Fine Na Dairbre Protogrove, ADF
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Fine Na Dairbre Protogrove, ADF
Volume 2 - Agosto 2015 Revista De Estudos do Fine Na Dairbre Edição Inverno de 2015 Entrevista com o Reverendo Jean Pagano (Drum), , Vice Arquidruida da Ár nDraíocht Féin (ADF) Edição 2015 Ritual e Magia Folclore, Mitologia e História A cada novo ciclo, novos palestrantes convidados, novas amizades, novas ideias e novos conhecimentos apreendidos e compartilhados com todos aqueles que desejarem participar, seja qual for sua vertente ou espiritualidade. Venham conhecer de perto as vertentes Druidicas e Reconstrucionistas de Curitiba e de outros Estados em um dia repleto de novas experiências e saberes. Em Outubro Confiram a programação que será divulgada no site do Fine Na Dairbre Protogrove, ADF no decorrer do mês de setembro. www.finenadairbre.com Índice Entrevista com Lideranças da ADF Reverendo Jean Pagano (Drum) Estudos Mitológicos Ideal do Herói na Mitologia Celta Irlandesa por Alessio Ferretti Júnior Antropologia do Ritual Os sonhos e a percepção da realidade no Mito por Marina Holderbaum Divindades Boann do Vale Fértil por Ana (Slakkos Abonos) Bantel Prática Ritual Lasar Na Bhrid: uma jornada de honra à divindade e busca pela inspiração por Matheus Velozo Culinária Sal: “O Tempero do mundo’’ por Rodrigo Lisboa Editorial Este periódico visa ser uma forma de compartilhar os estudos e conhecimentos adquiridos pelos membros do Fine Na Dairbre para o público externo, assim como aproximar e apresentar a ADF ao contexto brasileiro. Com esse intuito, além de conter artigos, ritos e informações relevantes, teremos também a cada edição uma entrevista com um dos líderes da ADF, explicando conceitos e práticas do nosso Druidismo. Especialmente este ano serão duas edições da revista, uma foi lançada em fevereiro, a edição de inauguração e outra é esta de agosto, que será a data regular de publicação. Os dois volumes deste ano se fazem necessários para preparar o solo para algumas ideias preparadas para 2016. Todos os textos aqui apresentados são de autoria de membros do Fine Na Dairbre, a exceção da entrevista que é obra do entrevistado, Reverendo Jean Pagano (Drum), atual Vice Arquidruida da ADF, da qual somos parte, e cabe cada um eles os direitos autorais de suas obras. Marina S. Holderbaum Organizadora do Fine Na Dairbre Protogrove, ADF Volume 2 Agosto de 2015 Editoração: Marina S. Holderbaum Traduções: Erik Wroblewski Publicação: Fine Na Dairbre Protogrove, ADF. Contato [email protected] Site www.finenadairbre.com Todos os direitos reservados. Curitiba/PR 4 - Revista Corr Bolg Entrevista Lideranças da Ár nDraíocht Féin (ADF) Reverendo Jean Pagano (Drum) 1. How does one get involved with ADF? 1. Como alguém envolve com a ADF? se One gets involved with ADF by volunteering. Opportunities arise, typically via word-of-mouth and on the lists for jobs that need to be done or positions that need to be filled. All one has to do is volunteer and that is how it all begins. One other way is by joining and running for election. By joining Kins, SIGs, Guilds, or Orders one has the ability to become involved by taking courses and by running for election in any of these organizational areas. Finally, one may become involved by joining a local Grove, Protogrove, or Study group, or by starting one. There is always a need for people in ADF who are committed and available. For myself, ADF is like a second full-time job – and – it is a job that I love. Uma pessoa se envolve com a ADF voluntariamente. Oportunidades surgem, tipicamente via boca a boca, e através das listas de trabalhos que precisam ser realizados or por posições que precisam ser preenchidas. Tudo o que uma pessoa tem de fazer é se voluntariar e é assim que tudo começa. Uma outra forma é entrando e concorrendo a uma eleição. Ao ingressar em Kins, SIGs , Guildas, ou Ordens, um indivíduo tem a chance de se envolver participando de cursos e concorrendo a eleições de uma dessas áreas organizacionais. Por fim, alguém pode se envolver ao ingressar em um Grove local, Protogrove, ou grupo de estudo, ou iniciando um. Sempre existe a necessidade, na ADF, de pessoas que estejam comprometidas e disponíveis. Para mim, a ADF é como um segundo emprego de tempo integral – e – é um trabalho que eu amo. 2. What is ADF and how does it work? 2. O que é a ADF e como ela funciona? I think the best response to this question is to point a person Eu acho que a melhor resposta para esta pergunta é direcionar uma Revista Corr Bolg - 5 Lideranças da Ár nDraíocht Féin (ADF) to our website -> https://www. adf.org/about/basics/what-is-adf. html One thing that I like to do is to remind people that ADF is a church, complete with Priests and Administration like any other church. pessoa para nosso website: https:// www.adf.org/about/basics/whatis-adf.html Uma coisa que eu gosto de lembrar às pessoas é que a ADF é uma igreja, completa com Sacerdotes e Administração, como qualquer outra igreja. 3. What is particular in ADF Druidism? 3. O que é particular ao Druidismo da ADF? I think the most unique aspect of ADF is that we are orthopraxic and not orthodoxic. We will never tell you what to believe, but if you do ritual according to the Core Order of Ritual, we will state that the ritual is an ADF ritual. The Core Order of Ritual is flexible enough to contain 18 steps and many others that may fit into its framework. We acknowledge many hearth cultures and many Gods and Goddesses across the IndoEuropean spectrum and we our rituals are open to everyone, even to those who believe differently from ourselves. Eu acho que o aspecto mais único da ADF é que somos ortopráxicos e não ortodoxos. Nós nunca diremos a você no que acreditar, mas se você faz um ritual de acordo com a “Ordem Ritual Básica” , nós estabelecemos que este ritual é um ritual da ADF. A “Ordem Ritual Básica” é flexível o suficiente para conter 18 passos e muitos outros podem ser encaixados em seu “framework”. Nós reconhecemos muitas Culturas Domiciliares e muitos Deuses e Deusas dentro do espectro Indo-Europeu e nossos rituais estão abertos a todos, mesmo para aqueles que possuem uma crença diferente da nossa. 4. You are at ADF since the beginning; how it begun and what changed since then? 4. Você pertence à ADF desde seu início; como tudo começou, e o que mudou desde então? I joined ADF in 1984, as the eighth member. Isaac was Eu ingressei na ADF em 1984, como seu oitavo membro. 6 - Revista Corr Bolg Entrevista Reverendo Jean Pagano (Drum) Isaac tinha interesse em iniciar uma interested in starting a neo-pagan organização neo-pagã que abraçasse organization that embraced o conhecimento acadêmico como scholarship as a way of building uma forma de construir uma religião a religion for the future while para o futuro, usando o conhecimento using the understanding and lore e a compreensão do passado. Era of the past. It was and is focused e continua focada na excelência, on excellence, as evidenced by our como evidencia o mote “Por que não motto of “Why Not Excellence”, Excelente” e luta não apenas para and strives to not only do things fazer as coisas bem, mas para fazêwell, but do them in an informed las dentro da luz da light. ADF started informação. A ADF out as an outgrowth of the Reformed Isaac tinha interesse começou como um desenvolvimento dos Druids of North em iniciar uma Druidas Reformados America, and a organização neoda América do Norte lot of the early pagã que abraçasse , e uma boa parte da structure was taken o conhecimento estrutura foi tirada from RDNA, but it acadêmico como da RDNA, mas was also something uma forma de também era algo new and different. construir uma novo e diferente. Isaac Isaac had a vision, religião para o tinha uma visão, que found at https:// futuro, usando o pode ser encontrada www.adf.org/ conhecimento e a em https://www. about/basics/ compreensão do adf.org/about/ vision.html, and this basics/vision.html, e has really fueled our passado. foi isso que realmente drive for excellence abasteceu nossa busca for over thirty years. pela excelência por mais de 30 anos. It remains a guiding vision for Ela permanece uma visão guia para our future. There have been a lot nosso futuro. Houve um monte de of changes, through and through. mudanças, aqui e ali. A eleição dos The election of Arch Druids, the Arque Druidas, a criação do Mother make-up of the Mother Grove, the Grove a forma como os Sacerdotes way Priests are made, the change são formados, a mudança do Guia from the Standard Liturgical Litúrgico Padrão para a “Ordem Outline to the Core Order of Revista Corr Bolg - 7 Lideranças da Ár nDraíocht Féin (ADF) Ritual, a growth in Groves and Proto-Groves, the growth and appeal of the Study Programs, ADF Festivals, the growth and importance of International Members, the list goes on and on. We are a very diverse group and our leadership is as diverse as our membership. Contrary to what some people believe, we have many women in leadership. Of our eleven Regional Druids, ten are women; out of twelve Mother Grove members, five are women; out of 28 priests, 13 are women. People like the Arch Druid, Kirk, and myself, as Vice Arch Druid, attend many gatherings and festivals to lecture, present, workshops, offer insights into ADF, and let people know what our brand of Druidry is all about. ADF, which started out in New York, now has members on six continents. Ritual Básica”, o crescimento de Groves e Protogroves, o crescimento e o atrativo dos Programas de Estudo, Festivais da ADF, o crescimento e a importância dos membros internacionais, e a lista continua. Nós somos um grupo bem diverso e nossa liderança é tão diversa quanto nossos membros. Ao contrário do que algumas pessoas acreditam, nós temos muitas mulheres em nossas lideranças. De nossos onze Druidas Regionais, dez são mulheres; dos doze membros do Mother Grove, cinco são mulheres; dos 28 sacerdotes, 13 são mulheres. Pessoas como o Arque Druida, Kirk e eu mesmo, como Vice Arque Bruida, atendem a muitas reuniões e festivais para ministrar aulas, apresentações, workshops, oferecer insights sobre a ADF, e fazer com que as pessoas conheçam sobre o que nosso ramo do Druidismo se trata. A ADF, que começou em Nova Iorque, agora possui membros em seis continentes. 5. You knew the founder Issac Bonewits? What can you tell about him and his vision about Druidism and ADF? 5. Você conhecia o fundador, Isaac Bonewits? O que você poderia nos dizer sobre ele e a visão dele sobre Druidismo e a ADF? Isaac was a neo-pagan visionary who wanted to form an organization that was polytheistic and neo-pagan, but one that 8 - Revista Corr Bolg Isaac era um visionário neo-pagão que queria formar uma organização que fosse politeísta e neo-pagã, mas uma que chegasse às Entrevista Reverendo Jean Pagano (Drum) suas conclusões através de pesquisa e arrived at its conclusions through erudição, ao passo que compreendesse research and scholarship, while as limitações da informação que understand the limitations of the tínhamos disponíveis naquele tempo. information that we had available Documentos como “A Visão da ADF” to us at the time. Documents like em https://www.adf.org/about/ “The Vision of ADF” https:// basics/vision.html e “No que Neow w w. a d f . o r g / ab o u t / b a s i c s / Pagãos Acreditam” em https:// vision.html, and “What Do Neowww.adf.org/about/basics/beliefs. Pagan Druids Believe” https:// html ajudam a compreender o que w w w. a d f . o r g / ab o u t / b a s i c s / ele tinha em mente. Após 12 anos na beliefs.html help understand what liderança da ADF, Isaac fez algo he had in mind for ADF. After que muitos líderes neo-pagãos NÃO 12 years at the head of ADF, fariam e declinou Isaac did something de sua posição como that many neo-pagan Após 12 anos na líder. Isto permitiu leaders DON’T do liderança da ADF, um breve período de and he stepped down Isaac fez algo que transição no qual Ian as leader. This allow muitos líderes foi o Arque Druida for a brief transition neo-pagãos NÃO (cerca de seis meses), period during which fariam e declinou até que chegou o tempo Ian was Arch Druid de sua posição em que Fox foi eleito (for about six months), como líder. para um período de until the time came nove anos como Arque where Fox was elected Druida. Após cinco to a nine-year term anos como Arque Druida, Fox deixou as Arch Druid. After five years a posição em favor de Skip Ellison as Arch Druid, Fox left which em uma série de três mandatos de ushered in Skip Ellison to a series três anos como Arque Druida e Kirk of three three-year terms as Arch sucedeu Skip em 2010. Druid and Kirk succeeded Skip in Através dos tempos tumultuosos 2010. dos primeiros dias, Isaac foi capaz de Through some of the navegar os mares tempestuosos da tumultuous times of the early liderança e criar procedimentos que days, Isaac was able to navigate permitiriam transições de liderança the stormy seas of leadership and serenas, a resolução de conflitos put procedures in place to allow for Revista Corr Bolg - 9 Lideranças da Ár nDraíocht Féin (ADF) smooth transitions of leadership, conflict resolution within the organization, the creation and fostering of a Clerg y, and most of all, a pursuit of excellence, which is still our motto. Isaac also had a solid vision for what he wanted ADF to be, and “Isaac’s Vision” is still what drives us onwards, not only because it was from Isaac, but mostly because it made sense. Isaac was never a God, but he is assuredly an Ancestor. Whenever we get too serious (and there are many occasions for that), we need to remember that there should be joy and celebration in religious practices – and religious organisations – as well as all of the other things under the sun. dentro da organização, a criação e manutenção de um Clericato, e acima de tudo, uma busca por excelência, a qual ainda é nosso mote. Isaac também tinha uma visão sólida do que ele queria que a ADF fosse, e a “Visão de Isaac” ainda nos impulsiona adiante, não apenas por que era do Isaac, mas principalmente por que ela faz sentido. Issac nunca foi um Deus, mas ele com certeza é um Ancestral. Sempre que nós ficamos muito sérios (e existem muitas ocasiões para isso), nós temos que lembrar que deve haver alegria e celebração nas práticas religiosas – e nas organizações religiosas – assim como para todas as outras coisas abaixo do Sol. 6. At your biography at ADF’s website, you say you was a solitary for a long time at ADF. Can you tell about your solitary experience? What was different from being part of a grove? 6. Em sua biografia, no website da ADF, você diz que foi um solitário por um longo tempo. Você poderia nos contar sobre sua experiência como solitário? O que foi diferente sendo parte de um Grove? I was a Solitary from 1984 until I joined Shining Lakes Grove in 2005, I believe. When Groves first started forming, I contacted a Grove near me and the person I spoke to was so incredibly rude that I figured that everyone in his Grove Eu fui um Solitário de 1984 até ingressar no Shining Lakes Grove em 2005, eu acredito. Quandos os Groves começaram a se formar, eu contatei um Grove próximo a mim e a pessoa com quem eu falei foi tão incrivelmente rude que eu deduzi que 10 - Revista Corr Bolg Entrevista Reverendo Jean Pagano (Drum) must be the same way, so I decided to practice on my own – which I did for many, many years. Luckily, with publications like “Druid’s Progress” and Oak Leaves, I was able to get the information I needed to do ritual and maintain an understanding of what was going on in ADF, but being a solitary can be a lonely place. I realise that some people do want to be solitary, but I think that most of the people who are solitary are so because of location or circumstance. When I first joined Shining Lakes Grove, I was introduced to the beauty and complexity of group worship, which is so very different from solitary practice. After many years of doing things in my own way – even with modifications – it was refreshing and intellectually stimulating to see how others applied themselves to the theatre of ritual. Worship is always worship; we worship in our way whether by ourselves or in a group, but the addition of other people opens up a whole wealth of experience and expression. As a leader in ADF, I spend less and less time with my Grove and more and more time with other Groves and this is a great learning experience for me. Every group expresses themselves differently and todo mundo em seu Grove deveria ser igual, então eu decidi praticar por conta própria – o que eu fiz por muitos, muitos anos. Felizmente, com publicações como “Druid’s Progress” e Oak Leaves, eu fui capaz de conseguir a informação que eu precisava para fazer um ritual e manter um entendimento do que estava acontecendo na ADF, mas ser um solitário pode ser um lugar desolado. Eu entendo que algumas pessoas querem ser solitárias, mas eu acho que a maioria das pessoas que são solitárias o são por causa da localização ou circunstância. Quando eu ingressei no Shining Lakes Grove, eu fui introduzido à beleza e complexidade do culto em grupo, o qual é tão diferente da prática solitária. Depois de muitos anos fazendo isso à minha própria maneira – mesmo com modificações – foi refrescante e intelectualmente estimulante ver como os outros se aplicavam ao teatro ritual. Adoração é sempre adoração; nós adoramos à nossa maneira estejamos sozinhos ou em um grupo, mas a adição de outras pessoas abre uma nova riqueza de experiências e expressões. Como um líder da ADF, eu estive menos e menos tempo com o meu Grove e mais e mais tempo com outros Groves e isto é uma grande experiência de aprendizado para mim. Cada Revista Corr Bolg - 11 Lideranças da Ár nDraíocht Féin (ADF) beautifully, and I cannot help but learn from this. As a firm believer in Daily (morning and evening) Devotionals, I find, once again, that the bulk of my personal practice is done solitarily in front of my own altar. I have come full-circle, or so it seems. grupo se expressa de forma diferente e bela, e eu não posso fazer nada a não ser aprender com isso. Como um sólido crente em Devocionais (manhã e tarde) Diários, eu acho, mais uma vez, que o grosso da minha prática pessoal é feita de forma solitária na frente do meu próprio altar. Eu dei uma volta completa, o é assim que parece. 7. ADF has a multicultural coverage in its IndoEuropean focus, reaching a good amount of Polytheistic European cultures, what in ADF turn it possible to join together all of them, each one with your own cultural practices? 7. A ADF tem uma cobertura multicultural em seu foco Indo-europeu, alcançando uma grande parte das culturas politeístas Europeias; o que tornou possível que a ADF unisse todas elas, cada qual com suas práticas culturais particulares? This is really a fundamental question for ADF. Since we are Indo-European in focus, it does establish a commonality along several lines. First and foremost, Indo-European is identified by a common linguistic group, the IndoEuropean family of languages. These languages shares many words – especially the names of deities – with each other, but when words are shared, concepts and cultural constructs are also shared. One thing that we have found across the Indo-European spectrum is the concept of hospitality which Esta é realmente uma questão fundamental para a ADF. Uma vez que temos um foco Indo-Europeu, isso estabelece uma singularidade ao longo de vários aspectos. Primeiro e mais importante, os Indo-Europeus são identificados por um grupo linguístico comum, a família Indo-Europeia de línguas. Estas línguas dividem muitas palavras – especialmente os nomes de divindades – umas com as outras, mas quando palavras são compartilhadas, conceitos e construções culturais também são compartilhados. Uma coisa que podemos encontrar ao 12 - Revista Corr Bolg Entrevista Reverendo Jean Pagano (Drum) is not only fundamental, but also a defining attribute of not only I-E culture, but I-E worship, especially as it is expressed in the Core Order of Ritual. The beauty of the Core Order of Ritual is that a person can go to any ADF ritual anywhere and recognize the basic structure of the liturgy. It is what defines ADF orthopraxy or right practice. longo do espectro Indo-Europeu é o conceito de hospitalidade o qual não é apenas fundamental, mas também um atributo determinante não apenas da cultura I-E, mas da devoção I-E, especialmente da forma como foi expressa na Ordem Ritual Básica. A beleza da Ordem Ritual Básica é que uma pessoa pode ir a qualquer ritual ADF em qualquer lugar e reconhecer a estrutura básica da liturgia. É isso que define a Ortopraxia ou “a prática do que é certo”. 