religião e política no antigo israel - FNB Online

Transcrição

religião e política no antigo israel - FNB Online
78
RELIGIÃO E POLÍTICA NO ANTIGO ISRAEL
Elissa Gabriela Fernandes Sanches*
Resumo
A teologia cristã, na tentativa de fornecer respostas ao contexto presente, deve ser
coerente com a sua linha de pensamento. Como saber da fé, ela precisa, a partir
das Escrituras, olhar para o contexto histórico atual e pensar como Deus atua nos
setores da vida pública social, ética e, sobretudo política. Em vista disso, é
premente entender como Deus age na criação, e por isso a necessidade de retorno
às origens, de modo a investigar Sua presença no mundo. Este artigo tem como
proposta analisar, – com base em dados bíblicos e documentais, enfatizando,
sobretudo, na fonte javista – a forma como Israel compreendia a Iahweh desde a
formação das doze tribos até o estabelecimento na Terra Prometida. Com isso,
pretende-se reforçar a imprescindibilidade de se olhar para a história bíblica e
recuperar a riqueza de discernimentos dos antigos sobre como Deus se manifesta
no mundo, este o ponto de partida para recomeçar a pensar na forma como Deus se
revela hoje, em meio a Sua criação, acompanhando a cultura e história humanas.
Palavras-chave: pré-exílio; patriarcas; teologia e política; fonte javista.
Abstract
Christian theology, as it tries do provide answers to the current context, must be
coherent with its line of thought. As the knowledge of faith, it must, from the
Scripture, look to the current historical context and think how God acts in the
different public life’s areas: social, ethical and especially political. It is, therefore, a
pressing issue to understand how God acts in its creation and, because of that, a
necessity of returning to the origins, to investigate His presence in the world. This
paper attempts to analyse – based in biblical and documental data emphasizing
specially the Yahvistic source – the way in which Israel understood Yahweh since
the formation of the twelve tribes until their settlement in the Promised Land. In
this way, we want to reinforce the indispensability of looking to the biblical history
and recover the richness of understanding from the ancients about how God
manifests Himself in the world, that being the starting point to rethink how God
reveals Himself today, amidst His creation, accompanying human history and
culture.
Keywords: pre-exile; patriarchs; theology and politics; Yahwistic source.
*
Graduada em Teologia
[email protected].
pela
Faculdade
Nazarena
do
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
Brasil
(FNB).
Contato:
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
79
INTRODUÇÃO
O Antigo Testamento é uma coleção de livros escritos anteriores ao
nascimento de Jesus de Nazaré, fenômeno este que demarca o início de um novo
tempo. No total ele é constituído por 39 obras – são 46 na Bíblia Cristã Católica – e
apresenta o anseio profético diante do futuro, em que uma nova aliança será
estabelecida. O vocábulo aliança, no latim, significa testamentum, no qual se situa o
léxico bíblico: Antigo Testamento, Antiga Aliança.
São marcantes as diferenças entre o Antigo e o Novo Testamentos, de tal
forma que surgiram diversas seitas como a dos cátaros, que afirmavam a distinção
concomitante dos deuses. O Catarismo foi um movimento asceta que surgiu no
século XI d.C. e perdurou até o século XII d.C. Acredita-se que suas crenças
tiveram origem no Império Bizantino, e eles se opunham à Igreja Católica,
protestando contra suas práticas “impuras”. Na visão deles, o Deus bom e
verdadeiro era unicamente aquele do Novo Testamento. Todavia, os primeiros
pensadores medievais cristãos já avaliavam o Novo Testamento como um conjunto
de textos que, dentre outras coisas, apresentavam o cumprimento das profecias
presentes no Antigo Testamento. Agostinho de Hipona, filósofo e teólogo patrístico,
estudava as Sagradas Escrituras na tradução da Vulgata Latina trabalhando uma
hermenêutica que encontrasse correspondências entre os dois conjuntos bíblicos.
As narrativas bíblicas retratam uma série de eventos que, em sua maioria
são considerados realmente históricos. A humanidade ali presente, vinculada à
divindade de Yahweh (ou Elohim), deve servir como base para as perguntas que
assolam a razão de hoje. Submersa no mar da complexidade contemporânea, a
Bíblia,
em
nenhum
momento,
se
mostra
menos
complexa.
Recheada
de
simbolismos, significados e revelações ocultas, ela apresenta, de forma bastante
sensível, a origem, continuidade e desenvolvimento do contato da criação com o
criador, em particular dos seres humanos. O objetivo desta breve investigação é
suscitar algumas pistas, através das reflexões de estudiosos da Bíblia, que possam
ser capazes de elevar o pensamento a, no mínimo, visualizar a necessidade de se
aprofundar nas questões por eles apresentadas. Talvez assim, despontem pequenos
estalos de iluminação que auxiliem na atual busca por respostas.
1.
O Antigo Testamento: história e a torah
O conjunto de livros agrupados pelo Antigo Testamento fornecem relatos
históricos dos mais diversos, bem como incluem escritos de uma variada gama de
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
80
gêneros textuais, os quais, em síntese, favorecem a compreensão da historiografia
do povo de Israel. As edições dos textos bíblicos que se encontram disponíveis nos
dias atuais são resultado de traduções de manuscritos de origens miscigenadas,
como Elpidius Pax informa
Nossas edições modernas do texto se baseiam em manuscritos
hebraicos dos séculos IX a XII d.C., entre os quais se destacam o
chamado códice dos profetas do Cairo, o códice de Leningrado e
principalmente o chamado códice padrão dos judeus sefaraditas de
Alepo (PAX, 2012, p. 29).
