io anjo gibreel
Transcrição
io anjo gibreel
I O ANJO GIBREEL 1 «Para se nascer de novo», entoou Gibreel Farishta, caindo dos céus, «é preciso primeiro morrer. Ho ji! Ho ji! Para se poisar na terra acolhedora, é preciso primeiro voar. Tattaa! Takathun! Como tornar um dia a sorrir, sem se chorar primeiro? Como con‑ quistar o amor da mais querida, meu senhor, sem um suspiro? Baba, se queres renascer…» Pouco antes da alvorada, numa manhã de Inverno, por alturas do Ano Novo, dois homens adul‑ tos, vivos, de carne e osso, caíram de uma grande altitude, vinte e nove mil e dois pés, em direcção ao canal da Mancha, sem o auxí‑ lio de asas ou pára‑quedas, atravessando um céu límpido. «Digo‑te que tens de morrer, digo‑te, digo‑te», e por aí fora, sob uma lua de alabastro, até que um sonoro grito rasgou a noite, «Vai para o diabo mais as tuas canções», palavras que ficaram suspensas, cristalinas, na noite branca e gelada, «nos filmes tu só mexias a boca enquanto outros cantavam por ti, por isso agora poupa‑me a esses barulhos infernais.» Gibreel, o solista desafinado, tinha‑se posto aos pinotes ao luar enquanto entoava o seu improviso, nadando no ar, mariposa, bru‑ ços, enrolando‑se numa bola, abrindo braços e pernas contra o fundo quase infinito da quase‑aurora, adoptando posturas heráldi‑ cas, rampante, agachado, opondo leveza à gravidade. Agora rebolou‑se alegremente em direcção à voz sardónica. «Salve, Salad baba, és tu, ó excelente. Como vai isso, velho Compincha». Ao que o outro, uma sombra parda que ia caindo de cabeça para baixo com um fato cinzento, casaco todo bem abotoado, braços colados ao corpo, não parecendo dar‑se conta da inverosimilhança do cha‑ péu de coco que levava na cabeça, fez uma careta de pessoa avessa a tais epítetos. «Ei, Pateta», berrou Gibreel, com uma segunda Fragmento da letra da canção «Alabama Song» de Kurt Weil e Bertolt Brecht, da peça Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. (N. dos T.) No original «chumch», compromisso entre «chum», compincha, e Chamcha, o apelido da personagem. (N. dos T.) 13 piscadela de olho invertida, «Digna Londres, bhai! Aí vamos nós! Esses sacanas lá de baixo nem vão perceber o que lhes aconteceu. Meteoro ou trovoada ou castigo de Deus. Assim, sem mais nem menos, meu amigo. Dharrraaammm! Wham, na? Que entrada em cena, caramba. Podes crer: splat!» Sem mais nem menos: uma grande explosão, seguida de uma chuva de estrelas. Um começo universal, um eco em miniatura do nascer dos tempos… o avião a jacto Bostan, voo AI‑420, estoirou sem qualquer aviso, lá no alto, acima da grande cidade, corrupta, belíssima, branca de neve, luminosa, Mahagonny, Babilónia, Alphaville. Mas Gibreel já a baptizou, não devo interferir: a Digna Londres, capital de Vilayet, pestanejava piscava acenava no meio da noite. Enquanto, a essas altitudes himalaianas, um sol breve e prematuro surgia no ar pulverulento de Janeiro, um pequeno ponto luminoso desapareceu dos ecrãs de radar, e a atmosfera encheu‑se de corpos, descendo do Everest da catás‑ trofe para a palidez leitosa do mar. Quem sou eu? Quem há mais além de mim? O avião partiu‑se ao meio, planta largando os seus esporos, ovo revelando o seu mistério. Dois actores, o saltitante Gibreel e o hirto e abotoado Sr. Saladin Chamcha, caíram como migalhi‑ nhas de tabaco de um velho charuto partido. Acima, atrás, abaixo deles, no vácuo, pairavam assentos reguláveis, auscultadores este‑ reofónicos, carrinhos de bebidas, sacos de plástico para o enjoo, cartões de embarque, jogos de vídeo isentos de impostos, bonés com galões, copos de papel, cobertores, máscaras de oxigénio. E também – pois não eram poucos os imigrantes a bordo, sim, uma quantidade de esposas que haviam sido escrupulosamente interrogadas por funcionários razoáveis e competentes acerca das dimensões e sinais particulares dos orgãos genitais de seus mari‑ dos, e bom número de filhos sobre cuja legitimidade o Governo Britânico emitira as suas mais que razoáveis dúvidas – à mistura com os restos do avião, igualmente fragmentados, igualmente 1 No original, «big bang», expressão consagrada que designa uma das teorias sobre a origem do universo. (N. dos T.) 14 absurdos, flutuavam os detritos da alma, recordações destroça‑ das, mudas de pele de personalidades várias, línguas maternas decepadas, privacidades violadas, anedotas intraduzíveis, futuros extintos, amores perdidos, o sentido olvidado de palavras sono‑ ras e ocas, pátria, pertença, lar. Um pouco estonteados pela explo‑ são, Gibreel e Saladin mergulhavam como trouxas largadas por uma cegonha de bico descuidadamente entreaberto, e como Chamcha����������������������������������������������������� descia de cabeça para baixo, na posição recomendada para os bebés entrarem no canal do nascimento, começou a sentir uma vaga irritação ante a recusa do outro de cair normalmente. Saladin prosseguia no seu voo picado enquanto Farishta enlaçava o ar, cingindo‑o com os braços e as pernas, actor frenético e esfor‑ çado, sem técnica nem contenção. Lá em baixo, cobertas de nuvens, aguardando a entrada em cena dos dois homens, as cor‑ rentes vagarosas e geladas da Mancha inglesa, a zona designada para a sua reencarnação aquática. «Oh, os meus sapatos são japoneses», cantou Gibreel, tradu‑ zindo a velha canção para inglês em sinal de deferência semi ‑inconsciente pela nação anfitriã que subia ao seu encontro, «e as calças inglesas, o que é que julgam? Na cabeça, um vermelho chapéu russo; no meio de tudo isto um coração indiano.» As nuvens espu‑ mosas, vinham ao encontro deles, e talvez deva atribuir‑se a essa grande mistificação dos cúmulus e cumulo‑nimbus, às imponentes massas rolantes de trovoada, como cabeças de martelo ao nascer do dia, ou talvez as canções (um deles ocupado a entoá‑las, o outro a vaiar a exibição) ou ao delírio da explosão, o facto de terem sido poupados a um pleno conhecimento prévio do que estava imi‑ nente… mas fosse qual fosse o motivo, os dois homens, Gibreelsala‑ din Farishtachamcha, condenados àquela queda angélicodiabólica infinita mas também quase finda, não tomaram consciência do ins‑ tante em que teve início o processo da sua transmutação. Mutação? Sim senhor, mas não aleatória. Lá em cima no ar‑espaço, nesse domínio brando, imperceptível que o século tornou possível e veio depois a tornar possível o século, convertendo‑se numa das localizações que o definem, o lugar do movimento e da guerra, do encolher do planeta e do vazio de poder, a mais insegura e 15 transitória das zonas, ilusória, descontínua, metamórfica – pois quando se atira tudo ao ar tudo se torna possível –, lá em cima, seja como for, operaram‑se nos actores delirantes mudanças que muito teriam alegrado o coração do Sr. Lamarck: sob uma pres‑ são extrema do ambiente, certos caracteres foram adquiridos. Que caracteres para cada um deles? Mais devagar; julgam que a Criação acontece assim à pressa? Pois bem, com a revelação é o mesmo… dêem uma olhadela ao par. Notam