelmente é a crise que se inicia no nosso País.
Ante o quadro que se apresenta entendemos que o
processo de crise deve ser analisado de forma ampla para
a adoção de medidas pragmáticas com a participação de
todos os segmentos e órgãos governamentais, institucionais,
empresariais, de forma a agirem unidos e em sintonia.
A História, essa “mestra da vida”, tem nos ensinado que
nos momentos críticos surgem as grandes idéias, iniciativas e
união de forças para superar os problemas.
Assim ocorreu na época da crise do café em 1929 e na
década de 30, quando surgiram as primeiras conversações
e movimentos de agropecuaristas paulistas com o intuito
de unirem-se em um sistema associativista rural, surgindo
assim a Federação das Associações Rurais do Estado de São
Paulo, hoje a eficiente e dinâmica Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado de São Paulo – FAESP.
Desta forma estamos em um momento que exige união
para ações globais, equilibradas e prudentes, de forma
abrangente, envolvendo todos os segmentos da vida pública
e privada, em busca de soluções conjunturais e estruturais,
pois assim venceremos qualquer ameaça e/ou princípio
de crise.
Oportuno afirmar a enorme importância – nesta fase de
preocupações, que podem redundar em incompreensões,
desajustes e até conflitos – de confiarmos em nossos Tribunais
e em nossos mestres das ciências jurídicas para as orientações
à sociedade, bem como ao Poder Público e aos conflitos de
interesses econômicos internacionais.
Os homens e mulheres, com as suas responsabilidades,
menores ou maiores, devem manter a tranquilidade e a
confiança em nossas autoridades constituídas e no valor da
competência e do espírito criativo do Homem brasileiro.
Assim agindo, essa crise internacional, cujos ventos já nos
alcançam, não virá nos assolar.
Concluindo, reafirmamos e recomendamos equilíbrio,
prudência e união, mantendo sempre a força construtiva do
trabalhador.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
O
Presidente do Tribunal de Justiça de São
Paulo, desembargador Roberto Antonio
Vallim Bellocchi, em entrevista à Revista
Justiça & Cidadania sobre o primeiro ano
de sua gestão à frente do maior Tribunal do mundo em
carreira hierarquizada, dentre tantos assuntos polêmicos,
falou pontualmente sobre a participação do Tribunal no
orçamento do Estado, sobre a revisão da Lei Orgânica da
Magistratura, o uso de algemas e a autonomia financeira dos
Tribunais.
Revista Justiça & Cidadania – Quais os maiores desafios
até agora encontrados na gestão do maior Tribunal do País e
o que fez ou pretende fazer para solucioná-los? Quais as suas
prioridades?
Vallim Bellocchi – Inicialmente o 1º semestre deste ano
foi usado para compreender, conhecer como está o Tribunal
de Justiça como um todo por dentro. Desenvolveu-se, em
conseqüência, o plano de reocupação do Palácio da Justiça,
que é uma obra-prima. Está tramitando fortemente o plano
de reforma do Palácio João Mendes, que é o maior fórum
da América Latina, com circulação de 25 mil pessoas e
protocolo de 11 mil petições por dia. Para isto, há necessidade
de melhorar as condições de trabalho dos cartórios, das
secretarias de apoio e dos gabinetes de trabalho dos juízes e
das juízas.
Existe também a necessidade de uma replanificação de
6 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
cargos e carreiras, que já vem sendo desenvolvida. Porque
têm-se, ou tinham-se, inúmeros cargos absolutamente sem
função. Já prestaram serviço no passado e hoje não têm mais
razão de ser. Além disso, precisamos investir nas condições
de trabalho dos fóruns regionais. Eu tenho visitado fóruns
regionais nos quais a prestação de serviços judiciários é deficiente, não por culpa de magistrados e magistradas, mas pelas condições dos prédios, que vêm sendo utilizados de uma
maneira precária. Está sendo feito um trabalho modesto, à
semelhança de outros, sem alarde como é necessário, junto
à Secretaria da Justiça, por exemplo. Depois, caso a caso,
temos prioridades.
Traçou-se, e já está em grande parte avançado, o plano de
transmissão das seções do Órgão Especial – cúpula que decide colegiadamente pelo Tribunal de Justiça – pela intranet,
ou seja, reservadas somente a juízes e desembargadores nos
seus gabinetes, e está se experimentando a transmissão via
Internet, por enquanto para nove entidades de forma experimental. Isto já vem ocorrendo e, até onde eu sei, tem boa
receptividade. Em seguida, sempre em ordem de prioridade,
o Plano de Cargos e Carreiras dos servidores do Tribunal de
Justiça. Não haveria a necessidade da Constituição prever.
Isto decorre do exercício do serviço público.
Há ainda o projeto das custas judiciais que são atribuídas
pela Emenda nº 45/04 aos Tribunais de Justiça, privativas
destes e das quais nenhum órgão mais participa; nem
poderia, porque a Constituição da República não permite.
Foto: Assessoria de Imprensa/TjSP
A GESTÃO DO MAIOR
TRIbUNAL DO MUNDO
Este projeto está em vias de ser encaminhado, aguardando
o momento político para se desenvolver. É preciso acirrar,
no sentido de aprofundar, a discussão, já que estas custas
são fundamentais para o trabalho do Tribunal de Justiça,
e isto envolve a transferência de receitas, ocasionando a
necessidade de que se converse, como sempre se conversou e
vem se conversando, com os demais Poderes.
O outro projeto é o de estagiários para os juízes de 1ª
instância, que precisam de uma assessoria, porque têm
suas condições de trabalho cada vez mais reduzidas pela
falta de funcionários, motivada, ao longo do tempo, por
aposentadorias, desligamentos, transferências e também pelo
aumento vegetativo. Cada Vara de São Paulo, posso dizer
central e regional, trabalha com volume superior a 8 mil, 9
mil processos. É uma necessidade para o magistrado de 1º
grau, que dá o 1º combate.
Existe também um projeto para completar o ciclo de
assessores dos desembargadores, que, por sua vez, também
precisam deste apoio, até porque o acervo, ou seja, os
processos que aguardam julgamento em 2ª instância estão
estimados em torno de 500 mil. Mas esta conta não é do
Tribunal de Justiça. Esta conta deve ser atribuída à Emenda
nº 45/04, que, como num passe de mágica, “acabou com o
atraso” do Poder Judiciário no País. É um sonho de verão,
mas nós sentimos os efeitos desagradáveis provocados por
esta Emenda em relação ao volume de processos para o
maior Tribunal de Justiça do País. A informática dá um
impulso enorme, no entanto as restrições orçamentárias,
em razão do orçamento recebido a partir deste ano, estão
impedindo que ela se desenvolva de forma acentuada. É
necessário dosar a velocidade, para que outros setores não
fiquem desamparados. É exatamente por isso que espero que
o novo orçamento do Estado para o Tribunal repare esta
injustiça. Em linhas gerais, são essas as prioridades que vêm
sendo realizadas com custo, com apoio e, sobretudo, com
discrição e com economia doméstica razoável pela Comissão
de Orçamento.
JC – A Lei de Responsabilidade diz que o Judiciário pode
receber até 6% do orçamento do Estado. O Poder Judiciário
de São Paulo faz uso desse percentual?
VB – Não. O gasto do TJ/SP é inferior a 6%, aliás esta
Lei de Responsabilidade Fiscal precisa ser retificada nessa
parte. É uma questão de bom senso que esses 6% não
possam ser considerados como teto, têm que ser piso. Isso
amarra o orçamento dos Tribunais. O Tribunal está abaixo
do seu gasto e necessita de um gasto maior, daí a insistência
de a alíquota de 6% ser piso e não teto. Esse é um dos itens
da autonomia financeira, que é a maior probabilidade de
receita para maior quantidade de projetos, cumprindo a
tarefa constitucional de organizar o Poder, e não de
“reformar” o Poder.
A falta de numerário atrelada à necessidade de pagamento
das obrigações pelo Tribunal de Justiça impedem a instalação
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7
de varas e comarcas. Esses 2 projetos estão suspensos por falta
de verbas. Transferência de funcionários não vai resolver,
porque desta forma abre-se uma vaga aqui para benefício de
outro acolá, quando o servidor é o mesmo. Nós não temos
essa disponibilidade financeira e nem de pessoal. Dentro
disso, e retornando ao item prioridade, a Presidência do
Tribunal de Justiça também deve encaminhar à Assembléia
Legislativa, em pouco tempo, embora sempre de uma forma
elegante, harmônica, franca, cavalheira, os projetos de
interesse do Tribunal, dentre eles, o de liberação de verba
para contratação de 1 mil escreventes, já que temos inúmeros
concursos terminados. Esta mão-de-obra é fundamental e
nós precisamos disto. Porém, em termos constitucionais,
tudo deve ser conversado, pois o princípio da República,
apelidada democrática, é o entendimento, é o consenso. O
litígio constitucional é em último caso. Quando esgotados os
meios de entendimento, é que apela-se ao Poder Judiciário.
JC – O Sr. falou em contratação de assessores para os
desembargadores. Quantos são hoje e qual seria o contingente
satisfatório?
VB – É necessário o acréscimo de mais 1 ou 2 assessores
para cada Desembargador, que hoje trabalha assessorado por
2 assistentes e 2 escreventes, para estoque, de uma maneira em
geral, de 1.200 processos por gabinete; ao passo que outros
Tribunais têm um número maior de assistentes. O Tribunal
de Justiça de São Paulo precisa de instrumento de trabalho.
E instrumento de trabalho não é custeio, é investimento.
JC – Quantos processos hoje aguardam distribuição?
VB – Aproximadamente 500 mil. O Tribunal de Justiça
dá um belo exemplo, pois todos os processos que entram são
julgados. Este acervo é antigo, não foi criado agora, decorrente
8 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Foto: Assessoria de Imprensa/TjSP
“O TRIBUNAL DE jUSTIÇA
DE SÃO PAULO PRECISA
DE INSTRUMENTO
DE TRABALHO. E
INSTRUMENTO
DE TRABALHO
NÃO é CUSTEIO, é
INVESTIMENTO.”
da Emenda nº 45/04 e da falta de estrutura existente na época,
considerando-se que eram quatro Tribunais. A Emenda nº
45/04 unificou esses Tribunais e determinou que todos os
processos aguardando distribuição fossem distribuídos. Isto
foi magia maravilhosa, mas, como toda magia, não é real, e
com isso nós ainda temos essa dificuldade: um acervo para
quem trabalha efetivamente, graças à informática que ajuda
muito e graças a essa assessoria pequena, porém eficiente, que
os desembargadores têm. Como decidem em última instância
no Estado precisam ter uma situação de trabalho mais justa.
JC – O Sr. falou que as custas nem sempre são totalmente
destinadas à administração do Tribunal. Qual é o percentual
de custas destinadas, hoje, ao Tribunal?
VB – Eu não sei lhe dizer o número exato, porque essas
custas envolvem o Governo do Estado, vão para o caixa do
Estado e vêm para cá. Acho que são 30%. O Poder Judiciário
é um órgão que arrecada bem, porém fica, me parece, com
não mais do que 30%. O objetivo da Emenda, que nesse
ponto foi sábia, é que as custas arrecadadas pelo Tribunal de
Justiça fiquem com ele. Como vai se defender a autonomia
orçamentária se a contradição está no próprio sistema?
JC – Sobre a questão da autonomia financeira do Tribunal,
existe algum projeto de criação de um fundo de gestão?
VB – O Tribunal tem o fundo especial de despesa e
para ele são destinadas várias verbas, orçamentárias ou não.
Exemplos de verbas não-orçamentárias são as arrecadadas
com os concursos públicos, aluguel de espaço, as verbas
para a chamada modernização; elas pertencem às partes e
estão provisoriamente em estabelecimentos bancários, mas
virão para o Tribunal de Justiça, que é seu titular. Todo
este montante compõe o fundo especial do Tribunal de
Justiça, que é muito bem administrado pela Comissão de
Orçamento. A Presidência do Tribunal de Justiça não toma
uma decisão sem ouvir a Comissão de Orçamento.
JC – A Lei Orgânica da Magistratura está para ser
revista. O TJ/SP está, de alguma forma, participando desse
processo?
VB – A Lei Orgânica da Magistratura tem
aproximadamente 30 anos e foi inspirada à égide do então
regime ditatorial que havia no País, procurando disciplinar
organicamente, ou seja, na sua estrutura, a carreira da
Magistratura. Compete privativamente ao STF elaborar
o projeto da Lei Orgânica, que deverá ser oportunamente
remetido para apreciação do Congresso Nacional. A visão
que o Tribunal de Justiça tem é a de que muitos assuntos
que estão sendo tratados esparsamente ou pontualmente –
por exemplo: férias, direitos, vantagens, obrigações – na lei
atual, devem ser reciclados. Em 30 anos o quadro mudou,
inclusive o perfil do Magistrado. Ainda não se tem o formato
completo na visão do Tribunal de Justiça, e espera-se que
atenda aos anseios atuais e futuros da Magistratura, pois
pertence a um passado que serve de lição, mas não de um
dado recorrente permanentemente, porque precisa de uma
modificação. Como eu disse, isto é privativo do STF, que
tem toda a estrutura, inclusive financeira, para atender esta
demanda, mas se precisar de apoio do Tribunal de Justiça de
São Paulo o terá a hora que desejar.
JC – No Tribunal Federal de São Paulo, dos 41
desembargadores, 18 são mulheres, quase 50%. Aqui no
Tribunal Estadual, apenas pouco mais de 3% são mulheres.
A que se deve a ausência feminina na composição deste
Tribunal?
VB – Eu não sinto só no Tribunal Federal de São
Paulo, mas em vários estados do país, da justiça estadual,
a participação feminina exemplar. O TJ/SP tem um perfil
conservador, clássico, mas não atrasado. O maior Tribunal
do país é um Tribunal avançado em muitos itens do
segmento social, porém não abre mão de certos princípios
que são clássicos – não atrasados, repito. Havia, há tempos,
um sentimento de que a mulher não se ajustaria à carreira da
Magistratura, mas isto era no passado. A vantagem do tempo
é que ele nos dá várias lições. Nós precisamos aprender com
a vinda das ilustres damas que tanto têm orgulhado este
Tribunal. Hoje o número é pequeno, 13 desembargadoras
– falando somente em Tribunal de Justiça –, mas há um
enorme contingente feminino na 1ª instância. No entanto,
espero que cresça cada vez mais. As mulheres dominam o
mundo com a inteligência e o coração.
JC – O Tribunal criou um prêmio para homenagear
representantes de diversos segmentos da sociedade. Como
surgiu essa idéia e quais foram os aspectos considerados para
a escolha do presidente da FIESP, Sr. Paulo Skaf, como o
mais recente homenageado?
VB – Não foi necessariamente uma criação, porque
o Tribunal de Justiça, como disse, tem o perfil clássico;
tem uma Comissão de Honraria e Mérito, tem o Colar do
Mérito Judiciário, a Medalha do Mérito Judiciário, que são
atribuídos, via de regra, a quem se destaca na área judicial,
ou tem colaboração estreita com a tarefa judiciária. E isto
exige, portanto, alguém com perfil apropriado à comunidade
judiciária, não apenas por ser membro deste ou daquele
Tribunal. O fato de estar no Tribunal não justifica nada.
Respeito sim, mas fazer jus a essas honrarias não, porque
depende do seu trabalho em relação ao Tribunal de Justiça
de São Paulo na área judiciária. Para o Dr. Paulo Skaf, e com
isso se homenageou o segmento da indústria, a motivação
foi outra. Foi uma homenagem simples, porém sincera,
como se diz na toada popular, a quem vem demonstrando
uma parceria simpática, desinteressada e profícua com o
Tribunal de Justiça de São Paulo. Nós temos, na Fiesp, por
exemplo, ex-ministros, ex-presidentes, desembargadores
aposentados, que prestam um trabalho notável e aos quais
a Fiesp abriu espaço para que aplicassem a sua experiência.
Na medida em que a Constituição da República estabelece
um limite de 70 anos, o país caminha na contramão da
história, e todos nós sabemos disso. O serviço público rejeita
a experiência, a empresa privada a aproveita. A Fiesp dá uma
lição de cidadania, daí termos convênios com ela, inclusive
no segmento da conciliação. O TJ/SP tem convênio também
com a Associação Comercial e com o CIEE (Centro
de Integração Empresa Escola). Em homenagem a essa
participação da sociedade através da indústria, como poderia
ser com outras entidades, o Tribunal de Justiça houve por
bem prestar um agradecimento à Federação das Indústrias de
São Paulo, representada por um homem de bem, alguém que
é uma unanimidade nacional de respeito. Foi esse o sentido,
diferentes as honrarias, portanto.
JC – Foi firmado então um convênio para cooperação
entre a FIESP e o Tribunal?
VB – É isso. Temos que estimular a conciliação, e isto é
fundamental, como ocorre, além da Fiesp, com a Associação
Comercial e com o CIEE. É a maneira de se fortalecer
corretamente a jurisdição voluntária, que vem através da
conciliação, da mediação, ou da arbitragem, que são formas
de resolução de conflitos. O Estado, no seu formato atual, é
incapaz de atender aos reclames da sociedade no que tange
à resolução de conflitos. Os Tribunais estaduais fazem a sua
parte, mas a demanda é maior do que a oferta.
JC – A imprensa brasileira reclama do isolamento do
Judiciário. O senhor concorda com a afirmativa de que o
magistrado só deve falar nos autos do processo?
VB – O magistrado precisa ter cuidado ao dar uma
entrevista ou comentar sobre aquilo que está se discutindo.
Quanto ao segredo de Justiça, nem pensar. É proibida a
divulgação de comentário sobre algo que está dentro de um
processo. Na esfera criminal, por exemplo, em um crime de
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
“HAVIA, HÁ TEMPOS, UM SENTIMENTO DE QUE A MULHER
NÃO SE AjUSTARIA à CARREIRA DA MAGISTRATURA, MAS
ISTO ERA NO PASSADO. A VANTAGEM DO TEMPO é QUE
ELE NOS DÁ VÁRIAS LIÇõES. NóS PRECISAMOS APRENDER
COM A VINDA DAS ILUSTRES DAMAS QUE TANTO TêM
ORGULHADO ESTE TRIBUNAL.”
repercussão nacional, o magistrado precisa tomar cuidado,
porque ele poderá decidir aquele caso e ser mal interpretado
por alguém alegando que o magistrado emitiu uma opinião.
Isto pode ferir a imparcialidade do magistrado, tanto no cível
como no criminal. Portanto, o fato de o magistrado usar de
cautela não significa distanciamento e nem impedimento da
ação da imprensa, que merece ter todo o campo. Ele estará
apenas resguardando os interesses das partes naquele processo.
Não é a lei da mordaça, isso é algo que aqui no Estado de São
Paulo não existe. Em momento algum o Tribunal de Justiça
vai interferir, impedindo qualquer magistrado de dar alguma
declaração. Os magistrados são suficientemente prudentes para
tomar as cautelas devidas. É isto que deve ser exposto. O Poder
Judiciário tem o dever de zelar pelos interesses das partes quando
estão litigando, para que amanhã uma declaração meramente
informativa, por exemplo, não seja usada como elemento capaz
de afetar a imparcialidade do magistrado, e isto em momento
algum cerceia, absolutamente. O que se cria é um mito. Mas o
que não é mito no Brasil? Então vamos descer à realidade.
JC – Muito se questiona hoje sobre o uso da algema. O
senhor é contra ou a favor?
VB – É uma proteção em certos casos, sem generalizar.