8. One who have the first contact with ADF will find the affirmation that ADF is interested in a standard practicing more than in standard personal beliefs. What is the importance of practice in the spiritual context? 8. Alguém que tenha seu primeiro contato com a ADF encontrará a afirmação de que a ADF está mais interessada eu um padrão de práticas do que na padronização de crenças pessoais. Qual é a importância da prática no contexto espiritual? As cultures, we each speak our own languages, but we can still communicate with each other through common languages and also through shared understandings and practices. Our beliefs, as manifested through our cultures, may differ from place to place. While we all participate in the basic quality of humanness, we may go about doing so in different ways. As a Church – and yes, we are a Church – we are really concerned Como culturas, nós falamos nossa própria língua, mas ainda podemos nos comunicar umas com as outras através de línguas comuns e também através de conhecimentos e práticas compartilhadas. Nossas crenças, manifestadas através de nossas culturas, podem diferir de lugar para lugar. Embora todos nós tenhamos uma qualidade básica de humanidade, nós podemos manifestá-la de muitas formas diferentes. Como uma Igreja – e sim, nós somos uma Igreja – nós Revista Corr Bolg - 13 Lideranças da Ár nDraíocht Féin (ADF) that you honour the Kindreds as they should be honoured and that they are acknowledged as who they are. The subtleties of belief vary from person to person, and often times, differences can be exacerbated by those subtle differences. With a orthopraxic methodology, if one is to practice like another person does, then the commonality suggests not only a commonality in method, but a commonality in belief without being heavy-handed in the presentation. If I, as an English and French speaker were to come to a ritual in Brasil where the liturgy is entirely in Portuguese, I do not NEED to understand the spoken language: the structure of ritual, made uniform through the Core Order of Ritual, would allow me to understand what was going on even if I could not understand the language. Since I DO speak an Indo-European language, I would catch bits and pieces of common Indo-European language fragments, even in Portuguese, but it would be the structure that would define the ritual for me, and not the belief. I look at the Core Order, in one way, as a silent movie: I do not need to hear the words to know what the actions require. 14 - Revista Corr Bolg estamos realmente preocupados que você honre os Kindreds, como eles devem ser honrados, e que eles sejam reconhecidos pelo o que eles são. Os subtítulos dados a eles podem variar de pessoa para pessoa de acordo com a crença, e algumas vezes as diferenças podem ser exacerbadas por essas diferenças sutis. Com a metodologia da Ortopraxia, se alguém decide executar sua prática da mesma forma que outra pessoa, então essa comunalidade sugere não somente uma comunalidade na prática, mas uma comunalidade de crença sendo fortemente apresentada. Se eu, como um conhecedor da língua Inglesa e Francesa atendesse a um ritual no Brasil onde a liturgia é inteiramente em Português, não PRECISO entender a língua falada: a estrutura do ritual, feita de forma uniforme pela Ordem Ritual Básica, irá me permitir compreender o que está acontecendo mesmo que eu não possa entender a língua. Já que eu FALO uma língua Indo-Europeia, eu posso entender fragmentos comuns às línguas Indo-Europeias, mesmo em Português, mas é a estrutura que irá definir o ritual para mim, e não a crença. Eu vejo a Ordem Básica, de certa forma, como um filme mudo: eu não preciso ouvir as palavras para saber o que as ações requerem. Entrevista Reverendo Jean Pagano (Drum) 9. The ADF concept of ‘Ghosti’ and the maintenance of the reciprocal hospitality is thought to be a big issue for the relationship with the Shining Ones or the Nature Spirits or the Ancestors. Can you explain this concept and tell why it is so important? 9. O conceito de Ghosti, da ADF, e a manutenção de recíproca da hospitalidade é tido como uma parte importante da relação com os Shining Ones, Espíritos da Natureza e Ancestrais. Você poderia explicar esse conceito e por que ele é tão impostante? Hospitality is one of the nine ADF virtues. In my opinion, it is the most important virtue in that it is the only virtue which requires another person to make it work. The concept behind hospitality and *ghosti is the requirement to be not only a good host, but a good guest as well. I am currently teaching a workshop on this very concept. This concept also defines our relationship with the Kindreds: we give them gifts, out of hospitality. In an environment of hospitality exchange with the Kindreds, three potentials present themselves: 1) we give the Kindreds a gift for thanks for what has already been done; 2) we give the Kindreds a gift in anticipation of a gift that may be given, or 3) we give a gift in expectation of gift to be given. In various hearth cultures, the expectations of hospitality may vary, but the importance of hospitality is evident. However we may look at it, by being hospitable, A Hospitalidade é uma das nove virtudes da ADF. Em minha opinião, é a mais importante ao passo em que é a única virtude que requer outra pessoa para que possa funcionar. O conceito por trás da hospitalidade de do *ghosti é o requerimento de não apenas ser um bom anfitrião, mas um bom convidado também. Eu estou ministrando um workshop nesse exato conceito. Esse conceito também define nossa relação com os Kindreds: nós lhes damos presentes, por hospitalidade. Em um ambiente de troca de hospitalidades, três situações podem ocorrer: 1) nós damos um presente aos Kindreds como agradecimento a algo que já aconteceu; 2) nós damos um presente aos Kindreds por algo que possa vir a acontecer; 3) nós damos um presente na expectativa de receber outro presente. Em várias culturas domiciliares, as expectativas em cima da hospitalidade podem variar, mas a importância da hospitalidade é evidente. Não importa como vemos, Revista Corr Bolg - 15 Lideranças da Ár nDraíocht Féin (ADF) we put our best face forward because it is the right thing to do – it expresses our humanity. ao ser hospitaleiro, nós mostramos nossa melhor face por que é a coisa certa a fazer – isso expressa humanidade. 10. What is the importance of Nature in the ADF religious view? 10. Qual é a importância da Natureza no ponto de vista da ADF? Nature is fundamental to ADF. In RDNA (Reformed Druids of North America), from which ADF ultimately arose, thanks to Isaac Bonewits, the two tenets of faith are: “Nature is good.” and “Nature is very good.” One of our Kindred are the Nature Spirits, which are the spirits of nature, and the firm foundation that we stand upon is the Earth Mother herself, and she is the seat of nature. Nature, as manifested in the Earth Mother, is so fundamental to ADF ritual practice that she is recognized first in the Core Order of Ritual. One of the questions in the Dedicant Program has to do with Nature Awareness, and most people, when they think of Druids, think of trees. We are a naturebased religion, and as such. Nature is our home. It is the realm in which we live, here in the middle-realm, between the Ancestors below and the shining Ones above, we are here, in the middle, a part of that natural world. A Natureza é fundamental para a ADF. Na RDNA (Reformed Druids of North America), da qual a ADF surgiu graças a Isaac Bonewits, os dois dogmas da fé eram: “A Natureza é boa” e “A Natureza é muito boa”. Um de nossos Kindred são os Espíritos da Natureza, que são espíritos naturais, e a firme fundação sobre a qual estamos nesta Terra Mãe, e ela é o trono da natureza. A Natureza, como manifestada pela Terra Mãe, é tão fundamental para a prática ritual da ADF que ela é colocada por primeiro na organização da Ordem Ritual Básica. Uma das questões do Dedicant Program está relacionada com a “Percepção da Natureza”, e a maioria das pessoas, quando eles pensam em Druidas, pensam em árvores. Nós somos uma religião baseada na natureza. A natureza é nossa casa. É o reino em que nós vivemos, aqui no reino do meio, entre os ancestrais abaixo e os Shining Ones acima, nós estamos aqui, no meio, como parte do mundo natural. 16 - Revista Corr Bolg Entrevista Reverendo Jean Pagano (Drum) 11. As the current Vice Arch Druid, what is your vision of ADF, for the present and for the future? 11. Como atual Arque Druida, qual é a sua visão para a ADF, no presente e para o futuro? As Vice Arch Druid, my Como Arque Druida, minha vision is to continue the work of visão é continuar o trabalho daqueles those who have laid the groundwork que fundamentaram a base daquilo of who and what we are today. I am que somos hoje. Eu estou firmemente firmly committed to expanding the comprometido a expandir a presença presence of ADF internationally, da ADF internacionalmente, especially on other continents and especialmente em outros continentes hemispheres. I find e hemisférios. Eu a subtle beauty and acho sutilmente belo Eu acho sutilmente strength in the fact o fato de que teremos belo o fato de que that we will have membros celebrando teremos membros members celebrating Beltane e Samhain, celebrando Beltane Beltane and Imbolc e Lughnasadh, e Samhain, Imbolc Samhain, Imbolc and Solstício de Verão Lughnasadh, Mide Yule nas mesmas e Lughnasadh, Summer and Yule, datas, mas em Solstício de on the same date, diferentes hemisférios. Verão e Yule nas yet just in different Eu quero que sejamos mesmas datas, hemispheres. I want a premier das mas em diferentes us to be the premier religiões baseadas na hemisférios. international natureza, e eu vou nature-based trabalhar duro nesse religion, and I will objetivo. Eu gostaria work hard to further that goal. I de ver a expansão de nosso clericato would like to see an expansion of em outros países, ou organizações da the priesthood to other countries, ADF surgindo internacionalmente, or ADF organisations springing assim como o esforço de trazer a ADF up internationally, much like the Canada à vida naquele país, onde effort to bring ADF Canada to nós temos organizações nacionais que life in that country, where we have são parte de um corpo internacional national organisations that are a maior. Eu quero que a ADF seja part of the greater international reconhecida como um igreja neoRevista Corr Bolg - 17 Lideranças da Ár nDraíocht Féin (ADF) body. I want ADF to be recognized as a neo-pagan church, which serves the folk and the Earth Mother all across the globe. I want the Core Order of Ritual to find use and purpose in other traditions so that more people will feel comfortable with the structure and flexibility that it brings. I want to see Isaac’s Vision continue to come into being so that his dreams become a reality in as many places as possible. I want to see ADF acquire land for ritual, worship, and sanctuary, and be able to say that this land, this portion of the Earth Mother, is safe and free from harm. Most of all, however, I want people to think and act on a daily basis with their own Kindreds: Ancestors, Nature Spirits, and Shining Ones, and that the Old Ways, gently mixed with the New Ways of the current day, become the food that speaks to the souls of peoples everywhere. pagã, que serve ao povo da Terra Mãe por todo o globo. Eu quero que a Ordem Ritual Básica encontre uso e propósito em outras tradições para que mais pessoas se sintam confortáveis com a estrutura e flexibilidade que ela traz. Eu quero testemunhar a Visão de Isaac se realizando para que seus sonhos se tornem uma realidade na maior quantidade de lugares possíveis. Eu quero ver a ADF adquirir terras para a realização de rituais, preces, e santuários, e ser capaz de dizer que esta terra, este pedaço da Terra Mãe, é segura e livre de mal. Acima de tudo, no entanto, eu quero que as pessoas pensem e hajam diariamente com os seus Kindreds: Ancestrais, Espíritos da Natureza e Shining Ones, e que os Antigos Caminhos, gentilmente misturados com os Novos Caminhos dos dias presentes, se tornem o alimento que fala às almas de pessoas em todos os lugares. Tradução por Erik Wroblewski 18 - Revista Corr Bolg Estudos Mitológicos Alessio Ferretti Jr. Ideal do Herói na Mitologia Celta Irlandesa É muito comum compreender o mito como “estória”, “contos”, “ficção” ou uma “fábula” ilustrativa. Entretanto, para as culturas, os mitos possuem uma verdade que molda as características daquela sociedade. Segundo Eliade, no seu Tratado de História da Religião, “É preciso que nos habituemos a dissociar a noção de mito, das de ‘palavras’ de ‘fábula’ (veja-se a acepção homérica de mythos: ‘palavra’, ‘discurso’), para a aproximarmos das noções de ‘ação sagrada’, de gesto significativo’, de ‘acontecimento primordial’. É mítico não só o que se conta de certos acontecimentos que se desenrolam e de personagens que viveram in illo tempore, mas ainda tudo o que se acha em relação direta ou indireta com tais acontecimentos e com os personagens primordiais.” (ELIADE, 2002, pág. 338) No seu Mito e Realidade, Mircea Eliade reforça essa distinção entre o mito e as histórias modernas. Deixando bem claro a importância do mito para as sociedades arcaicas, aos quais tem a função de regulamentar o modus operandi, moldando todos os valores, justificando as técnicas de guerra, pesca, caça, os quais são utilizadas e possuem um princípio atribuído a uma divindade ou acontecimento primordial. O mito precisa ser mantido vivo pois sua repetição é importante para a sobrevivência de sua cultura. “Em qualquer desses conjuntos mítico-rituais, a ideia fundamental não está no ‘nascimento’ mas na repetição do nascimento exemplar dos cosmos, na imitação da cosmogonia” (ELIADE, 2002, pág. 337). Por tanto, não importa o tempo em que ocorreu o mito, ele é atemporal e aconteceu em um tempo espaço mítico que revela a realidade das culturas arcaicas. “O tempo mítico não deve ser pensado simplesmente como um tempo passado, mas também como presente e futuro: como um estado tanto como um período. Este período é ‘criador’, no sentido de que é, então, in illo tempore, que tiveram lugar na criação e a organização, pelos deuses, ou pelos antepassados ou pelos heróis civilizados, de todas as atividades arquetípicas.” (ELIADE, 2002, pág. 319). O mito é o responsável pelo nascimento da cultura no sentindo de sua existência simbólica, sua realidade é moldada conforme as histórias sagradas são contadas repetitivamente sem alteração, revelando a forma como tudo existe e é em determinada cultura. “De certo ponto de vista, todo mito é cosmogônico, visto Revista Corr Bolg - 19 Estudos Mitológicos que enuncia o aparecimento de uma nova ‘situação’ cósmica ou de um acontecimento primordial, que se torna desse modo, pelo simples fato da sua manifestação, paradigmas para todo o tempo futuro” (ELIADE, 2002, pág. 338). Em outros termos, mito, é o relato de uma história verdadeira. Ela ocorre no princípio dos tempos, quando com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão somente um fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um comportamento humano. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser. O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. “Qualquer que seja a sua natureza, o mito é sempre um precedente e um exemplo, não só em relação às ações – ‘sagradas’ ou ‘profanas’ – do homem, mas também em relação à sua própria condição.” (ELIADE, 2002, pág. 339) E na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos, presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. “As histórias de caráter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma criação «fantasiosa» da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única – não se esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente.” (STRAUS, 1077, pág. 15) Ele é um modo de significação, uma forma. Assim, não se há de definir o mito pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a profere. “Ou melhor: um precedente para os modos do real em geral”. (ELIADE, 2002, pág 339) O mito em sua característica principal tem o poder de moldar o princípio primordial da sociedade arcaica, nele há a base para o exemplo de conduta, valores, técnicas e estrutura social que existe na realidade dessa sociedade. “Na religião como na magia a periodicidade significa, sobretudo a utilização indefinida de um tempo mítico tornado presente. Todos os rituais têm a propriedade de se passarem agora, neste instante. O tempo que se viu o acontecimento comemorado ou repetido pelo ritual em questão é ‘tornado presente’, ‘representado’, se assim se pode dizer, tão recuado no tempo quando se possa imaginar” (ELIADE, 2002, pág 317). Toda vez que o mito é representado através de ritos e contado coletivamente, possui em si todos os signos que formatam a realidade e a forma de agir de toda uma sociedade o que irá caracterizar em sua cultura os modelos de como devem ser a Soberania, Legisladores, Heróis até indivíduos normais, inserindo-os na realidade tribal padrões de comportamento de cada indivíduo, reconhecendo-os dentro de seu espaço de atuação com suas responsabilidades, direitos e deveres. 20 - Revista Corr Bolg Ideal do Herói na Mitologia Celta Irlandesa O mito tem uma linguagem que reproduz os princípios e “traduzem” as origens de uma instituição, hábitos, valores e lógica oferecendo um modelo exemplar da realidade em que está apontando um caminho através do sagrado refletindo em sua cultura. Segundo Isaura Botelho, “na dimensão antropológica, a cultura se produz através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas.” (BOTELHO, 2001, pág, 2). Em alguns casos os mitos irlandeses são mais antigos do que os manuscritos em que estão escritos, pois a linguagem e o estilo em que são escritos não condizem com os padrões da época em que foram transcritos ou compilados e sim com modelos de composição mais antigos, baseados em linguagem oral. E não se vê a prática comum de adaptação dos textos para torna-los de mais fácil compreensão, o que indica que foram pouco alterados. “Eles descrevem um estado de civilização bastante arcaico que o da época em que foram registrados por escrito.” (ROUX e GUYONVARC’F, 1999, pág. 42) Em geral, a Língua dos textos é muito mais antiga que a data da transcrição e, quando a Língua é renovada por uma transcrição recente, é raro não substituirem vestígios de formas ou de palavras antigas.” (ROUX e GUYONVARC’F, 1999, pág. 43) Iremos analisar as virtudes de um guerreiro que é visto como herói dentro da cultura Celta. O mito escolhido para isso foi o Táin Bó Cúalnge do Livro de Leinster, por narrar a história de um dos mais famosos heróis da mitologia CeltaSetanta mac Sualtaim - e por ser rico em detalhes na sua narrativa deixar bem evidenciado o modelo heroico do personagem de Cú Chulain. “A narrativa mais notável – e também a mais extensa – do ciclo heroico de Ulser ou Ciclo do Ramo Vermelho é a Tain Bó Cúalnge ou Razia de Cooley, contada com variantes em diversos manuscritos dos séc. XI e XII. Os deuses intervêm frequentemente e a sociedade céltica é mostrada no estado mais antigo que se lhe pode atribuir, esse que a deve ter caracterizado nas épocas de Hallstat e de La Téne.” (ROUX e GUYONVARC’F, 1999, pág. 45) Nesse trecho da narrativa demonstra a extrema força de Setanta, apesar de ser usada de forma bruta e imprudente, mostra como a criança quando chega à casa de Culand – o ferreiro - é emboscado com o próprio cão de caça que estava protegendo a residência enquanto todos estavam entretidos num banquete. Inclusive deixa claro o nome que a criança herdará devido ao evento que seria temido por todos os guerreiros das províncias da Irlanda e além das fronteiras. É interessante notar que apesar dele ter matado o cão para autoRevista Corr Bolg - 21 Estudos Mitológicos defesa, este possuía uma função muito importante para Culand, de modo que o Setanta para não perder sua Honra ainda criança coloca-se no lugar do cão para pastorear, vigiar, cuidar e realizar todas as funções que eram destinadas ao cão, até que uma nova ninhada do mesmo estivesse grande suficiente para assumir estas responsabilidades para Culand. “Quanto aos jovens, eles permaneceram em Emain até que era hora deles se dispersarem. Eles foram cada um deles para a casa de seu pai e de sua mãe, ou de seu Padrasto e Madrasta. Mas o pequeno menino foi em outra direção até chegar à casa de Culand o ferreiro. Ele começou a encurtar o caminho carregando consigo seus brinquedos. Quando chegou ao gramado antes da fortaleza onde Culand e Conchobor foram, jogou fora todos os seus brinquedos na frente dele exceto sua bola. O bloodhound percebendo o menino ladra para ele e os latidos do cão de caça foram ouvido em todo o campo. E não era uma oportunidade para uma festa que o cão estava disposto a fazer do menino, mas sim para engoli-lo inteiro desde a largura de sua garganta, da barriga e de seu peito. O menino não tinha meios de defesa, mas ele pegou sua bola de ferro fundido e atravessou a boca escancarada do bloodhound e levou todas as suas entranhas para fora através do caminho de volta, o garoto, em seguida, agarrou-o por duas pernas e correu-o contra o monólito onde ele se espalhou em pedaços no chão. Conchobor tinha ouvido o latido do cão. A ‘ i, meus guerreiros “, disse Conchobor,” seria que não tinha vindo para desfrutar desta festa.’ ‘Por que isso? “, Perguntou todos eles. “O menino que dispostos a vir após mim, filho da minha irmã, Setanta mac Sualtaim, foi morto pelo cão.” Todo o famoso Ulster levantou-se com um acordo. Embora a porta de entrada da habitação estava aberta, todos foram encontrá-lo para fora sobre as paliçadas da fortaleza. Apesar de tudo alcançaram-no rapidamente, mais rápido foi Fergus e ele levantou o menino a partir do solo para seu ombro e trouxe-o para a presença de Conchobor. E Culand saiu e viu o seu bloodhound deitado em peças espalhadas. Seu coração batia contra seu peito. Ele atravessou a fortaleza então. ‘Congratulo-me com a sua chegada, garotinho’, disse Culand, ‘para o bem da sua mãe e seu pai, mas eu não dou as boas-vindas a sua chegada para o seu próprio bem. ‘Por que você está com raiva, com o menino?’, Perguntou Conchobor. “Será que você não tivesse vindo para consumir a minha bebida e comer a minha comida, da minha substância agora o que me é importante está desperdiçado, meu sustento um meio de vida perdida. Bom foi o servo de ter tirado de mim. Ele costumava guardar 22 - Revista Corr Bolg Ideal do Herói na Mitologia Celta Irlandesa meus rebanhos e gado para mim. ‘Não te fique irado em tudo, mestre Culand, disse o menino, ‘para mim emitirá um verdadeiro julgamento nessa questão.’ ‘O julgamento que você entregar sobre ele , meu rapaz?’, disse Conchobor. ‘Se houver um filhote de reprodução daquele cão na Irlanda, ele vai ser criados por mim até ele estar apto para a ação como seu pai. Vou ser o cão para proteger os rebanhos e gado de Culand e a terra durante esse tempo. ‘Um bom senso você tem, menino.’, Disse Conchobor. ‘Eu não teria tomado uma decisão melhor.’, Disse Cathbad. ‘Você deve ser chamado Cão de Culand - Cú Chulainn - por causa disso?’ ‘Não’, disse o menino,’ eu prefiro o meu próprio nome, Setanta mac Sualtaim. ‘Não diga isso rapaz’, disse Cathbad, ‘para os homens da Irlanda e da Escócia que ouvirão desse nome, e que o nome deve ser sempre nos lábios dos homens da Irlanda e da Escócia.’ ‘Estou disposto a que seja o meu nome “, disse o menino. Daí o famoso nome de Cú Chulainn se agarrou a ele, pois ele matou o cão de Culand o ferreiro.” A obstinação também é uma marca dessa criança, principalmente ao ouvir o presságio do Druida Cathbad, no qual, a pessoa que possuir as armas naquele dia irá se tornar um grande herói, mas terá uma vida curta. Apesar do alerta de uma vida curta, esse fato não intimida Cú Chulain. Ao ouvir a mesma em detalhes, decide que a fama em ser um grande guerreiro e herói que será lembrado por muitas eras é muito maior do que a possibilidade de viver uma vida curta e sem glórias. “Cathbad o druida estava ensinando seus alunos a norte-leste de Emain, oito alunos da classe de aprendizagem druídica estavam com ele. Um deles perguntou ao professor que presságio era para aquele dia, se era bom ou se ele estava doente. Então disse Cathbad que um menino que pegar em armas naquele dia seria esplêndido e famoso, mas seria efémera e transitória. Cú Chulainn ouviu que, como ele estava jogando a sudoeste de Emain, ele jogou de lado todos os seus brinquedos e foi para quarto de dormir do Conchobor. ‘Tudo bem em atendê-lo, ó rei dos guerreiros “, disse o menino. Isso é o discurso de uma pessoa fazendo uma solicitação a alguém. - ‘O que você quer pedir, rapazinho?’, Disse Conchobor. ‘Eu gostaria de pegar em armas’, disse o menino. ‘Quem o aconselhou, rapaz?’, Disse Conchobor. ‘Cathbad o druida”, disse o menino. ‘Ele não iria enganá-lo rapaz’, disse Conchobor. Conchobor deu-lhe duas lanças, uma espada e um escudo.” Revista Corr Bolg - 23 Estudos Mitológicos Para ganhar tempo contra o exército da Rainha Medb poder concluir um contrato que havia assumido e seu pai adotivo Sualtaim avisar os homens do Ulster sobre a invasão, ele demonstra grande maestria sobre a forma de criar um local onde os homens deveriam recriar a mesma demonstração de força e habilidade. Nesse instante Cú Chulain demonstra conhecimento com a linguagem e entalhe do Ogham e utiliza sua perícia para atrasar os guerreiros a ultrapassarem o campo de Ard Cuillenn sem seguir as instruções inscritas no anel. “Cú Chulainn foi para a madeira e cortar uma muda de carvalho nobre, todo inteiro, com um golpe de pé sobre uma perna e usando apenas uma mão e um olho, ele torceu-o em um anel e colocou uma inscrição ogam na cavilha do anel e colocou o anel em torno da parte mais estreita do monolito de Ard Cuillenn. Ele forçou o anel para baixo até atingir a parte grossa da pedra. ... Fergus disse: “Eu juro para você que se vos desprezar esse anel e o real herói como ele fez e não passar uma noite aqui no acampamento até que um de vocês fizer um anel semelhante, ficando sobre um pé e usando um olho e uma mão como ele fez, mesmo que o herói esteja escondido no subsolo ou em uma casa trancada, ele vai matar e ferirvos antes da hora do alvorecer do dia seguinte, se vos o desprezarem’.” A hospitalidade era um dos códigos de conduta sagrado para a sociedade celta. Essa fica evidente quando Fergus se aproxima do Forte em que Cú Chulain estava para informar que sua exigência de combate individual foi aceita e ficaria presente para supervisionar o combate, nesse trecho há detalhes de como o anfitrião deveria proceder quando havia um hóspede. A hospitalidade se estendia a todos os presentes que chegam inclusive ao guerreiro que acompanhava Fergus, o qual seria o adversário de Cú Chulain no dia seguinte, porém, é interessante notar que as formalidades da hospitalidade são cumpridas até o momento que uma das partes resolve quebra-las. “‘Bem vindo é a chegada a nós desta convidado’, disse Cú Chulainn. ‘Nós sabemos quem é o homem. Ele é meu mestre Fergus que vem’. ‘Eu vejo um outro carro-guerreiro que vem para nós também. Com muita habilidade e beleza, esplendor enquanto seus cavalos avançam’. ‘Essa é um das jovens dos homens da Irlanda, amigo Laeg disse Cú Chulainn. ‘Para ver a minha forma e aparência que o homem vem, 24 - Revista Corr Bolg Ideal do Herói na Mitologia Celta Irlandesa porque eu sou famoso entre eles dentro de seu acampamento’. Fergus chegou e saltou do carro, e Cú Chulainn ordenou-lhe as boas-vindas. ‘Confio em suas boas-vindas’, disse Fergus. ‘Você pode muito bem confiar, disse Cú Chulainn, ‘porque, se um bando de pássaros passam sobre a planície, você terá direito a metade de um ganso selvagem. Se os peixes nadam na foz do rio, você terá a metade de um salmão. Você deve ter um punhado de agrião, um punhado de algas marinhas e um punhado de pastinaca. Se você deve lutar ou fazer a batalha Eu irei para a Forte em seu nome e você deve ser vigiado e protegido enquanto você dormir e descansar’. ‘Bem, na verdade, nós sabemos a disposições para a hospitalidade que você tem agora no Foray de Cúailnge. Mas a condição de que você perguntou dos homens da Irlanda, ou seja, um único combate, você deve tê-lo. Eu vim para uni-los, por isso, se comprometam a cumprila’. ‘Concordo, mestre Fergus.’ disse Cú Chulainn. ... ‘O que você está buscando, rapaz?’, Perguntou Cú Chulainn. ‘Eu procuro combate com você’, disse Etarcumul. ‘Se você seguir o meu conselho, você não viria’, disse Cú Chulainn. ‘Eu digo assim porque garanti a Fergus antes dele sair do acampamento e porque tenho eu desejo te protegê’. Então Cú Chulainn deu um fluxo (fotalbeim) e cortou o gramado debaixo da sola de seu pé de modo que ele foi lançado ficando prostrado na relva sobre sua barriga. Se Cú Chulainn assim o desejasse, ele poderia tê-lo cortado em dois. ‘Começa agora para vos que tenho dado um alerta’. ‘Não irei até que nos encontremos novamente’. disse Etarcumul. Cú Chulainn deu-lhe um golpe de borda (fáebarbeim). Ele cortau o cabelo dele, a partir da testa até a orelha como se tivesse sido raspada com precisão, luz de lâmina. Ele não traçou uma gota de sangue. ‘Vá embora agora’. disse Cú Chulainn, ‘pois fiz um desenho ridículo em você’. ‘Não irei até nos encontrarmos novamente, até que eu leve sua cabeça, despojos e triunfar sobre você ou até que você leve a minha cabeça e despojos e triunfe sobre mim’. A ‘ última coisa que você diz é o que vai acontecer, eu terei sucesso em cortar sua cabeça, despojos e vou triunfar sobre você’. Cú Chulainn deu-lhe um golpe (múadalbeim) no alto da cabeça, que o dividir até o umbigo. Ele lhe deu um segundo golpe em cruz de modo que as três seções de seu corpo foram cortados cairam ao mesmo tempo no chão. Assim pereceu Etarcumul, filho de Fid e Leithrinn.” Por tanto, no mito Celta Irlandês do Tain Bó Cuailnge podemos perceber que Setanta Mac Sualtaim – o Cú Chulain – pode ser considerado uma criança Revista Corr Bolg - 25 Estudos Mitológicos superdotada com grande força por ser um semideus (filho de Lugh), mas isso não são os atributos principais ou o mais importante e não o limitam para retratálo como um ideal de herói da mitologia celta. São as qualidades e as escolhas no qual ele decidiu por ser o maior herói da Irlanda utilizando-se da informação do presságio que ouviu do Druida e buscou aperfeiçoar-se em todas as áreas que fosse necessário para tornar-se um grande guerreiro com habilidade na manipulação de armas: escudo, lança, espada e estilingue, estratégia em batalha e as regras de combate que prevaleciam na época. A representação de um guerreiro que se torna modelo de heroísmo por possuir inteligência, conhecimento de sua cultura e regras sociais foi parte de sua educação druídica no que demonstra quando cria o anel com instruções de ogham sendo apenas Fergus o outro guerreiro com instrução que obtém conhecimento necessário para lê-lo, fica ainda explícito quando vai cortejar sua noiva Emer (The Wooing of Emer by Cú Chulainn) demonstrando que possuía igual conhecimento druídico, agricultura, poeta, motorista de carro de batalha, os costumes e ser um dos campeões da corte de Conchobor. Devido a sua precocidade como grande guerreiro e não possuir barba não foi afetado pela maldição de Macha que aplacava os homens do Ulster, o que propiciou demonstrar todo o seu potencial como guerreiro defendendo sozinho a província com Honra guerreando até que os homens do Ulster pudessem se recuperar e tomar frente a batalha. Referências Bibliograficas Bloodhound. Disponível em < http://racasdecachorro.com/2011/04/saibatudo-sobre-o-cachorro-da-raca-bloodhound/> Acesso em 27 de agosto de 2015. BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura e políticas públicas. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 2, 2001. ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Martins Fontes, São Paulo, 2002. ROUX, Françoise Le; GUYONVARC’F, Christian-J. A Civilização Celta, Publicações Europa-América, p. 36 - 50, 1999. SIMÓN, Francisco Marco. Los Celtas. Biblioteca de La Historia, p. 10 – 25, 2006. Tain Bó Cúalnge from the Book of Leinster. Disponível em: <http://www. ucc.ie/celt/published/T301035/index.html> Acesso em 28 de agosto de 2015. The Wooing of Emer by Cú Chulainn. Disponível em: <http://www.ucc.ie/ celt/published/T301021/> Acesso em 28 de agosto de 2015. 26 - Revista Corr Bolg Antropologia do Ritual Marina Holderbaum Os sonhos e a percepção da realidade nos Mitos Irlandeses Introdução De certa forma, a facilidade com que nos acomodamos com uma escolha de realidade é um tipo de autopreservação. Questionarmos tudo é um ato contra produtivo. Ser consciente das implicações do simples ato de enxergarmos algo a nossa frente, gera, ao ser analisado, uma revolução cognitiva que não se encaixa ao mundo como o vivemos. Nossa realidade é uma construção e em boa parte ela é individual, pois não vemos realmente as coisas à nossa frente. Nossos olhos captam e selecionam estímulos luminosos e sinais elétricos, essas informações são processadas pelo sistema visual e são geradas dentro de nossos cérebros, como uma impressão visual única. Entretanto, para que vejamos uma única imagem, cada um dos olhos oferece a imagem de um ângulo diferente e quando o cérebro as une ele cria a sensação de profundidade (RAMOS, 2006). Dessa forma, a nossa visão é, na verdade uma sequência de seleções e interpretações feitas desde o início do processo de captação da luz e dos estímulos elétricos até o fim do processo em que vemos a imagem projetada em 3D à nossa frente. Um exercício prático simples pode ser feito para exemplificar a extensão deste processo de interpretação, o experimento do espelho. Pegue um espelho e coloque-o, virado com a parte reflexiva para cima, abaixo do nariz e observe o reflexo, tudo estará de cabeça para baixo. Após, em média, 30 a 40 minutos seu cérebro se adaptará à imagem e você a verá de cabeça para cima novamente (este exercício pode causar dor de cabeça e náuseas). Este exercício simples nos mostra o quanto podemos alterar a forma como vemos a realidade a nossa volta pelo simples fato de nosso cérebro estar mais apto a aceitar uma alternativa que se adapte ao padrão já construído. Mas será que estamos aptos para aceitar que a realidade e a crença em um certo tipo de padrão ou certa visão de mundo é uma escolha de nossos cérebros, geralmente, de acordo com o que nos é melhor aceitável e que foi moldado pelas nossas próprias experiências e construção cultural? Em raros Revista Corr Bolg - 27 Antropologia do Ritual episódios, nós duvidamos disso e aceitamos uma realidade alternativa, em termos daquilo que acreditamos ser real. Nós acreditamos que podemos prever o futuro, receber conselhos ou até encontrar com os mortos através de um sonho. Mas via de regra os sonhos não são vistos como uma realidade alternativa e sim como uma ferramenta ou conexão episódica com o Outro Mundo ou com um conhecimento futuro. Assim, alguns deles são tidos como especiais e possuem uma linguagem simbólica e própria de um mundo diferente do mundo em vigília e diferente do mundo dos sonhos regular, estes precisam ser identificados e reconhecidos como peculiares. Lévy-Bruhl em a Mentalidade Primitiva, exemplifica algumas sociedades em que o sonho é tão ou mais real que a realidade em vigília. Nesses casos extremos, um acontecimento no mundo dos sonhos é tido como real e se alguém sonha que outro roubou algo ou cometeu algum crime no sonho, o sujeito que cometeu tal crime deve pagar por sua conduta, algumas vezes até com a vida, como os relatos que ele descreve: “Em Muka (Bornéu) encontrei Janela... Ele me disse que o motivo de sua vinda era que sua filha teria de pagar uma indenização em Luai, porque seu marido havia sonhado que ela era infiel a ele. Janela havia trazido sua filha. Ainda em Bornéu, “um homem, conta Grant, veio oficialmente pedir-me proteção. Eis do que se tratava. Certo homem, da mesma aldeia, havia sonhado que o queixoso tinha atingido com um golpe de lança seu avô que estava doente em casa. Persuadido da realidade de seu sonho, ele havia ameaçado o queixoso com uma vingança, caso o doente morresse. É por isso que o queixoso pedia proteção, afirmando que não havia ferido o doente, e que, caso sua alma o fizera durante seu sonho, ele de nada sabia, e não era responsável por isso.”1 É possível notar que nesse caso, há uma certa dissociação da alma com a consciência. A alma em sonho poderia tomar atitudes que o autor desconhece e pode se negar a se responsabilizar, mas não se põe em xeque a veracidade do acontecimento no sonho, apenas a consciência ou não do autor perante as atitudes de sua alma. E é comum a algumas culturas acreditar que a alma vaga enquanto o corpo físico dorme, ou que ela vai a um mundo específico dos sonhos ou lugares distantes. No Chaco Paraguaio a mesma característica se repete, sendo um sonho interpretado como algo que aconteceu ou que está por acontecer e se deve tomar alguma providência a respeito, como o relato de Wilfried Barbrooke Grubb exemplifica: 28 - Revista Corr Bolg Os sonhos e a percepção da realidade nos Mitos Irlandeses “O indígena, diz ele, tem fé total em seus sonhos e deixa que eles dirijam suas ações. Certo indígena, chamado Poit, ficara seriamente impressionado por um sonho, que ele havia contado várias semanas antes de tentar me matar. Ele me havia encontrado, em sonho, em uma clareira da floresta: eu o acusara de ter roubado objetos que me pertenciam e havia atirado nele com um tiro de fuzil. Ele considerou esse sonho como um aviso certo do que aconteceria e, do ponto de vista do indígena, se não pudesse evitar a catástrofe de outro modo, não teria outro recurso senão me remeter a bala, e de fazer o possível para me tratar da mesma forma como havia sonhado que eu o trataria.”2 Em outras culturas, entretanto, um sonho é visto como algo que tem que acontecer e seu sonhador deve fazer de tudo para realizá-lo, como fica explícito nos relatos jesuítas a respeito dos Iroqueses, um povo indígena norte-americano. “Os Iroqueses, diz outro sacerdote, propriamente falando, têm apenas uma divindade, que é o sonho; eles lhe prestam sua submissão e cumprem todas as suas ordens com a maior exatidão. Os tsonnontuens são muito mais apegados a ele do que os outros; sua religião a esse respeito chega ao escrúpulo: seja o que for que acreditem ter feito ao sonhar, eles se consideram igualmente obrigados a executálo o quanto antes. As outras nações se contentam em observar os sonhos que são mais consideráveis; mas esta, que se considera viver mais religiosamente que suas vizinhas, se acreditaria culpada de um grande crime caso omitisse um só deles. O povo pensa apenas nisso; não se interessa por coisa alguma; todas as suas cabanas estão repletas de seus sonhos.”3 Esse relato não é nativo, mas dá uma boa ideia do choque de culturas que a diferença entre percepções diferentes de realidade pode causar e do quanto algumas culturas veem o sonho ou outras realidades como parte do mundo real, de forma a não diferenciarem as informações obtidas como verdadeiras ou falsas, ou vigília e sonho. Todos estes relatos de culturas diferentes e a discussão sobre realidade são apenas uma introdução necessária para podermos relativizar a nossa própria visão de mundo contemporânea e noção do que é realidade ou não, Revista Corr Bolg - 29 Antropologia do Ritual para podermos começar a pensar nos sonhos e como eles se manifestam nos mitos e na nossa própria experiência. As significações e a perspectiva de realidade de um sonho são não só diversas, mas podem alcançar padrões de estranheza, umas em relação às outras, de intensidades altamente elevadas. Sonhar é um ato que desafia a própria noção de autopreservação da consciência moldada pela cultura e pelas experiências pessoais, pois no estado de sonhos, os limites da realidade que escolhemos ou aprendemos a aceitar são expandidos. O sonho não precisa se enquadrar no molde da realidade de vigília e por isso ele pode variar entre percepções de realidade diferentes. Sonhos nos Mitos Irlandeses No caso da cultura Celta Irlandesa temos alguns exemplos de sonhos descritos nos mitos. Na Batalha de Magh Tuired há a descrição de um sonho profético simbólico e como ele é interpretado. “Now, on the arrival of the Tuatha De Danann in Ireland, a vision was revealed in a dream to Eochaid, son of Erc, high king of Ireland. He pondered over it with much anxiety, being filled with wonder and perplexity. He told his wizard, Cesard, that he had seen, a vision. ‘What was the vision?’ asked Cesard. ‘I saw a great flock of black birds,’ said the king, ‘coming from the depths of the Ocean. They settled over all of us, and fought with the people of Ireland. They brought confusion on us, and destroyed us. One of us, methought, struck the noblest of the birds and cut off one of its wings. And now, Cesard, employ your skill and knowledge, and tell us the meaning of the vision.’ Cesard did so, and by means of ritual and the use of his science the meaning of the king’s vision was revealed to him; and he said: ‘I have tidings for you: warriors are coming across the sea, a thousand heroes covering the ocean; speckled ships will press in upon us; all kinds of death they announce, a people skilled in every art, a magic spell; an evil spirit will come upon you, signs to lead you astray (?); . . . they will be victorious in every stress.’ 21. ‘That,’ said Eochaid, ‘is a prophecy of the coming to Ireland of enemies from far distant countries.’4 30 - Revista Corr Bolg Os sonhos e a percepção da realidade nos Mitos Irlandeses Nesse caso, Eochaid, tem acesso a uma informação futura através de um sonho. É interessante notar aqui que o sonho é simbólico e não um sonho vívido e realístico de uma cena futura, ele é antes de tudo, uma alegoria, que deve ser desvendada. A descrição deixa clara, através da ansiedade, surpresa e perplexidade de Eochaid em relação ao sonho, que o sonho profético é um sonho incomum. Essa raridade do sonho “especial”, aqui chamado de visão, é comum em grande parte das culturas, sendo que apenas alguns sonhos são vistos como proféticos, ou significativos de algo, e estes devem ser reconhecidos ou passarão desapercebidos em meio a sonhos ordinários. Como vimos nos relatos a respeito de como os sonhos podem se manifestar culturalmente e interpretados dentro de um sistema de crenças, existem várias possibilidades não só de interação com o sonho especial e com a realidade do mundo onírico como de implicações deste no mundo real. Os mitos Irlandeses parecem compreender uma certa pluralidade deles. Além do sonho profético simbólico, descrito na Batalha de Magh Tuired, há, entre outros, um mito que relata um sonho, que similar ao que os missionários dizem acontecer entre os Iroqueses, tem a necessidade de ser materializado, sob a pena de infringir um estado de doença ao seu portador por impossibilidade de realização, pois havia se criado um estado emocional real. “1. Oengus was sleeping one night when he saw something [like] a maiden near him at the top of his bed. She was the most beautiful in Erinn. Oengus went to seize her hands to take her with him in his bed; when he saw the one which he had welcomed suddenly away from him that he did not know who had taken it from him. There he was until the morning ; his mind was not easy. It brought an illness on him, the figure which he had seen without speaking to her. Food did not enter his mouth. There he was again for a night; when he saw a cymbal in her hand the sweetest existing. She played a song to him that he fall asleep. There he was until the morning. He did not breakfast in the morning. 2. A whole year [elapsed] to him and she [went on] to visit him in his bed so that he fell in love. He did not tell it to anybody. He fell ill afterwards and nobody knew what was with him. The physicians of Erinn assembled. They did not know what there was after all. One went to Fergne the physician of Conn. He came to him. He knew from the face of the man the illness that was in him and he knew from his saying that he would go in the house of his ***, that he had an illness of the brain1. Revista Corr Bolg - 31 Antropologia do Ritual 3. Fergne call him apart [and said] “little is thy experience an accidental love has fallen on thee”. “My illness has judged me” said Oengus. “I love in heartlessness.” “And nobody dared to say it to the other.” “It is true”, said Oengus, “I met a beautiful maiden of the most splendid form that is in Erinn with a distinguished appearance; [she had] a cymbal in her hand on which she used to play to me every night.” “Is it not so,” said Fergne, “love to her seized thee and now it shall be sent from thee to Boann thy mother that she may come to speak to thee.” 4. They went to her. Afterwards Boann came. “I was curing this man,” said Fergne, “whom has seized an uncertain illness.” This new was told to Boann. “He will be under the care of his mother, he whom has seized a doubtful illness and whole Erinn shall be investigated by thee whether there may be found a maiden of that form which thy son saw.”5 Este sonho de Oengus no Mito é ainda mais peculiar à medida que, não só é um sonho que deve impositivamente ser realizado, através da busca e conhecimento em vigília da jovem do sonho, mas que é recorrente por um ano inteiro. Além disso, a validade do sonho não é discutida pelo médico, ao contrário, ele aconselha Bóand “que busque por toda Ériu até encontrar a forma que seu filho viu”, ou seja, ele assim como nos casos citados em outras culturas, não duvida da realidade do mundo dos sonhos e de que ela pode ser uma manifestação tão válida e real quanto a realidade em vigília. De fato, no Mito, o sonho se prova ser real e, embora não se deixe claro explicitamente, que a jovem o reconhecia e que fora mesmo ao encontro dele em seus sonhos, fica evidente que ela parece ficar confortável com a presença dele e que seu encontro é visto com naturalidade, sugerindo que ela realmente havia ido aos seus sonhos, inclusive por ele sugerir que não seria a primeira vez que se banhavam juntos. “Mac Og went to Loch bel Draccon when he saw the 150 white birds at the loch with their silvery chains and golden caps around their heads. Oengus was in human shape at the border of the loch. He called the maiden to him. “Come to speak to me O Caer.” “Who calls me” said Caer. “Oengus calls thee, come and yield to me upon thy honour that thou mayest go with me into the bath again.” “I will come,” she said. 32 - Revista Corr Bolg Os sonhos e a percepção da realidade nos Mitos Irlandeses 14. She came to him. He puts his two hands on her. They slept in the shape of two swans until they surrounded the bath-place three times. There was not and there will not be a loss of honour to him. They went from there in the shape of two white birds until they were at the Brug of the mic ind Oicc and they made a concert so that the people fell asleep for three days and three nights. The maiden remained with them afterwards.”6 Nesse caso teríamos além de um simples sonho profético ou com necessidade de realização, um sonho no qual pessoas podem interagir no mundo onírico, da mesma forma que no mundo em vigília e suas experiências podem ser similarmente reais. Mas mais que isso, parece que temos aqui a sugestão de que uma pessoa pode influenciar o sonho de outra, ou mesmo participar do sonho de outra. É nesse ponto que toda a discussão anterior sobre a percepção da realidade em culturas diferentes e como as escolhas da sociedade ao nosso redor e das nossas próprias experiências em termos daquilo que nosso cérebro foi preparado para aceitar, torna-se extremamente importante ao falarmos de sonhos na Antiguidade Irlandesa que os Mitos compilados pelos monges cristãos do período da cristianização da Irlanda retratariam. Aparentemente, sonhos proféticos, simbólicos ou de contato são levados muito à sério na cultura retratada pelos Mitos desse período, a ponto de não só prever influências futuras, mas também determinar ações a serem tomadas, ou mesmo infringir doença e dor aquele que sonha como consequência de um sonho. Outro exemplo deste tipo de sonho que afeta a saúde e o bem-estar do sonhador é retratado no Mito Serglige Con Culainn ocus Óenét Emire. “He then threw his heavy spear [croisech], and it passed through the flying wing of one of the birds. They plunged under the water. Cuchulain went away then in bad spirits, and put his back to a rock, where sleep soon fell upon him. And he saw [through his sleep] two women coming towards him. One woman had a green cloak, the other had a five-folded crimson cloak on. The woman with the green cloak went up to him, and smiled at him, and she gave him a stroke of a horse switch. The other went up to him then and smiled at him, and struck him in the same manner ; and they continued for a long tune to do this, that is, each of them in turn striking, until he was nearly dead. They went away from him then. Revista Corr Bolg - 33 Antropologia do Ritual All the Ultonians perceived what had happened, and they asked if they would awaken him. “No”, said Fergus, “do not move him before night”. Cuchulain stood up afterwards through his sleep.”7 Neste caso o sonho está dentro de um contexto mágico explícito. Cuchulain ao ser induzido a um estado de sono pelos pássaros que ele desafia é instantaneamente atirado à uma vivência onírica, na qual é atacado por duas mulheres até que esteja à beira da morte. Novamente aqui o sonho afeta diretamente a vida e a saúde do sonhador e Fergus, assim como o médico que tratou Oengus, reconhece na experiência onírica a causa de uma enfermidade, atribuindo prontamente o sonho, ou estado de sono induzido pelos pássaros, como perigoso. Mesmo com o reconhecimento de que algo havia acontecido durante o sono e o cuidado de Fergus em só acordá-lo à noite, Cuchulain não conseguiu falar por um ano após o sonho, ficando enfermo por esse período e só sendo curado pela interferência das próprias mulheres do Sidh, Liban e Fand. Tanto no caso de Oengus como no de Cuchulain há uma percepção destas realidades oníricas como reais e com acontecimentos reais, ao passo que no caso do sonho profético de Eochaid o sonho é mais um veículo simbólico de adivinhação e não uma realidade vivida específica, na qual o que acontece é uma experiência consciente e consistente, ainda que seja uma situação de sonho especial. Mas ainda existe um caso de sonho a ser observado, que, de certa forma se comporta como uma mistura dos anteriores em termos de construção de realidade, o sonho profético realístico. Nele, aquilo que se vê na realidade onírica como previsão precisa ser muito pouco analisado, pois ele não é simbólico, entretanto, também não possui a noção de consciência que há nos sonhos conscientes citados. “48. While the folk of the Hostel were musing, Amargin slept a little time. This is what appeared to him in his sleep — Connaughtmen destroying the Hostel on them, and each slaughtering another around it. Out of his sleep he awoke in horror. « Be ye silent a while », says Cormac: « what is that there ? » Then said Amargin : « The low roar of championship », etc. 49. « Arise, O men! » says Amargin. « Let each of you, get ready his weapons, for foes are coming to attack you. » Not long then were they at these musings till the hosts came outside and made 34 - Revista Corr Bolg Os sonhos e a percepção da realidade nos Mitos Irlandeses three circuits round the house. They utter their battle-cry. « What we feared has reached us », says Amargin. « They will get their answer here among us », says Cormac : « We have warriors for them.”8 Nesse caso, o sonho é visto como realmente deve acontecer, sem simbolismos ou alegorias e Amargin se vê dentro dele, mas como um ator que age impulsivamente e sem consciência onírica. Quando ele acorda, aterrorizado por seu sonho, percebe que ele fora uma previsão do que estaria para acontecer logo em seguida e sabe o que fazer. Assim, o sonho não só permite que ele possa prever o que irá acontecer no futuro, mas o avisa de um ataque e lhe dá o conhecimento para saber agir em resposta ao acontecimento. Esse é um sonho espontâneo, mas há também no Mito a possibilidade de indução do sonho profético realista, o que é descrito no Serglige Con Culainn ocus Óenét Emire, através de sacrifício e encantamento. “Thus was that bull-feast prepared, namely: a white bull was killed, and one man eat enough of his flesh, and of his broth; and he slept under that meal; and a charm of truth was pronounced on him by four Druids; and he saw in a dream the shape of the man who should be made king there, and his form, and his description, and the sort of work that he was engaged in. The man screamed out of his sleep and described what he saw to the kings, namely, a young, noble, strong man, with two red streaks around him, and he sitting over the pillow of a man in a decline in Emain Macha [Emania].”9 O sonho aqui parece ser mais complexo e detalhado, talvez porque o sonhador estivesse ciente de seu ofício e tinha experiência na profetizarão através do sonho induzido. O que também nos leva a pensar na similaridade entre essa prática descrita no Mito com o rito de busca de inspiração do File, o imbas Forosnai, descrito no Glossário de Cormac. “Assim ele é feito. O file mastiga um pedaço da carne de um porco vermelho ou de um cão ou de um gato e depois coloca-a na pedra atrás da porta e sobre ela pronuncia um encantamento e oferece-a a seus ídolos e depois chama a si seus ídolos e então, se não acha [sua resposta] pela manhã, entoa encantamentos sobre suas duas palmas e chama a si outra vez os seus ídolos a fim de que o seu Revista Corr Bolg - 35 Antropologia do Ritual sono não seja perturbado e ele deita-se e é velado para que ninguém possa interromper ou perturbá-lo até que se-lhe revele tudo o que lhe interessa, o que pode levar um minuto ou dois ou três, ou por tanto tempo quanto ele tenha de permanecer na cerimônia; et ideo dicitur [e por esta razão chama-se] imbas, ou seja, suas duas palmas sobre ele, isto é, uma palma em cada uma de suas bochechas.“10 Como os dois casos descrevem, há a necessidade do consumo de carne ou, ao menos contato palatal com ela, um encantamento e a indução do sono. É interessante notar que o rito de Imbas Forosnai do file que é descrito já acontece no período de cristianização, por isso o sacrifício seria impossível de ser praticado e o acompanhamento dos Druidas também. É possível, portanto que se trate do mesmo rito, mas com a alterações necessárias impostas pelo mundo cristão que se formava. Assim, o impedimento de que alguns elementos pudessem ser reproduzidos podem ter forçado uma adaptação. De qualquer forma, o que é relevante, não só nesse caso, mas também no caso do sonho induzido por encantamento de Cuchulain é que podem ser criadas, através de magia ou ritual, as condições propícias para um o sonho “especial” ocorrer. Dessa forma, o sonho profético pode ser buscado, ao invés de se precisar esperar que ele ocorra espontaneamente. O que pode nos levar a crer que ele não seria tão raro assim, ao menos para aqueles que tinham treinamento para recebe-los em ritual. Conclusão De certa forma a expressão “Teia de Significados”, proposta por Geertz para se entender a cultura de um povo, na qual a cultura representa a teia que conecta simbolismos e significados de todas as áreas dentro dela em uma trama comum, parece ser um plano de fundo ideal do que os sonhos representam e como eles atuam dentro do contexto da Antiguidade Irlandesa, pois a realidade onírica parece estar intimamente ligada à realidade em vigília, sendo estas, em certos casos, tão amalgamadas que é impossível separá-las. Nesse caso os sonhos estão entrelaçados por estas teias, podendo influenciar as decisões, uniões, vida, doença e morte de seus indivíduos. A realidade do sonho pode afetar diretamente a realidade em vigília, como vimos nos casos em que o sonho traz enfermidade ou avisa de uma batalha, e a realidade em vigília pode afetar diretamente a realidade onírica, pois o sonho “especial” pode ser induzido por meio de magia ou ritual e até controlado. 36 - Revista Corr Bolg Os sonhos e a percepção da realidade nos Mitos Irlandeses O que, acima de tudo, é imprescindível perceber é que, assim como em outras culturas, na cultura retratada pelos Mitos Irlandeses, o mundo onírico não é apenas um mundo confuso que ao amanhecer vai se esvanecendo, ele pode ser tão real quanto a realidade em vigília, não só em suas percepções futuras, mas em suas ações e consequências. A realidade dos sonhos é uma possibilidade aceita e indiscutível no contexto Mítico, o que provavelmente se refletia no mundo cultural, fazendo com que este fosse não só uma ferramenta de previsão do futuro, mas uma ferramenta mágica e ritual utilizada recorrentemente. Bibliografia ‘Cormac’s Glossary’, ed. Whitley Stokes, in Three Irish Glossaries, (London: Williams and Norgate, 1862) FRASER, J. “The First Battle of Moytura.” Ériu v.8 (1915), pp. 1-63 [H 2.17] GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. LTC Livros Técnicos e Científicos Editora Ltda. Rio de Janeiro, 2012. ¬¬¬¬¬ LÉVY-BRUHL, Lucien. A Mentalidade Primitiva. Paulus, São Paulo, 2008 MÜLLER, Edward. The Dream of Oengus - Aislinge Oengusso (Ms Egerton 1782), in Two Irish tales, Revue Celtique 3. O’CURRY, Eugene. The Sick-bed of Cuchulain, and the only jealousy of Emer. Serglige Con Culainn ocus Óenét Emire. Lebor na h-Uidre. RAMOS, André. Fisiologia da Visão: Um estudo sobre o “ver” e o “enxergar”. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, 2006. STOKES, Whitley. Da Choca´s hostel. Bruidean Da-Chocae (MSS. H. 3. 18 and H. 1. 17), Revue Celtique 21. GRUBB, Wilfried Barbrooke. An unknown people in an unknown land: The Indians of the Paraguayan Chaco. Hamburg, SEVERUS Verlag, 2011. Notas W B Grubb, An unknown people in an unknown land: The Indians of the Paraguayan Chaco, p. 275. In Lucien Lévy-Bruhl. A Mentalidade Primitiva, p. 98. 2 Lucien Lévy-Bruhl. A Mentalidade Primitiva 3 Ibidem 4 The First Battle of Magh Turedh 5 MÜLLER, Edward. The Dream of Oengus - Aislinge Oengusso (Ms Egerton 1782). 1 Revista Corr Bolg - 37 Antropologia do Ritual Ibidem Tradução Eugene O’Curry. The Sick-bed of Cuchulain, and the only jealousy of Emer. Serglige Con Culainn ocus Óenét Emire. Lebor na h-Uidre 8 Whitley Stokes, Da Choca´s hostel. Bruidean Da-Chocae. MSS. H. 3. 18 and H. 1. 17. 9 The Wasting Sickness of Cú Chulainn, and the Only Jealousy of Emer Serglige Con Culainn ocus Óenét Emire. Lebor na h-Uidre. Tradução para o Inglês Eugene O’Curry. 