alguma coisa estra‑ nha? Apenas dois homens morenos, precipitando‑se no vazio, nada de muito novo em tal cena, poderão vocês pensar; subiram alto de mais, elevaram‑se acima de si próprios, voaram até dema‑ siado perto do sol, é isso? Não é isso. Escutem: O Sr. Saladin Chamcha, horrorizado ante os ruídos que ema‑ navam da boca de Gibreel Farishta, ripostou com versos mais a seu gosto. O que Farishta ouviu atravessar o céu improvável da noite foi também uma velha canção, com letra do Sr. James Thomson, mil e setecentos a mil setecentos e quarenta e oito. «… a mando do Céu», trauteou Chamcha com lábios que o frio pusera patrioticamente vermelhobrancoazuis, «brotouououou da cerúúúúlea nascente.» Farishta, horrorizado, pôs‑se a cantar cada vez mais alto os seus sapatos japoneses, chapéus russos, corações inabalavelmente subcontinentais, mas não conseguiu interromper o louco recital de Saladin: «E os anjos da guaaaarda entoaram a canção.» Mais vale admiti‑lo desde já: era impossível que eles se ouvissem um ao outro, mais impossível ainda que conversassem e cantassem assim, ao desafio. Na sua queda acelarada em direcção ao planeta, cercados pelos ruídos da atmosfera, como poderiam fazê‑lo? Mas temos de admitir também o seguinte: foi o que aconteceu. Iam caindocaindo, e o frio do Inverno que lhes cobria as pesta‑ nas de geada e ameaçava enregelar‑lhes o coração estava prestes a despertá‑los do seu sonho delirante, estavam ambos quase a dar‑se conta do milagre de tais canções, da chuva de membros e de bebés de que faziam parte, e do horror do destino que se precipitava lá de baixo ao seu encontro, quando atingiram a ebulição a zero graus das nuvens, que imediatamente os encharcou e congelou. 16 Encontravam‑se naquilo que parecia ser um longo túnel ver‑ tical. Chamcha, empertigado, hirto, e ainda de cabeça para baixo, viu Gibreel Farishta, com a sua camisa de mato de cor púrpura, vir nadando na sua direcção dentro desse funil com paredes de nuvens, e teria gritado «Não te chegues, afasta‑te de mim», se o não tivesse impedido uma coisa estranha, o começo de um alvo‑ roço, de um tumulto nos seus intestinos, que o levou, em vez de proferir palavras de rejeição, a abrir os braços, e Farishta vogou até eles até ficarem enlaçados, cabeça com pés, e a força da coli‑ são fê‑los percorrer rodopiando, em cambalhotas geminadas, toda a distância do buraco que conduzia ao País das Maravilhas; enquanto eles assim abriam caminho através da brancura, surgiu uma sucessão de formas nebulosas, em metamorfoses incessan‑ tes, deuses convertidos em touros, mulheres em aranhas, homens em lobos. Criaturas híbridas, nevoentas, apinhavam‑se em redor dos dois homens, flores gigantes com seios humanos suspensos de hastes carnudas, gatos alados, centauros, e Chamcha, na sua semi‑inconsciência, foi invadido pela sensação de que também ele adquirira idêntica nebulosidade, tornando‑se metafórico, híbrido, como se estivesse a transformar‑se na pessoa cuja cabeça se aninhava agora entre as suas pernas e cujas pernas enlaçavam o seu esguio pescoço aristocrático. Essa pessoa, entretanto, não tinha tempo para tão «altas conjec‑ turas»; sentia‑se, com efeito, inteiramente incapaz de conjecturar; tendo acabado de entrever, emergindo do turbilhão das nuvens, a figura de uma mulher esplendorosa de determinada idade, enver‑ gando um sari de brocado verde e ouro, com um diamante no nariz e a laca a defender o seu cabelo enrolado ao alto contra a pressão do vento daquelas altitudes, tranquilamente sentada num tapete voa‑ dor. «Rekha Merchant», saudou‑a Gibreel. «Perdeste‑te a caminho do céu, ou o que foi que te aconteceu?» Palavras insensíveis para dizer a uma mulher morta! Mas o estado de atordoamento e a queda vertiginosa poderão ser apresentados como atenuantes… Chamcha, apertando as pernas, inquiriu, sem compreender o que se estava a passar: «O que é que foi, que diabo?» «Não a vês?», berrou Gibreel. «Não vês o raio do tapete de Bukhara»? 17 Não, não, Gibbo, segredou‑lhe ela ao ouvido, não esperes que ele confirme. Eu estou aqui apenas para os teus olhos, talvez este‑ jas a enlouquecer, o que é que julgas, meu namaqool, meu excre‑ mento de porco, meu amor. Com a morte vem a honestidade, meu querido, por isso posso agora tratar‑te pelos teus verdadei‑ ros nomes. A nebulosa Rekha continuou a murmurar pequenos nadas amargos, mas Gibreel gritou de novo para Chamcha: «Chefe! Estás a vê‑la ou não?» Saladin Chamcha não viu nada, não ouviu nada, não disse nada. Gibreel enfrentou‑a sozinho. «Não devias ter feito o que fizeste», disse, em tom de censura. «Não, senhor. Foi um pecado. Uma coisa grave.» Oh, bem podes vir pregar agora, riu ela. Não deixa de ter a sua graça ouvir‑te falar como um professor de moral. Foste tu que me deixaste, lembrou a voz dela ao seu ouvido, quase pare‑ cendo mordiscar‑lhe o lóbulo da orelha. Foste tu, ó lua das minhas delícias, quem se escondeu atrás de uma nuvem. E eu nas trevas, cega, perdida, por amor. Ele assustou‑se. «O que é que queres? Não, não digas, vai‑te embora.» Quando estiveste doente, eu não pude ver‑te, para não fazer escândalo, tu sabias que eu não podia, que eu me mantive afastada por amor a ti, mas depois castigaste‑me, serviste‑te disso como pre‑ texto para me deixares, como nuvem atrás da qual te escondesses. Disso e também dela, da mulher de gelo. Sacana. Agora que estou morta já me esqueci como se perdoa. Amaldiçoo‑te, meu Gibreel, que a tua vida seja um inferno. Inferno, porque foi para lá que me mandaste, raios te partam, o inferno de onde vieste, demónio, e para onde vais, meu palerma, goza bem o teu banho de sangue. A maldição de Rekha; e a seguir, versos numa língua que ele não conhecia, toda aspereza e sibilância, e nos quais julgou distinguir, mas talvez fosse só impressão, a repetição do nome Al‑Lat. Agarrou‑se a Chamcha; os dois irromperam do lado de baixo das nuvens. A velocidade, a sensação de velocidade, voltou, assobiando a sua nota temível. O tecto de nuvens fugiu para o alto, o chão das 18 águas aproximou‑se vertiginosamente, e eles abriram os olhos. Um berro, o mesmo berro que se lhe agitara nas entranhas quando Gibreel nadara até junto dele, brotou dos lábios de Chamcha; um raio de sol trespassou‑lhe a boca aberta, libertando‑a. Mas eles tinham atravessado as transformações das nuvens, Chamcha e Farishta, havia nos seus contornos uma fluidez, toda uma indistinção, e quando a luz do sol incidiu em Chamcha soltou algo mais do que simples sons: «Voa», gritou Chamcha para Gibreel. «Começa a voar, agora.» E acrescentou, ignorando a proveniência dela, uma segunda ordem: «E canta.» Como é que a novidade chega ao mundo? Como é que nasce? De que fusões, translações, conjunções é feita? Como sobrevive, sendo extrema e perigosa como é? Que compromissos, que acordos, que traições a sua natureza secreta é obrigada a fazer para salvar a tripulação naufragada, o anjo exterminador, a guilhotina? Será o nascimento sempre uma queda? Têm