Itinerario da Terra Sancta e suas particularidades

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Itinerario da Terra Sancta e suas particularidades
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AVEIRO, Frei Pantaleão de – Itinerario da Terra Sancta e suas particularidades, 7ª ed.,
organizada por António Baião, Coimbra: Imp. da Universidade, 1927. A 1ª edição é de 1593. [os
números de página da edição referida surgem em texto superior à linha]
Coordenação: Filipe Themudo Barata; Digitalização, Leitura e Revisão: Nuno Campos
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ITINERÁRIO
DA
TERRA SANTA.
CAPITULO I.
Da nobilissima, & muy rica Cidade de Venesa, aonde se embarcaõ os peregrinos.
COMO a Cidade de Veneza seja o porto principal, no qual se embarcaõ os
peregrinos para a Terra Santa, a visitar aquelles santissimos lugares, aonde pelo Salvador
do mundo foy obrada nossa redempção, começarey este meu Itinerario nella, tratando com
brevidade algũas cousas affim do seu sitio, como de sua nobreza & do modo que tem os
peregrinos para se embarcarem, pelo particular regimento, que a muy illustre Senhoria, naõ
de agora, mas de muytos tempos atraz, tem ordenado, como senhora, & Princesa do Mar
Adriatico, & de muytas Terras, Ilhas, Cidades, & Lugares, que possue pela mayor parte das
suas ribeiras. Foy esta muy nobre, & rica Cidade fũdada, ou (para melhor dizer)
accrescẽtada na era de nossa Redempção de quatrocentos cincoenta & quatro, / 2 naõ de
rusticos pastores, como Roma: mas de pessoas nobilissimas, & ricas de diversas partes, &
Provincias, que se acolhèraõ àquelle quasi inexpugnavel lugar, fugindo da persecuçaõ do
cruel Attila Rey dos Hunnos, & ha mil cento trinta & sete annos, que se conserva cõ muyta
justiça, paz, honra, & riquezas, indo sempre de bem em melhor a gloria, & louvor do
Senhor Deos. A nobreza desta taõ insigne Cidade, a toda a nossa Europa he notoria, &
manifesta: & o mesmo sua riqueza, & Christianismo. E como della em gèral a fama he
pregoeyra, & em particular muytos Authores escrevèraõ suas grandezas, sómẽte direy muy
pouco, por minha penna naõ ser tão delicada, que possa dizer muyto. Está fundada, &
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edificada esta tão affamada Cidade dentro no Mar Adriatico. A terra mais propinqua, que
tem a si, saõ duas legoas, seu circuito póde ter outras duas. Toda se anda por mar, & por
terra, salvo alguns bayros, a que os Venesianos chamão Traguetos, aos quaes se naõ pòde
ir, salvo por mar, por estarem tão apartados da terra, que se naõ pòdem servir delles com
pontes. Vay pelo meyo da Cidade hum canal muy largo, que a divide em duas partes, no
meyo do qual tem hua muy fermosa põte, toda de muytas tendas occupada, cheyas de
preciosas, & ricas mercadorias. Pelo meyo deste canal, navegaõ galès de toda a sorte,
caravellas carregadas, & náos grandes vasias. Anda-se quasi toda a Cidade por mar, & por
terra, tirando os bayros, ou traguetos, que tenho dito: & isto por haver quatrocentas &
cincoenta pontes, entre publicas, & particulares, a mayor parte dellas de pedra, & as outras
de madeira. E para serviço dos que querem negocear suas cousas por mar, & com mais
brevidade, tem a Cidade onze mil barcas, antes mais que menos: as quaes chamaõ /
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Gondolas: & todas andaõ toldadas de panno preto, com muyta curiosidade, & limpesa, em
tanta maneyra, que os mais dos dias lhe põem hum lançol lavado da popa á proa, para que
os que entraõ, ponhaõ os pès nelle, & naõ çujem a gondola. Os toldos são feitos ao modo
dos que cá costumaõ levar as tumbas da misericordia: de maneyra que os que vaõ dentro
naõ saõ vistos, se naõ querem.
Todas estas gondolas estão de contino prõptas, & prestes, assim de dia, como de
noyte, para quem se quer servir delias, & com muy grande barato: & tem tal ordem na
passagem q todas ordinariamente ganhaõ, porque nenhũa pòde levar gẽte de hũa a outra
parte, salvo por certa quãtidade de dinheiro, da qual passando, ainda q lho queyraõ dar
gratis; tem grandissima pena. Alèm destas barcas, que servem ao comum, ha outras muytas
particulares de pessoas nobres, que as podem sustentar: & muytas dellas nas festas
principaes saõ toldadas de toda a sorte de seda, & panos ricos, confórme a qualidade das
pessoas, cujas saõ.
As provisões, & mantimentos conveniẽtes à vida humana, são os mais q vi em
algũa outra Cidade, & tudo taõ barato, q hũa galinha, quasi nunca pãssa de hũ real de prata,
a q os Venesianos chamão bizante: naõ q corraõ os reales de Hespanha, mas fallo ao modo
de cá, quanto á valia da moeda. Todas as cousas, q se vendẽ saõ de carreto, porq a Cidade
em si, nẽ agua para beber tẽ, salvo cisternas particulares nos Mosteiros, & casas de
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senhores. He toda a Cidade ornada de muy ricos aposentos, & paços soberbissimos, cõ toda
a sorte de jaspes, & finissimos marmores de diversas cores, & outras muy preciosas pedras,
de que cá naõ temos noticia. As janellas pela mayor parte tẽm vidraças. / 4 Os Tẽplos saõ
muytos, & os mais ornados, & sumptuosos, q tenho visto, em tanto, q eu sou de opiniaõ
excederẽ aos de Roma, & o seu principal ornato he, serẽ muitos delles santificados, &
ornados de muy preciosas reliquias. Dentro na Cidade, & arrabaldes tem vinte Conventos
de Religiosos & vinte & quatro de Religiosas. O Tẽplo principal, & Igreja Cathedral, a que
os italianos chamaõ, il Domo, & os Portuguezes chamamos Sé, aonde está o corpo do
glorioso Evangelista S. Marcos, Patrão dos Venesianos, he todo lavrado de obra Mosayca:
& o retabolo do Altar mòr de prata, & ornada de tanta, & taõ rica pedraria, em tanta
quantidade, & grandeza, que quem naõ souber a magestade, poder, riquezas, & gravidade
da Senhoria Veneziana, facilmente poderá julgar ser a tal pedraria falsa. Entre muytas
cousas, que a Cidade em si tem de notar, he hũa rua, que vay da praça de S. Marcos, atè
outra praça, que está alèm da ponte, que atraz fica dito, a qual praça se chama de Realto, o
mesmo nome tem a ponte. Esta rua tẽ de comprido hũa muy grande milha, & toda de hũa,
& outra parte, he ornada, & chea de todas as cousas preciosas da vida: nem creya se pedirá
cousa, que alli falte. Todo genero de brocados, & tèllas de ouro, & prata, de qualquer sorte,
& invençaõ que quizerdes. Todos os cheiros, & perfumes do mundo, tendas de pedraria
riquissima, joyas, penachos, muyto marfim lavrado, & os dentes inteyros de Elefantes:
grandes livrarias, nas quaes se achaõ toda maneyra de livros, que quizerdes: logeas
grandissimas cheas de especiaria: de maneyra, que parece aquella rua hũa feira armada, &
ornada de todas as mercadorias, & mercadores do mundo.
Dentro na Cidade tem hũ almazem, ao qual elles / 5 chamaõ Arsenal, cercado de
alto muro, todo torneado com muytas torres: seu circuito tem hum bom terço de legoa,
antes mais que menos, dentro do qual trabalhaõ de contino quinhentos homẽs em cousas do
mar, assim em fazer galès, como em fazer nàos, & outros navios: mas nas galès se occupaõ
mais; das quaes tem a Senhoria tantas em quantidade, que naõ creyo haver Rey, nem
Principe no mundo, que tantas tenha. Lavraõ aquellas galès, & temnas feytas em peças, &
metidas em casas, para quando lhe cõvem ajuntallas, & alèm destas tem outras muytas de
todo acabadas, postas, como em estaleyro, debayxo de huns telhados de duas aguas, & com
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ellas algũas galeaças, que são hũs navios de remo muy grandes, feytos ao modo das galès.
Tem dentro naquelle Arsenal sua ferraria, na qual de contino trabalhaõ muytos ferreyros,
fazendo toda a ferraria necessaria para as galès, & náos; tem huma casa grande no Arsenal,
na qual de contino estaõ muytas mulheres occupadas em cozer vellas.
Entraõ os officiaes neste Almazem pela manhãa, & depois de comer com campa
tangida, & ha nelle em todas as cousas muyta ordem, & concerto. Tem algũas casas cheas
de artelharia de bronze, de toda a sorte, & muytas das peças lavradas com grande
curiosidade de diversos lavores, & folhagens: outras casas: que naõ servem mais que de
pilouros de ferro coado: algũas cheas de materiaes moidos, & concertados para fazerem
polvora, separados hũs dos outros, porque naõ aconteça algum perigo, como já aconteceo
em tempo, que tinhaõ a polvora feyta, & composta. Tambem ha neste Arsenal algũas fallas
grandes, & muyto compridas, cheas de toda a sorte de armas, assím para gente de cavallo,
como para de pè: & tudo tão perfeytamente, & a ponto, como se estivessem de hora em
hora / 6 esperando pelos inimigos: porque para cada homẽ tem junto o que lhe convem para
se armar, quer seja de cavallo, quer de pè; & em cada casa aonde ha officiaes, que
trabalhaõ, tem no meyo hũa tina, que pòde levar dez atè doze almudes, chea de vinho bem
aguado para os que tem necessidade de beber.
E porque em toda a parte o vulgo trata, & falla do thesouro de Veneza; direy aqui
o que os Venesianos chamaõ thesouro. Dentro no Tẽplo, & Sè Cathedral de S. Marcos,
entrando pela porta principal á maõ direyta está hũa casa fechada com muytas, &
differentes fechaduras, & cadeados. No arco da porta da parte de fóra estão lavradas de
obra Mosayca muyto rica, as Imagẽs dos gloriosos Patriarcas S. Domingos, & S. Francisco,
feytas duzentos annos annos antes que viessem ao mundo, por hũa profecia de hũ servo do
Senhor Deos, que os denunciou haverem de vir da maneira, que alli estão pintados. Aberta
a prímera porta, & outras duas diante, se entra em hũa casa quadrada, feyta de abobada,
mas naõ muito grande, a qual no alto tẽ hũa pequena fresta estreyta, & com ferros
dobrados, por onde entra algũa pouca claridade; á maõ direyta daquella casa em entrando
no vão da parede a modo de cappella, está hum Altar grande com alguns degráos em cima,
como copa de algum Principe, ou Senhor, cercado com grades de ferro, dentro poderáõ
caber cinco atè seis pessoas. Alli nos mostrárão algũs coçoletes de ouro fino, & outras
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armas do mesmo, algũs vasos de pedras preciosas, cornos muyto grandes de Unicornio,
dous carbunculos do tamanho de ovos de frangas: duas coroas de ouro fino cõ muyta, &
muy rica pedraria, as quaes elles chamaõ corno : & destas usa o Principe nas grandes
solemnidades, & quando convem mostrar a / 7 grãdeza do seu estado: outras duas coroas de
inestimavel valor; hũa do Reyno de Chipre, que já perderaõ, & outra do Reyno de Creta, ou
Candia, q ainda tem, & queyra nosso Senhor tenhaõ por muytos annos.
Duas vezes entrey a ver este thesouro, a primeira em cõpanhia de hũ nosso Padre
Gèral, por nome Fr. Francisco Zamora: & a segũda entrando nelle a Duqueza de Ferrara, no
qual se havia outras particularidades, naõ dey Fè dellas. Dos dous carbunculos sey dizer,
que com os ter na mão, & serem taõ grandes como fica dito, nos serviaõ de tochas acesas
para os vermos, & o mais; o q aqui escrevo, pela grande opiniaõ que muytos tem dos
carbunculos.
Tem a Cidade outras muytas riquezas, & casa publica, aonde de contino se bate
moeda de ouro, & prata; a qual se mete em hũa fermosa torre que està na praça, defronte de
S. Marcos, & Paços do Principe. São tantas as grandezas desta illustrissima Cidade, & as
festas, & invenções, que de contino nella se ordenaõ, & fazem para recreaçaõ do povo, que
ha livros, & livros impressos, que disso tratão, donde nasceo o proverbio, q naquellas partes
se costuma dizer: Veneza quẽ naõ te vè, naõ te presa. Tem por costume a Senhoria (que
este he o cõmum vocabulo do Principe, & do governo de todo aquelle Senado) todos os
annos mandarem preparar hũa náo das melhores que tem: a qual jũtamente com ir negocear
suas cousas ás partes Orientaes, leva tambem os peregrinos, que vaõ a Jerusalem a visitar a
Terra Santa, & ordinariamente fazem que esteja prestes pela Ascenção, ainda que
commummente naõ parte senaõ depois de S. Joaõ. Dia de Corpus Domini, na procissão, q
se faz com muyta solemnidade: estando já / 8 juntos os peregrinos, que haõ de ir, vay cada
hũ delles entre dous cidadões, & os peregrinos assinallados com as insignias de Jerusalem,
assim no peyto, como nos sombreiros, as quaes saõ desta maneira. Hũa comenda grande
com quatro pequenas metidas dentro no vaõ da grande. Acabada a procissaõ, tem por
costume aquelles nobres Cidadões convidarem aquelle dia os peregrinos cada hum o seu, &
os favorecem no que haõ mister todo o tempo, que na Cidade estão, antes que se
emembarquem: no que mostraõ huma devoçaõ Christianissima.
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CAPITULO II.
Do modo q tem os peregrinos na sua embarcaçaõ.
PReparada a náo que tenho dito, na qual haõ de ir os peregrinos, & posta nella
bandeyra com insignias da Terra Santa, tem cuidado os que haõ de ir nella de se
concertarem com o patraõ da nào, ou com o seu escrivaõ, que para fazer o concerto tem a
mesma authoridade: o qual preço se faz desta maneira. Os que querem ir á sua vontade,
tendo boa bolsa, cõmummente fazem o preço em quarenta atè cincoenta cruzados: & por
esta quantia fica o patraõ obrigado a lhe dar de comer, & beber à sua mesa, & quem o sirva
no q for necessario, & o cure, & na Terra Sãta lhe pague todos os tributos, e darlhes
cavalgaduras, quando caminharem por terra: & da mesma maneyra os haõ de tornar a
Veneza. Outros se concertaõ em dezoito, ou vinte cruzados, pouco mais, ou menos,
segundo o q cada hum da sua parte pòde accrescentar, ou diminuir. A estes taes naõ lhe daõ
de comer, mas pagaõ-lhe /
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os tributos na Terra Santa, & lhe daõ cavalgaduras indo por
terra. Outros que naõ tem possibilidade, ou por se quererem livrar de contendas, daõ
somente hũ cruzado por sua pessoa, & outro pela caixa, & fato, q levaõ, segundo o concerto
que fazem. Estes taes comem á sua conta, & pagaõ os tributos, & o mais necessario, & em
parte estes vaõ melhor, q os outros, livres de enfadamentos, se levaõ que gastar. O anno,
que passey á Terra Sãta,,[sic] partio a náo dos peregrinos a tantos de Julho, por algũs
impedimentos que teve: hum dos quaes foy, q havia de ir nella a familia dos nossos Frades,
que vay de tres em tres annos, a qual familia aquelle anno eraõ cíncoenta & cinco Frades: &
como eraõ de diversas Provincias, houve detença em se ajuntarem. E posto que eu era da
mesma familia naõ me embarquey cõ elles, mas fiquey em terra em companhia do Padre
Guardiaõ de Jerusalem, & partindo-se a náo nos partimos ambos caminho de Trento aonde
se celebrava o sagrado Concilio em tempo de Pio IV & expedidos nelle algũs negocios de
importancia tocantes á Terra Santa, por espaço quasi de tres mezes, nos tornamos a Veneza
a dar ordẽm a nossa partida, por se fazer prestes hũa náo para Chipre, na qual nos haviamos
de embarcar, & comnosco hũs oito Padres da mesma familia, q naõ podèrão chegar a tẽpo
para se embarcarem com os primeiros. Negoceado tudo o q convinha, assim para a Terra
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Santa, como para a nossa viagem, a Senhoria mandou chamar ao Padre Guardiaõ de
Jerusalem, Fr. Bonifacio d’Aragusa, que assim se chamava, & determinadamente lhe
mandou, que se naõ embarcasse por ser já inverno, no qual tempo os mares de Levante são
muy perigosos. Sentio muyto o Padre Bonifacio o tal impedimento, & dando por si /
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muytas razões, nenhũa lhe foy admittida, porque todos os Senhores Venesianos lhe tinhaõ
muyto amor, & reverencia, assim por sua muyta virtude, & grandes letras, como porque
havia já estado outra vez em Jerusalem por Guardiaõ hũs sete annos com grande exemplo
de sua vida, & naõ menos proveyto dos lugares santos, o que os Venesianos muyto bem
sabiaõ.
Vendo eu passar a cousa daquella maneira, & sabendo a grande necessidade com
que os nossos Padres da Terra Sãta viviaõ, por haver tres annos que de terra de Christãos
lhe naõ hia alguma provisaõ, offerecendo minha vida por meus irmãos, a quem ma deu, me
fuy ao Padre Guardiaõ, & lhe disse, que ainda que era inverno eu queria ir naquella náo, &
levar o socorro aos nossos Frades. Deume elle muytos agradecimentos com palavras de
amor pela vontade que vio em mim, & procurou tirarme daquelle trabalho, pondome diante
os mesmos perigos a elle postos, & partiriamos todos na primeyra náo, que partisse. Como
eu vi, que suas palavras procediaõ do amor q me tinha, naõ quiz desistir do que tinha
determinado. E vendo elle minha vontade naõ me quiz impedir a jornada: & logo me
mandou entregar toda a provisão, & matalotagem, q para si, & para os mais estava feyta,
com a qual, & com outras muytas cousas, que haviamos de levar para a Terra Santa,
começámos a dar ordem ao que tocava a nossa taõ perigosa como desejada viagem. E
porque toquey em baptizar aguas, quero declarar como se baptizaõ, por tirar escrupulo a
grosadores mal vistos. Antigo costume foy sempre nas terras maritimas da Italia naõ se
navegar para lõge dos quinze de Novembro atè o dia oitavo da Epiphania & isto com haver
grandes penas para quem fizer o cõtrario, sem licença: a qual naõ se com/cede 11, salvo com
manifestarem necessidade muyto urgente, como a manifestou o patraõ da náo, em que
fomos ; & querme parecer haver também excommunhaõ. O dia oytavo da Epiphania ao
tempo da Missa da Terça fazem certas ceremonias nas pias de baptizar, com orações, &
preces appropriadas áquelle officio, como vespera de Pascoa ao officio das fontes, as quaes
orações cuydo que andaõ no Pontifical Romano: o que tudo fazem em memoria, & honra
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do sagrado Baptismo de nosso Senhor JESU Chrifto. E dalli por diante todos tem liberdade
para navegarem da maneyra, que a cada hum parece.
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CAPITULO III.
De como partimos de Veneza para a Terra Santa.
DIa da bemaventurada S. Barbora; cuja festa se celebra aos quatro de Dezembro;
nos embarcamos no porto de Malamoch, cinco milhas da Cidade de Veneza, em a náo por
nome Sanuda, em querendo amanhecer: & a mesma hora em q entrámos, cõ prospero vento
de Ponente, se deu á vella, com alegria, & contentamento de todos; com o qual caminhamos
atè passar toda a Histria: & ao tempo que começamos de costear pela Dalmacia, patria do
bemaventurado Papa, & Martyr S. Cayo, & do glorioso Doutor S. Jeronymo, nos acudio
vẽto Sudueste, taõ forte, & aspero, q nos constrangeo a tomar porto, o qual se tomou em
hum lugar, chamado Cabeça de S. Pedro. Tanto q lançáraõ ancora: por estarmos muy jũtos
á terra, sahimos logo algũs fora por causa de buscar refresco, mas fomos enganados do
proprio desejo, /
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por ser a terra asperissima, & mais idonea para selvagẽs, que para
recreaçaõ humana. Ao dia seguinte, como o vẽto hia em crescimẽto, em amanhecendo,
tornamos outra vez a terra por gozar do terreno, o qual ainda q taõ aspero nos parecia mais
doce, que o recolhimento da náo, & fomos dar em hũas aldeyas, naõ muito desviadas do
mar, cujas casas eraõ sómẽte de pedra & barro, & algũas de pedra ensoço, cubertas de
palhiço. A gente em tudo muy differente de toda a outra de mim vista atè aquelle tẽpo.
Todos, assim homes, como mulheres, de grande estatura: seccos, descòrados, descalços, &
mal enroupados. O trage das mulheres, assim no vestido, como no toucado, ao modo das
Freyras Leygas de Sãta Clara, a q chamaõ veleiras, & andaõ por fora, & assim homẽs,
como mulheres vestidos de pardilho. Tive grãde contentamẽto em ver aquelle trage taõ
honesto, vindome á memoria a honestidade do nosso Portugal; por andar enfadado, & ainda
escandalízado de ver os deshonestos trages de Italia, aonde as mulheres todas andaõ em
corpo, & naõ com a honestídade q cõvem, posto que cada terra tem seu costume. Soubemos
que os moradores daquella terra se davaõ a criar gado, & outros á pescaria, no que
sustentaõ a miseria de sua vida. Achamos naquella gente hũa grandissima familiaridade, &
sobre maneyra domesticos. E posto que os naõ entendiamos de todo por ser sua lingoagem
Dalmaciana muy propinqua ao Grego, & Aragusca, porèm como os Venesianos tem com
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todas aquellas nações seus comercios, & tratos, sempre de hũa parte, & outra se entende, &
senaõ de todo, ao menos em parte & nas cousas commũas com mostras de muyto amor nos
convidáraõ da sua pobresa, & nos puseraõ em tres partes a mesa ás portas das casas da / 13
bãda de fóra, cõ passas, & figos secos, & paõ muyto aspero, & com o mais que tinhaõ, &
com muyta importunaçaõ nos rogavaõ, que tomassemos colaçaõ, a qual algũs dos nossos
aceytaraõ por lhe dar gosto, & satisfazerẽ sua caridade: & partindo-nos delles com lhe
darmos graças pelo amor, & familiaridade, q nos mostráraõ, nos tornàmos á nao já sobre a
tarde com esperãças de nos partirmos aquella noyte, por ser já acabada quasi toda a furia do
vento, & haver mostras de outro em nosso favor.
Á meya noite quiz o Senhor Deos satisfazer nossos desejos cõ tornar ponente, &
começáraõ de harpar, & levantar a ancora, & sobre a manhãa deraõ á vella, & seguimos
nosso caminho com bom vento, com o qual passamos toda Dalmacia, Bosna, Argentina,
Zara, Lifa, Cursula, & Meleda, Cotaro com as mais Ilhas, & terras, sogeitas á Senhoria
Daraguza. Viemos costeando a Macedonia, & Epíro; Albania, & Velona, terras ao presente
sogeytas ao Graõ turco. As linguas de todas ellas pela mayor parte saõ em si diversas, salvo
que os Araguzeos, & Dalmacianos, se entendem huns com os outros pela continua
communicaçaõ. Os Albaneses, & Epirotas commummente usaõ o Grego, ainda que estão
metidos, & criados com os Turcos: quasi toda a gente nobre falla a lingua Turquesca. De
todas estas partes, & Provincias, & em especial do Epiro, Albania, & Macedonia todas as
pias de baptizar saõ obrigadas cada hum anno a dar certas crianças de tributo ao Grão
Turco, as quaes elle manda criar com muyto cuydado, & diligencia, & doutrinar na bruta, &
maldita seyta de Mafamede, & instruir em todas as boas artes de cavallaria, & a pelejar com
toda a maneyra de armas, & estes saõ os que chamão Genizaros, & nelles princi/palmente 14
consiste toda a força do Graõ Turco, porque cõ elles faz guerra a todo o mundo, & delles se
serve em particular no governo, assim da Corte, como em o de todos seus Reynos: &
segundo o esforço, valentia, & virtude de cada hum, lhe dá pelo tempo os officios, honras,
& dignidades em todos seus Reynos, & Senhorios, que lhe parece elles merecem. A hũs faz
Baxás, que he dignidade suprema, posto que tambem nestes haja serem aventajados, porque
saõ como Vice-Reys das Provincias, & Reynos, como o Baxá do Egypto, que he muy
grande Senhor; & o de Palestina, que comprehende muyta parte de Suria. E destes Baxás ha
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quatro, que governaõ a Corte. A outros faz Sanjacos, que saõ governadores das Cidades, &
seus termos. A outros Berlebis, Chaufes, Cabdis, que saõ como Corregedores, & justiças
mòres das Cidades, & assim outros officios muitos de honra, & proveyto, confórme ao
merecimento de cada hum. E pelo mesmo tem seus accrescẽtamentos de hũa dignidade a
outra. Nem ha outros alguns Senhores nem estados de Duques, Marquezes, ou Condes, em
todos os Reynos do Graõ Turco senaõ estes, que com serem taõ grandes Senhores, & taõ
poderosos, todos saõ seus escravos, & por esta causa, se naõ fazem em seus officios, &
governos o q devem, os tira, ou manda matar, se lhe parece, sem haver quem lho
contradiga. E os que servem fiel, & louvavelmẽte, os promove de hũa dignidade pequena a
outra mayor, nem dá ordinariamente estes officios, senaõ por tres annos.
Assim que passando toda a dita Albania, com diversidade de portos, lugares,
Cidades, entre as quaes a muy famosa Castoria, edificada dentro na agua, como a rica
Venesa, viemos ter á Ilha de Corfu, a qual está / 15 tão propinqua á terra do Turco, que entre
hũa, & outra, sómente se mete hum estreyto canal: em tanto que as náos que por elle entraõ
em nenhũa maneyra pòdem dar volta : & haõ mister hum vento para entrar, & outro para
sahir: o q causa muytas vezes estarem alli detidas, sem poderem fazer viagem, salvo sendo
ajudadas das galès que alli tem de contino a Senhoria Venesiana, para guarda, & defensaõ
da Ilha, as quaes saõ ordinariamente vinte & cinco atè trinta. Deseja muyto o Graõ Turco
ter por sua esta Ilha de Corfu, por estar taõ propinqua ás suas terras: & já foy huma vez em
pessoa com todo seu poder para a tomar em tempo que Andrè Doria, & Barba Roxa eraõ
vivos, os quaes ambos se acháraõ naquelle cerco, hum para a ajudar a tomar: & o outro para
a defender: mas quis nosso Senhor por sua misericordia livralla.
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CAPITULO IV.
Da Ilha de Corfu & do que nella passamos.
COrfu assim chamada naquellas partes, & nestas nonas Occidentaes Gulfó, he hũa
Ilha de Gregos, sugeita a Venesianos, & pela mesma causa obediẽte á Igreja Romana,
situada na entrada do Mar Adriatico. Tem hũa Cidade muy principal, a qual tambẽ chamaõ
Corfu, como a mesma Ilha. Dẽtro na Cidade ha duas Igrejas Cathedraes, hũa q faz a Latina,
& a outra a Grega. A q faz a Latina seguem, naõ sómente os Venesianos, & Latinos mas
tambẽ todos os Gregos nobres, & gente principal, porque nisto se querem mostrar melhores
Christãaos, & mais fieis á Se/nhora 16 Venesiana, cujos subditos saõ. A quem faz a Grega,
segue a gente cõmũ, & popular. As mais Igrejas, assim da Cidade, como da Ilha, & lugares
della fazẽ a Grega. Ha dẽtro na Cidade hũ Mosteyro de Caloiros Gregos, & outro de Frades
de S. Francisco observantes. Tẽ a Cidade dous castellos fortissimos juntos do mar, & tão
inexpugnaveis, q se affirma, naõ haver outros naquellas partes de tãta fortaleza, os quaes cõ
grãdissima guarda, & vigilãcia estão de contino a põto de guerra, & assim lhe convem. Faz
a Senhoria Venesiana tanto caso desta Ilha, que da hora que elegem qualquer dos Capitães
daquelles castellos, naõ se podem mais ver, nem escrever, nem mandar recado, hum ao
outro sobpena de vida, & sobre isto tem grandes espias. Moraõ nesta Cidade, & em toda a
Ilha muytos Judeos em sua liberdade, mas naõ saõ Portugueses, nem Castelhanos, como cá
muytos cuydão, mas saõ Gregos, & Italianos. Tem hũa muyto grande, & bem concertada
Synagoga, aonde se ajuntaõ aos Sabbados, & as mais festas da ley velha. Vimos alli
circuncidar hũ menino em casa de seu pay, a cuja circuncisaõ se ajuntáraõ mais de cem
Judeos, & lembroume a pouca solemnidade, com que os Christãos levaõ a baptizar seus
filhos, que pela mayor parte, se naõ he alguma criança, filho de pessoa nobre, naõ a
acompanhão, salvo os padrinhos, & quando muyto, outras tres, ou quatro pessoas, & naõ
sómente os Judeos, mas tambem os Mouros, & Turcos nas suas circuncisoẽs fazem grande
solemnidape, & por nossos peccados, quando levaõ hum ao Baptismo, ha muy poucos, que
dem graças ao Senhor, por haver hum Christaõ no mundo.
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Vendo meu companheyro (o qual era hum Padre de muytos merecimentos, que de
Hespanha havia ido ao /
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sagrado Concilio de Trento, em companhia de outro Padre
doctissimo de nossa familia franciscana, por nome frey Francisco Orantes, que ao mesmo
concilio foy em nome do Bispo de Palencia, onde escreveo doctissimamente cõtra o herege
Calvino: & depois Sua Magestade o fez Bispo de Oviedo; o qual meu companheyro
tomando em Trento comigo particular amisade, se determinou aceitar minha companhia em
tão santa jornada), vendo, como fica dito, yr tantos judeos juntos, & sabendo a que hiaõ,
pedio-me, que quizessemos yr com elles, se no lo permitissem. Pergũtamos-lhe ambos, se
nos queriaõ, deixar ir ver aquelle acto, alegremente nos responderaõ, que eraõ muyto
cõtentes, & que se naõ tinhamos visto outro acto semelhante, acertariamos em o ver. E assi
fomos com elles atà a casa do pay do menino, que havia de ser circuncidado; a qual
achámos cheya de homens, e mulheres, que se ajuntáraõ para celebrarem a festa, & fomos
delles, & dellas recebidos cõ tanto amor, & caridade, como se foramos de muyto tempo
conhecidos. Naõ escrevo aqui o modo que se teve naquella circuncisaõ, nem as ceremonias,
que nella usáraõ, assi por serem já reprovadas, & repudiadas do Senhor Deos, depois que
por sua Divina misericordia teve por bem darnos a ley de graça, fóra da qual naõ ha
salvação; como por naõ dar motivo a alguns judeos do nosso tempo, a que com curiosidade,
ou sua pérfida obstinação, queirão saber, o que lhe naõ pertence : mas naõ deixarey de dizer
a muyta singeleza, com que muytas judias moças diante seus pays, & mãys, se encostavão a
nòs, vendo com muyta attenção o que fazia o Rabbi, quando circuncidava o menino, que
com seu choro nos fazia lastima. Acabada a festa, perguntáraõ-nos os judeos, que nos
parecia: /
18
ao que respondemos, que a circuncisaõ na Ley velha avia sido santa, & como
tal dada por Deos; mas que ao presente nos parecia ceremonia de gente cega, perfida, &
obstinada. E ainda que lhe dèmos esto desengano tão claro, naõ deyxárão por isso de terem
com nosco muytos comprimentos, & nos fazerem muytos offerecimentos, com os quaes
nos despedimos delles com proposto de nos naõ acharmos mais presentes em outro
semelhante acto.
A Ilha de Corfu, ou Gulfó, he fertilissima, & muy abundante de estremados
azeytes, & vinhos, dos quaes ha carregação para muytas partes. O paõ he muy aspero, & de
roim sabor, & o pior q vimos em todo Levante. E tanto, que o tempo, que na Ilha
15
estivemos, tomamos por partido comer antes do biscouto, que na náo levavamos. Tem a
Ilha muytas, & muy grossas carnes, & muytas fruytas no tẽpo, de toda sorte; & com o mar
de Levante em muytas partes ser falto de pescado, aqui naõ falta de toda maneyra. Em hũa
parte do canal, que tenho dito, dentro na terra do Turco, tem os Venesianos hũa grandissima
pesqueyra ao modo de viveyro, aonde trazem infinito peyxe, que rende á Senhoria muyta
quantidade de dinheyro. O peyxe pela mayor parte são tainhas, & naõ he bom, por estar
naquelle viveyro retido, misturado com algũas cobras, & outras immundicias, mas muytos
folgaõ com elle : & eu vi Turcos virem-no comprar. Mas o principal delle saõ as ovas, das
quaes, mais que do peyxe se aproveytaõ. Tiraõ-nas, & põem-nas a curar, & a seccar, & saõ
muyto estimadas em todo Levante. E muytos mercadores vem cõprar o peyxe, & tiradas as
ovas, ás quaes chamaõ butargas daõ livremente a quem o quer. Muytas pessoas o comem
escallado, & posto a enxugar, / 19 & depois com alho, porque desta maneyra o tem por bom.
Estivemos alguns dias naquella cidade por causa, que os da náo tirárão algũas mercaderias
que deraõ, & meteraõ outras, outras que compráraõ; o que me naõ pesou pelos desejos que
tinha de ver terras, & ritos estranhos.
16
CAPITULO V.
De como nos partimos de Corfu para Candia, & do que no caminho passamos.
NEgoceadas em Corfu todas as cousas necessarias, & tendo tempo prospero,
levantáraõ ancora, & deraõ vella com alegria de todos, & seguindo nosso caminho,
passamos junto da Ilha chamada Zafalonia tambem de Venesianos, mas como naõ tinhaõ
nella que fazer passamos de largo. Ao dia seguinte tomamos porto em a ilha, & cidade,
chamada Zante, tambẽ de Venesianos, mas naõ sahiraõ fóra da náo senaõ o escrivaõ, &
dous, ou tres mercadores, & eu com elles por pura curiosidade de ver. Tẽ a cidade Zante
hum inexpugnável castello, & ha nella hum mosteyro de frades de S. Francisco da
observancia, dedicado á Virgem nossa Senhora. Alli nos disseraõ que avia pouco mais de
quinze annos, que abrindo hũ alicesse para fazerem hum pedaço de cerca do mosteyro, foy
achada a sepultura de Marco Tulio Cicero. Dentro da qual acharaõ dous vados de vidro
muyto maciço, hum dos quaes era hum palmo comprido, de feição espherica de oyto faces,
& este estava cheyo de cinza de seu corpo, que depois da sua morte foy queymado, como
era costume /
20
entre os antiguos. A outra vasilha era algum tanto mais pequena, feyta ao
modo de hum frasquinho, na qual aviaõ estado as lagrimas dos amigos, os quaes naquelle
tempo costumavaõ juntarse, e lançar suas lagrimas em hum vaso; o qual se enterrava
tambem com o vaso das cinzas. Tinhaõ estes vasos seus letreyros, o da cinza tinha estas
palavras: Urna cinérum, vaso das cinzas, o das lagrimas: Urnula lachrymarum amicorum,
vaso das lagrimas dos amigos, que parece tivèra algũ licor. A cubertura da sepultura era
feyta em quadro, & mal lavrada, na qual estavaõ entalhadas estas letras. Ave M. Tull.
Cicer. Et tu Tertia Antonia. Repousa em paz M. T. Cicero, & tu Antonia, sua terceyra
mulher; & no fundo da vasilha, onde estava a cinza, estão escritas estas letras. Ave M. Tul.
Repousa em paz. Marco Tullio. Já quasi noyte nos tornamos a recolher, & dando vella
seguimos nossa rota. Ao dia seguinte indo navegãdo com vento prospero ao longo da
Morea, de muytos dita Negroponte, á hora de vespora nos sobreveyo vento contrario, de tal
maneyra, que nos conveyo tomar porto, o qual de necessidade havia de ser em terra de
Turcos, & entre gente de pouca verdade, pelo que o patraõ, & os mais que sabiaõ o porto, &
17
conheciaõ o modo da gente mostravaõ muyta tristeza; mas quis o senhor Deos por sua
infinita misericordia, que estando para lançar ancora, nos tornou o mesmo vento que antes
traziamos, pelo que com muyta alegria seguimos nosso caminho. Tornando a caminhar ao
longo da Morea, ou Peloponeso, terra muy rica, & fertilissima, aqual foy já de Venesianos,
& agora por nossos peccados he do Graõ Turco, terra de grandes cidade, & povoações, da
qual se soe dizer naquellas partes, que se naõ pòde tomar a Morea sem a Morea, querendo /
21
dizer nisto, que por sua grande fortaleza será impossivel tomalla: salvo com
consentimento dos mesmos da terra, polla grande multidaõ que em si tem de gente assi de
pé, como de cavallo. Estão dentro na Morea ao longo da costa Corron, & Modon, duas
inexpugnaveis fortalezas, que já possuiraõ Hespanhoes. Esta terra da Morea he feyta ao
modo de hum Polpo com muytas pernas. Dentro nella, a saber, na parte a que chamaõ
Achaya, está a cidade Patras, onde o glorioso Apostolo Santo Andrè padeceo martyrio.
Também a famosa Corintho em outro tempo taõ riquissima, & abundante de todas as
delicias do mundo, habitada de vicios, & de gente viçosa, agora quasi immemoravel, com
sómente aver nella hũ castello com gente Turquesca de guarnição, & o mais he huma aldea
ornada com cabanas de pescadores. Alli mesmo na Morea da outra parte do Archipelago,
está Athenas, & Napoles de Romania com toda a terra dita Malvasia, da qual por muytas
partes do mũdo vão os delicados vinhos, aos quaes chamão Malvasia, por serem daquella
terra, assi chamada, tão usados dos Venesianos, & tão estimados por todo Levante, & muy
differentes dos que cá nestas partes chamão Candia. Seguindo a rota do nosso caminho,
passamos ao longo da ilha, chamada Sapiencia, na qual affirmaõ os Gregos, que estava a
fermosa, & adultera Helena, mulher de Menelao, Rey daquella parte de Grecia, quando do
adultero Paris, naõ muyto contra sua vontade foy roubada: do qual latrocinio se seguiraõ
tão crueis e estranhas guerras, como no las pintaõ muytos historiadores antigos. Deyxãdo
esta ilha Sapiencia á maõ esquerda com outras muytas de Gregos sujeytas ao Graõ Turco,
começámos de navegar junto á boca do Archipelago, mar crudelissimo, & o mais
peri/rigoso [sic]
22
de todo Levante, por causa do mar mayor, ou negro, a que tambem
chamaõ, Pontus Euxinus, origẽ, & principio deste archipelago; o qual mar negro, sem ter
algũa sahida para outra parte, digo para as partes Orientaes, se estende por espaço de
quatrocentas legoas, costeando sua praya do Ponente ao Levante, muyta parte da Moscovia,
18
Russia, & Tartaria. Ao oriente deste mar cahem os Reynos de Goth, & Magoth, & a grande
lagoa Meothis causada das muytas aguas do graõ rio Tanais; a qual lagoa entra, & está
unida com este mar negro. Entra tambem neste mar por cinco partes o rio Danubio, que he
hum dos mayores do mundo; a lagoa Meothis tem settenta legoas de comprido, & trinta de
largo, & defte mar negro, ou Pontus Euxinus, ao mar Caspio são cento & vinte cinco
legoas, na qual paragem vaõ muytos Reynos, & Provincias riquissimas, a nòs de todo
incognitas. Ao ponente tem o mar negro o Imperio de Trapisonda, & a Gorgia. Ao noroeste
está Constantinopla, & para o norte, estão os estados de Molgavia, & Bulgavia, com
diversidades de Reynos, & terras, de que cá naõ temos noticia. Constantinopla está bem na
bocca do dito mar mayor da parte do archipelago jũto ao Hellesponto, no qual lugar Ovidio
nas suas fabulosas epistolas diz haver acontecido a historia de Leandro, & Hero, & atè o dia
de hoje se vem os vestigios das cidades Abydo, & Sesto de hũa, & outra parte situadas ao
longo do mar. Tem o Hellesponto, que he hum estreyto de mar, que divide Europa da Asia
oitocentos passos, q (segũdo os Gregos dizem) saõ quanto hũ boy pòde nadar, pelo q os da
terra lhe chamão Bosphoro, & por causa dos grandes, & tempestuofos ventos, que do mar
negro ou Euxino sahem pelo Bosphoro ao archipelago, sempre, ou quasi /
23
sempre ha
nelle tempestades na outonada, inverno, & primavera. E como he accupado, & cheyo de
muytas Ilhas, as quaes saõ chamadas Cycladas, correm as náos, que por elle navegaõ muito
perigo. Tem este archipelago alguas sahidas, ou boccas, mas as princípaes saõ duas, huma
está do Zante para Candia, depois que passaõ a Morea, que tambem se chama Peloponeso,
& Negroponte. A outra està de Candia para Escrapanto, & Rhodes, que fíquã quasi
atravessadas na bocca, indo para Chipre. No principio da primeyra, na costa do Peloponeso,
dentro no Archipelago está Athenas, mãy & mestra de tantos, & taõ insígnes Filosofos, q
bem se podia chamar princesa das letras. Agora por memoria do q foy, sustenta nella o
Graõ Turco hũ estudo de Gramatica Grega. A compridã ou longura deste archipelago, saõ
cento & cincoẽnta legoas, pouco mais, a largura quasi cincoenta, & todo taõ cheyo de Ilhas,
& Ilhotes, que sòmente as povoadas passaõ de cento & cincoenta, nas quaes por serẽm
grandes, vivẽ nellas muytos Christãos Gregos. Entre ellas está a muy sagrada Pathmos, dos
Gregos vulgares chamada Pathimos, & dos nossos Palmosa, na qual o glorioso Evangelista
S. Joaõ, amado do Senhor Jesu, Deos, & Redemptor nosso, que na ultima Cea mereceo
19
descançar sobre o seu peyto vio as divinas revelações do Apocalypse: & nella ao presente
está hũ mosteiro de frades Gregos, a q chamaõ Caloiros. Está também a rica Xio, atè estes
nossos tempos possuida dos Genoveses, da qual procede a família Justiniana, taõ affamada
& illustre por toda Italia. Está Samo, & está Palia naquellas partes muy nomeadas, nas
quaes se faz a mais, & melhor louça de barro, q ha em todo Oriente, & dalli se leva para
muytas partes. Todos os que moraõ nestas ilhas, /
24
por seus peccados estão apartados da
obediencia da S. Madre Igreja Romana, & sogeytos ao falso patriarca Grego, q sempre está
de assento em Constãtinopla, pelo q permitte nosso Senhor as mais destas Ilhas serem de
contino avexadas, & saqueadas das galés do Turco, que já mais sahem deste archipelago. O
Negro Ponte he assi chamado, porque com ser hũa terra muito grande, & de muytas
Cidades, & povoações, está toda metida no mar, & fica sómente ligada com a terra firme
com huma lingua de terra cõprida, & muy estreyta, á maneyra de hũa ponte. Da outra parte
do Archipelago indo de cà para Constantinopla á maõ direyta ao longo da costa de mar
Pamphilio, que assi se chama naquellas partes: algũ tanto, dentro na terra estaõ Laodicea,
Filadelphia, & Smyrna, & as mais Igrejas que o glorioso Evangelista nomea no seu
Apocalypse, as quaes todas caem no principio da Asia menor. Mais adiante indo costeando
para Constantinopla, está o espaçoso, e largo campo, onde os Gregos com os Troyanos
tíverão suas crueis batalhas, brigas, & desafíos, segundo a fama do vulgo, & as escrevem
muytos autores antigos, & as trata Homero; louvando as vitorias de Ulysses. Duas legoas
deste lugar estaõ os vestigios, & ruinas de Troya, que mostraõ quam grandiosa, & populosa
aja sido em outro tempo aquella Troyana Cidade, a qual ainda agora tem muyta povoaçaõ,
assi de Turcos, como de Gregos, & pessoas dignas de Fè, me affirmáraõ ter ao presente
quasi quinze milhas de cerca, & dos navegantes Italianos, saõ chamados aquelles campos,
Lidi Troiani, que quer dizer prayas Troyanas.
Saõ tantas as antiguidades, casos, & acontecimentos, que no tempo da gentilidade
passáraõ nas Ilhas, & lugares, q estaõ dentro no mar deste Archipelago, & nas / 25 terras do
seu circuito, q quasi todos os historiadores antigos Gregos, naõ trataõ de outra cousa: &
porq muy poucos navegantes passaõ por elle, ou por junto das suas duas boccas principaes,
de q já tratey, sem se deyxar de observar nelles aquillo do Ecclesiastico, a saber: Qui
navigat mare: enarrat pericula ejus, & audientes auribus nostris, admirabimur. O que
20
navega pelo mar, conta seus perigos, & nòs ouvindo-lhos contar nos maravilhamos. E
escreverey aqui hũa crudelissima tormenta, que passamos na bocca deste Archipelago, indo
do Zante para Candia, causada de hum deshumano sul, & grandes chuiveyros. Estando nòs
já quasi sobre Candia, hum dia sobre a tarde, foy taõ grande a tempestade de vento
contrairo; chuiva, & relampados, que os mais experimentados no mar, que hiaõ na náo,
começáraõ a temer, & os poz a tormenta em gradissimo espanto. Chegou a cousa a tanto,
que o patraõ, e os principaes que na náo vinhaõ pediraõ com muytas lagrimas confissaõ. As
ondas eraõ taõ grandes, que nos parecia estarmos no profũdo, vendo-nos de toda a parte
cercados dellas, como de altos muros. O Padre meu companheyro, como pessoa, que em
sua vida naõ avia visto mar, jazia como morto, & todo seu negocio era confissão, como
boamente podia. Durou esta cruel tormenta, tres dias com suas noytes, no qual tempo,
sómente com o traquete davante, andamos sempre payrando ao mar, fugindo todo o
possivel da terra, com o tento a naõ nos apartarmos muyto della, nem a perdermos de vista.
E posto que se trabalhou muito por se tomar porto, em nenhũa maneyra nos foy possivel,
affi polo naõ aver naquella parte da Ilha, como pola grande força do vento que nos naõ dava
lugar para o tomarmos em outra. / 26
Andando assi com tanto trabalho, & perigo, esperando a misericordia do senhor
Deos, a qual de contino invocavamos, ao tempo que nos parecia querer abonançar a
tormenta, nos quebrou o traquete da gavia. Em todo este tempo, nenhum de nós se movia
de seu lugar, & quanto avia na náo, ainda que hia muyto bem allojado, andava de hũa parte
para outra.
Para os marinheyros, & officiaes da náo, mandou o piloto lançar duas cordas de
popa á proa; cada huma de seu bordo para se apegarem nellas quãdo fosse necessario
acudirem a algũa parte: porque de outra maneyra era impossivel poderem-se ter. Em todo
este trabalho naõ nos faltou a misericordia divina, pela qual, & por nossas lagrimas movido
o senhor Deos nos acudio com suas costumadas merces, imperando, & mandando cessar
aquelle cruel, & importuno sul, dando em nosso favor outro vento prospero, com o qual se
acabou aquella tempestade: & se aquietáraõ nossos animos, & se alegráraõ nossos
coraçoens: & logo o patrão mandou cantar a Salve Regina, com outras orações, que os
Venesianos costumaõ nas suas náos: dando todos graças á Divina clemencia, por nos aver
21
livrado de tão grande trabalho. Indo a náo orçando ao longo da Ilha, porque tanto como nos
vimos com bonança, puzeraõ-se em ordem de buscar porto, para se recuperarem, &
descançarem: vimos vir pelo mar alguns corpos de homens mortos que parece naquella
tormẽta se aviaõ perdido: a vista dos quaes turbou em grande maneyra a nossa, & nos
encheo de temor, vendo-nos livres de outro tanto. Logo o patraõ mandou tocar a trombeta
dá náo: & acudindo todos por saber o que queria: mandou a cada hũ rezar tres vezes o Pater
noster, & Ave Maria pollas almas daquelles defuntos, /
27
o que foy de todos com boa
vontade comprido, com o qual alguns resáraõ outras particulares orações, louvando ao
Senhor Deos, que para sempre vive, & reyna. Amen.
22
CAPITULO VI.
De como tomàmos porto na Ilha de Candia.
AO dia seguinte, ás nove horas da manhãa, tomàmos porto na Ilha de Candia, em
hum lugar abrigado, e defendido de alguns ilhotes, ou escolhos, chamado Cauda Leonis,
que quer dizer, rabo de leaõ, naõ muyto distante de outro, chamado Bom Porto, onde com
outra, semelhante tempestade como a nossa, se acolheo a náo Alexandrina, que de Listra
pelo mar Pamphilio navegava para Italia, indo nella preso o Apostolo S. Paulo como o cõta
o glorioso chronista S. Lucas na sua sagrada Historia dos Actos Apostolicos. Estavaõ
naquelle porto, recolhidas cinco náos da tempedtade paddada, duas eraõ Francezas de
dentro de Marcelha, as quaes vinhaõ do Egypto, da Cidade de Alexandria, carregadas de
especiaria. Salvàmo-las com alguns tiros, & muyta festa, & ellas da mesma maneyra a nós,
& logo vieraõ os seus bateis com gente ao bordo da nossa náo para nos ajudarem: as outras
tres nàos eraõ de Sclavonia. Em lançando ancora sahimos em terra, por causa de recreação,
& por nos aliviar do trabalho, & enfadamento passado. Aquelle mesmo dia já quasi sol
posto, vieraõ á nossa náo dous caloiros de hum mosteiro seu, que estava dalli duas legoas
pequequenas [sic], & trouxèraõ ao patraõ refresco de paõ mole, verdura & fruita de
espinho, & foraõ delle, & dos mais /
28
da náo recebidos com muyto amor, &
agradecimento da visítaçao, satisfazendo-lhe com retorno, assi o trabalho do caminho,
como o presente, do qual todos participamos. Despediraõ se de nós, promettendo-nos de
tornarem ao Domingo seguinte, para com elles irmos ver o seu mosteyro, & da maneyra
que o promettèraõ o compriraõ, como ao diante direy.
Antigamente, & ainda agora entre Latinos esta Ilha Candia era chamada Creta, &
os Gregos atè o dia de hoje lhe chamaõ Crittis, he Reyno de Coroa. Muyta parte delle he
montuosa, tem pouco paõ, mas he abundantissima de vinhos em particular muyto moicatel,
a q nestas partes chamaõ Cândia; a qual ordinariamente na Ilha naõ he taõ perfeyta, como
depois que passa o mar, & dizem elles que pelo mar se vem purificando: porque quando a
tiraõ da Ilha he turva, ainda que a velha he excellentissima; & além desta Candia tem outros
muytos vinhos delicadissimos. Tem esta Ilha de Candia muyto gado, de cujo leyte fazem
23
queyjos em tanta copia, que carregaõ náos para muytas partes. Costumaõ dizer os
Candiatos, q a sua Ilha abunda tanto de leyte, como de vinho: porèm o queyjo pela mayor
parte he malissimo, secco, & de má chaçaõ, & muyto salgado, os queyjos muyto grandes, &
mal feytos. Ha em toda a Ilha muyta caça de toda que se busca, muytas cabras silvestres, ou
montezes, infinidade de perdizes. A gente no exterior mostra ser muy domestica, amigável,
& de boa conversaçaõ com os estrangeyros: mas a verdade he serem inimigos mortaes dos
Latinos: nem ha que fiar delles nesta parte. Todos nesta Ilha saõ Gregos, & sogeytos no
temporal à Senhoria Venesiana, & no espiritual à Santa Igreja Romana: porèm fazem suas
ceremonias, & officios divinos ao teu modo Grego, /
29
como nas outras partes onde naõ
tem esta sogeyçaõ. Os clerigos saõ casados, & muy pouco devotos da Confissaõ: a gente
nobre & fidálga, ainda que saõ Gregos de nação, fazem à Latina, & se mostraõ muy
devotos para com a Santa Igreja Romana, & de taes se presaõ, mas o que na verdade se
sente delles, he porque os Venesianos os estimem, & tenhão em conta : & os admitão aos
officios, & dignidades da Republica, & os tenhão por fieis a Senhoria: mas eu pelo muyto
que nelles enxerguei, & notey nelles o tempo que os tratey, acerca do ódio mortal que tem
aos Latinos, a nenhum delles dey, nem darey credito, & em especial a estes de Cândia, que
saõ malissimos: dos quaes o vaso escolhido do Senhor, S. Paulo Apostolo, escrevendo a seu
amado discipulo Tito, disse, aver dito delles hum seu Profeta: Cretenses semper mendaces,
malæ bestiæ, ventres pigri; & accrescenta o glorioso Apostolo, confirmando isto, &
dizendo: Testimomium hoc verum est. Commummente são inclinados os desta Ilha ao vicio
nefando. Deste porto aonde surgimos á cidade principal, a qual tãbem se chama Candia, saõ
dez legoas, a qual está da outra parte do archipelago ao norte, & esta sómente he a largura
da Ilha: de comprido tem sessenta legoas, pouco mais, & por aqui se julgará qual será o seu
circuito. Tem a cidade de Candia hũa Sè Cathedral muy grande, & fermosa, que faz a
Latina: & tem outra que faz a Grega. Ha na Cidade quatro conventos das quatro ordens
mendicãtes, entre os quaes he muy sumptuoso o dos Frades Menores da observancia, o qual
tem hum coro de cento & vinte cadeyras, feyto com muyta curiosidade: neste Convento se
criou o Papa Alexandre V, o qual, como conta Platina, avendo sido antes Arcebispo de
Milaõ, & depois Cardeal: pola sua / 30 grande liberalidade, & continuas esmolas, costumava
dizer sendo Papa, que fora Bispo rico, Cardeal pobre, & Papa, pedinte.
24
Tem a Ilha outras duas Cidades, huma chamada Refermo, & a outra Canea: &
outras muytas víllas nobres, & lugares. Antigamente foy esta Ilha de Candia muy povoada,
& muy celebre no mundo. Della escreve o glorioso Santo Antonino no seu Historial aver
tido cem Cidades, dizendo por estas palavras: Creta insula Græciæ pars est ingens contra
Peloponensem: ibi absconditus est Iupiter, & nutritus fuit autem quondam centum urbibus
nobilis: unde & Cẽtopolis dicta est. Prima Remis, & fagittas cliaruit: prima literis jura
fixit, equestres turmas prima docuit: studium Musicum spondeis. & Dactilis in ea cœptum
est. In ea nullus serpens, nullus lupus, nulla noctua, & alia multa, &c. A Ilha Candia he
hũa grãde parte da Grecia defronte da Morea, nesta Ilha esteve Jupiter escondido, & aqui
foy creado. Teve antigamente esta Ilha cem cidades pelo que foy chamada Centopolis,
palavra Grega, que quer dizer, cem cidades. Esta foy a prymeyra q floreceo em Remos, &
Settas: & a primeyra que deu leys, & a primeyra que usou gente de guerra a cavallo. Nesta
se começou primeyro o exercicio da Musica em versos espõdeos, & dactylos, nesta naõ ha
serpente, nem lobo, nem curuja, nem outros animaes semelhantes. Nem ainda outro algum
animal peçonhento, salvo hum malissimo genero de aranhas. Da parte do meyo dia, ou Sul,
aonde tomamos porto, he muyto montuota, & aspera. Tem grandes matas da ciprestes, dos
quaes tiraõ, & fazem muyta madeyra para navios, & barcos, para caixas, & mesas, &
daquella parte moraõ, & habitaõ homẽs, como salvagens, / 31 os quaes se sustentaõ de caça.
Estes já mais vaõ a povoado, pelejaõ muytas vezes com fustas de Mouros cossarios, que
por alli acodem a roubar, Descarpanto, Episcopia, & Rodes, & de outros lugares
propinquos a esta Ilha de Candia; mas com os Venesianos, quanto ao que entendi, se
mostraõ muy domesticos: ou por serem senhores da terra: ou porque os haõ mister quando
vem aportar áquellas partes: ou porque as náos Venesianas andaõ muy bem artilhadas, &
nunca nos taes portos sahem em terra, senaõ a muyto bom recado, como eu vi nos dias, que
alli estivernos, porq algũas vezes que a gente da náo de serviço, sahio a buscar lenha, ou
agua: foy sempre muy bem acompanhada de arcabuzeyros. Tres homẽs destes vieraõ á
nossa nào, a vender carne montesinha, entre os quaes veyo hum em extremo domestico, &
gracioso, que com todos queria gracejar, zombar, & tirar palha: & fazia o possivel por dar
Fè de quanto havia na náo, andando debaixo para cima, & de cuberta em cuberta: & ainda
que alguns o convidárão, nunca com elle podèraõ acabar, que deixasse da mão o arco, &
25
settas que trazia. Eu naõ o entendia, posto que gostava, & com attençaõ notava o como elle
andava recatado: mas entendiaõno os officiaes da náo, que os mais eraõ Gregos de naçaõ,
& muytos passageyros, que alli hiaõ, naturaes da Ilha de Chipre. Esta falta tem as náos
Venesianas, que quasi todas trazem pilotos, & os mais officiaes Gregos. A causa disto
procede, que como as mais das terras, que naquellas partes tẽ, saõ maritimas, & de Gregos,
daõ-se elles á arte de navegar, vendo que com ella se aproveytaõ nas ditas náos. O trage
destes homẽs, que vivem como salvagens, comummente he hum modo de samarraõ sem
mangas, feyto de couro de veado crù, de/bayxo
32
hũa aspera camiza; naõ trazem bragas,
mas humas botas de vacca crua, taõ altas, que as atacaõ junto da cinta, na cabeça, hum
modo de carapuçaõ, também de couro crù, que lhes serve, assim de os cubrir, como de os
defender, em tempo de necessidade; naõ sabem sair fóra das covas aonde moraõ, sem arco,
& settas. Os cabellos da cabeça taõ compridos, que lhe vem ao meyo das espadoas, o que os
faz parecer disformes, & ser tidos por salvaticos, ainda que sua vida bestial lhe dá tal nome
por viverem apartados da humana conversaçaõ dos outros homens, & como animaes brutos
entre as brenhas, & matas. Mas porque sua conversaçaõ, & trato grosseyro me naõ impida
ir por diante com este meu Itinerario, tratando de sua barbara vida, & bestiaes costumes,
quero-os pòr de parte seguindo minha derrota: & escrevendo outras particularidades, que
vimos nesta Ilha, & do modo de viver dos seus Caloiros.
26
CAPITULO VII.
De como tornàrão a nòs os Caloiros, como nos prometterão: & nos fomos com elles ao seu
Mosteyro.
AO Domingo seguinte pela menhaã, tornarão á náo os dous caloiros do mosteyro,
que atraz fica dito, para nos levarem comsígo, como nos tinhaõ promettido. Recebemolos
com muyto amor, & caridade, & lhe demos refeiçaõ na nossa camara. Depois de comer
ajuntáraõ-se com nosco quatro fidalgos Chipriotes, que vínhaõ na náo, & com elles outros
cinco Gregos passageyros, que tambem hiaõ para Chipre, & todos juntos pedimos licença
ao patraõ para irmos com os / 33 Caloiros ao seu mosteiro. O patraõ com muyta cortesia no
la conçedeo, dizendo que tambem fora comnosco de boa vontade, se o porto estivera seguro
de cossairos, que muytas vezes acodem por aquellas partes, mas que nos rogava
tornassemos com a brevidade possivel. Partidos da náo, já que seriamos hum grande tiro de
arco, veyo correndo apoz de nòs hum homem da náo, que naõ soube da nossa partida; o
qual era nosso familiar: & chamando ao padre meu companheyro, & a mim, nos rogou com
muyta efficacia, q naõ quizessemos ir cõ aquelles Gregos: porq indo com elles hiamos em
risco de naõ tornar. Hũ daquelles fidalgos; parece que entendeo algũas palavras, &
sospeytando a cousa, se agastou muyto, & disse, aquillo eraõ maliciosas novidades; porque
onde hia gente taõ honrada, naõ havia que temer: & dando eu os agradecimentos ao que nos
viera avisar, seguimos nosso caminho. A causa do aviso que aquelle homem nos veyo dar
foy por ser notorio o grandissimo odio, que naquellas partes os Gregos tem aos Latinos, que
são todos os que confessão a Santa Igreja Romana, ser mãy, & Princesa de toda a
Christandade, & em tudo como tal, seguem suas leys, & decretos, sem outras ceremonias,
& novidades peregrinas, & assim quando neste Itinerario nomeyo Igreja Latina, ou fazem á
Latina, entendo aos Italianos, Hespanhoes, & Francezes, & outras nações da nossa Europa
subditas á Santa Igreja Romana, que naquellas partes tem dominio, ou comercio, indo, ou
vindo por ellas. He tanto odio, que como digo, tem aquelles Gregos aos Latinos, vendo-se
delles sopeados, que muytas vezes tem acontecido, achando hum Grego a hũ Latino só, &
em parte que a seu salvo o possa matar, naõ lhe perdoar: & naõ havia muytos mezes, que
indo dous frades de S. Fran/cisco 34 observantes da familia Hierosolimitana para Chipre em
27
huma náo Venesiana: passando a náo ao longo da Ilha de Candia, os pobres frades disseraõ
ao patraõ, que folgariaõ de ir fóra, & ir-se à cidade por lhe relevar, ou por irem enfadados
do mar, & desejarem tomar alguma recreaçaõ repousando em Candia alguns dias, & depois
se tornarem a embarcar, porque naquellas partes nunca faltaõ embarcações. Moveo-os
tambem a isto verem andar alguns barcos de pescadores, que os podiaõ levar a terra.
Mandou logo o patraõ da náo lançar fora o batel, & que levassem os frades aonde andavaõ
os pescadores, & lhos encomendassem muyto. Fizeraõ assim os do batel, & alèm da
recomendaçaõ da parte do patrão lhe dèraõ o premio que pediraõ pelo trabalho que podiaõ
ter em os levar a terra, quando se fossem da sua pescaria para a cidade. Aceytáraõ elles de
coraçaõ o premio, & recebéram os frades com rosto alegre, & animo fingido: & tanto que
viraõ ir a náo de largo, & tempo que podiaõ satisfazer sua maligna vontade, depois de
atarem os pobres frades, & os moerem com pancadas, os lançáram no mar. Quiz nosso
Senhor descobrir este malvado homicidio, para que fosse castigada taõ grande maldade; a
qual se descobrio, indo aquelles desaventurados homẽs á cidade a vender os breviarios, &
outros livrinhos dos frades a hum livreiro, que foy curioso em inquirir donde os houveraõ,
permittindo-o assi a justiça divina, & pelo titubiar dos desventurados, sospeytando a cousa,
deu conta à justiça: & sendo hũ delles preso, meteraõ-no a tormento, & confessou tudo
como passára, & foy enforcado com os mais companheyros. Como havia pouco tempo que
isto passára, trazia-se em commum pratica de todos. Assi que seguindo nosso caminho, por
experiencia vimos o aviso / 35 daquelle homem, naõ ser sem causa: porque aquelles Gregos
com que hiamos, naõ consentiaõ, que delles nos apartassemos hum pequeno intervallo,
dizendo ser aquelle caminho perigoso, por haver nelle muytas vezes ladrões: & que
aquelles homens salvagens, que haviamos visto na náo, costumavaõ sair aos caminhos
buscar presa. Fomos nossa jornada em paz, & com muyto contentamento, & chegamos ao
mosteyro dos caloiros antes do sol posto, & o Abbade com alguns religiosos nos sahio a
receber hum tiro de pedra fóra do mosteyro com muyta caridade, lançando-se a nossos pès,
& pedindo-nos a bençaõ, & abraçando-nos, & beijando-nos na face, como tem de costume,
nos leváraõ á Igreja a fazer oraçaõ. A qual acabada nos leváraõ a hũa casa a modo de
hospedaria, & alli nos dèraõ collaçaõ cõ muytas tamaras, grãos tostados, & biscoutos muy
curiosos, cubertos de gergelim pilado, & vinho em extremo bonissimo. Ao tempo, que
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sahimos da náo, tive eu cuydado de meter na manga hũa cayxa de marmellada, que de
Veneza com outra provisão para o mar, havia levado, & achando-me em taõ caritativo
convite, convidey com ella ao Abbade, & Caloiros, & aos mais companheyros, dos quaes
foy muyto estimada, & louváraõ naõ pouco, acudir eu em tal tempo com taõ delicada
iguaria, que por ventura já mais se teria visto outra semelhante em aquellas Candiotas
partes. Acabada a collaçaõ nos leváraõ a hum jardim de muyta, & muy fermosa fruyta de
espinho, com cuja vista nos recreamos, & tomamos alento do enfadamento do mar, posto
que por ser já tarde fizemos nelle pouca detẽça. Tornados ao mosteyro, nos levou o Abbade
a hũa grande casa, na qual nos tinhaõ preparada huma esplendida cea: porque a sua
caridade naõ permittio sendo /
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elles pobres enxergasse nelles a pobreza para comnosco.
Aos seculares nossos companheyros, ainda que eraõ pessoas nobres, & Gregos de naçaõ,
tinhaõ posta huma mesa separada da nossa, na qual foraõ servidos com muyta abundancia
de manjares de carne, por ser aquella terra muy fertil, em especial naquelle tempo; & tudo
tão barato, que estando nòs na náo, vinhaõ a ella vender tres, & quatro perdizes por hum
marcello, que he como o nosso real de prata, & pelo mesmo preço os cabritos & leytoens. Á
nossa mesa se assentou o Abbade com dous caloiros velhos, na qual fomos recreados, naõ
com menos abundancia do necessario, que os seculares, porque ainda que era advento,
como o Abbade sabia, que naõ comíamos carne, teve cuydado de mandar fazer provisaõ de
pescado, o qual guisado de toda a maneira, nos foy posto diante com outras muytas achegas
de manjares quaresmaes. Do vinho naõ trato, pois estando nòs em Candia, se pode crer
quanto seria em quantidade, & qual em calidade: estando todos ceando alegremente, tendo
os caloiros com os seculares historias de prazer, & passatempo, que meu companheyro, &
eu naõ entendiamos, desatentadamente dey com hum prato em hũa garrafa cheya de vinho;
que derramando-se, & enchendo a casa do seu bom cheyro, deu testemunho de qual era.
Tomàraõ todos aquelles Gregos tanto contentamẽto do succedido, estando eu corrido, que
naõ podiamos acalentar a festa; porque como todos saõ supersticiosos, & agourentos, & em
seus convites demasiadamente alegres, tivèraõ por bom sinal o infortunio. Acabada a cea,
& dadas graças ao Senhor Deos, nos leváraõ a outro aposento alto, aonde haviamos de
dormir, & tinhaõ-nos preparadas, & feytas as camas, naõ de molles, & brandos colchoens,
mas dos /
37
seus habitos, & tunicas, & algũas esclavinas para nos cobrirmos, que saõ
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humas mantas grandes, & brancas, lanudas, a modo de bernios, as quaes fazem em
Esclavonia, & correm por todo Levante, de que se serve a gente, que naõ tem muyto de seu.
Para o padre meu companheyro, & para mim tinhaõ huma cama alta, & separada,
demasiadamente curiosa, & ataviada de colchoens, lençoes, & cortinas, a qual parece tinhaõ
daquella maneyra concertada, para algum semelhante caso, ou por ventura serviria para
quando houvesse algum enfermo, porque sem duvida soubemos naõ haver outra semelhante
roupa naquelle mosteyro. Pareceo-nos a nòs, naõ ser cousa acertada, sendo frades pobres,
dormir em tal cama, & mais entre seculares, & pessoas tam principaes, inda que aquella
canalha naõ vos sabem estimar senaõ na conta, em que vos tendes, ou vem a em que vos
tem os Venesianos. Com tudo demos-lhe graças pela particular caridade, & honra que nos
faziaõ, & lhe affirmamos, que naõ podiamos dormir senaõ vestidos, pelo naõ permittir
nossa profissão, do que se mostráraõ muy edificados, & concluiraõ a cousa com dizerem,
que já que a cama fora feyta para nós, a dessemos a quem nos aprouvesse; & com isto nos
deyxáraõ, e se foraõ recolher. Depois delles idos, com muytos rogos acabamos com hum
fidalgo daquelles, por no Misser Joaõ Chiprioto, a q quizesse acceitar a cama, por ser velho,
& os mais nos agasalhamos o melhor que pudemos: posto que a mayor parte da noyte
gastáraõ aquelles Gregos em cantar, & tanger, para o que levavaõ duas violas de arco, &
alaude, porque gèralmente todas aquellas nações saõ inclinadas á musica, & passatempos,
inda que lhe faltaõ as boas vozes do nosso Portugal, de que elles dizem naõ ter inveja. /
30
38
CAPITULO VIII.
De como nos partimos do Mosteyro dos Caloiros, tornando para a nào, & do q nos
aconteceo no caminho.
EM amanhecendo ao dia seguinte, nos puzemos em ordem de caminhar: & tornar á
náo, & tomada a bençaõ ao Abbade, despedindo-nos delle, & dos mais caloiros, nos
partimos do mosteyro por outro caminho melhor segundo elles diziaõ, indo com nosco dous
caloiros, para nos guiarem por ordem do Abbade, os quaes foraõ comnosco atè hũa aldea
huma legoa do mostevro. Vindo pelo caminho os Gregos da nossa companhia, parecendolhe q deviamos ser inclinados a ver curiosidades, nos disseraõ, q se queriamos tomar hum
pequeno trabalho por ir ver hũa antigualha, que estava, naõ muy longe do caminho que
levavamos, a qual era o labyrinto do Minotauro, taõ celebre entre os antiguos.
Agradecemos-lhe summamente o seu offerecimento, dizendo-lhe, que nenhũa merce de
mais gosto nosso, das suas nos podia ser feyta naquellas Grecianas partes, que aquella. Indo
tratando disto, & da quantidade do caminho: chegamos á aldea, na qual achamos somente
mulheres, & meninos, como espantados com a nossa vista, sem vermos algum homem. A
causa de seu espanto foy, que como nos sentiraõ vir, com o fallar, & pratica que levavamos,
cuydáraõ que eramos mouros, dos quaes aquellas miseraveis aldeas saõ muytas vezes
salteadas. Tanto que os caloiros começáraõ a fallar com ellas, se aquietáraõ, &
perguntando-lhe pelos maridos, responderaõ que em nos sentindo haviaõ fugido cada hum
por onde pode, que assi era seu cos/tume 39, deyxarem-nas quando alli vem ter os mouros,
porque como os que por alli vem saõ cossairos, & naõ haõ de meter as mulheres ao remo,
nem venderem-nas, salvo dalli muyto longe, por serem todas as terras ao redor do Graõ
Turco, do qual os cossarios tem grão temor: sómente se contentaõ com as escarnecerem, &
afrontarem se lhes parece: & do mais naõ curaõ dellas. Estando nòs fallando com as
mulheres, começáraõ a vir alguns homens dos que se haviaõ escondido, os quaes corridos,
& envergonhados nos deraõ a escusa da sua fugida da maneyra que tenho dito. Estas fustas
que por aqui acodem saõ de cossarios, como já disse: & como os Turcos tem paz com os
Venesianos, quando as suas galès achão estes cossarios trataõ-nos sem alguma piedade
crudelissimamente. Perguntando áquelles homens quanto era daquella aldea ao labyrintho,
31
disseraõ-nos, que podiaõ ser quatro milhas, & hum delles se offereceo a ir de boa vontade
comnosco. Concertada a ida, & assentada a hora da partida, depois de feyta hũa breve
collaçaõ, por serem já horas, nos despedimos dos caloiros, encomendando-lhe rogassem da
nossa parte ao Abbade, que dalli a tres dias quizesse mandar algum caloiro á náo para lhe
mãdarmos algũa caridade em recompensaçaõ da muyta que nos fez em seu mosteyro.
Partidos da aldea, chegamos ao lugar aonde hiamos, quasi a horas de vespera, o qual está
junto a outra aldea mayor que a primeyra, & nos affirmáraõ alli, que havia sido das
mayores, & mais populosas da Ilha. Sabendo os da aldea, a que hiamos, nos trouxeraõ logo
hum homem já sobre os dias, o qual servia de piloto aos que queriaõ ver o labyrintho, se lhe
pagavaõ seu trabalho. Cõcertando-nos com elle, assentamos, que seria bom entrarmos logo
aquella tarde, porque quando sahimos /
40
da náo nos encomendou muyto o patraõ, q
tornassemos com a possivel brevidade. Tanto q chegámos á porta do labyrintho, o homem
que nos havia de servir de piloto, & guia, como a outros costumava servir, tirou humas
grandes pedras da bocca por onde haviamos de entrar, porque a entrada era á maneyra de
hũa cova: & entrando diante com hũ mancebo seu companheyro com cada hum seu murraõ
aceso na maõ: & entrando nòs apoz elles de pés, & mãos, q a entrada naõ sofria outra
cousa, & seguindo nossa guia caminhamos huma grande milha sempre por debayxo de
abobedas feytas da mesma rocha, & naõ vimos em todo aquelle caminho cousa de notar,
salvo levarnos aquelle homem por diversas estancias muy intricadas tè chegarmos a huma
quadra muyto grande, no muro da qual estava hũa argola de bronze taõ grossa, que no q
mostrava pezaria hum quintal pouco mais, ou menos, na qual dizem haver estado preso o
Minotauro. A verdade disto Deos a sabe; eu dou testemunho do q com meus olhos vi, &
escrevo a opiniaõ que tem os da terra. De haver labyrintho em Creta, muytos escritores
Gregos, & antigos o affirmáraõ & escrevèraõ: & sem duvida se no mundo houve
Minotauro, & a historia que delle contaõ naõ he fabulosa, em nenhũa parte devia de ser,
senaõ naquella onde os indícios estaõ taõ manifestos, & claros. Por todas aquellas abobadas
soava hum grandissimo vento, sem vermos lugar por onde pudesse entrar, mas o nosso
piloto como experimentado naquella carreyra, levava fuzil, & todo o aviamento para se
recuperar se lhe morressem os murroens, que com trabalho levavaõ acesos. A hũa parte
daquella quadra nos mostrou o homem hũa pequena porta, tambem á maneyra de entrada de
32
cova dizendo-nos que por alli continuava o labyrintho atè o /
41
mar da outra parte do
Archipelago, & nos incitava a ir por diante, o que naõ quizemos fazer, assi por ser muy
tarde, & virmos cansados, como por ser a jornada muy comprida, & naõ haver cousa de
notar nella. Tornamos a sair por onde haviamos entrado: & chegamos á aldea com duas
horas de noyte, ou tres, & repousamos tè que amanheceo, junto de hũ grande fogo, que nos
tinha feyto a mulher do homem nosso piloto, por falta de camas, porque naquellas aldeas
tudo he miseria, & grandissima pobreza. Como foy manhaã determinamos nossa jornada
para a náo, mas atalhou-nos aquelle homem, rogando-nos que quizessemos ver outra
antiguidade digna de ter vista, ainda q naõ taõ nomeada como o labyrintho & que nos naõ
havia de pezar de a ter visto, & que nos levaria por caminho, que naõ rodeassemos cousa
algũa para tornar á náo. Acceitamos sua vontade, & lha agradecemos, & feyta colaçaõ nos
partimos com elle. Junto do meyo dia chegámos a hum monte, naõ muyto alto, ao pè do
qual estava hũa casa feyta da mesma rocha, & á maneyra de hũa capella redonda, cuja porta
era taõ alta, q bẽ poderia entrar por ella hum homem a cavallo. A hũa parte daquella casa
estava outra porta, a modo de hum buraco, como o do labyrintho, pelo qual entramos de
pés, & mãos, tiradas primeyro hũas pedras; & indo diante o homem, & seu cõpanheyro com
os murrões acesos na máo.
Tendo andado hum bom espaço, demos em huma casa muyto grande, & alta, sobre
maneyra humida, cujas paredes de alto abayxo tinhaõ em si muytas, & diversas invenções,
todas feytas de huma agua coalhada, como a que vemos correr por canos de fontes velhas:
mas a materia já dura a modo de caramello. As inven/çoens 42 eraõ muytos corpos de armas
inteyros, outros sómente meyos corpos, muytas medalhas, assi de homẽs, como de
mulheres, leões, ussos, & outras diversidades de animaes; jarros de muytas invenções
grandes & pequenos, & hum pavilhaõ muyto faido. Perguntámos aquelle homem o que
diziaõ os da terra daquellas cousas: dissenos que muytos affirmavaõ ter aquillo cousa de
encantamento, mas que elle nunca se determinára no que podia ser, salvo alguns
embaimentos, porque como aquelle Reyno de Candia antiguamente no tempo da
gentilidade era dos principaes de toda Grécia em cousas de encantamentos, & alli mais, que
em outra algũa parte se usava aquella diabolica arte, faziaõ aquellas minas subterraneas, &
covas debayxo da terra para mais á sua vontade se apartarem com os demonios, & terem
33
com elles seus conventiculos, & commercios, do que ficáraõ aqueles vestigios que viamos,
& outros muytos semelhantes que havia por toda aquella Ilha, & em especial nos lugares
montuosos.
Depois de vermos miudamente as cousas desta quadra, nos levou mais adiante
espaço de dous tiros de pedra, indo costa arriba por hum caminho muy ingreme, no ultimo
do qual estava huma escada de quatorze degráos, pelos quaes abayxamos indo as guias
diante com seus murrões acesos, & fomos dar em humas portas de bronze muy grandes, &
altas, que nos causáraõ admiraçaõ. Disse-nos aquelle homem, que já em algum tempo
houvera alguns que as intentáraõ abrir, segundo tinha ouvido contar a homens velhos, &
antiguos, mas que nunca puderaõ. Dentro das portas se sente hum espantoso tom, & ruido
de muytas aguas, como que passa algum grande rio costa abayxo. A humidade, & escuridaõ
do lugar, & sua profundeza nos causou terror: pelo /
43
qual estivemos muy pouco espaço
nelle. Sabidos fóra, attonitos das cousas que tinhamos visto: nos fomos nosso caminho
direyto á náo, levando comnosco aquelle homem com seu companheyro: o qual nos hia
contando pelo caminho muytas cousas, como as que tinhamos visto. Tanto que chegamos
perto do mar, & fomos vistos dos da nào, o mesmo patraõ se meteu logo no batel, & nos
veyo receber com muyta alegria de todos: & satisfazendo o homem que comnosco viera, &
a seu companheyro, se despedio de nòs, dando-nos os agradecimentos, pela paga ser á sua
vontade. Aquella noute repousamos contando a todos aquellas cousas, que tinhamos visto
aos que as queriaõ ouvir. E porque o tẽpo estava muyto claro, & o mar quieto, & nòs
espãtados porque naõ faziaõ mostras de levantarem vella: disse-nos o piloto, que esperavaõ
por lua nova, a qual havia de ser dalli a dous dias, por verem se fazia o tempo alguma
mudança de si, porque fazendo-a, naõ se haviaõ de partir presto, por causa que tinhamos de
passar hum golfo muy perigoso; no qual se perdiaõ muytas vezes as náos. Ao dia seguinte,
que era vespera de Natal, vieraõ dous caloyros do mosteyro aonde haviamos ido: os quaes
mandava o Abbade, como lhe haviamos pedido: & nos trouxèraõ muyta fruita de espinho,
& outro refresco para ajuda da festa: foraõ de nós recebidos com muyto amor, & alèm, do
patraõ, & nòs lhe fazermos toda a caridade possivel, tirou-se pela náo esmola para elles,
assi de dinheyro, como de outras cousas, porque cada hum dava do que tinha, podia, &
queria, & eu lhe satisfiz a garrafa, que lhe havia quebrado com lhe dar alguns vidros que
34
levava, de maneira que elles se tornáraõ ao mosteyro contentes, & nòs ficamos com muyta
alegria esperando a hora de /
44
nossa partida. Em querendo anoutecer, vieraõ á nossa náo
os patrões das outras, que no mesmo porto estavao tambem esperando tempo, & trouxeraõ
comsigo algũs companheyros dos mais velhos: & depois de festejarem, & cantarem á honra
da festa do santo Nascimento, puzemos em ordem dizer Missa, inda que havia de ser secca,
por estarmos dentro no mar: & coubeme a sorte dizella; a qual foy festejada com violas
d’arco, cravo, & manicordío, & ella acabada, a mayor parte da noute se passou em festa.
Ao dia de Natal em amanhecendo, se embandeyráraõ todas as náos, & desparáraõ sua
artelharia, & o Padre meu companheyro disse a Missa d’alva. E acabada quizeraõ dar
ordem para que a Missa do dia, se celebrasse em terra em hũa ermida, que estava algum
tanto desviada do porto: mas os fidalgos Gregos que vinhaõ em nossa companhia de
Veneza, o atalháraõ, dizendo, que por alli perto havia algumas aldeas, & montes, cujos
moradores havendo ouvido o estrondo da artelharia, por ventura acudiriaõ a ver o que era,
& vendo que diziamos Missa em Igreja de Gregos, se seguiria algum escandalo, & que
ainda dentro na náo vinhaõ alguns, os quaes posto que no publico se mostravaõ muy
Catholicos, & amigos dos Latinos, sofreriaõ muy mal celebrarmos na Igreja dos Gregos.
Pareceo esta razão muy boa ao patraõ: o qual disse, que tambem elle naõ tinha por seguro o
sair-se da náo, por ser aquelle porto muytas vezes buscado de cossarios, & podia acontecer
algum perigo: & com estas duas razões desistiraõ da pretensaõ com offensa dos nossos
desejos. Alèm do geral odio, que os Gregos tem aos Latinos, tambem os tem por máos
Christãos, & scismaticos: sendo elles mesmos os taes apartados da Santa Madre Igreja
Catholica, pelo que se alguma hora acon/tece 45 algum clerigo Latino dizer Missa em altar,
ou Igreja de Gregos, como nas terras de Gregos, sugeytas a Venesianos, da maneyra que
aqui determinavamos fazer, se nos naõ atalhárão: ou a dizem á cinte por lhe queymarem o
sangue, se a cousa he em publico dissimulaõ o melhor que podem, & ás escondidas, que
naõ sejaõ sentidos, lavaõ sete vezes o altar com muytas ceremonias: porque se se vem a
saber dos Latinos, castigaõ-nos muy asperamente, como me contàraõ haver acontecido, naõ
havia muytos dias na cidade de Candia, que hum clerigo Latino disse Missa em hũa Ermida
de Gregos junto dos muros da cidade, por ser invocaçaõ de hum Santo, a que tinha
devoçaõ, foraõ alguns dos seus Papazes (que assim se chamaõ os Clerigos Gregos) &
35
vendo que naõ podiaõ derrubar o altar sem serem sentidos, o leváraõ como tenho dito: &
como foy sabido pelo governador da cidade os mandou prender: & depois de os ter muytos
dias presos, lhes sangrou as bolsas, & lhes mandou rapar as barbas, cousa que elles tem
pela mayor afronta da vida, nem se lhe podia dar outro mayor castigo. Mas sendo em parte,
que a seu salvo, sem serem sentidos podem derrubar o altar, sem duvida, & sem escrupulo
o fazem. Celebrámos a Missa do dia dentro na náo com muyta solemnidade, & festa de
todos, & deu-nos nella a bençaõ episcopal hum Arcebispo Maronita, que vinha com nosco
na náo, & vinha de Roma de dar a obediencia ao Papa por parte do seu Patriarcha do monte
Libano, que ha muytos annos está á obediencia da Santa Madre Igreja Romana: & a todos
os Papas a manda dar, por naõ poder ir em pessoa, por ser muyto velho, & antiguo. Aquelle
dia para a santa festa ser mais solemnizada: deu o nosso patraõ banquete a quantos hiaõ na
náo, & /
46
aos patrões, & pilotos das outras náos, & o passamos todo com muyto
contentamento a gloria, & louvor do Senhor Jesu, que para sempre vive, &c.
36
CAPITULO IX.
De como nos partimos para Candia, & do que nos succedeo na viagem.
O Mesmo dia de Natal á tarde, puseraõ todas as vellas de verga d’alto, & harpáraõ,
& levantáraõ duas ancoras, deyxando huma pequena, para se poder com pouco trabalho
levantar. Á segunda vigilia da noyte tocou o piloto o apito, & acudiraõ todos com muyto
alvoroço, pelos desejos grandes que tinhamos de seguir nosso caminho: & levantando
ancora, se deu á vella com vẽto prospero, & começamos de navegar com estar o mar quieto,
& bonançoso, como se fora em verão, indo sempre á vista da Ilha tè passarmos o cabo de
Salmon, do qual se faz memoria nos Actos dos Apostolos, que he hũa ponta do ultimo da
Ilha, que sahe muyto ao mar. Passada toda a Ilha demos cõ a vista na terra d’Escarpanto,
que está na segunda bocca do Archipelago da parte de dentro: a qual Escarpanto he hũa Ilha
muy rica, & abastada, habitada, & povoada de Turcos, & vesinha de Rhodes, que tambem
por nossos peccados he possuida dos mesmos: deyxando huma, & outra á maõ esquerda
navegando pelo graõ golfo de Satalia, sempre com amigavel, & prospero tempo; que nos
movia a de cõtino dar graças ao Senhor Deos, porq segundo nos affirmavaõ, poucas vezes
se passa aquelle golfo, em especial no inverno, sem / 47 algum enfadamento dos navegantes:
& muytas náos se tem nelle perdido, pelo que os pilotos de recado & experiencia jámais o
querem passar, senaõ com tempo bom, & claro. A compridaõ deste golfo de Levante a
Ponente, saõ duzentas & cincoenta legoas, isto do ultimo porto de Candia, atè a primeyra
porta da Ilha de Chipre, a largura de Rhodes té o Egypto naõ he tanta.
Contaõ os Gregos, que foy antigamente aquelle golfo de mar, muyto mais
perigoso, do que he ao presente, por causa de andar nelle hum Dragaõ marinho muyto
grande, como outro que na historia da gloriosa Santa Martha lemos; o qual Dragaõ sovertia
as náos, & que andou alli atè o tempo de Santa Helena, mãy do grande Constantino
emperador: & affirmaõ que passando ella por aquelle mar taõ perigoso, lançou nelle hum
dos cravos, com que nosso Redemptor foy encravado, & que nunca mais apparecera aquelle
Dragaõ: & por aqui contaõ hũa historia muyto grande, frivola, apocrifa, ainda que sobre
maneyra gostosa ás orelhas. Quanto ao da gloriosa Santa Helena, já o li em hũa historia
37
authentica, se me naõ engana a memoria: o mais tenho por cousa redicula, & fabulosa, por
isso a naõ escrevo aqui. Communicando eu isto com hum Grego velho, & douto, me disse,
que sempre fora costume dos seus antigos sabios, & philosofos, encubrirem grandes
segredos debayxo de fingimento, & que quanto ao Dragaõ era verdade, que no meyo
daquelle golfo estava hum penedo muito grãde, no qual perigavaõ muitas vezes as nàos: &
que daqui tomáraõ motivo para a historia do Dragaõ. Seguindo pois nosso caminho sempre
com prospero vento, tè a Ilha de Chipre, & indo ao longo della, ao tempo, que queriamos
dobrar huma ponta, a que / chamaõ Cabo Branco, os navegantes, nos sobreveyo hum vento
Sul muy aspero, que sobremaneyra nos desconsolou, & affligio; mas quiz nosso Senhor,
que já que havia de vir fosse a tempo, que nos pudessemos remediar, porque se nos tomára
meya legoa atraz, fora-nos forçado tornar a Candia. Porèm como estavamos já muy juntos á
terra, fomos ao longo della deyxando nosso caminho direyto, & tomámos porto junto da
Cidade de Papho: no qual perseverando o Sul com sua teyma, nos causou estar alli detidos
quasi hum mez, com pena nossa, & proveyto de algũs da companhia.
38
CAPITULO X.
Da Cidade de Papho, & do que passamos no seu porto o tempo que nelle estivemos.
VEspera do anno bom, a horas de vespera, ou quasi, tomamos terra na Ilha de
Chipre, pouco menos de meya legoa da cidade de Papho, & o mesmo dia sahimos em terra
meu companheyro, & eu com alguns passageyros naturaes da mesma Ilha: & fomos ter á
cidade de Papho por causa de recreaçaõ, & nos parecer que estariamos alli devagar naquelle
porto: porque logo os marinheyros começáraõ de bolir com cayxas, & outras cousas que de
Veneza traziaõ para venderem naquella Ilha, como sempre costumaõ, quando navegaõ por
aquellas partes. Sahiraõ tambem comnosco dous fidalgos da mesma Ilha, ainda que naõ da
mesma cidade, os quaes se davaõ por nossos particulares amigos. Tanto que chegámos á
cidade: foraõ elles recebidos com muyta festa de alguns parentes seus, /
49
conhecidos: &
por seu respeyto tambem nos festejáraõ a nòs com palavras, & comprimentos demasiados
sem obra alguma. Mas pelas misericordias do Senhor, vinha mos taõ providos de tudo, que
podiamos naquelle tempo escusar merces alheas. Sahio tambem comnosco o Arcebispo
Maronita, que atraz disse; o qual como conhecia a terra & gente, & sabia muyto bem fallar
a lingua grega e Chipriota, foy nos bem com a sua companhia: porque em pessoa nos
buscava o que haviamos mister, ainda que com pouca authoridade de sua dignidade.
Chamava-se este Arcebispo Frey Jorge, porque naquellas partes Orientaes todos os
Prelados Pontifices, ao proprio nome põem diante o Frey, como cá na nossa Europa
costumaõ os Religiosos chamar Frey Foaõ, mas pronunciaõ-no na sua propria lingua, & eu
o declaro na nossa. Era este Arcebispo Maronita taõ inimigo dos Gregos, que algumas
vezes lhe ouvi dizer, se lhe fosse possivel ter todos os Gregos do mundo dentro de si,
consentiria de boamente, que o matassem de hum golpe porque morrendo elle, acabassem
todos: & sendo sua mãy falecida, & estando enterrada em huma Igreja de Gregos, jámais
lhe havia lançado agua benta, por naõ entrar dentro na Igreja, & estes saõ por nossos
peccados quasi todos os Christãos Orientaes, nestes nossos calamitosos tempos, criados
todos com odio huns aos outros. Sobre maneyra me alegrey, vendo-me naquella taõ antiga
cidade, vendo nella nova maneyra de gente nos trages, & em tudo muy differente de quanto
39
atè alli tinhamos visto. E ainda que o porto está longe da cidade, a cidade está perto do mar,
& mostra que foy populosa, posto que ao presente está posta nos termos de muytas cidades
orientaes. Tem duas igrejas Cathedraes, a principal faz á Latina, & a outra á Grega, saõ / 50
ambas de edificios muy sumtuosos, mas muy antigos. As casas dentro na cidade saõ muy
pouco curiosas, vem-se porèm muytas antiguidades arruinadas, casas subterraneas lavradas
na pedra viva, estancias de muytas maneyras, feytas de huma pedra inteyra, cousas que
ainda que estão postas no fim, causaõ admiraçaõ, mostrãdo a toda a pessoa curiosa quaes
hajão sido. Entre outras cousas que naquella cidade nos mostráraõ, foraõ hũas grandes
ruinas de hum antigo templo, que a gentilidade alli edificou á sua Venus: o qual naõ
sómente os Chipriotas, mas tambem muytos historiadores Gregos affirmaõ ser aquelle o
primeyro templo, que no mundo se lhe edificou, & esta he a causa, porque alguns poetas
lhe chamaõ Venus Paphia. No lugar aonde aquelle Templo foy edificado ainda agora se
vem grandes pedaços de columnas, & outras pedras de jaspes verdes, & vermelhos, &
serpentinos de grande fineza, & lavrados com muita curiosidade, assim de obra
CoCorinthia [sic], como Dorica, & nos mostráraõ no mesmo lugar muytas covas, &
abobadas espantosas, sem nos saberem dizer, o que avião sido. São aquelles Gregos
daquellas partes muy rusticos, idiotas, ignorantes, & sem letras, & o mesmo em nosso
tempo saõ quasi todos os mais dos Gregos em toda a parte, porque sómente sabem o grego
vulgar, & se algũa pessoa de respeyto quer saber o literal, ou grammatical, convem-lhe hilo
aprender ás Universidades de Italia, ou França: & por esta causa se hão perdido entre elles
muytas escrituras, & a memoria de grandes antiguidades de Grecia. Legoa, & meya de
Papho para a banda do Norte, estando nòs alli de espaço, por causa do tempo contrario á
nossa navegaçaõ, nos leváraõ hum dia a ver hum pequeno templo, que ainda estava inteyro,
dedicado também /
51
da gentilidade a Paphia Venus: & junto delle hũa fonte lavrada com
muyta curiosídade, a qual atè o presente chamaõ a fonte dos amores, aonde vimos muytas
ruinas de edificios nobilissimos, & de grande antiguidade: o qual lugar depois da morte de
Venus, foy por muitos tempos habitado, & venerado de gente sensual & deshonesta.
Contavaõ-nos aquelles Gregos muytas superstições, & embaimentos daquella fonte, os
quaes naõ escrevo aqui polo ter por tempo perdido. A cidade Papho com alguns lugares, &
aldeas do seu termo, he ornada, & povoada de muytos jardins, de hortas, & arvoredo
40
frutifero, & de toda a sorte de fruita de espinho. Tem muytos canaveaes de canas de açucar,
muytas palmas, cujas tamaras saõ muy grossas, & saborosas, muyto inhame, & muyta
quantidade de musas, a que por outro nome naquellas partes chamaõ pomum paradisi. Estas
saõ hũas arvores de altura de hũa lança, ou quasi, daõ huns cachos grandes, & compridos,
que cada hum tem quinze, & vinte pomos, & alguns mais, os quaes saõ de muy suave
doçura, a carne delles como marmellada molle, os pomos saõ á maneyra de figos, mas a
maça mais tesa: para se averem de comer, tiraõ-lhe a casca que he como a do figo, & de cor
cetrina. Partidos pelo meyo, ou a travez, tem hũa Cruz desta maneyra, T. Dizem, &
affirmaõ algũs Palestinos, & Orientaes ser aquella a arvore da qual comeo nosso pay Adão,
sendo-lhe vedada pelo Senhor Deos, movidos assim da doçura, & suavidade do fruito,
como do T. que dentro em si tem. As folhas destas arvores saõ taõ grandes, que duas
cubriraõ hum homem, & tem hum verde muy gracioso. As arvores cortaõ-nas cada tres
annos para melhor frutificarem, & creyo eu, que estas saõ as bananas do nosso Saõ Thomè.
Dos vinhos naõ fallo, pois /
52
em toda a parte são nomeados, & a Esposa nos Cantares os
louva, dizendo: Botrus cipri dilectas meus mihi. De maneyra que a terra em tudo he
fertilissima, ainda que carece de dinheyro, por estar remota da conversaçaõ das outras
nações.
41
CAPITULO XI.
De como nos tornàmos à nào, e de huma perigosa tormenta que tivemos sobre ancora.
DEpois de estarmos tres dias na cidade de Papho nos tornamos á náo, para
sabermos a determinaçaõ do patraõ, por o tempo se mostrar algum tanto bonançoso, mas
como estavaõ todos metidos, & enfrascados nas suas vendas: achamo-los com mais vagar
do que quizeramos. Ao segundo dia depois de sermos tornados á náo, se esforçou tanto o
vento vendaval, & o mar se começou tanto a empolar, & embravecer, que cuydamos de nos
perder naquelle porto. A nào estava sómente com duas ancoras, mas vendo-se em tanto
perigo, lançáraõ outras duas, hũa das quaes era grandissima, a que os Venesianos chamaõ a
mestra, & naõ se costuma lançar, senaõ em semelhantes perigos, por ser muy pesada, & ser
necessario toda a gente da náo para a lançar, & levantar. As ondas pareciaõ montanhas,
nem se podia andar pela náo de hũa parte a outra, por mais cordas, que lançáraõ para os
homens se apegarem: qualquer cousa, que naõ estava muy bem leada andava marrando com
outra sua semelhante; o sairmos fóra da náo era impossivel. Estavaõ duas náos francezas
junto da nossa, as quais hiaõ para Tripoli de /
53
Suria: com a grande tempestade muytas
vezes as naõ viamos, nem ellas a nòs, porque parecia abayxarmos aos abysmos: & naõ
sómente os passageyros, mas os marinheyros, & os outros officiaes da náo, que toda sua
vida se haviaõ criado no mar, andavaõ como fóra de si: o que mais pena me dava era ver
meu companheyro jazer como morto, & quando tornava em si, tudo era abraçar-se comigo,
& pedir-me confissaõ. Huma cousa notey nos francezes, que com serem as suas náos
pequenas, de tal maneyra se haviaõ, ora pondo as vergas das suas náos de huma maneyra,
ora de outra, que os Venesianos se espantavaõ: & da maneyra, que lhe viaõ fazer, faziaõ
elles. Ao dia seguinte estando assim atribulados, & cansados, & o vento cada hora com
mais furia: vimos vir pelo mar huma grandissima náo; a qual logo conheceraõ ser
Venesiana, & cuja era, & como se chamava. Começáraõ a tratar donde viria: & affirmáraõ
naõ se haver jamais feyto em Veneza alguma náo taõ grande, & poderosa como aquella, &
chegando mais perto de nòs ouvimos os que nella vinhaõ virem dando grandissimos gritos,
que parecia hum inferno: o mar cada vez se mostrava mais furioso, com hum grandissiimo
42
[sic] chuveyro: de ver cousa taõ nova, & espantosa estavamos todos espantados, sem saber
q dizer, nem cuydar. Estando assim atonitos, & cheyos de admiraçaõ, passou por nòs a náo,
& foy dar comsigo em hũas rochas junto da terra, & tanto que assim se perdeo, o mar se
começou de aquietar, callou o vento, cessou o chuveyro, & aclarou o tempo: o que causou
em nòs muyto mayor espanto. Aconteceo isto quasi ás dez horas do dia. Os vilões das
montanhas de redor, gente barbara, & cruel, como sempre do alto tem suas vigias, que de
noyte, & de dia vigiaõ o mar, por causa dos /
54
cossairos, tanto que viraõ o que passava,
acudiraõ logo com muyta pressa, & deshumanamente começáraõ a roubar quanto o mar
lançava fora, & carregavaõ sem nenhum temor de Deos nosso Senhor, quanto podiaõ em
suas bestas, que para aquelle effeyto comsigo traziaõ. E querendo-lhe ir á maõ os pobres
homens, que do naufragio escapavaõ, como contra inimigos se punhaõ aquelles
deshumanos Gregos aos offender com suas armas, saindo os miseraveis homens nùs, e
meyos mortos do mar, & assim violentamete carregavaõ, & se tornavaõ para suas casas,
sem haver quem lhe pudesse refistir, & todo aquelle dia, & noyte seguinte, e parte do outro
se exercitaraõ naquelle cruel latrocinio, atè que acudio a justiça do Limison, que he outra
cidade mayor, e melhor que Papho, ainda que está dahi algũas legoas, & com trazer
comsigo boas guardas, naõ bastavaõ para de todo resistir á maldita canalha. Depois que os
da nossa náo viraõ a justiça do Limison ser chegada ao dia seguinte, & que tambem de
Papho acudia muyta gente, já sobre a tarde, estando o mar de todo quieto, começáraõ a sair,
& sahimos meu companheyro, & eu com elles, & começamos a caminhar para onde estava
a náo perdida, que seria quasi meya legoa da nossa. Em chegando vimos hũa piedosa, &
lastimosa cousa de muyta gente morta, & outra muy mal ferida. Entre os mortos estavaõ
hũs dezaseis judeos, & sete feridos, & com elles huma judia portugueza natural de Coimbra
com duas crianças, hũa de peyto, & outra de tres annos: a qual judia ao tempo que a náo
deu em terra vendo a morte diante dos olhos, parecendo-lhe ser impossivel escapar com
vida, fez voto a nosso Senhor Jesu Christo de se tornar á sua Santa Fè Catholíca, da qual,
como má & perversa fe avia apartado, /
55
& pedindo-lhe com muytas lagrimas perdaõ de
seus peccados, rogando-lhe, que por sua misericordia tivesse por bem livralla de taõ
evidente perigo, a cujos rogos o piedoso, & benigno Senhor inclinado teve por bem de a
livrar com duas crianças, sendo mortos muytos, que sabiaõ muy bem nadar, entre os quaes
43
foy o mesmo patraõ da náo. Contou-nos esta judia a maneyra que tivera em se encomendar
a nosso Senhor: & que sem saber como, se vira posta em terra com as crianças cada huma
debayxo do seu braço: & mostrou-senos muy arrependida de ter offendido a nosso Senhor,
deyxando a sua Santa Fè, em que fora de minina criada: affirmando-nos, que fora
enganosamente tirada de Portugal por seu marido, & parentes. Mas foy esta judia ingrata a
Deos, porque depois de nos partirmos de Jerusalem para cá, a achamos em Tripoli de Suria
judia como antes era: & reprehendendo-a eu de sua ingratidaõ, & infidelidade, sem algũa
vergonha, me respondeo, que il Dio a havia livrado, porque sempre fora boa Judia.
Tornando pois aos da náo, digo, que o destroço, & espectaculo de vermos tanta gente
morta, & ferida nos fez de compayxaõ, & piedade derramar lagrimas. Chamava-se esta náo,
Quirina, & vinha de Alexandria carregada de especiaria, e riquezas de muyta vallia, &
como era nova, & taõ grande, todos os passageyros, que naquelle tempo se acháraõ nas
partes de Egypto trabalháraõ por vir nella: & por esta causa esteve seis meses no porto de
Alexandria esperando Nolo, ou frete, do qual nos affirmáraõ, que trazia alguns vinte mil
cruzados. Os passageyros passavaõ de duzentos, entre os quaes vinhaõ mercadores
riquissimos, que havia annos que tratavaõ no Cayro, & Alexandria, & outros lugares do
Egypto, & vendo a seu parecer taõ boa embarcação, / 56 ricos se queriaõ tornar a sua patria.
Vinhaõ nella alguns Turcos, dos quaes se affogáraõ tres, & vinha nella todo genero de
gente pessima. Estando nòs por algum intervallo olhando aquelle lastimoso destroço,
dissenos o nosso Patraõ, que era mais tempo de obrar, que naõ de olhar, & movidos
daquella palavra, começamos a entender na cura daquelles miseros homẽs, lavando lhe as
chagas com vinho, & fazendo tudo o que o Cirurgião nos mandava com toda a diligencia, o
qual a todos curou com toda a diligencia, & muyta humanidade: & com ajuda da gente, que
era vinda aquelle mesmo dia enterramos todos os Christãos a huma parte, & os judeos, &
Turcos a outra: & com o melhor modo que pudemos, consolamos a todos exhortando-os a
paciencia, com se o nosso patraõ offerecer a tudo quanto fosse mister, como mostrou por
obras.
44
CAPITULO XII.
Da causa porque se perdeu aquella nào.
DEpois que os feridos foraõ curados, & os mortos sepultados: & pela bondade do
nosso patraõ alguns nùs vestidos, & todos o melhor que se pode fazer consolados, &
remediados: desejando nós saber de raiz a causa da perdiçaõ daquella náo, se fora por culpa
do piloto, ou do Capitaõ ou de que maneyra, & perguntando isso a hum homem daquelles,
que nos pareceo de mais authoridade, & velhice, que outros, para nos poder melhor relatar a
verdade, rogamos-lhe que nolo quizesse dizer. Elle pondo os olhos fitos em nòs, &
tornando-os a abayxar, esteve callando hum pe/peqeno [sic]
57
intervallo, & com grossas
lagrimas, que lhe sahiaõ, & corriaõ dos olhos, respondeo á nossa pergunta, dizendo:
Senhores, Deos vos pague vossa caridade, & taõ boas obras, como nos tendes feyto em
tempo de tanta necessidade. Aviso-vos senhores, que sempre trabalheis de estar bem com
Deos, & façais vossas viagens em náos de bõs senhorios, & patrões tementes a nosso
Senhor.
Nós desaventurados, haverá tres semanas, que partimos do Egypto da cidade de
Alexandria, para Veneza em esta nào, por ser taõ grande, & boa, & tal, que creyo, em todo
Levante se ha visto ha muytos annos outra sua igual: & bem vedes que ainda assim como
está parece huma montanha. Mas, como dizem, a fazenda mal ganhada perde-se com seu
dono: Bem sabeis ser esta a náo Quirina: a qual, como sabe toda Venesa, foy feyta com
suor de pobres, o clamor dos quaes subio ás orelhas do Senhor Deos, que sempre estaõ
promptas, & abertas para os ouvir; o que se vè claramente, pois sendo náo taõ nova, que
esta he a segunda viagem, que faz, ou tem feyto, taõ presto se perdeo. E por ser tal, & taõ
grande, quantos cobiçosos nos achámos no Egypto, negoceando riquezas vãas, que taõ
presto perdemos: determinamos embarcarnos nella: & naõ sómente nòs Chistãos Latinos,
mas tambem Gregos scismaticos, Judeos, & Turcos inimigos de nossa Santa Fè Catholica.
E naõ sey se por elles, se por nòs, o Senhor Deos se quiz mostrar irado com todos: &
justamente, como elle em todas as suas cousas he justissimo, porque vinhaõ nesta náo
homens taõ peccadores, & pessimos, que o nefando peccado da sodomia, quasi
45
publicamente commettiaõ. Mas o Senhor Deos como pay de misericordia, & piedade:
desejando a sal/vaçaõ
58
de nossas almas, que com seu precioso sangue redemio & como
quem por ellas padeceo, & tem por costume naõ querer a morte do peccador, senao que se
converta & viva. Oyto dias depois que sahimos do porto de Alexandria nos avisou com hũa
tormenta grandissima, & tal que nos fez deyxar o caminho, que levavamos a Veneza, &
tornar a Levante, por naõ podermos tomar o porto donde tinhamos sahido. Cessando a
tempestade, naõ cessáraõ as maldades dos máos, & pessimos, antes se accrescentáraõ,
como se em seu entendimento naõ houvera Deos. Vendo pois o piedoso Senhor a pouca
emmenda, que tinha obrado o seu passado castigo com outra nova ameaça a segunda vez
nos admoestou, a qual foy, que estando o tempo muy claro, & quieto, hum dia antes de
vespera veyo huma setta de fogo visivelmente a todos, & nos queymou a vella mestra, & o
traquete de quebra, & começava a arder o masto, senaõ acudiramos todos com muyta
diligencia a apagar aquelle fogo. Mas nem esse particular castigo aproveytou, porque era
chegada a hora de nossa perdiçaõ, naõ querendo mais o Senhor dissimular com tantas, &
taõ desavergonhadas maldades, vendo cada hora accrescentarem-se hũas culpas a outras,
naõ havendo nenhũa emmenda com as admoestaçoens da sua justiça: teve por bem darnos o
publico castigo que vedes: levando a todos as fazendas, & a muytos as vidas, & queyra sua
divina misericordia naõ levasse o demonio a alguns dos christãos as almas. As mais
particularidades vòs as vedes, que das lagrimas de cada hum podeis conhecer sua
enfermidade. E se naõ vedes, alli está aquelle senhor (mostrando-nos com a maõ hum
homem honrado, que estava como morto) o qual trazia nesta náo mais de oytenta mil
cruzados, os mais em pedraria, & escapou com só/mente 59 hum annel no dedo, do que seja
para sempre nosso Deos, & Senhor louvado.
Em verdade, que a pratica daquelle homem, a qual elle naõ fez sem muytas
lagrimas, nos moveo a todos de tal maneyra, que houve poucos entre nòs, que naõ
deyxassem de derramar algumas, compadecendo-nos de tantas miserias. Entre outras que
alli soubemos, foy, que vindo naquella náo hum Padre da Companhia de Jesu, Sacerdote
muy honrado, & devoto, o qual tinha sido judeo, & era grande Hebraico, natural da cidade,
de Roma: & depois convertendo-se a nossa Santa Fè Catholica, & recebido o santo
Báptismo, se deu ás letras, & estudou a Sacra Theologia: na qual bem instruido, pedio
46
licença ao Sumo Pontifice Pio IV. que naqelle tempo governava a Santa Sé Apoftolica, para
ir às partes do Oriente converter alguns Judeos á Fè Catholica: & sendo-lhe concedida, se
partio de Roma, & foy ter a Egypto, estando algũs mezes no graõ Cairo, prègando aos
judeos, vendo q co elles nenhũa cousa sua doutrina frutificava se veyo a Alexandria, aonde
pregando aos judeos da mesma maneyra sem poder molificar sua dureza, determinou
tornarse a Italia, & embarcou-se na mesma náo Quirina, & passou com os mais o dito
naufragio, do qual ainda que escapou, naã, foy sem muyto perigo de vida. Ao tempo que a
náo se perdeo, se chegou a este Padre hum mancebo judeo, & tocado de nosso Senhor, lhe
perguntou que remedio teria para escapar daquelle perigo com a vida: & o Padre da
Companhia com poucas palavras, que o tempo naõ dava lugar para muytas, tomou huma
cana: que acaso achou diante: & rachondo-a pelo meyo, fez huma Cruz della, & mettendo-a
na maõ ao mancebo Judeo o admoestou que prometesse a Deos de se fazer Christão, /
60
porque logo teria salvaçao, & remedio. Fez o mancebo Judeo muy de coraçaõ o
promettimento, & sem saber de que maneyra se achou salvo em terra. Naõ foy este
mancebo ingrato a Deos, como a judia de Coimbra, de que atraz fica dito: antes logo se foy
comnosco á náo para que o catequizassemos, & doutrinassemos na nossa Santa Fè: &
depois o levamos comnosco atè a cidade de Nicosia Metropolitana de todo aquelle Reyno,
& Ilha: & foy entregue a Monsenhor Estanga, Legado Apostolico naquelle Reyno por Sua
Santidade, por estar o Arcebispo occupado no sacro Concilio, que se celebrava em Trento,
o Legado o mandou logo ao nosso Mosteyro de S. Francisco da Observancia, que está na
mesma cidade de Nicosia, para q o ensinassem, & doutrinassem: o q feyto como elle
mandou, passados poucos dias, na Sè Cathedral cõ muyta festa, & solẽnidade, o baptizou.
Sabia aquelle mancebo fallar muy bem a lingua Castelhana, que lha haviaõ ensinado seus
pays, q foraõ fugidos de Hespanha, segundo elle affirmava.
Depois da perdiçaõ daquella náo Quirina, estivemos algum tempo naquelle porto,
por o tempo ser muy contrario á nossa navegaçaõ: no qual os nossos vendiaõ suas
mercadorias: & faziaõ seu proveyto: & os da náo perdida, que aviaõ escapado, recuperavaõ
muytas cousas, que o mar cada dia lançava fóra, & nòs tambem tivemos lugar para ver
muytas cousas de nosso gosto, que havia naquella parte da ilha. Neste espaço de tempo
tomou tanta amisade com meu companheyro, & comigo, hum mancebo Grego, morador em
47
huma aldea, que se chamava Thimo, hũa grande milha de Papho, que naõ sabia estar sem
nòs, provendonos de quanto refresco podia haver na terra, sem algum interesse, & dando
nos sem nos entender alguns banquetes custosos em sua casa; /
61
nem nòs entendiamos a
elle, salvo por interprete, que sabia algũa cousa pouca da lingua Italiana: & algumas vezes
tomava este mancebo huma faca na maõ, & tirando com a outra a lingua fòra, dizia que lhe
vinha tentaçaõ de a cortar, porque naõ podia dizer, quanto amor nos tinha. E naõ sómente
alli em Thimo, aonde morava, nos mostrou aquelle amor muytos dias por obras, mas ainda,
depois estando nòs em Nicosia, nos foy lá visitar em pessoa, sendo trinta legoas de
caminho, & nos levou muytas cousas, entre as quaes a cada hum hũa duzia de lenços de
olanda muyto fina qual se faz em Thimo, & em algumas partes daquella Ilha: & naõ
contente com isto, estando nòs em Hierusalem, lá nos escreveo, rogando-nos que tornandonos nosso Senhor a salvamento, tivessemos por bem de vir por aquellas partes, sendo em
nossa mão, promettendo de nos prover de quanto fosse necessario para o mar. Neste tempo
que aqui estivemos, vendo tanta tardança, por naõ acabarem de cursar os ventos contrarios
á nossa navegaçaõ: buscamos todos os meyos possiveis para nos irmos por terra a Nicosia:
mas affirmando-nos muytos, que o caminho alem de ser comprido, era muyto aspero, &
cheyo de ladroens estradiotos, desistimos do proposito. Vivendo neste conflicto, quiz
Nosso Senhor visitarnos a cabo de vinte & tantos dias, que alli estavamos detidos, &
acudirnos com vento prospero, ainda que escasso, que daquelle porto nos tirou. Partidos
dalli com muyta alegria, ao terceyro dia nos tornou a faltar o vento, & tomámos porto junto
a outra cidade chamada Limison, aonde nos detivemos dous dias. Esta cidade Limison, está
direyta com o porto de Japho, & a elle vão tomar a paragem, os que querem ir de Chipre á
Terra Santa. Tem duas igrejas cathedraes, huma que faz á Latina, /
62
& a outra que faz á
Grega, mas ambas de pouca magestade, & sem muyta authoridade, por ser o territorio
pobre, & naõ haver tratos nelle, nem vimos naquella cidade cousa alguma de notar, ainda
que he muyto mayor que Papho. Passados dous dias nos partimos daquelle porto, &
puzemos tres atè o de Salinas, de nòs taõ desejado, aonde dèmos muytas graças a Nosso
Senhor por nos haver a elle trasido.
48
CAPITULO XIII.
Do porto de Salinas.
O Porto de Salinas, ou como alguns querem, de Salamina, he o mais principal, &
mais frequentado de toda a Ilha, & Reyno de Chipro: & a elle de necessidade haõ de ir
aportar todas as náos Venesianas, que vaõ áquellas partes, & nelle carregaõ, & descarregaõ
suas mercadorias, porque em nenhum outro porto da Ilha lhas despachaõ: & o mesmo he de
qualquer outra náo, ou navio de qualquer naçaõ q seja, que tem que negocear na Ilha. Ao
tempo q alli chegámos, achámos no porto a náo dos peregrinos do veraõ passado, que por
desordem, & pouca diligencia do patraõ, havia alli invernado o veraõ passado com grande
detrimento, & perda dos peregrinos: os quaes vendo-se enganados, os ricos buscáraõ seu
remedio por onde pudèraõ, & os pobres ficáraõ se na Ilha, padecendo muytas necessidades;
& passando mil miserias, atè a primavera; que os havia de tornar a Veneza a mesma náo,
que alli os havia trasido pelo contrato que ao tempo da embarcaçaõ para a Terra Santa com
o/
63
patraõ fizeraõ. Entre aquelles peregrinos ficáraõ quatro mulheres Hespanhoes, hũa
dellas preta criada em Portugal; a qual sendo forra, fez aquella santa jornada: naõ pedindo
de porta em porta, como muytos fazem, mas com suor de seu rosto, dando-se antes muytos
annos a lavar roupa por dinheyro, atè que ajuntou o que lhe pareceo poder avia mister, antes
dando, que pedindo, q parece ter ouvido aquelle dito do Senhor Jesu, q seu glorioso
Apostolo S. Paulo allega, dizendo: Beatus est magis dare, quam accipere, mais
bemaventurada cousa he dar, que pedir: faço aqui memoria desta preta, por ser hũa femea,
ainda que preta no corpo, por certo na alma muy branca, segundo o que comprendi da sua
muyta virtude, confessando-a em Veneza antes da partida: & aqui, estando ella esperando a
náo, para a tornada. Os peregrinos ricos, que em outras embarcações chegáraõ primeyro a
Veneza, tanto que chegaraõ se foraõ á Senhoria, & lhe dèraõ conta da sem razão, que lhe
fora feyta, pedindo do patraõ justiça: & o principe mandou satisfazer inteyramente a cada
hum conforme ao contrato feyto com o patraõ, ao tempo de sua embarcaçaõ, &
recompensarlhe o detrimento passado: & muyto mais aos pobres, depois que tornáraõ a
Veneza, & tudo da fazenda do patraõ. O qual tanto que tornou foy preso por mandado do
49
Principe, & na prisaõ esteve muyto tempo para exemplo dos outros. Chamava-se aquella
náo a Venera, na qual tambem se embarcou hum homem honrado Portuguez, por nome
Aurelio Freyre, criado do Senhor Dom Fulgencio de Bragança, & em seu nome, por elle ter
impedido a fazer aquella tanta jornada, como tinha determinado, foy visitar os santos
lugares, que commummente dos peregrinos saõ visitados. A causa da desordem daquelle
patrão, foy, que /
64
levou comsigo sua mulher a Hierusalem, & á volta, como ella, q tinha
irmãos, & parentes naquella ilha, quizesse folgar com elles mais do que o tempo lhe
permittia: & descuydando-se de carregarem a náo, naõ poderão partir quando convinha, &
assim lhe foi forçado invernarem na ilha. Tanto que a Salinas chegámos, soubemos as
muytas necessidades, que os nossos frades passavão em Hierusalem, por causa de haver
dous annos, que naõ tinhaõ lá Guardiaõ, nem eraõ providos de Franquia em todo aquelle
tempo; no qual viviaõ como esquecidos, tendo sómente hum Vigario Bergamasco, que
ainda que era virtuoso, & bom religioso, naõ tinha sufficiencia para tão grãde cargo. E
assim demos ordem por via de mercadores, que naquellas partes trataõ, a que os frades
fossem remediados, atè que fossemos, porque para tudo de Veneza hiamos providos.
Fizemos tambem prover copiosamente a hũs seis frades nossos da familia passada,
que se tornavaõ para Italia, & por faltar a provisaõ aos que ficavaõ, hiaõ muy necessitados.
Depois de tudo isto, fizemos entregue de quanto para a Terra Santa levavamos, a
Misser Angelo de Nicolo, procurador, & sindico gèral dos nossos Frades naquellas partes
Orientaes, por nolo haver assim mandado em Venesa o Padre Bonifacio Guardiaõ de Monte
Sion, ao tempo que delle nos partimos: & depois que descançamos quatro, ou cinco dias em
Argana: determinamos nossa partida para Nicosia: este porto de Salinas, ou Salamina naõ
tem mais que hũas alfandegas, ou casas para recolher as mercadorias, & hum pequeno
Hospital com huma boa Igreja dedicada ao glorioso Saõ Lazaro; na qual todos os dias se
celebra, pela muyta frequentaçaõ do povo, que alli de continuo está; hũa milha de /
65
Salinas está hũa villa, por nome Argana, da qual os do porto se provem do necessario. Alli
tem huma boa igreja de Gregos, onde se faz muyto bem o officio divino todos os dias: &
está com melhor concerto do que eu vi outras muytas suas. Achamos aly hũa judia
Portugueza casada com hum judeo Portuguez médico, tido em toda aquella terra em conta
de muyto bom homem. Chamava-se Dom Joseph, & em Portugal Janalveres, natural do
50
Porto de Portugal. A mulher havia sido casada com outro marido, com o qual fugio de
Lisboa, & foraõ ter a estas partes, & elle morto se casou com este Dom Joseph. Perguntoume esta Judia muy affincadamente por hum seu irmaõ, nomeando-o por seu nome, &
dandome delle alguns sinaes, & rogando-me com muyta importunaçaõ, quizesse tomar á
minha conta tornandome Deos a Portugal, inquirir delle, & mandar-lhe novas suas, porque
o amava muyto: & que muy bem lhe podia eu negocear esta cõsolaçaõ pela via de Veneza,
pois as náos Venesianas, todos os annos hiaõ a Lisoa, & áquellas partes. Achey eu depois
que me nosso Senhor tornou ao Reyno, ao irmaõ desta Judia, mercador rico, & tido em foro
de bõ Christaõ, dey-lhe as encomendas da irmaã, que elle naõ negou ser sua, mas mostrou
recebellas de má vontade.
A cabo de cinco, ou seis dias, que estivemos em Argana: nos partimos para
Nicosia, que está hũas grandes oyto legoas de Argana: & tendo caminhado as quatro,
encontrámos com o padre Guardiaõ do nosso Convento de Nicosia, que com seu
companheyro, & o sindico da casa nos vinha buscar. Era este padre Guardiaõ hum homem
veneravel, & velho: o qual quando por Italia faziamos a familia, deyxou hũa muy principal
Guardiania por se ir cõnosco a Hierusalem, como /
66
como aquele mesmo anno fizeraõ
outros Padres Guardiães, & juntos os frades da familia em Veneza para se embarcarem, &
este foy feyto, & nomeado Guardiaõ do nosso convento da Observancia da Cidade de
Nicosia no Reyno de Chipre, Com a sua vista fomos muyto alegres, & recebemos grande
consolaçaõ, em especial eu, por ter com elle particular amisade, & fuy causa de o fazerem
Guardiaõ daquelle Convento. Como eu era companheyro do Padre Bonifacio de Aragusa,
Guardiaõ do monte Sion: & Commissario Apostolico em toda a Terra Santa, & ambos pelas
Provincias de Italia fizemos a familia de sessenta frades, q foraõ aquelle anno morar a
Hierusalem : os quaes embarcamos em Veneza na náo dos peregrinos o verão atras
passado, ao menos cincoenta delles, fizemos primeyro Guardiaõ de Nicosia, & de Belem, &
de Baruthi, & Vigron do Santo Sepulcro, & outro para S. Salvador, que he o convento
principal da Terra Santa: & por esta causa de o Padre Bonifacio naõ fazer cousa sem mim,
me tinhaõ os Padres da nossa familia muyto amor, & respeito, fazendome as honras, &
cortesia, q eu naõ merecia.
51
Tornou-se aquelle padre comnosco: porque naõ vinha a mais que a buscarnos: &
assi nos fomos alegremente tratando pelo caminho em boa conversaçaõ do remedio, que se
devia pòr no que tocava a se proverem os Pade Hierusalem, além do que já tinhamos
provido, & do mais, que se offerecia; atè chegarmos já quasi sol posto ao nosso convento
de S. Joaõ de Monforte, aonde achamos os Frades hum tiro de pedra, que nos estavaõ
esperando, os quaes com muyto amor nos receberaõ, & abraçáraõ: & com Te Deum
Laudamus á Igreja nos leváraõ, dando graças a nosso Senhor por nos /
67
ter livrado de
tantos perigos: & aos padres da nossa familia Hierosolimitana nos ter ajuntado; o qual para
sempre vive & reyna. Amen.
52
CAPITULO XIV.
Da cidade de Nicosia cabeça do Reyno de Chypre, & do tempo que nella estivemos.
NIcosia, cidade principal, & Metropolitana do Reyno de Chipre, he muyto grande,
& nenhuma cousa forte: & ainda que moram nella os principaes senhores de toda a Ilha: no
tempo que nella estive, era muy desconcertada, & mal povoada. Tem huma Sè Cathedral
muy sumptuosa, & de grande magestade de que faz á Latina cõ seu Arcebispo; tem outra
naõ de menos magestade, que faz á Grega, ornada de muytas imagens, entre as quaes ha
huma de nossa Senhora de pintura, que faz muytos milagres: digo de pintura, porque os
Gregos naõ consentem entre si imagẽs de vulto, na qual, assim Gregos como Latinos tem
muyta devaçaõ. Em tempo de necessidade de agua, ou sol, levaõ aquella imagem em
procissaõ a huma ermida fora da cidade, & naõ tornaõ por ella atè naõ alcançarem o que
pedem. Tem a cidade hum Convento de frades do Ordem do glorioso padre S. Domingos
conventuaes, outro tambem de conventuaes de nosso padre S. Francisco, & outro dos
padres Carmelitas : & todos os padres destes conventos saõ Gregos de naçaõ, mas fazem á
Latina, como em Itália. No mosteyro dos nossos padres conventuaes está hũa muy rica, &
sumtuosa sepultara, & nella sepultado o Infante Dom Joaõ filho / 68 terceyro, del-Rey Dom
Joaõ primeyro deste nome em Portugal, segundo affirma o Enchyridion dos tempos, o qual
Infante foy Príncipe de Antioquía, & depois Rey de Chipre per via de casamento. Na sua
sepultura estaõ as armas de Portugal esculpidas: & assi mesmo estaõ em hũ riquissimo
ornamento de brocado muy acabado em tudo, com seu panno de pulpito, & de estante, que
os Frades tem em muyta estima na Sancristia. Confesso que tive grande contentamento,
vendo aquellas Reaes insignias, que excedem a quantas tem todos os principes do mundo,
por serem dadas em batalha campal, naõ contra Chriftaõs, mas contra Mouros, inimigos de
nossa Santa Fè: por aquelle Deos, & Senhor, pelo qual todos os Reys reynaõ, & os
Principes tem domínio. O nosso mosteyro da Observancia; o qual he de nossa familia
Hierotolimitana está dentro dos muros da cidade, que saõ muy grandes, mas hũa grande
milha apartado do povo. He muy perfeytamente em tudo acabado: tem hum horto de quasi
meya legoa de circuito, no qual ha muytas palmeyras, que daõ muy lindas & grossas
53
tamaras, & em muyta quantidade, muytos generos de fruitas, & toda maneyra de arvores de
espinho em grande abundância, & de muyta fermosura. Este horto está dividido em duas
partes, huma possuem seis homens hortelões, que nelle vivem com suas familias de
mulheres, & filhos, com obrigação de terem muyto cuydado da parte que toca aos frades, de
a concertarem, & regarem, & tratarem como propria em tudo, & desta tem os frades sua
chave, como cousa de casa: & alèm disto da parte que toca aos seculares podem os frades
colher tudo o que lhe bem parecer, assi da hortaliça, como das fruitas para comer a
communidade, mas naõ para guardarem, & alèm disto hũa certa esmola de dinheyro / 69 ao
sindico para as necessidades dos frades: porque naquellas partes, inda que somos
observantes, naõ pedimos pelas portas. Temos neste nosso mosteyro hum corpo santo
inteyro, que faz muytos milagres, & chama-se Saõ Joaõ de Monforte, foy Conde, & Senhor
de hũ lugar assim chamado, & segundo affirmaõ, cavalleyro da ordem dos Templarios, em
cujo principio houve muytos Santos; & do nome deste glorioso Santo se intitula a Igreja, &
Mosteyro; o qual foy Abbadia de mõges de S. Bento: & pelas muytas rendas que tinhaõ, &
pela terra ser fertilissima, pelo tempo se foraõ desviando do rigor de sua profissaõ, que foy
a causa principal porque perderaõ aquelle lugar; & muytos annos antes que o perdessem
hum monge muyto espiritual da mesma casa profetizou como aquelles monges haviaõ de
ser dalli lançados, & o Mosteyro havia de ser entregue a varões Religiosos, & Apostolicos,
que andassem vestidos de sacco, & cingidos com corda, & calçados com calçado de páo. A
qual profecia está esculpida em hũa pedra dentro da igreja do mosteyro & eu a li algũas
vezes, & a letra foy comprida, quãdo lançados dalli aquelles monges, foy o mosteyro
entregue aos frades menores de Saõ Francisco da Observancia, que daquella maneyra
vestem, & calçaõ em toda Itália. A renda que tinha o mosteyro no tempo, que alli me achey,
comia em Roma hum Cardeal, & eraõ sete mil cruzados: mas dava-se aos frades huma certa
copia de paõ, vinho, & azeyte com obrigaçaõ de hũa missa cada domingo, & Santo em hũa
cappella de Santa Maria Magdalena, que está hum pedaço fora do mosteyro: fomos muy
bem recebidos nesta cidade de Nicosia, do Monsenhor Estanga, Legado de Sua Santidade
naquellas partes, & sobre maneyra nos festejou o tempo que /
70
alli estivemos; porque á
nossa partida de Trento lhe escreveo o Arcebispo encommendando-nos muyto, & lhe
escreveo o padre Bonifacio, que era seu muy particular amigo havia muytos annos: & assi
54
mesmo nos festejáraõ os Cónegos, & os mais senhores da cidade: & muyto em especial o
Senhor Conde de Tripoli, & seus filhos, & o Senhor Dom Jacome: a hum dos quaes filhos
vi ter em muyta estima os Comentarios, que trataõ das cousas da nossa India Oriental,
escritos pelo Senhor Dom Hieronymo Osorio em lingua Latina, & perguntavame muitas
vezes, se aquellas cousas passavaõ assi na verdade: espantando-se muito por eu dizer, que
inda havia pessoas vivas, que se acháraõ naquellas grandes batalhas, assi navaes, como
campaes.