10 ‘Cormac’s Glossary’, ed. Whitley Stokes, in Three Irish Glossaries, (London: Williams and Norgate, 1862) 6 7 38 - Revista Corr Bolg Divindades Ana (Slakkos Abonos) Bantel Boann do Vale Fértil Introdução Aquela Que Possui Muitas Vacas, ou ainda, a Vaca Branca ela mesma, Boann, também conhecida em variações da literatura vernacular irlandesa como Boand, e ainda, Eithne, é uma das mais grandiosas deusas da mitologia gaélica. Membro da raça dos Tuathá de Danaan, foi consorte de Elcmar, o próprio rei dos deuses, Nuadu, em algumas versões do mito, tais como o Metrical Dindsenchas e the Wooing of Ethain afirmam. A deusa se torna posteriormente consorte de Dagda, o deus druídico, com quem teve um filho, o ilustre deus Aengus. Boann dá nome ao Rio Boyne, segundo em importância na ilha da Irlanda, e em torno do qual se formou o Vale do Boyne, um dos primeiros locais aonde foi praticada a agricultura na ilha. É nesta localidade que se ergue o maior complexo de monumentos megalíticos da Europa, e o mais proeminente deles, que tem da deusa também o seu nome, Brú na Boinne, ou Casa de Boann. Junto com os demais monumentos, atravessou os milênios, desde o Neolítico até as Idades do Bronze e do Ferro, e ainda hoje, na literatura vernacular, e para determinados grupos religiosos, é a morada de vários dos deuses Tuatha de Danaan. O Vale do Rio Boyne é palco de dezenas de episódios da mitologia gaélica, ligados não só a ela mas a seus filhos, seus consortes e as famílias deles, e de mortais que habitaram e habitam seu solo sagrado. De acordo com a mitologia, Boann habitava o Brú na Boinne, hoje conhecido como New Grange, maior monumento do complexo. Aonde vivia com seu esposo, Elcmar. Mas tendo o deus Dagda se apaixonado por ela, planejou afastar o esposo da deusa a fim de conseguir os seus favores. Através de magia, ele fez com que Elcmar fosse convocado até a presença do rei dos Tuatha de, Bres. E com um encantamento, fez com que o sol permanecesse no firmamento pela duração de nove meses, para que Elcmar vagasse pela terra, sem sentir fome, sede, ou o passar do tempo. E neste interim, foi até Brú na Boinne, cortejou e engravidou Boann, que gerou e deu à luz um filho divino, Aengus, o filho jovem. No entanto, conta-nos o mito, a deusa tentou purificar-se de seu adultério banhando-se nas águas da Fonte de Segais, a fonte mágica de onde brotava toda a sabedoria dos deuses Tuatha de Danaan. Mas lá chegando, ao tentar adentrá-la, a fonte emergiu três grandes ondas Revista Corr Bolg - 39 Divindades que destruíram o corpo da deusa e numa enxurrada em direção ao mar, afogaramna, transformando-a em um rio, o Rio Boynne, no qual a deusa passou a habitar. Estas informações estão contidas na literatura vernacular irlandesa, nos textos do Metrical Dindsenchas, em seu terceiro volume, contido no Livro de Leinster, e escrito durante o século XII d.C. e também no texto The Wooing of Emer, traduzido por Kuno Meyer em 1888 d.C. e, oriundo do século X d.C. Além das já citadas, também o segundo volume da obra Heroic Romances of Irelanda, tradução de 1906 de A.H. Leahy, também possui informações concernentes ao mito. Todos estes textos serão tomados como fonte desta pesquisa que contempla a deusa Boann e seu papel divino nas sociedades celtas gaélicas da Idade do Bronze e do Ferro. Este trabalho busca ainda expandir o olhar sobre a deusa e seu vale no período de construção do monumento a ela erigido, o Neolítico, por volta de 4.000 a.C. em vista da importância do vale a que dá nome, para a formação de sociedades agrícolas na Irlanda, e que possibilitaram a posterior formação de uma Cultura Celta nesta região. Para tanto, veremos não apenas o que historiadores e arqueólogos têm a dizer sobre o mito da deusa Boann comparativamente a outros mitos que expressem padrões semelhantes da mentalidade céltica, mas também, como a arqueologia sobre o período megalítico, pode lançar luz sobre a criação do mito da deusa, explicando os fatores sociais, econômicos e as crenças que levaram à fixação no vale, ao culto da deusa, construção do complexo megalítico, e também à perenidade de seus significados ao longo dos milênios, atravessando, sob ressignificações, a Idade do Ferro, e permanecendo na história escrita da Irlanda Medieval, até os dias de hoje. Deusa Vaca Branca A Deusa das Vacas, ou Deusa que Possui Vacas Brancas (ROSS, 1996, 279), é certamente a detentora de um rico território no qual comunidades Neolíticas se estabeleceram e cultivaram a terra e sua sacralidade desde aproximadamente 4.000 a.C. mas também da força motriz deste período, uma vez que os cavalos só foram introduzidos na Europa na Idade do Bronze, e era o gado que se utilizava para puxar desde o arado e a carroça que levava os excedentes e artesanatos para a comercialização, até as enormes pedras pesando toneladas usadas nas construções dos monumentos megalíticos. O gado era ainda, a fonte alimentícia por sua carne e os derivados de seu leite, e também de outros recursos como o couro necessários em vestimentas e utensílios. A deusa do gado é o resultado de toda a riqueza que se podia encontrar no período Neolítico na Irlanda, e possivelmente, a benfeitora de toda a riqueza que possuíram os habitantes de seu vale. 40 - Revista Corr Bolg Boann do Vale Fértil Posteriormente à chegada dos cavalos e metais à Irlanda, o gado continuou ainda sendo visto como a maior fonte de riqueza, e a maneira pela qual esta podia ser medida. Carecendo desde sempre de um solo tão fértil quanto o de outras regiões europeias, a população da Irlanda aprendeu cedo a cultivar este e outros animais de corte, e muito de sua rotina agrária girou em torno de sua produção. Logo, parte importante de sua economia, e consequentemente, de seus conflitos armados e territoriais tiveram, como plano de fundo, a aquisição de gado e pasto. As marcas dessa organização social estão na mitologia retratadas nos muitos episódios das razias, como a Razia do Gado de Flidais, e, a mais importante epopeia heroica da literatura vernacular irlandesa, a Razia do Gado de Cualgne. Vemos assim, a deusa Boann e tudo que a ela está ligado, permanecer na mentalidade e no cotidiano dos povos que vieram a ser chamados de Celtas. Uma deusa que ultrapassou o período Neolítico para estabelecer-se na religiosidade da Idade do Bronze e na do Ferro. O Vale do Boyne O arqueólogo Chris Scarre (2007, 1936) descreve vale ao qual a deusa Boann dá seu nome, e diz que este está localizado no Condado de Meath, e dispõe-se em torno do Rio Boyne, na Província do Leinster. O rio desagua na baía de Drogheda, no Mar da Irlanda, e passa perto de localidades importantes da Irlanda céltica, como a Colina de Tara, antiga sede dos Grandes Reis. Mas certamente que as localidades e monumentos de maior importância estão no próprio vale, que é o maior complexo de monumentos megalíticos da Europa. É na chamada Curva do Boyne que está localizado Brú na Boinne, a Casa de Boann, também conhecido atualmente como New Grange. Consiste numa Tumba de Passagem, e sua construção se completou em torno de 3.200 a.C. mas estudiosos concordam que seu início, e o dos demais monumentos que compõe o complexo se deu em torno de 4.000 a.C. A leste está localizado Dowth, um túmulo megalítico sob um monte de 85 metros de diâmetro. Das 66 pedras que o compõe, 15 estão decoradas com motivos neolíticos, tais como o sol e as espirais. Possui em seu interior dois túmulos de passagem, um em formato cruciforme, e um outro circular, no qual incide a luz solar no amanhecer do Solstício de Inverno. Assim como Brú na Boinne, cuja única passagem é cruciforme, e a câmara interna mede 6 metros de diâmetro, também banhado pelo sol no amanhecer do Solstício de Inverno. Suas pedras são decoradas com motivos tais como espirais, lozangos, zig-zags, e bifurcações, algumas muito bem elaboradas, tendo mesmo sido gravadas em alto relevo. Outras pedras gravadas de forma mais rudimentar podem ter sido extraídas de outros Revista Corr Bolg - 41 Divindades monumentos anteriores, embora não seja certo. O que se sabe é que as pedras em quartzo branco foram trazidas das montanhas Wicklow a 40 quilômetros ao sul, e as de granito, vieram da Baía de Dundalk, a 35 quilômetros ao norte. É o nível de dificuldade de construção destes monumentos que intriga aos pesquisadores. Nenhuma destas pedras pesa menos de uma tonelada, e ainda que muitos séculos tenham levado a construção, não é uma empreitada que pudesse ser levada a cabo por assentamentos pequenos como os da Irlanda neolítica. Acredita-se, então, que estes monumentos tenham sido criados com a parcerias de várias comunidades, que podem ter chegado a vir de todas as localidades da ilha. Ou seja, o complexo do Vale do Boyne não pode ter sido de importância religiosa apenas para os habitantes da região, mas para os de toda a ilha, levandonos a concluir que as religiosidade em questão era comum a toda a Irlanda. O terceiro maior túmulo de passagem da região é Knowth, um pequeno complexo em si, uma vez que está cercado de outros pequenos túmulos, num total de 17. O próprio monte de Knowth tem dois túmulos de passagem, um de costas para o outro, e o que mais impressiona aí é a quantidade de pedras decoradas em estilo neolítico: ao todo 300 pedras, a maior concentração de pedras decoradas em estilo neolítico de todo o oeste europeu. Posteriormente, Knowth foi ainda circundado por um círculo de pedras, e é interessante assinalar que, nas suas proximidades foi encontrado o primeiro vestígio de residências neolíticas, datando de aproximadamente 4.000 a.C. Knowth parece ter sido amplamente habitado ao longo dos séculos, uma vez que as residências em seu entorno chegam mesmo a abranger o início das construções de casas circulares, típicas da chamada Beaker Culture, e que se prolongaram como uma característica da Cultura Celta. Testes com Carbono 14 indicam que o complexo do Vale do Boyne foi constantemente habitado por mais de 1.000 anos, e os cultos ali rendidos continuaram após o abandono dos assentamentos, tornando o vale numa localidade sagrada e local de encontro de tribos distintas, mas unidas por uma mesma crença. Finalmente, os cultos levados a cabo no vale sobreviveram na religiosidade tópica da Irlanda no advento da Cultura Celta, que vigorou entre as Idades do Bronze e do Ferro, e sobreviveu até os nossos dias na forma de topônimo e na mitologia, conservada na literatura vernacular. Os Cultos do Vale do Boyne Por toda a extensão do oeste europeu, os monumentos megalíticos no estilo túmulos de passagem envolveram ritos tais como os sepultamentos, entrega de oferendas e sacrifícios. Acredita-se que estas localidades eram previamente tidas como sagradas pelos povos autóctones antes mesmo da chegada da 42 - Revista Corr Bolg Boann do Vale Fértil agricultura, uma vez que uma quantidade considerável de túmulos menores, os Cairns, ou Antas na língua portuguesa, precederam ao estilo dos túmulos de passagem vindo a ser construídos durante o Mesolítico - período de mudança entre o paleolítico e o neolítico, quando os povos passaram a viver não só da caça e coleta, mas também do escambo e pastoreio. O fato é que desde o início, a maioria destes monumentos foram sepulturas, mas não somente isto. A incidência da luz solar alinhada a este monumentos e suas pedras decoradas em períodos astronômicos específicos e importantes para a atividade agrícola, atestam a importância destes sítios também na crença religiosa em torno da agricultura, da fertilidade do solo e do sol. Exemplo disto é o túmulo de Loughcrew, também no Vale do Boyne, iluminado duas vezes no ano, durante os Equinócios, períodos em torno dos quais a semeadura e a colheita se iniciavam. O Solstício de Inverno é amplamente o ponto astronômico mais contemplado nestes monumentos, levando estudiosos a apostar na crença de que o sol são só trazia a vida aos vegetais com o seu avanço ao longo da primavera do verão, mas também que possuía poderes sanativos e de renascimento. Com efeito, a luz solar costuma iluminar as artes gravadas nas pedras, o que nos leva a acreditar que, de alguma forma, a incidência da luz sobre aqueles símbolos sagrados, naquelas pedras especialmente trazidas de tão longe, tivessem o poder de conceder novamente a vida, possivelmente uma outra vida em um Outro mundo, aos mortos ali sepultados, e à terra sob a qual penetrava. Mas porque aos mortos a vida haveria de ocorrer em outro mundo e à vegetação neste mesmo mundo? A resposta está em que, os falecidos eram mortais, e a terra venerada era divina. Logo, esta não perece, e pode voltar a frutificar renovadamente ao longo dos tempos, possivelmente representados nas espirais. Assim surge o culto à Ancestralidade no oeste europeu, de acordo com Scarre (2007, 12). Vale assinalar que tamanha era a importância do culto aos Ancestrais durante o Neolítico, que sepultamentos são encontrados em outras localidades igualmente tidas como sagradas e de convívio humano, tais como minas de sílex, muito usado na construção de pontas de flechas e lanças, e sob o piso de residências. Ao que parece, determinados membros das famílias não podiam ser apartados desta mesmo após a morte, de forma que seus restos mortais permaneciam próximos para abençoar e guiar os vivos em suas tarefas diárias. Ao longo de todo o oeste europeu, as sepulturas de passagem ou em formas de antas guardavam um grande número de mortos. Num primeiro período, eles eram deixados nos primeiros cômodos ou mesmo nas passagens, enquanto seus restos mortais se decompunham, e uma vez sobrados apenas os ossos, estes eram distribuídos nas câmaras internas e agrupados por crânios, fêmures e etc, Revista Corr Bolg - 43 Divindades de forma que após a decomposição total da carne, os mortos deixavam de ser lembrados como indivíduos e tornavam-se membros de um corpo muito maior, os Ancestrais. Este padrão muda durante o Neolítico tardio quando alguns indivíduos ou casais passam a possuir túmulos feitos para si próprios, e seus restos mortais não eram dispersados. Assim a identidade do morto passou a se preservar após a morte na crença dos povos neolíticos e, também a sua descendência na terra passou a ser reconhecida. É quando as pessoas passam a se ver não apenas como membros de um grupo, uma tribo, uma comunidade inteira, mas como descendentes de um indivíduo excepcional, o que resultou na formação de clãs e famílias, e no costume de identificar-se como filho de alguém, após o primeiro nome. A questão aqui é, se membros de uma mesma comunidade eram sepultados também em sítios ligados a divindades, podemos supor que eles se acreditassem descendentes destas mesmas divindades? É possível que sim. É possível que a fertilidade do Vale do Boyne não se restringisse ao seu solo, e seus frutos não fossem apenas os vegetais, mas a todos os seus habitantes. Talvez obedecendo a esta mesma ideia, a deusa que lhe dava nome, Boann, seja a própria Vaca Branca, estendendo sua fertilidade também sobre os rebanhos. É sabido que as populações Neolíticas em geral associavam a figura do boi e da vaca com a fertilidade. Vemos este padrão não só na Mitologia Gaélica que vincula Boann à vacas, mas também nas demais Indo-Européias. Na Mitologia Grega, como exemplo, temos um casal real divino, Zeus e Hera, esta é dita como contendo olhos bovinos, e aquele como adquirindo a forma de um touro no rapto de Europa, mortal que gera filhos seus. O touro como animal ctônico e fertilizador aparece no túmulo de Hemp Knoll em Wiltshire na Inglaterra, de acordo com Scarre (2007, 24), possui a ossada de um(a) arqueiro(a), fragmentos de um pote no estilo Beaker Culture, como é de se esperar nas sepulturas desta cultura, e, um crânio bovino com fragmentos de couro, provavelmente como uma espécie de amuleto que o morto levava para o pós morte. Em torno desta crença e da pluralidade da fertilidade do vale da deusa Boann estava o complexo de culto que ocorria durante todos os pontos do calendário neolítico, Equinócios e Solstícios. E nestes momentos, grande celebrações tomaram lugares, de acordo com os achados de fogueiras e oferendas nestes sítios, tais como ritos de celebração da aragem do solo, da semeadura, da colheita, proteção da prole e do gado contra pragas. E agregado a estas ocasiões, também as refeições comunais, casamentos, sepultamentos, e, o forjamento e reforço de alianças sociais e militares. Mas é importante lembrar que não só nestes monumentos ocorriam as celebrações religiosas. Em verdade, estes foram erigidos sobre um vale que já era 44 - Revista Corr Bolg Boann do Vale Fértil sagrado por si só, e o cerne de todo vale é o rio que o corta. Scarre (2007, 24) diz que comparado à densidade demográfica das populações neolíticas, a quantidade de ossadas encontradas nestes túmulos é muito baixa, ou seja, outras formas de funerais deviam existir nestas culturas. O autor diz ainda que: “these may have included the deposition of corpses in rivers [...] Rivers, seas, marshes and mountains may have been important in other ways too: as places of myth and legend, or the dwellings of the Gods. The visible monuments – long mounds, chambered tombs and stone circles – must indeed be considered only part of a wider pattern of ritual and belief in Neolithic Britain and Ireland” “estes podem ter incluído a deposição de cadavers em rios […] Rios, mares, pântanos e montanhas devem ter sido importante em outros sentidos também: como locais de mitos e lendas, ou de habitação dos deuses. Os monumentos visíveis – longos montes, sepulcros de cômodos, círculos de pedras – devem, de fato, ser considerados apenas parte de um padrão ritualístico e de crenças maiores na Britânia e Irlanda neolíticas.” Por quanto concluímos que o próprio Rio Boyne, a deusa em si, deve ter sido local de culto, sepultamento, depósito de oferendas e, possivelmente, de sacrifícios. Afinal são os próprios rios os responsáveis pela fertilidade dos vales, pelo assentamento populacional. É da abundância de suas águas que aflora a possibilidade de estabelecer-se. Os rios provêm ainda o recurso aquífero sem o qual nenhum sistema agrícola neolítico era possível. “The universal link between fertility and mother goddesses may have arisen – at least partly – because in the later Mesolithic and early Neolithic period, women were in charge of plant gathering and may have discovered cultivation. It is quite likely that, when plants were first domesticated, it was the women who tended them.” “A ligação universal entre a fertilidade e as deusas mães pode ter surgido – ao menos em parte – devido a que no Mesolítico final e no início do Neolítico, as mulheres estavam encarregadas da coleta de plantas e podem ter descoberto o seu cultivo. É bem possível que, quando as plantas tenham sido primeiramente domesticadas, foram as mulheres que cuidaram destas.(GREEN, 1995, 106) A conexão entre os rios e as deusas a estes ligados está não apenas no plantio, mas evidente nas associações entre estas e o gado, uma vez que este era Revista Corr Bolg - 45 Divindades força motriz da produção agrícola, e também dos rios dependia o desenvolvimento dos rebanhos. Tanto a domesticação do gado, quanto das plantas fazem parte do grande sistema neolítico, uma não teria sido possível sem a outra. E tampouco, na mentalidade destes povos, teriam sido possíveis sem as bênçãos de deusas fluviais da fertilidade. Anne Ross nos fornece um exemplo de outra divindade seguindo este padrão céltico: “Verbeia is seemingly connected with the River Wharfe, and it is likely that she was some kind of spring goddess. Her name may mean something like ‘She of the cattle’ if one can connect Verbeia with the Old Irish root ferb, ‘cattle’, but this is in question.” “Verbeia está aparentemente conectada ao Rio Warfhe e é provável que ela tenha sido uma forma de deusa da primavera. Seu nome pode significar algo como “Aquela do Gado” se alguém pode conectar Verbeia com a raíz do Irlandês Antigo ferb, ‘gado’, mas isto é questionável.” (ROSS, 1996, 279) Sobrevivências neolíticas na mitologia céltica A sobrevivência destes paradigmas neolíticos na crença céltica dos habitantes da Irlanda na Idade do Bronze e do Ferro são amplamente atestadas pela arqueologia. É sabido que durante todo este período, o Vale do Boyne e seus monumentos foram utilizados como locais de culto, devido aos artefatos e restos mortais de sacrifícios ali encontradas. Waddell (2014,17) nos diz que os assentamentos da Idade do Bronze legaram oferendas de pontas de fleche, cabeças de machado de bronze e ossadas de porcos, no que devem ter sido celebrações em frente aos monumentos, e que ocorreram entre o fim do terceiro e início do segundo milênio antes de cristo. O autor diz ainda que: “…also found were some bones of horse […]. Radiocarbon dating of some teeth has demonstrated that they actually date to the first two centuries AD. Iron Age activity is also attested here by the discovery over the years of various finds of Romano-British date – many of them from the area of the entrance to the tomb. These include part of a Bronze Age gold torc originally of thirteenth-century BC date and bearing a much later and unintelligible Roman inscription, twenty five coins ranging from the time of Domitian (c.AD81-96) to Arcadius (c.AD385).” “…também encontrados foram alguns ossos de cavalos [...] Datação com Radiocarbono em alguns de seus 46 - Revista Corr Bolg Boann do Vale Fértil dentes demonstraram que estes datam dos dois primeiros séculos d.C. Atividade na Idade do Ferro é também atestada aqui pela descoberta através de anos de vários tipos de achados Romano-Britônicos – muitos destes nas áreas de entrada dos túmulos. Estes incluem parte de torcs de ouro da Idade do Bronze originalmente do décimo-terceiro século a.C. e carregando inscrições romanas bem posteriores e ilegíveis, vinte e cinco moedas variando entre o tempo de Domitian (81 a 96 d.C.) até Arcadius (385 d.C.)” (WADDELL, 2014, 18) Além de todos estes achados que comprovam a utilização ritualística dos monumentos do Vale do Boyne, podemos encontrar na mitologia e folclore gaélicos da Idade do Bronze e do Ferro apontamentos para tanto. De acordo com o Metrical Dindsenchas, Brú na Boinne, ou Brug na Boinne, era a morada da deusa Boann até que esta se tornou um rio, ao ser perseguida e desmembrada pelas ondas da Fonte de Segais, aonde tentara se banhar. De acordo com o folclore, o brug teria, a partir de então, se tornado morada do deus Dagda, consorte da deusa, e posteriormente do deus Aengus, filho do casal. Também há relatos folclóricos da presença de deuses Tuathá de Danaan em outros monumentos do complexo, como por exemplo, Knowth, que seria o túmulo de uma das esposas de Lug: “Knowth too has its mythological associations, including an allusion on a twelfth-century bardic poem where “the cave of Knowth” is instanced as an entrance to the Otherworld, to Emain Ablach […] A statement in the Metrical Dindsenchas declares that this was the “hill of Buí”, the burial place of one of the wives of the great god Lug.” “Knowth também tem suas associações mitológicas, incluindo ma alusão de um poema bárdico do século treze onde “a caverna de Knowth” é citada como uma entrada para o Outromundo, para Emain Ablach [...] Uma afirmação do Metrical Dindsenchas declara que esta foi o “monte de Buí”, o túmulo de uma das esposas do grande deus Lug.” (WADDELL, ,24) Vale ressaltar que o mito céltico em torno de Brú na Boinne abrange a criação do rio, o aspecto geográfico em torno do qual o vale se dispõe, ponto essencial na criação do complexo. Isto nos leva a supor que, ainda que tenha passado por ressignificações e transformações, o cerne deste mito é o mesmo que orientou a construção de toda esta estrutura megalítica. Ou seja, a despeito do desenvolvimento social e tecnológico que levou esta sociedade do Neolítico até a Idade do Ferro, parte essencial do mito sobreviveu, a criação do rio, e a deusa por Revista Corr Bolg - 47 Divindades ele responsável. Isto leva à conclusão de que a deusa Boann, e, possivelmente as divindades a ela vinculadas no mito em questão, já eram cultuadas no vale desde o período Neolítico, não sendo jamais esquecidos, mesmo após a cristianização da Irlanda, devido a proeminência de seus monumentos, e a sua ligação imanente à natureza do vale. “They [the mounds] proclaimed the relationship of the community to the land and ancestors, and probably served as mnemonic devices for remembering the past and for structuring oral history […] they were points of reference in both a ritual and a mythological landscape in which territorial and genealogical rights were expressed in both monument and oral tradition.” “Eles [os montes] proclamam a relação entre comunidade, país e ancestrais e provavelmente serviram como dispositivos mnemônicos para lembrar do passado e para estruturar a história oral [...] eles foram pontos de referência tanto em uma paisagem mítica quanto ritual na qual direitos genealógicos e territoriais foram expressos tanto em monumentos quanto na tradição oral.”