Após a recuperação dos documentos, se seguiram vários esforços em traduzilos, como a obra Septuaginta, também chamada de LXX, resultante da tradução da
Bíblia hebraica para a língua grega koinê. Ela também foi considerada a única fonte
documental historiográfica até a descoberta dos manuscritos do Mar Morto, os
documentos de Qumran (SANTOS, 2008a, p.3), em 1947. Este evento pode ser
descrito da seguinte forma:
A seita judaica lá estabelecida, que viveu numa espécie de ordem
religiosa do século I a.C. até o século I d.C., guardou a sua biblioteca
em utensílios de barro ante a invasão iminente dos romanos e
escondeu-os em cavernas inacessíveis nas montanhas da Judeia. Lá
apareceram um rolo completo do livro de Isaías e fragmentos maiores
ou menores de todos os livros canônicos, com exceção de Ester, que
datam mais ou menos do séc. I a.C. A grande surpresa consiste no
fato de que esses textos estão amplamente de acordo com os textos
que nos eram conhecidos até então. Mostrou-se que não tinha
fundamento o temor de que muitas mudanças tivessem sido feitas ao
longo dos séculos. Nas variantes, eles se assemelham fortemente à
Septuaginta (PAX, 2012, p. 31.).
É preciso destacar o vasto trabalho dos massoretas na reconstituição dos
vocábulos textuais, inserindo vogais entre as letras para identificação dos termos.
Neste sentido observa-se, principalmente, a importância dos trabalhos executados
pela família Ben Asher, entre os séculos VIII a X d.C., uma das principais a
realizarem este empreendimento1.
O cânon bíblico do Antigo Testamento atual se divide em duas vertentes: a
primeira foi estabelecida pela Igreja Católica, no Concílio de Trento (PAX, 2012, p.
33), realizado entre 1545 a 1563 pelo Papa Paulo III e dividido em três períodos de
discussões (1545-47, 1551-52 e 1562-53). Nas sessões iniciais estabeleceu-se a
1 PAZ, 2012, p. 30. Para conferir informações mais detalhadas sobre o assunto, ver a
dissertação de mestrado: FRANCISCO, Edson Farias. Masora Parva comparada: Comparação entre as
Anotações massoréticas em textos da Bíblia Hebraica de Tradição Ben Asher em Isaías, capítulos de 1
a 10. 2002. 250 f. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
81
oficialidade do cânon bíblico do Antigo Testamento 2 a ser utilizado pela Igreja
Católica nos anos que se seguirem e. Neste acordo foram incluídos na versão final
do cânon, os livros apócrifos de Judite, Tobias, Sirácida, Sabedoria de Salomão, 1 e
2 Macabeus e Baruque. Já a segunda vertente do cânon foi adotada por Martinho
Lutero (PAX, 2012, p. 33) que optou pela versão aceita pelo Concílio de Jâmnia,
ocorrido entre os anos 75 a 115 a.C. Johann Maier deixa bem claro que a afirmação
da canonicidade de um texto não o torna mais ou menos verídico historicamente
em comparação com os textos não-canônicos, “A canonicidade define uma
qualidade religiosa, no âmbito de uma teologia da revelação, e decide sobre o uso
litúrgico ou outro uso religioso” (MAIER, 2005, p. 22).
O Pentateuco é o conjunto dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, e
agrupam o conjunto de leis e relatos acerca da formação das doze tribos de Israel e
sucessivo assentamento na terra que havia sido prometida por Iahweh (fonte
javista) ou Elohim (fonte eloísta). Para a religião judaica, este grupo bíblico é
denominado torah, ou seja, o conglomerado de normas definidas como a lei de Deus
para o Seu povo, e que possui suposta autoria mosaica.
Para alguns teóricos biblistas, a formação narrativo-literária do Pentateuco
se estende ao longo dos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Portanto,
o conjunto total deveria ser um Heptateuco, Octateuco ou até Eneateuco. Por outro
lado, estudiosos como Martin Noth e Roland de Vaux afirmam a necessidade do
livro de Deuteronômio ser colocado a parte e, assim, ser considerado o prefácio da
obra deuteronomista. O Pentateuco neste caso seria denominado Tetrateuco
(SANTOS, 1998b, p. 16). Todavia, Ska reconhece a relevância própria da tradicional
ordem bíblica:
Há razões importantes para continuar falando de um “Pentateuco”,
embora [...] esse modo de integrar os primeiros livros do Antigo
Testamento não exclua outros. Mas ele tem um valor especial,
porque leva em conta uma forma canônica, definitiva e normativa da
Bíblia para a comunidade de fé, ou seja, primeiro para o povo de
Israel, agora para as Igrejas cristãs. (SKA, 2003, p. 23).
Com referência à autoria, sabe-se que, na tradição judaica, a escrita do
Pentateuco foi realizada pelo patriarca Moisés. Porém, um dos primeiros teólogos a
contestarem tal afirmativa foi o reformado Andreas Bodenstein von Karlstadt entre
os séculos 15 e 16 (SANTOS, 1998b, p. 21) por meio de análises no estilo textual de
Deuteronômio 34. Em seguida, outros biblistas, ao proporem novas hipóteses,
avaliaram a possibilidade da existência de compiladores que deram a forma final ao
2 Enciclopaedia Britannica. Council of Trent: Roman Catholicism. 2014. Disponível em:
http://www.britannica.com/event/Council-of-Trent. Acesso em 10 Jul 2015.
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
82
texto do Pentateuco.3
2.