Naõ sómente por respeyto do Legado nos festejavaõ todos estes senhores, mas
também por sermos espanhoes, cujo nome naquelle Reyno de Chipre he muy querido, porq
affirmaõ ser de direyto do Duque de Saboya, filho de hũa Portugueza: & pelo contrario tem
hum ódio muyto grande, & secreto aos Venesianos. Como o Senhor Legado
demasiadamente nos honrava, vindo-nos alguas vezes pessoalmente visitar a nossa casa; &
dando-nos outros banquetes na sua, todos commummente nos tratavaõ com muyta
humanidade. A gente popular de todo este Reyno, pola mayor parte he cativa dos senhores
das cidades, villas, & aldeãs, salvo aquelles, que por algũa via te privilegio para o naõ
serem. E este cativeyro he cousa de muytos annos: & querme parecer, que estando elles
sugeytos ao Graõ Turco, foraõ livres com esta condiçaõ, segundo ouvi dizer, & assim nos
casamentos tem sempre muytos embaraços sobre he cattivo, he livre, segundo algumas
vezes me contou o Vigairo Gèral; & hua passou estando /
71
eu presente. Hum costume:
muy novo vi nesta cidade, que me poz em admiraçaõ; o qual he, que indo eu hum dia por
hũa rua, vi levar a enterrar á Igreja hu fidalgo muy principal: & hiaõ com elle todos seus
parentes, & amigos, & diante os escravos, & escravas, os quaes levavaõ pelas redeas
quatro, ou cinco cavallos, & dous machos, & todos cubertos de dó; chegando junto ao
alpendre da Igreja, subitamente sahiraõ della os clerigos com grandes trochos de páo nas
maõs, & começáraõ de dar nos escravos, & escravas, trabalhando pelos prender, como
prenderam hum, ou dous, & os outros com os cavallos fugiraõ, fíquey eu espantado de ver
hum taõ subito desatino, a meu parecer, & depois da cousa quieta, perguntey a significaçaõ
della: disseraõ-me ser costume naquella terra, quando falecia algũa pessoa nobre, & rica,
irem diante todos seus escravos, & escravas, cavallos, & mullas, & toda outra cavalgadura,
atè a porta da igreja, como eu vira aquelles: & que saindo os clérigos com seus páos nas
55
maõs, os escravos, ou escravas, ou cavalgaduras, que podiaõ tomar eraõ seus: & os outros
ficavaõ livres, & forros. Ha na cidade de Nicosia, & inda em outros lugares da Ilha muytas,
& muy preciosas reliquias de Santos, & tres legoas desta cidade, para a parte do Norte, está
o lugar, no qual muytos annos habitou, & passou desta vida á bemaventurança o glorioso
confessor Saõ Hilariaõ, & alli esteve seu corpo muytos annos sepultado. Daquelle lugar a
hũa legoa está com muyta veneraçaõ o corpo de S. Mamede, cuja sepultura atè o presente
mana óleo, com que fáraõ muytos enfermos, do qual eu trouxe hum vidrinho cheyo. Ha
dentro na cidade hũ Mosteyro muyto grande de caloiros, tidos em grande veneraçaõ, porque
vivem com muyta perfeyçaõ, e na obediência / 72 da Santa Madre Igreja Romana. E porque
já algumas vezes ey tratado deste nome caloiros, & assim mesmo ey de tratar outras, quero
aqui declarar o que significa este nome; & he, que assim como cá nestas partes, chamamos
aos Religiosos frades na nossa lingua portugueza, que quer dizer irmaõs, porque como taes
vivem em communidade: assim mesmo os Gregos chamaõ aos seus Religiosos caloiros,
que quer dizer homens bons, & santos: porque calo, na lingua vulgar Grega quer dizer bom,
& virtuoso, & na verdade os religiosos, & caloiros gregos pela mayor parte vivem
santissimamente, & com grande exemplo de sua vida, & costumes como eu algumas vezes
experimentey.
Tem esta Ilha, & Reyno de Chipre de circuito quatrocentas vinte & sete milhas, &
de comprido duzentas, he taõ abundante de vinho, que compete com Candia; tem muyto, &
bom azeyte, muyto trigo, muyto algodaõ, que levão para muytas partes: muyto trigo, muyto
açucre, muyto sal: fazem-se nella muytos, & muy finos chamalotes de diversas cores. Ha
nella muyto cobre, muita caparrosa, mineyros de hũa terra verde, cujo cheiro excede ao
almiscar, & tem muytas virtudes, muytas, & muy frutiferas palmas, & tem todas as cousas
necessarias á vida humana, que as pòde communicar com outras Provincias, & naçoens
estrangeyras, sem as haver a ellas mister para cousa alguma. Hum Author escreve desta Ilha
estas palavras: Tota insula Cypri delicijs incumbit, fœminæ admodum lascivæ funt; tam
eximiæ fertelitatis est ut olim Macaria, id est beata dicta sit, & tantopere luxuriæ dedita, ut
ob id Veneri sacra credita sit, & vocatur Venus Paphia, quia apud Paphum ei templũ à
gentibus ædificatum fuit. Toda a Ilha de Chipre he dada a delicias, as mulheres saõ /
73
muito deshonestas; he taõ Fèrtil, q foi chamada Macaria, em Grego que quer dizer,
56
bẽaventurada. He a gente della taõ sensual, que por isso se cré, que foy consagrada a
Venus; a qual por este respeyto se chamava Paphia, porque em Paphos tinhaõ hum templo,
o qual os gentios em sua honra alli tinhaõ edificado. Diodoro Siculo escreve, que teve esta
Ilha nove cidades grãdes, & de nome, as quaes cada hũa tinha seu Rey a quem obedecia.
Tem ao presente trezentos & setenta lugares, & villas, mas o ar he pouco sadio, & tanto que
no veraõ negoceaõ de noute, por cauta da grandissima quentura do Sol, cuja reverberaçaõ
faz muytas vezes cegar as pessoas. Chegámos a esta Ilha, junto da Septuagesima: & como
vinhamos muyto enfadados do mar, & achavamos taõ bom agasalado, determinamos estar
alli atè o meyo da Quaresma: por nos affirmarem ser costume antiguo naquella Ilha, sempre
ao sabbado antes da quarta Dominga da Quaresma a que chamaõ da Rosa, lançarem bando,
& pregaõ por toda a Ilha, que quem quizer ir ter a Santa Payxaõ, & Resurreyçaõ do Senhor
a Hierusalem, acuda a semana seguinte ao porto de Salinas, aonde acharaõ prestes
embarcaçaõ. Antiguamente sendo aquellas partes de Christãos, naõ sómente neste Reyno de
Chipre, & no de Egypto, mas em toda a Grecia, & partes Orientaes cosstumavaõ muitas
pessoas devotas ir ter a semana santa a Hierusalem, como se lè na historia de Santa Maria
Egypciaça, tomando em cada Reyno, ou Provincia o tempo conveniente para a jornada, &
hoje neste dia vẽ muytos Arménios, de Armenia Mayor, & Menor, & os do Monte Libano,
& de outras muytas partes, como eu vi com meus olhos, & disse em seu lugar. /
57
74
CAPITULO XV.
De como veyo o nosso padre Guardiaõ de Monte Siõ, & com sua vinda nos partimos para
Hierusalem.
HAvia hum mez que estavamos na cidade de Nicosia, quando nos dèraõ novas, que
era chegada hua náo Venesiana, na qual vinha o nosso Padre Bonifacio, Guardiaõ de Monte
Sion, com a qual nova fomos todos muyto alegres. Logo ao dia seguinte nos partimos para
o porto de Salinas o Padre Guardiaõ de Nicosia, & eu, ficando meu companheyro no
Convento para consolaçaõ dos padres, por ser homem summamente caritativo, & alegre, &
por outros respeytos. Chegámos ao porto de Salinas hum dia primeyro que a náo, porque
como ella tocou em Limison, sahio logo o escrivaõ em terra, & foy-se á cidade com cartas,
& outros negócios de importancia, & nos deu a nova. Estando nòs no porto esperando de
hora em hora, sobre a tarde vimos vir a náo, & logo nos metemos em hum batel, & fomos a
ella, & chegámos a tempo que lançavaõ ancora; o amor com que do padre Bonifacio fuy
recebido, levando-me nos braços, & tendo me apertado entre elles hum espaço, naõ o sey
dizer, nem menos as muytas palavras de amor, que naquelle interim me disse, & assi
mesmo me festejáraõ muyto cinco padres da nossa familia Hierosolymitana, que vinhaõ em
sua companhia. Hum delles portuguez, natural de Coimbra: o qual havia tomado o habito
em Hierusalem, & havia ido a Portugal a visitar parentes (que tanto pòde o amor natural
delles) & da volta tornando-se para a Terra Santa achou ao padre Bonifacio em Veneza, &
vinha com elle. / 75 Aquella noyte, por ser já tarde, nos ficámos na náo, & a passamos com
muyta alegria: & ao dia seguinte em amanhecendo tiraraõ fóra todas as cousas que haviaõ
de ir para Hierusalem, & fretáraõ huma caravella aonde as meteraõ, por serem muytas.
Quizera o padre Bonifacio, que logo nos partiramos para a Santa cidade,
mandando chamar primeyro meu cõpanheyro a Nicosia, mas com boas palavras o desviey
disso, dizendo-lhe, naõ ser cousa acertada deyxar de ir ver o Convento de Nicosia, &
consolar os padres, que nelle moravaõ, pois com as esperanças da sua vinda te sustinhaõ :
porque os frades quando se partem de suas provincias para a terra santa, naõ he seu
proposito irem morar a Chipre. Mas como de necessidade ha-de haver frades da mesma
familia, que morem naquelle convento, revesaõ muytas vezes aquelles a quem cabe a sorte.
58
Pareceo muyto bem ao padre Bonifacio meu conselho, & nos partimos sómente elle, & o
Guardiaõ de Nicosia, & eu ficando os mais padres em Argana, & no porto, provendo-se do
que convinha; chegámos ao nosso convento, aonde todos com muyta alegria nos estavaõ
esperando, & alli estivemos alguns poucos dias por importunaçaõ do Senhor Legado, & de
outros senhores, que em nenhũa maneyra nos queriaõ deyxar ir, de modo que estivemos alli
a semana Santa, no qual tempo o padre Bonifacio mandou prover de vestiaria, & do mais
necessario aos padres q haviaõ de ficar em Chipre porq de Veneza vinha provido de panos
muy copiosamente: & de todas as cousas, que se haõ mester na Terra Santa, aonde nenhũa
se acha, senaõ apelo de dinheyro, tirando os mantimentos corporaes, & ainda estes naõ
todos: porq os Mouros naõ sabem q cousa he toucinho, nem queyjo, & cousas semelhantes,
Consola/dos
76
os padres q fícavaõ, & dado-lhe esperanças, q tambem presto iriaõ, nos
partimos nas oytavas da Pascoa para o porto, levando em nossa companhia hum veneravel
padre da Ordem dos Pregadores, Grego de naçaõ, & Commissario géral da sua Ordem
naquellas partes, & Provisor pelo Senhor Arcebispo naquelle Reyno: o qual era
grandemente aborrecido dos Gregos, sendo elle muy virtuoso, & santo: mas como era
grande Letrado, & pregava muytas vezes, & em seus sermões cõfundia os erros, & enganos
dos Gregos, pelos saber muyto bem, lhe tinhaõ aquelle ódio. Quando chegámos ao porto
achamos tudo a ponto para nos podermos partir; o fato, & roupa metido em huma caravella
de hum Levantino, por nome Demetrio, muyto amigo dos frades de muyto tempo, & os
havia servido de Turcimaõ alguas vezes, por ser muy entedido, assim no Arabigo, como no
Turquesco. Estavaõ no porto hũas cinco freiras Gregas, a q tambem chamaõ caloiras, as
quaes vieraõ de outra parte de Grécia, com proposito de irem ter a Hierusalem a Pascoa, &
tanto q souberaõ aquella caravella estar tomada á nossa conta, desde a hora, q o padre
Bonifacio alli chegou, vindo de Veneza, naõ se quizeraõ embarcar com os romeyros, q
foraõ a semana santa determinando irem em nossa companhia, por mais reputaçaõ de suas
pessoas: & para isto meteraõ muytos rogadores Latinos, & Gregos, & em especial a Misser
Angelo de Nicolo nosso procurador, & sindico: o qual confiado na amisade, que tinha com
o padre Bonifacio, lhe tinha dado palavra de si. Ajuntou-se com estas caloiras huma mulher
de naçaõ Grega, que havia estado alguns annos casada em Itália com hu homem Latino
muyto principal, com o qual fazia à Latina: & depois que lhe faleceo o marido, se tornou à /
59
77
Igreja Grega, & se hia com outras duas mulheres suas morar a Hierusalem, & meter-se
em hum mosteyro de caloiras, por ser muyto rica, & querer deyxar o mundo. Era esta
mulher de hum estranho parecer: & como tinha muyto de seu, levava com as suas algum
modo de fausto, o que causava ter-se-lhe mais respeyto. Ajuntáraõ-se também comnosco
três caloiros de Santa Catharina de Monte Sinay, hum delles muy velho, & conhecido do
padre Bonifacio, & tido em grande reputaçaõ de santo em todas aquellas partes, como eu
creyo que o seria. As caloiras tanto que tiveraõ palavra do nosso procurador, muyto
confiadas foraõ-se logo meter na caravella, sem nòs o sabermos: & vindo-nos Demetrio
chamar para nos embarcarmos, metemo-nos em hum batel com os caloiros, & chegando a
bordo da caravella subio primeyro o caloiro velho, & vendo aquella mulher de taõ estranho
parecer, tornou-se logo a meter no batel, dizendo, q naõ havia de ir em taõ pestilencial
companhia. E perguntando-lhe o padre Bonifacio a causa: respondeo, que naõ sómente
aquella mulher havia de ser ruina espiritual de alguns dos que alli hiaõ; mas que tambem
havia de ser perigo corporal de todos, tanto q chegassemos entre Turcos. Ouvindo isto o
padre Bonifacio, que ainda naõ havia entrado na caravella, mandou que sahissem todos os
frades, & a Demetrio, que mandasse remar o batel para terra: dando por escusa, que haviaõ
pedido licença para tres, ou quatro: & que encheraõ a caravella de mulheres. Dormiraõ a
noyte seguinte as caloiras com as mais no navio ou caravella: & nòs em terra ao dia
seguinte junto do meyo dia, vendo ellas que naõ tornavamos, entendèraõ que naõ as
queríamos levar em nossa companhia, & sahiraõ-se da caravella: & em anoutecendo nos
torná/mos
78
a embarcar, & démos á vella caminho de Limison, que he o lugar, aonde se
toma a paragem para o porto de Jope, ou Japho, como commummente se chama: & por
falta de vento estivemos três dias no caminho. Naõ fiquey pouco edificado, do que vi fazer
áquelle caloiro velho, lembrando-me semelhantes exemplos, que tinha lido no livro de
Vitas Patrum, & nas Collações de Cassiano: & taes cremos serem aquelles caloiros, q
vivem naquelles desertos, quaes foraõ os do outro tepo. Chegados a Limison, esperamos
outros dous dias, & hua madrugada dèmos á vella para a Terra Santa, á gloria, & louvor de
N. S. Jesu Christo, q para sempre &c.
60
CAPITULO XVI.
De como chegamos ao porto de Japho, & do que nelle passamos.
DOus dias depois que partimos de Limison descobrimos o Monte Carmello: o qual
está á parte Oriental de Japho quasi vinte legoas: & como he muyto alto, & sahido ao mar,
ve-se primeyro, que toda a outra terra da Palestina. A tarde do mesmo dia vieraõ ter
comnosco alguns passaros, & duas rollas, com cuja vista nos alegrámos todos: & eu em
particular pelos grandes desejos que tinha de me ver já em Terra Santa: & qualquer cousa
daquellas partes nos accrescentava. Ao terceyro dia, ás nove horas da manhãa, chegámos ao
porto de Japho, & em lançando ancora acudio logo hum Genízaro, que alli morava, &
estava em guarda daquelle porto: & nos fez sinal de paz, sem o qual naõ nos era licito sair
em terra. Sahimos logo / 79 todos os frades da caravella, & beyjamos com muyta devoçaõ a
terra: & os mais com lagrimas: dando muytas graças a Nosso Senhor, por nos haver trasido
a porto, & terra de nos taõ desejada. Repousando hum pouco, mandou logo o Genizaro
trazer muyto refresco, & o padre Bonifacio, que com elle tinha conhecimento, por haver
estado outras vezes naquelle porto, lhe rogou, que nos mandasse matar algum pescado, o
que elle fez de muyto boa vontade, chamando á mesma hora hum seu filho, mancebo bem
disposto, o qual com huma tarrafa em bem pouco espaço tomou tanto peyxe, que nos
causou espanto, porque parece telo em viveyro. O mais delle eraõ tainhas, & choupas, &
tomáraõ hum valente corvinacho. He o pescado naquella paragem muyto em quantidade, &
muy gostoso em qualidade; & muy poucas vezes o pescaõ, salvo em semelhante occasiaõ:
ou quando o padre Guardiaõ de Hierusalem o manda tomar no advento, & Quaresma, &:
quando lhe parece ser necessario para os frades: porque os mouros naquellas partes muy
poucas vezes o comem; assim porque em todo o tempo comem carne, como por muytos
delles serem de opiniaõ, que os peyxes saõ bichos do mar. Os christaõs da terra naõ comem
pescado na Quaresma, salvo dia de Ramos, & dia de Nossa Senhora de Março; & sendo alli
o pescado mais, que em nenhuma parte de Levante, tomaõ-no quando, & quanto querem.
Alli vi hum moço da caravella com hum prègo retrocido, per falta de anzolo, tomar tanto
pargo, que muytos delles se perdiaõ. O porto, & toda a costa naquella parte, he praya muy
61
perigosa para os navegantes: sómente junto da terra está hum pequeno recolhimento,
cercado de rochedo, como ilhotes, no qual pódem estar cinco atè seis navios pequenos: mas
como chegámos alli com / 80 tempo claro, & sereno, naõ fizemos conta delle, & mais sendo
nosso proposito estar alli pouco espaço. O mesmo dia, que alli chegámos, mandáraõ recado
à cidade de Rama, ou Bamula, ao Lamy (que he hum Turco nobre, que alli está o mais do
tempo, para os negócios de importancia, que naquellas partes se offerecem) para que nos
mandasse alguas guardas, q nos defendessem dos Árabes, que alli soem acudir das
montanhas de redor, tanto que sentem no porto algum navio de Christaõs, & assim mesmo
mandáraõ recado a Hierusalem ao Vigario do Convento de S. Salvador, para que viesse
com o Turcimaõ, & guardas, que comnosco haviaõ de ir, & com tudo o mais necessario dos
camellos, & ca-valgaduras. Ao seguinte dia, pela manhãa chegáraõ cinco mouros com seus
arcos, & settas, os quaes mandava o Lamy para nossa guarda: ou para melhor dizer, para
nossa inquietaçaõ, & enfadamento. Estavamos quasi todos em terra ao tempo que aquelles
mouros chegáraõ: & vendo os perros isto, começáraõ a dar gritos, & a fazer grande alarido,
dizendo que havíamos sahido em terra sem licença. Acudio togo o genizaro aos seus
grandes brados: & lhe disse, que elle nos mandára sair, & reprehendeos da pouca razaõ que
tinhaõ em nos querer afrontar daquella maneyra: mas nem isto bastou para se aquietarem,
antes de novo tornáraõ a dar mayores brados, dizendo que nos tornassemos logo a
embarcar: & que depois que lhe pagassemos o trabalho do seu caminho, sairiamos em terra.
Toda esta canalha avarenta, & interesseyra, sem verdade, nem piedade, nem temor de Deos:
& para sahirem com o que pretendem, fundaõ toda sua justiça em brados, & em dar muytos
gritos sobre cousa, que muytas vezes naõ peza hũa palha: mas aqui naõ tinhaõ tãta ousadia,
ainda /
81
que demasiadamente amostravão: porque os refreava a presença do genisero, q
acodia por nós: & saberem, que naõ podia tardar muyto a gente, que para nossa guarda
havia de vir de Hierusalem. Detivemonos com estes mouros em altercações espaço de meyo
dia, naõ nos querendo nòs embarcar, como elles queriaõ, para da terra fazerem o preço á
sua vontade, com prejuizo nosso; mas de tal maneyra se houve o genisero, que os
contentamos em algua maneyra na paga, & se quietáraõ. Era este genisero de naçaõ ungaro,
christão arrenegado. Tinha tambe comsigo seu pay, & arrenegado já muyto velho: era
home, segundo as mostras de fora. muyto bem criado: cheo de mansidaõ, & piedade, tinha
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duas molheres por se conformar com os turcos, & mouros: sua vivenda era a renda dos
direytos que se pagavaõ naquelle porto, a qual lhe tinha dado o grão turco por serviços, que
lhe tinha feyto: & com isto sua lavoura, e outras achegas. E junto á casa, tinha num grande,
& fermoso canaveal de açúcar. Mostrava-se este ungaro sobre maneyra devoto, &
ceremoniatico no que tocava a sua maldita seyta, porque ao tempo que havia de fazer o seu
fallá, ou oraçaõ (fallando a seu modo) como elles coftumaõ em certas horas do dia, se vinha
á praya diante de todos, & depois de se lavar todo (como fazem os mouros) se punha de
giolhos, & hora de bruços, hora levantado com as mãos, & os olhos fitos no Ceo, mostrava
a seu modo hũa apparencia de tanta devaçaõ, & parecia taõ enlevado, que queria dar a
entender outra cousa, mais daquillo que nòs bem sabiamos, que elle era perro arrenegado,
& fementido, inimigo de toda a verdade. Aquella tarde vieraõ alli aportar tres navios de
mouros, carregados de mercadorias, os quaes vinhaõ de Sidonia, & hiaõ para o / 82 Egypto;
& tanto que chegáraõ, meteraõ-se dentro no porto pequeno, que tenho dito, por estare mais
seguros: o que fizeraõ com sospeyta de mudança de tepo, como succedeo. Ao dia seguinte
de madrugada estando o mar de calmaria, começou-se a empolar, com se levantar hum
levante grandissimo: & a nossa caravella começou a perigar, estando sobre ancora fóra do
porto, & dentro nella dous frades, & tres seculares. Nòs estavamos em hũas choupanas
feytas de taboas, & esteyras sobre dous ilhotes do porto, creceo tanto o vento, & inquietouse tanto o mar, que tememos perderse-nos a caravella, com quanto vinha nella: por estar em
parte de todo desabrigada: & com grande enfadamento, & temor, passamos todo o dia
esperando de hora em hora a misericordia do Senhor Deos: & com a vinda da noyte se nos
dobrou a tristeza. Estando neste trabalho o genisero veyo ter comnosco, & rogou com
muyta efficacia ao padre Bonifacio, que quizessemos ir descançar, & dormir a sua casa, o
que se lhe agradeceo muyto, mas naõ se lhe aceytou: porq quem naquellas partes quer viver
em paz, ha se de guardar muyto de entrar em suas casas, & evitar sua estreyta converíaçaõ,
por mais amigos que se mostrem em especial nas casas aonde houver mulheres. Vendo o
mestre de hum daquelles navios, q naõ aceytavamos a pousada do genisero & entendendo a
causa: foy com o seu batel aonde estavamos, & nos importunou muyto, q quizessemos ir
para o seu navio, que era mayor, que os outros dous; o que aceytámos de boa vontade,
forçados da necessidade, & nos fomos com elle, & toda a noyte estivemos juntos, &
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apartados dos mouros com muyta tristeza, vendo o perigo da nossa caravella, porque já
quasi noyte lhe quebrou huma amarra, & ficou sómente com outra. / 83 Vendo isto o padre
Bonifácio, mandou-nos pòr a todos em oraçaõ, dizendo primeyro a ladainha cantada entre
infieis: & de consentimento de todos promettemos certos jejuns á Virgem Maria nossa
Senhora: pedindo-lhe que nos quizesse livrar de taõ grande perigo: & tambem fizemos voto
de irmos descalços de Hierusalem a Bethlem, o que depois se comprio fielmente. Havia
muyta razaõ para se fazerem tantos votos, porque naõ sómente perigavaõ os que dentro na
caravella estavaõ, mas tambem o fato que nella vinha; o qual era toda a provisaõ da nossa
familia hierofolymitana: & todo o necessario para hum convento, assim de alfayas, como
de muy ricos ornamentos de ouro, & seda para o culto Divino: entre elles hum de
grandissima riqueza, & fermosura, que nos havia dado o papa em Roma, com mitra, &
gremial, de que dizem naõ usarem os papas: & outro que á custa da Terra Santa comprámos
por mil cruzados em Florença: & outras muytas peças de prata: que nos haviaõ dado em
Veneza, & em outras partes para a Terra Santa, quiz nosso Senhor, que á madrugada do dia
seguinte, começou de abrandar o vento, & fez tranquillo, & bonançoso: & em
amanhecendo, com ajuda dos mouros começáraõ a despejar a caravella de alguma cousa de
mais pezo, & menos valia, como madeira, & hũas cayxas com estanho, & cobre, porque na
Terra Santa naõ nos servimos com barro. E tudo mais que cõ presteza se pode boamete
tirar. E isto feito, vieraõ os mouros dos navios, & com os seus bateis levando a caravella á
toa, a metèraõ dentro no porto, que tenho dito: & alli estivemos outros dous dias esperando,
que nos viesse recado de Hierusalem, os quaes passamos alegremente louvando ao Senhor
Deos. /
64
84
CAPITULO XVII.
Da porto de Japho & sua antiguidade.
A Cidade Japho, porto onde cõmummente vaõ ter os peregrinos, que vaõ visitar os
lugares da Terra Santa, foy hũa das mais antigas, nobres, & fortes de todo Oriente. Foy
fundada por Japheth filho menor do Patriarcha Noè, no que mostra quanta seja sua
antiguidade. No livro primeyro dos Machabeos he nomeada muytas vezes esta cidade, & o
evangelista S. Lucas na sua historia dos Actos dos Apoftolos, & Jofepho nos seus
commentarios de bello Judaico, trata della muytas particularidades, & de sua fortaleza. Ao
porto desta cidade veyo ter o profeta Jonas, quando indo fugindo da face do Senhor Deos
(da qual he impóssivel algua creatura poder fugir :) buscando embarcaçaõ para se acolher
caminho da cidade de Tarso de Cicilia. Ao presente he quasi de nenhũa memória, somente
tem algus vestigios de suas ruinas. Naõ muyto longe do mar, em hũ outeyro estaõ duas
torres pequenas, & muy pouco fortes: hua junto da outra, cada hũa dellas tem dous falcoens
de bronze, mais para serem vistos, que para damnificarem a quem os vè, & arrimada a hũa
destas torres está a casa do genisero, de maneyra, que a cidade, & aquelle porto em outro
tempo taõ forte, & nomeado, ao presente naõ tem algũa resistencia, salvo a cobardia dos
Christãos: porque qualquer pequena galè o pòde tomar, posto que haverá mister muyto
poder para o poder sustentar. Hũ tiro de pedra junto á borda do mar, em hum lugar algum
tanto alto estaõ hũs cinco, / 85 ou séis cubellos de abobeda, largos, & compridos, á maneyra
de taracenas, & da parte da terra tem por muro a rocha: mostraõ servirem em outro tempo
de fazerem dentro delles navios, ou galés, agora servem de se acolherem a elles da chuva,
calma, ou frio: os que áquelle porto vem ter. Em cima destes cubellos estão ainda as
paredes de hũa igreja, que alli foy edificada em tempo de chriftãos á honra do Apostolo S.
Pedro, na casa que foy de Simaõ Coriario, onde elle estava, quando sendo buscado dos
criados de Cornelio Centurio, vio a visão do lançol cheyo de animaes immundos, que
baixava do Ceo; nesta mesma cidade o dito glorioso Apostolo resuscitou a Tabita. Dentro
na agua no porto, naõ muyto apartados da terra estão os penedos a modo de ilhotessinhos,
aos quaes alguns poetas contaõ, que estava atada Andromeda, filha de Cepheu, quando foy
65
de Perseo livre, a que naõ fosse tragada do monstro marinho. Se a historia he falsa, ou
verdadeyra, julgue a quem para isso tiver authoridade. S. Híeronymo sobre Jonas Profeta,
diz estas palavras: Hic locus est, in quo usque hodie saxa monstratur in litore, in quibus
Andromeda religata Persei quondam fuit liberata prœfidio. Este he o lugar, em o qual atè
hoje se mostraõ os penedos, & a praya, em os quaes Andromeda amarrada foy livre cõ o
favor, & ajuda de Perseo. Eu sómẽte dou testemunho, & affirmo, que com meus olhos vi, &
com minhas mãos tratey as bases da coluna, a que dizem foy atada ; as quaes estaõ lavradas
na mesma rocha, & penedos dentro no mar com grandissima curiosidade de folhagens de
obra corinthia, ainda que já gastada, & comidas assim do mar, como do tempo: & como eu
tinha lido a historia, andando devagar vendo hũa, & outra cousa, seguindo nisto minha / 86
natural inclinaçaõ, dey acato com estas bases, & com raçaõ as mostrey aos companheyros,
louvando mais a subtileza, & curiosidade da obra, que tratando da historia gentilica.
Escrevo aqui isto, naõ por de todo o crer, mas porque o escrevem authores graves, ainda
que gentilicos ; & assim deyxo de escrever muytas cousas que vi naquellas partes, que inda
que naõ vem a proposito de meu intento principal, saõ gostosas aos lidos, & curiosos : mas
acho melhor passallas em silencio pela multidão dos grosadores deste tempo. Estivemos
aqui neste porto quatro dias inteiros, esperando a hora de nossa partida com grandissimos
desejos, por darmos termo ao fim delles, o qual era chegarmos á santa cidade de
Hierusalem, por cujo respeyto nos puzemos a tantos perigos, & trabalhos.
As náos de Christãos, que vem ter a este porto, se o querem tomar, pagaõ grandes
direytos, inda que naõ tragaõ mercadoria algũa, nem as pertendaõ levar da terra: mas se saõ
navios pequenos pagaõ muy pouca cousa, pelo que costumaõ os venesianos, a náo que leva
os peregrinos ficar em Chipre negoceando suas cousas: & embarcaõ-nos em hũa caravella
pequena: & com elles vay o escrivaõ da náo para os levar, & trazer com toda a seguridade,
pagar-lhe os tributos, & provellos do necessario, confórme ao contrato feyto em Veneza ao
tempo da sua partida. Ao quinto dia pela manhaã chegáraõ as guardas que vinhaõ de
Hierusalem, & feriaõ atè vinte de cavallo, & com elles o Lamy que he como guarda mòr, o
qual era hum turco, como homem de cincoenta annos, de muy fermoso aspecto, & pessoa i
de grande authoridade ; vinha todo armado de armas brancas muyto ricas, & em hum
cavallo encubertado, & outro á destra da mesma maneyra : somente trazia a /
87
cabeça
66
desarmada, & nella hũ turbante, ou fayxa ao modo turquesco. Vinha com elles o nosso
padre vigário do convento com outros tres padres companheyros, & o turcimaõ Jacob, que
nos serve em Hierusalem de lingua, & outros tres familiares dos frades de Belem, que saõ
Musa, Bochali, & Joseph, & com elles outros christãos, & mouros almocreves com
camellos, & outros animaes de carga para levarem o fato, & para nossas pessoas.
O lamy, tanto que se apeou, foy-se ao padre Bonifacio com grande cortesia, &
gasalhado, & lhe tocou a maõ, em final de amor, & reverencia, & tocando-lha beyjou a sua
propria, & a mesma ceremonia fez aos frades, que vinhamos em companhia (costume
louvavel em todo Levante, & ainda em Roma entre a gente de primor) & disse
publicamente, q elle era amigo muy particular de todos os frades, & que os dous annos
atraz lhe havia faltado a provisaõ da terra de christãos, & elle sem nenhũ interesse, lhe
havia emprestado todo o trigo, & dinheyro, que houverão mister, cousa certo muito de
agradecer, & louvar; porq raramente se acha entre christãos obra tão piedosa, que o
dinheyro sómente passava de duzentos cruzados. Deu-lhe o padre Bonifacio muytos
agradecimentos, & lhe appresentou hum relogio, que dava horas, feyto com muyta
curiosidade, offerecendo-se tambem para tudo, o que de nossa pobresa se quizesse servir, &
que em nòs chegando a Hierusalem mandaria satisfazer toda a divida.
Feytos todos estes comprimentos, & com elles hũ breve almoço, começáraõ a
carregar os camellos, os quaes se carregaõ muyto devagar: & depois os outros animaes, &
postas todas as cousas em ordem, satisfeyto /
88
muyto bem o genisero, guarda do porto,
começámos de caminhar para a cidade de Rhama. Tanto que todos foraõ enfiados no
caminho (porque assim he costume naquellas partes irem huns apoz outros) hum daquelles
turcos de cavallo, que hiaõ em nossa guarda, desparou huma espingarda, que levava bem
mal cevada, & devia ser por falta de polvora, no que todos os mais com grande grita
mostráraõ tanta alegria, & fizeraõ tanta festa, como se com aquelle tiro fizera algũa
espantosa maravilha.
Como aquelle caminho de Japho a Rhama he quasi todo campina, hiaõ aquelles
turcos folgando, & escaramuçando huns com os outros com tanta graça, & gentileza, que
nos davaõ recreaçaõ com sua vista, & algũas vezes nas arremeteduras se derribavaõ huns
aos outros, mas tudo com paz, & por passatempo. Os seus cavallos pela mayor parte, saõ de
67
meaã estatura, delgados, & de pouco comer & assim saõ em extremo ligeiros, &
sufficientes para o trabalho. Indo assim com este gosto chegámos jũto a hua Igreja, que
estava pouco desviada do caminho, dedicada á honra do glorioso S. Jorge, no qual lugar nos
affirmáraõ os christãos que hiaõ em nossa companhia haver nascido aquelle bemaventurado
martyr: mais adiante dèmos com outra igreja grande, toda inteyra, & muyto bem acabada,
com hum fermoso campanario sem sinos, que fora de christãos, & agora por nossos
peccados serve de Misquita de mouros, que moraõ em huma aldeã que alli está ; chamavase aquelle lugar em outro tempo Lida, no qual o bemaventurado Apostolo S. Pedro sarou a
Eneas, & dalli sendo chamado dos christãos de Japho foy resuscitar a Tabita, como lemos
no livro dos Actos dos Apostolos, que escreveo o glorioso S. Lucas, fizemos alli oração, &
com/memoraçaõ 89 ao Apostolo S, Pedro, & seguindo nosso caminho chegámos á cidade de
Rhama com mais de duas horas de sol.
68
CAPITULO XVIII.
Da cidade de Rhama ou Rhamula, & do tempo que nella estivemos.
SAõ de Japho á cidade de Rhamula dez milhas, as quaes andámos alegremente
como atraz fica dito.
Chegando a esta cidade, a que alguns chamão villa, fomo-nos aposentar a hũas
grandes casas, ao modo de hum competente mosteyro, as quaes estão á conta dos nossos
frades: & o padre guardiaõ de Monte Sion tem alli posto hum caseyro, que tenha cuydado
dellas, para as ter limpas, & concertadas quando vaõ os peregrinos de Frãquia á Terra Sãta.
Franquia chamão naquellas partes ás terras dos christãos da nossa Europa, sugeytos á
obediencia da Santa Madre Igreja de Roma, & francos aos mesmos christãos. Hũs dizem
ser assim chamados dos turcos, & mouros, & das demais nações orientaes, por serem gente
livre, & frãca, & a ninguem tributaria: & outros dizem, que como os franceses conquistáraõ
a Terra Santa, & outras partes do Oriente com ajuda de outras naçoens suas visinhas, & a
possuiraõ algum tempo, ficou nellas o nome de francos, & seu appellido, o qual corre por
todo o Oriente, & atè a nossa India Oriental. Escrevo aqui isto, porq como algũas vezes hey
de tratar deste vocabulo francos (a que na Terra Santa chamaõ frangi) se entenda que o digo
pela nossa naçaõ latina. /
90
As casas que digo, que estaõ nesta cidade de Rhama á conta dos frades, foraõ
compradas ha muytos annos por hũa senhora hespanhola, que por sua devaçaõ foy visitar os
Santos Lugares, & as deu aos frades, para que usassem dellas como lhe aprouvesse, & para
nellas se aposentarem os peregrinos, que de franquia fossem á Terra Santa : & o christão
que tem cuydado dellas, ao tempo que sabe haõ de ir alli ter os frades, ou peregrinos, as tem
muy limpas, & providas do que convem. Dentro tem sua crasta com larangeyras : & tem
outras arvores, & hũa palmeyra muy fermosa, que todos os annos carrega de tamaras
grossas, & gostosas. Estivemos alli aposentados aquella noyte ; & o dia seguinte cõ muyto
contentamento de nos vermos já dentro em terra de promissaõ, & o Lamy, & mais guardas
se foraõ aposentar a outras casas, que os seus lhe tinhaõ aparelhadas, & á mesma tarde, que
chegámos o padre Bonifacio os mandou visitar, em especial ao Lamy com presentes, que de
69
Veneza levava para aquelle effeyto, como homem que tinha experiencia de como se quer
tratada aquella gente, por haver estado já outra vez por guardiaõ em Hierusalem espaço de
sete annos, & sabia muy bem os costumes da terra, & lhe mandou dar os agradecimentos da
merce, que nos fez, em nos acompanhar com tanto amor: pedindo-lhe, que tivesse por bem
de fazer o mesmo atè Hierusalem.
Com estes turcos naõ se fez preço, nem algum concerto, mas tudo fica á vossa
cortesia, com mais proveyto seu, inda que na verdade com menos tyrannia, que em terra de
christãos, & com mais acatamento aos religiosos, & aos christãos de respeyto, que vaõ de
franquia. Ao dia feguinte pela manhãa vieraõ os guardas para verem o fato, & as mais
cousas que trazíamos, / 91 para que se pagassem os direytos, que se devessem ao graõ turco,
como he costume em toda a parte, & com as guardas veyo o Lamy, a quem em particular
toca aquelle officio ; o qual com os mais companheyros muy cortezmente começou de olhar
algumas cousas, quasi por ceremonia, & como quer que traziamos muytas de muyto preço,
& estima para o culto divino, como ornamentos, calices muyto ricos, & outras peças de
prata, que entre turcos naõ saõ vistas, nem costumadas, & algũs retabolos, temeo o padre
Bonifacio, que dando aquelles turcos com ellas tivessemos algum enfadamento : mas o
nosso Turcimaõ, como homem esperto com consentimento do padre guardiaõ tomou cinco,
ou seis cruzados, & por debayxo da cappa os meteo escondidamente na mão a hum
daquelles guardas: a qual cousa, como foy dos companheyros sentida, com muyta
dissimulaçaõ deyxáraõ o que tinhaõ começado: dizendo, que bem sabiaõ os nossos tratos,
naõ serem de comprar, nem vender, pelo que estavaõ seguros, que naõ trariamos cousa
desesa, nem obrigada a pagar direytos. E quanto ao que tocava ás cousas das nossas igrejas,
elles mesmos, & a sua patria recebiaõ honra com ellas: & assim se tornárão alegres, & muy
satisfeytos para suas casas, & nòs muyto mais o ficámos com a sua ida. Foy esta cidade em
outro tẽpo muy grande, segundo ao presente se vè nos seus muros antigos, pela mayor parte
arruinados, agora está muy damnificada. A terra em si, & em seu circuito, he muy fertil, &
abundante de mantimentos: muyta criação de gado de toda a sorte: Alli vi a primeyra vez as
cabras de orelhas compridas, & largas, cabidas a modo de podengos, mas muyto grandes,
cujo cabello parece hum fino cetim: do qual se fazem em Damasco os finos & ricos
chamalotes, / 92 como em seu lugar direy. Os carneyros, & ovelhas , saõ muyto grandes, &
70
todos de cinco quartos, como cá dizemos, o quinto he o rabo, o qual algumas vezes he
mayor, & de mais pezo, que cada hum dos outros : mas naõ tem carne alguma, que tudo he
hũa gordura a modo de ubre, a qual nas comidas de carne lhe serve de toucinho, que parece
atè naquillo haver Deos favorecido aos perfidos Judeos, já que defendia a carne de porco. A
criaçaõ de vacaria, patos galinhas, he tanta, que nos causou admiração, & tudo taõ barato,
que quando alli chegámos davaõ quarenta ovos por hum madim, que saõ doze reaes, & isto
porque hiamos muyta gente, que o ordinario he muyto mais barato, sómente no tempo que
alli, vaõ ter os peregrinos vaõ estas cousas mais caras, por sua culpa delles, que como vaõ
famintos, naõ estimaõ darem o que lhe pedem, vendo tanta abundancia das cousas, &
tantas, & taõ baratas. Tem aquella terra muytas palmeyras, que todos os annos carregaõ de
tamaras, costumaõ colherem-nas inchadas, levando para casa os cachos inteyros, & alli
amodrecem, & saõ muyto mais gostosas, & melhores, que as passadas que nos trazem de
Africa. Está a cidade posta em campo raso, mas em hum pequeno alto. Alguns saõ de
opiniaõ haverem sido naturaes desta cidade o profeta Samuel, & Nicodemus, discipulo
occulto de nosso Redemptor: & eu pelo que ouvi a muytos da terra, sou do mesmo parecer,
mas serem daqui, ou de outra Rhama, naõ nos vay tanto nisso: havendo algumas outras na
Terra Santa. Tem a cidade algũas Mesquitas, que foraõ Igrejas de christãos, & inda agora
estaõ com seus cãpanarios, & torres de sinos, inda que sem elles: entre as quaes está hũa
muy grande, & fermosa, com torres, & galantarias, a qual foy cathedral cõ seus co/nigos 93:
& agora por nossos peccados, he Mesquita mayor dos mouros daquella cidade; affirmaõ
estarem sepultados naquella igreja ao presente Misquita, mais de trezentos martyres.
Determinou o padre Bonifacio irmonos a seguinte noyte: porque como os arabes
naquellas partes saõ muytos, o caminhar de noyte he mais seguro, levando boa guarda:
porque de dia acodem tantos aos caminhos com as mulheres, & filhos, tanto que sabem
serem vindos peregrinos: que he milagre escapar de suas mãos: & de noyte sahem com
mais tento, por naõ saberem a quantidade dos que haõ de acommeter. Com duas horas de
sol começáraõ a carregar os camellos, no que se detivèraõ atè alta noyte, por ser necessario
carregallos de outra maneyra do que atè alli vieraõ, por ser o caminho de Rhama a
Hierusalem, quasi todo asperissimo, & de montanhas: & jornada de trinta milhas, nas quaes
senaõ haviaõ descarregar. Seriaõ quasi dez horas da noyte, quando tudo esteve a ponto para
71
nos podermos partir: & vindo o Lamy com as mais guardas nos partimos, postos todos em
ordem, levando diante por guia hũ arabe velho por nome Zambelo, torto de hum olho,
capitaõ muy principal de algũas companhias de Arabes; o qual havia muytos annos, que
tinha cõ os frades amisade, & os servia nesta jornada, & em outras cousas, quando o
occupavaõ com seu interesse. E pola particular amisade que tinha com os frades, lhe
permittiaõ os turcos algũas vezes entrar na cidade, & ir a nossa casa: o que em nenhũa
maneyra cometem a algum arabe, pelos terem por capitaes inimigos: mas deste nos
fiavamos, fazendo como dizem do ladraõ fiel, assim polo havermos mister, como por ser de
boa conversação, muyto sofrido, & dissimulado /
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em quantas zombarias por modo de
graça lhe diziaõ, por mais nomes que lhe puzessem. Trabalhava este arabe mostrar-se
fidelissimo aos frades, sendo tido na opiniaõ de todos por grandissimo ladraõ. Sua
habitaçaõ naõ era na companhia dos outros arabes, vivendo no campo como todos elles
vivem, mas em casa por si no caminho que vay de Rhamula para Hierusalem em hũa torre
desviada algum tanto da estrada, no qual lugar affirmaõ os christãos da terra haver morado
em outro tempo o bom ladraõ, que com nosso redemptor foy crucificado. Nem se deve ter
isto por cousa ridicula: porque ainda que a Terra Santa está toda destruida, ou quasi, tem-se
taõ particular memoria dos lugares, & cousas, de que a Sagrada Escritura faz memoria, por
serem escritas em pedras vivas, que jámais faltáraõ na Terra Santa do tempo de Christo
nosso redemptor, & de seus Apostolos atè o dia de hoje: que causaõ dar-se muyta fe, ao que
nos contaõ os da terra, quando naõ saõ contra a mesma Fè: & com seus ditos se vem
indicios de edificios antigos por pequenos que sejaõ. Naõ digo isto por ter para mim, que
naõ pòdem errar em muytas cousas, nem por crer, que em tudo fallaõ verdade: mas por
seguir o intento deste meu Itinerario, escrevendo-o de vista como tal, & o de ouvida de
pessoas de credito, como mo contáraõ. Alembra-me, que quando vaõ de Thomar para
Coimbra, entre Ceras, & a venda do Pereyro, nos mostraõ huma torre á maõ direyta,
desviada do caminho, no qual dizem que morava hum ladraõ, que salteava os caminhantes:
pouco vay em crer ou naõ, ser verdade a historia que sobre isso nos contaõ; mas todavia
muytos tem ser verdadeyra: vendo os indicios taõ manifestos. Alguns lugares nos
mostravaõ pelo caminho assinelando com a maõ, /
95
alli, está tal cousa, & alli tal, mas
como era de noyte, mais empregavamos o tento nelle, & no temor que levavamos dos
72
arabes, que no que nos pretendiaõ mostrar: os quaes arabes, depois que entramos nas
montanhas, & lugares asperos, nos sahiraõ ao encontro duas vezes, antes que amanhecesse
em certos passos perigosos, em os quaes he costume pagarlhe cafarro ou alcavalla, como
dizem em Castella, o que se naõ costuma em Portugal, por serem os caminhos livres: & o
que se chama portagem em Portugal he do que se leva para vẽder: os primeyros arabes, que
ao caminho nos sahiraõ, seriaõ cincoenta, os quaes saindo de entre huns penedos, de supito,
a modo de salteadores, com grande grita, deraõ sobre nòs com muyta turbaçaõ nossa; mas
tanto que viraõ a boa guarda que traziamos, a qual logo se lhes poz diante, abayxáraõ a
colera. Trabalhou o Lamy, & o Zambelo pelos aquietar com boas palavras, dando-lhe por
cada hũ de nòs dous madins, que saõ vinte & quatro reis: o q elles naõ queriaõ receber,
dizendo, que tambem lhe haviamos de pagar cafarro das cargas que traziamos: ao ultimo,
por amor de Zambelo, que lho rogava, ou por temor dos mais, se foraõ, deyxando-nos bem
inquietos. Naõ teriamos caminhado meya legoa, quando nos salteáraõ outros: com os quaes
se teve quasi o mesmo, que com os primeyros. Em saindo o sol nos tornáraõ a saltear outros
atè quinze, mas tanto que viraõ o Lamy, lhe beyjáraõ a mão, & lhe pediraõ lhe mandasse
dar seu cafarro, mas elle se escusou, dizendo, que os outros o haviaõ levado: em fim por
nos vermos livres de sua importunação os satisfizeraõ com pouca cousa, & se foraõ. Naõ
saõ obrigados os frades de S. Francisco a pagar estes cafarros, porque o Graõ Turco em
seus Reynos os tem feyto /
quem lhes faça justiça.
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livres, mas por paz os pagaõ muytas vezes, aonde naõ ha
73
CAPITULO XIX.
Da Villa Anatoh, patria do Profeta Hieremias, & do Valle do Therebinto, no qual David
matou a Goliath.
SEriaõ oyto horas do dia, quando chegámos á Villa de Anatoh três milhas he
Hierusalem: a qual Villa, antigamente foy habitaçaõ dos Sacerdotes da Ley Velha, ao
presente he hũa pequena, & mal composta aldea. Neste lugar nasceo o Profeta Jeremias,
como lemos no primeyro capitulo de sua sagrada profecia : aqui naõ ha cousa particular que
ver, salvo huma igreja muy grande, & sumptuosa de tres naves, a qual mandou fazer Santa
Elena, mãy do grande Constantino, em honra & louvor do bendito Profeta, & intitulada da
invocação do seu nome S. Hieremias Profeta y está toda muy inteyra, & no alto ornada com
muytas historias, de pintura, assim do Velho, como do Novo Testamento: & com tanta
frescura, que nem ellas, nem o Templo -mostraõ sua antiguidade. Chegando á Aldea,
entramos todos nesta Igreja, com hũa alegria, & devaçaõ, por ser a primeyra, em que
entravamos na Terra Santa, mas o contentamento foy misturado com lagrimas dos mais da
companhia, vendo hũ tal, & taõ sumptuoso Templo, feyto curral de cabras, & ovelhas, &
outros animaes, permittindo-o assim a divina Magestade por nossos peccados, feyta oraçaõ,
& brevemente olhando o edifício, & suas particularidades, tornamos a seguir /
97
nosso
caminho, & fomos ter ao Valle do Terebinto aonde David matou ao gigante Goliath, mortal
inimigo dos hebreos israelitas; sendo David mancebo de pouca idade, & indo sómente
armado do favor divino. Chegando a este lugar aonde estaõ ao presente algũs cafaes, &
ortas com muyta agua, detreminou o padre Bonifacio, que nos detivessemos nelle, assi para
repousarmos, como para descansarem as cavalgaduras, que toda a noyte haviaõ caminhado:
& para esperarmos os camellos & cargas: porque tanto que foy dia claro, & nos vimos
livres dos arabes, caminhamos depressa, deyxando atraz as cargas : porque os camellos
carregados, caminhaõ muyto devagar. Pagamos alli nossas Horas canonicas, & Officio
divino ; & tomámos huma pequena collaçaõ, por naõ haver de que a fazer grande, por
descuydo do que tinha a seu cargo a provisaõ. Tanto que chegámos a este lugar, o Lamy se
foy ao padre guardiaõ com sua companhia, & lhe disse, que posto que já estavamos fóra de
todo o perigo, elle se queria deter alli atè que viessem as cargas, & acompanhar-nos atè a
74
Cidade. Deu-lhe o padre Bonifacio muytas graças por taõ boa vontade, dizendo-lhe, que se
podia ir embora se quizesse, pois nos tinha postos em porto seguro: porque a nòs nos
convinha fazer alli huma pouca de detença por certo respeyto: o qual era, entrar todos
juntos; & mais que sendo horas d'elle, & os seus tomarem refeyçaõ, a naõ tinhamos para
lha dar. Ouvindo elle isto se despedio de nòs com muyta cortesia, & grandes
offerecimentos, & se foy, ficando nòs, como tenho dito, rezando nossas horas, & esperando
as cargas. Estando nòs neste lugar, vieraõ ter comnosco quatro christaõs religiosos, dous
armenios & dous abexins dos do preste Joaõ, os quaes da parte de seus superiores vinhaõ
visi/tar
98
ao padre Bonifacio, & darlhe o parabem da sua ida, mosstrando muyto
contentamento com ella, porque de todos os da terra era muy conhecido, & da mayor parte
delles cordealmente amado. Recebeu-os o padre Bonifacio muy caritativamente, & os
deteve comsigo atè que nos partimos todos, & foraõ em nossa companhia atè a Santa
cidade. Este valle, a que a Sagrada Escritura chama do Terebintho, he muyto grande, largo,
& espaçoso, causado de hũs outeyros altos, que estaõ de hũa, & outra parte. Em tempo do
inverno quando chove faz huma grande ribeyra; a qual corre do norte ao sul, toda cheya de
pedras, & calhaos, das quaes tomou o esforçado David as cinco que meteo no seu furraõ, ou
cevadeyra, para matar ao incircuncifo filisteo. Haveria mais de tres horas, que estavamos
detidos naquelle lugar, quando chegáraõ as cargas com a mais companhia, com cuja vinda
logo nos partimos seguindo nosso caminho, louvando ao Senhor, que para sempre vive, &
reyna.
75
CAPITULO XX.
De como chegámos à Santa Cidade de Hierusalem.
PArtidos do Valle do Terebintho, começamos a subir por huma montanha muy
ingreme, & trabalhosa, & tanto que quasi todos hiamos a pé, pela asperesa do caminho.
Depois que fomos no alto caminhando hum breve espaço, demos com a vista na Santa
cidade de Hierusalem, naõ sem muytas lagrimas de nossos olhos, porque o seu aspecto tem
tanta eficacia, que subitamente move a todo o coração de pessoa / 99 christaã, se he olhada
com consideraçaõ do que nella obrou o filho do eterno Deos. Seguindo nosso caminho,
sempre com os olhos naquelle espectaculo, que assi se pòde chamar; & Santa cidade,
viemos ter a hum lugar aonde nos estavaõ esperando atè vinte frades da nossa familia, os
quaes lançados aos pés do padre Bonifacio, guardiaõ de Monte Sion, com toda a humildade
lhe tomáraõ a bençaõ & vindo-se a nòs, com amor de irmãos espirituaes verdadeyros em o
Senhor Jesu Christo, & filhos de nosso padre São Francisco, nos abraçáraõ com muytas
lagrimas de huns, & outros. Naõ sey com palavras dizer quanta foi a alegria, &
contentamento espiritual, que em mim senti, quando me vi com aquelles padres, & irmãos
meus : porque todos eraõ meus muy particulares amigos & alguns delles por minha
intercessaõ alcançáraõ o irem visitar aquelles beatificos lugares, sendo eu no fazer da
familia companheyro do padre Bonifacio. E porque naõ podiamos entrar na cidade, sem
que primeyro viesse o Subbasi, que he hum official da justiça, como meyrinho entre nòs: &
visse quantos eramos, & a quãntidade do fato que traziamos, o que estes turcos fazem com
os frades sómente por ceremonia com os olhos no interesse, esperamolo no lugar aonde nos
estavaõ esperando os padres nossos irmãos que tenho dito: o qual tardou mais de hũa hora.
E como estavamos á vista da cidade, afastados della quanto hum tiro de arco, eraõ em nòs
tantas as lagrimas, que de vergonha nos apartavamos hũs dos outros, pondo-nos aos pés das
oliveyras, que por alli estavaõ para que com mais liberdade, os olhos ajudassem aos
soluços, que das almas nos sahiaõ. Estando nisto, chegou o Subbasi, & pondo os olhos em
nòs, sem se apear do cavallo, em que vinha, ceremoniaticamente nos olhou a / 100 todos, &
assi mesmo as cargas do fato, & tornando-se, nos mandou que entrassemos. O padre
76
Bonifacio, como sempre me mostrou por obras o amor que me tinha, que ellas saõ as
mostras delle: chamou-me de parte, & ao padre que de Veneza atè Chipre me acompanhára:
& comnosco hum veneravel, & muy douto padre da Ordem do grande patriarca São
Domingos, cõmissairo gèral da mesma Ordem no Reyno de Chipre, como já atraz fica dito:
& apartados da mais companhia, que juntamente entrou comnosco na cidade, pela porta que
antigamente era chamada dos Pexes, & ao presente se chama a Porta de Belem, indo-se os
mais caminho do mosteyro, nos levou ao longo do muro pela parte de dentro ao Monte de
Sion. E entrando em huma casa nossa, muyto grande, que está junto ao mosteyro antigo do
Santo Cenaculo, do qual os nossos guardiães de Hierusalem se intitulaõ de Monte Sion: por
estar edificada no mais alto do dito Monte: a qual casa no tempo, que os frades possuhiaõ o
dito Mosteyro, alguns quinze annos atraz, do que alli chegámos : lhe servia de forno, &
outros despejos do convento: depois por nossos peccados, tornando-lhe os turcos o Santo
Cenaculo, lhe veyo a servir de mosteyro: por naõ terem outro lugar, em que se
agazalhassem, atè que o padre Bonifacio, a outra vez que foy guardiaõ na Terra Santa, foy a
Constantinopla, & fallando com o Graõ Turco, alcançou delle hum mosteyro antigo, meyo
arruinado, que havia sido de freyras jorgianas, & está dentro na cidade, no qual ao presente
moraõ os frades, como em seu lugar direy. Entrados na dita casa, fizemos della oraçaõ ao
Santo Cenaculo, & rezamos a estaçaõ, fazendo particular commemoraçaõ ao Santissimo
Sacramento, que naquelle sagrado lugar a primeyra vez foy /
101
instituido do summo
sacerdote Jesu Christo nosso senhor, se ao mesmo senhor aprouve, ganhamos as
indulgencias plenarias, que naquelle bendito lugar os pontifices romanos tem concedido aos
que pessoalmente os visitassem, em tempo que a terra era de christãos : & agora que he de
infieis, se ganhaõ as ditas indulgencias nos lugares onde pessoalmente naõ podem chegar,
com porem os olhos nelles, & rezando o que está ordenado. Cantamos tambem o hymno
Pange lingua, que se canta na festa de Corpus Domini: Verso: Panem de Cælo præstitisti
eis. Responsorio, Omne delectamentum. Oraçaõ, Deus qui in hoc sacratissimo Cænaculo.
E isto acabado, dando graças ao Senhor por tantas merces, & beneficios recebidos
de sua divina bondade, livrando-nos de tantos perigos, & trazendo-nos a salvamento á
Santa Cidade de Hierusalem. Acabada a oraçaõ, no mesmo lugar tomámos refeyçaõ
alegremente, & depois de sol posto, nos fomos ao nosso convento de S. Salvador, que está
77
dentro na cidade, naõ muy longe da casa santa, & fomos de todos os frades recebidos com
muyta caridade, dando por tudo milhares de louvores ao Senhor, que para sempre vive, &
reyna sem fim.
Como minha ida a Hierusalem, naõ foy como peregrino, mas como morador, porq
assi me detreminey com o padre Bonifácio, quando em Roma me recebeo por seu
companheyro: escreverey aqui algum tanto mais largo, os lugares principaes da Terra
Santa, pelos haver visto muytas vezes com muyta liberdade. E posto que os frades, que vão
de familia, saõ obrigados a estarem lá tres annos, atè que vão outros padres, o nosso padre
gèral me deu hũa licença muy favoravel, com a qual me pudesse tornar quando me
parecesse; a /
102
qual levando-a secretamente, manifestey o tempo que vi ser necessario a
minha espuritual consolaçaõ, pelo que naõ estive o tempo limitado dos tres annos, ainda
que com a liberdade, vi mais da Terra Santa, que outros, que nella estiverão mais tempo.
78
CAPITULO XXI.
Da santa cidade de Hierusalem, & da sua fortaleza no tempo presente.
GRandes, maravilhosas, & gloriosas cousas saõ escritas, & ditas de ti Hierusalem,
cidade de Deos, santa & amada, figura da supernal, & eterna patria, para a qual pela summa
sabedoria fomos criados.
Esta edificada esta bendita cidade em o sagrado Monte de Sion, & de nenhũa parte
se pòde ir a ella, senão sobindo. E naõ sómente no Monte de Sion, mas tambem muyta parte
della está no Monte Moria, no qual foy edificado o templo de Salamão, como lemos no
Paralipomenon segundo, o qual templo hoje se vè estar dentro na cidade, como sempre
esteve: mas ajuntaõ-se elles dous montes, que fica Sion ao sul, & Moria ao norte.
Santo Antonio no seu historial diz estas palavras: Urbem sanctam ac Deo
amabilem Hierosolymam, in sublimibus montibus esse sitam certum est: in Tribu Benjamin
positam veterum tradit auctoritas, habet autem ab Occidente Tribu Simeon, Ephilistim
regio, & mare Mediterranum. Ab Oriente fluenta Jordanis, & ei adjacentem solitudinem,
ab Austro verò habet sortem Juda in qua est Bethlem familiarem Domini reclinato/rium 103:
à Septentrione urbem habet Gabaon, Josue filij num insignem victoriam & defixi Solis
miraculo præclaram tribum habens Effraim. Est Hierusalem Judeæ metropolis in loco
rivis, silvis, & fontibus penitus carentibus. Est autẽ nunc civitas minor maximis, &
mediocribus maior.
Está a cidade quasi toda em o lado oriental destes dous montes Sion, & Moria, &
vay costeando do sul para o norte, ladeyra abayxo, aonde faz hum valle no meyo; & dalli
torna a subir correndo ao norte, & do do norte dá volta para ponente sobre o Monte Gion, &
torna a acabar no sul, fazendo hum ovado muyto curioso, ainda que mais comprido: &
assim participando destes tres montes, que saõ Sion, Moria, & Gion, se vè comprido á letra,
o que diz o real profeta David, dizendo, que seus alicerces, & fundamentos estaõ sobre os
montes santos. Porêm como a principal parte está sobre o monte de Sion, cujas portas o
Senhor Deos mais ama, que todalas moradas de Jacob, pelos grandes mysterios, que nella o
redemptor do mundo, Christo Jesu, nosso Deos, & senhor havia de obrar, & tem já obrado
79
no santo Cenaculo a norte antes da sua sacratissima payxão, & depois de sua gloriosa
resurreyçaõ, & no dia excellentissimo, & festival, em que teve por bem mandar seu santo
espirito, que delle, & do padre eterno procede, sobre os seus amados discipulos. Dizemos
tambem estar edificada sobre o monte Sion: porque no tempo do profeta David, a mais
principal, & nobre parte da cidade era no alto deste sagrado monte, aonde estavaõ os paços
reaes, & commummente se chamava a cidade de David, por nella morar quasi toda a
fidalguia, & nobreza da gente, & assi lhe chama a Sagrada Escritura. E ficavão todos estes
aposemos del/Rey
104
, & dos seus, séparados persi, da maneira, que em Roma a parte
principal da cidade, aonde quasi sempre está o summo pontifice a que agora chamão
Vaticano, em outro tempo lhe chamavaõ a cidade Leonina. Desta cidade de David, naõ ha
ao presente memoria algũa, salvo alicerces de edificios arruinados, & o tanto Cenaculo que
por milagre quer o senhor Deos sustentar, para consolaçaõ dos fieis, ainda que os mouros o
tem em seu poder, & todo o mais se lavra quando querem, por se comprir a profecia de
Miqueas, repetida pelo santificado Hieremias, convém a saber: Propter hoc causa vestri,
Sion quasi ager arabitur, & Hierusalem quasi acervus lapidum erit, & mons templi in
excelsa silvarum, que querem dizer: Por amor disto, que he por vossa causa, & por vossos
peccados, & pelo que atraz fica dito de vossas maldades, Sion que agora vedes tam
prospera, & ornada com paços reaes, & sumptuosos edificios, virá tempo, em que á
maneyra de campo sera lavrado, o que ao presente vemos muyto bem comprido E quãto ao
que diz da santa cidade, que seria tornada em hum monte de pedras, muy inteiramẽte se
comprio, quando foy destruida pelos romanos, estando depois muytos annos, atè o tempo
do emperador Elio Adriano, que acabando de destruir o que Tito deyxou intacto, a tornou a
reedificar de novo. Os muros que agora tem saõ muy inteyros, & bem acabados, dizem que
os mandou fazer o grão turco Solimaõ, depois que tomou a terra ao Soldaõ do Egypto,
havendo muytos annos que a possuhia. Saõ os muros muy fortes, & estaõ taõ novos, que
parece haver muy pouco tempo, que os fizeraõ; anda-se por duas partes, pola superior
aonde estaõ as ameyas, & outro lugar mais inferior, o que nunca vi em alguns outros muros
de / 105 algũa cidade. Tem ao presente em circuito grandes tres milhas, que saõ conforme ao
medir antigo, vinte & quatro estadios, os quaes daõ a cada milha dous mil passos, & naõ
como algũs cuydaõ, dando a huma milha sómente mil passos: os seus moradores ao
80
presente podem ter cinco mil, & fica mais da terça parte da cidade despovoada : porque
alèm de muytos edificios arruinados, & grandes casas cabidas, vi eu dentro grandes
ferregeaes semeados. Moraõ nella turcos, mouros, judeos, & christãos de muytas naçoens.
Os turcos saõ os menos, porèm saõ senhores absolutos do que querem, tem haver quem lhes
possa ir á maõ. Os judeos naõ chegaõ ordinariamente a seis centos, porque como naõ tem
fazendas na terra, nem ella he de tratos, tem os quaes elles naõ podem viver, naõ se podem
nella sustentar, & assi os que na santa cidade moraõ, comem o que em outras partes
ajuntarão, & se lhes falta, tornaõ-se a recuperar aonde podem, para tornarem a morar aonde
desejaõ acabar, faltando-lhes suas esperanças. Os christãos podem ter atè dous mil, como
em seu lugar direy : os mais saõ mouros dos que possuhiaõ a terra quando era do Soldaõ, &
no tempo que lha tomou o turco, se ficárão nella como antes. Os turcos, & mouros tem
entre si mortal odio, & vivem huns com os outros por arte, & manha. Os judeos saõ de
todos maltratados, & peyor vistos. Os christãos pela misericordia do Senhor Deos saõ de
todos bem vistos, & bem tratados, & vivem na terra mais afazendados, que os mouros.
Quanto a estar a santa cidade em o mesmo lugar aonde estava no tempo, em que
nosso Redemptor padeceo, naõ ha duvida algũa, pois claramente se vè ser impossivel
poderse em outra parte reedificar, ficando o /
106
sitio do templo de Salamaõ no proprio
lugar em que no principio foy fundado, os que dizem o contrario, fallaõ sem experiencia,
por naõ haverem visto com seus olhos a santa cidade, & regem-se por authores opinativos,
que escreveraõ de ouvidas sem terem visto o sitio presente ; & vesse claramẽte, porque a
santa cidade naõ foy destruida de tal maneyra, que deyxassem de ficar mostras muy
grandes, do lugar aonde primeiro esteve, & quanto ao que nosso redemptor disse chorando
sobre a cidade, que naõ ficaria nella pedra sobre pedra, como o escreve o evangelista S.
Lucas, há-se de entender como o declara a glosa ordinaria, que he, que naõ ficaria nella
forma algũa do que antes havia sido, nem faz a seu proposito o que allegaõ do glorioso
Apostolo S. Paulo, haver escrito aos hebreos, que Christo nosso redemptor padeceo fora da
porta da cidade, o que he grandissima verdade, & hoje neste dia se vè o monte Calvario,
aonde meu Deos foy crucificado estar mais de hum tiro de pedra fora da porta judicial, assi
naquelle tempo chamada, porque jámais era aberta, senaõ quando havião de tirar por ella
algum padecente para ser justiçado: da qual porta ainda agora vemos hum arco inteyro, &
81
huma muy grande columna que bem mostra ser daquelle tempo: & naõ duvido conservarse
para consolaçaõ espiritual dos devotos. E logo do arco sahe hum pedaço de muro antigo, de
pedras de quatro, & cinco cevados de comprido, & de muyto grande largura, liadas hũas a
outras com ferro, & chumbo. Mas depois que a cidade por Tito foy destruida, ainda que naõ
de todo, porque Josepho conta haver deyxado duas torres de grandissima fermosura, para
memoria do que havia sido a cidade, & trabalhou o possivel por livrar o templo da furia da
soldadesca, / 107 posto que naõ pôde. Elio Adriano, que succedeo a Trajano na era de cento
& doze, sendo papa na igreja de Deos Alexandre primeyro deste nome, & setimo depois de
S. Pedro, tornando-se outra vez os judeos a rebelar contra o Imperio romano, segundo diz a
Historia ecclesiastica, & querendo tornar a reedificar o templo indignado disto Elio mãdou
hum seu capitaõ por nome Severo, o qual de todo acabou de destruir, o que Tito havia
deyxado, arrazando toda a cidade ; no que se acabou de comprir o dito de nosso redemptor,
que naõ ficaria pedra sobre pedra, & depois no mesmo lugar a mandou de novo reedificar,
& intitular Elia do seu proprio nome, & no templo mandou pôr sua imagem, entregando a
cidade aos gregos, que a povoassem; & nesta reedificação foy accrescentada pela parte do
Calvario, ficando elle dentro como agora, está, permittindo-o assi a magestade divina, &
diminuida por outras partes, de modo que tem algũa duvida está ao presente no mesmo
lugar em que antigamente estava. Posto que agora muy menor do que antes era : porque
antigamente tinha tres muros, & entre hum muro, & outro havia moradores, & agora, como
fica dito, naõ tem mais de hum que eu pelos indicios, que em algũas partes derredor vi, &
notey, julgo ser o interior ; os quaes indicios, & vestigios saõ dos muros antigos, que se
estendiaõ em especial para a parte do sul, aonde cahia a principal do Monte Siõ, que
naquelle tempo era o melhor da cidade, aonde morava toda a nobreza, & ao presente está
deshabitado, ficando sómente o tanto Cenaculo, & a casa de Cayfas, que a bom juizo naõ
havia de querer morar, senão na melhor parte da cidade.
Jofepho historiador Judaico de muyto credito, & authoridade entre gente docta, &
de entendimento, escre/vendo 108 contra Appion Alaxandrino em defensão da sua judaica
naçaõ, diz que a cidade tinha em seu tempo cincoenta estadios em torno, que saõ dez
milhas, & os moradores eraõ cento & cincoenta mil, no que se vè claramente, que de
necessidade haviaõ de ser habitadas as outras duas cercas, para caber tanta gente: & agora
82
sómente se habita a parte interior, aonde sempre esteve, & agora está o templo de Salamaõ,
como adiante direy. A fortaleza dos muros, ainda q de boa cantaria, naõ he muyta, nem saõ
torreados nem tem barbacaã, nem fóra dos muros vive pessoa alguma. Mas como nestas
controversias de ser antigamente a cidade grande ou pequena, me vay pouco, os curiosos
que o quizerem saber de outros, a quem derem mais credito, o podem saber. Concluo seu
assento, com affirmar, que está ao presente aonde de principio esteve, & que a parte do
Monte Sion aonde David em seu tempo morou, & se chamava cidade de David, que agora
está despovoada, Josepho lhe chama cidade superior, & os christãos, que agora vivem na
Terra Santa, lhe chamaõ Sion. Nesta parte algum tanto ladeyra arriba para o ponẽte está
hum castello muy fermoso: junto á porta por onde entrámos na cidade quando viemos do
porto de Japho, pola qual sahimos quando himos a Belem, o qual castello naõ he muy forte,
mas polo sitio aonde está, se pòde com pouco fortalecer, & fazer fortissimo. Serve ao
presente á cidade de fortaleza sómente por ceremonia, por naõ haver nella algum castello,
ou torre, que mostre ser defensaõ. Chamaõ-lhe o Castello dos Pisanos, por os de Pisa o
haverem edificado quando a terra era de christãos. A guarda que ao presente tem, he quasi
nenhũa, por naõ haver nelle gente de guarniçaõ; sómente tem atè vinte turcos, & os mais
delles saõ ve/lhos 109, como aposentados, & que tem alli sua comedoria, ou tença que lhe dá
o graõ turco. Na porta do castello em hum pateo da banda de dentro estaõ cinco, ou seis
peças de artelharia grossas, & de bronze, sem carretas, & meyas quebradas, que parece
servem de espantalho aos que passaõ pola rua. Dentro no castello naõ tem armas: sómente
sete atè oyto escudos velhos, & outros tantos arcos. As portas da cidade todas as noytes
infallivelmente se fechaõ; & antes de as fecharem sahem dous de cavallo a dar vista, &
descobrir o campo, pouco mais de hum tiro de pedra: & a mesma ceremonia guardaõ pela
menhaã ao abrir das portas ao romper da alva, & se guarda em todas as cidades sogeytas ao
grão turco, por mais metidas que estejaõ no sertaõ, & seguras de inimigos. Algumas vezes
me aconteceo madrugar aos sabbados para ir dizer missa ao sepulcro de Nossa Senhora,
que está no valle de Josaphat, como em seu lugar direy : & achar estes descobridores do
campo em seus rocins enxalmados, & suas lanças tem outra alguma arma, cousa que mais
move a riso, que a temor: & deste modo se guardaõ as mais cidades da Palestina: donde
colligem os christãos que sem experiencia da terra, que com muyta facilidade, & pouco
83
trabalho se pòde tomar, ainda que com muyto se sustentará, & naõ menos perigo. No tempo
que o soldaõ do Egypto era senhor desta terra: como a tinha mais perto para a poder
defender, de outra maneyra a tinha fortificada, do que agora está, porque se temia do graõ
turco, que depois lha tomou: mas os que agora moraõ, & vivem nella, estaõ de continuo
com tanto temor, pela verem sem algũa defensa, & estarem muy longe de Constantinopla,
donde lhe ha de vir o soccorro, que aconteceo no tẽpo que na Terra Santa estive, irem / 110
duas gales dos maltezes correndo a costa, & saqueando alguns lugaretes, de tal maneyra
espantaram a terra, & seus moradores, & lhes puseraõ medo que se vinhaõ muytos a nossa
casa a se queyxar, que eraõ destruidos, & que os francos lhe tomavão a terra : o que
permitia o Senhor Deos ser feyto em nossos tempos por sua divina misericordia. Amen. Ao
presente tem a cidade cinco portas por onde se servem, ao ponente tem hua junto ao
castello, de que fica dito atraz, chamava-se antigamente a porta do pescado, porque por ella
entrava o mais do pescado, que na cidade se comia : ao sul está outra porta, a que os
christãos chamaõ a porta de Monte Sion, entre sul, & levante, ladeyra abayxo, quando imos
de Sion para o valle de Josaphat, está outra, naõ muy grande, querem dizer, que se chamava
em outro tempo a esterquillina; o que mostra ser alli, porque quando chove, sahem por ella
as mais das immundicias da cidade ; por esta jámais entraõ nem sahem os frades, por estar
muy fora de maõ da nossa serventia. Ao oriente está a porta Aurea, naõ se servem por ella,
porque está tapada com pedra, & cal, como adiante direy. Ao norte está outra porta, a que
chamavaõ, a porta do gado, porque por ella metiaõ todos os animaes, que no templo se
haviaõ de sacrificar: & efta junto da probatica piscina: chama-se agora dos christãos a porta
de santo Estevaõ, porque por ella o tiráraõ ao martyrio: outra porta está entre norte, &
ponente, a que chamaõ a porta de Damasco, cuydo que sómente tres vezes me achey nella.
Tem a cidade muytas mesquitas, as quaes foraõ Igrejas de Christãos, & ainda agora estaõ
com suas torres, & campanarios muy curiosos, que servem de ornamento á cidade, & a
fazem mais lustrosa: & todas estas mesquitas tem seus / 111 cacifes, que vivem junto dellas
com suas mulheres, & filhos, & alguns dias do anno as enchem de bandeyras & pendões, &
as enramaõ com grandes luminarias de noyte. Estes cacifes com seus brados, nos servem de
relogio, em especial de noyte, digo á meya noyte, porque os turcos, não nos permittem
outros, posto que ás escondidas temos relógio pequeno, que nos serve dentro de casa.
84
CAPITULO XXII.
Da Casa Santa de Hierusalem, aonde està o sepulchro de nosso Redemptor, & outros
lugares santos.
TEndo tratado em commum do sitio, & fortaleza da santa cidade, do modo q agora
está, quero escrever dos santuarios, & igrejas que estaõ dentro nella. E como o principal
delles he o sacratissimo sepulchro de nosso redemptor Jesu Christo, aonde seu divino corpo
esteve quarenta horas sepultado, cuja igreja he muy dignamente em todo christianismo
chamada, Casa Santa: della, como lugar mais santificado começarey primeyro.
Com muyta rezaõ he este sagrado templo chamado Casa Santa, porque se o
evangelista S. Matheus chama a Hierusalem, cidade santa depois de nella se haver
perpetrado, feyto, & commettido o nunca ouvido crime, peccado, & maldade, que o povo
de Israel commetteo, matando, e em huma cruz crucificando a seu Rey verdadeyro, Deos,
& senhor universal de todo o mundo: muyto mais se deve chamar tanto, & muy santissimo
o lugar aonde o mesmo Deos, & senhor teve por bem obrar os mysterios de nossa
redempçaõ. Esta santa casa / 112 aonde está o santo sepulcro, com outros muytos santuarios,
que em si tem, he sua fabrica huma cousa taõ grande, que tenho por impossivel podella meu
entendimento declarar inteyramente, assi pela magestade, & grandeza da obra como por eu
saber pouco de arquitectura: mas escrevelohey o melhor que puder, & o menos mal que
souber usando de singelesa, & engrandecendo a obra muyto menos do que he. Foy este
edificio, segundo claramente se mostra, duas vezes edificado: mas tratarey sómente do
presente, começando do exterior delle. Diante desta sumptuosa igreja está hum adro, ou
pateo grande, & fermososo [sic], todo de tres partes cercado de alto muro, & edificios, &
fica como huma praça toda lageada de marmore, que terá como cem pès em comprido, &
alguns sessenta em largo. Áparte do meyo dia, ou Sul tem a entrada; á qual bayxaõ por
huma escada quinze, ou mais degráos, & terá de comprido alguns oytenta pés; saõ as pedras
deste pateo lavradas com muyta curiosidade, & em algumas dellas se divisa polos sinaes,
que mostraõ as bases, haverem estado colunas, & em huma destas pedras, ou lageas, estaõ
impressas, como em cera molle, as pegadas, ou plantas dos pès de hum Abexim do Preste
Joaõ, que naquelle lugar foy queymado dos mouros pola Fè de nosso senhor Jesu Christo; o
85
qual teve por bem, que ficassem alli aquelles vestigios, em sinal, que lhe era seu martyrio
aceyto. Defronte da entrada deste pateo, algum tanto á parte oriental estaõ inteyras as
paredes de huma igreja muyto grande, que foy dos cavalleyros de Saõ Joaõ, & se chamava
o Hospital dos Templarios. Bayxando pelos degráos do pateo á maõ esquerda, está huma
igreja de gregos, que ao presente lhe serve de paroquia, aonde elles domingos, & festas / 113
vaõ ouvir missa: & pegado com está igreja estaõ humas grandes casas, nas quaes em tempo
que aquella terra era dos christãos, residia o verdadeyro patriarca de Hierusalem, & se
intitulavaõ o patriarcado, & ainda agora assim se chamao, & mora nellas o patriarca dos
gregos, digo o falso patriarca da naçaõ grega, diviso, & apartado da obediencia da Santa
Madre Igreja romana, catholica, & Apostolica; o qual se intitula patriarca Hierosolimitano.
Tem este patriarcado huma torre muy alta, & fermosa, & de grande magestade, pegada com
o muro da Casa Santa, & ornada com muytas lindezas, & curiosidades; a qual no tempo dos
christãos servia de ter sinos, & agora ainda que sem elles, está em toda sua perfeyçaõ. Da
outra parte do pateo, entrando nelle á maõ direyta, estaõ duas igrejas incorporadas com a
Casa Santa, digo arrimadas ao seu muro da parte de fóra: huma dellas officiaõ jacobitas, &
lhes serve de paroquia, a outra de abexins do Preste Joaõ, que lhe serve do mesmo: & junto
a estas igrejas está hum muro muy alto, ao qual sobem por hũa muy ingreme escada de
pedra, pola qual sobem ás habitaçoens, & moradas dos Abexins, nas quaes elles, como em
mosteyro moraõ: & vivem muy religiosamente: & no alto vem iguaes com o tanto calvario,
& algum tanto mais, no descuberto deste alto está o lugar aonde o patriarca Abrahaõ, por
mandado do muy poderoso Deos quis sacrificar a seu muy querido filho Isaac. Cousa por
certo muy decente, & justa foy, fazer-se sacrificio taõ cheyo de prompta obediencia no
proprio lugar, no qual havia de ser sacrificado, & morto, o innocentissimo cordeyro Jesu
Christo, nosso Deos, & verdadeyro senhor, filho do eterno padre, ao qual foy obediente até
a morte de cruz, por nossos peccados, & culpas; ainda que taõ / 114 diferente hum sacrificio
do outro, como a figura do figurado. Mostrão os Abexins neste terrado superior, o lugar
aonde Abrahaõ vio o carneyro, que em lugar do filho Isaac offereceo ao senhor Deos, no
qual ao presente está hũa pequena oliveyra, que mostra ter antiquissima, naõ havendo alli
outra arvore, ou herva alguma, por ser tudo argamassado, & lageado. Huns doze atè quinze
passos, deste lugar indo ao ponente, junto áquelle onde nosso redemptor foy crucificado, &
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tão junto, que sómente se mete huma parede no meyo está a sepultura em que foy sepultado
o grão sacerdote do senhor Melchisedech; a qual toda está ornada de muy rico moysaico, de
muy finas pedras de muytas cores, & diversas, & os abexins a tem toda armada de ricos
panos de ouro, & seda, os quaes o preste Joaõ muytas vezes manda, sómente para este
effeyto. A consideraçaõ, & contemplaçaõ de cousas taõ altas, & misteriosas, como saõ
mandar Deos a Abraam sacrificar a seu filho Isaac, no proprio lugar aonde seu unigenito
filho, Deos, & senhor nosso verdadeyro, havia de ser sacrificado: & estar sepultado o graõ
sacerdote Melchisedech, aonde deu sua alma ao padre eterno seu filho amantissimo, &
junto ao seu sepulchro ser o senhor sepultado deyxo eu para os espirituaes contemplativos,
& para os estudiosos nas divinas letras, porque acharão, se bem quizerem considerar,
naquelle monte de Dominus videbit, mil melifluidades de que lançar maõ, & mantimento
espiritual abundantissimo, para recreaçaõ de suas almas. Em tempo que os christãos
possuiaõ a terra santa: todos estes edificios, tirando o patriarcado, eram hũ mosteyro de
conigos regrantes de santo Agostinho, que officiavaõ a igreja do santo sepulcro: a entrada
da qual está na fronteira do pateo, / 115 ficando as igrejas que tenho dito á maõ esquerda, &
direyta.
A entrada para esta casa santa, de que vou tratando, eraõ duas portas grandissimas,
as quaes dividia hum pilar, muy grosso, ornado com cinco colũnetas muy curiosas de jaspe
verde: ao presente a porta da maõ direita está tapada cõ pedra, & cal, mas fica o pilar,
colũnas, & a mais obra, com a mesma perfeyçaõ, que antes tinha: & cada hũa destas
entradas tem de cada parte tres muy ricas columnas. A porta da maõ esquerda, que he a que
ao presente serve, que tambem está dividida em outras duas, he muy grande, mas
toscamente lavrada, tem á parte esquerda hũa grade de ferro pequena, feyta em cruz, a qual
serve de fallarem por ella os que estaõ dentro encerrados, quando os de fóra lhe vaõ fallar,
& por ella lhe metem a provisaõ, & mantimento necessario aos de dentro com tanto que naõ
sejaõ cousas grandes, porque naõ caberaõ. Em cima do portal estaõ muytas imagẽs lavradas
de fino marmore, a saber, a entrada de nosso redemptor na santa cidade dia de ramos, com
os apostolos derredor de si, & muytas outras figuras de homens, & moços, colhendo ramos
das arvores, & lançando-os no caminho, da maneyra que o conta o evangelista S. Mattheus
na sua sagrada historia. Está do mesmo marmore a santa ressurreyçaõ: & huma imagem
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muy devota de nossa senhora, com o minino nos braços, á qual imagem se encommendou a
bemaventurada santa Maria egypciaca, quando vindo de Alexandria, cidade principal do
Egypto, á adoração, & festa da Santa Cruz; como ainda agora vão de muytas partes de
Grecia, & Armenia, miraculosamente lhe foy negada a entrada da Casa Santa, como lemos
no livro intitulado Vitas Patrum, /
116
que affirmão haver escrito o glorioso doutor S.
Hieronymo.
A porta deste sagrado templo, sempre está fechada cõ duas chaves, & sellada no
alto com hum sello do graõ turco; o qual sellão, pondo hũa escada de mão. As chaves, &
sello, estão sempre a bom recado na mão de tres turcos muy principaes, tendo hum o sello,
e os dous cada hũ a sua chave; os quaes ao tempo que se ha de abrir a porta para entrarem
os peregrinos ou por qualquer outra necessidade, saõ chamados os ditos turcos pelos
daquella naçaõ de Christãos, que a manda abrir, satisfazendo-lhe seu estipendio, porque
jámais se abre sem premio, & tem-lhe alli posta hũa alcatifa, em que os turcos se assentaõ
sobre o poyal da porta, & a escada prestes para tirarem o sello. Se os peregrinos que haõ de
entrar saõ de Franquia, primeyro que entrem lhe haõ de escreuer em hũ livro seus proprios
nomes, & os de seus pays, & mãys, & os da sua patria, & depois pagão nove saquins de
ouro, q saõ quasi onze cruzados dos nossos, salvo se saõ religiosos de qualquer ordem,
porque estes sómente pagaõ ametade deste preço, ou contia. Os nossos frades de Saõ
Francisco não pagão cousa algũa, ainda que sejaõ da terceyra regra, nem menos as nossas
beatas terceyras: se o padre guardiaõ affirma serem da nossa obediencia. Se os peregrinos
saõ gregos, armenios, jacobitas, ou maronitas, ou de qualquer outra naçaõ de christãos
sugeyta ao graõ turco: pagaõ sómente ametade dos nove saquins de ouro: & o mesmo se
guarda com os mercadores venesianos, franceses, italianos, que levão suas letras
testemunhaveis, em como ha tempo que andão naquellas partes negoceando sua vida. Os
christãos, que moraõ em Hierusalem, Belem, & outros lugares propinquos á cidade, tem /
117
liberdade para poderem entrar todas vezes que se abre a porta, sem pagarem cousa
algũa. Quando naõ vẽ peregrinos, & occorre necessidade para se abrir, como se adoece
algum dos que estaõ dentro, ou por ser dia assinado, em que algũa das nações o manda
abrir, como os armenios o primeyro sabbado da quaresma : & o nosso padre guardiaõ em
algumas festas principaes, para que os frades as celebrem dentro na casa santa: então se
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abre com muy pouco interesse; mas o padre Bonifacio sempre lhe mandava hum rotulo de
cera lavrada, que saõ quatro arrates, hum paõ de çuquere, & as mais das vezes hũa colação,
que elles muyto estimão. A entrada ordinariamente he á tarde, em especial quando entraõ
peregrinos, que hão de dormir dentro aquella noyte, & quando elles entrão, tambem pòdem
entrar todos os que tenho dito, porque ha ordem para que o saybão todos os cristãos da
terra; nos dias particulares digo, que nos géraes, já sabem o costume; & os que não tem de
ficar de noyte, com brevidade visitaõ os santos lugares, & se sahem, porque o porteyro
sempre està batendo, & bradando, que se tornem a sair. Pelo preço dos nove saquins de
ouro, ou quatro & meyo, saõ obrigados os turcos a abrirem tres vezes aos peregrinos as
portas da casa santa para entrarem, & outras tantas para sahirem, & isto ao tempo q forem
chamados, posto que os que assim entraõ se deyxem ficar dentro alguns dias que lhe
parecer, como fazem alguns devotos, mas aos taes naõ lhe abriráõ, senaõ quando tornarem
a entrar os da sua companhia, & a mesma obrigaçaõ, que os turcos tem de abrirem a
muytos, tem de abrirem a poucos, & ainda a hum só, com tanto que pague o ordinario que
tenho dito. E porque a opiniaõ de muytos christãos destas partes he, que o graõ turco /
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consente serem visitados estes santos lugares, pelo interesse que delles tem, como eu algũas
vezes tenho ouvido dizer: saybaõ os que isto lerem, que naõ ha tal cousa, porque o interesse
por muyto que fosse em nossos tempos, nunca chegou a tres mil cruzados, digo dos
peregrinos latinos, & todos os tributos que se levaõ, assim de hũs, como dos outros, se
gastaõ em hum hospital de pobres. Nem o graõ turco poz estes tributos, antes os puzeraõ os
christãos, no tempo que a Terra Santa era sua, & o graõ turco quando tomou a terra ao
Soldaõ do Egypto, reprovou muyto aquelle máo costume, mas deyxou o ficar, por lhe
affirmarem que os christãos o haviaõ posto, & ordenado, & naõ por outro respeyto; antes
cada anno manda dar aos nossos frades hũa boa esmola para o azeyte das lampadas, & os
favorece com muytos privilegios, que lhe tem dado. Tem por costume aquelles turcos, a
cuja conta está o abrir a porta do santo sepulchro, que assim se intitula aquelle sagrado
templo, que sempre quando se abre, ou para entrarem peregrinos, ou por qualquer outro
respeyto, naõ consentirem entrar pessoa alguma diante os frades, ainda que se abra á conta
das outras naçoens, antes o porteyro com muyta cortesia, tendo as portas hũa sobre a outra,
toma a cada hum dos frades pela maõ, & hum a hum os mete dentro, & depois de entrados
89
todos, abre as portas, & deyxa entrar os mais, & naõ sómente neste lugar, mas em todos os
outros nos tem muyto respeyto. /
90
119
CAPITULO XXIII.
Do interior do Santo Templo, & Casa Santa, & do lugar aonde nosso redemptor foy ungido
quando o tiràraõ da cruz.
DEpois que tratey do exterior deste sagrado templo, quero tratar do seu interior, &
dos santuarios, que dentro nelle estaõ, começando do lugar da santa uncçaõ, por ser o
primeyro que se nos offerece. Aberta a porta, & entrados dentro, vemos logo diante duas
grosissimas columnas de marmore, que cada hũa tem em grosso dezoyto palmos, as quaes
sustentão a primeyra parte do edificio: & mais adiante cinco passos defronte da porta está o
lugar no qual foy ungido o corpo de nosso senhor Jesu Christo, pelos muy illustres varões,
Nicodemus, & Joseph, & posto em hum limpo lençol, como era costume dos Judeos,
sendo-lhe primeyro lavado seu divino corpo, & chagas, com as lagrimas da gloriosa
Virgem Maria, sua mãy, & senhora nossa, & dos seus muy queridos amigos S. Joaõ, & a
Magdalena, com as mais pessoas santas, & devotas, que naquelle acto sagrado se acháraõ
presentes. Bem se deve crer o pranto que naquelle lugar a rainha dos anjos faria, vendo
diante de si, & tendo em seus braços o corpo de seu unigenito filho, Deos, & senhor nosso,
todo feyto hũa chaga de cinco mil, & tantos açoutes, que sendo elle o innocentissimo
cordeyro de Deos, lhe dèraõ por nossas culpas & peccados. Lugar he este de tanta devoçaõ,
& efficacia, que jámais se pòde olhar, sem muy grande movimento interior d’alma, & ainda
do corpo, quasi sempre acompanhado com lágrimas: /
120
porque de verdade, quando
olhamos aquelle santo lugar, com consideraçaõ do que nelle se passou, parece que vemos
com os olhos corporaes ao divino corpo de nosso redemptor, lançado naquelle chaõ,
chagado, & ensangoentado, & cercado daquella santa companhia. A pedra sobre que foy
feyta aquella sagrada uncçaõ, está ao presente cuberta com hum rico pavimento de
riquissimas pedras. Sua compridão saõ nove palmos, & tres & meyo de largo, & tem de
redor para sua guarda hũa grade de ferro, de quasi dous palmos em alto, & de redor da
grade da parte de fóra tem hũa moldura de jaspe verde, & vermelho, feyta a modo de
enxadres: & em cima deste sagrado lugar ardem de contino oyto lampadas, duas á nossa
conta, & as seis saõ das outras naçoens. Costumaõ os frades em algũas solemnidades,
dizerẽ missa neste santo lugar, pondo sobre elle hum altar feyto de huma mesa, & todas as
91
vezes que o visitaõ, ganhaõ indulgencia plenaria, & os religiosos das outras nações, que
estaõ dentro o incensaõ duas vezes no dia.
Defronte deste lugar, & da porta por onde entramos, estaõ duas sepulturas sobre
columnas de marmore, arrimadas ao muro exterior da capela mòr desta santa casa, as quaes
saõ de dous reys christãos, que reynáraõ em Hierusalem. Hũa de Gothifredo de Bulhaõ, & a
outra de Baldovino: na qual se lè este epitafio, ou letreyro em letras latinas: Rex
Baldovinus, alter Judas Machabeus fpes patriæ, vigor Ecclesiæ: virtus utriusque, quem
formidavant cunct: cui dona, tributa ferebant, Cædar, & Ægyptus, Dan, ac homicida
Damascus, proh dolor, hoc modico clauditur tumulo. Hic Baldovinus obijt 1118. Dominica
in ramis palmarũ.
Como o latim deste letreyro he taõ claro, naõ he / 121 necessario mais explanação,
sómente no que diz homicida Damascus se ha de entender, que chama a cidade de Damasco
homicida, porque segundo o que se tem naquellas partes, muy junto della o desaventurado
Caim, matou ao innocentissimo Abel seu irmaõ, como o diz o glorioso Doutor S.
Hieronymo sobre Ezequiel, no qual lugar tem os turcos & mouros hũa muy curiosa cappella
oytavada, atè o tempo presente. Na sepultura de Gothitredo de Bulhaõ estaõ esculpidas
estas palavras em latim.
Hic jacet inclitus Dux Godefridus Bullion, qui totam istã terram acquisivit cultui
Christiano cujus anima regnet cum Christo, amen. Deste Gothifredo, ou Godefredo se lê
que como por sua nobreza, & valentia fosse eleyto em Rey de Hierusalem, naõ quiz ser
coroado, dizendo naõ ser cousa licita pór sobre sua cabeça coroa de ouro, no lugar aonde
nosso redemptor fora de espinhos coroado.
Deyxando á parte este sagrado lugar da santa uncçaõ, do qual tratey primeyro, por
se me offerecer diante de todos, tratarey do edificio interior, & depois das mais
particularidades. O ambito, & grandeza deste sagrado templo, saõ duzentos cincoenta &
seis pès de comprido, & cẽto & setenta de largo, naõ dos nossos pès communs, mas dos que
os geometricos usaõ na sua arte, que saõ muyto mayores.
Dentro deste compasso izenta por si, & separada de todo outro edificio, está a
cappella mòr feyta toda de huns arcos sobre outros, & columnas sobre columnas. E ainda
que a cappella, segundo sua grandeza, naõ he demasiadamente alta, foy em outro tempo
92
sobre maneyra fermosa, por estarem todos os arcos abertos, & ao presente estaõ ferrados os
concavos, com pedra, & / 122 cal, ainda que muyto bem guarnecidos. Toda esta cappella do
meyo para cima era de muy rico moysaico, tirando o vaõ dos arcos, & do meyo para bayxo,
taboas inteyras de muy fino marmore o pavimento, todo he lavrado de pedras de diversas
cores, de tal maneyra postas por ordem, que fazem huns lavores muy curiosos a modo de
alcatifas. No alto tem hum cimborio de muyta curiosidade, sustentado com quatro
grosissimos pilares. Serve esta cappella mòr aos gregos, mas naõ tem cadeyras, ou assentos
algũs, & junto ao altar tem hũas portas de hũa, & outra parte, & junto ás portas, dous
tronos, ou assentos altos de pedra marmore de muyta curiosidade, aos quaes sobem por tres
degraos: & nelles se assenta o patriarca grego, vestido em pontifical nas grandes
solemnidades, hora da parte do Evangelho, hora da parte da Epistola, por ser a capella sua,
a qual como digo fica só separada, que podem andalla de redor toda por fóra. O mais
edificio do templo he quasi redondo como hũ theatro ou coliseo, feyto como hũa claustra de
religiosos, com suas varandas por cima, sustentadas sobre trinta & oito columnas, &
pilares: no bayxo entre duas columnas hũ pilar, & no alto entre dous pilares huma columna.
As columnas debayxo saõ altissimas, & todas inteyras de fino marmore, sua grossura em
torno, tem grandes dezoyto palmos. As basas destas columnas tem em quadro oyto palmos,
de modo que tem cada basa trinta & dous palmos. Os pilares do alto das varandas, saõ os
mesmos que vaõ continuando debayxo, mas as columnas saõ menos grossas. Em cima
destas varandas havia outras com as mesmas columnas, & pilares, mas ao presente, tem
tapados os vãos, ficando a mais obra, como antes estava com seus pilares, & columnas, &
sobre esta segunda varanda começa a fe/char
123
o tecto de hũas traves muy grandes, &
grossas dos cedros do monte Libano, como convinha, a qual no alto, naõ sarra de todo, mas
fica hũa abertura, redonda, & fermosa para dar claridade ao templo, que sendo taõ grande
não tem por onde lhe entre outra. Todo este edifício interior de que trato, he forrado de
taboas muyto grandes, & largas, de ricas pedras de muyta estima, as voltas dos arcos de
jaspes verdes & vermelhos, & o vaõ da claustra tem junto do emmadeyramento, todo de
muy rico moysaico de redor, & em o meyo circulo da banda do norte da mesma obra
moysaica os doze apostolos, & entre elles a Rainha Santa Elena, & no outro meyo circulo,
doze profetas, & entre elles o emperador Constantino Magno. Naõ estaõ ao presente todas
93
estas curiosidades em sua perfeyçaõ: antes as vemos hirem-se muyto danificando, assim
pela antiguidade do edificio, como por causa da humidade, vento, & chuiva, que entra pela
abertura de cima, & sobre tudo entraõ muytas vezes pelo mesmo lugar, pombas que
dormem na Igreja, & por naõ serem notadas de ociosas de continuo andaõ picando naquelle
moysaico, & o danificaõ muyto, mas a obra atè o dia presente mostra claramente tudo o que
delia escrevo. Debayxo da varanda que vay por cima da primeyra claustra, ao longo do
muro interior vaõ estancias, nas quaes moraõ os religiosos, que estaõ na Casa Santa de
contino, affim para a seu modo celebrarem o officio divino, como direy em seu lugar, como
para limpeza dos santos lugares, & terem cuydado das suas lampadas. E porque leve a
ordem que convem no tratar dos santuarios, tornarey ao principio da entrada da porta, & do
lugar da santa uncçaõ indo ao calvario.
94
CAPITULO XXIV.
Do santissimo calvario aonde o nosso redemptor foi crucificado.
A Mão direyta, entrado pela porta da casa santa, quasi fóra do compaço do tẽplo
alguns quinze atè vinte passos, estaõ duas cappellas, sobre as quaes está o sagrado calvario,
ao qual sobem por huma escada de dezoyto degraos, os primeyros oyto subimos para o
oriente, & os outros viramos sobre a maõ direyta. Este sacratissimo lugar, he hũa cappella
quadrada de quarenta & quatro pès em quadrado, & se divide pelo meyo em duas partes
com hũ pilar grosso, & dous arcos, & para a parte donde está a santa uncçaõ, está esta
tribuna, ou cappella, tambem com outros dous arcos abertos, & hum pilar no meyo, tudo
lavrado de obra moysaica muy rica, o mais gracioso, & lindo q vi em quantas partes
orientaes me achey, nem em Roma, nem em S. Marcos de Veneza, que he tudo moysaico,
& da mesma obra, & das mesmas lindezas he tudo o mais desta sagrada cappella, assim
a abobeda, como as paredes. Em a primeyra parte deste santo edificio, logo como nelle
entramos está hum taboleyro de marmore fino, ainda q da mesma rocha feyto, & cuberto
com taboas de marmore. Tem doze palmos de comprido, & oyto de largo, & tres palmos de
altura. No meyo deste taboleyro, ou para melhor dizer, altar, está hum buraco lavrado na
rocha viva, no qual foy metida a santa Vera Cruz, quando nella esteve crucificado o
senhor, & redemptor Jesu Christo, derramando seu preciosiissimo sangue por nossos
peccados, & como verda/deyro 125 pastor, pondo a vida por suas ovelhas: pelo q nossa santa
madre igreja, allumiada pelo Espirito Santo seu esposo, canta na feita de sua gloriosa
resurreyçaõ, aquelle doce, & suave verso, que diz: Agnus redimit oves, Christus innocens
patri reconciliavit peccatores, que querem dizer as taes palavras: O cordeyro remio as
ovelhas, & o innocente Christo reconciliou a seu eterno padre os peccadores. Este lugar he
de mais devoção, & admiração, que todos os santuarios do mundo, assim pelos grandes
mysterios q nelle foraõ obrados, como por se representar nelle toda a alma christãa, que
com devoção, & Fè o visita, a Christo crucificado, & encravado na cruz, que de verdade vos
parece, que com os olhos corporaes o vedes estar, da maneyra, que esteve quando o
crucificarão. Tem aquelle buraco mais de dous palmos de altura; a largura, quasi que cabe a
95
cabeça, o que muitas vezes, para minha espiritual consolação experimentey, hora metendo a
cabeça, hora os braços, do que de contino dou muytas graças a meu Deos, & não quizera
deyxar de ser vistos, & andados taõ santos lugares, por todas as honras desta vida.
Tem o dito buraco hum grande bocal de prata lavrado de imagẽs, o qual serve,
assim para ornamento, & veneraçaõ, como para estar mais guardado, que naõ possaõ
tirar alguma cousa, & este bocal impede a que a cabeça naõ cayba bem de todo: & em
outro tempo o tinha de ouro fino, ornado de rica pedraria, & agora de prata por causa da
cubiça dos turcos. No mesmo altar estaõ os buracos aonde foraõ metidas as cruzes dos dous
ladrões, feytos, & abertos tambem na rocha viva, separados taõ grande distancia do em que
foy metida a cruz do Salvador do mundo, que se pòde julgar os braços das cruzes, quasi
tocarem huns nos outros, /
126
a do bom ladrão á mão direyta, & a do máo á esquerda. Ao
presente em cada hum destes dous buracos, está posta hũa columneta de altura de hum
homem, com hũa cruz postiça em cima. Nosso redemptor Jesu Christo, estando posto na
cruz, tinha sua divina cara ao ponente, & as espadoas para a cidade, como quem reprovava
todas as ceremonias, & ritos judaicos. Entre o buraco em que esteve metida a cruz do
Salvador do mundo, & o buraco em que esteve metida a cruz do máo, & reprobo ladraõ está
em a mesma rocha, & pedra viva hũa abertura de levante a ponente de sete palmos em
comprido, & dous em largo, taõ alta & funda, que penetra atè o ultimo da pedra, como
claramente vemos, pondo hũa candeya acesa no lugar da Invençaõ da santa cruz, que está
muy fundo, como adiante direy. Abrio-se esta rocha ao tempo que nosso redemptor
espirou na cruz, em sentimento de sua santissima morte, que como diz o evangelista, as
pedras se partiram, & os moimentos se abriram, &c. & ficou o máo ladrão da outra parte
da abertura, apartado de Christo nosso redemptor, cousa digna de muyta consideração. E ao
tempo que fizeraõ aquella rica cappella, quando lageáraõ o lugar de marmores, deyxáraõ
aquella abertura descuberta para memoria do milagre, & para que os devotos
contemplativos, tivessem em que contemplar, vendo que o Senhor do universo, á hora de
sua morte ao bom ladrão que o confessou por Deos, & Senhor, prometteo, & deu a gloria &
reyno dos ceos: & ao máo apartou de si, naõ querendo que lhe tevesse companhia, em que
todos devemos considerar, & tomar exemplo, quam perversa cousa he, conversar os máos,
& quanto muito peyor, participar de suas maldades.
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Vem-se muy claramente naquella abertura as man/chas127, & sinaes do sangue, que
corria do braço esquerdo de nosso redemptor, o que sua divina magestade tem por bem,
conservar-se assim como outras muytas cousas na Terra Sata para consolaçaõ espiritual dos
seus fieis, que com devoção visitaõ aquelles santissimos lugares. Esta sagrada cappella do
calvario, he commua a todo-los christãos, & está sempre patente, & aberta sem nenhum
impedimento, para poder ser visitada de todos os que se achão dentro na casa santa. Em
outro tempo tinha a entrada por fora, porque como fica dito, fica em algũa maneyra
apartada do compasso do templo, & serviaõ-se por huma rica escada, que está no adro, &
pateo exterior: a qual era ornada de ricas columnas de jaspe verde, & vermelho, com sua
sobre escada, ou cuberto de muyta mais riqueza, & curiosidade, cuja porta por onde
entravaõ ao santo calvario, está ao presente tapada com pedra, & cal, ficando a escada
inteyra, ainda que os turcos lhe tem tirado a mayor parte dos jaspes.
O patriarca dos gregos soy causa de se tapar aquella porta: porque com algum
interesse, algũas horas dava ordem secretamente, para que algũs dos seus peregrinos por
aquella via entrassem na cappella do calvario sem pagarem aos turcos, contentando-se
com sómente a verem, & o que della podiaõ alcançar ver do santo templo, & casa santa:
& como os turcos naõ tem veneração aos lugares aonde nosso redemptor padeceo, porq
confessaõ, que por filho de deos & bafo de deos, naõ podia morrer, naõ se davaõ por
achados dos gregos, & outros christãos, entrarem no lugar do calvario, por depender todo o
negocio de seu interesse sómente na cappella do santo sepulchro, mas pelo tempo vindo a
cair na conta do engano, que lhe faziaõ, acerca da paga, / 128 mandárão tapar a porta, como
tenho dito, & deraõ licença para fazerem a outra escada dentro na Igreja pela qual ao
presente se servem. Ardem de contino neste santo lugar do calvario muitas alãpadas: &
delle, & dellas tem cuydado os da naçaõ gorgica, & o trataõ com muyta veneraçaõ, limpesa,
& acatamento. Na segunda parte desta cappella bendita, que como tenho dito, se divide
com hum pilar, & dous arcos, está o o lugar aonde os ministros da maldade crucificáraõ, &
encraváraõ a nosso redemptor na cruz, tendo-a lançada no chão, & alli estendendo aquelle
thesouro da gloria, & aquella humanidade, á divindade unida, estirando-lhe os braços, &
desconjuntando-lhe todos seus divinos membros, aonde foy comprida a profecia do real
profeta David, que diz: todolos meus ossos foraõ contados, & depois de o terem encravado,
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& feyto nelle as anotomias que quizeraõ: Quia Pilatus tradiderat eum voluntati eorum,
como o diz o evangelista S. Lucas, levantárão a cruz em peso, & a meterão de pancada no
buraco, que tinhaõ feyto na pedra viva. De quanta devoçaõ seja este santissimo lugar, no
qual naquella hora foraõ abertas quatro fontes perenaes, & para melhor dizer; rios cabdaes,
cõ outros muytos regatos de sangue precioso do Salvador do mundo, contemple-o toda a
alma christãa : & darme-ha credito, se disser que vi nelle muytas, & muytas vezes derramar
muyta copia, & abũdancia de lagrimas: & para mim tenho ser este lugar, aonde meu Deos
& senhor mais tormentos padeceo: porque à encravaçaõ de cada mão & pé, & o estiraremlhe os nervos, para mais à sua vontade poderem meter os pregos : & depois levantada a
cruz, que ficou aquelle divino corpo todo sustentado nos cravos que tinhaõ atravessadas as
mãos, qae haviaõ fabri/cado 129 todo o universo, & o de mais sentimento que foy, meterem a
cruz no buraco, que sem duvida se pòde crer a meteriaõ de pancada : no q claramente se vè,
que em alguma maneyra se haviaõ de rasgar as mãos. Todas as cousas em si consideradas,
& quem he o que as padeceo, & por quem as padeceo: cuyde-as, & occupe nellas sua
memoria, quem desejar sua salvaçaõ, porque minha intenção, naõ he escrever meditações,
nem fazer exclamações, mas sómente relatar, & escrever o que vi, & andey, & folgar de o
ter andado, & visto; porq queyra, ou naõ, hũa ora por outra se me ha de refrescar a memoria
com cousas taõ santas: pesando-me de me ver taõ apartado dellas, & desejando mais que
todas as cousas da vida, ter liberdade, & forças para as tornar a visitar, o que meu Deos por
sua misericordia tenha por bem concederme permittindo, que eu acabe o curso desta
cansada vida, naquelles beatissimos lugares, nos quaes elle teve por bem perder a sua, para
nos vivificar a todos, matando a morte.
No lugar aonde eslá o buraco da cruz, & neste aonde nosso redemptor foy
encravado, se ganha sempre indulgencia plenaria, & remissaõ de todolos peccados.
Elle santissimo lugar da encravaçaõ, de todo está á conta dos nossos frades de S.
Francisco, & ardem de contino nelle trinta alampadas das quaes elles tem cuydado: &
nenhum christaõ das outras nações pòde entrar nelle sem nossa vontade, & consentimento.
Temos nelle hum altar, à parte oriental competentemente grande, arrimado á rocha defronte
do buraco da cruz, & distante delle quasi vinte palmos. O retabolo he de brocado de ouro,
& seda, tem hum devotissimo crucifixo, & a Virgem de hũa parte, & Saõ João da outra: no
98
qual altar todos os dias dizem os frades missa, ou /
130
de payxaõ ou das chagas: & nelle
pela misericordia de meu Deos, celebrey muytas vezes, por mim & por meus amigos, &
pelo estado real do reyno de Portugal, & sua aumentação, pelo que a meu redemptor dou
infinitas graças. O lageado deste segundo lugar, he todo de bom moysaico muy custoso, de
finas pedras de muytas cores, no qual em particular entre outras muytas curiosidades,
contey trinta & cinco estrellas grandes, & cada estrella com seis rosas, tres á cabeça, & tres
aos pès. Alem da claridade das alampadas tem hũa genella com sua grade de ferro, a qual
corresponde ao pateo exterior, & está no lugar aonde soia estar a porta da escada que tenho
dito. Affirmão os christãos da terra, & anda escrito em hum livro, que trata das
particularidades antigas da Terra Santa: que a Virgem N. Senhora, & S. João com a mais
piedosa companhia sua: estavaõ defronte da cruz no lugar do pateo superior da escada, que
depois alli foy feyta o qual está oyto passos do buraco aonde a cruz foy metida, & se assim
he: o darem os pintores no principio em pintarem a Virgem de hũa parte, & Saõ Joaõ da
outra, & a Magdalena ao pé da cruz, mais foy piedosa devoçaõ, & contemplaçaõ, que outra
cousa: não considerando ser impossivel, no tempo que no lugar do calvario estava toda a
justiça de Hierusalem, & muytos inimigos do redemptor do mundo: terem lugar para a elle
se poderem chegar, sua bendita mãy, & seus devotos amigos, & parentes: pelo q o dizer o
glorioso S. João: Quod stabat juxta crucem Jesu mater eius, &c. se ha de entender aquella
proposiçaõ juxta de maneyra, que nos naõ obrigue a crer, que estava ao pè da cruz, pois
oyto passos bem se pòde dizer juxta, ou cerca, ou junto: como tambem o mesmo
evangelista, /
131
que juxta erat monumentum : que o sepulchro do Senhor estava perto,
havendo do calvario a elle quasi setenta passos: & o Evangelista S. Mattheus diz: Erant
autem ibi mulieres multæ à longe, entre as quaes, &c. & o mesmo diz o glorioso S. Marcos,
& S. Lucas, singular chronista evangelico, diz: Stabant autem omnes noti eius à longe, & os
pontifices romanos concedèraõ remissaõ de todolos peccados a todolos fieis, que com
devoçaõ visitaõ aquelle santissimo lugar: por onde se mostra a dita pintura ser mais devota,
& piedosa que propria. Bem pòde ser que os pintores, que no principio dessem em a pintar
movidos com santa consideraçaõ, tendo, que depois que a justiça, & a mais gente popular
se partio daquelle lugar, com temor do grande terremoto que a terra fez, & os mais sinaes
que virão quando nosso Deos, & Senhor espirou na cruz : a Virgem nossa senhora com a
99
sua companhia se chegassem mais ao pè da cruz, o que parece cousa muy decente, & pia. A
minha opinião nesta parte, & nas mais, he crer, & approvar tudo aquillo que crè, tem, &
approva a santa madre igreja romana. Tornando pois ao que antes tratava, torno a dizer, que
a primeira parte desta cappella santa do calvario, está á conta dos gorgianos, os quaes saõ
mortaes inimigos da santa igreja romana, como direy em seu lugar, mas todolos christãos
das outras naçoens participaõ delle: & nòs em particular, porque quasi de contino estaõ
nelle frades: & naõ podemos ir á segunda parte desta cappella, que está á nossa conta, senaõ
pela primeyra, do que sentem grandissima dor os gorgianos, mas naõ nos podem impedir o
passo, porque se poriaõ em perigo de perder o lugar, que tem á sua conta. No tempo que eu
estava nesta casa santa, se puseraõ a naõ quererem consentir, q quando subindo pela /
132
escada hiamos cantando o hymno, Devexilla Regis, como costumamos cantar todas as
tardes do anno, até o lugar da encravaçaõ, q está á nossa conta, o cantassemos passando
pelo primeiro, que está á sua; mas que fossemos com silencio até o nosso: & havendo sobre
isto contendas, que sempre lhe cahem ás costas, nos queriaõ conceder, que passassemos
pelo seu, dizendo submissa voce, o que costumavamos cantar; & sobre esta demanda vieraõ
hum dia a ter porfias, e enfadamentos com os frades, mas levárão a peyor, assim nas bolsas,
como nas costas: porque vindo-o a saber o Cabbi, que é como justiça myor, os mandou
apalear, como lá dizem, & os fez pagar certa contia de dinheyro, que elles mais sentiraõ:
porque na Terra Santa as contendas, & differenças dos christãos, sẽpre redundaõ em
proveyto dos turcos, ainda que a nòs sempre nos tem respeyto, & fazem por guardar justiça.
Quem quizer saber o modo, que estes christãos de nome, & opiniaõ tem das
differenças, & no mais, com a nossa nação latina, lea a histtoria ecclesiastica, & nella verá
o modo que os Arrianos, & os outros hereges scismaticos, tinhaõ naquelle tempo cõ os
catholicos, sendo patriarcha S. João Chrysostomo, & outros santos patriarcas, que então
houve, assim em Constantinopla, como em Alexandria, & outras partes orientaes, porque da
mesma maneyra se haõ agora os gregos, gorgianos comnosco, por sermos da obediencia da
santa igreja romana, salvo que aquelles antigos hereges tivèraõ naquelle tẽpo favor de algũs
emperadores, & principes, & estes d'agora tem muy pouco, ou nenhũ dos turcos. Tẽ por
costume estes gorgicos, quando em alguma festa celebraõ naquelle santo lugar seus officios
divinos, porem hum cordel com hũa corrediça pelo meyo da cap/pella133, para que do nosso
100
lugar os naõ vejamos officiar, & fazer suas ceremonias, tendo-nos por indignos de naquelle
tempo olharmos para elles: aconteceo hum dia morando eu lá, hum religioso nosso, estando
elles no melhor da festa, ir dissimuladamente, & cortarlhe o cordel, & cair a corrediça, por
lhe queymar o sangue, & isto naõ huma só vez: & como por sempre levarem a peyor, a naõ
põem, por causa da perda do cordel: sentem muyta magoa, vendo que com attençaõ os
estamos vendo naquelle tempo. Aconteceo que hum dia, o que tem particular cuydado
daquelle santo lugar, praticando com hum frade nosso, se lhe queyxou de lhe cortarem o
cordel: respondeo-lhe o frade, que lho cortavaõ, porque a escapula em que o attavaõ estava
metida na nossa parede: ao que naõ teve que responder o scismatico. A verdade disto he,
que os nossos frades em nenhum tempo queriaõ ser privados da vista daquelle santíssimo
lagar, & como a intençaõ daquelles hereges naõ he outra, senaõ terem-nos por indignos de
olharmos para elle, & de nos darem pena: põem a corrediça, sendo costume géral entre
todos os christãos orientaes, fazerem os officios divinos em publico, naõ se guardando hũs
dos outros.
Aqui neste sacratissimo lugar : vi a este caloiro a noyte da santa exaltação da cruz
de setembro, fazer o officio das matinas, vestido com ricos ornamentos, com muytas
ceremonias, modos, & cantos, estando no mesmo lugar muytas pessoas, assim homẽs,
como mulheres de sua naçaõ gorgiana: & servirem-lhe de forastairos duas freiras moças, do
que se escandalizáraõ muyto todas as outras nações, que dentro estavaõ, vendo huma tal
abominação em lugar taõ sagrado, sabendo que o dito caloiro tinha particular amisade com
huma dellas, da qual /
134
havia já sido admoestado, & reprehendido muy asperamente por
hũ frade nosso, de naçaõ francez, que os havia algũas vezes visto estar fallando na fresta da
igreja por onde metem o mantimento aos que estaõ dentro. Fizeraõ alguns christãos
queyxume deste máo exemplo ao patriarca grego, a quem estes gorgios saõ sugeytos: & elle
o reprehendeo, & castigou, de modo, que ou por vergonha, ou por temor, houve emmenda.
Escrevi aqui isto, para que se veja como aquelles scismaticos sustentaõ a guarda, &
reverencia daquelles santos lugares, mais por opinião de quererem levar a sua adiante, que
por acatamento interior, que lhe tenhaõ: o que se conhece claramente no odio mortal com
que trataõ as cousas dos latinos, calumniando-os em tudo quanto podem, como se nisso
101
fizessem grande serviço a Deos o que tenha por bem remediar sua divina misericordia.
Amen.
102
CAPITULO XXV.
Do santissimo sepulchro de nosso senhor Jesu Christo.
DEntro deste grande, & sumptuoso templo, de que atraz tratey no capitulo vinte &
tres, o qual commummente se chama a Casa Santa em Franquia, está o santissimo
sepulchro de nosso senhor Jesu Christo. A distancia do calvario a este glorioso lugar, saõ
setenta passos, naõ muyto estendidos, fica no meyo o lugar da santa uncçaõ, & entre elle, o
santo sepulchro, está huma pedra de marmore branco, grande, & redonda como huma mò
de moinho, sobre a qual arde de contino hũa alampada em reverencia, que esteve naquelle /
135
lugar a virgem nossa senhora em quanto sepultáraõ ao redemptor do mundo. No meyo
deste sagrado templo, ficando a cappella mor ao oriente, está a cappella que tem dentro em
si o sepulchro glorioso de nosso Deos, & senhor; o qual he de muyta mais riqueza, que
todos os thesouros orientaes, & assim o edificio excede aos outros em tudo, & com muyta
razão, pois teve em si ao filho do eterno Deos. A arca do Velho Testamento naõ tinha mais
dentro, que a vara de Moysés, & a verga florida de Arão, com as lapideas taboas da Ley, &
o vaso de ouro cheyo de manná, mas nesta esteve o divino corpo de nosso senhor Jesu
Christo, verdadeyro dador da ley, & verdadeyro manná, & paõ sobresubstancial, que
descendeo do ceo, & cada dia he administrado na igreja catholica aos que o temem, &
como dizem a gloriosa Santa Paula Romana & sua filha Eustochio escrevendo a sua amiga
Marcela: tinhão os judeos em grande veneração o lugar chamado Sancta Sanctorum por
estar nelle o propiciatorio com os cherubins, a arca do Velho Testamento, & o altar de ouro
com as mais reliquias acima ditas: naõ se parece a si ser digno de mais veneração o
sepulchro do senhor, no qual todas as vezes que entramos vemos estar o salvador em hum
lençol, & detendo-nos nelle algum pequeno intervalo tornamos a ver o Anjo estar aos seus
pès, & o sudario posto á cabeça?
Naõ sem causa escreviaõ estas santas áquella bemaventurada estas cousas, porque
de verdade hoje em dia parece o mesmo a toda a pessoa christãa, que com devoçaõ visita
aquelle santo lugar, considerando quem nelle esteve sepultado, & o que digo deste
santissimo santuario, se pode dizer, & direy, de outros da Terra Santa, aonde foraõ obrados
103
particulares misterios de nossa re/dempçaõ
136
, porque com muyta verdade o posso
affirmar. O exterior desta cappella he quasi como ovado o tecto he raso, & feyto na rocha
viva, como no tempo da payxão de nosso redemptor, & assim mesmo as paredes, mas todas
cubertas de muy ricas pedras, lavradas com muytas curiosidades de arcos, & columnas,
sómente para ornato da obra, mettidas entre os arcos outras pedras de porfido, & jaspes
serpentinos. Emcima do tecto tem hum zimborio feyto como hum rico sacrario oytavado
daltura de dous homẽs & cada outavo tem duas columnas sobre hũa basa, feytas de fino
alabastro, de modo que saõ dezaseis colunas, obra de muy grande perfeyção, & delicadesa:
o capitel do zimborio he feyto de madeyra de cedro do Monte Libano, de rica macenaria,
pintado todo de ouro, & azul, & por cima cuberto de chumbo por causa da chuva, orvalho,
& outras humidades, que entraõ pela abertura do templo, como tenho dito ; o qual vem
direyto sobre esta cappella do santo sepulchro. O interior desta cappella não he ovado,
como o exterior: tem hum repartimento pelo meyo, & do pavimento atè o tecto saõ as
paredes cubertas de finos marmores. A primeyra parte, aonde logo entramos, he quadrada,
& tem doze pès de comprido, & outros tantos de largo, tẽ duas frestas, hũa ao norte, &
outra ao sul, as quaes mais servem para ornamento, que de outra cousa, por falta de
claridade, que como tenho dito, a igreja grande donde a haviaõ de ter, naõ lha pode
communicar, pois naõ tem outra, senaõ a que lhe entra pela abertura de cima. Neste
primeyro introito estava a porta de pedra, q as santas mulheres temiaõ naõ terem quem lha
tiraffe, dizendo: Quis nobis revolvet lapidem, a qual lhe tirou o Anjo para ellas poderem
entrar. Em lugar desta porta /
137
de pedra, tem agora a dita meya cappella humas portas
muy curiosas de cedro do monte Libano, & tem o portal á parte oriental defronte da
cappella mor, & coro do templo. O pavimento de dentro he lodo de jaspes verdes, &
vermelhos, & no meyo está hum de comprimento da cappella, & dentro delle hum porfido
ovado, & junto á porta, ou entrada da outra meya cappella aonde está o santo sepulchro,
está hũa pedra de porfido, levantada do chão mais de dous palmos de grossura, & hum de
altura, a qual foy alli posta por final do lugar aonde estava o anjo, quando appareceo ás
santas mulheres, & ellas achando o primeyro lugar sem impedimento, por lhe ser já tirada a
pedra, entrarão nelle. A segunda parte desta cappella, he outro quadro, que tem dez palmos
de comprido, as paredes cubertas de finissimas pedras, sua entrada tem cinco palmos, &
104
tres de lago, & não tem, nem se vem nunca portas, & por esta entrada metèraõ o corpo de
nosso redemptor no sepulchro, & da maneyra deste saõ feytos os sepulchros dos judeos nas
partes orientaes, como vi em muytas; assim em Hierusalem, como em outras partes, que
ficárão dos antigos. O tecto, ou abobeda desta segunda parte he a mesma rocha viva, mas
está guarnecida, & com muytos buraquinhos por causa do fogo das lampadas, por ter por
onde respirar o fumo, & vapor. A mão direita deste segundo lugar está hum altar, que de
comprido occupa toda a capella, & de alto tem quatro palmos & meyo, & outros tantos de
largo. Este altar he o sacratissimo sepulchro de nosso senhor Jesu Christo; o qual cuberto de
finos marmores, fica como em numa arca guardado. Tem hum retabolo de bom pincel, tem
pintado nelle a resurreyçaõ de nosso salvador, com dous anjos, cada hum de sua parte. No
exterior deste altar, tocamos, / 138 adoramos, & reverenciamos o thesouro, que dentro em si
tem, & nelle celebraõ os frades de S. Francisco todos os dias do anno, ainda que seja na
quaresma, ou em qualquer outro tempo, & feita, missa da santa resurreyçaõ, confessando
ser aquelle o verdadeyro sepulchro santo, & glorioso, como o diz o profeta Isaias, no qual o
salvador do mundo esteve por espaço de quarenta horas sepultado: & confessando, que
daquelle bendito lugar resuscitou, & se levantou immortal, & impassivel; mas já agora naõ
està corporalmente, mas assentado n'a sua eterna gloria á direyta de seu eterno padre donde
hade vir a julgar os vivos, & os mortos: & donde com muytas consolaçoens espirituaes,
consola aos que visitaõ aquelle glorioso lugar, mostrando com suas divinas mercês, ser
aquelle o lugar verdadeiro aonde morto esteve sepultado, e vivo resuscitado. Todas as
nações de christãos tem alli suas alampadas, que de continuo ardem, & estão penduradas da
abobeda da cappella : naõ tem mais que alampadas de vidro sem outra curiosidade : porque
se fossem de ouro, ou prata, que naõ faltariaõ, os turcos as tomariaõ, & nos seriaõ causa de
muytos enfadamentos. No tempo que estive em Hierusalem, ardiaõ de continuo cincoenta
alampadas, doze á conta dos nossos frades, & naõ iao mais, porque como o lugar he
pequeno, & as outras naçoens querem tambem ter as suas, naõ pòde ser. Neste santissimo
sepulchro, sómente os frades de S. Francisco tem liberdade para dizer missa, porque elles,
& não outra algũa naçaõ o tem á sua conta, & o tivèraõ sempre : & quando se lá acha algum
sacerdote da igreja latina, o padre guardiaõ liberalmente lha concede, se lha pedem.
105
Ás outras nações de christãos, sómente lhe he permittido terem suas alampadas, &
entrarem a fazer ora/çaõ 139 , & dar incenso a seus tempos limitados, & isto passa assim na
verdade, o que affirmo porque tem cá vindo a estas partes alguns gregos, causa lucri,
afíirmando, que os seus Patriarcas, & os basilios tem o santo sepulchro á sua conta, o que
não he assim: antigamente no sabbado santo descendia fogo do ceo sobre este sagrado
sepulchro, donde a santa madre igreja tomou o costume, que ainda agora se guarda no
oficio do cirio pascoal na vigilia da pascoa ; o qual milagre os gregos querem com muyta
falsidade sustentar, dando a entender, que ainda agora descende no mesmo sabbado.
De como antigamente o fogo santo vinha do ceo, & acendia as alampadas da
igreja, & da maneyra, que agora tem os gregos, em darem a entender, o mesmo direy
adiante, fazendo disso particular capitulo.
Quando se diz missa da resurreyção neste santo sepulchro, sempre o sacerdote (&
dizendo-se com ministros, o diacono aquellas palavras: Ecce locus ubi posuerunt eum)
assina com o dedo o santo sepulchro. Vem como tenho dito a porta desta santa cappella
corresponder com o arco da cappella mòr deste templo, o qual arco he taõ alto, q quasi se
iguala com a abobeda ; & no meyo do pavimento desta cappella está hum buraco muy
fundo, o qual affirmaõ os gregos ser o meyo do mundo, & nisto estaõ tão credulos, que naõ
ha quem da tal opinião os possa tirar; o que eu algumas vezes contradisse, porque se
Hierusalem está no meyo do mundo, como muytos cosmographos querem affirmar, com
mais razaõ se deve ter ser o meyo do mundo no buraco, em que foy metida a cruz de nosso
redemptor, que está alli tão propinco, que naõ no buraco que está no meyo da cappella dos
gregos, mayormente havendo-se de entender á letra aquillo do profeta David no psal/ mo 140
setenta & tres: Deus autem Rex noster ante fæcula operatus est saluttem in medio terræ.