asas os anjos? Sabem os homens voar? Quando o Sr. Saladin Chamcha caiu das nuvens por sobre o Canal da Mancha sentiu o coração apertado por uma força tão implacável que compreendeu ser‑lhe impossível morrer. Mais tarde, com os pés de novo bem assentes na terra, começaria a duvidar desse facto, a atribuir as implausibilidades da travessia a sua percepção abalada pela explosão, e a considerar que a sua sobrevivência, a sua e a de Gibreel, se devera simplesmente à cegueira da sorte. Mas no próprio momento não duvidou; o que o invadira fora a vontade de viver, inadulterada, irresistível, pura, e a primeira coisa que essa vontade fez foi comunicar‑lhe que não queria ter nada a ver com a sua personalidade lastimosa, esse composto semi‑reconstruído de mímica e de vozes, que tencio‑ nava ignorar tudo isso, e ele deu por si a ceder‑lhe, sim, avança, como se fosse um espectador no seu próprio espírito, no seu pró‑ prio corpo, pois tudo isto começou no centro exacto do seu 19 corpo, irradiando a partir daí, transformando‑lhe o sangue em ferro, fazendo aço da carne, embora desse também a impressão de um punho a envolvê‑lo pelo lado de fora, segurando‑o de maneira ao mesmo tempo insuportavelmente opressiva e intole‑ ravelmente branda; até por fim o subjugar por inteiro e conseguir comandar‑lhe a boca, os dedos, a seu bel‑prazer; e depois, segura do seu domínio, expandiu‑se para fora do corpo e agarrou Gibreel Farishta pelos tomates. «Voa», ordenou a Gibreel. «Canta.» Chamcha continuou agarrado a Gibreel enquanto o outro começou, primeiro devagar, mas depois com rapidez e energia crescentes, a agitar os braços. Agitava‑os cada vez com mais força, e ao agitá‑los brotou dele uma canção, que tal como a canção do espectro de Rekha Merchant era cantada numa língua que ele não conhecia e com uma música que ele nunca ouvira. Gibreel nunca repudiou o milagre; ao contrário de Chamcha, que procu‑ rou negar a sua existência com argumentos racionais, ele nunca deixou de dizer que o prodígio fora celestial, que, sem a canção, o adejar dos braços não teria servido de nada, e, sem o adejar, era mais do que certo que eles teriam embatido nas ondas como rochas ou pura e simplesmente ficado despedaçados ao entrar em contacto com o tenso tambor do mar. Ora, em vez disso, come‑ çaram a abrandar. Quanto mais enfaticamente Gibreel agitava os braços e cantava, mais acentuada a desacelaração, até que por fim os dois deram por si a flutuar sobre o canal como pedaços de papel arrastados pela brisa. Foram eles os únicos sobreviventes do desastre, os únicos que caíram do Bostan e não morreram. Encontraram‑nos na praia onde deram à costa. O mais falador dos dois, o da camisa púr‑ pura, jurou, nas suas divagações incoerentes, que tinham cami‑ nhado sobre as águas e as ondas os tinham trazido suavemente até ali; mas o outro, a cuja cabeça se agarrava, como por magia, um chapéu de coco ensopado, negou que fosse verdade. «Meu Deus, que sorte», disse. «Nunca julguei que se pudesse ter tanta sorte.» Eu sei a verdade, obviamente. Assisti a tudo. Em matéria de omnipresença e potência, não quero, por agora, afirmar quais‑ 20 quer pretensões, mas espero conseguir convencê‑los ao menos do seguinte: Chamcha ordenou e Farishta fez o que foi ordenado. Qual deles operou o milagre? De que tipo – angélico, satânico – era a canção de Farishta? Quem sou eu? Formulemos assim a questão: quem tem as melhores canções? Foram estas as primeiras palavras que Gibreel Farishta disse ao acordar na praia inglesa orlada de neve, com a improbabili‑ dade de uma estrela do mar junto ao ouvido: «Renascermos, Pateta, tu e eu. Parabéns, meu caro senhor; parabéns a você.» Ao que Saladin Chamcha tossiu, resmungou, abriu os olhos e, como competia a um bebé recém‑nascido, desatou tolamente a chorar. 21 2 A reencarnação sempre foi um tema muito do agrado de Gibreel, há quinze anos a maior estrela da história do cinema indiano, ainda antes de ele derrotar «milagrosamente» o Micró‑ bio Fantasma que toda a gente julgava prestes a pôr fim aos seus contratos. Por isso talvez alguém devesse ter previsto, só que nin‑ guém o fez, que quando começasse outra vez a circular consegui‑ ria, por assim dizer, ser bem sucedido onde os micróbios tinham falhado e sair para sempre da sua velha vida uma semana antes do seu quadragésimo aniversário, desaparecendo, puf!, como num passe de mágica, sem mais nem menos. As primeiras pessoas a darem pela sua ausência foram os qua‑ tro elementos da sua equipa de cadeiras de rodas do estúdio. Ainda muito antes da doença ele criara o hábito de se fazer trans‑ portar de cenário para cenário, no grande lote de terreno dos estúdios D. W. Rama, por esse grupo de atletas velozes e dignos da maior confiança, pois um homem capaz de fazer até onze fil‑ mes em simultâneo precisa de conservar as suas energias. Orientando‑se por um código complexo de riscos, círculos e pontos que Gibreel recordava da sua infância passada entre os lendários distribuidores de almoços de Bombaim (aos quais tor‑ narei a referir‑me), os homens da cadeirinha transportavam‑no de papel para papel, entregando‑o tão pontual e infalivelmente como o seu pai outrora entregava os almoços. E, no fim de cada take, Gibreel instalava‑se de novo na cadeira e era pilotado a grande velocidade para o cenário seguinte, onde o vestiam, maquilhavam e lhe entregavam o texto do papel. «Uma carreira no sonoro de Bombaim», dizia ele à sua fiel equipa, «é tal e qual uma corrida de cadeiras de rodas com um ou dois obstáculos de vala pelo caminho.» Depois da doença, do Germe Fantasma, da Maleita Miste‑ riosa, do Micróbio, regressara ao trabalho, poupando‑se um bocadinho, só sete filmes de cada vez… e depois, sem‑mais‑nem 23 ‑menos, desapareceu. A cadeira de rodas ficou vazia entre palcos silenciosos; a sua ausência revelava de repente o artifício espalha‑ fatoso dos cenários. Os homens da cadeira de rodas, do um ao quatro, procuraram desculpar a estrela desaparecida quando a ira dos executivos do estúdio se abateu sobre eles: pois, ele deve estar doente, ele sempre foi famoso pela pontualidade, não, por‑ quê criticar, marajá, deve‑se permitir aos grandes artistas que tenham de vez em quando o seu temperamento, não é, e pelos seus protestos transformaram‑se nas primeiras vítimas do inex‑ plicável abracadabra de Farishta, sendo despedidos, quatro três dois um, ekdumjaldi, expulsos do perímetro do estúdio, dei‑ xando uma cadeira de rodas abandonada, a ganhar pó, sob as palmeiras pintadas de uma praia de serradura. Onde estava Gibreel? Os produtores, deixados em péssimos lençóis, entraram dispendiosamente em pânico. Vejam, ali, no campo de golf do Willingdon Club – já só nove buracos hoje em dia, tendo brotado dos outros nove, um conjunto de arranha ‑céus, como ervas daninhas gigantes, ou antes como pedras tumu‑ lares assinalando os locais onde jazia o corpo dilacerado da velha cidade – acolá, aí mesmo, quadros superiores a falhar as bolas mais simples; e