A organização tribal de Israel
Em Gênesis está apresentado o princípio da compreensão política do povo de
Israel, em que o próprio texto aborda o entendimento dos israelitas sobre o tipo de
governo que Iahweh requeria deles. O livro é uma compilação de diversas narrativas
e tradições que, por muito tempo, permaneceram orais. Afirma-se4 também que tais
composições
possuem
muitos
elementos
de
similaridade
com
a
mitologia
mesopotâmica, egípcia e da extinta cidade portuária síria, Ugarit. Alguns autores
afirmam que estes elementos não são coincidentes, e resultam de um longo
processo de assimilação narrativa. Para eles, tais mitologias serviram como um
modelo para as histórias da criação posto que eram anteriores ao pensamento
monoteísta dos indivíduos pré-patriarcais. Afinal muitos já tinham feito os mesmos
questionamentos que o povo de Israel estava começando a realizar, para fins de
compreender as origens de sua fé. No prólogo da obra A criação e o dilúvio: segundo
os textos do Oriente Médio Antigo o autor Jacques Briend se preocupa em esclarecer
esta questão:
Antes de o povo de Israel ter à luz da fé sua própria visão das
origens, outras culturas, no quadro literário do mito ou da lenda,
tinham procurado trazer uma resposta aos grandes questionamentos
do homem que vive em sociedade: Quem somos nós? Qual a nossa
relação com os deuses? Como compreender a realidade do trabalho,
do casal humano, do ato de gerar, do culto? Qual a ordem deste
mundo? Quem preside as forças presentes neste mundo e a quem
elas obedecem? Como compreender os flagelos que se abatem sobre
a humanidade (seca, fome, epidemias, dilúvio)? Por outras palavras,
a reflexão de Israel não é a primeira, em época precisa; sem deixar de
ser original, inscreve-se em longa busca religiosa: de um lado e de
outro, as perguntas são as mesmas, embora as respostas não sejam
idênticas. (DUPRAT, 1990, p. 5).
Ainda que o texto em Gênesis seja de linguagem mítica, esta característica
3 Andreas Masius acreditou ter sido Esdras o compilador dos textos do Pentateuco, para Jean
Leclerc foram os samaritanos a manterem a identidade das narrativas (SANTOS, 1998). Todavia, é de
consenso geral da crítica bíblico-histórica que as formas finais do Pentateuco foram reunidas por um
sacerdote durante o período do exílio babilônico (587 a.C.). “A postura mais tradicional (dentro da
crítica histórica) é de supor que esse sacerdote não compôs na realidade uma obra literária própria,
senão que se limitou a reunir em um volume duas obras anteriores (JED e P) sem incluir nada
substancial que lhe fosse próprio (por esta razão se lhe dá o nome de “redator” e não de “autor”), com
a finalidade de recompilar todas as tradições existentes e impedir assim que se perdessem neste
período tão calamitoso para seu povo” (SANTOS, 1998, p. 24).
4 Referente a isto, conferir CLIFFORD, R. J.; MURPHY, S. J. R. E.; CARM, O. Gênesis.
In:.
BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. Novo comentário bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. Trad. Celso Eronides Fernandes. São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda; Paulus, 2007. E a
obra DE M. DUPRAT, M. C. (trad.). A criação e o dilúvio: segundo os textos do Oriente Médio Antigo.
São Paulo: Paulinas , 1990. (Documentos do Mundo da Bíblia, v. 7).
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
83
não dispensa a tradicional compreensão das Sagradas Escrituras como literatura
inspirada, pois todos os relatos contidos devem ser compreendidos como fruto de
uma experiência vivencial entre Iahweh e Seu povo. Como Briend também
reconhece: “O texto bíblico procura compreender o destino da humanidade diante
do Deus vivo” (DUPRAT, 1990, p. 6), destino esse presente na totalidade da história
humana, cumprido a cada dia por meio da missão que cada cristão assume através
de seu chamado para servir a Deus.
Nos relatos bíblicos de forma geral está claro que o povo de Israel se
apropriou, com o tempo, de uma composição política semelhante à dos grandes
impérios ao seu redor, como o egípcio por exemplo. Porém, com a ressalva de que a
liderança era, na verdade, uma intermediadora do governo de Iahweh em relação ao
seu povo. Assim, retornando ao modo tribal pré-monárquico de Israel, em que o
governo era realizado pelas próprias tribos, sua articulação sócio-política era
diferenciada daquela de seus vizinhos.
A dinâmica da organização interna das tribos de Israel durante a sua
primeira fase, do estabelecimento na terra de Canaã de acordo com Roland de Vaux
(2003, p. 26) ocorreu da seguinte forma: os indivíduos eram as unidades-base que,
ligados por vínculo de sangue5, constituíam as famílias, as quais eram reunidas em
clãs que, agrupados, formariam uma tribo. Esta descrição serve para se ter uma
noção da totalidade da constituição política do povo de Israel antes do exílio6. Cada
unidade de formação (família, clãs, tribos, Israel) possuía sua liderança e seu
governo específico: a família era regida pelo patriarca, o clã pelo conjunto de
patriarcas, denominados anciãos. Cada tribo possuía o seu chefe que, no caso dos
árabes, é o sheikh. De Vaux afirma não saber exatamente o cargo semelhante ao
sheikh nas tribos israelitas, no entanto “seria normal que as tribos fossem
representadas nele [espécie de conselho] nas pessoas de seus chefes” (DE VAUX,
2003, p. 27).
O chefe das tribos era o juiz “que tinha a missão de manter a unidade das
tribos. Era como uma espécie de curinga, quando surgia algum conflito interno ou
externo, entrava em ação”. 7 . Entretanto, De Vaux explica que não existia um
5 De Vaux (2003, p. 24) informa que “Com relação aos indivíduos, sua incorporação a uma
tribo pode realizar-se por adoção em uma família [...] ou por aceitação do sheikh ou dos Anciãos. [...] o
recém-chegado é ligado ‘por nome e sangue’ à tribo, ou seja, reconhece o antepassado da tribo como
seu próprio antepassado, se casará dentro da tribo e fundará uma descendência.”, e no caso das
tribos de Israel, o elo de parentesco entre todos se dava pela fé que possuíam em Iahweh. Este era
superior a qualquer vínculo sanguíneo (DE VAUX, 2003, p. 25).
6 Tal constituição política está de forma clara apresentada na Bíblia Sagrada, Antigo
Testamento, livro de Josué, capitulo 7, versículos 14 a 18.
7 LUZA, Nilo. Formação das Tribos. In: LUZA, Nilo. Etapas da história de Israel. Fev. 2014.
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
84
sistema político propriamente dito, muito menos um governo permanente das
tribos:
Em todo caso, os relatos do livro dos Juízes mostram a confederação
das tribos sem órgão de governo e sem verdadeira eficácia política.