(WADDELL,, 25) Um relato datando de 1084 D.C. dá conta de culto em Brú na Boyne mesmo durante a Irlanda cristã. De acordo com o relato, o homem chamado Gilla Lugan costumava frequentar o monumento todos os anos, e nele teria tido contato com o deus Aengus. Este episódio denota a permanência na crença popular de que o complexo permanecia como passagens mágicas para os Outros-mundos e local de contato com os deuses. Os séculos seguintes, no entanto, viram a transformação do vale em fazendas, e, ao que parece, nenhum culto sobreviveu ali. Aspectos da Deusa O Rio Boyne tem muitos nomes, quinze de acordo com o volume 3 do Metrical Dindsenchas. Muitos destes nomes apontam para o evento de sua criação, ou para a deusa Boann, permitindo uma melhor compreensão desta e seu papel nos cultos sediados em seu vale. O primeiro dos nomes a ela dado é Boand Sempre Cheia (l.4, vol. 3 Metrical Dindsenchas), seguindo-se de Segais (l.9, v.3 Metrical Dindsenchas), O Braço e Perna da Esposa de Nuada (l.15, v.3 Metrical Dindsenchas), Grande Junta de Bois de Prata (1.9, v.3 Metrical Dindsenchas), Tutano Branco de Fedlimid (l.20, v.3 Metrical Dindenshas), Onda Tempestuosa (l.21 v.3 Metrical Dindsenchas), Rio da Avelã Branca (l.23, v.3 Metrical Dindsenchas), Banna (l.25, v.3 Metrical Dindsenchas), Lunnand e 48 - Revista Corr Bolg Boann do Vale Fértil Torrand (l.27 v.3 metrical Dinsenchas), além de alguns outros que se referem a inclusões posteriores de escribas cristãos. É notável a associação da deusa com a cor branca, tanto em epítetos, como em cores atribuídas. Vê-se a cor branca no nome Tutano Branco, Avelã Branca, e em relatos da formação do rio ao longo do Metrical Dindsenchas, tais como na passagem “The cold White water followed from the Sid to the sea” “A água fria e branca fluiu do Sid para o mar” (l.70 v. 3 Metrical Dindsenchas). A recorrência da associação da deusa com a cor branca é possivelmente derivada da cor do leite das vacas, animais aos quais a deusa está associada, e demonstra a importância do leite para o sustento daqueles que a cultuaram. Além disto, pode-se perceber uma atribuição à deusa da capacidade de gerar leite bovino, ou seja, gerar o sustento, o gênero do qual derivava alguns alimentos da dieta neolítica e da Idade do Bronze e do Ferro, tais como o queijo, a coalhada e a manteiga. Esta associação entre alvura, leite e a deusa, permite ainda auferir a capacidade de geração da vida, de procriação da deusa. Uma vaca, ou uma mulher, ou uma deusa, que geram leite, o fazem porque geram vida. A produção de leite decorre da gravidez, portanto, é uma demonstração de fertilidade e capacidade de sustentar a vida gerada. A deusa Boann é, portanto, uma deusa da fertilidade e da maternidade. Tanto assim o é, que os eventos que dão ensejo à sua transformação em rio pelo avanço das ondas da Fonte de Segais sobre seu corpo, são a relação com o deus Dagda, a concepção e gravidez que decorrem, e o nascimento do filho divino, Aengus. Como podemos ver na seguinte passagem: “Thither came by chance the Dagda 30] into the house of famous Elcmaire: he fell to importuning the woman: he brought her to the birth in a single day. It was then they made the sun stand still to the end of nine months — strange the tale — 35] warming the noble fine grass in the roof of the perfect firmament. Then said the woman here: “Union with thee, that were my one desire!” And Oengus shall be the boy’s name,” 40] said the Dagda, in noble wise. Boand went from the house in haste Revista Corr Bolg - 49 Divindades to see if she could reach the well: she was sure of hiding her guilt if she could attain to bathe in it. […] 50] toward the well in sooth: the strong fountain rose over her, and drowned her finally.” “De lá veio por chance o Dagda À casa do famoso Elcmaire: Ele pôs-se a importunar a mulher: Ele a trouxe ao parto em um único dia. Foi então que fizeram o sol erguer-se Até o fim de nove meses – estranho conto – Aquecendo a nobre e agradável grama No teto do perfeito firmamento Então disse a mulher aqui: “União a ti, este foi o meu desejo!” “E Oengus há de ser o nome do menino,” Disse o Dagda, em nobre sabedoria. Boand saiu da casa às pressas Para ver se podia alcançar a fonte: Ela estava certa de esconder sua culpa Se pudesse banhar-se nesta. [...] Até o poço de fato: A forte fonte ergueu-se sobre ela, E afogou-a por fim.” (Boand II, in Metrical Dindsenchas, v.3) Assim ocorre a concepção e nascimento do filho da deusa, que é ainda intitulada pelo epíteto de ‘sempre cheia’ (l.4 v.e Metrical Dindsenchas) em alusão à gravidez e a sua fertilidade. Outros dos nomes acima citados também dão conta da inerente fertilidade da deusa, tais como ‘tutano branco’ que alude mais uma 50 - Revista Corr Bolg Boann do Vale Fértil vez ao gado e sua propriedade de nutrição. Também em ‘grande junta de bois de prata’ nota-se a fertilidade da deusa estendendo-se ao solo, e por instância, à vida vegetal, uma vez que foram as juntas de bois o aparato tecnológico que permitiu a aragem do solo antes da semeadura entre os Celtas. E é quando se aponta para a fertilidade do solo, que as águas fluviais tornam a ser citadas, como elemento indispensável à agricultura. Assim retorna-se à passagem em que alude-se à deusa na forma de rio como “água fria e branca”. Boann permanece na religiosidade céltica da Idade do Bronze e do Ferro, como permite ver a mitologia, como uma deusa da fertilidade, da nutrição e da abundância. Uma deusa do gado, do leite, da maternidade, e ainda, uma deusa de todo um vale aonde a agricultura pôde ser exercida e, consequentemente, o assentamento e fixação da população neolítica que a cultuou. As dádivas da deusa resultaram, assim, no assentamento tanto de mortais quanto dos próprios deuses, para quem foram erigidos moradas, ou passagens para as suas moradas. Divindades e moradas estas que permanecem, ainda hoje, naquela localidade assentadas. Para além disto, alguns membros da comunidade científica vêm a deusa Boann imersa em um papel típico da religiosidade céltica, o da Deusa da Soberania (GREEN, 1996, 82). Este ról de divindades abarca a deusas ligadas não só à fertilidade, mas também à posse da terra enquanto território. Elas aparecem descritas como rainhas, ou dando nome a localidades geográficas, e ainda, vinculadas a animais domesticados, tais como vacas e cavalos. Para ROSS (1965, 266), estas que podem ser intituladas como Eponymous Goddesses, são comumente vinculadas a disputas territoriais, vindo mesmo, em alguns casos a tomar parte na batalha, tomando para si também o papel de deusas da guerra. Todavia, não se pode ver na mitologia, a deusa Boann tomar parte direta em nenhuma batalha, ainda que na ocasião na guerra dos Tuatha de Danaan contra os Fomorians, no qual ela e outros rios da Irlanda secam totalmente suas águas para impedir que os soldados inimigos pudessem saciar a sua sede, e ficassem, assim, enfraquecidos (Cath Magh Tuireadh). No entanto, é evidente o papel da deusa em meio a uma disputa. Boann é, nos conta o mito, esposa de Elcmar, um outro nome para o deus Nuadu. É de um adultério com o deus Dagda, que seu filho é gerado. A disputa em questão se dá entre dois deuses por uma deusa, que tomado por um olhar simbólico, representa também a disputa entre tribos por um território ou por gado. Assim, Boann, a deusa de muitas vacas, soberana do vale fértil e de quem emana um rio fundamental para a continuação da vida, é disputada por dois reis da mitologia Dagda e Nuadu. O mito em torno da deusa explicava para as sociedades que a cultuaram, um advento comum da sociedade céltica; as disputas territoriais e as razias de bois. Revista Corr Bolg - 51 Divindades É importante ressaltar que, ainda que não tome parte em nenhuma batalha, Boann exerce sua soberania escolhendo seu consorte. O deus Dagda a disputa com seu esposo, e, com astúcia e magia consegue afastá-lo, para tomar posse do amor de Boann, como nos mostra a seguinte passagem: “Elcmar of the Brug had a wife whose name was Eithne and another name for her was Boand. The Dagda desired her in carnal union. The woman would have yielded to the Dagda had it not been for fear of Elcmar, so great was his power. Thereupon the Dagda sent Elcmar away on a journey to Bres son of Elatha in Mag nInis, and the Dagda worked great spells upon Elcmar as he set out, that he might not returns betimes (that is, early) and he dispelled the darkness of night for him, and he kept hunger and thirst from him. He sent him on long errands, so that nine months went by as one day, for he had said that he would return home again between day and night. Meanwhile the Dagda went in upon Elcmar’s wife, and she bore him a son, even Aengus...” “Elcmar do Brugh tinha uma esposa cujo nome era Eithne a outro nome era Boand. O Dagda a desejava em amor carnal. A mulher teria sedido ao Dagda não fosse por medo de Elcmar, tamanho era seu poder. Em seguida o Dagda enviou Elcmar em uma jornada até Bres filho de Elatha em Mag nInis, e o Dagda trabalhou grandes encantos sobre Elcmar enquanto este saía, de forma que este não retornasse antes, e ele desencantou a escuridão da noite para ele, e afastou a fome a sede dele. Enviou-o em longas errânceas, de forma que nove meses se foram em um único dia, pois ele havia dito que retornaria ao lar após um dia e uma noite. Enquanto isso, o Dagda foi até mulher de Elcmar, e ela gerou-lhe um filho, o próprio Aengus...” (Heroic Romances of Ireland, Volume II ed. and trans. A.H. Leahy. London: David Nutt, 1906) Todavia, esta passagem mostra também que era desejo de Boann unirse ao Dagda: “The woman would have yielded to the Dagda had it not been for fear of Elcmar” “A mulher teria cedido ao Dagda não fosse por medo de Elcmar”. A soberania sobre si mesma, no consentimento com a união ao Dagda, é mais vez aparente no Metrical Dindsenchas, quando, após o nascimento de Oengus, a deusa diz a seu novo consorte: “Union with thee, that were my one desire!” “Unir-me a ti, este foi meu desejo!”(l. 38 v. Metrical Dindsenchas). Estas duas passagens são claras em afirmar que a deusa tem o poder de escolher seus parceiros sexuais, e até mesmo o de trocar de parceiros, concedendo-lhes, além de seu amor, a posse do território do vale, uma vez que é o filho dela com o Dagda, 52 - Revista Corr Bolg Boann do Vale Fértil Aengus, quem vem, no futuro a herdar o Brú na Boinne como residência. É assim, portanto, que Boann encarna a Deusa da Soberania do Vale do Boyne. Até aqui, vê-se em ambas as fontes citadas que retratam a fundação do Rio Boyne, a disputa entre dois deuses pela Soberania do vale e sua fertilidade em dois aspectos, tanto sobre o território, quanto sobre a deusa de quem este emana, em sua forma de mulher. Pode-se ver também que o deus campeão nesta disputa é aquele que possui o melhor estratagema, mas também aquele que detém o poder de ordenar o movimento celeste, especialmente sobre o sol, que marca o passar dos dias, e que é também fator essencial no sucesso agrícola. Como nos mostra o trecho a seguir em que o Dagda faz com que Elcmar não sinta o tempo passar: “He sent him on long errands, so that nine months went by as one day, for he had said that he would return home again between day and night. Meanwhile the Dagda went in upon Elcmar’s wife, and she bore him a son, even Aengus” “Ele o enviou em logas errânceas, de forma de nove meses se passaram, pois ele havia ditto que retornaria ao lar entre um dia e uma noite. Enquanto isto, o Dagda foi até a esposa de Elcmar, e ela gerou-lhe um filho, o próprio Aengus” Heroic Romances of Ireland, Volume II ed. and trans. A.H. Leahy. London: David Nutt, 1906. Igualmente vemos o papel do Dagda sobre a agricultura nesta passagem, quando, ao introduzir o deus, explica-se a origem de seu epíteto: “There was a famous king of Ireland of the race of the Tuatha De, Eochaid Ollathair his name. He was also named the Dagda [i.e. good god], for it was he that used to work wonders for them and control the weather and the crops. Wherefore men said he was called the Dagda.” “Havia um rei famoso da Irlanda da raça dos Tuatha De, Eochaid Ollathair seu nome. Ele também era chamado o Dagda [i.e. bom deus], pois era ele quem costuma produzir maravilhas para eles e controlar o clima e as colheitas. De maneira que os homens o chamadam de Dagda.” Heroic Romances of Ireland, Volume II ed. and trans. A.H. Leahy. London: David Nutt, 1906. Estas trechos permitem entrever que o consorte ideal da deusa de um vale fértil, a deusa cuja maior bênção é a fertilidade, não poderia ser outro, se não um deus com o domínio sobre o sol, o tempo, o clima, e assim a capacidade Revista Corr Bolg - 53 Divindades de fecundá-la. A união deste casal legitima-se no fundamento das sociedades do Neolítico e das Idades do Bronze e do Ferro, a agricultura. De fato, desde períodos proto-Célticos, Ross, nos diz que há várias associações arqueológicas entre bovinos e cultos solares: “Evidence of the sanctity of the bull amongst the Celts is impressive. The veneration of this beast is attested from proto-Celtic times, when worship in the Urnfield period points to its connection with solar cults. In this context, it is associated with swans, horses and stags.” “Evidência da santidade dos touros entre Celtas é impressionante. A veneração deste animal é atestada desde tempos proto-célticos, quando cultos do período Urnfield apontam para conexões com cultos solares. Neste contexto, está associado a cisnes, cavalos e cervos.” (ROSS, 1995, 384) Contudo, o mito encerra ainda aspectos morais sobre os quais estavam fundamentadas aquelas sociedades. Está visto que, a despeito de toda a engenhosidade do Dagda, é explícito o consentimento da deusa sobre seu amor, seu corpo antropomórfico e o corpo terreno e fluvial, o vale. Mas também a questão do adultério tem papel essencial em todo o enredo. A deusa só vem a tornar-se um rio ao buscar purificar-se de seu erro, da falha em sua virtude, o adultério. Após o nascimento de Aengus, ela vai às pressas banhar-se nas fonte para “esconder sua culpa”, como nos diz a seguinte passagem do Metrical Dindsenchas: “Boand went from the house in haste to see if she could reach the well: she was sure of hiding her guilt if she could attain to bathe in it. The druid’s three cup-bearers Flesc, and Lesc, and Luam, Nechtain mac Namat set to watch his fair well. To them came gentle Boand 50] toward the well in sooth: the strong fountain rose over her, and drowned her finally.” “Boand saiu da casa às pressas Para ver se podia alcançar o poço: 54 - Revista Corr Bolg Boann do Vale Fértil Ela estava certa de esconder sua culpa Se pudesse banhar-se lá. Os três cup-bearers do druida Flesc, e Lesc, e Luam, Nechtain mac namat pôs Para vigiar o belo poço. A eles veio a gentil Boand Até o poço de fato: A forte fonte ergueu-se sobre ela, E afogou-a finalmente.” (Metrical Dindsenchas, in Volume 3) O mito deixa claro que havia culpa no ato de Boann. Não houvesse culpa, não houvesse ali um erro, ela não teria ido lavar-se dele em uma fonte mágica. E ao que parece, o erro foi tamanho que resultou na destruição de sua forma antropomórfica, através do afogamento. Esta parcela crucial do mito da criação do Rio Boyne, deixa clara a posição daquela sociedade na qual estava imerso, a sociedade céltica gaélica da Idade do Ferro, a respeito do adultério feminino. A deusa foi punida, não pelo próprio esposo, mas por uma fonte ainda mais poderosa que o ego e os sentimentos de um homem traído, uma fonte de sabedoria. Uma fonte que guarda todo o conhecimento natural, mágico, religioso e tradicional a que aqueles deuses prezavam, e por instância, também os mortais que os cultuavam. O mito abarca aqui, um papel moralizador, ele mostra quem nem mesmo uma deusa, em todo o seu potencial e superioridade diante da humanidade, estava aquém de cometer erros de caráter, e uma vez cometidos, estes erros deviam ser punidos. Ou seja, até mesmo os deuses devem submeter-se a uma conduta virtuosa, e, aos costumes e a sabedoria de sua comunidade, é o que nos mostra o mito, ou receberão punições dentro de seu próprio meio social divino. A troca de consortes por parte da deusa é legítima pois é na sua união com o Dagda, que Boann pode conceder sua bênção sobre a terra, a fertilidade e promoção da vida, no entanto, esta mesma união termina por ser a sua ruína. A bênção da deusa exige um sacrifício, o dela mesma. Conclusão Por tudo visto, conclui-se que Boann, a deusa bovina e de alvura é, para a Mitologia Celta, uma deusa da fertilidade, da maternidade, da nutrição e abundância. É ainda uma deusa da soberania, especificamente, a deusa soberana Revista Corr Bolg - 55 Divindades do Vale do Boyne. E não só isso, dela emana o próprio vale, como é comum às divindades da Mitologia Celta, profundamente politeísta e animista. Tendo perdido seu corpo antropomórfico, ela está desde então na forma do Rio Boyne, concedendo suas bênçãos a toda a região. Boann é, ainda, a deusa consorte do deus Dagda, responsável pelo tempo, o clima e a agricultura, e, a mãe de Aengus, outra personagem divina fundamental nas histórias dos deuses Tuatha de Danaan. Para além disto, Boann é uma deusa primordial na formação geográfica da Irlanda, segundo a mitologia. Assim como é para a formação das Culturas Neolítica, proto-Céltica, e Céltica, uma vez que da bênção do Rio Boyne foi possível o assentamento e o desenvolvimento populacional, social, econômico e cultural da ilha. Embora a soberania de Boann pareça estar, então, confinada ao vale, sua importância para toda a ilha e os povos que nela habitaram é evidente, e a magnitude do monumento a ela erigido permanece dando conta disto. Bibliografia: BRENNEMAN, Walter L. Junior. Serpent Cows and Ladies. Contrasting symbolism in Irish and Indo-European Cattle-Raiding Myths. History of Religion. The University of Chicago. 1989. ELLIS, Peter Berresford. Celtic Women. Eederman’s Publishing Co. 1996. GREEN, Miranda. Celtic Goddesses. George Braziller. 1995. GREEN, Miranda. Animals in Celtic life and myth. Routledge. 