mais acima, olhem, tufos de cabelo angustiado, arrancados de cabeças importantes, a cair, flutuando, de janelas do mais alto nível. A agitação dos produtores era fácil de compre‑ ender, pois nesses tempos de declínio do número de espectado‑ res e de criação, pelas redes de televisão, de novelas históricas e folhetins com donas‑de‑casa batalhadoras, só restava um único nome que, inscrito acima do título de um filme, oferecia ainda uma garantia a toda a prova, a cem por cento, de um Super‑êxito, de um Sucesso de Arrasar, e o dono do referido nome acabava de partir, para cima, para baixo ou para o lado, isso ninguém sabia, mas o que era certo e incontestável era que desaparecera… Pela cidade inteira, depois do esforçado mas inútil labor de telefones, motocicletas, polícias, homens‑rãs e traineiras que dra‑ garam o porto em busca do cadáver, começaram a ser pronuncia‑ das orações fúnebres em memória da estrela extinta. Num dos sete palcos impotentes dos Estúdios Rama, a menina Pimple Billimoria, a mais recente das «bombas» apimentadas – não é 24 nenhuma senhorinha tagarela é uma autêntica carga de dinamite, capaz de fazer perder a cabeça a qualquer –, envolta em véus de dançarina do templo e instalada debaixo de imagens contorcidas de papelão representando figuras tântricas do período Chandela em actos de cópula –, apercebendo‑se de que a sua cena principal não iria ser filmada, de que a sua grande oportunidade se esfu‑ mara – proporcionou o espectáculo de uma despedida despei‑ tada a um público de operadores de som e electricistas entretidos a fumar os seus cínicos beedis. Assistida por uma criada muda de aflição, toda cotovelos, Pimple enveredou pelo escárnio. «Meu Deus, que sorte eu tive, é o que lhes digo», exclamou. «Quer dizer, era hoje a cena de amor, chhi chhi, eu estava morta de medo cá por dentro, a pensar como é que me havia de chegar à boca engordurada desse tipo que tem hálito de esterco podre de barata.» Ouvia‑se o tinir das suas pulseiras de tornozelo, carrega‑ das de guizos, quando ela batia com os pés no chão. «Ainda bem para ele que os filmes não têm cheiro, senão nem um papel de leproso lhe davam.» Aqui o solilóquio de Pimple culminou numa tal torrente de obscenidades que os fumadores de beedi se soer‑ gueram pela primeira vez e começaram animadamente a compa‑ rar o vocabulário de Pimple com o da infame rainha dos bandidos Phoolan Devi cujas pragas faziam derreter os canos das espingar‑ das e num abrir e fechar de olhos transformavam os lápis dos jor‑ nalistas em borracha mole. Sai de cena Pimple, em pranto, censurada, bocadinho de pelí‑ cula no chão de uma sala de montagem. Caíam‑lhe do umbigo, a cada passo, diamantes de imitação, reflexo das suas lágrimas… no tocante à halitose de Farishta, não deixava, porém, de ter razão; e até podia ter pintado o caso com cores mais negras. As exalações de Gibreel, essas nuvens ocres de enxofre, sempre lhe haviam dado – juntamente com o seu nariz proeminente e cabeleira negra como breu – um ar mais saturnino que aureolado, apesar do seu nome arcangélico. Depois de ele desaparecer houve quem dis‑ sesse que devia ser fácil encontrá‑lo, que bastava um faro decente… e uma semana depois da sua partida, uma saída de cena bem mais trágica do que a de Pimple Billimoria contribuiria bastante para intensificar o odor demoníaco que começava a ser 25 associado a esse nome de cheiro outrora tão doce. Poderia dizer ‑se que ele saíra da tela para entrar no mundo, e que na vida, ao contrário do que sucede no cinema, as pessoas sabem quem fede e quem não fede. Somos criaturas do ar, Nossas raízes em sonhos E nuvens, renas‑ cemos Em voo. Adeus. O enigmático bilhete descoberto pela polí‑ cia no apartamento de Gibreel Farishta, situado no último andar do arranha‑céus Everest Vilas, em Malabar Hill, o alojamento mais alto do edifício mais alto da colina mais alta da cidade, um desses apartamentos com vista dupla, de onde se abarca, do lado de cá, o colar nocturno de Marine Drive ou, do lado de lá, Scan‑ dal Point e o mar, permitiu que os títulos dos jornais prolongas‑ sem as suas cacofonias. F arishta M ergulha N uma E xistência S ubterrânea , opinava o Blitz de maneira bastante macabra, enquanto Busybee, do Daily, preferia G ibreel B ate a A sa . Foram publicadas inúmeras fotografias dessa residência famosa na qual decoradores franceses com cartas de recomendação de Reza Pahlevi, pelo bom trabalho que haviam feito em Persépolis, tinham gasto um milhão de dólares a recriar a tão vertiginosa alti‑ tude o efeito de uma tenda de beduínos. Outra ilusão desfeita pela sua ausência; G ibreel D esaparece , gritavam os títulos, mas para onde, para cima, para baixo, para o lado? Ninguém sabia. Nessa metrópole de línguas e murmúrios, nem mesmo os ouvidos mais atentos tinham podido captar informações dignas de confiança. Mas a Sr.ª Rekha Merchant, lendo todos os jornais, ouvindo todas as emissões de rádio, não despregando os olhos dos programas da Doordarshan tv, extraiu alguma coisa da mensa‑ gem de Farishta, ouviu uma nota que escapara a toda a gente, e levou as duas filhas e o filho a dar um passeio pelo alto terraço do prédio onde vivia. Chamava‑se este edifício Everest Vilas. Vizinha dele, sim; vizinha próxima, na realidade, pois ocu‑ pava o apartamento mesmo por baixo do seu. Vizinha e amiga; para quê dizer mais? É claro que as revistas de mexericos da cidade, sempre atentas aos escândalos, enchiam as suas colunas de alusões, insinuações e piscadelas de olho, mas isso não é motivo para descermos nós também ao mesmo nível. Para quê mancharmos agora a reputação de Rekha? 26 Quem era ela? Rica, é claro, mas o Everest Vilas não era exac‑ tamente um tugúrio de Kurla, pois não? Casada, sim senhor, há treze anos, com um marido magnate da indústria dos rolamentos. Independente, dona de prósperas lojas de tapetes e antiguidades na zona elegante de Colaba. Chamava aos seus tapetes klims e kleens e os artefactos antigos eram anti‑queues. E era bela, sim, bela à maneira dura e reluzente dos ocupantes rarefeitos dos alo‑ jamentos aéreos da cidade, ossos, pele, atitude, outras tantas tes‑ temunhas do seu prolongado divórcio da terra empobrecida, pesada, pululante. Toda a gente concordava que ela tinha uma personalidade forte, estava como um peixe na água a beber por cristais de Lalique e pendurava o chapéu com todo o descara‑ mento num Chola Natraj e sabia o que queria e de que maneira obtê‑lo muito depressa. O marido era um ratão com dinheiro e um bom jogador de squash. Rekha Merchant leu o bilhete de des‑ pedida de Gibreel Farishta nos jornais, escreveu por seu turno uma carta, juntou os filhos, chamou o elevador e subiu em direc‑ ção ao céu (um andar) para enfrentar o destino que escolhera. «Há muitos anos», dizia a carta, «casei por cobardia. Agora, finalmente, vou fazer uma coisa corajosa.» Deixou em cima da cama um jornal com a mensagem de Gibreel cercada a vermelho e energicamente sublinhada – três riscos ásperos, um dos quais tão furioso que rasgou a página. Como seria de esperar, os jornais do comadrio desceram à cidade e foi ver os S alto M ortal D a B ela A bandonada , os B eldade D e C oração D estroçado D á Ú ltimo M ergulho . Mas: Talvez também ela tivesse o bichinho da ressurreição, e Gibreel, sem se dar conta do terrível poder da metáfora, reco‑ mendara o voo. Para se nascer de novo, é preciso primeiro morrer e ela era uma criatura celeste, bebia champanhe Lalique, vivia no Everest, e um dos seus companheiros do Olimpo voara para longe; e se ele podia, então também ela podia ser alada, e deitar raízes nos sonhos. 