Mas nos momentos em que o episódio criminal representa
sinais de perigo para as autoridades que interferem em um
júri ou em uma Vara Criminal, por exemplo, sou plenamente
favorável. Lógico que deve ser respeitada a dignidade de
cada um, mas a probabilidade de alguém, perigoso, que está
sendo acusado de algo grave, atacar um juiz num júri ou
numa audiência é grande. Isto não fere a dignidade, isto é
10 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
uma cautela natural; assim como ter um segredo de Justiça
que protege os interesses particulares. A algema, do ponto
de vista criminal, precisa ser entendida como um recurso de
proteção que não agride alguém que, usando uma linguagem
romântica, está em conflito com a lei.
JC – O senhor entende então que o uso das algemas deve
se dar apenas na questão criminal?
VB – Ah, sim, nas questões civis ou fazendárias isto é muito
raro. Em tantos anos de magistratura, e lá se vão 42 anos, eu
não me recordo do uso de algemas em uma questão civil.
Os crimes fazendários têm que ser entendidos na visão
fazendária ou tributária. São três os pressupostos para o uso
de algemas: a proteção do policial, ou de alguma autoridade;
o risco de fuga; e o risco da autolesão. Eu, como magistrado
de carreira, de longa vivência, vejo a algema como necessária
em qualquer tipo de crime que pressuponha risco para a
administração da justiça ou para a segurança das autoridades
que efetuem a prisão e até mesmo para a sociedade. Agora,
sem pirotecnia. Temos que ter o bom senso.
JC – O senhor entende a Lei nº 11.672 de 2008 como
restritiva à atuação dos tribunais estaduais?
VB – Não a vejo com o objetivo de restrição, mas sim com
o de disciplina. Porque nós temos no Tribunal de Justiça,
que é o maior do país, o maior número de distribuição de
recursos especiais e extraordinários. Nota-se, claramente
e constantemente, a repetição de assuntos: 30, 40 recursos
sobre o mesmo tema, gerando conseqüentemente despachos
que os negam ou admitem. O objetivo dessa lei – idéia que
nasceu em São Paulo há muito tempo, mas que por razões
políticas e de oportunidade, não foi transformada em projeto
de lei – é disciplinar, evitando que o número sem conta de
recursos repetitivos tenham seguimento; isso congestiona o
Tribunal de Justiça de São Paulo e também os Tribunais aos
quais os recursos são dirigidos. Portanto, do ponto de vista
da disciplina, para eliminar a repetição, que não é uma boa
companheira, é que advém esta Lei Federal. Espera-se que dê
certo e que não seja apenas mais uma boa notícia, e nem uma
boa idéia. Que seja efetiva.
JC – Como é formado o TJ/SP?
VB – Existem Cortes Constitucionais de cassação,
de fundo constitucional, em número variado, 500, 400,
300, mas são Cortes de natureza política, com mandato
de 2, 3 anos. Na magistratura estadual do País, há uma
hierarquia de fundo constitucional, que têm como ápice
o STF. Está na Constituição, o STF, o STJ, os Tribunais
de Justiça estaduais, os Tribunais Regionais Federais
e os Tribunais Regionais do Trabalho, têm carreiras
hierarquizadas constitucionalmente, não têm mandato.
Nessa ordem, o Tribunal de Justiça de São Paulo é o maior
do mundo, são 488 membros aproximadamente, entre 360
desembargadores e 85 juízes substitutos de 2ª instância. É
um universo respeitabílissimo.
O Tribunal Pleno, nos termos em que a Constituição
o instituiu aqui no Estado de São Paulo, é composto de
360 desembargadores. O Pleno se reúne para eleições que
envolvam a mudança dos cargos de cúpula e de direção, para
discussões relativas à vida diária deste Tribunal, o Órgão
Especial é quem o representa. E para o Órgão Especial existe
em relação a 12 cargos, porque a Constituição da República
estabeleceu que na composição dos Tribunais de Justiça que
tenham, por exemplo, acima de 11 membros – 25 membros,
como é aqui – metade será por antigüidade, e metade eleita
por 2 mandatos. Um mandato e mais uma recondução. Este
talvez tenha sido o ponto mais importante da Emenda nº
45, porque levou a uma mescla entre juízes antigos e juízes
mais novos no Órgão Especial, ainda que sejam antigos no
Tribunal. Esta mistura tem produzido bons resultados.
JC – Uma oxigenação na administração?
VB – Não digo uma oxigenação. Este termo é muito
perigoso, porque parece, ou poderia parecer, que os juízes
mais antigos não têm mais oxigênio. Eles não morreram. A
experiência que eles têm dificilmente vai ser substituída. Daí
a mescla, a juventude do argumento, não necessariamente
da idade. Dos que são eleitos, a juventude do argumento,
a beleza do argumento, a controvérsia do argumento ante a
experiência no trato dos mesmos argumentos. Isto produz
uma maturidade, uma substância maior, um peso a mais nas
decisões. E o Tribunal de Justiça de São Paulo se orgulha
do seu Órgão Especial. Na verdade, o Tribunal de Justiça
se orgulha de tudo. Desde o servidor mais humilde, porém
nobre, até o Presidente.
SantoS SalleS
advogadoS aSSociadoS
lDireito Tributário
lDireito Previdenciário
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2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11
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pRESCRIçãO NAS AçõES DE
RESSARCIMENTO DE DANO
AO ERÁRIO
RECURSO ESPECIAL Nº 1.069.779 – SP (2008/0137963-1)
Relator:
Recorrente:
Advogado:
Recorrido:
Procurador:
MINISTRO HERMAN BENJAMIN
COESA ENGENHARIA LTDA.
LUÍS EDUARDO MENEZES SERRA NETTO E OUTRO(S)
MUNICÍPIO DE BAURU
MARISA BOTTER ADORNOGEBARA E OUTRO(S)
Ementa
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO.
AÇÃO DE RESSARCIMENTO DE DANO AO
ERÁRIO. PRESCRIÇÃO. NÃO-OCORRÊNCIA.
INÉPCIA DA INICIAL NÃO CONFIGURADA.
INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. NÃOCABIMENTO.
1. Hipótese em que a empresa recorrente busca,
com base no art. 17, § 8º, da Lei nº 8.429/1992, a
suspensão do prosseguimento de ação ordinária, na
qual se apuraram irregularidades na celebração e na
execução do contrato para construção de unidades
habitacionais.
2. O art. 23 da Lei nº 8.429/1992, que prevê o prazo
prescricional de 5 (cinco) anos para a aplicação das
sanções, disciplina apenas a primeira parte do § 5º
do art. 37 da Constituição Federal, já que in fine
esse mesmo dispositivo teve o cuidado de deixar
“ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”, o
que é o mesmo que declarar a sua imprescritibilidade.
Precedentes: MS 26.210/DF, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 4.9.2008; e
REsp 403.153/SP, Rel. Ministro José Delgado, j.
09.09.2003, DJ 20.10.2003.
3. A pretensão de ressarcimento pelo prejuízo causado
ao erário é imprescritível.
4. O Município tem legitimidade para propor ação
de improbidade administrativa contra ex-prefeito e
12 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de justiça
outros servidores municipais. Descabido, in casu, falar
em confusão entre credor e devedor, na forma do art.
381 do Código Civil.
5. Não se configura inépcia da inicial se a petição
contiver a narrativa dos fatos configuradores, em tese,
da improbidade administrativa e, para o que importa
nesta demanda, do prejuízo aos cofres públicos.
6. Sob pena de esvaziar a utilidade da instrução e
impossibilitar a apuração judicial dos ilícitos nas ações
de improbidade administrativa, a petição inicial não
precisa descer a minúcias do comportamento de cada
um dos réus, individualmente; bastando a descrição
genérica dos fatos e imputações.
7. Na hipótese dos autos, a descrição genérica dos
fatos e imputações é suficiente para bem delimitar o
perímetro da demanda e propiciar o pleno exercício
do contraditório e do direito de defesa.
8. Impertinente à objeção de inadequação da via eleita,
sob o argumento de que a licitação ocorreu e o contrato
foi celebrado antes da vigência da Lei nº 8.429/1992,
quando, na verdade, noticiam-se irregularidades na
celebração do contrato (antes da Lei da Improbidade)
e também na sua execução (na vigência da Lei da
Improbidade).
9. Inexistência de ofensa ao princípio da irretroatividade
da lei. A Lei nº 8.429/1992 não inventou a noção
de improbidade administrativa, apenas lhe conferiu
regime jurídico próprio, com previsão expressa de
novas sanções não fixadas anteriormente.
10. Antes da Lei nº 8.429/1992, a prática de
improbidade administrativa, sob o prisma do Direito
material, já impunha ao infrator a obrigação de
ressarcimento aos cofres públicos.
11. Na hipótese dos autos, trata-se de ação de
reparação fundamentada na de ocorrência de dano
patrimonial ao erário, proposta pela Prefeitura de
Bauru, sob o rito ordinário, em que o autor pede,
expressamente, na petição inicial, a condenação dos
réus “ao ressarcimento dos danos sofridos pelo erário
municipal, que deverão ser apurados mediante perícia
técnica e contábil, à vista dos documentos juntados
aos autos e das conclusões do Tribunal de Contas da
União”.
12. Possibilidade ainda de aplicação das sanções
previstas na Lei nº 8.429/1992 a alterações contratuais
ilegais praticadas na sua vigência, mesmo que o contrato
tenha sido celebrado anteriormente. Isso porque, na
aplicação do princípio tempus regit actum em matéria
de incidência da Lei nº 8.429/1992, considera-se o
momento da prática do ato ilícito, e não a data da
celebração do contrato.
13. Após a promulgação da Lei nº 8.429/1992, as
sanções nela previstas aplicam-se imediatamente a
contratos com execução em andamento, mas somente
se os ilícitos em questão tiverem sido praticados já na
vigência da nova lei.
14. Recurso Especial não provido.
ACÓRDÃO
Brasília (DF), 26 de agosto de 2008 (Data do Julgamento)
Ministro Herman Benjamin
Relator
Relatório
O Exmo. Sr. Ministro Herman Benjamin:
Trata-se de Recurso Especial interposto, com fundamento
no art. 105, III, “a”, da Constituição da República, contra
acórdão assim ementado (fl. 196):
AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECURSO
INTERPOSTO CONTRA DECISÃO QUE
REJEITOU AS PRELIMINARES ARGÜIDAS PELA
AGRAVANTE – PETIÇÃO INICIAL QUE NÃO
PADECE DE INÉPCIA – DOS FATOS NARRADOS
DECORRE LOGICAMENTE O PEDIDO –
PRESCRIÇÃO – INOCORRÊNCIA, POR FORÇA
DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL – INAPLICABILIDADE DO ART. 23
DA LEI Nº 8.429/92 – AS DEMAIS QUESTÕES
ESTÃO LIGADAS AO MÉRITO DA DEMANDA
E SERÃO APRECIADAS OPORTUNAMENTE –
RECURSO IMPROVIDO.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13
“O MUNICíPIO TEM LEGITIMIDADE PARA PROPOR AÇÃO
DE RESSARCIMENTO DECORRENTE DE IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA CONTRA EX-PREFEITO E OUTROS
SERVIDORES MUNICIPAIS.”
Originariamente, o Município de Bauru ajuizou Ação
Ordinária Condenatória contra a empresa, ora requerente, e
outros, em que se busca o ressarcimento de danos ao erário,
tendo em vista irregularidades na celebração e execução do
contrato para construção de unidades habitacionais.
Em manifestação prévia, a empresa Coesa Engenharia Ltda.
apontou a existência de vícios processuais que impediriam o
regular processamento da demanda, quais sejam a ocorrência de
prescrição, confusão, falta de interesse de agir, inépcia da inicial
e outras questões inerentes ao mérito, tais como inexistência de
ato de improbidade.
O juízo de 1º grau afastou as preliminares indicadas pela
empresa e determinou o prosseguimento do feito, dando ensejo
à interposição de Agravo de Instrumento ao TJ/SP, o qual lhe
negou provimento.
Contra essa última decisão, a empresa interpôs o presente
Recurso Especial, com base nas seguintes violações:
a) do art. 295, I e parágrafo único, c/c o art. 282, III, do
CPC (relativas à inépcia da inicial); e
b) dos arts. 17, § 8°, e 23, I, da Lei nº 8.429/1992
(inadequação da via eleita e prescrição).
O Tribunal local inadmitiu o Recurso Especial (fls. 476477).
Interposto o Agravo de Instrumento – autuado no STJ
como AG 956.549/SP –, determinei a subida do apelo da
empresa para melhor exame da matéria.
É o relatório.
Correto o entendimento do TJ/SP. De fato, é imprescritível
a pretensão de ressarcimento de dano ao erário, nos termos do
art. 37, § 5º, in fine, da CF. Nesse sentido:
PROCESSUAL
CIVIL.
ADMINISTRATIVO.
AÇÃO
CIVIL
PÚBLICA.
MINISTÉRIO
PÚBLICO. LEGITIMIDADE. DANO AO
ERÁRIO. LICITAÇÃO. ECONOMIA MISTA.
RESPONSABILIDADE.
(...)
6. É imprescritível a Ação Civil Pública visando a
recomposição do patrimônio público (art. 37, § 5°,
CF/88).
(...)
12. Recursos das partes demandadas conhecidos
14 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
parcialmente e, na parte conhecida, improvidos.
(REsp 403.153/SP, Rel. Ministro José Delgado, Primeira
Turma, julgado em 9.9.2003, DJ 20.10.2003, p. 181)
O egrégio Supremo Tribunal Federal reiterou a
imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário no
início deste mês, ao julgar o MS 26.210/DF (Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 4.9.2008). Transcrevo a
notícia veiculada pelo Informativo STF 518/2008:
(...) Afastou-se, também, a apontada prescrição, ao
fundamento de incidir, na espécie, o disposto na parte
final do art. 37, § 5°, da CF (“A lei estabelecerá os prazos
de prescrição para ilícitos praticados por qualquer
agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário,
ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”).
(...) MS 26210/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski,
4.9.2008. (MS-2621O)
Cito também a lição doutrinária:
Vê-se, porém, que há uma ressalva ao princípio. Nem
tudo prescreverá. Apenas a apuração e a punição do
ilícito; não, porém, o Direito da Administração ao
ressarcimento, à indenização do prejuízo causado ao
erário. (José Afonso da Silva. Comentário Contextual à
Constituição, 5. ed., p. 349).
São, contudo, imprescritíveis as ações de ressarcimento
por danos causados por agente público, seja ele servidor
público ou não, conforme estabelece o artigo 37, § 5°,
da Constituição. Assim, ainda que para outros fins a
ação de improbidade esteja prescrita, o mesmo não
ocorrerá quanto ao ressarcimento dos danos. (Maria
Sylvia Zanella di Pietro. Direito Administrativo, 14.
ed., p. 695)
Voto
O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN:
De início, constato que a empresa busca a extinção da ação,
com base no art. 17, § 8°, da Lei nº 429/1992, in verbis:
Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário,
será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa
jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação
da medida cautelar.
(...)
§ 8° Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta
dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se
convencido da inexistência do ato de improbidade,
da improcedência da ação ou da inadequação da via
eleita.
O dispositivo acima visa a evitar o processamento de ações
temerárias, manifestamente infundadas.
Ocorre que as razões apresentadas pela recorrente não
demonstram a existência de lide temerária de modo a legitimar
a rejeição liminar da ação, como se pretende.
No que tange à alegação de ter havido prescrição, conforme
prevista no art. 23 da Lei nº 8.429/1992, percebo que o
Tribunal de origem aplicou ao caso o disposto no art. 37, § 5º,
da CF, nos moldes do excerto seguinte (fls. 197-198):
(...)
Com efeito, trata-se de ação pleiteando o ressarcimento
de prejuízos causados ao erário público, hipótese prevista
no art. 37, § 5º, da Constituição Federal, que assim
dispõe: “§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição
para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor
ou não, que causarem prejuízos ao erário, ressalvadas as
respectivas ações de ressarcimento”.
Assim, não se poder falar em prescrição em relação
ao pedido de ressarcimento dos prejuízos causados ao
erário público, de modo que o é inaplicável o disposto
no art. 23 da Lei nº 8.429/92, que prevê que a ação de
improbidade prescreverá em cinco anos após o término
do mandato.
Ademais, ainda que se admita o prazo prescricional
vintenário, saliento que os fatos ilícitos ocorreram a partir
de 1990 (fl. 47). Considerando que a ação foi proposta em
20.11.03, não haveria falar em prescrição.
O Município tem legitimidade para propor ação de
ressarcimento decorrente de improbidade administrativa
contra ex-prefeito e outros servidores municipais. Descabido,
in casu, falar em confusão entre credor e devedor, na forma do
art. 381 do Código Civil:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.
AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS POR
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PROPOSTA
CONTRA EX-PREFEITO. MALVERSAÇÃO
DE APLICAÇÃO DE VERBAS RECEBIDAS
DE CONVÊNIO FIRMADO COM A UNIÃO.
IMPORTÂNCIA INCORPORADA AO ERÁRIO
MUNICIPAL. LEGITIMIDADE ATIVA AD
CAUSAM DO MUNICÍPIO. OFENSA AO ART. 3°
DO CPC RECONHECIDA.
(...)
2. A verba liberada por meio do convênio firmado
com a Fundação Nacional de Saúde foi incorporada
ao erário municipal (tendo sido creditada em contacorrente na data de 11.6.02, detendo, pois, o Município
a legitimidade para perseguir judicialmente a reparação
pelos danos sofridos.
(...)
4. Recurso Especial conhecido e provido determinando-
se o retorno dos autos ao juízo de primeiro grau para
que prossiga a análise da ação.
(REsp 1024648/MG, Rel. Ministro José Delgado,
Primeira Turma, julgado em 22.4.08, DJe 21.5.08)
As alegações aduzidas no Recurso Especial, de violação do
art. 295, I e parágrafo único, c/c art. 282, III, do CPC, relativas
à inépcia da inicial da ação proposta pelo Município, também
não merecem prosperar.
Constato que a exordial (fls. 42-84) contém a narrativa dos
fatos configuradores, em tese, da improbidade administrativa,
e isto é o que basta, diante das normas contidas nos arts. 9°,
10 e 11 da Lei nº 8.429/1992, para que seja possível aplicar as
sanções previstas no art. 12 da referida lei, se for o caso.
Sob pena de esvaziar de utilidade a instrução e impossibilitar
a apuração judicial dos ilícitos nas ações de improbidade
administrativa, a petição inicial não precisa descer a minúcias
das ações ou omissões praticadas pelo réu.
Na hipótese dos autos, a descrição genérica dos fatos e
imputações é suficiente para bem delimitar o perímetro da
demanda e propiciar o pleno exercício do contraditório e do
direito de defesa.
Impertinente a objeção de inadequação da via eleita, sob o
argumento de que a licitação ocorreu e o contrato foi celebrado
antes da vigência da Lei nº 8.429/1992, quando, na verdade,
noticiam-se irregularidades na celebração do contrato (antes da
Lei da Improbidade) e também na execução do contrato (na
vigência da Lei da Improbidade).
De fato, o contrato foi aditado posteriormente ao advento
da Lei de Improbidade Administrativa. Transcrevo trecho do
voto-condutor do acórdão recorrido (fl. 197):
Os atos supostamente lesivos se estenderam no tempo
já na vigência da Lei de Improbidade, cujo rito especial
prevalece.
Não há ofensa ao princípio da irretroatividade. A Lei
nº 8.429/1992 não inventou a noção de improbidade
administrativa, apenas lhe conferiu regime jurídico próprio, com
previsão expressa de novas sanções, não fixadas anteriormente.
Além disso, não é razoável que a recorrente aceite a
incidência da Lei nº 8.429/1992 para fins de manifestação
prévia e rejeição liminar da ação, consoante preceituado no
art. 17, § 8°, do mesmo diploma legal, e, ao mesmo tempo,
defenda a não-aplicação da norma aos fatos, por ser posterior.