Outras miudezas destas cappellas deixo aqui de escrever por evitar proluxidade.
106
CAPITULO XXVI.
De algũas outras estancias, & estações que estaõ dentro neste sagrado templo, & da
cappella aonde pela rainha S. Helena, foy achada a Sãta Cruz.
AO longo do muro interior deste templo, & casa sãta da parte oriental, vão
cappellas, & do occidental vão estancias aonde se recolhem as nações dos christãos, que
dentro morão. Bayxando do sacro calvario, & caminhando quatro ou cinco passos ao
oriente está huma cappella muy escura, da qual tem cuydado os abexins do Preste João, &
nella está hũa pedra a modo de pedaço de grossa columna, alta quatro palmos, de cor parda
com algumas pintas pretas, sobre a qual affirmão que esteve assentado nosso redemptor em
casa de Pilatos, quando vestido de purpura o coroárão de espinhos, & lhe cobrirão a face,
dando-lhe bofetadas, & pancadas, dizendo-lhe: profetiza-nos Christo, quem he o que te
ferio: chamão a esta pedra a columna dos improperios, & deshonra. Tem hum altar, &
ardem sempre duas alampadadas diante della, & todas as nações dos christãos daquellas
partes, tem este santuario em grande veneraçaõ, no qual se ganhão sete annos, & sete
quarentenas de perdão. Mais adiante outros cinco passos, ou seis, damos em hum portal alto
& fermoso, & entrando nelle, bayxamos por huma escada de trinta degráos, pela qual se
vay a huma grande, & sumptuosa / 141cappella da invocação de Sãta Helena, a qual cappella
he quadrada, & feyta na rocha viva quasi toda debayxo do chão: & sustentada sua abobeda
com quatro columnas muy grossas. Tem esta cappella dous altares, cada hum delles posto
como em particular cappella, cuja divisaõ fazem as columnas. Diante de cada hum destes
altares arde de contino hũa alampada á conta dos Armenios, & junto delles está hũa grande
cadeyra de pedra, & chamaõ-lhe a cadeyra de Santa Helena : affirmando, que estava
naquelle lugar assentada ao tempo, que por seu mandado estavão cavando no lugar aonde a
Santa Cruz foy achada. Bayxando mais huns treze degráos pela mesma escada direyta, que
vem de cima vão ter ao lugar aonde a Santa Cruz foy achada, o qual fica debayxo do santo
Calvario, ficando a rocha descuberta, & toda a abertura, que fez aquelle monte, quando
nosso redemptor espirou na cruz, de tal maneyra, q pondo huma candeya acesa naquelle
profundo lugar se vè sua claridade em cima na mesma abertura, que o monte tem entre o
buraco da cruz de nosso redemptor, & a do máo ladrão. Vem-se algũas horas naquella parte
107
hũas gotas, q querem parecer sangue misturadas com a terra, as quaes ao tempo que as
quereis tocar desapparecem, do que fiz experiência, & a vi fazer a outros, & querem dizer,
que ao tempo, que se abria aquelle monte, juntamente com a terra, correo do sangue, que
sahia do corpo de nosso redemptor Jesu Christo. A verdade disto elle a sabe, & eu nelle
creyo, & no que crè, & tem a santa madre igreja. Este lugar da Invençaõ da Santa Cruz, no
qual se ganha indulgencia plenaria quando a visitão, he hũa cappella competentemente
grande, mas como está subterranea, he muy escura, & humida. Estaõ nella dous altares, &
no principal hum /
142
retabolo com a historia da Invenção da Santa Cruz de boa pintura,
está à conta dos nossos frades, com sete lampadas, que de contino ardem, do que elles tem
cuydado, & o outro altar está á conta dos armenios. O segundo dia de mayo, se ajuntão
todos os christãos de Hierusalem, & Belem; & dos outros lugares comarcãos, & ainda de
alguns bem remotos, & vem a este santo lugar, & nelle com muyta solemnidade celebraõ a
festa da Invenção de Santa Cruz, & dormem lá aquella noyte, fazendo cada naçaõ os seus
officios divinos, & em seus costumados lugares. Nós sómente os frades de S. Francisco
celebramos nesta santa cappella, dizendo solemnemente as vesperas na vigilia da festa com
grande apparato de capas, & ricos ornamentos, & da mesma maneyra a missa conventual ao
dia seguinte, & permittimos sómente aos outros christãos, quando acabão seus officios
divinos, & missas, irem alli fazer algũas ceremonias, que costumaõ. O mesmo dia da festa
me concedeo o padre Bonifacio, que fosse seu diacono na missa, que naquelle santo lugar
celebrou em pontifical, como prelado superior na Terra Santa. Pelo q concedem os papas
aos guardiões de Monte Sion, que em as grandes solemnidades possaõ usar de missa, & de
ornamentos pontificaes, ainda que não saõ pontifices, mas para mais authoridade, porq
estão lá como legados apostolicos, para tudo o que succeder, & for necessario para bem da
christandade. Saindo deste lugar da Invenção de Santa Cruz, tornando a subir pela escada,
hiamos ao longo do muro da igreja interior, por detraz da cappella mòr, a qual fica isenta
por si, sem tocar nelle: á mão direyta no mesmo muro, está huma cappella: em memoria da
payxaõ de N. S. Jesu Christo, por ser o lugar aonde os soldados lançarão fortes sobre sua
sa/grada 143 vestidura: & alli ganhão sete annos, & sete quarentenas de perdão.
Junto desta cappella, & mais adiante, está outra com seu altar, na qual muyto
tempo esteve o titulo da cruz do nosso redemptor, & tem as mesmas indulgencias. Mais
108
adiante indo com a face ao norte, está outra cappella muy escura, na qual ardem de contino
cinco lampadas, & chama-se o carcere de nosso redemptor, & elle mesmo parece
deshumano carcere: tem no chão duas aberturas redondas, & pequenas, como tem os cepos
dos carceres, & affirmão, que alli esteve encarcerado o Senhor em quanto faziaõ o buraco
da cruz, que sem duvida houve detença em o fazer, por estar como tenho dito feyto em
pedra viva, & dura. E ainda que a Escritura sagrada, naõ falla deste carcere, como tambem
calla de outros muytos lugares : falos verdadeyros a veneraçaõ antiga, com que dos
christãos saõ venerados, & visitados, & authenticados com as muytas indulgencias, que os
summos pontifices Romanos lhes tem concedido: neste lugar se ganha sempre indulgencia
plenaria. Mais adiante bem ao norte, está a habitação aonde moraõ & se recolhem os nossos
frades de S. Francisco, a qual he hũ mosteyrinho muy acabado: sobimos a elle por huma
escada de sete atè oyto degraos muy compridos os quaes ficaõ dentro na casa santa, & a
porta fica aberta no seu mesmo muro. Junto aos degráos á maõ direyta está huma pobre
cappella dos nestorianos, dos quaes ha muy poucos, & vivem humildemente com o nome
de christãos, sem terem quem os doutrine. Entrando pela porta do nosso mosteyrinho,
damos logo na igreja, q tem sómente quarenta pès em cõprido, & vinte & oyto de largo cõ
seu coro, & cadeyras muyto bem acabadas, aonde os frades dizem sempre o officio divino,
ás mes/mas
144
horas, & tempo de dia, & de noyte, & com as mesmas ceremonias, &
liberdade, assim rezado, como cãtado, como o costumamos fazer cá nestas nossas partes
occidentaes da christandade. A capella desta igreja separada por si he muy curiosa com seu
retabolo muyto grãde, & fermoso, ainda que antigo, dedicada á honra, & louvor da Virgem
Maria N. S. & em memoria do apparecimento, que nosso redeptor lhe fez, o dia de sua
gloriosa resurreyção, & nella se ganha sempre indulgencia plenaria. A mão direyta, quando
entramos na Igreja está hũ altar pequeno, & na parede delle como sacrario, está hũ vaõ,
como almario com sua grade de ferro diante: & dentro está metido hũ bom pedaço da
columna, á qual nosso redemptor foy atado em casa de Pilatos, quando lhe foraõ dados
cinco mil, & tantos açoutes. Tem aquella preciosa reliquia mais de hum covado de altura, a
grossura não he muyta, sua cor he hum jaspe morado com algũas manchas, & pintas mais
claras: as quaes parece serem produzidas da mesma natureza da pedra: ainda que muyta
parte do vulgo affirma serem do sangue de nosso redemptor: & o gloriofo S. Hieronymo,
109
fallando dos açoutes que deraõ ao filho de Deos : naõ se mostra de contraria opinião: antes
claramente dá a entender serem aquellas manchas da columna, daquelle preciosissimo
sangue, que por nós peccadores foy derramado. A outra parte desta santa reliquia em tempo
q a Terra Santa era de christãos, foy levada a Constantinopla, & a Roma, o padre Bonifacio
sendo a primeyra vez guardiaõ de Hierusalem na era de sessenta, indo pessoalmente a
Constantinopla, fallou com o Grão Turco, & ouve delle licença para renovar todos os
santuarios, q de renovação tivessem necessidade, & partio desta santa columna quasi outra
tanta /
145
parte, como a que agora está: da qual deu ao Papá, & á Senhoria venesiana, & a
outros Príncipes christãos, & poz em deposito no thesouro da sancristia hũa boa parte, para
quando fosse necessarío. Tãbem abrio o santo sepulchro, & tirou delle não pequena
cantidade, de que está parte guardado com outras muytas reliquias, com muyta reverencia
no dito thesouro em hũ Sacrario, & depois o mandou cerrar, & cobrir, da maneira, que
agora está, & o mesmo fez á santa uncção: & neste tempo os que se acharão presentes não
ficarão com as mãos vasias. Na mesma igrejinha dos frades da outra parte da mão esquerda
está outro altar, no qual da mesma maneyra que o da columna, está dentro na parede huma
reliquia pequena da santa cruz de nosso redemptor, em outro tempo estava hũa grande
parte, que se perdeo, quando o Grão Turco tomou a terra ao Soldaõ. No meyo desta igreja
está huma pedra grande, & redonda, a qual assina o lugar onde o dia da Invenção da Santa
Cruz foy resuscitado hum morto. Quasi sempre tem os frades aquella Igreja armada de ricos
pannos: & nas grandes solemnidades armão a cappella de doceis de brocado, que alli
deyxou a muy excellente Reinha D. Isabel, mulher delRey D. João os catholicos: & por
muytas esmolas, & mercês, q fizerão áquelles santos lugares, das quaes ainda agora se
sustentão os frades: todas as segundas feyras do anno se canta naquella cappella hũa missa
de Requiem por suas almas: & esta obrigação particular tem os frades, que morão em Terra
Santa: as outras saõ conforme as caridades, que lhe fazem. Á parte do norte desta igreja,
está hũa porta, pela qual se entra ao interior do mosteyrinho dos frades, o qual tem todas as
officinas muy compridamente como os conventos grandes, de tal maneyra, que / 146 quando
vão os peregrinos de Franquia os agasalham todos commodamente, ainda que sejam
muytos; mas não cosinhão dentro em nenhum modo, porque do mosteyro, & convento
principal lhe mandão todolos dias a provisaõ necessaria muy inteyramente : os altos deste
110
mosteyrinho saõ ocupados polos turcos, & cacizes do templo de Salamão, aos quaes lá
chamão santões, & nelles morão com suas mulheres, & filhos: & de tal maneyra senhoreão
tudo, que não he possivel sahirem os frades ao descuberto, sem deyxarem de ser vistos
daquella canalha, & bem podem dizer aquelles pobres por si aquelle verso do profeta
David: Posuisti tribulationes in dorso nostro, imposuisti homines super capita nostra. E
porque me vem á memoria huma cousa que toca na boa opinião, que de nòs tem aquelles
cacizes, não quero deyxar de a escrever aqui, ainda que não convem para entre santuarios,
temos sómente neste mosteyrinho hũa pequena parte descuberta a modo de pateo, onde
temos hũa pia para lavar alguns pannos, & as lampadas, porque em nenhum outro lugar dá
o sol senão alli, o qual no inverno nunca dura duas horas inteyras, & para havermos de ir
para o dormitorio, ou para a varanda alta da igreja do santo sepulchro, não podemos passar
por outro lugar, salvo por este pateo descuberto, porque da parte do norte, & do oriente, &
do sul tem estes turcos os altos.
Da parte do ponente está huma escada, que vay para a varanda do templo. Junto
desta escada cahe uma camara de hum destes cacizes, & vem sobre o refeytorio dos frades,
de maneyra que nos convem fallar sempre com silencio. A camara tem huma genella muyto
grande sobre o nosso pateo com humas grades de ferro bem largas, & meyas quebradas,
que com pouco trabalho / 147 pòde caber hũa pessoa por ellas, & no tempo que eu lá estava
poucas horas se passavaõ, que deyxassem de estar a ellas duas turcas, mulheres do Cacis, o
qual ainda que não communicava os frades particularmente, tinhamos entendido, serlhe a
seu modo affeyçoado, & os favorecia quando alguma hora se offerecia occasiiaõ para isso:
em tanto que tinhamos, que era secretamente christão. Comtudo viviamos com muyta pena,
vendo-nos tão sogeytos por causa daquellas mulheres, por naõ termos liberdade para em
todo o tempo sahirmos aquelle lugar, assim por causa da honestidade, como pelo perigo de
nos poderem empécer, dizendo que olhavamos para a sua genella: porque cõ aquella gente,
como saõ inimigos, convem viver com elles com muyta cautela, porque de cousas que não
tem ser, vos arguem muytos enfadamentos. Tinha aquelle santão dous mininos sobre
maneyra fermosos, ao mais velho chamava Mustafa, o qual seria de oyto atè nove annos, &
a outro que seria de cinco, pouco mais, Ismael, ao qual o pay em extremo amava, & tinha
tambem outro moço seu sobrinho mais velho, que estes, a que chamavão Abcader. Vierão
111
estes moços a tomar tanta amisade comigo, por via da genella, que por sua causa o pay & a
mãy me fazião muytas caridades de cousas de comer, como refresco de frutas, de que lá os
frades carecemos, por não termos hortas, nem pumares: & tambem do que tinhão por casa,
que metiam em hum sesto, & com hum cordel mo lãçavão abayxo. Como era noyte, o
mesmo pay se punha á genella da banda de dentro, para que o não vissemos, & ensinava os
mininos a tirar palha comigo com palavras, hora arabigas, hora italianas, hora turquescas;
de maneyra que em algũas cousas nos entendiamos, de que o pay tomava tanto gosto que
lhe sentiamos dar risadas.
148
E ainda que eu algũas vezes lhe dizia, que Masamede era maginão, marfuz,
zarbul, & cansil, que querem dizer louco, máo, cão, porco: nem por isso se dava o Cacis por
achado. De dia, como o pay não estava em casa, tambem as turcas suas mulheres, por serem
vistas, se queriaõ entremeter a ensinar os moços, incitando-os a que me chamassem, e
tirassem comigo palha, & desta maneira, indo por diante a conversação, não ficavão atraz
as caridades. Dey eu aos mininos huns brincos, & com elles hum abano de papel, não
muyto curioso: & como os turcos, & mouros saõ naturalmente pouco engenhosos; & muyto
grosseyros foy delles taõ estimado, que o andarão mostrando de casa em casa por toda a
cidade, como cousa de espanto : & alguns turcos parentes do santaõ me vinhaõ visitar á
fresta da Casa santa, por onde nos metem o necessario, & depois que dalli sahi, ao
mosteyro da cidade. Com estas occasiões a amisade crescia, & as obras não faltavaõ, nem
menos boleymas os mais dos dias. A altura da janella não era muyta : & pola parte do
templo sobindo sobre hũa parede sómente da altura de hum homem, feyta para impedir a
vista da janella, quando passavamos para a varanda, se podia muyto bem dar qualquer
cousa de maõ a maõ, & tomalla; mas a santidade do lugar, & a honestidade dos religiosos,
naõ permittiaõ chegar a communicaçaõ a tanto, posto que a singeleza das turcas, & a
devoçaõ, que nos mostravaõ, davão occasiaõ para se fazer. Avisey eu ao padre Bonifacio da
familiaridade das turcas, & do que o tempo ao diante podia fazer: o que elle notou muyto
bem, & cuydando no perigo grande, que as cousas daquella qualidade comsigo trazem, &
mais com gente infiel, como homem que tinha experiencia do modo da terra, determinou
com bom zelo atalhar todo /
149
o inconveniente: & tomando hum dia de parte ao Cacis,
mostrando-lhe muyta amisade, & como amigo zelador de sua honra, lhe fez hũa falla desta
112
maneyra. A experiencia que tenho de tantos annos, do muyto amor que tens a meus frades,
me dá atrevimento para te pedir hũa mercê, na qual a mim me vay muyto, & a ti em ma
fazeres não te importa pouco. Bem sabes senhor, que tuas mulheres saõ moças, & fermosas,
& tu já es velho, os meus frades saõ de diversas nações, & filhos de muytos pays, aquella
janella da tua camara he muyto devaça, & como o demonio he futil, não queria, que em
algum tempo nos vissemos inquietos, & enfadados: por tanto, pois sempre te mostraste, &
te mostras tanto nosso amigo, folgaria com teu favor atalhar todo o inconveniente : pelo q
te rogo por amor do senhor deos, & da amisade, que nos mostras ter, que mandes tapar
aquella janella, & em qualquer outra parte da tua casa, que melhor te parecer manda á
minha conta fazer outra com grades, & vidraças, da maneyra, que quizeres, & alèm disto te
darey cem faquins de ouro para tapares a bocca a tuas mulheres, se mostrarem tomar disso
pena. Ouvio o turco com muyta attencaõ ao padre guardiaõ : & pondo nelle os olhos
encarniçados, & cheyos de colera, lhe respondeo desta maneyra. Guardiaõ, guardiaõ, tuas
palavras saõ muyto boas, mas o teu coração he máo, & pessimo, naõ posso eu negar, que
sou velho, pois a idade o está mostrando, & confesso serem minhas mulheres moças, &
fermosas, mas tenho-as eu por muy virtuosas, & honestas : os teus frades, ainda que como
dizes saõ de diversas nações, & muytos delles mancebos, a todos os tenho por mais
virtuosos, & honestos do que tu és, porque passa de quarenta annos, que moro nestas casas,
& conheço muyto bem os frades, & /
150
sua virtude, & honestidade: & nunca vi nesta
cidade guardiaõ tão malicioso como tu: mas já que tu cuydaste hũa cousa taõ esquecida, &
cuydo que por tua malicia inventada, aquellas grades, que tu vez quebradas, eu as mandarey
de todo tirar, para que a janella fique desembaraçada, porque mais quero eu o gosto que
tenho de ver os frades, ainda que os naõ posso communicar como desejo, por mo defender
minha ley, e mais estimo eu o contentamento, que minhas mulheres, & meus filhos tem em
se porem aquella genella, que os teus cem faquins, & quanto dinheyro ha em Franquia. E se
andando o tempo, como tu dizes, alguem fizer o que não deve, o que Deos não permitta,
pagalo ha. Ficou tão atónito o padre guardiaõ com a reposta daquelle turco, que lhe não
soube tornar a repetir cousa algũa, sómente lançarse a seus pès, & pedirlhe com toda a
humildade perdão do que todos dèmos muytas graças a nosso Senhor, vendo tanta
confiança em num infiel. Tornando á ordem que levava dos santuarios : & sahidos da igreja
113
do nosso mosteyrinho, a qual toda com a cappella atè o pavimento do chão, foy lavrada de
obra moysaica: tornando á mão direyta ao longo do muro interior damos na porta de hũa
casa, que dentro em si tem hũa muy grande cisterna, da qual se servem os que estão dentro
no santo templo tirando os frades que tem outra particular no mosteyrinho: mais adiante
andando do norte ao noroestte, está hũa estancia, na qual se recolhem os abexins do preste
João : & logo adiante á estancia, ou habitação dos caldeus com sua igreja, defronte da qual
arrimada ás costas da cappella do santo sepulchro está hũa cappella, na qual os cophtos
fazem os officios divinos, quando nas festas se abrem as portas da Casa Santa, & a sua
habita/cão
151
aonde se recolhem, tem-na adiante dos caldeos, & adiante junto da porta
principal do templo, está hũa, cappella mais alta, que as sobreditas, na qual os abexins
celebraõ os officios divinos nas festas. Os armenios tem sua habitação junto desta cappella
dos indianos, mas no alto, em hũa parte da varanda, que os nossos frades lhe tem dado ha
muytos annos por serem nossos amigos: & porque nos forão muy fieis em hum tempo, que
os frades estiverão presos no castello da cidade, pelos venesianos haverem quebrado as
pazes com o Graõ Turco. Os gorgianos, tem sua habitação, & morada debayxo da cappella
do santo calvario, & os gregos junto á capella mòr tem seu recolhimento: & já que se
offereceo tratar destas estancias, & recolhimentos, quero escrever em particular o modo do
christianismo, & ceremonias de cada hũa destas naçoens com brevidade.
114
CAPITULO XXVII.
Das nações, & differenças de Christãos, que estão dentro na Casa Santa.
TEndo tratado da fabrica do santo templo, & das estaçoens, & santuarios, que
dentro nelle estaõ, pareceme cousa conveniente tratar do modo, que tem os christãos, que
dentro nelle estaõ, e de sua conversaçaõ, os quaes residem naquelle santo lugar, assim para
rezarem os officios divinos, como para ter limpa aquella parte do templo que lhe cabe, & de
a seu tempo atiçarem, & alimparem as lampadas que tem á sua conta. As quaes nações saõ
sete, com os nossos frades de Saõ Francisco, que estaõ em nome da naçaõ latina: / 152 mas
de cada naçaõ destas, naõ estaõ dentro mais que dous atè tres religiosos de continuo,
tirando nós, que estamos cinco & seis, para mais commodamente podermos fazer os
officios divinos: & tambem como lá os frades não tem outras grangearias, nem passaõ á
Terra Santa a outro fim, salvo para vacarem a Deos, trabalhaõ sempre de ganhar o favor do
superior, para estarem naquelle lugar santissimo, & em Belem, que não he de menos
santidade, & os superiores sabendo isto, folgaõ de consolar os subditos.
Das outras nações não estaõ tantos, porque como todos tem na terra seu modo para
ganhar o necessario á vida, não ha entre elles quem se queyra sogeytar a estar naquella
espiritual ociosidade, & quando algũa daquellas naçoens acha quem aceyte estar encerrado,
agradecem-lho muyto, & o provem do que ha mister para passar a vida. A provisaõ a elles,
& a nòs nos metem pela fresta do templo, como já tenho dito: & cada naçaõ tem junto á sua
estancia huma campainha, & os cordeis destas campainhas estaõ na porta junto da fresta,
como nas portarias dos mosteyros, & pelo costume, em tocando cada hum conhece o tom
da sua campainha, & tem cuydado de acodir : & se tarda, por não ouvir, não falta quem
tenha cuydado de chamar, pela muyta caridade, & amor que alli dentro temos huns com os
outros. Dentro naquelle santo templo, fora do tempo em que tem suas occupacões, todos se
querem, se communicaõ, & trataõ, & o que he curioso, naõ lhe falta tempo, & liberdade
para aprender linguas, & outras cousas. E por quanto a naçaõ grega he mais antiga naquelle
sagrado lugar, começarey nelles, não sendo minha intençaõ, a que diga quem isto ler, que
começaõ primeyro nos peyores: porque ainda que isto sem escru/pulo 153 se pòde dizer, por
115
serem os gregos daquellas partes scismaticos, & hũa canalha de má chação, inimigos
mortaes da nossa santa madre igreja romana, não he bem, que o eu diga por sua
antiguidade.
116
CAPITULO XXVIII.
Da naçaõ grega.
SAo hũa naçaõ oriental os gregos, muyto principal entre as outras nações de
christãos, que moraõ na Terra Santa, assim por sua antiguidade, como por sua quantidade,
porque a mayor parte dos christãos daquellas partes estão á obediencia do patriarca grego,
& por esta causa lhe chamamos lá gregos, como nòs latinos, ainda que sejaõ arabes, ou de
qualquer outra naçaõ sugeyta á igreja grega. Tem este patriarca por si, o qual elegem de
commum consentimento de todos, assim ecclesiasticos, como seculares : mas sempre
elegem religioso, ou da ordem de S. Basilio, como saõ os de Santa Catharina de Monte
Sinay, ou do instituto de S. Sabba, que saõ religiosos, os quaes vivem em seus mosteyros
apartados dos povos, de modo que em o nosso Portugal vivem os pobres da Serra de Ossa,
a quem o vulgo em outro tempo chamava Beguinos, & a estes chamaõ os gregos caloiros,
que tanto quer dizer, como bons, & virtuosos. Do modo destes religiosos, ha muytos
mosteyros por toda Grecia, & vivem como antigamente viviaõ nos mosteyros do Egypto, &
Sitia, sô a regra, & estatuto do bemaventurado abbade Santo Antonio, & de outros santos
padres, que naquelle tempo ordenarão a vida monastica. Celebraõ os ecclesiasticos /
154
gregos, & cõsagraõ em fermentado: & naõ falta quem diga q consagraõ em todo o paõ que
lhe offerecem. Eu affirmo que algũas horas os vi dizer missa, assim em Venesa, como em
Chipre, & na Terra S. & com muyta attençaõ notey as suas ceremonias, põdome junto ao
altar, & vi que o paõ que consagravaõ naõ he todo o que lhe offerecem, mas trazem certos
pães, os quaes na parte de cima tem hũas letras gregas, feytas como com chavão de pintar
bolos, com seu circulo de redor de tanta quantidade como hũa particula da hostia com que
commungaõ os religiosos, & daõ a communhaõ aos seculares : & esta particula consagraõna, estando no mesmo paõ : & depois quando o sacerdote ha de receber o santissimo
sacramento, a tira com hum ferro a modo de lanceta, feyto para aquillo, & a lança no calix
já consagrado o vinho: & o paõ daõ-no ao povo por bento; mas nas festas, em que o povo
ha de commungar, ou quantidade de pessoas, consagraõ todo o paõ inteyro, & depois
partem-no em muytas particulas miudas, & misturado com o sangue, o dão
117
indifferentemente sub utraque specie, a grandes, & pequenos, com hũa colhersinha de
prata: & atè os mininos commungaõ: & neste seu modo de darem a communhaõ se offende
muyto nosso senhor pelas muytas irreverencias que cada dia entre elles acontecem acerca
do santissimo sacramento. Quando fazem o calix, lanção igualmente tanta agua, como
vinho: & antes que consagrem, ao tempo que na igreja latina, & romana se canta nas missas
a offerenda, toma o sacerdote o paõ em hũa patena grande, & funda, de prata, feyta a modo
de bacia, & põem-na na maõ esquerda, arrimada ao peyto, & na mão direyta o calix alto, &
quasi igual com a cabeça, & cobrem-no todo com huns vèos, & diante vay o acolito
incensando com /
155
o turibulo, & hum moço tangendo a campainha, & alguns
circunstantes com tochas, & cirios nas mãos, fazem hũa procissaõ pela igreja: & o povo
posto de giolhos com muyta devaçaõ, & gemidos, bater nos peytos, & palavras de
adoração, do modo que entre nòs fazem as pessoas devotas, quando levantão o santissimo
sacramento : & desta maneyra andão de redor da igreja da parte de dentro, & se torna o
sacerdote ao altar a proseguir a missa, & neste modo comettem claramente os seus
sacerdotes idolatria, & a fazem cometter ao povo, e se algũs dos nossos os reprehende disto,
respondẽnos q adoraõ aquelle paõ, & aquelle vinho, em memoria do que ha de ser: & na
procissaõ que fazem, dizem que representaõ a que foy feyta, quando levarão a nosso
redemptor do calvario ao monumento, digo, sepulchro: Nisto, & em outras cousas de
substancia, vos daõ os gregos hũas rasões alheas de toda a razão, que naõ merecem lelas
pessoa alguma de entendimento, & por isso as naõ escrevo aqui. Depois que consagraõ &
antes que communguem, toma o acolito brasas, & leva-as ao altar: & o sacerdote toma hũa
colhersinha de prata, & lança agua nella, & a aquenta nas brasas, & a deyta no calix, & se
lhe perguntaes a razão porque o fazem: respondem-vos, que porque a agua, que sahio do
costado de nosso redemptor era quente. Ao fazer do calix, toma o sacerdote hũa galheta na
mão direyta, & a outra na maõ esquerda, & igualmente deyta no calix tanta agua, como
vinho. Naõ he seu costume baptizarem senaõ pela Pascoa da resurreyçao, & pela do
Espirito santo, & algũas vezes ha nisto tanto descuydo, que acontece terem as crianças de
dous, & tres annos, & naõ serem baptizados, & queyra Deos, & naõ permitta morrerem
alguns sem baptismo, As palavras que usaõ quando ba/ptizaõ
156
, saõ: Baptizetur miles
Christi, in nomine Patris, & Filii, & Spiritus Sancti. E porque muytos vivem debayxo da
118
sua obediencia, que naõ saõ de naçaõ gregos, nem já mais virão Grecia, antes como
naturaes da terra usaõ o mourisco, & arabigo, sem entenderem o grego. Costumaõ quando
nos dias da festa dizem missa, a epistola, & evangelho dizerem-nos primeyro em grego
vulgar, & depois em arabigo, para que huns, & os outros o entendaõ. Os sacerdotes gregos,
saõ ignorantissimos, em tanto, que entre milhares delles, naõ se acha hum que saiba o grego
grammatical, como me affirmou algũas horas hum religioso seu ciciliano de naçaõ, que
estava dentro no santo sepulchro, no tempo que eu tambem dentro estava, & me affirmava
que nem o seu patriarca entendia as rubricas do breviario, pelo que cahẽ de continuo em
muytos erros. Nem em toda Grecia ha neste tempo hũa escola de grego grammatical, salvo
em Athenas, que por memoria do que foy, o Grão Turco sustenta alli hum estudo, por
mostrar sua grandeza: & os que sabem o grego grammatical, vem-no aprender a Venesa, ou
ás escolas de Italia, que saõ muytas. Jejuaõ os gregos á quarta feyra, & comem carne ao
sabbado. Jejuaõ o Advento, & jejuaõ a Quaresma muy inteyramente, com tanta abstinencia,
que em nenhũa maneyra comem nella pescado, nem azeyte, salvo dia de Ramos, & dia de
Nossa Senhora que vem em março, mas em recompensaçaõ desta abstinencia, passando
Natal, & Pascoa, por algumas semanas comem carne, sem ter respeyto, nem á quarta feyra,
nem á sesta. Jejuaõ tambem da Ascensaõ atè o Espirito Santo, a que elles chamaõ a
Quaresma dos apostolos, & oyto dias antes da Assumpçaõ de nossa senhora.
Saõ os gregos commummente de opiniaõ, que nin/guẽ
157
se pòde salvar sem sua
doutrina, & fora da sua obediencia. Quinta feyra da semana santa, assim como o summo
pontifice romano pronuncia as excommunhões, a que chamaõ da Cea, assim mesmo o
patriarca grego excommunga, & pronuncia excommunhaõ contra o summo pontifice
romano, & contra os seus subditos: os clerigos todos saõ casados, frequentaõ muy pouco os
sacramentos : nunca pela semana tem missa, salvo nas vigilias muy solemnes, & aos
domingos, & festas: mas huma só missa. Tem os gregos muytas superstições, ceremonias,
& heresias, he naçaõ soberba, mentirosa, altiva, amiga em tudo de seu parecer, simoniaca
em grande maneyra : porque vendem os sacramentos, como eu vi naquella mulher, de que
fiz memoria no capitulo quinze, a qual morto o marido em Italia, se tornou á igreja grega, &
se foy morar a Hierusalem, a qual poucos dias depois que chegou adoeceo, & mandou pedir
ao padre Bonifacio hum confessor, que a entendesse porque naõ sabia fallar senão a lingua
119
italiana em que fora criada, & o padre Bonifacio lho mandou, mas o patriarca dos gregos,
naõ lhe quiz dar o santissimo sacramento por menos de quarenta cruzados. De meu
conselho, quem quizer acertar, naõ se fie de nenhũ grego de naçaõ em cousa algũa. Fora
destes máos costumes sabem-se muyto bem contrafazer, & em suas ceremonias mostraõ
muyta devaçaõ. Naõ meto nesta conta os seus religiosos, porque pondo á parte o estarem
apartados da obediencia da santa madre igreja romana, naquellas partes aonde vivem
sogeytos ao Graõ Turco, em muytos que tratey, & em algũa maneyra conversey, notey
nelles muyta modestia em todalas cousas, hũa conversaçaõ muyto religiosa, hũa penitencia
quasi imitadora da dos padres antigos do ermo: hũa / 158 sinceridade pura, & hũa humildade
muy profunda, & a alguns ouvi dizer, que se tivessem liberdade, muy de boa võtade dariaõ
a obediencia ao pontifice romano, porque nos seus corações a tinhão por mãy, & senhora,
mas que por estarẽ entre infieis, naõ podiaõ satisfazer seus desejos. Deos por sua
misericordia os ponha no caminho da salvaçaõ. Ha em Hierusalem hum mosteyro de
freyras gregas tambem muyto devotas, das quaes se tem boa opiniaõ.
120
CAPITULO XXIX.
Dos gorgianos.
DOs que estaõ na Casa Santa, os gorgianos saõ a segunda naçaõ. Tem rey por si,
& reyno na Galacia, para onde cahe o Imperio de Trapizonda, & confinaõ com os turcos,
com os quaes o seu rey tem commercio, & amisade, & cuydo que lhe paga pareas, pelo que
saõ com alguma melhoria tratados dos turcos, mais que os outros christãos a elles sugeytos.
Em o que toca á sua Fè, & crença, & em todo o ecclesiastico seguem aos gregos, &
obedecem muy inteyramente ao seu patriarca, & aos mais prelados gregos, mas tem
lingoagem por si, & caracteres, & outro modo de escrever. Á conta destes, & a seu cargo
está o buraco da cruz, em que esteve nosso redemptor, como já fica dito, o qual lhe
concedeo o Soldaõ do Egypto, quando possuhia aquella terra, & depois que lha tomou o
Grão Turco, lho confirmou por grande quantidade de dinheyro. A sua patria se chama
Gorgia, aindaq elles dizem, serem assim chamados, por terem por seu /
159
patraõ a S.
Jorge. Saõ inimigos mortaes da naçaõ latina, & tanto, que neste vicio excedem aos gregos:
mas com os armenios tem tal odio, que costumão dizer, que se hum gorgio passando por
defronte de hũa igreja de armenios, se lhe atravessar acaso hum espinho no pé, não lhe ser
licito abayxarse para o tirar, por não parecer, que se abayxa, fazendo reverencia á igreja dos
armenios. Recolhem-se estes gorgios dentro na Casa Santa em hũas cappellas debayxo do
calvario: & vem o buraco da santa cruz, quasi direyto a huma dellas, lugar aonde elles
affirmaõ, que foy achada a caveyra de nosso pay Adam: & que estando nosso redemptor na
cruz crucificado ; seu divino sangue correo de maneyra, que foy dar na caveyra, & a
banhou toda, & tem os gregos isto tanto por Fè, que naõ haverá quem lhe faça crer outra
cousa. A consideração he devotissima, & chea de toda a piedade, & muytos santos
piedosamente a tiverão, como foy a grande columna da igreja catholica Santo Augustinho,
o qual diz estas palavras, do lugar em que Deos mandou ao patriarca Abraham sacrificar a
seu filho Isaac: Hieronymus Presbyter scripsit, ab antiquis, & senioribus Judæis sit
certissimè cognovisse, &c. & accrescenta: Hoc etiam antiquorum relatione resertur: quod
& Adam primus homo, in ipso loco, ubi Crux Dominica fixa est fuerit aliquando sepultus:
121
& ideo Calvariæ locum dictum esse. Os simpres que não entenderem latim, perguntem ao
docto, que lho declare. A gloriosa Santa Paula, discipula do doutor Saõ Jeronymo, em
huma epistola que escreveo de Hierusalem a Roma, a sua amiga Marcella, provocando-a a
que se quizesse ir morar á Terra Santa, diz estas palavras: Nesta cidade, & neste lugar
dizem haver morado, & ser morto nosso padre Adam : pelo que o lugar, no qual / 160 nosso
redemptor foy crucificado, se chama calvario, por ser nelle sepultada a cabeça do primeyro
homem Adam, para que o segundo Adam, a saber, o sangue de Christo estilando na cruz
sobre ella a alimpasse dos peccados.
S. Joaõ sobre S. Joaõ, mostra ter a mesma opiniaõ, & o mesmo tem S. Ciprião, &
Epiphanio, ainda que o doutor Angelico S. Thomás he de contrario parecer, & deve ser por
guardar o texto da Sagrada Escriptura, que diz em Josuè: Adam maximus, ibi inter Enacim,
situs est. Origenes doutor doutissimo, antiquissimo, escrevendo sobre Josuè chama a
Hebron, Chebron, & diz, que era cidade Metropolis dos enachitas, a saber, dos gigantes : no
que mostra, que sendo cidade principal daquella provincia, que não está oyto legoas de
Hierusalem, muy bem podia cair nos seus termos: & sendo assim, fica tudo concertado: &
no mesmo lugar, fallando o mesmo Origenes da sepultura duplice, aonde o grande patriarca
Abrahaõ está sepultado com Sara, Isaac com Rebeca, Jacob com Lia, nenhũa cousa toca de
nosso pay Adam, antes escrevendo sobre S. Mattheos, diz estas palavras: Venit enim ad me,
traditio quodam talis, quod corpus Adæ primi hominis, ibi sepultum esse, ubi Christus
crucifixus: ut ficut in Adam omnes moriuntur, sic in Christo omnes vivificabuntur. Como a
vinda de nosso redemptor ao mundo, foy para remir o homem, que da terra havia formado,
mysterio, & sacramento parece muyto grande, & digno de ser com muyta consideraçaõ
contemplado, estar, ou ser sepultado nosso padre Adam no mesmo lugar aonde havia de ser
por Christo redemido, cõprindo-se alli o dito do apostolo S. Paulo, que diz: Tu que dormes,
esperta, & levantate dos mortos, & / 161 allumiarse-ha Christo. Em tudo o dito, & em tudo o
mais que disser, tenho & creyo, o que tem, & crè a santa madre igreja romana.
122
CAPITULO XXX.
Dos armenios.
OS armenios saõ hũa naçaõ oriental. Tem rey por si, que possue as Armenias
Mayor, & Menor: ainda que por nossos peccados tributario ao Graõ Turco, q naquellas
partes ensenhorea o melhor. Confinaõ os armenios com a Assiria, & Mesopotamia: presaõ
se de muy catholicos, mas naõ despresaõ aos outros, como fazem os gregos. Saõ de muy
devota, & honesta conversaçaõ, & temos para nòs, que tudo com muyta verdade, sem
algum fingimento. Tem os armenios hum patriarca, a quem chamaõ Catholicon, ao qual
tem tanta reverencia, obediencia, & acatamento, como nòs ao Summo pontifice romano.
Soube eu de muytos armenios, que o seu Catholicon, com ser senhor de muytas villas, &
lugares, vive tão pobremente, & se trata com tanta humildade, que excede nisto a muytos
religiosos da igreja latina, & as suas rendas dispende com pobres, & necessitados.
Consagraõ os armenios em paõ asmo, & as suas hostias saõ huns bolinhos pequenos, como
de açuquer, os quaes fazem na mesma igreja aonde haõ de celebrar, tomando hum brazeyro,
& sobre elle hum ferro plaino, & muy liso, sobre o qual cozem aquelle bolinho, estando o
sempre virando de huma parte para a outra, atè que está cosido, como eu lhe vi fazer a
noyte da vigilia d’Assumpçaõ de Nossa /
162
Senhora, estando nòs todos velando na sua
igreja do Valle de Josaphat, aonde está o seu sepulchro: na consagraçaõ do caliz, naõ
lançaõ agua no vinho. A festa do nascimento de nosso senhor Jesu Christo, naõ a celebraõ
quando nòs, & as outras nações, mas dia da Epiphania, affirmando ser nascido nosso
redemptor no mesmo dia em que foy dos reys adorado, & fazem esta festa com muy grande
solemnidade; tem para si que erramos na celebraçaõ da festa d’Annunciaçaõ da Senhora,
que vem em março, & que por isso naõ acertamos na do Natal: oyto dias antes desta
sagrada festa do Natal, & Epiphania, q juntamente celebraõ, todos, assim ecclesiasticos,
como seculares, jejuaõ com abstinencia, naõ comendo pescado, nem bebendo vinho. Moraõ
em Hierusalẽ mais de duzentos armenios, entre religiosos, & seculares: & vivẽ mais
limpamente q todos os outros christãos da terra, assim no trato das suas pessoas, como no
mais; tem na cidade hum bispo a quem todos obedecem, & acatam, o qual era hum velho
123
muy veneravel, por nome Andreas, nosso devoto, & amigo, como na verdade o saõ todos os
armenios; & muytas vezes os tenho visto estar aos nossos officios divinos, & missas, com
muyta devoçaõ, & attençaõ. E ainda que muytos annos estiveraõ apartados da obediencia
da santa igreja romana, sempre confessáraõ ser ella mãy verdadeyra, & senhora universal
de toda a christandade: escusando-se com estar em partes taõ remotas, & sugeytos a
inimigos do nome christão. Estando eu em Nicosia, cidade metropolitana do reyno de
Chipre, veyo alli ter hum embayxador dos armenios, o qual hia ao sagrado concilio
tridentino a dar a obediencia de vinte & quatro bispos armenios, & depois disto o seu
Catholicon, ou Patriarca mandou outro embayxador a Roma ao papa, /
163
a lhe dar a
obediencia por si, & por todos seus subditos; & quem quizer saber melhor como isto
passou, lea hum livro novamente impresso, intitulado Monarchia Ecclesiæ, o qual compoz
hum clerigo muy douto, de naçaõ ingles, que esteve no santo concilio, & trata o livro de
Primatu Ecclefiæ Romanæ, & alli o achará muy inteyramente, obra por certo digna de ser
lida, & estimada. Dos vinte & quatro bispos, me affirmo, que mandavão dizer na sua
embayxada, que estavaõ prestes para se passarem ás partes occidentaes da christandade, &
deixar sua propria patria, & natureza, se assim parecesse ao pontifice romano, que convinha
a sua salvação. Vespora de Pascoa comem o cordeyro pascoal, assado com muytas
ceremonias: & gloriaõ-se que os reys magos foraõ naturaes da sua patria. Dizem o officio
divino em vulgar, para que todos entendaõ o que se diz: tem letras, & caracteres proprios,
ainda que seguem muyto o caldeu pela visinhança que tem cõ Caldea, usaõ de cascaveis
nos tribulos, & cantão sem ponto, porèm com muyta arte, & conformidade nas vozes.
Dentro na Casa Santa estão melhor aposentados, que os outros christãos: o que alcançáraõ
pola amisade que tem com os nossos frades. Saõ os armenios muy amigos da justiça, & tem
por costume, castrarem aos ladrões de furtos pequenos, porque naõ fação filhos ladrões, no
que naõ acertaõ, porque nisto daõ occasiaõ, a que haja na terra muytas mulheres, que naõ
vivão bem. Os clerigos saõ casados com donzellas, & se morta a mulher se acha, que
peccaõ com outra, aos taes queymaõ, & o mesmo fazem a ellas, se elles mortos peccaõ com
outrem. Outras muytas particularidades pudera dizer dos armenios, as quaes deyxo, mas
naõ quero deyxar de dizer, que o Catholicon dos armenios nas /
164
grandes festas veste
huma vestidura, ou tunica roxa, & sobre ella outra grande com as mangas largas, feyta de
124
pelles de cordeyros, & em cima seu manto, & escapulario grosso, a modo de cilicio. Na
Quaresma, & em algũas festas, quando celebra o Catholicon, elRey com os principaes
senhores de sua corte, se põem a seus pès com muyta humildade a ouvir a palavra de deos.
Assim o Catholicon, como os mais prelados armenios, & o rey, & principes, como o mais
vulgo, tem perpetuo costume de jejuarem a Quaresma toda a paõ, & agua; sómente dia de
ramos, & dia da Annunciaçaõ da Senhora dispensa com elles o Catholicon, a que comaõ
pescado, & bebaõ vinho. Todas as senhoras da Armenia se servem com castrados, & a
rainha traz muytos em sua casa, & nenhum homem póde com ella fallar sem particular
licença do rey, o mesmo se guarda com as outras senhoras, & o rey, ou outro senhor grande
assina hum castrado, que leve ao tal homem, & o torne a trazer. Saõ todos os armenios muy
bõs christãos, em especial os reys, & grandes senhores, os quaes todos os dias ouvem
misss, & hũa liçaõ, da sagrada escritura, lida por hum vantrapi, que assim chamaõ aos seus
religiosos, seguem a S. Joaõ Chrisostomo, & a Cirilo, a Estrem, a S. Gregorio Nazianzeno,
& a S. Joaõ Damasceno, & a Athanasio.
125
CAPITULO XXXI.
Dos copthos, & jacobitas.
OS cophtos, que por outro nome saõ chamados jacobitas, intitulados assim, porque
no principio quando foraõ chamados à Fè, tiveraõ por mestre a hum Jacobo Alexandrino,
discipulo de hum patriarca /
165
de Alexandria, do qual se diz haverem tomado algumas
heresias: o que elles negaõ, & affirmaõ serem chamados jacobitas do apostolo Sant-Iago,
que foy o primeyro bispo de Hierusalem. Ao presente estes jacobitas, & cophtos vivem
muy singelamente, naõ querendo sustentar algũa opiniaõ, antes confessaõ ignorancia, &
desejaõ saber, & ter a verdade: sua conversaçaõ he humilde, & boa, segundo della fiz
experiencia, tratando com o principal delles dentro na Casa Santa, & me affirmo, ouvir-lhe
dizer, ser a igreja romana cabeça de toda a christandade. Affirmão que o apostolo Sant-Iago
os trouxe á Fè, o que muyto bem pòde ser, porque elles se mostraõ muyto seus devotos, &
celebraõ sua festa com grande solemnidade. Naõ tem rey, nem reyno por si, mas
commummente sua habitaçaõ he no reyno do Egypto, & tem seu patriarca no Graõ Cairo:
& desta naçaõ he o principal prelado que tem os Abexins do preste Joaõ, como adiante
direy. De nenhũa cousa que lhe perguntaes acerca da Fè vos sabem dar razaõ: & ainda que
tem lingoagem per si, o officio divino fazem-no, & rezaõ na lingua vulgar da terra, que he o
Arabigo : usaõ cascaveis nos tributos, & saõ muy continuos no dar do incenso: porque a
elles sómente no tempo, que estive na Casa Santa, nunca os vi faltar no dar do incenso pela
menhãa, & á tarde, & nos domingos, & festas, á meya noyte: correndo todos os santuarios,
atè o nosso coro, & cappella. Circuncidaõ-se, & guardão o domingo, & sabbado, consagraõ
em paõ fermentado, fazem porèm o paõ, que hão de consagrar differente do outro
commum. Tem dentro na Casa Santa a sua igreja, como já disse, arrimada nas costas da
parede da cappella do santo sepulchro, feyta a modo de hũa tenda: & nas festas principaes,
quando abrem as /
166
portas da Casa Santa, entrão dentro alguns dos seus clerigos mais
velhos, & dentro na sua igreja arrimados, ou encostados á parede, & sustentando-se sobre
huns baculos grandes, feytos como moletas de aleyjados, pondo aquelle tau nos peytos: a
126
certos tempos salmeaõ, tendo em huma mão huma taboinha dabano comprida, pouco mais
de palmo, & de largura tres dedos: & na outra mão hum martelinho, como de temperar
manicordio, & dando com elle na taboinha cantando os psalmos, fazem hum som, que mais
parece cousa de negros, como dizem, que musica que a devoçaõ vos provoque. Daõ as
pancadas de maneyra, que se o tom vay alto, saõ elles mayores, & se bayxo menores. O que
faz o officio, que he hum que elles tem em Hierusalem por seu bispo: está todo como
entrouxado de pès á cabeça com huns pannos pintados mouriscos, dos que vem da india,
com as costas na altar, & huma cruz nas mãos: & elle diz, & os outros respondem tudo em
arabigo : & o acolito tambem entrouxado da mesma maneyra a dar com os cascaveis do
turibulo, incensando sempre em quanto dura o officio. Hũa noyte antes que entrassemos ás
nossas matinas me puz de proposito a ouvir as suas, & a sua musica: & vi estar hum turco,
que parece se deyxou lá ficar escondido; ou por ventura seria arrenegado: o qual os estava
cõ muyta attenção ouvindo, & me puz junto delle. Depois de cansarmos de estar em pè,
querendo-me recolher: lhe perguntey, que lhe parecia aquelle modo, respondeo-me, que
tudo o que fazia com boa tenção para louvor de Deos, nos havia de parecer bem: da qual
palavra fiquey muy edificado. Tambem estes commungaõ sub utraque specie, &
indifferentemente grandes, & pequenos, & atè os mininos, usaõ calices de vidro mettidos
em hũas cay/xas 167 de pao; toda esta misera gente se perde por falta de doutrina, porque se
houvesse quem os doutrinasse, creyo seriaõ facilmente obedientes a tudo, porque confessaõ
ignorancia: & tirando os gregos, & gorgios, todos os mais affirmão ser a santa madre igreja
romana, princesa de todalas igrejas. Lembrame que estando eu hum dia á porta da cappella
do santo sepulchro, com o bispo destes cophtos, & com hum velho caldeu, muy principal,
tratando nas cousas de nossa santa fè catholica, ambos me disserão o credo muy
inteiramente, trocando algũas poucas palavras, que naõ manifestavaõ erro, & confessavaõ
nelle o Espirito Santo, que os gregos negaõ proceder do pay, & do filho, & confessavaõ a
santa igreja catholica, de modo que fiquey eu muy satisfeyto. Meu senhor Deos, que quer
que todos se salvem, & nenhum pereça, os allumie, & traga ao seu gremio. Amen.
127
CAPITULO XXXII.
Dos abexins do preste Joaõ.
OS indianos do preste Joaõ, chamaõ, ou saõ chamados abassinos em Palestina: de
hũa grande lagoa, que está na sua terra, chamada Abassia, & assim em Hierusalem lhe
chamão abexins, conrompido em alguma maneyra o vocábulo. São a quinta naçaõ dos que
estaõ dentro na Casa Santa, o seu modo de vestir he o commum que usaõ os miseraveis
naquella terra. Os ecclesiasticos trazem as roupas mais compridas, & commummente
vestem preto, & huns, & outros trazem o turbaõ da cabeça a sul. E ainda que tem muy/tas
168
cousas alheyas do que convem á pureza de christãos, porem saõ obedientes á santa igreja
romana, em especial do tempo delRey dom Manoel de piedosa memoria, primeyro deste
nome em Portugal. Moraõ em Hierusalem muytos abexins, grandes religiosos de muyta
virtude, & abstinencia, & summa pobreza: mas no que toca ao culto divino saõ muy
atilados. Havia entre elles no nosso tempo hum velho, que passava de setenta annos, o qual
como vinha a Septuagesima, sem alguma provisaõ humana, se passava da outra parte do
Jordão, aonde Santa Maria egypciaca fez penitencia, & outros muytos santos antigos, que
he hum deserto asperissimo, & lá se andava atè a semana santa, na qual se vinha para a
cidade. Em Belem no mesmo tempo havia outro, o qual de continuo estava em oração
diante das portas da cappella do santo presepio, & alli dormia nos marmores, nem jamais se
apartava daquelle lugar, salvo compelido de algũa necessidade corporal. Com todas estas
perfeyções, elles usaõ de tres baptismos : o primeyro de sangue, porque saõ circuncidados
como judeos, & mouros, & nisto fallo a seu modo, porque circuncisaõ naõ he baptismo de
sangue, senaõ o martyrio, que pola Fè de nosso senhor Jesu Christo se padece, como o
padeceo antes de ser baptizada com agua Santa Emerenciana, colaça da gloriosa Virgem, &
martyr Santa Inez, & outros muytos santos, & santas: & naõ a circuncisaõ dos mouros, &
judeos : elles bem confessaõ naõ lhe aproveytar a circuncisaõ, mas dizem que os seus
antigos ordenarão que fossem circuncidados, em memoria de o haver sido Christo nosso
Redemptor. Tem o baptismo da agua como nòs, tem o terceyro baptismo, falando a seu
modo, a que elles chamaõ do fogo, porq quando saõ pequenos : todos os ferrão com hum
128
ferro ardente, guardaõ /
169
o sabbado, & o domingo, & se os arguis que judaizaõ,
respondem-vos, que os seus antigos lhes mandarão guardar aquellas ceremonias, polo
sabbado ser taõ encommendado na ley: & que se se naõ salvarem por hũa via, se salvem
pela outra, reposta de gente barbara. Dia da Epiphania enchem hum tanque de agua, & se
baptizaõ nelle, mas dizem que o fazem em memoria do baptismo do senhor, que naquelle
dia foy baptizado, & muytos delles, ainda das outras nações, se vaõ aquelle dia lavar ao rio
Jordão. Celebraõ em fermentado, mas offerecendo-se occasiaõ, sem escrupulo, celebrão
com as nossas hostias, usaõ de calices de vidro, mettidos em cayxas de pao, como jacobitas,
& daõ o santissimo sacramento sub utraque specie, a grandes, & pequenos
indifferentemente. Dia da Ascensaõ do senhor, achando-me no Monte Olivete com os mais
christãos das outras nações, que alli nos ajuntamos para celebrar aquella santissima festa, vi
commungar hũas mulheres abexins com muytas lagrimas, & mettia o sacerdote hũa
colhersinha de prata no caliz, & com ella tirava o santissimo sacramento sub utraque specie,
& lho dava. Quando nas festas fazem os officios divinos, cantão a coros como nòs : usaõ de
tamboril, & pandeyro em lugar de orgãos, & algũas vezes faltão, & daõ hũas voltassinhas
no fim dos psalmos, como em lugar das antifonas, o que fazem com os olhos fixos no ceo,
com tanta devoçaõ, & quietação, que verdadeyramente parece estarẽ cheyos do Espirito
Santo. Das suas missas não fallo, porque verdadeyramente quando as dizem, mais parecem
apostolos, que homens do nosso tempo. Dizem o officio divino em sua propria lingua
etiopiana, & tem caracteres proprios, & nos turibulos tambem usaõ cascaveis, os cophtos,
& jacobitas estaõ com muyta devoçaõ aos officios /
170
divinos, & missas. Saõ grandes
amigos nossos, & nos tem grande reverencia, & acatamento. Saõ bem vistos, & tratados
dos turcos, & dizem ser a causa, porque o preste Joaõ se quizer, pòde atalhar a corrente do
rio Nilo, & fazello ir por outras partes, sem entrar no Egypto, & sendo desta maneyra,
ficará aquelle Reyno perdido, por naõ ter outra agua, nem do ceo, nem da terra, porq jamais
chove no Egypto, & por isto o Grão Turco paga certa cousa ao preste Joaõ: & trata bem os
seus subditos. Tem os abexins por costume naõ cuspirem o dia que cõmungaõ, nem comem
cousa que seja necessario tirarem-na da boca, como azeytonas, ameyxas, & cousas
semelhantes, de suas abstinencias, & humildade pudera dizer muyto, que deyxo por evitar
129
proluxidade, & concluo com dizer, que se louvão, & glorião em publico de serem subditos
do pontifice romano, & por esta causa se mostraõ tanto nossos amigos.
130
CAPITULO XXXIII.
Dos sirianos, ou caldeos.
OUtra naçaõ ha na Terra Santa, a que chamaõ caldeus, ou sirianos, dos quaes
tambem estaõ dentro no santo sepulchro. No tempo que eu la estive, estava hũ velho caldeu,
chamado Jacob, ao qual ouvi dizer, que passava de vinte annos que naõ havia sahido
daquelle santo lugar, era homem de angelica conversaçaõ, & muyto nosso amigo, fazem os
officios divinos em caldeu, que he a propria lingua sua, & tem proprios caracteres ; cre-se
ser a linguagem dos sirianos a antiga, que era antes que os filhos de Israel entrassem / 171 na
terra de promissaõ. Huns, & outros, assim caldeus, como sirianos, nas ceremonias,
ornamentos ecclesiasticos, cantar com marteletes, celebrar, comungar: cascaveis nos
turibulos, & em tudo o mais, saõ como os Jacobitas. Destes parece que aprendeo Martim
Luthero a reprovar o sacramento da penitencia, tão necessario para a salvação humana, &
como tal foy instituido por nosso redemptor : porque em nenhua maneyra se confessaõ, & o
mesmo tem os jacobitas. Alguns se chegaõ a hũa pedra, & alli dizem seus peccados, &
outros junto do fogo, crendo que os peccados sobem ao ceo com a chamma, & fumo. Quasi
todas estas nações tem muytos erros, herdados dos seus antigos progenitores: & depois pelo
tempo com a continua ignorancia, vieraõ a ser mais christãos de sinal, & cintura, como lá
os chamaõ, que de verdade.
Todolos clerigos destas nações de christãos, assim sacerdotes, como diaconos, &
subdiaconos, saõ casados: & acontece algũas horas, o pay dizer a missa, & hum filho o
evangelho, & outro a epistola. Todolos religiosos vivem muy casta, & limpamente: & nesta
virtude da castidade se esmerão muyto. Os religiosos gregos, & armenios, trazem coroa
aberta, & o mais cabello comprido. Todas estas nações, no tempo da missa, & officio
divino, assim ecclesiasticos como seculares, estão em pè, tirando os bispos, & prelados
superiores. Todos cantão sem ponto. Os gregos que saõ os que mais se esmeraõ nas cousas
do officio divino, porque communicaõ mais os latinos em muytas partes, quando cantão em
publico, como na missa, o que não sabem de cor, tomaõ hum moço, & põem-no diante dos
que cantão com hũ livro aberto na mão, o qual lê hum verso em voz alta, que o possaõ
131
ouvir todos, & o q canta vay /
172
cantando o que ouve ao moço, & se cantão a coros,
acabando o moço de dizer hum verso a hum coro, vira-se, & diz outro verso aos do outro
coro, & assim anda ás voltas atè que acabão ; mas isto em cousas particulares, & não nas
commũs, porque em Chipre me achey em hũas completas suas na quaresma, & lhas ouvi
cantar a vozes com grande musica, & no mesmo reyno me achey outra vez da volta e
retorna de Hierusalem, & lhe ouvi em huma vigilia de hũa festa cantar da mesma maneyra
muyta parte da noyte em Famagusta. Todas estas naçoens, em especial os clerigos, &
religiosos, andão no vestir assinallados de maneyra, que com pouca experiencia em os
vendo, conheceis qual he o grego, armenio, abexim, ou caldeu. Todos os ecclesiasticos, &
seculares, no dia de jejum naõ comem senão quasi noyte, nem bebem em nenhũa maneyra
entre dia ; nas vigilias de jejum dizem a missa á tarde, & depois della comem. Todos
grandes & pequenos dos sete annos acima jejuaõ advento, & quaresma com muyta
estreyteza, & no tal jejum não comem peyxe, nem azeyte, nem bebem vinho. Jejuaõ da
Ascensaõ atè o Espirito Santo, fazem quaresma aos apostolos S. Pedro, & S. Paulo quinze
dias antes da sua festa, & outros quinze antes da Assũpçaõ da virgem nossa senhora. A
quaresma mayor tem muy poucos privilegiados, & naõ saõ como os mimosos do nosso
Portugal, que alèm de não jejuarem, com qualquer achaque comem carne, & muytas vezes
sem elle, & muytos ociosos não tem conta algũa com o jejum com muyta confiança de
alcançarem na gloria o premio de jejum. Algũas horas os nossos frades, querendo fazer
experiencia em moços pequenos, & moças, que nos dias de jejum vẽ pedir esmola á nossa
porta, os convidão, & importunão a que comão, mas jamais /
173
podem acabar com elles
comerem antes de missa, do que meu Deos seja para sempre louvado.
Outra naçaõ ha de christãos na Terra Santa, a que chamão maronitas, & porque na
igreja do santo sepulchro não tem santuario algum a seu carrego, nem jamais estão lá, não
faço delles particular capitulo: fazem o officio divino como os sirianos, & nem huns, nem
outros entendem o que lem, salvo se aprendem o caldeu, grammatical, nas escolas, que não
ha nas suas terras, mas os caracteres dos seus livros, não saõ caldeos. Tomarão este nome
de maronitas, de hum seu mestre antigo, que se chamou Maron, saõ sogeytos á igreja
romana, ao menos da era do senhor Jesu de 1476 na qual sendo summo pontifice na igreja
de Deos Xisto IV o patriarca do Monte Libano, pastor, & superior dos christãos maronitas,
132
mandou embayxadores ao dito papa, dando-lhe obediencia, & pedindo-lhe tivesse por bem
mandar-lhe quem os ensinasse, doutrinasse & instruisse na doutrina catholica da santa
madre igreja romana. E tendo o papa consideração, que estando o Monte Libano tão
distante de Roma, não se poderia isso commodamente fazer: ordenou que o Géral, ou
Commissario géral da Ordem de nosso padre S. Francisco, no tempo que celebraõ os seus
capitulos gèraes, & faze nelle a familia hierosolimitana, com authoridade apostolica,
mandassem á Terra Santa algum padre letrado da observancia, que fosse ornado de religião,
& santos costumes, & muyta prudencia nas cousas espirituaes : o qual fosse commissario &
nuncio apostolico entre os ditos maronitas : ao qual padre assim eleyto o papa concedia sua
authoridade plenissima, para elle, & para os frades seus companheyros sacerdotes,
deputados para tão santa obra em tudo o que fosse necessario para a faude, & / 174 salvaçaõ
daquellas almas. E o papa assinou logo para aquelle effeyto a hum muy veneravel padre da
observancia, douto, & de muytas virtudes, por nome fr. Luis de Riperio. Mas agora o padre,
que no capitulo géral elegem por guardiaõ da Terra Santa, tanto q he eleyto, tem a mesma
authoridade apostolica, assim para os maronitas, como para tudo o mais que succeder
naquellas partes, & os maronitas o recebem por seu nuncio apostolico com muyta devoçaõ,
& os ensina nas cousas da fè, & os tem firmes na obediencia da santa madre igreja romana.
Em Hierusalem não ha moradores desta naçaõ, & quando vem em romaria pousaõ com os
frades ao menos o seu patriarca, & ecclesiasticos, & com tudo isto tem suas ceremonias, &
costumes como os outros christãos da terra, como antes tinhão, os quaes lhe permitte a fè
apostolica, atè que de todo entrem no seu gremio, mas dizem missa com os nossos
ornamentos, & consagraõ com as nossas hostias.
133
CAPITULO XXXIV.
Dos latinos.
A Naçaõ latina dos christãos, que moraõ em Jerusalem, saõ os frades menores de
nosso serafico padre S. Francisco da Observancia, toda a christandade em géral, & cada
christão em particular, sabe o nosso modo de vida, conforme aos reynos, & provincias
aonde moramos. Mas em o que toca ao citarem na Terra Santa, se ha de saber, q de todos os
christãos do universo, sugeytos á santa igreja romana catholica, & apostolica, sómente nós
estamos nella de morada /
175
guardandoa muy inteiramente como gente fiel, & catholica.
As outras nações de christãos, ainda que tambem morão em Hierusalem, vivem como atraz
fica dito, segundo suas ceremonias, & costumes antigos com muytas maneyras de erros,
sem algũa ordem de reformação. Cousa he de notar, que sendo a nossa Europa tão grande,
na qual a santa Fè catholica está estendida em tantos reynos, & provincias, aonde florecem
tantas, & tão santas religiões, ornadas com varoens de grandissimas virtudes, santidade, &
letras, sómente a religião franciscana menor das menores, tem a sua habitação, & morada
em Hierusalem, & outros lugares da Terra Santa, tendo sempre levantado o pendão, &
estandarte da Fè catholica, com muyta firmesa, & esforço entre turcos, & infieis, inimigos
do nome santo de nosso senhor Jesu Christo, entre tantas nações de gente scismatica: & des
o principio inimiga da santa igreja catholica, sofrendo muytas afflicções, trabalhos, &
quotidianos enfadamentos, & isto não ha hum anno, nem dous, mas muyta quantidade
delles, que parece poderse em algũa maneyra dizer, pelos frades menores moradores na
Terra Santa, o que diz o profeta Sofonias, que he: Et derelinquam in medio tui populum
pauperem, & egenum, & sperabunt in nomine Domini, deyxarey no meyo de ti, ao povo
pobre, & necessitado, & poraõ suas esperanças no Senhor. Pelas misericordias do Senhor,
& por sua grande clemencia, & piedade saõ delle favorecidos os frades menores de S.
Francisco em toda a parte, & mayormente na Terra Santa, porque tem posto todas suas
esperanças no seu santo nome, & por particular privilegio lhe concede tanta honra, & favor
que elles sómente sustentaõ em terra de turcos, & infieis, o primado da igreja catholica
romana: & / 176 elles sós naquelles santos lugares saõ os verdadeiros cultores da verdadeyra
134
Fè, & crença, sem a qual nenhum se pòde salvar, & como cavalleyros do Senhor, militaõ
debayxo da bandeyra de suas chagas sacratissimas, cujo alferes he nosso padre S.
Francisco, & como a taes lhes estâ bem terem a seu carrego os lugares aonde foy nossa
redempçaõ feyta, & obrada, porque ao amor serafico, convem o estar prõptos ao martyrio: o
qual desejo, & vontade, nunca falta a muytos dos nossos frades, que moraõ na Terra Santa,
como por experiencia o tempo em algũs o tem mostrado. E quando por Italia o guardiaõ da
Terra Santa vay fazendo a familia dos frades, que haõ de ir lá morar, nenhum se offerece a
ir, senão com a tal vontade, nem de outra maneyra seriaõ admittidos: porque nosso padre S.
Francisco em sua regra manda, que se alguns frades quizerem ir viver entre mouros, &
infieis, peçaõ para isso licença a seus ministros provinciaes: mas que indifferentemente naõ
seja dada a todos, salvo áquelles que virem ser idoneos para se lhe conceder. Esta vontade
tenho eu sentido em muytos religiosos nossos, com huns muy vivos desejos, como
professores evangelicos da regra evangelica, alheyos de toda a herança, & bens temporaes
da terra como cidadãos do ceo, & domesticos de Deos, & seus familiares, como diz o
apostolo Saõ Paulo, promptos para executar a obediencia do Senhor, quando sua divina
providencia o determinar.
Em tempo do papa Martinho V. o qual foy eleyto no concilio constanciense,
celebrado na era do Senhor de 1418 alguns emulos, & adversarios dos frades menores, lhe
moverão huma grande demanda sobre a pretensão dos lugares da Terra Santa, nos quaes
havia annos que moravaõ os ditos frades menores. O /
177
Papa Martinho commetteo a
causa ao reverendo patriarca de Hierusalem Egradense, o qual examinando-a com muyta
diligencia, com muyta solenidade na igreja cathedral da cidade de Mantua, assim por
palavra, como por escrito, deu sentença polos ditos Frades Menores, declarando serem elles
os verdadeyros possuidores dos santos lugares de toda a Terra Santa, a qual o Papa
Martinho confirmou por estas palavras:
Authoritate Apostolica, confirmamos em o theor das presentes, a doação,
concessaõ, & adulação dos lugares presentes, a saber, do sagrado Monte Sion, de Belem, &
do santo Sepulchro em Hierusalem, & tambem o de N. Senhora do Valle de Josaphat, feyta
aos Frades Menores pelo veneravel nosso Irmaõ Joaõ Patriarca de Hierusalem, assim como
135
mais plenariamente consta por estromento publico, sellado com seu sello, suprindo
quaefquer defeytos, que na tal doação houver havido.
Esta doaçaõ do Papa Martinho V tem os Frades Menores em Hierusalem, no
archivo aonde estaõ as mais escrituras, & privilegios que tocaõ ao favor dos Frades, &
lugares da Terra Santa, assim dos breves Apostolicos, & letras dos Reys, & Principes
Christãos; como do Grão Turco, que tem dado aos ditos Frades grandes privilegios, cujas
firmas saõ todas feytas com letras de ouro. Saõ tidos os nossos Frades em muyta veneraçaõ
dos Turcos, & Mouros, assim polo permittir nosso Senhor, como por verem quam livres
vivem, & izentos entre elles de rendas, & heranças, & outros bens temporaes, ainda que a
divina providencia nos provè largamente com sua esmola, a qual mais copiosamente, que
dos outros Christãos recebemos dos Senhores Venesianos: porque alem da particular q nos
faz a Senhoria de Ve/neza 178, o Padre Guardiaõ os mais dos annos lhe manda na Quaresma
Prègador, & Confessor á Cidade de Alepo, que está junto da Mesopotamia para pregarem e
confessarem aos mercadores, que naquellas partes andão. E o mesmo manda a Egypto, para
os mercadores do Grão Cairo, & Alexandria, dos quaes trazem grandes esmolas. No Reyno
de Cicilia se arrecada huma boa esmola, que deyxou a Rainha Catholica Dona Isabel,
mulher delRey Dom Fernando o Catholico: a qual esmola cuydo que importa mais de mil
cruzados, ainda que quebra muyto desta quantia por ser a moeda daquelle Reyno com
muyta liga, de modo que não corre fora delle. Do nosso Portugal vão cada hum anno
trezentos cruzados, quando os arrecadaõ, os quaes deyxou EIRey Dom Joaõ o III para o
azeyte das alampadas, q ardem, assim na Casa Santa, como em Belem: & hũ fidalgo
principal do Reyno, por nome Jorge da Sylva, que passou com EIRey Dom Sebastiaõ a
Africa, & lá morreo: deixou cem cruzados para o mesmo effeito das alampadas.
Nos nossos capitulos geraes são eleytos os Guardiães da Terra Santa, & mudão
hũa familia, & fazem outra nova cada tres annos: & sempre elegem homens eminentes por
Guardiães, ornados de letras, virtude, & religião, quaes convem para tal cargo, & officio
naquellas partes, & a estes he concedida toda a authoridade Apostolica necessaria para os
negocios de importancia, que tocarem á Fè, ou ao augmento, honra, & proveyto do bom
Christianismo que pelo tempo pòde succeder.
136
Tem o dito Guardiaõ assim eleyto, authoridade de Sua Santidade para armar os
cavalleyros do sancto sepulchro os quaes não podem ser senão pessoas muyto nobres e assi
o encomendou & encarregou muyto a cõ/ciência
179
do padre Bonifacio, o Papa Pio IV
estando eu presente. Estes cavaleiros do santo sepulchro são de mais auctoridade e
preminencia que todos os mais cavaleiros das Ordes Militares: & hũ dos votos que
promettem, he, estarem sempre prestes com armas, & cavallo para ajudarem a Terra Santa,
sendo chamados. Este mesmo Guardiaõ, no que toca ao governo dos Frades da Terra Santa,
he como Provincial, & provè o Convento de Chipre de Guardiaõ, & Frades, & assim
mesmo o de Belem, & o de Baruth, que está na Fenicia ao pè do Monte Libano: mudado os
a seu tempo, como melhor lhe parece, segundo Deos, & tem cuydado da provisaõ, naõ
sómente da espiritual de todos, como bom pastor: mas tambem da temporal, a qual por ser a
terra muyto barata, não he de tanta importancia, como saõ os gastos de cada dia, que por
naõ receberem os santos lugares detrimento de continuo com dadivas, & presentes a
Turcos, & Mouros, por lhe tapar a bocca, & fazendo muytas liberalidades, & esmolas a
gente necessitada, que se não podem escusar por sustentar a opiniaõ, e grande conta, em
que se tem naquellas partes a naçaõ Latina. Para estas esmolas, & gastos tão continuos, &
para a provisaõ temporal temos hum sindico posto por authoridade Apostolica: o qual as
recebe, & distribue como, & quando lhe parece que convem, sem os Frades intervirem em
algũa maneyra em cousa de dinheyro, ou pecunia, antes nesta parte, & em outras cousas
guardão a inteyresa de sua Regra com mais pureza, que em algumas partes de Franquia,
pelo que nosso Senhor seja sempre louvado. Amen.
137
CAPITULO XXXV.
Da procissaõ, que se faz dentro na Casa Santa, quando vaõ os peregrinos da Franquia.
QUando da nossa Europa vão alguns peregrinos visitar os sagrados lugares da
Terra Santa, chegando ao porto de Japho, mandão logo recado ao Padre Guardiaõ de
Hierusalem, o qual por si, ou por outrem, logo acode ao porto, com a guarda necessaria,
que os ha de acompanhar, & com o mais, assim de cavalgaduras, como de provisaõ
corporal. Em chegando ao porto he recebido de todos com muyta reverencia, &, de sinaes
devoto amor: & elle como pay, & pastor recebe a elles cõ muyta caridade, & absolve aos
que tem necessidade da excommunhão em que tem encorrido. por irem á Terra Santa sem
licença particular do Papa. Posto tudo em ordem, se partem com boa ordenança, & se vão á
Cidade de Rhama, aonde achão todo o refresco, & recreação possivel: & descançando hum
dia, se partem ao outro para a Santa Cidade, acompanhados sempre de muy boa guarda, &
pelos termos, & passos que atraz fica dito no capitulo dezoyto. Chegando á Santa Cidade,
saõ recebidos dos nossos Frades com muyta alegria, & recreados com toda a caridade, &
humanidade: mas primeyro q entrem nella, fazem sua presentação ao Governador, ou a
quem elle ordena, & manda para isso. Depois de repousarem dous, ou tres dias com os
Frades no seu Mosteyro, ou mais, ou menos, segundo lhe parece, dá-se ordem para
entrarem na Casa Santa, a visitar o Sepulchro de nosso Senhor Jesu Christo, & os mais
lugares santos. E ordenado tudo como con/vem 181 para a entrada, & suas offertas de azeite,
& cera, os que pòdem hum dia depois de vesperas, (ao chamados os Turcos, que tem
cuydado de abrir a porta do Santo Sepulchro: os quaes então acodem com mais aparato, &
ceremonia, que as outras vezes, & sentados sobre huma alcatifa, & numa mesa posta diante,
na qual se conta o dinheyro que pagão: que saõ como já tenho dito, nove saquins de ouro,
que cada hum tem treze reales de prata, & sentados em hum livro os nomes de suas terras,
pays, & mãys, abrem as portas, e entrão primeyro os Frades, & logo os nossos peregrinos,
& depois os mais Christãos da terra, que querem entrar. Entrados todos esperão os Turcos á
porta hum pequeno intervallo, & começa o porteyro a bater na porta, fazendo final a que se
fayaõ os que não haõ de ficar de noyte. Saidos fóra tornaõ os Turcos a fechar a porta, &
138
porlhe o sello como estava d’antes, & vaõ-se para suas casas. Os peregrinos se consolaõ
espiritualmente naquelles santos lugares, aparelhando-se para de noyte se confessarem,
porque de tal maneyra ha lá provisaõ de Confessores, que de qualquer naçaõ q seja, achaõ
os peregrinos com quem se confessem, & consolem. Vindo a noyte ordena-se a procissaõ
solemne na maneyra seguinte. Juntos todos na Igreja pequena do nosso Mosteirinho,
levantada a Cruz entre dous acolitos com ciriaes, os Frades, & peregrinos com suas velas
acesas nas mãos, vaõ-se diante do Altar da nossa Senhora, que está na nossa capella, aonde
rezamos o Officio Divino, a qual he dedicada ao apparecimento, que nosso Redemptor fez a
sua bemdita madre á hora de sua sagrada Resurreyção : & com toda a possivel devoçaõ
começaõ a cãtar a Antifona: Regina cæli lætare, alleiuia. A qual acabadal evantaõ-se dous
cantores, & dizem o verso: Ora /
182
pro nobis Sancta Dei genitrix.
R.
Ut digni efficiamur,
&c.
Oraçaõ.
DEus qui per unigeniti tui resurrectionem familiam tuam lætificare dignatus es :
præsta quæ sumus, ut per venerabilem genetricem tuam Mariam perpetuæ capiamus
gaudia vitæ Per eundem Christum, &c.
Aqui se ganha indulgencia plenaria.
Acabada esta oraçaõ se virão para o Altar aonde está posto o pedaço da columna, á
qual nosso Redemptor foy atado, & açoutado: & alli por mais brevidade dizem entoada esta
Antifona: Apprehendit Jesum Pilatus, & ad hanc columnam ligatum fortiter flagellavit.
V.
Vere langores nostros ipse tulit.
R
Et dolores nostros, ipse portavit.
Oraçaõ.
AD esto nobis Christe Salvator per tuam venerabilem flagelationem, & per tuum
stilantem, & aspersum sanguinem preciosum, ut omnia peccata nostra deleas, nobisque
tuam gratiam tribuas, & ab omni periculo, & adversitate nos protegas & ad gaudia æternæ
vitæ perducas. Qui vivis, &c. regnas.
Aqui se ganha indulgencia plenaria.
139
A cada estaçaõ, & lugar santo destes, o Padre Guardiaõ, ou quem em seu lugar
preside, faz aos peregrinos hũa breve pratica, declarando-lhe o mysterio daquelle lugar, & o
mesmo se guarda em cada hum dos mais lugares, que pelos peregrinos saõ visitados em
toda a Terra Santa.
Acabada a oração começão dous cantores a Ladainha, com o qual saem á Igreja do
Santo Sepulchro, & em /
183
chegando ao lugar aonde nosso Redemptor o dia de sua
sagrada Resurreyçaõ apareceo á bendita Magdalena, o qual esta entre a porta da nossa
Igreja pequena, & a cappella do Santo Sepulchro, sinallado com hũa pedra branca grande,
& redonda, como de moinho: & junto della outra da mesma maneyra, aonde estava a Santa:
deyxaõ a Ladainha, & começão esta Antifona: Surgens Jesus mane prima sabbati apparuit
primò Mariæ Magdalenæ, de qua ejecerat septem Dæmonia. V. Mulier noli me tangere.
R. Nondum
enim ascendi ad Patrem meum.
Oraçaõ.
BEenignissime Domine Jesũ, Alpha, & Omega: qui mane prima sabbati Mariæ
Magdalenæ; dulciter lacrymanti te affabilem præbuisti: concede nobis famulis tuis
indignis, ut sanctissimam faciem tuam plenam gratiarum in cælisti gloria meritis tuæ;
Resurrectionis videre mereamur. Qui vivis, & regnas, &c.
Aqui se ganhaõ sete annos, & sete quarentenas de perdaõ. Acabada esta oraçõ,
tornaõ á Ladainha, & com ella chegão atè o carcere, aonde nosso Senhor esteve, no tempo
que os que o crucificavão abriaõ o buraco, aonde haviaõ de meter a Santa Cruz: ao qual
carcere chegando, dizem esta Antifona: Ego duxite de captivitate Ægypti, demerso
Pharaone in mari rubro: & tu me tradidisti huic obscuro carceri.V. Dirupisti Domine
vincula mea.
R;
Tibi sacrificabo hostiam laudis.
184
Oraçaõ.
DOmine Jesu Christe, Angelorum decor, gaudium, & libertas animarum: qui pro
redemptione mundi capi, ligari, carcerari, alapis, cædi, flagellari, & conspui voluisti fac
nos qæsumus, indignos famulos tuos pænas, & contumelias pro tui nominis gloria lætanter
140
suscipere, ut ad tuæ; pietatis consfortium mereamur feliciter pervenire Qui vivis, & regnas.
&c.
Neste dia se ganha indulgencia plenaria.
Tornaõ logo a proseguir com a Ladainha atè a Cappela, & lugar aonde os
cavalleyros partirão entre si as vestiduras de nosso Redemptor: no qual dizem esta
Antifona. Milites postquam crucifixerunt Jesum, acceperunt vestimenta sua, dantes
uniquique militi partem.
V. Diviserunt
sibi vestimenta mea. R. Et super vestem meam miserunt fortem.
Oraçaõ.
BEnigne Jesu Christe, qui pro nostra redemptione ab indignis peccatorum
manibus, non solum in Cruce nudus suspendi, & mori voluisti : sed etiam tuam sanctissima
vestimenta partiri, & donari permisisti: concede, ut spoliati vitiis, virtutibusque adornati,
tibi Deo vivo, & vero, & cælesti gloria præsentari mereamur. Quivivis, & regnas, &c.
Tornando á Ladainha, chegao atè o portal da escada por onde abayxaõ ao lugar da
Invençaõ da Cruz: & alli deyxando de todo a Ladainha, começaõ a cantar o Hymno Vexilla
Regis, com o qual bayxaõ pela escada. Com o mudar do canto, & com a escuridade do
lugar, & consideraçaõ delle, ordinariamente saõ tantas as la/grimas 185 , & soluços, & hum
arrepia cabello, que de verdade vos quer parecer, que vos chamaõ a juizo. O que eu
attribuia ás grandes misericordias do Senhor, que tem por bem dar os taes sentimẽtos de
temor seu aos Christãos naquelles santos lugares, q com devoçaõ por seu amor os visitaõ.
Chegando abayxo cantão o verso: O Crux ave spes unica, o qual acabado entoaõ a
Antifona: Orabat Judas: Deus Deus meus ostende mihi lignum sanctæ Crucis.
Vers. Hoc signum Crucis erit in Cælo. Resp. Cum Dominus ad judicandum
venerit. A oraçaõ se diz da festa da Invenção da Cruz. Aqui neste lugar ganhaõ indulgencia
plenaria. Do qual tornando a subir á cappella da Rainha Santa Helena, vaõ cantanda o
Hymno: Huius obtentu, & acabado dizem a Antifona: Helena Constantini mater
Hierosolyman pelijt. V. Ora pro nobis, &c. R. Ut digni efficiamur.
141
Oraçaõ.
DEus que inter cætera potentiæ tuæ; miracula; et iam in fexu fragili virtutem
rectæ intentionis corroboras, præsta quæsumus ut Sanctæ, Helenæ exemplo, cujus studio
desideratum regis nostri lignum sanctæ Crucis detegere dignatus est, ea quæ Christi sunt
jugiter indagare, atque consequi te favente mereamur. Per eũndem Christum, &c.
Acabada esta oraçaõ se vaõ ao lugar aonde está a columna dos improperios, a
saber, a cappella dos Abexins, & vão cantando outra vez o verso: O Crux ave spes unica.
Antifona. Ego te dedi sceptrum regale, & tu capiti meo imposuisti spineam coronam.
V.
Posuisti domine super caput ejus.
R.
Coronam de lapide pretioso
186
Oraçaõ.
DOmine Jesu Christe, qui humano generi condolens, coronam spinarum in tuo
sacratissimo capite suscepisti, & sanguinem tuum pro salute omnium fudisti: respice ad
indignas preces nostras ut à te clementer exauditi indulgentiam, & remissionem
peccatorum nobis tribuas perpetuam magnam misericordiam tuam, & pietatem. Qui cum,
&c.
Dita esta oraçaõ, sobem ao Monte Calvario cantando o Hymno: Vexilla regis
prodeunt, ao qual accrescentão o verso seguinte : Confixa clavis viscera tendens manus
vestigia redemptionis gratia: hic immolata est hostia. Antifona. Ecce locus ubi Salvator
mundi pependit venite adoramus te Criste, & benedicimus tibi. R. Quia per crucem tuam hic
redimisti mundum.
Oraçaõ.
DOmine Jesu Christe, Filli Dei vivi, qui hunc sacratissimum locum pro salute
humani generis pretioso sanguine tuo consecrassti: ad quem hora tertia duci voluisti:
ibique spoliari à militibus permisisti, ac demum hora sexta in Cruce suspensus pro
peccatoribus exorasti, matremque dolorosam virginem virgini comendasti. Ad ultimum
142
hora nona in Patris manibus clamans, orans, & lachrymans spiritum tradidisti, & ibidem
corpus tuum sanctissimum lancea perforari sustinuisti: concede quæsumus, ut nos, &
omines qui tuo pretioso sanguine redempti sumus, & tuæ passionis memoriam celebramus,
ejusdem passionis beneficium consequi valeamus. Qui vivis, &c.
Aqui se ganha sempre remissaõ de todos os peccados, /
187
o que sempre se faz
pela misericordia do Senhor com grandissimo derramamento de lagrimas. E isto acabado
todos se sentaõ, & o Padre Guardiaõ lhe faz hum breve Sermão da Payxaõ de nosso
Redemptor Jesu Christo, ao proposito da sua peregrinaçaõ, mostrando-lhe muytas vezes
com o dedo o lugar, no qual por nòs foy crucificado, & morto o Filho do Eterno Deos.
Quanta efficacia tenha aquelle Sermaõ nos coraçoens de devotos ouvintes, que a
elle presentes se achaõ: quantas lagrimas, quantos soluços, quantos bons propositos de nova
vida, & emmenda de costumes velhos: qualquer pessoa de mediocre entendimento o pòde
considerar, & sentir, porque o mesmo lugar por si vos está incitando, movendo, & dizendo,
naõ duvideis, porque aqui padeceo o Redemptor do mundo. Depois de acabado o Sermão,
adorados, & beijados aquelles santissimos lugares, tornaõ a bayxar pela escada do Calvario,
& vaõ ao lugar da Santa Uncçaõ, cantando o Hymno: Pange lingua gloriosi præliũ
certamiuis. Antif. Unguentum effusum nomem tuum, ideò adolescentulæ; dilexerunt te. V.
Dilexisti justitiam, & odisti iniquitatem R. Propterea unxit te Deus, Deus tuus.
Oraçaõ.
DUlcissime Domine Jesu Christe, qui in luo sacratissimo corpore, condescendens
devotioni tuorum fidelium, ut te Regem verum, & Sacerdotem ostenderes, innngi ab eisdem
tuis fidelibus voluisti, concede ut corda nostra unctione Spiritus Sãcti valeant ab omni
infectione peccati continue præseruari. Qui cum Deo Patre, & Spiritu Sancto.
Aqui se ganha indulgencia plenaria.
Deste lugar vaõ ao Santo Sepulchro de nosso Redẽp/tor
188
, cantando o Hymno:
Ad cœnam agni providi. Antiph. Quem totus mundus non capit, hic uno sfaxu clauditur,
atqùe morte jam perempta, inferni claustra penetrate.
V.
Sepulchro, alleluia. R. Qui pro nobis pependit in ligno, alleluia.
Surrexit Dominus de hoc
143
Oraçaõ.
Omine Jesu Christe, qui hora diei vespertina de Cruce positus in brachiis
dulcissimæ matriz tuæ, ut pie creditur, reclinatus fuisti: horaque ultima in hoc sacratissimo
monumento corpus tuum ex anima contulisti, & die tertia, mortalilate deposita, gloriosus
ex inde resurrexisti, Angelos quidem ejusdem resurrectionis testes apparere jussisti; ac
Magdalenam lachrymabiliter te quærentem, primum in hoc loca tua præsentia consolatus
fuisti, tribue quæsumus, ut nos, & omnes quos in oratione comendatos susscipimus, qui de
tua passione, & morte memoriam facimus, resurrectionis tuæ gloriam consequamur. Qui
vivis, &c.
Aqui se ganha remissaõ de todos os peccados.
Acabada esta procissaõ, a mayor parte da noyte gastaõ os peregrinos em se
confessarem, & prepararem para o dia seguinte receberem o Santissimo Sacramento, & de
seu vagar visitaõ aquelles lugares santissimos, cada hũ segundo a devoçaõ de seu espirito,
aonde recebem do Senhor Deos muytas espirituaes consolações com muyta copia de
lagrimas, acesas com amorosos propositos de servirem a seu Deos, & Senhor, todo o mais
tempo de sua vida.
Ao dia seguinte canta-se a Missa com muyta solemnidade no Altar do Santo
Sepulchro: & antes da post communicanda armaõ os cavalleyros, se os haõ de armar: o que
se faz com muy solemnes ceremonias, os /
189
quaes primeyro haõ de mostrar testemunho
authentico de sua nobreza. A Missa acabada, & tudo concluido, já os Turcos estaõ á porta
de fora, prestes para a abrirem, & todos os que por sua particular consolaçaõ espiritual, se
querem ficar dentro, ficaõ: & os mais se sahem, & se vaõ ao nosso Convento de S. Salvador
a tomar refeyçaõ.
A procissaõ acima dita, da mesma maneyra infalivelmente a fazem os Frades, que
estaõ dentro naquelle santo Templo para limpeza daquelles santos lugares, & para dizerem
o Officio Divino todos os dias do anno tirando os tres da semana Santa, com sua Cruz
levantada, & suas velas na mão, no verão em se pondo o Sol, & no inverno ás Ave Marias.
144
CAPITULO XXXVI.
De como antigamente no sabbado santo vinha fogo do Ceo, & acendia as alampadas do
Santo Sepulchro, & como agora as acendem.
ANtes que me saya deste santo Templo, quero aqui tratar o modo como
antigamente no sabbado santo descia fogo do Ceo sobre a cappella do Santo Sepulchro, &
acendia todas as alampadas da Igreja, segundo está escrito em hum livro antiquissimo, que
trata de algumas particularidades da Terra Santa, o qual com muyta guarda se tem na
Sachristia entre as cousas mais preciosas do thesouro. E crê se que deste milagre tomou a
Igreja Catholica o benzer do cirio Pascoal, & as mais ceremonias daquelle santo dia, para o
que se ha de saber, que de todas as partes Orientaes, /
190
aonde ha Christãos, acodem a
semana santa a Hierusalem, para celebrar os sagrados mysterios da Payxaõ, & Resurreyção
de nosso Senhor Jesu Christo, & em especial de toda Grecia, Candia, Chipre, & Egypto, &
das Armenias, Mayor, & Menor, assim homens, como mulheres, do que mais me
maravilhey, por estar a Armenia longe, & ser necessario andar todo o caminho por terra,
porque da Grecia, & Egypto tem suas embarcações, & vem com menos trabalho. Juntas
todas as ditas naçoens na santa Cidade, cada hum pousa com os da sua naçaõ. Dia de
Ramos abrem os Turcos as portas daquelle santo Templo, & fechão com chave, & sello as
da cappella do Santo Sepulchro, & toda aquella semana, assïm pela manhãa, como á tarde,
tem cuydado de acudir a abrir as do Templo, & sẽpre ha guardas particulares para darem fè
dos que entraõ, & sahem. Cada naçaõ em seu lugar assinado se occupa naquelles dias em
fazer os Officios Divinos a seu modo: & os Frades dizem suas horas, como tem de costume
no coro da sua Igreja pequena. A quinta feyra da Semana Santa dizem os Frades as suas
Matinas á meya noyte, & ellas acabadas, todos se partem descalços de casa, & se vaõ a
Gethsemani, porque se dá recado para nos abrirem as portas da cidade áquellas horas. E
visitados aquelles santos lugares de redor, entrão no lugar aonde nosso Redemptor orou ao
Padre, & sua Divina face foy por nossos peccados cuberta de suor de sangue, & todo seu
Divino corpo: o qual he huma cova ao pè do Monte Olivete, tal, q entrando nella de dia, faz
algũ pavor & medo: & a escuridade da noyte afaz espantosa. E alli contemplando hũ pouco,
postos em oraçaõ, a magestade do lugar santissimo, as pingas de sangue, q nelle cairaõ, & o
145
banháraõ, como diz o Evangelista S. Lucas, & a /
191
oraçaõ q o Filho de Deos fez a seu
Eterno Pay, feyto sinal pelo superior, começaõ a disciplina com muitas lagrimas, &
soluços, a qual dura tanto, quanto os braços podem dar os açoutes Ella acabada, acendem
lume, & começa hũ Religioso a cantar a Payxaõ de S. Joaõ. Ao tempo que acabaõ já
começa de amanhecer: Si tornando os Frades a visitar aonde os tres Apostolos estiveraõ
dormindo, & da prisaõ, & aonde os oyto ficarão esperando: & dalli passaõ o torrente
Cedron, & começaõ a subir pelos mesmos pados, & lugares a que nosso Redemptor foy
aquelle dia levado preso. Primeyro vaõ a casa de Anás, & della á de Caifaz, & depois á de
Pilatos, & Herodes: & visitados todos aquelles lugares, começaõ a caminhar do lugar,
aonde puzeraõ a Cruz ás costas a nosso Redemptor atè o Calvario : no qual entrando com
trabalho, mas indo diante hũ Genifaro fazendonos caminho; por não haver quem possa
romper pela multidão de gente, adoramos aquelle santissimo lugar: & preparado todo o
necessario, começaõ a fazer o Officio daquelle dia cantando. O Santissimo Sacramento tem
os Frades na cappella da nossa Igreja pequena : & dalli o levaõ com muy solene procissaõ
ao Calvario, no qual se conclue a Missa daquelle dia. Todo o mais officio atè as Matinas do
Domingo, se diz, & reza no nosso coro.
Antigamente ao Sabbado Santo, juntas todas as nações (como fica dito) EIRey de
Hierusalem com todos os Principes do Reyno; & o Patriarca vestido em Pontifical, sentado
em seu throno com muytas pessoas religiosas, & Ecclesiasticas de redor de si; mandava
chamar tres peregrinos dos principaes, & mais devotos, que vinhaõ aquella solemnidade.
Vindo, & postos de giolhos diante delle, os exhortava. & admoestava, se fizessem /
192
prestes com muyta devação para executarem o que lhe queria mandar, & lhe dizia, que se
sentiaõ em sua consciencia algũ escrupulo de culpa se confessassem logo.
Confessados, tendo disto necessidade, os mandava ir descalços ao lugar aonde
estava hũa grande reliquia da santa Cruz: no qual os nossos Frades tem agora o seu coro,
aonde celebrão o Officio Divino: & alli hum delles tomava da mão do ministro hũa Cruz de
ouro, que tinha em si hum pedaço grande do santo lenho: & os outros dous com cada hum
seu cirio na maõ sem lume, o da Cruz no meyo se tornavão ao Patriarca, & elle os mandava
ir assim todos tres ao Santo Sepulchro, indo apoz elles todos os Christãos, que alli se
achavaõ, dando vozes ao Senhor, & pedindo-lhe com eficacia, tivesse por bem por sua
146
misericordia mandar-lhe fogo do Ceo, como em outro tempo o foya mandar naquelle santo
lugar por reverencia do sagrado Sepulchro do Senhor do mundo, que nelle foy sepultado, &
indo assim desta maneyra chegavão á porta do Santo Sepulchro: & o que levava a Cruz
entrava na primeyra estancia, & se abayxava a ver se era já vindo o fogo: & não sendo
vindo, se tornava a sair fora: & os mais Christãos davaõ brados ao Senhor com grandes
vozes, invocando seu favor, cantando a Ladainha, & dizendo muytas vezes Kyrie eleyson:
& desta maneyra andavaõ ao redor da cappella do Santo Sepulchro, & de cada volta que
davão, o da Cruz entrava dentro como de primeyro, a ver se era vindo o santo fogo: & esta
ceremonia faziaõ atè sete vezes: algũs annos vinha antes como a Divina misericordia tinha
por bem.
Vendo pois os Christãos, que o Senhor movido por sua piedade, & pela reverencia
da santa Cruz, orações, & clamores dos seus fieis, tinha por bem conceder-lhe /
193
o
milagre antigo, mandando sua luz, & visivel fogo: o que levava a Cruz entrava dentro na
cappella do Santo Sepulchro com hũa vella na maõ, & com muyta devoçaõ, & alegres
lagrimas de seus olhos, a acendia naquelle lume celestial, que antes subitamente tinha
acendido todas as alampadas, & saindo fora com a vella acesa na mão com muyta alegria
de todos, & hum commum contentamento, se hiaõ ao Patriarca: o qual os recebia com
muyta festa, & mandava acender todas as mais alampadas, cirios, & tochas da Igreja, &
tangiaõ logo todos os sinos da Cidade muy festivalmente, & tocavaõ muytos estromentos
musicos com grande alvoroço e alegria de todos. Os Ecclesiasticos cantavão a altas vozes:
Te Deum laudamus. Tudo isto acabado, & o povo quieto, começava o Diacono com muyta
solemnidade a cantar: Exultet jam Angelica turba: & se fazia o mais offcio Divino como
agora, o qual se acabava com a Missa da santa Resurreiçaõ.
De maneyra, que primeyro vinha o fogo sem estas santas ceremonias, & depois
querendo-se o Senhor pela frieza dos Cristãos rogado, os privou de tam grande mercê, a
qual andando o tempo lhe tornou a fazer, movido pelas lagrimas de seus fieis, que com
muytas, e continuas orações lha pediaõ, bastantes para poderem alcançar outras mayores,
mediante a graça Divina que justifica nossas obras: & fazerem vir ao Creador da luz para os
ajudar, & favorecer em todas suas necessidades. Depois, como por nossos peccados os
infieis se senhoreáraõ da Terra Santa, lançando della os Catholicos: & esfriando-se a Fé, &
147
caridade nos scismaticos que ficavão, dos quaes ainda agora toda a Palestina está cheya:
quiz o Senhor Deos, que não houvesse mais o celestial milagre: mas como era de tantos
annos usado, 194 não deyxavaõ os Gregos, & a mais canalha, que na terra entre os Mouros,
& Turcos ficou, de perseverar todos os annos em suas ceremonias como antes, sem serem
seus rogos admittidos, assi por falta de fé verdadeyra, & merecimentos seus, como por já
não terem a santa reliquia da Cruz, que se perdeo no tempo que Zelimo pai do Grão
Solimaõ tomou a terra a Campsom Soldaõ do Egypto, por trayção de Cajerbejo seu Capitão
Geral.
Sendo os Turcos senhores da terra, & entendendo a inclinaçaõ que os Christãos
Gregos della tinhaõ ao milagre do fogo, porque por ventura os ouviaõ algumas horas fallar
nisso, ou por outra via alguma, por escarnecerem de sua ignorancia determinarão dar a
entender consentindo nisso o Patriarca Grego, ou por ventura sendo elle o author do
negocio: que ainda vinha fogo do Ceo, como antigamente; & isto affirmando-o com muytos
juramentos: para o que, como fica dito, toda a Semana Santa tem fechada da sua maõ, &
sellada a cappella do Sepulchro, & com boa guarda: para que não possa alguma pessoa
entrar nella, que estorve o interesse, que elles pretendem. O qual milagre do fogo os Gregos
tem tanto tomado á sua conta, para darem a entender ás outras nações, que por seus
merecimentos ainda agora vem o fogo do Ceo, como antes, que todos os annos dão, &
pagão quarenta, ou cincoenta cruzados aos Turcos, para que lhe deyxem fazer suas
costumadas ceremonias, com grão vituperio dos Christãos; por darem occasião aos Turcos,
& Mouros, de zombarem delles, os quaes sabem muy bem ser o milagre falso, & digno de
ser escarnecido, aindaque anda taõ mettido nos corações da gente vulgar Grega, que se
acharão muytos que sustentàraõ esta falsidade, tendo-a por ver/dadeyra 195 , com darem sem
algum escrupulo a vida por elle. Tratando eu hum dia sobre isto com hum Caloiro velho
muyto meu amigo, afeando-lhe taõ falso milagre, & dizendo-lhe ser peccado mortal muyto
grande: não mo negou, mas deu huma frivola escusa: dizendo que os seus Gregos faziaõ
aquillo por conservar a devoçaõ dos da sua naçaõ, que vem de muytas, & diversas partes
muy remotas, ter a semana Santa a Hierusalem, por terem por certo vir ainda agora como
antes o fogo do Ceo, & que senaõ tivessem ser isto assim, em nenhũa maneyra viriaõ; por
tanto, como a intençaõ do seu Patriarca era piedosa, parecia não ser de culpar. E por quanto
148
eu soube, que alguns annos se muda o estylo que nisso se tem, conforme a vontade dos
Turcos, que alli se achão presentes, os quaes naquella hora se sentão sobre huns assentos de
pedra, que estão junto da cappella do Santo Sepulchro com boa guarda, porque senão
levante algum reboliço, que a esta conta tambem lhe dão a paga dos cincoenta cruzados: &
elles tem muy bom cuydado de fazer a todos estar quietos, com dar muytas pãcadas a quem
lhe parece, & muyto mais aos que se queyxão de lhe darem.
A maneyra que se teve neste negocio, quando lá estive contarey fielmente.
Estavamos os frades de Nosso Padre S. Francisco na varanda alta, que cahe sobre a
cappella do Santo Sepulchro, donde viamos a nosso salvo toda a gente, sem haver quem
nos impedisse, & o mais que passava. E os Turcos, que estavão em guarda, chamarão dous
Abexins dos do Preste Joaõ, & os mettèraõ dentro na cappella do Santo Sepulchro cerrando
as portas muy bem, & deyxando-os dentro. Os annos atraz, segũdo eu soube dos Frades,
costumavão os Turcos metter dentro na primeyra estancia ao Patriarca / 196 , dos Gregos, &
a hum Bispo Armenio, por nome Andreas muyto nosso amigo. Mas o anno em que me
achey presente, não quizerão, nem pude entender a causa: o que muyto sentiraõ os Gregos,
temendo que por ventura cuydaria o povo, q pelos merecimentos dos Abexins sómente viria
o fogo: ficarão porém o Patriarca Grego, & Andreas junto da porta da cappella. Estando
dentro os Abexins detiveraõ-se hum bom espaço, como que estavão em oraçaõ pedindo a
Deos lhe mandasse o milagroso fogo : estando todos fora com grande silencio, sentimos
nós o petiscar do fuzil, & pederneyra, & tambem sentimos muy bem o cheyro do enxofre:
& feito hum pequeno intervallo sahiraõ os Abexins á porta com grande alegria, & véllas
acesas nas mãos, antes que acendessem as alampadas do santo Sepulchro, que foy hum
grande descuydo seu para authorizarem seu fingido milagre: & deraõ as véllas ao Grego, &
Armenio, & elles com grande festa, & alvoroço começárão de acender as véllas, &
candeyas ao povo, que todos tinhaõ nas mãos esperando pelo fogo. Era tanta a alegria, &
festa que faziaõ, que naõ havia quem com elles se pudesse ouvir, ainda que os Turcos
tinhaõ cuydado de os fazer callar: naõ com brados que dessem, senaõ com os bastões, que
nas mãos tinhaõ. Achou-se neste acto hum Maronita, filho de hũa Grega: & taõ inimigo do
Gregos, que sendo sua mãy defunta havia annos, jamais havia entrado em hũa Igreja de
Gregos aonde estava enterrada para lhe lançar agua benta: era este Jorge Maronita
149
Arcebispo dos da sua naçaõ na Cidade de Damasco, feyto pelo Patriarca do Monte Libano,
& confirmado pelo Papa Pio IV, & havia ido de Veneza comnosco atè Chipre, vindo de
Roma. Achando-se este, como digo, presente ao falso milagre do fogo, & junto delle o
Pa/triarca 197 Grego: ao tempo que as Abexins lhe mettèraõ as véllas nas mãos: pondo o dito
Grego a maõ levemente pela chama do fogo, disse ao Maronita: Irmão Jorge, olha por tua
vida este fogo santo, que naõ queyma: & o Maronita com o odio mortal, que aos Gregos
tinha, subitamente tomou a mão do Patriarca, em que tinha a vella, & lha levou ás barbas,
que eraõ muyto grandes, & fermosas, quasi todas brancas, & lhas queymou dizendo-lhe :
agora verás tu Patriarca, se queyma o fogo santo. Ficou sobremaneyra afrontado daquelle
feyto, assim o Patriarca Grego, como todos os da sua obediẽcia, que presentes se acharão;
assim por terem grãdissima afronta o tocarem-lhe na barba, & mais na do seu Patriarca,
como pela zombaria ser feyta tanto na praça, & em despreso do fogo, que elles tem por
santo, & vir do Ceo: & pelo contrario, a graça deu que rir aos Turcos, & ás outras nações,
que tem o milagre na conta, em que ha de ser tido: & se naõ foraõ os Turcos, q defenderão
o Maronita : houvera de succeder algum trabalho grande aos Gregos. Isto he o que passou
no nosso tempo acerca do fogo: outros o contarão de outra maneyra, porque como a
invenção he de homens: huns annos fazem de hũa maneyra, & outros de outra, & quem
ouvir a algum Grego o contrario disto, naõ o creya, porque he falso, assim como todos elles
o saõ nas cousas, que tocaõ ao verdadeyro culto Divino, & á obediencia da Santa Madre
Igreja Romana.
150
198
CAPITULO XXXVII.
Do sagrado Monte Sion, que agora possuem os Turcos, & dos lugares santos que dentro
em si tem.
TEndo tratado dos lugares santos, que estaõ dentro no Templo do santo Sepulchro
de nosso Senhor Jesu Christo: quero agora tratar dos outros Santuarios, que estaõ dentro na
Santa Cidade de Hierusalem: & primeyro dos que a ella estaõ mais propinquos, fazendo de
cada hũ particular memoria, assim para espiritual cõsolaçaõ, como para gosto daquelles,
que este meu Itinerario lerem: aos quaes o Senhor Deos queyra dar animo, & devoçaõ para
que ao menos com a alma, & desejos visitem estes santissimos lugares, santificados com a
corporal presença de nosso Redemptor Jesu Christo, & de sua bendita madre: &
consagrados com o precioso sangue do universal Senhor de todo mundo, eterno Deos, &
verdadeyro. E por quanto o Santo Cenaculo de Monte Sion, he o mais principal depois dos
que atraz ficaõ escritos: delle como mais eminente, & sagrado, em o qual a Magestade
Divina teve por bem obrar tantos mysterios, começarey, ainda que parece perverter a
ordem, que houvera de guardar, em descrever os lugares, que vimos, des que sahimos do
Santo Sepulchro: mas o que dalli naõ comecey, faloey do Santo Cenaculo. Saõ da Casa
Santa a este sagrado lugar pelo caminho, que commummente fazemos visitando as
costumadas estaçoes 1214 passos. Está este bendito lugar quasi dous tiros de pedra fora da
Cidade, entre Oriente, & meyo dia, no mais alto do Monte / 199 Sion. Antigamente a Rainha
Santa Helena, may do Grão Constantino Emperador, mandou alli fazer numa muy
sumptuosa Igreja no proprio lugar, aonde o Redemptor do mundo ceou a ultima cea com
seus amados Discipulos, dentro da qual ficavaõ encerrados, & metidos todos os lugares
santos, que havia naquelle sitio do santo Cenaculo, a saber, aõde foy a Cea, & instituhio o
Santissimo Sacramento de seu preciosissimo Corpo, & Sangue : o lavamento dos pès,
aonde appareceo resuscitado a seus Discipulos: aonde S. Joaõ dizia Missa á Virgem N.
Senhora: a camara da mesma Virgem a casa aonde estava com os Apostolos quando veyo o
Espirito Santo: o lugar em que foy afiado o Cordeyro Pascoal, aonde lançarão fortes sobre
S. Mathias, & Joseph: aonde se apartarão os Santos Apostolos huns dos outros, indo pelo
mundo a pregar o santo Evangelho, como pelo Senhor Deos lhe fora mandado: aonde desta
151
vida mortal, passou á gloria celestial a Virgem nosso Senhora. Mas a Igreja de tal maneyra
a gastou o tempo, que della não ha mais memoria, que os alicerces, & em seu lugar se
fundou o Mosteyro de Monte Sion, ficando dentro nelle os principaes Santuarios, que tenho
nomeados, & os outros estaõ de fora em hum lugar raso, como adro, ao redor do Mosteyro:
os quaes estaõ sinallados com particulares sinaes, & pedras, assim por memoria, como
porque em cada hum delles se ganhaõ indulgencia de sete annos & sete quarentenas de
perdaõ: & no lugar aonde a Virgem nossa Senhora passou desta vida, que tambem fica fora,
se ganha indulgencia plenaria. Mas como estes lugares, que ficaõ de fora estão sem ordem,
huns juntos dos outros: não quero tratar delles, basta que trate dos que estão dentro, pelos
quaes se pode saber quaes saõ os outros. /
200
Tornando ao Mosteyro aonde está o santo Cenaculo, o qual Moateiro de tal
maneyra foy edificado, que o santo Cenaculo ficou por Igreja sua: delle sómente direy do
modo que ao presente está, & eu o vi algumas vezes que nelle entrey, o qual foy muytos
annos dos nossos frades de Saõ Francisco, intitulado com o nome de Monte Sion, & assim
atè hoje o Padre Guardiaõ de Hierusalem se intitula Guardiaõ de Monte Sion, posto que os
Turcos estaõ em posse delle. E nos Breves Apostolicos que tocaõ ao governo da Terra
Santa, assim se nomea, do modo que cá em Portugal dizemos Bispo de Salè, ou de Targa,
os quaes titulos permitta meu Deos, que os vejamos em nossos tempos possuidos com
verdade, & liberdade, como já foraõ, para louvor seu: & acrecentamento de sua Santa Fé
Catholica. Agora por nossos peccados está este Mosteyro de Monte Sion em poder de
Turcos Cacizes do Templo de Salamaõ. A culpa foy commetida por huns desaventurados
Judeos, inimigos ab utero do nome mellifluo de N. Senhor JESU Christo, os quaes com
inveja de nos verem possuir aquelle santissimo lugar, tratarão com hum Cacis mais
principal dos do Templo de Salamaõ, o houvessem do Grão Turco; affirmando-lhe estar
nelle a sepultura do grande Profeta, & Rey David, que pertencia mais a elles, q aos
Christãos: o que lhe disse com palavras falsas, & enganosas, por saber a veneraçaõ, em que
os Mouros, & Turcos tem aos Patriarcas, & Profetas do Velho Testamento. E acrescentou
mais o Judeu, que foy inventor desta maldade, que alèm desta razão, que que por si podiaõ
dar ao Grão Turco, havia outra não de menos efficacia para poderem sair com a sua, pondolhe diante, que aquelle Mosteyro lhe podia servir de fortaleza, pretendendo os Francos em
152
algum tempo / 201 tomar aquella terra. Folgou muyto o Cacis de saber o ardil, que os Judeos
lhe davaõ, & lhe contentarão muyto os particulares avisos, & tendo tudo secreto em seu
peyto: começou logo a ser muy importuno aos Frades, pedindo-lhe hoje huma cousa,
amenhãa outra: de maneyra, que em pouco tempo veyo a enfadar o Padre Guardiaõ, o qual
naõ sabia o engano, & trayçaõ que lhe estava ordida. Vendo o Cacis, naõ serem admittidas
suas importunações, começou a descubrir seu danado peyto, & por si, & por Cacizes
amigos seus, & alguns Turcos principaes, se houve de maneyra, que se deu conta ao Graõ
Turco Solimaõ, como os frades Francos tinhaõ em seu poder a sepultura do Santo Rey
David, afeando-lhe muyto o estar em nosso poder: pelo que o Graõ Turco mandou logo
entregar a cappella aonde está a dita sepultura de David aos. Cacizes: & lhes dessem lugar
para nella poderem estar com suas mulheres, & filhos, para terem cuydado das alampadas
da cappella, & do mais tocante á limpesa, & ornato della: pelo que foy forçado aos frades
darlhe a mayor parte dos bayxos do mosteyro, por estar nelles a dita cappella: a qual fica
como subterranea debayxo da bendita cappella, aonde a Virgem nossa Senhora com as
santas mulheres, & gloriosos Apostolos á hora que sobre todos elles veyo o Espirito Santo
em linguas de fogo dia de Pentecostes, estava. Andando mais o tempo alguns poucos annos
: tornáraõ os Cacizes a arguir, q os Frades por menospreso dos Cacizes, & da sepultura do
Santo David, andavão de continuo na cappella superior: & que naõ era bem, que os porcos,
& cães Francos, tivessem os altos, & elles em sua propria terra andassem debayxo dos seus
pès: & feyto sobre isto petiçaõ ao Graõ Turco Solimaõ, mandou logo entregar de todo o
Mosteyro aos /
202
Cacizes: & que logo os Frades se recolhessem em outra parte: o que se
comprio á risca com grandissima dor, & sentimento dos frades, & de quasi todos os
Christãos da terra: porque ainda que aquelle santissimo lugar havia muytos annos, que era
morada dos frades, tambem as outras naçoens dos Christãos gozavaõ delle todas as festas,
& ainda quando particularmente o pediaõ, visitando, & reverenciando aquelles santissimos
lugares. Ficáraõ então os Frades em huma casa grande, que tinhaõ junto do Mostteyro, a
qual lhe servia de despejos, & de forno, & estiveraõ nella atè hum anno, antes que eu fosse
á Terra Santa. Trabalhou-se o possivel por via dos Principes Christãos, por se tornar a
recuperar aquelle santissimo lugar: mas em nenhuma maneyra o quiz o Graõ Turco
conceder. ElRey Henrique de França a requerimento do Papa o mandou pedir com
153
solemnes Embayxadores, & ricos presentes, deu Solimaõ por reposta que, se lhe deyxasse
fazer na Cidade de Paris huma Mesquita para os da sua ley, livremente mandaria tornar o
lugar aos Frades, mas naõ de outra maneyra. Tambem os Venesianos confiados na
visinhança, & particular amisade que naquelle tempo tinhaõ com o Graõ Turco, meteraõ
nisso toda a sua valia, mas naõ lhe aproveytou: & o mesmo fizeraõ outros grandes
Senhores, & Principes de Alemanha sem serem admittidos seus rogos. Ao ultimo lho
mandou pedir por carta ElRey Dom Joaõ III deste nome em Portugal de felice memoria, ao
qual o Graõ Turco deu por reposta, que lhe pesava muyto naõ poder conceder cousa taõ
pequena a hum senhor taõ grande, & Rey taõ poderoso, por estar já o Mosteyro de Monte
Sion dedicado ao modo, & rito da sua ley, mas que por amor delle o mandaria cercar de
muro alto, & /
203
forte, cuberto por cima de abobeda, que ficasse como sepultado, de tal
maneyra, que já q naõ podia servir aos frades Francos, menos os Cacizes se pudessem
servir delle.
Naõ quizeraõ os Frades consentir nisso, contentando se antes que estivesse em
poder de Turcos, & Mouros, que naõ sepultado daquella maneira, por naõ carecerem de
todo da vista daquelle santo lugar, porque da maneyra que agora está, sempre hũa hora por
outra entramos nelle, & visitamos aquelles santos lugares, hũas vezes por interesse, outras
por amisade de alguns Cacizes nossos familiares, como o tempo dá de si, & naõ sómente os
frades, mas se vay algum peregrino de authoridade com mão pendente tambem ás
escondidas lhos deyxaõ visitar.
Chegando pois a este sagrado lugar, subimos a elle por hũa escada de dez degraos
de pedra, que fica fóra no adro; & entramos primeyramente no sacro Cenaculo, o qual he
hũa falla de cincoenta pès em comprido, & quasi quarenta de largo, sustentada com duas
grossas, & grandes colunas, de marmore: & ornada da parte Oriental por onde lhe entra a
claridade, com ricas vidraças, que occupaõ quasi toda a parede.
Esta falla he o lugar, no qual nosso Senhor Jesu Christo Deos & Homem
verdadeiro, & Sacerdote eterno, celebrou a ultima Cea com seus amados, & queridos
Discipulos, comendo com elles o Cordeyro Pascoal, figurativo de sua humanidade, a qual
havia de ser sacrificada na arvore da Santa Cruz por honra de seu Eterno Pay, & por amor
nosso, & remedio de nossas almas: do qual o beatissimo Cordeyro disse o divino Paulo,
154
escrevendo aos de Corintho: Pascha nostra immolatus est Christus. E foy aquelle o ultimo
cordeyro, / 204 q confórme a ley Judaica se comeo entre aquelle Israelitico povo: & com elle
deu fim, & remate aquella velha ceremonia, mandada guardar por Deos mil quinhentos &
tres annos antes, porque tantos houve da sahida dos filhos de Israel do Egypto, atè o anno
em que padeceo nosso Redemptor, segundo Eusebio, & outros, accrescentando mais o
tempo que ha de vinte & seis de Dezembro, atè tantos de Março, ou Abril, em que padeceo.
Aqui mesmo nesta falla instituhio sua Divina Magestade o Santissimo Sacramento de seu
precioso Corpo, & Sangue, o qual por sua infinita piedade nos deyxou por memoria de suas
grandezas, & maravilhas, para espiritual mantimento das almas, que o amaõ, & temem.
Aqui se ganha sempre indulgencia plenaria. Ao tempo de taõ altos mysterios tinha o
Redemptor do mundo sua Divina face ao Ponente, & as espadoas ao Oriente da mesma
maneyra, como esteve crucificado na arvore da Santa Cruz: este sagrado lugar fica á maõ
direyta, quando entramos naquella falla.
Cinco passos mais adiante para a parte do Norte está sinalado o lugar onde nosso
verdadeyro Deos, & Senhor com sua profundissima humildade lavou os pès a seus
Discipulos, mostrando-lhe por obra, o que antes por palavra havia ensinado, quando disse:
Aprendey de mim, que sou manso, & humilde de coraçaõ. He este acto de humildade digno
de ser imitado, & trazido na memoria de toda a creatura Christãa: & que os servos de Deos
de continuo haviaõ de trazer diante dos olhos de suas almas: para nelle em todo o tempo, &
horas se exercitarem, considerando quem foy o author de taõ soberana, & profunda obra, &
o mestre de taõ excellente doutrina. Aqui neste sagrado lugar se ganha sempre indulgencia
plenaria. Estes santissimos lugares estaõ muy /
205
sinalados da mesma maneyra, que
estavaõ em tempo de Christãos, & quando os frades os possuiaõ: & os Turcos, & Mouros
os tem em grandissima veneraçaõ, & acatamento, quanto ao que vemos no exterior: porque
estaõ ornados com muytas, & curiosas alampadas, as quaes em dias particulares acendem,
& todo o chão tem alcatifado. Quando visitamos este santo lugar, dizemos nelle o Hymno,
Verso, & Oraçaõ do Santissimo Sacramento. Aonde nosso Redemptor lavou os pès
fazemos esta commemoraçaõ. Antifona : Vos vocatis me Magister, & Domine, &
benedicitis, sum etenim : si ergo ego lavi pedes vestros Dominus, & Magister, & vos
debetis lavare alter alterius pedes. V Exemplum enim dedi vobis. R. Ut & vos ita faciatis.
155
Oraçaõ.
O Rex Regum, Domine Jesu inclyte, qui in hoc sacratissimo loco tua
profundissima humilitate, præcinctus linteo, & flexis genibus, dignatus es pedes
Discipulorũ tuorum tuis sacris manibus lavare, tergere, & mundare, concede propitius; ut
nos fæcibus, & maculis fætidos, & immundos, aqua tuæ affluentissimæ miserationis, &
gratiæ mundare, abluere, & de albare digneris, ut tuam humilitatem usque ad mortem sine
offenso sectantes, cum tuis sanctis & electis in gloria præemiare, & exaltari mereamur.
Qui vivis, &c.
Deste lugar bayxaõ por hũa escada, & logo no principio della á maõ esquerda està
hum Aposento pequeno, no qual dizem morou a Virgem nossa Senhora os annos de sua
vida depois da Ascensaõ, & subida de nosso Redemptor aos Ceos: a qual tem os Cacizes
com pouca veneraçaõ.
Affirmo haver ouvido dizer algũas vezes ao Padre /
206
Bonifacio, & a outros
padres nossos, que haviaõ morado naquelle Mosteyro de Monte Sion: que em alguns
tempos, & muytas vezes sentiaõ naquelle aposento, ou cella tão suavissimo cheyro, que
julgavão ser cousa divina, & celestial: & que os Christãos da terra antigos, ainda que de
outras nações, procuravão alguns dias particulares ter alli entrada para receberem
espirituaes consolaçoens com a grande suavidade que alli sentiaõ.
Offereceseme aqui cuydar, que por ventura algũs escrupulosos cuydáraõ ser
impossivel haver em hum lugar, tantos outros de tanta santidade, & taõ particulares: ao que
digo se deve crer, & ter, que pois aquelle Cenaculo era grande, como diz o Evangelista,
devia de haver nelle muytas casas, & camaras, & que o Senhor de todas ellas deyxou livres
á Virgem gloriosa nossa Senhora, & ao Apostolico Collegio, & á mais companhia: & isto
por ordem divina, para o que ao diante se seguio, ficando aquelle Cenaculo para morada, &
habitaçaõ de tantos, & taes Santos, & Santas: porque alli lhe appareceo o dia de sua
gloriosa Resurreyçaõ, estando as portas cerradas. Alli tinhão os Apostolos suas
congregações, & se juntava tanta multidaõ de Christãos depois da vinda do Espirito Santo;
& a razão, & honestidade estaõ dizendo, que havia de haver estancias apartadas hũas das
outras, aonde os homens estivessem, & as mulheres separadas, & lugares deputados para a
156
Oraçaõ: & outros para as cousas corporaes, & temporaes, & a Virgem nossa Senhora havia
de ter Aposento por si para estar com as santas mulheres, que acompanhavão, & para a
Oraçaõ, & contemplação. E da mesma maneyra se ha de tirar todo outro escrupulo acerca
dos mais lugares santos, que estão dentro na Cidade, & fóra della: tendo respeyto, que os
Christãos, que de principio moráraõ /
207
na Terra Santa, todos os dias, & horas os
visitavão, & os traziaõ muy notados, & particularizados: & que quando os Reys Christãos,
& em especial a Rainha Santa Helena fizeraõ Templos, & Igrejas nelles, muy meudamente
se inquiriaõ os lugares, & assentos proprios assim altos, como bayxos, & todos os edificios
se fundavão com muyta advertencia, para ficarem os santos lugares reverenciados, como
agora estaõ, os quaes depois os Summos Pontifices Romanos, autenticáraõ, & dotáraõ com
muytas indulgencias para os que com devoçaõ os visitassem. E com esta cõsideraçaõ se
deve tirar toda a incredulidade aos duvidosos, & áquelles que sempre mordem aos que por
sua devoçaõ visitaõ os santissimos lugares, & delles aos outros daõ relaçaõ.
Tornando pois ao Aposento da Virgem N. Senhora, o qual deyxado á mão
esquerda abayxamos pela escada, & himos ter a hũas casa subterraneas aonde os Mouros
fazẽ seus salás, & suas ceremonias, & andando alguns passos ao Oriente, damos em hũa
cappella não muyto grade, na qual está a sepultura do Real Profeta David, tida daquelles
Cacizes com grande apparato, & reverencia, cuberta com hũ muy rico panno de ouro,
broslado do mesmo com muytas letras Mouriscas entalhadas: a sepultura é feyta como hũ
Altar em cima do qual tem posta como huma tumba de altura de dous couvados, & o pãno
de ouro cobre tudo atè o chaõ.
Tem hum degrao como os nossos Altares, o qual juntamente cõ o pavimento de
toda a cappella está cuberto cõ alcatifas de ouro, & seda. A cappella he competentemente
alta, & d’abobeda, naõ tem mais claridade q a que lhe entra por hũa pequena, & estreita
fresta, q está ao Norte cõ sua vidraça, & ao Sul tẽ hũa grade de ferro muyto alta, & curiosa,
na qual está /
208
aporta por onde entraõ posta na mesma altura pelo alto da cappella tẽ
muytas alãpadas, & muy grandes, douradas, & pintadas, das q fazẽ na Cidade de Hebron, &
entre ellas muytos cirios grandes, & dourados: & cuydo q assim os cirios, como as alãpadas
já mais se acende, mas tudo está por apparato vão, assim como todas suas cousas saõ falsas,
& vãs. Esta cappella he tida daquella canalha em grãdissima veneraçaõ: & junto della da
157
parte de fóra rezão, & cantaõ suas blasfemias em certas horas do dia, & noite com muytas
ceremonias, das quaes a mayor parte consiste em cabecear como os Judeos, de quem as
tomárão.
Desviado deste lugar pouco espaço para a mão direyta, nos mostraõ o lugar aonde
foy assado o Cordeyro Pascoal, q nosso Redemptor ceou na ultima cea cõ seus Discipulos
no qual se ganhaõ sete annos, & sete quarẽtenas de perdaõ. Daqui subimos a huma varanda
descuberta: da qual se vè todo o Monte Olivete, muyta parte da Arabia, o mar morto, & o
Monte Nebo aonde Deos mandou subir ao Santo Moysés, & delle lhe mostrou a terra de
promissaõ. Desta varanda subimos por hũa escada de pedra de onze degráos, no meyo da
qual em hũ delles está entalhada huma fermosa Cruz muy bẽ lavrada, & a consentẽ os
infieis estar alli com serẽ seus inimigos, & incredulos, no que toca á Payxaõ de nosso
Redẽptor. No alto da escada está hũa cappella alta, & muy bem lavrada cõ seu alpendre só,
& izẽta de todo outro edificio, na qual o dia santissimo de Pẽtecostes veyo o Espirito Santo
visivelmente sobre os Apostolos em lingoas de fogo, como o cõta o Evãgelista S. Lucas na
sua historia, enchendo, & ornando suas almas de todos os dões, & graças, fazendo-os
fortes, & doutissimos, para que saindo daquelle sagrado /
209
Monte de Sion, fossem por
todo o mundo prègando, & imprimindo nos coraçoens humanos a ley de amor, para q se
comprisse o que muytos annos antes havia dito, & profetizado, o santo Profeta Isaias,
dizendo, que a ley havia de sair de Sion, & a palavra do Senhor de Hierusalem. A qual ley
havia de ser denũciada, & prègada como amorosa, & Evangelica, doce, & suave (qual he o
jugo do Senhor) pelos Apostolos por todo mundo, confórme a profecia de David, q diz: In
omnem terram exivit sonus eorum.
Tanta he a efficacia, & santidade deste santissimo lugar, que sómẽte a vista delle
parece inflammar os corações daquelles que cõ devaçaõ o visitão. Pois ao entrar dentro por
impossivel senho poderse com palavras explicar o espirito que sua entrada causa, porque de
verdade quer parecer, q com os olhos corporaes vedes estar alli aquelle sagrado Collegio
Apostolico em companhia da gloriosa Virgem nossa Senhora, & das mais santas mulheres,
& se sente dentro hũa suavidade tão grande, & hum certum quid, que se sabe sentir, & não
se sabe declarar. Aqui neste santo lugar se ganha sempre remissaõ de todos os peccados: &
se faz a seguinte peregrinaçaõ, & com commemoraçaõ primeyro cantão o Hymno: Veni
158
creator Spiritus. Antiph. Dũ complerentur dies Pentecostes, erant omnes Discipuli pariter
in hoc sanctissimo loco, & factus est repentte de cælo sonus, tanquam advenientis Spiritus
vehementis & replevit totam hanc domũ, ubi erant sedentes. Alleluia. V. Repleti sunt hic
omnes Spiritu Sancto. R. Et cœperunt loqui, alleluia. /
210
Oraçaõ.
DEus qui in hoco sacratissimo loco corda fidelium
Estar aquella sagrada capella assim izenta, & separada de todo outro edificio foy a
causa, que como o Mosteyro para aquella parte tinha muitas casas, & edificios altos, assim
por serem necessarios para domicilio dos Frades, como por causa dos Arabes, que sempre
hũa hora por outra tem cuydado de dar de noyte vista á Cidade, por verem se achão em que
lançar mão.