1998. LEAHY, A H. Heroic Romances of Ireland, Volume II ed. and trans. London: David Nutt, 1906. MEYER, kuno. The Wooing of Emer, in Archaeological Review. volume 1, London, (1888) page 68–75; 150–155; 231–235; 298–307 MUHR, Kay. Water imagery in Early Ireland. Celtica, 23. 1999. ROSS, Anne. Pagan Celtic Britain. Studies in Iconography and Tradition. Academy Chicago Publishers. 1996. SCARRE, Chris. The Megalithic Monuments of Britain and Ireland. Thames and Hudson. 2007. The Metrical Dindshenchas. in Volume 3: English translationEdward Gwynn (ed), Second reprint [x + 562 pp.] Dublin Institute for Advanced StudiesDublin (1991) (first published 1906) (reprinted 1941) WADDELL, John. Archeology and Celtic Myth. Four Courts Press. Dublin, 2014. 56 - Revista Corr Bolg Prática Ritual Matheus Velozo Lasar Na Bhrid: uma jornada de honra à divindade e busca pela inspiração Contextualização Antes de começarmos a falar propriamente da guarda do fogo de Brigid, ou Lasair na Brigid (“fogo de Brigid” em gaélico, como chamamos no Fine na Dairbre), se faz necessária uma rápida abordagem da divindade central desta prática: Brig/Brigid/Brigit, é divindade gaélica que possui muitos aspectos sob seus domínios, mas, dentre os mais famosos, poderíamos destacar: o fogo, a cura, a inspiração e a poesia, além de estar relacionada também à guerra. Ela é filha do Deus Dagda e, portanto, membro dos Tuatha de Dannan. O Sanas Chormaic (O glossário de Cormac, manuscritos irlandeses de etimologia do século IX) nos diz o seguinte sobre Brigit: “BRIGIT, isto é, uma poetisa, filha do Dagda. Brigit é a sábia, ou mulher da sabedoria, isto é, Brigit a deusa que os poetas adoram, pois muito grande e muito famosa é sua proteção. É por isso que eles a chamam de deusa dos poetas, pelo seu nome. Suas irmãs eram Brigit, a médica (mulher das artes médicas), Brigit a ferreira (mulher do trabalho de ferraria), desses nomes com todos os irlandeses, uma deusa é chamada de Brigit.” Brigit foi uma divindade muito popular e conhecida na Irlanda pré-cristã, tendo inclusive, um festival dedicado a ela: O Oimelc/Imbolc, que celebra, dentre outras coisas, as bênçãos desta deusa e o retorno da luz, já que se dá após o Samhain/inverno. Alguns estudos sugerem que desta divindade se originou uma figura de mesmo nome, mas na forma de uma santa cristã, a Santa Brigit, que se acredita ter vivido na idade média, muito popular na Irlanda cristã antiga e atual, acreditando-se que a santa absorveu muitos dos aspectos da Deusa, inclusive pelo contexto “especial” de assimilação do cristianismo pela Irlanda pré-cristã. A vida da santa Brigit é repleta de mistérios e estórias, seus milagres, atribuições e contexto, parecem ser uma prova suficiente para estudiosos de que muitos Revista Corr Bolg - 57 Prática Ritual destes significados são, na realidade, sobrevivência dos elementos e culta à Deusa e inclusive, alguns historiadores alegam que a santa nunca existiu. Deixando um pouco de lado a discussão acadêmica quanto à existência ou não da santa, é interessante notar como a deusa e a santa possuem similaridades e convergências. A cidade de Kildare (Cill Dara, “Igreja dos carvalhos”, em gaélico), localizada na província de Leinster, na Irlanda, é onde a história da santa, que se acredita ter sido a primeira freira da Irlanda, se passa, e onde segundo os registros sobre a possível vida da santa relatam, diz-se que Brigit e mais 19 freiras faziam a manutenção e guarda de uma chama perpétua, muitas vezes atribuída ao culto destas freiras à Maria ou a uma metáfora espiritual de celebração, uma alusão de que o cristianismo havia chegado na ilha e trazido a luz divina. Contam-nos os registros que Brigit revezava a guarda da chama com as 19 freiras (que se acredita terem sido as primeiras beatas a desejarem viver sob as orientações da santa), cada uma sendo responsável por alimentar e cuidar do fogo por 1 dia, e onde, após sua morte (entre 490 e 532 da nossa era, como sugerem estudiosos), as 19 freiras prosseguiram com a tradição criada pela santa e cuidavam do fogo erguido no “Fire temple” (onde fundações do templo restauradas das ruínas podem ser vistas hoje em dia), na Abadia de Kildare, todas as noites em honra à santa, onde cada freira mantinha o seu turno de guarda e no 20º dia, acreditava-se que a própria santa, mesmo depois da morte, guardava o fogo, sem a necessidade de que alguma freira o cuidasse ou substituísse o lugar antes ocupado pela santa, registros contam que a 19º freira lançava lenha ao fogo, rogando que a santa viesse cuidar do seu próprio fogo, e que na manhã seguinte, o fogo era encontrado ardendo ainda, ou em brasas. O culto à Santa Brigit foi proibido mil anos após a sua morte, e com a reforma protestante na Irlanda no século XVI, conventos e mosteiros foram fechados e destruídos, motivo pelo qual existem apenas ruínas da abadia de Kildare, e após, foram reabertos e as atividades foram retomadas e são mantidas hoje em dia na Irlanda pela Ordem Brigidina, fundada por Dom Daniel Delany (Então Bispo de Kildare e Leighlin) em 1807 na cidade de Tullow, condado de Carlow, Irlanda e onde mantém-se a tradição da chama de santa Brigit através das irmãs que ficam no centro “Solas Bhride”, um “centro cristão para espiritualidade celta”, que possui mosteiros, centros e escolas em alguns pontos da Europa, Austrália e Estados Unidos, associados da Comunidade Cristã Apostólica Romana de Kildare, além de uma chama mantida na praça (Market Square) ao lado da Catedral de Kildare, ambas chamas foram acesas em 1993 pela irmãs Brigidinas (não confundir com a Ordem Brigidiana, que se refere à Santa Brigit da Suécia) e existem outras igrejas e centros dedicados à Brigit espalhados por toda a Irlanda. 58 - Revista Corr Bolg Lasar Na Bhrid: uma jornada de honra à divindade e busca pela inspiração Especula-se que a Abadia de Kildare (onde a fundação é atribuída à santa, que era sua abadessa, ordenada pelo papa) foi erguida em cima de um templo pagão dedicado à Deusa Brigit (uma prática comum adotada pelo cristianismo ao redor do mundo) o que corrobora com os estudos de que a santa é uma sobrevivência da deusa na Irlanda cristã, sendo inclusive, proibida qualquer escavação ou estudo arqueológico na moderna Catedral de Kildare (Erguida no século XIII pelo então Bispo de Kildare, Ralph de Bristol, sob as ruínas da antiga Abadia, e quase que totalmente reconstruída no século XIX, após um incêndio), podendo-se e levando estudiosos a pensar e especular que o templo em que a abadia foi construída em cima, abrigava um templo ou monumento dedicado à Deusa Brigit, onde 19 mulheres/sacerdotisas guardavam a sua sagrada chama, o seu fogo perpétuo, na Irlanda pré-cristã. É interessante notar que essa aproximação da deusa com à santa não é algo velado, restrito a apenas estudiosos que especulam. Vemos em muitos estudos e sites cristãos (apostólicos romanos) esta perspectiva aparecer com naturalidade, como vemos nesta introdução sobre a Chama Perpétua de Brigit, no site Solas Bhride: “Um fogo sagrado que queima em Kildare que remonta aos tempos pré-cristãos. Estudiosos sugerem que sacerdotisas costumavam se reunir na colina de Kildare para cuidar de suas fogueiras rituais, enquanto invocavam uma deusa chamada Brigid para proteger seus rebanhos e para fornecer uma colheita fértil.” Uma reconstrução para a modernidade: I - Lasar na Brid, por “M”, em Viamão/RS Posto este breve resumo, que é um ligeiro passo de um assunto muito mais profundo e detalhado, podemos ver que recorrendo às praticas associadas à Santa Brigit, mas que refletem um passado “pagão” ligado a Deusa Brigit, uma reconstrução desta prática é possível e plausível, além de simples e urgente para aqueles que se sentem chamados pelos antigos caminhos da fé celta. A guarda do fogo de Bigit é um momento onde buscamos a conexão com esta divindade, prestamo-lhe reverência e oferendas. É um momento intimista, uma prática doméstica engrandecedora, pois podemos ter este contato pessoal com a divindade e prestar atenção em seus sinais. Revista Corr Bolg - 59 Prática Ritual Os registros nos contam que o fogo era guardado por 19 sacerdotisas, sendo o 20º de responsabilidade da própria Deusa/Santa. Na impossibilidade de se ter um grupo com 19 pessoas, não existem problemas, pois cada integrante fica responsável por mais de um dia, como acontece conosco no Fine na Dairbre, onde o fogo é mantido durante todo o ano por seus membros em revezamento. Embora tenhamos liberdade neste momento, sabemos que alguns passos devem ser dados, como o acendimento do fogo, as orações e reverencias à deusa e oferendas, já que o intuito principal desta prática é entrar em contato com a divindade e honrá-la, fortalecendo este vínculo e tendo a possibilidade de ser abençoado pela mesma com um de seus dons: a inspiração. O ideal é que possamos acender uma pequena fogueira em casa, com alguns galhos de madeira a queimar dentro de um recipiente seguro, como um caldeirão de ferro ou uma pira, mas sabemos das dificuldades que a modernidade muitas vezes nos impõe, então o fogo pode ser erguido a partir da chama de uma vela, atentando para sempre fazermos o melhor para a divindade, ou seja, sendo possível o acendimento de uma pequena fogueira, é interessante fazê-lo, já que um dos valores que vemos destacados na cultura celta é a excelência: a excelência nas técnicas, nas artes, na guerra e na devoção aos Deuses. Para aqueles que conseguirem fazer a guarda da chama de Brigit com madeira, é aconselhado que sempre se tenha um pequeno estoque de gravetos secos para evitar surpresas, e para aqueles que fizerem com a chama de velas, pode-se dedicar uma vela grande à Brigit e apagá-la sempre que terminar ou usar velas pequenas, como aquelas utilizadas em difusores de óleos essenciais, para que se possa esperar que a vela queime até o fim, sendo neste caso, da guarda de chama com velas, interessante que você mesmo possa fabricar as velas que serão usadas, a partir de insumos naturais, posto que temos na internet tutoriais amplamente divulgados de como fazer velas artesanais, de maneira simples, para fugirmos da parafina, que é um derivado do petróleo e passa por todo um processo industrial antes de chegar até nós. Esta é uma jornada de aprendizado e contato, pois manter um fogo aceso, por menor que seja, não é uma tarefa fácil, principalmente porque devemos manter, paralelamente ao acendimento do fogo, o foco, a concentração e a consciência, que são essenciais para que a conexão seja bem sucedida, no entanto, é gratificante quando colhemos os frutos desta prática, que podem ser desde a certeza de que a divindade aceitou a sua guarda e suas oferendas até o aumento da inspiração pessoal, como bênçãos da divindade. Os praticantes solitários podem fazer a guarda de algumas maneiras, pode-se fazer a guarda sozinho pelos 19 dias, durante o ano todo, uma tarefa que mesmo que seja a partir da chama de uma vela, não é fácil, dado ao compromisso 60 - Revista Corr Bolg Lasar Na Bhrid: uma jornada de honra à divindade e busca pela inspiração que se assume na manutenção da chama, durante todo o ano. Pode-se ainda fazer a guarda apenas na época do Imbolc, como forma de honrar Brigid e entrar em contato com este momento, inclusive pode servir de experimento antes de começar a fazer a guarda da chama durante todo o ano ou procurar grupos que façam a guarda da chama para se juntar a este revezamento. Como fazer Abaixo, sugerimos um pequeno roteiro com dicas para guiar aqueles que desejam ingressar nesta jornada, embora seja esperado que cada um possa criar o seu próprio roteiro, advindo da experiência obtida e dos experimentos feitos. A inspiração é livre, desde que se mantenha o foco desta prática: honrar a deusa Brigit. Concentração Aqui é aconselhado que se faça uma “meditação”, para que se possa entrar na frequência energética mais propícia ao contato com o outro mundo, tentandose desligar das preocupações cotidianas, sendo guiado pela meditação. Sugerimos a meditação dos 02 poderes, da ADF, e disponível nos links abaixo. Consciência Se você vai acender uma pequena fogueira, é aconselhado ter uma vela acesa por perto, para utilizá-la como base para acender o fogo. Costumo sempre acender esta vela no fogão, por ser o móvel moderno que utilizamos para a preparação dos alimentos, ligado ao lar, e portanto, ligado a aspectos de Brigit. Esse é o momento em que você faz uma rápida meditação com a vela, tomando consciência do que irá fazer, que momento é esse, tentando inundar sua consciência com foco neste momento dedicado à Brigit. Se for fazer a guarda do fogo com vela, pode-se fazer o mesmo, antes de convidar propriamente Brigit. Fazer o acendimento da pequena fogueira. Aqui podem-se usar algumas folhas e galhos finos para fazer o acendimento do fogo, ou com a ajuda de um pouco de álcool. Revista Corr Bolg - 61 Prática Ritual Convite à Brigit Quando o fogo estabilizar, de maneira que você consiga se concentrar sem ter que alimentá-lo para não apagar, é uma boa hora para convidar Brigit para abençoar o seu turno na guarda do seu sagrado fogo. Sugerimos para este momento a oração abaixo, ou ainda, a música criada por Isaac Bonewits (abençoado seja), chamada “A Hymn to Bridget”, disponível nos links abaixo. “Abençoada Brigit, Que este fogo, seja o teu fogo Senhora da forja, Que este fogo, seja o teu fogo A inspiração dos fili, Que este fogo, seja o teu fogo A cura dos males, Que este fogo, seja o teu fogo A luz na escuridão, Que este fogo, seja o teu fogo, O calor no frio, Que este fogo, seja o teu fogo, A tua dádiva é esta, Que este fogo, seja o teu fogo, A tua presença é esta, Que este fogo, seja o teu fogo Que este fogo, seja o teu fogo, Que este fogo, seja o teu fogo! II - Lasar na Brid por “E”, em Curitiba/PR Altiva Brigit, Feliz é a hora em que posso guardar o teu sagrado fogo, Grande é a honra que tenho em sua ignição, E grande seja a honra da sua aceitação. Fóircet!” Oferendas Procede-se com as oferendas à Brigid no fogo sagrado. Sugestão: Avelãs, folhas de carvalho, aveia ou óleos essenciais naturais. Para quem fizer a guarda com vela, as oferendas ficam mais restritas em função da pequena chama, sugerimos: folhas de carvalho ou ervas. 62 - Revista Corr Bolg Lasar Na Bhrid: uma jornada de honra à divindade e busca pela inspiração Observação Pode-se observar o fogo até sua extinção, ou permanecer por algum momento observando a chama da vela, a fim de perceber como o fogo interage conosco, como as oferendas são consumidas pelas chamas e ficar aberto para as bênçãos de Brigit. Finalizações Por fim, pode-se ainda observar a fumaça e as brasas da fogueira, aquecer as mãos no calor da fogueira ou vela e trazer ao rosto e cabeça, como um pedido de benção á divindade, e após, agradecer a presença de Brigit e encerrar este momento. Com o passar do tempo, podemos ficar com um estoque das cinzas ou sebo das velas, as cinzas podem ser colocadas na terra e nas plantas, para trazer fertilidade ou lançada em sua casa, na volta dela, para proteção. O sebo das velas podem ser guardados para se fazer uma nova vela. Considerações Finais Podemos ver como uma reconstrução deste momento pode ser feita de maneira simples, ajudando os praticantes da fé celta a incrementarem os seus dias com mais simbolismos e apelos culturais, dado ao fato de não estarmos nem em uma sociedade e nem em um tempo céltico, o que dificulta que possamos fazer o link entre religião e cultura, tão importante para que possamos compreender a espiritualidade dos ditos povos celtas. Abaixo, deixamos alguns registros dos membros do Fine na Dairbre que participam do Lasar na Brigid, e esperamos que, na menor das hipóteses, este texto e relatos possam ajudar aqueles que desejam entrar III - Lasar na Brid realizado por todos os membros do em contato com Brigit. Fine Na Dairbre e Brughs associado de outras regiões, em Curitiba/PR Revista Corr Bolg - 63 Prática Ritual Relato de “E”: “Eu costumo acender o fogo e fazer orações à Brigid, assim como oferendas de Leite e manteiga e tocar lira para ela. Não sei se é algo comum, mas sempre que ofereço leite a ela, deixo uns 3 dias antes de retirar e ele sempre está em processo inicial de virar queijo, aí deixo mais alguns dias para ver se o processo se finalizará e só então retiro para depositar em algum lugar na natureza e agradecer. Em uma das vezes que eu estava com a guarda da chama, logo após o fogo se extinguir começou a sair muita fumaça da madeira ainda em brasa da mini fogueira. É comum sair um pouco de fumaça, pois faço a mini fogueira dentro de um caldeirãozinho de 500 ml. Mas nesse dia a fumaça foi realmente densa e ela parecia se movimentar formando desenhos. Quando percebi isso, me sentei em um canto onde pudesse ver bem os desenhos e fui gravando aqueles que se formavam para um augúrio. Após esta primeira experiência eu passei a observar a fumaça sempre e por mais fraquinha que seja, para ler qualquer mensagem que haja nela.” Relato de “A”: “Começo meu Lasar na Brigit preparando o local. Fazendo uma mini fogueira na panelinha que tenho para fazer o fogo. Acendo o fogo e me concentro buscando um pouco de inspiração e recito uma oração de cabeça essencialmente dessa forma: “Brigit, Senhora das três chamas sagradas. Da chama que alimenta a forja do ferreiro, Da Chama que alimenta a coragem do guerreiro e Da forja que alimenta a inspiração do poeta. Acendo essa chama assim como os nossos Ancestrais, Senhora do Carvalho sagrado.” E fico admirando a chama. Esse ato geralmente me traz conforto, clareza e sensação de leveza. A impressão que tenho ao terminar o rito é que a casa fica com um ambiente mais leve e iluminado. Sensação de nostalgia que remete a infância quando minha mãe limpava a casa e deixava um aroma suave de limpeza. E a sensação física de disposição e criatividade.” 