Registre-se, a esse respeito, que, antes mesmo da vigência
da Lei nº 8.429/1992, o ressarcimento do dano ao erário estava
previsto no ordenamento jurídico, seja como obrigação legal
genérica estatuída no Código Civil, seja, no caso específico de
improbidade, na Lei nº 4.717/1965 (Ação Popular).
Após a promulgação da Lei nº 8.429/1992, as sanções nela
previstas aplicam-se imediatamente a contratos em andamento,
mas somente se os ilícitos em questão tiverem sido praticados já
na vigência da nova lei, como é o caso dos autos.
É indiscutível, portanto, a aplicação da Lei nº 8.429/1992,
conforme decidiu o Tribunal de origem.
Por tudo isso, nego provimento ao Recurso Especial.
É como voto.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15
pRINCípIOS E DIREITOS
FUNDAMENTAIS: CONTRADIçõES,
CLÁUSULAS PéTREAS E O DESAFIO DA
SEGURANÇA jURíDICA
“O PRIMEIRO PONTO A SALIENTAR CONCERNE A SEU
PERFIL DE CONSTITUIÇÃO ‘ABERTA’, QUE, ALéM DE
REGRAS, ENUNCIA PRINCíPIOS COGENTES. DE FATO, O
TEXTO é FéRTIL NA IMPOSIÇÃO DE PRINCíPIOS.”
O
Introdução
Manoel Gonçalves Ferreira Filho
Professor Titular da USP
Presidente do Instituto “Pimenta Bueno”
s vinte anos de vigência da Constituição de
1988 ensejam um exame de suas instituições
quanto às conseqüências que têm. Estas
formam a ordem constitucional concreta que
rege o País. Sim, porque as Constituições a amoldam, não
na sua letra, mas na sua concretização real.
É certamente importante, e instrutivo, examinar alguns
de seus caracteres mais salientes e os resultados que deles
decorrem.
Foto: AIDE
A “abertura da Constituição”
O primeiro ponto a destacar concerne a seu perfil
de Constituição “aberta”, que, além de regras, enuncia
princípios cogentes. De fato, o texto é fértil na imposição
de princípios.
São estes enunciados, por exemplo, no art. 1º, caput,
como “fundamentos” do “Estado Democrático de Direito”,
este mesmo um dos princípios num rol em que se encontram
a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo
político.
Somem-se a estes o disposto no caput do art. 37, tal qual
é hoje vigente, que comanda a observância da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Mais os de legitimidade e os de economicidade, mencionados no plano da fiscalização financeira (art. 70, caput).
Acrescentem-se, quanto à atividade econômica, os
princípios do art. 170, no caput: a valorização do trabalho
humano e livre iniciativa; e nos seus incisos: a soberania
nacional, a propriedade privada, a função social da
propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor,
a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades
regionais e sociais, a busca do pleno emprego, o tratamento
favorecido para as empresas brasileiras de pequeno porte.
Igualmente, os que hão de reger as relações internacionais
do Brasil, que são a independência nacional, a prevalência
dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a nãointervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a
solução pacífica dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao
16 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
racismo, a cooperação entre os povos para o progresso da
humanidade, a concessão do asilo político (art. 4º).
Não se olvidem ainda – deixo de transcrever por falta de
espaço e tempo – dos princípios da educação, no art. 206.
E também não enumero outros que aparecem travestidos de
“deveres”, ou refletem interesses difusos.
E lembro, enfim, que para a importante escola contemporânea que está na moda e conta no Brasil com numerosos
adeptos os direitos fundamentais devem ser vistos também
como princípios, o que traria para o rol deles o disposto
nos arts. 5º, 6º, 7º, bem como o direito ao meio ambiente,
“ecologicamente equilibrado” (art. 225, caput), e o direito à
saúde (art. 196, caput).
Ora, estes princípios são obrigatórios, imediatamente
aplicáveis, mas, como tais, são normas generalíssimas que,
segundo Robert Alexy e seus seguidores, fixam mandados de
otimização e são suscetíveis de ponderação.
A incidência de princípios em situações de fato depende
de uma concretização dos mesmos que incumbe evidentemente ao aplicador. Este, assim, é que no fundo faz a norma,
conforme seu juízo quanto ao conteúdo do princípio e o grau
de otimização que comporta. Ademais, como na maioria dos
casos concretos, vários princípios concorrem, ou colidem,
isto é, de um ou outro ângulo o concernem. O aplicador
tem a tarefa de ponderar, quer dizer, avaliar que peso cada
um terá naquele caso e qual, por exemplo, deverá prevalecer.
Além disto, o princípio – entende essa escola – é o começo de
tudo, como diz o nome; e assim pode sobrepujar a regra, sua
(mera) concretização legislativa. Ou seja, tudo se resolve pela
Constituição, pondo-se de lado o Código referente à matéria.
Surge o Direito Constitucional isto ou aquilo, que no fundo
é o espelho das convicções do aplicador. A lei, ora a lei. Com
efeito, a ponderação pode justificar que num caso específico,
por exemplo, deve prevalecer a defesa do consumidor sobre a
livre concorrência, ou vice-versa1.
Neste quadro arbitrário qualquer tese é sustentável, e com
a invocação da Constituição, mesmo que importe no fundo
em reescrevê-la2. Sublinhem-se algumas conseqüências,
dentre muitas, que daí resultam.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17
“NÃO é OUTRA A
RAZÃO QUE TORNOU
A LEI MAGNA EM VIGOR
UMA VERDADEIRA
CONSTITUIÇÃO
‘OCEâNICA’,
TRATANDO DE TUDO
E PROCURANDO
PETRIFICAR O
TRATAMENTO DE
TUDO. ASSIM, ELA
INVADIU O CAMPO
QUE, NA SABEDORIA
DO PASSADO, ERA
DEIXADO à NORMAÇÃO
INFRACONSTITUCIONAL.”
18 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
A primeira é a judicialização da política, e isto em vários
sentidos. O mais neutro deles é que nenhuma lesão ou
ameaça a direito pode ser excluída da apreciação judicial.
Todas as decisões do Governo podem ser submetidas ao
juiz, que poderá julgá-las aplicando princípios outros que
o da legalidade. Conformando-as, portanto, segundo o
seu entender. É o que facilita a supressão da instância
infraconstitucional.
Claro está que disto deflui a insegurança jurídica.
Ninguém pode prever se, numa decisão, vai prevalecer a
legalidade ou a moralidade, a eficiência ou a economicidade.
Certamente este quadro não se coaduna com o princípio –
outro paradoxo – do Estado de Direito.
Também não se ajusta ao cerne do sistema político. É este
no Brasil a democracia e, como está no parágrafo único do
art. 1º da Carta Magna, “todo o poder emana do povo, que
o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente,
nos termos desta Constituição”. Ora, são os representantes,
eleitos pelo povo, que fazem as leis, as quais devem intermediar
a Constituição e sua aplicação, salvo lacunas específicas, que
são excepcionais. Assim, a supressão da instância legislativa
é violação de um princípio, o mais importante de todos, na
ordem política: o princípio democrático.
A “petrificação” direcional
A Constituição é, entretanto, contraditória, e duplamente
contraditória, visto que, se dá lugar a essa extremada abertura,
por outro lado parece petrificar o futuro e sua obra.
Tenha-se em mente que na Constituinte de 1987-1988
uma forte corrente pretendeu fazer da Lei Magna uma
Constituição dirigente3, nos moldes que então pregava
o grande mestre José Gomes Canotilho4. E isto nos dois
sentidos da expressão. Quer dizer, no sentido explícito, de
uma Constituição que dirigiria os governos para a realização
de determinados objetivos, e, no sentido implícito, de que
estes objetivos traduziriam a transição para o Socialismo – o
que é a significação de Estado democrático de Direito na
pena de Elías Díaz, o inventor da expressão.
O direcionamento da atuação governamental seria
formalmente assegurado pelo controle de constitucionalidade,
inclusive pelas novidades, a ação de inconstitucionalidade
por omissão e o mandado de injunção. Materialmente, ele
o seria por meio das prescrições que, analiticamente, foram
estipuladas sobre as mais variadas matérias a serem objeto de
tal atuação.
Não é outra a razão que tornou a Lei Magna em vigor
uma verdadeira Constituição “oceânica”, tratando de tudo
e procurando petrificar o tratamento de tudo. Assim, ela
invadiu o campo que, na sabedoria do passado, era deixado
à normação infraconstitucional. O constituinte de 1987-1988
dá a impressão que se suponha dotado de um conhecimento
infinito das questões de governo e possuidor da solução para
todos os problemas nacionais. Apesar disso, muitas de suas
normas resultaram de composições ambíguas que poderiam ser
lidas de modo contraditório, como não raramente sucede.
Ora, disso sobressaem dois inconvenientes.
De um lado, o fato de que a instauração de novas linhas
de ação política – linhas estas decorrentes da orientação
do eleitorado, ou tornadas evidentes pela mudança dos
tempos, por exemplo, no plano econômico e mesmo social
– pressupõe mudança da Constituição. Ou seja, a adoção
de emendas constitucionais, o que reclama mobilização de
votos, freqüentemente muito custosas. Isso é demonstrado
pelo número de emendas adotadas nestes vinte anos.
De outro que, em face da preordenação do conteúdo normativo operada pelo detalhismo da Constituição, tudo seja objeto
de contestação de constitucionalidade. Tal fato sobrecarrega
o Judiciário, especialmente o guardião da Constituição, o
Supremo Tribunal Federal, e retarda a realização de políticas
públicas, pois o controle difuso, com liminares, pode produzir
uma babel, se não jurídica, ao menos judicial.
A “petrificação” constitucional
A petrificação da Constituição atinge o ápice por meio das
cláusulas enunciadas no art. 60, § 4º. Já se vê que faço alusão
às cláusulas pétreas, que proíbem seja objeto de deliberação
proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de
Estado (inciso I), o voto direto, secreto, universal e periódico
(II), a separação dos Poderes (III) e os direitos e garantias
individuais (IV).
A fixação de pontos imutáveis numa Constituição é
prática antiga, pois já existe na Constituição da Filadélfia de
1787 5. Doutrinariamente, justifica-se com a invocação erudita
de Carl Schmitt, segundo o qual a Constituição é decisão
do povo sobre o modo de vida em comum. Ela, todavia,
contraria a abertura da Constituição, por sua adaptação a
novos tempos e condições. Tomada de modo absoluto,
importa em reclamar, para as mudanças, a revolução; ou
seja, a quebra da Constituição.
Este entendimento radical depreende-se das lições,
comuns até, de que nada pode ser alterado quanto a direitos
fundamentais, em decorrência do inciso IV, lido logicamente,
pois não tem cabimento supô-lo resguardando uma espécie
apenas de direitos fundamentais, as liberdades, mas todos
eles, incluídos os direitos sociais. Verdade é que o texto
constitucional pode ser interpretado como apenas vedando
a supressão do direito, não a alteração de seu regime, tese
que conta com abono em decisão do Supremo Tribunal
Federal. Ou atenuar a vedação, entendendo-se que somente
protege os “verdadeiros” direitos fundamentais, os direitos
fundamentais ex natura, não meros direitos entendidos como
importantes pelo constituinte6.
Em termos absolutos, a inamobilidade realmente petrificaria a Constituição. A cláusula I proibiria se tocasse na
estrutura federativa, o que inclui – note-se – a repartição
de tributos e rendas. Não está nisto a própria condição da
autonomia de Estados, Distrito Federal e Municípios? Já
foi invocada até para impedir a revisão constitucional pelo
voto da maioria absoluta dos membros do Congresso, a
pretexto do papel federativo do Senado. A cláusula II – vá
lá – assegura a democracia que é possível. A III, ao proteger
a separação dos Poderes, como está na Constituição, não se
filia ao padrão clássico – basta lembrar que aceita a delegação
legislativa e o poder normativo primário do Executivo, que
bloquearia o aprimoramento das instituições.
A separação dos Poderes
A análise da separação dos Poderes tal qual a conforma a
Carta Magna vigente, menos na sua letra que na sua prática,
oferece uma visão instrutiva de que as instituições sofrem
mutações, sem terem sido alteradas formalmente.
Numa visão certamente simplista, mas que corresponde
ao espírito da separação dos Poderes, um Poder administra,
ou executa ações – o Executivo; um Poder legisla – estabelece
o conteúdo dos atos normativos primários, as leis (a faculté
de statuer de Montesquieu) – o Legislativo (embora nisso
colabore o Executivo ao não usar do veto, a faculté d’empêcher);
o terceiro julga, isto é, aplica contenciosamente as leis aos
casos concretos – o Judiciário. E, complete-se o perfil, estes
Poderes hão de ser independentes e harmônicos (como está
no art. 2º da Constituição), além de ficar em equilíbrio, pois
este é imprescindível para que “o poder detenha o poder”,
para que sirvam de freios e contrapesos uns para os outros.
É assim que se governa o Brasil?
Primeiro, é fato que a Constituição dá preeminência e
proeminência ao Executivo, e a um Executivo unipessoal,
que coincide com o Presidente da República. Afora os papéis
clássicos de chefe de Estado, chefe do Governo, chefe da
Administração, comandante das Forças Armadas, condutor
das Relações Exteriores, é ele quem comanda a economia
e tem nas mãos a grande massa dos recursos públicos.
Também é o grande empresário, controlador das empresas
estatais. Igualmente, o protetor dos menos aquinhoados,
porque dele dependem o INSS e especialmente o SUS.
Ademais, o seu modo de eleição – majoritária e direta – o
faz o representante por excelência do povo, o possuidor do
máximo possível de legitimidade democrática. É ele, mais,
o verdadeiro detentor do poder de legislar. Dele emanam
os projetos de lei que vingam, porque é ele que tem força
(poder) para fazê-los aprovar (o que, aliás, se passa pelo
mundo afora). Entretanto, ele não apenas origina a legislação
como a edita por meio das medidas provisórias com força
de lei. Estas devem ser coonestadas pelo Legislativo – e
isto raramente não sucede – mas sua vigência e eficácia são
imediatas, valem assim desde o início como se leis fossem7.
O Legislativo fica dessa forma reduzido a uma Câmara
confirmatória. Consola-se com os poderes investigatórios
que a Constituição lhe atribui. As comissões parlamentares
de inquérito parecem resumir, e sem dúvida é isto que
se dá aos olhos do público, a atividade desse Poder. Ele
investiga e, nisto, perde de vista que o papel das comissões
é essencialmente o de colher dados para sua atuação
como legislador. Ao invés, torna-se o grande inquisidor, o
implacável perseguidor do crime e da corrupção (que, não
raro, respinga nele próprio).
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19
O papel político do Judiciário
Quanto ao Judiciário, este vem passando por uma
profunda transformação, em parte resultante da Constituição,
em parte de um ativismo que toma conta de não poucos
magistrados. Já se apontou, ao tratar dos princípios, que a
abertura da Constituição enseja um papel de decisão política
para o Judiciário.
Por outro lado, a utilização de instrumentos já antigos,
como a ação popular (de alcance estendido por um
entendimento amplo do que seja lesividade e com o
caráter preventivo que pode assumir) e o mandado de
segurança, bem como novos, a ação civil pública, para
tanto muito contribuem. Ademais, não se pode ignorar
que também o favorece, embora indiretamente, o controle
de constitucionalidade, por exemplo, por meio da ação
declaratória de constitucionalidade. Do mesmo modo,
ações com outra destinação específica, mas que se refletem
no plano das políticas de governo, como o mandado de
injunção e a argüição de descumprimento de preceito
fundamental.
Na verdade, o Judiciário não mais fica no controle
negativo, a desfazer atos inconstitucionais ou ilegais, mas
vem assumindo um papel de controle positivo, impondo
ações e políticas.
Vale salientar algumas decorrências disto.
Uma, o controle negativo, é freqüente, já na primeira
instância, a determinação de políticas públicas, ou de ações
individualizadas, em nome do direito à saúde, à educação,
para a proteção de minorias, etc. Em substância, essas
decisões configuram atos de execução, mas atos, quando
judiciais, qualificados pela coercitividade.
Outra, controle positivo, num nível mais alto. O
Supremo Tribunal Federal assumiu claramente o papel de
conformador do ordenamento constitucional. Dir-se-á que
isto sempre ocorreu, contudo não na medida atual e do
modo que se passa.
Tenha-se em mente que hoje ele pode “modular” os efeitos
da declaração de inconstitucionalidade. É o que resulta do art.
27 da Lei nº 9.868/99. O STF pode restringir os efeitos da
declaração ao fixar o termo a quo do desfazimento dos efeitos
de ato inconstitucional. Pode fazê-lo, com fundamento
em “razões de segurança jurídica” – o que é amplo; ou
de “excepcional interesse social” – o que é amplíssimo. E
é uma apreciação política, no sentido de uma apreciação
de oportunidade e conveniência. Sim, porque “interesse
social” abrange tudo o que concerne à vida em sociedade
e excepcionalidade é um juízo de valor. E, para corroborar
que se trata de uma apreciação política, exige-se para tanto
a maioria de dois terços e não a maioria absoluta reclamada
para a mera declaração de inconstitucionalidade. Ora – não
fujamos à realidade – restringir os efeitos da declaração
de inconstitucionalidade é admitir a sobrevivência de ato
inconstitucional, é mudar a Constituição, ou conformá-la
ao menos.
Acresce a isto o poder, conferido ao mesmo Tribunal pela
20 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Emenda Constitucional nº 45/2004, de editar súmulas (art.
103-A da Constituição). São estas enunciados normativos,
destinadas a definir “a validade, a interpretação e a eficácia
de normas (constitucionais) determinadas” (art. 103-A, §
1º). Tais súmulas equivalem, no fundo, a leis interpretativas,
pois têm efeito vinculante em relação aos demais órgãos do
Judiciário e da administração pública direta e indireta, nas
esferas federal, estadual e municipal.
Seriam elas a condensação da jurisprudência, após
“reiteradas decisões sobre matéria constitucional”. Entretanto, o que se tem visto é a edição de súmula, logo após o
primeiro julgamento da questão.
Aqui, de novo, o quorum exigido e o fundamento
justificativo demonstram o caráter político de tal instituto.
Tal quorum é a maioria de dois terços dos membros da
Suprema Corte e a isto se aplica o que mais alto já se disse.
Dois são esses fundamentos. Um é a “grave insegurança
jurídica”, o que já é uma inegável abertura, visto que enseja,
ao menos, uma avaliação de gravidade. Outro, a “relevante
multiplicação de processos sobre questão idêntica”. E a
referência à relevância representa também incontestável
latitude de apreciação política.
E há mais a assinalar. Trata-se da integração do
ordenamento infraconstitucional.
As súmulas vinculantes já importam na passagem do
constitucional para o infraconstitucional. Neste último
plano, o Judiciário tem nitidamente avançado também.
O constituinte de 87/88 temeu que preceitos constitucionais se tornassem letra morta por falta de regulamentação,
sobretudo legal, que permitisse a sua aplicação. Inscreveu,
por isso, no texto, dois instrumentos que conduziriam a tal
regulamentação. Um, a Ação de Inconstitucionalidade por
omissão; outro, o Mandado de Injunção.
A primeira não mereceu mais do que um parágrafo,
inserido no art. 103. Conduziria apenas a dar “ciência ao
Poder competente para a adoção das providências necessárias
e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em
trinta dias”. Ou seja, serviria para constituir em mora o Poder
competente, o mais das vezes o Legislativo. Sua utilidade
restrita levou-a (quase) ao esquecimento.
O Mandado de Injunção é uma criação do constituinte
de 87/88, tendo sido infrutífera a busca de precedente
estrangeiro a seu respeito. Está ele previsto no art. 5º, LXXI, e
destina-se a tornar viável “o exercício de direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade,
à soberania e à cidadania”, quando isso for obstado pela falta
de regulamentação.
A interpretação desse preceito acarretou forte polêmica,
porque – ironia – ele não é completo, pois não enuncia quem
haveria de editar tal regulamentação, o órgão judiciário ou
o “Poder competente”, caso em que daria ciência a este da
falta, como ocorre na ação de inconstitucionalidade por
omissão.