Vendo os Turcos a altura dos edificios, & sua fortaleza, imaginarão que em algum
tempo nos podia servir de forte, indo Christãos conquistar a Terra Santa, derribáraõ todos
os edificios daquella parte que estava mais alta, deyxando sómente por permissaõ Divina
aquella capella da maneyra que agora está, & não se enganárão na tal opiniaõ, & parecer:
porque ainda agora da maneyra que se sustenta, se poderão por alguns dias defender nella;
nem o Grão Turco tem por muyto segura essa terra, posto que tomando se, humanamente se
naõ poderá sustẽtar muyto tempo, salvo se tomarem primeyro o Reyno do Egypto, como
disse hum grande Capitaõ do Soldaõ a ElRey Saõ Luis de França, andando conquistando
naquellas partes. Tornando abayxar pela escada, se vai a outra casa, aonde se recolhiaõ os
Apostolos no tempo da santa Resurreyção, quando o Senhor entrou aonde elles estavaõ com
as portas cerradas pelo temor que tinhão dos Judeos, & lhe disse: Pax vobis, como o
escreve Saõ Lucas na sua Evangelica historia: no qual lugar se faz esta commemoração.
Cantaõ primeyro o Hymno dos Apostolos: Exultet cælum laudibus. Antifona. Cum esset
sero die illa una sabbatorum, & fores essent clausæ ubi erant Discipuli /
211
congregati in
unum, stetit hic Jesus in medio eorum, & dixit: Pax vobis gravisi sunt Discipuli viso
Domino, Alleluia. V. Quia vidisti me Thoma credidisti.
R.
Beati qui non viderunt, & crediderunt.
159
Oraçaõ.
DOmine Jesu Christe, qui sero diei tuæ Resurrectionis sanctissimæ Virgini Matri
tuæ. Discipulisque trepidantibus, mortalitate deposita, gloriosus & gaudens in hoc sacro
loca apparuisti, ut te Deum verum; & hominem à mortuis resuscitatum demonstrares, &
coram eis comedisti, ac eos multipliciter recreasti: dilectumque Apostolum tuum Thomam
post dies octo, te benignum, & affabilem ostendendo, tactis sacris cicatricibus tuis, fide
fundasti: ac nos sua dubitatione firmasti: concede nobis peccatoribus, ut ejus exemplo
resurrectionem tuã credere, & venerari: & ad cælestem gloriam precibus ipsius beati
Apostoli provenire valeamus. Qui vivis, & regnas, &c.
Aqui se ganha indulgencia plenaria.
No lugar aonde os Apostolos lançáraõ sortes sobre Joseph, & S. Mathias dizem
esta commemoraçaõ. Antifona. Statuerunt autem duos, Joseph qui vocabatur Barsabas, &
Mathiam orantesque dixerunt: tu Domine qui corda nostri omnium, ostende nobis quem
elegeris ex his duobus, unum accipere locum ministerij hujus, & Apostolatum. V. Dederunt
fortes eis. R. Et ceciditi sors super Mathiam. A oraçaõ da festa de Saõ Mathias Apostolo.
Em o lugar aonde a Virgem Senhora, & advogada nossa à ultima hora de sua peregrinaçaõ,
deu sua purissima alma nas mãos de seu Unigénito Filho, fazem esta comemmoraçaõ.
Antifona. Hic obijt beata, & gloriosa Virgo Maria, rogo gaudete, /
212
quia super choros
Angelorum ineffabiliter sublimata cum Christo regnat in æternum. V. Implora pronobis
gratiam sancta Dei genitrix.
R.
Ut filij tui vestigia devote visitemus.
Oraçaõ.
DOmine Jesu Christe, cujus magestas infinita est, & potestas æterna: adesto nobis
hodie dux itineris nostri atque defensor, per gloriosa merita dulcissimæ Matris tuæ: cujus
animam sacratissimam à sæculo hic credimus migrasse, perenniter tecum regnaturam: ut
loca, quæ tua consecrasti præsentia, absque ullo barbarorum incursu perlustrando
visitare, & visitando mereamur nostrorum indulgentiam suscipere delictorum. Qui vivis, &
regnas, in unitate &c. Aqui se ganha indulgencia plenaria. No lugar aonde o Evangelista S.
160
Joaõ dizia Missa á Virgem nossa Senhora, se diz esta commemoraçaõ. Antifona. Hic est
Discipulus ille, quem diligebat Jesus: cui in Cruce pendem nostræ salutis Auctor matrem
suam virginem virgini cõmendavit V. Ait Jesus Discipulo moriens. R. Ecce mater tua.
Oraçaõ.
EXaudi benignissime Jesu preces nostras, & intercedente pronobis beato Joanne
Evangelista dilecto tuo, qnem dulcissimæ matri tuæ in hoc sacratissimo loco sacra
missarum solemnia sæpius credimus celebrasse: præsta propitius, ut esus exemplo
sacrificium nostrum casto corpore, & immaculato corde tuæ semper majestati valeamus
offerre. Qui vivis, & regnas, &c.
Atraz fica dito, como neste sagrado lugar do Monte Sion moraõ alguns Cacizes
com suas mulheres, & fa/milia
213
, com provisaõ ordinaria do Grão Turco, para sua
sustentação: & como elles saõ grosseiros, & de pouco engenho, & em extremo cobiçosos,
muytas vezes se offerece occasiaõ para entrarmos dentro. No tempo que eu morava na
Terra Santa, tiverão necessidade de hum carpinteyro nosso para lhe concertar dentro algũas
cousas, o qual se concertou com elles, que alèm de lhe pagarem seu trabalho haviaõ de ter
por bẽ de elle levar sempre comsigo os Frades que quisessem ir com elle: & que de outra
maneyra os naõ serviria: consentiraõ os Cacizes, ainda que muy carregadamente; mas a
necessidade de terẽ portas, & janellas mal concertadas, & meas quebradas do tempo, os
obrigou a concertar: & desta maneyra em oyto dias, ou mais q lá andou, cada dia levava
comsigo dous Frades pela menhãa, & outros dous á tarde, porque sempre vinha comer a
casa. A primeira occassaõ, que se me offereceo para entrar dentro, foy que estando eu com
meu companheyro hum dia do Apostolo Sant-Iago depois de comer, na casa de Caifás, que
agora serve de Igreja aos Armenios, a qual esta muy perto do santo Cenaculo, vierao ter
comnosco dous daquelles Cacizes, & nos rogarão que lhe dessemos huns olhos de vidro,
que haviaõ mister para concertar hũas vidraças do santo Cenaculo, que estavaõ quebradas.
Estes olhos de vidro saõ como hũas concas grãdes, & redondas, das quaes costumaõ em
Venesa, & em todo Levante fazer as vidraças das casas, porque saõ menos custosos, & mais
maneaveis para se poderem levar a toda a parte com menos perigo: & porque na Terra
Santa usamos delles nas nossas vidraças, levaõ sempre muytos de Venesa, os quaes temos
161
em cayxões para as necessidades, o que muyto bem sabem aquelles Cacizes: & tambem os
de/sejos
214
, que os Frades tem de entrar dentro no santo Cenaculo, & visitar, & ver todos
aquelles santos lugares. Consentimos na sua petiçaõ, & nos levaraõ logo com muyto
contentamento a ver quantos haviaõ mister: & nòs com muyto mayor que elles os
seguimos, por naõ haver cousa na terra Santa, que de nòs fosse taõ desejada, como ver o
santo Cenaculo, tendo já visto os principaes lugares da santa Cidade, & de Belem. Subimos
pela escada: & pela noticia que tinhamos, & informação de alguns frades, que havia muyto
que moravaõ na terra, entendemos ser o santo Cenaculo o primeyro lugar, aonde entramos,
no qual elles entrarão diante de nòs com mostra de grandissima reverencia, & acatamento,
descalçando-se primeyro, & beyjando a terra: fizemos alli oraçaõ diante delles, sem nos
darem algũa torbaçaõ antes mostráraõ edificarem-se: & dalli nos leváraõ aos outros lugares,
dos quaes aquella primeyra vez naõ atinamos o titulo em q estaõ, salvo a sepultura de
David, q elles mesmos nos mostráraõ, gloriando-se de a vermos ornada daquella maneyra:
& a casa aonde estava o Collegio Apostolico, quando veyo o Espirito Santo sobre elle em
linguas de fogo. Dalli a quatro, ou cinco dias, tornamos com os vidros, levando comnosco
hum Padre velho, que havia morado na Terra Santa com o Padre Bonifacio, quando o santo
Cenaculo estava á nossa conta: para nos mostrar, & declarar os mysterios de cada lugar:
ainda que os Cacizes quasi naõ queriaõ, que entrasse dentro, mas com rogos nossos, & com
a cobiça dos vidros que nos viaõ nas mãos consentiraõ, para termos occasiaõ de entrar lá
outras vezes, levamos os vidros de industria, huns demasiadamente grandes, & outros
muyto pequenos, o que succedeo çõfórme a nossos desejos, posto que a primeyra vez
vi/mos
215
muyto bem as vidraças, para as quaes os queriaõ os Cacizes, porque desta
maneyra entrámos lá quatro, ou cinco vezes, vendo em cada hũa dellas muy
particularmente todos aquelles santos lugares, com os Cacizes se mostrarem já muy
domesticos, & familiares comnosco.
Receberão os nossos Frades muyto dano em lhe tomarem aquelle Mosteyro:
porque além das muytas consolações espirituaes, que de continuo nelle tinhaõ em visitar
cada hora aquelles santos lugares, tinhaõ tambem nelle muytas liberdades, de que agora
carecem : porque com estarem fora da Cidade, todos os sabbados de madrugada hiaõ ao
Valle de Josaphat, & no sepulchro da Virgem nossa Senhora cantavaõ solemnemente sua
162
Missa, & diziaõ rezadas as mais, que queriaõ: & tornavaõ-se para sua casa. Tinhaõ tambem
liberdade para em qualquer hora da noyte visitar os mais lugares santos de fora, sem haver
quem lho estorvasse, & erão mais providos do necessario para a vida: porque estando fora
dos muros, os que vinhaõ á Cidade vender suas cousas: primeyro hiaõ buscar os Frades, &
lhe vendiaõ tudo mais barato: assim por naõ pagarem direytos: como por se livrarem de
enfadamentos dos Turcos: que muytos tomaõ o que haõ mister, & pagão quando lhes vem a
vontade: & muytas cousas nos traziaõ a casa, que agora por se livrarem de enfadamentos, &
contendas, não querem trazer á Cidade: de maneyra, que tinhaõ os Frades muytas
liberdades, de que agora carecem.
Deunos o Grão Turco Solimaõ em recompensaçaõ do santo lugar de Sion, hum
Mosteyro dentro na Cidade todo arruinado, & caido, o qual fora de Freyras Gorgicas: que
para o havermos de metter em ordem, & a modo / 216 de casa de Religiosos, se tem gastado
muyto com grande trabalho corporal dos Frades: porque no tempo, que lá estive, quasi hum
anno inteyro andamos todos com pedra, & cal ás costas, ainda que naõ com pequeno
contentamento de nos vermos trabalhar em obra taõ fama. Este nosso Mosteyro, como
tenho dito, está dentro na Cidade: naõ muyto desviado do Templo do Santo Sepulchro: &
do terrado da Igreja vemos muyta parte da Cidade, & o Templo de Salamaõ, & o Monte
Olivete, porque estamos quasi no mais alto della. A invocação he S. Salvador, o qual por
sua infinita misericordia nos queyra salvar, & livrar de tantos perigos: quantos os seus fieis
passaõ de continuo entre a infidelidade daquella barbara gente : para gloria do seu santo
nome. Amen.
163
CAPITULO XXXVIII.
Da casa de Caifás, aonde o Apostolo S, Pedro negou o conhecimento que tinha do
Redemptor do mundo, & da casa de Anàs.
A Casa aonde morava o máo Pontifice Caifás, está entre o Mosteyro de Sion, & os
muros da Cidade, o qual no tempo em que padeceo nosso Redemptor, era Sumo Pontifice
em Hierusalem daquelle povo Judaico. Ao presente he hum Mosteyro de Armenios, mas
naõ moraõ nelle, porque como está fora da Cidade, & elles saõ poucos Religiosos, temem
se muyto dos Arabes, ainda que está muy bem cercada de muro alto, & forte : & com huma
porta toda cuberta de grossas laminas de serro, como nòs tambem temos /217 no nosso
Mosteyro de S. Salvador. De dia, sempre estaõ nelle Armenios, que com muyto cuydado, &
devaçaõ fazem os Officios Divinos a seu modo. Na cappella mor lhe serve de Ara do Altar
posta sobre quatro columnas, aquella sagrada pedra, que foy posta na porta do Sepulchro de
nosso Redemptor: da qual deziaõ as santas mulheres, quem nos tirará a pedra que está posta
á porta do moimento? como no lo conta o Evangelista S. Marcos; & o glorioso S. Mattheos,
diz que foy feyto hum terremoto, & que o Anjo do Senhor veyo, & tirou a pedra, & se
sentou sobre ella. Tem está pedra quasi nove palmos de comprido, & cinco de largo: &
quatro dedos de grosso, porque a medi eu algumas vezes. Os Armenios a tem em grande
veneraçaõ, & por muy singular, & parficular reliquia: & se gloriaõ de a terem em seu
poder, & com muyta razão, & em nenhum modo consentem tirarse della, & tem-se nisso
muyta vigilancia, mas por mercê do Senhor fuy eu ditoso de alcançar della hũa pequena
reliquia para minha espiritual consolaçaõ: a qual com minhas mãos tomey, tratando
primeyro muytos dias amisade para este fim com o Sanchristaõ com algũas dadivas, que
tudo podem. Na cappella mòr á maõ direyta está a porta de huma pequena cappella, a modo
de Sanchristia, & taõ pequena, que naõ cabem nella bem tres pessoas: a qual foy alli feyta
como hum estreyto carcere, em memoria de haver estado naquelle lugar preso nosso
Redemptor, o restante da noyte depois que foy presentado a Caifás, quando dos ministros
da maldade foy escarnecido, ferido, & esbofeteado, & sua divina face lhe foy cuberta, &
sua cabeça lastimada, quando lhe diziaõ, profetiza-nos Christo, quem te serio: & outras
muytas blasfemias, como o conta o Evangelista S. Lu/cas
218
. Tem esta cappella hũa
164
pequena fresta á parte do Sul: & todos os Christãos da terra lhe chamaõ o carcere do
Senhor: no qual se ganha indulgencia plenaria. Saindo da igreja seis passos adiante, está no
meyo do pateo huma larangeyra, que sinala o lugar, aonde estava o Apostolo S. Pedro,
quando o Redemptor do mundo poz nelle os olhos de sua divina misericordia, trazendo-lhe
á memoria os tres negamentos, que lhe tinha feyto: cantando o gallo a ultima vez: do qual
lugar se sahio o affligido Apostolo chorando muy amargamente: & eu, & outros taes como
eu o negamos cada hora, quebrantando seus Mandamentos, sem nunca por isso
derramarmos hũa só lagrima. Saõ desta casa ao santo Cenaculo cento e dez passos. Aqui,
além do quotidiano Officio Divino, & particulares orações, que os Armenios com muyta
devaçaõ sempre fazem, em algumas particulares festas do anno, se ajuntaõ todos: &
celebraõ com muyta solẽnidade sua Missa, com muytos cantares, & tangeres, assim de
homẽs, como de mulheres, como eu vi, achando-me em hũa festa naquelle lugar.com elles.
Da casa de Caifás a casa de Anás, saõ de duzentos & cincoenta passos & para irmos de
huma á outra tornamos a entrar na Cidade pela porta que agora se chama de todos os
Christãos da terra, a porta de Sion. E indo ao longo do muro da parte de dentro á maõ
direyta, chegamos a casa de Anás, diante da qual ao presente está hum grande pateo
cerrado, que se fecha á noyte, & quando convem, & nelle moraõ atè quinze visinhos
Armenios. E tem alli huma Igreja competentemente grande, edificada em memoria, que
esteve alli o Redemptor do mundo preso, diante do malvado Anás, aonde por maõ maldita
de hum maldito ministro, lhe foy dada hũa cruel, & afrontosa bofetada na sua Divina /
219
face, a qual os. Anjos desejaõ sempre ver, & lhe disse irosamente: Assim respondes ao
Pontifice? Aqui se ganha indulgencia plenaria. Opiniaõ he de muytos Christãos da terra,
que alli naquella Igreja se ouve sempre o tom de huma grande bofetada, em memoria da
injuriosa, que alli foy dada a nosso Redemptor; & disto depois que vim da Terra Santa fuy
ca perguntado, & em outras partes: mas com eu haver entrado algumas vezes naquella
Igreja, & estar com muyta attenção por espaço grande nella, por me affirmar no que me
diziaõ: nunca tal cousa senti: & se passa, como dizem, & affirmão: por meus peccados naõ
mereci ouvilla, nem sentilla. Huma hora nos achamos alli quatro, ou cinco Religiosos, além
de outros muytos que visitamos aquelle lugar, & nos demos hum ao outro huma bofetada
em memoria da que alli foy dada a nosso Redemptor na sua Divina face. Fora da Igreja
165
junto á parede della está hũa oliveyra antiquissima, & tanto que parece sustentarse por
milagre: á qual affirmão todos os da terra, que esteve atado nosso Redemptor, em quanto os
malvados ministros estiveraõ esperando, que lhe abrissem a porta. He taõ géral esta
opiniaõ, que naõ haverá quem aos Christãos daquellas partes lho possa tirar dos corações.
Eu escrevo o que vi, & ouvi, & muytas cousas vemos pelo mundo, em especial naquellas
partes Orientaes, que parecem eternas, hũas sustentadas por natureza, outras por milagre,
como vemos nos cedros do Monte Libano, que parece mostrarem hũa perpetuidade:
comtudo eu piedosamente creyo haver estado nosso Senhor atado áquella oliveyra, & não
he contra a Se duvidallo, porque naõ parece haver causa para o atarem nella, pois que em
casa de Anás, aonde havia tanta fome, & sede /
220
da morte do santissimo Cordeyro, não
devia haver muyta espera, antes cuydando naquelle passo, me quero persuadir, que tanto
que prenderão ao Redemptor, naõ havia de faltar quem fosse diante correndo a pedir
alviçaras da sua prisaõ, sendo taõ desejada daquelles malvados Pontifices. Da prisaõ da
casa de Caifás claro está, que depois que o tirarão da sua vista, & presença, como lhe era
forçado esperar pela menhaã do dia seguinte, & o perverso Pontifice se recolheo, & foy
lãçar a dormir, vendo effeytuado seu desejo, haviaõ os ministros de maldade pôr ao Senhor
em boa guarda, para mais á sua vontade se poderem sentar ao fogo, & passar o resto da
noyte, o que naõ cuydo fariaõ diante de Caifás, antes me parece., que cada hum se havia de
pôr mais á sua vista, com esperança de ser delle mais galardoado, nem o Apostolo S. Pedro
se havia de pôr muyto de espaço ao fogo, se vira seu Mestre, Senhor, & taõ particular
amigo, ao qual já tinha confessado por Filho de Deos vivo, estar diante seus inimigos,
accusado de falsidades, & sofrendo injurias, & vituperios, salvo depois que o vio pòr em
parte donde lhe não podia fallar, nem ver, & os malvados ministros já quietos: porque então
se chegaria ao fogo mais de espaço, & com menos impedimento. Não digo isto por .de todo
me apartar da opiniaõ dos da terra acerca do que tenho dito da oliveyra da casa de Anás,
antes me quero nella conformar com elles aproveytandome do que naquellas partes se diz, q
hũa das tres bolsas, q saõ necessarias aos que vaõ visitar os lugares da Terra Santa, ha de
ser a se que havemos de dar ao que nos dizem pessoas dignas de serem cridas: o que se naõ
entende por aquelles lugares, que por si estaõ manifestos, & autenticados pelos Sumos
Pontifices Romanos, que /
221
com tantas indulgencias por elles cõcedidas as ornarão. As
166
outras duas bolsas, ou sacos necessarios para aquellas partes, saõ hũa de paciência, & a
outra de dinheyro.
167
CAPITULO XXXIX.
Do lugar aonde foy degollado o Apostolo Sant-Iago Mayor, filho do Zebedeo.
MAis adiante da casa de Anás duzentos quarenta & seis passos, caminho direyto
ao longo do muro, indo com a face ao Ponente, á maõ direyta está hum muy sumptuoso, &
grande edificio, situado em o mais alto do Monte Sion, dentro no qual mora a mayor parte
dos Armenios que vivem em Hierusalem, assim Religiosos, como seculares, ainda que
divididos, & separados hũs dos outros. Entrando pela porta tem logo hũ pateo, ou claustro
muyto grande, & hũa Igreja muy alta, & fermosa de abobeda, & no alto da cappella mòr
hum zimborio de grande curiosidade aberto por cima como a Igreja do Santo Sepulchro, &
Templo de Salamaõ. Está sumptuosa Igreja foy edificada á honra do Apostolo Sant-Iago
Patrão da nossa Hespanha, & intitulada do seu nome. Em o frontispicio da cappella mòr
tem pintadas as armas de Hespanha cõ a Águia de hũa so cabeça, a qual pintura se vay
gastando do tempo. A primeyra vez, que alli entrey, lhe vi hũas corrediças de veludo
avelutado, que deciaõ do alto do frontispicio atè o chaõ, as quaes alli trouxe da India
Oriental huma mulher Portugueza, chamada Mecia Pimenta, cuydo que natural de Vila
Viçosa, da qual faço esta memoria por muytas boas obras, que / 222 fez na Terra Santa, antes
que eu lá estivesse. & depois que me vim, pelas quaes confio, que meu Deos lhe tem dado a
gloria; o que digo por me affirmarem ser já defunta na Cidade de Alepo vindo da India por
terra em companhia de Christãos Armenios, com muy grossas esmolas que havia pedido, &
ajuntado, & levava para Hierusalem, caminho que já outra vez tinha andado, que he da
India a Hierusalem, & de Hierusalem á India; espirito por certo de mulher varonil. Esta
mulher morara na Santa Cidade oyto, ou nove annos, com outras mulheres virtuosas, &
devotas, que destas partes Occidentaes foraõ ao mesmo fim, que em outro tempo foy a
gloriosa Santa Paula, & outras illustres Senhoras Romanas. Succedeo lá hũa diserença com
outras mulheres da obediencia do Patriarca Grego, na qual houve enfadamentos, o que
vendo o Padre Bonifacio, que naquelle tempo era Guardiaõ a primeyra vez, da qual esteve
sete annos, por evitar negocios de má digestaõ, que se ateavaõ, & podiaõ vir a peyor: por
authoridade Apostolica que tinha, como tem os mais Guardiães de Hierusalem, mandou
168
logo embarcar a dita Mecia Pimenta com outras sete, ou oyto mulheres da nossa
obediencia, para terra de Christãos.
E vendo-se ella em Portugal, saudosa daquelles santissimos lugares, aonde havia
tido muytas consolaçoens espirituaes, com favor da Rainha D. Catharina mãy dos
Portuguezes, que então governava, se foy caminho da India em companhia de Dom
Constantino de Bragança que então hia por Viso-Rey, aonde pedindo, & juntando esmolas,
fez os caminhos que tenho dito. A mão esquerda desta Igreja junto da cappella mòr, está
numa cappella pequena no proprio lugar aonde foy degollado o Apostolo Sant-Iago por
mandado do impio, & mal/vado
223
Herodes. A Igreja he hũa das trezentas que a Rainha
Santa Helena mandou fazer na Terra Santa, & as armas Reaes que tenho dito estarem
pintadas, affirma-se que forão alli postas em tempo da Rainha Dona Isabel, mulher de Dom
Fernando de Castella, Reys Catholicos, pelas muytas esmolas que fizerão em seu tempo
áquella Igreja, & Casa, a qual está muy inteyra com muytos edificios de redor de si, & tem
os Armenios aquelle lugar por cabeça principal de toda sua naçaõ em Hierusalem, & nelle
vivem pessoas muy principaes, & Religiosas de toda Armenia: & assim mesmo alli
recolhem os seus peregrinos, que vão visitar a Terra Santa: & muytas vezes tambem os
nossos, quando alguns annos vão muytos, assim pelo nosso Mosteyro ser pequeno, como
pela muyta amisade, que os Armenios tem comnosco. No tempo q eu estive na Terra Santa,
tinhão os Armenios por seu Prelado, & Superior havia mais de quarenta annos a hum seu
Bispo velho, por nome Andreas, homem de muy veneravel presença, & muy excellente
vida, & conversaçaõ angelica, da qual já atraz fica feyta memoria, & tinha muyta amisade
com os Frades, & era muy devoto dos que sabia serem-no da Igreja Romana. Foy sempre
costume dos nossos Frades, que moraõ em Hierusalem na vigilia do Apostolo Sant-Iago
Mayor ir lá cantar as vesperas muy solemnemente, & ao dia a Missa com a mesma
solemnidade na mesma cappella, & lugar aonde o Apostolo foy degollado, & quiz-me
nosso Senhor conceder para minha espiritual consolaçaõ no primeyro anno, que lá estive,
que fizesse o officio das vesperas, & cantasse a Missa, a qual offereci ao Senhor Deos por
este nosso Reyno de Portugal em gèral, & por meus devotos em particular. O Padre
Bonifacio quisme fazer /
224
aquelle favor diante de tantas nações de Christãos, assim por
ser seu companheyro, como por ser Hespanhol, & a Missa disse com hum muy rico
169
ornamento, que havia dado para o Santo Sepulchro o Illustrissimo Senhor D. Joaõ Soares,
Bispo que foy de Coimbra com outras muytas particulares esmolas, que fez á Terra Santa.
Na cappella aonde foy degollado o Apostolo Sant-Iago, se ganha sempre indulgencia
plenaria, & se faz a commemoraçaõ do commum dos Apostolos, & a Oraçaõ da festa do
Apostolo.
Tem por costume ha muytos annos o Armenio Andreas, todos os annos dia do
Apostolo Sant-Iago convidar, & fazer hũ solemne convite aos Frades, & aquelle anno tres,
ou quatro dias antes da festa veyo ao nosso Convento acompanhado de alguns Armenios
mais velhos, & principaes, & rogou ao Padre Bonifacio tivesse por bem de querer ser seu
convidado cõ os seus Frades o dia do Apostolo, como havia tantos annos, que o
costumavaõ ser todos os outros Guardiães de Hierusalem, como elle muyto bem sabia.
Deu-lhe o Padre Bonifacio os agradecimentos da caridade, mas escufou-se o mais que pôde
de aceytar: & insistindo muyto Andreas com importunaçaõ em sua petição, disse o Padre
Bonifacio, que era contente de lhe fazer aquelle serviço, com condição que lhe naõ haviaõ
de dar a comer no chão, como elles costumavão, seguindo no tal costume aos Mouros, &
Turcos, ficou algum tanto Andreas turbado ouvindo ao Padre Bonifacio, & tornado em si,
disse-lhe, que tinha muyta razão, & que era contente de lhe dar de comer a nosso modo, &
que promettia, que em todo o a elle possivel havia de tirar dentre os Armenios aquelle ruim
costume de comerem no chão: & assim alegremente se tornou a sua casa. Ao dia do
banquete /
225
se houve nelle de tal maneyra, .& com tanta policia, assim na ordem das
mezas, & diversidades de vidros cristalinos, & outras curiosidades, que nos poz espanto por
termos para nòs ser aquella gente quasi barbara, & pouco politica: & ser impossivel haver
entre elles , tantas alfayas custofas. Nas iguarias houve huma demasiada superfluidade, &
em quanto durou o banquete, sempre estivèraõ dous mancebos borrifando com agua
cheyrosa aos convidados. Bem vejo naõ ser honesto entremez em cousas taõ santas, &
espirituaes tratar de banquetes, posto que a Sagrada Escritura, assim no Testamento Novo,
como no Velho, trata de alguns: mas escrevi aqui isto, para mostrar o amor, & devoçaõ, que
nos tem os Armenios.
170
CAPITULO XL.
De outras eflações, & lugares santos, que estaõ na Igreja de SantIago atè o Santo
Sepulchro.
MAis adiante cem passos deste lugar dos Armenios á maõ direyta diante do
Castello, & Fortaleza da Cidade está huma Igreja pequena, dedicada á honra das tres Marias
no lugar aonde Christo Jesu nosso Redemptor lhe appareceo no dia de sua gloriosa
Resurreyçaõ, & as saudou com aquella meliflua palavra: Avete, q quer dizer, Deos vos
salve, taõ costumada no bom tempo neste nosso Portugal, & agora tão esquecida, depois
que de todo foy admittido o beyjovos as mãos. Naquella Igreja se ganhão sete annos, & sete
quarentenas de perdão, & os da Suria a tem á sua conta. Seguindo mais o caminho á mão
di/reyta 220 deyxando outros, que neste lugar se encontrão á mão esquerda, chegamos a hũa
praça aonde está huma cisterna, & dalli vemos o santo Sepulchro, o Templo de Salamão; &
muyta parte da Cidade, & o Monte Olivete, & alli fazemos sempre oraçaõ áquelles
Santuários. Este he o caminho por onde levão os peregrinos que vão á Terra Santa, indo do
santo Sepulchro para o Cenaculo, o qual costumão os nossos Religiosos andar muytas
vezes, tendo-o por santificado, por haver andado por elle a Virgem nossa Senhora com as
santas mulheres, & o andarão os Apostolos S. Pedro, & S. Joaõ na menhaã da Resurreyçaõ,
quando foraõ correndo ao Sepulchro, pelo que haviaõ dito as santas mulheres, dando-lhe as
boas novas de ser resuscitado nosso Redemptor. Daqui damos em huma rua larga, mas taõ
ingreme, que se servem por ella com degraos, & damos com outra Igreja pequena,
intitulada em nome do Evangelista S. Joaõ, a qual tem os Gregos á sua conta, & nella se
ganhão sete annos, & sete quarentenas de perdão. A occasiaõ porque alli foy edificada
aquella Igreja naõ a sey de certo, mais que dizerem huns que morava alli a mãy do Santo
Evangelista no tempo que nosso Senhor pregava em Hierusalem, & outros dizem outras
cousas. O glorioso Evangelista diz de si mesmo, que era conhecido do Pontifice, no que se
mostra que muytas vezes frequentava a Cidade, pelo que devia por boa razão ter nella casa.
Alguns fallando mais especulativamente, querem dizer, proceder aquelle conhecimento por
S. Joaõ ser da progenie & parentela de David. Maspor que nos importa pouco saber a causa
porque alli foy edificada aquella Igreja, não me quero deter em tratar tantas opiniões sem
171
proveyto. Saindo daquella Igreja tomaõ á mão direyta por huma rua /
227
larga, & chãa, &
depois tomando outra á mão esquerda muyto ingreme costa abayxo, vaõ dar no pateo do
santo Sepulchro.
Eu quando hia delle a Sion, sempre em saindo tomava logo á maõ esquerda: &
chegando à Igreja dos Templarios, que está defronte da Casa Santa junto ao carcere aonde
esteve preso o Apostolo Saõ Pedro por mandado do impio Herodes, do qual foy livrado
pelo Anjo como conta o Evangelista S. Lucas nos Actos dos Apostolos, & atè o presente
está alli hũa prisaõ, ou carcere, aonde mettem alguns Christãos da terra, quando lhe cahe a
forte : & deyxando a Igreja dos Templarios, & á mão esquerda duas ruas, hũa que vay para
a praça, & outra para a porta judiciaria, assim chamada no tempo da Payxaõ de nosso
Redemptor, o qual nome ainda agora retem: tomando á maõ direyta, hia ter á porta ferrea,
da qual o Evangelista Saõ Lucas diz no mesmo capitulo, que tambem fora aberta a Saõ
Pedro, & ao Anjo, como o carcere: atè o dia de hoje permanece inteyro aquelle postigo sem
ter porta, por naõ ser necessaria, por estar ao presente entre as casas da Cidade muy
separada do muro novo. Este postigo chamado porta ferrea, he fabricado de humas pedras
grandissimas, liadas hũas com outras com ferro, & chumbo: & da mesma maneyra vay por
alli hum pedaço do muro antigo, meyo debayxo do chão, que foy descuberto juntamente
com o postigo, por memoria da antiga fortaleza: & se servem por elle por estar por aquella
parte o caminho impedido das casas, & edificios arruinados. Mostraõ bem sua antiguidade,
assim o postigo, como o lanço de muro velho, que vay junto delle, assim na grandeza das
pedras, & liamento do ferro, & chumbo, como na cor, porque do tempo estaõ negras, &
defu/madas
228
. Desta porta ferrea, atravessando huma rua, q vay da praça para o castelo,
himos ter a casa de Maria mãy de Joaõ por sobrenome Marco, á qual casa foy ter o
Apostolo S. Pedro quando livre do carcere pelo Anjo q já o tinha deyxado, hia fugindo
caminho do Cenaculo : mas considerando ser o caminho comprido, achando nelle aquella
casa, aonde estavão muytos Christãos escondidos, & em oraçaõ, determinou entrar nella, &
batendo-lhe abrirão, dando testemunho a moça Rhode, que era o Apostolo. Neste lugar está
edificada hũa Igreja, da qual tem cuydado os Christãos Caldeus, & a tem muy limpa, &
bem concertada, da qual vay o caminho desembaraçado para a Igreja de Saõ Joaõ, que atraz
172
disse, & della para o santo Cenaculo. Aqui se ganhão sete annos, & sete quarentenas de
perdão quando se visita.
173
CAPITULO XLI.
Da rua vulgarmente dita da Amargura, pela qual nosso Redemptor foy com a Cruz ás
costas da casa de Pilatos ao Calvario.
PAreceme cousa acertada escrever aqui o caminho, que nosso Senhor JESU
Christo, Deos, & Homem verdadeyro levou da casa do malvado Caifás á do injusto, impio,
& infiel Pilatos, & da sua atè o Calvario aonde por nòs foy offerecido, & sacrificado a seu
Eterno Pay. Saõ de hũa á outra, pelo caminho que se cré haverem levado ao Salvador do
mundo, mil setecentos & cincoenta passos, pouco mais, ou menos. Saindo da casa de
Caifás pelo Monte de Sion costa abayxo, ficando o muro da Cidade, que agora serve, á / 229
mão esquerda, se vay a casa de Pilatos. Ao presente nunca imos por este caminho, por
muytos impedimentos e por haver outro mais breve & melhor, causado de estar agora a
Cidade edificada de outra maneyra; mas puz a distancia dos lugares, para que o devoto
leytor, que isto ler, veja quam longo caminho nosso Redemptor andou com o baraço ao
pescoço, depois das muytas injurias que padeceo, nas casas daquelles máos Pontifices
Anás, & Caifás, rodeado de seus imigos mortaes, & da chusma, & canalha dos beleguins.
Quando os Religiosos, & os outros peregrinos, vão de cá de Franquia, não acaso,
mas determinadamente, querem ir por esta Rua da Amargura, saindo do nosso Mosteyro de
S. Salvador nos himos direytos a casa de Pilatos, as quaes saõ tão conhecidas dos Christãos
da terra, que de muytos delles nunca queriaõ ser vistas: porque mora nellas o Governador
da Cidade, assim como na Payxão do Senhor morava Pilatos Governador, & Presidente em
Hierusalem pelos Romanos: no que se pòde ver quam viva está a memoria de muytas
coufas antigas, que foraõ naquelle tempo. Sobem a essas casas por huma escada feyta a
modo de ladeyra sem degráos, ou pedra alguma: porque a escada de marmore, que alli
esteve, pela qual subio nosso Redemptor o dia de sua Payxão: mandou-a a Rainha Santa
Helena levar a Roma: & foy posta em Saõ Joaõ de Latrão, aonde agora está tida em grande
veneraçaõ: & saõ concedidas muytas indulgencias aos que com devoçaõ sobem por ella de
giolhos: pela qual eu indigno peccador algumas vezes subi, pelo que dou muytas graças a
meu Senhor JESU Christo. Ficou assim o lugar da escada, sem haver quem mais fizesse, ou
puzesse outros degráos de pedra, nem de outra alguma cousa, /
230
& está tão fresco, que
174
parece haver muy pouco tempo, que foy dalli a escada tirada. Subindo ao alto, & passando
por humas casas velhas, se vay a hum pateo descuberto, a modo de claustra, lageado de
pedras brancas, & pretas, & no meyo delle está hũa grande, & redonda, na qual dizem que
estava nosso Redemptor quando o injusto juiz deu a injusta sentença de morte contra sua
Divina Magestade, com a qual a todos nos foy outorgada a vida. Neste lugar estava o
tribunal dos Presidentes Romanos, aonde julgavão, & sentenceavão as causas: chamava se
em Grego Lithoostratos, por ser lageado, como fica dito, & Gabbatha em Hebrayco, por
estar em parte alta, que isso quer dizer a palavra no Hebreo, como diz o Evangelista S. Joaõ
no cap. 19. de sua historia Evangelica. Este lugar, & outros desta maneyra não os podem
visitar os peregrinos, nem menos os podem ver os Frades, salvo algum por sua boa dita,
estando muyto tempo na Terra Santa: como o eu vi, indo com o Padre Bonifacio visitar o
Governador, & levando-lhe presente, porque de outra maneyra não se negocea bem cõ esta
gente. Junto a este lugar está outro sinallado, aonde foy nosso Redemptor atado á columna,
& cruelmente açoutado. Em ambos se ganha indulgencia plenaria, quando cõ tenção de a
ganharem saõ visitados. Por particular mercê do Senhor os visitey tres vezes, havẽdo
Frades moradores na Terra Santa de algũs annos, sem os terẽ visto, por se não offerecer
occasião para isso. No tempo que em Hierusalem estive, era o Governador Sclavão da
mesma patria do Padre Bonifacio, & tanto amigos, que se nomeavão por parentes, & como
taes se tratavão em muytas cousas: & fallavão ambos na propria lingua Esclavonia, salvo
nos lugares, & negocios publicos, aonde era necessario por authori/dade 23l do officio haver
entre elles Turcimão, & interprete : & por esta causa se offereciaõ mais occasioens para se
entrar em sua casa, & podermos visitar aquelles santos lugares. Abayxando da escada cousa
de cento & vinte passos, pouco mais, ou menos, está a casa de Herodes, della não escrevo,
por naõ ter em si algũa cousa particular, & por esta causa jamais a visitamos, & porq moraõ
nella huns Turcos, que sempre escarnecem, & escandalizaõ os que lá vão; vinte passos mais
adiante do pè da escada, indo para o Ponente está hum balcão, & passadiço grande, que
atravessa da casa do governador para outras casas, que a razão mostra naquelle tempo
deverem ser todas hũas, posto que ao presente, porque nunca vi nellas gente, cuydo que
estaõ deshabitadas. Este passadiço tem duas janellas, huma ao Norte, & outra ao Sul,
lavradas toscamente com seu pilar no meyo da obra rustica, & tem ao pè do pilar de cada
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parte huma pedra grande de letras Gregas, & Latinas: & como estaõ gastadas do tempo, &
altas, hũs affirmão dizerem huma cousa, & outros outra: na da parte do Norte se lè
claramente, Christus Deus, de letras Latinas, & na outra parte diz: Ecce Homo, tambem em
Latim: tolle, tolle: eu sou desta opiniaõ, porque ou por ser assim, ou pelo ouvir dizer a
outros, sempre me parecia, que lia estas palavras. A huma destas janellas se diz, que tirou
Pilatos ao Redemptor do mundo, depois de lhe darem cinco mil quatrocentos & noventa
açoutes em suas Divinas, & delicadissimas carnes, mosstrando-o assim chagado, & ferido
áquelles lobos famintos, & desejosos de sua innocentissima morte, por seu mal delles, &
por bem nosso, pois por ella ficamos herdeyros da vida: ainda que este passadiço he
antiquissimo, como a obra o está mostrando, comtudo está muy inteyro, /
232
como estaõ
muytos outros, ou por fortaleza da obra, & edificios, ou por querer o Senhor Deos, que se
sustentem por memoria de sua sacratissima Payxão; o que eu creyo com muy piedosa
razaõ, por ver com meus olhos quam gastadas estaõ aquellas pedras: & como o arco do
passadiço se sustenta com pedra, & cal.
Saõ da casa de Pilatos ao Calvario mil oytocentos & sessenta passos bem medidos:
no que se pòde considerar o immenso trabalho, que nosso Deos, & Senhor levaria, indo
cuberto das chagas dos açoutes, que lhe deraõ, coroado de espinhos, que lhe trespassavaõ o
casco da cabeça, com huma muy pesada Cruz sobre seus divinos hombros, sem ter gostado
desde a ultima cea do dia atraz cousa algũa, senaõ deshonras, & vituperios.
Bem me lembra haver posto menos espaço da casa de Caifás, & de Pilatos, do que
agora ponho da de Pilatos ao Calvario, sendo pelo contrario: mas pelas voltas das ruas que
andamos fica estoutro caminho mais comprido cento & tantos passos. Mais adiante do
passadiço, pouco espaço, algum tanto ladeyra abayxo, foy edificada em tempo de Christãos
hũa grande Igreja em louvor da Virgem Maria nossa Senhora, intitulada Santa Maria do
Pasmo: por ser o lugar aonde piedosamente se crè, que se encõtráraõ com a vista corporal, a
Rainha dos Ceos, & o Creador do universo seu unico Filho, vindo elle com a Cruz ás
coitas: & como ficava no alto daquela ladeyra, & a Virgem bendita, que ou vinha de Sion,
ou de Bethania estava no bayxo tiverão occasiaõ para se verem: o que não podia ser em
caminho raso, pela multidão da gente, & justiça, que o levava ao Calvario. Com a vista do
innocentissimo cordeyro, & da Mãy gloriosa, os corações de ambos foraõ lastimados, &
176
cahirão em terra, ainda que naõ perderão / 233 os sentidos. O que vendo aquelles malvados,
& carniceyros lobos, naõ movidos de compayxaõ natural, nem de piedade humana, mas
temendo, que no caminho desse a alma, & deyxasse a vida, & não morresse crucificado,
como elles pretendiaõ, & desejavaõ: tomarão neste lugar a Simaõ Cireneo, pay de
Alexandre, & Rufo, como diz o Evangelista S. Marcos: o qual entrava naquella hora pela
porta da Cidade, a que chamão de Damasco, está defronte deste lugar, vindo para o
Calvario á maõ direyta: & com lhe darem, ou prometterem premio pelo trabalho, lhe
mandarão ajudar a levar a Cruz ao Senhor do mundo. Saõ da casa de Pilatos a este lugar
cento e quarenta passos, pouco mais, ou menos. A pedra sobre a qual cahio nossa Senhora
lastimada (ainda que não de todo admirada, ou traspassada, como muytos Doutores com
grande piedade quizeraõ dizer, porque a Virgê Maria, assim como nunca perdeo a Fé,
menos perdeo os sentidos corporaes: antes com hum varonil coraçaõ sofreo, & sentio os
mesmos tormentos, que seu Unigenito Filho) depois que os infieis destruiraõ a Igreja, que
alli foy edificada, foy posta em huma parede da casa de hum Mouro alli junto: & a pedra
tem lavradas humas letras Gregas: & ganha-se alli indulgencia plenaria. Somente com a
vista naquelle lugar, & dizendo a citação. Todos os Christãos da terra, tem grandissima
reverencia áquella pedra.
Junto a este lugar em hum tezo, no tempo que o Padre Bonifacio foy a primeyra
vez Guardiaõ na Terra Santa, padeceo martyrio hum nosso Frade leygo, Italiano, natural da
Cidade de Mantua, o qual algũas vezes tinha pedido licença para ir receber martyrio, sem
lha quererem conceder. Hum dia da Assumpção da Virgem nossa Senhora, vindo os Frades
do Valle de Josaphat / 234 de celebrar sua festa, se deyxou ficar atraz sem advertirem nisso,
& se foy ao Teplo de Salamão, que he a Mesquita mòr dos Turcos, & Mouros, & começou
a pregar a Fé com voz clara, & alta, dizendo, que nosso Senhor Jesu Christo era o
verdadeiro Deus e senhor do universo: & o seu Mafamede estava no inserno, aonde elles
todos haviaõ de ir, se se naõ quizessem converter a nossa Santa Fè, deyxando sua maldita
seyta. Foy logo preso, & atormentado com muy crueis tormentos, mostrando nelles
grandissima constancia, & firmesa. Vendo isto hũa renegada, mulher muy rica, & dos
Mouros, & Turcos naõ menos estimada: a qual tinha duas filhas donzellas muyto fermosas,
177
pedio licença para fallar com elle, dizendo, que havia de fazer quanto pudesse por lhe
salvar a alma.
Sendo-lhe concedida a licença, & dada liberdade para fallar com elle, como
desejava: houve-se aquella maldita renegada com elle de tal maneyra, & usou de tantas
meyguices, & branduras com o pobre Frade, tendo suas filhas muy ornadas junto de si, &
diante delle: que o que naõ puderaõ vencer os crueis tormentos, foy vẽcido dos máos
desejos, & pensamentos, dando-lhe aquella cadella renegada as duas filhas por mulheres, &
dotando-lhe todas suas riquezas. Esteve o dito Frade com ellas quasi vinte dias, & no fim
delles compungido, & arrependido da maldade, que tinha commettido, vinha ao Mosteyro
buscar os Frades: & sendo delles lançado com palavras brandas, & humildes, por de todo o
naõ escandalizarem, temendo que por sua causa naõ viesse algum trabalho a todos, porque
quem tinha commettido taõ grande maldade, negando a seu Senhor Deos: naõ seria muyto
ser causa da perdição, & inquietação de seus Irmãos. Foy tão grande sua dor, vẽdo-se assim
es/quivado
235
dos Frades: q se tornou ao Templo de Salamão, & com grande fervor de
espirito tornou a pregar a Fè de nosso Senhor JESU Christo, confundindo com muytas
razoes a falsidade, & engano da maldita seyta de Mafamede: & disse-lhe que o querer saber
mais de raiz suas maldades, & enganos o movera a fazer o que tinha commettido. Foy outra
vez preso, & com muytos, & mais tormentos cruelmente atormentado: depois dos quaes o
levarão a este lugar que digo, no qual o queymárão vivo. Concorrerão a vello queymar os
Frades, & muytos Christãos da terra, diante dos quaes com muytas lagrimas, & altas vozes
confessou seu peccado, pedindo a todos perdão do máo exemplo, que lhe tinha dado.
Deyxando aqui o caminho que vem da casa de Pilatos, voltando á maõ esquerda ao
longo de huns banhos muy sumptuosos, assim. para homẽs, como para mulheres, ainda que
separados huns dos outros, mais adiante quarenta passos da mesma parte estaõ humas
grandes casas, nas quaes mora hum Turco, & foraõ Igreja de Christãos, & alli nos dizem
que estava a cala do Rico Avarento, do qual diz o Evangelista Saõ Lucas: Qui epulabatur
quotidie splendide, quer dizer, que comia cada dia esplendidamente, & naõ he de
maravilhar haver memoria de tal casa, porque nosso Senhor Jesu Christo, como era
verdadeyro Deos, & conhecia perfeytissimamente todas as cousas visiveis, & invisiveis,
quando contava algũa, dizia o que passava na verdade, & como tinha acontecido: como foy
178
a deste Rico Avarento, comedor, & deshumano para os pobres, & o que hia de Hierusalem
para Hiericò, que cahio nas mãos dos ladrões, & outras semelhantes, & como já outra vez
tenho dito, escrevo-o de vista como tal, & de ouvida / 236 de pessoas dignas de fé, como tal.
Junto a esta casa deyxamos a rua direyta por onde vinhamos, a qual atravessa da porta de
Damasco atè a do Templo, chamada especiosa, de que adiante direy, tomamos outra á mão
direyta, costa arriba caminho do Calvario, a qual se chama a Rua da Amargura, &
começando de subir hum pouco, chegamos ao lugar aonde nosso Redemptor se virou para
as sanctas, & devotas mulheres, que apoz elle hiaõ chorando, & lhe disse: Filhas de
Hierusalem, não queyrais sobre mim chorar, mas choray sobre vós, & sobre vossos filhos,
&c. E o mais, como o escreve o Evangelista S. Lucas, no seu sagrado Evangelho, no que se
poderão considerar duas cousas. A primeyra: que com a cahida de nosso Redemptor no
chão vendo com seus Divinos olhos a gloriosa Virgem nossa Senhara sua Mãy diante de si,
aquellas mulheres levantarão as vozes do pranto, q vinhaõ fazendo, como he comum
costume de mulheres, quando vem, ou ouvem alguma cousa, que as move a compayxaõ, &
piedade; & ás suas vozes acudio o Senhor, dizendo, que naõ chorassem sobre elle. A
segunda consideraçaõ he, que vendo-se algũ tanto aliviado do pezo da pesada Cruz, .que já
Simaõ Cirineo lhe ajudava a levar, teve tẽpo, & lugar para lhe poder fallar, & profetizar
seus snales, & infortunios, que haviaõ de vir a ellas, & a seus descendentes: & mais estando
nosso Redemptor em o lugar mais alto da ladeyra, & ellas ficãdo no bayxo, de maneyra.
que ainda que a gente era muyta, se podiaõ muyto bẽ ver. Subindo mais alguns passos costa
acima, á mão esquerda, está a casa da sancta mulher Veronica, que movida de piedade,
vendo ir o Senhor Deos daquella maneyra, sua divina cara cuberta de sangue, misturado
com hũ frio fuor, tomou o seu muy branco toucado, & lhe alimpou com / 237 elle seu Divino
rosto: & teve por bem a Divina clemencia para consolação dos seus fieis, que ficasse alli
figurada sua Divina face em tres dobras, que a toalha tinha.
Vindo eu hum dia só do Valle de Josaphat de visitar aquelles santos lugares, com
minhas contas na mão, encommendando-me a nosso Senhor, indo por esta Rua da
Amargura, caminho do Calvario, não com pouco contentamento, & alegria espiritual de me
ver ir tão libertado por passos tão santos em terras de infieis, encontrou-se comigo hum
Mouro rustico, que hia com dous jumentos carregados, & tomou me pela barba, que eu
179
trazia bem comprida, por haver mais de hum anno, que a não tinha feyto, porque naquellas
partes naõ he costume barbearem-se os Frades, antes curaõ muyto das barbas, por ser assim
necessario para entre aquella canalha, posto que sempre trazem as coroas abertas, & as
abrem cada quinze dias: & deume o Mouro dous sallavancos, não muyto grandes, dizendome á Cacis, Cacis, o qual eu sofri com paciencia, sem elle entender de mim, que me tomava
do que elle me fazia, porque assim he necessario naquellas partes, aonde sempre os
Christãos levão a peyor: mayormente se os sentem tomar-se do que lhe fazem. Esta foy a
mayor afronta, que recebi naquellas partes Orientaes, tratando com muytos Turcos,
Mouros, & Arabes, havendo muy poucos Christãos, dos que vão de cá, que deyxem de se
queyxar de muytas que recebem de gente vil, & rustica: nem eu tomey aquillo por injuria,
antes levey muyto gosto, & o tive por particular mercè do Senhor por ser em tal rua.
Andando mais adiante por aquella costa, que cada vez he mais ingreme, no ultimo della
está hum bom lanço do muro antigo de pedras /
238
grandissimas, liadas com ferro, &
chumbo entre as casas, & deyxando a rua direyta voltamos á mão esquerda, & damos na
porta judiciaria, pela qual nosso Redemptor sahio da Cidade do Calvario: porque naquelle
tempo, não se abria, senaõ quando haviaõ de justiçar algũa pessoa. Mostra bem esta porta
sua antiguidade, posto que não tem já mais que o arco, & hũa grande columna, & fica quasi
junto da Igreja dos Templarios, & saindo por ella, dando volta sobre a mão direyta,
chegamos ao adro da Igreja do santo sepulchro, de que já fiz memoria a louvor do Senhor
Deos, que para sempre vive, & reyna.
180
CAPITULO XLII.
Do Templo de Salamaõ.
O Templo que Salamaõ Rey de Hierusalem, & filho do Real Profeta David
edificou ao Senhor Deos por ordem sua, & mandamento no Monte Moria, como nos
ensinaõ as Divinas letras, foy arruinado pelos Caldeus: & reedificado em tempo do
Principe, & Sacerdote Zorobabel, por mandado de Cyro Rey de Persia, como lemos em o
primeyro livro de Esdras, & muytas vezes depois saqueado, antes da vinda de nosso
Redemptor ao mundo, como lemos no quarto dos Reys, que Nabuzardam, queymou a casa
do Senhor, & os Caldeus fizeraõ em pedaços as columnas de metal do Templo, & o
segundo do Paralipomenon, & em Hieremias, & no primeyro dos Macabeus, mas sempre
lhe ficou o nome de Templo de Salamão atè o dia de hoje. Ao ultimo foy destruido pelos
Ro/manos
239
, sendo seu Capitão General Tito filho de Vesfpafiano, o qual ficou com o
campo sobre a Cidade, sendo seu pay chamado a Roma para lhe entregarem o Imperio, mas
naõ tã de todo, que deyxasse de ficar grande memoria dos seus alicerces, & fundamentos,
cõ muytos vestigios da sua grandeza. E se naõ fora forçado haverse de comprir o que nosso
Redemptor tinha profetizado da sua destruição, por ventura os Romanos lhe naõ tocarão:
porque segundo conta Josepho, em extremo pesou a Tito, quando soube ser posto fogo ao
Templo, & elle em pessoa acudio, seguindo-o todos seus Capitães, & o mais exercito a ver
se podia dar algum remedio áquelle incendio. Destruido pois pelos Romanos esteve muytos
annos sem se reedificar, atè o tempo do Grão Constantino Emperador, no qual sua mãy
Santa Helena o mandou reedificar nos mesmos alicerces: & fundamentos, em que do
principio fora fundado, mas com obra mais forte, que curiosa: & desta maneyra esteve em
poder de Christãos muytos annos, atè que vindo Hierusalem, & toda Palestina ao poder dos
Turcos por nossos peccados, Homor filho de Cataõ, que foy o terceyro depois de
Mafamede, & seguio de coraçaõ a sua seyta, sendo Rey, & senhor daquellas terras, o
mandou edificar da maneyra, que agora está, no mesmo sitio, & lugar, aonde por EIRey
Salamaõ foy edificado. Seu assento está em a parte mais Oriental daquelle sagrado Monte,
& em a mais bayxa de toda a Cidade, & os q dizem, ou tem para si o contrario vem-lhe de
181
não lerem cõ attençaõ os Doutores, que tomaõ por sua opiniaõ, enganados do q imaginaõ:
porq se com seus proprios olhos vissem o sitio, & lugar, aonde agora está seguiriaõ o que
afirmo estar no mesmo sitio & logar onde do principio esteve, & ser impossivel / 240 poder
estar em outra parte, ficando salvo o presente sitio da Cidade; quem for be corrente na
Sagrada Escritura achará ser o q digo verdade, lendo os Expositores Catholicos, em
especial ao nosso Nicolao de Lira na glosa ordinaria sobre aquelle passo do Deuteronomio,
quando Moyses antes da sua morte, lançado a benção aos Tribus de Ifrael cada hum per si,
chegado a Benjamin, em cujo Tribu vay Hierusalem, disse aquellas palavras: Amantissimus
domini habitabit confidenter in eo, quasi in thalamo tota die morabitur: & inter humeros
illius requiescet. De maneyra que ainda q não ha memoria algũa da fabrica, q Salamaõ
mandou fazer: está porèm o Templo situado no mesmo lugar aonde elle o edificou por
mandado do Senhor: & do modo q agora está, assim como o vi algũas vezes por fora, &
ouvi a pessoas de credito tratar como está por dentro, & o escrevo eu aqui. Está edificado
em hũ campo grande, quadrado, & cercado de hum muro muy alto, que cinge, & guarda a
Cidade da parte Oriental. Tem cada quadra seis centos passos, antes mais que menos, &
sómente a quadra Oriental pudemos medir por estar desoccupada de edificios, & outros
impedimentos, posto tem os Turcos, & Mouros nella suas sepulturas da parte de fora, &
senaõ buscamos tempo conveniente para huma semeIhante curiosidade, se lhe cabe este
nome, querendo medir a passos aquella quadra, algũas ha perigo na passagem, porque os
Mouros saõ muyto ciosos dos Christãos lhe passarem por ellas, pelo que se acertão estar em
cima no muro, naõ deyxaõ de tirar pedradas: & da mesma maneyra está desoccupada a
mayor parte da quadra que está á banda do Norte. Das partes do Ponente, & Sul tem de fora
muytos edificios, & casas incorporadas com o muro do alto. Todo seu circuito saõ / 241 dous
mil & quatrocentos passos, que fazem hũa praça muy fermosa, ficando o Templo quasi no
meyo della. Dentro desta praça, está outra mais pequena, & mais alta, á qual sobem de
todas as partes por escadas de marmore muy curiosas, & está toda lageada de marmores
branquissimos muy finos, & tão lizos, que quando chove naõ se pòde andar sobre elles: o
primeyro quadro não está lageado da parte Oriental; mas fica como campina, & tem algum
arvoredo, mas das outras tres partes, assim he lageado o primeyro, como o segundo. No
meyo do quadro mais alto, ao qual sobem pelas escadas, que tenho dito, está o Templo, a
182
que todos chamaõ de Salamaõ, o qual he hum edificio muyto grande, & alto, de oyto faces.
Do chão atè o meyo he cuberto de taboas grandissimas todas inteyras, bornidas, de
finissimo marmore: do meyo atè a primeira moldura de cima he todo de muy rico
Moysaico, de muytas invenções de ramos, rosas, & boninas: & de redor da primeyra
moldura vay por todo seu circuito hũa coroa muy ricamente lavrada, & o tecto de cima
feyto ao modo de hum curioso tribulo, mas cuberto com chumbo, como a Igreja do Santo
Sepulchro: & no ultimo do curucheo, no lugar aonde os Christãos costumão em seus
edificios pôr a Cruz com a grimpa, tem hu varão de prata muyto grande, & grosso com
humas grandissimas bolas douradas, & muy resplandecentes com huma muyto grande, &
muy fermosa meya lua concava com as pontas para cima, que saõ as insignias imperiais do
Grão Turco. Quanto ao interior deste Templo eu não o vi, porque a nenhum Chistão he
licito entrar nelle, nem em alguma Mesquita de Mouros, sobpena de deyxar a Se Catholica,
ou perder a vida, & muyto menos neste, tido delles em tanta veneraçaõ, quasi como a / 242
casa de Meca. Digo entrar com animo de dar se do que está dentro, mas algumas horas
havendo obras que fazer, entraõ alguns Christãos da terra com cal, pedra, & area, & o que
he necessario: ou a fazer outro serviço, segundo se offerece, como alguns me affirmáraõ
haverem por vezes entrado: & do que soube delles, & de alguns Mouros nossos amigos, &
familiares, & em particular de hũ Genizaro que tinhamos em casa das portas a dentro, que
nos tinha dado o Grão Turco para nossa guarda, & defensa a petição dos senhores
Venesianos, que saõ os mais continuos bemfeytores dos lugares da Terra Santa, o qual
Genizaro era meu particular amigo, fallando todos de hũa maneyra, me affirmáraõ ser o
Templo de dentro feyto ao modo de hũa crasta de Religiosos redõda, & feyta toda de arcos,
& colunas de finissimo marmore branco bornido, & da mesma maneyra he pedra toda a
mais fabrica sera algũa outra pintura, & de coluna a columna enfiadas muytas, & muy ricas
alampadas que ardem de continuo, assim de dia, como de noyte: & me affirmáraõ passare
de seis centas. Tem no meyo do Templo hũa pequena altura a modo de rocha, cercada de
redor com humas grades riquissimas. Desta altura contão os Mouros diversas cousas
fabulosas, das quaes não quero aqui tratar, assim pelas ter por falsas, como por não perder
tempo.
183
Este Templo a que os Mouros não chamão Mesquita mòr, senão Templo de
Salamão, he muy visitado de Mouros, & Turcos de todas as partes do mundo, aonde moraõ:
& se offerecem nelle grandes offertas de Reys, & Principes: que seguem a seyta de
Mafamede, de toda a India Oriental, & de outras partes mais remotas, aonde vivem: os
quaes não podendo visitallo pessoal/mente
243
, mandão de continuo seus riquissimos
presentes: & os peregrinos, assim Mouros, como Turcos, que vão em peregrinaçaõ, &
Romaria á casa de Meca não tem por boa sua romaria, senão vem visitar este Templo, &
outras particularidades de Hierusalem.
Hũa noyte vigilia de hũa festa, estando eu dentro na Casa Santa, vierão ter comigo
tres Mouros, homens de authoridade, no que mostrárão que parece entrarão á tarde, antes da
volta dos Christãos, como algũas vezes faze, por curiosidade, ou por outro respeyto: &
querendome dar a entender, que moravão em terra de Christãos me diziaõ Goa, Portugal,
Cochim, Portugal, Frangi, Frangi, & perguntando eu a quem os entendia, que queria aquillo
dizer, me disse fallando com elles serem daquellas partes da India, sugeytas aos Reys de
Portugal, & que tinhaõ para si, que todos os Christãos de Franquia eraõ Portuguezes: & por
isso diziaõ Frangi, Frangi, querendo dar a entender, que tambem elles o eraõ.
Tornando ao exterior do Templo de Salamaõ, assim ao presente intitulado, se ha
de saber, que em quatro cãtos da praça de q atraz fica dito, estão quatro campas pequenas,
sobre maneyra ricas, & curiosas, feytas todas de finissimo marmore branco bornido,
torreadas todas de redor com muyta lindeza. No tempo que eu lá estava mandou o Grão
Turco, de Constantinopla a Hierusalem hum renegado Venesiano, official grandissimo de
toda a obra de bronze, & cobre, o qual fez hũas portas muy altas, & grandes, todas de
branco para este Templo, com tantas invenções de lavores, & curiosidades de obra Romana,
& de toda a forte, que causavão espanto a quem as via, o qual renegado morando eu em
Belem foy lá ter, & esteve comnosco alguns dias visi/ tando 244 cada hora o santo Presepio
com muytas lagrimas, & nos fez muytas cousas de bronze para a serventia da casa. No
meyo quadro que está lageado de marmores á porta do Ponente estaõ algumas torres altas,
assim para ornato, como para dellas chamarem ao seu salá, que costumão assim de noyte,
como de dia, & daquellas ha muytas na Cidade, que servem para o mesmo, mais altas, mas
naõ taõ curiosas. Tambem estaõ no mesmo quadro lageado algũas campas pequenas de
184
grande curiosidade, que servem sómente de ornato, & entre ellas huma de inestimavel
valor, junto ás casas do Cabdi, a qual me disseraõ, que mandara fazer hum Soldaõ do
Egypto. No mesmo pateo estaõ duas grande cisternas, que no inverno recolhem muyta
agua, de que se os Mouros, & Turcos aproveytaõ, & tem alli pias grandes, & tanques
pequenos, em que se lavão, antes que entrem no templo, ou Mesquita. Em todo o quadro
grande estaõ dez portas, postas por essa ordem, ao Oriente está sómente hũa, que se chama
a Porta Aurea, por esta ao presente naõ se servem, porque o Grão Turco a mandou serrar
com portas de ferro de hũa, & outra parte, ficando a madeyra como engastada, &
escondida; & alem disso lhe mandou fazer huma parede de pedra, & cal da parte de fora atè
mais do meyo, & outra da parte de dentro atè cima, & isto movido da grande reverencia,
que sabia termos os Christãos aquella porta. Era eata Porta Aurea antigamente feyta com
muytas curiosidades, & lindezas de obra de macenaria de diversas madeyras incorruptiveis,
mas a principal era de cedro do monte Libano e ao tempo que a cobriram de ferro lhe
tiraram a principal parte daquellas molduras, & galãtarias, & outros muytos pedaços : parte
das molduras puzerão nas portas de /
245
Damasco, & parte na porta a que os Christãos
chamão de Santo Estevão, como eu com meus proprios olhos vi: o Mouro ou Turco, a
quem coube este cargo, sabendo a reverencia, & devoçaõ, que os Christãos tinhão aquella
Porta Aurea, tirou della muytas molduras, & pedaços, & os deu pela Cidade a Christãos
seus amigos, a huns de graça, a outros por dinheyro, conforme a amisade, & obrigação q
tinha, de q houve boa parte o Guardiaõ de Hierusalem, & os mais Padres da casa, & ainda
posso dizer, q se encheo toda a terra. Antigamente servia esta Porta Aurea ao Templo, & á
Cidade, de maneyra, que os que hiaõ ao Templo podiaõ ir por ella ao Valle de Josaphat alli
propinquo. As portas erão taõ altas, que quasi igualavão com a altura do muro, segundo
agora vemos. Affirma-se, que nosso Redemptor quando pregava ao povo se arrimava a
ellas, & do tocamento de seu divino corpo receberão huma virtude efficaz, & grandissima
para curar os enfermos de gota coral, & lançar demonios, como tambem a tem por parte do
mesmo tocamento divino huma columna muy rica, q do mesmo Templo foy levada a Roma,
& está na Igreja de S. Pedro in Vaticano, aonde estão, ou estiverão as cabeças dos gloriosos
Apostolos S. Pedro, & S. Paulo, & está ornada esta columna com huma rede de ferro muy
curiosa para não poderem della cortar alguma cousa, mas com hum páo para aquilo feyto
185
tocaõ nella contas, & outras cousas para servirem de reliquias. Esta Porta Aurea affirmão
ser aquella, pela qual o Salvador do mundo entrou dia de Ramos, quando as companhias o
sahiraõ a receber, cantando louvores seus, & dizedo, bedito o que vem em nome do Senhor,
Osana in excelsis. Esta porta he aquella. segundo nos contaõ historias antigas, aonde o
Anjo do /
246
Senhor mandou a Joaquim pay da Virgem nossa Senhora, que se visse com
Santa Anna sua mulher, mãy da mesma Virgem. Por ella affirmaõ querer entrar o
Emperador Heraclio com o lenho da Santa Cruz aos hombros, a qual havia tomado a
Cosdroe, que tinha em seu poder havia annos, havendo delle vitoria: & como levando-a
para pòr em seu lugar no Santo Calvario, donde Cosdroe a havia levado, dando saco á
Cidade de Hierusalem, hia vestido de insignias Imperiaes, querendo entrar daquella
maneyra, & com aquelle fausto, lhe foy milagrosamente prohibido, atè que admoestado por
Zacarias Patriarca Hierosolymitano despindose do vaõ, faustofo, & real ornato, &
vestindose de comum & plebeo vestido, lhe foy permitido acabar o caminho, que antes com
manifesto milagre lhe era vedado. Temos os Frades em Hierusalem por muy particular
reliquia qualquer partezinha da santa Porta Aurea, quando a podemos haver, guardamola
com muyta estima: & quanto ao lançar os Demonios, eu affirmo ser cousa muy provada:
não sómente por muytas cousas, que ouvi acerca disto a pessoas de credito, mas tambem
pelo que com meus proprios olhos vi. Todas as vezes, que visitamos aquella Porta Aurea
com intençaõ de ser de nós visitada, ainda que de longe pondo os olhos nella, & rezando a
costumada estaçaõ, ganhamos indulgencia plenaria.
No canto angular, q ajunta o muro Oriental, como meridiano, em cima no alto de
todo nos mostraõ aquella pedra angular, que os edificadores do Templo tantas vezes
repudiarão, & lançarão de si, a qual depois puzeraõ por cabeça de todo o edificio, como diz
o Profeta David: porque ainda que aquelle dito que nosso Redemptor trouxe do Psalmista,
como o escreve o Evan/gelista
247
S. Matheus, se entendia mysticamente de sua Divina
Pessoa, por elle ser a verdadeyra pedra angular, sobre a qual teve por bem fundar a sua
sagrada, & amada Igreja, tão repudiada, & reprovada pelos Fariseos, & toda a sua
Synagoga, naquelle tempo, que o Senhor lhe mostrava com sua doutrina, & tantos milagres
o caminho da salvação, com tudo a cousa passou assim na verdade, que naõ acharão os
edificadores lugar algũ para commodamente a poderem assentar, & por aquella pedra delles
186
engeytada como inutil, senão na cabeça, & lugar mais principal de todo o edificio, &
fabrica. A parte do Sul tem no mesmo muro outra porta, que tambem servia ao Templo, & á
Cidade: ao presente não se servem della. Em toda aquella parte estão muy grandes, &
curiosos edificios, segundo vemos por de fora, nos quaes morão Turcos com suas familias :
& affirmão os Christãos da terra, que forão Mosteyro Real de Senhoras Religiosas,
edificado no lugar, aonde antigamente se criavão as virgens offerecidas, & dedicadas ao
serviço do Templo, & foy criada a Virgem de todas as mais, St Rainha dos Ceos, nossa
Senhora. De fora vemos o corpo da Igreja inteyrissimo, ornado por cima de muytos brincos,
& curiosidades, & tambem se vem claustras, & varandas altas, em especial do Monte
Olivete, que senhorea com sua vista a principal parte da Cidade, & do alto de Sion, que
cahe para aquella parte. Alli tambem se ganha indulgencia plenaria, como na Porta Aurea.
Ao ponente tem cinco portas: a principal que está no meyo das quatro he aquella, à
qual o Evangelista Saõ Lucas chama Speciosa no livro dos Actos Apostolicos, o qual nome
lhe ficou do tempo delRey Salamaõ, & de Christãos, & Mouros se chama assim atè o
pre/sente
248
tempo: & por sua grande fermofura lhe foy posto aquelle nome: Podem os
Christãos ir a ella, & entrar dentro atè o pateo lageado, & a ver todas aquellas capellas de
redor do Teplo por de fora, mas os nossos Frades nunca lá entraõ. A esta porta estava
pedindo o tolheito, que o glorioso Apostolo S. Pedro parou, indo orar ao Templo com S.
Joaõ, & lhe disse: Olha para nós, eu naõ tenho ouro, nem prata, que te dar, mas darey o que
tenho. Em nome de Jesu Christo de Nazareth te levanta, & anda. Antes que cheguemos a
esta porta está hũa rua muyto grande, & muyto larga, toda cuberta de telhado de duas
aguas, a qual vai entestar com a porta. Naõ tem esta rua casa algũa, senaõ as paredes taes,
alli acodem das aldeãs, & lugares visinhos á Cidade, as mulheres, assim Christãas, como
Mouras a vender paõ, leyte, ovos, galinhas, & ortaliça, & mantimentos desta qualidade,
como em huma praça publica, & estaõ todas sentadas com muyta honestidade, & concerto,
seus rostos cubertos, & silencio: de maneyra, que não lhe cabe bem o nome de regateyras,
como as nossas: tem esta porta junto de si outra mais pequena, & defronte della dentro no
pateo do Templo está hũa cappella pequena de abobeda de meya laranja, muyto curiosa, &
cosida em ouro, como dizem cercada de redor de columnas de marmore bornido muyto
curiosas, & douradas, & de columna a columna, enfiadas muytas alampadas, & alli junto
187
humas pias grandes do mesmo marmore curiosamente lavradas, & cheyas de agua para se
lavarem os que entraõ no Templo a fazer oraçaõ. Os Christãos que com devoçaõ visitaõ
esta porta especiosa, ganhão indulgencia plenaria. Das outras quatro portas naõ trato,
porque estaõ metidas entre muytos edificios, & casas, como saõ as do Governador, de que /
249
já tratey, & as do Cabdi, que he justiça mòr da Cidade, & seu termo. Tambem tem alli
seus aposentos o Cacis mòr do Templo, & hum seu irmão, que he o supremo pregador
delles, & outros Cacizes mais principaes, & antigos, que iaõ como dignidades cá entre nós:
& todos tem muy grossa renda, cada hum conforme a sua dignidade, & officio. E como
estas casas todas estaõ incorporadas com o muro, ficaõ-se as janellas dentro do pateo do
Templo: & algumas dellas sahidas muyto fora sustentadas em arcos sobre columnas,
ficando embayxo como alpendres, mas de tal modo, que as quatro portas estaõ livres para
poderem a toda a hora entrar, & sair por ellas. Quando alguma hora imos a casa do
Samjaco, que assim chamão ao Governador, ou do Cabdi, ou de algũs daquelles Santões, &
Cacizes do Templo: das suas janellas vemos meudamente as particularidades do pateo,
tirando o interior do Teplo, que naõ enxergamos bem, mais q vermos aquella multidão de
lampadas estar ardendo, & elles mesmos nos dizem que vejamos, & nos mostraõ todas as
cousas, dizendo-nos seus nomes, & particularidades. O pregador que no nosso tempo
pregava naquella Mesquita, a maldita seita do maldito Mafamede, era muyto venerado de
todos, & assim tem hũa grosissima renda, & naõ sahe fora de casa, senão com grande
fausto: & elle, & os mais Cacizes, & Santões de Belial, tem alli suas mulheres, & familia,
& saõ sobre maneyra dados á luxuria, sugeytos ao peccado nefando atè com os brutos.
Estãdo eu morador no nosso Convento de Hierusalem foraõ lá os peregrinos das nossas
partes Occidentaes, como vaõ todos os annos poucos, ou muytos, & andando pela Cidade
visitando os Santuários, & eu em companhia delles, os quaes levavaõ insignias da Terra /
250
Santa, q saõ hũas cinco Cruzes, a saber hũa grande, & quatro pequenas nas capas, &
sombreyros, encõtrounos em hũa rua o Cacis mayor, o qual vinha em hum muy fermoso
cavallo bem acompanhado, & vendo aos peregrinos com as cruzes vermelhas, lhe mandou,
q logo as tirassem: & se queriaõ andar pela Cidade, andassem sem ellas, & não de outra
maneyra: querendo-se aquelle Santarrão mostrar naquillo muyto zeloso da honra do seu
Mafamede. Como alli nos não valia reposta, fomonos caminho de casa: & demos conta ao
188
Padre Bonifacio do q passava, o qual como tinha muyta experiencia daquella canalha, não
mostrou turbação alguma, sómente nos disse, esse cão quer comer. Ao dia seguinte
determinou visitallo, para lhe dizer, ser antigo costume, os nossos peregrinos andar pela
Cidade daquella maneyra, por mostrarem, que erão Christãos, que por isso pagavão seus
tributos, & tambem pelo haver mister em hum certo negocio, que tocava a nossa quietação,
& paz, por hũa calumnia, que malfins tinhão tecido. E chamando-me com o seu ordinario
companheyro, me entregou algũs brincos de Venesa q a este fim & para semelhantes
successos levara, & ao Turcimaõ cinco covados de panno roxo fino: & com o Genizaro,
que tinhamos em casa para nossa guarda nos fomos a casa daquelle Cacis mayor. O qual
em nos vendo, & que naõ hiamos com as mãos vasias, nos recebeo muy alegremente, &
com muyto Casalhado. Era o Padre Bonifacio homem de grande estatura, & muy veneravel
presença, & acatamento: os olhos fermosos, & a barba muy comprida, & quasi toda branca:
hũa conversação muy affavel, ainda que temeroso, quando mostrava gravidade, pelo que
era de quasi todos amado & de muytos era temido. Com o gasalhado, que o Cacis nos fazia
nos /
251
chegamos a huma janella, que cahia sobre o pateo do Templo, & elle mesmo nos
mostrava quanto nelle havia, & começou-nos a tratar de muytas cousas, que elle bem mal
entendia, querendo-se mostrar letrado, & especulativo, fallando no juízo final, & do Paraiso
que os Mouros haviaõ de ter na outra vida, se nesta guardavaõ bem a seyta de Mafamede,
& tratou mil blasfemias, & abominações, que por reverencia dos que isto lerem deyxo de
escrever, & convidavanos com reliquias, que vieraõ da casa de Meca do seu Santarraõ.
Vendo que o Padre Bonifacio, se agastava com tanta blasfemia, mudou a pratica em seus
louvores, abonando-se dos seus vicios, & torpezas, dizendo que dava muytas graças a Deos,
& a Mafamede, porque sentia em si forças, & disposiçaõ para alcançar ser nesta vida
bemaventurado, por haver já tido setenta & seis mulheres, & esperava de comprir o numero
de noventa & nove, & por aqui se deyxou dizer tantas sugidades, & desaventuras em seus
louvores, & do seu Mafamede, que de nojo as naõ escrevo aqui, porque entendo fazer
offensa a nosso Senhor, escrevendo taes torpezas, aonde vaõ escritas cousas taõ santas, &
devotas. Lastima se deve ter de gente taõ perdida, & desavergonhada no peccar, tendo elles
algum conhecimento do Senhor Deos, & entenderem haver outra vida, & immortalidade
d’alma, cousa que se de muytos Filosofos, & sabios do mundo fora entendida, se teriaõ por
189
bemaventurados, empregando as virtudes moraes, de que se presavaõ, em serviço de seu
Creador, para com ellas alcançarem a gloria. Ao ultimo, como ficava com o papo feito,
outorgou quanto lhe pedirão, & offereceo-se a fazer muyto mais. Escrevi aqui cousas taõ
abominaveis, ainda que as mais torpes, & feas, pelo acima dito, deyxo de escrever, para que
/ 252 se veja com quantas abominaçoens aquelles desaventurados Cacizes vivem, inventadas
por sua sensualidade, & sensual interesse. A’ banda do Norte estaõ tres portas, duas
metidas entre casas, & edificios, como tenho dito, das outras, ficando livres para por ellas
poderem entrar, & sair: a terceyra, que he a mais principal, fica fora dos edificios, a hum
canto, junto a outra porta, chamada antigamente a porta do gado, porque por ella metiaõ o
que haviaõ de sacrificar no Templo, a qual porta ao presente he chamada dos Christãos: a
porta de Santo Estevão, porque saindo por ella, não muyto longe está o lugar, aonde aquelle
glorioso Protomartyr foy martyrisado. Junto a esta porta que digo, a qual he a do Templo,
como as outras nove está a probatica Piscina, da qual o glorioso S. Joaõ Evãgelista, diz, que
tinha cinco portaes. Esta Piscina permanece atè o dia de hoje, a qual he feyta como huma
funda cisterna descuberta, ao longo do muro do pateo da parte de fora, no qual muro se vè o
lugar dos porticos tapados com pedra, & cal, não tem ao presente agua, salvo a que recolhe
no inverno, que he de muy pouca dura: mas pela muyta humidade nascem dentro canas, &
caniços, & outras plantas, & hervas agrestes. Aqui nesta Piscina ganhamos sete annos, &
sete quarentenas de perdão, quando com esta tenção a visitamos.
Vindo eu hum dia só do nosso Mosteyro de S. Salvador visitando as citações, que
atraz disse, da Rua d’Amargura, para ir ao Monte Olivete: por ser pela menhãa, & eu andar
muy maltratado do baço, de hũa efermidade grande que tivèra, & para se me desfazer hia as
menhãas subir aquelle glorioso monte: chegando a esta Piscina para ganhar a indulgencia:
vendo-me estar já junto della hum Mouro velho, que naõ sabia / 253 parte daquelle mysterio,
cuydando que eu hia ao Templo, começou de me bradar, perguntandome em Portuguez
amouriscado, se me hia fazer Mouro, ou se me enfadava de viver neste mundo. Fiquey eu
com aquella pergunta algum tanto turbado, & olhando para elle, lhe disse, eborra, eborra,
que na lingua Mourisca daquella terra quer dizer, espera, espera. E chegando-me á borda da
Piscina rezey a costumada estaçaõ, com que ganhamos as indulgencias pelos Summos
Pontifices Romanos concedidas aquelles lugares; & acabando de rezar fuy ter com o
190
Mouro, que á porta da Cidade me estava aguardando. Saudamo nos hum ao outro com paz,
& perguntou-me, que fora alli fazer. Declarey-lhe eu o mysterio, que alli havia acontecido,
& o milagre que nosso Redemptor alli fizera, ao que mostrou bom rostro, callando. Depois
perguntou-me para onde hia, disse-lhe, que ao Monte Olivete, respondeome que folgava,
por irmos em companhia, & como me fallava claro Portuguez amouriscado, respondialhe
eu em Portuguez, claro, parecendo-me que não entenderia o italiano que he a lingua que
naquelas partes mais usamos. Perguntou-me se era em portuguez respondilhe q Venesiano;
o q fiz, porque como os Venesianos tem paz com o Grão Turco, os Frades que na Terra
Santa moraõ, todos se nomeaõ por Venesianos, por evitar perigos, & enfadamentos, pelo q
naõ convem ao Portuguez dizer, q he Portuguez, nem ao Castelhano, dizer q he Hespanhol,
& assim das outras nações. Disse-me o Mouro, pois porq sendo tu Venesiano fallas
Portuguez? Respondi-lhe, que eu fora mercador, & andara em Portugal, & em outras partes
de Hespanha negoceando, & a este fim aprendendo linguas: & porque elle me fallara
Portuguez, lhe respondera na mesma lingua, & disse-lhe mais, & tu sendo
254
Mouro,
porque fallas Portuguez? Respondeome, q elle era natural deAzamor, & sendo mancebo
estivera em Portugal sete annos cativo, do tempo que Dom Jayme Duque de Bargança lhe
tomara a sua Cidade, & que seu cativeyro fora no Algarve em hũa Cidade, que se chamava
Tavira, em poder de hũ fidalgo, q se chamava D. Antonio de Noronha. Louveylhe eu muyto
Azamor, & os seus saveis, & fartura, quasi dãdolhe a entender, q havia estado nelle, pelo
que a Portuguezes tinha ouvido, & perguntey-lhe, qual fora em Portugal seu cativeyro.
Estimou muyto o Mouro louvar-lhe eu sua patria, & quizme pagar na mesma moeda,
dizendo muytas abundancias de Portugal, que naquelle tempo não duvido haver, porq o
Mouro era já muyto velho, & o seu cativeyro fora sendo elle mancebo, & que quaãto a estar
em Portugal cativo, prouvèra a Deos, & a Mafamede, q atè aquelle tempo o estivera, porque
por mais ditoso se tivèra ser cativo em Portugal, que livre naquella terra. Nenhum grozador,
ou calumniador cuyde escrever eu isto, por compor historia, porque diante meu Deos, &
Senhor, fallo no que digo verdade, sem algũa cõpostura. Perguntey eu ao Mouro, q razão
me dava, para querer antes ser cativo em Portugal, que livre naquella terra, sendo a
liberdade de todos tão desejada, & em particular dos Mouros, que saõ cativos dos
Christãos, & de Christãos, que saõ cativos de Mouros. Isso he verdade, respondeo o Mouro,
191
mas meu senhor além de ser muyto nobre, como eu era cativo de resgate, tratava-me muyto
bem, nem tinha com elle mais trabalho, que acompanhallo, quando hia fóra de casa, & aqui
nesta terra vivo miseravelmente entre gente, que nem a Deos, ne aos homens tratão
verdade. E com estas praticas chegamos atè o Valle de Josaphat. Tanto /
255
que entramos
nelle, o Mouro começou de encaminhar para o sepulchro da Virgem N. Senhora, &
chegando á porta da igreja beijou a terra, tirando primeyro os çapatos dos pès, & com
lagrimas, & mostras de muyta devoçaõ entrou nella descalço, & foy beyjando todos os
degráos atè baixo, q saõ quarenta & seis. Chegando á Cappella aonde está a sagrada
sepultura da Virgem N. S. cõ muytas lagrimas, & soluços a beijou muytas vezes, o que
causou em mim grande admiração, vendo em hum Mouro tanto fervor, & vendome com
tanta tibieza, q nenhũa cousa me moviaõ as lagrimas, q elle derramava, ainda q com muyta
confiança em meu Deos, que mais aceyta lhe seria minha frieza, q o fervor do Mouro.
Saídos fóra daquella bendita cappella, & Igreja, entrey eu a fazer oraçaõ no lugar aonde
nosso Senhor orou no Horto ao Padre a noyte que o prenderão, que está alli jũto, esperoume
o Mouro, sem perguntar o que hia alli fazer, nem porque os Christãos visitavaõ aquelle
lugar, & feyta minha oraçaõ, começamos a caminhar, & a subir ao Monte Olivete, tratando
pelo caminho das cousas daquella terra: & na pratica me disse, q Hierusalem, & sua
comarca era hum vaso de ouro cheyo de serpentes, pergunteylhe a causa, respondeo-me q a
terra era santissima, & digna de ser estimada, mas q a gente, que nella ao presente morava
era a mais pessima da vida, & que se podia com muyta razão chamar, vaso de ouro
Hierusalem, & seu terrno, por ser patria de tantos Profetas, Reys Santos, & homens
santificados, mas a gente eraõ Demonios, & serpentes infernais, & tinha muyta razão
aquelle Mouro em dizer aquillo, porque tirando alguns poucos Christãos Armenios, &
Indianos, & Caloiros Gregos, toda a mais gente, que nella mora, he como indomita, & de
con/diçao
256
perversa, os Christãos todos saõ scismaticos, & inimigos da Igreja Romana,
cheyos de mil erros, & opiniões falsas: os Judeos como lhe faltão tratos occupaõ-se em
malicias, os Turcos vivem como gente sem ley, & sem Rey, porque absolutamente se
querem fazer senhores de quanto vem, & cobiçaõ, & sem terdes para quem appellar, por
estar a Corte muy longe: & os Mouros como saõ avexados dos Turcos, já mais se acha entre
elles verdade, nem fidelidade. Com a muyta cortesia, com que aquelle Mouro me fallava, &
192
a muyta familiaridade, que me mostrava sempre com a vossa mercê na bocca, ao modo
Portuguez, me movia a perguntar o que da sua ley sentia, & quanto tinhaõ os Mouros, que
duraria; ao segundo me respondeo, dizendo, que sabido tinhão os Mouros, & o diziaõ os
seus letrados, que a sua ley estava já no cabo, & que naõ poderia durar quarenta annos: mas
que dalli adiante me naõ sabia dizer, nem elles se sabiaõ determinar em que ley haviaõ de
viver. Com esta pratica chegamos ao alto do Monte Olivete, & entramos ambos na Igreja de
santa Ascensaõ, na qual está em hũa pedra hũa pegada, que nosso Redemptor alli deyxou
quando subio aos Ceos, a qual o Mouro se lhe eu dizer algũa cousa com muyta reverencia
beyjou, & elle mesmo se anticipou a me contar o mysterio, como q eu o naõ tivera sabido.
Dalli nos appartamos, dizendo-me elle, que hia a hum olival, & que logo havia de tornar,
rogandome muyto que o quizesse esperar, ao que me escusei dizendo-lhe que tinha em casa
muito que fazer e que o naõ podia esperar. Tive eu muyto gosto da boa pratica, &
conversaçaõ daquelle Mouro, & do modo que teve em me fazer muytos comprimentos, &
offerecimentos de sua pessoa, & casa á despedida, & pelo que dey muytas /
meu Senhor Deos, que para sempre vive, & reyna.
257
graças a
193
CAPITULO XLIII.
De algũas outras particularidades, que ha na Santa Cidade.
MUytas cousas estaõ dentro na santa Cidade de Hierusalem, que para as haver de
escrever todas, seria necessario fazer hum grande volume, & tirarme do intento, que tenho
neste meu Itinerario, & memorial de sómente tratar o que vi, & passey. Porèm por
satisfazer a meu gosto, com a brevidadade possivel, naõ quero deixar de tocar em algũas
particularidades dignas de memoria. Junto á Probatica Piscina, de que tratey no Capitulo
passado, defronte della para a parte do Norte, no caminho que vay da casa de Pilatos, hum
tiro de pedra antes que cheguem á porta de Santo Estevaõ está a casa aonde morarão o
Santo Joaquim, & a gloriosa Santa Anna, progenitores da Virgem Maria nossa Senhora,
Mãy de graça, & de misericordia; a qual nasceo na mesma casa. Em tempo que a terra
Santa era de Christãos, foy alli edificado hum muy sumptuoso Mosteyro de senhoras
Religiosas : no qual muytas pessoas illustres, virgẽs, donas, & mulheres santas de Roma, &
de outras partas se meterão a servir ao Senhor com grande clausura, & observancia: &
segundo achamos escrito no memorial da Terra Santa, algumas dellas florecérão com
muytos milagres pela santidade de sua vida. Este mosteyro ao presente no interior está em
muyta parte inteiro, & tanto, que parece mais moderno, que antigo, tem muy curiosas
claus/tras
258
, com larangeyras, & alegretes, & huma Igreja muy bem acabada, com seu
coro alto, & sua gelosia pintada & dourada. Moraõ dentro algũs santões com suas mulheres,
& filhos, os quaes tem, assim a Igreja, & coro, como o mais, com muyta limpesa, como se
estivera em poder de Christãos. No interior do Mosteyro junto a hũa claustra, está huma
cappella subterranea, ou quasi, por todas as partes altos e bayxos, toda pintada de imagens
de Santos, & historias sagradas, ainda que com o tempo, & humidade do lugar estaõ muyto
damnificadas, na qual cappella affirmão que nasceo a Virgem nossa Senhora. Abayxamos a
ella com trabalho, porque não tem escada, mas pondo hũa taboa a modo de prancha; no
qual lugar os que com devoçaõ entraõ, ganhão indulgencia plenaria. Livremente nos deixaõ
os Cacizes entrar naquelle lugar, assim na Igreja, como no coro, por naõ estar tido por
Mesquita, mas tendo sempre o olho prompto ao interesse. Aos peregrinos, que vaõ de
194
Frãquia, tambẽ soia ser livre, mas de algũs annos a esta parte não os querem deyxar entrar,
sem q paguem hum madim por pessoa, que monta tanto como doze reis da nossa moeda.
Dentro no Mosteyro estaõ alguns casaes de Christãos Surianos, q fazem ao modo Caldeu,
cõ cuja conversaçaõ os Mouros, q alli moraõ, se nos mostraõ mais domesticos. No tempo
que a Terra Santa era de Christãos, as Religiosas, que moravaõ neste Mosteyro, tinhaõ hũa
mina muy grande, & espaçosa, pela qual sem algũ trabalho podiaõ ir ao Sepulchro de nossa
Senhora, que está no Valle de Josaphat, como tenho dito.
Saindo deste Mosteyro, & caminhado mais adiante trinta passos, da mesma parte
na rua publica está hum cano de agua, que vem da fonte chamada, Fons sign/tus
259
, da
qual Salamaõ no livro dos Cantares trata. Tambem ha na Cidade muytos Mosteyros de
pessoas Religiosas, assim de homens, como de mulheres de diversas nações, em especial de
Gregos, & Gorgios, entre os quaes hum de mulheres Gregas junto com o nosso de Saõ
Salvador, em tanto que muytas vezes ouvimos, o que ellas em sua casa fallaõ. E ainda que
com ellas naõ temos algum comercio, temolas por de muy santa vida, alheas de toda a
conversaçaõ humana, nem ainda com os seus Caloiros: mas nas grandes solemnidades
sahem fora a visitar os Santuários em comunidade. Seu costume he darem todos os dias
incenso pela menhãa, & tarde em muyta abundancia, o q sempre sentimos em nossa casa,
não comem perpetuamente carne, sómente entre Pascoa, & Pascoa comem ovos, & cousas
de leyte: seu comer saõ legumes, & hervas com hum certo azeyte de hũa planta, que ha
naquella terra, claro, & fermoso á vista, mas no cheyro, & sabor pessimo, do qual usa a
gente pobre da terra. Os Judeos tambem tem huma sinagoga antiga na Cidade, a mais
melenconizada, & triste, que vi em todo Levante: mas nas suas festas a ornão de panos
ricos de ouro, & seda, de que estão muy providos na Terra Santa, porque para os terem
daquella maneyra, contribuem os Judeos, não sómente de Portugal, & Castella, mas de
todas as partes do mundo. Em huma festa principal sua, que elles celebraõ no mez de
Setembro, a vi da maneyra, que digo, inestandome a entrar nella hum Cacis do Monte de
Sion, muyto amigo dos nossos Frades, o qual entrou comigo: mas primeyro se descalçou,
deyxando á porta os çapatos. Pergunteylhe porque o fazia: respondeome, que aquella casa
era dedicada a Deos, & era i costume dos Mouros, sempre nos taes lugares entrarem /
260
descalços por reverencia, quer fossem de Mouros, quer de Christãos, ou Judeos. Moraõ na
195
santa Cidade poucos Judeos, pela mayor parte pobres, porque na terra não ha tratos: &
ainda que digo poucos, sendo mais de seis centos, sómente dos nascidos em Portugal, no
meu tempo havia mais de trinta, entre os quaes hum de Evora, por nome Barbosa, grande
Medico: o qual dei pois de se apartar da Se Catholica, em tempo de Paulo IV. se tornou
depois a ella, sometendo-se á penitencia publica, que lhe foi dada, mas depois tornando
como caõ ao vomito, se embarcou em Ancona, & se passou a Turquia. Tem por costume
muytos Judeos dos que vivem naquellas partes Orientaes, fazer o possivel por ajũtar
dinheyro, com que se possaõ sustentar na Terra Santa, & junto, se vão morar a Hierusalem,
& alli se Aposentão, & moraõ todo o tempo, que lhe dura a provisaõ com grande
ociosidade, esperando ao Messias, que ha de vir no dia de Juizo a julgar os vivos, & os
mortos. Alli tive hum dia hũa contenda com hum Judeo Castelhano, encõtrandonos em hũa
rua: & segundo elle dizia fora Cathedratico de leys em Salamanca, & foy a cousa sobre me
querer negar, que naõ dissera o Evangelista S. Lucas nos Actos dos Apostolos, que Christo
nosso Redemptor dissera quando subio aos Ceos, sendo pelos Discipulos preguntado, se
havia naquelle tempo de restituir o Reyno de Israel: naõ vos he dado saber o tempo, — a
saber — mas que dissera: naõ he dado a mim nem a vós, dizendo o Judeo, que alli mostrava
Christo nosso Redemptor naõ ser Deos, pois naõ tinha poder para saber o porvir, sendo-lhe
aquelle secreto escondido, no que o perro falsava a Escritura Sagrada, estando cõ elle hum
Judeo Portuguez velho, que em algũa maneyra o favorecia: & de palavras defcon/certadas
261
, quasi houveramos de vir ás porradas, ao que começárão de acudir alguns Mouros, pelo
que foy necessario ao Judeo ler mais agudo dos pès, acolhendo-se, do que mostrou selo do
entendimento: & ao não ser, sem falta os Mouros lhe houveraõ de dar o pago de seu
atrevimento: porque sofrem muyto mal ouvir algũa palavra injuriosa contra nosso Senhor
Jesu Christo, porque ainda que naõ confessaõ ser elle Deos: affirmaõ ler filho de Deos, &
bafo de Deos, & concebido pelo Espirito Santo: & nascido de Maria sempre Virgem, o que
muytas vezes a muytos delles ouvi affirmar. Fora o Templo de Salamaõ, Mesquita mayor
dos Mouros, ha na Santa Cidade outras Mesquitas menores, as quaes todas foraõ Igrejas de
Christãos, & assim as tem agora com suas torres, & campanarios sem finos, & tudo muy
renovado. Moraõ os Cacizes junto dellas com suas mulheres, & familias, & saõ obrigados a
cinco vezes entre noyte, & dia se subirem nas torres, a saber, a prima noyte, á meya noyte,
196
de madrugada, ao meyo dia, a horas de vespera, & alli pondo o dedo polegar da mão direyta
na orelha, com grandes brados admoestaõ ao povo, que louve a Deos, & ao maldito
fancarrao de Mafamede, & andão nas horas, & tempo do bradar tão certos, que nos servem
de relogio, em especial á meya noyte. Todos estes Cacizes tem seu ordenado, como cá os
Sanchristães das nossas Igrejas, & tem sua paga dos enterramentos, & de acompanharem os
defuntos. E para que as almas dos taes vão mais depressa ao infserno, a seu modo lhe fazem
seus officios, como eu algũas horas vi. Em alguas festas suas pelo anno enramaõ, &
embandeyraõ as torres por de fora, & das primeyras vesperas atè todo o outro dia tem
postas nas Mesquitas muytas luminarias, & tudo aquillo com que pòdem mo/ver 262 ao povo
tomárão dos Christãos, por se querem mostrar não serem taõ barbaros, como saõ.
Amofinaõ-se muyto os mercadores Latinos, que tratão naquellas partes de Turquia
negoceando sua vida, com o bradar destes Cacizes de noyte, & de madrugada: aonde no
tempo que lá estavamos aconteceo em Allepo, que hum mercador Florentino morava junto
a huma torre destas, da qual hum Cacis, que tinha muyto grande voz, tinha cuydado, &
recebia o mercador muyta pena acordallo o Mouro com seus brados, no tempo em que elle
tinha mais necessidade de dormir, a saber, á meya noyte, & de madrugada, pelo que
determinou vingarse delle com o matar, & para isto melhor o fazer a seu salvo, entrou em
conversação com elle, & fez-se muyto seu amigo, veyo a cousa a tanto, que se
communicavaõ como irmãos, comendo, & bebendo juntos, & entrando hum na casa do
outro sem algum receyo. Vendo o mercador Florentino, que era tempo para fazer o que
determinava a seu salvo, hum dia já quasi noyte, não estando o Mouro em casa se subio á
torre, por tomar ar, como outras vezes costumava, & levou comsigo hum pedaço de lacaõ
de porco, & hũa cabaça de vinho, & o melhor que pode se escondeo, naõ havendo quem
attentasse por elle pelo costume que tinha das entradas, & sahidas. A’ meya noyte levantouse o Mouro da cama, & foy-se á torre, & em começando de bradar, foy o mercador por
detras, & tomando-o pelas pernas deu cõ elle da torre abayxo, o qual Mouro logo rebentou,
& a poz elle logo lançou o presunto, & o vinho, & o melhor que pode se sahio sem ser de
alguem sentido. Ao dia seguinte em amanhecendo, como o virão daquella maneyra morto,
acudirão muytos Mouros, & Cacizes, & vendo junto delle paõ, & carne de porco, & a
cabaça do vinho que/ brada,
263
cõ grandes brados o maldiziaõ, & blasfemavão, dizendo, q
197
por naõ haver guardado a sua ley, comendo carne de porco, & bebendo vinho, lhe
acontecera morrer daquella maneyra. Tem o Turco na santa Cidade hum hospital de muyta
renda, assim para curar enfermos, como para remediar pobres, porque o Grão Turco he muy
inclinado a obras pias. Tem outro hospital para gatos, ao qual tambem acodem a buscar seu
remedio, & deste tem cuydado hum Mouro com seu premio, & em amanhecendo, se vay
pòr á porta do açougue cõ hũa bacia na maõ, a pedir para os gatos por amor de Deos: & naõ
sómente em Hierusalem, mas em quasi as mais principaes Cidades de toda a Turquia ha
hospitaes para gatos. He a Cidade muy abastada de mantimentos, paõ, carnes, muytas, &
muy gordas, & baratas : azeyte, todo genero de legumes, & muytas tamaras, & vivem nella
muytos estrangeiros pela santidade do lugar: & com toda esta fartura, os mais dos annos ha
nella peste. Sohia ser que não havia peste em Hierusalem, senão de sete em sete anos, isto
ordinariamente, & quando nos queriamos em Veneza embarcar, me diziaõ, que hia a muito
bom tempo, por ser passado o anno atras: mas o primeyro, & segundo verão, q lá estive a
houve. He tão comum a peste entre elles, q se não guardão hũs dos outros, antes o serido
facilmente se mostra ao saõ. Affirmome ouvir dizer a alguns Christãos da terra, que virão
em Hierusalem peste tão pestifera, que os muros da Cidade se viaõ entre verdes &
amarellos. A causa de ser alli peste taõ continua, he o máo cheyro, que vem do mar de
Sodoma, quando no verão continua o Levante, porque passa por aquelle maldito mar, &
causa a peste, & outras enfermidades, & tambem hum natural fedor, & máo cheyro, que /
264
sahe dos corpos daquella canalha, assim dos Mouros, como dos Christãos naturaes
daquella terra, que naõ ha quem os espere, em especial no veraõ. A nossa naçaõ dos
Latinos, a quem elles chamaõ Francos, he a mais bem tratada, & estimada de todos, & tida
em muyta reputação, assim dos Turcos, como dos Mouros, & isto além de ser mercê
particular de nosso Senhor, tambem o causa sermos de terras livres, & não sugeytas ao
Grão Turco. Os Officios Divinos, ainda que por evitar negocios quando se fazem, temos as
portas serradas a bom recado, não deyxamos por isso de os dizer cantados com vozes altas
com toda a solemnidade, & liberdade, sem haver quem nos impida, nem dê molestia algũa.
Antes offerecendo-se fazerem-se em publico, como no Santo Sepulchro, ou no de nossa
Senhora, no Valle de Josaphat, ou em Belem no Santo Presepio, os mesmos Turcos nos taes
198
lugares estaõ muytas vezes a elles com muyta attençaõ, & reverencia, o que mostraõ com
sinaes exteriores, como que folgaõ de os ver fazer, pelo que o Senhor seja sempre louvado.
199
CAPITULO XLIV.
Do Valle de Josaphat, aonde se tem havermos de ser todos julgados.
TEndo tratado de algumas particularidades de dentro da Cidade, quero tratar das
que estão do muro a fora mais chegadas; & primeyramete do Valle de Josaphat, aonde
dizem que ha de ser o ultimo juizo. Saindo pela porta, que ao presente chamamos de Santo
Estevaõ, pelo haverem os Judeos /
265
tirado por ella ao martyrio, damos logo em hum
caminho, q se divide em dous, & o da maõ direyta vay ao longo do muro da Porta Aurea, &
o da maõ esquerda vay dar ao Valle de Josaphat, andando poucos passos por elle,
começamos de abayxar por hũa ladeyra ingreme, no meyo do qual está o lugar, aonde pela
Se de N. S. Jesu Christo o glorioso Martyr Santo Estevaõ, foy dos Judeos apedrejado,
dando seu espirito a Deos, que lho havia dado. Neste lugar está hũa grande, & durissima
pedra, que atraveaaa todo o caminho, alli da natureza criada, na qual no tempo, que a Terra
Santa era de Christãos, estava hũa Igreja edificada, de que ao presente não ha memoria, &
alli se ganhão sete annos, & sete quarentenas de indulgencia. Dalli abayxamos de todo ao
Valle, o qual he cheyo de Santuarios, dignos de sere cada hora visitados, & trasidos de
cõtino na memoria. Cauzafe o Valle de Josaphat dos mõtes, que o cercão do Oriente, do
Monte Olivete, & do Ponente dos montes Sion, & Moria: sobre os quaes está situada a
Cidade. Antes da destruiçaõ de Hierusalem feyta pelos Romanos, era este Valle
profundissimo: mas no tempo do cerco, como determinarão combater a Cidade por aquella
parte, trabalharão todo possivel pelo encher, & entupir, para sentarem as maquinas, &
artificios de combater: e assim com despovoarem o Monte Olivete do seu arvoredo: & com
pedras, & terra o fizeraõ de tal maneyra, que a sepultura da Virgem N. S. que estava na
superfície da terra, ao presente abayxamos a ella por hua escada muy profunda. E depois q
os Romanos tomarão a Cidade, derrubarão todos os edificios della, q para aquella parte
estavaõ assim os do Templo, como os mais, & lançavaõ toda a pedra, & cal, & entulho no
Valle, para que em nenhũ tepo a Cidade por /
266
aquela parte, que era a mais principal,
pudesse ser fortaletida. Passa o torrente Cedron pelo meyo deste valle, o qual ainda que
algũs quizerão dizer, q he de muyta agua: & que vay ter a tal, ou tal Piscina, não he assim,
200
porque no verão se secca de todo, & no inverno sómente a leva, se chove: & se alguns dias
deyxa de chover, tambem o torrente deyxa de correr: & assim como cõ facilidade enche,
com a mesma vasa. Neste valle dizem muytos, que ha de ser e ultimo, & universal juizo,
quando Christo nosso Redemptor com grande Magestade, & gloria ha de vir julgar os
vivos, & os mortos, & fundão os que isso dizem sua opiniaõ naquella profecia de Joel, que
diz: Cum convertero captivitatem Judam, & Hierusalem, congregabo omnes gentes in Valle
Josaphat, & disceptabo cum eis ibi super populo meo, & hæreditate mea Israel: quer dizer:
quando converter o captiveyro de Juda, & Hierusalem, juntarey todas as gentes no Valle de
Josaphat, & contenderey com elles ahi sobre meu povo, & minha herança Israel. A longura
ou compridão deste valle não tem dous tiros de arco, & a sua largura pòde sómente ter hum
bom tiro de pedra, do pè de hum monte ao outro. Tomou este valle o nome de Josaphat,
segundo a opiniaõ, & parecer de alguns pouco estudiofos nas divinas letras, de hum Rey de
Israel, assim chamado, Santo, justo, & virtuoso, que nelle foy, conforme o que elles dizem,
sepultado: mas a Sagrada Escritura diz no ultimo do terceyro dos Reys: Quod dormivit
Josaphat cum patribus suis, & sepultus est in Civitate David: quer dizer, que morreo
Josaphat, & foy sepultado na Cidade de David.
201
CAPITULO XLV.
Do sepulchro da gloriosa Virgem Maria nossa Senhora, como nelle se celebra a festa da
sua gloriosa Assumpcaõ.
ENtre os lugares santos, que estaõ no Valle de Josaphat, o principal, & mais
solemne he o sepulchro da gloriosa Rainha dos Ceos, nossa Senhora, o qual está situado no
principal lugar do Valle, não muyto apartado do lugar, aonde a primeyra vez foy sepultado
o Protomartyr Santo Estevaõ & ainda que neste Valle estaõ outros lugares santos, como
adiante direy, este sómente tem Igreja fabricada ás mil maravilhas, como dá testemunho o
glorioso Saõ Jeronymo em hum Sermão d’Assumpçaõ da Virgem, que alguns querem dizer
não ser seu. Diante da porta da Igreja está hum adro cercado competentemente de parede
alta, & lageado de fino marmore branco, ao qual abayxaõ por cinco, ou seis degraos do
mesmo: & junto a este adro, ou pateo, está á mão direyta hum serrado pequeno, mas todo
cercado de muro alto, dentro do qual está huma sepultura muyto grande, & alta, dos Turcos,
& Mouros muy reverenciada: mas nunca se me offereceo saber de certeza, que sepultura
era aquella: posto que os Christãos da terra saõ de opiniaõ ser de algum Turco poderoso, ou
de algum Cacis santaõ. Depois do adro que tenho dito, está logo a porta da Igreja, muy
curiosamente lavrada de rica pedraria, com muytas columnetas, folhagens, brincos, &
curiosidades, das quaes o tempo tem tirado muyto lustre, como faz ás mais cousas da vida.
A Igreja, que está em superficie da terra, / 268 mandou edificar a Rainha S. Helena; as portas
saõ muy antigas, & naõ tem por fora fechadura, mas de dentro tem hũ certo fecho de páo, o
qual tambem com chave de páo se abre, & fecha, da maneyra que eu vi usar-se em algũas
partes da nossa Beyra. Cada naçaõ dos que vivem na Terra Santa tem sua chave: & assim
mesmo Turcos, & Mouros: & ainda huns, & outros muytos as tem particulares. Entrando
dentro na Igreja, a qual he toda de abobeda, abayxamos huns oyto degráos de marmore, que
tomaõ toda a largura da Igreja, & logo damos em hum taboleyro muy grande, & fermoso, &
delle tornamos a proseguir a escada feita da mesma maneyra q os primeyros degraos, que
saõ por todos quarenta, & seis, atè o bayxo da primeyra Igreja, que agora está toda
subterranea, a qual foy taõ rica, & curiosa, que atè o pavimento do chão era de rico
Moysaico, de pedras muy finas, com muytos lavores dourados, como ainda agora em
202
alguns lugares se mostra. No meyo da escada ao longo da parede de huma, & outra parte
estaõ metidas duas cappellas pequenas, com cada hũa seu Altar: os quaes affirmaõ os
Christãos da terra, serem as sepulturas dos gloriosos Saõ Joaquim, Pay da Virgem nossa
Senhora, & Saõ Joseph, seu fidelissimo Esposo. Em cada hũa destas cappellas, arde de
contino sua alapada, nem tem outra claridade algũa, nem menos a tem a Igreja, salvo a que
lhe entra pela porta. A Igreja he muyto humida por estar, como digo, toda debayxo da terra,
& no inverno colhe tanta agua, que algũas vezes ha contecido, em grandes invernadas
encherse atè a porta, & passarem algũs mezes sem poderem entrar nella. No meyo desta
Igreja, que está metida debayxo da terra, está hũa cappellasinha de abobeda, cujo vão tem
sómente nove palmos de com/ prido,
269
& pouco mais de seis de largo, izenta de todas as
partes sem tocar em algũa outra parede: dentro da qual está feyto a modo de Altar o
Sepulchro da Virgem nossa Senhora, no qual foi posto aquelle divino tabernaculo, aonde
nove mezes repousou o Verbo Divino, Filho do Padre Eterno: & celebramos sobre elle,
assim como no Sepulchro do Senhor. Todo o interior desta cappella está cuberto dalto
abayxo de taboas muy fermosas de marmore: arde de contino sobre elle muytas alãpadas, as
mais dellas á conta da naçaõ Latina, das quaes os nossos Frades tem cuydado, & as outras
nações tem sómente cada naçaõ a sua. Tem esta santa cappella (a qual creyo q foy a
primeyra Igreja que alli se edificou depois do transito desta santissima Senhora) duas portas
muyto pequenas, hũa ao Norte, & a principal ao Ponente. Ao longo da parede da parte de
fora está hũ Altar, aonde algũa hora celebraõ nelle, & no Sepulchro da Virgem sómente os
nossos Frades, & algum Sacerdote da naçaõ Latina, que lá vay ter de Franquia : costume he
antigo todos os sabbados do anno, em rompedo a alva do dia, irem dous Frades nossos a
dizer Missa aquelle santissimo lugar, o q me coube muytas vezes, por folgarem os outros
Padres de me fazer mercê, & caridade, dando-me aquella consolaçaõ espiritual, hũa hora
por outra, quando lhe cabia a elles. Defronte da cappella, para a parte do Ponente, dentro na
Igreja, a qual no bayxo he feyta á maneyra de Cruz, tem os Mouros, & Turcos hũ certo
modo de Oratório, aonde se metem e fazem sua Oraçaõ, & ceremonias, quando vaõ visitar
aquelle santo sepulchro: & junto delle está hũ poço, a q elles chamaõ de S. Maria, & dão
aos enfermos daquella agua, com que muytos sáraõ de suas enfermidades. O primeyro dia
de Agosto se /
270
, ajuntaõ neste sagrado lugar seis, & sete, & alguns annos oyto mil
203
Mouros, & Turcos, & celebraõ com musica, & muyta festa a seu modo, com mostras de
muyta devoçaõ, a solenidade d’Assumpção da Virgem nossa Senhora. E tem em tanta
veneraçaõ, & estima este seu santo sepulchro, que naõ sómente os Turcos, & Mouros da
terra, & dos lugares de redor o visitaõ, mas ainda de toda Turquia, & da India Oriental, &
de outras partes remotissimas o ve cada anno visitar muytos peregrinos seus, & os
Romeyros, que de muytas partes vaõ á casa de Meca, (muytos mais por certo dos que vaõ
de Franquia a Hierusalem) naõ tem sua romaria por acabada, & perfeyta, ainda que a fazem
com muyto trabalho, & perigo, por causa dos grandes desertos que passaõ, senaõ visitaõ
tambem esta santa sepultura da Virgem gloriosa nossa Senhora, a qual elles confessaõ ser
virgem no corpo, & na alma, antes do parto, no parto, & depois do parto. Acerca da
devoçaõ que os Mouros, & Turcos tem a esta Senhora, muytas mil vezes bendita, pudera
escrever muytas cousas que vi, as quaes deyxo por me naõ mostrar historiador, & as poucas
que digo, queyra Deos, que com as dizer esperte a frieza de algũs indevotos, para q se
movaõ a desejarem de visitar taõ santissimos lugares, pois a jornada não he taõ cõprida, &
aspera, como muytos imaginão. Aos quatorze dias do mez de Agosto vigilia d’Assumpçaõ
desta Senhora, os nossos Frades que moraõ em Belem, em amanhecendo, vaõ a Hierusalem
ficando lá sómente, quem guarde a casa com hum, ou dous Christãos da terra nossos
familiares: & a horas de Vespera se vaõ todos ao Monte Sion a hũa casa, que alli temos
junto ao Mosteyro, q nos tomarão os Turcos, como já fica dito: & alli postos todos defronte
do lugar, aonde se / 271 crè, q a Virgem passou desta vida a tomar posse do Reyno da gloria,
& deu sua bendita alma nas mãos de quem a ella, & a todos nos deu a vida, seu Unigenito
Filho, Deos, & Senhor nosso: em tom bayxo dizem a capitula das Vesperas com o Hymno,
Antifona, & Magnificat: & isto acabado, se põem os Frades de giolhos, & rezaõ a estaçaõ,
com a qual se ganha indulgencia plenaria. Depois sahem fora de casa, & todos em ordem
começão de caminhar para o Valle de Josaphat, indo pelos mesmos passos, que forão os
Apostolos, quando o dia do passamento da Virgem levarão aquelle santissimo tabernaculo
da Magestade Divina á sepultura, fazendo no caminho oraçaõ nos mesmos lugares, nos
quaes aquelle Collegio Apostolico havia feito seus pousos, porque atè o dia de hoje estão
assinallados, & ornados com muytas indulgencias concedidas pela Sè Apostolica: chegando
ao lugar, aonde dizem que os Judeos sahiraõ ao encontro aos Apostolos, por lhe tirarem das
204
mãos aquelle inestimavel thesouro, & alguns delles lançando as mãos á tumba, se lhe
seccáraõ; se detem hũ pedaço, & fazem oraçaõ, ganhando indulgencia de sete annos, & sete
quarentenas de perdão. E tornando a proseguir seu caminho, indo ladeyra abayxo, a qual
dalli por diante he a mais ingreme, & aspera de todo o Monte Sion, passando defronte da
porta da Cidade, antigamente chamada esterquilinia, que fica á mão esquerda, & do lugar
aonde S. Pedro chorou sua culpa, que fica á direyta, na qual ganhão sete annos, & sete
quarentenas de perdão, vaõ ter ao torrente Cedron, que passa pelo meyo do Valle de
Josaphat; o qual passada huma ponte, que está no mesmo lugar, por onde passou nosso
Redemptor, quando do Horto de Gethsemani o levávão preso para a Cidade: seguem o valle
/
272
acima, atè chegarem á Igreja da Virgem gloriosa nossa Senhora, & assi, feyta oraçaõ
algum tanto larga, repousam. Acodem alli, assim mesmo todos os Christãos da terra, &
alguns de partes remotas, cada naçaõ com seu Superior, & Prelado, os Gregos com seu
Patriarca, & as outras com seus Bispos. Acodem tambem os Caloiros dos Mosteyros
visinhos, & os de Santo Sabba, & muytas Caloiras Freyras, & Religiosas, & com muyta
devoçaõ celebrão alli todos aquella santissima festa. Não sey com palavras ponderar,
quanto espirito, & devoçaõ causa: não sómente o sitio, & lugar, & a solenidade da festa:
mas muyto mais ver entre infieis, tantas nações de Christãos, em si tão diferentes, nas
linguas, nos ritos, & ceremonias, & ainda nas opiniões, andarem todos de hum coraçaõ,
visitando de companhia aquelles santos lugares, que por todo aquelle valle estão: tão
solicitos em concertarem seus Altares para o Officio Divino, que na verdade parece hum
retrato da primeyra Igreja, & huma mostra da primeyra Christandade. Fora da cappella
aonde está a sepultura da Senhora, ao longo da parede da Igreja, cada naçaõ tem seu lugar
proprio aonde fazem seus Altares para celebrarem a festa. Depois de repousarem hum bom
espaço, começão com muyta solemnidade a cantar as Vesperas, & ainda que muy
differentes nas linguas, & ceremonias, todos muy conformes, & unidos em hũ coraçaõ, &
vontade de louvarem ao Senhor na celebração da festa de sua bendita Mãy: & com as
Vesperas rezão logo os Frades a completa. O mais do tempo dalli atè Matinas, cada hum
tem liberdade para repousar, & dormir, ou para o que for mais de sua consolação, & as
Caloiras, & a principal parte das mulheres se vão dormir á Cidade. A’ meya noyte dizem
Matinas rezadas, & com ellas / 273 as mais Horas, e começaõ logo os Frades a dizer Missa ;
205
porque ainda que fora da capella temos outro Altar, os Frades naõ querem celebrar, senaõ
no sepulchro da Virgem por sua consolação espiritual, & quanto ao celebrarem de noyte
naõ ha nenhũ escrupulo para o poderem fazer, pois tem da Sé Apostolica licença especial.
As outras naçoens, como cada hũa dellas não tem mais, que hũa só Missa, esperaõ que
venha o dia claro, no qual apartados cantão, & celebrão a seu modo, & tem por costume
naquella festa, & nas semelhantes, todos commungarem. Acabadas as nossas Missas
rezadas, cantamos a Missa mayor, a qual diz o Padre Guardiaõ, com Ministros, & grande
apparato de ricos ornamentos; porque os ha taes no nosso Convento, dados, & offerecidos
por muytos Reys, & Principes Christãos. Quando fomos á Terra Santa levamos alguns, &
em particular dous Pontificaes muy ricos, hũ q nos deu o Papa em Roma, & outro, que se
fez em Venesa, branco, pedrado de ouro, com riquissimos sabastros de imagens, &
argentaria, com o qual nesta sacratissima festa se disse Missa a primeyra vez, em que se
acharão entre os Christãos alguns Turcos lustrosos, & gente muy principal, os quaes tanto
se deleytavaõ em ver aquelle rico ornamento, & as imagens dos sabastos, que naõ contentes
com a vista, se punhaõ de redor dos Ministros; que por naõ caberem detro na capellinha
ficavaõ de fora, & com as mãos tocavaõ as almaticas, & cordões, fazendo grande
admiração com palavras, & gestos, no que gastarão o mais do tempo, que a Missa durou.
Ao tempo que levantarão o Santissimo Sacramento, estando as mulheres todas á parte do
Norte, junto á portinha daquella santa cappella: achou-se entre ellas hum Turco daquelles,
mancebo muyto bem disposto, o qual estando / 274 em pè lhe impedia a ellas a vista, do que
queyxando-se, o fizeraõ pòr de giolhos. E vendo-se, assim, & que todos levantavão as
mãos, & batiaõ nos peytos: em tudo as imitou: & fez o mesmo cõ mostras de muyto sizo, &
quietação, o que a hũs causou espanto, & admiração, & a outros motivo de rir, & escarnecer
delle, ao qual os outros Turcos depois zombando, perguntavaõ se era Christaõ. Aconteceo
naquella Missa outra cousa, que mais notámos, & foy, que saindo o acolito a dar a paz aos
Frades, & querendo-se recolher para dentro, hum daquelles Turcos se levantou
furiosamente, & pegando-lhe de hum braço com agastamento, lhe disse: por ventura não
saõ os Turcos gente como os Francos: & pondo-se de giolhos beijou com muyta reverência
a portapaz, pondo-a tambem nos olhos, & na cabeça, e da mesma maneyra os mais Turcos
da sua companhia, o que tomámos em bom agouro. Acabada a Missa nos tornámos os
206
Frades a nossa casa, dando muytas graças a nosso Senhos, pela mercè que nos fez,
deyxando-nos celebrar a festa de sua Santissima Mãy com tanta paz, & quietação.
207
CAPITULO XLVI.
Do Horto de Gethsemani, & do lugar aonde N. Redeptor orou ao Padre, & de outros
santos lugares.
SAindo fora da porta, & pateo da Igreja da Virgem N. Senhora, dez, ou doze
passos sobre a mão esquerda, indo para o Oriente, ao pè do Monte Olivete está o muy santo
lugar, no qual nosso Redemptor se apartou dos seus amados Apostolos, & Discipulos,
pondo-se em Oraçaõ, pedindo ao Padre Eterno com la/grimas,
275
& gemidos, tivesse por
bem apartar delle, & livrallo do amargoso caliz de sua morte, & Payxaõ, remedio tão
efficaz, & necessario para nossa verdadeyra vida, & salvaçaõ. He taõ compassivo, &
devoto este lugar, q cõmummente move a lagrimas aos devotos, que o visitaõ. Está taõ
metido dentro na raiz do Monte Olivete, que parece ficar subterrano. As paredes, & cuberto
de cima, saõ do mesmo monte, & a terra he como saibro, & pissarra, & da mesma tem no
meyo dous esteyos, que sustentaõ aquella cova, a qual terra aproveyta para muytas
enfermidades, & a temos la por particular reliquia. O cuberto de cima he feyto a modo de
abobeda, & tem hũa abertura pequena no lugar aonde o Senhor orava; a altura he, quanto
bem pòde andar huma pessoa. Tem o ceo de cima pintado de azul fino, ainda que do tepo
gastado com hum letreyro de letras de ouro Latinas, que diz desta maneyra: Salvator mundi
in hoc Sacratissimo loco oravit ad Patrem, & factus in agonia guttas sanguinis effudit
usque ad terram, oremus eum, ut nobis peccatoribus delicta demittat, quia pius, &
misericors est. Quer dizer: O Salvador do mundo neste sacratissimo lugar orou ao Padre, &
posto em agonia derramou pingas de sangue atè regar a terra, peçamos-lhe nos perdoe
nossos peccados, porque he piedoso, & misericordioso. Aqui neste sagrado lugar se alcança
sempre remissaõ de todos os peccados, & se faz esta commemoraçaõ. Antiphona: Dominus
JESUS Christus mundi Redemptor, facta cum Discipulis suis cœna, venit in hunc locum
cælesti Patri oraturus, & cum prolixius orasset factus est in agonia. V. Factus est autem
sudor ejus. R. Tanquam guttæ sanguinis decurrentis in terram.
208
Oraçaõ.
DOmine Jesu Christe dulcissimè, qui antequam patereris, Hierosolyma egressus,
ad hunc locum orationis tuæ more solito properasti, ut te sponte passurum demonstrares,
ubi factus in agonia prœ angustia calicis passionis tuæ bibendi guttas sanguineas insudasti,
tuæ assumptaæ cantis veritatem probando: hic tuam imploramus clementiam, ut nobis
spiritum orationis corroborans agoniæ tuæ nos sociare digneris, quò nullis tentationibus
territi cuncta adversántia te adjuvante vincamus. Qui cum Patre, &c.
He de tanta efficacia, & devaçaõ este santissimo lugar, que nenhũa alma Christaã
entra nelle, sem deyxar de sentir hum movimento muy grande de compayxaõ do Senhor, &
ainda se lhe afigura muytas vezes ver alli o Senhor no acto da Oraçaõ. Muytas vezes entrey
nelle pelas mercês do Senhor & muytas mais desejo entrar, se me fora possivel, & sempre
me senti com hũa dor grande, & arrependimento de meus peccados, & hum temor, & horror
não pequeno, que sobre maneyra me entristicia. Hum tiro de pedra apartado deste lugar
para o Sul, muy conforme ao que diz o Evangelista S. Lucas, está assinalado o lugar, aonde
nosso Redemptor deyxou aos seus queridos Apostolos S. Pedro, Santiago, & S. Joaõ,
mandando-lhe, que vigiassem, & estivessem espertos, os quaes encostados a hum grande
penedo, que alli está, só per si levantado da terra mais de dous covados, estiveraõ alli todo o
tempo, que nosso Redemptor esteve orando, & deyxárão alli imprimidos, como em cera
branda, os sinaes dos seus corpos, que perseveraõ atè o dia de hoje. A pedra he tão dura,
que me aconteceo ir algũas vezes ás escondidas com / 277 hum picão, por ver se podia tirar
algũa pequena quantidade, para trazer por reliquia, crendo, que assim como a sombra do
bemaventurado S. Pedro tinha virtude para sarar enfermos, como o diz o Evangelista S.
Lucas nos Actos dos Apostolos, assim mesmo a teria a pedra aonde elle, & os outros dous
Apostolos estiveraõ domindo, & repousando, mas não me foy possivel. Aqui neste lugar se
ganhão sete annos, & sete quarentenas de perdão. Oyto, atè dez passos deste lugar está
assinalado aquelle, no qual estava nosso Redemptor, quando saindo a receber a turba, que
da Cidade vinha a o prender, foy della preso. Em tempo que a Terra Santa era de Christãos,
estava neste lugar hũa igreja, de que ao presente não ha mais memoria, que huns pedaços de
parede, & entre elles hũa pedra, na qual dizem tinha o Senhor posto os pès, quando lhe
209
lançarão a corda ao pescoço aquelles ministros de maldade, da qual pedra trouxe hũa
pequena reliquia para minha consolaçaõ. Aqui se ganhão sete annos, & sete quarentenas de
perdão, & se faz esta commemoraçaõ. Antiphona. Dederat autem eis traditor sigmum
dicens: quem osculatus fuero, ipse est, tenete eum. Vers. Dixit Jesus tradenti se. Resp.
Juda, osculo filium hominis tradis?
Oraçaõ.
DOmine Jesu Christe, humani generis benigne Redemptor, qui ob maximum erga
nos amorem tuum, à Discipulo in hoc santo horto primum tradi, deinde à pessima
Judeorum manu capi, ligari, atque ignominiosè, tanquam latro, ad Pontificis præsentiam
plectendo sustinuisti: postremò verò turpissimam, crudelissimamque mortem appetere, ut
nos de inimici rugientis captivitate absolveres, ultro voluisti. Concede nobis quæsumus, ut /
278
cuncta hujuscemodi adversa æquo, atque constanti animo tolerare, & tolerando pro tui
nominis gloria, eisdem congaudere queamus. Qui vivis, & regnas, &c.
Este lugar aonde os Santos Apostolos S. Pedro, & San-Iago, & S, Joaõ estiveraõ
dormindo, era o Horto de Gethsemani, & a Villa ficava mais abayxo, pouco mais que hum
tiro de pedra, da qual ao presente não ha memoria algũa, nem menos do horto, salvo algũas
oliveyras, & amendoeyras, & no verão vi alli semeados cogombros. O Mouro senhor desta
herdade ha importunado aos Frades muytas vezes, tornem a edificar a Igreja, movido do seu
particular interesse, mas deyxaõ-no de fazer por escufar enfadamentos. Dentro no sitio
deste horto, bem ao pè do Monte Olivete nos mostraõ hum lugar, no qual affirmão, que a
Virgem nossa Senhora se assentava, & repousava todas as vezes, que hia visitar aquelles
santissimos lugares, depois que seu Unigenito Filho subio aos Ceos, ao qual damos na
Terra Santa muyto credito, & tem sua particular commemoração, & se ganha nelle
indulgencia plenaria, que he o que muyto faz authenticos os lugares santos, porque as
commemorações foraõ ordenadas no tempo que a Terra Santa era de Christãos, & viviaõ
nella com toda a liberdade, & os Santuarios estavaõ inteyros, & eraõ visitados, & venerados
de continuo de todos, como está escrito no livro das antiguidades da Terra Santa, que temos
na Sancristia entre as cousas mais estimadas, & preciosas: & a commemoraçaõ he esta:
210
Antiphona: Quæ est ista quæ ascendit sicut aurora consurgens: pulchra ut Luna electa ut
Sol. Alleluia. V. Dignara me laudare te, &c. R. .Da mihi, &c.
279
Oraçaõ.
REspice quæsumus Domine oculo tuæ pietatis ad indignas preces servorum
tuorum, & meritis gloriosissimæ Matris tuæ, quæ dum vita vivens, hunc sacratissimum
montem, divinis atque copiosis resertum mysterijs devotissime visitaret, sæpius hic
sedendo, tuæque passionis acerbitatem lacrymabiliter meditando quiescebat, fac nos in hac
lacrymarum valle sedentes in umbra mortis, ad gloriosum Olympum, feliciter transmigrare.
Qui vivis, & regnas, &c.