Os membros formam um mesmo povo, participam de um mesmo
culto, mas não têm um líder comum e a tradição antiga não conhece
nessa época nenhuma personalidade comparável a Moisés ou Josué.
Sem dúvida, o redator do livro dos Juízes divide o período entre
líderes, que teriam regido sucessivamente a todo Israel depois de têlo libertado de uma opressão estrangeira. Faz já tempo que se
reconhece que essa apresentação é artificial. Esses a quem
chamamos os ‘grandes juízes’, são os ‘salvadores’, cf. Jz 3:9,15, de
um clã ou de uma tribo em situação crítica. Só excepcionalmente
sua ação se estende a um grupo de tribos, como no caso de Gideão e,
sobretudo, de Débora e de Baraque (DE VAUX, 2003, p. 119).
Quanto à formação tribal e sua origem, algumas teorias histórico-bíblicas
concordam que Israel é um grupo heterogêneo de famílias, indivíduos e clãs que já
existiam anteriormente e migraram de pontos em pontos na busca de um local para
se estabelecerem, protegidos de outros povos maiores e possíveis invasões
estrangeiras. Em seu meio haviam mercenários, estrangeiros, bem como conjuntos
familiares de antigas tradições. Para Georg Fohrer existiram várias ondas de
migração de diversos grupos no Oriente Médio Antigo para a Palestina, e que ele
enumera de um a quatro. A quarta onda, ele chama de onda aramaica, a qual
justifica a procedência de parte dos indivíduos que compõem a população de Israel.
Todavia, “é duvidosa a origem aramaica dos grupos associados com os nomes dos
patriarcas” (FOHRER, 2006, p. 34). devido a assincronia temporal entre a
penetração na Mesopotâmia seguida da migração para a Palestina. Suspeita-se que
tais grupos “aramaicos” eram, na verdade, povos mesopotâmicos. Os relatos
bíblicos apresentam uma outra explicação das origens dos israelitas. Segundo Dt.
26:5-9 eles são provenientes de um arameu, José, que foi para o Egito, ali se
sedentarizou e constituiu várias famílias, que foram escravizadas pelos egípcios.
Para sair de tal condição todos fugiram para a terra que Deus havia separado, que
mana leite e mel, Canaã8.
Fohrer refuta a teoria bíblica deuteronomista explicando que, de acordo com
Gn. 25:1-5, 12-18, sobretudo o v. 18, a descendência de Abraão – que Israel
contempla como fundadora da nação – segundo a localização geográfica, foi
composta de tribos arábicas juntamente com os madianitas. Nenhum destes
possuía origem aramaica. E assevera:
Disponível em http://www.paulus.com.br/portal/colunista/nilo-luza/etapas-da-historia-de-israel2.html#.VZpjWflViko. Acesso em 06 Jul. 2015.
8 Cf. a distribuição das tribos de acordo com os dados bíblicos em Dt. 3:12-29.
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
85
A ocupação da Palestina pelos israelitas não foi uma realização de
todo o Israel sob a liderança de uma única pessoa; ela aconteceu em
diversos estágios e num considerável período de tempo.9
De
Vaux
considera
a
documentação
bíblica
como
insuficiente
para
determinar a demografia das tribos de Israel 10 . Henri Cazelles (1986, p. 17-30)
constata que a historiografia bíblica, ao ser confrontada com as historiografias
egípcias, babilônicas e gregas, demonstra incertezas, bem como a sua cronologia.
Todavia, o mesmo autor afirma existir grupos de estudiosos que atentam para os
achados arqueológicos como forma de corroborar as evidências bíblicas a partir de
Abraão (CAZELLES, 1986, P.27). Desta forma, é necessário ressaltar o estudo
arqueológico como uma das formas de comprovação ou contraposição das
narrativas.
Cazelles pondera que “não convém começar uma história política de Israel
por Abraão” (CAZELLES, 1986, p. 71) e que é importante recorrer às origens
próprias de cada tribo israelita. O autor, ao discorrer sobre as etnias que deram
origem
às
tribos
de
Israel,
aponta
que
foram
diversas
e
de
localização
diferenciada11.
3.
Iahweh e as tribos de Israel
Cristopher Wright explica que:
Deus age primeiro e convoca as pessoas para que reajam. Este é o
ponto de partida do ensinamento moral do Antigo Testamento. Deus,
pela sua graça, toma a iniciativa num ato redentor e, então, faz suas
exigências éticas à luz dessa iniciativa. A ética se torna, então, uma
questão de reação e gratidão, e não apenas uma obediência cega.[...]
Quando penetramos mais na história do livro de Êxodo, descobrimos
que o relacionamento de Israel com Deus não apenas se
fundamentou na sua graça redentora, mas também foi mantido pela
sua graça perdoadora (WRIGHT, 1983, p. 22).
Muito embora o pensamento político do povo de Israel seja primitivo em nível
9 FOHRER, 2006, pp. 74, 75. Para uma descrição mais completa da teoria de Fohrer, ver o
tópico “4. A religião dos antigos Israelitas na Palestina”, especificamente o primeiro subtópico contido
em FOHRER, G. O fundo religioso. In: FOHRER, Georg. História da religião de Israel. Trad. José
Xavier. São Paulo: Academia Cristã Ltda, Paulus, 2006, p. 74-77.
10 Para o estudo demográfico da soma da população de Israel, De Vaux (2003, p. 89) avalia: “É
certo que há na Bíblia algumas indicações numéricas, mas não ajudam muito.”. Ele percebe que
alguns relatos se assemelham muito na soma total de habitantes, porém outros, como o censo da
época de Davi descrito em II Sm. 24:9 seriam exagerados frente à contagem real. Segundo os poucos
documentos oficiais que existem, a exemplo do censo inglês de 1931, De Vaux afirma não terem
existido muito mais do que um milhão de habitantes em Israel antes do movimento sionista, portanto,
em anos anteriores, a população de Israel não deveria ser superior a este valor, sobretudo devido aos
meios de subsistência escassos que impediam a manutenção alimentar de um grande número de
população.