A jurisprudência evoluiu. De início, seguiu a tese da
comunicação da omissão, depois veio a abalançar-se a suprir
a lacuna. É o que fez o Supremo Tribunal Federal, em 2007,
mandando aplicar à regulamentação do direito de greve
do servidor público as normas que regem este instituto no
Direito privado8. Ora, este suprimento é incontestavelmente
um ato político, pois equivale a uma legiferação.
Outro exemplo dessa integração do ordenamento infraconstitucional pelo Judiciário é o que se deu, ainda em 2007,
a respeito de tema que concerne à própria conformação
da ordem política e assim é de enorme importância. Ela
transparece de decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do
Supremo Tribunal Federal, que se interligam.
Ao Tribunal Superior Eleitoral cabe, entre outras,
a competência de responder a consultas sobre matéria
eleitoral e partidária. Ora, em resposta exatamente a
consultas, teve ele de examinar a delicada questão da relação
entre o partido e aqueles que, sob sua legenda, se elegeram,
mas posteriormente o deixaram. Concretamente, a dúvida
se os eleitos por um partido perderiam o mandato caso o
deixassem. Tal tema, aliás, não mereceu norma explícita na
Constituição, embora o art. 17, § 1º, desta comande que
os estatutos partidários tratem da fidelidade e da disciplina
partidárias.
Entendeu o Tribunal Superior Eleitoral que, embora
a Constituição não disponha sobre a sanção do abandono
do partido, tal sanção estaria nela implícita: seria a perda
do mandato, salvo motivo justo. E isto tanto para os
eleitos segundo o sistema de representação proporcional –
deputados – como para os eleitos em eleição majoritária –
como senadores9.
Tal orientação foi corroborada pelo Supremo Tribunal
Federal quanto à questão da perda do mandato dos eleitos
pelo sistema proporcional que tinham abandonado o partido
pelo qual se haviam elegido10.
Posteriormente, o Tribunal Superior Eleitoral editou
uma Resolução (nº 22.610) dispondo sobre o assunto.
Substituiu-se, pois, ao legislador omisso. Evidentemente
desempenhando uma tarefa política de natureza
legislativa.
Observações finais
Cabe concluir com um registro. A Constituição, há vinte
anos promulgada, deu lugar a profundas transformações no
Direito brasileiro. Não que todas façam jus a aplauso. Nem
que elas se devam a seu mérito como documento jurídico, que
é discutível, pois o texto tem vários defeitos bem conhecidos.
Nem que isto resulte da sua adequação às necessidades do
País, eis que peca, e muito, quanto à governabilidade. Mas
sim, paradoxalmente, em razão de algumas
peculiaridades de valor duvidoso.
Entretanto, deve-se reconhecer a sua
influência, maior que a de outras
Constituições brasileiras, afora haver
superado crises e desafios, o que
representa um incontestável aspecto
positivo.
“A CONSTITUIÇÃO,
HÁ VINTE ANOS
PROMULGADA, DEU
LUGAR A PROFUNDAS
TRANSFORMAÇõES
NO DIREITO
BRASILEIRO. NÃO QUE
TODAS FAÇAM jUS A
APLAUSO.”
NOTAS
1
Ou, o que ainda não se deu, mas poderá ocorrer, que a proibição da
tortura deve ceder às exigências do direito à segurança. Ou que a redução
das desigualdades sociais deve preponderar sobre a propriedade privada.
2
No julgamento da ADPF nº 144 pelo Supremo Tribunal Federal,
o voto do Min. Eros Grau demonstra sua indignação com essas
manipulações: “é bom que se diga, mais uma vez, que ninguém está
autorizado a ler na Constituição o que lá não está escrito, prática muito
do gosto dos neoconstitucionalistas e/ou pós-positivistas, gente que
reescreve a Constituição na toada de seus humores”.
3
Ainda na atualidade há quem pretenda que a Constituição de 1988
seja uma Constituição dirigente.
4
Que hoje abjurou da Constituição dirigente, conforme já escreveu
muitas vezes, para descontentamento de alguns admiradores, que
saudosisticamente preferem o “velho” Canotilho I ao “novo” Canotilho
II.
5
A sua relatividade também é fácil de demonstrar. Basta lembrar que
a revisão da Constituição portuguesa de 1976 suprimiu cláusula pétrea
para desconforto dos mestres constitucionalistas lusitanos.
6
Por exemplo, a gratuidade de certidões de óbito (art. 5º, LXXVI, “b”).
7
é certo que o quadro se atenuou depois da Emenda Constitucional
nº 32/2001, mas de modo geral ocorre o que se apontou.
8
Mandados de injunção: MI 670, Rel. para o acórdão, Min. Gilmar
Mendes; MI 708, Rel.: Min. Gilmar Mendes; MI 712, Rel.: Min. Eros
Grau.
9
Sobre deputados que deixaram o partido pelo qual se tinham
elegido: TSE, consulta nº 1.398, Relator: Min. César Asfor Rocha. Sobre
eleitos em eleição majoritária, TSE, consulta nº 1.407, Relator: Min.
Carlos Britto.
10
Mandados de segurança MS 26.602, Rel.: Min. Eros Grau; MS
26.603, Rel. Min. Celso de Mello; MS 26.604, Min. Cármen Lúcia.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21
Foto: Mariana Bueno
ENSAIO SObRE O
TESTEMUNHO INFANTIL
“A QUESTÃO QUE SE PROPõE
é jUSTAMENTE ESTA: UM
CONjUNTO PROBATóRIO
BASEADO EXCLUSIVAMENTE NO
TESTEMUNHO DE CRIANÇAS é
SUFICIENTE PARA SUSTENTAR UM
DECRETO CONDENATóRIO?”
Alexandre Chini
juiz de Direito do Tj/Rj
T
Introdução
odos aqueles que militam nas varas de competência
criminal certamente já se depararam com hipóteses
em que a responsabilidade penal do réu é trazida ao
processo através do chamado testemunho infantil,
consubstanciado no depoimento de crianças.
A questão que se propõe é justamente esta: um conjunto
probatório baseado exclusivamente no testemunho de crianças
é suficiente para sustentar um decreto condenatório?
Para a perfeita solução da questão, revela-se necessária uma
breve análise do sistema de provas no Código de Processo
Penal.
Do sistema de provas
Pois bem, deve-se consignar, desde logo, que a Exposição
de Motivos do Código de Processo Penal noticia a adoção
do princípio do livre convencimento motivado, também
conhecido como sistema da persuasão racional, aduzindo o
seguinte:
VII – O projeto abandonou radicalmente o sistema
chamado de certeza legal (...) Não serão atendíveis as
restrições à prova estabelecidas pela lei civil, (...) nem
é prefixada uma hierarquia de provas (...) Todas as
provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis,
valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio
que outra.
Referido princípio vem materializado em nossa legislação
processual penal no art. 157 do Código de Processo Penal,
22 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
na medida em que diz que “o juiz formará sua convicção pela
livre apreciação da prova”. Nesse enfeixe, os arts. 239 e 408
do Código de Processo Penal também encampam o sistema
de livre convicção.
Destarte, segundo a sistemática idealizada pelo Código
Processual Penal, o juiz pode fundamentar sua decisão através
de livre convicção, motivada por qualquer meio de prova
válido, dentre eles o indício.
Assim sendo, nada impede que o magistrado, em uma
contração lógica, levando em consideração circunstâncias
conhecidas e provadas, por indução, conclua pela existência
da responsabilidade penal do acusado, baseado na prova
indiciária, desde que, evidentemente, esta se revista dos
requisitos de gravidade, precisão e concordância. Em outras
palavras, significa dizer que esses indícios podem assumir a
condição de prova suficiente ao decreto condenatório.
O art. 329 do Código de Processo Penal considera
indício a circunstância conhecida e provada que, tendo
relação com o fato, autoriza, por indução, concluir-se a
existência de outra ou outras circunstâncias (art. 239 do
Código de Processo Penal). Resumindo, “indício é o fato
provado que, por sua ligação com o fato probando, autoriza
a concluir algo sobre esse”.1
Assim, se o julgador se convencer da existência do
crime, bem como da existência de indícios sérios, suficientes
e concretos, impregnados de elementos positivos de
credibilidade, relativos à autoria da infração penal, poderá,
só com base nesses elementos indiciários, proferir decreto
condenatório.
Valor jurídico dos meios de prova
De início, impõe-se registrar que, muito embora possa o
magistrado proferir decreto condenatório com base em qualquer
meio de prova, esse livre convencimento não pode prescindir
de certas regras que compõem a sistemática probante como um
todo. De fato, a questão do valor jurídico dos meios de prova é
questão de direito, até porque o livre convencimento não quer
dizer mero arbítrio na apreciação das provas2.
O tema torna-se relevante quando se enfrenta a questão
referente ao testemunho infantil.
Efeitos jurídicos do testemunho infantil
Segundo a regra do art. 202 do Código de Processo Penal,
toda pessoa poderá ser testemunha, não sendo tomado o
compromisso a que alude o art. 203 do CPP aos doentes e
deficientes mentais e aos menores de 14 anos, art. 208 do
CPP, nem às pessoas ligadas ao acusado por laços afetivos ou
de consangüinidade, art. 206 do CPP.
Diz-se que a prova testemunhal tem a finalidade de
resgatar a verdade histórica dos acontecimentos, através
do depoimento das pessoas que tomaram ciência de
determinado fato, de forma direta ou indireta, na busca,
juntamente com outros meios de prova, da certeza necessária
para a elaboração de uma decisão judicial.
Quanto mais próximo, direto e imediato o contato da
testemunha com o fato, maior o valor do seu depoimento;
até porque a prova testemunhal é como água das correntezas:
quanto mais se afasta de suas fontes mais se altera3.
As crianças, igualmente, podem testemunhar, inexistindo
qualquer óbice para que assumam e desempenhem essa
função, observadas as ressalvas do art. 208 do CPP.
Na pureza de espírito das crianças, na sua ingenuidade
e ausência de malícia, já se consignou que os depoimentos
infantis são tidos como a exata expressão da verdade.
Nesse sentido, podemos destacar algumas decisões que
afastam a idade das testemunhas como fator de incerteza4.
Tratando-se de vítima menor de doze anos, ainda não
menstruada, acolhem-se as declarações que prestou em
juízo, minuciosas, denotando inocência, ignorância
em matéria sexual e, por isso mesmo, merecedoras de
fé. (RT 161/53)
A existência de crianças mentirosas não basta para
averbar-se de suspeição geral o testemunho infantil.
(RT 262/630)
Contudo, como adverte Fernando de Almeida Pedroso5,
tal regra não é exata, isso porque: “falta à criança a experiência
da vida, elemento indispensável para o bom entendimento
e a crítica dos fatos (Lições de Medicina Legal. 11. ed.
Companhia Editora Nacional, 1973, p. 557), motivo por
que é extremamente maleável e vulnerável às sugestões,
dominando-lhe a atividade mental e a imaginação. O
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23
“MAS NÃO é Só ISSO, QUANDO DISPOSTAS A MENTIR,
AS CRIANÇAS ENGANAM, ILUDEM, E INTENCIONALMENTE
OCASIONAM GRANDES MALES. AS PESSOAS NÃO
RESISTEM à PALAVRA DE UMA CRIANÇA, POR SUPOR
SEMPRE A SINCERIDADE.”
romanesco e as aventuras heróicas a fascinam (Hélio Gomes.
Medicina Legal. 16. ed. Freitas Bastos, p. 269)”.
Como se sabe, as crianças são mais vulneráveis à sugestão,
possuindo uma memória que atende às expectativas do
que “deveria acontecer” ou às expectativas ou pressões de
terceiros, podendo, inclusive, ser sua narrativa falsa, fruto de
uma distorção proposital dos fatos (mentira) ou de distorção
da memória (falsa memória)6.
Mas não é só isso, quando dispostas a mentir, as crianças
enganam, iludem e, intencionalmente, ocasionam grandes
males. As pessoas não resistem à palavra de uma criança, por
supor sempre a sinceridade7.
Evaristo de Morais (in O Testemunho Perante a Justiça
Penal. Editora Jacinto, 1939, p. 79) já alertava sobre o
problema do depoimento infantil8. Floriam, em sua obra
“Delle Prove Penale9”, argumenta: “O testemunho dos
menores requer um mais acurado exame, visto que os poderes
de percepção, de atenção, de memória se desenvolvem com a
idade”. “Ademais, falta neles o freio da crítica e a fantasia se
desencadeia fortemente, substituindo os dados da realidade
pelos fantasmas da sua imaginação”.
Enrico Altavilla, citado pelo magistrado Pedro Gagliardi,
quando do julgamento da Ap. 452.141-910, adverte: “o
comportamento da criança pode facilmente induzir em erro:
a criança mente, com freqüência, de má-fé, mas não é raro
acontecer deixar-se sugestionar e deixar acreditar também em
tudo aquilo que afirma”.
Por tais razões, inúmeros julgados têm lembrado o perigo
consistente em se condenar alguém unicamente com base no
chamado depoimento infantil, pela falta de sinceridade de
que por vezes é cercado, podendo gerar a dúvida11:
Frágil é o contingente probatório emanado de
depoimento prestado por criança de poucos anos
de idade. Mínima é a sua capacidade de percepção,
memorização e reprodução do observado, além do
alcance moral de sua afirmação. (RT 251/130)
24 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Pouco ou quase nada pode esperar a prova criminal
de depoimento de menores. Absurdo é pedir-lhes
um testemunho verdadeiro; são incapazes de dizer a
verdade, porque incapazes de compreendê-la. Tudo
aconselha, pois, a deles duvidar, inclusive quando
prestados por vítimas. (RT 225/117)
Contudo, afigura-se-nos que, entre estas duas posições,
há de ser estabelecido um ponto de equilíbrio, buscandose uma solução eclética. Até porque, face ao princípio da
verdade real, deve o juiz buscar todos os meio lícitos de
prova para atingir a certeza necessária à formação do seu
convencimento.
A harmonia entre o depoimento e outros elementos
constantes dos autos, deve ser avaliada sob o prisma
da extensão, profundidade e segurança do conjunto
probatório que deve delinear o convencimento a respeito da
responsabilidade penal12.
Sem dúvida que há de se examinar com cautela o
testemunho infantil, conhecida, como é, a fertilidade
da imaginação da criança, capaz de levá-la a afirmações
inverídicas. Desde, porém, que não apareça isolado nos
autos, encontrando amparo em outros elementos, não
deve ser desprezado, mormente quando prestado por
vítima de crime contra os costumes. (RT 388/110)
Malgrado a reserva, a prevenção mesmo, com que se deve
acolher a palavra de menores, não é ela de ser rejeitada
quando avulta um conjunto probatório que se afirma
em extensão e profundidade, capaz de fundamentar,
com segurança, um convencimento positivo a respeito
da responsabilidade criminal. (RT 415/88)
Conclusão
A busca por esta harmonia probatória retira do julgador a
difícil tarefa de tentar descobrir o material psíquico oculto, na
mente da testemunha, da criança, livrando-o das dificuldades
inerentes a tal investigação13.
Depois de alinhar as restrições que pesam contra a
credibilidade do testemunho infantil, decorrentes da
organização psíquica incompleta (defeitos de atenção;
percepção sincrética e não analítica dos fatos; riqueza
de imaginação; fragilidade de memória e extraordinárias
emotividade e sugestionabilidade), Enrico Atavilla conclui
que as crianças são, todavia, “boas observadoras do que se
passa em seu ambiente familiar. A sua casa é o seu reino: é
o conjunto de percepções que, repetindo-se continuamente,
se gravaram profundamente no seu cérebro. (...) São, além
disso, muito zelosas de seus afetos familiares, e revoltam-se
contra as intromissões, vêem logo um perigo em tudo aquilo
que perturbe o normal desenvolvimento de sua vida”.
Recomenda, então, a exemplo de prescrições objetivas
existentes em alguns países, a participação de peritos em
psicologia como coadjuvantes do juiz, seja para vencer o
estado inicial de inibição, seja para “conseguir tornar sincera
a narração da criança” (Psicologia Judiciária, tradução de
Fernando de Miranda, 2. ed. Coimbra: Coleção Studium.
Vol. I, pp. 76/111).
Conclui-se, portanto, que, devido a sua natureza
especialíssima, o depoimento infantil deve ser colhido de
forma a permitir a realização da instrução criminal com
técnica apurada, a viabilizar uma coleta de prova oral rente
ao princípio da veracidade dos fatos havidos14, como, por
exemplo, na experiência do projeto “Depoimento sem
Danos”, instrumento de humanização e aperfeiçoamento do
ato processual15.
A preocupação com o tema tratado tem origem na própria
experiência do cotidiano forense. Nessas poucas linhas,
tentou-se tão-somente trazê-la à pauta face a sua relevância.
Assim, diante da possibilidade do fato ser fruto da fantasia
ou de ser reprodução de violências anteriores sofridas, tal
testemunho deve ser confrontado com outros elementos
de convicção e, se possível, acompanhado por uma equipe
técnica qualificada.
NOTAS
TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva. Vol. I, p. 460.
Sobre o assunto, vale destacar parte do voto do Ministro Evandro Lins e Silva, quando do julgamento do habeas corpus nº 40.609 Guanabara, 15.7.1964, concedido pelo Excelso Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal que assentou: “Nunca é demais advertir
que o livre convencimento não quer dizer puro capricho ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos
legais na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se de seu conteúdo. Livre convicção não é a emancipação absoluta
da prova, nem julgamento contrário à prova ou à revelia da prova. Não é, tão pouco, julgamento ex-informata conscientia, com o qual
não se confunde, porque pressupõe unicamente a livre apreciação da prova, jamais a independência desta, no ensinamento de Manzini.
(...) A liberdade da apreciação da prova pelo juiz está necessariamente subordinada à natureza do fato que deva ser provado”.
3
AYARRAGARAY, Carlos. Crítica do Testemunho. Salvador: Progresso, 1956.
4
RT 170/479, 392/315, 396/102, 157/618, 430/344, 496/268 e 420/89.
5
PEDROSO, Fernando de Almeida. Prova Penal. 1. ed. Editora Aide.
6
Osnilda Pisa e Lilian Milnitsky Stein (RT – 857/457).
7
Motet, depois de transcrever as justas observações de Bordin, aduzia: “Nada conheço de mais emocionante do que a narração
de uma criança contando os detalhes de um crime de que pretendia ter sido testemunha, ou vítima. A ingenuidade da linguagem
e a simplicidade da encenação aumentam singularmente o interesse, impulsam a confiança. Deixam-se os circunstantes facilmente
dominar pela crescente emoção, logo seguida de indignação e da piedade que uma aventura monstruosa inspira.” (...) “Por processo
compreensível, parentes, amigos, vizinhos, aceitam, sem maior exame, o fato, verdadeiro ou falso; ajuntam, incessantemente, novos
detalhes, constituindo narração bem mais completa do que a primitiva; a criança se apodera de tudo isto, assimila a narração
aperfeiçoada, e a reproduz, sem variantes, diante da magistratura, acusando com terrível precisão”. Les Faux Temoignage des Enfantis
Devanti La Justice, 1887, p. 7 e 8, LACASSAGEM, Médicine Lègale, ed. 1906.
8
“No entanto, as conclusões científicas, alcançadas com intuitos outros, ilustram, sobremodo, os estudos dos psicólogos do
testemunho. Pelo lado da moralidade, desfez a pedologia a crença na bondade e na candura das crianças. Supunha-se, vulgarmente,
que a criança não tinha maldade, adaptando-se a “amável ficção” de Platão e de Wordsworth. Demonstrou, em contrário, entre outros,
Dr. Rassier que na criança sobrepuja a tendência para o mal, sendo ela acessível a quase todas as paixões que atormentam o adulto.