Indo mais adiante pelo valle abayxo hum grande tiro de pedra do lugar da prisaõ, á
mão esquerda do caminho, & bem junto a elle: está huma sepultura feyta com muyta
curiosidade, redonda, & toda de hũa pedra inteyra, tirando o capitel de cima, que he feyto
de duas, toda concava de dentro, & de altura de hũa grande lança, seu circuito tem
cincoenta e seis pès. A opiniaõ do vulgo da terra, he ser de Absalaõ, filho do Real Profeta
David, polo que nenhum Mouro passa por junto della, que lhe naõ atire hũa pedrada, &
dizem, que o fazem, porque foy máo, & desobediente a seu pay, & assim tem derredor de si
hu grão monte de pedras: a Escritura Sagrada no segundo livro dos Reys diz, q Absalaõ foy
morto por Joab Capitão General delRey David no bosque de Ephraim, o qual está da outra
parte do Jordão, no Tribu de Gad, & o sepultáraõ no mesmo bosque em huma cova, pondo
lhe em cima hum monte de pedras. He verdade, que no mesmo capitulo tambem está
escrito, que Absalaõ em sua vida tinha escolhido, & feyto sepultura no valle delRey, & o
diz por estas palavras: Porro Absalon erexerat sibi, cum ad huc viveret, titulum, qui est in
valle Regis, dixerat non / 280 habeo filium, & hoc erit monimentum nominis mei: vocavitque
titulum, nomine suo: & appellatur manus Absalon usque ad hanc diem, quer dizer: tinha
feyto Absalaõ para si em sua vida hũa sepultura nobre, & alta: a qual está no Valle delRey,
porque disse: eu naõ tenho filho, & esta sepultura sera memoria de meu nome: & intitulou-a
de seu nome: & atè o dia de hoje se chama a mão de Absalaõ. Se o Valle de Josaphat era
naquelle tempo Vai delRey, possivel seria ser o corpo corpo de Absalaõ depois trasladado,
& assim fica a duvida tirada de todo. Alguns que presumem de mais entendidos querem
211
dizer ser aquelle sepulchro delRey Josaphat, & que delle tomou o valle o nome, como atraz
fica dito; mas isto claramente repugna á Escritura, a qual no terceyro livro dos Reys, diz,
que Josaphat foy sepultado na Cidade de David, por estas palavras: Dormivitque Josaphat
cum patribus suis, & sepultus est cum eis in Civitate David patris sui, quer dizer: Morreo
Josaphat, & foy sepultado na Cidade de David seu pay. Defronte desta sepultura da outra
parte do caminho á maõ direyta, ao pè da costa, por onde começaõ a subir ao Monte Sion,
está hũa ponte, por onde passaõ o torrente Cedron, quando leva agua, pelo qual lugar
levarão a nosso Redemptor preso, & alli ao passar do ribeyro lhe deraõ aquelles lobos
famintos, que vinhaõ com a primeyra furia contra o mansissimo cordeyro, hum grande
tropel de punhadas, & impuxões: de tal maneyra, que o lançarão por terra: & como o passo
era aspero de passar, porque como ainda alli não havia ponte, o lugar era trabalhoso de
descer, & subir por ter hũa costa arriba muy ingreme, como hiaõ muytos, não duvido
cahirem sobre elle pisando-o, & atormentando-o: o que se vê claramente, porque o Senhor
teve por bem deixar / 281 alli as suas pegadas, que atè ao presente durão impressas na pedra
dura, como se fora em cera branda. Humas pegadas direytas, & outras da maneira, que
acertava de cair: & assim mesmo se vem os sinaes das mãos atadas, & as junturas dos
dedos, assim dos pès, como das mãos: no que se deve considerar o acatamento, &
reverencia, que a creatura teve a seu Creador, em tempo que os seus a quem tantas merces
tinha feito, & diante de quem tantas maravilhas, & milagres tinha obrado, usavaõ, com elle
de taõ deshumanas crueldades. Alguns contemplativos tivèraõ para si, q se comprio neste
passo a profecia de David do Psalm. 109. que diz: No caminho bebeo do ribeyro, por tanto
levantou a cabeça.
Tambem este lugar he muy venerado dos Christãos, posto que está sem guarda,
por causa de estar em estrada publica, & ha nelle hũa grande maravilha, a qual he, que
muytos Christãos com devoçaõ tirão daquella pedra, & das mesmas pegadas, mas nem por
isto se acha menos cousa algũa, o que vi com meus olhos, & experimentey com minhas
mãos, pelo que dou muytas graças a meu Deos.
Seguindo nosso caminho mais adiante, sempre pelo valle abayxo, vinte passos
além da sepultura, chamada de Absalaõ, estaõ ao pè do Monte Olivete huns notaveis
edificios antigos, com camaras, & janellas, columnas, & varandas, tudo feyto de hũa só
212
pedra viva: os quaes vem dar sobre o caminho, quando deyxamos o valle, & torrente, &
voltamos para Bethania. Forão estes tão notaveis edificios, segundo a opiniaõ, & parecer de
muitos, sepulturas de alguns grandes senhores, & Principes Judeos, porque sua qualidade,
& a grandeza, & magnificencia da obra o mostra. Neste lugar dizem /
282
que esteve
escondido o Apostolo Sant-Iago Alseu, da hora que nosso Redemptor foy preso, atè que lhe
appareceo resuscitado: no qual se ganhão sete annos, & sete quarentenas de perdão, & se
faz nelle esta commemoração. Antifona: Tunc relicto Jesu, omnes Discipuli ejus fugerunt.
Vers. Jacobus autem venit in hunc locum. Resp. Non se comesturum vovens, nisi prius
viderit Dominum.
Oraçaõ.
Domine Jesu Christe, consolator omnium, & Redemptor, qui beato Apostolo tuo
Jacobo, Judæorum melu, in hoc latibulo tempore tuæ passionis sanctissima latitanti. tua
resuscitatus præsentia gloriosus apparuisti, esto nobis precibus ipsius Apostoli propitius,
& præsta, ut inter barbaras nationes conversantes, emisso omnis pusilanimitatis timore
fidem tuam constanter confiteri: & prædicare valeamus. Qui vivis, & regnas, &c.
Logo alli junto a este lugar està a sepultura de Zacarias, filho de Baraquias, q foy
morto pelos Judeos entre o Templo, & Altar, como diz o Evangelista S. Matheus. A qual
sepultura he talhada na rocha viva do Monte Olivete, feyta toda de hũa só pedra afastada do
lugar, aonde a talhárão, quanto entre ella, & o monte póde caber huma pessoa: & he feita de
maneyra, que causa espanto a quem a olha. Tem mais feyçaõ de piramide, que a que dizem
ser de Absalão, lavrada porèm com menos curiosidade. Bem se mostra nesta sepultura, &
em outras muytas de Santos, & Profetas, q vemos na Terra Santa, o que disse nosso
Redemptor aos Fariseus, que os seus antepassados matárão os Profetas, que elles lhes
edificavão as sepulturas. Passando esta de Zacarias, indo pelo valle adiante deixamos á mão
es/querda
283
o caminho q vay para Bethania, junto ao qual pouco menos de hũ tiro de
bésta, está o lugar, aonde o maldito Judas se enforcou, no qual os Judeos deste tempo se
enterrão, & alli tem suas sepulturas.
Aonde este caminho se aparta, nos passamos da outra parte do torrente Cedron, &
andando poucos passos, chegamos a hũa fonte de muyta agua, a qual ao presente, assim
213
Christãos, como Mouros, chamão a fonte de Santa Maria, ainda que o seu proprio nome he
a fonte de Siloe. Está na raiz do Monte Sion , abayxando dos muros da Cidade pola parte
aonde esta a pedra angular, & antigamente estivèraõ alli os passos delRey Salamão: aonde
depois foy edificado o Mosteyro em tempo de Christãos, de grande sumptuosidade de
Religiosas, de que atraz tratey no capitulo quarenta, & dous: o qual ao presente os Cacizes
tem em grande veneraçaõ, & he chamado de todos commumente, assim Christãos, como
Mouros: o Templo de Santa Maria, fica o cuberto da fonte da mesma rocha do monte, a
modo de lappa: & bayxão a ella por hũa escada de dez, ou doze degráos, cuja agua he
muyto fria, & gostosa. No segundo livro dos Reys, & no terceyro, se chama a fonte Rogel.
Sua origem affirmão muytos ser debayxo do Templo de Salamão, e dalli vai a Natatoria de
Siloe, que está muito mais alta, aonde antiguamente se fazia huma Piscina real, & grande,
que se chamava Piscina Superior: de que ao presente não ha memoria, porque se arruinou,
& perdeo depois da tomada de Hierusalem pelos Romanos : nem se tornou depois a fazer
caso della : porque como não houve guerras, não se curarão os da terra de sustentar
piscinas: contentando-se com a agua que tem dos muros a dentro, porque fora da Cidade
não mora pessoa alguma. Ao presente neste lugar da Nata/toria
284
está hũa casa grande
com muyta agua, aonde Christãas, Mouras, & Judias vaõ lavar, & se lavão: & daquella casa
por hum cano descuberto vem dar a agua em hũ tanque muyto grande, feyto ao modo dos
que cá temos: aonde no verão, estando cheyos, nadão os moços: & em todo o tempo lavão
as mulheres. Aqui nesta Natatoria se ganhão sete annos, & sete quarentenas de perdão, & se
faz esta commemoraçaõ. Antiphona. Expuit Jesus in terram, & fecit lutum ex sputo, &
linivit super oculos cæcinati, & dixi, vade, & lava ad Natatoria Siloe. Vers. Abijergo ilie.
Resp. Et lavit, & vidit.
Oraçaõ.
DEus cui nihil impossibile est, sed solo sermone restauras universa : qui cæco
nato, ejus oculos tuo jussu in his Siloe Natatorjs extergenti, clarum tam spiritus, quam
corporis reddidisti visum, concede quæsumus, hœc tua sancta recensentibus opera, ut
oculis mentis nostræ, luto delictorum infecti, aqua misericordiæ tuæ valeant expiari, Qui
vivis, & regnas, &c.
214
Indo eu huma vez a este lugar com outros dous Frades, andando visitando outros
lugares santos, como lá temos de costume fazer muytas vezes : achámos naquelle tanque
duas mulheres, hũa velha, & outra moça, & com ellas huma minina: & naõ fazendo caso
dellas, fomos para entrar na casa d’agua, por ver o que lá hia, por naõ termos nunca visto
aquelle lugar, nem sabermos de que servia. Vendo aquellas mulheres, que queriamos entrar,
começáraõ a brádar, que naõ entrassemos, fallando em Arabigo, que nós não entendiamos,
mostrando-se muyto agastadas. Ficámos nòs algum tanto turbados, mas caindo na conta do
que podia ser, que era estarem lá mulheres, tornamos atraz para onde as de /
285
fóra
estavaõ. Vendo a mulher moça nossa turbação, começou de fallar comnosco palavras
meyas Italianas, & meyas Hespanhoes, no que logo entendi ser Judia, & respondendo-lhe
eu em Castelhano, que ella muyto folgou de ouvir, lhe perguntey se o era, & em que terra
nascèra. Disse-me que si era Judia, & que nascèra em Roxeto, Cidade do Egypto, junto de
Damiata, no qual Roxeto a mayor parte dos mercadores saõ Judeos fugitivos de Castella, &
Portugal: & disse-me que seu pay, & sua mãy eraõ Castelhanos, naturaes de Toledo. Vendo
a Judia, que eu entendia bem o Castelhano, que era a lingua que ella melhor entendia, que
outra alguma, por se haver nella criado, gostou da pratica, & começou de me pregar, me
fizesse Judeo, dizendo mil blasfemias cõtra nossa Santa Ley, segundo que as havia
aprendido na escola de seu pay, & de sua mãy: que os Judeos naõ ensinaõ outra doutrina a
seus filhos, mais que blasfemar do melifluo nome de nosso Senhor JESU Christo, &
criallos em mortal odio contra o nome Christaõ. Depois tornando com palavras meygas, &
lisongeyras, que não saõ para se escrever, com mil filaterias Judaicas, me quiz persuadir, &
admoestar, q se me quizesse fazer Judeo, me casariaõ muy honradamente, com hũa Judia
rica, & de muyto primor, & que todos os Judeos me estimariaõ, & dariaõ dos seus bẽs. Com
o mayor sofrimento que pude a escutey: & porque me naõ estava bem porme em pontos
com ella: sómente lhe puz diante sua vilesa, & miseria, pois sendo moça, & taõ bem
disposta, estava naquelle tanque descalça, lavando roupa, como hũa escrava: que se fora
Christãa, e estivera em Hespanha, andara como hũa Princesa, como andavão as Christãas
novas, & todas as da sua laya. Ouvindo a misera Judia estas palavras, começou a chorar, &
/
286
dizer, que seu pay, & sua mãy lhe diziao muytas vezes estas, & semelhantes cousas,
não sem muyto arrependimento, de haverem deyxado sua patria, & natureza. Vendo a
215
velha, que nossa pratica se estendia, & que a moça antes das lagrimas naõ mostrava gostar
pouco della, ou por ter ciumes, ou por suspeytar outra cousa vendo-a chorar, não consentio
mais que com a moça fallasse, antes com brados que começou a dar, nos fez ir daquelle
lugar: do qual abayxando outra vez ao valle, fomos ter aonde o profeta Isaias foy serrado
pelo meyo, por mandado do impio Manassés Rey de Hierusalem, porque lhe fallava
verdade, conforme ao que Deos lhe mandava. Ao presente ainda nos querem mostrar hum
tronco antiquissimo da arvore a que foy atado, affirmando ser aquella, no que não ponho
duvida algũa. Está em hum poyal feyto de pedra, & cal, como cá costumamos fazer ás
arvores que temos em claustras, ou pateos: & não duvidamos ser ao menos aquelle o
proprio lugar, por estar tambem ornado com indulgencias de 7 annos, & 7 quarentenas de
perdão, no qual se faz esta comemoraçaõ. Antiphona. Isaias in Hierufalem natus nobili
genere, sub Magnasse Rege, sectus in duas partes occubuit. Vers. Ora pro nobis, &c. Resp.
Ut digni efficiamur, &c.
Oraçaõ.
DEus qui beatum Isaiam Prophetam spiritus sublimasti gratia, mediumque pro
zelo justitiæ sectum hic inclito martyrio laureasti; præsta quæsumus, ut qui ejus admiramus
constantiam sentiamus auxilium. Per Christum Dominũ, &c.
Junto a este lugar está hum profundissimo poço, cuja bocca he comprida quasii
como cheminè, e muy estreyta; / 287 no fundo do qual se sente correr hũa impetuosa ribeira:
& ha acontecido algũs annos subir sua agua atè cima, commumente lhe chamaõ todos, o
Poço de Job: & dizem delle diversas cousas muy fantasticas, que aqui naõ escrevo, polas ter
por naõ verdadeyras. Tambem affirmão muytos, ser aquella a Gehena, da qual nosso
Redemptor no Evangelho trata, porque assim se chamava no tempo, que andando neste
mundo pregava. Seguindo mais adiante o valle: no ultimo delle está o campo santo, assim
ao presente chamado, & no Evangelho de S. Mattheus Hacèldama, que quer dizer, campo
de sangue, o qual dos Fariseos foy comprado para sepultura dos peregrinos, pelos trinta
dinheyros, que o maldito Judas vendeo a nosso Redemptor, o que fizeraõ aquelles
desaventurados hypocritas com falsa religião, tendo por cousa escrupulosa, & injusta,
lançar aquelle dinheyro no cepo, ou cayxa, aonde estava depositado o mais para os gastos
216
do Templo. Este campo santo, ou campo do oleyro, como lhe chamava o Profeta Hieremias,
he hum lugar naõ muyto grande, mas muyto bem lavrado em quadro, & feyto a modo de
casa com seu terrado por cima, da parte do Sul, & Ponente fica encostado a hum alto da
terra, & penedia, como casa arrimada a muro. Da parte do Levante, & Norte, fica livre com
suas paredes de pedra, & cal, fortemente lavrado. Em cima no terrado tem seis boccas
redondas: pelas quaes com cordas metem, & abayxaõ os corpos dos defuntos, que alli se
sepultão, que pela mayor parte no tempo presente saõ Armenios, & Gregos, & algũas horas
outros Christãos eftrangeiros, que lhes cabe em sorte morrer em Hierusalem.
Tem aquella terra de sua colheyta comer os corpos humanos em poucos dias sem
os cobrirem, que parece / 288 cousa milagrosa, deyxando-lhe a ossada inteyra, & alva, como
se fosse cozida, ou do mar lançada fora. No bayxo deste campo santo, para a parte do Norte
está huma grande abertura feyta do tempo, pela qual se vem taõ distintamente os corpos,
que se conhecem os dos homes dos das mulheres, nem se sente entre elles corrupção algũa,
o que algũas vezes vi, & muy particularmente notey. Ganhaõ-se neste lugar sete annos, &
sete quarentenas de perdão, & fazem esta commemoraçaõ. Antiphona. Principes
Sacerdotum acceptis argenteis dixerunt: non licet eos mittere in carbonam, quia pretium
sanguinis est.
V.
Concilio autem inito emerunt ex illis hunc agrum.
R.
In sepulturam
peregrinorum.
Oraçaõ.
OMnipotens clementissime Deus, qui ut mundum primorum parentum lapsu
perditum redimeres, filium tuum unigenitum ad nos profugos, nom crucifigendum tantum
dimisisti, verum etiam ut largior quoque nostra esset redemptio, & scripturæ de eo
loquentes finem haberent, vilissimum pretio, impretiabilem vendi sustinuisti: quorem
equidem denariorum um numero hunc, agrũ emplum fuisse credimus nobis proptereæ
præsta redemptis, ut dignos pœnitentiæ fructus colligentes, ejusdem filij Tui passionis
meritum consequamur. Qui tecum vivit, &c.
De redor deste campo santo, & do Valle de Josaphat para esta parte estaõ muytas
sepulturas antiquissimas de Judeos, & algũas dellas de fabrica espantosa, & quasi todas
subterraneas, & feitas na rocha viva, tendo sómente na entrada hũa pequena abertura: mas
217
dentro camaras, & outros edificios. Aqui junto a este campo santo da parte de cima á mão
esquerda está o lugar, / 269 no qual se escondèraõ a mayor parte dos Apostolos, a noyte que
prenderão nosso Redemptor. Em tempo de Christãos havia nelle hũa Igreja pequena, que
servia de Oratorio, & ainda agora está a rocha, & lapa pela parte de cima com muytas
pinturas antigas, & letreyros, que declarão a qualidade do lugar. Outras muytas
particularidades estão por todo o Valle de Josaphat, as quaes deyxo de escrever, assim por
não serem de tanta importancia, como por evitar prolixidade.
218
CAPITULO XLVII.
Do sagrado Monte Olivete, do qual nosso Redemptor subio ao Ceo.
TEndo tratado do sagrado Monte Sion, & Valle de Josaphat, bem he que trate do
glorioso Monte Olivete, com justa causa chamado monte de tres lumes: santificado tantas
vezes com a presença do universal Senhor do mundo, & pois atègora andey ao pè delle,
quero subir ao alto. Passa, como tenho dito, o Valle de Josaphat entre este Mõte Olivete, &
o Monte de Sion; & não podemos da Cidade ir a elle sem passarmos o torrente Cedron, que
vay pelo meyo do Valle, do qual tomamos dous caminhos antes da subida. O da mão
esquerda está junto da igreja de nossa Senhora, aonde está seu santissimo sepulchro, &
mais curto, mas mais ingreme, & aspero, & pouco lustroso: os que querem ir por elle, no
principio em começando a subir, chegão, a hum lugar, aonde dizem, que estava o Apostolo
S. Thomè, quando a Virgem nossa Senhora subio ao Ceo em corpo, & alma, & lhe deu o
seu cinto, como algũs crem piedosamente, & o tenho visto algũas /
290
vezes pintado, mas
nunca mostrey ter devoçaõ áquelle lugar, porque naõ li jámais em historia authentica tal
cousa, & sou muyto incredulo no que vejo parecer sem fundamento, o que attribuo a minha
frieza.
A’ maõ direyta junto á sepultura, que dizem ser de Absalaõ, se toma outro
caminho menos trabalhoso de subir, posto que mais comprido, mas muy gracioso, &
lustroso: & por elle quasi sempre himos visitar os Lugares santos daquelle Monte bendito.
Subindo por elle, & chegando ao meyo, se descobre quasi toda a Cidade, & o Templo de
Salamão com toda a sua praça, & pateo da parte Oriental, & das collateraes; & neste lugar
estava nosso Redemptor, quando vendo a Cidade, chorou sobre ella, dizendo: Se tu
conhecesses, & soubesses o tepo de tua visitação, &c. Nẽ se pòde a Cidade ver tão
inteyramente, como daquelle lugar. Em tempo, q a Terra Santa era de Christãos estava alli
hũa Igreja, da qual ao presente ha pouca memoria: mas he muy venerado dos Mouros, & o
tẽ lageado, & concertado, & no meyo hũa cisterna, & a hũa parte tem hũ lugar particular
feyto como hum arco, aonde se mettem a orar. Subindo mais ao alto, himos ter ao lugar,
aonde juntos os Apostolos, depois da vinda do Espirito Santo, antes que hũs dos outros se
219
apartassem, & fossem pelo mundo a pregar o Evangelho, como lhe era pelo Senhor Jesu
mandado, compuserão o Simbolo da Fé, começando primeyro o glorioso Apostolo Saõ
Pedro, como firmissima pedra, sobre a qual nosso Deos verdadeyro fundou a sua Igreja: &
dizendo: Creyo em Deos Padre todo poderoso, &c. Junto a este lugar se vem as ruinas de
hũa Igreja, que alli foi edificada, a qual se chamava a Casa do Paõ, por ser o lugar aonde
nosso Redemptor ensinou seus amados Apostolos a orar, dizendo-lhe, /
291
quando orares
dizey, Padre Nosso, que estaás em os Ceos; & atè o dia de hoje está naquelle lugar huma
grande pedra, na qual de letras Latinas já meyas gastadas, está esculpida a Oraçaõ do Padre
Nosso toda.
Hum tiro de pedra deste lugar, mais adiante no alto do monte está hũa Igreja
pequena mea subterranea, mas muyto inteyra, á qual abayxao por quatro, ou cinco degráos
de pedra, cujo altar he a sepultura da bemaventurada Santa Pelagia, que primeyro foy hũa
famosa peccadora: & agora he hũa gloriosa Santa, & reyna com Christo na gloria, ganhãose alli sete annos, & sete quarentenas.
Saindo desta Igreja, & subinda mais hum pouco ao mais alto de todo o monte,
chegámos ao lugar da gloriosa Ascensaõ, foy nelle edificada hũa muy sumptuosa Igreja,
por mandado da Rainha Santa Helena, da qual ao presente naõ ha quasi memoria, posto que
naõ ha sessenta annos, q foy posta por terra sómente permanece hũa cappella muy fermosa
de fórma esferica de oyto faces por fóra, ornada de redor toda de arcos, & columnetas, obra
feyta no principio, quando com a Igreja foy edificada, cuberta toda por cima de abobeda de
meya laranja, da mesma curiosidade, & naõ aberta, como alguns quizarão dizer: o que não
duvido que seria no principio para gloria do Senhor Deos, & consolaçao dos seus fieis.
Entrando pela porta algum tanto á maõ direyta, está no chão hũa pedra, & nella hũa pegada,
que alli nosso Redemptor deyxou impressa, quando teve por bem tornar aos Ceos, donde
havia bayxado á terra, por nosso remedio, & salvação. Foy aquella pedra talhada pelo
meyo, & a outra pegada levarão ao Tẽplo de Salamaõ, quando a terra era de Christãos:
aonde /
292
segundo affirmão os da terra he tida dos Mouros, & Turcos em grande
veneraçaõ.
Junto á pegada, que ficou na cappella d’Ascensaõ, tem os mesmos Mouros feyto
hum vaõ, a modo de portal com seu arco, curiosamente lavrado, no qual se metem quando
220
vaõ visitar aquelle santo lugar, & alli fazem a sua oraçaõ, & lhe mostraõ ter grande
devoçaõ, & confessaõ claramente, que delle subio aos Ceos o dia de sua gloriosa Ascensaõ,
aonde está com o Padre Eterno, & que dos Ceos hade vir gloriosamente no dia do juizo
julgar os vivos, & os mortos.
Cousa he muito de notar na Terra Santa o grande acatamento que os Mouros, &
Turcos tem tão em particular a todos os lugares aonde Christo nosso Redemptor esteve,
tirando aquelles, que tocaõ aos mysterios de sua sagrada Payxão, porque não quadra a seu
rustico, & carnal entendimento, que sendo elle Filho de Deos, ser possivel morrer, naõ
entendendo, que sua morte foy sómente quanto a sua humanidade, que da Virgem gloriosa
nossa Senhora tomara, & naõ quanto a sua divindade, com a qual he Deos verdadeyro
immortal, & invisivel. Com a ruina da Igreja antiga, que alli foy edificada, ficou aquelle
lugar pouco reverenciado: posto que a cappella, que agora está, sempre esteve daquella
maneyra, & no meyo da Igreja, como a cappella do Santa Sepulchro. Mas como por alli de
redor estão alguns casaes de Mouros, os camelos, & gado entrávaõ muytas vezes, & ainda
os Mouros moços o sujavão, & irreverenciavaõ, atè que a devota mulher Mecia Pimenta, de
quem atraz fiz memoria na capitulo trinta & oito, vindo da India por terra, com muytas
esmolas, que havia adquirido, & ajuntado, comprou a licença para o mandar cercar, a qual
lhe custou muyta copia de / 293 dinheyro (porque nos não permitte o Grão Turco reedificar
alguma obra de todo cabida, ainda que nos consente sustentar as que estaõ em pè) &
mandou fazer hum muro muyto alto alto, & forte, que toma todo o ambito, & grandeza, q
antes tinha a Igreja antiga, de maneyra, que agora tem portas, & está cõ mais reverencia do
que em outro tempo estava.
A’ vigilia da Ascensaõ de nosso Senhor Jesu Christo, vão quasi todos os Frades,
que moraõ em Hierusalem, & Belem á tarde, aquelle santo lugar, & nelle cantão muy
solemnemente suas Vesperas, & ficaõ-se lá aquella noyte, dando-se todos á oraçaõ, &
contemplaçaõ de taõ alto mysterio; como foy ir daquelle santo monte nossa humanidade
unida ao Verbo Divino, visivelmente subindo por sua propria virtude ao Ceo, & os que o
merecem recebem do Senhor grandes consolações.
A’ hora da meya noyte rezaõ suas Matinas, & armaõ hũ Altar a hũa parte da
cappella, no qual acabadas ellas, começaõ a dizer Missa, aquelles a quem cabe a sorte, & á
221
hora de Terça, o Padre Guardiaõ se veste com os ministros solemnemente, & cantão a
Missa mayor, a que cá chamamos do dia, na qual os que não tivèraõ tempo para celebrar
comumngaõ devotamente, o que me aconteceo o primeyro anno que la estive, porque
estava muy enfermo, & não me atrevi ir lá a vigilia, mas fuy o dia da festa a tempo, que
pude ouvir Missa, & commungar a ella.
Da mesma maneyra, que fazem os nossos Frades, fazem os outros Christãos, que
moraõ na Terra Santa, indo lá dormir a noyte da Vigilia, & ao dia da festa concertaõ seus
Altares fora da cappella no adro de redor della, aonde cada naçaõ já de muytos annos tem
seu lugar proprio: & tirando o que diz a Missa, todos os / 294 mais commungaõ a seu modo.
Alli vi naquella festa commungar alguns Abexins do Preste Joaõ, assim homẽs, como
mulheres, com tantas lagrimas, & devoçaõ, que me puzeraõ em admiração, & ma causáraõ
a mim.
Cousa he muy deleytosa a toda a pessoa Catholica, & devota, olhar, & ver aquelle
sagrado dia de Ascensaõ do Senhor, todo aquelle Monte Olivete cuberto de Christãos de
diversas nações, assim homens, como mulheres, diversos nos trajes, diversos nas
lingoagens, conformes todos, & unidos, & de hum coraçaõ, & vontade, louvarem a N.
Senhor Jesu Christo, & confessarem ser elle, o que daquelle santissimo logar subio
gloriosamente em tal dia ao Ceo, depois de haver vencido o Demonio nosso adversario, &
triunfado da morte, levando comsigo aquelles Santos Padres, que estiverão cativos, &
presos, tanta quantidade de annos. Naquelle bendito lugar se ganha sempre indulgencia
plenaria. Acabados os officios daquella solemne festa, os mais dos Christãos tem por
costume darem-se paz huns aos outros, beijando-se na face, com a qual, & com a benção do
Senhor, se tornaõ para suas casas. Aqui perto estaõ as ruinas de hũa Igreja, que alli em
tempo de Christãos foy edificada no lugar aonde estava a Virgem Senhora nossa com os
Santos Apostolos, & a mais companhia, quando os Anjos lhe apparecèraõ vestidos do
branco, & lhe disseraõ: Varões de Galilea, que estais olhando para o Ceo, &c. E parece que
quanto mais o Senhor hia subindo, se hiaõ elles desviando do primeyro lugar para mais á
sua vontade o poderem ver ir: porque com muyta piedade se deve crer, que o piedoso
Senhor não os privarir da sua vista divina, em quanto humanamente pudessem gozar della.
222
Daqui dèste lugar menos que tiro de bèsta faz o /
295
Monte Olivete hum cabeço,
entre Levante, & Nordeste, aonde estaõ grandes ruinas de edificios de hum Mosteyro, que
alli esteve em tempo de Christãos educado, o qual lugar antigamente foy chamado Galilea,
& alguns querem dizer, ser aquelle do qual o Anjo disse ás mulheres, que fossem os
Apostolos a Galilea, porque alli veriaõ ao Senhor, como canta a Santa Madre Igreja no
Hymno da santa Resurreyçaõ, & o mesmo Senhor no Sermão, que a seus amados
Discipulos fez na ultima Cea, lhe disse depois que resuscitar vos verey em Galilea. De
maneyra, que aquelle lugar chamado Galilea, se diz ser aquelle a que o Senhor os mandou
ir, & naõ, ao que chamamos Provincia de Galilea, aonde esta Nazareth, Caná, & outros
lugares. O glorioso Santo Augustinho em o livro que escreveo de consensu Evangelistarum
parece ser desta opinaõ: a qual mostra ser chea de toda a razão, considerando estar esta
Galilea, muy perto, & a outra vinte & tantas legoas de Hierusalem, & esta ser chamada
Galilea, & a outra, Provincia de Galilea, sem declarar lugar particular, aonde lhe havia de
apparecer, havendo nella tantas Cidades, Villas, & Lugares, a causa, porque assim se
chame, Deos a sabe, mas cada dia vemos lugares terem nomes desapropriados, como Troya
em Setuval, Toledo junto de Portalegre, & outros da mesma maneyra. Alguns querem dizer,
que se chamava, aquelle lugar Galilea: porque os homens daquella provincia quando vinhaõ
a Hierusalem tinhaõ alli sua pousada. A minha opiniaõ he, que como aquelle lugar esta para
a parte de Galilea, lhe puseraõ aquelle nome: mas vay pouco quanto á minha opiniaõ, basta
declarar a do vulgo, & ter o que tem a Santa Madre Igreja. Aqui junto a estes edificios
arruinados, vivia no nosso tempo hum Mouro muyto honrado, /
296
& rico, em hũa sua
quinta, muyto nosso devoto, & quando hiamos visitar aquelle lugar, nos fazia muyto
gasalhado. A’ mão esquerda do Monte Olivete outro tanto espaço, como o que fica dito,
está hum cabeço alto, no qual está hũa torre, como no da mão direyta, & dizem ser o lugar,
aonde Salamão poz o idolo Maloch, como lemos no terceyro livro dos Reys, & chamão
àquelle cabeço, Mons offensionis. Daõ estes dous cabeços, ou pequenos montes, o que está
aonde chamaõ Galilea, & o outro a que chamaõ, Mons offensionis, grande lustre ao Mõte
Olivete, ficando o lugar da Ascensaõ no meyo, & como ficaõ muyto mais altos, que o
Monte Sion, & a Cidade, & o Monte Olivete he todo occupado de verduras, oliveyras,
figueyras, amendoeyras, & outras arvores, com muytos pecegueyros: olhando-o da Cidade,
223
tem hũa vista muy aprasivel, & deleytosa a toda a pessoa: & muyto mais áquelles que
contẽplaõ os grandes mysterios, que nosso Redemptor obrou naquelle sagrado monte: o
qual para toda a parte tẽ muy graciosa vista, & se vè delle quasi toda a Cidade santa com
todas as particularidades, como já tenho dito: & muyta parte dos lugares, que estaõ para a
banda do mar Mediterraneo, & Porto de Japho. Da parte Oriental se vè aonde o Jordão se
mete no mar morto, & huma grande parte do mesmo mar, o Monte Naboth, as montanhas
de Moab, cõ muyta parte da Palestina, que está ao Levante. Chamava-se antigamẽte este
Monte Olivete, Monte de tres lumes assy pela grande copia de azeite que dos seus olivaes,
& se colhia, como porque em saindo o Sol pela menhaã, logo occupava todo com seu
resplandor, & porque de noyte era allumiado com a claridade das muytas alampadas, &
lumes, que ardiaõ no Templo de Salamão, que lhe estava defronte. A / 297 gloria, & louvor
de nosso Senhor Jesu Christo lume verdadeyro de nossas almas, que para sempre vive, &
reyna. Amen.
224
CAPITULO XLVIII.
Do Castello de Bethania.
HUm quarto de legoa do lugar da santa Ascensaõ, declinando algum tanto do
Levante ao Sul: indo costa abayxo, está o Castello de Bethania, os que a elle vão da Cidade,
tomaõ o caminho depois que atravessaõ o Valle de Josaphat, junto á sepultura de Zacarias
filho de Baraquias, & dalli ao longo da herdade, aonde se enforcou Judas, & se enterraõ os
Judeos: mas nosso Redemptor sepre, ou quasi sempre o fazia pelo monte, por lhe ser mais
deleytoso, por causa da vista da Cidade, que tanto amava: & tambem lhe pagou àquelle
amor, como lho pagão outros taes como eu, cometendo cada hora mil offensas suas, &
miserias minhas: indo pelo monte abayxo, está Bethphage, ao qual vindo alli ter o Senhor
Deos dia de Ramos, mandou dous Discipulos, dizendo-lhe: Ite in castellum quod contra vos
est, quer dizer: Ide ao castello, que está defronte de vòs; & deve-se notar que de Bethphage,
naõ se vê a Cidade de Hierusalem, porque está ao Ponente do Mote Olivete, & Bethphage
na ladeyra do mesmo Monte da parte Oriental, declinando algum tanto ao Sul. E conforme
ao texto Evangelico, parece que de Bethphage aonde nosso Redemptor estava, se via o
Castello, ou lugar aonde os mandava, que fossem buscar os animaes, porque diz : Quod
contra vos est, quer dizer: que está defronte de vòs. E conforme a isto, bem se vè, naõ ser
Hierusalem, mas algũ /
298
outro lugar, ou Castello. Isto digo, salva toda a reverencia dos
doutos. O glorioso Saõ Joaõ Chrysostomo, diz, serem aquelles animaes de lavradores, que
os tinhaõ para seu trabalho. E tambem parece algum inconveniente dizer, que estavaõ á
porta da Cidade para serviço dos pobres, porque para huma Cidade taõ populosa, & de tanta
magestade: aonde devia haver muyta gente pobre, & necessitada, eraõ necessarios mais
animaes que hũa asna: quanto mais, que os animaes tinhaõ dono, & por isso perguntarão
aos Apostolos a causa porque os levavaõ, como conta o Evangelista S. Marcos. Neste lugar
de Bethphage esteve antigamente hũa Igreja, na qual se ganhávaõ sete annos, & sete
quarentenas de perdão. Antes que a elle cheguemos, vindo do Monte Olivete, está à maõ
direyta hum monte de pedras, no lugar, aonde estava a figueira infructuosa, q N. S.
maldisse com sua divina palavra, por naõ achar nella mais que folhas. Bethania, que
225
antigamente foy hũa nobre Villa de Maria, & Martha, irmãas de Lázaro, ao presente he
huma pequena aldeã de pouco mais de trinta vizinhos, todos Mouros, sem morar entre elles
algum Christaõ, & no espaço, que ha da casa de Simaõ Leproso te a da gloriosa Magdalena,
se mostra que foy hũa povoação competentemente populosa. Permanece atè o dia de hoje a
casa do dito Leproso, feyta Igreja, mas tão maltratada, que o corpo della serve de casa a
hum Mouro, & a suas mulheres, & filhos, com repartimentos feytos a seu modo, & a
cappella que está muy inteyra, & acabada, feyta de abobeda muy curiosa, com seu Altar no
meyo, serve de se recolherem nesta cabras; parece que por estarem melhor guardadas,
porque todos os Mouros de Bethania, saõ gente pessima, & tamanha irreverencia, não se
pòde ver, como muytas vezes vi, / 299 sem muyta lastima, & afflição do coraçaõ. Tinha este
Mouro em casa huma velha, a qual quando lá hiamos se lhe levávamos paõ, fazianos muyta
festa, & se em lho levar tinhamos descuydo, enchianos de blasfemias, & injurias, &
tiravanos pedradas. No meyo de Bethania está hũa Igreja, & nella a sepultura aonde
primeyro foy sepultado o bemaventurado S. Lazaro, quando por nosso Redemptor foy
resuscitado, & permanece a Igreja atègora, do modo que estava quando aquella terra era de
Christãos, & a sepultura muy bem fabricada com muyta curiosidade posta no chão, &
abayxão a ella por degraos de todas as quatro partes, & fica em bayxo hum quadro de
marmore branco muy fino. Tem cuydado daquelle lugar hũ Cacis muy tyranno, mas trata-o
com muyta limpeza, nem consente alguém entrar nelle salvo com grande aderencia, no que
se pòde considerar quanto estimaõ os Cacizes Mouros os lugares santos, que forão de
Christãos. Costume he antigo da Terra Santa irem os Frades que lá morão, á sesta feyra da
Quaresma depois da Dominga quarta, áquelle lugar, & satisfeyto muyto bem o Cacis: com
seu consentimento, por hũa meia, & armar Altar sobre a sepultura, & alli cantar a Missa da
seria, por o Evangelho fazer memoria daquelle lugar, & sepultura. Depois que vim da Terra
Santa, passado algum tempo, estando neste Reyno, me afirmou huma pessoa digna de fé,
que vinha de Hierusalem, estar já este lugar em poder dos nossos Frades, por ser morto o
Cacis, que o tinha á sua conta, pelo que dey muytas graças a meu Deos. Ganha-se aqui
indulgencia plenaria, & se faz esta commemoraçaõ. Antiphona. Jesu ergo rur sum fremens
in semetipso venit ad hoc monumentum, & ait: tollite lapidem. Vers. Hoc cum dixisset, voce
magna çlamavit. Resp. Lavare vem foras.
226
3oo
Oraçaõ.
OMnipotens clementissime Deus: qui mundum innumerabilibus renovas beneficijs,
concede quæsumus ut ficut Lazarum in hoc mausoleo, quatriduanum sætidunque jacentem,
ac magna mole lapidis obrutum, qui peccatorem in peccatis mortuum tua solita pietate
suscitatum esse designat, ad hanc mortalem lucem, per unigeniti Filij tui vocem, potenter
redire jussisti: fic nos jubeas, vitiorum omnium resuscitatos pondere, per ejus sacratissimæ
passionis mysterium, ad æternam lucem feliciter per venire. Qui tecum, &c.
Deste lugar da sepultura de Lazaro, caminhando ao Oriente já saidos da povoação
estaõ, ou estivèraó as casas das bemaventuradas irmãas Martha, & Maria, que agora
sómente o sitio vemos. Primeyro chegamos, indo da Cidade, á de Santa Martha: da qual ao
presente naõ ha mais memoria, que estar no lugar aonde esteve hũa eira, aonde debulhão
trigo no tepo, & de redor se vem os calices. A da bemaventurada Magdalena ainda agora
permanece muyta parte de hũa Igreja, que alli foy edificada primeyro, por mandado da
Rainha Santa Helena. E depois pelo tempo, segundo está escrito no memorial das cousas da
Terra Sãta, que temos no cartorio de nossa casa, na era de mil cento quarenta & dous, a
muy devota Rainha de Hierusalem, chamada Melizenda, fez alli edificar hum muy
sumptuoso Mosteyro, em louvor desta gloriosa Santa, no qual constituhio por Abbadeça a
hũa sua irmaã, chamada Ivera, que era Religiosa professa no Mosteyro de Santa Anna, Mãy
da Virgem nossa Senhora, que estava em Hierusalem, de que atraz fica feyto memoria, em
cada hum destes dous dous lugares se ganhão sete annos, & sete /
301
quarentenas de
perdão. Algum tanto ao Oriente da casa de Santa Martha, está hũa pedra alli criada; a qual
he pura pederneyra alta do chão mais de hum covado, & não muyto grossa, na qual
affirmaõ, que esteve nosso Senhor sentado, quando vindo cançado de Galilea a resuscitar a
Lazaro, vieraõ ter com elle as duas bemaventuradas irmãas, Martha, & Maria. Desta pedra
tirão os Christãos, & sempre tirarão, sem nella se sentir alguma diminuição, & se tem por
particular reliquia: o qual milagre se vè em outros muytos na Terra Sãta, que foraõ tocados
por qualquer maneyra de nosso Redemptor. Aqui se ganhão muytas indulgencias, & se faz
esta commemoraçaõ. Vers. Dixit Martha sororisuæ. Resp. Magister adest, & vocatte.
227
Oraçaõ.
COnsolator optime Jesu Christes qui ad gaudiũ Mariae, & Marthæ sororum, de
interitu fratris à pœoena dolentium Bethaniam ascendisti: patris tui gloriam in defuncti
Lazari suscitatione mundo gloriosissimè ostensurus præsta quæsumus, ita nos per amplam
præsentis vitæ viam fideliter incedere, ut soluti carni ergastulo, in cælestibus tabernaculis
tecum mereamur æternaliter conquiescere. Qui vivis, &c.
Nesta Bethania ha muyto bons figos, & uvas: & daqui as levaõ a vender a
Hierusalem. A gente ainda que , todos saõ Mouros mal acondicionadas, & pouco familiares
nossos; naõ tem dever comnosco quando lá himos, nem nos aggravão em cousa alguma,
com irmos lá muytas vezes. Hũ dia pela menhaã vinhamos quatro frades no tempo dos
figos, de visitar aquelles lugares santos, & encontrámos no caminho moços, que levavaõ
figos a vender á Cidade, acertou de passar hum Mouro, /
302
a cavallo, & vendo que
olhavamos para os figos, sospeytou que os desejavamos, & naõ se enganou; porque os
Frades carecemos lá daquellas cousas, porque naõ temos vinhas, nem hortas, com muyta
alegria chamou os moços, & escolheo o melhor cesto, que levavão, & lho comprou
juntamente com os figos, & no lo deu, dizendo-nos, q o levassemos para casa, para
convidarmos os outros Frades. Escrevo aqui isto, para que se note a bondade, &
liberalidade de hũ infiel, que naõ sey aonde se achará outra tal, respeitãdo sermos
Christãos, & elle Mouro: no que louvámos muyto a nosso Senhor Jesu Christo.
228
CAPITULO XLIX.
Do caminho que vay de Hierusalem para Belem, & de muytas particularidades que ha
nelle.
QUerendo ir da Santa Cidade de Hierusalem para Belem: sahimos pela porta do
Castello, antigamente chamada, Porta do Peyxe, porque por ella entrava todo o pescado,
que vinha do Porto de Jafo, ou de outros lugares maritimos á Santa Cidade: & saindo fora
da porta, deyxamos o caminho da mão mão direyta, tomando o da esquerda, abayxando
costa abayxo ao longo do Castello. Tẽdo passado hum bom tiro de pedra, está á mão direyta
hũa grandissima Piscina, & tal que tendo agua, poderão nadar náos nella: esta he a que a
Sagrada Escritura chama Piscina inferior, por causa de estar em lugar mais bayxo, q a outra
junto de Siloè. Ao presente recolhe muy pouca agua, porq cuydo está rota: ainda q para se
encher, segundo / 303 sua grandeza, ha mister grades invernadas. No fim desta Piscina, em a
dobrando sobre a mão direyta, na parte mais baixa está hũa fonte lavrada cõ algũa
curiosidade, feyta de marmore, com dous canos, & dous chafarizes, ou tanques pequenos,
cada hum de sua parte, cuja agua vem alli ter por canos da fonte de Salamão, chamada nos
cantares, fons signatus. Desta fonte começamos a subir hum pequeno caminho muy aspero:
no meyo do qual se aparta outro á mão esquerda para huns casaes de Mouros, que estaõ
dalli hum tiro de bèsta o qual lugar ao presente he chamado de todos os Christãos da terra,
o máo concelho, porque alli se juntárão Annás, & Caiphas, com os mais principaes Fariseos
do povo, a tratar da morte do inocentissimo Cordeyro, depois que resuscitou a Lazaro: &
devia ter alli algum daquelles máos Pontifices alguma quinta ou casa de recreação, passado
aquelle pequeno de máo caminho: dalli atè Belem todo o mais he chão, ainda que
pedragulento, & aspero, mas á vista muy deleytoso, por causa de muytos lugares santos,
que ha nelle, sendo taõ curto, que não passa de légua & meya: & por estar entre arvores, &
vinhas, que naquellas partes saõ muy frutiferas. Tendo andado pouco mais de meya legoa,
vemos á maõ direyta dous tiros de bèsta fora do caminho, hũa torre, a qual era a casa aonde
morava o Santo Velho Simeaõ, quando inspirado pelo Espirito Santo veyo ao Templo a
receber em suas mãos a Christo nosso Redemptor, lume verdadeyro de nossas almas, &
gloria dos seus escolhidos. Seguindo o caminho, & chegando quasi ao meyo delle achamos
229
hum Terebintho muy grande, & fermoso, á mão esquerda, na borda da estrada, a que alguns
dos que de cá vaõ, em romaria querem chamar lentisco, que he aroeyra, naõ o sendo
na.verdade, ainda /
304
que na folha tem alguma apparencia della. Esta arvore he tida em
muyta veneraçaõ de todos os da terra, assim Mouros, como Christãos, & affirmaõ a Virgem
N. Senhora haver muytas vezes estado a sua sombra, & ao pè della, indo ou vindo de Belem
a Hierusalem. Contaõ delta arvore muytas cousas, q lá tem por miraculosas, & verdadeyras,
as quaes deyxo de escrever, porque conforme á frieza, & pouca devoçaõ de quà temo, que
as tenhaõ, por frivolas, & comportas. Fica-lhe a esta arvore o pè dentro em huma herdade
de hũ Mouro, mas sua rama cahe toda sobre o caminho, & bem se vè nella comprido o que
diz o Sabio: Eu como o Terebintho estẽdi meus ramos, porq saõ elles muy compridos, &
graciosos. Aquelle Mouro que a tem na sua herdade foy muytas vezes importunado de
algũs devotos Christãos, que lhe vendesse a terra, por terem a arvore em seu poder, mas
nunca com elle puderão acabar, affirmando com grandes juramentos a seu modo avela visto
arder algũas horas a noyte do sabbado: & o mesmo affirmão outros que por alli tem
herdades com suas casas a modo de quintas, como cá. Tem por cousa muy certa, que o que
corta algum ramo della, fica de todo esteril. Quando por alli passamos, sempre dizemos a
Magnificat com Antiphona, & Oraçaõ, do commum de nossa Senhora. Poucos passos mais
adiante deste Terebintho, no meyo do caminho está hũa cisterna com tres boccaes feytos de
cantaria bem lavrada: & naquelle lugar affirmaõ que a Estrella, que do Oriente guiara os
Magos tè Hierusalem, & pelos obrigar a entrar na Cidade, lhe desappareceo, alli lhe tornou
a apparecer, alegrando-os com sua sermosa, & resplandecente presença. Mais adiante no
meyo do caminho quanto dous tiros de pedra, está o lugar aonde morava o Profeta /
305
Abacuc, no tempo que o Anjo do Senhor o levou a Babylonia pelos cabellos da cabeça, a
levar de comer ao Profeta Daniel, que estava mettido no lago dos leões: o qual lugar está
posto em hũ pequeno outeyro, & defronte delle á mão esquerda desviado do caminho hum
bom tiro de pedra, está hum Mosteyro de Caloiros Gregos, muy forte, & be edificado, em
nome do Profeta Elias, & entre o Mosteyro, & a casa de Abacuc, no meio do caminho em
huma pedra viva, está impressa a forma de hum corpo humano: & pòde ser que seja natural
feyçaõ da pedra: mas os Caloiros, & os mais Christãos da. terra affirmão ser aquelle o lugar
aonde o Profeta Elias estava dormindo, quando a elle veyo o Anjo do Senhor, & o
230
despertou, pondo-lhe á cabeceyra paõ, & agua, como está escrito no terceyro livro dos
Reys; & dizẽ, que em memoria de haver alli dormido, e deixado a forma de seu corpo, fora
edificado aquelle Mosteyro. De crer he, que os Judeos tinhaõ antigamente sinalados todos
os lugares em que Deos tinha mostrado algu milagre, ou por algum Profeta seu, feyta algũa
maravilha, & costumavaõ porlhe nomes, como lemos em muytos lugares da Sagrada
Escritura, & aos Apostolos do Senhor succederaõ outros muytos Christãos, assim do
Judaismo, como da Gentilidade, & hũs aos outros mostravão os ditos lugares, como disse o
santo Moysès aos Judeos no seu cântico do Deuteronomio: Interroga patrem tuum, &
annuntiabit tibi: quer dizer, pergunta a teu Pay, & declarartoha, & daquelle tẽpo atègora
sempre na Terra Santa morarão Christãos, & Judeos publicos, ou secretos, donde insirimos
permanecer a memoria dos ditos lugares cõ os mesmos vocabulos, ou outros, como o diz o
glorioso S. Jeronymo em o segũdo Prologo do Paralipomenõ. / 306 Mas isto naõ me faz crer
haver alli dormido o Profeta Elias naquelle tẽpo, q o Anjo o despertou, administrando-lhe
paõ, & agua: porq o texto da Escritura Sagrada diz, q indo ter a Bersabè de Judá, que agora
dos da terra se diz Gebelina, deyxou ahi o moço, que levava, & metendo-se mais a dentro,
pelo deserto, caminho de hũ dia, cansado se lançou a dormir debayxo de hum zimbro: &
dalli a Bersabè de Judá saõ algũas quinze legoas. Mas naõ duvido, q estaria naquelle lugar o
Profeta Elias em outro tẽpo, & outras vezes, por ser lugar tão visinho a Hierusalem, aonde
estava o Teplo do Senhor. Do lugar do máo conselho de hũa parte, & outra saõ vinhas atè
este: & do outeyro aonde esteve a casa do Profeta Abacuc, olhando para a banda do Norte
se ve a santa Cidade de Hierusalẽ, & olhando para o Sul, se vê o lugar de Belẽ, nẽ se podèm
ver ambas estas Cidades, senaõ daquelle pequeno outeyro em todo este caminho. He cousa
maravilhosa, & muyto de notar, q se olhais para Hierusalem, sentis em vossa alma hũa
compassiva tristesa, & hũ não sey q de melenconia, q vos afflige, & cobre o coraçaõ: &
pelo contrario, virando-vos para Belen, subito sentis em vòs, & em vossa alma outro
effeyto muy differente de espiritual alegria: & hũa brandura do amor de Deos, que vos
causa espanto, o que alguas vezes em mim experimentey, ainda que misero, & indigno
peccador, & ouvi contar a outros Religiosos da mesma familia, sentirem o mesmo. Deste
lugar atè Belem, quasi sempre imos descendo, & tendo caminhado hũa milha, chegamos a
hum campo, & á maõ direyta delle junto ao caminho, eftà hũa torre, parte della derribada, a
231
qual dizem, que edificou o Patriarca Jacob. e lhe chamavaõ antigamente a torre do gado.
Neste campo se achão /
307
muytas vezes hũas pedrinhas como chicharos, & grãos; &
contaõ os da terra, & se traz em pratica, que nossa Senhora indo para Egypto, passando por
este lugar andava hum lavrador semeando chicharos, & que a Virgem lhe perguntara, que
semeava, & elle lhe respondèra, que semeava pedras, & a Senhora repetira, pedras te naçaõ,
ainda q parere fabula, & conto de velhas, bem me lembra ter já visto em duas, ou tres partes
pintada esta historia, ainda que a contão de muytas maneyras; mas na verdade eu vi algũas
vezes aos peregrinos colher aquellas pedrinhas com muyta devoçaõ, & sem ella as colhi de
companhia com elles, vendo-lhas colher, & as trouxe comigo ao Reyno. Lembra-me que
achando-se em Venesa ao tempo da minha embarcação para a Terra Santa hũ venerando, &
doutissimo Padre da Ordem de S. Domingos, por nome Frey Luis de Souto Mayor, o qual
sendo em Lovaina Leytor, foy mandado ir ao sagrado Concilio de Trento por parte do nosso
Rey Dom Sebastiaõ, & despedindo-se de mim, me pedio, q trazendo-me N. Senhor a
Portugal, q naõ queria que lhe trouxesse outras reliquias, senaõ qualquer pequena de terra,
ou pedra, da que achasse nas ruas, ou caminhos publicos, crendo firmemente, que toda
aquella terra atè o abismo estava santificada, por ter andado sobre ella nosso Senhor JESU
Christo: palavras por certo dignas de tal varão. O glorioso Santo Augustinho no livro da
Cidade de Deos declara a devoçaõ, & reverencia que se deve ter á Terra Santa trazida de
Hierusalem, contando o que havia acontecido em seu tempo a hum nobre varão Hesperio, o
qual em o territorio Fusalense tinha hũa herdade, que se chamava Zubedi, aonde os
Demonios, não sómente a seus servos, mas tambem aos boys, & /
308
vaccas, & outros
animaes seus faziaõ, grande, & continuo damno: & por virtude de huma pequena de terra
santa, que lhe havia dado hum amigo, foy a sua herdade, servos, & animaes livres dos
espiritos malignos, & a mesma terra deu depois saude a hum mancebo lavrador, que era
paralitico. Pois Naaman Syro, se naõ entendera a santidade grande daquella terra, não
pedira ao Profeta Eliseu licença para levar a Damasco duas cargas della, para pòr no lugar
aonde fizesse oraçaõ, crendo que sem duvida seus rogos seriaõ mais aceytos a Deos,
offerecendolhos sobre ella, que sobre a de Damasco. Descalça os çapatos dos teus pès,
disse Deos ao santo Moysès porque a terra, onde estás he sancta. Pois se por testemunho do
eterno Deos aquella terra era sancta onde Moysès andava guardando o gado, & ovelhas de
232
seu sogro Jetro, Sacerdote Gentio de Madian, & os Montes Oreb, & Sinay, quanto mais o
deve ser toda a terra de Hierusalem, aonde o Filho de Deos derramou por nós tanto sangue,
& a de Belem, aonde nasceo, & toda a mais de Judea,& Galilea aonde andou, & peregrinou
trinta, & tantos annos, & aonde esteve a Virgem nossa Senhora, & os Apostolos, & tanta
copia de Santos, & Santas, assim no tempo da Ley Velha, como no da Ley da Graça.
Offereceo-se-me escrever isto, tratando das pedrinhas, que parecem chicharos, que se achaõ
no caminho de Belem, por se me represensar a pouca devoçaõ, que nestas partes muitas
pessoas mostraõ as reliquias da Terra Santa, como q houvera nestes nossos tempos algũs
seguidores da doutrina de Vigilancio, q tanto reprovou as reliquias, & outras cousas santas
dos Catholicos, contra o qual escreveo o glorioso Doutor S. Hieronymo, chamando-lhe
dormitancio: & se me dissere, q ha muytos vagabundos, q fingem / 309 vir de Hierusalem, &
daõ reliquias falsas: digo, que naõ duvido haver muytos, q por torpe ganho o farão: & dos
taes eu não tomaria as taes cousas; mas na verdade menos perigo parece tomar as taes
cousas de pessoas, que parecem dignas de fé, & estimallas, ainda que naõ fossem
verdadeyras, q não aceytalas, & depois lançallas no monturo: porque havendo erro, a fé
escusa, & não o havendo, causa-se grandissima irreverencia. De mim affirmo, que trouxe
da terra Santa reliquias muy preciosas, mas vendo em alguns a quem com amor as dava,
não as estimarem, no q ellas mereciaõ, fiz hũ saquinho, & metendo as dentro, as lancey no
profundo do mar, por as não destribuir por gente incredula, & pouco devota.
Hum tiro de bèsta deste lugar, aonde se achão aquellas pedrinhas, & está a torre de
Jacob, está a sepultura da fermosa Raquel, mulher do Santo Patriarca Jacob, & mãy do
castissimo Joseph; a qual sepultura atè o presente está com muyta authoridade em a estrada
publica, feita a modo de hum grande tumulo, de altura de quatro atè cinco covados, mettida
debayxo de huma abobeda muyto grande, & alta, sustentada com quatro pilares grossos, &
fortes, de pedra, & cal. Na fronteyra do arco dianteyro tem em hũa grãde pedra lavrado
hum letreyro de letras Hebraicas, o qual alli mandou pòr o Patriarca Jacob, que declarão
quem jaz na sepultura, & em que tempo passou desta vida. Tem os Mouros muyta
reverencia a esta sepultura: & porque alguns peregrinos que vão á Terra Santa, em algũs
lugares particulares deyxão escritos seus nomes, querendo-os eu imitar, escrevi o meu no
alto da Casa Santa, & em outras partes, como cá depois deu testemunho hum muy
233
veneravel, & muy douto Padre da Ordem / 310 dos Prègadores, chamado Frey Nicolao Dias,
que o vio escrito aonde digo: & achando-me nesta sepultura da fermosa Raquel no alto
della, de letra grossa, & legivel escrevi: Hic ad fuit Frater Pantaleon Lusitanus, quer dizer,
aqui esteve o Padre Fr. Pantaleão Portuguez, naõ mais que por contentamento meu
particular, vendome naquelle lugar. Mandou o Patriarca Jacob fazer naquelle lugar de redor
desta sepultura doze piramides pequenas, por memoria dos seus doze filhos, das quaes ao
presente naõ ha mais q cinco, ou seis, em algũa maneyra arruinadas: & isto dizem os
Judeos: & Mouros da terra: mas algũas vezes cuydey ser aquella obra de algũs Judeos, ou
Mouros nobres, que alli quereriaõ enterrar, por ser lugar tão singular: porque passando por
alli muytas vezes, duas, ou tres vi andar Mouros pedreyros trabalhando naquella obra com
pedra, & cal, & naõ fuy advertido em perguntar, o que desejava saber, ficando-me com o
commum parecer de muytos. Chegando á sepultura de Raquel, deyxamos a estrada de
Hebron, que atè alli vay direyta, indo de Hierusalem tomamos á mão esquerda o caminho
de Belem, pela qual caminando menos de huma milha ao longo de humas vinhas, chegamos
á cisterna de David, que está dous tiros de pedra, antes que cheguemos ás casas. Esta
cisterna está junto do caminho em huma campina taõ raza, que algumas vezes me hei posto
a cuidar, porque parte podia colher agua por lhe naõ ver de redor algum artificio humano.
Tem tres, ou quatro boccas, as quaes lhe tapão passando a invernada, & não se tornaõ a
abrir senaõ passado o S. Joaõ. Sua agua he clarissima, fria, & muy gostosa, & tal que se não
deve culpar o Profeta David, tendo sede lembrarse della, ainda que sua intençaõ foy outra.
311
Estando eu alguns dias doente em Belem de grandes quenturas, em nenhũa
agua achava tanto gosto, como naquella, sendo a do nosso Mosteyro bonissima, fria, & tam
delgada, que parecia estillada, & tambem de cisterna, mas lembrando-me quem havia
bebido daquella, me causava achalla mais saborosa.
234
CAPITULO L.
Da Cidade de Belem, & da Igreja de nossa Senhora, & sua fabrica.
BElem, Cidade Santa, & patria do Profeta David, aonde teve por bem nascer o
Salvador do mundo, Christo Jesu, Deos verdadeyro, da Virge Maria N. Senhora, Filho
Unigenito do Padre Eterno, lume do lume, Deos verdadeyro de Deos verdadeyro, paõ
suavissimo de toda consolaçaõ: ao presente he huma pequena, e triste povoação, que tem
pouco mais de duzentos vezinhos, segundo me affirmáraõ alguns delles, a quem o
perguntey, ainda que menos parecem por estarem as casas meyas subterraneas. Saõ tantos
os casaes dos Christãos, como os dos Mouros, gente pobre, & miseravel, em especial os
Mouros. Os Christãos todos no espiritual saõ sugeitos ao Patriarca dos Gregos; & fazem ao
seu modo: & além das muytas superstições, que os Gregos tem entre si, em toda a parte
aonde não obedece à Igreja Romana, tem os que vive nesta terra outros muyto peyores
tomadas dos Mouros, entre os quaes nascem & com quem se criaõ, & conversaõ toda a sua
vida, nem entre huns, & outros no vestido, & traje ha outra differença, que trazerem os
Mouros huma pequena feixa na cabeça: & os Christãos listrada, os que / 3l2 a trazem, posto
q a gente pobre pela mayor parte não traz mais que hum pedaço de sombreyro velho, a
modo de capacete, & digo velho, por me naõ lembrar, que o visse a algum novo. As
mulheres todas andão de huma maneyra ao uso da terra. Nos comeres, nos enterramentos,
no plantear os mortos, solẽnizar bodas, saõ todos muy conformes, naõ sómente em Belem,
mas em todas as partes, aonde vivem de mistura, nem he de maravilhar, porque os
Christãos, que saõ naturaes da terra, & faze á Grega, todos indifferentemete saõ canalha, &
o que parece melhor, sem escrupulo se deve ter por peyor, salvo em condições, pois vemos
entre animaes brutos de hũa mesma relê, huns serem tãos mais domesticos, que outros.
Aqui em Belem os Christãos tem melhor o necessario para a vida, que os Mouros, porque
se daõ á lavoura, semeaõ muyto trigo, tem muytas, & boas vinhas: & commummente os
Mouros servem aos Christãos em lhas concertar, & guardar no tempo: & lhe lavraõ as
terras, e lhe guardaõ o gado, & fazem todo o outro serviço. Mas nem por isso no vestido
andaõ huns melhorados dos outros. As vinhas junto a Belem, & toda aquella comarca, saõ
235
muy frutiferas, & a mayor parte assirio, de que fazem muyto bom vinho, com licença do
Governador da terra, posto que em toda Palestina senaõ vende atavernado, nem menos em
publico. Eu medi com minha mão junto a Belem, hum cacho, que passava de covado: mas
muyto mayor devia ser o q as espias, que o santo Moysés mãdou descubrir a Terra de
Promissaõ, levarão para lhe mostrar, pois para o levar foy necessario dous homens.
Tambem ha de redor de Belem, muytos olivaes, & figueyraes, apartado das casas de Belem,
hum tiro de pedra de bom braço, está o pateo, ou adro da Igreja de /
313
N. Senhora, & do
nosso Mosteyro, o qual de todas as partes está cercado de alto muro: da parte do Sul tem
grandes edificios de casas, aonde em tempo de Christhãos morava o Bispo de Belem, &
junto a elle hũa Igreja muy fermosa, q agora está quasi toda arruinada, ainda que tem em pè
seis muy fermosas colunas, q mostraõ bem qual era toda a outra obra. Dentro no pateo está
huma muy grande cisterna, que o toma todo, a qual tem tres boccaes muyto altos de
cantaria bem lavrada: de cuja agua se servem os de Belem para tudo, porque alli de redor
não tem outra agua, senaõ a da cisterna de David, que lhe não dura quatro mezes inteyros.
No ultimo deste pateo á parte Oriental está huma portasinha muyto estreyta de altura de
cinco palmos, pela qual entrando com trabalho, damos em hum recebimento diante da porta
principal da Igreja de nossa Senhora, a qual he muito grande, & alta, & lavrada á antiga,
com muytas curiosidades. O Templo de dentro he de hũa obra espantosa, nem me parece
haver outra tal no mundo fora do Templo de Salamaõ antigo, he intitulado do Nome da
Virgem nossa Senhora, & está á conta da naçaõ Grega. Entrando pela porta á maõ direyta
está hum baptisterio, tão rico, & sumptuoso, como convem jamais obra do Templo, o qual
Templo he de cinco naves, sustentadas sobre quatro fieyras de muy grossas, & fermosas
columnas de jaspe, muy altas, cada fieyra de dez columnas, & em cada columna pintado
hum Apostolo, Profeta, ou Patriarca: & como ellas saõ quarenta por todas, deraõ a cada
hũa, o que melhor lhe estava, posto que a antiguidade tem tirado muyto lustro a toda a obra.
Na nave do meyo dos capiteis das columnas atè o tecto vay parede muyto alta, armada
sobre grosissimas vigas de cedro do Monte Libano, la/vradas
314
as pedras de muy rico
Moysaico, com historias da mesma obra de muy rico Moysaico, assim do Velho, como do
Novo Testamento, & as quatro Igrejas Patriarcaes da Christandade, a hũa parte Antioquia,
& Constantinopla, & da outra Alexandria, & Hierusalem. Sobre a porta principal está do
236
mesmo Moysaico, a verga Jesse de figuras muyto grandes, obra por certo que parece
miraculosa. O cuberto de cima he de grossissimas vigas de cedro do Monte Libano,
lavradas de curiosas invenções de lavores, cubertos de ouro, & azul, & o telhado todo
lastrado de chumbo. As paredes deste Templo, de hũa, & outra parte, foraõ ornadas todas
de jaspes verdes, & vermelhos, & de outras muy ricas pedras, postas por sua ordem, &
entre ellas guarnições de madre perola para mais ornato: mas a mayor parte de tudo isto,
tem os Turcos levado para suas Mesquitas. O folho, ou chão desta Igreja he todo de pedras
taõ finas, q quando estaõ limpas, enganão com seu resplandor aos que novamete entraõ,
porque vem nas mesmas pedras as pinturas das paredes, como acontece nos espelhos
cristalinos. Te esta sumptuosa Igreja tres tribunas, ou cappellas, a saber, a principal no
meyo, & duas collateraes, todas tres de abobeda cubertas de rico Moysaico, & as paredes
ornadas das mesmas pedras finas, que o corpo da Igreja. A cappella mòr tem de comprido
noventa & dous pès. A mão esquerda junto a hũa tribuna collateral, vem as costas da
cappella do santo Presepio, da qual adiante direy, & tem alli duas portas de bronze, feytas a
modo de curiosa gelosia, para que de dentro desta Igreja grande, de que vou tratando, os
Christãos da terra, Turcos, & Mouros, possaõ visitar, & ver o santo Presepio, sem
devassarem o Mosteyro dos Frades, entrando por dentro. Junto á /
315
primeyra porta de
bronze está a bocca de hũa cisterna, sobre a qual está hum Altar feyto a modo de mesa, de
finissimo marmore branco, bornido, assentado sobre quatro columnas do mesmo, & na
taboa da meia das veas naturaes da pedra se vè claramente a Circuncisaõ de N. Senhor Jesu
Christo, & a Virgem nossa Senhora, com as mais figuras, assim como se costuma pintar. Os
portaes das portas de bronze saõ de porfido, & jaspe com columnas, & lavores, & cada
porta tem cinco degraos das mesmas pedras finas da parte de dentro do Presepio, por cuja
causa he aquella Igreja frequentada de todo genero de nações, assim de Christãos, como de
Mouros, & Turcos, que com muyta devoçaõ de toda a parte o visitaõ, offerecendo lhe seus
votos. Muytas mais particularidades houvera de escrever desta sumptuosa Igreja, se me
houvera de conformar com a commum opiniaõ dos curiosos, que em nossos tempos visitaõ
a Terra Santa por sua devoçaõ, & fazem seus Itinerarios, mas como hey mister o tempo
para tratar de cousas mais devotas, deyxo as que participaõ, naõ tanto de santidade, como
237
de curiosidade, por não haver nellas mysterios particulares, que nos movaõ a devoçaõ: &
mais faltando nos espirito para as ler, que teve quem tão rico Templo mandou fazer.
238
316
CAPITULO LI.
Do Mosteiro que fez em Belem o glorioso Doutor S. Hieronymo, no qual agora o moraõ os
Frades de S. Francisco.
OBemaventurado Doutor, & Padre S. Hieronymo, depois que sahio de Roma, & se
foy a Palestina, sendo informado, & doutrinado primeyro pelo Santo Doutor S. Gregorio
Nazianzeno: a quem elle clara voce em hua Epistola, que escreveo a Nepociano, chama seu
Mestre: & havendo estado alguns annos naquelle muyto aspero deserto, que está junto á
tanta quarentena, de cuja asperesa elle faz memoria em hua Epistola sua, que escreveo á
santa Virgem Eustochio: movido com divino zelo determinou buscar, & escolher lugar
apartado, aonde se dèsse todo á oração, & pudesse trãsladar a divina Escritura do Hebraico,
Caldeu, & Grego, na nossa lingua latina com quietação. E não sentindo, nem achando
naquellas partes outro mais conveniente, que a cata da fartura, aonde teve por bem nascer o
pão divino, que todo o mundo farta, & suttenta, Christo Jesu nosso Deos, & Senhor: se veio
a Belem, & junto ao tanto Presepio escolheo sua morada: não de sumptuosos edificios, nem
de casas curiosas, & forradas: mas como homem despresador das cousas da terra, &
cobiçoso das celestiaes, se meteo em as cavernas, & lapas, que áquelle santissimo lugar
estaõ propinquas: & até o dia de hoje está muy inteyro o recolhimento, & cella, aonde se
dava de todo ao Senhor Deos, & a interpretar, & declarar a Escritura Sagrada. Depois
vendo o grande concurso de varões tantos, que /
317
a elle vinhão, assim por ouvirem sua
doutrina, como por imitarem a santidade de sua vida: foy necessario fazer Mosteyro, aonde
se pudessem recolher, viver em communidade: segundo o modo Monastico, & o instituto
Evangelico, & Apostolico: no qual Mosteyro a louvor do Senhor Deos morão agora os
nonos Frades de S. Francisco, com tanta memoria do Padre São Hieronymo, que até o dia
de hoje a sua cella, & oratorio retem o seu nome proprio, & tratão com muyta veneração o
seu sepulchro, & se faz todos os dias commemoraçaõ no Convento, ainda q seja dia de
Pascoa, & com muyta solemnidade celebrão sua festa. A portaria deste Mosteyro está
dentro na Igreja grande de nossa Senhora, de q tratey no capitulo passado, entrando por
ella á mão esquerda: & tem-na toda cuberta de huma parte, & outra fortemente com laminas
de ferro, & a tão bom recado, como se fosse de algu castello roqueyro por causa dos
239
Arabes, que sempre acodem para aquella parte, & tambem de outros ladrões formigueyros
da mesma terra, que com mostras de amisade, & á sombra dos Arades, tem por vezes
tentado a entrada por alguas partes, & pela porta. O Mosteyro dentro he competentemente
grande, com todas as officinas muy acabadas. A claustra está toda de columna a columna
murada, por causa que os Turcos tem dalli tirado muytos marmores, & jaspes, para com
elles ornarem seus edificios: & as columnas, por serem de muyta estima, as temos todas
barradas, para que com aquella dissimulaçaõ estem melhor guardadas, & encubertas.
Dentro no Mosteyro esta hua Igreja grande, que o Doutor S. Hieronymo edificou em seu
tempo, mas ao presente está de todo tem telhado, com o titulo, & vocação do Santo, &
desta maneyra estaõ outros edifícios de dentro; / 318 tem os Frades outra Igreja no Mosteyro
mais propinqua ao santo Presepio, com seu coro, & cadeyras, muy acabado, & inteyro: no
qual se faz sempre o Officio Divino, ás horas, & tempo costumado cá nestas nossas partes,
& com a mesma liberdade tem algum impedimento: a qual Igreja affirmaõ, que mandou
fazer a gloriosa Virgem,. & Martyr Santa Catharina, & assim he á sua honra dedicada: & do
seu nome intitulada: & dentro nella está hua escada de pedra, por onde sobem a hua cella, q
se chama de Santa Catharina, a qual cahe sobre o Santo Presepio, & tem hua pequena
janella para a Igreja grande de nossa Senhora.
Tem-se por cousa infallivel em toda a Terra Santa, que aquella Virgem
bemaventurada, depois que á Fé de nosso Redemptor foy convertida, acesa do amor do
Divino Esposo, se veyo morar áquelle lugar santo, & fez nelle sua habitação, antes do seu
glorioso martyrio: como a fizeraõ Santa Paula, & sua filha Eustochio: & outras muytas
mulheres santas, que de Roma, & outras partes acodirão, seguindo todas de hua vontade na
terra ao Cordeyro Divino com fé grandissima deterem delle na gloria o premio. No corpo
desta Igreja está hua muy grande cisterna, toda por dentro lageada, & forrada de chumbo,
cuja agua he sobre maneyra gostosa: mas no verão demasiadamente fria.
240
319
CAPITULO LII.
Do lugar aonde nasceo nosso Senhor Jesu Chisto, & do santo Presepio aonde foy
reclinado.
LUz da minha alma, doçura de nossa memoria, refrigerio de nossos pensamentos,
esperança firme de nossos desejos, remedio de nossas faltas, medico de nossas fraquezes, &
premio de nossas obras. Como meu Deos, & Senhor tratarey de vosso santo Presepio, &
daquelle ditoso diversorio sagrado, aonde vòs, sendo Divino, por amor de peccadores,
quizestes nascer humanado. Mas ainda que me conheço por vil balbuciente, & grosseyro,
confiado que estivestes nelle Minino tenro, não deyxarey de tratar de tão bendito lugar
neste meu Itinerario, como tenho tratado de outros lugares santos por vòs meu Deos
santificados. Dentro na Igreja de Santa Catharina, ao pé da escada q vay para a sua cella,
está hua porta, pela qual entrando, abayxão por hua muy ingreme, & escura escada, de vinte
& tantos degráos de pedra, & vão dar em hua cappella feyta da mesma rocha viva,
subterranea, & sem claridade algua, salvo q no meyo da escada arde de continuo hua
alampada, de que participa a cappella; a qual he feyta tem cõpasso, ou arte, mas quasi como
a formou a natureza, sussenta-se com ter no meyo hum grosso pilar feyto de pedra, & cal. A
parte do Ponente tem hum Altar arrimado á rocha, & debayxo delle hua grande, & concava
cova, aonde forão metidos a mayor parte dos mininos, que por mandado do Impio Herodes
foraõ em Belem degollados. Chama-se a Cappella dos Innocentes, & nella celebramos a
festa do seu dia. De/fronte 320 deste Altar á mão direyta está hum breve, & estreito corredor,
pelo qual entrando á mesma mão direyta, está a sepultura do bemaventurado Santo Eusebio
discipulo, & companheyro, que foy do glorioso S. Hieronymo, feyta a modo de Altar, de
marmore muyto fino. Mais adiãte saindo do corredor está hua camara quadrada, no qual á
parte Orietal está a sepultura do Doutor S. Hieronymo, & a sepultura da gloriosa Santa
Paula Romana, & de sua filha Eustochio, á parte Occidental, ambas estas sepulturas feytas
a modo de Altar, & de marmore muy bornido, & em cada huma dellas arde huma
alampada, por não haver naquella furna outra claridade algua, & em cada hua destas
sepulturas se ganhão sete annos de perdão, & sete quarentenas, & o mesmo na cappella dos
Innocentes, não obstante, que o corpo do glorioso S. Hieronymo foy levado a Roma, & está
241
com muyta veneração na Igreja de Santa Maria Mayor, aonde tambem foy levado, & está o
Santo Presepio. Junto a esta cappella, & sepultura, está outra estancia algum tanto mais
remota, a qual chamão o estudo de S. Hieronymo, por ter o lugar aonde este glorioso
Doutor estava, & tinha sua livraria, & aonde trasladou a Sagrada Escritura: sómente esta
estancia participa de huma pequena claridade, que lhe entra por huma abertura feyta da
natureza na rocha viva. Todas estas estancias estaõ debayxo do chão como furnas marinas,
& sómente esta participa da luz do dia, ainda que muy pouca. Tornando á cappella dos
Innocentes, & andando seis, ou sete passos ao Ponente, chegamos á porta do Santo Presépio
a qual aberta vemos defronte o lugar milhares de vezes santissimo, ande teve por bem
nascer o Verbo Divino encarnado, & Salvador do mundo, Christo Jesu nosso Deos, &
Senhor verdadeyro. Com /
321
cuja vista toda a alma que alli chega começa de sentir a
suavidade do lugar sagrado, & bendito. Alli parece que de continuo se vem visoens dos.
Anjos com os olhos corporaes: & se sentem suas melodias, & canticos Angelicaes. Alli se
vos figura verdes claramente Deos humanado, & nascido estar em o Presepio posto, &
reclinado, os Pastores, & Magos, adorando: a Virgem , gloriosa, & o Santo Joseph seu
Espoto, aquelles tão altos mysterios contemplando. He de tanta magestade, & devoção a
cappella do santo Presepio, que sem duvida para mim tenho, não haver Christão no mundo,
por muyto máo, & pessimo que seja, que entrando alli com algua consideração da santidade
daquelle santissimo lugar, naõ se arrependa, & tenha dor intima, & contrição de seus
peccados, tornando muyto atraz do que antes era, & no amor de Deos, achando-se muyto
mais adiante do que cuydava. Co muyta razão se chama, & deve chamar a santa Belem,
casa de pão, & fartura, porque não sómente as almas devotas alli se fartam de gostos, &
consolações espirituaes, mas tambem as indevotas, & frias, se buscão em algua maneyra ao
Menino Jesu alli nascido, lhe he concedido em grande abundancia o manjar espiritual, &
suavissimo, o que .não hua só vez acontece a todos acharem alli divinas , consolações, que
de verdade parece estar sempre alli posta a mesa do Senhor convidando a todos cõ sua
graça: & incitando-os ao seu amor divino.
A experiência ensina aos que saõ continuos em visitar aquelle santissimo lugar,
quata razão teve o glorioso Doutor São Hieronymo, & outros rnuytos Santos, & Santas, em
deyxar suas proprias patrias, & naturezas, & irem-se morar áquelle santo, & melifluo lugar,
242
illustrado, & esclarecido com a luz divina, santificado com / 322 o virginal parto da Virgem
pura, immaculada, & santa. Esta cappella he a mesma lapa subterranea, & diversorio, como
era no tempo em que nella nasceo o Redemptor Jesu Christo, tem outra mudança alguma,
salvo fazerem-na a modo de Igreja, & ornarem-na como a tão glorioso lugar convinha. Vay
continuando a mesma furna por debayxo da terra, toda em rocha viva até o estudo de São
Hieronymo, como tenho dito, sempre larga em boa maneyra, ainda que em hũas partes mais
que em outras com differentes sahidas, de modo que bem podia servir de gasalhado, &
diversorio, para muytas penhas estrangeiras.
Tem esta santa cappella trinta pés em comprido, & quatorze de largo, o chão he
cuberto de taboas muy compridas, & largas de marmore fino: as quaes como depois de
ferradas, & polidas foraõ postas por sua ordem com suas veas, huas juntas com as outras,
mostraõ aguas, & lavores com muitas curiosidades. A abobada de cima he de rico
Moysaico toda, & as paredes do pavimento até o tecto, tão cubertas das mesmas taboas,
postas em duas fieiras, tão lindamente lavradas huas, & outras, que vos vedes nellas, como
em espelho cristalino, & taõ unidas em si, que para se enxergarem as junturas, convem ter
muy boa vista. Todos estes marmores assim serrados tem da sua natureza muytas imagens
fabricadas, rochedos, & arvoredos, algum tanto o azul sobre o branco, a modo de
perçolanas, cousa certo tão estranha, que causa espanto. E porque achey no memorial das
cousas da Terra Santa, que temos na Sachristia do nosso Convento, num milagre digno de
memoria, q aconteceo ha menos de cem annos acerca destes marmores, o quero escrever
aqui.
O Soldaõ do Grão Cayro, a que muytos chamavão / 323 Babylonia, sendo senhor do
Egypto, Siria, & Palestina, veyo a visitar a Terra Santa, & entrado nesta santa cappella
aonde nasceo nossa luz, vendo a fineza dos marmores, & sua grande curiosidade,
determinou mandallos tirar, & levallos ao Grão Cayro, para com elles ornar os seus paços.
E vindo os officiaes, & querendo começar de os tirar diante do mesmo Soldaõ, sahio de
entre elles subitamente hua muy grade, & espantosa serpente, que a todos causou espanto,
& terror: & andando sobre elles começando no primeyro os mordeo todos, que foy causa de
se fenderem, & estalarem como vidro, & desappareceo. Vendo o Soldão, & os seus o que
passava, ficarão alheyos de si: & mandou que ningue tocasse nelles, nem em cousa daquella
243
cappella. Tanto que o mandamento foy posto, & promulgado, as quebraduras ficárão
soldadas, & inteyras, ficando sómente nos lugares, aonde a serpente mordeo hum sinal,
como de fogo, que até o dia de hoje permanece em todas ellas, & desta maneyra foy
guardada aquella bendita cappella, a qual dizem mandou fazer a Rainha S. Helena.
Não tem este santo lugar claridade alguma, salvo a de muytas lampadas que nella de
continuo ardem, á conta de algus Principes Christãos, & das esmolas, que se offerecem aos
Frades que morão na Terra Santa, das quaes elles sómente tem cuydado: & por particular
amisade, & importunos rogos permittem aos Armenios aterem alli duas, por serem nossos
amigos, & devotos.
Na cabeceira, & principal lugar desta cappella está hu Altar defronte da porta, por
onde entraõ, metido na parede com hu arco muy rico de porfido. A mesa he hua taboa de
alabastro de seis palmos em cõprido, & pouco mais de tres em largo: a qual fica em vão. /
324
Debayxo della está tudo ornado de jaspes serpentinos, assim no tolho, como de redor nas
paredes: & no meyo delles huma muy rica, & resplandecente pedra branca, lavrada á
maneyra de Estrella com quatorze clarissimos rayos, & dentro della hum porfido redondo,
& concavo dous dedos, cujo vão tem sómente hum pequeno palmo: & aquelle he o lugar
sacratissimo, onde o bom Jesu, manso cordeyro esteve aquelle momento, que sahio das
purissimas, & virginaes entranhas da Virgem Maria Senhora nossa, feyto homem
verdadeyro, para aos mortaes fazer Deoses celestiaes.
Daquelle lugar sagrado cinco, ou seis pés, á mão direita, presupondo que o estamos
adorando, & reverenciando, está hua muy fermosa columna retorcida de jaspe, que susteta a
rocha naquella parte, & junto a ella hua escada de tres degraos, que toma outra cappella ao
cõprido, & por aquelles degraos abayxão ao lugar, onde está o santo Presepio, que está dos
degraos mais adiante hum covado, de maneyra, que fica separado, & mettido em cappella
por si, havendo do Presepio ao lugar aonde a Virgem o pario, dez palmos, afora os degraos,
espaço muy conforme ao que diz o sagrado Evangelista S. Lucas: Peperit, &c. & reclinavit
eum in præsepio , quia, &c.
O lugar do santo Presepio, ou para melhor dizer, o que agora chamaõ Presepio, he
de cinco palmos de comprido. & tres de largo, feyto a modo de huma mangedoura de
animaes. A parede que está junto a elle, não está cuberta, nem ornada com. algua cousa,
244
mas sómente a rocha viva, como estava no tempo que o Redemptor do mundo nasceo, & no
meyo della está posta, & mettida hua pedra, que a Virgem N. S. lhe poz á cabeceyra. Em hu
dos marmores deste santo Pré/sepio
325
da parte de dentro, está a imagem do glorioso
Doutor S. Hieronymo, cõ barba cõprida, & carapuça grande na cabeça, como costumavaõ
trazer os Caloiros, & Monges daquellas partes, & de toda Grecia: & isto não lavrado por
artificio humano, mas miraculosamente da natureza feito, & debuyado da mesma vea da
pedra, queredo o Creador de todas as cousas mostrar o amor, & devoção que o seu fiel
servo S. Hieronymo tinha aquelle santissimo lugar.
Quando entramos nesta santa Igreja, logo no primeyro canto à mão esquerda, está
sinallado o lugar, aonde desapareceo a Estrella, que aos Santos Reys Magos até alli servira
de guia, tornando-se na materia de que antes fora formada, & alli se ganha indulgencia
plenaria. E dentro na cappellinha, & apartamento aonde está o Santo Presepio, está hum
Altar no lugar, aonde estava a Virgem Sagrada, tendo o bendito Jesus nos braços, ao tempo,
que o adoravão os Reys Magos, edificado em louvor, & invocação delles, & alli tambe se
ganha indulgencia plenaria. Tambe se ganha a mesma indulgencia plenaria no lugar aonde
N. Redemptor nasceo, & no lugar do Santo Presepio, & se ganha no lugar da Circuncisaõ
que fica de fora desta Igreja pequena, & dentro na grande, mas junto a hua das portas de
bronze, que cay entre o lugar do nascimento, & o do Presepio, & como a porta he aberta a
modo de gelosia, de dentro o vemos, visitamos, & reverenciamos. De modo, q dentro
naquella Igrejinha se ganhaõ cinco indulgencias plenarias todas as horas, que dos
Cathotlicos aquelles benditos lugares são visitados. No Altar do Nascimento, o qual tem
hum retabolo muyto rico, & devoto, posto que pequeno, conforme ao lugar, ainda que digaõ
nelle Missa de Requiem, diz-se nella Gloria / 326 in excelsis Deo, porque tem aquelle lugar
sagrado privilegio para isso. Na cappellinha do santo Presepio ardem de continuo tres
alampadas sómente, porque o lugar naõ he para mais, o qual se cobre todo com hua cortina,
& corrediça, que alli trouxe da India a devota mulher Mecia Pimenta.
Todas as nações Orientaes tem este lugar do santissimo Presepio em grandissima
veneração, e muy em particular os Turcos, & Mouros, os quaes naquella terra tem por
costume quando haõ de jurar algua cousa de muita importancia ir a este santo lugar, & jurar
nelle: & o juramento alli feyto não o quebrarão, ainda que lhe releve a vida. E todo o Turco,
245
ou Mouro, q daquellas partes vay a Mecca, primeyro ha de visitar este santo lugar do
Presepio, & em todas suas enfermidades, trabalhos, & necessidades vão a elle com toda a
confiança buscar o remedio: mas não lhe consentimos entrar dentro: de fora postos na
Igreja grande de N. Senhora, que a todo Christão he comum, & a toda pessoa, pelas
gelosias das portas de brõze, o visitão, & adorão, & em santa veneração o tem, q quando
delle se apartaõ, tornando-se para suas casas, não lhe hão de volver a traseira, mas andando
para trás se tornão, nem se permitte a algum Christão daquellas partes entrar alli dentro,
salvo na festa do Natcimento, & aos Armenios dia da Epiphania.
Prove-se sempre em toda a familia dos Frades hum Religioso espiritual, & devoto,
que tenha com muyta diligencia cuydado particular deste santo lugar, o qual cada oyto dias
o ensaboa com sabão muy cheyroso, que para isso levão de Venesa, & o lava, & enxuga
com toalhas para isso feytas, & deputadas, que não servem de outra cousa, & o perfumão
com preciosos cheyros, /
327
& aguas odoriferas. Costumão alguas mulheres Chrittaas da
terra, quando a noyte de Natal lhe he permittido entrar dentro, levar escondidamente massa
feyta, & farinha, & nas lages daquella santa cappella, ou Igreja a sovão, & a amassaõ, &
depois em casa fazem paõ, o qual affirmão servir-lhe para muytas enfermidades; & muytas
penhas naquella noyte, & dia, levão papeis cheyos de perfumes, que alli com muyta
devoção derramão. Poucos annos antes que eu fosse á Terra Santa, faleceo em Belem hum
Mouro, & deyxou huas poucas de oliveyras que tinha ao santo Presepio, para que os Frades
se servissem dellas: aconteceo estando eu lá, que hu Christão de Belem quiz furtar hum
cesto de azeytonas: & andado-as colhendo em cima da oliveyra, acertou de o ver hu Mouro
do mesmo lugar, & reprehendeo, dizendo-lhe, que não as furtasse : mas não tendo o
Christão dever com elle, nem se dando por achado da reprehensaõ, repetio o Mouro, que
Jesu, & Santa Maria, cujas aquellas oliveyras eraõ, lhe daria o pago, & dizendo estas
palavras, cahio o Christão da oliveyra, & quebrou hua perna, o que causou temor aos
Christãos, & Mouros da terra.
246
CAPITULO LIII.
Da procisaõ que cada noyte se faz ao santo Presepio, & como se celebra a festa do
Nascimento.
COstume he antigo todos os dias do anno os Frades, q moraõ no nosso Mosteyro
de Belem, fazerem huma procissaõ da Igreja de Santa Catharina até o santo Presepio, com a
qual visitaõ aquelles santos lugares da maneyra, q faze os q em Hierusalem /
328
estaõ no
santo Sepulchro: a qual ordenaõ desta maneyra, dizendo sempre a Completa em
anoytecendo, & concluindo-a cõ Divinu auxiliu, & o mais: o Acolito toma a Cruz, & dous
Frades os ciriaes, & começa o cantor o Hymno do Natal: & no verso Memento salutis
auctor, dize, hic nascendo forma, &c. assim mesmo no verso, gloria tibi Domine qui natus
est hic de virgine, & mettem este pronome hic, aonde quer que cabe. Quando chegão á
porta da cappella do santo Presepio, começão a cantar a Antifona da Magnificat das
segundas vesperas do dia de Natal do Senhor: & em lugar de hodie, dize, hic Christus natus
est, hic Salvator apparuit &c. Aqui nasceo Christo, aqui appareceo o Salvador, & chegando
ao Altar põem-se de giolhos, & acabão de cantar toda a Antifona, verso e oração, como no
dia do Nascimento. Daquelle lugar, assim como estaõ de giolhos se virão para o santo
Presepio, & dizem a Antifona. Apertis thesauris suis obtulerunt Magi Domino in loco isto:
& tudo o mais, como na festa da Epiphania: & dalli sèm se mudarem, pondo os olhos no
Altar da Circuncisaõ, cantão a Salve Regina. Vers. Te ergo quæ sumus tuis famulis subveni:
Resp. Quos pretioso sanguine redemisti.
Oração.
DEus qui salutis æternæ beatæ Maria Virginis, &c.
Depois fazem commemoração do glorioso Doutor Saõ Hieronymo, & da Virgem
Santa Catharina, & commemoração pelos navegantes, & isto infallivelmente todos os dias,
quer os Frades estem muytos, quer poucos. Dalli vão á cappella dos Innocentes, & aos
sepulchros de Santa Paula, & Eustochio, & de S. Hieronymo, & em cada hum delles fazem
sua commemoração, & concluem a procissaõ, & da mesma maneyra /
vaõ os peregrinos, ainda que com mais solemnidade.
329
a fazem quando
247
A Vigília do Nascimento do Senhor, em amanhecendo, os Frades que moraõ em
Hierusalem, se vão a Belem, & diante do santo Presepio dizem a Prima, & se canta cõ
muyta solemnidade a Kalenda, a qual acabada se faz Sermão aos Frades, & peregrinos
Francos, q vem todos quasi sempre aquella sacratissima festa, assim de Alepo, & Damasco,
como do Egypto, & de outros lugares de Turquia, aonde trataõ mercadores Venesianos, &
Florentinos, & de outras partes de Italia, & Esclavonia. E como o lugar, aonde se prèga he o
mesmo, em que o Salvador do mundo nasceo não he necessario dizer que nasceo em
Belem, nem que pinte o lugar seguindo opiniões, & tratando se he portal, ou diversorio,
senão que com o dedo mostra o lugar aonde nasceo, & foy reclinado o Salvador do mundo,
com santas lagrimas dos ouvintes, & soluços, que muytas vezes se interrompe o Sermão, &
não se acaba: porque causaõ muyta devoção os testimunhos, que dá do santo Nascimento;
as profecias, as authoridades das Escrituras sagradas alli literalmente compridas, & ver com
os próprios olhos o lugar aonde nasceo, o Presepio em que foy reclinado, & posto, com cuja
vista se enternecem as entranhas, & se derretem os corações com huas lagrimas mais doces,
& suaves, que todos os cordeaes da vida. Acodem tambem a esta solemnidade muytos
Francezes, que trataõ em Turquia.
Acabado o Sermão, & Missa, o dia se gasta em alegres praticas espirituaes,
communicando-se os Religiosos com os peregrinos: & alguns o gastaõ em continua oração,
& contemplação, aproveytando-se do tempo em lugar tam opportuno, porque nelle faz o
Senhor Deos muytas /
330
merces, & liberalidades do seu divino amor, a quem as procura.
Eu vi nelle santos excessos, & elevamentos espirituaes a Frades, & seculares, que se os
houvesse de escrever, seria nunca acabar. As Vesperas se dizem a sua hora ordinaria, com
muyta solemnidade, &apparato de muy ricas cappas, & ornamentos, porque todo o bom que
temos na Terra Santa, sahe naquelle dia. Ao tempo que as acabão, já estaõ juntas todas as
mais nações de Christãos, que moraõ naquellas partes, & muytos peregrinos seus de Grécia,
Egypto, & outras: & ornados seus Altares, os Gregos na cappella mòr, que he sua, & os
outros nos lugares que já tem apropriados, começaõ seus officios divinos conforme ao
modo de cada nação com seus ritos, & ceremonias, nos quaes ordinariamente se detem até
as nove horas da noyte: acabando hus primeyro, & outros derradeyro, & neste tepo se lhe
abrem as portas de bronze, & tem toda liberdade para entrar, & saír, assim a dar incenso,
248
como a fazer outras ceremonias que costumaõ. Costuma o Patriarca dos Gregos vir sempre
a esta solenidade acompanhado de muitos Caloiros, & outros Ecciesiasticos, ornados todos
de muy ricos ornamentos: & trás diante de si huas bandeyras muy ricas de ouro, & seda: &
manda pòr seu throno Pontifical muy ornado em hu lugar alto, por se mostrar pomposo ás
outras nações, q quasi todas vivem miseravelmente, & saõ muyto menos, q os q segue a
Igreja Grega: mas ne por isso he mais estimado, antes por sua soberba de todos tido em
menos conta, aborrecido, & malquisto. Os Armenios naõ acodem a esta festa, porq a
celebraõ neste mesmo lugar dia da Epiphania, para o q lhe daõ os Frades todo o favor, &
liberdade, por serem nossos amigos, & devotos.
Tanto q as nações de Christãos acabaõ seus Officios / 331 Divinos, entraõ os Frades
ás Matinas, as quaes se cantão com muyta alegria; cõ todo canto de Orgão, como se fosse
em qualquer Cidade destas nossas partes, & acabadas começaõ a Missa, a qual diz o Padre
Guardião. O anno que fomos de Franquia, & me achey nesta santa festa: entrando o
Advento pedi q me levassem a Belem para gozar da devoção, q o Officio daquelle tempo
causa mayormente naquelle lugar, a q tão particularmente pertence, porq havia dous mezes,
q estava na cama muyto doete, & a noyte daquella santa solemnidade ditas Matinas, o
melhor q pude, me fuy ao santo Presepio, & estive encostado a elle toda a Missa, naõ com
pouco contentamento de minha alma, vendo-me em tal tempo, & tal noyte, naquelle
santissimo lugar. E mandoume o Padre Bonifácio perguntar se me atrevia a celebrar,
querendome dar aquelle favor, ainda que havia na casa, & companhia outros mais velhos,
& de mais merecimentos. Aceytey a merce offerecida, & em quãto disseraõ as Laudes,
disse Missa com grande alegria minha, offerecendo-a a meu Deos, & Senhor pelo be
comum deste Reyno : o qual eu veja cõ santos bes, como lhe eu desejo: & porque estava
muy fraco, assistirão dous Padres Sacerdotes ao Altar comigo. Aos oito dias do mez de
Agosto, costumão todos os Christão da terra, que não tem justo impedimento, juntar-se no
bendito lugar da Igreja grande de fora: & nella fazem huma grande festa á Virgem nossa
Senhora : perguntey a causa disto a alguns velhos acreditados, & nossos familiares, &
amigos: disserão me, que tinhão por cousa muy certa, que a Virgem gloriosa oyto dias antes
de seu transito fora visitar aquelle santo lugar, & despedir-se delle, & que em memoria
249
daquella despedida celebravão aquella solemne festa, pelo acharem assim escrito nas suas
historias antigas.
250
332
CAPITULO LIV.
Do lugar aonde o Anjo appareceo aos Pastores a noyte do santo Nascimento.
HUma milha do santo Presepio para a parte do Oriente está o lugar aonde os
pastores andavaõ pascentando seu gado a hora do Nascimento sancto, quando cõ grande
resplandor lhe appareceo o Anjo, como diz o sagrado Evangelho. Para irmos a este lugar
bendito, em sahindo do Mosteyro, tomamos sobre a mão esquerda ao longo da Igreja grãde
de N. Senhora. E quanto pòde ter dous tiros de pedra, junto ao caminho á mão direyta, está
hũa grande furna ao modo da do tanto Presepio, & na primeyra estacia está hũa competente
camara, feyta como hũa cappella da mesma rocha viva, se haver cal, ne pedra, salvo hu
Altar de fabrica. A terra desta cappella, & toda a mais da furna he quasi toda branca, &
desfasse como farinha, a qual te particular virtude de acrecetar o leite ás mulheres, & aos
outros animaes brutos femeas, que criaõ, & não só as mulheres Chriftãas, mas também as
Turcas, & Mouras usaõ della, bebendo-a em agua, & a dão ordinariamente aos seus
animaes, para o que digo, chamaõ todos áquella terra, leyte de nossa Senhora, & affirmaõ,
que esteve ella alguns dias naquelle lugar escondida cõ o Menino Jesu, & o Santo Joseph,
antes que fossem para Egypto: & que com seu leyte divino, do qual por sua vontade
derramou alli alguas gotas, santificou aquella terra, dando-lhe aquella virtude; seja como
for, para os incredulos digo: o lugar he muy venerado, & a terra com tal titulo tem aquella /
333
bondade, & he a mesma, que em alguas partes se mostra por particular reliquia, com lhe
chamarem leyte de nossa Senhora. Pouco mais adiante está no caminho huma Igreja meya
derribada, & cahida, que foy alli antigamente edificada á honra do Santo Joseph, amo, &
pay putativo de nosso Redeptor, no qual lugar dizem, que estava dormindo, quando lhe
appareceo o Anjo, & lhe mandou, que levasse o Menino, & sua May a Egypto. Alèm deste
lugar pouco espaço estaõ huns casaes, onde moraõ Chriftãos, & junto ás casas hum grande,
& muy largo poço de agua muy gostofa, o qual communmente de todos he chamado o Poço
de Santa Maria, & assi mãe, que a Virgem nossa Senhora fez alli nascer aquela agua no
tempo, que esteve em Belem. Muytas cousas grandes ouvi contar acerca deste poço, &
muytas me mostrou em hum gravissimo author num doutor Theologo neste Reyno, depois
251
que vim da Terra Santa, as quaes não escrevo aqui, como outras devotas, & piedosas, que
deyxo de escrever, que ainda que não repugnão ao que se deve crer, parecem em alguma
maneyra frivolas para este nosso infelice tempo, no qual ha no mundo tantos grosadores, &
atilados, mais em boa linguagem, que em sinceridade do espirito; o que sey dizer dizer he,
que nem em Belem, nem em todo aquelle territorio ha outra agua nativa senao aquella.
como tambem a não ha em todo Egypto, que aproveyte para beber: salvo a de hũa fonte,
que nossa Senhora deu miraculolamente, que atè o presente retem o nome de Santa Maria,
& com ella regão a vinha do balsamo. Como a Virgem nossa Senhora andou, & esteve
naquella Terra Santa todo o discurso de sua vida, naõ se deve ter escrupulo aos milagres,
que se contarem, pois vemos quá entre nòs quantos faz cada hora, & cada dia, como /
334
Senhora, & Rainha dos Ceos, & da terra. Daquelle poço, & casaes abayxamos huma
ingreme ladeyra, & chegamos a hum valle, no qual em hum pequeno outeyro está huma
Igreja dedicada em louvor dos Anjos, que naquelle lugar apparecèrão aos Pastores a noyte
do Santo Nascimento. Ao presente tambem está huma parte della cabida, & não do tempo:
mas por maldade de hum Turco, que era Subassi de Belem, & a mandou derribar havia bem
poucos annos: porem não ficou sem castigo, porque em começando de lhe pòr o ferro,
como dizem, supitamente enfermou o Turco, & chegou ao ultimo da vida: pelo que mandou
logo com muyta pressa, que a não derribassem, mas ne por isso escapou do castigo divino,
porq dalli a muy poucos dias teve hũa morte muy espantosa, & em menos de hum anno lhe
morrerão as mulheres, & filhos, & criados, & ate os cães, & gatos de casa, sem ficar
memoria de cousa alguma, porque ao ultimo cahio a mesma casa em q morava. Visitamos
os Frades muytas vezes aquelle lugar, & Igreja, assim por devoção espiritual, como por
recreaçam corporal: porq não temos por alli outro lugar mais perto, aonde vamos tomar
algum alento, quando nos aperta a melenconia monastica. Ganhão aqui sete annos, & sete
quarentenas de perdão. Abayxo deste lugar á mão esquerda está arruinado hum grande
Mosteyro, segundo mostrão suas ruinas, & alguas paredes que estão em pé, o qual mandou
edificar, & nelle morou a bemaventurada Matrona Santa Paula com sua filha Eustochio, atè
o ultimo de sua vida, em companhia de muytas virges, & tantas matronas.
Tem o nosso Mofteyro de Belem hũa vista muy graciosa, & recreativa: para a parte
Orietal se vem delle muytos lugares, de que a Escritura Sagrada faz me/moria
335
: em
252
especial todo o Monte Engaddi, que antigamente foy povoado de muytas vinhas frutiferas,
Thecua, aonde nasceo, & se criou o Profeta Amòs, cujo castello está muyto intevro: mas
não serve de mais que de criar pombas. Todo o Valle da Benção, aonde EIRey Josaphat
venceo aos Moabitas, Ammonitas, & aos do Monte Seir, como se lè em o segundo do
Paralipomenon, parte de Arabia, & Mar Morto, & outros muytos lugares da outra parte do
Jordão, que aqui deyxo de escrever.
253
CAPITULO LV.
Do jardim de Salamaõ Rey qne foy de Hierusalem, chamado na Escritura, hortus
conclusus, & da fonte sellada, ou cerrada.
COmo meus continuos desejos eraõ ver cousas novas, aquellas somente me ficavaõ
por ver, que minha possibilidade não podia alcançar: aonde estando eu alguns dias devagar
no nosso Mosteyro de Belem, quasi como morador, por affeyçaõ particular que tinha
áquelle santo lugar, ouvindo fallar hum dia na fonte de Salamão, chamada, fons signatus,
no livro dos seus Cantares, comparada á verdadeyra fonte da vida, a Virgem Senhora nossa,
da qual todo bem nos manou, & mana, vieraõ-me grandes desejos de a ver. E manifestandoos ao Padre Guardião da casa, lhe roguey, que desse ordem para a irmos visitar por nos
dizerem que estava muyto perto, foy elle contente de me fazer aquella caridade, & darme
aquelle gosto: aquelle mesmo dia mandou chamar dous Turcimães de Belem, Bocali, &
Almansor, nossos familiares, & amigos, /
336
& lhe rogou, que com outros amigos, &
parentes seus estivessem prestes, para em amanhecendo irmos ver o jardim de Salamaõ: ao
dia seguinte em rompendo a alva vieraõ cinco Christãos, & três Mouros, todos amigos, &
vizinhos, q elles mesmos se convidarão a irem em nossa companhia para sua recreação, os
quaes todos eraõ necessarios por causa dos Arabes, que cõtinuaõ muyto aquellas partes por
amor dos pastos, que por alli saõ muytos, & tambem por causa das montanhas asperas, que
ha naquella parte, aonde se escondem dos Turcos, seus capitães inimigos, q muytas vezes
os buscaõ: & com elles nos partimos, indo em nossa companhia o Padre Guardião do
Convento, & outros dous Religiosos. Tendo caminhado huma boa legoa entre Sul, &
Poente, chegamos ao lugar daquella preciosa fonte, da qual os da terra tem tão pouca
memoria pelo pouco, que nisto lhe vay, que quasi não fazem conta della, posto que se
aproveytaõ da sua agua. Mas como os Frades antigos foraõ curiosos em investigar os
lugares santos; & secretos, que podiaõ: sabem atinar os modernos com o que achaõ escrito
nos quadernos da casa, & huns avisaõ aos outros, o que naquellas partes foy em todo
tempo, como já algumas vezes tenho dito: está a dita fonte em hua vinha de hum Mouro,
debayxo de hua grande figueyra, mettida toda, & cuberta debayxo do chão, em huma
camareta muyto forte, que ainda mostra, que foy lavrada de Moysaico: entramos dentro
254
com grande trabalho, tirando primeyro hua grande pedra, q servia de porta, & dentro vimos
muy pouca agua: mas pouco mais adiante fóra della, sahe como hua mediana ribeyra.
Estimava tãto Salamão esta fonte, q ouvi dizer a Judeos velhos acharem escrito em historias
antigas, tela sempre fechada com sua mão, & /
337
sellada com o seu sello, & não cõsentia
ser aberta por outrem, senão por elle mesmo, quando de Hierusalem se hia recrear ao
Jardim, q alli perto tinha : mas porque a agua pudesse aproveytar a muytos, & cõ ella se
regasse o jardim, mandou fazer grades tanques, dos quaes atè o presente estaõ tres inteiros,
de tanta magestade, & grandeza, como convinha ao Rey, que os mandou fazer. O primeyro
tanque destes está mais de tiro de pedra da fonte: sua obra, ainda q muy gastada do tepo, he
a mais sumptuosa, que de semelhante qualidade tenho visto. Dentro, & fóra todo ornado
com muytas maneyras de lavores de azulejos, canos, casteletes sómente para ornato. Seu
circuito são quinhentos passos bem estendidos, a este dizem que trazia Salamao alguas das
suas mulheres, & concubinas, para nelle se lavarem & recrearem, & sendo isto assim, por
boa razão devia ter alli casas de prazer. Estão junto delle algus outros tanques pequenos,
lavrados com a mesma curiosidade, que o grande, que devia de servir para o mesmo effeyto
das mulheres.
Dous bons tiros de bèsta mais adiante está outro tanque de muyto mayor grandeza,
& menos curiosidade, o qual ao tempo que alli fomos, estava sem agua, & muy arrumado,
mas andavão muytos officiaes pedreyros trabalhando nelle, porque o Grão Turco tem por
grande primor sustentar cousa tão antiga, & que ficou de tão grande Rey, como Salamao.
Mais adiante em hua vallada está o terceyro tanque, muyto mayor que os outros dous, &
muy acabado de novo, & cheyo de agua, tão grande, & fundo, que podem nelle nadar naos.
Todo he cercado de muy alto muro, torreado por todas as partes, & depois que entraõ da
cerca para dentro abayxaõ a elle por duas escadas de pedra, de /
338
sessenta degraos cada
hua. Antes que a agua chegue a este terceyro tanque, sahe hum cano della por seus
aqueductos, & vay ter a Hierusalem a duas fontes: hua que está fóra da Cidade, & outra
dentro. Deste ultimo tanque vay a agua ter ao jardim de Salamaõ, chamado no livro dos
Cantares, horto concluso ou serrado: & atè agora retem o nome de jardim de Salamaõ,
como a fonte, & tanques, por nisso levar o Turco grande contentamento, que se isso não
fosse, não mandaria sustentar com tanto gasto, cousas, que estaõ como perdidas em hum
255
despovoado deserto, aonde já mais vay pessoa viva, salvo acaso, ou indo ver aquellas
grandezas de proposito, com a mesma curiosidade, que nòs fomos: mas como nisso leva
gosto, tem deputada renda, com que se sustente aquella fabrica.
O jardim tem quasi hua legoa de comprido, & não he muyto largo. Todo he muy
ameno, & deleytoso, situado em hum fresco valle, causado de dous graciosos montes muy
altos, hum ao Sul, outro ao Norte, o qual jardim vay de toda a parte tão serrado, que lhe
cabe muyto bem o nome de conduto, pois lho poz a mesma natureza. Tem-no arrendado
Mouros, q morão nelle cõ suas familias: & dão se a plantar todo o genero de hortaliça, que
vão veder à Cidade, & aos mais lugares visinhos. Tem muyto arvoredo, mas nesse pouco
que vimos, não dey fé, mais que de muytos marmelleyros, & grandes romeyraes.
Affirmárão-me, serem quasi cincoenta casaes, os que o tem arrendado. Entra pelo horto hua
grande levada de agua, que pòdem moer com ella muyta copia de moinhos. A commum
hortaliça he no verão muyto rabão, muyta couve murciana: no inverno grandes nabos, &
cenouras, & em todo tempo hum genero de couves muyto grandes, & altas, /
339
a que
chamão Canapetos, os quaes criaõ em si hua cabeça á maneyra de palmito na cor, com
muytas cabecinhas, como marcella, os quaes assim como saõ delicados no gosto, assim
custaõ muyto. Depois de termos visto algua parte do Jardim, o mesmo dia a boas horas nos
tornámos ao Mosteyro, dando muytas graças a nosso Senhor, por nos livar de todo perigo.
256
CAPITULO LVI.
Da montanha de Judea, & do lugar aonde nasceo o glorioso S. João Baptista.
AInda que por minha espiritual consolação alguas vezes fuy á montanha de Judea
no tempo q morey na Terra Santa: tratarey aqui particularmete daquella, da qual levou mais
gosto minha alma, por causa da festa do glorioso Baptista, que no seu proprio dia foy de
nòs naquelle lugar celebrada. Vindo pois a vigilia da solemnidade, & Nascimento do divino
pregoeiro S. Joaõ, nos partimos de Hierusalem depois de comer quasi trinta Frades, porque
vierão tambe os de Belem, como he costume, deyxãdo boa guarda em casa. Saindo da santa
Cidade, & tendo andado quasi meya legua, chegámos a hum Mosteyro de Caloiros
Gorgianos, sogeytos à Igreja Grega, & inimigos da Latina, & muy alheyos de nossa
conversacão, porem quando alli vay ter o Padre Guardião neste dia, ou quando vão os
peregrinos, mostraõ-lhe algum gasalhado por causa da companhia, que leva: chama-se
aquelle Mosteyro Santa Cruz: porque naquelle lugar, dizem nasceo a palma da qual foy
feyta a principal parte, de /
340
q a Cruz de nosso Redemptor foy fabricada: & alli esteve
algu tepo depois que da gloriosa Rainha Santa Helena foy achada: & no mesmo lugar foy
partida. E a Igreja toda lavrada de obra de Moysaico, & com outras pinturas ricas, &
curiosas. Debayyo do Altar mòr está hua concavidade, na qual dizem estava o madeyro, de
que fizerão a Santa Cruz: & alli se ganhão sete annos, & sete quarentenas de perdão, &
fazem esta commemoraçaõ. Antifona, Vers. Resp. como na festa da Invenção de Santa
Cruz de Mayo.
Oração.
DEus qui mira lignorum varietate dilecti filij tui crucem ornare voluisti, cujus
partem unam de hoc sanctissimo loco colligere fecisti, concede, ut ejusdem vitalis ligni
pretio æternæ salutis vitæ suffragia consequamur. Per eundem Christum, &c.
Dize q a Cruz, aonde pelo Salvador do mundo foy feita nossa redempção, era de
palma, cedro, acipreste, & oliveyra, entendendo tambem o titulo, & hu cepo, q estava junto
ao buraco, oonde foy mettido o cravo dos pès, & ha disso hus muy solemnes versos. Ao
257
tempo que andávamos negoceando nossa tornada para terra de Franquia, tomárão os Turcos
aquelle Mosteyro aos Caloiros, por hua occasiaõ bem pequena, o que foy muyto sentido de
todos os Christãos, em especial do Padre Bonifacio, por verem perder-se na Terra Santa hua
Igreja tão antiga, & nos fez sobre isso hu lamentavel sermão, que de todos foy ouvido co
muytas lagrimas, & attenção. Esta miseria padecem os Christãos, q naquellas partes vivem,
verem cada dia perderem-se os santuarios, hum dia hum pouco, & outro dia hum muyto,
tem algum remedio: pelo que procuramos ter / 341 là com que lhe tapemos a bocca, porque
mais gastamos em peytas, que em sustentar as proprias pessoas.
Feita oração nos partimos daquelle Mosteyro, & chegámos quasi ás tres depois de
meyo dia ao lugar de nòs desejado: & duas legoas de caminho muy aspero & montuoso,
mas o desejo, com que todos hiamos de o ver, no lo fez achar suave, & gostoso: & vi eu
hum Religioso, não pouco de sua condição mimoso, andallo todo descalço, derramando
nelle muytas lagrimas de devoção.
Quando chegámos, já lá estavão muytos Christãos, dos que vivem em Hierusalem,
& Belem, em especial Gregos, & Armenios, que alegremente nos receberão: & repousando
hum pouco junto a huma fonte muy fria, & fresca, na qual a gente da terra tem muyta
devoção, & de todos he chamada a fonte de Santa Maria, crendo que a Virgem gloriosa
havia muytas vezes estado nella no tempo que esteve com Santa Isabel sua Prima, no que se
não deve pòr muyta duvida, porque a mesma fonte, & seu sitio convidão a lhe dar credito,
por estar entre a casa, aonde estava Santa Isabel, quando da Virgem foy visitada, & a casa
aonde nasceo o glorioso Baptista; nem se pòde ir de huma destas casas a outra, sem passar
por esta fonte. Depois de repousarmos hum pouco, o Padre Guardião mandou alimpar o
lugar aonde haviamos de celebrar a festa que he o mesmo aonde nasceo o Precursor do
Senhor, feyto desta maneyra.
Está alli hua Igreja muy grande, & fermosa, & muy perfeytamente acabada toda
inteyra, & muy ricamente pintada, paredes, & abobeda, que mais parece moderna, que
antiga. A parte do Ponente, junto da cappella mòr tem hu corredor, & nelle hua cappella
pequena a modo / 342 de Sancristia: & não duvido q serviria disso em outro tepo a qual está
fora do andar da Igreja, & abayxao a ella por cinco degràos de pedra, & assim nesta
cappella, como na Igreja, os Mouros, q alli moraõ em huma aldea de alguas vinte atè trinta
258
casas, recolhem seu gado, & animaes de serviço. No Altar da cappella mòr da Igreja faze os
Gregos os seus Officios Divinos naquella festa: os mais Christãos, vão sómente como a
romaria: & na cappella pequena que está separada, aonde nasceo o glorioso Baptista,
fazemos sómente os Frades de São Francisco, nem tem nella mais liberdade os Gregos, &
os outros Christãos, que irem-se offerecer, & fazer oração. Mandou o Padre Bonifacio
barrer muyto be, & alimpar a Igreja, & cappella, & enramallas, & lançarlhe muyto
alecrim,.que por alli não falta, & como era ainda muyto cedo, pedimos cinco, ou seis Frades
licença para irmos ao deserto, aonde o bemaventurado S. João começou a andar, sendo
menino de sete annos, segundo o parecer de muytos devotos, & contemplativos: o qual
lugar está dalli pouco mais de hua milha: mas caminho muyto aspero, & andámolo com
brevidade, porque a devoção nos dava forças. Tres desertos de S. João se nomeaõ na Terra
Santa, o primeyro este de que logo tratarey, o segundo junto a Hebron, aonde dizem, que
andava sendo já de idade para poder denunciar ao mundo a vinda de seu Redemptor, &
admoestar ao povo, se aparelhassem cõ obras dignas de penitencia, para com ellas o
receberem, & alli aconteceo, o que diz o glorioso S. Lucas no Evangelho, a saber: Factum
est Verbum Domini super Joannem filium Zachariæ in deserto : quer dizer, fallou o Senhor
a João filho de Zacarias no deserto: o terceyro junto ao Rio Jordão, do qual em seu lugar
farey memoria. Chegamos ao /
343
primeyro deserto, aonde o bemdito S. João sendo moço
teve por bem habitar, o qual he tão espantoso, que se não pòde com palavras explicar.
Esteve alli antigamente hum Mosteyro de Monges, ou Caloiros, entre aquellas rochas, &
penedos: feytas as cellas como ninhos de ayvoens, & andorinhas, ajudados com alguma
industria humana, que de outra maneyra naõ podia ser. Agora está alli hua casa pequena,
como huma pequena cella, feyta na mesma rocha viva, com hum leyto a modo de poyal,
aonde dizem dormia o glorioso menino, antes santificado, que nascido: taõ bem feyto na
mesma rocha, que parece ser com artificio ajudada alli a natureza.
A cella tem duas frestas hua ao Sul, outra ao Ponente. A porta, ou portal igual com o
tecto. Cinco ate seis passos na mesma rocha nasce hua fontesinha, a qual de fóra não dá
mais final de si, que sentir se gotejar, & ver o lugar humido, & metendo a mão por huma
fenda da mesma rocha, tirão de cada vez como meyo copo de agua, que a abertura não dá
lugar para se poder tirar direito, ainda que seja outro qualquer vaso pequeno, mas digo
259
copo, porque com hum pequeno de manga, que levavamos fizemos experiencia. Bem
parece a natureza haver alli aparelhado aquelle tão remoto lugar para o glorioso Baptista: o
qual está tão enquantilhado que chegámos a elle com muyto trabalho. Ao redor deste lugar
vão grandes matas de alcaparras. E dalli para bayxo vay a rocha em muitos lugares quasi a
prumo, & por entre duas asperas montanhas se faz huma vallada escura, & tão espantosa,
que causa temor olhar para ella, sómente me affirmárão haver por aquella parte animaes
bravos, & indomitos, que se criaõ por aquelle basto, & escuro arvoredo. No principio do
Christianismo, quãdo pelos desertos de Egypto, Scythia, /
344
& Palestina moravaõ os
Santos Padres em grande aperto, & aspereza de vida, como diz o glorioso Apostolo S.
Paulo, dando-se todos de todo ao Senhor, separados de toda humana conversaçaõ tambem
este deserto do glorioso Baptista era delles habitado, como me affirmáraõ alguns Caloiros
velhos, & hoje neste dia se vem muytos indicios disso. Antes que dalli nos partissemos,
cantamos o Hymno da festa do glorioso Santo: Antra deserti teneris sub annis, com o mais,
a Antifona. Puer autem crescebat & consortabatur spiritus, & erat in isto deserto usque in
diem ostensionis suæ Israel.
Vers. Inter natus mulierum nom surrexit maior.
Resp. Joanne Baptista.
Oração.
COncede nobis, quæsumus Domini, Jesu Christe, ut qui arduam Præcursoris tuis
pœnitentiam veneramur, ejus etiam virtutes, spretis mandanis affectibus imitemur. Qui
vivis, &.c.
Depois de termos visitado a nosso prazer o lugar, nos tornámos, & achámos a
companhia, que nos estava esperando: não querendo o Padre Guardião entrar ás Vesperas
sem nòs: & tanto que chegámos as começárão muy solemnemente com muyta alegria já
quasi Sol posto. Ao tempo que as cantámos, dentro na cappella do nascimento do glorioso
S. João, os Caloiros Gregos estavaõ no Altar mòr da cappella da Igreja grande, com grandes
cantos & ceremonias, que naquella festa costumaõ fazer, tendo diante de si no Altar nove
tortas muyto grandes já bentas, & a tempo de as quererem destribuir entre os seus, entrarão
pela porta sete, ou oyto Mouros, meyos Arabes, & cõ muyta furia, & pressa lhas tomarão:
260
& querendo-lhas defender os Caloiros lhe / 345 deraõ muyta pancada com bastões de que já
hiaõ providos, & lançarão a fugir. Levantou-se hum grande alvoroço entre os mais
Christãos, ao qual, sabendo nòs a causa não quizemos acudir, antes com mais solemnidade
hiamos com nossas Vesperas por diante, tendo experiencia daquellas revoltas, as quaes de
continuo com outras mil miserias padecem os Christãos naquellas partes, por lhe faltar o
favor que temos os Latinos.
Cantadas nossas Vesperas, & rezadas as Completas, nos subimos ao terrado da
Igreja, aonde já achámos os Caloiros, & outros muitos Christãos, por estare mais seguros
dos Arabes, & de outros Mouros famintos, q sepre acodem em semelhantes tempos, por ver
se achão de que lançar mão: & alli passamos atè a meya noyte, cada hum o melhor que
pode. A mais gente popular de Chriftãos, que se ajuntou a celebrar a festa, toda a noyte
passou em cantares a seu modo, mas sempre com boa guarda, & vigia. Ao tempo que nos
parecerão horas, nos fomos á nossa cappella do Nascimento, &nella cantámos Matinas, &
rezamos as mais horas, o que concluindo, me concederão com rogos meus dissesse a
primeyra Missa naquelle bendito lugar, a qual disse com grande cõsolação minha espiritual,
assim por ser naquelle lugar, & em tal dia, como pela muyta devoção, que tenho ao glorioso
Baptista, digno meritamente de todo o mundo lha ter por tantas graças de que Deos eterno o
fez mais merecedor, & Santo, que todos os outros Santos, depois da Virgem nossa Senhora.
Em eu acabando a Missa cantarão a Missa do dia, por não querer o Guardião, que houvesse
mais Missas rezadas, por acabarem com tempo, antes que houvesse calma, & haviamos de
ir tomar refeyção ao Convento, porque acertou de sair aquelle anno aquella festa em festa
feyra, em
346
que os Frades de S. Francisco temos obrigação de jejum da Regra. A Missa
acabada cantámo o Hymno: Ut queant laxit, Vers. Apertum est illico os ejus, & lingua ejus.
Resp. Et loquebatur benedicens Domino.
Oração.
DEus qui beatum Zachariam Sacerdotem tuum: de sanctæ promissioni prolis
dubitantem, taciturnitatis plaga percussisti, cui post modum credenti os ejus Spiritu Sancto
plenum, in tuas laudes mirabiliter reserasti: concede, ut suis, atque filij gloriosi precibus,
261
& meritis, linguis nostris incredulitatis vinculo resolutis, ea, quæ tuæ placita sunt voluntati,
corde credentes, animosè confiteamur. Per Christum Dominum nostrum.
Aqui neste lugar se ganha indulgencia plenaria.
Isto concluido, fomos ao lugar, aonde a Virgem nossa Senhora se vio com sua prima
Santa Isabel: & compoz o dulcissimo cantico da Magnificat: que foy na casa aonde
naquelle tempo morava Zacarias; a qual depois em tempo de Christãos foy feyta hum muy
solemne Mosteyro de Religiosas, de que ao presente não ha mais memoria, que as paredes
da Igreja, & a cappella mòr toda inteyra, com muytas pinturas de muy bom pincel. Nesta
mesma casa dizem, que o santo Zacarias compoz o cantico de Benedictus Dominus Deus
Israel & aqui tambem ganhão indulgencia plenaria.
Bem se vè ser o santo velho Zacarias homem, que podia, & valia, & tinha casas, &
aposentos em hua parte, & em outra: & como rico, & abastado, era conhecido em toda a
montanha de Judea; o que tambem vemos nestes nossos tepos, nos que muyto tem, pelos
quaes se soe dizer, quantum habes, tantum vales, /
347
quer dizer: quanto tens, tanto vales.
Os miseraveis, & pobres sómente Deos os conhece, do qual hão de ser premiados, se com
sua pobreza tiverem paciencia. Haverá desta casa á outra, aonde nasceo o glorioso Baptista,
hum grande tiro de bèsta, & no meyo de ambas está a fonte, que tenho dito, a qual he muy
clara, & fermosa, & corre em muyta abundancia, & com ella se regão hortas, & laranjaes,
que por alli ha em grande copia.
262
CAPITULO LVII.
Do caminho que fazem os peregrinos, indo de Hierusalem a Belém, quando vão de
Franquia.
AInda que depois que visitámos aquella santa montanha, & celebramos nella a festa
do glorioso Baptista, nos tornamos a Hierusalem, porèm porque os peregrinos, que vão á
Terra Santa, primeyro que visitem Belem, vem a este lugar para levarem infiados todos os
lugares santos de sua peregrinação, & os poderem visitar todos com menos trabalho, &
tempo, escreverey aqui os lugares por onde passaõ. Primeyramente partidos os peregrinos
em sua ordem de Hierusalem com algua pequena guarda, vem ter a esta montanha de Judea,
da maneyra, que já fica dito dos Frades, a vigilia de S. João, & visitados aquelles lugares
santos da visitaçaõ, &. Nascimeto: se vão ao deserto, aonde fez penitencia sendo moço, &
alli feyta oração, & ganhada a indulgencia, tomão seu caminho ao Sul por huma pessima
estrada, de muytas subidas, & decidas, & sobre /
348
maneyra pedregosa, & muyta parte
della cheya de matto, & espinhos, que parece não ser seguida de creaturas humanas. Depois
de passarem a mayor parte do caminho, vão ter a hum lugar chamado na Sagrada Escritura
Nachalescol, que quer dizer, o Ribeyro do Cacho, como está escrito no livro dos Numeros:
Pergentes usque ad torrentem Botri, absciderunt palmitem cum uva sua, quem portaverunt
in vecte duo viri, quer dizer, chegando ao Ribeyro do Cacho, cortarão huma parra com seu
cacho, a qual levárão dous homes em hua canga á mariola. Passey por aquelle lugar no mez
de Agosto em companhia dos peregrinos que haviaõ ido aquelle anno de Franquia, &
fiquey atonito da fermosura das uvas, q vi por aquelle caminho de huma, & outra parte,
porque tudo he cultivado de vinhas, das quaes fazem o melhor vinho, que ha em toda
Palestina: & da mesma maneyra sao todas as frutas, que por alli se dão, em especial figos,
marmelos, & romãs de tanta grandeza, sabor, & fermosura, q mostra aquella terra
evidentemete não haver perdido a virtude, & fertilidade, q tinha antes tantos mil annos,
quando as espias, que o santo Moysés mandou espiar a terra de promissaõ vieraõ alli ter.
Todas aquellas vinhas saõ dos Christãos da terra, que por alli vivem em casaes de mistura
com algus Mouros, que por seu premio lhas ajudão a cultivar, & hus, & outros sahem ao
caminho aos peregrinos, mostrando-lhe muyto gasalhado & convidando os das uvas, &
263
frutas por seu dinheyro. Indo por este Torrente do Cacho, que he hum valle muy fermoso,
chegamos a hum lugar, aonde vem ter, & sair grande quantidade de agua, q sahe da fonte,
aonde S. Filippe baptizou ao Eunuco da Rainha de Candacia, que vinha de Hierusalem de
adorar ao Senhor no Templo de Salamaõ, a / 349 qual fonte está dalli alguma meya legoa: &
aonde sahe aquella agua fazem oração, & ganhão indulgecia de 7. annos, & 7. quarentenas
de perdão; a qual alguas vezes deyxaõ co tibiesa: porq ao tempo q alli chegaõ vaõ muy
encalmados, & famintos, depois de meyo dia, & desejosos de chegarem a Belem para
repousarem. Como eu estive devagar na Terra Santa, & vi os mais dos lugares visinhos a
Hierusalem, & Belem, fuy ter hum dia á dita fonte, aonde o Eunuco por Saõ Filippe foy
baptizado, a qual he de tanta quantidade, que pòdem com ella moer muytas moendas. Tem
hum grande tanque ao modo dos de cá, & alli junto hua povoação de Christãos, & Mouros,
que se sabe muyto bem aproveytar daquella agua, & tem por aquella parte muytas fazendas
de hortas, vinhas, & olivaes. Aqui fazem esta commemoraçaõ. Antifona. Apiriens autem
Philippus os suum, evangelizavit illi Jesum: & dum irent per viam venerunt ad hanc
aquam, & ait Eunuchus: ecce aqua, quis prohebit me baptizare. Vers. Dixit autem
Philippus. Resp. Si credis ex toto corde, licet.