11 Para mais informações cf. CAZELLES, H. Os agrupamentos de tribos. In: CAZELLES,
1986, p. 79-86.
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
86
de sistematização, Iahweh era o grande rei do conjunto das tribos. Os israelitas
estavam vinculados nesta certeza, eram os súditos de Deus, e é sobre esta ética, da
qual fala Wright, que se pautava o eixo político do povo. Aliás, política sem ética
vira uma forma de tirania ou totalitarismo, ou seja, deixa de ser política e se torna o
poder sobre o poder. Deve-se evitar este modelo em toda a construção política
humana. Tal compreensão ética, que possui como foco a solidariedade, o
preocupar-se com o outro, bastante presente nas tribos de Israel parece ter
desaparecido durante a monarquia e, certamente nos governos modernos e
contemporâneos, abrindo espaço para a conquista, a violência e a ambição.
Destaca-se que a relação entre Iahweh e seu povo se dava sempre pela
mediação de pessoas como o chefe de família, sacerdote, o profeta ou o rei. De Vaux
relata que “a vida social de Israel era permeada pela religião” (DE VAUX, 2003, p.
309) e que o culto prestado a Deus se igualava a um serviço ao rei, inclusive
possuía o mesmo nome – em hebraico, a palavra culto é chamada ‘abodah e
significa “serviço” no sentido de serviço ao rei (DE VAUX, 2003, p. 309). Tal devoção
era inicialmente realizada pelo chefe de família pois não haviam sacerdotes, e o
autor descreve que “o sacerdócio só aparece num estágio mais avançado de
organização social, quando a comunidade escolhe alguns de seus membros” (DE
VAUX, 2003, p. 384). Contudo, em determinado momento da história de Israel,
Iahweh seleciona a tribo de Levi, descendente de Jacó para realizar o serviço
relacionado ao culto e servi-Lo diretamente (cf. Nm. 8:14, 18 e 19).
Como os israelitas sabiam que eram governados por Deus? Considerando a
ideia de que as narrativas em Gênesis foram influenciadas pelas mitologias de
outras regiões do Oriente Médio Antigo as quais eram, em sua maioria eram
politeístas, pode-se perguntar a partir de quando as tribos de Israel deveram sua
lealdade suprema a um único Deus, Iahweh? Em que momento os israelitas
começaram a legitimar o poder supremo de Deus? Tais perguntas são de grande
relevância principalmente quando se descobre a diversidade de origens das tribos
de Israel. Afinal, como tantas etnias diferentes se agruparam em torno do governo
de um único Deus? Sendo a fé em Iahweh algo comum a todo o Israel, torna-se
preemente compreender quem é esse Deus, da mesma forma que o ser humano
necessita depreender quem é o seu Criador.
Fohrer, ao explicar as origens e significado da palavra “Iahweh” esclarece
Segundo a única explicação israelita, que se encontra em Êx 3.14, o
nome significa que esse Deus é alguém a quem o termo hayâ pode
ser perfeitamente atribuído. Visto que este verbo no hebraico se
refere não meramente a uma existência estática, mas a uma
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
87
presença dinâmica e eficaz, o nome atribui a Iahweh um ser
dinâmico, poderoso e eficaz. A natureza de Iahweh, como é expressa
por seu “nome”, é uma união de ser, tornar-se e agir, isto é, uma
existência eficaz que está sempre em devir e, contudo, permanece
idêntica a si própria. [...] Iahweh existe sozinho [...] [e] não está
limitado a um lugar fixo de residência. Ele não é um deus local ou
territorial, mas o Deus que acompanha o grupo que está vinculado a
ele ou está ao lado desse grupo. Mais tarde, ele é o Deus de um povo.
[...] Iahweh não tolerará outros deuses entre o povo que se uniu a
ele. Ele exige adoradores exclusivos. Ele é justificado nessa
prerrogativa, porque acompanha o grupo de Moisés em sua jornada e
porque é mais poderoso que os outros deuses, como foi demonstrado
no êxodo (FOHRER, 2006, p. 96-98).
Para Israel, Deus era alguém que não somente possuía forma humana como
traços humanos, Ele vivenciava os mesmos sentimentos e emoções do Seu povo.
Todavia, Ele não possuía defeitos, logo não poderia ser humilhado, rejeitado, nem
acusado de qualquer delito. Iahweh também se encolerizava, se fazendo notar “pela
violência furiosa de sua intervenção” (FOHRER, 2006, p. 98), além de ser um Deus
preocupado com a moral, com a forma como o ser humano se relacionava com Ele e
com os outros indivíduos. “Isso foi importante para o israelita não sofisticado, que
precisava de imagens concretas.” (FOHRER, 2006, p. 98).
Existem várias formulações históricas sobre quando Iahweh começou a ser
adorado12 como a tese de Albrecht Alt que tem sido bastante considerada para o
assunto nos dias atuais. Acerca dela, Jean Louis Ska comenta
[...] o ‘Deus dos pais’ pertence à religião dos nômades, porque a
divindade não está circunscrita a um lugar, mas a uma pessoa. Não
tem nome próprio. Identifica-se pelo antepassado a quem se revelou.
Por exemplo, “o Deus de Abraão” (Gn 26,23; cf. Gn 28,13; 32,10;
46,3; Ex 3,6).
Esse elemento primordial da religião de Israel remonta ao período
nômade pré-israelita e os patriarcas figuram, assim, como
fundadores de culto. Desse modo, a religião patriarcal afasta-se da
religião cananéia, ligada aos santuários (SKA, 2003, p. 131).