Pedagogos, criminólogos, policiais, magistrados, se ajustam na apresentação de casos em que se descobre o espírito malfazejo de
crianças de tenra idade. Pais, mães, parentes próximos, imbuídos de justificado afeto, não divulgam as manifestações desse espírito;
levam a conta de brincadeiras o que nada mais exprime do que satisfações do egoísmo, da vaidade, da inveja. “A presunção da
inocência infantil cobre, por vezes, a pesada carga de paixões que precocemente se expandem”.
9
Milão: Casa Editora Francesco Vallardi, 1924. V. II/365.
10
RT 621/327.
11
RT 178/582, 579/351, 195/354, 451/364, 604/332, 390/102, 407/110, 573/352, 442/376 e 621/324.
12
RT 426/348, 446/378, 470/334, 497/320, 257/148, 256/45, 170/479, 417/95 e 430/344.
13
Freud in “A Psicanálise e a Determinação dos Fatos jurídicos” (1906): “No neurótico, o segredo está oculto de sua própria
consciência; no criminoso, o segredo está oculto apenas dos senhores (juízes). No primeiro existe uma autêntica ignorância, embora não
em todos os sentidos, enquanto no último só existe uma simulação de ignorância”. (Freud, Volume IX, p. 102).
14
MS Nº 70.013.748.959, DV/M 89 – 16.2.2006 – p. 13, SEXTA CâMARA CRIMINAL, RS.
15
Experiência pioneira no Brasil, o projeto “Depoimento sem Danos” foi implantado em maio de 2003 na 2ª Vara da Infância e da
juventude de Porto Alegre – RS, com o objetivo de promover a proteção psicológica das vítimas, permitindo a realização de instrução
criminal com técnicas mais apuradas, com a participação de especialistas, psicólogos e assistentes sociais.
1
2
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25
Foto: www.apesp.org.br
pODER CONCEDENTE MUNICIpAL,
ESTADUAL E FEDERAL
CONFLITO DE COMPETêNCIA
Flávio de Araújo Willeman
Procurador do Estado do Rio de janeiro
Transcrição da palestra proferida no Seminário
“Questões jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”
P
rimeiramente, me preocuparei em demonstrar
as competências já firmadas para a prestação do
serviço de transporte na Constituição Federal e na
Constituição do Estado do Rio de Janeiro, para em
seguida, discutir cinco casos concretos envolvendo conflito
de competência. Esses conflitos advêm ou de invasão de
competência de um ente sobre o outro ou por ambigüidade
ou dubiedade legislativa, que gera dúvidas sobre qual o
meio competente para prestar o serviço em determinado
momento.
Iniciando a primeira parte da minha exposição, informo
que a Constituição da República de 1988, no artigo 175,
estabelece que ao Poder Público incumbe a prestação de
serviços públicos de forma direta ou mediante concessão
ou permissão. Por certo, para que um ente público preste
um serviço público deverá ser ele titular desse serviço ou
receber de outro ente da Federação, que assim o seja, uma
delegação. É o caso do transporte ferroviário no Estado do
Rio de Janeiro.
A Constituição da República, no artigo 21, inciso XII,
e no artigo 30, estabeleceu competências expressas para a
prestação do serviço de transporte. No artigo 21, inciso XII,
alínea “d”, a Constituição determinou que compete à União
Federal explorar, diretamente ou mediante autorização
concessão ou permissão, “os serviços de transporte
ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras
nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou
Território”. Na alínea “e” prevê “os serviços de transporte
rodoviário interestadual e internacional de passageiros”.
No artigo 30, incisos I e V, determina o constituinte de
26 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
88 que compete aos municípios: “Legislar sobre assuntos de
interesse local; (...) organizar e prestar, diretamente ou sob
regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de
interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem
caráter essencial”.
No que tange ao Estado, a Constituição Federal
foi silente sobre as suas competências – à exceção da
competência estadual para prestar o serviço público de gás
canalizado – atribuindo-lhe uma competência residual, ou
seja, o estado pode executar todos os serviços que não lhes
sejam vedados pela Constituição. Diante deste panorama,
temos expressamente delimitadas na Constituição Federal
as competências da União e dos municípios para prestação
de serviço público de transporte, e a Constituição do
Estado do Rio de Janeiro, valendo-se dessa competência
residual, tratou de especificar e determinar a competência
do Estado do Rio de Janeiro para a exploração de alguns
serviços, dentre eles o de transporte.
O artigo 242, da Constituição do Estado do Rio de
Janeiro, informa que a este compete a prestação de serviços
públicos, de forma direta ou mediante permissão ou
concessão, que sejam de interesse estadual, metropolitano
ou microrregional, incluído o de transporte coletivo, que
tem caráter essencial. Diante deste panorama legislativo,
trazendo para discussão regras da Constituição Federal e
da Constituição Estadual, temos que à União é possível
apenas explorar, ou seja, prestar e regular o serviço
público de transporte ferroviário sem qualquer restrição,
e o aquaviário entre portos brasileiros. Lanço, então, a
primeira discussão: Qual é o conceito de porto para fim
de delimitação da competência da União para prestar esse
serviço de transporte aquaviário? É aquele que transponha
os limites do Estado, cabendo à União prestar o serviço
de transporte rodoviário interestadual e internacional. E
temos na Constituição Federal a limitação da prestação dos
serviços de transporte pelo Município, que nos dá a idéia
de um transporte intramunicipal que tenha interesse local.
Penso que a competência do Município para explorar os
serviços de transporte submergirá se presentes estiverem
estes dois requisitos: transporte intramunicipal e interesse
local. E ao Estado, temos a competência para prestar e
regular o serviço de transporte coletivo que ultrapassar as
raias geográficas de um Município e que tenha interesse
estadual de região metropolitana ou microrregional. Hoje é
necessário descobrir quem é o poder concedente e o poder
competente para regular a prestação do serviço, muitas vezes
relegada a particulares em situações onde ocorre verdadeira
invasão de um ente na competência de outro, ou hipóteses
em que não conseguiremos de plano detectar qual o ente
competente.
Inicio, então, a partir de um fato concreto que não foi
oriundo do Estado do Rio de Janeiro, mas de um outro
Estado da Federação, quando a União Federal pretendeu
explorar o serviço de transporte ferroviário ligando um
Estado da Federação a outro. Não há dúvida que, a priori,
esse serviço é de competência da União, mas por certo
esta linha férrea cortará diversos municípios dos estados
envolvidos. Imaginemos que – e no caso concreto foi isso
que aconteceu – a União Federal tenha, dentro de sua
competência regulatória para melhor organizar a prestação
do serviço, determinado que um dos pátios de manobra
dessa ferrovia será em determinado Município. Este
Município, por sua vez, a pretexto de regular e implementar
políticas ligadas ao meio ambiente, resolve ou proibir a
inserção desse pátio ou limitar a realização das manobras
pelas composições férreas a determinado período do dia.
Utilizando o argumento, por exemplo, de que esta atividade
provocará ruído e ao Município compete, à luz do artigo
23, inciso VI, da Constituição Federal, proteger o meio
ambiente contra qualquer tipo de danos. Como é que fica
essa situação jurídica? Se olharmos ligeiramente a questão a
competência é da União e não há problemas para regular e
prestar o serviço de transporte ferroviário. Mas vemos aqui
também uma competência do Município para tutelar o
meio ambiente. E essa competência principal para tutelar o
meio ambiente não é privativa ou exclusiva, é concorrente
com a União e os demais estados. De modo que, assim
agindo, o Município estaria violando a competência da
União para regular e disciplinar as técnicas e as formas da
prestação de um serviço que é de sua titularidade por força
constitucional.
Há exceção? Creio que sim. Imaginemos que a União
tenha elegido esse Município e que ele seja tombado pelo
Patrimônio Histórico Cultural. Se o Município provar
um desvio de finalidade na atuação técnica da União
Federal, em ponderação de valores, poderá exercer e fazer
frente à União Federal nessa escolha de regular o serviço
de transporte ferroviário. Todavia, em não havendo uma
demonstração evidente de desvio de finalidade, penso que
esse interesse municipal de tutelar o meio ambiente deve, de
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27
certa maneira, ceder frente ao interesse razoável da União de
implementar o serviço público de transporte ferroviário.
Se uma hipótese, como a relatada anteriormente, é posta
à discussão do Poder Judiciário, imagino que os aspectos
envolvidos se inserem em um campo de tecnicidade
que torna difícil não se privilegiar o pacto federativo e
as competências eleitas pelo constituinte originário; em
outras palavras, a não ser que se comprove tecnicamente a
inviabilidade da escolha feita pela União Federal e que esta
repercuta na esfera municipal, penso que a opção técnica da
União deve ser prestigiada.
Um segundo caso interessante para o debate diz respeito
à licitação para a concessão das linhas de ônibus da Baixada
para a Barra da Tijuca. Naquela oportunidade não ocorreu
propriamente uma hipótese de usurpação de competência
de um ente por outro, mas sim a pretensão de dois entes
federativos em atuar na defesa de valores constitucionais
legitimamente assegurados pela Constituição da República.
Fomos, enquanto Procuradores do Estado, instados
a defender o Estado do Rio de Janeiro e, à margem da
discussão que envolvia a licitação, surpreendeu-nos o fato
de, às vésperas da licitação, o Prefeito da Cidade do Rio
de Janeiro baixar um decreto proibindo que os ônibus
percorressem determinada rodovia municipal, a pretexto de
organização de política urbanística.
Temos aqui um hard case, para usarmos a conhecida
expressão de Ronald Dworkin. O caso é, efetivamente,
muito difícil de resolver porque, acredito, não temos
aqui usurpação de competência. Temos aqui dois entes
federativos defendendo a titularidade de duas competências
constitucionalmente garantidas. Penso que não pode
o Município inviabilizar o interesse de outro ente da
Federação constitucionalmente garantido, e tampouco
pode o Estado, a pretexto de implementar valor jurídico
constitucional, inviabilizar ou aniquilar um bem jurídico que
é constitucionalmente conferido à defesa do Município.
No caso em análise penso que se o Município, a pretexto
de tutelar o meio ambiente ou a política urbanística
da cidade, entende que os ônibus não devem transitar
naquela via pública, nenhum outro coletivo deve poder
pela mesma via transitar, ou o Município deve fornecer ao
concedente uma alternativa técnica dentro do parâmetro de
razoabilidade e dos limites por ele traçados na modelagem
da descentralização do serviço para que seja eficazmente
implementado. O que não se pode é, sob o argumento
de tutelar valor jurídico constitucional – que é o plano
urbanístico ou o meio ambiente – aniquilar ou impedir
que o Estado-membro ou qualquer outro ente federativo
implemente uma competência constitucional sua.
Tem-se em jogo aqui a idéia de ponderação de valores e
de razoabilidade, em que o julgador deve escolher a opção
que menos onere a sociedade e que menos sacrifique o bem
jurídico constitucional que se sobrepõe à luz dos casos
concretos.
Dando continuidade, tenho um exemplo que talvez
28 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
“O jULGADOR
DEVE ESCOLHER
A OPÇÃO QUE
MENOS ONERE A
SOCIEDADE E QUE
MENOS SACRIFIQUE
O BEM jURíDICO
CONSTITUCIONAL.”
seja o mais difícil de ser enfrentado e que veio à tona
também no Estado do Rio de Janeiro na época dos Jogos
Pan-americanos. Foi noticiado nos jornais que o Prefeito
do Município do Rio de Janeiro constituiu uma comissão
para estudar a viabilidade do transporte aquaviário de
passageiros entre a Barra da Tijuca e a Praça XV, no Centro
da Cidade. Eu não sei o resultado do estudo realizado
pelo Município, mas adianto que o caso é difícil e não é
novo – no âmbito do Estado do Rio de Janeiro esse tema
vem sendo estudado há pelo menos uma década por sua
Procuradoria-Geral. Esse tema envolve severas discussões
quanto à competência para execução desse serviço. Qual é
o ente competente para a prestação desse serviço público? A
União, o Município ou o Estado? A União Federal poderá
arvorar-se como ente competente diante do que consta no
artigo 21, inciso XII, alínea “d”, da Constituição, quando
diz competir à União o transporte aquaviário entre portos
brasileiros. Parte dessa travessia não seria realizada na Baía
de Guanabara, mas sim em mar aberto. Penso que, apesar
de sedutora, a tese não socorre a União Federal porquanto
não se tem aqui a prestação de serviço de transporte entre
portos e sim entre pontos de atracação.
O conceito de porto organizado está previsto em lei,
mais especificamente no artigo 1º da Lei nº 8.630, e,
assim sendo, acredito que a competência não é da União
Federal para explorar esse serviço e tampouco para regulálo. Contudo, no que diz respeito a Estado e Município,
temos uma discussão bastante importante, bastante difícil,
com argumentos sólidos e plausíveis para ambos os lados. O
Município tem em seu favor o argumento de que o serviço de
transporte ocorrerá intramunicípio, ou seja, se iniciará e será
ultimado dentro do Município do Rio de Janeiro. A cidade
vai defender que trata-se de transporte coletivo de pessoas
e representará iminente tutela ou iminente efetividade de
interesse local; ou seja, o interesse de transporte de pessoas
que saem ou que chegam à Barra da Tijuca para o Centro
da Cidade do Rio de Janeiro. Não é fácil transbordar esses
argumentos do Município.
O Estado, por sua vez, terá como argumento para
defender eventual posição de titularidade desse serviço a
idéia de que, nada obstante ocorrer dentro do Município
do Rio de Janeiro, existe nítido interesse metropolitano
ou regional. Ninguém mora no Centro da Cidade do Rio
de Janeiro, salvo algumas exceções. O transporte entre a
Barra da Tijuca e a Praça XV traria benefícios à toda a
Baixada Fluminense, a Niterói, a São Gonçalo, e a todas
as pessoas que necessitam atravessar a Baía de Guanabara
e eventualmente trabalhar na Barra da Tijuca. Poderá
defender o Estado do Rio de Janeiro, então, que esta
competência é sua por se tratar de região metropolitana
ou de um interesse estadual ou microrregional, e mais,
poderá sustentar que na Lei Orgânica do Município não
há previsão expressa para prestação de serviço aquaviário,
somente para serviço terrestre. Adianto que a posição da
Procuradoria do Estado, pelo menos em dois pareceres
antigos – um do professor Luís Roberto Barroso e outro do
professor Marcos Juruena –, é pela competência estadual
para prestação do serviço.
O fato é que todos os que defendem ser competência do
Estado se baseiam na idéia de que esse serviço beneficia uma
região metropolitana, e hoje a discussão sobre as competências
de uma região metropolitana não é mais puramente
acadêmica ou entre advocacias públicas. A questão está posta
para decisão no Supremo Tribunal Federal há quase uma
década no que diz respeito à competência para prestação
do serviço de saneamento público – que não foi resolvida
com a lei que definiu o marco regulatório do saneamento
público, talvez propositadamente – através da ADIn
1.842. Há um voto, do ministro relator Maurício Corrêa,
entendendo que a competência é estadual por se tratar de
região metropolitana e há um voto, do ministro Joaquim
Barboza, entendendo que a competência é dos municípios,
porque não se poderia aniquilar a autonomia municipal
por conta da instituição de uma região metropolitana. E
para complicar a situação, recentemente, agora em abril, o
ministro Gilmar Mendes, que tinha pedido vistas, proferiu
um voto entendendo que a competência não é do Estado e
também não é do Município.
Entendeu o Ministro que há necessidade de criação
de uma entidade para representar a região metropolitana,
citando Sua Excelência, inclusive, talvez a necessidade
de criação de uma agência reguladora, ou uma entidade,
que seria composta por membros dos municípios afetados
e do Estado para regular o serviço. Esta é a opção que,
aparentemente, mais se coaduna com a idéia de pacto
federativo, porque não aniquila competências do Município
e não fortalece demais o Estado em detrimento delas, mas,
por outro lado, cria uma dificuldade jurídica de reunião de
todos esses municípios e estados para organizar a prestação
do serviço. Enquanto isso, nada se define em relação à
competência e discussões são levadas ao Judiciário de forma
indefinida. Então, se é difícil a celebração de um convênio,
consórcio ou acordo entre um Município e o Estado, imagina
criar uma entidade nova que terá competência para gerir
uma região metropolitana. A situação não é fácil e ainda
depende de manifestação do Supremo, sendo temerária,
com a devida vênia, qualquer manifestação afirmando hoje
compulsivamente se a competência para gestão de região
metropolitana é do Estado ou do Município.
Dando seqüência, para saber de quem é a competência
para regular o transporte alternativo de passageiros e se é
possível a regulação por parte do Estado desta atividade, é
preciso, em um primeiro momento, discutir se o transporte
alternativo de passageiros é ou não serviço público. Uma
pessoa comprar uma Kombi ou uma van e transportar
pessoas de um ponto a outro é considerado um serviço
público de transporte passível de ser regulado pelo Estado
ou é uma atividade econômica que está inserida dentro da
livre iniciativa? Em sendo atividade econômica poderia o
Estado de alguma forma regulá-la?
Sabemos que o conceito de serviço público sofre
mutações ao longo do tempo e já há muito deixou de
ter como necessidade seus três principais elementos,
que seriam: a prestação pelo Estado, a essencialidade e
a normatização integral por parte de normas de Direito
Público. Hoje, segundo a doutrina mais abalizada, é
considerado serviço público aquilo que a Constituição
ou a lei retira da livre iniciativa, total ou parcialmente.
Havendo norma expressa em Constituição Estadual, em
Lei Orgânica Municipal ou em norma infraconstitucional,
atribuindo a essa atividade de transporte alternativo o
caráter de serviço público, não há discussão quanto à sua
possibilidade de regulação pelo Estado ou pelo Município,
dependendo se a atividade é realizada de maneira intra ou
intermunicipal. Contudo é preciso salientar que boa parte
da doutrina vem considerando a atividade de transporte
alternativo como uma atividade econômica que está
inserida na regra da liberdade de iniciativa, mas a doutrina
que se dedica sobre esse tema – e aí temos a doutrina do
Dr. Marçal Justen Filho, do Dr. Marcos Juruena e do
Dr. Horácio Augusto Mendes de Souza –, vai considerar
que o sistema de transporte alternativo é uma atividade
econômica, mas de interesse eminentemente social e de
interesse eminentemente público, fato que permite ao
Estado, ainda assim, impor condicionamentos e regulação
se não sob o pálio serviço público, sob o pálio do seu poder
de polícia ou polícia administrativa.
Assim sendo, é extreme de dúvidas que o Estado quer
que seja considerada a atividade de transporte alternativo
como serviço público ou como uma atividade econômica
inserida na regra da livre iniciativa. Os entes do Poder
Público têm competência para dar efetiva regulação
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29
porquanto a sociedade cada vez mais se utiliza desse
serviço para se locomover e é dever do Estado regular essa
atividade de forma eficaz – quer o Estado quando o serviço
for intermunicipal, quer o Município quando o serviço
ocorrer dentro do próprio Município. O professor Marcos
Juruena proferiu um parecer para uma agência reguladora
administrada por um outro Estado da Federação em que
municípios estavam concedendo autorizações. Talvez esse
seja o instrumento, nem permissão nem concessão, mas
uma autorização de uma atividade econômica de interesse
social para determinadas vans funcionarem dentro de seus
municípios e elas extrapolam, prestando serviços para outro
Município. O Poder Judiciário local entendeu que bastava
a autorização concedida pelo Município para permitir que
essas vans trafegassem por outros municípios prestando
esses serviços. Com o devido respeito, entendo que se uma
van sai de um Município com sua autorização para prestar
serviço em outro, esse serviço não é mais municipal e sim
intermunicipal, sobressaindo para o Estado o poder de
realizar a devida fiscalização e regulação.