Oração.
DEus qui diversitatem gentium in confessione tui nominis adunasti: quique in hoc
clarissimo fonte baptizari fecisti, da, ut renatis aqua baptismatis una sit fides mentium, &
pietas actionum. Per Christum &c.
Não muyto desviado deste lugar, & bem á vista delle, està hua povoaçaõ
antigamente chamada Siquelag, aonde esteve David algum tempo com os seus, andando
fugido delRey Saul, que com inveja o perseguia, & queria matar (vicio que ainda o dia de
hoje persegue, & mata) & no mesmo lugar estava, quando veyo a elle o man/cebo
350
Amalecita, & lhe trouxe as novas da morte de Saul.
Tornando á nossa estrada do Torrente do Cacho, destde que passamos a agua que
fica dito entramos em hum valle muy ameno, & deleytoso, chamado na Sagrada Escritura
Raphaim, todo cheyo de vinhas, figueiraes, & muytos geros de frutas, lavrado sómente por
Cristãos, sem algum Mouro morar entre elles: os quaes são moradores de huma villa
264
pequena, que está mais adiante no meyo do caminho, pouco mais de huma milha de Belem,
& chama-se ao presente Botigella, & na Sagrada Escritura se chama Bazech, aonde EIRey
Saul estava, quando os moradores de Jabes Galaad lhe mandarão pedir socorro contra Naas
rey dos Amonitas, & dalli em menos de sete dias ajuntou Saul do povo de Israel trezentos
mil homes, & trinta mil do Tribu de Judá.
Naquella villa Botigella, todos os moradores são Christãos lavradores &
vinhateyros, sogeytos no espiritual ao Patriarca dos Gregos, vulgarmente se diz, que
nenhum Mouro pode viver entre aquelles Christãos, porque qualquer Mouro, que alli vay
morar, não dura hum anno inteyro entre elles, & affirmaõ terem muytas vezes feyto
daquillo experiencia. Isto ouvi affirmar assim a algus moradores do mesmo lugar, como a
outros naturaes de Belem nossos familiares, & amigos; cousa por certo notavel, & que
parece miraculosa, sendo elles huma canalha de machacão, apartados da obediencia da
Santa Madre Igreja Romana, & commummente lhe chamaõ Christãos de Cintura, como
outros, que ha em Siria junto ao Monte Libano, a que chamaõ Maronitas, posto que na
verdade o não são; porque os Maronitas, que habitaõ em quasi todo o alto do Monte
Libano, ao / 351 presente estaõ á obediencia da Igreja Catholica, como adiante direy: & com
todos estes milagres elles são taes, que em qualquer negocio de importancia, antes me fiaria
de qualquer Mouro dos da terra, que de algum delles. Desta Villa Botigella se vão os os
peregrinos a Belem, aonde acabaõ sua peregrinação.
265
CAPITULO LVIII.
Do caminho,& peregrinação de Hebron, aonde estão sepultados o santos Patriarcas
Abrahão, Isaac, & Jacob.
COsttume era de muytos annos, os peregrinos, q hiaõ visitar a Terra Santa,
visitarem tambe a Hebron, aõde estaõ sepultados os santos Patriarcas, Abrahaõ, Isaac, &
Jacob, com as venerandas matronas Sara, Rebeca, & Lia, & ainda ha opinião estare cõ elles
os onze Patriarcas filhos de Jacob, os quaes tirarão do Egypto os filhos de Israel, quando o
&Senhor os livrou daquelle cruel captiveyro, & os levárão comsigo, como diz o glorioso S.
Hieronymo, escrevendo contra Vigilancio. E no concerto, que os peregrinos faziaõ em
Venesa com o patrão da nao, ou com quem tinha isso a seu cargo: mettiaõ, que tambem os
haviaõ de levar a Hebron. Mas agora, quasi nunca fazem aquella peregrinação por culpa de
quem leva os peregrinos a seu cargo: porque como são necessarias cavallgaduras, & outros
gastos, deyxárão-na esquecer, como já se vay esfriando a ida do Rio Jordão, buscando
sempre achaques, & impedimentos, com dizerem, que anda a terra cuberta de Arabes,
grãdes calmas, bom /
352
tempo para tornarem, & outras semelhantes escusas: defraudando
os peregrinos de sua devoção, & levando-lhe mal levado seu dinheyro: & como elles se
vem entre infieis, cançados do caminho, enfadados do mar, qualquer piedosa razão, que lhe
daõ para não irem os faz calar. Mas nòs, como tinhamos liberdade favorecida do tempo, &
bons desejos: quando se nos offerecia algua boa occasiaõ para andar, & visitar aquelles
santos lugares, não se nos enxergava preguiça.
São de Hierusalem Hebron sete leguas, caminho não muyto bom. Chegando á
sepultura da fermosa, & santa Raquel, da qual já tenho dito, deyxando alli o caminho da
mão esquerda que vay para Belem, seguimos outro, que vay direyto atè chegarmos a
Bethecaron, edificada em hu lugar muyto alto, & muy perto della estão as ruinas, &
vestigios de hua villa, que foi chamada Rama: & segundo seu sitio, porque está altissima, &
a distancia do lugar atè Belem não he muyta: muy á letra se pode tomar, & declarar o que
diz o Profeta Jeremias, allegado pelo Evangelista S. Matheus: Vox in Rama audita est, vel
in excelsis audita est, quer dizer: a voz foy ouvida em Rama, ou foy ouvida no alto, porque
muy bem se podiaõ ouvir as taes vozes, choros, & plantos de hum lugar a outro, & mais
266
sendo cousa natural, & muy experimentada, as vozes, gritos, & brados sobirem debayxo
para cima. No Hebreo este nome, Rama, quer dizer altura, & assim todos os lugares, que na
Terra Santa tem este nome, estaõ edificados em alto: & não tem todos noticia desta Villa
Rama, mas os curiosos das divinas letras alcanção estas cousas, & outras semelhantes,
esquadrinhando na Terra Santa os lugares antigos, com seus nomes proprios, ou mudados,
aproveytando-se para isso de muytos qua/dernos
353
, que se achaõ do tempo, que aquelles
lugares eraõ de Christãos: de maneyra, que muy bem está, vox in Rama, & muy bem pòde
estar, vox in excelsis.
De Bethecaro, & muyto melhor de Rama, se descobre muyta parte da terra de
Promissaõ, & da Arabia deserta atè o Monte Seir, parte do Mar Salso, ou de Sodoma, &
muyto do seu circuito de ambas as partes, mas mais da Oriental, por estarem os montes
mais altos, Abarim, & Nebo, aonde Deos mandou subir a Moysés, para que delle visse, &
contemplasse a terra, que aos filhos de Israel tinha promettido: o Rio Jordão, os campos de
Moab: para a parte do Ponente, se descobre o mar Mediterraneo, o porto de Jafo, toda a
terra dos Philisteus, a Cidade Gaza, ao presente chamada Gazara, da qual Sansaõ de noyte
tirou as portas, & as trouxe ao alto deste monte. Ve-se tambem deste lugar muyta parte do
deserto de Suez para o Mar Roxo, de modo, que concluindo digo, que a vista daquelle
monte he maravilhosa. Andando mais adiante huma grande legoa, está junto do caminho
hum lugar, dos nossos chamado Mambre, aonde algum tempo morou o Patriarca Abraham,
& nelle estava quando lhe appareceraõ os tres Anjos em figura humana, dos quaes hum só
adorou, como diz a Sagrada Escritura, & mereceo hospedallos todos tres em sua casa. Digo
ser chamado Mambre dos nossos, porque trabalhão sempre reter os nomes proprios dos
lugares, que as divinas letras lhe tem postos, não tendo conta com o vulgo, como dizermos
Sichem, ou Sichar, que agora se chama Neblos, ou Nebulosa, & assim dos outros. A
azinheyra, de que a Sagrada Escritura faz memoria, junto da qual estava o Patriarca
Abrahaõ, a qual atè este tepo permanece, ou outra semelhante em seu lugar, no modo /
354
do tronco, & pao da arvore, folhas; & fruto, bem mostra ser como os de cá, mas não no
mais: porque os troncos, rama, folhas, & fruto, todos nascem de tres em tres. Muytos dizem
ser a mesma do tempo de Abraham, outros dizem o contrario, mas que gastando o tempo
hua, renasce da mesma raiz outra, seja como for, de fé temos, q bem pòde Deos, se quizer,
267
fazer que se sustente atè o fim do mundo, como pòde todas as cousas, & não nos vay algua
em seguir opiniões diversas, no que não importa para nossa salvoçaõ: bastenos saber, que
por vontade do mesmo Senhor Deos, se sustenta a memoria, daquella arvore: & nascerem
as suas ramas, folhas, & fruto de tres em tres, mostra bem a fé que o Patriarca Abraham
tinha, & terlhe alli revelado o mysterio da Santissima Trinidade, quando fallando com os
Anjos disse, Senhor se achey graça diante de vossos olhos, não passeis sem repousardes em
casa deste vosso servo, & tornando a fallar em commum com todos tres: accrescentou
dizendo, & serão vossos pès lavados, & repousareis debayxo desta arvore: como está
escrito no livro do Genesis. Aqui se ganhão sete annos, & sete quarentenas de perdão, &
fazem esta commemoraçaõ. Antifona. Apparuit autem Dominus Abrahæ, in convalle
Mambre, in ipso fervore diei: cumque elevasset oculos, apparunt ei tres viri stantes propè
eum. Vers. Tres vidit. Resp. Et unum adoravit.
Oração.
OMmnipotens sempiterne Deus, qui dedisti Abrahæ dilecto tuo in trium virorum
apparitione æternæ Trinitatis gloriam agnoscere, & in potentia majestatis adorare
unitatem, quæsumus, ut in confessione ejusdem /
muniamur adversis. Per Christum Dominum nostrum.
355
Trinitatis ab omnibus semper
268
CAPITULO LIX.
Da Cidade Hebron, & do campo Damasceno, aonde dizem, que foy creado nosso pay
Adão, & da sepultura dos Santos Patriarcas.
MEya legoa pouco mais, ou menos mais adiante da Azinheira de Mambre, junto á
estrada á mão direyta está o lugar aonde foy edificada a antiga Hebron sete annos antes de
Thanis Cidade famosa do Egypto como está escrito no livro dos Numeros, a qual Hebron
primeyro foy chamada Cariatharbe, de que ao presete não ha mais memoria, que vestigios
das suas ruinas, que bem mostraõ quão grande, & populosa foy. No livro do Genesis,
lemos, que Sara mulher do Patriarca Abrahaõ, depois que viveo cento & vinte sete annos,
morreo na Cidade de Arbec, a qual he Hebron na terra de Canaan, & Cariam, quer dizer
Cidade, & Cariatharbe, tanto como Cidade de Arbe.
Nesta cidade reynou o Profeta Real David sete annos & meyo sobre o Tribu de
Judá, depois da morte delRey Saul. Mais adiante não muyto espaço entre Sul, & Levante,
foy depois edificada a nova Hebron, na qual em hua sepultura dobrada estaõ sepultados os
Santos Patriarcas, Abrahaõ, Isaac, & Jacob, com suas consortes, Sara, Rebecca, & Lia: a
qual sepultura o mesmo Abrahaõ comprou a Ephron filho de Seor, juntamente com toda a
herdade, & arvoredo aonde estava: por quatro centos siclos de prata de boa moeda, como /
356
naquelle tempo se usava: que commummente se tem serem como reales Castelhanos, ou
julios Romanos, bisantes Gregos, ou marcellos Venesianos, ainda que os Doutos na
Sagrada Escritura tomaõ siclos por moeda de mayor preço, & valia, & fazem differença do
siclo popular ao siclo do santuario. Spelunca duplex ou sepultura dobrada he como hua
casa, que tem camara, & recamara, como o sepulchro de nosso S. Jesu Christo, porque no
lugar, mais interior metiaõ o corpo do defunto, & no exterior o lamentavão, & faziaõ suas
ceremonias Judaicas: mas depois o cerravaõ de todo, pondo pedra á porta, de maneyra, que
se queriaõ, a tiravaõ: & os taes sepulchros pela mayor parte eraõ feytos, & lavrados em
rochas de pedra viva, como vemos em muytos antigos por toda a terra Sãta, em especial ao
redor de Hierusale, & aqui em Hebron, algus delles tão curiosos, q causaõ admiração.
Quando foy edificada a nova Hebron, que agora tem os Turcos em seu poder,
fizerão o castello, & fortaleza da Cidade no mesmo lugar aonde estava a sepultura dos
269
Santos Patriarcas, de modo que ficou metida dentro , como agora está: & a tem os Turcos
em grande veneração: & muy ornada com ricos panos de ouro, & seda, & naõ deyxaõ entrar
naquelle lugar Christão algum, ou Judeo, salvo com muyta aderencia; permittem porèm,
que de fóra por hua fresta baixa se veja, & visite o lugar, no qual se ganhão 7. annos & 7
quarentenas de perdão, & fazem esta comemoração. Antifona. Deus locutus est patribus
nostris, Abraham Isaac, & Jacob, quod multiplicaret semeneorum sicut stellas cæli, &
velut arenam maris. Vers. Lætamini in Domino, & exultate justi. Resp. Et gloriamini omnes
recti corde.
357
Oração.
DEus qui de Patriarcharum semine, universis gentibus Redemptorem dedisti: da, ut
eorum intercessionibus quos hic in spelunca duplici tumulatus fuisse creditur suscipiat
omnis populus eundem salutis auctorem. Qui tecum vivit &c.
Quasi hum tiro de arco da sepultura dos santos Patriarcas, para o Ponente, nos
mostraõ o campo Damasceno, no qual affirmaõ, que foy creado nosso padre Adam pelo
Senhor Deos, á sua imagem, & semelhança do limo da terra, & a hua parte deste campo
está hua cova da qual tirão terra, q dizem ser a mesma de que foy creado Adam, affirmando
aproveitar para muytas cousas, a qual he de cor encarnada, a modo de barro, branda, &
pegadiça, & trata-se como cera. Os Christãos da terra fazem della rosarios de contas, q
vendem aos peregrinos, huns da mesma cor natural da terra, outros tintos de negro. Os
Mouros fazem della hus bolinhos como pastilhas, a que chamaõ terra sigillata, & os levão .a
vender á Persia, Ethiopia, India, & por todo Oriente, .& vendem aquella terra, como cousa
muy preciosa, & de muyta estima. A cova donde a tirão, quanto ao que vi, podem nella
caber tres homens, aos quaes dará pela cinta. Affirmaõ todos os da terra, assim Christãos,
como Mouros, estar aquella cova sempre em hum ter, com tirarem della de continuo: bem
pòde isto ser verdade, porque nenhua cousa he a Deos impossivel; & tambem se tem por
cousa muy verdadeyra naquellas partes, que nenhum animal venenoso pòde empecer a
quem trouxer aquella terra contigo. E outras muytas cousas dizem, que não escrevo pelas
não haver experimentado. Neste campo Damasceno se ganhão sete /
358
annos, & 7.
quarentenas de perdão, & fazem esta commemoraçaõ. Antifona. Formavit igitur Deus
270
hominem de limo terræ, & inspiravit in faciem ejus spiraculum vitæ: & factus est homo in
animam viventem.
Oração.
OMnipotens sempiterne Deus, qui post cunctarum creationem rerum, Adam patrem
nostrum, & totius generis humani, ad imaginem, & similitudinem creasti, ejus quæsumus
præsta posteritati, ut ad tuam fruendam gloriam recta fide, & bonis operibus mereamur
feliciter pervenire. Per Christum Dominum nostrum. Amen.
Perto do campo Damasceno nos mostrárão hum lugar, no qual dizem, que Caim
matou a seu irmão Abel: eu tenho isto por opinião do povo, porque achando-me na Cidade
de Damasco, como adiante direy, me mostrárão hum lugar alto huma legoa da Cidade, no
qual Judeos, & Mouros affirmaõ ter alli feyto aquelle cruel fratricidio, & tem alli os
Mouros hua Mesquita de muyta curiosidade em sua maneyra, a qual eu vi de fóra, passando
junto a ella, & o glorioso Doutor S. Hieronimo sobre Ezequiel, affirma ser assim.
Dous grandes tiros de arco para o Ponente, está huma lapa de trinta pès em
comprido, & outros tantos de largo, na qual dizem que estivèraõ muytos annos mettidos
nossos padres Adão, & Eva, fazendo penitencia de seus peccados: & estaõ alli dous leytos
de pedra, aonde dormiaõ, & junto á lapa está hua fonte, de que bebiaõ. Como crer, ou
duvidar isto não repugna a nossa Santa Fé Catholica, escrevo o que vi, & a opinião que os
daquella terra dos ditos lugares te, cada hum crea o que lhe parecer melhor.
271
359
CAPITULO LX.
Da jornada, & caminho que fizemos ao Jordaõ, de como fomos ter ao Mosteyro de Santo
Sabbà.
TOda a pessoa, que de Hierusalem quer ir ao Rio Jordão, convem aparelharse para
muyto trabalho, & offerecerse a não pouco perigo, não tanto pelo caminho ser comprido,
pois naõ passa de nove legoas, quanto por ser aspero, & perigoso, por causa dos muytos
Arabes de cujas mãos poucos escapaõ, se em companhia não vão muytos. Não he isto de
agora, mas foy sempre, porque aquella he a estrada que vay de Hierusalem a Jericò, na qual
cahio em poder de ladrões, o que mereceo ser curado, & soccorrido do Samaritano, não
sendo pelo Sacerdote, nem pelo Levita. E por esta causa os peregrinos, que vão de
Franquia, se se deterrninaõ ir ao Jordão, convem-lhe levar boa guarda, pelo menos
quarenta, ou cincoenta pessoas, de pè, & cavallo, com seus arcos, & armas, á conta de lhe
pagarem, & satisfazerem á sua vontade: & ainda desta maneyra se informaõ, que tal está a
terra: & senaõ está segura, deyxaõ a jornada. Sabendo nòs muy bem isto & tendo pouca
esperança de podermos lá ir, porque já os peregrinos , pela mesma causa, & pelos estorvar
o patrão da sua náo naõ foraõ aquelle anno, & menos foraõ os dous atraz passados: & os
Frades pelo mesmo perigo nunca lá vão, salvo em companhia dos peregrinos, porque á sua
conta delles se pagão as guardas, determinámos buscar remedio, para pòr em effeyto tam
santo caminho: arriscandonos a todo perigo, & / 360 trabalho, por nos não tornarmos a estas
partes com tam grande desgosto. E ouvindo eu dizer, que hum Guardião da Terra Santa os
annos atras passados, fora ao Jordão com quatro, ou cinco Frades seus particulares amigos,
por meyo de huns Caloiros do Mosteyro de Santo Sabbá, que está para aquella parte do Mar
Morto, desviado delle tres, ou quatro legoas, determiney saber, se pela mesma via
podiamos nòs ir. E estando eu em Belem com meu companheiro, que por então lhe coube
sua vez de ser alli Guardião: quiz nosso Senhor trazer alli huns Caloiros do dito Mosteiro
de Santo Sabbá buscar suas necessidades, como costumaõ. Demos-lhe conta dos nossos
desejos, pedindo-lhe humildemente, com muita efficacia nos quizessem ajudar, &
favorecer. Com os nossos rogos, & com os agasalharmos, com muyta caridade se nos
offereceraõ a tudo com prompta vontade, promettendonos, que como viesse tempo, nos
272
mandariaõ seus habitos, para que vestidos nelles pudessemos ir ao seu Mosteyro com
menos perigo: aonde concertariamos nossa ida ao Jordão de maneyra, que nossos desejos
fossem inteyramente compridos. Passados alguns quinze, ou vinte dias depois disto,
estando eu em. Hierusalem, & vendo que os Caloiros não mãdavaõ recado como ficárão
comnosco, escrevi a meu companheyro, que nos convinha buscar outro remedio, pois nos
faltavaõ os Caloiros, & mais estando já no mez de Outubro: & se nos detinhamos, entraria o
nosso Advento, que começa por todos os Santos com jejum obrigatorio, & com elle o
inverno, que nos estorvaria, o que tanto desejavamos. Concluimos ambos, que seria bom
irmos á ventura ter com os Caloiros, sem mais esperar recado seu. E como não podiamos
fazer aquella jornada, sem dar conta ao Padre / 361 Bonifacio nosso Superior, & Prelado, &
temiamos, que no la negaria, por ser taõ perigosa, como tenho dito, pedi-lhe eu licença para
tornar a Belem, posto que havia poucos dias, que de lá tinha vindo, mas so color de
melenconia, que sempre me atormentava. Concedeoma alegremente, porque naquellas
partes convem levar as cousas ao amor da agua, & favorecer os Religiosos nas cousas, que
naõ saõ contra sua Regra, & muyto mais nas que entendem ser consolaçaõ da alma &
entrando com elle em pratica, lhe vim a dar conta dos desejos que tinhamos de fazer aquella
jornada, temendo tornarmos a Franquia sem fazer o que nos seria em afrõta, & grande
desconsolaçaõ nossa. Correndo a pratica lhe descobri o que tinhamos ordenado, pedindolhe tivesse por bem favorecemos naquelle gosto. Respondeome, graciosamente, que nenhua
cousa tanto desejava, como nossa consolaçaõ, & que devera eu ter entendido delle havia
muytos dias aquella vontade, pois sempre em tudo trabalhara de nos mostrar o amor, que
nos tinha, mas que quanto á ida, naõ nos aconselhava tal cousa, porque o trabalho, & perigo
era mayor do que cuydavamos: & que quanto a elle naõ nos queria estorvar nosso gosto,
porque não cuydassemos ser fingido o que atè alli nos tinha mostrado. Porèm que se de
todo nos determinassemos ir seguindo nosso parecer, & naõ o seu: nos pedia, que nossa ida
não fosse sentida, nem dos Frades de Belem, nem dos de Hierusalem. E vindo-se a
descobrir por alguma via, ao menos não soubessem, que fora com seu consentimento,
porque sendo o contrario, teriaõ muyta razaõ os outros Frades de se queyxarem delle, por
haver alguns que moravaõ em Hierusalem tantos annos, sem poderem alcançar ir ao Santo
Jordão, & diriaõ, que a nòs por Hespanhoes /
362
nos favorecia, & a elles por Italianos
273
despresava. Prometti-lhe eu, já que de todo nos não estorvava, que tudo da nossa parte se
faria, como sua Paternidade mandava: & quanto ao trabalho, & perigo que dizia, consultado
tinhamos tudo, q quanto ao trabalho, mais seria o gosto, depois de o termos passado.
Aquella mesma tarde me parti para Belem em companhia de hum nosso Torcimaõ por
nome Anna, que fómente fora a me levar o recado de meu companheyro, do qual fomos
recebidos com muyta alegria, posto que como dizem, eu era hospede de cada dia. A noyte
seguinte tratamos, o que seria melhor para se effeytuar nossa jornada: & querendo elle, que
ficasse para a semana seguinte, não me pareceo bem tanta dilaçaõ, porque temi poder
succeder outro inconveniente, q a ida nos impedisse. Ao dia seguinte em amanhecendo me
fuy a Belem, & ajuntey algumas pessoas que fossem em nossa guarda atè o Mosteyro de
Santo Sabbá, & entre elles hum Mouro o mayor ladrão da terra nas obras, & do nome
chamado Lupo, mas muyto familiar das Frades, posto que nenhua cousa se fiavaõ delle,
mas davaõ-lhe cada anno hu tanto de cafarro, havendo muytos que o tinhaõ por cafarreyro.
Os Christãos todos eraõ amigos de casa, o mais velho meyo Christaõ, & meyo Mouro por
nome Muça, os outros, Joseph, & Anna, Almantor, Ebocaly, & hum Diacono muyto
honrado Grego, & homem casado. Torneyme para casa muy contente por haver bem
negoceado, & ficou concertada a ida para a prima noyte. Aquelle mesmo dia á tarde,
andando eu com meu companheyro sobre o terrado da Igreja de S. Hieronimo, a tirou elle
ácinte com hua pedra a hum gallo, & matou-o: & mandou, que mo assassem para a cea.
Vindo os Christãos que nos haviaõ de acompanhar, / 363 deraõ-lhe de cear, & eu lhe
mandey dar o gallo, que para mim estava concertado: o qual com fazimento de graças
comeraõ em hora, que naõ deveraõ, porque todo caminho na sua Arabica lingua foraõ com
grandes escrupulos na consciencia, se o gallo fora affogado, se degollado, porque todas
aquellas nações tem por culpa muy notavel, comer cousa affogada, imitado nisso os Judeos,
& Mouros.
Era tanta a porfia, & altercações, que sobre o gallo leváraõ, sabendo, que os naõ
entendiamos, que mais parecia peleyjarem, que porfiarem. Anna, filho de Joseph, que
secretamente fazia comnosco a Latina, descobrio-nos toda sua contenda, & resultou a
cousa, que à vinda, quando tornassem a casa, se iriaõ a Hierusalem dar conta ao seu
274
Patriarca, & lhe contariaõ tudo como fora, mostrando sua innocencia, confessando sua
culpa, & offerecendo-se a toda penitencia.
Escrevi aqui esta Historia, para que quem a ler por sua curiosidade, entenda qual he
o Christianismo daquella gete, & quaes os escrupulos da sua consciencia.
Tornando á ordem da nossa partida, huma hora da noyte determinamos sair de casa,
o Padre meu companheyro, & outro Padre Italiano, nosso particular amigo, natural de Santa
Agueda, Cidade junto a Milaõ, Benedicto assim no nome, como na virtude, & santidade da
vida, condição, & conversaçaõ Angelica, & tomando de casa algum pouco mantimento, &
cousinhas, de que estavamos providos para levar aos Caloiros, avisamos ao porteyro, que
em nenhua maneyra dissesse onde hiamos mas que sendo inquirido respondesse, que
suspeytava termos idos a Tecua a mattar pombas, como algumas vezes costumavamos: o
que tudo guardou o porteyro, como lhe fora encomendado.
364
Primeyro q de casa sahissemos, fomos tomar a benção ao santo Presepio,
encõmendandonos ao Senhor, que nelle teve por bem nascer, & á Virgem gloriosa, q o
mereceo parir, & aos Santos Reys Magos, que foraõ ditosos, de naquelle lugar o ver, &
adorar. Sahidos de casa com todo silencio, porque junto ao povo muytas vezes acontece
haver Arabes, que como lobos vem buscar sua guarida, aonde quer, que a achão melhor
parada, & caminhamos toda huma legoa, sem haver que falasse palavra. Como as nossas
guardas sabiaõ muyto bem o caminho, & todas as veredas, & atalhos delle, que hiaõ para
Santo Sabbá, andavamolo com mais brevidade, do que cuydavamos, & para melhor dizer,
caminhavamos sem caminho, porque nos levavão por mattos, & por lugares tão asperos de
ferras, & precipicios, que nos causavão ir attonitos, porque a noyte os fazia parecer mais
temerosos. As guardas hiaõ sempre diante, os braços esquerdos nus, & com grande silencio,
mas quando o caminho era descuberto, & descampado tratavão no triste do gallo, & quando
por passos perigosos, sempre cõ a orelha fita, & promptos para a peleja. Passamos por este
caminho junto a duas, ou tres aldeas, mas não fuy curioso em lhe saber os nomes, porque se
lhos soubera, pudèra acertar com os antigos, que antes tinhão, por haver em nossa casa de
Belem, hum livro, que escreveo o glorioso Doutor S. Hieronymo, no qual particulariza os
nomes de todos os lugares da Terra Santa.
275
Seguindo nosso caminho com toda a pressa, a horas de meya noyte pouco mais, ou
menos, segundo mostravão as guardas, entrando por hua vallada muy espantosa, demos
comnosco na Abbadia dos Caloiros, os nossos companheyros, muy certos de achare alli
Arabes, por /
365
ser o lugar mais que todos accomodado para isso, por terem alli perto os
Aduares com as mulheres, & filhos, puserão-se a ponto de peleja, se fosse necessario, mas
livrounos o Senhor della, por sua infinita misericordia.
276
CAPITULO LXI.
Do Mosteyro & Abbadia de Santo Sabbá, & de como fomos recebidos dos Caloiros.
EM nòs chegando á Abbadia dos Caloiros, o Diacono, que hia em nossa companhia,
por ter com elles mais conhecimento, que os .outros companheyros, começou cõ grandes
brados a chamar Caloiros, Caloiros. Como era tão de noyte, & a voz retumbava por aquella
deserta vallada, mettida entre duas asperas montanhas, fazia temor em algua maneira.
Depois de haver quatro, ou cinco vezes bradado por seus intervallos, como do primeyro,
Caloiros, Caloiros, acodiraõ aos brados de huma alta torre, quo está hum pedaço apartada
do Mosteyro, na qual por causa dos Arabes, de dia, & de noyte se faz guarda, & vella, & te
nella arcabuzes, & armas. Entendendo que eramos Christãos, da mesma torre fizeraõ sinal
aos do Mosteyro, com grande pressa acudio á porta o Abade com cinco, ou seis Caloiros
velhos, & em nos vendo, com mostras de grandissima humildade, se lançarão aos nossos
pès, pedindo-nos com muyta efficacia lhe dessemos a benção. Vendo nòs cousa taõ nova, &
desacostumada, lançados aos nossos pès huas cãas taõ venerandas, em especial as do
Abbade, que tinha huma barba branca como a neve, que lhe dava pela cinta, ficando
attonitos, nos lançamos /
366
aos seus da mesma maneyra, pedindo-lhe tambem, que elles
nos dessem a sua. Allegavaõ elles sermos Sacerdotes, & que lhe convinha darmos-lhe a
nossa: & nisto depois de huma parte, & outra haver santa porfia, assim como estávamos de
giolhos nos abraçamos huns aos outros, & nos levantamos. Isto acabado, mandou logo o
Abbade em hua hospedaria fóra de casa fazer grande fogo, & nella agafalháraõ a Lupo, & a
outros dous Mouros companheyros, dando-lhe todo o necessario: & fechada a porta de
dentro, veyo toda a communidade a nos agasalhar. Não havia hum quarto de hora, que
estavamos dentro em casa, quando já tinhaõ agua quente muy cheyrosa, para nos lavarem
os pès: ao que começamos a resistir, dizendo, que o caminho fora muy pequeno, & mais
que ao dia seguinte, haviamos de caminhar: mas foy taõ porfiosa sua humildade; que nos
forçou a que aceytassemos sua caridade, & posta huma bacia diante de hum de nòs, o
Abbade com sua veneravel presença, se poz de giolhos para nos lavar os pès, & hum
Diacono com hua estola ao hombro, & hum grande gomil cheyo de agua na mão, muy
277
mansamente a estava lançado, como se lança para lavar as mãos, & os outros caloiros,
todos postos de giolhos de redor cantando Psalmos em Grego, com muyta devoção.
Confesso, que vendo isto, a alma se me estava traspassando, parecendo-me, que me via
entre os antigos Padres do hermo de Thebaida, & Scytia, como muytas vezes tinha lido no
livro chamado Vitas Patrum, que dizem compoz o Doutor S. Hieronymo, & em S. Joaõ
Climaco, & nas colações de Cassiano, doutrina por certo digna de ter lida, & relida de todo
o varaõ Religioso. Acabado aquelle tão humilde, & caritativo lavatorio, hum dos outros
Caloiros lavou os pès aos Christãos /
367
seculares nossos companheyros com muyta
humildade: & notey bem, q a nenhum nomearão por seu nome proprio, mas fómente,
Christaõ, tal, ou tal cousa. Dalli nos levárão ao refeytorio, fazendo-nos comer por força,
com resistirmos todo o possivel, por termos mais necessidade de dormir, que de comer: &
mais sendo tão fóra de tempo: mas naõ consentio sua estranha caridade fazermos nossa
vontade, & nos fizeraõ comer por força, assentando-se cõnosco á mesa o Abbade com
outros dous Caloiros dos mais antigos da casa, os quaes começarão a comer primeyro,
porque não tivessemos escusa. A comida foy peyxe secco cosido, & cuido que requentado,
azeytonas, passas, & figos seccos: & a bebida, agua da cisterna. Foy cousa desacostumada,
& estranha para aquelles Caloiros benditos setarem-se aquella hora a comer comnosco, &
para nòs de grande edificação, por sabermos muy bem, que viviaõ naquelle deserto,
guardando huma continua, & aspera abstinencia, mas a sua perfeyta caridade lhe causava
fazerem aquelles extremos. Passou-me então pela memoria, & ainda agora, quando me vem
ao pensamento aquelle gasalhado tão caritativo, quam alheyos em nossos tempos estão
muytos Religiosos da nossa Igreja Latina, receberem a taes horas os hospedes estrangeyros
com tanta caridade. E da mesma maneyra, quam longe estaõ os Abbades, & Superiores de
Religiões approvadas, lavarem com tanta humildade os pès, aos que com elles se vão
agasalhar, pondo-se a comer com elles, para mais os animar. Não por certo, antes alguns
reformados, em vendo entrar o hospede pela porta, parece que lhe entra, não Jesu Christo,
como havia de ser, pois elle por sua bocca disse, hospes fui, veleram, & collegistis me,
antes o tem por grande torvação. Mas porque esta materia vay já /
368
desencaminhada, &
temo ser calumniada, por tocar tanto na verdade de muytos tão aborrecida, querome tornar
á estrada, seguindo meu Itinerario, cõcluindo este parentesis, com dizer, & lebrar, q todos
278
havemos de morrer: & que o juizo sem misericordia ha de fazer o Senhor Deos áquelles,
que com seus próximos a não tiveraõ. Depois da colação acabada, nos levárão a huma casa,
aonde haviamos de dormir, & repousar, os leytos eraõ hum pedaço de alcatifa velha,
lançada no chão, os cobertores, & lençoes foraõ seus habitos, & tunicas, que outras
delicadezas não as permitte deserto de tanta aspereza: Quoniam qui mollibus vestiuntur, in
domibus regum sunt, quer dizer, porque os que usaõ de vestidos delicados trataõ nas casas
dos Reys, mas não deyxamos por isso de dormir, porque o caminho que tinhamos andado,
alèm de ser deshumano, trouxemolo muy apressado: & quasi meyo correndo, & estavamos
muy cançados. Não tinhamos bem tomado o somno, quando vieraõ ter comnosco os
Christaos nossos companheyros, pedindo-nos licença para se tornarem, antes que
amanhecesse, aos quaes dissemos, que se fossem embora, deyxando os agradecimentos
para a volta, encomendando-lhe, não dissessem aonde ficavamos, ao q responderaõ, que atè
não tornarmos, naõ iriaõ ao Mosteyro, & com isto se despediraõ: Em amanhecendo nos
fomos á Igreja a rezar nossas horas, & as mais obrigações, & devoçoens , as quaes
acabadas, veyo ter comnosco o Abbade, mostrando-nos muyto amor, & tomando nos pela
maõ, nos levou a huma cappella, que estava no alto da casa, aonde nos mostrou hum Altar
em que podiamos dizer Missa, se quizessemos, & isto disse, porque em nenhua maneyra
consentem, que Sacerdote da Igreja Latina diga Missa em Altar da Igreja Grega. /
369
Entendendo eu sua intençaõ, ainda q nos disse, que tinha hostias das nossas, posto que de
muyto tempo: respondi-lhe, que vinhamos cansados, & estavamos pouco devotos, & mais
naõ estando o lugar tão limpo, & venerado, como convinha para tão alto Sacramento: ao
que o Abbade callou, vendo ser de nòs entendido & dissimulando o melhor que pode, nos
levou ao outro lugar, entregando-nos a dous Caloiros, para que nos acompanhassem, & a
casa nos mostrassem, porq fómente aquelles dous em todo o Mosteyro, fóra do Abbade
sabiaõ fallar algum pouco Italiano.
Antigamente, no tempo em que o glorioso Confessor de Jesu Christo, Santo Sabbà
morava neste Mosteyro, & era Abbade desta Abbadia, era hua cousa muy grande &
espantosa : & segundo aquelles Caloiros nos affirmáraõ eftar escrito no memorial, daquella
casa, habitavaõ nella tantos mil Monges, & foy Mosteyro dos mais celebres do mundo, & o
mayor de Palestina. Nelle Morárão muytos Satos Padres dos que andaõ nomeados no livro,
279
que chamaõ Vitas Patrum, q affirmão escreveo o Doutor S. Hieronimo, & o mesmo
glorioso Santo com seu Mestre S. Gregorio Nazianzeno, cujas cellas nos mostrárão os
Caloiros: helle morou o grande Epifanio, primeyro que fosse Bispo de Chipre, os gloriosos
Abbades Arsenio, Daniel, & Pafuncio, & outros muytos Santos, cujas almas estaõ na gloria
com nosso Senhor Jesu Christo. A Igreja deste Mosteyro he muyto grande, & muy alta, mas
não taõ grande, que bastasse para onze mil Monges, ou mais, que affirmaõ haver estado
naquelle Mosteyro: sómente havia alguns dedicados para o culto divino, os quaes mais
sahiaõ do Mosteyro, nem menos os deputados para o serviço do Convento & para
administrar as cousas temporaes aos /
370
hospedes, & moradores da casa. Está a Igreja
pintada de alto abayxo, de pintura muy curiosa, & fina, de imagens de Santos que alli
morárão, & de outros muytos: & todos pintados à Grega, cuja pintura sempre ropresenta
penitencia. Mas as guerras passadas do Graõ Turco com o Soldaõ do Egypto, foraõ causa
de estar aquelle Mosteyro alguns annos despovoado, & recolhiaõ-se os Arabes dentro, &
quasi a todas as images tirárão os olhos, ficando o mais sem tocar.
O Mosteyro he muyto grande & forte, & de tal maneyra na rocha viva edificado, q
parece quasi huma inexpugnavel fortaleza, com muytas maneyras de estancias altas, &
bayxas, & dellas subterraneas, & alguas metidas na rocha, mas tudo confusamente, & sem
ordem. Apartado do Mosteyro hum grande tiro de arco, tem huma torre muy grande, alta, &
forte, na qual tem alguns arcabuzes, fundas, & arcos, & muyta pedra para tirar. Vem do
Mosteyro a esta torre por hua mina feyta na pedra viva, com alguns passos máos de passar,
& peyores de acertar: pela qual mina nos levárão, não com pouco trabalho nosso, &
quantos secretos tinhao em casa nos mostrárão.
De redor do Mosteyro, por toda aquella vallada, que tem hua grande legoa de hua
parte, & outra, de duas altas montanhas, que a fazem, estão muytas cellas, em que
antigamente viviaõ aquelles Santos Monges, feytas na rocha viva, a modo de ninhos de
passarinhos, outras ajudadas da arte humana, & outras todas de fabrica, & assim de diversas
maneyras. Entre ellas nos mostrárão a do santo velho Zozimas, ao qual da outra parte do
Jordão se revelou a bemaventurada Santa Maria Egypciaca. Todo aquelle deserto atè o mar
Morto, & o Rio Jordão, atè a santa Quarentena, aonde nosso Redemptor / 371 jejuou, & atè a
vasta solitudo, aonde esteve por espaço de quatro annos o glorioso Doutor S. Hieronymo,
280
como elle mesmo de si escreve á Virgem Eustochio, dando-se á contemplação das cousas
celestiaes, & á lição das Divinas Escrituras com tão espantosa penitencia, que nem da agua
fria se permittia usar. Todo este espaço que digo está cheyo daquellas cellas, em q aquelles
santos moravão, escondidos ao mundo, & manifestos a Deos, chorando as suas culpas, se as
tinhão, & as dos proximos, os quaes em Deos amavaõ. Em as grandes solemnidades vinhaõ
a esta Abbadia, aonde se confessavaõ, & recebiaõ o Santissimo Sacramento, & solemnizada
a festa, todos juntamente se tornavaõ a seus domicilios, & espeluncas. Os de menos
perfeyção acodiaõ o Domingo a ouvir Missa, & ao mesmo Domingo hus, & outros á
segunda feira tomavaõ as cousas necessarias para sustentarem a vida toda a semana, & se
tornavaõ a suas habitações. O deserto em que está situado este Mosteyro, o qual com este
nome comprehende alguas cinco, ou, seis legoas, aonde morava tanta copia de Santos, he
de tanta aspereza, que causa espanto, nem ha nelle arvore alguma, ou cousa verde, sómente
vimos dentro em hum alegrete no Mosteyro huns pès de salsa, no valle ha alguma herva de
que os Arabes se aproveytaõ. Agua nativa naõ na ha em todo aquelle circuito, que seja para
beber: mas tem os Caloiros duas grandes cisternas, que copiosamente lhe abastaõ, & ainda
dão della alguas horas aos Arabes seus familiares. Diante da Igreja nos mostraõ o lugar &
cella, aonde passou o curso de sua peregrinação o bemaventurado pay de companhas Santo
Sabbá, Principe, & Capitaõ de tão glorioso exercito, como o que naquele deserto asperrimo
servio ao Senhor Deos, com conti/nuas 372 vitorias do Mundo, Carne, & Demonio. Nenhua
duvida poraõ os que virem aquelle lugar, no que lerem no livro chamado Vitas Patrum,
haver tantos mil Monges debayxo da obediencia de hum Abbade, porque no que vi neste,
podiaõ habitar muytos mais dos que escrevo: & nenhua duvida ponho de ficarem alli
ligados os desejos dos que o visitaõ, trazendo á sua memoria quantos Santos alli morárão.
Depois de nos haverem mostrado todas as particularidades da casa, & torre, nos
levárão á sua rouparia, a qual estava menos provida do que estaõ outras que tenho visto de
Religiosos, & nos disseraõ ser necessario tirar os habitos q traziamos, & vestir os dos
Caloiros, por ser impossivel coprir de outra maneyra o q tãto desejavamos, o q de boamete
fizemos, porq já para isso hiamos promptos, & aparelhados. O Padre meu companheyro se
vestio todo como Caloiro, o Padre Benedito, & eu sobre as nossas tunicas vestimos os seus
habitos. O vestido dos Caloiros he o seguinte. Huma tunica de pano, sobre ella hum
281
bentinho de sarja preto com duas Cruzes, hua detraz, outra diante, feyto ao modo do que
trazem as pessoas devotas de nossa Senhora do Carmo tomado das quatro pontas com hum
cordão de cedas: & em cima do bentinho hua Cruz de pao co outro cordão de cedas: &
sobre isto o habito, o qual assim na cor do pano, como na feyçaõ, he como o que atè nossos
tepos trouxeraõ os pobres da Serra Dossa, a que o vulgo chama Biguinos: & da mesma cor
trazem huas carapuças grades, q lhe cobre o pescoço, feytas á marinheyresca. Depois de
estarmos assim vestidos, mostravamos grande contentamento vendo-nos feytos Caloiros :
& huns aos outros nos davamos os bõs dias, & boas tardes com palavras Gregas vulgares:
& fingindo ser/mos
373
Coloiros, nos fomos por passatempo dissimuladamente lançar aos
pès do Abbade, tomandolhe a benção o qual a primeyra vista se enganou, & alterou: mas
caindo logo em quem eramos, summamente se alegrou. Sendo já as onze horas do dia, nos
disse o Abbade ser tempo de tomarmos refeyçaõ, respondemos-lhe, que quando a elles
tomassem, ao que se escusou, dizendo, que naõ podia ser, porque era sesta feyra, no qual
dia os Caloiros passavaõ sómente com paõ, & agua, pelo terem de Regra, & alem disto
faziaõ alguas ceremonias & penitencias enfadonhas: que quando tornássemos do Jordão,
tomariamos todos juntos refeyçaõ. Sugeytamonos ao que nos disse, mas que ainda era
muito cedo, porque nòs tambem tinhamos o jeju da sesta feyra da nossa Regra, & assim
esperamos atè o meyo dia, querendo-lhe mostrar, que ainda que não morávamos nos
desertos de Palestina, tambem tinhamos jejuns, & abstinências. Sendo meyo dia, segundo
mostrava o relogio do Sol que naquellas partes não se permittem outros, levaraõ-nos a
comer ao mesmo lugar aonde haviamos de noyte estado: & a comida foy paõ, & arroz mal
cosido sem azeyte, nem sal, & azeytonas com as quais sómente passamos, que o arroz era
insofrivel, posto que elles tinhaõ para si, que nos banqueteavaõ. A refeyçaõ delles foy
depois da huma hora, a qual acabada o Abbade veyo ter comnosco, admoestando-nos, que
nos fizessemos prestes para o caminho, porque se faziaõ horas: & espantou-se, vendo que
não haviamos tocado no arroz, escusou-se por nos não poder agasalhar de outra maneira,
assim por sua morada ser naquelle taõ aspero deserto, como por ser sesta feyra.
Logo naquelle mesmo dia em começando amanhecer o Abbade mandou chamar
hum Arabe muyto seu fami/liar
374
, o qual era cabeça de hum aduar de Arabes, que alli
estava, perto, dizendo q eraõ vindos tres Caloiros de Candia seus conhecidos, & amigos, &
282
q os queria levar ao Jordão. O Arabe, como outras vezes havia naquella jornada
acompanhado Caloiros; & de sua companhia naõ se havia achado mal, q a Igreja com todos
he piedosa, mandou dizer q de boamente viria. Estando nòs a ponto para partir, sómente
esperando pelo Arabe, trouxe a fortuna ao Mosteyro hum Christaõ natural de Belem, o qual
por sua má vida, & perversos costumes andava lançado com os Arabes, servindo-lhes de ir
ao povoado buscar o que lhe mandavaõ: porq elles como são tidos por inimigos publicos
dos Turcos, & Mouros, em nenhuma maneyra lhe convem ir a povoado, porque se os tomaõ
á mesma hora os prendem, & saõ justiçados: & os mesmos Arabes não perdoaõ em nenhua
maneyra a Turco, nem a Mouro, se os achaõ em parte, q a seu salvo os possaõ mattar.
Vendonos aquelle Christaõ andar negoceados, disse ao Abbade, que se queriamos ir a algua
parte, de boa vontade nos acompanharia, o que o Abbade lhe agradeceo, & de muy
boamente aceytou.
Estando nòs tratando nisto com o Christão chegou o Arabe, que comnosco havia de
ir, todo vestido de festa, cõ hum grande camizaõ de grosso algodão, feyto a modo de opa
comprido atè o chão, com mangas muyto largas: & os bocaes della lavrados. Foy de nòs
recebido com alegria, & o Abbade mandou logo fazer sinal, & juntos os Caloiros nos fomos
todos á Igreja, & juntamente fizemos oraçaõ pedindo ao Senhor Deos tivesse por be
acõpanharnos naquella santa, & perigosa jornada, & nos tornar cõ paz, & saude a casa, &
mandou o Abbade, que em quanto lá andassemos, tivessem cuydado de fazer /
375
por nòs
oração. E tomando de casa, o que era necessario para o caminho, que já estava prestes com
paõ, & agua, & hua pouca de farinha repartindo entre nòs a carga, nos sahimos de casa.
O veneravel Abbade, o qual se chamava Caly: & dous Caloiros seus companheyros,
& nòs tres, & o Chistão de Belem, & Arabe, teriamos caminhado huma milha, quando
chegámos ao aduar dos Arabes de cuja companhia era o que nos acompanhava, o qual
aduar não tinha mais que atè sessenta casaes: posto que á vista delle estavaõ aduares
mayores liados com este em amisade. Tanto que chegámos sahiraõnos a receceber muytos
Arabes, & a nos fazer festa, porque o Abbade Caly, como havia mais de trinta annos, q
morava naquelle deserto, era muy conhecido, & amado de todos, & tido delles por santo, &
assim vieraõ muytos cõ muyta cortesia a lhe tomar a benção, beijado-lhe a mão como pay.
O velho como sabia já seu modo, levava-lhe as mangas cheas de algus figos seccos, que
283
pouco aproveytavaõ, & muytos pedacinhos de paõ: & os moços, & mininas lhe vieraõ
todos tomar a benção, beijando-lhe o habito: & como os vio juntos, lhes lançou em tres, ou
quatro partes o que nas mangas levava, como que o lançava a pintos, & isto costumava as
vezes q alli vinha, por naõ haver entre elles queyxas que dava a huns mais que a outros, &
desta maneyra os fazia domesticos, & era delles amado: & para a mulher, & filhos do nosso
Arabe, levava o Abbade seu quinhaõ apartado. Detivemonos alli atè se pòr o Sol, por irmos
de noyte mais seguros, & o Arabe despio a opa das honras, & tomou as roupas commuas de
bem vil preço, como são todas as de que os Arabes usaõ: & tomou de casa hum couro de
bezerro grande, & bem cortido, o qual com huas / correas se cerrava, & abria como bolsa de
cerralhas: de maneyra, que aberto servia de meia, & cerrado de levar agua, & deu hum arco
ao Christaõ, com alguas festas, tomando outro para si, & despedindo-nos dos Arabes, & o
nosso da sua mulher, nos partimos daquelle lugar, encommendando-nos de coração a N.
Senhor Jesu Christo.
284
CAPITULO LXII.
De como nos partimos do aduar dos Arabes, & fomos ter à santa Quarentena.
PArtidos das estancias dos Arabes: o Abbade de Caly disse ao Arabe nosso
companheyro, que pois haviamos de andar todas as estações que elles costumavão, seria
melhor irmos primeyro ao Jordão, & ao Mar Morto, & tornariamos pela santa Quarentena.
O Arabe não lhe pareceo bem, & respondeo ao Abbade desta maneyra. Espantome de ti
Abbade Caly, seres homem de tanta experiencia neste caminho, & teres hum parecer tão
mal acertado. Não sabes tu, que junto ao Mar Morto, quasi sempre andaõ Arabes, & se nos
encontrarem, o menos que nos faraõ, he tormarem-nos o mantimento, sem o qual não
poderemos ir mais por diante? Vamos primeiro à Quaretena, & depois ao Jordão, porque
são lugares aonde os Arabes não costumaõ ir tantas vezes neste tempo, de maneyra, que
quado chegarmos ao Mar Morto, levaremos tão pouco mantimento, q nos não irá muyto em
q no lo tomem, porq teremos a casa perto. A todos pareceo bem o conselho do Arabe, o
qual seguimos juntamente com o nosso caminho. O Arabe sempre hia diante, descobrindo
terra com muyta diligencia, & como via algum /
377
outeyrinho, sobia-se em cima delle, &
com a orelha fita com muyta attençaõ escutava se sentia algua cousa, & nòs caminhávamos
com todo silencio, encomendando-nos sempre a nosso Senhor. Seriaõ tres horas passadas
da noyte, quando o Arabe sentio, q vinhão pelo caminho outros Arabes, com gado q
levavaõ furtado, & tornando para trás, nos deu aviso, tirando-nos do caminho, & levandonos de redor de hum outeyro grade & alto, & nos fez meter entre as moutas do matto :
encomendandonos, que estivessemos quietos com todo silencio, atè saber o q era : & elle
com seu companheyro se poz mais junto ao caminho, mettidos cada hum em sua mouta;
com seus arcos prestes, & a ponto para acodirem sendo necessario. Estando nòs assim
callados esperando o fim da cousa, chegou-seme á orelha nosso companheyro Frey
Benedicto, & com voz muyto bayxa, & compassiva, me disse: Padre Frey Pataleaõ, quato
agora ordene o Senhor Deos de mim, o q mais for sua vontade, porque já ganhey
indulgencia plenaria pela minha conta benta. Tive eu muyto gosto em o ver taõ devoto, &
conforme com a vontade de nosso Senhor : & sorrindo-me lhe disse, que se callasse, & não
285
temesse que com ajuda de Deos não seria aquella a da morte. Estando nisto, quiz nosso
Senhor, q passáraõ os Arabes sem nos sentirem, os quaes hiaõ fazendo huma grande
gralhada: & disseraõ-nos os companheyros que levavaõ mais de quarenta cabeças de gado,
& quatro, ou cinco camellos, & tudo era furtado. Toda aquella má canalha se susteta de
rapina: porque tirando os aduares, q em si com amisade andaõ liados, todos os mais no que
podem empecem huns aos outros. Elles passados sahimonos-do mato aonde estavamos
metidos, & seguimos nosso caminho, dando graças ao Senhor, por nos livrar /
378
daquelle
perigo. O Abbade Caly, ainda que era de noyte, hianos mostrando algus lugares, nos quaes
dizia haverem estado, & morado muytos varões tantos no tempo mais antigo, os quaes
avião resplandecido com muytos milagres: & haviaõ habitado naquelle deserto, por nosso
senhor com sua divina presença o haver santificado, fazendo nelle penitencia por nossos
peccados, jejuando nelle quarenta dias com suas noytes. Caminhando entre grandes
valladas junto das onze horas, segundo nos mostravão as guardas do Norte, chegamos a
hum lugar descuberto, aonde estavão hus casaes, & á vista delles em hum alto hum grande
castelo, chamado Herodion, o qual segundo conta Josepho, edificou Herodes Ascalonita,
que mandou mattar os meninos Innocentes, & o castello está sobre o Mar Morto da parte
Occidental: & no meyo da estrada topamos hua sepultura muyto grande, & fermosa de
vinte passos em comprido, & doze de largo, & de altura quatro covados, & meyo, a qual
estava mettida em hum adro grande, todo lageado de cantaria, & cercado de parede tão alta,
que nos dava pelos peytos, com dous portaes abertos, hum ao Oriente, outro ao Norte. A
sepultura era de todo cerrada, sómente no alto tinha hua fresta de dous palmos de comprido,
& hum de largo. Entramos dentro no adro, & tomamos estas medidas, olhando tudo muy
particularmente cõ grade silencio. Perguntey ao Abbade Caly, de quem diziaõ ser aquella
sepultura, disse-me que huns diziaõ ser do Profeta Moysés, & outros de Josuè, porq os
Turcos, & Mouros por tal a tinhaõ, & o Arabe, como homem Escriturario affirmou ser de
Moysés, & nos disseraõ que era venerada, & visitada de toda Turquia, & de outras partes
remotissimas, donde quer que havia Turcos, ou Mouros, os quaes /
379
como peregrinos a
vinhaõ visitar cada anno, & que naquelles casaes viviaõ alguns santões Mouros, assim
como Ermitões apartados dos tumultos do mundo, fazendo penitencia, os quaes tinhaõ
cuydado della, & se sustentavaõ das esmolas, que os peregrinos traziaõ. Ser aquella
286
sepultura venerada de toda a seyta Mahometana não ha duvida algua, mas ser ella do santo
Moysès, he cousa fabulosa, & eu disse ao Abbade Caly, que lhe naõ houvisse alguém dizer
aquillo, dando-lhe a entender não ser bem lido na Escritura Sagrada, porque no livro
intitulado Deuteronomio, & no Hebreo chamado elle hadebraim, está escrito, que Deos
mandou a Moysès, que sobisse ao Monte Nebo, para que delle visse a terra de Promissaõ,
& desde que a vio, diz o mesmo texto, Et mortuns est ubi Moyses servus Domini in terra
Moab jubente Domino, & sepelivit eum in valle terræ Moab contra Phegor, & non cognovit
homo sepulchrum ejus usque in præsentem diem. Quer dizer; & morreo Moysès fervo do
Senhor alli na terra de Moab, mandando-o assim o Senhor: & sepultou-o em hum valle da
terra de Moab, defronte de Phegor, & naõ soube pessoa algua sua sepultura atè o dia de
hoje. E de Josué em o ultimo capitulo do seu livro está escrito, que morreo de idade de
cento & dez annos, & que foy sepultado em os terminos de hua herdade sua, em
Thãnathfarech, a qual está situada no Monte Ephraim da banda do Norte, do Monte Gahas.
Naõ ponho eu muyta duvida ser aquella sepultura de algum Santo do Testamento Velho,
porque aos taes honraõ os Mouros com grandissima veneração, affirmando serem todos
seus pela parte que lhe cabe de procederem de Abraham, ainda que pela via de Ismael filho
de Abraham, & de Agar sua escrava. Junto a esta sepultura está hua cisterna, da / qual com
trabalho tirámos água, mas achámola de máo cheyro, & amargosa. Seguindo nosso
caminho, seria meya noyte quando chegámos ao lugar aonde o glorioso S. Hieronimo
morou algum tempo naquelle deserto; & pouco mais adiante ao pè da santa Quarentena,
tam cansados, que nos naõ podiamos bolir, porque nos naõ tinhamos assentado depois q
partimos do aduar dos Arabes, & juntamente mortos de sede por se nos haver acabado a
agua, que do Mosteyro tinhamos trazido, sem acharmos outra no caminho, que fosse para
beber: mas os desejos, que tinhamos de ver aquelles santos lugares que o Senhor do mundo
havia santificado andando nelles, nos davaõ alento para sofrer outros trabalhos mayores, se
se offerecessem, com alegre coração.
287
CAPITULO LXIII.
Da santa Quarentena.
CHegados ao pè do santo monte, no qual nosso a Deos, &Senhor teve por bem estar
quarenta dias com suas noytes jejuando: primeyro que subissemos, escondemos o
mantimento, que levavamos em hum silvado, & moutas, & mandando ao Arabe, que com
seu cõpanheyro o Christaõ de Belem, fosse á fonte do Profeta Eliseu, a qual estava dalli
menos de hua milha, & enchessem as vasilhas de agua, & com ella nos esperassem naquelle
lugar, atè que tornassemos. Elles partidos começamos nòs a subir por aquelle sagrado
monte, cuja sobida era tão ingreme, que em alguas partes nos convinha ir de pès, & mãos,
por ser feyto á maneyra de rocha marina. O Abade Caly como / 381 bom piloto hia diante, o
qual nos affirmou ter por alli subido mais de trinta vezes, o que nos causava irmos mais
seguros; & caminhavamos huns pegados aos outros, de tal maneyra, que em alguns passos
punha hum a maõ a onde o outro tinha o pè, & desta maneyra subimos atè o meyo do
monte, aonde na pedra viva achamos feyta hua cappella muyto bem lavrada, que mandou
fazer a Rainha Santa Helena, may do grande Constantino. O Abbade Caly, tanto q alli
chegamos, nos fez assentar, & tirou da manga fuzil, & pederneyra, & sirio fogo, &
accendeo candea, com cuja luz recebemos grande contentamento, & ficamos attonitos,
vendo-nos em hua cappella tão bem acabada dentro em hua taõ ingreme, & aspera rocha
viva.
Daquella cappella subimos por huma escada de quinze atè vinte degráos de pedra
feytos em meyo caracol, & entrámos em hua cappella muyto melhor, & mayor, q a
primeyra, a qual he a propria, ou o proprio lugar, aonde noite Redemptor esteve todo o tepo
de seu sagrado jejum, & alli em outra cappellinha feyta dentro naquela, na mesma rocha
viva, quanto pudera estar hua pessoa, está hua pedra, na qual se sentava o Senhor do
mundo, & della trazem por reliquia os peregrinos, que merecem alcançar, subir àquele
lugar: a qual se desfaz como pò de prata, & della cortamos meus companheyros, & eu cada
hum seu pequenino, que comnosco trouvemos por particular reliquia.
Tanto que naquella superior cappella entrámos, o Abbade Caly tirou da manga um
molhosinho de cavaquinhos, q levava, & accende-os, & feytas brazas, poz nellas incenso, &
288
incensou todo aquelle sagrado lugar. Este costume tem os Christãos Orientaes, porem
incenso nos santuarios, se lhe he possvel, quando os visitaõ.
382
Neste lugar estava a Magestade Divina, quando permittio ser do Demonio
tentado da primeyra tentação, dizendo-lhe o adversario: se Filho de Deos es, manda que
estas pedras em paõ se convertaõ. A terceyra tentação foy no mais alto deste mesmo monte:
ao qual lugar naõ subimos por ser de noyte, & não haver alli subida, & o caminho toma-se
ao pè do monte, rodeando hua grande meya legoa.
No lugar aonde foy a primeyra tentação se ganha indulgencia plenaria, & se faz esta
commemoraçaõ. Antifona. Ductus est Jesus in hunc desertum a spiritu, ut tentaretur à
Diabolo, & cum jejunasset quadraginta diebus, & quadraginta notibus: postea esurij. Vers.
Et ecce Angeli Accesserunt. Resp. Et ministrabant ei.
Oração.
DUlcissime Jesu Christe, Deus æterne, qui in hanc mundum veniens facere,
priusquam docere voluisti: quique hanc arduam ingressus solitudinem jejunare, tentare, ac
esurire pro nobis peccatoribus dignatus fuisti: præsta, ut quod mundo reliquisti exemplum
pœnisentiæ, nos usque in finem complecti, & imitari possimus. Qui vivis, § regnas, cum
Deo Pater, &c.
Alguns quizeraõ ser de opinião, não ser este o monte, aonde foy a terceyra tentação,
q o desavergonhado, & atrevido inimigo de nossa redempçaõ se atreveo a commetter a seu
Deos, & Senhor, q o adorasse, & dizem os taes, que foy daqui hua legoa, mas enganaõ-se,
porq no tal monte, aonde elles querem porfiar, não ha memoria disso, como a vemos neste
aonde foy a primeyra tentação, o qual no mais alto tem hua Igreja, & sua indulgencia: nem
desta parte do Jordão ha outro monte tão alto, ainda que ha outros muytos, mas de menos /
383
altura. A Rainha Santa Helena, como cuydo que já em outra parte tenho dito, se me não
engana a memoria : mandou edificar na Terra Santa, trezentas Igrejas nos lugares, em
particular aonde nosso Redemptor esteve, & como do tepo de sua Divina Magestade atè ,
agora sempre houve Christãos na Terra Santa, que são as Escrituras vivas das cousas de
Hierusalem, & toda Palestina, não se deve duvidar, quantos haveria no tempo daquella
289
gloriosa Rainha, pois viviaõ com differente liberdade, do que agora tem, em que se vè quão
bom testemunho podiaõ dar dos santos lugares.
Acabada nossa oração, escrevi alli meu nome, como vi estar outros escritos na
parede, ou rocha da cappella, em testemunho de haver alli estado; os quaes eraõ de
peregrinos Ungaros, & Polonios; tornamonos á cappella debayxo, & com fallar á vontade,
por estarmos seguros dos Arabes, & com a claridade do lume, sahiraõ alguas pombas, q alli
criavão, & hua se me veyo meter nas mãos, o que tivemos a bem, & a levamos viva atè
Belem. Depois disto tornamos abayxo pelo caminho, que haviamos subido, mas com muyto
mais perigo, por causa de ser muyto ingreme, & ter alguns passos perigosos, pelos quaes se
sobe melhor do que se desce, & esta he a causa, porque muytos peregrinos vão atè aquelle
lugar, & não sobem ao alto, porque se lhe vay o lume dos olhos, & correm muyto perigo, &
indo de noyte com boa guia, as mãos, & pès vos serve de olhos, ainda que com mais
trabalho. Ao tempo que chegámos abayxo, já o dia, & aurora começavaõ a dar de sinal &
vindos ao lugar aonde haviamos deyxado a provisaõ, achamos nossos companheyros, que
com muyta agua fresca nos estavaõ esperando, da qual tomando refeyçao á vontade,
incitados a isso, assim pelo demasiado gosto, /
384
que nella achavamos, como pela grande
sede & necessidade, que della tinhamos. Pedimos ao Abbade Caly, que nos levasse a ver
aquella bendita fonte, o que elle não quizera fazer, dizendo que vinhamos muyto cansados
de tanto trabalho, como passado tinhamos, & que começava já a esclarecer, & poderiamos
ser sentidos no Jericò, & ter algum enfadamento: porèm vendo que mostravamos
particulares desejos de ir, consentio nelles, & levounos á fonte.
290
CAPITULO LXV.
Da Cidade Jericò, & da fonte do Profeta Eliseu.
COm muyta pressa, & silencio começamos a caminhar do pè da santa quarentena, &
fomos ter á fonte do Profeta Eliseu, a qual he assim chamada atè este presente tepo, assim
de Christãos, como de Mouros, & Arabes, & de toda nação, porque como aquelle santo
Profeta depois que o Senhor Deos tirou de entre os homes a seu bom Mestre Elias, & o
levou ao Paraiso Terreal (aonde segundo se crè, está vivo em carne, & em corpo mortal, &
estará atè o fim do mundo) se viesse morar a Jericò com os filhos dos Profetas: vieraõ a elle
os moradores da Cidade, & lhe derão conta, como a terra era bonissima, & fertil, mas q as
aguas para beberem eraõ pessimas. Ouvindo isto o Profeta, mandou, que lhe trouxessem
hum vaso novo com tal, & tendo-lhe trazido, foy-se á fonte, & laçando-lhe dentro o tal,
disse estas palavras: isto diz o Senhor, eu sarey estas aguas, & daqui por diante não haverá
nellas morte, nem esterilidade, & da mesma /
385
hora atè o presente ficou aquella agua
excellentissima. Esta fonte he aquella, da qual se trata na beçaõ do sal, quando dizem:
Exorcizo te creatura salis &c. per Deum qui te per Heliseum Prophetam in aquam mitti
jussit.
Tive eu muyto contentamento de me ver naquella bendita fonte, a qual lança de si
tanta agua, que mohem com ella muytas azenhas; & com ser fertilissima, & criadeyra de
seu natural, depois q foy curada pelo Profeta Eliseu, affirmaõ os da terra, que todo o animal
irracional, que bebe della, fica neste ponto esteril. Não fizemos alli mais detença, q beber,
& lavarmos mãos, & rossto, & logo nos partimos, passando junto ao lugar Hiericò, que ao
presente pòde ter atè vinte casas mal concertadas, pobres, & de Mouros habatidas, mas
ainda se vem alguns vestigios do que antigamente foy aquella Cidade. Hum pedaço
apartado daquellas casas, que melhor lhe chamariaõ cabanas, ou choupanas, está hum
edificio grande a modo de torre, o qual nos disse o Abbade Caly, que diziaõ ser a casa de
Raab, q milagrosamente se sustentava por vontade do Senhor, por nella haver agasalhado
com tanta fé, & piedade as espias que o santo Moysès mandou á Terra de Promissaõ: & o
mesmo ouvi dizer a outras pessoas na Terra Santa, em especial a Judeos, que trabalhão
291
muyto por trazer na memoria semelhantes antiguidades. Abayxo do sitio desta Cidade vaõ
muytas hortas, & pomares, & grandes canaveaes de canas de açúcar, que com aquella boa
agua saõ regados: a qual depois de regar todo aquelle circuito, vay correndo pela campina
de Galgala, atè dar no Rio Jordão. Sahidos de Hiericò, como já era claro dia, & começava o
Sol a derramar seus rayos neste nosso emisferio superior, / 386 começamos a caminhar com
toda a pressa entre hum arvoredo de arvores muy altas, & grandes muy grosseyras, &
asquerosas á vista, as quaes tinhaõ hum fruto vermelho, feyto a modo de maçãas d’anafega,
mas tambem agrestes, & não me soube o Abbade Caly dizer o nome, nem fóra daquelle
lugar vi outras semelhantes : & fomos dar no caminho do Jordão, junto do qual vimos hua
vallada grande, feyta da corrente d’agoa, & nella nos metemos, naõ nos podendo já ter de
cansados, mortos de fome, estivemos espaço de hua hora naquelle lugar.
Esta terra, q a Sagrada Escritura chama Galgama, he hua campina rasa, muy
espaçosa, & grande, que está entre Hiericò, & o Jordão, na qual esteve o povo de Israel
depois que a pè enxuto o passáraõ em o mez do anno, que estava mais crescido, & alli
mandou Deos a Josué, que circuncidasse o povo com cutellos de pedra, (dos quaes os
Judeos agora não usaõ nas suas circuncisoẽs, como alguns cuydaõ) porque todos os que no
deserto haviaõ nascido por espaço de quarenta annos, que nelle andarão, estavão por
circuncidar. Indo pelo caminho, mostrou-nos o Abbade Caly hum pequeno valle á maõ
direyta, o qual nos disse, que se chamava o valle de Achan, mas não nos soube mais dizer:
& he aquelle valle, aonde Achan filho de Carmi do Tribu de Judá, foy apedrejado dos filhos
de Israel, por mandado do grande Capitão Josuè, por tomar, & furtar na entrada de Hiericò
huma vestidura de purpura, & huns duzentos siclos de prata com hum pedaço de ouro, que
pesava cincoenta, tendo o Senhor Deos mandado sob anathema, que nenhum fosse ousado a
tomar cousa alguma daquella excomungada Cidade. Seguindo nosso caminho fomos ter ao
lugar, aonde Josuè mandou pôr / 387 as doze pedras, que os filhos de Israel por mandado do
Senhor Deos tirarão do meyo da corrente do Jordão, em memoria de tão grande maravilha,
como foy aquella que Deos Eterno alli fez, quãdo a pè enxuto o passarão, tendo huma tão
grande multidão de gente, que sómente os que eraõ para tomar armas passavaõ de seis
centos mil homes, tornando a corrente do Jordão atraz, & juntando-se suas aguas em hum
lugar, fazendo-se quasi como huma grande montanha em tal maneyra, que de muyto longe
292
as viaõ: & as outras seguiraõ sua corrente atè o Mar Morto. Caminhando mais adiante por
aquella espaçosa campina de Galgala, chegamos a huma cappella já perto do Rio Jordão,
dedicada, em nome, & louvor do glorioso S. João Baptista, por ser o lugar aonde se
recolhia, quando naquelle deserto baptizava a gente que alli vinha ouvir sua santa, & suave
doutrina.
Poucos annos antes que eu fosse á Terra Santa, cahio hum pedaço daquella Igreja,
de hum grande terremoto, que naquellas partes houve, o qual derrubou outros muytos
edificios, do mais está toda cuberta, & de alto abayxo pintada de pinturas curiosas, &
imagens muy devotas, & de muyto bom pincel, & finas tintas: as quaes estão tão inteyras,
& claras, que mais parecem modernas, que antigas: & com estar naquelle tão remoto
deserto, aonde de continuo andão Arabes, nenhum mal lhe tem feyto, como ás imagens de
Santo Sabbà fizerão, tirando-lhe os olhos pela grande devoção, & reverencia, que os
Turcos, & Mouros tem ao glorioso Baptista. Entrámos dentro na Igreja, & feyta oração, &
olhando aquellas imagens com attençaõ, nos tornámos a sair, & caminhar, levando a vista
na planicie de Moab, & terra de Cetim, aonde estivèrão os filhos de Israel, antes que
passassem o Rio Jordão, & o Abdade Caly / 388 nos hia mostrando alguns lugares de que faz
memoria a Escritura Sagrada, dizendo, alli foy tal, & alli tal, do que sentiamos grande
consolação espiritual.
293
CAPITULO LXV.
Do sagrado Rio Jordão.
GRande alegria, & contentamento foy o nosso, quando chegámos ao santo Rio
Jordão, vendo compridos nossos desejos, & satisfeyto o premio do trabalho que naquella
jornada passamos. Fomos logo ter àquella parte aonde os filhos de Israel o passáraõ vindo
do cativeyro de Egypto, & estivèrão tantos annos, sendo seu Capitão Josuè, filho de Nun,
successor do Santo Profeta Moysés, & no mesmo lugar o passáraõ Elias, & Eliseu a pè
enxuto: & no mesmo em que o filho de Deos Eterno, do glorioso Baptista foy baptizado.
Vay naquella parte o rio cercado de hu tão espeso arvoredo, que se naõ pòde ver, senaõ
depois q rompendo por elle, chegais junto da agua, posto que em outra vay descuberto.
Chegámos a elle num sabbado, depois das nove horas do dia, & logo postos de giolhos
começamos a cantar. Lavacra purigurgitis cælestis agnus attigit: peccata, quæ non detulit,
nos obluendo sustulit. Antifona. Hic baptizavit miles regem: servus Dominum suum,
Columba protestatur, paterna vox audita est: hic est Filius meus dilectus, in quo mihi bene
complacui. Vers. Vox Domini super aquas. Resp. Deus majestatis intonuit.
389
Oração.
ANimarum, Deus, omnium Conditor, & Redemptor, qui ad salutem humani generis
in hac Jordanis aqua baptizari voluisti. Concede benignus, nos ipsius sacri Baptismi tui, &
venerari mysterium, & consequi meritum. Qui vivis, & regnas, & c.
Nossa oração acabada, & alcançada indulgencia plenária, que naquele lugar se
ganha, bebemos daquella agua, a qual achamos muyto gostosa, & tanto, q nos não
podíamos fartar della. Depois disto acabado, dissemos o Abbade Caly, q lhe parecia bem
estarmos alli o dia todo: assim por irmos muito cançados, como por gozarmos mais á nossa
vontade, do que tanto desejávamos, & q tambe era de opiniaõ, q dormissemos alli aquella
noyte, & que ao outro dia passássemos o rio da outra parte, pelo q lhe demos muytos
agradecimentos: & logo começamos a cortar muytos ramos das arvores, & cada hum fez
294
para si huma choupana, o melhor que pode, & soube, ajudando huns aos outros, & ellas
acabadas nos metemos dentro, & repousámos.
Teríamos repousado alguas duas, ou tres horas, quando me levanteu, & fuy esperar
os cõpanheyros, dizendo-lhe, que deyxassem o dormir para quando tornássemos a casa.
Elles despertos nos fomos ao rio, metendonos detro nelle lavandonos á vontade,& dentro
nagua, dissemos as vésperas do rezar antigo do dia octavo da Epiphania, que trataõ do
Baptismo de nosso Senhor Jesu Christo. O Abbade Caly, tanto que despertou mandou ao
Christaõ de Belém, & ao Árabe, que cortassem muita rama das tamargueiras seccas, que
por alli havia, & ferio fogo, & fizeraõ huma grande fogueyra: & os dous Caloiros tomáraõ o
couro do Árabe, /
390
que nos servia de agua, & aberto laçarão nelle mais de hua quarta de
farinha, que de Santo Sabbà haviaõ trazido, & com agua do Jordão amassáraõ, & fizeraõ
duas grandes tortas : & arredado o brasido as lançarão nelle, & as cobrirão, & em quanto se
coziaõ, se foraõ a lavar, & folgar no rio como nòs.
Naquella parte aonde nosso Redemptor do glorioso S. Joaõ foy baptizado, & a voz
do Padre Eterno foy ouvida, & em figura de pomba foy visto o Espirito Santo sem duvida
algua mostra o Ceo hua particular claridade, & limpeza muyto mais que nas outras partes,
como tambem mostra no Monte Olivete, no lugar aonde nosso Senhor subio aos Ceos, o
que muytas vezes com attençaõ notey. Vay naquella parte o Jordão muyto fundo, &
estreyto, naõ tem area, mas hum lamaçal, quasi como greda, do qual me disse o Abbade
Caly, que tomasse, & ao Sol o seccasse para trazer comigo a Franquia, affirmando-me ser
terra miraculosa, & muy medicinal para febres. Fiz o que me disse, & a trouxe, & com
particular experiencia achey que me dissera verdade, dando-a a beber a algus doentes de
febres, desfeyta em agua: & sararão com o favor divino. Traz o Rio Jordão muyto bom, &
gostoso peyxe, o qual ainda que aquella vez naõ comemos, comi-o antes, & depois muytas
vezes.
Acima hum bom tiro de arco vay o rio mais largo, & esprayado, & faz huns mèdos
grandes de area, que parece serem daquelle tempo, & daquellas vezes que miraculosamente
tornou atraz: assim quando passaraõ a pè enxuto os filhos de Israel, & o passarão Elias, &
Eliseu juntos, & o passou Eliseu só por si. Da outra parte vay o terreno mais alto, & tem
algum rochedo: & de ambas as partes cuberto de arvoredo, o mais / 391 delle tamargueyras,
295
canissos, & muytas mostardeyras, das quaes colhi huma boa quantidade de mostarda. As
tortas cosidas nos chamou o Abbade: & fez assentar convidando-nos dellas, o que coube a
cada hum, alegremente comemos, vendo serem feytas, & amassadas, cõ aquella agua
bendita: a qual ainda que he tanta, que della se faz hum rio caudal, he naquellas parte tida,
& estimada dos Catholicos, mais do que cá podem estimar o balsamo: permittindo-o assim
o Senhor, que teve por bem de a santificar com o tocamento das suas divinas carnes. Depois
de comer, todo mais tempo gastamos no rio, porque ainda que cá nestas nossas partes no
mez de Outubro as tardes, & as noytes saõ frias, naquellas muyto menos. Passamos a
mayor parte da noyte metidos nas choupanas repousando, dando ao corpo, o q a noyte atraz
lhe haviamos tirado porq senaõ queyxasse, & contra o espirito grunhisse. Já sobre a
menhãa, sentimos hum tropel de Arabes com mulheres, & moços, o que nos deu muyta
turbação, & o nosso Arabe muyto depressa se levantou, & foy espreytar o que era, & achou
serem alguns casaes de Arabes, que passavaõ o rio, mudando-se para outra parte por
aquella, aonde sabiaõ haver vao, ou por ventura a nado; dous tiros de pedra abayxo donde
estavamos para o Mar Morto: os quaes com a espesura grande do arvoredo, não nos virão,
nem sentiraõ.
Em amanhecendo dissemos nossas Horas Canonicas, & as devoções particulares, &
por ser Domingo nos detivemos mais hum espaço no rio, & tomada colaçaõ breve de paõ,
& agua (q longa não podia ser, por falta de mantimento) nos puzemos em ordem de passar
o Jordão da outra parte, o qual julgo eu ser como o Rio Mondego, que passa por Coimbra,
Cidade muy nobre / 392 no nosso Portugal. O nosso Arabe, & o Christaõ de Belem passáraõ
primeiro por ver o vao, que tal era, & como naquella paragem o acharão fundo, tornaraõ-se
a nòs, dizendo o naõ podiamos passar senaõ a nado: determinamo-nos nisso, pondo-nos
primeyro em oração, & encommendando-nos ao Senhor Deos de todo coração.
296
CAPITULO LXVI.
De como passamos o Rio Jordão, & fomos ter ao Monte Nebo.
ACabada a oração, cantamos o Psalmo In exitu Israel de Egypto, domus Jacob de
populo barbaro, nòs diziamos hum verso em Latim, & os Gregos Caloiros outro em Grego;
& despidos das nossas vestiduras, as demos ao Christaõ, & Arabe, que as passassem da
outra parte, porque sabiaõ muyto bem nadar, os quaes de dous caminhos as passáraõ com o
mais, & nòs tambem nos passamos, ajudandome todos, por não ser bom nadador. Depois
que nos vimos da outra parte, encaminhamos para o Monte Nebo, q tinhamos diante, indo
por aquella terra de Moab, que coube em sorte ao Tribu de Ruben, & junto ao meyo dia
chegamos ao alto do Monte, o qual está entre outros dous de mayor altura: & postos no
lugar aonde pouco mais, ou menos esteve o tanto Moysés olhando & contemplando a terra
de Promissaõ, como o Senhor Deos lhe tinha mãdado, o qual está assinalado com hua
Igreja, que alli foy edificada, & está muyto por terra, nos puzemos pelas merces do Senhor
tambem a olhalla, & contemplalla, vendo toda a terra de Galaad, atè 393 Dan, & Nephthalin,
a de Efrain, & Manassés: parte do mar terreno, a que a Escritura chama novissimo, porque
se remata naquella parte da Terra Santa para o Monte Libano, & Antioquia. Vimos dalli a
Cidade das palmas, & o campo de Hiericò Bethel, Belem, Hierusalem, a santa quarentena, a
terra de Madian, que está para a parte Oriental de Damasco, Basan, & a terra dos
Amorrheus: grande parte da Arabia deserta, & o Monte Seir, & outras muytos terras, &
lugares, cujos nomes naõ sey. Perguntey eu ao Abbade Caly, aonde estava naquella parte
hua Igreja, que se chamava o santo Moysés, porque tinha ouvido ao nosso Padre Guardião
em Hierusalem estar edificada no lugar aonde se presumia ser sepultado o corpo daquelle
Profeta bendito: disse-nos o Abbade, que logo nos levaria lá: & abayxando do monte,
viemos ter a hum valle causado do mesmo monte, & de outro junto delle, & alli achámos
huma Igreja de antigo edificio, mas muyto inteyra. Entramos dentro, & fizemos oração,
encomendando-nos ao Senhor Deos, & ao seu servo Moysés, tendo-nos por muyto ditosos,
em vermos aquelle lugar. Alli declarey eu ao Abbade Caly o modo da morte do santo
Moysés, & como depois de ter visto a terra de Promissaõ, lhe dissera nosso Senhor: Esta he
297
a terra pela qual eu jurey a Abrahaõ, lsaac, & Jacob, q a daria a seus descendentes: vistea cõ
teus olhos, mas naõ passarás a ella, & diz mais a Escritura: & morreo alli Moysés servo do
Senhor na terra de Moab, mandando-o assim o Senhor, o qual o enterrou em o valle da terra
de Moab contra Phegor, & nenhu homem atè o dia de hoje soube parte da sua sepultura, &
disse eu mais ao Abbade Caly, que os antigos sospeytando ser naquelle lugar, edificarão
nelle aquella Igreja com titulo de Santo Moy/sés
394
, desimaginando-o nisto, q não
cuydasse ser a outra sepultura, q achamos no caminho, quando partimos de Santo Sabbá: o
qual Abbade mostrou folgar muyto em lhe eu declarar aquillo. Vendo o Abbade Caly, que
ainda era muita parte do dia por passar, porque nenhua detença faziamos, mais que ver, &
andar com a brevidade possivel, por ser assim necessario: entendendo que eramos curiosos,
& desejosos de ver cousas novas, disse-nos que se quizessemos tomar mais hum pouco de
trabalho, nos levaria a ver hua cousa, que depois de vista, naõ nos pelaria de a ter visto: a
qual ainda que a Escritura Sagrada não tocava nella, mostrava ser hum espantoso juizo, &
castigo de Deos, que nos edificaria. Demoslhe muytas graças pela võtade, que nos mostrava
em nos fazer merces, & assim nos levou dalli mais de meya legoa para o Oriente, & fomos
ter a hum lugar todo cercado de alto muro, mas por muytas partes derribado, & entrando o
Abbade diante, & nòs apoz elle vimos cõ os nossos olhos muytos nomes, & mulheres,
velhos, moços, & mininos, & outros animaes todos de pedra viva, casas inteyras da mesma,
& nellas figuras de pessoas de toda a sorte: huns sentados, outros em pè, outros deytados, &
alguns, como que com outros estavão fallando, & o mesmo pelas ruas, & praças, & assim
de muytas maneyras, o que muyto nos espantou, & poz em grande admiração. Perguntamos
ao Abbade Caly, o que diziaõ ser aquillo, respondeo nos que não havia quem soubesse a
certeza: salvo terem para si, que N. Senhor, por algus peccados daquella gente, os havia a
elles, & a todas suas cousas em hu instante convertidos em pedra da maneira, q os viamos,
como em outro tempo com pena infame castigára os Sodomitas, & convertéra a mulher de
Loth em estatua de sal. Com / 395 grande temor do Senhor Deos nos partimos daquelle lugar
taõ espantoso, lembrando-nos dos seus justissimos juizos: & nos tornámos ao Jordão
passando-o como da primeyra, & nos metemos nas nossas choupanas, nas quaes
repousamos aquella noyte, dando muytas graças ao Senhor por quantas merces nos fazia.
298
CAPITULO LXVII.
De como partidos do Jordão fomos ter ao Mar Morto e das suas màs propriedades.
AO dia seguinte em amanhecendo, cumprindo primeyro com nossas obrigações do
Officio Divino, nos tornamos a lavar no Jordão, & enchendo as vasilhas de agua, nos
partimos para o Mar Morto, passando por algus lugares roins, & de mao cheiro, em nos
indo a elle chegado, causados das crescentes do mesmo mar, que procede das aguas, que
correm do Monte Nebo, & dos mais, que estaõ daquella parte de Moab: & no verão cresce
com as aguas do Jordão, as quaes com as muytas neves, q se derretem no Monte Libano,
sobre maneyra enchem o rio, & com o tal crescimento tresborda aquelle mar, & ficaõ
depois muytas agoas cheas daquella agua, aonde se cria, & se faz o sal, que se gasta
naquella terra, & se leva para outras partes, o qual salga muyto mais, que o nosso de cá. Da
cappella do glorioso Baptista, que está junto ao Jordão, como fica dito, atè o Mar Morto he
hua grande legoa, a qual caminhamos muyto depressa, porq nos determinámos aquelle dia
tornar a Santo Sabbá, se nos fosse possivel, /
396
por não nos tomar a noyte perto daquelle
maldito mar, do qual como se põem o Sol, sahem hus infernais vapores. Chegamos a elle á
huma depois do meyo dia, & ainda que de tam más, & péssimas propriedades, como direy,
com sua vista nos alegrámos summamente pelos desejos grandes, que tinhamos de o ver,
porque concluyamos a intenção da nossa jornada. Chama-se este Mar Morto, naõ porque
deyxe de se mover, antes se levantaõ nelle grandes tempestades, & no tepo que o vimos
andava em algua maneyra alterado, por que fazia hu vento fresco, & muytas vezes, como
tenho dito, cresce, & se estende hua legoa, e algumas horas muyto mais. Mas chama-se
morto, porque naõ cria em si cousa viva, nem a consente, ne a pòde reter. Bem me lebra
haver lido em Josepho de Bello Judaico, q o Emperador Vespasiano, antes que subisse á
honra do Impèrio, tendo Capitão General do exercito Romano, com o qual andando
conquistando toda a terra de Judea, mandou lançar algus homens naquelle mar carregados
de ferros, por estarem por suas culpas condenados á morte, por fazer experiencia do que
tinha ouvido: mas em nenhuma maneyra se fóraõ ao fundo, nem os consentio em si,
lançando-os logo fóra. Tambem lhe chamaõ Mar de Sodoma, por estar no mesmo lugar
299
aonde antigamente estava aquella Cidade, assim chamada, a qual o Senhor Deos destruhio,
e soverteo com outras Cidades suas visinhas, a saber, Gomorra, Seboim, Adame, & outra,
chovendo sobre ellas fogo, & enxofre, pelo nefando, & pèssimo peccado, que os moradores
daquella terra hus cõ os outros comettiaõ, como lemos no livro do Genesis, aonde está
escrito, que estando Loth, sobrinho do grande Patriarca Abrahaõ sentado á porta da Cidade
de Sodoma, já sobre a tarde, vieraõ dou /
397
Anjos em figura humana, & forma de
mancebos, os quaes como de Loth foraõ vistos levantou-se e foi-se para elles com todo
acatamento, & cõ muyta humildade lhes rogou, que quizessem ser seus hospedes, virtude
por certo grande, & obra de misericordia muy piedosa, do Senhor Deos tão encomendada
por S. Mattheus; a qual Loth tinha aprendido, & tomado de seu bõ tio Abrahaõ, mas o
Anjos resistindo, & naõ aceytando ser seus hospedes, dizendo q na praça da Cidade haviaõ
repousar aquella noyte: mas foraõ de Loth tão rogados, & importunados, q acabou cõ elles
aceytarem sua pousada. E depois de ceare, antes q se fossem recolher, os homes da Cidade,
grandes, & pequenos, porq todos eraõ peccadores publicos, & no peccar muyto soltos, se
foraõ á porta de Loth, & o chamarão cõ brados, perguntando-lhe pelos mancebos seus
hospedes, mandando-lhe, q logo os lançasse fóra, para peccarem com elles, no q nos mostra
a Escritura Divina serem aquelles Sodomitas pèssimos, & publicos, pelo q com justissimo
juizo do Senhor Deos merecerão cõ publico castigo ser punidos, chovedo sobre aquellas
Cidades, & lugares fogo, & enxofre, como tenho dito, & ao presente se vè, tendo antes
aquella terra tão fertil, & excellete, q diz della a Escritura sagrada: Quod irrigabatur, ante
quam subverteret Dominus Sodomã, § Gomorrã sicut paradisus Domini: & sicut Ægyptus
venientibus in Segor, quer dizer, q antes que o Senhor sovertesse a Somoda, & Gomorra,
era aquella terra regada como o paraiso da terra, & como o Egypto caminho de Segor.
Tambe se chama mar salso, por ter a sua agua mais salgada, que toda a dos outros mares.
Chama-se lago de Asphalto, q quer dizer betume, porque cada dous annos lança de si
grande quantidade de betume, a q / 398 chamaõ pez Arabico, o qual sahe de poços, q estavaõ
naquelle valle illustre antes da subversaõ das Cidades. Tem este betume, ou pez hum
cheyro pèssimo, mas muyta virtude para muytas cousas, & vai muyto em todo o Oriente. A
quantidade que lança cada dous annos, he hum pedaço, & alguas vezes dous, da grandura
de hum boy, & outros muytos pedaços do tamanho de porcos, & da mesma cor, & todos
300
andaõ sobre a agua, de maneyra, que que os vir andar, & não souber que cousa he, julgará
serem porcos. Junto a este mar da outra parte Oriental de Moab tem o Grão Turco hum
castello, no qual vivem alguas pessoas por causa daquelle pez, para terem cuydado ao
tempo q começa de sair, de darem recado ao governador de Hierusalem, o qual em lho
dado, acode logo com gente de pè, & de cavallo, & o tirão, & trazem á Cidade, & delle se
satisfaz o governador do ordenado, q tem do Grão Turco, & tem pena de morte, quem o
leva sem licença, mas os Arabes não deyxaõ de furtar todo o que podem, & o vendem aos
Christãos da terra, que trataõ no Egypto, & Siria.
A agua deste mar, ou lago he taõ clarissima, q parece cristal, & muito fria mas sua
natureza he de fogo. Rogámos ao Arabe, q se quizesse meter dentro, & nos tirasse alguas
pedras, mas em nenhua maneyra quiz, o que vendo nosso cõpanheyro o Padre Fr.
Benedicto, determinou fazer experiencia, & saber se era como diziaõ, & virado-se para
mim disse: Padre Pantaleone, adespecto mio, voglio satisfare il mio desiderio, como se
dissesse, contra mim mesmo quero fazer experiencia, para ficar satisfeyto, & tomando hua
mão chea de agua, a levou á bocca: & no mesmo instante lha abrazou toda, como se fora
fogo: & ao tempo q elle isto fez / 399 eu tomey cõ a mão outra pouca, para sómete provar se
era salgada, como diziaõ, & supitamente me fez os beyços em empolas: & dous dias andey
sem poder tirar da mão o máo cheyro, o qual era como se a metera em algumas borras de
azeyte roim, ainda que as esfregava com hervas, & cõ area.
E porq nos diziaõ em Hierusalem, que as pedras daquelle pestifero mar ardião como
lenha posta no fogo determinamos não nos ir sem levar alguas para fazer experiencia, &
assim com os bordões tiramos algus seyxos, q trouxemos comnosco, nos quaes vimos ser
verdade, o que nos haviaõ dito. O fundo deste mar he todo de hua area grossa, de seyxos
brancos, & pretos & tem humas coroasinhas quasi como as castanhas, & huns, & outros
lançaõ de si fogo, a sua agua he taõ clara, q por grande espaço vedes no fundo atè a minima
pedrinha; passados dous dias, que metemos as mãos na agua, o Padre Benedicto, & eu,
começárão de dar a pelle, & se fora mais adiante passara de outra maneyra, porq alli aonde
fomos ter, não he a agua tão pestifera, por causa, q o Rio Jordão entra nelle naquella parte,
& cõ sua doçura, & virtude, tepera sua maldade: & me affirmaraõ cõ verdade, & te tem por
cousa muy certa q mais adiante pouco mais de legoa, se metem hum leytão, deyxa logo
301
couro, & cabello, & isto como tenho dito, sendo agua muy clara, & fria. No lugar aonde
estivemos, vimos defronte de nòs, dentro naquelle mar espaço de meya legoa, hũ grande
pedaço de muralha como de castello, ou torre de algua daquellas Cidades. Quanto a entrar o
Rio Jordão dentro neste mar, não ha ter duvida algua, porq com meus olhos vi juntarse hua
agua com a outra: & como o rio de continuo corre, & o mar nunca por isso cresce mais hua
/
400
hora, que outra, salvo nos tepos que tenho dito: muytos iaõ de opinião contraria:
dizendo, q o rio, tanto que toca no mar se mete debayxo da terra, sem hua agua se misturar
com a outra, o que não hè tal. Outros querem dizer, q o Mar Morto se vay meter no Mar
Roxo, allegando, q as aguas de Marat saõ delle mesmo. Mas huns, & outros fallaõ sem
experiencia, sómente de ouvida: ou enganados da propria imaginação: por naõ haverem
visto a cousa com seus olhos, nem tratado com quem a visse: como tambem muytos antigos
hão querido affirmar com rasoes mathematicas, ser impossvel poderse habitar debayxo das
duas Zonas frias, que estaõ junto aos dous polos arctico, & antarctico, nem menos debayxo
da Torrida, por sua demasiada quetura, aonde Ovidio tratando no primeyro das suas
Metamorphosis destas Zonas frias, & da Torrida diz estes versos:
Totidemque plagæ tellure premuntur,
Quarumque media est non est habitabilis æstu
Nix tetigit alta duas, totidem inter utraque locavit,
Temperemque dedit, mixta cum frigore flamma.
Quer dizer: outras tantas Zonas ha na terra, das quaes a do meyo naõ se pòde habitar
por causa de muita quentura. As outras duas saõ muyto frias, poz outras duas entre estas
frias, & a muyto quente, as quaes fez teperadas, misturada a quentura com o frio. O mesmo
tiveraõ muytos, mas como tenho dito, tem experiencia. E o glorioso Doutor, & lume da
Igreja Catholica, S. Augustinho no livro 16. de Civitate Dei, mostra ter para si naõ haver
Antipodas, como agora o tem os nossos modernos, os quaes cõ sua curiosidade, & cobiça
dos bes teporaes, te descuberto infinitas terras, como se vè /
401
nas Provincias de Dacia,
Gocia, Suecia, & por toda a Noroega, a qual ainda que he terra frigidissima, ha nella
Cidades grandissimas, & he terra muyto fertil de muyto paõ, muytas carnes, & pescados, &
a gente valente, & fermosa. Verdade he, q saõ estas terras no Inverno frigidissimas, & de
302
habitar muy asperas, cõ os dias que não chegaõ a cinco horas, pore habitadas de grades
povos, porq ha nellas gradissimos bosques, de cuja lenha gastaõ á vontade, & polas
estradas, & caminhos publicos madaõ de noyte fazer grandes fogos por causa dos
caminhantes: & no verão de tal maneira aqueta o Sol aquellas terras, q produze muito
genero de frutas: & novidades, tirando azeite, & vinho, & arvores de espinho. Pois da Zona
Torrida pergute aos nossos Portuguezes, se he habitada, ou não: pois tem descuberto tantas
Provincias, & Reynos de gente preta, & baça, andando em busca do timido ouro, as quaes
terras, ainda que saõ calidissimas, por estarem debayxo daquella ardente Zona, como he o
nosso S. Thómè, & outras terras, & Ilhas : sendo porèm regadas de muytos, & grandes rios,
de tal maneira as refrescaõ, que as fazem habitaveis. Digo tudo isto, por causa daquelles
que querem escrever, & porfiar cousas, que nunca virão, nem ouvirão, como quem de
proposito as tenha visto. Sahe de continuo deste Mar Morto hum vapor grosso, & de máo
cheyro, que de verdade quer parecer sair da boca do Inferno. He em tanta maneyra pèssima
aquella agua, q de redor de todo aquelle mar, quasi espaço de duas legoas, em algus lugares
mais propinquos, não ha arvore, ou erva verde, que aproveyte, salvo em alguas partes huas
arvores agrestes, & asquerosas á vista, como as que vimos abayxo de Hiericò, as quaes dão
hum fruto a modo de marmellos grandes, /
402
& fermosos, que tomamos na mão se
desfazem em cinza, o que tambem com os nossos olhos vimos, & quem disto duvidar lea o
glorioso Doutor S. Augustinho no livro vigesimo primo de Civitate Dei, o qual diz estas
palavras: Hæc postea quam tacta da cælo est, sicut illoru : quoque attestatur historia, &
nunc ab eis, qui veniunt ad loca illa, conspicitur prodigiosa fuligine: horrori est, & poma
ejus, interiorem favillam mendaci superficie maturitatis includunt, quer dizer: A terra dos
Sodomitas, depois que foy tocada do Ceo he espantosa, & o fruto que dá, tendo por fóra
cor, & apparencia de ser maduro, aberto tem por dentro cinza. A peste que ha muytas vezes
em Hierusalem,& nas mais terras suas propinquas, procede do Levante, que quando venta,
passa por este mar de Sodoma, & corrupto do seu máo cheyro, corrompe toda a terra por
onde passa: muytas cousas pudera escrever deste pestifero mar, as quaes deyxo por se me
estomagar a vontade com a memoria de taõ horrendo lugar, no qual atè o dia de hoje o
Senhor Deos mostra sua justiça, & com seus justissimos juizos nos declara quam
abominavel peccado seja o nefando, que em outra parte lhe chama a Escritura peccado
303
pessimo, no que os Prelados, & Senhores temporaes deviaõ tomar exemplo, & castigar
asperrimamente aos que em tal maldade achassem comprehendidos, não tendo com elles
algua misericordia, porque sua nefanda culpa os faz indignos della.
304
CAPITULO LXVIII.
Da mulher de Loth, que foy convertida em estatua de sal.
Tendo tratado no que toca ás péssimas propriedades do Mar Morto, pareceme bem,
para satistazer a alguns curiosos, tocar neste lugar, & tratar da mulher de Loth, sobrinho do
Patriarca Abrahan, na sagrada Escritura, que indo fugindo com suas filhas, & marido do
incendio, & destruiçaõ de Sodoma, por mandamento dos Anjos, & caminhando para Segor,
que estava defronte em hum monte alto guardando mal a vista com o desejo natural, que
muytas mulheres tem de saber, o q lhe não releva, nem convem, foy convertida em estatua
de sal, a qual cousa he tão notoria, q em toda a parte se sabe, & tras em pratica. Estando eu
na Terra Santa, desejando muyto de ver com meus olhos a tal estatua, muy particularmente
inquiri, se havia algua memoria della: & fallando com Jacob Christão Maronita, Torcimão
do nosso Convento de Hierusalem, homem antigo, pratico, & de muyta experiencia de
muytos annos nos lugares da Terra Santa, por servir de Torcimão, & guia aos peregrinos,
que de Franquia vão em Romaria áquellas partes de Palestina, lhe perguntey alguas vezes,
& importuney, que me dissesse a verdade do que sabia acerca daquella estatua, affirmoume com juramento havella com seus olhos visto, & que os Arabes tinhaõ por costume
tirarem della sal, ficando sempre inteyra. Tambem me affirmáraõ mesmo alguns Christãos
de Belem nossos familiares, offerecendo-se a me levarem aonde /
404
estava, se os
satisfizesse: pedi licença ao Padre Bonifacio, mas em nenhuma maneyra ma quiz conceder,
dizendo, que me queria pór a muytos perigos sem algum proveyto: porque tinha por
mentira quanto me diziaõ. O Veneravel Padre Brocardo, Mestre na Sagrada Theologia da
Ordem do bemaventurado S. Domingos, investigador devotissimo de todos os lugares da
Terra Santa, em hua descripçaõ, que della fez, na qual trata muy meudamente suas
particularidades, diz estar a tal estatua entre o Monte Engaddi, & o Mar Morto, & que fez o
poissvel pela ver, mas que nunca pode effeytuar, seus desejos, por lhe affirmarem os da
terra, ser aquelle lugar cheyo de animaes feros, & de serpentes: & o mesmo affirma outro
Padre Theologo Minorita, por nome Frey Luis Vulcano em hum seu Itinerario: mas como
ambos confessaõ naõ haver visto com seus olhos a tal estatua, por causa de inconvenientes,
305
não tenho que allegar com elles. A verdade he, que o Monte Engaddi, & todo seu circuito
ao presente se lavra, & semea, sem haver nelle animal algum venenoso, nem outro algum
perigo, salvo o dos Arabes, a quem os ditos dous Padres chamaõ Biduinos, que já que lhe
não acertavaõ com o nome, melhor lhe chamárão Madianitas, pois todos vivem pelos
campos em tendas. E ainda estes Arabes naquella parte saõ mais domesticos com os
Christaõs moradores da terra, pela continua communicaçaõ com elles, sendo a lingoagem
toda hua.
Tratando eu com o Abbade Caly sobre a dita estatua, estando nòs juntos no Mar
Morto, & em lugar que se podia ter noticia della: lhe roguey com muyta efficacia, se era
possivel nos levasse a vella, porque nòs satisfariamos todo trabalho. Respondeo-me, que
muytas vezes /
405
fora solicito em procurar saber aonde estava & que havia rogado a
Arabes seus amigos, que lha descobrissem, sem nunca tal estatua se achar, nem se poder
descobrir, affirmando, que havia muytos Arabes, que o tinhaõ como pay, por haver trinta &
tantos annos, que os tratava familiarmente, os quaes não havia em todo circuito do Mar
Morto, palmo de terra, que não tivessem andado, & muitas vezes corrido sem da tal estatua
acharem algum sinal: ouvindo eu isto, não curey de andar mais inquirindo, crendo que o
tempo a gastaria como gastou em Palestina, & terra de Promissaõ trezentas & oitenta
Cidades do tempo de Josué a esta parte das quaes não ha dez inteyras, & como gasta todas
as cousas.
306
CAPITULO LXIX.
De como nos partimos do Mar Morto, & de hua novidade, que vimos naquelle caminho.
DEpois de estarmos quasi tres horas na praya do Mar Morto, tratando das suas
péssimas propriedades, & do justo castigo com que o Senhor Deos castigou aquellas
Cidades, & seus moradores, a qual detença nos causou não podermos aquelle dia fazer
jornada, como tinhamos determinado nos partimos para Santo Sabbá, caminhando por huas
montanhas muy asperas de subir, muy diferente caminho do outro, que tinhamos andado, &
hiamos padecendo intoleravel sede, porque ainda que á partida do Jordão haviamos enchido
de agoa todas as vasilhas, estando vendo o mar toda se nos acabou, & muyta beberamos, se
mais tiveramos, por causa, q o ar / 406 daquelle pestifero mar, tem o sentirmos nos abrazava
as entranhas, & quanta mais bebiamos, mais sede padeciamos como se a agua fora azeyte
lançado no fogo. Caminhando desta maneira, já depois de Sol posto fomos ter cõ hua fonte
de tanta agua, que por tres, ou quatro partes, a modo de ribeyro corria, com a vista da qual
nos alegrámos muyto, mas converteosenos a alegria em tristeta, como são todos os gostos
da vida, porq a agua ainda q clara, & fermosa, era fedorenta, & amargosa. Partimos dalli
descontentes, caminhámos por aquelle caminho atè depois da meya noyte, sahi-mos fóra
das montanhas, & vendo-nos cansados, & mortos de fome, & sede, determinámos
descantar, atè que amanhecesse: o que fizemos na terra dura, em hu deshumano pedregal,
sem haver arvore, ou mouta, a que nos arrimassemos: & como vinhamos muyto casados, &
suados; de tal maneyra nos traspassou o ar, q depois, todos estivemos à morte, ainda que os
medicos nos disseraõ, q todo nosso mal fora do ar do pèssimo mar, por irmos a elle em
tempo da outonada, quando he mais perigoso. Em amanhecendo tornamos a seguir nosso
caminho, & entre as sete, & oito horas do dia chegamos a hu capo grande, & raso, hua
legoa dos aduares do nosso Arabe: & vimos estar nelle como cincoenta Arabes postos em
dous ajuntamentos, com seus arcos a modo de quererem peleijar, fazendo entresi huma
grande gralhada, & palratorio. No meyo estava huma mulher de atè vinte & cinco annos,
sentada sobre hum camello, muyto bem ataviada, & galante a seu modo, tanto que fomos
bem á vista delles, o nosso Arabe nos disse, que não temessemos, porq aquillo era negocio
307
de casamento, & perguntou ao Abbade Caly, se nos queria dar hua pequena de recreação
com a /
407
vista daquelle acto. O Abbade lhe respondeo, que era cõtente, senaõ havia
perigo. Pois vamos todos juntos, disse o Árabe, & toquemos a maõ da noyva,
encomendandonos em sua graça, & assim estaremos seguros sem temer cousa algua : o que
logo fizemos, indo o Árabe diante, o qual lhe disse, que eramos Caloiros de Santo Sabbá: &
que vínhamos do Jordaõ, & q pois fomos ditosos de chegar áquelle tempo, tivesse por bem
darnos seguro, & licença para vermos em que parava aquella contenda, o que ella nos
concedeo com a bocca chea de riso, & assim lhe fomos tocar na mão & a todos nos mostrou
muyto gasalhado, & nos pusemos junto della. Os Árabes acabada sua contenda, apartados
huns dos outros, começáraõ de atirar atè certo numero de settas: & os dous que pertendiaõ a
noyva andavaõ mais assinalados com huns camisoes compridos atè o chão de hum
grosseyro pãno de algodão, & as mangas muyto compridas, & largas, & muy
grosseiramente lavradas nos bocaes, & o camisaõ tambem tinha lavrado o cabeçaõ. Depois
de haverem combatido a seu modo, aquelle que levou a peyor, & na maneira do atirar naõ
foy tam aceyto á noyva, além de a perder deulhe dous couros grades de camello, hum para
nelle comerem os noyvos, & o outro para dormirem, & ao noyvo deu hum arco muyto
fermoso, & hua dúzia de settas, & todos se abraçarão com muyta paz, & se apartáraõ huma
quadrilha da outra, sem mais contenda. Perguntamos ao nosso Árabe, se todos se casavaõ
daquella maneira, disse-nos, que somente aquelles que eraõ cabeças dos aduares. Tornamos
a tocar a mão á noyva, & nos partimos, perguntando-nos o noyvo se queriamos guarda, o
que lhe agradecemos, dizendo, que perto tinhamos a pousada. Já neste tempo o Christaõ de
Be/lem
408
nos tinha feyto trayçaõ, & vendido ao Arabe com partido, que lhe havia de dar
alguma cousa, dizendo-lhe que não eramos Caloiros, como o Abbade Caly lhe tinha dito,
mas que eramos Francos, & meu companheyro Guardião de Belem. O Arabe depois que
nos apartamos dos outros, todo o mais do caminho foy cantando porque se via perto de
casa, & com esperança de ficar rico daquella jornada, sem nòs sabermos o trabalho que nos
estava guardado, & assim chegámos ao seu aduar, dando muytas graças a nosso Senhor, &
parecendo nos, que já estavamos em porto seguro.
308
CAPITULO LXX.
Do como se descobrio a trayçaõ do Christaõ de Belem, & de como foy preso meu
companheiro.
CHegados ao aduar dos Arabes fomos delles recebidos com muyto gasalhado, & a
mulher do nosso Arabe nos acodio logo com agua muyto fria, que era a melhor iguaria, que
naquelle tempo nos pudera dar, posto que no la deu em hum vaso de pao em que ordenhava
as camellas, com o sarro de leyte de redor: mas a sede ficou satisfeyta. Depois de
repousarmos hum pouco, o nosso Arabe tomou ao Abbade Caly pela maõ, & o levou a
outra estancia apartada da sua hum tiro de pedra, aonde já tinha junto alguns Arabes dos
mais velhos do aduar: & alli diante delles lhe fez hua pratica desta maneyra. Abbade Caly,
muytos annos ha que tu conheces os Arabes, & os tratas; & elles a ti, sem nunca entre nòs
se achar falsidade, nem engano, nem se achará, pois os Arabes temos /
409
opinião, &
trazemos por pratica sermos leaes nas amisades, & guardarmos com verdade a fé a quem no
la guarda. Tu naõ sey com que animo me quizestes enganar, sem to eu merecer, querendo á
minha conta de todos os Arabes zombar, & escarnecer, tẽdo para ti, que assim como somos
grosseiros no modo da vida, assim tambem o somos no entendimento. Mandastesme
chamar com grande pressa, dizedo, que eraõ vindos huns Caloiros de Candia grandes teus
amigos, & devotos, & q os querias levar ao Jordaõ, & a outros lugares, aonde os Christãos
costumais ir a vossas romarias, para que eu vos acõpanhasse, & por amor delles, & teu, a
todo perigo me puzesse: como te tinha por amigo, & sempre te fuy affeyçoado, naõ fuy em
acodir a teu chamado preguiçoso, & tu em pago desta vontade, & em satisfaçaõ destes
desejos, em lugar de Caloiros, levasteme por guarda de Christãos Frãcos, os quaes pelo
engano q me foy feyto, ficaõ todos tres meus cativos : mas eu naõ quero usar do meu
direyto, nem seguir o estilo, que se tem em semelhantes negócios : pelo que faço livres a
dous delles, & a outro, que sey muy bem ser o Guardiaõ de Belem, ou ha de ficar meu
escravo, ou se ha de resgatar por muyto bom dinheyro : & ainda por amor de ti serey no
preço moderado.
Ficou fóra de si o Abbade Caly com as palavras do Arabe e tomando animo lhe
disse afoutamente ser grande falsidade quanto de nòs tinha dito : queyxando-se com brados,
309
que já nos Arabes naõ havia lealdade, & lhe faltava verdade, pois elle commettia huma
trayçaõ taõ grande contra quem estava innocente. O Arabe, como estava muy bem
informano do Christaõ traydor, q nos tinha vendido, naõ se curou dos brados, & clamores
do Abbade, mas saindo da estançia, se foy com muyta / 410 pressa aonde nòs estavamos, &
tomando pela maõ a meu companheyro, o levou diante do Abbade, & os Arabes que junto
tinha, & com mostra de muyta ira disse desta maneyra : Caly este q aqui vez, naõ he
Caloiro, por mais que tu aporfies, porque eu o vi muytas vezes na casa dos Francos, & em
outros lugares com differentes vestidos, & trages: & para que eu fique com a verdade, & tu
com a mentira, dispete tu, & elle. O Abbade, ouvindo isto ficou muy alegre, porque sabia
que atè a tunica, que meu companheyro levava vestida era dos Caloiros; & despidos ambos
mostráraõ andarem de hua mesma maneira vestidos. Ficou o Arabe envergonhado: mas
tanto q se tornáraõ a vestir disse ao Abbade: olha cá Caly, muy facilmente pòde hum
homem mudar os vestidos, vestindo, outros, mas de que vem este, & seus companheyros
trazerem coroa na cabeça, como trazem os Francos, & naõ o cabello comprido como trazem
os Caloiros? Respondeo-lhe o Abbade, que elle, & os outros Caloiros de Santo Sabbá
andavaõ com os cabellos longos, como gente simples, & idiota, & como taes viviaõ
naquelle deserto, mas nòs eramos letrados, & pessaos de muyto respeyto, andavamos em
toda Grecia daquella maneyra com coroas, a conclusaõ de todo este negocio, disse o Arabe,
seja, que tu Abbade Caly com os mais vos vades embora, ficando este meu cativo, porque
por mais rasoẽs que me des, o que he meu naõ mo has de tirar, porque disso sey eu muyto
bem a verdade. Este só quero que fique, atè que os seus Francos dem por elle muy bom
resgate, & mais te juro Abbade Caly, que o naõ haõ de levar da minha maõ, sem primeyro
me meterem nella duzentos saquins de ouro. Quaes nòs todos estavamos, Jesu Christo
nosso Senhor o sabe, pore para dissimulaçaõ, naõ mostrava/mos
411
tristesa, nem turbaçaõ.
O Arabe se veyo a nòs & nos disse, q nos fossemos embora, mas eu comecey de o abraçar,
dizedo-lhe palavras amigas, dessas poucas q sabia, porèm elle fazẽdo orelhas de mercador,
como diz o adagio, porfiava, que nos fossemos. Vendo sua determinaçaõ encommendandonos a nosso Senhor muy de coraçaõ, pedindo-lhe, que daquelle perigo por sua misericordia
nos livrasse: determinando-nos, de ou ficarmos por escravos, ou levarmos nosso
companheyro livre. Estando assim nesta affliçaõ, começáraõ os outros Arabes a tratar
310
concerto, & paz, em diminuir do preço dos duzentos saquins, vindo a cem, & depois a
cincoenta, & sempre diminuindo: mas o Abbade Caly determinou-se a lhe naõ dar mais que
o que com elle tinha concertado, quando de casa sahimos. Em quãto elles nisto estavaõ, por
me mostrar mais domestico ao Arabe, mettime na sua estancia, a qual era feyta como hũa
tenda de campo, cuberta por cima, & pelas ilhargas, de cubertas cilicinas, & comecey a
brincar cõ dous mininos seus, do que a mãy mostrava muyto folgar: & chamou-me frangi,
frangi, tres, ou quatro vezes : ao que lhe respondi, que os franges eraõ mãos Caloiros, & os
Arabes todos bons, o que ella festejou com huma grande risada: & nisto entrou o Arabe na
tenda em busca de hua corda, & tomando-a na maõ, me disse, que a levava para atar meu
companheyro: levantey-me logo, & o fuy abraçar com muyta alegria fingida, pegando
nelle, & na corda, sem lha poder tirar das mãos. Neste tempo, já todos os Arabes do aduar
estavaõ juntos, & os mais delles se punhaõ a defender nossa causa. O Abbade Caly, quando
vio a cousa mal parada, começou a dar grandes brados, dizendo, que já os Arabes haviaõ
perdido a fé, & leal/dade
412
, já nelles naõ havia verdade, nem amisade; & que daqui por
diãte os Caloiros os haviaõ de ter por contrarios, & mortaes inimigos, do que se dava muy
pouco ao Arabe, antes começou de atar meu companheyro com a corda, que de sua casa
levára: & tendo-lhe atados os pés veyo alli ter hu Arabe de outro aduar, o qual segudo
entẽdi, era como sogeito a algu Arabe entre elles principal, conhecido entre os Arabes de
todas aquellas partes, & muyto amigo dos Caloiros, os quaes elles trabalhão ter sempre por
amigos, & conhecidos. Era este homem grande, & temeroso, o qual tanto que vio meu
companheyro com os pès atados, & que lhe começavaõ de atar as mãos, indignando-se
muyto, remeteo ao Arabe, dando-lhe quatro, ou cinco punhadas, & lhe tomou a corda, &
desatou meu companheyro, dizendo muy agastado contra quantos alli estavaõ. Bem, esta he
a verdade dos Arabes, esta he a fé que guardaõ a quem se fia delles? isto permittis vòs que
se faça diante vossos olhos a hu Caloiro de Santo Sabbá? & dizendo muytas cousas destas,
os metteo a todos em confusaõ, & vergonha. O Abbade Caly vendo isto tornou ás boas, &
deu ao Arabe cinco, ou seis madins mais do que lhe promettera, & feytos todos amigos, nos
pedio perdaõ, dizendo, que outrem tinha a culpa daquella desgraça, & naõ elle, o que dizia
pelo Christaõ de Belem, que nos fora traydor, & vendo-nos livres daquelle enfadamento
demos muytas graças a nosso Senhor. /
311
416
CAPITULO LXXI
De como nos partimos dos Arabes, & chegàmos á Abbadia, & de como fomos recebidos
nella.
FEyta a paz como já fica dito, sendo já sobre a tarde nos partimos do aduar dos
Arabes, nosso caminho direito a Santo Sabbá, & seguiraõ-nos alguns delles, & cinco, ou
seis Arabescas com esperanças, que por causa da paz novamente reformada lhe fariaõ algua
caridade dessa pobreza que tinhaõ, & em especial de agua das suas cisternas, que he muyto
excellente, & os Arabes naquelles desertos tem muyta falta della; o Arabe, que foy causa de
nos livrarmos da tormenta passada com outros dous, sempre foy juntamente comnosco ; os
outros com as mulheres hiaõ de traz afastados mais de num tiro de pedra, & caminhando
desta maneyra, chegamos ao Mosteyro. Os Caloiros já estavaõ avisados do trabalho, &
perigo em que o máo Christaõ nos tinha posto, porque o Abbade Caly, tanto q entendeo,
que haviamos de ter enfadamento, mandou logo a casa hũ Caloiro dos dous q nos haviaõ
acompanhado, pelo que já estavaõ prestes esperando por nòs em hua torre muy alta: &
vendo-nos ir chegando a casa fizeraõ-nos sinal, q fossemos ter ao pè della: & para que os
Arabes se afastassem, & nos deixasse o caminho livre, começáraõ da torre atirar ás
pedradas, para q nenhũ chegasse. Os tres, q vinhaõ comnosco, levou o Abbade Caly
cõmsigo ao longo da parede do Mosteyro, porq os da torre cõ fundas defendiaõ muito be o
passo. Tanto q chegamos ao pè da torre, lançáraõ de cima hua escada de corda, / 414 & hum
apoz outro nos aláraõ todos tres, & toda a comunidade nos veyo cõ muyta alegria receber,
lançando-se a nossos pès pedindonos a bençaõ por ser assim seu costume, & nòs
lançandonos aos seus pedindo-lhe a sua: & assim abraçãdonos hus aos outros, nos
levantamos. O Abbade, q havia entrado pela porta, já estava cõnosco, o qual mãdou levãtar
a Cruz, & cãtando louvores ao Senhor nos leváraõ á Igreja, aonde todos juntos demos
graças á divina Magestade, por nos ter livrado, & trazido a porto seguro. Depois disto,
lavados primeyro os pès, nos leváraõ a tomar refeyçaõ á comunidade, & nos deraõ de sua
pobreza muy bem de cear: & todos nos festejáraõ, & o Abbade nos rogou, que quizessemos
estar alli com elles algũs dias.
312
Maravilhavaõ-se muyto, sabendo, q todos tres éramos Sacerdotes, &, meus dous
companheyros Theologos Prègadores: porque a dignidade Sacerdotal he entre elles muy
estimada, & reverenciada, como devia ser de todo mundo, & assim tem em veneraçaõ a
hum Sacerdote, como se fosse hum Anjo do Ceo: nem permittem ordenarse algu, salvo
vendo nelle muytas virtudes, & mostras de grande santidade, & perfeyçaõ, & ainda cõ isto
por outre ha de vir o chegar áquelle estado, tendo-o por indigno delle, se elle mesmo o
procura, & entre ce Caloiros naõ achareis mais q hu Sacerdote: he verdade que elles naõ
frequentaõ o celebrar como nòs, ainda que tivessem muytos Sacerdotes, nem tem por
costume ter mais que hua Missa Domingos, & festas: & em alguas grandes vigilias, o que
se guarda naõ sómente na Igreja Grega, mas em todas as mais Igrejas Orientaes, que saõ
muytas: sendo artigo de Fé, naõ haver mais que hua, que he a nossa Romana Catholica, &
Apostólica: fóra da qual não ha salvaçaõ. Mal se acordão os / 415 Gregos, & as mais nações
de Christãos Orientaes, do que escreveo o Evangelista S. Lucas na sua sagrada historia, dos
feytos Apostólicos q naquelle tempo: Erant omnes perseverantes in doctrina Apostolorum,
& communicatione & fractione panis, quer dizer : perseveravaõ todos na doutrina dos
Apostolos, & na communicaçaõ, & no partir do paõ. E o Senhor Jesu na sua ultima cea, não
limitou tempo algum, mas encomendou, que todas as vezes que celebrassemos, &
recebessemos o seu Santissimo Corpo, fosse em sua memoria, & de sua sagrada Paixaõ,
convidando-nos, a que de continuo nos lembrassemos de taõ grande beneficio : & por
experiencia cada dia vemos as mercès, & graças espirituaes que muitas pessoas devotas
recebem com o frequentarem. Estivemos todos atè alta noyte em boa conversaçaõ, & sẽdo
horas de dar repouso ao corpo, nos fomos recolher, despindo os habitos dos Caloiros, &
vestindo os nossos.
313
CAPITULO LXXII
De como nos partimos de Santo Sabbà, & nos tornamos a Belém.
NAõ teriamos repousado bem tres horas, quando foy ter comnosco o Abbade, &
despertandonos disse, que hum Caloiro muy pratico naquella terra se partia para Belem,
que se quiséssemos ir com elle, nos levantássemos, o que logo fizemos agradecendo-lho
muito. Tomada a bençaõ ao Abbade Caly, & abraçados os Caloiros, que presentes se
acháraõ : nos partimos, & encommendando-nos muyto a nosso Se/nhor.
416
O Caloiro que
levamos por guia naõ lhe entediamos palavra, & elle muyto menos a nòs, & levounos pelo
mais pèssimo, & aspero caminho, que em minha vida, vi, tudo mattos, & pedregulho, sem
estrada, nem atalho, & sobre tudo caminhava taõ depressa, que o naõ podiamos aturar.
Sahionos o Sol muy perto de Belem, já fóra de todo o perigo, & em hum lugar aonde vimos
tantas raposas juntas, que nos puseraõ espanto, & lembráraõ-me as trezentas de Sansaõ com
as quaes poz o fogo ás seáras, & fazendas dos Philisteus : & chegámos ao nosso Convento
de Belem, aonde fomos recebidos dos Frades com muyta alegria, & juntamente nos leváraõ
ao Santo Presepio, no qual todos juntamente louvamos ao Senhor.
314
CAPITULO LXXIII
Do lugar chamado Silo na Sagrada Escritura, aonde muytos annos esteve a Arca do Velho
Testamento.
COmo estavamos de espaço na Santa Cidade de Hierusalem recebendo continuas
merces do senhor Deos, visitando muytas vezes os lugares de sua sagrada Payxaõ, alegre
Resurreyçaõ, & gloriosa Ascensaõ: com todas minhas forças buscava modos para ver os
mais lugares santos de redor, de que a Sagrada Escritura faz memoria, & em particular
desejava ver Silo, aonde tantos annos esteve a Arca do Testamento Velho; do tempo de
Josuè atè q em tempo de Heli Sacerdote foy cativa dos Filisteus & posta na Cidade do
Azoto no templo de Dagon seu idolo: & / desejava tambem ver a Ramathain, pátria do
Profeta Samuel: quiz nosso Senhor comprir meus desejos, sendo o menor dos seus servos,
& foy desta maneyra.
Estando o governador de Hierusalem, & toda sua comarca, junto a Gabaon, Cidade,
que foy Real, & muy principal, & que na repartição que Josuè fez aos filhos de Israel,
dividindo-lhe por sortes a Terra de Promissaõ, coube ao Tribu de Benjamin, fugido de
peste, que naquelle tempo havia na santa Cidade, da qual nos livrou nosso Senhor por sua
misericordia: mandáraõ-lhe os Cacizes, & Santões de Hierusalem, que serviaõ no Templo
de Salamaõ hua embayxada, queyxando-se de nòs, & dizendo, que em menospreso do santo
Templo haviamos levantado o muro, & cerca da nossa casa, de tal maneyra, que parecia ser
tão sumptuoso edificio, feyto em favor dos Christãos, & afronta dos Mouros, & sua ley, o
que não era verdade, porq sómente com licença do mesmo governador levantámos hum
pedaço da parede sobre o terrado da nossa Igreja, para que os Frades sem serem vistos da
Cidade, pudessem por cima andar. Tanto que o governador recebeo a Embayxada, retendo
consigo aos que lha haviaõ levado, mandou logo dous Genizaros a cavallo, que lhe fossem
chamar ao Padre Guardião, o qual sendo dos mesmos avisado do que passava, tambem com
bom gasalhado, & dadivas os reteve comsigo atè o dia seguinte;, mostrando elles que
levavaõ nisso gosto.
Aquella noite aviado todo o necestario, em amanhecendo se partio, levado-me por
seu companheyro, indo conosco os dous Genizaros, que o vieraõ chamar, & outro que para
315
nossa guarda tinhamos em casa, dado pelo Graõ Turco, ainda que sustentado á nossa conta
co armas, moço, & cavallo, & levando tambem o nosso /
418
Torcimaõ Jacob, & outros
quatro homens de pè, caminhamos atè Gabaon duas legoas de Hierusalem, a qual ao
presente he de nenhuma memoria, como fosse Cidade principal, & Real, como já tenho
dito, no tempo que os filhos de Israel entrarão na Terra de Promissaõ. Os moradores
daquella Cidade, os quaes na Sagrada Escritura se chamaõ Gabaonitas, como lemos em
Josuè, ouvindo contar as grandezas, & maravilhas, que o Senhor Deos havia feyto, & de
continuo fazia pelos Hebreos, & como a pè enxuto haviaõ passado o Jordão, & o modo
como tomarão a Jericò, & outras Cidades, cheyos de temor tomando entre si conselho de
quanto proveyto seu seria, liarem-se com elles em amisade, & fazerem-se com paz seus
tributarios, antes q cõ guerras serem de todo destruidos, como já viaõ em alguns seus
visinhos, vestiraõ-se de roupas velhas, & da mesma maneyra se calçarão, & pondo sobre
seus animaes odres velhos com agua, & saccos velhos com paõ duro, & feyto pedaços, se
partirão de Gabaon caminho de Galgala aonde estavaõ os Israelitas: & appresentando-se
diante do grão Capitão Josuè, lhe disseraõ: Nòs senhor, seus servos somos estrangeyros, &
muy apartados desta terra, mas de outra muy apartada, & remota, ouvindo a fama do poder
do Senhor, & das cousas, q fez no Egypto quando vos tirou de cativeyro, & de como
destruhio diante de vós aos dous Reys dos Amorrheus, Sconrey de Esebron, & Ogrey de
Basan, q reynavaõ da outra parte do Jordão: todos os do nosso povo, & os mayores, & mais
velhos da nossa Republica tratando entre si a cousa, nos aconselháraõ, & mandarão, que
viessemos a ti, & contigo, & com o seu povo paz fizessemos, seus servos fomos, & a fazer
paz contigo vimos.
Fizeraõ os Gabaonitas este engano aos Hebreos com /
419
o temor q tinhaõ, vendo
aos Amorrheus destruhidos, & affirmáraõ virem de terras remotas, não sendo de Gabaon a
Galgala mais q atè doze legoas, ou pouco menos, & aceytada com elles a paz, ainda que
pedida com engano, foy necessário dalli a poucos dias acudir josuè a os livrar das mãos de
cinco Reys dos Amorrheus, a saber, o Rey de Hierusalem, & o Rey de Hebron,& e o Rey
de Hieremoth, & o de Lachis, & o Rey de Eglon, os quais indignados dos Gabaonitas, por
se haverem consederado com os Israelitas determináraõ destruhillos, com os quaes cinco
Reys teve Josuè batalha, & os venceo, prendeo, & enforcou: sendo turbados e confusos
316
pelo Senhor Deos, chovendo dos Ceos grandes pedras, q lhe matáraõ a mayor parte do seu
exercito, quado Josuè co a grande fé, q tinha no Senhor, mãdou ao Sol, & á Lua, q se não
movessem, atè se vingar de todos seus inimigos: a qual maravilha he hua das mayores, q N.