1 Jogo de palavras, intraduzível, com kelim, um tipo de tapete indiano, sem pêlo, e clean, limpeza. (N. dos T.) 2 Literalmente antifilas. Pronúncia popular, defeituosa da palavra antiques, antigui‑ dades. (N. dos T.) 27 Não conseguiu. O fulano empregado como guarda do com‑ plexo Everest Vilas ofereceu ao mundo o seu rude testemunho. «Eu ia a andar por aqui, aqui mesmo, dentro do complexo, quando ouvi um baque, tharaap. Voltei‑me. Era o corpo da filha mais velha. Tinha o crânio completamente esmagado. Olhei para cima e vi o rapaz a cair, e a seguir a menina mais nova. O que é que querem que eu diga, quase vieram esborrachar‑se em cima de mim. Pus a mão na boca e aproximei‑me. A filha mais nova gemia baixinho. Depois tornei a olhar para cima, e era a begum que vinha pelo ar. O sari flutuava como um grande balão, e os cabelos estavam soltos. Desviei os olhos porque ela estava a cair e era uma falta de respeito espreitar‑lhe para dentro da roupa.» Rekha e os filhos caíram do Everest; não houve sobreviventes. As más‑línguas atribuíram as culpas a Gibreel. Admitamos que assim foi – por agora. Oh: não se esqueçam: ele viu‑a depois de morta. Viu‑a várias vezes. Passou muito tempo antes que as pessoas compreendes‑ sem a que ponto estava doente o grande homem. Gibreel, a estrela. Gibreel, que vencera a Moléstia Sem Nome. Gibreel, que temia o sono. Depois de partir, as omnipresentes imagens do rosto dele começaram a apodrecer. Nos cartazes gigantescos, de cores vivas, de onde dominava a populaça, as suas pálpebras preguiçosas começaram a escamar‑se e a desfazer‑se, descendo cada vez mais até as íris ficarem a parecer duas luas retalhadas pelas nuvens, ou pelas brandas lâminas das pestanas compridas. Por fim as pálpe‑ bras caíram, dando‑lhe aos olhos pintados uma expressão louca, arregalada. À porta dos grandes cinemas de Bombaim, enormes efígies de Gibreel em cartão foram‑se degradando e amarrotando. Pendendo, inertes, dos seus cadafalsos, perderam braços, definha‑ ram, presas pelo pescoço. Os seus retratos nas capas das revistas de cinema ganharam a palidez da morte, a nulidade do olhar, a vacui‑ dade. Por fim as imagens dele desapareceram por completo da página impressa, de tal forma que as capas brilhantes da Celebrity, da Society e da Illustrated Weekly descoraram nas bancas e os res‑ 28 pectivos editores despediram tipógrafos, atribuindo o facto à má qualidade da tinta. Mesmo no próprio ecrã prateado, lá no alto, ante os seus adoradores mergulhados nas trevas, a fisionomia ale‑ gadamente imortal começou a putrefazer‑se, a empolar‑se e a empalidecer; os projectores emperravam inexplicavelmente sem‑ pre que a imagem dele aparecia, as películas paravam de rodar e o calor da lâmpada dos projectores avariados queimava a sua memó‑ ria no celulóide: uma estrela tornada supernova, com o fogo devo‑ rador a irradiar, como convinha, de entre os lábios. Era a morte de Deus. Ou coisa muito parecida; pois não tinha aquele rosto de dimensões exageradas, suspenso acima dos seus devotos na noite artificial do cinema, brilhado como o de uma Entidade sobrenatural cujo ser se situava pelo menos a meio cami‑ nho entre o mortal e o divino? Mais do que a meio caminho, diria muita gente, pois Gibreel passara a maior parte da sua carreira única a encarnar, com perfeita convicção, as inúmeras divindades do subcontinente nesses filmes tão do agrado do público conheci‑ dos como «filmes teológicos». Fazia parte da magia da sua pessoa o facto de assim conseguir transpor as fronteiras religiosas sem ofensa. De pele azul, como Krishna, ele dançava, de flauta na mão, entre as belas gopis e as suas vacas de úberes pesados; com as pal‑ mas das mãos voltadas para cima, sereno, meditava (como Gau‑ tama) sobre o sofrimento da humanidade à sombra de uma árvore raquítica do estúdio. Nas raras ocasiões em que descia dos céus nunca ia muito longe, representando, por exemplo, o Grão Mogol e o seu ministro de astúcia lendária no clássico Akbar e Birbal. Ao longo de mais de uma década e meia ele representou, para cente‑ nas de milhões de crentes desse país onde, ainda hoje, a população humana não chega a ser três vezes maior do que a divina, o rosto mais aceitável, e instantaneamente reconhecível, do Ser Supremo. Para muitos dos seus fãs, a fronteira que separa o actor dos seus papéis deixara havia muito de existir. Os fãs, pois sim – e o próprio Gibreel? 1 Gopis – mulheres dos vaqueiros entre os quais Krishna foi criado como filho adop‑ tivo. Durante a noite quando Krishna ia tocar flauta para a floresta à luz da lua, as gopis seguiam‑no e, sem conseguirem resistir, punham‑se a dançar ao redor do «salvador», uma das encarnações de Vishnu. (N. dos T.) 29 Esse rosto. Na vida real, reduzido ao tamanho natural, no meio do comum dos mortais, revelava‑se como estranhamente pouco próprio de uma estrela. Aquelas pálpebras descaídas davam‑lhe às vezes um ar exausto. Além disso, o nariz tinha qualquer coisa de grosseiro, a boca era demasiado carnuda para ser forte, as orelhas de lóbulos compridos como frutas‑pães jovens e nodosos. O mais profano dos rostos, o mais sensual dos rostos. No qual, ultimamente, se tornara possível distinguir as marcas deixadas pela doença recente e quase fatal. E no entanto, apesar do aspecto profano e da debilitação, era um rosto inextri‑ cavelmente ligado ao sagrado, à perfeição, à graça: uma coisa de Deus. Gostos não se discutem, pronto. Seja como for, concorda‑ rão com certeza que não é grande surpresa detectar num tal actor (em qualquer actor, talvez, até mesmo em Chamcha, mas especialmente nele) a mania das reencarnações, como as de Vishnu das mil metamorfoses. A ressurreição é também uma coisa de Deus. Ou, enfim, pensando bem… nem sempre. Também há reen‑ carnações seculares. Gibreel Farishta nascera com o nome de Ismail Najmuddin em Poona, a britânica Poona, nos confins do império, muito antes da Pune de Rajneesh, etc. (Pune, Vadodara, Mumbai: até as cidades adoptam nomes artísticos hoje em dia.) Ismail, do nome da criança envolvida no sacrifício de Ibrahim, e Najmuddin, estrela da fé; foi um nome e pêras o que ele abando‑ nara quando passou a usar o do anjo. Mais tarde, quando o avião Bostan se encontrava nas mãos dos piratas do ar, e os passageiros, temendo pelo futuro, regre‑ diam em direcção ao passado, Gibreel confiou a Saladin Chamcha