Um quinto caso que trago à discussão envolve a
sobreposição de modais ou alteração na forma de prestação
de serviço, situação que vem se tornando comum, muitas
vezes prevista em contratos de concessão, mas que chama a
atenção de alguns estudiosos – ao menos a parte acadêmica.
Não é incomum o usuário de metrô verificar que ao final
da linha do trem deste modal existe uma integração com
ônibus, havendo previsão no contrato de concessão; não há,
ou pelo menos a meu ver diminui, margem para discussão.
No entanto, não havendo essa previsão originária, penso
que essa atividade pode constituir sobreposição de modal.
A concessão, que é inicialmente para a prestação do serviço
de metrô, se transforma em metrô e ônibus. Esta atividade,
caso não seja objeto de consenso, pode influenciar, e muito,
nos contratos de concessão, nas permissões de linhas de
ônibus, alterando estrutura tarifária e equilíbrio econômicofinanceiro.
Mesma coisa aconteceu no Estado do Rio de Janeiro,
quando a Procuradoria foi instada a se manifestar num pleito
da Concessionária Barcas S/A para interromper o serviço
de transporte aquaviário em determinado período da noite
porque segundo alegado as barcas saíam do Rio de Janeiro
para Niterói, e vice-versa, sem nenhum passageiro, ou seja,
havia a ocorrência de um custo e sem nenhum passageiro.
A empresa solicitou à agência reguladora que paralisasse o
transporte aquaviário e colocasse à disposição dos passageiros,
que porventura se dispusessem a fazer a travessia, um ônibus
da Praça XV à Estação Araribóia, já que para a empresa o
custo seria menor. A discussão é bastante importante porque
indica sobreposição de modal. A concessão é para prestação
de serviço aquaviário. Há necessidade de integração? Sim,
mas essa atividade pode alterar as regras do contrato; pode
alterar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato; pode
interferir na concessão de outros serviços de transporte
prestados por outro concessionário.
30 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
“O PODER jUDICIÁRIO
DEVE PROCURAR
INTERFERIR O
MENOS POSSíVEL
EM ATIVIDADES
TéCNICAS, OBjETO
DA REGULAÇÃO, E
PREMIAR, QUANDO
MUITO, A DIGNIDADE
HUMANA DO
CIDADÃO, à LUZ
DO CRITéRIO DE
PONDERAÇÃO DE
INTERESSES.”
O argumento defendido pela concessionária é de que
não iria competir com os outros modais, na medida em que
jamais pararia durante o percurso; apenas pegaria a pessoa e
levaria até a Estação Araribóia. O argumento é interessante
e seduz, mas restam discussões quanto ao equilíbrio
econômico-financeiro do contrato e da consensualidade
com os demais players desse mercado.
Com este caso encerro e passo à conclusão, afirmando
que não há tranqüilidade na definição da competência
entre os entes federados que se predispõem a prestar ou
a regular algum serviço público. Temos na Constituição
algumas regras, que não parecem tranqüilas, para serviço de
transporte coletivo que não parecem determinar ou definir
esses conflitos. Na maioria das vezes esses conflitos chegarão
ao Poder Judiciário, que é chamado a se manifestar diante
de dois interesses legitimamente defendidos, dois valores
constitucionais devidamente defendidos pelos entes da
federação, e a decisão é muito difícil. Penso, e esta é uma
opinião acadêmica, que o Poder Judiciário deve procurar
interferir o menos possível em atividades técnicas, objeto da
regulação, e premiar, quando muito, a dignidade humana
do cidadão, à luz do critério de ponderação de interesses, se
preocupando sempre em proteger o interesse que naquele
momento se manifesta de forma superior a outro interesse
tutelado pelo ente que discute ou legitima a competência
para a prestação dos serviços.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31
REMENDA, NãO
REFORMA, SIM
“DIVERSOS PONTOS DO PROjETO ATUAL VÃO EXATAMENTE
CONTRA A VONTADE EXPLíCITA DA SOCIEDADE DE
DESONERAR A CARGA TRIBUTÁRIA. ALIÁS, DESEjO ESSE jÁ
DEMONSTRADO QUANDO, EM CRUZADA CíVICA NACIONAL,
DERRUBAMOS A CPMF NO ANO PASSADO.”
Paulo Skaf
Presidente da Federação e do Centro das Indústrias
do Estado de São Paulo (FIESP/CIESP)
Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr
32 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
H
á muito, o Brasil padece de um vício nocivo à
sociedade, que promove o gasto perdulário do
Estado e impede nosso desenvolvimento: o
aumento de impostos. Há tempos, o cidadão
brasileiro clama pela famosa Reforma Tributária. O Brasil
precisa de uma reforma que desonere, simplifique e agilize
nosso crescimento econômico.
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(FIESP) é a favor de um projeto que acabe com a guerra
fiscal e com a competição desleal. No entanto, fomos
surpreendidos com mudanças colocadas no texto discutido
na Comissão Especial que, a rigor, significam inexplicável
retrocesso.
Diversos pontos do projeto atual vão exatamente
contra a vontade explícita da sociedade de desonerar a
carga tributária. Aliás, desejo esse já demonstrado quando,
em cruzada cívica nacional, derrubamos a CPMF no ano
passado. Temos sido, de maneira crônica, vítimas da
criação de impostos que reduz o poder de consumo das
pessoas físicas e jurídicas. No início de 2009, esse relatório,
que não atende aos interesses dos brasileiros, deve tramitar
na Câmara, com o risco de aprovar a Reforma Tributária
contrariando os interesses do País.
Não podemos aceitar que o governo inclua, de
maneira repentina, benefícios que não foram debatidos
e não integravam a proposta original. A sociedade deseja
a redução da carga tributária do País e, por conseguinte,
a diminuição dos gastos públicos. Nossa economia não
pode esperar por muito tempo, mas é preferível dialogar
agora e atender todas as questões polêmicas a aprovar,
intempestivamente, um projeto que não seja pelo menos
satisfatório.
Vamos destacar alguns pontos que contrariam uma
proposta democrática de Reforma Tributária:
• O atual documento eleva a contribuição do setor de
mineração de 2% sobre o faturamento líquido para 3% do
faturamento bruto. Ou seja, quase dobra o imposto. Vai
onerar a cadeia produtiva e aumentar a carga tributária, o
que é inaceitável;
• Permite a continuidade da condenável prática de
criação de novos impostos por Medida Provisória;
• Deixa de lado um velho pedido do consumidor
brasileiro que é o de haver mais transparência na cobrança
dos tributos. É importante que o cidadão pague suas contas
sabendo a real quantidade de impostos embutidos nelas. O
cálculo deveria ser feito por fora, para evitar a incidência
múltipla;
• Mantém a chamada guerra fiscal por meio de medidas
como o alongamento do prazo de transição para implantação das normas legislativas do ICMS, de oito anos para
12 anos. Além disso, o relatório constitucionaliza incentivos ilegais, revalidando benefícios passados, sem o aval do
Confaz. E ainda concede benefícios portuários, o que facilita
a importação desleal de mercadorias, medida prejudicial à
Indústria Nacional e ao País;
• Deve ser incluído no texto constitucional, como
também foi proposto por nós – previsão explícita e autoaplicável que não permita aumento da carga tributária –,
um gatilho que dispare toda vez que houver incremento
da arrecadação em relação ao PIB. Neste ano de 2008, já
sem a CPMF, a Receita Federal vem anunciando seguidos
recordes de arrecadação. As projeções para 2008 mostram
um aumento na arrecadação de R$ 70 bilhões apenas para
o Governo Federal. O valor é quase o dobro do valor que
seria propiciado pela desnecessária contribuição.
Não podemos perder a oportunidade, após tantas
batalhas, de criar e de participar de que contemple, em
primeiro lugar, os interesses do povo brasileiro. Este
é o momento, em meio a uma crise mundial financeira
que já atinge nossa economia, de, juntos – Municípios,
Estados, União e setor privado –, discutirmos com cautela
e trabalharmos pelo crescimento do País, deixando de lado
barganhas e opções individualizadas. A reforma é urgente,
mas não permitiremos que, travestida de novidade, venha
onerar ainda mais os brasileiros.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33
Foto: Divulgação
TRIbUNAL DIGITAL
Henrique Nelson Calandra
Desembargador do Tj/SP
Presidente da Apamagis
T
ão importante quanto a Revolução Industrial, que
remodelou consideravelmente o modo de viver, tem
sido a Revolução da Informática. Com uma velocidade
inesperada, ela está mudando a indústria, a ciência, a
cultura, permeando desde as menores células do convívio social
até a globalização mundial.
A informática, que tem sido entendida como informação
automática, propicia ao homem comunicar-se de forma
célere e eficiente, cada vez mais derrubando as fronteiras da
distância. Tem efetivamente se tornado o instrumento social
de comunicação, suplantando televisão, rádio, correio, dando
acesso a lugares novos e instigantes, despertando no homem a
curiosidade e a busca pela diversidade.
Assim, surge outra concepção de vida em sociedade, novos
tempos aos quais o Estado de Direito precisa adaptar-se de
forma a não se tornar errante, pois esse mundo dinâmico é uma
situação consolidada e irreversível.
O Poder Judiciário deve adequar-se a essa realidade,
principalmente para suprir suas próprias necessidades técnicas
decorrentes do dinamismo social e, assim, acompanhar o
Homem em seu caminhar rumo à globalização.
Os Tribunais do País têm enfrentado essa questão. Em
1999, por exemplo, a edição da Lei nº 9.800, de 26 de maio
do mesmo ano, permitiu às partes a utilização de sistema
de transmissão de dados para a prática de atos processuais.
Contudo, foi com a Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006,
que a informatização do processo judicial ganhou vida. Desde
então, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem caminhado de
forma mais objetiva e determinada para a consecução desse
ideal.
Em muitas comarcas, os novos processos são distribuídos
digitalizados e, na capital, isso também é uma realidade em
34 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Juizado Especial e no Fórum Regional da Freguesia do Ó. A
expectativa é de que, dentro de alguns anos, o processo digital
alcance todos os fóruns paulistas, de modo que todo feito
distribuído seguirá totalmente sem papéis.
Outra importante conquista é o Diário da Justiça
Eletrônico. Com base no artigo 4º da Lei nº 11.419/06, o
Tribunal de Justiça conduz de forma autônoma, com o apoio
das parcerias realizadas, a comunicação oficial do Judiciário.
Trata-se de um serviço totalmente gratuito, cujo acesso diário
gira em torno de 25 mil. Dentre as vantagens advindas em
função dessa conversão eletrônica, encontram-se a redução do
custo – a Corte investia cerca de 5 milhões de reais somente
em assinaturas – e a economia de papel e, conseqüentemente,
de muitas árvores.
Com esse investimento em informatização, o Tribunal
de Justiça de São Paulo objetiva imprimir celeridade no
andamento processual, permitindo a eficácia, com razoável
duração do processo, pilar que hoje integra os direitos
fundamentais do cidadão, conforme prescreve o inciso
LXXVIII, do artigo 5º da Constituição Federal, incluído pela
Emenda nº 45/04.
Todavia, informatizar o Judiciário paulista exigirá
adequações, reformulações e a superação de entraves graves,
como a falta de previsão orçamentária para tamanho
investimento. Entre os problemas de ordem prática destacamse, por exemplo, a diversidade de equipamentos, como é o
caso das impressoras, em que ocorre ausência de padronização,
gerada por várias aquisições parciais.
Outro ponto nevrálgico é a questão da segurança dos
dados. Ao todo, são 700 prédios, que representarão uma
gigantesca rede a ser administrada. O Brasil é o país recordista
em atividades hacker. Em 2004, a Polícia Federal divulgou
que de cada 10 hackers no mundo, 8 estão aqui. Isso é algo
bem preocupante.
Com o objetivo de garantir confidencialidade, integridade
e disponibilidade das informações geradas, a Corte de Justiça
paulista está adotando a certificação digital, de forma que
todo funcionário terá um cartão com uma senha secreta,
desconhecida inclusive da própria autoridade certificadora.
Vale ressaltar ainda que a assinatura digital confere aos
documentos o mesmo valor jurídico dos documentos em
papel assinados de próprio punho, nos termos da Medida
Provisória nº 2.200/02, que criou a ICP-Brasil.
Muitos certificados já foram adquiridos com a Serasa,
que é autoridade certificadora vinculada à ICP-Brasil (Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil). No
entanto, ainda será necessária a aquisição de muitos outros,
para toda a demanda de serventuários.
Tudo isso acarretará gastos. Cabe ressaltar que todo
funcionário do Tribunal de Justiça de São Paulo tem o seu
computador; mas, com a plena informatização, são muitos
os equipamentos a serem obtidos para a nova plataforma
tecnológica.
Hoje, o Tribunal de Justiça de São Paulo não possui total
independência financeira, como previsto no artigo 99 da
Constituição Federal. Apenas entrega proposta orçamentária
ao Executivo Estadual. A autonomia financeira constitui
fundamental instrumento para a real e efetiva implementação
do processo virtual.
Não obstante o avanço e todas as possibilidades da
informática, é preciso observar que nada abstrai o uso do
bom senso e de um olhar humano, porque os sofrimentos,
as disputas não são meras memórias digitais de um
computador.
“A AUTONOMIA
FINANCEIRA CONSTITUI
FUNDAMENTAL
INSTRUMENTO PARA
A REAL E EFETIVA
IMPLEMENTAÇÃO DO
PROCESSO VIRTUAL.”
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35
20 ANOS DO CASO DO NAvIO
“SOLANA STAR”
Wanderley Rebello Filho
Advogado
Presidente da Sociedade Brasileira de Vitimologia
j
á se passaram 20 anos desde aquele verão do ano de
1987 para 1988! Talvez o verão mais famoso do Estado
do Rio de Janeiro, haja vista que até hoje é lembrado: é
cantado em versos, é matéria de jornais e de revistas, é
passagem de filmes, e aparece em muitas outras manifestações,
artísticas ou não. Uma coisa é certa, para os usuários ou não
de maconha, o “Verão das Latas” ou deixou lembranças ou
deixou saudades.
Naquela época, eu era um jovem advogado com apenas 7
anos do exercício da advocacia criminal e 29 anos de idade.
Formado pela PUC/RJ em 1980, jamais imaginei que um
dia me envolveria em um dos casos mais badalados de nosso
Estado, ao menos não tão cedo. Hoje, confundo o caso
processual com a história real vivida por Stephen Skelton,
contada em meu livro “1988: O Verão das Latas de Maconha
– O Processo”, lançado em 2006 pela Editora Letra Capital.
O caso nos mostra como podem ser falhas as nossas leis e
que o que verdadeiramente importa é que o julgador e todos
os participantes de um julgamento ( isto inclui o Ministério
Público ) tenham sempre em mente o mais nobre dos nossos
objetivos: fazer justiça! A justiça não existe, ela tem que ser
feita! Vamos ao caso.
“Era uma vez...”
A história do cozinheiro Stephen G. Skelton pode
começar assim, como uma fantasia, ou como uma história
fantástica, ou de terror. A “casa mal assombrada” ficará por
conta do Presídio Ary Franco, no bairro de Água Santa, onde
Stephen ficou preso por quase um ano. Eu fui o advogado
que acompanhou, desde o início, o processo conhecido como
“O Caso das Latas de Maconha”, ou como “O Verão das
36 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Latas”. Foi quase um ano de atuação até a decisão final pelo
extinto Tribunal Federal de Recursos.
Mas, resumidamente, o que aconteceu? Em um dia
qualquer, no mês de setembro de 2007, fui chamado na
carceragem da Polícia Federal para falar com um estrangeiro
que havia sido preso: era Stephen Skelton. Começamos a
conversar, e ele me contou a sua história. Fora contratado,
meses antes, em março ou abril de 1987, para fazer parte da
tripulação do navio Solana Star, que faria uma viagem de
Singapura ao Brasil para buscar, segundo soube Stephen,
uma carga de latas de tomate, entre outros produtos
brasileiros. Cozinheiro profissional, Stephen foi contratado
para trabalhar como cozinheiro do navio e, como tal, pouco
contato ele mantinha com o Comandante e com o resto
da tripulação. O navio Solana Star passou por vários países
antes de chegar ao Brasil, onde aportou com sérios problemas
nos motores. Por este motivo, em vez de seguirem viagem
para o Nordeste brasileiro, o Solana Star aportou no cais
da Praça Mauá, em frente ao prédio do Departamento de
Polícia Federal. Stephen desceu com a tripulação e todos se
hospedaram em um hotel. Poucos dias depois, a tripulação
voltou para os Estados Unidos, apenas Stephen ficou no país
aguardando o conserto e a liberação do navio. Tão logo este
ficasse pronto, uma nova tripulação viria ao Brasil e todos
seguiriam viagem de volta.
No Brasil, havia um agente aduaneiro responsável pelo
conserto do navio e pela estadia de Stephen, RVG. Um
dia, ligaram para ele e pediram que levasse Stephen ao
Departamento de Polícia Federal para prestar declarações, o
que foi feito. Queriam saber acerca de uma carga de mais
de 20 (vinte) toneladas
em latas de maconha, que,
supostamente, estaria no
navio Solana Star. É óbvio
que ele desconhecia esta informação. Foi liberado. Dias
depois, folheando um jornal
de nossa cidade, Stephen viu
uma foto do navio Solana
Star na capa, e dentro, na
matéria, o seu nome. Foi,
então, ao Consulado Americano para saber do que se
tratava, quando o Vice-Cônsul orientou-o a voltar ao
Departamento de Polícia
Federal acompanhado, mais
uma vez, de RVG, o agente
do navio americano, para prestar mais esclarecimentos. Em
um fatídico dia de Setembro
de 1987, Stephen Skelton foi
preso. E aí o processo começou!
Fui para o escritório e
fiz contato com a família de
Stephen, especificamente com
a sua filha, que morava em
Naples, na Flórida. Ela já havia
tomado conhecimento da prisão
de Stephen no Brasil, e estava
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37
Foto: www.trupedaterra.com.br
Navio Solana Star
ansiosa aguardando um contato. Pediu-me que mantivesse
o atendimento prestado ao seu pai e avisou-me que em
breve alguém me procuraria no Brasil. Dias depois, recebi
um telefonema de Stephen de dentro da carceragem da
Polícia Federal. Ele me pedia para comparecer à Delegacia,
pois queria urgentemente conversar. Eu já o havia visitado
outras vezes, e Stephen já confiava muito em mim. Eu estava
com procuração e acompanhava a tramitação do processo.
Stephen me disse que recebera de um policial um aviso de
que alguém iria visitá-lo a determinada hora, e que por isto
havia me pedido para ir lá também. Era outro advogado, mas
ele queria que eu continuasse atuando no processo. O outro
era indicação de seus “irmãos”.
Momentos depois, chegou à carceragem o advogado PG
com um cartão, que ele mostrou a Stephen. Como se fosse
um código, Stephen disse umas palavras em inglês, mas o
advogado não entendeu: ele não falava inglês. Eu fiquei como
intérprete. No cartão havia um símbolo, e pouco tempo
depois soube que tratava-se de um símbolo da Maçonaria;
tanto o advogado carioca que estava se apresentando quanto
Stephen eram da Maçonaria, e como tal se reconheceram.
Stephen disse que, a partir daquele momento, estava se
sentindo mais protegido.
Tudo esclarecido, fiz contato com a filha de Stephen em
Naples, na Flórida, e ela me pediu que fosse até lá para me
conhecer e pegar algum dinheiro para ajudar na manutenção
de Stephen na cadeia, e para os meus honorários, é claro. Como
acabara de ter um bebê, o médico desaconselhara a viagem ao
Brasil, e eu fui para a Flórida. Em Naples conheci a filha de
Stephen, sua netinha e seu melhor amigo Kurt Newman, que
fora um famoso surfista americano. Eles estavam visivelmente
desesperados com a situação de Stephen, tendo Kurt me
38 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
avisado que em breve viajaria ao Brasil para visitá-lo. De volta
ao Brasil, a guerra estava apenas começando!