S. fez em favor dos Israelitas, & tam mal agradecida, como cada huma das outras, com esta
Cidade ser antiguamente das mayores de Palestina, não ha hoje quasi memoria della, mais
que ruinas bem gastadas do tempo. Depois de passarmos por Gabaon, subimos a hum
monte alto por hum caminho macio, & chegando à vista do lugar, aonde estava o
governador, nos apeamos, & pusemos em ordem o presente que se lhe havia de dar, o qual
era cinco cevados de pano roxo fino, huma duzia de pães, & outra de frangos assados, hua
cabaça de vinagre, & hum cesto de sellada, o governador estava em a alpendorada de hua
muy rica tenda, sentado em huma alcatifa de preço, calçadas humas ceroulas de seda,
descalso, & junto de si os çapatos, & os principaes de sua casa com os Cacizes
embayxadores, estavaõ postos /
420
por sua ordem de huma, & outra parte, tambem em
alcatifas. Tanto que fomos sentidos do sanlaco, que assim se chama á dignidade dos
Governadores entre Turcos, & Mouros: mandou logo alguns dos seus, que fossem receber o
Padre Guardião, o que compriraõ cõ muyta alegria, porq de todos elles era querido, &
amado. E começando de caminhar para onde estava o sanlaco, hum dos homens de pè
nossos companheyros levava diante o paõ, & apoz elle outro com os frangos, & logo o
vinagre, & depois a sellada, & no ultimo hia Jacob nosso Torcimaõ com o pãno, &
chegando diante do governador faziaõ sua inclinação, & passavaõ de largo para outra tenda
aonde tinha a sua despensa, & elle lançava sómente com dissimulaçaõ o rabo do olho,
estando com muyta gravidade, quasi mostrando não estimar cousa alguma. Depois
chegámos nòs, & elle se soergueo, & tocou na mão ao Padre Guardião em sinal de paz, &
amor, & na verdade lho tinha muyto, & nos favorecia em tudo o que podia, em tanto que
chamava ao Padre Guardião parente, o que podia ser, por terem ambos naturaes de
Esclavonia.
Não fallou alli o governador palavra algua na sua lingoa Esclavonica, ou
Macedonica, como outras vezes fazia quando se viaõ, mas toda a pratica foy em Turqueico
por via do Turcimaõ, por ser necessario mostrar naquelle acto publico sua authoridade, &
gravidade, porque dos Embayxadores não fosse calumniado, os quaes estavaõ presentes,
317
cousa muy acertada, que estê o accusado diante do calumniador, para que dè a sua escusa,
& seja ouvido cõ justiça, se a tiver, & naõ como muytos faze, q so color de justiça
satisfazem seu ódio, & sua propria causa: & o theor da pratica, que o sanlaco fez ao
Guardião foy esta. /
421
Mandey-te chamar, Guardião, & cabeça dos Francos, por me virem fazer
queixume de ti, que em menospreso da nossa ley, & do santo Templo de Salamaõ fazes em
seu Mosteyro huns edificios tão sumptuosos, que parecem castello para te defenderes, &
fortaleza para nos offenderes: do que se queyxa todo o povo de Hierusalem, & especial os
Cacizes, que são os mais zelosos da nossa ley. Bem sabes tu, Guardião, que o grão Senhor
Solimaõ não vos permitte fazerdes de novo edificios, nem vos cõsente sem sua particular
licença fortalecerdes os já feytos: & como eu te quero muyto, ainda que em to dizer tão em
publico, sey que não acerto, pois vou contra mim mesmo: quero saber de ti a verdade, &
ouvir ambas as partes cõ toda a equidade. O Padre Guardião lhe respondeo pelo mesmo
Torcimaõ, que elle não tinha feyto edificio algum sumptuoso, mas que com sua licença
particular havia levantado huas paredes no seu Mosteyro, não para alguma defensaõ; mas
para recolhimento dos seus Frades, & sua quietação, & contou-lhe hum perigo grande, em
que nos haviamos visto, não havia muytos dias, o qual foy, que vindo os peregrinos de
Franquia, & pondo-se com alguns descuydos no terrado da nossa casa, & na abobeda da
nossa Igreja a olhar para a Cidade, & para o Monte Olivete, hum Cacis nosso visinho,
começou a dar vozes com grandes brados, dizendo, que lhe estavaõ olhando para as suas
mulheres, do que se levantou hum grande arruido, & se causou não pequeno alvoroço: o
qual se não pòde apagar senaõ á conta das boltas dos pobres peregrinos: & que mandasse
elle ver a obra, & acharia ser falsa a calumnia. Começou o governador a dizer alguas
cousas, as quaes o Torcimaõ não declarava como convinha, porque de sua natureza não era
todo bom, & /
422
nos servia mais pelo interesse, que por boa amisade: as quaes ouvidas
pelo Padre Guardião começou a se agastar, dizendo, que se não atrevia mais morar na Terra
Santa, & que determinava tornasse com os seus Frades para Franquia, & mais que tinha
para si o Graõ Senhor Solimaõ não mandar, que com os Francos se usasse tanta tyrannia,
sabendo todo o mundo quão amigo era sempre da Justiça. Ouvindo isto o governador, irouse muito contra o Torcimão, & lhe disse muy agastado: olha cá Jacob, tu és hum perro muy
318
falso, & não dizes como eu te digo, o que entendo pela reposta do Guardião, que a dá como
homem agastado. Já que te tomamos por interpete, trata entre nòs verdade, porque em hum
negocio como este, não se permitte falsidade: & senaõ fallarey eu com elle na propria
lingoa da nossa patria, & conhecendo de raiz sua falsidade, mandarey fazer de ti justiça.
Ficou tão fóra de si o Torcimaõ com estas palavras, que não soube mais atinar com cousa
algua, de tal maneyra, q foy necessario o nosso Genizaro servir de lingoa, por ser tambem
de Esclavonia, & por causa dos circunstantes fallava na lingoa Turquesca: & na sua propria
dava a reposta ao Padre Guardião. O sanlaco tornou com muyta brandura ámimar ao Padre
Guardião, pedindo-lhe, que se não agastasse, porque elle era muyto seu amigo, & sempre o
favorecera, & que ao diante sempre o havia de favorecer no que se offerecesse, como elle
bem veria: & que se devia lembrar, como por amor delle tirara já hum Subbasi de seu
officio, por se haver mal com os Francos, & ter odio aos Christãos, & que a presente
calumnia o Subbasi a urdira para comer della: & q sendo necessario, tãbe o desporia do
officio, porq o grão senhor Solimão confiando muyto delle o mandara /
423
a Jerusalem,
para a grandes, & pequenos, Mouros, & Christãos, prover de justiça.
Houve entre estas palavras outras muytas de ambas as partes, de amor, &
comprimento: & a conclusaõ foy despedirem-se com muyta paz: & em se apartando, o
Governador tomou a mão ao Padre Bonifacio, & lhe disse na propria lingoa da sua patria,
que ninguém o entendeo senao o nosso Genizaro. Vayte embora parente, & tem tento na
bolsa, q estes perros, queriaõ comer: mas está seguro, que eu te ajudarey: o Padre Guardião
lhe deu os agradecimentos, & feytas nossas inclinações a elle, & aos outros nos
despedimos.
Sahidos dalli, nos fomos direytos ao monte chamado Silo, q está daquelle lugar hua
pequena legoa, & em outro mais alto, q quãto ha no seu circuito. Nelle foy posta a Arca do
Testamento Velho, em tempo do grande Capitão Josuè, filho de Nun successor do mui
santo Moysés, como dá testemunho da Escritura Divina no livro do mesmo Josuè, dizendo:
E juntáraõ-se os filhos de Israel em Silo, & alli firmarão, & puseraõ o tabernaculo do
testemunho, a saber, dos mandamentos do Senhor Deos, & maravilhas, & grandezas, q por
elles tinha feyto, & neste lugar esteve atè o tepo, q os filhos de Israel a levárão comsigo á
guerra, q tiveraõ co os Philisteus, sendo summo Sacerdote Heli, em cuja guarda a Arca do
319
Testamento estava; & na batalha sendo os Judeos vencidos, ficou a Arca em poder dos
Philisteus por seu mal delles, por espaço de sete mezes, nem foy mais tornada a Silo, mas
esteve na Cidade de Cariatharin em casa de Aminadab atè o tempo delRey David. Não
achamos naquelle lugar cousa algua de notar, mais que grandes ruinas de edificios antigos,
& de redor muy asperas, & espãtosas montanhas. Pelo que nos partimos /
424
caminho de
Ramachain, aonde ao presente está edificada hua muy grande, & sumptuosa Igreja, escura,
& medonha, que bem parece sinagoga, edificada á honra do Santo Samuel, & assim o lugar
não se chama Ramathain: mas commummente de todas as nações se chama Santo Samuel.
Somente este lugar tem os Judeos, que moraõ na Terra Santa á sua conta, & cada oyto dias
vão lá alguns concertar as alampadas. O Grão Turco tem dado liberdade a toda a pessoa,
que alli quizer morar, & offerecido todo favor, mas nem por isto o lugar he mais habitado,
com a terra ser muyto boa, & ter sobejamente agua, a causa não a pude saber.
No tempo da nossa partida para estas partes, andàvao muytos Judeos negoceados, &
abelhudos para irem lá morar, em especial Portuguezes, & Castelhanos, mas não sey em
que parou a sua determinação. Debayxo da cappella mòr está hua sepultura muyto grande,
quasi toda feyta na rocha viva, & tem por fóra huas grades muyto altas, & fortes, & muytas
alampadas, que de continuo ardem. Dizem ser aquella sepultura do Profeta Samuel, que
conforme ao que diz a Sagrada Escritura foy sepultado na propria Cidade sua Ramathain,
aonde os Judeos tem para si estar ainda seu corpo: mas enganão-se, porque o glorioso
Doutor São Hieronymo escrevendo contra o dorminhoco heretico Vigiliancio blasfemador
das tantas reliquias dos Santos, & dos que as venerão, & honrão, affirma ser levado com
muyta solemnidade, & fausto, de Judea a Tracia, aonde está Constantinopla, em tempo do
Emperador Arcadio: em tanto que de Palestina atè Calcedonia era tanta a gente, q o
acompanhava cantando, & dando louvores ao Senhor Deos, que pareciaõ enxames de
abelhas, saindo de todas as Cidades, & lugares por onde passavaõ mi/lhares
425
de pessoas
com candeas, & luminarias. Junto a esta grande Igreja estaõ muytos edificios, & casas a
modo de Mosteyro, mas tudo despovoado: sõmente vimos huas mulheres velhas, & hus
mininos, os mais tive para mim, que se esconderaõ, vendo-nos ir tantos, & o nosso
Genizaro diante. Vi alli muytas alampadas de vidro douradas, do que se faz em Hebron,
alguas dellas tão grandes como sinos: mas vasias, & por estado penduradas. Feyta oração
320
nos sahimos, tornando-nos para Hierusalem: & fizemos o caminho pela fonte, aonde S.
Filippe baptizou o Eunucho da Rainha de Candacia, ou Sabbá, como alguns querem, que
havia ido adorar a Hierusalem, como já em outro capitulo fica dito. Da fonte fomos ter á
Cidade Bethoron, a qual não está mais que hua legoa de Hierusalem. Foy edificada
primeyro por Sara filha de Ephraim, como lemos no Paralipomenon primeyro: & depois em
tempo de Salamaõ Rey de Israel reedificada, & cercada de muros, & portas, ao presente
posta na forma, & estado das mais Cidades de Palestina. Passamos por alguns lugares, que
nem se podem chamar boas aldeãs, posto que antigamente foraõ fortissimas Cidades, por
ser aquella terra a melhor de toda a de Promissaõ, cujos nomes não fuy corioso em os
buscar, & inquirir, como fizeraõ algus, que naquellas partes andarão, & estiveraõ: & por
isso os naõ ponho aqui. O mesmo dia tornámos a Jerusalem já tarde, louvando a nosso
Senhor JESU Christo, que para sempre vive, & reyna.
321
CAPITULO LXXIV.
Do Castello Emaùs.
POuco mais de duas legoas de Hierusalem, indo pelo caminho, & estrada, que vay
para o porto de Jafo, ainda que com algum desvio á mão esquerda, está o Castello de
Emaús, ao qual nosso Redemptor foy ter o dia de sua Resurreyçaõ com os dous Discipulos,
a quem teve por bem apparecer naquelle caminho em forma de peregrino; & delles no partir
do paõ foy conhecido, como no lo relata o Evangelista S. Lucas na sua historia Evangelica.
Este castello no tempo de nosso Redemptor, era hua Villa cercada, sendo antes hua Cidade,
Nicopolis chamada. Costume tem muytos Christãos dos que moraõ em Jerusalem no
octavano da Paschoa irem visitar aquelle lugar & os nossos Frades vão a primeyra octava,
& levaõ todo o necessario para dizer Missa, & a dizem com mais solemnidade, do que o
lugar, & tempo permittem. Assim da Villa, ou Castello Emaús, como da Cidade Nicopolis,
ha o dia de hoje muy pouca memoria, somente no lugar da casa aonde esteve nosso
Redemptor com os dous Discipulos, que depois foy feyto Igreja, a qual agora está posta por
terra, tirando a cappella, & ainda esta mea arruinada, na qual dizem Missa, quando a vão,
alimpando primeyro o lugar, q naquelle tepo sempre está cuberto, & cheyo de silvado.
Junto a esta arruinada Igreja estao huns casaes de Mouros, os quaes naõ dão nenhua
turbação aos Frades, quando lá vão antes lhe ajudaõ a alimpar o lugar, porq os convidaõ.
Alli junto está hua fonte, da qual affirmaõ sua agua /
427
aproveitar para muytas
enfermidades, & esta virtude dize, q lhe ficou, de quando nosso Redemptor lavou nella os
pès com os companheyros Cleofas, & outro, como naquelle tempo era costume entre os
Judeos, segundo lemos em alguns lugares da Escriura Sagrada.
Dos milagres da fonte não fiz nenhua experiencia, sómete sey dizer, que he agua
muy fria, & muy gostosa. No lugar da Igreja se ganhão sete annos, & sete quarentenas de
perdão, & fazem esta commemoraçaõ. Antiphona. Incipiens autem Jesus à Moyse, &
omnibus Prophetiis, interpretabatur illis in omnibus scripturis, quæ de ipso scripta erant,
322
& apropinquaverunt castello, quò ibant, & ipse finxit se longius ire. Alleluia. Vers. Mane
nobiscum Domine. Alleluia. Resp. Quoniam advesperascit. Alleluia.
Oração.
PAstor bone, ac infinitæ clementiæ, domine Jesu Christe, qui die resurrectionis tuæ
sanctissimæ duobus Discipulis proficiscentibus, in peregrinam transformatus effigiem
apparuisti, quibus de te loquentium oracula interpretatus fuisti, eisque demum in fractione
panis te manifestans omne infidelitatis velamen ob oculis eorum abstulisti: nobis quæsumus
famulis tuis veræ sapientia intelligentiam tribuens vitæ presentis peregrinationem disponas
in viam salutis æternæ. Qui vivis, & regnas, &c.
323
CAPITULO LXXV.
De huma admiravel sepultura, que se descobrio junto da santa Cidade, pouco tempo antes
que a ella fossemos.
COmo a santa Cidade de Hierusalem he tão antiga, & sempre foy Cidade Real do
tempo do grão Sacerdote Melchisedech, houve nella fabricas, & edificios espantosos, como
foraõ os do Teplo de Salamaõ & os seus Paços Reaes, que para si fez: & para a sua mais
estimada, & principal mulher, filha delRey Faraò do Egypto. E outros muytos Reys de
Israel fizeraõ o mesmo, porque o principal, em que se esmeravaõ, eraõ os sepulchros, em
que se sepultavaõ: o que as divinas letras em muytas partes nos mostraõ. E alèm daquelles
de que ellas fazem memoria, ha outros muytos espatosos, q o tempo descobre, em especial
para a parte do Monte Olivete: porq como os faziaõ subterraneos, buscavaõ rochedos, &
lugares montuosos para os fazerem de mais fabrica, & custosos. Entre algus, que vi, foy hu
muy espantoso, q se tinha descuberto pouco antes, q fossemos á Terra Santa, hua milha da
Cidade, junto ao caminho, q vay para Damasco, o qual nos disseraõ, que fora descuberto
por huns encantadores, tendo para si, q estava alli algu grande thesouro, porq antigamete
nas taes sepulturas, os senhores que as mandavaõ fazer, mandavaõ nellas meter os
thesouros. Be me lebra haver lido em Josepho das antiguidades, q Hircano mandou abrir o
sepulchro delRey David, & tirou delle tantos mil talentos de prata. Estado eu descuydado
de poder ver mais do q /
429
tinha visto de redor da Cidade, levaraõ-me hu dia a ver a
sepultura, q digo, a qual está em hu lugar montuoso, como estaõ as mais dellas, & sobre
ella muyto rochedo, q parecia ter alli posto por artificio humano. Diate da : entrada está hua
alpendorada muyto comprida, mas estreita: a qual se sustenta da parte do Norte cõ curiosas
colunas de fino marmore, lavradas ao modo Corinthio, cõ muyta folhagem, & curiosidade,
entremitida por ellas tambem obra Romana. Naõ tem este lugar porta alguma, mas hua
abertura grande, pela qual entrámos em hua casa muyto escura: na qual ferimos fogo, &
accendemos vellas, que de proposito levávamos para aquelle effeyto, & tirando hua pedra
grande, que tapava hu buraco, em, mãos, & pès, com trabalho entrámos dentro, & estavá a
pedra de maneyra, que quem não soubesse parte do segredo, impossivel lhe seria atinar com
elle, & não tem claridade alguma, mais que a que levaõ os que a querem ver. Demos logo
324
em hua quadra muyto grande feyta de hua só pedra viva, na qual da mesma estavão vinte &
quatro sepulturas, feytas cada hua dellas a modo de hum Altar, como he o Sepulchro de
nosso Redemptor, &. ordenadas desta maneyra. Em cada parte da quadra, tinha tres arcos a
modo de hua cappella, em cada arco duas sepulturas, cada hua de sua parte, & de cada hua
dellas sahia hum rego, & todos os regos se ajuntavaõ no meyo da quadra em hum lugar
redondo, & concavo a modo de hum alguidar lavrado com muyta curiosidade, o que
julgamos ser para recolher em si as humidades, que corressem dos corpos embalsamados.
Adiante desta quadra estavaõ outras duas da mesma maneyra: & para passarem de hua
quadra á outra, havia riquissimos portaes; & as portas feytas inteyri/ças
430
de cada sua
pedra, lavradas cõ muytas molduras, lavores, & entalhos: & tão maneaveis para se
ferrarem, & abrirem como se foraõ de madeyra. E o que mais nos espantou foy naõ serem
alli postiças, o q não podia ser: mas lavradas no mesmo lugar, com terem as couceiras altas,
& baixas muy grades, q be parecia ser impossivel podere-se alli meter, fazendo-se fóra
daquelle lugar, pela profundesa dos encayxametos, o q tudo muy be notava hu grande
arquitecto Venesiano de muyto nome, q levávamos cõnosco. Depois de vermos muy
particularmente estas quadras, abayxamos por hua escada de vinte tantos degráos, todos de
hua pedra inteyriça, como a mais obra, & tinha no principio porta á maneyra das outras: &
abayxando por ella demos em hua casa mais pequena, que as quadras, & nella achamos
cinco sepulturas izentas, & separadas cada huma per si, feytas como as tumbas, em que os
da misericordia levaõ os defuntos, lavradas com tanta estranhesa de rotas, & brincos, que
nos causáraõ espanto, & mais vendo que foraõ alli feytas sendo impossivel trazellas de
outra paste, & podellas alli metter, sendo a escada tão estreyta, quanto cada hum de nòs
podia ir só por ella. No meyo da escada de huma parte, & outra, & nas quatro partes desta
casa, & nas de cada hua das quadras estavão huns vãos a modo de pequenos almarios, para
nelles metterem as luminarias quando trabalhavão, ou queriaõ ir ver a obra. Hora ver esta
fabrica tão sumptuosa, & rica, feyta de hua só pedra mocissa, não sey quem se deyxará de
maravilhar. Das cinco sepulturas que digo, as duas dellas tinhão os tampaõs de cima
quebrados, parece que os quebrarão para verem o que dentro estava, as outras tres estavão
inteiras, & de toda esta maquina sómente estas cinco / 431 sepulturas, & as portas mostravão
estarem per si, & tudo mais mocisso. A hua parte do Monte Olivete tinhamos visto outra
325
sepultura de mais fabrica, & muytas mais casas, & camaras, tudo na rocha viva, mas não
era a obra lavrada com tanta curiosidade, & sotileza como esta, que parece mais cousa de
encantamento, que artificio humano. Muytos hão querido affirmar, ser esse o lugar aonde
sepultavão os Reys de Hierusalem, mas a ignorancia destes os convence, porque David foy
sepultado na sua Cidade, que era a principal, & mais alta parte do Monte Sion: no qual, por
estar nelle seu templo, a fortaleza da Cidade, & os Paços Reaes do mesmo Rey, aonde elle,
como em lugar separado, se recolhia com a mayor parte da nobreza Judayca, se chamava
Cidade de David: & alli está sepultado, como vemos o dia de hoje. E tambem foy alli
sepultado Salamão, Roboão, Abia, & a mayor parte dos Reys de Hierusalem. He verdade,
que a Escritura Sagrada diz no Paralipomenon segundo, que Ozias, filho de Amasias, por
causa, que era leproso, foy sepultado no campo y dos sepulchros, reaes, que por ventura
seria este, porque sua excellencia bem mostra ser obra Real. Achaz, tambem não foy
sepultado nos sepulchros, aonde os mais Reys eraõ sepultados, mas na Cidade de
Hierusalem, & os outros na de David, nem menos Manassés: os Reys de Israel, claro está,
que os sepultavão em Samaria. Seja a sepultura, ou sepulturas cujas forem, ellas saõ as mais
curiosas, notaveis, & espantosas, que pòdem ser no mundo, & quem lhe parecer sua fabrica
duvidosa do modo que a tenho pintado, ainda que com grosso pincel, lea a Santo Antonino
o que conta de hum espantoso theatro da Cidade Heraclea, & saiba que de semelhantes
estranheias estaõ cheas aquellas partes, &c.
326
CAPITULO LXXVI.
De como se deu ordem a nossa partida de Hierusalem, & Palestina para Franquia.
EStivemos na Terra Santa hum anno, & quasi oyto mezes, no qual tempo vimos
quasi todas as particularidades, que se podiaõ ver, conforme ao estado em que agora estaõ
aquellas partes. O mais deste tempo gastey na santa Cidade de Hierusalem, & parte delle
em a bendita Belem, recebendo sempre muitas merces, & cõsolações espirituaes do Senhor
Deos, visitando de continuo aquelles santos lugares, com cuja vista nossas almas eraõ sobre
maneyra consoladas, & recreadas; porque naquelles lugares santissimos sómente os
insensiveis deyxaõ de ter sentimento, pois em todos os Psalmos naõ lemos outra cousa,
senaõ sagrado Monte de Sion, a casa do Senhor, a santa Cidade de Hierusalem. E ainda que
eu máo, & peccador indigno das mercès de meu Deos, confesso, que muytas vezes me
achava, como fóra de mim por sua infinita misericordia, vendo-me morador naquella santa
Cidade, na qual em outro tempo morarão tantos Santos, habitada de tão grandes Profetas,
como foraõ, Isaias, Jeremias, & outros: rubricada com o sangue de tantos Martyres: ornada
com os Apostolos, santificada com a corporal presença de Christo nossa luz, Senhor, & Redemptor nosso, & de sua bendita Madre, figura da celestial Jerusalem, gloria eterna, &
patria nossa verdadeyra, para a qual fomos criados, & cuydando nestas cousas, & na
infinidade de mytserios, que nella passáraõ, comigo cõ muyta alegria fallando, dizia:
Stantes erant pedes /
433
nostri in atrijs tuis Hierusalem. Pois gastando o tempo nestas
ociosidades, & em ajuntar reliquias, para dellas fazermos Agnus Dei, & em fazer Cruzes, &
estando bem fóra de cuydar, que podia ver mais, do que tinha visto, & ainda de me lembrar
do modo, que havia de ter para me tornar a terra de Christãos, nem em que tempo: trouxe
Nosso Senhor á Santa Cidade cinco homens, fidalgos Italianos, hu Clérigo Romano
Sacerdote muy virtuoso, & honesto, por nome Misser Antonio: hum Florentino, outro
Bolonhes, & outro Brexano: os quaes sem saberem hus dos outros, se partirão de suas
terras, & Cidades, com animo de irem visitar a Terra Santa, & foraõ ter a Veneza, por causa
da embarcação, aonde se ajuntou com elles hum homem nobre Venesiano por nome Misser
Carlo. Elles assim jutos esperando náo, que fosse para aquellas partes, & manifestando
327
huns aos outros sua vontade, & desejos: como tinhaõ boa bolsa, que he a cousa mais
importante para remediar inconvenientes de jornadas compridas, não achando embarcação
para Chipre, se metteraõ em huma náo, que hia para Alexandria, Cidade principal no
Egypto, cõ animo de irem primeyro a Monte Sinay, que a Hierusalem. Chegados a
Alexandria, estando nella algus dias, foraõ-se pelo Nilo ao grão Cayro, aonde acharão hum
mancebo Frances, que de pequeno andara nas galés do Grão Turco, & sabia muy bem fallar
a lingua Turquesca, & Arabica, & tendo dellas fugido, andava escondido entre os Christãos
mercadores, que naquellas partes trataõ, desejando muyto tornarse a sua terra, sem ter modo
para isso: concertáraõ-se, com elle, obrigando-se a o trazerem a terra de Christãos, dandolhe todo o necessario, se lhe quizesse servir de lingoa. Foy o mancebo contente, & vestiraõno logo a seu modo / 434 delles, & compradas tendas de caminho, & todo o mais necessario
para tão grande jornada, se partirão para o Monte Sinay. Feyta alli sua romaria se tornarão
ao grão Cayro, & delle se forão a Roxeto, povoação muyto grande, a mayor parte della de
Judeos fugitivos desta nossa Hespanha, & metendo-se em hua cafila pelos desertos dos
Areaes, por onde a Virgem Nossa Senhora caminhou com o seu bento Filho JESU, Deos, &
Senhor nosso, indo fugindo a Egypto da presecusaõ do cruel tyranno Herodes, foraõ ter a
Gaza, & dalli vieraõ ter comnosco a Hierusalem, & o Padre Guardião, & mais Padres os
receberão com muyta caridade, & amor. Não vinhaõ estes como peregrinos, que
caminhavaõ por terras de infieis, mas com cargas de fato, tendas de caminho, bogios, &
papagayos, que no grão Cayro haviaõ comprado. Estiveraõ cõnosco em Hierusalem hum
mez inteyro, no qual tempo entendemos nelles, que determinavaõ ir mais adiante pela
Samaria, & Galilea buscar embarcação a Tiro, ou a Sidonia, aonde muytas vezes se acha, &
muy poucas no porto de Jafo, salvo quando vão os peregrinos de Franquia, ou de Grecia.
Consultamos meu companheyro, & eu que seria bem irmo-nos com elles, pois se offerecia
tão boa occasiaõ para vermos aquellas terras, & mais com tão nobre companhia, porque
para o fazermos, tinha cada hum de nòs particular licença do nosso Padre Geral, muy
copiosas, & favoraveis, para nos podermos tornar, quando melhor nos parecesse, & a tempo
que pudessemos tornar, & vir a nosso capitulo geral seguinte, com clausulas de tal maneyra
postas, que nenhum seu inferior nos podia impedir. Demos conta ao Padre Guardião com
muyta humildade, pedindo-lhe, que houvesse por bem, & não tomasse a mal a nossa
328
tornada, /
435
porque sendo nòs de terras tão remotas nos causára fazer as taes diligencias.
Tomou o Padre Bonifacio muyto mal nosso proposito, mostrando-se muyto sentido, &
chamãdo-se enganado, porque naõ soubera das taes liceças a tempo que as pudera impedir,
achado-se comnosco á feitura dellas em Trento, & aggravou-se que o queriamos deyxar,
sendo tanto nosso amigo, & tendo necessidade de nòs para sua consolaçaõ, & ajuda da
familia. Mas vendo que nenhua cousa destas nos modificava, nem movia, concedeo no que
pediamos, mostrando muyto sentimento da nossa partida: mostrando-nos por outra parte
mais amor, & familiaridade do costumado, nos mandou logo fazer nossas obediencias em
pergaminho, nas quaes testemunhava, em como haviamos estado na Terra Santa, & dos
lugares, que nella haviamos visitado: & depois disto nos mandou fazer provisaõ de todo o
necessario para jornada tão comprida. No tempo em que andávamos negoceando nossa
tornada, veyo á santa Cidade em romaria a mulher do Baxá de Damasco, Vice-Rey de toda
Siria, & Palestina, & trazia comsigo muyta gente de cavallo, & de pè, & muytas mulheres
em ricas andas, & outras em fermosos cavallos á gineta como homens, que assim he
costume naquella terra. Acodiraõ logo o Sanjaco de Hebron, & o de Gaza, & outros muytos
senhores Turcos, que havia naquellas partes, que a vieraõ visitar com dadivas, & presentes.
Foy aposentada esta Turca nas mesmas casas do governador da Cidade de Hierusalem, que
saõ como Paços Reaes, & as melhores de toda ella, & vinha por principal guarda sua hum
sobrinho do Baxá, homem de muyto respeyto, & do Sanjaco muy particular amigo. A este
foy o Padre Bonifacio visitar, por lhe não ter licito visitar a Turca, /
436
nem ella o
permittiria, nem menos os seus, por não haver tal costume, porque nem ainda dos Turcos a
via toda a pessoa. Ao tempo da nossa visita, quiz nosso Senhor, que se achasse o
Governador da Cidade com o sobrinho do Baxá: & como se dava por parente do Padre
Bonifacio, & como taes se tratavaõ, recebeo-o como costumava, & ambos lhe fizeraõ
muyta festa, levávamos hum grande presente para a Turca, como tambe lhe levárão todos
os Superiores das outras nações dos Christãos, & o Principe, ou Rabi mayor da sinagoga
dos Judeos, o qual presente o Turco logo levou á Turca, & tornou com os agradecimentos.
Vendo o Padre Bonifacio tão boa conjunção, deu conta ao Sanjaco, em como nos
queriamos tornar a Franquia em companhia de huns Venesianos, que alli estavaõ, pedindo,
que nos favorecesse com aquelle Turco, pois éramos, estrangeyros. Ouvindo isto o sobrinho
329
do Baxá, disse, que não só por amor do Governador, a quem elle tinha por irmão havia
muytos annos, mas q tambe por amor do mesmo Guardião, a quem era contente de aceytar
por parente, promettia de nos levar atè Damasco sobre sua cabeça, & em dizendo isto, poz a
mão no turbaõ, como tem por costume fazer os Turcos em semelhantes premetimentos.
Deu-lhe o Padre Guardião muytos agradecimentos, & em nos despedindo delles, chegouse-me á orelha, & disse, que levassemos do vinho para o convidarmos no caminho, como
nossa partida havia de ser dalli a tres, ou quatro dias, mandey eu logo ao Guardião de
Belem secretamente, por ser meu particular amigo, pedir dous almudes de vinho, o qual
ajuntey com o que nos deraõ no Convento de Hierusalem, & segundo meu parecer, hiamos
bem providos, senão foramos malfinados. Depois de termos tudo /
437
prestes, hua tarde
antes da partida, nos fomos ao santo Sepulchro, & dormimos lá aquella noyte confessandonos & despedindonos daquelles lugares santissimos, & ao dia seguinte dissemos Missa, &
commungáraõ os seculares, depois tornámos ao nosso Convento de S. Salvador, & nos
puzemos em ordem de caminhar porque a tarde atraz nos mandou dizer o Governador, que
estivessemos prestes, porque em amanhecendo havia a Senhora Turca de caminhar.
330
CAPITULO LXXVII
De como nos partimos de Hierusalem, & fomos ter a hu lugar chamado Biro, aonde dizem,
que a Virgem N. S. achou menos ao Senhor do mundo.
A Turca mulher do Baxá de Damasco, como tenho dito, tanto que amanheceo, se
partio de Hierusalem, acompanhada de toda a gente de cavallo da Cidade, do que muyto me
pesou, porque quizera eu, que foramos na dianteyra, por evitar enfadamentos, que nunca
naquellas partes faltaõ, se não andais alerta & sobre aviso: mas a nossa companhia houvese tão remissamente em almoçar de vagar, & não concertar as cargas depressa, que quando
nos partimos eraõ nove horas do dia. Foy tambem causa deste desconcerto, dizerem-nos
que a Turca hia muyto de espaço, & que naõ havia de passar aquelle dia de hum lugar
chamado Biro, dez milhas de Hierusalem. Despedido dos Frades com muytas lagrimas, &
tomando com elles a benção ao Padre Guardião, nos partimos da santa Cidade,
acompanhados de muytas, & grandes /
438
saudades, que levávamos daquelles santos
lugares, que tanto tempo haviamos tratado, & visitado.
Teriamos caminhado pouco mais de hua milha, quando encontrámos no caminho a
mayor parte da gente de cavallo, que acompanhara a Turca, & com ella vinha a justiça.
Apeamonos logo todos, & nos desviamos hum tiro de pedra do caminho por lhe fazermos
cortesia, & reverecia, por ser assim o costume, porque de outra maneyra não teriamos vida.
O Subbasi, que he como entre nòs meirinho, se deteve, pondo os olhos em todos, &
mandou lançar mão de hum macho, no qual em cima de todo fato hia huma gayola com
dous bogios, & lançando por seu mandado a carga no chão, acharão nella hus grandes
pedaços de pez Arabico, do que sahe do Mar Morto: mercadoria entre elles muyto defesa, o
qual sem sabermos disso parte levava hum almocreve para vender em Damasco.
Perguntarão os do Subbasi, cujo era o macho, & em se sabendo logo foy preso, & o macho
perdido, & as mais cargas embaraçadas, & nos fizeraõ tornar ,todos á Cidade com muyta
tristeza, & angustia nossa, o que foy bem empregado nelles, porque ao tempo da partida,
não quizerão ter conta com a pressa, que eu lhe dava: porque se foramos com a Turca, não
passáramos daquella maneyra.
331
A causa de tudo isto foy, que os almocreves huns eraõ naturaes de Belem, & os
outros de hum lugar seu visinho, chamado Botigella, cujos moradores, os mais delles saõ
hua canalha pèssima, & se acusaõ, & mordem como cães huns aos outros: & o Subbasi
estava avisado, em como levavão o pez, & quem o levava, & em chegando a nòs, o mesmo
calumniador lhe deu de olho, mostrando-lhe a carga aonde o pez hia. /
439
Tornando-nos todos para a Cidade como presos, hum irmão do culpado pondo-se
de giolhos diante do subbasi, dando-lhe suas cicutas, & pedindo-lhe misericordia, & que
nos não impedisse a jornada, deyxando para a volta a demanda, o Subbasi por mostrar sua
clemencia, lhe atirou do cavallo com hua maça de ferro, que na mão levava por arma, & lhe
deu no meyo dos peytos, que cuydey, que o mattasse: mas o pobre Christaõ se levantou
logo, & tomou a maça do chão & a beyjou: & lha tornou a meter na mão, & o cruel Turco
tornando a tomalla, lha tornou a atirar, & o Christaõ fez como de primeyro, & desta
maneira se houvèraõ quatro, ou cinco vezes. Nòs na Cidade leváraõ-nos a casa do Cabdi,
que he justiça mayor: & a sua porta descarregáraõ todas as cargas. Dous daquelles
Christãos me rogarão, que lhe escondesse huns pedaços de pez, sabendo que me não havião
de buscar, mas não me quiz fiar delles, temendo que me malfinassem como costumão fazer
huns aos outros, ainda que sejão parentes O nosso vinho passou o mesmo naufragio, &
apanhárão mais de metade delle: & o que ficou foy por eu dizer muytas vezes em alta voz,
que todos me ouvissem, Solimaõ xarave, Solimaõ xarave, quasi como admirando-me, que
quer dizer, Turco bebe vinho, Turco bebe vinho. E como elles por sua feyta lhe he deseso o
beber vinho: & o Grão Turco tinha posto pena de morte, a quem o bebesse, sentiaõ muyto
vendome queyxar do vinho, & amimandome, q me callasse me restituirão parte delle: & se
eu soubera fallar sem duvida mo tornarião todo & não ficariaõ sem caftigo, se o soubera o
Cabdi. O Padre Bonifacio, tanto que lhe deraõ recado do que passava, foy-se logo com o
nosso Genizaro a casa do Governador, rogandolhe, que nos / 440 acudisse, pois éramos sem
culpa: o qual mandou logo recado ao Cabdi, & elle nos deu por livres cõtra vontade do
Subbasi, que pretendia serem as bestas, & as cargas suas, pedindo-as por perdidas.
Respeytando o Cabdi a nossa innocencia, & os rogos do Padre Guardião, & os do
Governador, nos deu por livres: mas ficou daquella feyta o culpado preso, para delle
fazerem justiça. Ao tempo que nos deraõ por livres, eraõ mais de duas horas depois de
332
meyo dia, & em tornar a carregar passou outra, huns diziaõ, que deyxassemos a ida para o
outro dia, por ser já tarde, & que madrugariamos, outros que não era bem, que perdessemos
a cõpanhia, que hia diante, pois era tão boa, & segura, & caminhar tantas jornadas sem
guarda, nos punhamos a muyto perigo, pelo que logo se buscáraõ dous Turcos a cavallo,
que por seu interesse, feyto preço á sua vontada, nos acompanhárão muy cortezmente atè o
Biro, aonde todos nos affirmárão, que haviamos de achar a Turca, mulher do Baxá de
Damasco.
333
CAPITULO LXXVIII.
De como chegámos ao Biro, & delle nos partimos para a Cidade Sichar.
SAõ de Hierusalem a hum lugar chamado Biro, (o qual dizem se chamava Machmas
antigamente) dez milhas: cahe no Tribu de Efraim: chegámos a elle depois do Sol posto,
caminhando com tanta pressa, como quem hia fugindo á justiça: & naõ achando nelle a
companhia, que cuydavamos achar, ficámos tristes, & desconfolados, com a qual afflicçaõ
passamos /
441
toda a noyte. Os Turcos, que atè alli nos acompanhavaõ, tornarao-se para
Hierusalem, em nos pondo aonde ficarão, dando-se pouco do nosso enfadamento: posto que
em se partindo se offereceraõ a ir mais por diante comnosco, mas como a paga havia de ser
a seu modo, não quizeraõ os da nossa companhia. Tanto que se partirão, tratou-se logo em
buscar outras guardas que fossem comnosco mais adiante, porque fóra das Cidades, &
povoações grandes, aonde nos tem respeyto, não sómente os Arabes, mas qualquer
Mourinho tem poder para vos afrontar, se lhe não dais o q pedem, & querem: & como se os
aggravaes, defendedovos, haveis de levar a peyor, porq acodem hus pelos outros, sem
razão, nem justiça, & sofrem muyto mal em suas terras o menor aggravo da vida, pelo q
conve aonde vos não conhecem, levar sempre boa guarda: q se os q hiamos nos valera
pormonos em defensa, ainda q vieraõ vinte Arabes, não os temeramos, por irmos quinze, ou
dezaseis pessoas em companhia com os almocreves, & não faltavão boas armas, q nossos
companheyros levavaõ cõ liceça dos Governadores das terras, por onde passavaõ, porèm
achavaõ ser mais barato levarem guardas cõ preço honesto, q chegarem a enfadamentos.
Bem me lembra, que vindo eu hu dia de Belem para Hierusalem, mal disposto emcima de
hu jumento, diante hu bom espaço dos cõpanheyros, me encontrarão dous mancebos, be
valentes a cavallo, & porq me virão so, asperamete me madáraõ q me apeasse por lhe fazer
reverencia, o q eu não querendo fazer, se vieraõ indignados a mim: & eu me cheguey a hua
parede de pedra enfoça, q cercava hua vinha, & lancey mão de duas pedras, bradando pelos
companheyros, q estavaõ bem fóra de me ouvir, por virem muyto longe: o q /
442
vendo
elles cõ humildade me rogarão, que me fosse embora, culpando hu ao outro, por me querere
offender. E ainda detro na santa Cidade me aconteceo outra peyor com huns moços, os
334
quaes vendome ir sem companhia, começarão a me chamar cão, porco, & outros nomes a
seu modo, & eu me houve com elles de maneyra, que começarão a chorar: & ao choro
acudirão os pays, & parentes, que eraõ Turcos, & pessoas nobres, aos quaes eu com
palavras risonhas, & meigas afaguey, de maneyra, q nos abraçamos, & ficarão muyto meus
amigos, mas isto nem sempre succede bem, & em tal conjuçaõ o fizera, que amargara o
atrevimento; lá fóra entre a gente rustica succede de outra forte.
Achados daquella só noyte pelos nossos almocreves, huns oyto mancebos Mouros
com seus arcos, feyto preço com elles para nos acompanharem o dia seguinte: estivemos
atè a madrugada mettidos em hum casorio grande, q em tempo de Christãos fora Igreja
dedicada em louvor da Virgem nossa senhora, por ser aquelle o lugar, aonde vindo ella de
Hierusalem em cõpanhia de outras mulheres, achou menos ao bendito Jesu, seu unico Filho,
Deos, & Senhor nosso; o qual querendo começar, de manifestar ao mundo suas divinas
obras , & ser Deos verdadeyro, & luz, que allumia a toda a creatura racional: se deyxou
ficar no Templo, casa de seu Eterno padre, aonde sua, bedita Madre o achou ao terceyro dia
entre os Doutores da ley: perguntando cõ humildade, como verdadeyro homem: &
respondendo cõ sua sabedoria, como Deos eterno. Com a consideração da tristeza, angustia,
& sobresalto, que a Virgem Santissima naquelle lugar teve, trabalhamos por temperar a
nossa, animandonos huns aos outros, dando / 443 graças ao Senhor, & a sua bendita Madre,
por permittir: que no mesmo lugar nos vissemos tristes, & desconsolados, ainda que com
differete perda, pois ella alli achou menos ao thesouro da gloria, & Redemptor do universo:
& nòs a huma companhia de infieis, inimigos do seu santo Nome. Este lugar ao presente he
hua espalhada, & desconcertada aldea: mas tem fontes, & tanques de agua, & entre ellas
huma particular chamada a fonte de S. Maria.
De outras particularidades suas naõ sey dar razão, porq chegámos tarde, &
madrugamos, & naõ tive tempo para as inquirir, ou perguntar; & nesta falta cahirey daqui
por diate muitas vezes, por causa que caminhávamos sem liberdade, ao menos sem a que
tinhamos em Hierusalem, posto que os nossos almocreves eraõ Christaõs naturaes da terra,
& sabiaõ muyto bem os communs santuarios daquelle caminho, pelo haverem andado
muytas vezes, indo com cargas allugadas a Damasco. E tambem encontramos na primeyra
jornada a hu Christão Italiano, por nome Nicolao, que havia muytos annos q morava na
335
Terra Santa: & quando se offerecia andarem Frades aquelle caminho, sempre os
acõpanhava. Huma hora antes q amanhecesse, vieraõ os Mouros, que nos haviaõ de
acompanhar, & postos em ordem começamos de caminhar. Não teriamos andado huma
legoa, quando os Mouros começarão a requerer, que lhe pagassemos, & sobre isto se
levantou entre elles, & os nossos almocreves hu naõ pequeno arruido, & começárão de
palavras vir ás mãos cõ bos tronches de páos, que levavaõ, que saõ as commus armas de q
naquellas partes usa a gente baixa, & ainda todo o Christaõ, & Mouro, porq sómente
offensivas os Turcos as podem trazer. Acodio ao arruido cõ / 444 hu alfange hu Cacis velho,
que da aldea havia sahido com os Mouros, & os apartou: & segundo o que entendemos, o
mesmo Cacis os incitava a demandar a paga antes de tempo: mas por amor da paz
começarão a lhe pagar logo: & nem por isso deyxáraõ de fazer o mesmo outras vezes
naquelle caminho. Teriamos andado grandes quatro legoas, quando chegámos a hua aldeã
chamada Cingil, ultimo lugar da Provincia de Judea, de maneyra, que de Hierusalem atè o
ultimo da terra de Judea, não são mais que oyto legoas, ainda que bem compridas, na qual
aldea havia dormido a Turca, a noyte atraz passada, levando-nos sómente quatro legoas de
ventagem. Assim tomámos hua pequena de refeyçaõ de paõ, & agua sómente: he terra de
muitos olivaes, & fresca: & com muyta pressa seguimos nosso caminho, & vimos por
muyta parte delle grande quantidade de mandragoras, as quaes são huas plantas, que tem as
folhas como acelgas bravas, mas mayores, & mais largas, paradas no chão, & hum verde
escuro melancolizado. A planta he alta hum covado, dá huns pomos como maçaas
amarellos de fóra, como açafroados, & vasios de dentro. Disseraõ-nos os almocreves, que
os Mouros se serviaõ dellas para muytas mésinhas: & que quando as queriaõ arrancar
escarvavão primeyro a planta por deredor sem tocar nella: & depois lhe lançavaõ hum laço
de hua corda, & atavaõ na outra ponta hum cão, ao qual acenando com paõ, & elle correndo
ao tomar, arrancava a mandragora: mas que o cão quasi sempre morria do vapor pestifero, q
da raiz se levantava. Bem desejey trazer hua raiz por curiosidade, mas como não havia
modo, não ficou meu desejo satisfeyto. Fiz aqui memoria das mandragoras; offerecedo-se
occasiaõ para isto, lem/brandos
445
, que tambem a Divina Escritura faz memoria dellas no
Genesis, & nos Canticos. Todo nosso caminhar daquelle dia, foy com grandissima pressa,
& duas, ou tres vezes fingiaõ os nossos, virem Arabes a poz de nòs, para mais nos
336
apressarmos. A hora de vespera descobrimos a Cidade, hua grande legoa antes que a ella
chegassemos: & como dalli por diate era tudo capina descuberta, & viamos a gente andar
nas suas herdades, & ainda alcançamos algua da companhia da Turca, mulher do Baxá de
Damasco porq não madrugarão, nem andavaõ cõ a nossa pressa os Mouros q nos
acompanhavaõ, como já estavaõ satisfeitos do q lhe tinhaõ prometido, por nos haverem
enfadado por vezes no caminho, perdendo as esperanças de lhe darmos mais, como se virão
no descuberto, tomando outra estrada, se foraõ sem se despedir de nòs, porque temerão
virlhe algum mal por nos haverem offendido.
Chegámos a Sichar, ou Sichem, quasi com duas horas de Sol, & nos fomos
aposentar a hum cão, a que alguns chamaõ camlebaõ, que estava fóra da Cidade, aonde
estivemos muy mal agasalhados, por causa da muyta gente, que nelle aquella noyte se
acolheo o qual camlebaõ, asi chamado na lingoa Arabica he huma casa muyto grande
commum a toda a pessoa, que nella se quer agasalhar, & destes ha duas differenças, os que
estaõ dentro nas Cidades, & lugares grandes saõ como Mosteyros com muytas casas, &
camaras: os que estão pelos caminhos, & fóra das Cidades, como este de Sichar, são
sómente hua casa grande, de paredes muyto altas, & fortes: & por dentro de todas as quatro
partes vão arcos tambem muyto altos, & abobedados, & entre arco, & arco debayxo /
446
daquellas abobedas se recolhe a gente, que alli vay pousar, & o vão do meyo fica
descuberto, & tem o tal camlebão suas portas muito fortes, que á noyte se fechaõ, & a cada
meya jornada quasi por toda Turquia achais hum destes, para seguramente se podere os
caminhantes agasalhar de noyte: & podem-se recolher dentro em cada hum, cento, & mais
pessoas, & entre arco, & arco, podem caber hua duzia de companheiros, & fazer seu fogo
se quizerem. Os que aqui se aposentaõ, sejão Christãos, Judeos, Mouros, ou Gentios, não
tem obrigação de paga alguma. Estas casas desta maneyra mandaõ-nas fazer Mouros ricos,
& dizem que por suas almas, para que na outra vida achem quem lhe faça bem: & ainda
dentro pela Turquia me affirmárao haver muytos hospicios destes, nos quaes vos dão paõ,
agua, mel, & outras semelhantes cousas, tudo de graça; & do caminho que vay de Judea
para Egypto, naquelles asperissimos areaes, cada jornada tendes pontada daquella maneyra,
& com vos darem agua, quanta quizerdes: & não sómete deraõ nisto muytos Mouros ricos,
& nobres: mas muytos em sua vida comprão casas, vinhas, & herdades, para que depois de
337
sua morte as possua o commum do povo: & alguns que deyxaõ renda, para se manterem os
gatos, & outros que deyxaõ cada anno dous, & tres alqueyres, de mel por suas almas, para
comerem as moscas.
E porque já tenho entrado em Samaria, antes que falle no particular da nossa
viagem, ou caminho, se deve saber, que a Provincia de Samaria foy assim chamada de hua
Cidade principal do mesmo nome, que havia nella como adiante direy: seus termos desta
Provincia, ao Oriente tem o Jordão, ao Occidente o Mar Mediterraneo, ao Norte Galilea, ao
Sul Judea, & / 447 chama-se tambem Samaria, que quer dizer guarda, ou guardada, por estar
entre Judea, & Galilea, porque os Caldeos, & Sirianos, se queriaõ vir combater esta
Provincia, vinhaõ primeyro a Galilea: & se os Reys do Egypto a queriaõ combater,
primeyro haviaõ de dar em Judea. He Samaria terra montuosa de muytas aguas, & muyto
arvoredo: & a gente muyto melhor de condição, & cõversação, que a de Judea: & assim :
nos affirmáraõ, que ainda que não foramos na companhia da Turca, bem pudéramos ir por
toda ella, sem levar guarda, pagando os direytos aonde achassemos, que se deviaõ.
338
CAPITULO LXXIX.
Da Cidade Sichar, ou Sichen, & do poço aonde nosso Redemptor esteve fallando com a
mulher Samaritana.
A Cidade Sichar, como a nomea, & chama o Evangelista São João, ou Sichen, como
em outras muytas partes a Escritura Sagrada. Ao presente se chama de huns Nablos, & de
outros dos da terra Nabulofa, a causa disto foy, porque em tempo de Christãos pela sua
frescura lhe chamavaõ Napoles: & quando foy tomada pelo Soldaõ do Egypto, lhe ficou
este nome : & desta maneyra estaõ mudados quasi todos os nomes dos lugares de Palestina,
posto que os nossos Frades de S. Francisco, que ha tantos annos que moraõ na Terra Santa,
sempre usaõ dos proprios, & antigos, como estaõ na Escritura Sagrada: de maneyra, q ainda
que os Turcos, & Mouros lhe chamaõ Nablos, ou Na/bulosa, & o mesmo os Christãos da
Terra, nos lhe chamamos ora Sichar, ora Sichem, o qual nome tomou de hum filho de
Emor, que foy Principe naquella terra no tempo que o Patriarca Jacob alli foy ter, vindo de
Mesopotamia com suas molheres, & filhos depois de lher servido vinte annos a seu sogro,
& tio Labao, irmão de sua mãy Rebecca.
Está Sichar edificada em hum outeyro pequeno, junto a dous altos montes, Hebal, &
Garizin. Toda murada de muros antigos, & fracos, pode ter ao presente dous mil &
quinhentos visinhos. Tem dentro boas casas & muytas Mesquitas muy curiosas as quaes
foraõ Igrejas de Christãos: & da mesma maneyra estaõ agora com suas torres, &
campanarios sem sinos, he Cidade muyto fresca, de muytas aguas, & frutas. A parte
Oriental tem o Monte Garizin, taõ propinquo á Cidade, que ao Nacente do Sol lhe causa
sombra, porque naquella parte he altissimo, & ingreme, & no cume, & mayor altura delle
eatá ainda agora hum Templo de grande fabrica, oytavado como o de Salamaõ, & junto
delle outo tambem de grande fabrica, mas não oytavado. Hum destes dous Templos
edificarão os Samantanos & nelles offereciaõ seus sacrificios, por ser o lugar aonde
Jeroboaõ, primeyro Rey de Israel, depois que se dividio o povo em duas partes, ficando a
Tribu de Judá & a de Benjamin a Roboaõ, filho delRey Salamão, & as outras dez Tribus ao
dito Jeroboaõ, poz o Bezerro de ouro, com que fez idolatrar o povo temendo que indo a
Hierusalem, como tinhão por costume, & a ley lhe mandava, adorar ao Templo do Senhor,
339
que Salamão edificara, se tornassem a reduzir á obediencia de Roboaõ, & seus successores
descendentes del-Rey David pela linha real. Em tempo de Alexandre Magno /
449
pretenderão os Samaritanos privilegiar este Templo, assim como elle tinha privilegiado o
de Salamão em Hierusalem, mandando-lhe guardar suas immunidades, & privilegios
antigos, & fazendo-lhe particulares offertas: mas Alexandre dissimulou com elles, dizendo,
q á volta entenderia no q lhe parecesse bem: o outro Templo se edificou em tempo dos
Romanos ao ídolo Jupiter. Hu destes dous montes he aquelle do qual disse a Samaritana a
nosso Redemptor: nossos padres adorarão neste monte, mostrando-lho com o dedo, & vòs
Judeos dizeis, que sómente Hierusalem he o lugar proprio aonde se deve adorar a Deos,
como no lo relata o glorioso S. Joaõ Evangelista. Sobre estes dous montes Hebal, & Garizin
mandou Moysés aos filhos de Israel, que se sobissem, depois que passassem o Jordão, & q
no Monte Hebal levatassem duas grandes pedras, nas quaes estivessem esculpidos os
Mandamentos da ley: & alli edificassem hum Altar de pedras, q não fossem lavradas com
ferro, & nelle offerecessem sacrificio ao Senhor, & nelle estivessem juntas as Tribus de
Rube, & de Gad, Asser, Zabulon, Dan, & Neptalim, para maldizere aos quebrantadores da
ley: & no Mote Garizin se subissem as outras seis Tribus de Simeon, Levi, Judá, Isachar,
Joseph, & Benjamin, para que bemdissessem aos seus guardadores, pronunciando os
Levitas a enterica das benções, ou maldições, & o povo confirmando-as com dizere, Amen.
Estando eu debayxo olhando para aquelles edificios, que via em cima do monte, chegou se
a mim hum Judeo, & perguntou-me em Italiano, o que me parecia daquelles Templos,
louvey-lhe eu muyto a fabrica delles, & perguntey-lhe, quem os edificara, & respondeo-me
fóra de proposito, como homem que não sabia que cousa / 450 era ler, como elles pela mayor
parte saõ todos, & disse-me, que o monte se chamava Bethel, estando Bethel em Judea na
Tribu de Benjamin: & Garazim em Samaria na Tribu de Efrain. Nisto, & no mais que toca
aos lugares da Terra Santa, de que a Escritura Sagrada faz memoria, saõ ignorantissimos
todos, ou quasi todos os Judeos, que moraõ em Palestina. A tarde que chegamos a Sichar,
tomando primeyro lugar no cambelaõ, & hum pouco alento do caminho, nos fomos o Padre
meu companheyro, & eu visitar o Turco a quem vinhamos encommendados, & lhe levamos
hua barrileta de vinho, de atè duas canadas, que foy muyta parte para nos festejar em
grande maneyra, mostrando-se estar pesaroso, por não havermos sahido todos juntos de
340
Hierusalem, & muyto mais depois que lhe demos conta do nosso enfadamento, & do
naufragio, que passara o vinho, que traziamos para o servir. Fez-nos grandes
offerecimentos, assim da pessoa, como de toda a terra, & a resolução de tudo foy, que se
entrámos em sua casa com as mãos cheas, sahimos della com ellas valias, porque aquella
nação mais he inclinada a receber, que a dar. Disse-nos, que dalli por diante haviamos de ir
todos juntos atè Damasco, & por quanto a Siria havia de caminhar devagar, teriamos tempo
para saindo-nos do caminho podermos ver muytos lugares, que os Christãos costumavaõ
visitar, pelo que lhe demos muytos agradecimentos. Aquelle dia por ser já tarde, nos
tornamos ao caõ, & demos conta aos companheyros do bom rosto que nos mostrára o
Turco: & de como ao dia seguinte tinhamos tempo para descançar, & ver a Cidade, porque
a Turca não se havia de partir senaõ ao outro, & com isto descançámos aquella noite. Ao
dia seguinte vimos muy parlicular/mente
451
a cidade & em entrando nella achámos hua ,
pedra de marmore grande, a qual tinha hu letreyro de letras Latinas mui bem lavradas que
diziaõ: Hoc habitaculum ædificatum fuit in honorem Dei, & Beatæ Mariæ, & Sancti
Joannis Baptistæ, ad habitationem peregrinorum Rogerio magistro Hospitalis Hierusalem,
Anno ab Incarnatione Domini 1180. Beati qui ambulant in domo sua Domine: in sæcula
sæculorum laudabunt te, quer dizer: Esta casa foy feyta em honra de Deos & da
bemaventurada Santa Maria, & de S. Joaõ Baptista para morada dos peregrinos, sendo
Rogerio mestre do hospital de Hierusalem, no anno da Encarnação do Senhor 1180.
Bemaventurados Senhor, os que andaõ em vossa casa, para sempre vos louvarem. A
Cidade, alem de ser em si muyto fresca, & abundante, com a vinda da Turca estava muy
bem provida de todas as cousas necessarias & com ser no mez de Março, quando ali; fomos
ter estava a praça chea de muytas uvas frescas, toda a forte de maças, & peros, & muyta
fruta de espinho, & tudo tão barato, como se fora em Setembro. Está esta Cidade como
tenho dito, em hum teso, & pequeno oyteyro, dentro em hum fresquissimo valle de moytas
& arvoredo tendo junto a si os dous montes ditos Hebal ao Poente, & Garazin ao Oriente.
Antes de comer fomos ver o poço do patriarca Jacob, aonde nosso Redemptor converteo a
mulher Samaritana o qual ao presente está de todo entupido, ficando sómente o bocal
descuberto, lavrado de cantaria: & junto delle derrubada hua Igreja, que alli foy edificada a
honra do Salvador do mundo. São da Cidade a este poço dous bons tiros de arco; no
341
caminho, & estrada Real que vem de Hierusalem para Sichar, a qual estrada /
452
alli vay
muyto larga, & espaçosa entre vinhas, & olivaes. Alli aonde está o poço, se ganhão sete
annos, & sete quarentenas de perdão, & tem sua propria commemoração, mas no tepo que
alli chegamos, não procurava de fazer Itinerario, por me não fazer sospeytoso á companhia
dos Turcos, & Mouros, com quem caminhávamos, mas sómente encommendava á
memoria, o que ella podia reter, que era muyto pouco, para o muyto que viamos. Collegi
daquelle lugar, aonde Christo nosso Redemptor esteve ao poço, fallando com a Samaritana,
que quando alli sua Divina Magestade chegou, como vinha cansado, & trabalhado do
caminho, o qual atè hua legoa antes da Cidade he muy aspero, & montuoso, & elle o tinha
andado a pè, & não a cavallo, como nòs o tinhamos andado: vendo aquelle lugar fresco, &
aprasivel para seus amados Discipulos descanfarem, se deyxou alli ficar, indo elles á
Cidade buscar o necessario para comerem: & mais tendo alli tão boa agua, que sem duvida
a vinhaõ alli buscar por ser melhor, que as muytas que havia na Cidade, & podia ser
tambem pela terem por tanta, & bendita: pelo que disse a mulher Samaritana a nosso
Redemptor: nosso padre Jacob nos deu este poço, & elle bebeo delle, & seus filhos, & o seu
gado. E tambem podemos dizer, que ficou alli cansado, como humano, & se deyxou ficar
como divino, & Deos verdadeyro, que sabia muyto be o fruto que havia de fazer na gente,
& povo daquella Cidade, convertendo-o ao conhecimento de seu Padre Eterno, & seu
proprio; pelo que dizendo-lhe os Apostolos, que comesse, lhes respondeo: Eu tenho hum
manjar para comer, que vòs não sabeis, & tratando elles entre si desta reposta, lhes tornou a
replicar, o meu comer, & manjar, he fazer a vontade de meu /
453
Padre Eterno, & guardar
aquillo a q vim do Ceo, que he converter almas, & ensinarlhes o caminho da gloria.
E posto que ha muyto tempo que me achey naquelle bendito lugar, lembrame muy
bem, que estando nelle, estivemos tratando no que o bendito Jesu disse aos Discipulos: por
ventura vòs não dizeis, que daqui a quatro mezes será o tempo de segar os pães, &
novidades, olhay o que vos digo, & levantay vossos olhos, & vereis os campos como estaõ
já maduros, para se poderem segar, dizendo isto pelos homes, & povo da Cidade, que o
vinhaõ buscar, por lhe a Samaritana dizer, vinde, & vereis hum homem q me disse quanto
tenho feyto. Por ventura he elle o Messias? Está tão apropriado o lugar, & sitio, com o que
nelle passou, que de verdade nos parecia ver todo aquelle caminho donde estava o poço, atè
342
a porta da Cidade cheyo dos que vinhaõ buscar, naõ o poço, ou fonte de Jacob, mas aquella
fonte de vida, & de toda a suavidade: que como diz o glorioso S. João Evangelista,
convidava aos que ouviaõ sua divina doutrina, a que delle mesmo bebessem todos os que
tinhaõ sede, dizendo com altas vozes: Si qui sitit, veniat ad me, & bibat, quer dizer: se
alguem tem fede, venha a mim, & beba. E do mesmo Deos Eterno, & Senhor nosso, diz o
Profeta Isaias: todos os que haveis sede, vinde ás aguas. Junto a este poço está a herdade,
que o Patriarca Jacob deyxou em testamento ao seu amado filho Joseph, a qual havia
comprado a Hemor pay de Sichem por cem cordeyras, como lemos no Genesis. Toda está
plantada de fermoso olival, & no proprio lugar aonde foy sepultada a ossada do santo
Joseph, que os filhos de Israel trouxeraõ comsigo do Egypto, quando o Senhor Deos os
livrou do cativeyro, está hua Mesquita pequena, ainda que em /
454
extremo curiosa por
fóra: na qual mora de continuo hum santaõ, como Ermitão, & da Mesquita sahe huma fonte
de agua muy copiosa, & taõ boa, que a vão buscar da Cidade, com haver nella muytas, para
a qual nos tornamos, depois de visitarmos aquelle poço, & o mais do dia repousamos,
fazendo-nos prestes para a seguinte jornada. Nesta Cidade de Sichar, além de morarem
nella Turcos, & Mouros, Christãos, & Judeos: ha outro género de gente, a que chamaõ
Samaritanos, naturaes da mesma terra, aos quaes os Judeos tinhaõ particular odio, que
como dizia a mulher Samaritana a nosso Redemptor, quando lhe pedio, lhe desse de beber:
sendo tu Judeo, como me pedes tu de beber, sendo eu mulher Samaritana? Non enim
contuntur Judæi Samaritanis quer dizer: porque os Judeos naõ trataõ com os Samaritanos.
Samaritanos, & Judeos todos eraõ huns, mas depois que Salmanasar Rey dos Assirios foy a
Samaria, & a sugeytou, & fez sua tributaria, sendo Rey della Osee filho de Helá: tornandose para sua terra em paz, sabendo depois que o dito Osee se queria rebelar contra elle,
tornou a Samaria a segunda vez, & lhe poz cerco por espaço de tres annos, & a tomou, &
destruhio toda a Provincia, & prendeo ao Rey Osee, & aos Judeos levou cativos a
Babilonia, & os derramou pelas Cidades da Media, & em especial em Haylão, & em Abor.
Depois disto Salmanasar Rey dos Assirios, vendo a Provincia de Samaria estar despovoada,
mandou a muyta gente de Babilonia, que a fosse povoar, a qual tomou posse das Cidades,
& lugares, & de toda a terra: & como eraõ Gentios idolatras,, & não tinhaõ conhecimento
do Senhor Deos, nem de sua ley: mandou Deos muytos leões pela Provincia, que os
343
matavaõ, & comiaõ. Vendo-se elles com /
455
tão grande afflicçaõ,, mandarão recado ao
Rey dos Assinos, dizendo, como as gentes, que tinha mandado povoar as Cidades, &
Provincia de Samaria, como não sabiaõ as ceremonias, & ritos do Deos daquella terra, tinha
elle mandado leões, que os matavaõ, & comiaõ de que se não podiaõ defender, aos quaes
Salmanasar deu por reposta, que levassem comsigo hum dos Sacerdotes, que de Samaria
levárão cativos a Babilonia: o qual morasse com elles, & lhes ensinasse como haviaõ de
servir a Deos. Foy com elles o Sacerdote, & aposentou-se em Bethel, ainda que cahia no
termo de Judea, & dalli os hia ensinar o modo, como haviaõ de honrar a Deos, & conforme
as Provincias donde eraõ aquelles Babilonios, assim faziaõ seus idolos, & Teplos, em que
os adoravaõ, & juntamente com isto tambem adoravão, & serviaõ ao Deos de Israel, como
o Sacerdote lhes ensinava: de maneyra, que com ser Gentios, queriaõ mostrar ser Judeos, &
desta maneyra ficáraõ sempre aquelles Samaritanos, os quaes atè o presente guardão o
mesmo modo: & por isso erão tidos dos Judeos na conta, em que nòs temos aos hereges.
Estes Samaritanos ao presente, por guardarem o costume da terra, trazem os turbaõs da
cabeça vermelhos, usaõ de sacrificios de animaes, aonde quer que se achaõ; o que nunca
fizeraõ os Judeos, depois que Salamão fez o Templo. Os Judeos trazem o turbão amarello, o
Turco, & Mouro branco, como já outra vez cuydo, que fica dito. Algus Mouros traze o
turbao preto, por mostrarem, que forão em romaria á casa de Meca, & querem, que os
tenhaõ em conta de devotos, & seu testemunho vai por dous, ou tres testemunhos: outros
ha, que trazem o turbão verde, no q mostraõ descender da geração de Mafamede, ou que
suas mãys os /
456
parirão indo, ou vindo da casa de Meca: & estes taes por arrogancia se
chamão, filhos de Mafamede.
344
CAPITULO LXXX.
De como nos partimos de Sichar, & fomos ter ao castello aonde nosso Redemptor sarou os
dez leprosos.
AO dia seguinte em amanhecendo tocarão rijamente hua trombeta, & como todos
estavaõ prestes, começarão de caminhar, & nòs tivemos cuydado de nos por na dianteyra,
por nos naõ acontecer como á sahida de Hierusalem: porèm, como adiante hia toda a
bagage, & gente de serviço, não éramos tão bem olhados delles, como esperavamos, antes
algus nos davaõ muyta pena, por não quererem consentir, que fossemos entre elles, outros
nos faziaõ ir diante, & alguns nos lançavão fóra do caminho. E como seja proprio de
caminhantes, quando muytos caminhão juntamente em companhia, huas horas adiantaremse hus, ficando atraz outros: & pelo contrario, acordarão os almocreves, vendo que a terra
estava segura de Ar-bes, (que he o mais commum perigo daquellas partes, posto q pela
Samaria, & Galilea poucas vezes, ou nunca andão, por serem terras não accommodadas a
seu modo de vida) de tocarem rijamente de maneyra, que por hum bom espaço nos
apartamos da companhia. Seria meyo dia quando chegámos a hum lugar, aonde
antigamente, no tempo dos Reys de Israel esteve a Cidade de Samaria, cabeça de toda
aquella Provincia, na qual tinhaõ os Reys seu real, & principal /
457
assento, cujo sitio
estava em hum monte separado de outros montes, mas só per si izento, posto que á parte
Oriental tem outro junto. Toda esta insigne Cidade ao presente de todo está arruinada, nem
ha della mais memoria, que alguns pedaços de edificios antigos, como dos Paços reaes,
alguas columnas inteyras, & levantadas, outras muitas feitas pedaços pela ladeyra do
monte, & muyta outra pedraria lavrada. Muytos chamaõ a este lugar Sebaste; & Santo
Antonino diz no seu historial, ser-lhe posto este nome por Herodes, que a reedificou. O
glorioso Doutor S. Hieronymo em o prologo sobre Abdias Profeta diz, que Herodes Rey de
Judea, filho de Antipater Idumeo de nação, lhe poz nome Augusta, á honra do Emperador
Cesar Augusto, pretendendo com isto estar na sua graça. Achámos neste lugar huma Igreja
quasi nova, & muy bem acabada, na qual estavão dous Caloiros Gregos, que y alli serviaõ a
nosso Senhor: elles nos receberão com mostras de muyto amor, & nos levárão á Cappella
mòr, mostrando-nos nella o sepulchro aonde foy sepultado o Profeta Eliseu, lavrado de muy
345
fino marmore, & com muyta curiosidade, & juto delle outro sepulchro da mesma sorte,
aonde esteve sepultado o satificado antes q nascido, meu Senhor S. João Baptista, & da
outra parte está o sepulchro d’Abdias Profeta, o qual foy mordomo mòr delRey Achab em
Samaria, & seu Capitão geral nas cousas da guerra, & por suas muytas virtudes, & pela sua
grande piedade, cõ a qual no tempo q a ímpia Jesabel perseguia os Profetas, & servos do
Senhor, em covas secretas sustentou a cem delles, pelo q mereceo de Deos alcançar o
espirito de profecia, & ser metido no numero dos doze Profetas: & de Capittão de exercito
de homens, mereceo ser hum dos /
458
Capitães da Igreja Catholica: de maneira, que o
sepulchro do glorioso Baptista, mais que Profeta, fica entre os destes dous Profetas. Tinhão
os Caloiros muy limpos, & reverenciados aquelles sepulchros, & cada hum delles com sua
alampada acesa de continuo, as quaes alãpadas sustentão os Gregos daquellas partes. Junto
a esta Igreja estão huns casaes de Christãos, & Mouros, todos de mistura, os quaes se dão a
lavouras de paõ, & criar gado, q a terra para huma cousa, & outra he grossissima: & não lhe
falta, senão quem se queyra aproveytar della. Convidavão-nos os Caloiros da sua pobresa,
que certo alli deve ter muyta: mas não aceytámos cousa algua: antes os convidámos da
nossa: & ganhada naquelle lugar, se a Deos aprouve indulgencia plenaria, q nelle se ganha,
nos partimos não pouco contentes de o termos visto, & visitado, dando muytas graças aos
Caloiros pelo gasalhado q nos mostrárão: ainda q segundo nosso parecer, nos detivemos alli
pouco, porq não nos sentámos: & a caravana da gente andava muy devagar; quando saimos
muyta parte della tinha passado, ao menos toda a bagage, & gente de serviço, pelo q foy
necessario darmos pressa no caminhar, & tornamos a elles, por nos dizerem os almocreves,
q haviamos de passar por hum lugar, aonde se pagava casarro, q he hu direyto como
portagem em Portugal, & alcavalla em Castella. Depois q com a cafila, ou caravana nos
ajuntámos, a qual hia tão de espaço, que os Turcos de cavallo, matarão duas, ou tres
perdizes correndo-as, & cantando-as, para darem recreação á Turca, caminhando nos assim
jutos chegámos a hus casaes grandes, & algu tanto desviados do caminho á mão direyta &
outros á mão esquerda, & entre elles hu cão muyto grade, & feito a modo de / 459 fortaleza,
cujo nome me sahio da memoria, sedo lugar muy notavel, & nomeado naquellas partes.
Dos casaes da mão direyta nos sahirão, quatro, ou cinco homes com armas, & cõ elles hu
Turco muy apessoado todo armado, & nos pedirão casarro, o qual naquelle lugar he o
346
mayor q se paga na Terra Santa, em especial os que vão em romaria a Hierusalem, q os de
volta pagão menos: mas isto sómente os Christãos. Acudio logo a nossa lingua, & disse-lhe,
como hiamos na companhia daquella senhora, & dos mais: & muyto encommendados ao
sobrinho do Baxá de Damasco, por tanto não deviamos casarro; & sobre isto começarão de
altercar. Como vinhamos com os Mouros, & huns detraz, outros diante: passarão tres dos
nossos, & eu co elles. O Padre meu companheyro querendo-se mostrar mais privilegiado q
todos, & procurador dos cõpanheiros, cõ as porfias de pagar, ou não pagar, lhe deu o Turco
com hua maça de ferro nos peytos, q logo deu co elle em terra, & esteve atordoado hu bom
pedaço, & da mesma maneyra passárão os mais dos nossos, que se acharão presentes na
briga: mas no peyor della acudirão hus criados do Turco, a que vinhamos encomendados, &
levando dos alfanges ferirão muy mal ao Turco, & aos seus companheyros, porq acudio
logo gete da caravana pelos seus, & por nòs. Passado aquelle tão aspero encõtro, ficando os
casarreiros feridos, & sem casarro, q cuydo ser a cousa que mais os magoou, dalli por
diante forão sepre junto de nòs os criados do sobrinho do Baxá, mostrandonos muyta
familiaridade, & dizendo, q be nos tinhaõ vingado de nossos inimigos; chegámos cõ estas
praticas ao castello aonde nosso Redemptor deu saude aos dez leprosos já Sol posto, que ao
presente he hua aldea chamada Janin: & com animo de vermos o / 460 modo, & fausto como
hia aquella senhora Turca, nos apeámos, & deyxámos ficar atraz, mas adiante das suas
andas hiaõ a cavallo duas guardas com grandes azorragues nas mãos, q não consentiaõ
chegar algua pessoa perto, & não foy meu companheiro tão ligeyro, q deyxassem de o
alcançar co os azorragues, porq cõ a pressa cahio entre huas pedras de hua Igreja arruinada,
q por alli estava junto ao caminho: porèm vimos muyto á nossa võtade a ambição, & fausto
co q caminhava a Turca metida em huas andas douradas por dentro, & por fóra, & feytas de
toda a parte em gelosia co suas corrediças por detro muy ricas: & trazia a portinhola aberta,
ou porventura em nos vendo a abrio, com algua feminil curiosidade, para que a vissemos,
porq era a Turca de muy estranha fermosura: hia fallando com hum Mouro pobre, roto, &
descalço, sem algua cousa na cabeça, mas hua grande grenha, o que a Turca fazia por
mostrar religião, porque aos taes tem os Turcos, & Mouros por grandes santos, &
despresadores do mundo. Detraz da Turca hião cinco andas tambem ricas, com mulheres
suas, & quatro, ou cinco em bons cavallos á gineta como homens: mas com os rostos
347
cubertos com veos pretos, & ellas vestidas de preto, q parecião fantasmas. Ia aquella Turca
fallando todo o caminho com aquelle pobre, o qual sempre hia chegado ás andas, sem
algum outro homem ter ousado chegar a ellas hu bom pedaço, já disse que o fazia por se
mostrar espiritual, & religiosa, & mais indo de hua romaria tão santa, como a de
Hierusalem, aonde eu a vi ir visitar o sepulchro da Virgem nossa Senhora no Valle de
Josaphat, porque de toda a nação de Turcos, & Mouros saõ tidos os pobres em grande
veneração, & lhe chamaõ mensageyros de Deos, que andaõ pere/grinando
461
pelo mundo:
porque ainda que a gente commum dos Mouros pela mayor parte viva pobre, &
miseravelmente, & sejão de pouco comer, & mal vestir, em especial aonde morão entre
Turcos, em tanto que como já em outro capitulo disse, em muytas partes de Palestina, elles
servem aos Christãos de lhe cultivar as vinhas, & sementeyras, & lhe guardão os seus boys,
& gado: cõ tudo nenhum delles anda pedindo pelas portas, como cá na nossa Europa, antes
todos trabalhão em qualquer serviço que podem, & os que de todo saõ impedidos por causa
de cegueira, ou outra aleijão enfermidade, ou fraqueza, os hospitaes os sustentão, que os ha
muitos por toda Turquia, & não he muyto, pois são tão piedosos, que quasi em todas as
Cidades principaes ha hospital para gatos, quanto mais para homes, & mulheres; & desta
maneyra carecendo da continua importunação dos pobres da terra, estimão muyto, & tem
por santos, aquelles que andaõ peregrinando pelo mundo, como menos presadores das
cousas da terra: os quaes saõ taõ poucos, que naõ me acordo em todo tempo que naquellas
partes andey, haver visto mais que quatro atè cinco.
348
CAPITULO LXXXI.
Do castello aonde nosso Redemptor sarou aos dez leprosos, o qual ao presente se achama
Janin, & dalli nos partimos para Cannà de Galilea.
QUando chegámos ao lugar, aonde o Salvador do mundo teve por bem sarar, &
curar da lepra os dez leprofos, que a elle sahiraõ pedindo misericordia, & dizendo: Jesu
Mestre amercea-te de nòs, / 462 como o diz o Evangelista S. Lucas, já os Turcos, & Mouros
tinhaõ seus lugares tomados, & a gente principal suas tendas armadas: porque os seus
sempre hiaõ diante meya jornada a ter prestes tudo. Para a senhora Turca tinhaõ muy bem
concertado o cambelaõ do lugar, o qual era muyto grande, & bem murado; & nòs como
estrangeyros nos fomos recolher entre humas ruinas de hua Igreja derrubada, que sómente
tinha huns pedaços de paredes erguidos, & do lugar da cappella sahia hua fonte de muyta,
& boa agua, de que nos aproveitámos em chegando: & os almocreves Christãos nossos
companheyros, & o Christão Italiano, que havia muytos annos, q morava naquellas partes,
nos affirmárão ter aquella agua virtude miraculosa para sarar muytas enfermidades, & ser
aquelle lugar donde ella sahia, o mesmo aonde estava o bõ Mestre, quando curou aos
leprosos: & q todos os Christãos da terra affirmavaõ isto: a qual fonte estava algum tanto
desviada do lugar aonde a mais companhia se aposentou: pelo que nos mandou avisar o
Turco, que nos sahissemos dalli, porque nunca falta gente roim, que sempre anda buscando
em que empecer aos estrãgeyros, assim dos da terra, como de algus Mouros mal inclinados
da mesma companhia, que de noyte nos podiaõ meter em algum enfadamento: & nos
mandou recolher em hus pardieyros meyos derrubados junto da sua tenda.
Estando nòs alli metidos, quasi huns sobre outros, por sermos muytos, & o lugar
pequeno, posto que os almocreves ficarão de fóra com as cavalgaduras: vieraõ já com hua
hora de noyte dous Mouros velhos, & graves, & muyto bem tratados, & nos visitárão da
parte do Turco, sobrinho do Baxá, dizendo, que estava muyto agastado do enfadamento,
que tivéramos no caminho: /
463
& que o tomava á sua conta, pois fóra por seu descuydo:
posto que os seus criados lhe diziaõ, que os que nos offendèraõ, ficarão bem castigados, &
feridos. Porèm que dalli por diante, elle mandaria aos seus, que nos levassem entre si, &
dessem a entender á companhia, que hiamos á sua conta, & que lhe mandassemos dizer, se
349
tinhamos necessidade de alguma cousa. Demos-lhe com muyta humildade os
agradecimentos da visita, dizendo, que mais temiamos o seu desgosto, que o nosso
enfadamento: & que pois nossa bayxeza, & o sermos estrangeyros nos impedia podermoslhe fazer algu serviço pequeno, pediriamos a Deos lhe pagasse por nòs. Todos estes
comprimentos do Turco erão com meu companheyro, & comigo, que aos outros, nem
sómente os olhava. Despedidos os Mouros, enchemos o barrilete do vinho; & com elle o
fomos visitar, sendo mais de duas horas de noyte. Entrando na sua tenda nos abraçou com
muyta festa, & nos convidava, que ceassemos com elle, porque já estava sentado á mesa: &
aceytãdo o vinho com muyta alegria, não esperou, que outrem lhe tomasse a salva, mas
levou logo hua apoz outra: & deu outras duas a hum Cacis secretario da Turca, o qual tinha
comsigo á meta, & feyta hua breve pausa, tornou ao barrilete, & convidando outra vez o
Cacis, não quiz elle beber, escusando-se que havia logo de ir escrever á Turca para o Baxá
seu marido, & que temia cheyrar-lhe a vinho. Fomos sobre maneyra festejados do Cacis, &
de todos os mais convidados á cea, & nos fizeraõ grande comprimento de palavras, do que
demos muytas graças a nosso Senhor, que teve por bem dar tanta virtude ao vinho.
Despedidos delles, tornámos para os companheyros, com os quaes passámos aquella noyte
bem misera/velmente 464, encostados huns sobre os outros, pelo lugar ser muyto estreyto, &
apertado. Está este lugar Jannim aonde nosso Redemptor curou os leprosos, quinze milhas
dentro na Galilea, por Samaria ser em si huma Provincia tão pequena, que contèm, saindo
de Judea atè entrar na Galilea, sómente vinte & sete milhas, as quaes eu dou duas milhas
por legoa, tendo respeyto a termos andado todo o dia sem parar, ainda que não depressa, &
o outro dia atraz de madrugada atè depois de vespera, andando com muyta pressa. Mas
ainda que Samaria tem em si tão pouco espaço de terra, & pela mayor parte montuosa, he
sobre maneyra bonissima.
Deste castello não tenho mais que dizer, que haver por alli muytas ruinas de
edificios, casas, & Igrejas cahidas. Como já estavamos na Galilea, a qual eu tinha ouvido
dizer, que era huma terra muy deleytosa, desejava muyto ver-me nella, lembrando-me
quantas vezes nosso Redemptor tinha por ella andado: & com estes pensametos passey
muyta parte da noyte. Em amanhecendo tocarão a trombeta, & começarão todos a
caminhar: & o Turco mandou aos seus, que nunca nos perdessem de vista: & fizessem de
350
maneyra, que com seu favor fossemos de todos bem vistos, & olhados, ao que elles
cumprião á risca: & desta manevra caminhámos todo aquelle dia alegremente, indo-nos o
Chistaõ Nicolao Italiano, mostrando muytos lugares, nos quaes nosso Redemptor estivèra,
andando no desterro deste mundo, porque como havia muytos annos que morava na Terra
Santa, tinha noticia dos mais delles. O Turco tãbem nos mandou dizer, que bem podiamos
ir visitar os lugares, que os outros Christãos costumavaõ visitar naquellas partes: & que elle
nos mandaria acompanhar; porque a senhora hia devagar, / 465 & havia tempo para tudo, o q
muyto lhe agradecemos, mas quizemos ir antes na companhia, asi pelo trabalho do caminho
nos causar ir frios, & indevotos: como por nos contentarmos com a vista de longe,
respeytando, que na de perto pouco mais havia de haver, que notar, por estarem todos os
lugares arruinados, & postos por terra: de maneyra, que sómente, nos campanarios estarem
inteiros, ou cahidos, entendiamos, que foraõ Igrejas de Christãos, edificadas nos lugares
santos. As nove horas do dia passámos pelo lugar, aonde os Apostolos, & Discipulos do
Senhor, vendo-se apertados da fome, com as mãos esfregavão as espigas das seáras, por
onde passavaõ, para lhe comerem o grão: & alli achámos hua pequena Igreja, mea
derrubada, edificada em louvor do Redemptor do mundo, & dos seus Apostolos, com a
pintura na parede, que demostrava o que alli havia passado, ainda que muyto consumida do
tempo: entrámos dentro, & fizemos oração. Ao tempo que por alli passámos, estavão as
novidades fermosissimas, por entre as quaes passamos, por ser a estrada real. A vista deste
lugar, pouco mais de mea legoa nos mostraraõ o Monte Hermon, & junto delle a hum lado
seu para a parte do Norte vimos a Cidade Naim, aonde nosso Redemptor resuscitou ao filho
da viuva: da qual Cidade não vimos mais que huns casaes, aonde nos disseraõ, que
moravaõ sómente Christãos Franceses, que cuydo não terem mais que o nome de Christãos,
& na vida tem hu barbarismo como Alarves, porque nem tem Missa, nem confissaõ, nem
quem os ensine, ou doutrine. Parece que ficou alli aquella nação do tempo que se perdeo a
Terra Santa, ou depois quando a pretenderão recuperar muytos Principes Francezes, &
Alemães, & se conservaõ atègora com o nome de Christãos Fran/cezes
466
, outro Monte
Hermon nos mostrárão dalli alguas duas legoas, ou mais da outra parte do Jordão, na região
Traconitida. A horas de meyo dia descobrimos os Montes de Gelboè, tambem alguas duas
legoas do caminho por onde hiamos, á mão direyta, dos quaes não trato, sómente digo, que
351
os moradores seus visinhos affirmao, que no inverno chove nelles, como nas outras partes,
& da mesma maneyra, orvalha no verão. Já neste tempo caminhávamos pelo grande campo
Hesdrelon, do qual a Escritura faz memoria no livro de Judith, o qual campo ocupa a
melhor parte de Galilea, & a faz mais abundante de paõ, que toda a mais terra de Palestina.
Caminhávamos por elle muy alegremente, & hiaõ sempre na companhia duas azemollas
carregadas de agua, & hum Mouro em cima de hum quartaõ, que a dava, & despensava a
quem a pedia, no que notey a boa ordem, & concerto, que os Turcos tem em todas suas
cousas. Levava eu na cabeça hum sombreyro grande, como costumamos trazer os Frades
Franciscanos, quando imos caminho, com o qual sombreyro tinhaõ os Turcos grande festa,
tomandomo da cabeça, & pondo-o nas suas, hora huns, hora outros, & porfiavão muyto
comigo, que puzesse na minha os seus turbantes, & feyxas, o que nunca quiz fazer, por me
avisar hum Christaõ da nossa companhia, que em nenhuma maneyra o fizesse, & todo seu
desgosto era, porque eu não sabia fallar Turquesco, nem Arabigo, nem menos Grego
vulgar, que algus delles entendiaõ: a qual lingua elles chamaõ Rumeca,porque
particularmente me perguntavão se a sabia, mas eu respondia, q sómente a Venesiana
fallava. Mas como os perigos em toda a parte estaõ aparelhados, nem ha cautella humana,
que de todo se saiba delles guardar, não deyxa/rey
467
aqui de escrever o q me aconteceo
com hum negrinho Mouro, q hia na companhia. Como aquella parte por onde
caminhávamos era toda capina, & havia em alguas partes poços de agua, & lamaçaes do
inverno atraz; ou porventura, haveria pouco, que chovera: hia entre nòs hum negrinho de
algus nove, ou dez annos em cima de hum jumento sardenho; o qual como de sua colheyta
tinha ser agudo, & de sua natureza sem respeyto, ao tempo do passar aonde havia agua, ou
lama, sempre tomava a dianteyra: & como alguas vezes se me atravessasse diante,
agasteime, & disse com pouco sofrimento, o dou ao demo o perro, bem fora de cuydar, q
podia ir na companhia quem me entendesse, por meu cõpanheyro aquella hora ir lõge de
mim. Acudio logo o negrinho muito agastado, & com muyta colera me disse: a quien
llamaes vós perro, pensades que estaes en vuestra tierra, mirad por vós, que esta no es
Hespanha. Fiquey eu tão atonito da reposta do negrinho, que lhe naõ soube responder, salvo
que chamara perro ao macho em que hia: mas tornou a replicar com o mesmo agastamento,
no llamastes fino a mi, y callad, fino será otra cosa. Dissimuley o melhor que pude, & dalli
352
por diante me guardey todo o possivel por ir desviado delle. O que collegi daquelle perro
foy, que fora de algu Judeo Hespanhol, dos que de continuo vão de Hespanha fugidos
àquellas partes, & que indo ás mãos de algu Turco, ou Mouro, o fariaõ da sua opinião.
Tambem hia naquella companhia hum moço Christaõ Candioto, em cima de hu bom
cavallo, vestido como Turco cõ seu turbante na cabeça, alfange, lança, & adarga, & tão
pequeno, q eu me admirava poder elle com tantas armas. Este quando via modo para me
poder fallar, deyxando-se /
468
ficar atraz, me dizia: Padre, ainda que me vejais ir vestido
como Turco, eu sou Christaõ como vós, minha natureza he Candia, haverá tres annos, q me
cativarão, & me quiserão fazer Mouro em que me pez, & cuydão que eu o sou, mas não me
circuncidarão, nem retalharão, dilatando a fanadura de dia em dia pela festa, que me haviaõ
de fazer: de maneyra, que já vay esquecendo. Meu pay procura resgatarme, & já dá por
mim tatos saquins de ouro, & quatro cavallos muyto fermosos, mas elles não me querem
resgatar. Fallava aquelle moço muyto bem a lingua Venesiana, como a falla toda a gente
nobre de Candia, ainda que saõ Gregos, & cõcluhia o pobre moço, com me rogar, que o
encommendasse a N. Senhor, & isto me fez sómete tres vezes naquelle caminho com muyto
resguardo. Haveria duas horas de Sol, quando chegámos ao pè do Monte Tabor, o qual
izento de todo o outro monte, ou outeyro, está posto naquelle grade campo, estendido do,
Norte ao Sul, taõ gracioso, q sua vista nos alegrou. Não he demasiadamente grande, ne alto,
mas feito a modo de hu ovado muy be proporcionado, toda sua altura cuberta de hu
arvoredo meudo, & baixo. Lembrame que quando chegámos a elle, porq a estrada lhe passa
pelo pè, os almocreves Christãos nos disseraõ, que aquelle era o Monte Tabor, respondeo
meu companheiro, ainda q vós o não dissereis, elle mesmo se está manifestando, & dizedo,
q elle he. No alto vimos estar tres Igrejas, ou cappellas, quasi de todo cahidas, & separadas
huas das outras, as quaes forão alli antiguamente edificadas á honra dos tres Apostolos São
Pedro, Sant-Iago, & S. Joaõ, por causa do que o Apostolo S. Pedro disse ao Senhor: se
quereis façamos aqui tres moradas. No bayxo ao pè do monte, no lugar aonde estavamos,
vimos as / 469 ruinas de grandes edificios, & foraõ de hum samptuoso Mosteyro de Conegos
Regrantes de Santo Augostinho, que alli esteve, sendo a terra dos Chistaõs. Bem
quiseramos subir ao alto do monte, para vermos o lugar aonde nosso Redemptor teve por
bem ser transfigurado, porque a altura não era tanta, nem tão aspera, que houvessemos de
353
gastar muyto tempo em a subir, que com menos de mea hora ficavamos satisfeytos, & mais
vindo a companhia devagar, & brincando, porque sabiaõ aonde lhe havia de anoytecer: mas
os nossos almocreves não quizeraõ consentir, affirmando, que no bosque debayxo, o qual
tinha o arvoredo mais alto, & basto, andavaõ animaes feras, que nos poderiaõ fazer mal:
que nos contentassemos com estarmos dentro nelle assim ou não, com lhe darmos credito,
desistimos dos desejos, contentando-nos com a vista do bayxo, que não podiamos com a do
alto, mas não nos partimos sem alguma maneyra ficarmos satisfeytos porque subindo hum
pouco pelo monte a cima, porque naquella parte aonde estavamos, estava elle mais
desabafado, & menos perigoso, por ser junto a estrada, & dizendo a estaçaõ, ganhamos
indulgencia plenária, se ao senhor Deos aprouve: Deste lugar do santo Tabor vimos estar a
florida Nazareth em hum alto, & ao Monte Carmelo, & parte do Monte Libano, & outros
muytos lugares de que a.Sagrada Escritura faz memoria, cuja vista me era summamente
deleytosa, não somente aos olhos corporaes, mas tambem aos interiores d’alma : & indo
com este contentamento, em se pondo o Sol, chegámos a Canná de Galilea.
354
CAPITULO LXXXII
De Cannà de Galilea, & do mar de Tiberiade, & outros lugares.
CAnnà de Galilea, ao presente he huma aldeã de Christãos, & Mouros, & situada
em hum alto, do qual se descobre toda aquella Provincia. Os moradores dão-se á lavoura,
porque a terra he grossissima, & não lhe falta, senao quem se queira aproveitar della: mas
esses poucos moradores, que habitaõ na Galilea, provem Hierusalem, & outras muytas
partes de trigo, que tanta he a abundancia. Tãto que chegámos, armarão logo nossos
companheiros duas tendas de caminho que traziaõ, nas quaes todos nos recolhemos algum
tanto separados da outra companhia, por ser já a terra segura de Arabes, & nòs melhor
olhados, & tratados dos Turcos, & Mouros. Antes que de todo fosse noite, nos levou o
Christaõ Nicolao á Igreja dos Christãos, aonde, quasi todo subterraneo, nos mostrárão o
cenaculo, ou triclinio, no qual nas vodas nosso Redemptor converteo a agua em vinho.
Abayxámos ao lugar por cinco, ou seis degráos, & não vimos nelle cousa algua de notar,
salvo terem-no muyto limpo, & reverenciado. Rezamos a estaçaõ, ganhando indulgencia de
sete annos, & sete quarentenas de perdão, se aprouve ao Senhor Deos. Passamos aquella
noyte quietamente, sem termos comprimentos cõ o Turco, nem elle comnosco, porque nos
faltava o vinho, & não tinhamos outra cousa de que os fazer: & bem me lembrou o muyto
sobejo que alli houve nas vodas, depois que o Senhor teve por bem de nellas converter a
agua em / 471 vinho: sómente reservamos hua pouca quantidade, para com ella mitigar algua
tempestade, se contra nòs se levantasse. Ao dia seguinte feyto sinal com a trombeta, em
amanhecendo começamos de caminhar, abayxando de Canná para o mar de Galilea. A
gente cõmua, & bagagem, que hia sempre diante, entre a qual nòs fomos quasi todo
caminho, porque os nobres, & principaes sempre foraõ á vista da Turca, começarão a tirar
dos seus fardeis paõ, queyjo, passas, alhos, & cebolas, de que os Turcos, & Mouros, se
pagão, & todos hiaõ almoçando, & muytos nos convidavaõ, & ainda alguns me forçavão a
tomar o que me offereciaõ, o que aceytava pelos não aggravar, posto que com nojo nenhua
cousa comia. Teriamos andado meya legoa, quando demos sobre o mar de Galilea, &
caminhámos ao longo da sua praya atè junto do meyo dia. Logo no principio achámos
355
grandes ruinas de edificios, & pedaços de muralha em tanta quantidade, que entravão
dentro no mar, & foraõ de hua Cidade, que alli antigamente esteve, chamada Magdalon.
Abayxo donde sahimos nos ficava á vista espaço de meya legoa, a Cidade de Tiberiades, ou
Tiberia, forte, & bem murada, segundo sua vista mostrava, porque toda muy distintamete se
via.
Está situada no ultimo daquelle mar de Galilea, & tão chegada a elle, que huma
parte do muro toca na agua. He muyto viçosa, de muytas palmeiras, grandes laranjaes, &
toda a arvore de espinho, em tanta quantidade, que sentiamos a fragrancia, & cheyro da
flor, sendo espaço, como digo de meya legoa, ainda que pequena, & era quando por alli
passamos na Quaresma. No tempo que nos partimos de Hierusalem, soube eu de alguns
Judeos Portuguezes, como hua Judia Portugueza, que deste Reyno fugio com grandes
riquezas, com as quaes / 472 se fez muy poderosa, & de grande nome naquellas partes tinha
comprado esta Cidade de Tiberia ao Grão Turco, por grande quantidade de dinheyro, &
tributo perpetuo de mil cruzados cada hum anno: & que o verão seguinte se vinha de
Constantinopla com toda sua familia a viver, & morar nella com todos os Judeos, que a
quizessem seguir, da qual nova todos os Judeos que moravaõ em Palestina andavão muyto
alegres, com esperanças, que morando elles alli, havia de vir o Messias. No tempo que
estive em Veneza, como os mais dos sabbados por curiosidade continuava a Sinagoga, por
gostar de os ver goear, & cabecear, vim a entender, que se tratava entre elles, & tinha por
cousa muy certa, que dalli a sete, ou oyto annos, havia de vir o Messias, & depois achandome em Hierusalem comunicando com alguns hum dia em boa pratica, tratando da mesma
vinda, lhe disse, que se havia de vir, não podia mais tardar, que atè seis, ou sete annos,
diminuindo lhe hu da conta, que os de Veneza trazião entre si: ouvindo-me elles isto não
faltou mais, que adorarem-me, dizendo, que eu era algum Profeta, ou grande adevinhador.
Vendo eu tamanha cegueyra, então os envergonhey, & confundi, mostrando-lhe claramente
quam cegos, & enganados vivião: de modo, que toda aquella desaventurada gente andava
em toda a terra de Promissaõ com aquella imaginação. Tinha aquella Judia Portugueza
grandissimas riquezas, como tenho dito, com as quaes fugio de Portugal, & julgue cada
hum de que as haveria, & teria adquirido. Fugio esta mulher de Portugal com outra sua
irmãa, tambem viuva, como ella: & ambas foraõ ter a Veneza, aonde estando algus annos,
356
esta de que vou tratando, cujo sobrenome era Luna, se passou a Conftantinopla com /
473
suas riquezas, cõ as quaes por feytores seus, se meteo a tratar por todas aquellas partes, em
especial pelas maritimas, com mandar fazer copia de náos, segundo me affirmou em hua
certa parte hu Judeo natural de Lisboa, muyto seu familiar, q de dentro de Constantinopla
tinha vindo a Portugal a visitar seus parentes, com os quaes esteve muy devagar em Lisboa,
& em outros lugares do Reyno, dos quaes foy bem favorecido, & ajudado. A outra irmãa
entregou suas riquezas á Senhoria de Veneza, para que com seu interesse, com as suas lhas
guardassem: & desconfiada da vinda do Messias deyxou de ser Judia, & deu em ser Gentia,
como em outra parte achey hum Judeo natural de Santarem, que com desesperação deu no
mesmo. Tinha esta Judia hua filha muyto fermosa, herdeyra de todos seus bens com a qual
em Veneza casou a furto hum Christão novo, que fora criado do Marquez de Villa Real, &
com traição, consentindo a moça, lha tirou escondidamente de casa, & dentro em hua noyte,
em hua galé a levou a Ancona, & dalli a Roma, aonde se poz em cobro com favor do
Embayxador deste Reyno. A Judia, que deu consigo em Constantinopla, & estava de
caminho para Tiberia, fez-se tão poderosa, que os Judeos não a nomeão por seu nome
proprio, mas chamaõ-lhe a Senhora. Caminhando ao longo daquelle mar sagrado, chegámos
a Bethsaida, patria dos Bemaventurados Apostolos S. Pedro, & Santo Andre, o qual lugar
ao presente sómente he povoado de algumas choupanas cubertas de palhiço, & de ramos de
palmas, , aonde se recolhem os pescadores, que por alli de continuo andaõ. Tem muytas
palmeiras, que no tempo que por alli passamos, estavaõ bem carregadas de muy grossas, &
fermosas tamaras. Achey alli hum Judeo /
474
Portuguez, do qual já tinha noticia, &
informação de outros Judeos, o que me causou perguntar por elle, festejou-nos com muyto
peixe, que para si, & para os companheiros tinha cosinhado. Este mar de Galilea he hum
lago muyto grande, causado do rio Jordão, que lhe passa pelo meyo. Sua grandeza assim de
largo, como de comprido, não he tãta que se deyxe de ver todo de hua parte, & outra.
Julguey eu, que teria tres legoas de comprido, & pouco mais de hua de largo: porèm como
sey pouco de Geometria, bem me poderia enganar: mas affirmo que me não enganey em ter
muyto contentamento espiritual, vendo-me dentro na agua, que meu Deos teve por bem
santificar com suas divinas plantas, andando sobre ella. Nem me satisfiz ir por junto della,
mas descalcey-me, & caminhey quasi meya legoa por dentro d’agua, colhendo alguns
357
busiosinhos, que comigo trouxe. Todo este mar de hua parte, & da outra, he cercado de
muytas palmas, & de toda a arvore de espinho, & de muyta fruta, & frescura, & ha nella
muyto, & bom peyxe, mas os pescadores saõ poucos. O Christão Nicolao nos hia
mostrando da outra parte o monte, no qual nosso Redemptor, orou, & abayxando delle
sarou ao leproso, o lugar aonde com os cinco pães, & dous peyxes fartou os cinco mil
homens, & aonde aos quatro mil: o lugar aonde depois de resuscitado appareceo aos
Discipulos, que andavão pescando, & tomarão cento cincoeta & tres peyxes, sem se romper
a rede: & assim mesmo outros muytos lugares, nos quaes meu Deos, & Senhor naquella
parte esteve, andou, & obrou muytos milagres, & maravilhas de Bethsaida para Capharnau,
que está pouco mais de legoa adiãte pelo caminho, que levávamos, & de Capharnau para
Corozain, que fica outro tanto apartado /
475
á mão direyta para o mar, & outros lugares, q
quasi todos estaõ sinalados cõ vestigios, & ruinas de Igrejas, que nelles foraõ edificadas em
tempo que a terra era de Christãos, & se vem da parte donde hiamos mais claramente, que
os lugares do Barreyro, & seus visinhos se vem de Lisboa. Este lago huas vezes he
chamado mar de Galilea, por estar naquella Provincia, assim chamada, & os Hebreos a todo
o ajuntamento de aguas chamaõ mar, por aquillo do Genesis: Congregationesque aquarum
appellavit maria. Outros lhe chamaõ mar de Tiberiadis por causa da Cidade de Tiberia, que
está edificada junto delle. Tambem lhe chamaõ Stagnum Genezareth, por hum lugar assim
chamado, que está ao longo da sua ribeyra, da outra parte junto ao lugar aonde nosso
Redemptor sarou o homem, que era atormentado da legião dos Demonios, permittindo aos
mesmos Demonios, por lho pedirem, & rogarem, que entrassem nos porcos, q andavão
pascedo junto no monte na região dos Gerasenos, como o escreve o Evangelista S. Marcos.
De todos estes lugares ha muy particular memoria, & no livro das antiguidades da Terra
Santa, que temos em Hierusalem, tem suas indulgencias, estações, Antifonas, & orações
para quando he possivel visitallos. Sahindo da vista destes santos lugares seguindo nosso
caminho, chegámos ás ruinas de Capharnau, nas quaes bem se vem cumpridas as palavras,
& ameaças do Senhor, pois della não ha mais memoria, que alguns pedaços de argamaça
dos seus muros. Dalli caminhando pela estrada, por onde caminhou o castissimo Joseph,
filho do Patriarca Jacob, & da muy fermosa Raquel: pouco mais de vespera chegámos ao
lugar da cisterna, aonde de seus invejosos irmãos foy metido, indo elle muy alvo/roçado 476
358
pelos ver, & elles não menos de o mattarem: quando em o vendo disseraõ: Eis cá vem o
sonhador, matemolo, & lancemos seu corpo nesta cisterna velha, que aqui está.
359
CAPITULO LXXXIII.
Do logar chamado Dotaim, & da cisterna aonde os filhos de Jacob meterão a seu irmão
Joseph.
TEm os Turcos, & Mouros em santa veneração as cousas dos Patriarcas antigos, &
dos Profetas, que aonde quer que as achaõ, as trataõ, & reedificaõ cõ muyta deligencia,
porque se presaõ de filhos, & descendentes do Patriarca Abrahaõ, como os Judeos: posto
que pela linha de Ismael, filho de Agar sua escrava. E daqui vem tomare-nos o Monte Sion,
por causa da sepultura de David, como já fica dito; terem em Hebron a taõ bom recado a
sepultura dobrada dos Patriarcas Abrahaõ, Isaac, & Jacob, & das tres madres de Ismael
Sara, Rebeca, & Lia, & outros muytos lugares: & da mesma maneyra tem a cisterna, aonde
foy metido o santo, & casto Joseph por seus irmãos, aos quaes elle com tanto amor, & de
tão longe hia buscar, desejoso de saber de sua faude, & de levar delles boas novas a seu
pay. Ao presente não tem os Mouros aquella cisterna rota, nem quebrada, como estava ha
hoje tantos mil annos, mas muyto renovada com grande curiosidade, & cheya de agua clara,
& fria, da qual eu á vontade bebi, lebrando-me ser mettido nella com tanta deshumanidade,
o santo moço Joseph. Junto della tem os Mouros huma pequena /
477
Mesquita, na qual
quando alli vaõ ter, entraõ a fazer seu Salá. Quando alli chegámos seria pouco mais, que
horas de Vespera, & já estava tomado o lugar para a Turca em hum cambelaõ pequeno, que
acima da cisterna estava, & armadas suas tendas para os Turcos, que a acompanhavão. A
cisterna está em huma campina de hum valle largo, & muy gracioso. A parte de cima á maõ
direyta, indo de Hierusalem, está hum lugar grande habitado de Mouros, chamado Dothain,
como antigamente lhe chamavaõ, terra de grandes pastos para o gado ovelhum: & tiveraõ
muyta razão os filhos de Jacob de os ir alli buscar, por serem bons para nelles apascentarem
o seu gado.
Nenhua cousa nos pesou em ver aquella Turca tomar a pousada tão prestes, assim
para repousarmos, como para vermos a terra, ainda que os nossos almocreves tornáraõ-no
muyto mal pela perda, q disso lhe vinha, porq comiaõ á sua conta, q asi nos cõcertamos co
elles em Hierusalem, antes da partida. A Turca cada dia despachava correyo para o marido,
& hia-se detendo esperando pela reposta: o q fazia por estado. Aquella noyte nos veyo
360
buscar á nossa teda o sobrinho do Baxà, co tres ou quatro cõpanheyros, & nos levou o
Padre meu cõpanheyro, & a mim fóra ao campo co os seus, & nenhu dos nossos, & para o
agazalharmos levamos as reliquias do vinho, q traziamos reservadas para algua pressa, se se
nos offerecesse: & huas poucas de avelans de Armenia partidas, & muyto grandes, que hum
Armenio me tinha dado. Mostrou-nos muyto amor, abraçando-nos, & apertando-nos
comsigo, & cuydo que muyto mais ao vinho, que lhe levávamos, porque sobre maneyra o
festejou. Passamos alli hum pedaço da noyte em conversaçaõ, atè serem horas de nos
recolher, com /
478
avisarnos o Turco, que ao dia seguinte haviamos de ter muy pequena
jornada. Em amanhecendo vierão dous Judeos Portuguezes visitar a Turca da parte dos
Judeos, que moravão em Sapheto, huma povoação grande, que estava dalli pouco mais de
legoa, a qual em o livro de Thobias se chama Sapheth: & trouxeraõ-lhe duas cargas de
cevada, & quatro carneyros muyto grandes, & gordos, como os ha naquella terra: & em
pago da visita, & serviço, tomáraõ-lhe aos pobres as bestas, & porque se queyxavão,
ameaçaraõ-nos cõ pancadas.
Começáraõ-se os pobres Judeos de lamentar, culpando hu ao outro, vendo-se tão
aggravados, & lastimados, dizendo hum ao outro, se vós não foreis, eu não viera, o outro
pelo contrario dizia, vós tendes a culpa: & cõ este agastamento, como homes magoados
soltàraõ muytas palavras desconcertadas contra os Turcos, & Mouros, em lingua
Portugueza, chamando-lhe perros, & cães, & semelhantes nomes. Vendo eu que eraõ
Portuguezes, cheguey-me a elles, compadecendo-me da sua miseria, & trabalho, & disselhe, que olhassem como fallavaõ, porque não faltaria quem os entendesse, como a mim me
aconteceo com o negrinho: deraõ-me os agradecimentos do bom conselho, & folgarão de os
eu entender para desabafarem, & pedirão-me novas de Portugal, porque a natureza não se
póde negar. Disseraõ-nos, que em Sapheto moravaõ mais de quatrocentos Judeos, a mayor
parte delles nascidos em Portugal, rogando-me muyto quizesse lá dar hua chegada, porque
era muyto perto, & naõ me havia de pesar. Dey-lhe os agradecimentos de sua boa vontade,
promettendo-lhe de ir, se o tempo me desse lugar. Os Judeos partidos, começámos nòs
tambem de caminhar sendo mais de huma hora de Sol sahido, & tendo cami/nhado
479
menos de duas legoas, vimos estar ao longo do Rio Jordão sentadas as tendas dos senhores
Turcos, & caõ muy concertado para a Turca em cuja companhia vinhamos, pelo que nos
361
foy necessario apertarmos com muy grande gosto nosso, por ver que haviamos de gozar do
tanto Rio Jordão, & enfadamento dos almocreves.
362
CAPITULO LXXXIV.
Da Ponte do Patriarca Jacob, & da Vila de Sapheto, & de Nazareth.
ASi de Christãos, & Judeos como de Turcos, & Mouros he chamado aquelle lugar
aonde chegamos, a Ponte de Jacob: & naõ acaso, mas por estar alli hua muy fermosa ponte;
por onde se passa o Jordão, que foy a primeyra que vi em Palestina: a qual mandou fazer o
santo Patriarca, depois que tornou com mulheres, filhos, & riquezas, vindo de
Mesopotamia, de servir vinte annos a seu sogro Labaõ, quatorze pelas mulheres Lia, &
Raquel, & seis pelo gado, como elle mesmo diz, queyxando-se a Labaõ do máo tratamento,
que lhe tinha feyto, & da pouca verdade, que lhe tinha tratado. Vendo-se depois em
Palestina, prospero, & rico, lembrando-lhe que á ida para Mesopotamia passára naquelle
passo o Jordão esquifado, & sómente com hum paõ na mão, que de bordão lhe servia: & á
volta o tornara a passar com tantos bens temporaes, disse, levantando os olhos ao Senhor
Deos, & dando-lhe louvores por tantos beneficios: In baculo meo transivi Jordanem istu, &
nunc cum duabus turmis regredior, quer dizer: Passey este rio Jordão pobre, / 480 sem outra
cousa mais de meu, que hu bordão em que me arrimava, agora torno rico carregado de
familia, & fazenda. Tendo memoria de tantas merces, mandou fazer alli aquella ponte, por
ser a estrada real de Palestina, para toda Siria, & Caldea, passamola da outra parte, & postas
as tendas junto do Rio Jordão, repousamos hum pedaço. Vendo eu que era muyto cedo,
porque não passava de meyo dia, tratey com meu companheyro, que seria bom mandarmos
buscar algum vinho a Sapheto, pois era perto, & tinhamos necessidade de cumprir com a
obrigação daquelle Turco, que traziamos á nossa conta, vindo nòs à sua. Vendo elle meu
parecer ser acertado, pedio-me, que quizesse tomar aquelle trabalho, o que se me converteo
em gosto, pelos desejos grandes que tinha de ver a santa Cidade de Nazareth, aonde foraõ
celebradas aquellas divinas vodas, nas quaes a divina natureza, para nosso remedio se unio,
& ajuntou á nossa miseria humana, encarnando o Verbo Divino nas purissimas entranhas da
Virgem Senhora nossa. Tomey logo por companheyro a Nicolao, & a hum dos nossos
almocreves mais meu familiar: & nos partimos com proposito de tornar o mesmo dia posto
que fosse de noyte, porque naquella parte não andão Arabes, & a jornada era pequena.
363
Chegamos a Sapheto, aonde os Judeos nos fizerão grande festa, & me levárão á sua
Sinagoga, que tinhão muy be concertada, & depois de nos recrearmos cõprando a bo preço
o vinho, q me pareceo necessario, nos partimos para Nazareth, q está dalli menos de legoa.
Como alli moravaõ muytos Christãos dois da terra, pela santidade do lugar, receberão-nos
cõ muyta alegria, & mais conhecendo a Nicolao, q alli havia estado outras vezes em
cõpanhia de Frades, & sabendo, q nos /
481
não queriamos deter, antes determinávamos de
logo nos tornar, nos levárão á Igreja, aonde a Virgem N. S. mereceo ser do Anjo S. Gabriel
saudada, & feyta Madre do Eterno Deos, a qual Igreja está muy arruinada, sómente à parte
do Norte tem hua parede inteyra, q se sustenta com outros edificios antigos, que alli estaõ.
Debayxo da cappella mòr bayxamos por hua escada de sete degraos a outra cappella
sobterranea, na qual quando entramos, tedo o rosto ao Norte, estaõ duas columnas de
marmore muyto altas, separadas hua da outra quatro palmos: as quaes sinalão o lugar aõde
foy feyto, & obrado o sacratissimo mysterio da Encarnação do Filho de Deos, hua daquellas
colunas aonde estava o Anjo, & a outra a Virge N. S. Estão alli sómente os alicerces
daquella bedita camara, mas ella està todo inteiro em Italia tatas milhas de Ancona, aonde
agora chamão N. S. do Loreto, a qual foy alli levada pelos Anjos, & faz a Virgem gloriosa
muytos milagres naquella sua casa. Juto a cada hua das colunas arde de cõtinuo hua
alãpada, & te cuydado dellas, & do santissimo lugar dous Caloiros, q alli de continuo estão
servindo ao Senhor cõ grade devoção, & solicito cuydado. A povoação de Nazareth pôde
ter ao presente alguns sessenta visinhos, todos Christãos, sugeytos á Igreja Grega.
Ganhámos alli remissaõ de todos os peccados, se ao Senhor Deus aprouve, & não nos
faltou elle com sua misericordia, consolando-nos espiritualmente naquelle santo lugar, do
qual me parti com muyta saudade, magoado por não merecer visitallo mais de espaço. Dalli
nos levárão ao ultimo da povoaçaõ, & nos mostràraõ o lugar, aonde os Judeos compatriotas
de nosso Redemptor o quizerão lançar da rocha abayxo: porque pedindo-lhe elles, que
fizesse /
482
em Nazareth milagres, como tinha feyto em Capharnau, lhe respondeo a
sabedoria do Eterno Padre, que nenhum Profeta era em sua patria, & propria natureza
aceyto, como o escreveo o Evangelista S. Lucas. Tambem nos mostràrão a Sinagoga, na
qual entrando o Senhor o dia do sabbado, sendo-lhe offerecido o livro do Profeta Isaias, &
abrindo-o, achou logo escrito aquillo, que diz: Spiritus Dominem super me, propter quod
364
unxit me: evangelizare pauperibus misit me, sanare contritos corde: prædicare captivis
remissionem: & cæcis visum, quer, dizer: O espirito do Senhor sobre mim, pelo qual me
ungio com o oleo da sua graça, mandou-me dar boas novas aos pobres: dar remedio aos
contritos de coração, pregar perdão aos cativos do peccado: & aos cegos vista, &c.
Despedidos daquelle lugar, nos tornámos a Sapheto, aonde chegámos em se pondo o
Sol, & por ser tarde, & irmos cansados, & nos importunarem muyto os Judeos, que nos
ficassemos, dizendo, que bastaria irmos hum pouco de madrugada, se temiamos, que se iria
a Turca, ficámos alli aquella noite, & nos agasalhárão muito bem em casa de hu Judeo meu
natural, que sendo moços andámos ambos na escola de outro Judeo que lá naquellas partes
morreo, segundo meu hospede me affirmou, honrou-se muyto o Judeo de eu aceytar sua
pousada, & tratoume nella com muytos mimos, & muyta cortesia.Vierão aquella noyte ter
cõnosco muytos Judeos, dos quaes alguns começarão logo a altercar, & porfiar comigo as
cousas da sua ley cantada, & sobre as da nossa bendita, que este he o seu commum
costume, mas eu como já algumas vezes me tinha achado com Judeos em semelhantes
porfias, & sabia muy bem, que nenhum delles pertende saber a verdade, atalhey-/lhe
483
com lhe dizer, que tinha necessidade de me agasalharem, & recrearem, & não de me
cansarem com porfias, & contendas sem proveyto, pois nenhum delles tinha proposito de se
fazer Christaõ, se o eu vencesse, porque tinha para mim serem todos Judeos de opinião,
sem quererem admittir razão, ainda que a palavra para elles foy hum pouco dura, deraõ-me
muyto louvor, & disseraõ, que ainda naõ tinha negado o ser Portuguez, pois fallava tão
claro, & que me naõ respondiaõ, porque todos desejavaõ mais de me servir, que de me
aggravar. Vieraõ-me tambem aquella noyte agasalhar alguas Judias minhas naturaes, que
com lagrimas me fizeraõ a festa, lamentando-se, & dizendo, que seus peccados as haviaõ
tirado fora de Portugal, não para a terra da Promissaõ, como ellas cuydavaõ, mas para a
terra da desesperaçaõ, como com seus olhos viaõ, & com suas miserias experimentavaõ.
Muyto ante manhaã nos partimos de Sapheto, & tornámos aos nossos, que á ponte de Jacob
nos estavaõ esperando, os quaes com muyta festa nos receberão: & delles soubemos logo,
como a Turca tinha determinado estar alli dous, ou tres dias. Aquelle mesmo dia me disse
hum Judeo Portuguez, que abayxo da ponte andava em hum pisão, que nós caminhavamos
por aquellas partes com muyto perigo, ainda que em companhia daquelles Turcos, q não
365
nos podiaõ ser bons em qualquer trabalho: porq tinhaõ novas, que o Grão Turco tinha
quebradas as pazes com os Venesianos, ou elles com elle, por tanto que nos deviamos pòr
em cobro com tempo, em quanto a cousa andava de calada. Dissimuley eu com o Judeo, &
lhe disse, que já em Hierusalem havíamos tido aquella nova: mas que já se sabia ser falsa,
por tanto que não fallasse mais em tal cousa, nem disto quiz eu /
484
dar conta aos
companheyros, por lhe não dar turvação. Aquelle mesmo dia vierão ter á ponte como
duzentos Armenios entre homẽs, & mulheres, que de Armenia hiaõ ter a semana santa a
Hiserusalem, como custumão as mais das naçoens de Christãos Orientaes: & com elles hia
hum Frade da nossa familia Hierosolimitana, que vinha de Alepo, aondeo Padre Guardiaõ o
havia mandado a hum negocio de importancia por ser velho, & de muyto recado: chamavase Frey Nicolao, de nação Macedonico. Este Padre, em me vendo se veio a mim com os
braços abertos, porque eramos grandes amigos, & depois de alguas praticas, & perguntar
novas da familia, me tomou de parte, & em grande segredo me disse o mesmo, que o Judeo
me tinha dito: & que nos deviamos de acolher com tempo, porque verdade era serem
quebradas as pazes entre o Graõ Turco, & osVenesianos, & que já muytos mercadores
assim de Alepo, como de outras partes, tinhão postas suas fazendas em salvo: & algũs eraõ
já fugidos para Chipre. Roguey-lhe que naõ dissesse cousa algua daquellas aos nossos
companheyros, pelos naõ inquietar, pois já não tinhamos outro remedio depois de Deos,
senaõ irmos com aquelles Turcos atè Damasco, & dalli iriamos buscar embarcação no
primeyro porto de mar, que achassemos. Cumprio elle á risca, o que lhe pedi: & a nenhum
dos nossos fallou, nem ainda para isso teve lugar, porque a sua companhia hia andando seu
caminho, posto que na ponte os detiverão algũ pouco com a paga do cafarro, que nos não
pedirão por causa da companhia em que vinhamos. Tambem com esta segunda mà nova me
calley, porque nem a meu cõpanheyro o quiz dizer, porque se lho dissera, sem falta
esmorecera. Aquella manhaã veyo alli ter hum Turco /
485
muy principal: trazia cinco, ou
seis de cavallo comsigo, & tambem dous cavallos á destra, ricamente ataviados, o qual nos
disseraõ, que era Chaus da Corte do Grão Turco, que he hua dignidade honrosa.
Fez-lhe muyta festa o outro Turco sobrinho do Baxà de Damasco: & convidou-o a
jantar comsigo, & nos tomàrão a melhor tenda, que traziamos, & lha armárão á borda do
Rio Jordaõ, bem junto da agua, dous tiros de pedra separados da outra companhia. Fomos
366
meu companheyro, & eu á festa, sem sermos convidados & lhe levamos o costumado
barrilete de vinho, que foy a melhor iguaria, q veyo á mesa: posto que tinhão muyto, & bom
pescado, tomado daquella hora no Jordão. O Chaus nos mostrou alli muyta amisade, & nos
festejou grandemente com dizer duas, ou tres vezes a Oraçaõ do Padre, nosso em Latim, &
no cabo fallando hora com meu companheyro, hora comigo, dizia Cacis, melia, melia: que
quer dizer, bom, bom, & pelo contrario nos dizia: Cacis, mahamed marsus, marsus, & com
isto dava hua grande risada. Estando nòs com este passatempo, passou o Governador de
Hebron com suas mulheres, & casa, que hiaõ caminho da Corte do Graõ Turco, com tanto
fausto, que levava cinco, ou seis andas com as mulheres, & algus vinte de cavallo, & muyta
gente de pè, & charamellas dobradas, que começárão a tanger, antes que chegassem á
ponte, atè q de todo passárão hu bõ pedaço donde estavamos, sem darem mais mostra de si,
nem fallarem com algua pessoa da nossa companhia, o que aqui escrevo, por dar noticia do
fausto, & policia com que se trataõ os Turcos na sua terra.
Aquelle dia os nossos almocreves, vendo-se com tanta tardança desesperados, nos
importunavão, que em ama/nhecendo
486
nos fossemos, jurando; que naõ tinhamos perigo
algum no caminho, obrigando-se a sem elles nos levarem a Damasco: & que se não
quizessemos, lhe dessemos o necessario para comerem, porque já tinhaõ os allugueres
gastados com tantas detenças. Pareceo-nos que tinhaõ justiça, & assentámos de lhe dar mais
hum tanto cada dia, que não fizessemos jornada inteyra: & com aquella determinação
passamos aquella noyte: poiio que o Christaõ Nicolao não quiz mais esperar, mas tanto que
chegámos de Sapheto, se partio caminho de Damasco.
367
CAPITULO LXXXV.
De como nos partimos da ponte de Jacob para Damasco, & do que passámos no caminho.
AO dia seguinte em rompendo a alva, muy fóra do q cuydavamos, nem
esperavamos, fizeraõ sinal com a trombeta, & todos se começarão a põr em ordem de
caminhar, do que muyto nos alegrámos, & fizemos o mesmo. O costume em semelhantes
companhias de muyta gente, he estarem todos promptos, & aviados para a hora da partida,
esperando, que lhe fação sinal; se lho fazem, no mesmo ponto caminhão, de outra maneyra
deyxa-se estar. Partidos da Ponte de Jacob, começámos a entrar na terra do bemaventurado,
& pacientissimo Job, antigamente chamada Hus, & agora Huns, a qual cahe na parte, que
foy dada ao meyo Tribu de Manassés, filho mais velho do Patriarca Joseph, que ficou ao
dividir da terra de Promissaõ pelo grande Capitaõ Josuè, da outra parte do Rio Jordão.
487
Teriamos caminhado huma legoa, quando em hua campina junto a hum lugar
chamado Cedar, de hum filho de Ismael, que o edificou: vimos estar postas, & armadas as
tendas para a Senhora Turca, & os seus, & os criados do Turco sobrinho do Baxá nos
começarão a acenar, que fossemos para onde elles estavão. Ficámos nòs muy confusos, sem
nos sabermos determinar, no que haviamos de fazer, posto que os almocreves porfiavão, &
te matavão muyto, que nos fossemos. Estando assim parados sem nos sabermos determinar,
chegou a nòs o Turco Chaus da Corte, de que atraz fica dito, & nos disse, que era muyto
amigo dos Francos, & sempre o fora, & que hia para Damasco, que se quizessemos ir em
sua companhia, nos promettia de nos levar sobre sua cabeça, & em dizendo isto poz a mão
no turbante, que nella levava, em fé do que nos promettia. E quanto á companhia daquella
mulher, nos affirmava não terem, aquelles os oyto dias, que entrava em Damasco, & mais
que a sua companhia della era muyto perigosa para nòs, por causa do vinho, que
levávamos, & dávamos ao sobrinho do marido: porque se ella o vinha a inventar, sem falta
haviamos de perigar, por ella ser muy inteira nas cousas da sua ley, & seu marido sobre as
cousas do vinho muy justiçoso. Agradecemos-lhe muyto a boa vontade, que nos mostrava,
& o conselho, que nos dava, & aceytámos a promessa, que nos fazia, & dèmos muytos
louvores ao Senhor Deos por tamanha mercè, como aquella, & assim sem mais esperarmos
368
pelo outro Turco para nos despedirmos delle, nos partimos muy alegres, com a companhia
do Chaus, que nos levou comsigo com muyta cortesia.
Teriamos caminhado pouco mais de legoa, quando /
488
chegámos a hum lugar
chamado Subta, do qual foy natural Baldac Suitis, hum dos tres amigos do pacientissimo
Job. Já quasi noyte, chegámos a hum lugar de atè cincoenta visinhos, aonde vimos o
sepulchro do mesmo santo, todo inteyro, & feyto a modo de pyramide ainda q em algua
maneyra danificado do tempo por sua muyta antiguidade. E achámos diante do lugar
aposentados no campo, como quinze, ou dezaseis mil pessoas, entre homes, & mulheres,
todos Mouros em magotes com seus fogos feytos, que parecia exercito de alguns trinta mil
homens. Passamos por entre elles com muyta pressa, indo diante o Chaus com os seus &
como os Mouros tinhaõ tomado o caminho de hua & outra parte, hiamos infiados por elle,
huns detraz dos outros, & quasi não podiamos aturar aos dianteyros, por irem em muyto
bõs cavallos, porque naõ deyxaraõ algus Mouros, & Mouras de nos afrontar co palavras,
tanto q conhecèraõ q eramos Christãos Francos. O Chaus entrou logo no cabelaõ do lugar q
era muyto grande, & fermoso: mas achou-o tomado pelo q sem se apear se tornou a sair por
escusar brigas & foy ter a casa de hum Mouro, & nòs apoz elle & segundo a familiaridade,
que alli mostrava quizme parecer q dantes se conheciaõ: posto q aquelles taes em toda
Turquia não teme, nem devem, & se mostraõ senhores de quanto querem. Elle se aposentou
dentro na casa do Mouro, & logo lhe alcatifarão o lugar do seu aposento, mas nòs ficámos
de fóra em hum patèo grande, como curral, q tambem se fechava de dentro. Em quanto os
almocreves, & os outros companheyros cocertavaõ o fato, sahi-me eu fóra por ver aquella
multidão de gente & procurar de saber o que alli faziaõ, ou para onde hia: veyo ter comigo
Nicolao Christaõ La/tino 489 , que á ponte de Jacob se havia de nòs apartado, o qual aquella
tarde tinha alli chegado: & estava no campo aposentado com huns Armenios, que hiaõ ter a
semana santa a Hierusalem. Este Nicolao me disse, que toda aquella multidão de Mouros,
tambem hia em romaria a Hierusalem a visitar o sepulchro de nossa Senhora, por voto que
tinhaõ feito o anno atraz passado, por hua grande peste que houve em Damasco, da qual a
Virgem nossa Senhora os havia livrado, por se prometterem a ella, segundo elles
affirmavaõ: & que seriaõ atè dezaseis mil pessoas, antes mais que menos. Sendo horas de
me recolher, me despedi de Nicolao, com lhe dizer, que pela manhãa nos veriamos: mas ,
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nunca mais nos encontrámos. Tornando a entrar em casa, entrarão tambe dous Cacizes
velhos aonde estava o Chaus: & hum delles lhe começou a prègar da maldita feyta de
Mafamede, reprendendoo com algum; modo de cortesia, porque nos trasia em companhia,
& vinha por nossa guarda, sendo nòs huns porcos inimigos de Mafamede. E vendo que o
Chaus fazia pouca conta das suas palavras, nem se dava por achado dellas, tirou hum delles
de hum taleygo hua cobra muyto grande, grossa, & fea, & começou de lhe fazer medo com
ella. O Chaus se agastou sobre maneyra, & se levantou com muyta ira, & lançando mão de
hum pao lhe disse: Sabes tu como vay, dum cão, tomarey a cobra que tu trazes encantada
como festiceyro que és, & quebrartehey a cabeça com ella: tu cão cuydas, que sou eu
minino, que me hás de fazer biocos com suas feytiçarias? Vendo os Cacizes o Chaus
agastado daquella maneyra, & os seus em pè com os alfanges á ilharga, lançarão a fugir
com muyta pressa. Elles hidos, o Chaus nos disse, que não temessemos cousa alguma / 490
em sua companhia, porque elle cumpriria á risca o que nos tinha promettido, levando-nos
muy seguros atè Damasco. E accrescentou mais, dizendo: Esses perros dos nossos Cacizes
tudo saõ feitiçarias, senaõ fóra por vos dar turbação, sabey que mo houverão muyto bem de
pagar. Passámos aquella noyte com muyto enfadamento ao sereno entre as besta, & huns
camellos, q alli tinha o dono da pousada, em amanhecedo nos partimos, & já não havia
rasto dos Mouros romeiros, porque tinhão muyto madrugado. Caminhámos com muyta
alegria vendo, que nos hiamos chegando a Damasco, cidade que eu muyto desejava ver, &
a horas de almoço tirámos do que levávamos, & convidamos o Chaus com a metade de
hum paõ, & hum pedaço de cebola, o que elle muy alegremente aceytou, como se lhe
déramos a comer algua estimada iguaria & foy comendo comnosco pelo caminho, atè que
chegámos a hum ribeyro de agua, & alli pedio a hu seu criado lhe desse della, o qual lha
deu em hua bolsa de couro, que os Turcos costumaõ trazer por caminho, & lhe serve de
jarro. Os nossos companheyros seculares puseraõ-se de vagar a dar de beber ás
cavalgaduras & almoçar, mas nòs o Padre meu companheyro, & eu, & hum Clerigo
Romano, que vinha na nossa companhia, seguimos sempre o Chaus, ainda que caminhava
muyto depressa em hum bom cavallo, que levava com os seus, que hiaõ da mesma
maneyra, & com muyto trabalho o aturavamos. Huma milha da Cidade á mão direyta
desviado do caminho quasi dous tiros de pedra, vimos estar hua Igreja meya derrubada, &
370
hu padrão muyto grande junto della, o qual sinalava o lugar aonde nosso Redemptor
appareceo ao Apostolo S. Paulo, quando lhe disse; Saulo, Saulo, porque me / 491 persegues.