que o pseudónimo por si escolhido fora uma forma de prestar homenagem à memória da mãe falecida, «a minha mamã‑ zinha, Pateta, a minha única e incomparável Mamã, pois foi ela e mais ninguém que começou com toda esta história do anjo, era como ela me chamava, o seu anjinho pessoal, farishta, porque parece que eu era doce como o mel, acredites ou não, caramba, valia o meu peso em ouro.» 30 Poona não conseguiu retê‑lo; ainda na mais tenra infância foi levado para a cidade‑cadela, a sua primeira migração; o pai empregou‑se entre esses corredores de pés lépidos que inspira‑ riam futuros quartetos de cadeiras de rodas, os distribuidores de almoços ou dabbawallas de Bombaim. E Ismail, o farishta, seguiu, aos treze anos, as pegadas do pai. Gibreel, cativo a bordo do AI‑420, mergulhou em desculpá‑ veis rapsódias, fitando Chamcha com olhos brilhantes, expli‑ cando os mistérios do código dos corredores, suástica preta círculo vermelho traço ponto amarelo, percorrendo com os olhos do espírito todo o trajecto entre casa e escritório, esse sistema improvável mediante o qual dois mil dabbawallas entregavam diariamente mais de cem mil lancheiras, e nos dias maus, Pateta, talvez se perdessem umas quinze, éramos quase todos analfabe‑ tos, mas os sinais eram a nossa língua secreta. O Bostan sobrevoou Londres, com homens armados a patru‑ lhar os corredores, e as luzes da cabina dos passageiros tinham sido apagadas; mas a energia de Gibreel iluminava o escuro. No ecrã sujo onde, no início da viagem, a inevitabilidade voadora de Walter Matthau precedera lugubremente a ubiquidade de Gol‑ die Hawn, moviam‑se agora sombras, projectadas pela nostalgia dos reféns, e a mais nítida de todas era a desse adolescente magro, Ismail Najmuddin, o anjo da mamã com um boné à Gandhi, cor‑ rendo a levar os almoços de um extremo ao outro da cidade. O jovem dabbawalla esgueirava‑se agilmente pelo meio da multi‑ dão das sombras pois estava habituado a tais condições, pensa bem, Pateta, imagina, trinta a quarenta marmitas numa bandeja comprida de madeira posta à cabeça, e quando o comboio pára, uma pessoa tem à volta de um minuto para entrar ou sair aos empurrões, e depois correr pelas ruas, sempre a direito, pois, entre camiões autocarros motos bicicletas e sabe Deus que mais, um‑dois, um‑dois, almoço, almoço, os dabbas têm de passar, e na monção correr pela linha do comboio quando ele se avaria, ou com água até a cintura nalguma rua inundada, e havia bandos, Salad baba, a sério, bandos organizados de ladrões de dabbas, é uma cidade faminta, meu menino, o que é que julgas, mas nós podíamos bem com eles, estávamos em toda a parte, sabíamos 31 tudo, não havia ladrão que escapasse aos nossos olhos e ouvidos, nunca íamos à polícia, tratávamos nós dos nossos assuntos. À noite pai e filho voltavam exaustos para a sua barraca junto ao acesso ao aeroporto, em Santacruz, e quando a mãe de Ismail o via aproximar‑se, iluminado pelo verde vermelho amarelo dos jactos prestes a descolar, dizia que o simples facto de pôr os olhos nele era a realização de todos os seus sonhos, o que foi o primeiro indício de que havia em Gibreel qualquer coisa de muito espe‑ cial, pois desde o início, ao que parece, conseguia satisfazer os desejos mais secretos das pessoas sem saber de todo em todo como o fazia. O pai, Najmuddin Sénior, não parecia importar‑se por a mulher só ter olhos para o filho, por os pés do rapaz rece‑ berem afagos diários enquanto os seus ficavam por acariciar. Um filho é uma bênção e as bênçãos exigem que o contemplado se mostre grato por as ter recebido. Naima Najmuddin morreu. Um autocarro atropelou‑a, pronto, e Gibreel não estava lá para responder à sua súplica de vida. Nem pai nem filho proferiram uma única palavra de des‑ gosto. Silenciosamente, como se fosse o costume e o que deles se esperava, enterraram a tristeza em trabalho extra, empenhando ‑se num concurso tácito, quem conseguia transportar mais dab‑ bas à cabeça, quem conseguia obter mais contratos novos em cada mês, quem corria mais depressa, como se o maior trabalho equivalesse ao maior amor. Ao ver o pai à noite, com as suas veias emaranhadas, salientes no pescoço e nas têmporas, Ismail Naj‑ muddin não podia deixar de perceber a que ponto era grande o ressentimento que o velho armazenara contra ele, e como era importante para o pai derrotar o filho e assim recuperar a prima‑ zia usurpada nas afeições da sua mulher morta. Quando com‑ preendeu isto, o jovem abrandou o seu ritmo, mas o zelo do pai continuou inquebrantável, e em breve obteve uma promoção, passando a ser não já um simples corredor, mas um dos muqaddams organizadores do trabalho. Quando Gibreel fez dezanove anos, Najmuddin Sénior tornou‑se membro da guilda dos corredores, a Associação de Distribuidores de Almoços de Bombaim, e quando Gibreel fez vinte o pai estava morto, fulminado por um ataque que mais 32 parecera uma explosão. «Ele correu, correu, até não poder mais», disse o secretário‑geral da guilda, Babasaheb Mhatre em pessoa. «Pobre desgraçado, agora acabou‑se‑lhe o gás.» Mas o órfão sabia que não fora isso. Sabia que o pai correra enfim suficiente‑ mente depressa e durante o tempo bastante para dissipar as fron‑ teiras entre os mundos, que correra para fora da sua pele, lançando‑se nos braços da mulher, a quem provara, de uma vez por todas, a superioridade do seu amor. Há emigrantes para quem a partida é uma festa. Babasaheb Mhatre estava instalado num gabinete azul, atrás de uma porta verde, por cima de um bazar labiríntico, figura imponente, gordo como Buda, uma das grandes forças vivas da metrópole, possuindo o dom oculto de permanecer absoluta‑ mente imóvel, nunca saindo da sua sala, estando, todavia, pre‑ sente em todos os locais importantes e travando conhecimento com todas as pessoas que contavam para alguma coisa em Bom‑ baim. No dia seguinte àquele em que o pai do jovem Ismail atra‑ vessara a fronteira para ir ter com Naima, o Babasaheb chamou o rapaz à sua presença. «Então? Muito abalado, ou quê?» A res‑ posta, de olhos postos no chão: ora, obrigado, Babaji, estou bem. «Cala a boca», disse Babasaheb Mhatre. «A partir de hoje vens viver comigo.» Masmas, Babaji… «Não te ponhas com mas. Já informei a minha boa esposa. Já disse o que tinha a dizer.» Por favor, desculpe, Babaji, mas como o quê porquê? «Já disse o que tinha a dizer.» Nunca ninguém explicou a Gibreel Farishta por que é que o Babasaheb resolvera apiedar‑se dele e arrancá‑lo às ruas sem futuro, mas ao fim de algum tempo ele começou a ter as suas ideias sobre o assunto. A Sr.ª Mhatre era uma mulher magra, como um lápis ao lado da bola de borracha do Babasaheb, mas transbordava a tal ponto de amor maternal que deveria ter sido gorda como uma saca de batatas. Quando o Baba chegava a casa, metia‑lhe doces na boca com as suas próprias mãos, e à noite o recém‑chegado àquele lar ouvia os protestos do grande secretário ‑geral da adab: Larga‑me, mulher, eu sei‑me despir sozinho. Ao pequeno-almoço, obrigava Mhatre a engolir grandes colheradas de malte, e antes de ele sair para o trabalho escovava‑lhe o cabelo. 