Fohrer fornece sua própria contribuição ao concluir que, “no período antigo
de Israel cada clã (e provavelmente também cada tribo) cultuava o seu deus
particular” (FOHRER, 2006, p. 46), e explica
Há uma multiplicidade de religiões de clã (e religiões tribais), de
modo que a tradição está correta em sustentar que os pais
cultuavam outros deuses (Gn 35.1-7; Js 24.2,14-15). [...] Por
12 Sem dúvida é interessante perceber que a fé em Iahweh teve assimilação de práticas
cúlticas provenientes das tribos que deram origem a Israel, as quais foram encontradas em outros
povos que adoravam outros deuses. Como acentua Fohrer, a exemplo da circuncisão, um ritual
presente entre os amonitas, moabitas e edomitas (FOHRER, 2006, p. 39). Vários rituais possuíam
como finalidade evitar a contaminação da tribo com outros seres espirituais como a destruição dos
despojos das guerras durante a vida nômade, possivelmente explicado “como consequência do tabu
ligado ao despojo retirado do domínio de outra divindade” (FOHRER, 2006, p. 40).
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
88
intermédio do fundador do culto, todo o grupo e sua posteridade se
tornavam adoradores da divindade relacionada com seu ancestral
(FOHRER, 2006, p. 47).
Em outras palavras, o papel intermediador entre o clã e o deus, executado
pelo chefe do grupo era imprescindível para que todas as famílias se identificassem
como adoradoras deste deus em conjunto. O chefe do grupo era o patriarca receptor
da revelação e fundador das práticas de devoção, por isso a mediação, dado que a
divindade somente se comunicava a quem ela se revelava (FOHRER, 2006, p. 47).
Fohrer cita como exemplo a revelação de Iahweh a Abraão quando Sara, sua
esposa, não podia conceber filhos (FOHRER, 2006, pp. 47 e 48). Deus então se
apresenta prometendo a Abraão e a sua família uma terra e uma descendência,
aliança sobre a qual se firma o compromisso de todas as gerações posteriores a
Abraão (cf. Gn. 15:5, 12 e 18), e que se identificam com essa descendência da
promessa. Abraão foi o patriarca receptor da revelação de Iahweh e, por isso, era o
deus que deveria ser adorado por toda a sua família e descendentes.
Ao se assentarem em Canaã, os grupos israelitas levaram as suas religiões e
crenças seguidas por seus clãs, e ali encontraram santuários de adoração de origem
cananéia. Os cananeus são conhecidos por seu politeísmo, sobretudo pelo culto às
divindades Baal e El. Durante a caminhada dos clãs e tribos pelo deserto, certas
práticas e rituais permaneceram até o estabelecimento em Canaã e outras foram se
perdendo. As que se mantiveram eram compreendidas como importantes para a
cultura religiosa do novo povo israelita (FOHRER, 2006, p, 78). Fohrer comenta:
“Poucos foram preservados no conjunto das tradições israelitas, porque estavam
associados com importantes santuários” (FOHRER, 2006, p. 78).
O autor analisa as considerações religiosas das tribos israelitas durante o
regime
nômade
a
partir
da
tradição
javista,
que
tem
como
princípio
o
posicionamento de Iahweh como o Deus da Aliança. Ele aponta para o segundo
estágio do estabelecimento da cultura religiosa israelita, após o assentamento em
Canaã, como o instante em que os adoradores de Iahweh começaram a identificá-Lo
com o deus cananeu El. Tanto os termos “Iahweh” como “El” são encontrados nas
narrativas bíblicas – p. ex. El-Shaddai. A partir disso os biblistas começaram a se
questionar se o vocábulo “El” teria alguma relação com o deus cananeu El, e se esta
associação se formou ainda durante a vida nômade ou somente após o
assentamento. Para Julius Wellhausen, tanto o deus El como Iahweh seriam os
mesmos desde o início, teoria esta defendida por Frank Moore Cross mas facilmente
refutada, uma vez que
Iahweh e El possuíam características bem distintas. Na
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
89
visão dos antigos, Iahweh alternava entre amor, bondade e ferocidade, enquanto El
era totalmente bom13.
Após esta fase, Fohrer ressalta um terceiro estágio de assimilação e
construção cultural em que El começou a ser oficialmente tratado como Iahweh.
[...] o javismo não combateu a religião de El, empenhando-se, ao
contrário, numa acomodação. Assim, El, o deus que foi identificado
com os deuses do clã, foi concebido como uma revelação antiga do
Deus que mais tarde se tornou conhecido como Iahweh. Isso
preparou o caminho para Iahweh tomar por empréstimo muita coisa
de El. Material cultual, como práticas sacrificais e hinos, estava
incluído nesse empréstimo. Acima de tudo, os traços perigosos,
sinistros e impetuosos de Iahweh, que apareciam ao lado de suas
características generosas, foram suplementados pelas características
típicas de El: prudência, sabedoria, moderação e paciência,
tolerância e misericórdia [...]. Mais tarde acrescentaram-se as
funções de criador e rei (FOHRER, 2006, pp. 132, 133).
A terceira etapa de assimilação demonstra, aparentemente, a semelhança
entre El e Yahweh que possibilitou que a figura de Yahweh adotasse novas
características. Atenta-se para a declaração de Fohrer, em que ele deixa claro não
ter ocorrido qualquer tipo de fusão entre as duas divindades, mas uma
complementação à imagem do deus da tradição javista.
4.
Análise teo-política da libertação dos escravos sob a liderança de Moisés
Entre tantas teorias e explicações, observa-se que os israelitas, a todo o
momento, realizavam um esforço de compreensão do deus a quem adoravam.
Empenho este que auxiliou a milhares de gerações posteriores a se manterem no
mesmo empreendimento frente às diversas perguntas sem respostas que ainda
permanecem. No final das contas, no ponto em que a teologia se encontra hoje, será
que ela consegue compreender como Deus age no mundo? Até porque, são mais de
dois mil anos de histórias, eventos e ação de Deus.