64 - Revista Corr Bolg Lasar Na Bhrid: uma jornada de honra à divindade e busca pela inspiração Relato de “S”: “ Vou tratar aqui de todas as experiências nas quais meditei sobre a chama de Brigid, não apenas desde que comecei o Lasar junto ao Fine na Dairbre, mas desde que comecei a cultuar a deusa. É muito comum após a guarda ter boas ideias, em geral para textos, crônicas ou contos. Outra coisa muito comum é sentir uma abertura maior para a leitura do tarot, como um chamado à leitura. Mas nem sempre a inspiração vem com a mesma força. Um dia nunca é igual ao outro. Muitas coisas podem interferir na guarda da chama de Brighid: tempo, saúde, disposição. Em geral a deusa costuma atender ao chamado, e encher o ambiente com ternura e bons pensamentos. Pelo menos comigo é assim, enquanto contemplo as chamas, em oração ou meditação, costumo sentir uma grande ternura, e às vezes sinto a presença da deusa na casa. Percebo que não só eu, mas toda a família, ficamos mais otimistas e atenciosos nos dias da guarda. Em alguns episódios, ocorreram fatos um pouco diferentes. Como a vez em que estava meditando junto à chama e senti um peso suave ser posto sobre minhas costas. Ao mesmo tempo, vi com os olhos da mente a deusa atrás de mim, me cobrindo com um manto. A sensação foi de proteção, e um calor afável. Em outra ocasião, risquei o fósforo e antes mesmo de tocar o pavio da vela, senti uma lufada, como um vento, mas não havia vento algum. E nesta lufada, a presença de Brigid se fez no aposento. Acendi, enfim, a vela, e abri o tarot, para um jogo de alta clarividência. Mas certamente a ocasião que mais marcou minha prática espiritual junto a Brigid, foi há cerca de três anos, quando meditava junto a sua chama. Ouvi em minha mente uma voz dizer: “Eu sou a chama do lar. Sempre que acender o fogo em casa, chame por mim.” Desde então, sempre que faço orações ou meditações com fogo dentro de casa, independente de qual seja a ocasião ou deuses convidados, eu louvo e oferto a Brigid antes dos demais.” Bibliografia SITE DEDICADO AOS ESTUDOS DA BRIGIT, DEUSA, disponível em: http://www.brighid.org.uk/ Revista Corr Bolg - 65 Prática Ritual CENTRO DE ESPIRITUALIDADE CRISTà PARA O LEGADO DE BRIGIT, disponível em: http://solasbhride.ie/ REDE DA COMUNIDADE DE KILDARE, disponível em: http://www. kildare.ie/ GALERIA DAS ORDENS RELIGIOSAS E MILITARES, DESDE A MAIS REMOTA ANTIGUIDADE ATÉ OS NOSSOS DIAS, disponível em: https://books.google.com.br/books?id=8esOAAAAIAAJ&printsec=fro ntcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q &f=false SOBRE SANTOS, disponível em: http://santossanctorum.blogspot.com. br/2012/01/santa-brigida-de-kildare-ou-da-irlanda.html VIVENDO NA IRLANDA, disponível em: http://www.vidanairlanda. com/2013/02/conhecendo-a-irlanda-st-brigid.html#axzz3fiYAN1Or SANTA BRIGIDA, disponível em: http://catholicum.wikia.com/wiki/Santa_ Br%C3%ADgida_da_Irlanda EDITORA PAULINAS, disponível em: http://www.paulinas.org.br/ diafeliz/?system=santo&id=328 SOBRE SANTOS, disponível em: http://apostoladosagradoscoracoes.angelfire. com/ POLITEÍSMO GAÉLICO, disponível em: http://tirtairnge.blogspot.com. br/2012/01/brigit-deusa-dos-tuatha-de-danann.html SANAS CHORMAIC, disponível em: https://archive.org/stream/ cu31924071173474#page/n27/mode/2up GLOSSÁRIO IRLANDÊS, disponível em: http://www.asnc.cam.ac.uk/ irishglossaries/ IMBAS, SOBRE BRIGHID, disponível em: http://www.imbas.org/articles/ brighid.html MEDITAÇÃO DOS DOIS PODERES E DOS TRÊS CALDEIRÕES, ADF disponível em: https://www.adf.org/pt-br/rituals/meditations/doispoderes.html Música “ HYMN TO BRIDGET”, de Isaac Bonewits disponível em: https:// www.adf.org/rituals/videos/isaac-memorial/bridgethymn.html Artigo “ BRIGIT: GODDESS, SAINT, ‘HOLY WOMAN’ AND BONE OF CONTENTION”, CUSACK, CAROLE, disponível em: http://www. academia.edu/738469/Brigit_Goddess_Saint_Holy_Woman_and_ Bone_of_Contention 66 - Revista Corr Bolg Culinária Rodrigo Lisboa Sal: ‘’O Tempero do mundo’’ ‘’... Gastronomia é o conhecimento fundamentado de tudo que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta. Assim é ela, a bem dizer que move os lavradores, os vinhateiros, os pescadores, os caçadores e a numerosa família de cozinheiros, seja qual for o titulo ou qualificação sob o qual disfarçam sua tarefa de preparar alimentos... A gastronomia governa a vida inteira do homem’’. (BRILLAT-SAVARIN, 1995, P57-58). A Origem O nosso paladar se desenvolve antes mesmo do nascimento (por volta do quinto mês de gestação). O recém-nascido sorri para o doce, faz careta para amargo, mas o sal não provoca nenhuma reação particular. Ele é apenas bom ou neutro. A percepção de salinidade é variável, baseia-se em nossa cultura e nossa história pessoal. Salgar é muito mais que um sabor, é o sabor e todas as sensações que vem junto. O sal é nossa história. É como ele foi extraído. É a textura. E, sobretudo, suas propriedades químicas. O Cloreto de Sódio (NaCl), chamado de sal comum, existe abundantemente na natureza e seu uso em sociedades humanas remonta ao Neolítico. Na Antiguidade economias inteiras foram baseadas na produção e comércio do sal. A palavra sal vem do vocabulário grego hals, halos, que tanto significam sal como mar. Da mesma raiz se deriva a palavra halita, dada ao Cloreto de Sódio acompanhado de cloreto de potássio e de cloreto de magnésio, encontrado em depósitos naturais. Pertence ao grupo de rochas sedimentares, que são formadas por materiais provenientes de outras rochas e de restos de seres vivos, que se denomina de sal gema. Todos os mares do mundo contêm Cloreto de Sódio em solução, misturado com outros sais, dos quais os principais são: Sulfato de Cálcio, Revista Corr Bolg - 67 Prática Ritual Sulfato de Magnésio, Carbonato de Cálcio; Cloreto de Magnésio, Cloreto de Potássio, Brometo de Potássio. Os Romanos consideravam-no como símbolo de sabedoria. Usado como moeda na Roma antiga, e as raízes das palavras “soldado” e “salário” têm suas origens em palavras do Latim relacionadas ao ato de entregar ou receber sal. Sua técnica de produzir sal consistia em ferver a água do mar em grandes panelas revestidas de chumbo. O sal era transportado pelas estradas construídas especialmente para esse fim exemplos disto são um dos principais acessos de Roma a “Via Salaria”, caminho ao qual chegavam caravanas trazendo sal para a capital do Império. Na Idade do Ferro, os britânicos evaporavam o sal fervendo a água do mar ou salmoura das nascentes de sal em pequenos potes de barro sobre fogueiras ao ar livre. “HALLSTATT”: Celtas no pioneirismo da mineração. A mina de sal mais antiga do mundo é a de Hallstatt, que era alvo de operações intermitentes desde o período Neolítico e está localizada na região de Salzkammergut, na Áustria, em uma montanha acima do lago Hallstatt. A mina foi descoberta e explorada pelos Celtas, povo que habitava o local (o nome Hallstatt vem da palavra Celta hall que significa sal). Originalmente até a Idade Média, o sal era retirado em rochas e depois talhado em forma de corações. Mais tarde, com a descoberta de técnicas mais avançadas e com a introdução de uma fonte de água na mina, a rocha de sal era então dissolvida na água, e com a evaporação da água, os grãos de sal eram obtidos. A mineração de sal era uma indústria extremamente lucrativa, já que o sal, até o começo da era moderna era um (caro) artigo de luxo, e trouxe assim riqueza para a região. O sal é uma maneira eficiente na preservação de carnes e peixes. E Ainda hoje o é utilizado como conservantes em lugares que não possuem refrigeração. E também, evidentemente, por alguns pequenos produtores que utilizam a salmoura para produzir carnes, peixes e legumes de maneira artesanal. Foi também foi o responsável por importantes descobertas arqueológicas: em 1734 foi descoberto o corpo totalmente preservado de um mineiro (provavelmente celta) pré-histórico, incluindo suas roupas e ferramentas. A história do “Homem no Sal” é atualmente usada como uma 68 - Revista Corr Bolg Lasar Na Bhrid: uma jornada de honra à divindade e busca pela inspiração introdução aos passeios guiados pela mina. O “Homem no Sal” foi enterrado no cemitério local, e todas as evidências foram perdidas. Em 1846, o antigo diretor da mina, Johann Georg Ramsauer, descobriu um cemitério pré-histórico no local, e graças a seu cuidado nas escavações e registro por meio de desenhos de todos os achados – os quais o transformaram em um dos pioneiros da arqueologia – os restos mortais de mais de 4000 pessoas e inúmeros artefatos foram encontrados, o tornando assim um dos mais importantes (e maiores) cemitérios pré-históricos já descobertos. ‘’Não vale o sal que come’’ Os impostos e os monopólios do sal resultaram em guerras e protestos em todos os lugares desde a China até partes da África. A raiva por causa do imposto do sal foi uma das causas da Revolução Francesa. Na Índia colonial, apenas o governo britânico podia produzir e lucrar com a produção de sal realizada pelos indianos que viviam na costa. A produção do sal também desempenhou um papel significativo na antiga América. A Bay Colony em Massachusetts obteve a primeira patente para produzir sal nas colônias e continuou a produzi-lo pelos 200 anos seguintes. O Canal de Erie foi aberto essencialmente para facilitar o transporte do sal, e durante a Guerra Civil, a União capturou importantes salinas confederadas e gerou uma escassez de sal temporária nos Estados confederados. Ele continua a ser importante para a economia de muitos Estados, inclusive Ohio, Louisiana e Texas. A primeira fortuna capitalista, a dos Stroganon, teve como base a exploração, no século XVI, das jazidas de sal de Moscóvia, localizada na Rússia. A Extração Não há registro de uma civilização no mundo, que não tenha utilizado sal. Pelo contrário, os relatos mostram que até mesmo as regiões ou vilarejos isolados, distantes de fontes de sal, obtinham, obrigatoriamente, esse sal de localidades distantes. O sal podia ser obtido em regiões costeiras, ou mesmo continental, em pântanos de água salobra cujas rochas detinham resquícios de antigos oceanos e mares. O sal geralmente é extraído de três formas: mineração subterrânea, mineração por solução ou evaporação solar. Revista Corr Bolg - 69 Culinária Na mineração subterrânea, o sal se encontra em depósitos subterrâneos antigos no que um dia já foi mar. Cabos são enfiados no chão, o sal é removido e triturado. A maioria dos sais produzidos dessa maneira não tem uso culinário. Na mineração por solução, poços são construídos sobre os depósitos subterrâneos e água é injetada para dissolver o sal. Em seguida, a solução de sal, é bombeada e levada para uma fábrica para sofrer evaporação. Ele é seco e refinado. Dependendo do tipo de sal a ser produzido, iodo e um antiaglutinante são adicionados. A maioria dos sais de cozinha é produzida dessa maneira. A evaporação solar. O vento e o sol evaporam a água do mar e de lagos rasos, deixando somente o sal. Geralmente ele é colhido uma vez ao ano, quando alcança uma espessura específica. Depois de colhido, o sal é lavado, seco, limpo e refinado. Essa é a maneira mais pura de colher o sal, resultando em quase 100% de cloreto de sódio. Tipos de Sal O Sal refinado: O mais barato e mais utilizado nos lares do mundo pode ser iodado ou não. Contém antiaglutinantes como o fosfato de cálcio. Como tem uma textura fina, se mistura de maneira homogênea, mas é menos saboroso, pois perde muitas propriedades gustativas na sua refinação. O Sal refinado light: Possui menos da metade de sódio encontrada no sal refinado comum, já que este mineral adere à parede das artérias é mais saudável. Mas o sabor muda, ele e possui um pequeno amargor comparado ao normal. O Sal grosso: É formado por cristais grandes de sal. Seu uso é recomendado para salgar água de massas, legumes e caldos. Use-o em moedores manuais e o utilize nas refeições em substituição do sal refinado. É também recomendado para carnes que vão à churrasqueira e naquelas assadas em crosta, os cristais grandes preservam as propriedades dos alimentos e evitam o ressecamento da carne. O Sal ‘’Kosher’’: É favorito dos chefs atualmente por ser menos refinado, não ter iodo e possuir melhor sabor, tem esse nome, pois é usado para preparar carnes kosher, já que remove o sangue rapidamente. Use como sal de cozinha comum, mas atenção, ele não dissolve a tão rápido quanto 70 - Revista Corr Bolg Sal: O Tempero do mundo o sal de cozinha e ao substuir um pelo outro é necessário usar uma maior quantidade de sal kosher que o de sal normal. Os sais Marinhos Alguns amantes da culinária afirmam que quantidades mais altas de micro minerais podem deixar os sais marinhos com um sabor único e natural. Outros dizem que o sabor é o mesmo, mas que as cores e texturas diferentes podem fazer a diferença na aparência dos pratos e que psicologicamente nos faz sentir sabores diferentes. O Sal marinho refinado: Tem a mesma característica do sal refinando comum mudando apenas sua maneira de extração. O sal comum é extraído na mineração por solução e o marinho por evaporação solar, o que lhe dá um sabor melhor. O Sal grosso Cinza: Também chamado de sal Celta é úmido e normalmente encontrado na Bretanha, costa atlântica da França. A cor cinza vem dos minerais absorvidos do barro que reveste as Salinas e não por ser defumado, como muitos acreditam. Este sal é colhido a mão respeitando os métodos celtas antigos. Ganhou fama no mundo por ser um sal de excelente qualidade gustativa. Utilize como um sal grosso direto em caldos e carnes ou no moedor. O Sal grosso rosa do Himalaia: Possui um sabor muito parecido com o sal grosso marinho. O tom rosado se deve aos minerais presentes nele, como o ferro e o manganês. Por ser muito caro e possuir uma coloração diferenciado utilize-o moído ou em cristais para finalizar pratos e não para cozinhar. O Sal Havaiano: É um sal de origem vulcânica. Um mineral natural chamado “Alea” é adicionado a ele o que ocasiona a cor avermelhada e um sabor sutil, que dizem ser mais complexo e terroso que o sal marinho comum. Harmonizando muito bem com pratos que levam carne de porco. Pode ser usado para temperar a carne crua ou nas finalizações de pratos na mesa. O Sal Negro Indiano ou o Kala Namak: É um sal mineral não refinado. Possui uma cor rosa - cinza, um sabor e aroma sulfúrico que lembrar o gosto de ovo. Kala Namak é muito usado na culinária Indiana e pode ser interessante como tempero de saladas e molhos. Revista Corr Bolg - 71 Culinária O Sal Defumado: Muito na moda, é um sal naturalmente fumado em madeira o que proporcionam um sabor diferente aos pratos principalmente em assados e grelhados (carnes ou legumes). Pode ser usados para cozinhar em altas temperaturas. Sais Marinhos de Acabamento Fleur de Sel: Composto por cristais “jovens” que se formam naturalmente sobre a superfície de Salinas. Os Paludiers (colhedores de sal) cuidadosamente os colhem a mão, processo que só se pode ser feito uma vez por ano, no verão. Chamado de “caviar de sais”, a verdadeira Fleur de Sel vem da região de Guérande na França (Assim como champanhe, deve vir da região de Champagne). A Fleur de Sel é ideal para saladas, vegetais cozidos ou frescos, carnes grelhadas e tudo mais que pode pedem um toque delicado, chocolates e caramelos inclusive. ‘’A Flor de Sal’’ deve ser salpicada no último momento antes de levar a mesa. Não se deve cozinhar com ela. Sal em Flocos: como a Fleur de Sel são colhidos a mão e possuem delicada textura e dissolve rapidamente na boca proporcionando uma ligeira explosão de sabor a cada mordida. Também devem ser adicionadas no último momento para agregar valor a apresentação dos pratos. Bom, mau, culpado, inocente, o sal é vital Sim, o sal é essencial. Mas não haverá uma situação de excesso de sal, capaz de nos prejudicar? Claro que a resposta é sim. Mas o precisamos entender é que, na imensa maioria dos casos, esse excesso não vem do sal que você põe na sua comida! Refinado ou não! O sal constitui-se de cloreto de sódio como citado anteriormente. O sódio e o cloro fazem parte de um mecanismo celular chamado bomba iônica. É um mecanismo que serve para manter íntegras as nossas células. O sódio e o potássio (que não está presente no sal) são importantes para o equilíbrio de água no nosso organismo. Se a água estiver em desequilíbrio, pode ocorrer retenção de líquido no corpo e a pressão arterial pode subir. As células saudáveis possuem mais potássio que sódio em seu interior. Já o exterior das células possui mais sódio que potássio. Uma ingestão excessiva de sódio ou de potássio pode provocar importantes desequilíbrios. Na maioria dos casos do dia-a-dia, o problema está na ingestão excessiva de sódio. 72 - Revista Corr Bolg Sal: O Tempero do mundo Umas das fontes mais comuns de excesso de sódio são os refrigerantes, muitos contêm benzoato de sódio – que reage com o ácido ascórbico que eles também contêm, para formar benzeno, uma substância conhecidamente cancerígena. Outra das fontes mais comuns de excesso de sódio são os alimentos industrializados que vêm em saquinho, latinha, pacotinho, etc. Qual seria a diferença entre a sopinha em lata e a sopa caseira? Desde que ambas parecessem igualmente salgadas ao paladar. Durante o processo de industrialização, os alimentos são primeiro desidratados. Com a desidratação, perdem não apenas a água, mas também o sódio e o potássio. Em seu estado natural, a maioria dos alimentos possui uma proporção ligeiramente maior de potássio que de sódio. Após a desidratação, e por causa da perda de seu sódio e potássio, os alimentos também perdem o sabor. Ao serem utilizados no preparo da “sopa enlatada”, faz-se necessário adicionar sal (cloreto de sódio – cadê o potássio?). Não, não é preciso adicionar muito sal, apenas o suficiente – uma quantidade normal. Porém este alimento passa a apresentar uma proporção invertida de sódio e potássio, podendo chegar a uma proporção muito, mas muito maior de sódio que de potássio. É exatamente essa desproporção que pode nos causar problemas como, por exemplo, a hipertensão arterial. Por isso, evite se alimentar com produtos industrializados e refrigerantes. Faça sua comida em casa. Preocupe-se mais com a proporção de sódio e potássio que com a quantidade de sal que você adiciona aos seus alimentos Não elimine o sal: ele é essencial para nosso organismo, e também para tornar mais apetitosos os alimentos. Não haveria vida humana sem o sal, que hoje em dia é uma das matérias-primas mais corriqueiras e abundantes da terra e pode até mesmo ser fabricado. Já foram contados aproximadamente 14 mil usos de sal, sem incluir o seu papel simbólico no inconsciente coletivo. (fontes: howstuffworks.com, pat.feldman.com.br, youtube.com/ canaldocampoamesa. Referencias bibliográficas.: Livro, Sal - Uma História do Mundo, autor: Mark Kurlansky.) Curiosidades • O organismo de um ser humano adulto contém cerca de 250 gramas de sal. Revista Corr Bolg - 73 Culinária • O iodo, elemento comum do sal de cozinha, não é encontrado originalmente no mineral: ele é acrescentado no processamento do produto para combater doenças da tireóide como bócio e cretinismo. • O consumo de sal é declinante no mundo: na Europa, o consumo individual caiu pela metade entre os séculos 19 e 20. • Na Idade Média, as mulheres jogavam sal nas nádegas e barriga dos maridos com o objetivo de torná-los mais potentes. Era comum também que noivos se casassem com uma pitada de sal no bolso esquerdo • A expressão “não vale o sal que come” tem origem na escravidão e faz referência a escravos que não conseguiam realizar suas tarefas. • No Brasil Colônia, o sal vinha de Portugal, e o lucro obtido com a venda seguia direto para a Coroa. A produção local era proibida e quem tentava a exploração era castigado. A situação só mudaria no século 19. (fleury.com.br/revista27. edição: Out/2013.) Receita Um purê de batata originário da Irlanda, que leva cebolinha, leite e a batata é amassada ao invés de ser espremida. Ele fica ótimo servido com pequenos pedaços de manteiga e/ou com uma boa linguiça. Purê de batatas e cebolinhas Rendimento: 4 Porções. Ingredientes 1 kg de batata, descascada e cortada ao meio. 1 xícara (240 ml) de leite. 1 maço de cebolinha, bem picada. 1/2 colher (chá) de sal ou a gosto. 1/4 xícara (50 g) de manteiga. 1 pitada de pimenta-do-reino moída na hora. Modo de preparo Preparo: 15’’ › Cozimento: 25’’ › Pronto em: 40’’. Numa panela grande, coloque as batatas cubra-as com água. Leve ao 74 - Revista Corr Bolg Sal: O Tempero do mundo fogo alto, deixe que fervam e cozinhe por aproximadamente 20 minutos, ou até que estejam macias. Escorra bem e ponha as batatas de volta na panela, em fogo bem baixo, e deixe que sequem mais um pouco (para facilitar, coloque um pano de prato limpo sobre as batatas, isso vai ajudar a absorver o restante da umidade). Enquanto isso esquente o leite junto com a cebolinha em fogo baixo até ficar morno. Amasse bem as batatas junto com o sal e a manteiga. Acrescente o leite junto com a cebolinha. Misture, formando um purê cremoso. Tempere com a pimenta-do-reino moída. Sirva bem quente acompanhado de pedaços pequenos de manteiga. Revista Corr Bolg - 75 Organizacional Brugs e Treinamento No Fiád Na Clanna de 2015, ou Lughnasadh Inter Clânico, que agora é restrito aos membros do grupo, entre ritos e assembleias, o Fine Na Dairbre Protogrove, ADF, estabeleceu uma nova divisão, em 3 casas sedes no Sul do Brasil. Estas 3 casas sedes possuem autonomia ritual, desde que sigam o modelo básico do Fine Na Dairbre e da ADF. Novos membros nessas regiões devem procurar os respectivos representantes de suas regiões. Brug Na Coll (Casa da Aveleira) Sede de Florianópolis, mantida por Ana (Slakkos Abonos) Bantel Contato: [email protected] Brug Na Beithe (Casa da Bétula) Sede de Porto Alegre, mantida por Matheus Velozo Contato: [email protected] Brug Na Duir (Casa do Carvalho) Sede de Curitiba, mantida por Marina Holderbaum Contato: [email protected] Sugerimos àqueles que não morem nessas regiões e tenham interesse em aprender a nossa visão de Druidismo que se filiem à ADF e façam o treinamento online do Dedicant Program, que é altamente recomendado e, inclusive, indicado, para todos os membros do Fine Na Dairbre, como parte do treinamento. Ár nDraíocht Féin : A Druid Fellowship (ADF) Site: https://www.adf.org 76 - Revista Corr Bolg Orações Devocionais Oração do Despertar Eu me ergo em devota reverência, Saudando os seres sagrados, Com oferendas justas à sua nobreza. Que a Terra sob meus pés As conduzam às moradas dos Espíritos Naturais, Nobres criaturas da terra, do céu e do mar. Que o Mar ao meu redor As acolham através das ondas até os Ancestrais, Honrados guardiões do conhecimento milenar. Que o Céu sobre minha cabeça As carreguem aos domínios dos deuses imortais, Brilhantes e belos soberanos de sabedoria exemplar. Que a sabedoria dos deuses inspire meu espírito, A honra dos Ancestrais ilumine minha mente, E que a nobreza dos espíritos da natureza guie meus passos. Revista Corr Bolg - 77 Revista Volume 3 Agosto de 2016