33 Eram um casal sem filhos, e o jovem Najmuddin compreendeu que o Babasaheb queria partilhar com ele aquele peso. Estranha‑ mente, porém, a Begum não tratou o jovem como uma criança. «Bem vês que ele já é crescido», disse ela ao marido quando o pobre Mhatre protestara: «Dá antes a maldita colher de malte ao rapaz.» Sim, já é crescido, «temos que fazer dele um homem, meu marido, não podemos tratá‑lo como a um bebé.» «Ora raios me partam», explodiu o Babasaheb, «então por que é que me fazes isso a mim?» A Sr.ª Mhatre rompeu em pranto. «Mas tu és tudo para mim», disse, chorando, «és o meu pai, o meu amante, o meu menino também. És o meu senhor e o meu bebé de colo. Se te desagrado não sei o que vai ser da minha vida.» Babasaheb Mhatre, dando‑se por vencido, engoliu a colher de sopa de malte. Era um homem bondoso, facto que disfarçava distribuindo insultos e fazendo muito barulho. Para consolar o jovem órfão falava‑lhe, no gabinete azul, acerca da filosofia do renascimento, convencendo‑o de que os pais já deviam estar a preparar‑se para entrarem de novo, algures, no mundo, a menos, é claro, que as suas vidas tivessem sido tão santas que tivessem já alcançado a derra‑ deira graça. Foi, por conseguinte, Mhatre quem iniciou Farishta em toda esta história da reencarnação, e não só da reencarnação. O Babasaheb era um médium amador, fazendo soar os pés das mesas e convocando espíritos por meio de copos de água. «Mas deixei‑me dessas coisas», disse ele ao seu protegido, com grande cópia de inflexões, gestos, caretas, tudo devidamente melodramá‑ tico, «depois de apanhar o maior susto da minha vida.» Um dia (contou Mhatre) o copo tinha sido visitado pelo mais prestável dos espíritos, uma criatura tão simpática que eu me lem‑ brei de lhe colocar algumas grandes questões. Deus existe?, e o copo, que até aí mais parecia um rato a correr de um lado para o outro, parou de repente no meio da mesa, sem um estremecimento sequer, nada de nada, nicles. Bom, está bem, disse eu, se não que‑ res responder a esta, faço‑te outra, e perguntei logo, sem mais aquelas, O Diabo existe? Então o copo – baprebap! – começou a tremer – tapa os ouvidos! – devagarinho a princípio, depois cada vez mais depressa, como gelatina, até que saltou – ai‑hai! – de cima 34 da mesa, pelo ar, caiu de lado e – o‑oh! – ficou feito em mil e um pedaços, estilhaçado. Acredites ou não, disse Babasaheb Mhatre ao seu pupilo, aprendi nesse mesmo instante a minha lição: não te metas, Mhatre, naquilo que não podes compreender. Esta história teve um profundo efeito sobre a consciência do jovem ouvinte, que ainda antes da morte da mãe se convencera de que existia um mundo sobrenatural. Às vezes, quando olhava à sua volta, especialmente no calor da tarde, quando o ar se fazia viscoso, o mundo visível, os seus contornos, habitantes e coisas, pareciam emergir à tona da atmosfera como uma profusão de ice‑ bergues quentes, e ele tinha a impressão de que tudo se prolon‑ gava para lá da superfície do ar xaroposo: pessoas, automóveis, cães, cartazes de cinema, árvores, nove décimos da realidade das coisas ocultas a seus olhos. Pestanejava e a ilusão desvanecia‑se, mas o rasto dessa ilusão nunca o abandonava. Gibreel cresceu acreditando em Deus, nos anjos, nos demónios, nos espíritos, nos djinns, tão naturalmente como se se tratasse de acreditar em car‑ ros de bois ou candeeiros de rua, e sentia como uma deficiência da visão o facto de nunca ter visto um fantasma. Sonhava desco‑ brir um oculista mágico a quem comprasse uns óculos de lentes verdes que corrigissem a sua lamentável miopia; veria então, atra‑ vés do ar denso e ofuscante, o mundo fabuloso do lado de lá. Da boca de sua mãe, Naima Najmuddin, ouvira um sem ‑número de histórias do Profeta, e se as versões dela comporta‑ vam certas inexactidões, ele não estava interessado em saber quais eram. «Que homem!», pensava. «Que anjo não desejaria falar com ele?» Às vezes, porém, surpreendia‑se a formular pen‑ samentos blasfemos, como por exemplo quando, involuntaria‑ mente, ao adormecer no seu divã na residência de Mhatre, começou, numa fantasia sonolenta, a comparar a sua própria condição com a do Profeta no momento em que, tendo ficado órfão e sem dinheiro, prosperava como administrador dos bens da viúva Khadija, acabando por casar também com ela. Ao mer‑ gulhar no sono, viu‑se a si próprio sentado num palanque coberto de rosas, com um sorriso tímido e forçado atrás do sari‑pallu que puxara pudicamente para o rosto, enquanto o seu novo marido, Babasaheb Mhatre, estendia amorosamente as mãos para ele, 35 procurando afastar o véu e olhar‑lhe as feições num espelho que tinha no regaço. Este sonho de casar com o Babasaheb despertou‑o, com as faces a escaldar de vergonha, e a partir daí começou a preocupar‑se com a sua natureza impura, capaz de criar visões tão aterradoras. De uma maneira geral, no entanto, a sua fé religiosa era uma coisa comedida, uma parte da sua pessoa que não exigia atenções mais especiais do que qualquer outra. Quando Babasaheb Mha‑ tre o levou para sua casa, isso reforçou a convicção do rapaz de que não estava sozinho no mundo, de que alguma coisa o tomava a seu cargo, pelo que não ficou demasiado surpreendido quando o Babasaheb o chamou ao gabinete azul na manhã do seu vigésimo primeiro aniversário e o despediu sem apelo nem agravo. «Estás despedido», insistiu Mhatre, radiante. «Dispenso os teus serviços, já mandei fazer as contas. Rua!» «Mas, tio…» «Cala a boca.» Então o Babasaheb deu ao órfão o maior presente da sua vida, comunicando‑lhe que lhe tinha marcado uma entrevista nos estú‑ dios do lendário magnate do cinema, D. W. Rama; uma audição. «É só para manter as aparências», disse o Babasaheb. «Rama é muito meu amigo e já discutimos o assunto. Um pequeno papel para começar, e depois é contigo. Agora desaparece da minha vista e pára com esses ares de humildade, que não te ficam nada bem.» «Mas, tio…» «Ora bolas, tu és um rapaz demasiado jeitoso para passares o resto da vida a acarretar almoços. E agora põe‑te a andar, vai lá ser um actor de cinema homossexual. Despedi‑te há cinco minutos.» «Mas, tio…» «Já disse o que tinha a dizer. Agradece à tua boa estrela.» Passou a ser Gibreel Farishta, mas durante quatro anos esteve longe de ser uma estrela, fazendo o seu aprendizado numa série de pequenos papéis espalhafatosamente cómicos. Permaneceu calmo, sem pressas, como se previsse o futuro, e a sua aparente falta de ambição fez dele uma espécie de marginal na mais egoísta 36 de todas as indústrias. Consideravam‑no estúpido ou arrogante ou ambas as coisas. E ao longo desses quatro anos de travessia do deserto, não beijou na boca uma única mulher. No ecrã, representava papéis de falhado, de idiota que ama a beldade e não percebe que nem daí a mil anos ela se dignará olhar para ele, de tio excêntrico, de parente