A teologia cristã, como saber da fé cristã, surgiu a partir destas investidas,
preocupada em entender o mundo à luz do conhecimento de Deus e vice-versa.
Como parte dos confrontamentos teológicos, é urgente corresponder às questões
que surgem na contemporaneidade, sobretudo aquelas referentes à esfera política.
Neste sentido, as Escrituras fornecem valioso material por meio da vida política do
próprio povo de Israel e sua ótica de governo. William César de Andrade corrobora
esta visão explicando como o regime tribal de Israel pode auxiliar no entendimento
13 CORRÊA, Lucas. Yahweh e El: origem do deus de Israel e suas relações com os deuses e
deusas
de
Canaã.
Jan.
2014.
Disponível
em
http://histriadasreligies.blogspot.com.br/2014/01/yahweh-e-el.html. Acesso em 07 Jul. 2015.
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
90
de fenômenos políticos como o imperialismo, ampliação das desigualdades sociais,
movimentos migratórios de populações pobres para regiões de boa qualidade de
vida e etc, dado que os israelitas enfrentaram semelhantes desafios:
Na Bíblia encontram-se, além das memórias e feitos dos impérios
(Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma), uma permanente
presença de enfrentamentos a esses poderes e a seus aliados locais.
Para muitos estudiosos da Bíblia a tradição literária é um indicativo
de processos históricos de longa duração marcados pela Aliança
entre os segmentos marginalizados e empobrecidos de Israel e a
divindade, vista como dinamismo libertador e fonte geradora de uma
nova ordem social, política, econômica e religiosa (ANDRADE, 2009,
p. 270).
Andrade (2009, pp. 270, 271) acentua que, ainda no Egito Antigo, o grupo
plural de Moisés, Aarão e Míriam, quando eram escravos estrangeiros dos egípcios,
não possuíam direitos civis nem desfrutavam de qualquer proteção por parte do
Estado. Diante da autoridade e sociedade egípcias os israelitas eram um grande
conjunto de pobres marginalizados que trabalhavam exageradamente para a
manutenção dos luxos e poder do Faraó e sua família. E o que a narrativa bíblica
relata foi que:
[...] os marginalizados derrotaram o opressor e abriram caminhos
viáveis para a realização de um ‘outro mundo’. Para que essa
possibilidade histórica de mudança e, portanto, ruptura com a
ordem vigente pudesse existir, foi preciso um processo de
empoderamento dos pobres (ANDRADE, 2009, p. 271).
O conceito de empoderamento ainda têm sido bastante utilizado e, em suma,
se define como o conjunto de práticas constituintes de um processo que permite
aos indivíduos e comunidades a desenvolverem uma auto-consciência de suas
próprias condições sociais, e aprimorarem habilidades para assumirem o controle
de suas próprias vivências no mundo, muitas vezes alterando as mesmas relações
de poder que os subjugam. Foi um termo amplamente trabalhado na década de 90,
inclusive para legitimar práticas diversas e até contrárias à proposta original que
permanecem ativas, mas latentes. Jorge O. Romano chama a atenção para os
perigos desta prática, chamada de transformista – ou gattopardistas – de
empoderamento para fins de manter as relações de poder inalteradas:
Assim, o empoderamento invocado pelos bancos e agências de
desenvolvimento multilaterais e bilaterais, por diversos governos e
também por ONGs, com muita freqüência vem sendo usado
principalmente como um instrumento de legitimação para eles
continuarem fazendo, em essência, o que antes faziam. Agora com
um novo nome: empoderamento. Ou para controlar, dentro dos
marcos por eles estabelecidos, o potencial de mudanças impresso
originariamente nessas categorias e propostas inovadoras. Situação
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
91
típica de transformismo (gattopardismo): apropriar-se e desvirtuar o
novo, para garantir a continuidade das práticas dominantes.
Adaptando-se aos novos tempos, mudar tudo para não mudar nada
(ROMANO, 2002, p. 10).
Hannah Arendt, filósofa alemã, argumentou que o poder surge do conjunto
de pessoas que se unem para agirem. Mas isto somente ocorrerá quando os
indivíduos estiverem livres para se organizarem, ainda que seja uma liberdade
oculta, não percebida pelo governo (HEUER, 2007, p. 99). Para a autora “o poder
emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua
legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então se
possa seguir.” (ARENDT, 2013, p. 69).
O estar junto forma um espaço que se mantém desde que os indivíduos
executem suas ações, somente assim o poder se tornará visível. Tal grupo poderá
influenciar a cadeia de eventos e atingir o seu objetivo proposto. Obviamente não é
tão fácil assim, cada etapa é um processo cuja duração varia conforme a urgência
da ação política, o grau de legitimidade do poder, e este último está ligado à
influência dos indivíduos do grupo no espaço externo – o quão imprescindíveis são
para o fazer político, por exemplo – e vários outros fatores.
Os clãs de Moisés, Aarão e Míriam precisaram se organizar para se
libertarem. Todavia, segundo os relatos bíblicos, a iniciativa foi de Moisés, que
recebeu a missão, diretamente de Deus, para reunir os hebreus escravos do Egito e
conduzi-los às terras de Canaã (cf. Êx. 3:17), à libertação. A liderança de Moisés foi
necessária para promover o empoderamento das famílias estrangeiras sujeitas aos
trabalhos forçados, contudo, quem legitimou o seu comando foi Iahweh (cf. Êx.
3:17-20). Moisés sabia que o dever que estava realizando era um absurdo, não por
não confiar em Deus, mas por não acreditar em si mesmo, em sua própria
autoridade. Ninguém legitima o seu próprio poder, para este existir, é necessário
que o indivíduo seja reconhecido pelos outros que nele acreditam.