Vamos ao que aconteceu! O Departamento de Polícia
Federal, no Estado do Rio de Janeiro, recebeu uma denúncia
de um agente do DEA informando que um navio, chamado
Solana Star, passaria na costa do Rio de Janeiro transportando
maconha. A Polícia Federal mobilizou dezenas de agentes
federais, e até a Marinha de Guerra brasileira, para que
procurassem a tal embarcação. A Fragata Independência,
por duas vezes, seguindo coordenadas fornecidas pelo agente
do DEA vasculhou a costa carioca, mas não encontrou a
embarcação. Depois, foi a vez do contra-torpedeiros Sergipe,
que também seguiu, inutilmente, as coordenadas fornecidas
pelo DEA.
Enquanto a Polícia Federal, em suas lanchas, e a Marinha
brasileira, em seus navios, vasculhavam a nossa costa, o navio
Solana Star, há algum tempo, permanecia ancorado no cais da
Praça Mauá, de onde todos partiam. Acho que se esqueceram
de olhar em volta! Brincadeira à parte, o Solana Star, como
já dissemos, estava ancorado e com o motor danificado, e sua
tripulação já estava em terra enquanto procuravam o navio.
Ao mesmo tempo em que tudo isto acontecia, centenas de
latas de maconha eram encontradas em alto mar, de Búzios a
Angra dos Reis, e algumas até no litoral de Santa Catarina. E
todos presumiam que elas haviam sido lançadas ao mar pela
tripulação do navio Solana Star. Por isso Stephen foi preso!
Quanto ao processo, vou omitir, propositalmente,
os nomes de todas as autoridades envolvidas para evitar
“problemas”, judiciais ou não. Mas, podem estar certos de
que tudo o que for lido aqui nesse resumo será a expressão da
verdade. Este processo – assim como o livro – quase de ficção
trata, também, de um pouco de nosso Direito Penal. Vou
narrar os fatos, ou melhor, a minha versão sobre os fatos, e
a aplicação do Direito e da Justiça. Neste caso, a meu ver, a
verdadeira justiça foi feita!
Stephen Skelton, depois de uma condenação de 20 anos
de prisão em primeira instância, foi absolvido pelo extinto
Tribunal Federal de Recursos, que entendeu que não havia
provas do envolvimento de Stephen nos fatos criminosos.
Todos os outros tripulantes do navio foram condenados
e, como foram julgados à revelia (não recorreram), assim
permaneceram. No entanto, a prova obtida em sede policial
foi bastante precária, haja vista que, após vistoriar o navio
três vezes, somente na quarta tentativa os policiais federais,
supostamente, encontraram alguns “centigramas” de
maconha. Esta prova não foi bem aceita pelo Tribunal. Com
certeza os demais tripulantes só restaram condenados em
razão de terem fugido para os EUA antes mesmo da prisão de
Stephen – foram embora dias após desembarcarem do navio
e jamais retornaram.
Portanto, o livro trata de um caso dos mais comentados
que já tivemos em nosso Estado, mas fala também, um pouco,
de Direito e de justiça. Direito, todos os senhores sabem,
vem do latim, e significa muitas coisas: justo, correto, justiça,
razão, dirigir, conduzir, guiar, entre outras coisas. Porém,
para nós advogados, parece que o ideal é entendê-lo como
sendo aquilo que nos guia, que nos conduz. Kant dizia que
jamais uma definição de Direito irá agradar a todos. Logo,
tire as suas próprias conclusões, sempre! Resumindo, Direito,
para mim, é o conjunto de regras (leis, normas, resoluções,
portarias, jurisprudências) de conduta e de organização,
dotadas de força impositiva, ou seja, de coação. Em resumo,
leis são comandos a serem cumpridos; “lei é lei”, diz o ditado,
e nós temos que cumpri-las, sejam elas boas ou não. Então,
para mim, o Direito, o “bom direito”, é apenas o guia: ele
serve para nos conduzir.
Mas, para onde? Para a verdadeira, ou ao menos, para
a melhor justiça. Entre cumprir a lei e fazer justiça, eu
ficarei sempre com a última, e vocês vão se deparar com
este dilema ao longo de toda a carreira. Às vezes, cumprir a
lei pode revelar uma injustiça. Quanto à justiça, mas não à
justiça concretamente falando (tudo o que pertence ao, ou
faz parte do Poder Judiciário), mas sim à “justiça do que é
justo”, desta não podemos jamais nos afastar. “A justiça não
existe”, como dizia Alain, “a justiça pertence à ordem das
coisas que se devem fazer justamente porque não existem.
A justiça existirá se a fizermos. Eis o problema humano.”
(Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de André ComteSponville, Ed. Martins Fontes). Desde Aristóteles e São
Tomás de Aquino, passando por Hobbes, Montesquieu e
Rousseau, sustenta-se que cabe à lei definir o que é justo e
o que é injusto. Justo seria o que está permitido em lei; e
injusto, o que está proibido. No entanto, modernamente,
não se admite mais isto, ainda mais depois que o Fascismo
mostrou o que é possível se fazer de uma sociedade usando
do Poder Legislativo de forma ilegítima. No passado essa
concepção tinha um fundamento, que era o de acreditar que
jamais o governante usaria do poder para prejudicar o bem
público ou o bem comum. Não se tinha ainda a noção de
que uma classe social poderia usar do poder em seu proveito
exclusivo, instaurando um ordenamento jurídico que mais
lhe conviesse, embora aparentando falar em nome de toda
a sociedade.
Hoje, não há mais dúvida de que não cabe tão-somente
à lei definir o que é justo, reconhecendo-se ao juiz moderno
amplos poderes de interpretação desta mesma lei, face
às circunstâncias sociopolíticas do caso concreto e das
conjunturas históricas; hoje se sabe também que nem todo o
direito de uma coletividade está nas leis, e que não é pelo fato
de existir uma lei que toda a situação ou hipótese previstas
por ela passam a ser automaticamente justas” (Enciclopédia
do Advogado, Leib Soibelman, Thex Editora). A justiça tem
que ser o objetivo de toda e qualquer lei! Uma injustiça é
inaceitável, imperdoável. É um problema que encontramos
em Kant, e que voltaremos a encontrar em Dostoiévski,
Bergson, Camus ou Jankélévitch: se para salvar a humanidade
fosse preciso condenar um inocente (torturar uma criança,
diz Dostoiévski), teríamos que nos resignar a fazê-lo? Não,
respondem eles. A cartada não valeria o jogo, ou antes, não
seria uma cartada, mas uma ignomínia. Porque, se a justiça
desaparece, escreve Kant, é coisa sem valor o fato de os
homens viverem na Terra... Ser injusto por amor é ser injusto
– e o amor não é mais que favoritismo ou parcialidade. Ser
injusto para sua própria felicidade ou para a felicidade da
humanidade é ser injusto – e a felicidade nada mais é do que
egoísmo ou conforto. A justiça é aquilo sem o que os valores
deixariam de ser valores (não seriam mais do que interesses
ou móbeis), ou não valeriam nada (Pequeno Tratado das
Grandes Virtudes, idem).
O que importa, então, é a justiça! “A cada um o que é seu”,
disse Cícero; e, “a justiça é o vínculo das sociedades humanas,
e as leis emanadas da justiça são a alma de um povo”, disse
Juan Luis Vives. A justiça é o resultado da verdade, “é a
verdade em ação”, como dizia Joubert, e ela é “imutável como
Deus, enquanto as leis são perecedoras e instáveis como o
homem”, dizia Juan Donoso Cortés. Uma vez ouvi de um
juiz, repetindo um filósofo, que ele haveria de preferir absolver
cem culpados a condenar um inocente. De lá para cá, nunca
mais vi as leis com os mesmos olhos. E, neste caso, foi feita
a verdadeira justiça! Não havia qualquer prova apontando
o envolvimento de Stephen nos fatos criminosos (ele era o
cozinheiro do navio); e pior, não havia provas de que as latas
teriam sido lançadas do navio Solana Star! Existia apenas um
telegrama de um agente americano informando que o tal
navio poderia estar conduzindo uma carga de maconha, mas
este agente jamais veio ao Brasil para ser ouvido (apesar de
ter sido arrolado pelo Ministério Público), nem foi ouvido
por carta rogatória. A “prova” se limitou a um telegrama,
jamais confirmado, e aos infames centigramas de maconha
possivelmente plantados no Solana Star!
E, porque a justiça tarda, mas não falha, Stephen Skelton
foi absolvido!
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39
Foto: Arquivo Pessoal
FERA ACUADA
Rodolfo Konder
jornalista
U
NOTA DO EDITOR
Rodolfo Konder, companheiro no Conselho Deliberativo
da ABI, escritor e poeta, tem 19 livros publicados, o último
“As Areias de Ontem”. Foi contemporâneo de Wladimir
Herzog no DOI-Codi, prisioneiro do indigitado torturador
Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Membro do Conselho Municipal de Educação de São
Paulo, da Academia Paulista de Educação, Conselheiro do
MASP e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
É Diretor Cultural da FMU. Exilado de 1964 a 1978, no
México, Uruguai, Canadá e Estados Unidos.
40 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
ma convenção, aprovada por consenso pela
Assembléia Geral da ONU a 10 de dezembro de
1984, consagra o princípio de jurisdição universal
obrigatória sobre os torturadores. Isso quer dizer
que um torturador, a menos que seja extraditado para sofrer
processo em outro país, será processado em qualquer nação onde
se encontre. Além disso, a convenção impede o repatriamento
forçado ou a extradição de pessoas que corram o risco de ser
torturadas. Mais: exclui a “obediência a ordens superiores”
como defesa contra uma acusação de tortura. Obriga ainda
os Estados a investigar quaisquer informações sobre a prática
de tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes. E cria um Comitê contra a tortura, que examina
informes, investiga denúncias, busca esclarecimentos, acolhe
informações.
Para as inúmeras vítimas de tortura, que vivem num campo
minado pela memória de horrores muitas vezes indescritíveis,
a convenção representa um certo alívio. Digo “certo alívio”
porque há aqui outra questão envolvida. Há cura para a tortura?
Podemos, e devemos, punir duramente os torturadores. Mas,
e os torturados?
No mundo inteiro, jornalistas como eu têm sido detidos e
torturados por defenderem pacificamente suas opiniões. Eles
são vítimas da opressão oficial, como milhares de dissidentes
políticos, artistas, intelectuais, menores e mulheres.
Na Turquia, nas Filipinas, em El Salvador, na Síria, na
Índia, na Etiópia, no Marrocos, temos inúmeros registros de
mulheres torturadas, sexualmente humilhadas pelos agentes da
lei e da ordem. Mesmo enfrentando graves dificuldades para
denunciar as violações dos seus direitos, enfermeiras, professoras,
advogadas, juízas, assistentes sociais, estudantes, jornalistas,
religiosas, militantes e parentes de pessoas perseguidas têm
revelado os abusos estarrecedores cometidos contra elas pelas
autoridades. Os governos – cumpre lembrar – são responsáveis
pelo respeito às normas internacionais de proteção aos Direitos
Humanos. São os governos, portanto, que as vêm estuprando,
em dezenas de países.
Diante do torturador, olhamo-nos num implacável espelho.
Nossa própria imagem se parte, fragmenta-se em mil pedaços.
Isso não nos deixa mais espaço, por exemplo, para qualquer
crença ingênua na bondade intrínseca dos seres humanos. A
experiência da tortura torna as pessoas mais solitárias, deixa
seqüelas quase insuperáveis. Sugere inclusive uma “síndrome
do torturado”, semelhante à “síndrome do prisioneiro da
guerra”.
O Canadian Center for Investigation and Prevention of
Tortura (Centro Canadense para Investigação e Combate à
Tortura), em Toronto, e o Rehabilitation Center for Torture
Victims (Centro de Reabilitação das Vítimas da Tortura),
em Copenhague, são as únicas instituições que se dedicam
à questão da tortura e suas seqüelas, como objeto precípuo
de suas atividades. A organização canadense funciona desde
1984; a dinamarquesa, desde 1982. Em ambos os casos, há
estudos perturbadores, conclusões chocantes, que envolvem
inclusive a configuração de uma “síndrome do torturado”. A
vítima carrega pesada carga do passado, sofre uma espécie de
inversão moral (vê nas outras pessoas propósitos perversos,
intuitos cruéis e posturas mentirosas), convive com um
atormentador sentimento de culpa, sofre de depressões
freqüentes, sente-se perdida, desorientada, perde o sono
ou tem insistentes pesadelos. Sua crença mais profunda no
ser humano lhe foi retirada, ou, no mínimo, rudemente
golpeada.
Relatório recente da Anistia Internacional revela que
a tortura ainda é praticada com regularidade em “mais de
noventa países”. Irã, Paquistão, Turquia e Líbia encabeçam a
longa lista.
Em 1975, nos subterrâneos da Ditadura Militar, conheci a
tortura – talvez a pior das fraturas da alma humana. Naqueles
tempos, multiplicavam-se os regimes autoritários na América
Latina. Hoje, felizmente, conquistamos a democracia e
vivemos em liberdade. Embora a prática da tortura persista em
muitos países, crescem as pressões da opinião pública mundial
em defesa dos Direitos Humanos, como parte de uma nova
cultura planetária que está surgindo.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41
Edvaldo Pereira de Moura
Desembargador do Tj/PI
O
professor Celso Lafer, catedrático de Direito
Internacional Público e de Filosofia do Direito da
Universidade de São Paulo, em judicioso estudo
sobre a mentira, com a clareza de sempre, mostra
que a vida moral e a vida do poder dão a impressão de correr
paralelas, com raras convergências; e que o desencontro entre ética
e política incomoda e revolta a todos os que querem ver e sentir a
presença de virtudes na condução dos negócios públicos.
A escritora sueca Sissela Bok também escreveu sobre a
mentira, após ter verificado que desde o século XVII, excetuandose alguns momentos da literatura, do teatro e do cinema, reina
profundo silêncio quanto ao dilema do dizer a verdade, na vida
pública e na vida privada.
Acodem-nos, aqui, ainda, as sábias palavras proferidas pelo
Padre Antônio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga da
Quaresma, em 1654, na Igreja Maior da cidade de São Luís do
Maranhão.
A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a
cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao
contrário da mentira. A mentira ou vos tira o que tendes, ou vos
dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena.
Estaria neste enunciado sumulada a solução satisfatória
para o contencioso social no âmbito político-administrativo?
É que resolvidos os efeitos causais das virtudes que as tradições
consideram relevantes para a ação política, poder-se-ia alcançar
o simulacro pernicioso do grande arsenal de desagregação de
valores morais contíguos ao Bonum Honestum, que é famigerada
indústria da mídia.
No limiar do século XX, precisamente a partir de sua segunda
década, iniciou-se um movimento novo, no tocante às idéias
políticas, com o advento do chamado Estado-Cientista, póstero
da Nação-Estado. Esse Estado passou a ser o entrelaçamento da
ciência e da técnica em função de um novo eldorado capitalista.
Nele, as universidades perdem o estatuto de simples formadoras
42 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
da elite do ter e do fazer, para associarem-se aos laboratórios de
investigação, aos centros tecnológicos, à prática manufatureira
terceirizada. Visa-se, definitivamente, à produção em série
de tudo, e à infinita diversidade de produtos para atender a
uma famélica geração de consumidores daquilo que a técnica
e a ciência geram em proveito dos interesses pessoais, sociais,
políticos e econômicos do Homem.
Paralelo à expansão dos interesses dos fabricantes de produtos
para consumo de todos, desenvolve-se o aparelhamento da
massificação informativa. Os aparelhos, os órgãos e os meios de
comunicação tomam lugar privilegiado na atenção dos capitalistas,
por serem meios de anunciar seus produtos aos consumidores.
As técnicas e os meios de comunicação, associados à publicidade
e à mercadologia, vão formar o complexo daquilo que se chama
indústria da mídia.
Mas a indústria da mídia não é somente mercadológica. Ela
é, também, ideológica. Vende de tudo, desde o sabão em pó,
que lava mais e mais branco do que o concorrente, até a imagem
de um candidato à Presidência da República. Nada escapa aos
artifícios da boa mídia – boa porque ontologicamente ela o é.
Há mídia para vender frutas na banca da esquina e mídia para
vender navios e aviões. A diferença entre uma e outra técnica
está na qualidade intelectual e instrumental do anunciante usada
para transmitir a mensagem, e no valor do produto anunciado.
A mídia atingiu tal poder de fogo, que uma empresa do porte
da Rede Globo, se o quiser, poderá conduzir da maneira que
bem lhe aprouver o comportamento do comprador, do eleitor,
do político, dos padrões éticos da sociedade, das decisões do
governo, do estado de espírito dos habitantes de todo o País, e
tudo mais que lhe traga o retorno ideológico e o lucro financeiro
pretendidos. O poder interveniente da mídia, como é de sabença
geral, elegeu Collor. Esse mesmo poder o aniquilou. Se Collor
tiver o mesmo empenho e o mesmo dinheiro, poderá ressurgir
das cinzas da humilhação e do ostracismo a qualquer hora.
Foto: Dinavan Fernandes de Araújo/TjPI
O IMpLACÁvEL E ENvOLvENTE
PODER MIDIÁTICO
A indústria da mídia é moralmente neutra. Faz o bem e
faz o mal com a mesma competência. Em doses mitridáticas
ou em dimensões astronômicas. Ela é um poder formidável do
progresso, cuja capacidade de fazer ou desfazer o que quiser está
cada vez mais ganhando força e sofisticação. A força da mídia é,
na sua essência, a força dos interesses econômicos de qualquer
sociedade moderna. O apelo dos meios de comunicação é de um
poder quase mágico, praticamente anestesiante.
A Bíblia, no seu Antigo Testamento, nos dá a figura maliciosa
e embusteira da serpente no Éden, chamando a atenção de
Adão e Eva para as delícias do fruto proibido. Hoje e sempre
nada nos desce pela garganta sem primeiro edulcorar nosso
paladar, agradar o nosso olfato e pulular de cores admiráveis
os nossos olhos. A propaganda do cigarro e da bebida alcoólica
vem sempre com um desafio, quase infalível, de nos obrigar
a fazer hodiernamente aquilo que os atores estão fazendo
nos aprazíveis ambientes bem escolhidos e nas invejáveis
circunstâncias em que eles virtualmente se encontram. Outro
apelo menos material e mais devastador é aquele a que hoje
assistimos na televisão: a eliminação sumária dos mecanismos
da consciência que nos impelem ao remorso diante de qualquer
atropelo das boas normas morais e da conduta saudável.
As crianças e os adolescentes pautam naturalmente as suas
condutas pelo que sai dos seus ídolos estilizados pela televisão
e pelas revistas. Assim sendo, a própria televisão se vê na
obrigação de produzir o que agrada a essa multidão, pois é para
ela que se voltam avidamente os interesses dos fabricantes e,
concomitantemente, dos comerciantes de qualquer produto.
A televisão sabe que está multiplicando uma geração de
clones, deformados pela imoralidade civil e religiosa. A sedução,
o adultério, a prostituição, o incesto, o homossexualismo, o
suicídio, o furto e o roubo inteligentes, a irresponsabilidade civil,
tudo faz parte de um elenco que os filmes da televisão e as revistas
licenciosas lançam cabeça adentro.
A guerra contra os valores mais conservadores da decência
na sociedade mantém ataques sem trégua. Nada se faz mais
por negociação e consenso. Nas novelas da Globo, mal a
mocinha se faz mulher engravida de um pai da mesma idade.
O homossexualismo é coisa natural, o aborto, a prostituição
por prazer, a droga, o divórcio irresponsável por omissão
ou comodismo, são atos banais, cada vez mais sem a menor
ascendência lógica diante da mais corriqueira falácia libertária.