Os nossos companheyros tivèrão naquelle pequeno caminho alguns enfadamentos, por
causa, que muytos Mouros andavaõ no campo trabalhando, & saindo ao caminho, vendo
que hiaõ sós sem guarda, com muyta importunação lhe pedião casarro, não lho devendo, &
duas, ou tres vezes houveraõ de vir ás porradas, segundo depois nos contarão. Nòs seguindo
sempre o Chaus chegámos com elle atè as portas da Cidade, aonde com muyta cortesia se
despedio de nos, convidando-nos a que fossemos pousar com elle, do que lhe dèmos
muytos agradecimentos.
371
CAPITULO LXXXVI.
Da muy famosa Cidade de Damasco, & do tempo que nella estivemos.
SEriaõ horas de meyo dia, quando chegámos á Cidade de Damasco, taõ nomeada
em todas as partes Orientaes, assim por sua muyta antiguidade, como por sua nobreza, &
grades riquezas. Antes que nella entrassemos passámos huas tres cercas, que tem de redor
de si: feytas de jasmins muy antigos, & grossos, liados, & tecidos huns com outros, com
tanto artificio, & curiosidade, que juntamente com servirem de fortaleza, que não haverá
exercito, ou artilharia, que os rompa, senão com muyto trabalho: servem tambem de
ornamento, & frescura, indo entre elles muytos jardins, & arvoredos. Entrados dentro na
Cidade, foy necessario esperar pela cõpanhia, por causa, que vinha com ella o mancebo
Frances, que nos servia de lingua, sem o qual não podiamos bem negocear /
492
nossas
cousas, posto que pela communicação de tanto tempo, já entendiamos muytas palavras.
Chegou a nossa espèra a tanto, que quasi perdiamos as esperanças, porque estivemos alli
esperando atè as quatro depois do meyo dia, porque nossos companheyros, alem da
particular tardança, que fizerão, acertarão de entrar na Cidade por outra porta, sem saberem
parte de nòs, como nòs não sabiamos delles: porque os almocreves, como sabião muyto
bem a Cidade, os levárão por outra porta, que estava mais perto da pousada. Neste tempo,
que estavamos (como dizem) á vergonha, sem sabermos, o que havia de ser de nòs, pela
Cidade ser muyto grande, & não termos quem nos guiasse, éramos muyto bem olhados de
quantos passavaõ, sem haver quem nos dissesse hua má palavra: antes houve quem nos
quizesse convidar: & pedindo agua, no la deraõ com muyta cortesia. Eu a todos os que
passavaõ perguntava por Judèos, hora por este nome, hora por Hebreos, & isto o melhor
que sabia: o que fazia por saber que naquella Cidade havia muytos : & que todos ainda que
de diversas nações, sabe muito, ou pouco fallar Hespanhol, ou Italiano: porq encontrandonos com algu, sem duvida nos encaminharia, mas não houve quem me entendesse, nem
soubesse dar razão do q perguntava. Quiz N. S. q já sobre a tarde passou por alli hu
mancebo Judeo, o qual eu conheci pelo sinal, q trazia: falley-lhe logo, & respondeo-me em
Italiano mal pronunciado, dey-lhe conta do nosso enfadamento, rogado-lhe q nos quizesse
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encaminhar: veio de muyto boa vontade, & nos disse ser escusado esperar alli pelos
companheyros, porque como a Cidade tinha muytas portas, possivel seria entrare por algua
das outras, & estarem já descansados na /
493
pousada, & levando-nos por muitas ruas
despovoadas de gente, por causa q a Cidade te as ruas publicas muy livres para se poder
andar por ellas de dia, & de noyte, ficando as casas, & habitações em outras ruas separadas,
& secretas: as quaes todas em anoytecendo se fechão a bom recado, ficando as portas
principaes, por onde as taes ruas entraõ, postas nas ruas publicas. Chegámos a hua porta,
pela qual entraõ ao melhor, & mais povoado da Cidade, porq o que atè alli tinhamos
andado, era como arrabaldes, ainda q cercados de muros muy altos, & fortes: & naquella
porta achámos nossos cõpanheyros, cõ cuja vista ficámos muyto alegres, os quaes estavaõ
acabado de pagar o casarro: & de lhe darem vista ás cousas q levávaõ, por ser assim
costume, & por saberem se levavaõ mercadoria defesa, o q se podia presumir de homes, q
andavão por terras tão estranhas cõ cargas, & caixas encouradas, & com bugios, &
papagayos. Pagámos nòs tambem nosso casarro, q foy hu madim sómente por pessoa, como
pagárão nossos cõpanheyros: o qual arrecadava hum Turco todo braco de velhice, mas a
mais fermosa, & veneravel pessoa de homem, que tenho visto, de q lhe vinha ser sobre
maneyra amoroso, & bem criado. Apartando-nos delle, entrámos por hua rua toda serrada,
que sómente tinha duas portas, hua no principio, outra no fim, que tambem a seus tempos
se fechavaõ: cuberta por cima com telhado de duas aguas, com suas lucernas para lhe entrar
a claridade: & no meyo daquella rua estava o caõ aonde haviamos de pousar: & ella era de
Judeos mercadores, toda chea de logeas de ricos passos de seda, & tellas de ouro, & prata.
Naõ teriamos passado vinte casas, quando de hua dellas sahem cinco, ou seis Judeos
Portuguezes, dizendo com grande /
494
alvoroço hu delles: Padre Fr. Pantaleaõ, quem vos
trouxe cá, quem havia de cuidar, q haveis de vir a esta terra? Foraõ-se todos comnosco atè o
cão, que alli estava perto, & aquelle que me fallou por me conhecer de outra parte, & todos
os mais me abraçarão, & festejáraõ muyto: ao que acudirão logo outros das suas logeas com
muyta alegria, & com elles hu moço de bem pouca idade, que por me dizer, não haver dous
annos, que sahira de Portugal, lhe perguntey donde era, & porque se ausentára. Disseme ser
natural de Braga, & que fugira, porque queymáraõ seu pay, & tinhaõ presa sua mãy. Da
mesma maneyra outro mancebo muyto be disposto, sem lhe perguntar cousa alguma, me
373
disse, q era natural de Lagos, Cidade do Algarve, & q sempre fóra muyto bom Christaõ:
mas q vendo seu pay preso, & depois por Judeo queymado, logo se fizera Judeo, & fugira
para Turquia, por viver livremente na Ley de Moyses. Perguntey-lhe, porque seu pay o não
tinha ensinado a ser Judeo, antes que o prendessem: respondeo-me, que os pays em terras
de Christãos nunca se fiávão dos filhos, senão depois que os viaõ ir chegando aos vinte &
cinco annos. Estando nestas perguntas, & repostas, começarão os outros Judeos de altercar,
& porfiar, como tem de costume: mas atalhey suas altercações, com lhe dizer, que era tarde,
& vinhamos casados, & tinhamos mais necessidade de repousar, que de altercar, & com
isto os despedi. Os nossos almocreves tambe á mesma hora se despediraõ, & partirão de,
nòs, & forão buscar pousada a casa de Christãos da terra seus conhecidos: & nòs ficámos
aquella noyte no cão, & posso dizer cõ verdade no chão, porque alli não vos dão camas em
que durmais, mas sómente casas, & camaras em que vos / 495 recolhais, & descanceis. Este
cão, em que na Cidade de Damasco descansamos, era como huns paços reaes, com muyta
quantidade de casas, & aposentos, todas muyto bem forradas, & fechadas com suas chaves
mouriscas. No bayxo tinha hua claustra muy grande, & no meyo della hua fonte de
marmore muyto fermosa, curiosa, & de boa agua. Tinhão cuidado destes aposentos certos
Mouros, com renda, & premio, com que se sustenta o cão, ou camlebaõ: ainda que sempre
convem dar algua cousa aos que vos entregão a pousada, para que mostrem bom rosto aos
hospedes, mas o que lhe dais tomão ás escondidas, porque tem pelo tomarem muyta pena.
Trabalhão elles, por terem sempre muy limpos aquelles apotentos, & no verão os regão
muytas vezes, para recreação dos passageyros: porque o não fazerem assim, sem quem
attente por isso, & sentem-no na paga.
Não se deve ter por pequena humanidade, achardes entre infieis pousada certa, &
segura, & mais em huma Cidade tão populosa, sem pagardes mais por ella, que seja pelo
amor de Deos: & não como na nossa Europa, aonde entrais em estalagens, que vos levão,
como dizem, couro, & cabello: sem vos satisfazerdes da comida senão com esgotardes a
bolsa: & se vos ha de tomar a noite nellas, pela menhãa vos achais comidos das cinches, &
cubertos de pulgas, & piolhos, & ás vezes com as bolsas cortadas, & as carnes para muyto
tempo enfermas da sujidade das camas.
374
Aqui nestas não ha nenhuma cousa destas, o comer mandaylo buscar à praça: aonde
o achais de qualquer forte, que quereis, fresco, & barato, sem enfadamento.
Passámos aquella noyte quietamente: & ao dia seguinte não era sahido o Sol,
quando já no patèo debayxo /
496
estavão esperando por mim alguns Judeos Portuguezes
huns por me mostrarem gasalhado, outros por saber novas, aos quaes roguey que nos
deyxassem primeyro cumprir com as obrigações do Officio Divino, & que nos fariaõ
mercè de entre tanto nos descobrirem algum Chistaõ mercador Italiano, se o houvesse na
terra por nos ser necessario: & que depois não nos faltaria tempo para fallar, & porfiar
quanto quizessem: porque tinhamos determinado estar alli algus dias, por ver a Cidade, &
saber suas particularidades. Fizerão-no elles assim: & não tinhamos bem acabado de dizer
nossas Horas: quando nos entra pela porta hu mercador Venesiano muyto honrado:
chamado Misser Galeaço, com o qual os senhores Italianos nossos companheyros receberão
grande prazer, & contentamento: porque foy conhecido de outro Venesiano Misser Carlo
nosso companheyro. O Galeaço depois de nos perguntar donde vinhamos, & para onde
caminhavamos: a primeyra nova, que nos deu foy estar secretamente avisado, serem as
pazes quebradas entre o Grão Turco & Venesianos, & q á muytos mercadores de Alepo &
de outras partes eraõ fugidos: & elle andava de dia em dia para fazer o mesmo, mas que se
detinha impedido de negocios pelo que nos rogava, & pedia, nos detivessemos alli dous
pares de dias, vendo a Cidade que tinha cousas dignas de serem vistas, & que entre tanto
elle se daria pressa por ir em nossa companhia, do que nos não havia de pesar, porque sabia
muyto bem a terra, & o modo que haviamos de ter para nos passarmos a Chipre, deyxando
a Suria. Aqui descubri eu o aviso, que a Ponte de Jacob me havia dado o Padre Frey
Nicolao, que vinha de Alepo em companhia dos Armenios; & o que me deu o Judeo
Portu/guez 497 , que junto do Jordão andava no pisão; escusando-me de lho não ter dito, por
lhe não dar pena, & inquietação. Hus o tomarão bem, outros mal; mas caindo na conta da
minha boa tenção ficámos muyto amigos. Aquelle dia nos banqueteou o Galeaço na sua
casa com muyta festa: & depois de comer nos tornámos á pousada, para concertar nosso
fato, & prover do necessario: mas a mim tomáraõ-me os Judeos o porto: & me detivèrão atè
noyte, sem me deixarem entrar em casa cõ perguntas, & porfias. Todo este negocio era dos
Judeos Portuguezes : que os Castelhanos, dos quaes havia muytos, não se curávão de mais,
375
que de ouvir, & callar das portas das logeas, ainda que depois ao dia seguinte, & outras
vezes em quanto alli estivemos, apertarão tanto com meu companheyro, que o vi hu dia de
agastado lançar lagrimas por causa das blasfemias, que contra nosso Redemptor diziaõ: o
qual, ainda que era letrado, havia pouco tempo, que acabara de cursar, & era pouco lido nas
divinas letras: & para aquella canalha com saberdes algum tanto da Biblia, & não serdes
covarde, os fazeis callar, sem saberem responder, nem darem razão de cousa algua por
serem ignorantissimos. Alli achey hum Judeo, que á minha partida de Lisboa deyxey na
mesma Cidade, vendendo cominhos, & cousas desta sorte nas tendas, que estão na ribeyra
abayxo dos açougues. Julgue quem isto ler, o que aquelle Judeo podia saber das cousas da
ley: mais que Judeo morreo meu pay, Judeo quero eu morrer, & desta maneira saõ quasi
todos os outros, como eu disse a hum Judeo velho, que secretamente com outros huma só
noyte veyo ter comigo a me prègar, & dizendo, que se espantava como sendo eu letrado, &
tão lido nas cousas da sua ley, me não fazia Judeo, /
498
que se quizesse fazerme Judeo, &
ficarme alli cõ elles me fariaõ seu Rabbi, & todos me servirião, & dariaõ das suas fazendas.
Não me mostrey agastado do conselho, mas respondi-lhe, que sendo eu letrado, como elle
dizia, & não me queria fazer Judeo, como elle sendo o mais ignorante de quantos alli havia,
se não fazia Chistão, pois eu o era. Respondeo-me, que o não fazia, porque sabia a verdade
do que cria: ao que lhe repliquey, não por isso: mas porque seu pay, & avòs o forão o és tu,
ao que me respondeo outro Judeo velho meu natural, o qual por sua mansidão chamavão
Job queyra Deos meu Padre Frey Pantaleaõ, não seja isso assim. E porque a historia vay
hum pouco Judaica, & pode ser a lea, quem lhe pese estender-me tanto nella quero-a
deyxar, com dizer sómente duas cousas, callando muytas, que bem pudera dizer. A
primeyra dellas he, que como as nossas disputas, que durarão todos os dias, que alli
estivemos, mais erão porfias, que querer saber a verdade, eu lhe perguntey estando todos
juntos, qual era a causa, porque se chamavão Judeos: & qual a porque se chamavão
Hebreos: que foi questão quasi como a outra, do q perguntava, porque tinha o mosquito
mais pès, q o elefante; em nenhua maneira me souberão dar reposta, & declarado-lho eu,
me tiverão por grande letrado, sendo ellas tão claras, q qualquer mediano entendimento as
pode entender, se folgar de ler livros. A segunda foy, que ao terceyro dia, depois de
estarmos muyta parte delle quebrando a cabeça com suas Judaicas, & ignorantes perguntas,
376
hum Judeo de Tavira, meu conhecido, disse aos outros Judeos, tendo-me lastima: Senhores,
vejo que com vossas porfias sem proveyio estais atormentando ao Padre nosso natural, sem
haver quem entre /
499
vòs lhe faça algum serviço: que se eu tivera aqui minha casa, não
passara desta maneyra. Ao q acudio logo outro Judeo de meya idade, natural de Setuval,
dizedo: eu , atègora de cobarde lho não tenho feyto, mas se o Padre Frey Pantaleão me
quizer honrar com ir a minha casa, eu lhe farey todas as festas, & serviços a mim possiveis,
ainda que não como elle merece, & mais estando minha mãy, & irmãas muy desejosas de o
ver, & me tem muyto rogado, que lho leve a casa. Dey-lhe eu os agradecimentos, mas não
quiz aceytar a pousada, nem cousa della. Era este Judeo tão moderno, & de tão pouco ido
de Portugal, que trazia os olhos enfermos da carga do turbão da cabeça, por andar ao modo
dos Judeos honrados daquellas partes & affirmáraõ-me ser o mais rico delles todos.
377
CAPITULO LXXXVII.
De alguas particularidades, que vimos na Cidade de Damasco.
SEgundo a opinião de muytos, a Cidade de Damasco, foy principiada por hum
homem chamado do mesmo nome, filho de Eliezer, procurador, & mordomo do Patriarca
Abrahão, como lemos no livro do Genesis. E com ser tão antiga, & em muytas partes da
Escritura Sagrada se tratar da sua nobreza, & de como foy Cidade Real, & cabeça de toda
Siria: atè o tempo de nosso Redemptor, & ainda depois, como diz o Evangelista São Lucas
no livro dos feitos Apostolicos, contando como o Apostolo São Paulo, a quem então
chamavão Saulo, hia de Hierusalem a Damasco /
500
com cartas dos Summos Pontifices
para prender os Christaõs, que nella achasse, sempre esteve em seu ser, & nobreza, posto
que em alguas historias lemos, que foy cõbatida, mas nunca arruinada. Porèm ainda lhe está
guardado seu trabalho, porque de necessidade se ha de comprir nella, o que lhe tem
profetizado Isaias, dizendo: Onus Damasci, ecce Damasçus definet esse civitas, & erit sicut
acervus lapidum in ruina, quer dizer: Profecia de Damafco: ex aqui Damasco deixará de ser
Cidade, & sera como hum monte de pedras, que cahem sobre outras.
Tratando do seu presente estado, digo, que he a mais nobre, & populosa Cidade, que
tenho visto, posta em sertaõ. A gente commummente bem criada, & acondicionada, &
amorosa para os estrangeyros. Aconteceo-nos andando-a vendo, huns moços Mouros,
dizerem-nos vilanias, & máos ensinos, como cá tambem muytas vezes fazem, quando
passaõ Religiosos: o que ouvindo hum Turco, correo a elles, & deu-lhe muyta bofetada, &
acudindo os pays ao choro dos filhos, & sabendo o que passára, de novo os tornarão a
castigar: & com estas cousas andávamos pela Cidade tão seguros, como se foramos
naturaes da terra. Roguey eu ao Judeo de Tavira, que nos quizesse acompanhar, mostrandonos, o que havia para se poder ver; o que elle fez de muyto boa vontade os dias que na
Cidade estivemos. São os seus tratos muyto grandes, de riquissimas mercadorias, que alli
vem ter em cafila, assim da India Oriental, pela via de Bacora, como de outras partes.
Affirmáraõ-me haver dentro na Cidade cinco, ou seis mil teares, de todo modo, &
invenções de sedas, muy ricos brocados, toda a sorte de tellas de ouro, & prata. Entrámos
378
em alguns teares, & vi hua espantofa curio/sidade
501
, porque toda a madeyra era pintada,
& dourada, os liços, & pentens, & cordas, de seda de cores, & os pesos feytos de vidro de
diversas cores, & invenções, & o vão de dentro cheyo de area, fazem-se tambem na Cidade
muytas maneyras de chamalotes, & as mais ricas alcatifas de todo Levante, & ha nella
muytas logeas de olanda, & panos de algodão. Destas cousas nos mostráraõ alguas ruas, &
tendas tão ricas, que se podia julgar não haver mais que ver no mundo.
Tem hua cutellaria, aonde fazem a farramenta, & facas Damasquinhas, tão
nomeadas em todo o Oriente, toda a sorte de terçados, & alfanges, com milhares de
invenções de cabos de prata, & outras curiosidades. Te hua ouvezaria muyto grande, á qual
entraõ por huma só porta, nem tem outra entrada, ou sahida, aonde de continuo trabalhão
como quinhentos homes, com seus moços, & obreyros, aonde vimos a mais riqueza, q se
podia ver. Achámos alli alguns Judeos Portuguezes, q havião aprendido em Lisboa, os
quaes nos andarão mostrando com muyta familiaridade quantas peças, assim de ouro, como
de pedraria, havia na ouvezaria. Tem a Cidade entre muytas, & muy curiosas Mesquitas, a
mayor, & mais principal edificada no mesmo lugar, aonde antigamente, no tempo dos Reys
de Israel, & em tempo de Rasin, Benadab, Azael, Reys de Suria, esteve o templo do idolo
Remon, a qual Mesquita he de tanta grandeza, & magestade no exterior, que causa espanto.
O patèo, & adro de fóra todo he cuberto de ouro, & esmaltes, & da mesma maneyra as
paredes atè o chão. No patèo entramos, & chegámos atè a porta sem haver quem no lo
impedisse. Entre muytos hospitaes, que tem a Cidade, hu delles he de gatos. Tem outro que
o Grão Turco So/limão
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mandou fazer pela alma do seu filho mais velho, q está no
inferno, o qual elle mandou matar por sospeytas, que tinha, q se lhe queria levantar. Este
hospital na sua grandeza, riqueza, & curiosidade, não duvido ser hum dos mais nobres
edificios do mundo. Diante, no meyo de hu espaçoso campo, tem hua grande fonte, muyto
alta, toda cozida em ouro com muytos canos de prata. Os aposentos, todos saõ grandes,
espaçosos, forrados muy ricamente, com muytas curiosidades, & brincos, cada hum delles
per si de meya laranja, & cubertos por cima de chumbo, com suas grimpas douradas. Os
varões das casas principaes saõ de prata, muito altos com suas balas, & meyas luas, tambem
de prata; no qual hospital se dá de comer tres dias abundantemente a todo Chistaõ, Mouro,
ou Gentio, que alli se quer ir hospedar, indo caminho de huma parte para outra: aonde lhe
379
dão paõ, & carne a fartar, & muitas maneiras de arroz de diversas cores: & curaõ alli todo o
enfermo, q alli se quer curar, & cõ tudo isto fazem muitas esmolas, a que por necessidade
as vay buscar, porq para tudo tem grossa reda.
Vivem na Cidade muitos Christãos de cada hua das nações Orientaes, & cada hua
dellas tem seu Bispo, & os Maronitas tem Arcebispo, consentem-lhe ter publicamente suas
Igrejas, as quaes saõ muytas, sem haver quem lhe de molestia, permanece atè o dia de hoje
a casa do santo Ananias, que baptizou ao Doutor das gentes, a qual está consagrada em a
Igreja, mas sobterranea, como muytas na Terra Santa: nella entrámos, & fizemos oração.
Tambe nos mostrárão o lugar, aonde o divino Paulo foy lançado pelo muro metido na
esporta, com adjutorio dos irmãos Catholicos, que /
503
moravaõ na Cidade, o qual lugar
está muy bem assinalado, & tem os Christãos muyto tento nelle.
Fomos visitar as sepulturas dos Christãos, que estão junto com as dos Judeos, ainda
que bem separadas humas das outras: & alli nos mostrárão huma sepultura, aonde forão
sepultados huns Frades nossos, que naquella Cidade fóraõ martyrizados pela Fé de nosso
Senhor JESU Christo, em tempo do Soldão do Egypto.
Hua milha fóra da Cidade em hum lugar muy deleitoso aonde me levou o Judeo de
Tavira, que sempre me acompanhou, vimos hum muy grande hospital, que parecia hua
pequena villa, no qual se sustentão muytos pobres, & junto a elle está o lugar aonde se
curão os leprosos, que tambem parece hua povoação per si: & nos affirmárão ser edificado
por Naamão Siro, a quem o Profeta Eliseu sarou da lepra, & alli junto das casas, me
mostrárão a sepultura do Giezi, discipulo do mesmo Profeta, & herdeyro da lepra de
Naamão, pela cobiça que teve dos seus bens, pelo qual ficou leproso atè a hora de sua
morte. No mesmo lugar dentro em hum jardim, me mostráraõ a sepultura do mesmo
Naamão, muyto grande, & sumptuosa, & nos avisárão, que em todo aquelle lugar não
cuspissemos, nem escarrassemos: mas que sómente com dissimulaçaõ olhassemos com
mostras piedosas, porque se sentissem de nòs outra cousa, não passariamos bem.
Cousa he muyto de notar naquellas partes entre Turcos, & Mouros, que em nenhua
maneyra sofrem olhardes com máos olhos ao cego, ou aleijado, de qualquer aleijão, que
seja, nem ao leproso, ou enfermo, dizem que aquillo saõ obras do Senhor Deos, & que
como taes as havemos de olhar, & louvallo, vendo-nos livres dellas. E não sómente com os
380
taes, mas ainda / 504 com aquelles, que por suas culpas saõ justiçados, vos convem olhallos
piedosamente, & não cospir, nem rir, nem fallar palavra, em que se entenda de vós, que
escarneceis do tal paciente: porque vos ha de custar muyto caro: aonde aconteceo na Cidade
de Tripoli, da qual adiante direy, estarem juntos huns Judeos, olhando hua cruel justiça, que
se fazia, porque em justiçarem saõ os Turcos muy deshumanos: acertarão os Judeos de se
rirem em se apartando daquelle lugar, quasi como escarnecendo do que padecia; foraõ logo
todos presos, & para se livrarem, além de muytos vituperios, q lhe fizeraõ, pagaram não
pequena quantidade de dinheiro. Em dous actos de justiça nos achámos presentes na Cidade
de Damasco: o primeyro foy, que justiçárão hum famoso ladrão, ao qual depois de muytos
tormentos, que lhe derão, o crucificarão em hua Cruz, & encravando-lhe os pès, & as mãos
com grossos pregos: & em cada huma das espadoas lhe fizerão com hua enxó hum buraco
grande, & em cada buraco lhe meterão dentro hum novello de alcatrão, & enxofre, que hia
ardendo, & depois o puzerão em cima de hum camello com hum engenho feyto para
aquillo: de maneyra, que a Cruz hia levantada, & direyta, & assim crucificado ardedo o
levárão pelas prinçipaes ruas da Cidade.
A outra justiça foy, que degolarão vinte & cinco homes, vestidos em suas alvas de
estopa, & enfiarão as cabeças em hua corda, & as puserao de redor da mais alta torre de
hum dos castellos, & dizia o pregão: justiça, que manda fazer o Grão Senhor, manda
degolar estes homens por ladrões, & por não deixarem passar os passageyros em paz pelos
caminhos: rogay a Deos, que lhe de muyta vida, para que vos conserve em justiça.
505
Tem a Cidade dous castellos muyto grandes, & fortes: em hum delles junto á
porta, por onde entrámos na Cidade, vi estar as armas de França muy bem lavradas.
Tambem vimos alli muytos Judeos Samaritanos usar de sacrificios, & saõ tão inimigos dos
outros Judeos, que se se encontrão virão o rosto para outra parte, como vi com meus olhos.
Da fartura da Cidade, & abundancia de todas as cousas, não se pòde dizer a minima
parte do q he, porq atravessamos por ruas, aonde de huma, & outra parte estavão as casas
cheas de dornas de cousas de leyte de muytas maneiras, natas, manteigas, toda a maneyra
de queyjos. Alli achey hu Mouro, que tratava naquella mercadoria, o qual sem eu fallar com
elle, me perguntou se eu era Portuguez, & ainda que lho quiz negar, não me deu credito,
antes me festejou muyto, & que levasse de sua casa quanto quizesse, dizedo, que queria
381
muyto aos Portuguezes, porque toda sua vida tratara com elles em Ceita, & os achara bons
amigos, & de verdade. As praças da Cidade, com ser em Março, estavaõ cheas de toda a
fruta, o rotulo das uvas, que saõ quatro arrates, por hum madim, que saõ doze reis. Tem
hum certo modo de podar as vinhas: de maneyra, que acode a novidade tres vezes no anno,
& assim o mais do tempo tem uvas frescas. O sitio da Cidade está em hum campo raso, ao
pè Monte Libano, terra de seu natural, não muyto boa, mas tem dous rios, dos quaes a
Sagrada Escritura faz memoria, a saber, Habana, & Farfar, que procedem do mesmo
Libano. Ambos chegaõ á Cidade, & hum delles entra dentro: & depois de fazer hum lago
muyto grande, & fundo, junto ao hospital, que o Graõ Turco mandou fazer pela alma do
filho, que matara, como já /
506
fica dito, no qual lago affogaõ as mulheres casadas, que
achão terem commettido adulterio: por canos secretos faz toda a Cidade em fontes, das
quaes muytas dellas saõ lavradas, & ornadas muy custosamente, que daõ muyto lustre á
Cidade, & a fazem muy fresca, & limpa. O outro rio vay por fóra: de tal maneyra repartido,
que rega todos os jardins, hortas, & pomares, & depois o sobejo destes dous rios se torna a
ajutar fóra da Cidade, junto a hua Igreja dedicada á honra do Profeta Elias, muy
frequentada de Christãos, & Judeos, por haver alli morado aquelle glorioso Santo, segundo
me affirmáraõ muytos Judeos, & correm ambos junto a par hum pedaço, & depois tornaõ a
seguir seu curso natural, cada hum por sua parte. Levaõ estes rios muyto pescado, muy
gostoso, & a mayor parte delle saõ tencas. Qual seja a bondade de sua agua, perguntem-no
a Naaman Siro, o qual agastado, porque o Profeta Eliseu o mandava lavar ao Jordão:
respondeo, por ventura não saõ melhores Habana, & Farfar, que todas as aguas de Israel?
Ordinariamente ha na Cidade muytas farças, & jogos para recreação da gente, & usaõ
muyto de monos, & bugios para voltearem, & me quizeraõ affirmar, que alguns eraõ
Demonios, & na verdade eu vi hum tão feyo, que sem mo dizerem, se me affigurou feio, &
tive para mim, que o era, porque o vi remeter para meu companheyro, & se não fóra o que o
trazia preso, que acudio logo, o tratara mal. No tempo, em que andávamos vendo a Cidade,
o Galeaço não se descuydava em negocear suas cousas, arrecadando, o que lhe devião, &
dar em bom preço, o que não podia levar consigo, & entendi ser grande trato em pelles de
leões, tigres, & onças, porque lhe vi huma casa cheya dellas. Elle posto em ordem de / 507 se
382
partir, ordenou o que nos convinha para o caminho, assim de mucaros, que são almocreves,
como de cavalgaduras, & do mais.
383
CAPITULO LXXXVIII.
De como nos partimos de Damasco, & fomos ter à Cidade de Baruthi.
EStivemos oito, ou nove dias na Cidade de Damasco: no qual tempo, tanto que nos
podiamos livrar das importunações dos Judeos, todo mais gastávamos em ver as grandezas
daquella nobre Cidade, que de verdade são muytas, & era mister muyto tempo para
comodamente se poderem ver, posto tudo em ordem, nos partimos hum dia pela menhaã da
Cidade, & duas milhas della chegámos ao lugar, aonde os da terra affirmão, que Caim
matou a seu irmão Abel, no qual os Mouros tem hua Mesquita pequena, mas sobre maneyra
curiosa, outavada, & com muytos brincos, que mais parece hum rico farol, que Mesquita,
olhando bem sua curiosidade, seguimos nosso caminho muy alegremente atè a noyte pelo
pè do Monte Libano, tratando do passado, & lançando traças ao porvir. Os nossos mucaros
(que assim chamão naquellas partes aos almocreves, & não será muyto haver ficado deste
nome em Portugal, quando foy possuido de Mouros) ainda que Mouriscos, erão sobre
maneira bem criados, & cortezes, porque assim nos tratarão naquella jornada, como se
fõramos damas, & não homens, indo sempre junto de nòs: & como topavão qualquer
regatinho de agua, logo se pegavão em nòs: hiaõ muyto bem vesti/dos
508
, & tratados, &
não rotos, & esfarrapados, como os destas nossas partes, & cuydey, que seria, porque não
gastão lá os allugueres em vinho, porque o não bebem. Tomámos á noyte pousada em hum
lugar pequeno, aonde nos tratarão muyto bem. Ao dia seguinte começamos de caminhar,
saindo o Sol, & seriaõ oyto horas, quando passámos junto á Cidade de Cesarea, ao presente
chamada dos naturaes Panoaõ, he huma povoação muyto pequena, metida entre arvoredo,
sendo antes hua Cidade muyto grande. Está situada em hua fralda do Monte Libano, que
naquella parte he muyto menos alta, que em outras, & vão por alli muytas arvores altas, &
fermosas, & fica o lugar quasi todo cuberto dellas: com meus rogos nos sahimos hum
pedaço do caminho, & fomos ver as tão nomeadas fontes, Jor, & Dan, das quaes procede o
bemaventurado Rio Jordão, de que a Sagrada Escritura faz tantas vezes tão particular
memoria, pelas grandes maravilhas, q nosso Eterno Deos, & Senhor teve por bem mostrar
nelle. São estas duas fontes de muyta agua, & segundo dizem os da terra, sua origem he de
384
hua fonte de muyta agua, que está da outra parte do Libano, a qual elles chamaõ Fiala, cuja
agua, não vem correr para parte algua; mas estar queda a modo de hum pequeno lago muy
fundo; & affirmaõ terem alguas vezes feyto experiencia do que dizem, lançado palhas, &
outras horas azeite naquella fonte Fiala, as quaes duas cousas virão depois ir sair ás outras
duas fontes Jor, & Dan. Sahimos daquelle lugar, tornando-nos ao nosso caminho meya
legoa mais adiante, chegámos a hum lugar raso, aonde já o Jordão trás nome, & agua, que
poderão moer assenhas com ella, mas espalhada por muytos regatos pela campina, & alli
achámos sete, ou oyto /
509
Turcos muy bem concertados, os quaes tendo os cavallos pelas
rédeas, se estavaõ em cocaras lavando, saudamolos, & elles a nos sem algua turbação, indo
seguindo nosso caminho, hu quarto de legoa mais adiante, adiantey-me hum pedaço dos
companheyros, por ir so rezando minhas Horas, & devoções particulares, foy ter comigo hu
daquelles Turcos em hum cavallo muy fermoso, hum jubaõ de tella de ouro, huns calções
de escarlata, compridos atè o peyto do pè, & nelle tomados. E hum grande turbão na
cabeça. As armas que levava eraõ dous pistoletes muy curiosamente marchetados com
muytos lavores, hum arco grande dourado, & sua aljava chea de festas, hua maça de ferro,
como elles todos costumaõ, seu alfange á ilharga muyto rico: & outra arma de mão, feyta
como alabarda, & elle homem de atè trinta annos, pouco mais, louro, & em extremo
fermoso. Saudou-me, resaudey-o da mesma maneyra. Tornou-me a fallar em Arabigo,
disse-lhe que o não entendia: perguntou-me se sabia fallar Latim, eu lhe disse que si, do que
ficou muy alegre, & me mandou que picasse a cavalgadura, para irmos mais apartados da
companhia: & em Latim mal composto, & meyo macarronico me perguntou muytas cousas,
& em particular, como estava a Christandade, & se era eu da ordem de hum Santo, que
tinha as chagas nas mãos, & pès.
Depois sabendo que eu vinha de Hierusalem, perguntou-me se estivera tambem em
Belem, & dizendo-lhe eu que si, começou a cantar em altas vozes em Latim: O Minino
nascido em Belem morreo em Hierusalem. Antes que a tanto viessemos, os nossos
mucaros, que conhecerão muyto bem quem elle era, por duas, ou tres vezes me bradarão, q
esperasse pela /
510
companhia, & assim mesmo os mais companheyros: os quaes sabendo,
que eu não sabia fallar Turquesco, nem Arabigo, nem Grego, hiaõ espantados em nos ver ir
daquella maneyra ambos: mas o Turco como os ouvia bradar, fazia rostro atraz, & logo se
385
callavaõ: de maneyra, que nos deyxáraõ ir assim ambos, não entendendo, nem atinando a
causa. Meu companheyro, depois de caminharmos daquella maneyra quasi duas legoas, foy
ter cõnosco por dar fé, mas o Turco o fez logo tornar para traz. Perguntou-me se era vivo
Martim Luthero: & dizendo-lhe eu, que havia muytos annos, que era morto no corpo, & na
alma: disse-me, que sendo moço pequeno o conhecera muyto bem, & virando-se para mim,
quasi com admiração me disse: Padre, aquelle maldito lutherano por amor de mulheres
negava o Santissimo Sacramento: & começou logo em voz alta a cantar: Tantum ergo
Sacramentum, veneremur, &c. atè o cabo, como se canta na festa do Santissimo
Sacramento. Depois cantou o Credo mayor da Mina: da maneyra que se canta nas Igrejas os
Domingos, & festas principaes. Vendo eu nelle tantas mostras de Christão, & tanta
familiaridade: tomey ousadia, & lhe disse: Vossos trages, senhor, saõ de Turco, mas nas
palavras mostrais ser Christaõ, rogo-vos tenhais por bem de me dizerdes quem sois.
Dizendo eu isto deu hu muy grande suspiro, & ay: & passado hum pequeno intervallo, me
disse: Eu Padre sou Christaõ, & creyo verdadeyramente em meu Senhor JESU Christo:
minha patria he Ungria: meu pay foy hum senhor muy principal, secretario do Emperador
Maximiliano. Como o Grão Turco teve sempre guerra com os Ungaros seus visinhos, &
contrarios, em hua Cidade, que nos tomou me cativárão, sendo de idade de doze / 511 annos:
como souberaõ, que eu era filho de homem nobre, & ainda meu pay conhecido de outros
senhores Turcos, por causa da vesinhança das terras, & comercio, que hus com os outros
tem no tempo das pazes, & tregoas, determinarão fazerme deyxar a Fè de nosso Senhor
JESU Christo, & tomar a seyta do maldito Mafamede: & como eu era moço, não apertarão
muyto comigo nas suas ceremonias, & cousas, que costumaõ fazer a seu modo, nem menos
me circuncidarão: antes me puzeraõ logo ao modo Turquesco, & me começarão de tratar
como filho de meu pay: de maneyra, que cheguey a ter hua grossa comedoria do Grão
Senhor Solimao: & sou Subbasi mayor de toda Siria, & Palestina, que he hum officio de
muyta honra, & não pequeno proveyto, & nas cousas de justiça, o que eu mando he feyto.
Perguntou-me quantos dias estivèra em Damasco, & se vira fazer as justiças, de q no
capitulo atraz tratey, as quaes elle mandara fazer: & deume conta, como hia caminho de
Baruthi com os Turcos, q com elle se estavaõ lavando no Jordão quando passamos, os
quaes mandara ir por outro caminho, por ter lugar para fallar comigo á sua vontade: & q a
386
causa desta sua jornada era por ter novas q na comarca de Baruthi andavão tres famosos
ladrões & q levava mandamento do Baxá, para o Governador de Baruthi dar ordem em
como os levassem presos a Damasco, affirmando, q quando não pudesse levar os ladrões,
ao mesmo Governador havia de levar preso: & em dizedo isto tirou do turbaõ hu escrito
assinado do Baxá para o governador, que tinha pouco mais de tres dedos de largo, & mo
amostrou dizendo, que naquelle pequeno de papel estava a vida do Governador de Baruthi.
Depois tornando a tratar do seu modo de vida, jurou-me, que /
512
ainda que era grande
peccador, no seu coração era muy verdadeyro Christão, & cria em tudo quanto cria a Santa
Madre Igreja de Roma, & tinha muyta confiança em nosso Senhor, que havia de morrer
Christão entre Christãos, & que não haver atègora posto em obra aquelle desejo, & vontade,
era pelo terem atado, & preso a carne, & sangue, porque vivia muyto rico, & na
Christandade havia de viver muyto pobre, tornado-se a ella, pelo Graõ Turco lhe ter
tomadas as terras aos seus: & que tinha duas mulheres muyto fermosas, & mininos dellas,
os quaes o tinhaõ cativo, & attado com muy fortes cadeas de amor paternal: mas que
confiava em Jesu Christo, que muy presto por seu amor, & com sua ajuda as havia de
quebrar. Perguntou-me que home era o Guardião de Hierusalem & se acharia lá algum
Frade de nação Ungaro: & me affirmou, que aquelle seguinte verão determinava fazer o
possivel por ir a Hierusalem so color de romaria, & dar conta da sua alma ao Guardião, &
passarse a Chipre, se o pudesse fazer, sem perigo dos Frades. Affirmou-me haver por toda
Turquia milhares de homens da sua maneyra Christãos, os quaes andavão, como elle,
presos do mundo, & da carne, & se detinhão, temendo a pobreza, & grandes miserias, que
na Chniïandade havião de passar, tornando-se a ella. Disse-me mais que muytas vezes
estando em boa conversação com o Baxá, por serem grandes amigos, & filho de Christão, o
incitava a que dissessem ambos o Credo: mas que o Baxá não queria passar de Creatorem
cæli, & terræ: mas que não se lhe dava, que elle o dissesse atè o fim, como home que sentia
bem do q não guardava. Affirmoume, que desda hora que fora cativo atè aquelle dia, nunca
tivera tanto contenta/mento
513
, como acharme naquelle caminho, para consolação da sua
alma: & que em Damasco nos vira, & mandara secretamente espiar a nossa partida: & fezme grandes offerecimentos de sua pessoa. Com estas praticas, & com outras desta sorte
caminhámos atè tarde, aonde chegámos a hum lugar pequeno, mas muito fresco de aguas,
387
& alli tomámos pousada com Sol, por não termos tempo para chegar a Baruthi. Vendo que
se vinhaõ chegando nossos companheyros, despedio-se de mim com dissimulação, & com
os olhos cheyos de agua: & sem se apear se deteve hum pouco no lugar, por ver á sua
vontade os Christãos Italianos, nossos companheyros, que como eu depois soube, aquella
mesma noyte foy dormir a Baruthi, aonde nòs tambem chegámos o dia seguinte entre as
oyto, & as nove da menhãa, do que demos graças a nosso Senhor, vendo-nos em Mosteyro
da nossa Ordem, & da nossa família Hierosolimitana.
388
CAPITULO LXXXIX.
Da Cidade de Baruthi, & do tempo que nella estivemos.
Baruthi he huma Cidade antiquissima: & como escreve o glorioso Doutor São
Hieronimo á virgem Estoquio no epitafio de sua mãy Santa Paula Romana, foy Colonia dos
Romanos, por ser Cidade mais principal entre as que naquelle tempo havia naquellas partes
da Phenicia he Cidade maritima, situada no ultimo do Monte Libano para o Ponente. Moraõ
nella muytos mercadores Latinos, a si /
514
Italianos, como Francezes, cujo principal trato
são sedas, pela muyta abundancia dellas, que ha naquellas partes, os moradores são
Mouros, entre os quaes moraõ muytos Christãos dos naturaes da terra. Está toda situada ao
longo do mar, & tão propinqua a elle, que lhe bate nos muros. Te mais pescado, que todo
outro lugar maritimo de Palestina, em especial salmonetes, os quaes vi tirar em tanta
abudancia, como se foraõ sardinhas. Temos dentro na Cidade hum Mosteyro da nossa
Ordem, da familia de Hierusalem, no qual fomos recebidos dos Frades com muyta alegria,
& estranha caridade, & com ella nos tiverão todo o tempo, q alli nos aprouve estar.
Intitula-se o Mosteyro S. Salvador, por nelle haver acõtecido hum notavel milagre, o
qual o glorioso, & firme esteyo da Fé Catholica Athanasio Bispo Alexandrino escreveo, &
anda em algumas historias escrito, & foy desta maneyra, segundo o li em hua taboa
antiquissima, que está no mesmo Convento. Mudando-se, em Baruthi hum Christão de hua
casa para outra, por descuydo, ou para melhor dizer por vontade do Senhor Deos, que para
nosso bem quer mostrar suas grandezas, como, & quando lhe apraz, ficou-lhe em cima do
alto da casa a Imagem de nosso Redemptor crucificado, & pelo conseguinte, hum Judeo se
mudou de outra casa, & foy morar á que o Christão havia deyxado. O Judeo com a nova
mudança, dalli a algus dias deu hum convite a outros Judeos seus parentes, & amigos:
estando elles á mesa, acertarão de olhar para o alto, & vendo a Imagem, reprehenderão
asperamente ao hospede, que os havia convidado, mas escusando-se elle, & affirmando
com juramentos, que não sabia parte da tal imagem, dissimulárão elles, mas depois de
comer, foraõ-se ao / 515 Rabbi mayor, & accusarao-no, que tinha em sua casa a Imagem do
crucificado: foy logo preso, & levado com a Imagem á Synagoga : & depois de o
389
atormentarem, fizerão na Imagem anatomia, que os seus antepassados haviaõ feyto a
Christo nosso Redemptor no tempo de sua sacratissima Payxaõ: da qual Imagem sahio
tanto sangue, como se fora de carne viva, & verdadeyra. Vendo os Judeos cousa tão
espantosa, alheyos de si com a novidade do milagre, vendo-se todos cheyos de sangue, pelo
qual foraõ descubertos, não puderaõ negar, o que tão manifesto estava, antes quasi todos se
converterão á Fé de Nosso Senhor Jesu Christo. Deu-se conta ao Bispo da Cidade, &
tirando-se inquirição da verdade, achou-se que Nicodemus fizera aquella Imagem. Os
Judeos se baptizarão, & a Synagoga foy consagrada em Igreja: & depois pelo tempo adiante
foy alli feyto aquelle Mosteyro, aonde ao presente moraõ Frades de S. Francisco, &
daquelle, preciosissimo, & milagroso sangue, se encherão alguns vidrinhos, & foy levado
delle a Roma: & hum vidro mandarão a Venesa, o qual os Venesianos tem em grandissima
veneraçaõ em huma cappella na Igreja de São Marcos, quando entraõ á mão esquerda; & na
Igreja, que foy Synagoga, celebraõ os Frades os Officios Divinos, & debayxo della tem os
Christãos Maronitas, sugeytos ao Patriarca do Monte Libano, outra Igreja do mesmo
tamanho em compridão, & largura, na qual se ajuntaõ os Domingos, & festas, & nos mais
dias, que entre si tem obrigação de ouvir Missa.
Os Mouros daquella Cidade tem tanto acatamento, & reverencia aos nossos Frades,
como lha tem no mais devoto povo de Hespanha: & tanto, que como adoecem logo mandão
buscar os Frades, que os benzaõ, & para /
516
o mesmo effeito lhe trazem muitas vezes os
mininos ao Covento, & sendo a agua da Cidade muyto melhor, que a do Convento, em suas
enfermidades não querem beber senaõ de hum poço, que temos no Mosteyro: & affirmaõ
alguns Mouros com grandes juramentos a seu modo, terem visto alguas horas da noyte
cousas miraculosas sobre o Convento; do que sómente Deos sabe a verdade, ao qual seja
gloria, & louvor, porque eu escrevo fielmente, o que estando alli, me affirmárão pessoas
dignas de fé: & muytas cousas deyxo de escrever, não sómente ouvidas, mas vistas com
meus olhos, por evitar juizos de caluniadores incredulos.
De redor da Cidade tudo he frescura, & grandes campos cheyos de mulas, a que por
outro nome chamaõ pomum paradisi, de cujo modo, & qualidade, já em outro capitulo fica
dito. Affirmáraõ os Christãos da terra: & o tem para si todas as nações Orientaes, ser esta a
Cidade, aonde o glorioso cavalleyro do Senhor, & Martyr S. Jorge matou o dragão, &
390
livrou a filha do Rey, & não obstante a historia de muytos ser tida por apocrifa, os indicios
de haver alli acontecido tal cousa, estão ainda manifestos, porque por guarda da Cidade
fizeraõ hum muro de cantaria bayxo, mas muyto largo, que toma do mar atè o alto do
monte, que está sobre a Cidade, todo por dentro cheyo de muitas, & muy grandes talhas a
modo de pombal, para que no seu oco, se detivessem os bramidos, & silvos do dragão, &
não faltem ouvidos na Cidade, porque perigavão as mulheres prenhes: o que atègora
permanece com muyta inteyresa. Quasi duas milhas da Cidade nos mostrárão a cova aonde
se mettia aquelle dragão: & junto á cova está edificada hua Igreja á honra do
Bemaventurado S. Jorge, já muyto antiga, /
517
mas muyto inteyra, & tida em grande
veneração, assim, dos Christãos, como dos Mouros: o que digo, porque duas vezes entrey
nella, & sempre vi muyta gente dentro, posta de giolhos rezando, com suas candeas acesas
nas mãos, com mostras de muyta, & grande devação.
Como os Frades, que moravão no nosso Convento de Baruthi, eraõ todos meus
amigos, & eu os havia embarcado em Venesa, quando se partirão para a Terra Santa:
rogáraõ-me muyto, que quizesse estar alli algus dias com elles, para me festejarem: o que
aceitey, & estivemos mais do que traziamos determinado, por nos affirmarem os
mercadores de Baruthi, ser falsa a nova, de que vinhamos atemorisados. Vendo eu que o
tempo nos dava lugar, & que os nossos companheiros desejavaõ repousar, para se
alimparem, & lavarem suas camisas, & roupa, achando-se em lugar de tanto aparelho para
o poderem fazer: & baratas todas as cousas, & tanto pescado, que quasi no lo davão de
graça, sendo na Quaresma: determiney dar comigo em Tyro, & Sidonia, por satisfazer
desejos. E dando conta ao Guardião, que era muyto meu amigo, elle me respondeo, q
fizesse o que fosse mais minha consolaçaõ, & que já que havia de ir, seria melhor
embarcarme em algum batel, & ir por mar atè Tyro, & podia tornar por terra, vendo os
lugares que desejava, & que desta maneyra seria menos trabalho, & menos gasto, o que me
pareceo bom conselho, & o communiquey com meu companheyro, que mo agradeceo
muyto.
391
518
CAPITULO XC.
Das Cidades Tyro, Sarepta, & Sidonia.
O Dia seguinte o Padre meu companheyro, & eu dissemos Missa, pela não termos
dito, depois que sahimos de Hierusalem, & fomonos meter em hum barco, que o Guardião
nos tinha mandado buscar, & nos estava esperando com o necessario, & era o barco de hum
Christão muyto amigo, & devoto dos Frades, o qual foy comnosco: a horas de vespera
estavamos dentro em Tyro, que saõ seis atè sete leguas de Baruthi. Esta Cidade Tyro, ainda
que antigamente foy de muyta magestade, como della contão muytas historias antiguas; ao
presente não he tão lustrosa, mas não menos das boas de Levante. Está dentro no mar sobre
hum ilhote todo de penedia, sómente á parte Oriental tem hua entrada por terra, como hua
lingua não muyto larga, a qual dizem serlhe feyta em tempo de Nabucodonosor, Rey de
Babylonia, & por seu mandamento. Tem os muros muy altos, & largos, & da parte da terra
tem quatro cercas, & vinte & quatro torres muyto grandes, & no meyo dellas hum
inexpugnavel castello. Foy esta Cidade antigamente tal, qual no la pinta o Profeta Ezequiel
na sua profetica historia, lea-os quem os entender, & entenderá suas grandezas: mas tudo
consome o tempo, sómente o amor do Senhor Deos para sempre permanece. Natural desta
Cidade foy Sicheu marido da Rainha Dido, a qual dizem fundou Carthago, Cidade de
Africa, inimiga dos Romanos; da mesma foy Rey Hiran, amicissimo do Real Profeta David,
& de seu filho Salamaõ, amado do Senhor. E / 519 dizem ser da mesma Cidade Adone filho
de Ademon, o qual com sua sabedoria, & delicado engenho declarava, & interpretava ao
Rey Hiran todas as palavras, & enigmas, que EIRey Salamão lhe mandava. Houve
antiguamente na Cidade de Tyro muytos sabios, & assim como Damasco foy sempre
cabeça principal de toda Siria, assim o foy Tyro de toda Phenicia.
Diante da porta da Cidade hum tiro de arco, nos mostráraõ o lugar, aonde nosso
Redemptor esteve pregando, quando a mulher com voz alta exclamou, & disse,
bemaventurado o ventre, que te trouxe, & as tetas que mamaste. A pedra, sobre a qual
nosso Redemptor esteve sentado, foy levada a Venesa, & está dentro na Igreja de S.
Marcos, em hua Cappella de S. Joaõ. Mostrarão-nos alli grandissimas ruinas de edificios, &
392
espantosas columnas, huas inteyras, & outras quebradas, que de nenhua cousa servem. Ao
dia seguinte depois de acabarmos de ver as cousas da Cidade, que nos foy possivel,
tomamos refeyçaõ hum pouco cedo, & fomos dalli meya legoa no barco, ver o poço das
aguas vivas, de que Salamaõ faz memoria no livro dos Cantares, o qual poço he feyto desta
maneyra: tão quatro poços, o mayor, & principal está no meyo dos tres, feyto em quadro de
pedras muy grandes, & formosamente lavradas. Tem de esquina a esquina quarenta
covados: sempre está cheyo de agua, tresbordando-a de continuo, derramando-a, quer seja
inverno, quer verão. Os outros tres poços são da mesma pedra, fortaleza, & feyçaõ, & tem
cada hu vinte & cinco covados em cada quadro, & da mesma maneyra lançaõ as aguas, que
o grande. Vem estas aguas do alto do Libano, & respondem assim impetuosamente
naquelle lugar. Depois que sahem destes poços, correm por huns canos cubertos, / 520 hum
grande pedaço, & depois saindo a publico, regaõ todos os jardins, & canaveaes de açúcar de
redor, que saõ muytos, & de muyto proveyto para o Graõ Turco; & depois correndo
juntamente servem a muytos moinhos, que por alli estaõ pegados hus com os outros, & vão
entrar no mar. Tornados a Tyro, o barco se foy caminho de Baruthi com algumas cousas
necessarias, & nòs tambem aquella mesma tarde nos sahimos da Cidade, & fomos dormir a
huns casaes, que estaõ aonde o rio Eleutherio entra no mar, do qual a Escritura faz memoria
em o primeyro livro dos Machabeos. Ao dia seguinte pela menhaã, cumprindo primeyro
nossas obrigaçoens do Officio Divino, nos fomos de caminho de Sarepta, Cidade dos
Sydonios, que está na estrada real, que vay para Baruthi, hua pequena legoa do rio
Eleutherio; a qual ao presente he huma pobre aldea, nem temos em que nos deter tratando
della, salvo quererem-nos alli mostrar huma casa, aonde dizem, que morou o Profeta Elias,
& aonde resuscitou ao filho da viuva, á qual fizera por mandado do Senhor naõ faltar a
farinha, nem o azeyte todo o tempo, que durou a fome naquellas partes. Partidos de Sarepta,
fomos a Sidonia, hua legoa mais adiate fundada por Sidonio filho de Canaan, ao longo do
mar. Foy esta Cidade antigamente grandissima, & se ve ao presente muytas ruinas de
grandes edificios cahidos, seu assento está do Norte ao Sul, entre o mar, & o monte Libano:
sua destruição profetizou Jeremias, dizendo: Et dissipabitur Tyrus, & Sidon cum omnibus
reliquis auxilijs suis, quer dizer, será destruhida Tyro, & Sidonia com todas as mais ajudas
suas. Ao presente he huma Cidade pequena, mas muy forte, de hua parte mettida no mar.
393
Tem bo porto, que he a causa de ser mais frequentada, / 521 que os outros lugares maritimos
daquella costa. Achámos alli hum Judeo Portuguez rendeyro, que determinou de nos
enfadar, senão andaramos acompanhados de dous Christãos mercadores, homens de muyto
respeyto. Tem a Cidade dous castellos fortissimos, hum delles dentro no mar sobre hum
rochedo, o outro da parte da terra. Todo aquelle sitio de redor de Sidonia, Tyro, Acon, que
fica mais atras de Tyro, & atè Tripol, que he adiante de Baruthi, como direy, he como hum
Paraiso Terreal, abundante de todos os pomares, & frutas, muytos canaveaes de açucar,
muytas arvores de espinho, de fruta muyto mayor, & mais perfeyta, que a de cá, campos de
mulas, grandes olivaes, & vinhas, a qual terra vay entre o Monte Libano, & o mar, & cahio
em forte, quando Josue dividio a terra aos filhos de Israel, á Tribu de Asser, & bem lhe
abrangeo a benção de seu pay Jacob, quando á hora de sua morte, lançando a benção aos
seus doze filhos, & profetizando-lhe, o que adiante lhe havia de succeder, chegando a
benzer Asser, disse: Asser, pinguis panis ejus, prabebit delicias regibus, quer dizer: Asser,
grosso o seu paõ, & dará dilicias aos Reys. Antes que cheguemos ao lugar aonde esteve a
antigua Sidonia, está hua cappella, ainda inteyra no proprio lugar aonde estava nosso
Redemptor, quando a mulher Cananea se veyo a elle, pedido-lhe misericordia para sua
filha, dizendo: Filho de David tem comigo misericordia, porque minha filha he do Demonio
atormentada. Estando nòs em alguma maneyra satisfeytos do que tinhamos visto,
determinamos tornar a Baruthi por terra: quiz nosso Senhor, que se partia para lá hum
barco, & o que nos guiava nos disse, que seria mais acertado irmos nelle, que por terra, por
termos no caminho hum passo, no qual se pagavão tres madins /
522
de cafarro por cada
pessoa, & outros inconvenientes. Com este bom conselho nos mettemos no barco, & fomos
caminho de Baruthi, aonde chegámos a muyto boa hora, & nos receberão com muyta
alegria, posto que o Guardião era ido caminho de Tripol, chamado dos mercadores para se
confessarem, mas deyxou dito ao seu Presidente, que nos festejasse o tempo que alli
quizessemos estar, & me dissessem, que em Tripol me esperava. A Cidade de Baruthi, fóra
das suas sedas, que saõ muytas, & a terra ser grosissima, não tem cousa algũa particular de
notar, salvo ter huma Mesquita muyto grande, & fermosa, a qual no tempo que a Cidade era
de Christãos servia de Sè Episcopal, dedicada em louvor do bemaventurado S. Joaõ
Baptista, Precursor de nosso Redemptor, do qual todos os Mouros daquella Cidade saõ
394
devotissimos, & assim mesmo do glorioso S. Jorge, & de nosso Padre S. Francisco. A vinte
& quatro de Março nos partimos de Baruthi, embarcando-nos em hum barco pela menhãa,
& fomos sempre costeando ao longo da terra com a vista nos muytos jardins, & pomares,
atè chegarmos a hum rio, que abayxa com grande impeto do Monte Libano, o qual entra alli
no mar, & chamaõ-lhe os Mouros Narchelb, que quer dizer rio do caõ, & contaõ sobre este
nome alguas fabulas fóra de proposito, porq a verdade he ser aquelle caminho, andando-se
por terra, de muyto roins passos, chegando-se o Monte Libano, tanto á borda do mar, que
com perigo muyto grande se pòde passar, senão fazendo grandes rodeyos, & naquelle lugar
aonde o rio Narchelb entra no mar, está hum penedo, a que os mercadores Italianos chamão
o passo do cão, o qual penedo está dentro na agua, & da terra firme ao penedo pòde muy
bem saltar hum cão, & do penedo á outra /
523
parte. Mais adiante seis legoas do passo do
cão, está hu lugar, que em Arabigo se chama Zibileth, a Escritura Sagrada lhe chama
Giblio, do qual falla o Profeta Ezequiel : pedimos que nos lançassem em terra por um
pequeno intervallo, que logo nos tornariamos a embarcar, o que nos concederaõ levemente:
sahidos fóra, achamos hũa gente muy domestica. Está o lugar muyto bem murado, mas he
muyto pequeno. Tem hum castello junto ao mar muyto grande, & forte. Tem muytas
Igrejas, huas que servem de Mesquitas, outras meyas arruinadas, com suas torres, &
campanarios tem sinos: & hũa muyto grande, & fermosa de abobeda, & de tres naves,
lavrada muy curiosamente de marmore branco, & suas columnas lavradas de obra Romana:
a qual com toda esta grandeza, & curiosidade, serve de caõ aos Passageyros. Foraõ
antigamente os moradores desta Cidade muyto dados á arte de navegar, como o diz o
Profeta Ezequiel, faltando com Tyro: Senes Giblij, & prudentes ejus habuerunt nautas, &c.
quer dizer: os velhos de Giblio, & os seus prudentes tivèraõ marinheyros. No terceyro livro
dos Reys tambẽ se faz memoria dos de Giblio por estas palavras: Porro Giblij,
præparaverunt ligna, & lapides ad ædificandum domum, quer dizer: os de Giblio
apparelháraõ páos, & pedras para edificar casa. Visto com brevidade em Giblio, o que nos
pareceo que havia que ver, nos tornámos a embarcar, & seguir nosso caminho, indo sempre
junto da terra, vendo os lugares q se offereciaõ, & entre elles vimos a Eradio, & Ante
Eradio, dos quaes tambe o Profeta Ezequiel faz memoria, & não vimos cousa q me mova a
fazer neste Itinerario memoria algua destes. Nenhuma cousa nos pesou da detença que
395
fizemos naquelle caminho indo recreando a vista com a daquelles lugares, & tantos Jardins
quantos vimos, mas chegámos quasi com tres horas de noyte a Tripol, dando muytas graças
a nosso Senhor, que para sempre vive.
396
CAPITULO XCI.
Da Cidade de Tripol.
TAnto que chegámos ao porto de Tripol, porque a Cidade está delle huma grande
milha, acudirão logo as guardas, & querendo olhar o que traziamos, meteraõ-lhe na maõ
dous madins por todos, & nos deyxáraõ em paz, levando-nos primeyro a sua casa, aonde
haviamos de pousar, a qual tinha as propriedades da de Lazarilho de Tormes, triste, &
melancolisada, sem ter que comer, nem que beber, nem tivemos candea com que nos
allumiar. Em amanhecendo, vieraõ ter comnosco alguns Francezes, de duas náos de
Marselha, que no porto estavão, dos quaes tomámos pratica da terra, & do modo que
haviamos de ter na embarcação para Chipre, porque a tinhamos ao dia seguinte, se
quizessemos. Nossos companheyros diziaõ, que não fossemos á Cidade, pois tinhamos alli
a embarcação tão certa, & q escusariamos enfadamentos, que sempre nos povos grandes se
offerecem: & mais tendo alli Francezes, com quem nos entendiamos, & não faltavaõ
Italianos: mas eu em nenhua maneyra o quiz cõsentir, allegando ser aquelle dia a festa de
nossa Senhora d’Annunciaçaõ, & o dia seguinte a festa dos Ramos, & não era bem termola
no mar, pois tinhamos na Cidade Christãos Latinos, com quem a celebrassemos. E
conformando-se os mais comigo, assen/tamos
525
, que fosse eu á Cidade a ver-me com o
Guardião de Baruthi, que nella estava; & por sua via soubesse dos Venesianos, se seria
melhor esperar no porto a embarcação, pois a tinhaõ certa para o dia seguinte, ou ir á
Cidade. Partime eu logo em companhia de dous marinheyros Francezes, & quando
chegámos à Cidade, ainda os mais dos mercadores Italianos dormiaõ: encaminharaõ-me
para onde estava o Guardião, o qual me recebeo com grandissimo amor, & em quanto lhe
estive dando conta da minha jornada de Tyro, & Sidonia, se levantarão os dormentes, dos
quaes pela informação, que o Guardião de mim lhe deu, fuy recebido com grandissima
festa, & cortesia. Dey-lhe conta ao que vinha, assentárão, que seria melhor irem-se á
Cidade, mas depois de comer, por ser aquelle dia festa de N. Senhora, tão celebrada de
todos os Christaos Orientaes, & queriaõ ter sua Missa quietamente, & depois de comer os
mandarão buscar, logo alli os vi determinarem-se entre si: que pois nosso Senhor nos havia
397
trazido em tal tempo áquella terra, a meu companheiro, & a mim, naõ nos haviaõ de deyxar
ir, senaõ depois de Pascoa, para se consolarem comnosco espirisualmente, & se
confessarem, posto que tinhaõ seu Cappellaõ, & ao Guardião de Baruthi, mas como erão
como naturaes, com os estrangeyros sentiraõ em si menos pejo. Sendo horas de Missa,
disse-a cantada o seu Cappellaõ, o qual era hum Padre da Ordem de Santo Augostinho, já
velho, & vivia alli izento com provisaõ da Senhoria Venesiana; & eu com alguns
Venesianos, que sabiaõ muyto bem cantar, lha officiámos, & a Missa acabada, cantámos
tambem as Vesperas o melhor que pudemos com o nosso settimo, & oitavo, do que todos
mostravaõ grande contentamento. Depois disto me levá/raõ
526
a comer a casa de hum
Misser Mathia, aonde me deraõ hua camara fechado, & muyto bem concertado em tudo,
como quem elles eraõ. Estando para nos sentar á mesa, chegou Misser Galeaço, vendo
minha tardança, & como era conhecido de todos, receberaõ-no com muyta festa. Depois de
comer mandarão buscar a mais cõpanhia, a qual aposentáraõ em casa de hum Misser
Regulo, aonde logo deraõ, & assináraõ aposento, & camara fechada com todo necessario a
meu companheyro, com proposito de nos terem alli toda a semana santa. Deve-se saber,
que nas Cidades de Turquia, aonde trataõ mercadores Venesianõs, Italianos, & Francezes,
como he nesta Cidade Tripol, Alepo, Baruthi, Alexandria, o Grão Cairo, & outras muytas
tem este estyllo: Os que vão para estarem lá muytos annos grangeando sua vida, tomão
casa, & fazem-se como naturaes, pagando cada anno hum cruzado de cafarro, ou tributo ao
Grão Turco: & assim vivem na terra muy seguramente, nem temem guerras, ainda que as
haja entre Christãos, & o Grão Turco, por qualquer via que sejaõ. Antes nos taes tempos,
elles são os que favorecem aos outros mercadores, que lá se achão, & não estaõ de assento,
& lhe põem em salvo suas mercadorias, dizendo que tão suas proprias, & os escondem se
podem. Mas para os que não querem tomar casa sobre si, por andarem chatinando de humas
partes a outras, ou por outros respeytos, & por não quererem viver com cuydado de casa:
tem nas Cidades, q digo, huas casas muyto grandes, com muytas camaras, logeas, &
aposentos, a modo de Mosteyros, nas quaes se aposentaõ & alli saõ providos de quanto hão
mister, com o comer, & beber, camas, lavage, tudo com muyta abundancia, & limpesa,
como se estiveraõ em suas próprias /
527
casas, & ainda muyto melhor, porque os
mercadores, que naquellas partes trataõ, ordinariamente são Venesianos, & Florentinos,
398
gente muy nobre, & principal, por ter o costume daquellas nações, viverem daquelles tratos,
co os quaes ajuntão gradissimas riquezas: estes taes pagão cada mez hu tanto ao q lhe dá
pousada, & tem cuydado de lhe mandar ministrar as cousas necessarias q digo, & todo
outro serviço, q hão mister, com muyta perfeyçaõ; & desta maneira vivem muy
descansados, tem terem cuydado de algua cousa das portas a dentro. O senhorio destas
casas, a q vulgarmente chamaõ alfandegas, não o tem senaõ pessoas muy principaes, postas
pela Senhoria de Venesa, com liceça do Grão Turco, porq he muy grosso o trato, & renda
das taes casas: & alli com a mesma licença tem juiz particular para julgar todas as
differenças, que entre elles succedem, & prender, & castigar a quem o merece, como se
estiveraõ em terra de Christãos. Da mesma maneyra tem nesta Cidade de Tripol os
Frãcezes, & nas outras aonde tratão os Venesianos, & com jurisdicçaõ, & authoridade, que
lhe tem dado o Grão Turco, para castigar, & fazer justiça aos da sua nação, quando entre
elles houver causa para isso, & chamaõ ao principal administrador destas casas, & do mais,
Consul. No tempo que alli estivemos, era Consul em Tripol hum Frances, homem muyto
fidalgo, o qual, morrendo seu antecessor, em quareta dias foy pela posta de Tripol a Paris,
indo por Constantinopla, a pedir o officio ao Rey de França: & estava com sua mulher, &
filhos, & familia. Tem seu Cappellaõ, como os Venesianos, com o qual são obrigados,
achando-se em artigo de morte, a fazer seus testamentos, & isto por privilegio de alguns
Pontifices Romanos.
528
Aquelle dia passámos muy alegremente, & nos mandou visitar o Consul dos
Francezes com hum presente de fruta: ao seguinte pela menhãa, roguey eu ao Guardião de
Baruthi, que ordenasse de maneyra, que fossemos fazer o Officio de Ramos aos Francezes,
pois estávamos quatro Religiosos com o companheyro do Guardião, & eu mesmo me
offereci a o levar comigo, porque com o Cappellão que tinhaõ eramos tres, & elles ficavão
quatro com o Clerigo Romano. Os Venesianos não tomarão bem isto, por estarem muy
differentes com os Francezes, mas dey-lhe eu tantas razões, pondo-lhe diante o tempo
santo, em que estavamos, viverem entre infieis, & cousas semelhantes, que não sómente o
tiveraõ por bem: mas ainda ficarão suas almas de tal maneyra dispostas, que na Pascoa
seguinte os fizemos todos amigos.
399
Fuy como desejava ter com os Francezes, & fizemos o Officio de Ramos cantado, &
procissaõ pela claustra, que elles alli tem muyto boa, & cantamos a Payxaõ a tres vozes
com tanta liberdade, como se fora em qualquer lugar da Christandade, pelo que demos
muytas graças a nosso Senhor, por tão particular mercè feyta em terra de infieis, inimigos
do seu santo Nome: & da mesma maneyra se fez o Officio aos Venesianos, que naquella
Cidade passaõ de duzentos fóra a gente de serviço. Com importunação do Consul fiquey
com os Francezes para tomar refeyçaõ, & ainda que eramos muytos, poz elle por me fazer
festa, sua mulher, & filhas comnosco á mesa.
Quando á tarde torney para casa, achey serem partidos nossos companheyros para
Chipre, sem se despedirem de mim, por culpa dos Venesianos, porque temerão, que eu não
quizesse ficar com elles, deyxando a /
529
companhia de tatos dias, & por isso me não
mandarão chamar. Não deyxey eu de me melenconisar, achando menos a companhia,
ficando-me saudades da sua boa conversaçaõ mas não que me pesasse de ficar, & mais por
me dizerem os Venesianos, que não tinhamos em Chipre embarcação, salvo dahi a hum
mez, & por ventura dous, & tendo já certesa de serem falsas as novas, que nos tinhaõ dado,
de serem quebradas as pazes com o Graõ Turco.
Os tres dias da semana santa, fizemos os Officios Divinos cantados, o melhor que
pudemos na alfandega de Misses Mathia, aonde eu estava, por nella haver mais
commodidade para tudo, ao qual se ajuntarão todos aquelles senhores mercadores, & eu lhe
fiz hum sepulchro ao modo de Portugal, & encerramos nelle o Santissimo Sacramento: &
ao dia de Pascoa de madrugada, fizemos nossa procissaõ da santa Resurreyçaõ, com
muytos passos, & fontes de agua, ornado tudo com muytas, & finas sedas á gloria, &
louvor do Senhor Deos, de q os Venesianos mostravaõ tanto contentamento, que affirmavaõ
algus delles, não cuidarem ser possivel poderse ver em Turquia cousa semelhante, como a
que com seus olhos viaõ. O Guardião de Baruthi, vendo que haviamos de ficar alli atè a
Pascoa, & sentindo, que elles determinavaõ cõfessarem-se todos comnofco, porque
sómente tres, ou quatro tinha confessados, á segunda feyra se tornou para sua casa, por
estar nella com os seus Frades a semana santa. Em todo este tempo naõ cuydavaõ aquelles
mercadores, senaõ em como nos haviaõ de fazer caridades, & merces, & da maneyra q nos
haviaõ de alegrar. O Domingo segundo depois de Pascoa, se ajuntarão atè trinta dos
400
principaes, determinando recrearnos, & em amanhe/cendo 530 nos levárão dalli a hua grande
legoa, a hua Igreja, q foy Mosteyro, aonde morou, & morreo a gloriosa Virgem Santa
Maria, & agora lhe chamaõ, nossa Senhora das Laranjas, pelos grandes laranjaes, que ha
naquelle lugar, & alli lhe disse a Missa: a qual acabada nos levárão a outro lugar méa legoa
mais adiante, sobre maneira deleytoso, ao pè do Monte Libano, todo de hum laranjal muy
espeso, & terrado, pelo meyo do qual Passa hum rio muy fermoso, que entra dentro na
Cidade, & alli nos tinhão preparado hum banquete tão solemne, & custoso, como o poderá
dar qualquer grade senhor a outro seu igual: porque nos banquetes são os Venesianos muy
magnificos, & nenhua cousa avarentos. O convite acabado, o mais do tempo atè a tarde,
não o passáraõ em dormir: mas em jogos, & passatempos, & tudo por nos darem gosto:
com os quaes nos vierão á tarde festejando atè a Cidade em burros de sella, que pareciaõ
sardenhos, sendo naturaes de Phenicia. Chegámos de noyte á Cidade, estando fechadas as
portas: mas em batendo, & sabendo que erão elles, lhe vierão logo com muyta cortesia
abrir, porque os estimão muyto, & trataõ-nos como naturaes da terra.
Já que tenho dito algua cousa do muyto, que nos fizerão aquelles senhores
Venesianos, os quaes algumas vezes nos disserão, que nos não agastassemos, porque as
náos, que estavão em Chipre, não se haviaõ de partir para Venesa, sem recado seu, que elles
tinhão tomado à sua cota a nossa ida, quero tratar do modo, sitio, & trato da Cidade. Está
situada em hu campo raio ao pè do Monte Libano, para aquella parte, aonde chamaõ Mons
Pardorum, & muyto junto ao mar, ainda que o porto lá está desviado hua boa milha, o qual
he muyto bom, & /
531
frequentado de todas as partes Orientaes maritimas, & em especial
do Egypto, & Constantinopla, donde havia muytas náos no tempo que alli estivemos: tambem acodem alli Araguzeos, & Albaneses, & Francezes, que nunca alli faltão. As
mercadorias saõ toda a sorte de sedas, & chamalotes, não em tanta quantidade, como
Damasco, mas pouco menos. Duas náos Francezas vimos estar no porto, carregadas de
galhas. Tem grande trato de sabão branco cheyroso, de muytas invenções, q levão para
Constantinopla, & toda Turquia, Venesa, & outras muytas partes. Acodem a Tripol muytas
mercadorias de Antioquia, em especial cousas de botica, como ruibarbo, escamonea, aloes,
& muyta canafistula, posto que não tão boa como a do Egypto: de maneyra, que he porto
mais frequentado de mercadores, & mercadorias, que quatos ha no Oriente. A Cidade em si
401
he muy populosa, & nobre, moraõ nella muytos Turcos, & tem sempre gente de guarnição.
São muytos os Christãos das nações Orietaes, os quaes vivem alli com mais liberdade, que
nas outras partes.
Haverá na Cidade como dous mil Judeos, pela mayor parte Portuguezes. Tem hua
Synagoga muyto grande, que caberão nella mais de dez mil pessoas, mas muy
desconcertada. Achei alli hum Judeo Medico natural de Santarem, o qual ainda que no
publico seguia o Judaismo, affirmáraõ-me muytos Judeos, que vivia como Gentio
desesperado da vinda do Messias, & tinha opiniaõ, que não havia resurreyção dos mortos,
como os Saduceos desacordados, do que disse o Santo, & pai cientissimo Job: Credo quod
Redemptor meus vivit, & in novissimo die de terra surrecturus sum: Achey outro Judeo,
que se chamava Isaac beiçudo, o qual servia de espia, & se carteava com o nosso
Embayxador, q estava /
532
em Roma, mandando-lhe avisos, do que passava na India, com
toda a fidelidade, & com pouco interesse. Este me foy visitar alguas vezes á pousada ás
escondidas dos outros, porque o reprehendiaõ, sabendo que fallava com Portuguezes, pela
sospeyta que tinhaõ delle ser espia: & me disse, que se atrevia, se o fatisfizessem, de dar
cada tres mezes recado em Lisboa de quanto se passasse na India.
Estando eu hum dia na pousada com meu companheyro, & outros Religiosos, que
de Hierusalem hiaõ para Alepo, entrou hum Judeo muy authorizado, com hum grande
turbão amarello na cabeça, & perguntou com voz alta, qual de vossas reverencias he o
Padre Frey Pantaleaõ. Respondi-lhe, Judeu, eu sou; queria de vossa reverencia dous pares
de palavras, tornou o Judeo a dizer. Levantey-me, & fuy-me com elle a hua varanda, aonde
nos não ouvissem: & a primeyra cousa, que me disse foy: vossa reverencia, Padre Frey
Pantaleaõ, não me olhe como Judeo, ainda que me veja com sinal de o ser, porque de
verdade o não sou. Ao que lhe respondi, dizey Judeo o que quereis, que eu não tenho
necessidade de vossas justificações, pois vos vejo sambenitado com o vosso turbão
amarello, & o que eu poder fazer por vòs, por serdes Portuguez, fallo hey á ley de homem
de bem, senaõ for contra minha obrigação de Christaõ: Naõ se tomou o Judeo em lhe eu
responder daquella maneyra, porque era discreto: & começou a darme conta de sua vida, &
de como enganado se sahira de Portugal, de que estava muy arrependido.
402
Disseme seu nome, & descubriome sua progenie cõ muitas particularidades, que me
moverão a ter piedade da sua perdição, por sentir nelle conhecimento, & con/triçaõ 533 das
culpas, & erros commettidos: dizendo-me, que se lhe perdoassem o passado, & o haver
deyxado a Fé verdadeyra de nosso Senhor Jesu Christo, de muy boa vontade se tornaria
logo a ella, & ainda a Portugal, ainda que lhe dessem toda a penitencia publica, & secreta,
que quizessem. Deu-me conta, como tinha embarcado quinhentos cruzados de sabaõ branco
em hua náo, que estava no porto, esperando tempo para se partir para Constantinopla:
emfim concluhio seu intento, com me rogar, lhe quizesse levar, ou trazer huma carta ao
Reyno aos seus, para que lhe dessem o seu, que cá lhe ficara: naõ entendendo o
desaventurado, como eu logo lhe disse: que tinha perdido tudo para o fisco, por haver
apostatado da Fè Catholica.
Não me quiz escusar de lha trazer, com condição, que lesse eu, o que fosse na carta,
por causa, que com ella não levasse escrupulos na consciencia: o que elle me agradeceo
muyto, com grandes offerecimentos da pessoa, & da fazenda, que lhe não aceitey, & asi a
escreveo diante de mim, podo em cima o sinal da Cruz como costumaõ os Christãos. Tem a
Cidade muy nobre casaria, & as ruas muy grandes, & muy largas, & espaçosas. Tem hum
hospital de muyta renda, assim para enfermos, & peregrinos, como para delle se proverem
pessoas necessitadas, & tem outro para gatos, do qual tem hum homem cuydado, a que
chamaõ o gateyro, o qual he obrigado a ir todas as menhãas á porta do açougue a pedir com
hua bacia na mão, aos que vão comprar, que lhe dem esmola para os gatos.
Tem a Cidade huns banhos reaes de muyta curiosidade, & limpesa, assim para
Mouros, como Christãos, & na frontaria da porta por onde entraõ a elle, está hua pedra
muyto grande de fino marmore, na qual da / 534 mesma veya, & agua das naturaes da pedra,
está hua Imagem muyto bem matisada, de nossa Senhora, com o Minino nos braços.
Fuy ver as sepulturas dos Mouros, & Turcos em duas partes, hua vez a caso, & outra
de proposito, & notey nellas hua muyto grande curiosidade, porque pareciaõ mais hortos
odoriferos, que sepulturas de mortos; porque tanto q enterrão algum defunto, logo do redor
da cova lhe plantão muyta salva, & mangerona, alecrim, lirios, & outras hervas odoriferas,
que cá não temos. O rio que passa pelo meyo da Cidade, o qual como já tenho dito, sahe de
Montibus Pardorum, que está ligado com o Libano: tem muytas pontes, huas de pedra, &
403
outras de madeyra, para passarem de hua parte da Cidade a outra. Tambem ha na Cidade
muytas fontes, & em cada hua das ditas fontes estão dous caldeyrões pequenos, pretos com
cada hum sua cadeya de ferro comprida, para beberem os que quizerem. Os mantimentos
saõ tantos naquella Cidade, & a abundancia de todas as cousas, que causaõ espanto. Ao
redor hua grande meya legoa, tudo saõ jardins de toda a arvore de espinho, muitas mulas, &
palmas de muy grossas tamaras, & todo genero de toda outra fruta. Occupa-se a gente em
jogos, & passatempos, porque o vicio, & grossura da terra lho consente, & tudo saõ
comeres, & banquetes, & nas sedas, & chamalotes, quasi quer competir com Damasco. Saõ
todas às cousas daquella Cidade de tal maneyra, que se quer nella representar hum Paraiso
Terreal, se nella não houvesse oitentas de nosso Senhor. E porque tratar de todas suas
particularidades será nunca acabar, quero-lhe pòr silencio, porque se me vay acabando o
quaderno.
404
535
CAPITULO XCII.
Do Monte Libano.
COmo estavamos de espaço na Cidade de Tripoli, tão nomeada em toda Siria, ou
Suria, como lhe chama o vulgo, vendo cada dia suas particularidades por não termos outra
cousa em que gastar o tempo, esperando o em que nos haviamos de partir, ouvindo eu
muytas vezes fallar nos cedros do Monte Libano, & de sua estranhesa, & antiguidade,
crecerão-me muyto os desejos de os ver, pelo que roguey muyto a meu companheyro, que
fossemos lá, não fómente por ver os cedros, mas tambem por visitarmos o Patriarca de
Antioquia, que tem alli seu assento em o alto do Libano: aonde mora em companhia de
muytos varões santos, que vivem por aquelle espaçoso monte, de modo que antigamente
viviaõ os Padres dos hermos, & desertos do Egypto, Thebas, & Palestina. Vendo meu
cõpanheyro, que eu insistia tanto na ida, escusouse-me, que não podia ir por ter huma
nascida em hua perna, mas que buscasse eu companhia, para que satisfizesse meu gosto.
Ouvindo-lhe eu isto, na mesma hora me determiney na ida, & publicamente o disse aquelles
senhores Venesianos, encommendando-lhe muyto o Padre meu companheyro. Offereceo-se
logo para ir comigo hum mancebo dos mais nobres, & era novo na terra, & não tinha ainda
lá ido, como costumaõ sempre no verão ir lá os mercadores Venesianos, porque a jornada
pòde ser atè cinco legoas, naõ muyto grandes: ainda que o caminho, depois que começaõ a
subir, he tão aspero, & ingreme, que se não pòde ir a cavallo, senaõ /
536
a pè, por elle.
Aquella tarde mandou o mancebo Venesiano buscar as cavalgaduras, para irmos ao outro
dia em amanhecendo, & preparar o necessario para o caminho, & tanto que rompeo a alva
do dia nos partimos, levando comnosco hum almocreve Christaõ, & hum Mouro muyto
familiar, & amigo dos Venesianos, & muyto mais do vinho, que elles sempre lhe davaõ,
porque os servia muy fielmente em quanto lhe mandavaõ, & tinhão com elle muyto
passatempo, nem lhe chamavaõ outro nome, senão vilão, nem elle a outro acudia de melhor
mente. Teriamos caminhado boa parte do caminho, quando chegámos a huma grande
ribeyra de agua muyto clara, & muyto fria, que descia do alto do Monte Libano, toda de
huma, & outra parte cuberta de grandes platanos, & naquelle lugar haviamos de começar a
405
sobir. Disse eu aos companheyros, que seria bom almoçarmos, pois o lugar a isso nos
convidava, & mais a calma começava já a picar, porque naquellas partes o Sol he muy
quente, o q elles disseraõ, q lhe parecia muyto bem. O Mouro era tão amigo de vinho, que
em quantas festas os mercadores Christãos faziaõ, se havia de achar presente: & muytas
vezes lho davaõ demasiado, para terem festa com elle. Sentámo-nos á mesa, & sendo horas
convidey o Mouro com huma vez de vinho, mas não a quiz aceytar. Indo mais por diante,
torneyo a convidar, disse, que naõ havia de beber, respondi-lhe eu, & de quando a cá tu
vilão, és tão modesto, que não queres beber vinho, que milagre he esse? Disse-me, que o
não queria beber, porque dalli a quatro dias vinha a sua quaresma. Pois depois que vier, lhe
respondi, deyxarás de o beber. Tornou-me a repetir, pois Padre, se eu sou tão máo Mouro,
que todo o anno contra minha ley bebo vinho,
537
parece-vos, mal, que o deyxe de beber
alguns dias, antes que venha a nossa quaresma, para que quando vier, estê mais limpa, &
mais prompta minha alma para a jejuar, & ser a Deos mais aceyta ? Calley-me, sem lhe
tornar a resposta, mas dentro em mim fiquey confuso, ouvindo a hum infiel rustico, &
ignorante hum dito tão notavel, lembrando-me, o que ordinariamente se passa entre
Christãos, não fómente a noyte, que chamamos do entrudo, mas ainda na santa Quaresma,
& na mesma semana mayor, quantos peccados, & maldades se commettem, & quantos
Christãos mimosos, & não dos que menos entendem, com qualquer occasiaõ, & muytas
vezes sem ella, comem nos taes tempos carne, & em terras, aonde lhe naõ faltão bons
pescados, para satisfazerem sua gulla, por serem ordinariamente mais appetitosos. Pelo que
não duvido permitir nosso Senhor virem tantos trabalhos, & açoutes á Christandade: & aos
infieis, já que por sua infidelidade lhe não ha de dar a gloria, lhe paga nesta vida com
abundancia dos bens temporaes o premio de alguas boas obras, que fazem: & dos Mouros
saberem, quam mal , os Christãos pela mayor parte guardão seus jejuns, se levantou entre
elles o adagio, que dizem. O jejum do Christão, tres dias máos para o seu paõ: dayme hoje
bem de comer, que hey de jejuar á menhãa, day-me hoje bem de comer, pois que jejuo,
dayme hoje bem de comer, que jejuey hontem.
Acabada nossa refeyçao, começamos a subir pelo monte acima, por hum caminho
estreytissimo, & muy ingreme de huma, & outra parte, com hua abertura tão funda, que nos
causava medo, pela qual corria a ribeyra, & com irmos em sardenhos de sella, costumados a
406
andar por penedos, como cabras, desque / 538 começámos a subir, não nos foi mais possivel
ir nelles, antes em alguns passos nos ajudavamos das mãos como dos pès. Com duas horas
de Sol chegámos a hum pequeno plano, mettido entre aquellas asperas montanhas, aonde
vimos muytas casas grades, unidas huas com as outras, & como fomos sentidos começarão
logo de repicar os sinos, como em dia de festa, & como eu não estava avisado de tal cousa,
nem sabia haver alli sinos, por ter entendido não os haver em terras de Turcos, & Mouros,
& havia tanto tempo, que não ouvia tanger sinos, fiquey como fóra de mim, & foy tanta
minha alegria, que me moveo a lançar lagrimas. Sahirão logo a me receber huns velhos
muy veneraveis, que alli vivem como Ermitões, & lançados todos aos meus pès, pedindome a benção, como he seu costume, fiz eu da mesma maneyra, que lhe vi fazer a elles,
lançandome aos seus, & abraçandome todos me levárão á Igreja.
Depois de fazermos oração, me levárão a casa do Patriarca, que está junto da Igreja,
& vieraõ logo duas velhas muy veneraveis, irmãas do Patriarca, & me tomarão a benção
lançando-se aos meus pès, por ser assim o costume daquelles Christãos, quando lá vay ter
algum Religioso da Igreja Romana, á qual os Maronitas tem obediencia, & grande devoção.
Deraõ-nos logo conta, como o Patriarca, com passar de cem annos, era ido a Hierusalem,
ter lá a semana santa: escusando-se, que com sua absencia não seriamos agasalhados como
era razão.
Aquella tarde passamos com elles em boa conversaçaõ, & me mostrárao todos os
ornamentos, que tinhão, & as cousas, que tocaõ ao culto divino, as quaes elles tinhaõ cõ
menos estima, do que convinha; o que /
539
digo, porque vi ornamentos riquissimos,
mandados de Roma ao Patriarca pelos Pontifices Romanos, & terem-nos por ahi em varas,
cheyos de pò, como roupa de algibebes. Costume he de muytos annos, tanto que elegem
novamente hu Papa, & o sabe o Patriarca do Monte Libano, mandar logo hum Embayxador
seu a lhe dar obediencia em seu nome, & dos Christãos Maronitas, & sempre os Papas lhe
mandão, pelo menos hum pontifical dos já usados: & o seu embaixador que comnosco se
embarcou em Veneza, quando nos partimos para Terra Santa, entre outras muytas cousas,
levava um pontifical branco, alcachofrado de ouro, & lavrado todo de aljofre.
Deve-se saber, que o Monte Libano he muyto grande, & vay cingindo a Palestina da
parte do Oriente, dos Moabitas aos Nabateos, & toda a Celesiria, & regiaõ Traconitida,
407
tornando ao Nordeste atè o Norte, & quasi Noroeste, tomando diversos nomes, &
incorporando em si outros montes atè junto do Carmello, & em humas partes vay altissimo,
& em outras menos, & tambem faz grandes valladas, como no nosso Portugal a Serra da
Estrella, & os Montes Pyreneos, que dividem a Hespanha da França, & os Alpes a França
da Italia. E ao longo deste Monte Libano de hua parte, & outra vão grandes povoações de
Cidades, & Villas, & outros Lugares, como já disse de Damasco, Tripol, & outros. Porèm
neste lugar aonde fomos, mais propriamente se chama Monte Libano, por causa das muytas
neves, que ha haquella parte, porque Libano, tanto quer dizer, como candido, & fermoso,
mas não ha nelle algum incenso, como quer affirmar o Padre Ximenes no seu lexicon,
aonde tantas vezes contradiz a Roderico de Santa Ella: ainda que ha muytas arvores
aromaticas, /
540
& preciosas, mas não gomiferas, que tirem dellas licores para perfumes,
porque isso inquiri eu muito bem: mas por causa dos cedros, que ha neste lugar, & não em
outro algum he mais nomeado, que os outros, não que o monte tome o nome dos cedros,
mas elles o tomaõ delle. As irmãas do Patriarca nos agasalháraõ muyto bem aquella noyte,
& depois de cear, ambas nos fizeraõ hua cama, na qual notey, que assim nos lençoes, como
no cobertor, em cada huma das quatro pontas, & no meyo tinhaõ huma Cruz azul, que he o
sinal, que aquellas nações de Christãos usaõ em todas suas cousas, por mostrarem q o saõ,
vivendo entre infieis. Alli soube aquella noyte alguas cousas, que já em parte tinha ouvido
acerca da quantidade dos Chritãos, que naquella parte vivem á obediencia do Patriarca, & o
negocio passa desta maneyra.
Antigamente, como o lugar he accomodado em muytas partes para servir a Deos, &
o Monte Libano tem emcima no alto grandes campos rasos, & frutiferos, & abundancia de
muytas, & muy boas aguas, foy povoado de Christãos, que alli viviaõ quietamente, em
especial depois que a terra começou a ser conquistada de infieis, por haver no dito monte
passos inexpugnaveis, não por artificio humano, mas por obra da natureza, pela qual causa
o Patriarca, que soia ter seu assento em Antioquia, se passou a este lugar, por viver nelle
mais quieto. Andando os tempos, aconteceo, que no principio do Patriarcado deste, quando
o Graõ Turco Solimaõ começou a querer conquistar a Palestina, & muita parte de Siria, que
era do Soldão do Egypto, foy vencido, & desbaratado com todos os seus, ficando o Soldaõ
vencedor. Vendo-se o Turco assim desbaratado a unha de cavallo, como dizem, se acolheo
408
a este lugar, aonde /
541
morava o Patriarca, guiado de alguns Christãos, que trazia no seu
campo, & escapáraõ com elle, por ser o sitio taõ inexpugnavel, que com pouca gente se
poderá defender de todo o mundo, porque em muytos lugares, não pòde ir mais que hua
pessoa, & ainda de pès, & mãos, como vi com meus proprios olhos; nem com artificio
humano, pelos grades precipicios, & asperesa dos passos, se poderá fazer de outra maneyra.
O Patriarca vendo em sua casa ao Grão Turco, fez-lhe todo o gasalhado, & festa possivel,
& teve-o comsigo alguns dias com todos os que o haviaõ acompanhado. Provendo-os muy
copiosamente conforme as suas forças de quanto podia, ainda que aquella gente naõ he de
tantos picados, & doces, como os nossos, nem morrem de comidas sobejas, como muytos
das nossas partes, que com diversidade de manjares, andaõ toda sua vida corruptos dos
estamagos, & dos costumes, sendo nossa natureza taõ boa de sustentar, que naquillo em que
a pondes se sustenta. Mostrou-se o Graõ Turco muy obrigado ao Patriarca pelo bom trato,
que lhe fizera, & aos seus; & depois vendo-se Senhor da terra, morto o Soldaõ em batalha
campal, o mandou chamar, & além de muytas, & grandes merces, que lhe fez, lhe concedeo
toda aquella parte do Monte Libano para sempre, limitando-lhe termo, para elle, & para
todos os Christaõs Maronitas, & que o Patriarca tivesse sobre elles jurisdiçaõ, & senhorio,
com tanto que em sinal de vassalagem tivessem sempre hu Subbasi Turco, ou Mouro, o
qual fosse quem elles quizessem. E além disto lhe concedeo, que naquella sua Igreja
Patriarcal pudessem ter sinos, que para elles foi muy particular mercè, por ser cousa, que se
não permitte em toda Turquia, nem entre os que seguem a ley de Mafamede.
542
Affirmáraõ-me haver na jurisdiçaõ do Patriarca atè quarenta mil homens, que
podiaõ sair a campo com arcos, & fundas, & outras armas do seu modo, & o mesmo
Patriarca, segundo suas irmãas me disseraõ, alguas horas tinha dito, que se Christãos
Latinos em seu tempo fossem conquistar a terra Santa, elle se obrigaria a lhe dar vinte mil
homens, toda gente limpa. O Subbasi, que naquelle tempo tinhaõ, era hum renegado, que
me affirmáraõ ser melhor Chriftão, & mais devoto, que nenhum delles, pelo que viviaõ
todos com muyta paz, & quietação, a qual o Senhor Deos tenha por bem dar aos que com
verdade crem, & adoraõ o seu santo Nome.
Ao dia seguinte em saindo o Sol, subimos ao mais alto de todo monte naquella
parte, q he meya legoa mais adiante da Igreja, caminho muyto aspero, & ingreme, por causa
409
de irmos ver os cedros postos no seu cume, por este ser o principal intento com que
comecei esta jornada.
Depois que de todo subimos ao mais alto, demos em hum plano, todo cuberto de
neve, aonde nos sahio desavergonhadamente ao encontro hum usso, hum tiro de malhaõ
dõde estávamos, mas vendo que hiamos muytos, porque nos acompanhavaõ huns mancebos
Maronitas, para nos ensinarem o caminho, desistio de nos commetter, mettendo-se por
entre a neve, dando-se pouco dos nossos brados, & gritos.
Chegámos aonde estaõ os cedros, os quaes em os vendo fiquey atonito, porque sua
altura, & grossura parece mostrar hua perpetuidade, & sem duvida taõ antiquissimos, & se
tem naquellas partes serem do tempo de Salamaõ, o qual mal pudera provar, posto que toda
a pessoa entendida, & lida, sabe serem arvores /
543
incorruptiveis, & que durão muyta
quantidade de annos: a qual propriedade se as tem os cedros das outras partes, muyto mais
as devem ter estes do Monte Libano, tão nomeados, & tantas vezes na Sagrada Escritura:
aos quaes se compara a Virgem nossa Senhora, & a elles saõ comparados os varões justos,
& tementes a Deos. Trata-se entre os Maronitas, & as outras naçoens daquellas partes, que
com aquelles cedros serem poucos, não se podem contar com certeza, porque huns contaõ
hua quantidade, & outros outra, o que querem attribuir a milagre, como homens sem
experiencia, mas na verdade o naõ he: & procede o erro de estarem taõ juntos hus dos
outros, que se tocaõ com as ramas: porèm se a cada pè de hum delles pondes hua pedra, ou
outro sinal, facilmente se sabe quantos saõ.
Seu fruto saõ humas pinhas pequenas, tem dentro huns pinhões pretos, como os das
nossas pinhas bravas. As folhas saõ como huas espinhas pequenas, & moles: seus ramos
estendem-se muyto: & cada hum delles he de maneyra, que lhe podem fazer emcima hua
cama muyto grande, & larga, & separados hus ramos dos outros.
Tivemos alli a sésta, & depois della os mancebos Maronitas nos levárão por outro
caminho mais comprido, mas muy deleytoso de muytas aguas, & vinhas, & sementeiras, &
alguas aldeas grandes, junto das quaes achámos em cinco, ou seis partes no caminho as
mesas postas, com paõ & vinho, ovos, & cousas de leyte, para que comessemos: mas em
nenhuma cousa tocámos, & soube ser aquelle costume antiquissimo naquella gente, quando
lá vão ter Christãos Latinos, & em particular Frades nossos pela muyta devoção que nos
410
tem, & pelo muyto gasalhado, que lhe fazemos, /
544
quando vão a Hierusalem, aonde não
tem proprio assento, mas pousaõ comnosco. Disseraõ-nos os que nos acompanhavão, q as
pessoas, q no caminho punhaõ aquellas mesas, se tinhaõ por muy injuriadas, se lhe não
comiaõ do q nellas estava, pois o faziaõ sem algum interesse. Já quasi noyte chegámos a
casa, & fomos recebidos das irmaãs do Patriarca cõ mais familiaridade pela communicaçaõ
do dia atraz, & tornarão a dar seu repique aos sinos cõ muyta festa. Ao outro dia em
amanhecendo disse eu Missa: & estiveraõ a ella muytos homens, & mulheres muy
devotamete, a qual acabada nos partimos, & chegámos a Tripoli a muyto boas horas, aonde
fomos dos nossos muy festejados á gloria, & louvor de nosso Senhor Jesu Christo.
411
CAPITULO XCIII.
De como nos partimos de Tripoli para o Reyno de Chipre.
Muitas vezes tinhamos rogado meu companheiro, & eu áquelles senhores
Venesianos, que dessem ordem á nossa partida, mas como elles sabiaõ muyto bem o tempo,
em que havia de partir a náo, aonde de Chipre haviamos de ir para Venesa, porque cada
semana tinhaõ recado por causa das mercadorias, que haviaõ de madar nella, detinhaõ-nos
com muyta cortesia, pedindo-nos, que nos não agastassemos, porque elles tinhaõ tomado á
sua conta a nossa partida: a qual seria muyto prestes com ajuda do Senhor Deos. Mas como
os desejos de nos ver em terra de Christãos eraõ muito grandes, ouvindo dizer que hua náo
de Marselha /
545
de França se fazia prestes para se partir, com algua desconfiança dos
nossos hospedes fomos ter com o Consul dos Francezes, & demos-lhe conta da nossa
determinação, & elle mandou logo chamar o Patrão da náo, que andava na Cidade,
concertámonos com elle, porq allegou ser pobre, & não nos poder levar de graça. Assentada
a cousa para nos partirmos com o primeyro tempo, fomos hum dia ver a náo, & tornamonos tão descontentes do aposento que nella nos davaõ, por ser muyto pequena, & toda
occupada de mercadorias, & os Francezes cujos, & mal concertados, q de todo nos
despedimos delles determinado esperar todo o tempo q parecesse aos Venesianos, porque
na verdade hua jornada tão comprida por mar, a náo ir a pessoa em muy bom navio, & mais
em verão, he morrer.
Não deyxárao os nossos hospedes de saber o que tinhamos feyto: mas em algua
maneyra dissimulárão, por saberem que a cousa havia de sahir daquella maneyra: &
segundo nos disserão, essa foy a causa porque nos não fóraõ á maõ. Dalli a poucos dias
concertada huma caravella carregada de mercadorias, que mandava o meu hospede Misser
Mathia, feita primeyro grande matalotagem á sua conta delles de todas as cousas
necessarias, para o mar, conforme a quem elles erão, sem o nòs sabermos: quando disso nos
dèrão conta, lhe dissemos, que sómente atè Chipre bastava, porque lá nos proveriamos do
que houvessemos mister, o que em nenhua maneyra consentiraõ, antes se lhe não fôramos á
mão com muytos rogos, de todo em todo quizerõo pedir entre todos hum peditorio de
412
dinheyro, para levarmos, & vindo-nos todos os que moravão pela Cidade primeyro visitar a
casa com grandes perdoens, & comprimentos: muytos nos acompanharão atè o /
546
porto,
aõde se despediraõ de nòs, co muytas lagrimas suas, & nossas, dado-nos muitas cartas de
recomendação, assim para o Capitão de Famagusta, aonde a caravella havia de ir primeyro
portar, como para outros senhores da mesma Cidade, que nos não fóraõ pouco proveytosas,
porque por ellas nos honrarão, & favorecerão aonde nos não conheciaõ. Não quero deyxar
de escrever outra humanidade, q comnosco quizeraõ usar aquelles senhores Venesianos:
porque além de muytas caridades, & banquetes, que nos deraõ alguas vezes, os que
moravaõ pela Cidade com suas mulheres, & filhos, vendo que não haviamos consentido no
peditorio publico, secretamente fizeraõ outro, & ao ponto que nos queriamos metter na
caravella, nos apartarão, rogando-nos muyto, que quizessemos aceytar aquella esmola,
pondo-nos diante a grande jornada, que tinhamos de passar atè Hespanha: mas vendo, que
em nenhuma maneyra quizemos admittir seus importunos rogos: ficarão, não pouco
edificados de nossa modestia, louvando-a huns com os outros, como cousa estranha, o que
nos não procedeo de pura virtude: mas porque de verdade naõ tinhamos evidente
necessidade.
Partimos do porto hum dia á tarde, & ao terceyro pela menhãa chegámos a
Famagusta, aonde achámos que se guardavaõ de peste, affirmando-nos que a havia na Terra
Santa, o que era verdade, mas não á nossa partida, ne menos em algum lugar de Palestina:
porèm houve-a em Hierusalem, por causa das muytas naçoens, que se juntarão aquelle anno
a semana santa, a celebrar os tantos mysterios della, & a ser o dia de Pascoa & tem-se por
experiencia os mais dos annos havela naquelle tempo, pelo grande fedor da muyta gente,
que quasi todos vivem çujamente. Não foraõ bastantes /
547
as cartas de favor, que
mostravamos, nem da certesa que dávamos do tempo, em que partimos de Hierusalem, &
do que estivemos em Tripoli, para sermos admittidos a entrar na Cidade, porèm deraõ-nos
junto dos muros, & ao longo do mar hua ermida para nos recolhermos, & comnosco hum
homem honrado, que vinha em nossa companhia de Tripoli, natural da mesma Famagusta,
& desposado nella, & a sua nos foy muyto boa os dias, que alli estivemos, porque a sogra
por hua parte, & a esposa por outra, nos proviaõ do bom da terra. O capitão da Famagusta
tambem nos mandou visitar, tendo muytos comprimentos comnosco, escusando-se por nos
413
não mandar logo entrar, com dizer que tinha algumas pessoas honradas em degredo, & peor
agasalhadas do que nos estávamos, & seria escandalo admittirnos a nòs, & não a ellas,
posto que bem sabia, que vinhamos desimpedidos, mas que nos satisfaria com estarmos
sómente oyto dias, & os outros haviaõ de estar os seus quarenta, como costumaõ naquellas
partes. Com tudo isto nos mandava cada dia visitar, & hua tarde nos veyo fallar ao muro, no
que nos fez muyta honra, & não pequeno favor. Tambem o Padre Guardião dos Padres
Conventuaes de hum Mosteyro da nossa Ordem, que ha na Cidade nos vinha visitar ao
muro cada tarde, mandandonos prover cada dia do que podia; de modo que dos nossos
sobejos podiamos prover outros mais necessitados.
Acabado o termo dos oyto dias, o Capitão nos mandou entrar acompanhados de
alguns seus amigos: & o fomos logo visitar, & nos recebeo com muytos offerecimentos da
pessoa, & da terra, & nos fomos aposentar ao nosso Convento de S. Francisco, aonde os
Frades Conventuaes nos agasalháraõ com muyta festa.
548
Estivemos em Famagusta sómente cinco dias, & ao seguinte nos partimos para
Salinas, aonde achámos duas náos Venesianas, já de todo carregadas, sómente esperando
tempo. Achámos alli ao longo da praya muyta gente posta em degredo, por virem da Terra
Santa entre a qual estavaõ tres mulheres Portuguezas, hua natural de Ceyta, & duas velhas,
hua de Moura, & a outra de setenta annos, natural de Lisboa, que tinha por sobre nome a
Faluga, as quaes com a nossa chegada não se tiveraõ por pouco ditosas, porque estavaõ
muy necessitadas, & no que nos foy possivel as provemos como proximas. Estando nòs
naquelle porto alguns dias esperando tempo, chegarão dez galès de Turcos, que eraõ da
guarda de Rodes, as quaes deraõ á terra grande enfadamento: porque foy necessario acudir
de toda a parte gente a lhe defender, que não sahissem em terra, ainda q eraõ de pazes, mas
proveraõ-nos de carnes, & do mais q havia muy copiosamente.
Estiveraõ alli tres dias, por ser o tempo da sua Pascoa, a qual festejáraõ com
atirarem de noite, e de dia muyta artilharia, & as galès todas embandeiradas, & de noyte
grandes fogos, & luminarias. Nos tiros que tirarão não lhe faltou malicia, porque tres, ou
quatro de noite foraõ com pelouros de ferro coado. Passados tres dias se partirão do porto,
ameaçando ao Patrão de hua das náos Venesianas, chamado Davo, porq da sua náo, ou por
descuydo, ou assinte, ao tempo q as galès chegarão ao porto quando pelas festejarem
414
desparáraõ toda a artilharia, lançarão hum pelouro de ferro coado, q os Turcos sentiraõ
muyto, posto que lhe não fez dano: mas como as náos estavaõ armadas, & artilhadas, &
outras de outra parte em sua con/serva 549 , dissimuláraõ a injuria, não vendo tempo para se
vingarem della.
415
CAPITULO XCIV.
De como nos partimos de Chipre para Franquia & do que passamos naquelle caminho, atè
tomarmos porto no Reyno de Nápoles.
EStando nòs preparados para a jornada do mar, pedindo de continuo ao Senhor
tempo para nos partirmos, teve por bem sua divina misericordia mandarno-lo, com o qual
se deu á vella alegremente atè passar toda a Ilha, & entrámos no grão golfo de Satalia,
aonde nos começárão de tratar mal calmarias com grandes surbiões do mar, que de tal
maneyra trazião a náo de hua parte a outra, q adoecia a gente, em especial passageyros, não
costumados ao mar, os quaes erão quasi cento, & entre elles alguas mulheres casadas com
seus maridos. Durou tanto aquelle enfadamento, que pareceo bem ao Patrão com conselho
do Piloto, & dos mais tomar terra, pois não podiamos ir por diante, & esperar outro tempo
melhor com que pudessemos fazer viagem. Tornando atraz tomarão porto junto á Cidade de
Paso, no mesmo lugar aonde á ida estivemos retidos quasi hum mez por causa do tempo
contrario. Sahirão logo em terra quasi todos os passageyros, & meu companheiro, & eu
com elles, & fomos logo buscar nosso amigo Constantin Polache, que á ida nos havia
festejado, & a Hierusalem nos havia escrito, rogandonos muyto, q á volta tornássemos por
Paso: o que tivemos por impossivel, quando sahimos de Salinas, /
550
mas nosso Senhor o
ordenou de outra maneyra para consolaçao sua, & recreação nossa.
Esteve a náo no porto oito dias, nos quaes alem das muitas festas, que aquelle Grego
nos fazia em sua casa: nos buscou todos os mimos, & refrescos, que lhe foy possivel achar
para o mar: & á nossa partida rogando-lhe nòs, que nos dissesse, que queria, que lhe
mandassemos de Venesa, nos respondeo, que nesta vida não havia mister outra cousa,
senaõ que tivessemos delle memoria. Acudindonos tempo, ainda que não muyto
bonançoso, tornarão a dar á vella, & indo por aquelle golfo á vista da Cramania, nos sahiraõ
ao encontro as dez galès de Rodes, que tinhão estado no porto de Salinas, cuja vista nos deu
muyta pena, porque levávamos muy pouco vento, que a ter mais, naõ tinhamos q temer.
Madou o Capitão de nossa nào amainar hu pouco a vella mestra, em sinal de obediencia, &
o escrivaõ da náo se metteo em hum esquife com dous gurumetes, & se foy direyto á galè
capitania, que vinha na retaguarda. Quando a ella chegou já estavaõ seis das outras a bordo
416
da náo, esperando pela capitania, para saberem o que haviaõ de fazer. O nosso capitão
estava huma cousa piedosa, & toda a mais gente turbada, & temerosa, como quem se via na
hora da agonia. Chegando o escrivaõ á galè capitania, deu-lhe a obediencia da parte do
nosso capitão: & o capitão da galè, sabendo quem vinha com a capitania da náo, & cuja era,
mandou logo apartar as galès offerecendo-se se queriaõ agua, ou lenha, ou outra cousa: &
perguntou por Davo, & aonde ficava, dizendo, que o andava esperando para se vingar delle
da injuria que lhe fizera, salvando-o com pelouro no porto de Salinas. Seguimos nosso
caminho, louvando muyto ao Senhor Deos, por / 551 nos livrar daquelle perigo. Vespera de
S. Joaõ á tarde, tomamos terra em hus desertos abayxo do Egypto, fizemos nossas
fogueyras, & de madrugada nos partimos. Depois passando junto a Candia com proposito
de fazer aguada, havendo tanta falta de agua, que a davaõ por medida, & mais turva, &
fedorenta: & querendo lançar ancora, mudou o capitão o proposito, dizendo, que
bebessemos vinho, pois a náo levava muyto. Tocamos no Zante, & na Zafalonia, aonde
fizerão pouca demora, & fomos ter a Corfu, aonde se detiveraõ oyto dias.
Sahidos do porto seguindo nosso caminho, ao dia seguinte veyonos tempo cõtrario,
que nos fez andar ás voltas dous, ou tres dias, da terra firme de Italia para a de Turquia, o
que vendo meu companheyro, tendo a náo lançado ancora da parte de Franquia, esperando
tempo para seguir viagem, rogou-me que quizessemos ir por terra, pois nos não faltava
cousa algua. Pareceo-me o seu parecer bem, com o qual me conformey, assim por me
desejar livre dos enfadamentos do mar, que são muyto grandes, como pelos desejos que
tinha de ver o Reyno de Napoles, pelo qual haviamos de caminhar, que não erão pequenos.
Aquella mesma tarde, sahio meu companheyro em terra, & foi a hu lugar chamado Nossa
Senhora de Galipoli, huma jornada pequena atè a Cidade de Otrato na Apulha Reyno de
Nápoles, & alli buscando cavalgaduras para o dia seguinte, se tornou a dormir á não.
Dèmos conta ao Capitão, que enfadados do mar, nos queriamos ir por terra, tambem por
vermos Cidades, & lugares, que nunca tinhamos visto: & deyxámos encommendado o
nosso fado a hum mancebo Venesiano, que nos servia na náo, & as reliquias, & cousas de
mais 552 estima, fechadas, & selladas na camara do Capitaõ, para que nos levasse a Venesa,
aonde fuy depois arrecada-las, & despedidos do Capitão, & dos mais, mostrando todos
muyto sentimento, & saudades com a nossa partida, nos sahimos da náo o segundo dia de
417
Agosto, dando muytas graças, & louvores a nosso Senhor JESU Christo, & a sua bendita
Madre, por vermos acabada nossa peregrinação como desejavamos, trazendo-nos a terra de
Christãos, cõ paz, & com saude, livrandonos de tantos perigos por mar, & por terra, pelo
que sua infinita bondade seja infinitamete louvada de todas as suas creaturas. Amen.
LAUS DEO.
Pax hominibus, bonis remissio peccatorum, malis auttem æterna confusio.
418
ÍNDICE
CAPITULO I. ......................................................................................................................... 1
Da nobilissima, & muy rica Cidade de Venesa, aonde se embarcaõ os peregrinos. 1
CAPITULO II......................................................................................................................... 7
Do modo q tem os peregrinos na sua embarcaçaõ. .................................................. 7
CAPITULO III. .................................................................................................................... 10
De como partimos de Veneza para a Terra Santa. ................................................. 10
CAPITULO IV. .................................................................................................................... 13
Da Ilha de Corfu & do que nella passamos. ........................................................... 13
CAPITULO V. ..................................................................................................................... 16
De como nos partimos de Corfu para Candia, & do que no caminho passamos.... 16
CAPITULO VI. .................................................................................................................... 22
De como tomàmos porto na Ilha de Candia. .......................................................... 22
CAPITULO VII.................................................................................................................... 26
De como tornàrão a nòs os Caloiros, como nos prometterão: & nos fomos com
elles ao seu Mosteyro....................................................................................................... 26
CAPITULO VIII. ................................................................................................................. 30
De como nos partimos do Mosteyro dos Caloiros, tornando para a nào, & do q nos
aconteceo no caminho...................................................................................................... 30
CAPITULO IX. .................................................................................................................... 36
De como nos partimos para Candia, & do que nos succedeo na viagem. .............. 36
CAPITULO X. ..................................................................................................................... 38
Da Cidade de Papho, & do que passamos no seu porto o tempo que nelle
estivemos. ........................................................................................................................ 38
CAPITULO XI. .................................................................................................................... 41
De como nos tornàmos à nào, e de huma perigosa tormenta que tivemos sobre
ancora............................................................................................................................... 41
CAPITULO XII.................................................................................................................... 44
Da causa porque se perdeu aquella nào.................................................................. 44
CAPITULO XIII. ................................................................................................................. 48
Do porto de Salinas. ............................................................................................... 48
CAPITULO XIV. ................................................................................................................. 52
Da cidade de Nicosia cabeça do Reyno de Chypre, & do tempo que nella
estivemos. ........................................................................................................................ 52
CAPITULO XV.................................................................................................................... 57
De como veyo o nosso padre Guardiaõ de Monte Siõ, & com sua vinda nos
partimos para Hierusalem. ............................................................................................... 57
CAPITULO XVI. ................................................................................................................. 60
De como chegamos ao porto de Japho, & do que nelle passamos. ........................ 60
CAPITULO XVII. ................................................................................................................ 64
Da porto de Japho & sua antiguidade..................................................................... 64
CAPITULO XVIII................................................................................................................ 68
Da cidade de Rhama ou Rhamula, & do tempo que nella estivemos..................... 68
419
CAPITULO XIX. ................................................................................................................. 73
Da Villa Anatoh, patria do Profeta Hieremias, & do Valle do Therebinto, no qual
David matou a Goliath..................................................................................................... 73
CAPITULO XX.................................................................................................................... 75
De como chegámos à Santa Cidade de Hierusalem. .............................................. 75
CAPITULO XXI. ................................................................................................................. 78
Da santa cidade de Hierusalem, & da sua fortaleza no tempo presente................. 78
CAPITULO XXII. ................................................................................................................ 84
Da Casa Santa de Hierusalem, aonde està o sepulchro de nosso Redemptor, &
outros lugares santos........................................................................................................ 84
CAPITULO XXIII................................................................................................................ 90
Do interior do Santo Templo, & Casa Santa, & do lugar aonde nosso redemptor
foy ungido quando o tiràraõ da cruz. ............................................................................... 90
CAPITULO XXIV. .............................................................................................................. 94
Do santissimo calvario aonde o nosso redemptor foi crucificado.......................... 94
CAPITULO XXV............................................................................................................... 102
Do santissimo sepulchro de nosso senhor Jesu Christo. ...................................... 102
CAPITULO XXVI. ............................................................................................................ 106
De algũas outras estancias, & estações que estaõ dentro neste sagrado templo, &
da cappella aonde pela rainha S. Helena, foy achada a Sãta Cruz................................. 106
CAPITULO XXVII. ........................................................................................................... 114
Das nações, & differenças de Christãos, que estão dentro na Casa Santa. .......... 114
CAPITULO XXVIII........................................................................................................... 116
Da naçaõ grega. .................................................................................................... 116
CAPITULO XXIX. ............................................................................................................ 120
Dos gorgianos....................................................................................................... 120
CAPITULO XXX............................................................................................................... 122
Dos armenios........................................................................................................ 122
CAPITULO XXXI. ............................................................................................................ 125
Dos copthos, & jacobitas...................................................................................... 125
CAPITULO XXXII. ........................................................................................................... 127
Dos abexins do preste Joaõ. ................................................................................. 127
CAPITULO XXXIII........................................................................................................... 130
Dos sirianos, ou caldeos. ...................................................................................... 130
CAPITULO XXXIV. ......................................................................................................... 133
Dos latinos............................................................................................................ 133
CAPITULO XXXV............................................................................................................ 137
Da procissaõ, que se faz dentro na Casa Santa, quando vaõ os peregrinos da
Franquia. ........................................................................................................................ 137
CAPITULO XXXVI. ......................................................................................................... 144
De como antigamente no sabbado santo vinha fogo do Ceo, & acendia as
alampadas do Santo Sepulchro, & como agora as acendem.......................................... 144
CAPITULO XXXVII. ........................................................................................................ 150
Do sagrado Monte Sion, que agora possuem os Turcos, & dos lugares santos que
dentro em si tem............................................................................................................. 150
420
CAPITULO XXXVIII........................................................................................................ 163
Da casa de Caifás, aonde o Apostolo S, Pedro negou o conhecimento que tinha do
Redemptor do mundo, & da casa de Anàs..................................................................... 163
CAPITULO XXXIX. ......................................................................................................... 167
Do lugar aonde foy degollado o Apostolo Sant-Iago Mayor, filho do Zebedeo. . 167
CAPITULO XL. ................................................................................................................. 170
De outras eflações, & lugares santos, que estaõ na Igreja de SantIago atè o Santo
Sepulchro. ...................................................................................................................... 170
CAPITULO XLI................................................................................................................. 173
Da rua vulgarmente dita da Amargura, pela qual nosso Redemptor foy com a Cruz
ás costas da casa de Pilatos ao Calvario. ....................................................................... 173
CAPITULO XLII. .............................................................................................................. 180
Do Templo de Salamaõ. ....................................................................................... 180
CAPITULO XLIII. ............................................................................................................. 193
De algũas outras particularidades, que ha na Santa Cidade. ................................ 193
CAPITULO XLIV.............................................................................................................. 199
Do Valle de Josaphat, aonde se tem havermos de ser todos julgados.................. 199
CAPITULO XLV. .............................................................................................................. 201
Do sepulchro da gloriosa Virgem Maria nossa Senhora, como nelle se celebra a
festa da sua gloriosa Assumpcaõ. .................................................................................. 201
CAPITULO XLVI.............................................................................................................. 207
Do Horto de Gethsemani, & do lugar aonde N. Redeptor orou ao Padre, & de
outros santos lugares...................................................................................................... 207
CAPITULO XLVII. ........................................................................................................... 218
Do sagrado Monte Olivete, do qual nosso Redemptor subio ao Ceo................... 218
CAPITULO XLVIII. .......................................................................................................... 224
Do Castello de Bethania. ...................................................................................... 224
CAPITULO XLIX.............................................................................................................. 228
Do caminho que vay de Hierusalem para Belem, & de muytas particularidades que
ha nelle........................................................................................................................... 228
CAPITULO L. .................................................................................................................... 234
Da Cidade de Belem, & da Igreja de nossa Senhora, & sua fabrica. ................... 234
CAPITULO LI.................................................................................................................... 238
Do Mosteiro que fez em Belem o glorioso Doutor S. Hieronymo, no qual agora o
moraõ os Frades de S. Francisco. .................................................................................. 238
CAPITULO LII. ................................................................................................................. 240
Do lugar aonde nasceo nosso Senhor Jesu Chisto, & do santo Presepio aonde foy
reclinado......................................................................................................................... 240
CAPITULO LIII. ................................................................................................................ 246
Da procisaõ que cada noyte se faz ao santo Presepio, & como se celebra a festa do
Nascimento. ................................................................................................................... 246
CAPITULO LIV................................................................................................................. 250
Do lugar aonde o Anjo appareceo aos Pastores a noyte do santo Nascimento. ... 250
CAPITULO LV. ................................................................................................................. 253
421
Do jardim de Salamaõ Rey qne foy de Hierusalem, chamado na Escritura, hortus
conclusus, & da fonte sellada, ou cerrada...................................................................... 253
CAPITULO LVI................................................................................................................. 256
Da montanha de Judea, & do lugar aonde nasceo o glorioso S. João Baptista. ... 256
CAPITULO LVII. .............................................................................................................. 262
Do caminho que fazem os peregrinos, indo de Hierusalem a Belém, quando vão de
Franquia. ........................................................................................................................ 262
CAPITULO LVIII. ............................................................................................................. 265
Do caminho,& peregrinação de Hebron, aonde estão sepultados o santos Patriarcas
Abrahão, Isaac, & Jacob. ............................................................................................... 265
CAPITULO LIX................................................................................................................. 268
Da Cidade Hebron, & do campo Damasceno, aonde dizem, que foy creado nosso
pay Adão, & da sepultura dos Santos Patriarcas. .......................................................... 268
CAPITULO LX. ................................................................................................................. 271
Da jornada, & caminho que fizemos ao Jordaõ, de como fomos ter ao Mosteyro de
Santo Sabbà.................................................................................................................... 271
CAPITULO LXI................................................................................................................. 276
Do Mosteyro & Abbadia de Santo Sabbá, & de como fomos recebidos dos
Caloiros.......................................................................................................................... 276
CAPITULO LXII. .............................................................................................................. 284
De como nos partimos do aduar dos Arabes, & fomos ter à santa Quarentena. .. 284
CAPITULO LXIII. ............................................................................................................. 287
Da santa Quarentena............................................................................................. 287
CAPITULO LXV. .............................................................................................................. 290
Da Cidade Jericò, & da fonte do Profeta Eliseu................................................... 290
CAPITULO LXV. .............................................................................................................. 293
Do sagrado Rio Jordão. ........................................................................................ 293
CAPITULO LXVI.............................................................................................................. 296
De como passamos o Rio Jordão, & fomos ter ao Monte Nebo. ......................... 296
CAPITULO LXVII. ........................................................................................................... 298
De como partidos do Jordão fomos ter ao Mar Morto e das suas màs propriedades.
....................................................................................................................................... 298
CAPITULO LXVIII. .......................................................................................................... 304
Da mulher de Loth, que foy convertida em estatua de sal. .................................. 304
CAPITULO LXIX.............................................................................................................. 306
De como nos partimos do Mar Morto, & de hua novidade, que vimos naquelle
caminho.......................................................................................................................... 306
CAPITULO LXX. .............................................................................................................. 308
Do como se descobrio a trayçaõ do Christaõ de Belem, & de como foy preso meu
companheiro................................................................................................................... 308
CAPITULO LXXI.............................................................................................................. 311
De como nos partimos dos Arabes, & chegàmos á Abbadia, & de como fomos
recebidos nella. .............................................................................................................. 311
CAPITULO LXXII ............................................................................................................ 313
De como nos partimos de Santo Sabbà, & nos tornamos a Belém. ..................... 313
422
CAPITULO LXXIII ........................................................................................................... 314
Do lugar chamado Silo na Sagrada Escritura, aonde muytos annos esteve a Arca
do Velho Testamento. .................................................................................................... 314
CAPITULO LXXIV. .......................................................................................................... 321
Do Castello Emaùs. .............................................................................................. 321
CAPITULO LXXV. ........................................................................................................... 323
De huma admiravel sepultura, que se descobrio junto da santa Cidade, pouco
tempo antes que a ella fossemos. ................................................................................... 323
CAPITULO LXXVI. .......................................................................................................... 326
De como se deu ordem a nossa partida de Hierusalem, & Palestina para Franquia.
....................................................................................................................................... 326
CAPITULO LXXVII.......................................................................................................... 330
De como nos partimos de Hierusalem, & fomos ter a hu lugar chamado Biro,
aonde dizem, que a Virgem N. S. achou menos ao Senhor do mundo. ......................... 330
CAPITULO LXXVIII. ....................................................................................................... 333
De como chegámos ao Biro, & delle nos partimos para a Cidade Sichar............ 333
CAPITULO LXXIX. .......................................................................................................... 338
Da Cidade Sichar, ou Sichen, & do poço aonde nosso Redemptor esteve fallando
com a mulher Samaritana. ............................................................................................. 338
CAPITULO LXXX. ........................................................................................................... 344
De como nos partimos de Sichar, & fomos ter ao castello aonde nosso Redemptor
sarou os dez leprosos. .................................................................................................... 344
CAPITULO LXXXI. .......................................................................................................... 348
Do castello aonde nosso Redemptor sarou aos dez leprosos, o qual ao presente se
achama Janin, & dalli nos partimos para Cannà de Galilea........................................... 348
CAPITULO LXXXII.......................................................................................................... 354
De Cannà de Galilea, & do mar de Tiberiade, & outros lugares.......................... 354
CAPITULO LXXXIII. ....................................................................................................... 359
Do logar chamado Dotaim, & da cisterna aonde os filhos de Jacob meterão a seu
irmão Joseph. ................................................................................................................. 359
CAPITULO LXXXIV. ....................................................................................................... 362
Da Ponte do Patriarca Jacob, & da Vila de Sapheto, & de Nazareth. .................. 362
CAPITULO LXXXV. ........................................................................................................ 367
De como nos partimos da ponte de Jacob para Damasco, & do que passámos no
caminho.......................................................................................................................... 367
CAPITULO LXXXVI. ....................................................................................................... 371
Da muy famosa Cidade de Damasco, & do tempo que nella estivemos. ............. 371
CAPITULO LXXXVII....................................................................................................... 377
De alguas particularidades, que vimos na Cidade de Damasco. .......................... 377
CAPITULO LXXXVIII. .................................................................................................... 383
De como nos partimos de Damasco, & fomos ter à Cidade de Baruthi. .............. 383
CAPITULO LXXXIX. ....................................................................................................... 388
Da Cidade de Baruthi, & do tempo que nella estivemos...................................... 388
CAPITULO XC.................................................................................................................. 391
Das Cidades Tyro, Sarepta, & Sidonia................................................................. 391
423
CAPITULO XCI. ............................................................................................................... 396
Da Cidade de Tripol. ............................................................................................ 396
CAPITULO XCII. .............................................................................................................. 404
Do Monte Libano. ................................................................................................ 404
CAPITULO XCIII.............................................................................................................. 411
De como nos partimos de Tripoli para o Reyno de Chipre. ................................. 411
CAPITULO XCIV.............................................................................................................. 415
De como nos partimos de Chipre para Franquia & do que passamos naquelle
caminho, atè tomarmos porto no Reyno de Nápoles. .................................................... 415

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