Na breve dúvida de Moisés (Êx. 4:1) não houve um conflito de fé, mas houve
um dilema da razão: porque o faraó acreditará que minha autoridade para libertar
os hebreus foi concedida e legitimada por Iahweh? Afinal, tal ousadia poderia
custar-lhe a vida. No entanto, era uma missão que deveria ser realizada por
alguém. Os hebreus estavam sofrendo miséria, dor, morte, punições gratuitas, a
opressão era severa, e o povo clamava pela salvação. Moisés, frente ao seu chamado
também não podia mais se calar e se manter cego ao que estava ocorrendo. Iahweh
então comunicou a Moisés o que deveria ser feito, cada sinal que se apresentaria e
como o faraó reagiria, para que não temesse os egípcios pois era Deus quem estava
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
92
no comando (Êx. 4:10-17).
Deus se revelou a Moisés e o chamou, este correspondeu a Ele cumprindo o
seu dever. Semelhante processo ocorreu com os patriarcas Abraão (Gn. 22:1-19),
Jacó (Gn. 28:13-15) e Noé (Gn. 6:13-22). A libertação ocorreu, a promessa foi
cumprida, as tribos se estabeleceram em Canaã e se organizaram em função da
autoridade de Iahweh. Israel começou a compreender a vida no mundo a partir de
seus particulares pontos de vista, e em contrapartida à aliança firmada entre eles e
Iahweh, se comprometeram em obedecer à lei do Senhor (Êx. 19:3-8).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história de Moisés, bem como dos outros patriarcas, deve servir como um
dos fundamentos mais sólidos para a reflexão teológica inserida em um contexto
político, social, histórico e econômico. O esforço deve compreender tanto um
trabalho exegético como hermenêutico, além das respectivas análises filosóficas,
sociológicas, biológicas, para que nenhum detalhe se perca no processo. A teologia
deve dialogar com outros conteúdos para desenvolver suas obras de raciocínio,
dado que estes podem contribuir valorosamente com informações que, ela por si só,
não possui. Apesar dos muitos anos e tentativas de estudo do Pentateuco, o fato
dele representar as primeiras expressões documentadas da ação de Deus no mundo
deve servir como uma das principais justificativas para que se continue o
empreendimento de investigação e aprofundamento nas narrativas. A Bíblia é
única, apesar de variar relativamente conforme a tradução realizada, porém, seu
sentido deve ser aplicado no contexto histórico a todo o momento, o que significa
que ela é capaz de responder às demandas através de sua pluralidade de
narrativas. Esta dinâmica do texto bíblico revelada pelo potencial da verdade que
nele contêm deve ser uma das maiores expressões de sua inspiração. Ela é
completa em si mesma. Resta à humanidade explorar toda a sua totalidade, e tudo
o que ela é capaz de oferecer.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, W. C. As tribos de Israel: exemplo histórico de empoderamento dos
marginalizados. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, n. 33,
jul./dez. 2009, p. 270.
ARENDT, H. Sobre a violência. 4 ed. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2013.
CAZELLES, H. Historiografia de Israel. In: CAZELLES, Henri. História política de
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -
93
Israel: desde as origens até Alexandre Magno. Trad. Cácio Gomes. São Paulo:
Paulus, 1986.
CLIFFORD, R. J.; MURPHY, S. J. R. E.; CARM, O. Gênesis. In: BROWN, R. E.;
FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. Novo comentário bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. Trad. Celso Eronides Fernandes. São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda;
Paulus, 2007.
CORRÊA, Lucas. Yahweh e El: origem do deus de Israel e suas relações com os
deuses
e
deusas
de
Canaã.
Jan.
2014.
Disponível
em
http://histriadasreligies.blogspot.com.br/2014/01/yahweh-e-el.html. Acesso em
07 Jul. 2015.
DE VAUX, R. Instituições de Israel no Antigo Testamento. Trad. Daniel de
Oliveira. São Paulo: Editora Teológica, 2003.
DUPRAT, M. C. M. (trad.). A criação e o dilúvio: segundo os textos do Oriente
Médio Antigo. São Paulo: Paulinas, 1990. (Documentos do Mundo da Bíblia, v. 7)
FOHRER, G. História da religião de Israel. Trad. José Xavier. São Paulo:
Academia Cristã Ltda, Paulus, 2006, p. 34.
FRANCISCO, E. F. Masora Parva comparada: Comparação entre as anotações
massoréticas em textos da Bíblia Hebraica de Tradição Ben Asher em Isaías,
capítulos de 1 a 10. 2002. 250 f. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica,
Literatura e Cultura Judaicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
HEUER, Wolfgang. Amizade Política pelo cuidado com o mundo: sobre política e
responsabilidade na obra de Hannah Arendt. Revista História: Questões &
Debates, Curitiba, n. 46, 2007.
Enciclopaedia Britannica. Council of Trent: Roman Catholicism. 2014. Disponível
em: http://www.britannica.com/event/Council-of-Trent. Acesso em 10 Jul 2015.
MAIER, J. Entre os dois Testamentos: história e religião na época do Segundo
Templo. São Paulo: Ed. Loyola, 2005.
PAX, E. A fé e a história do Antigo Testamento à luz de seu desenvolvimento. In:
SCHREINER, Josef (Org.). Antigo Testamento: um olhar atento para sua palavra e
mensagem. Trad.Luis Marcos Sander. São Paulo: Hagnos, 2012.
SANTOS, P. P. A. A Septuaginta (LXX): a Torá na diáspora judaico-helenista.
Arquivo Maaravi, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, mar. 2008a.
SANTOS, A. G.. El Pentateuco: Historia y sentido. Salamanca: Ed. San Esteban,
1998b.
SKA, J. L. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos
cinco primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
ROMANO, Jorge O.; ANTUNES, Marta (Org.). Empoderamento e direitos no
combate à pobreza. Rio de Janeiro: ActionAid Brasil, 2002.
WRIGHT, C. J. H. Povo, terra e Deus: A relevância da ética do Antigo Testamento
para a sociedade hoje. Trad. Yolanda Mirdsa Krievin. São Paulo: ABU Editora,
1983.
SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel.
dez. 2015, p. 78-93.
INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. -

Documentos relacionados