O resultado desastroso fica por conta de qualquer pessoa
despreparada, que se deixar levar por essas propagandas
enganosas.
Em suma, a mídia tem uma força incrível para nos impor
o que ela pretende, seja um produto qualquer, seja um
comportamento inadequado. Isso, porém, não impede que se
faça justiça a essa maravilha do presente e do futuro: a tecnologia
da informática e da telemática, da imagem e do som. Ela já fez
a sua parte; a sociedade é que precisa de soluções éticas para ver
triunfar os valores morais. Mais uma vez é necessário que nos
conscientizemos do fato de que as virtudes inspiradas na força e
na astúcia devem ser substituídas pelo primado da verdade, filha
da justiça, porque só a justiça dá a cada um o que é seu.
“EM SUMA, A MíDIA TEM
UMA FORÇA INCRíVEL
PARA NOS IMPOR O QUE
ELA PRETENDE, SEjA UM
PRODUTO QUALQUER, SEjA
UM COMPORTAMENTO
INADEQUADO.”
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43
Foto: Arquivo jC
A TRANSFORMAçãO DA
pROpRIEDADE E A EvOLUçãO
DAS COMPANHIAS NO DIREITO
BRASILEIRO
Ana Tereza Palhares Basílio
Membro da Comissão Internacional de Arbitragem
da Câmara de Comércio Internacional
André R. C. Fontes
Desembargador do TRF-2a Região
Membro do Conselho Editorial
O
século passado foi marcado por rápidas e
profundas transformações na sociedade, na
política e na economia. E a mudança da
concepção de propriedade como um poder
absoluto e ilimitado foi, certamente, um dos efeitos dessas
novas perspectivas. A propriedade no século XIX foi elevada a
centro e motor do sistema produtivo, mas entrou em crise nos
anos novecentos, em decorrência das novas concepções, que
surgiram por ocasião da Revolução Industrial e afloraram em
todas as décadas do século XX.
Os processos econômicos e sociais que se assentaram
tiveram por conseqüência a subtração da propriedade de sua
posição central e absoluta e modificaram o seu papel interno
no sistema de produção e valorização dos recursos.
Nesse grandioso e complexo processo de modificação
da riqueza, a humanidade deparou-se, desde os estertores
do século XVIII, com a mudança de uma economia
preponderantemente agrícola – a riqueza, por excelência, e
os recursos econômicos mais importantes eram representados
pelos bens imóveis, e em particular pela terra – para a
afirmação da atividade industrial e dos serviços; evolui-se para
uma economia, de um modo geral, mais sofisticada. A terra
e a propriedade imobiliária tornaram-se recursos produtivos
de menor relevância e, como decorrência desse fenômeno,
44 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
outros tipos de bens valorizaram-se. Mercadorias, máquinas,
bens instrumentais ou de consumo e, sobretudo, títulos de
crédito e ações das sociedades anônimas, dentre outros bens
móveis, foram alçados ao patamar de relevantes propulsores
das atividades econômicas. E, nesse contexto, a concepção
clássica da propriedade imobiliária perdeu, indubitavelmente,
os alicerces que lhe davam sustentação. Os processos de
mobilização das riquezas tiveram, pois, um ulterior e expressivo
impulso: com a afirmação das atividades bancárias, associadas às
industriais, transferiram-se para os bens financeiros as mesmas
definições dadas aos bens em geral, dentre as quais destacam-se
a de “valores mobiliários” e a de “mercados mobiliários”, como
conseqüência do desenvolvimento do mercado financeiro,
que passou a ser o mais relevante instrumento de geração e
circulação de riquezas.
Como corolário dessa transformação, notabiliza-se o
processo de desmaterialização da riqueza. O desenvolvimento
econômico e os processos produtivos tornaram-se cada vez
mais dependentes do conhecimento e do uso de tecnologias
inovadoras. As invenções de novos produtos, ou novos
métodos produtivos, e o emprego de outras criações de
engenho humano, tais como fórmulas publicitárias, slogans ou
signos de identificação, passaram a ser essenciais ao sucesso
de um produto no mercado. É uma nova e importante
modalidade de riqueza econômica, cuja característica
principal é não consistir em bem material. De fato, as patentes
de invenção, as marcas de fábrica ou de comércio, o direito
do autor e, notadamente, o desenvolvimento de programas
de computador, estão inseridos na categoria de bens
imateriais. Todos esses bens imateriais agregam o conceito
de propriedade, mas não em sua concepção tradicional; pois
que, na sua feição originária, propriedade era só propriedade
de coisas materiais. É emblemática a constatação de que as
maiores fortunas pessoais migraram das terras para as grandes
indústrias, tais como automotivas, mineração e siderurgia, e
hoje são detidas por titulares de programas de computadores
e de redes de telefonia.
É relevante conseqüência desses fatos o processo de
dissociação entre titularidade da propriedade e o controle das
riquezas. A noção de separação entre a propriedade e o controle
da riqueza manifesta-se por meio de um processo de cisão
entre o papel do proprietário e o papel do empreendedor. Nas
economias pré-capitalistas, as figuras do empreendedor e do
proprietário geralmente coincidiam: quem possuía os meios
de produção os organizava e os utilizava, pessoalmente, para
fins produtivos. Na atualidade, o proprietário (capitalista)
disponibiliza o capital, mas não é ele, via de regra, quem o
organiza e faz a sua gestão diretamente. Essa tarefa é do
empreendedor, que gere e desfruta do capital que não é seu.
A gestão e a vantagem se realizam através de competentes
tecnologias e gerenciamentos, que na economia moderna
tendem a substituir o direito de propriedade como suporte e
verdadeiro fator de impulso do processo produtivo.
Esse fenômeno manifesta-se, sobretudo, na tendência
mundial das grandes sociedades anônimas de pulverização
do seu capital social, com a emissão de um grande número
de ações, distribuídas a heterogêneo e expressivo número
de acionistas. Esses numerosos acionistas minoritários são
investidores em busca de dividendos e de valorização de suas
ações; não visam, entretanto, a influir na gestão da companhia
através de votos em assembléia.
Nesse cenário, que já predomina no mercado norteamericano e vem se alastrando pela América Latina, inclusive
pelo Brasil, é possível deter o controle de uma sociedade sem
dispor de uma larga maioria aritmética do capital social. Um
grupo de poucos sócios, vinculados por um acordo de acionistas,
pode comandar uma companhia detendo, por exemplo, 5%
(cinco por cento) do seu capital social. Ou seja, embora sejam
titulares de um reduzido percentual do capital social, poderão
controlar a totalidade da riqueza da companhia, enquanto a
grande massa das centenas de milhares de pequenos acionistas,
proprietários, no seu conjunto, de expressivo percentual das
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45
Foto: Arquivo jC
André Fontes, desembargador do TRF-2a Região
ações emitidas, não exercerá qualquer controle efetivo.
A pulverização do controle acionário de grandes
companhias afigura-se em um novo e salutar estágio na
evolução da economia capitalista e na história do instituto da
propriedade. As companhias, através da pulverização de suas
ações, aumentam a captação de recursos, o que lhes propicia
maior saúde financeira e capacidade de crescer e investir. Essa
prática também torna mais sólidos e robustos os mercados
acionários, irrigados por investimentos novos.
Esse novo e promissor estágio do instituto da propriedade
faz impositiva, no Brasil, a realização de uma relevante revisão
da legislação societária. A Lei das Sociedades Anônimas em
vigor foi promulgada nos anos 70 do século passado, em
momento histórico no qual predominava perspectiva diversa.
Naquela ocasião, conforme orientação do II Plano Nacional
de Desenvolvimento (II PND) do governo do Presidente da
República Ernesto Geisel, pretendia-se incentivar a criação,
no País, de grandes conglomerados, capazes de concorrer, em
igualdade de condições, com as temidas multinacionais. Para
esse fim, era preciso fortalecer os acionistas controladores,
conferindo-lhes instrumentos eficazes de gestão e domínio
societário. Só assim seria possível atrair o desejado investimento
de grandes capitais, detidos por poucos. O resultado dessa
política é ostentado pela Lei das Sociedades Anônimas, que
desprestigia os direitos e carece de instrumentos eficazes de
proteção do acionista minoritário.
Mas os tempos são outros. O Capitalismo, que começou
preponderantemente industrial nos seus primórdios, passou
pelas fases bancária e estatal, agora se afigura institucional ou
societal, por estar diluído por todo um crescente segmento
da sociedade, formado por investidores anônimos, fundos de
46 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
pensão, fundos de investimentos e fundos mútuos. O capital
que se pretende atrair ao mercado de ações, no contexto das
pulverizações, é o do pequeno poupador, que, no Brasil,
ainda não é direcionado às bolsas de valores. Esse propósito,
entretanto, só será alcançado se forem assegurados aos
acionistas minoritários instrumentos consistentes de proteção
do seu investimento. Em outras palavras, a legislação societária
deverá sofrer alterações para conferir aos acionistas que detêm
pequena parcela do capital social da companhia meios mais
eficientes de fiscalização e proteção do seu investimento.
Sem o incremento da segurança dos acionistas minoritários,
que só poderá ser conferida pela lei, o Brasil não alçará,
satisfatoriamente, esse estágio de evolução da economia
mundial e do instituto da propriedade, cujas mutações devem
estar em sintonia harmônica com a realidade econômica e
social do País.
O Novo Mercado, instituído pela Bolsa de Valores de
São Paulo – Bovespa, estabelece normas mais eficientes para
a defesa do investidor. Essas regras, no entanto, só serão
seguidas pelas companhias que a ele aderirem. Trata-se, pois,
de louvável iniciativa, incapaz, entretanto, de criar força
coercitivo-legal, já que as disposições do Novo Mercado têm
cariz meramente negocial.
Nos sistemas orgânicos e sociais, a ocorrência de fenômenos
de grande importância histórica transforma profundamente
o valor e o papel do direito de propriedade na organização
econômica da sociedade. E, por conseguinte, devem ser
revigoradas as configurações jurídicas, em vista das novas
realidades sociais. Dessas mudanças prestam fiel testemunho
as normas sobre a propriedade contidas nas sucessivas
Constituições brasileiras.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47
QUEM PAGA
A CONTA?
“HOUVE UMA
TRANSFORMAÇÃO NA
CARREIRA DE jUIZ QUE FEZ
SURGIR MéTODOS E
SISTEMAS QUE VALORIZAM
A EFICIêNCIA A TODO
CUSTO, EM ATROPELO àS
GARANTIAS INDIVIDUAIS.
PRÁTICA INCOMPATíVEL
COM A DIFíCIL TAREFA
DE jULGAR A VIDA DOS
OUTROS.”
Gustavo Alves Pinto Teixeira
Advogado
Foto: ah!Fotografia
48 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
R
ecentemente, folheando um dos maiores jornais do
país, meus olhos foram atraídos pela frase de um
dos protagonistas da chamada Operação Satiagraha,
afirmando que deveríamos escolher um caminho a
seguir.
Temos a mesma indagação, mas certamente chegaremos
a conclusões diametralmente opostas. De que adianta, no
combate à violação da lei, infringi-la?
Quando autoridades públicas, sob essa falácia, valemse da clandestinidade para “apurar” delitos, na verdade,
prestam um desserviço à sociedade e legitimam a alegação de
vícios insuperáveis, inconcebíveis em um verdadeiro Estado
Democrático de Direito.
Estaríamos vivenciando o inverso do histórico slogan
do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek: 50 anos de
retrocesso em 5? Vivemos, sim, o início da fase adulta
constitucional. Completamos vinte anos no dia 5 de outubro
passado. Estamos deixando a puberdade, experimentando
os arroubos da juventude, na expectativa da ponderação
tranqüila da maturidade.
A letargia ético-moral que preponderou na sociedade
durante essa puberdade não pode servir de pretexto para que
esqueçamos os princípios constitucionais que, salvo engano,
ainda vigem. Se forem eles os que impedem a “eficaz”
persecução criminal, que se mude a Constituição, mas que
não a deixem como mera ficção.
Todo o apelo emocional que se insurge nos dias atuais
para que o Judiciário tenha uma pronta resposta não pode
se sobrepor às garantias do devido processo legal, da ampla
defesa, da presunção de inocência e de outros importantes
princípios expostos na Constituição Federal de 1988.
O filósofo belga Chaïn Perelman diz que somente a
norma constitucional, enquanto fundamental, não terá de
conformar-se a nenhuma norma preliminar.
Assim, a tão questionada especialização de alguns juízos
nos custou o que há de mais valioso na função de julgar: a
imparcialidade. É claro que pessoas envolvidas anos a fio
em um procedimento investigativo – às vezes com escutas
intermináveis, ilegais em sua essência, ante o estampado
desrespeito à lei de regência que apregoa o prazo de 15 dias
renováveis por igual período – apreciariam ver bem sucedidos
seus esforços.
É desumano exigir de um indivíduo que, ao fim, julgue,
imparcialmente, seu próprio trabalho.
Houve uma transformação na carreira de juiz que fez
surgir métodos e sistemas capazes de valorizar a eficiência
a todo custo, em atropelo às garantias individuais. Prática
incompatível com a difícil tarefa de julgar a vida dos outros.
Terminantemente não pode ser admitida a valorização
do critério de eficiência na punição rígida dos delitos, em
detrimento das garantias indispensáveis à realização de
um processo justo, como se essas exigências se excluíssem
necessariamente e que a idéia de uma justiça sumária melhor
atendesse aos objetivos perseguidos.
Surgiu também um juiz enfronhado na própria
investigação, que decide encastelado em seu gabinete, só
ouvindo um lado durante anos, enquanto deveria, “apenas e
tão-somente”, julgar a causa – trabalho já hercúleo – quando
lhe é trazida ao conhecimento.
A função do Ministério Público de propiciar o
processamento das infrações penais é a das mais importantes,
mas certamente a de guardião da lei é a que será mais exigida
pela sociedade nessa nova fase; o início da vida adulta de
nossa recente democracia.
Não podemos nos deixar levar por discursos maniqueístas,
não há bem e nem mal em disputa. A equivocada impressão
de que o combate ao crime é feito prendendo primeiro,
condenando depois, desrespeitando princípios sob o
argumento de que os tempos mudaram e as regras permanecem
as mesmas, não passa de arremedo de justiça.
Àqueles que acabam sendo absolvidos, mas já tiveram suas
vidas desgraçadas pela pecha de criminosos, não lhes resta
reclamar nem mesmo com o Papa.
Antes de tudo, antes mesmo de querer punir qualquer
delito praticado, bem como seu autor, o Estado deve ater-se
à própria lei, pois, para aqueles que estão sendo submetidos a
julgamentos por supostamente terem infringido a legislação,
nada mais correto do que aplicar “tão-só” o que o ordenamento
jurídico determina, sem abusos e sem ações precipitadas.
A denominada “presunção de inocência” constitui
princípio informador de todo o processo penal, concebido
como instrumento de aplicação de sanções punitivas em um
sistema jurídico no qual sejam respeitados, fundamentalmente,
os valores inerentes à dignidade da pessoa humana. Como tal,
deve servir de pressuposto e parâmetro de todas as atividades
estatais concernentes à repressão criminal.
Sob esse prisma, a garantia constitucional não se revela
somente no momento da sentença, como expressão da
máxima in dubio pro reo, mas se impõe, igualmente, como
regra de tratamento do suspeito, indiciado ou acusado,
que, antes da condenação final, não pode sofrer qualquer
equiparação ao culpado, e, acima de tudo, indica a
necessidade de se assegurar, no âmbito da justiça criminal,
a igualdade do cidadão no confronto com o Estado, por
meio de um processo justo, como vem afirmando a nossa
Suprema Corte.
Conquanto o princípio da presunção de inocência não seja,
a rigor, novidade no ordenamento jurídico brasileiro – pois
na vigência de texto constitucional anterior já era sustentada
a compatibilidade do preceito com os direitos e garantias
especificados (artigo 153, parágrafo 36, da Emenda nº 1 à
Carta de 1967), sem contar ainda com a adesão do Brasil
à Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948,
que expressamente o inclui entre os direitos fundamentais
da pessoa humana – a proclamação clara e destacada feita
pelos constituintes representa escolha evidente por uma
concepção do processo penal em que a liberdade, a igualdade
e a dignidade do ser humano são reconhecidas como valores
centrais do sistema.
Cumprir o que preceitua nossa Lei Maior é o primeiro e
mais significativo passo para Democracia, é isso que concede
a segurança jurídica necessária para que Estados possam se
desenvolver, sob todos os prismas.
Inspirado por JK, digo que “o otimista pode até errar,
mas o pessimista já começa errando”. Quem paga a conta por
esses desvios somos nós, regredindo que estamos no avanço
da redemocratização do País.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49
Yuri Villacorta
Escola Nacional de Magistratura
E
ntre os dias 10 e 14 de dezembro, ocorreu o Encontro
Nacional de Diretores de Escolas de Magistratura,
realizado no Hotel Pirâmide, em Natal (RN). O
diretor da Escola Nacional da Magistratura (ENM),
desembargador Eladio Lecey, presidiu a mesa que deu início
ao Encontro e destacou que o evento é de extrema relevância,
já que proporcionará troca de experiências entre os diretores.
O presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte,
Oswaldo Cruz, também participou da mesa e disse que o
principal objetivo desses encontros é o compartilhamento de
informações buscando melhorar a formação do juiz e garantir
uma magistratura com excelência. A abertura contou com a
palestra “Transformação do Estado e o Poder Judiciário – A
importância das escolas na capacitação dos magistrados” que
foi ministrada pelo professor da Fundação Getúlio Vargas
(FGV), Sérgio Guerra. Ele falou sobre os desafios enfrentados
no ensino da magistratura, o uso de novas tecnologias, gastos
financeiros e como o juiz precisa estar mais preparado para
exercer a profissão.
A programação do segundo dia do Encontro Nacional das
Escolas de Magistratura começou com a palestra do ministro
do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Sidnei Beneti, que
fez uma abordagem sobre as escolas de magistratura, além de
demonstrar sua satisfação em participar do Encontro. Durante
a palestra, Beneti falou sobre a importância das escolas que
formam o futuro do Judiciário e frisou que a formação do
magistrado deve ser levada muito a sério. O Ministro também
comentou a ligação entre as associações de magistrados e as
50 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
escolas: “Os dois movimentos vêm a se complementar, ligados
definitivamente, e têm o mesmo objetivo, que é promover
o desenvolvimento do melhor serviço da magistratura,
formando juízes cada vez mais aprimorados”.
O Encontro teve seu momento mais importante na tarde
de quinta-feira, dia 11 de dezembro. Foi a oportunidade em
que os diretores das escolas puderam analisar, comentar e
debater as propostas que serão entregues pela ENM para Lei
Orgânica da Magistratura (Loman). Pela manhã, os diretores
se dividiram em quatro grupos – estaduais, eleitorais, federais
e trabalhistas – para trocar informações e formular as sugestões
relativas a cada segmento. À tarde, os grupos se reuniram
para comparar suas resoluções. Temas como a autonomia
administrativa, o reconhecimento das escolas e de seus cursos,
a escolha dos diretores e igualdades no concurso de ingresso
foram assuntos abordados pelos diretores, que se mostraram
motivados com a melhoria da formação e aperfeiçoamento
dos magistrados.
Durante o debate, o diretor da ENM, desembargador
Eladio Lecey, falou sobre a satisfação de o Encontro conseguir
reunir um número significante de diretores. Ele ainda se
comprometeu a dar continuidade ao trabalho desenvolvido
em gestões anteriores e comentou sobre o planejamento
estratégico de cursos da Escola para 2009. Cursos presenciais,
novos convênios internacionais, realização de cursos via
satélite e temas como Direito do Consumidor, Direito
Ambiental e Infância e Juventude foram alguns dos planos
que o Desembargador declarou para o próximo ano.
2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 51
52 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008