pobre, de tonto da aldeia, de criado, de vigarista incompetente, personagens que nunca tinham direito a uma cena de amor. As mulheres corriam ‑no a pontapé, davam‑lhe bofetadas, implicavam com ele, riam à sua custa, mas nunca, no celulóide, o fitavam ou lhe dançavam à volta com olhares carregados de amor fílmico. Fora do ecrã, vivia sozinho em duas divisões nuas nas imediações do estúdio e esforçava‑se por imaginar qual seria o aspecto das mulheres quando tiravam a roupa. Para se distrair do tema do amor e do desejo, estudava, tranformando‑se num autodidacta omnívoro, devorando os mitos metamórficos da Grécia e de Roma, as encar‑ nações de Júpiter, o rapaz que se fez flor, a mulher‑aranha, Circe, tudo; e a teosofia de Annie Besant, e a teoria do campo unificado, e o incidente dos versículos satânicos no início da carreira do Profeta, e as intrigas políticas do harém de Maomé após o seu regresso triunfal a Meca; e o surrealismo dos jornais, onde as bor‑ boletas podiam voar para dentro da boca das raparigas, pedindo para serem consumidas, e as crianças nasciam sem rosto, e os rapazinhos sonhavam com pormenores impossíveis de anteriores encarnações, por exemplo numa fortaleza dourada cheia de pedras preciosas. Enchia a cabeça sabe Deus com quê, mas não podia negar que, a altas horas das suas noites de insónia, ficava cheio de uma coisa que nunca tinha sido usada, que ele não sabia como começar a usar, ou seja, uma coisa que era o amor. Vinham em sonhos atormentá‑lo mulheres insuportavelmente doces e belas, por isso ele preferia manter‑se acordado e obrigar‑se a recapitular um ou outro capítulo da sua cultura geral, de modo a mitigar o sentimento trágico de que era dotado de uma capaci‑ dade de amar muito superior ao normal, sem uma única pessoa no mundo a quem pudesse oferecê‑la. A sua grande oportunidade chegou com a voga dos filmes teológicos. Uma vez esgotada a fórmula dos argumentos basea‑ 37 dos nas puranas, às quais se acrescentava a mistura habitual de canções, danças, tios excêntricos, etc., todos os deuses do pan‑ teão tiveram sucessivamente as suas hipóteses de se tornarem estrelas. Quando D. W. Rama planeou uma produção baseada na história de Ganesh, nenhum dos nomes sonantes nas bilheteiras de então se mostrou disposto a passar um filme inteiro escondido numa cabeça de elefante. Gibreel agarrou logo a oportunidade. Foi o seu primeiro grande êxito, Gampati Baba, e de repente ei‑lo uma super‑estrela, mas uma estrela de tromba e enormes orelhas. Ao fim de seis filmes a representar o papel de deus de cabeça de elefante permitiram‑lhe tirar a espessa máscara pendular e cin‑ zenta, e usar em vez dela uma longa cauda peluda, para desempe‑ nhar o papel de Hanuman, rei dos macacos, num conjunto de filmes de aventuras que devia mais a certas séries baratas de tele‑ visão produzidas em Hong Kong do que ao Ramayana. Esta série de filmes conquistou tamanha popularidade que a cauda de macaco se tornaria um acessório de rigor para os jovens janotas da cidade nas festas frequentadas pelas meninas dos conventos, conhecidas como «foguetes» dada a presteza com que entravam na órbita da sociedade. Depois de Hanuman, Gibreel teve uma ascensão imparável, e o seu sucesso fenomenal reforçou a sua crença num anjo da guarda. Mas teve igualmente consequências bem mais deploráveis. (Estou a ver que, afinal de contas, sempre terei de revelar o segredo da pobre Rekha.) Ainda antes de trocar a cabeça de papelão pela cauda postiça, Gibreel começou a atrair irresistivelmente as mulheres. As sedu‑ ções da sua fama eram tão grandes que várias jovens senhoras lhe pediam para pôr a máscara de Ganesh enquanto fazia amor com elas, o que ele recusava por respeito pela dignidade do deus. Dada a inocência que lhe ficara da sua educação, não conseguia ainda nessa altura estabelecer a diferença entre quantidade e qua‑ lidade, e sentia, por isso mesmo, um grande desejo de compensar o tempo perdido. Tinha tantas parceiras sexuais que não raro esquecia os seus nomes mesmo antes de elas lhe saírem do quarto. Não só se transformou num galanteador da pior espécie como aprendeu também as artes da dissimulação, pois um homem que 38 faz de deus deve estar acima de todo o reparo. Com tanta arte escondeu a vida de escândalo e deboche que levava que o seu velho patrono, Babasaheb Mhatre, estendido no leito de morte uma década depois de ter lançado um jovem dabbawalla no mundo da ilusão, do dinheiro sujo e da luxúria, lhe pediria que se casasse para provar que era um homem. «Por amor de Deus, homem», lamentou‑se o Babasaheb, «quando eu te disse, naquela altura, para te fazeres homossexual, nunca pensei que me levasses a sério, afinal de contas o respeito pelos mais velhos também tem os seus limites!» Gibreel levantou as mãos aos céus e jurou que não era nenhum homossexual, que horror, e que quando apare‑ cesse a rapariga certa é claro que se sujeitaria da melhor vontade à cerimónia nupcial. «De que é que estás à espera? De alguma deusa celeste? Da Greta Garbo, da Gracekali, de quem?», excla‑ mou o velho, cuspindo sangue, mas Gibreel deixou‑o com o enigma de um sorriso que não lhe permitiria morrer com o espí‑ rito inteiramente sossegado. A avalanche de sexo que assim apanhou Gibreel Farishta con‑ seguiu enterrar tanto o seu maior talento que este esteve prestes a perder‑se para sempre – refiro‑me ao talento para amar genuína e profundamente, sem reservas, dom raro e delicado, que nunca tivera ainda ocasião de empregar. Por altura da sua doença, por pouco não esquecera já a ânsia de amor, que lhe havia dilacerado e revolvido a carne como um punhal de feiticeiro. Agora, no fim de cada noite gímnica, adormecia com facilidade e por longas horas, como se nunca houvesse sido atormentado por mulheres de sonho, como se nunca tivesse alimentado a esperança de entre‑ gar o coração. «O teu problema», disse Rekha Merchant quando se materiali‑ zou entre nuvens, «é que toda a gente te perdoou sempre, só Deus sabe porquê, sempre te deixaram ir em liberdade, os teus crimes sempre compensaram. Nunca ninguém te responsabilizou pelo que fizeste.» Ele não foi capaz de ripostar. «Uma dádiva de Deus», gritou ela, «Deus sabe de onde é que julgavas que vinhas, criatura saída da sarjeta, só Deus sabe que doenças de lá trouxeste.» 1 Trocadilho entre Grace Kelly e Kali, deusa hindu. (N. dos T.) 39 Mas as mulheres eram assim mesmo, pensava Gibreel nesse tempo, eram os recipientes onde ele se vazava, e quando as dei‑ xava, deviam compreender que era assim a sua natureza, e per‑ doar. E a verdade era que ninguém o censurava por se ir embora, pelos seus mil e um momentos de negligência, quantos abortos, perguntou Rekha na sua aberta entre nuvens, quantos corações destroçados. Ao longo de todos esses anos, fora assim beneficiá‑ rio da infinita generosidade das mulheres, beneficiário mas tam‑ bém vítima, pois o seu perdão possibilitava a mais profunda e a mais doce de todas as corrupções, ou seja a ideia de não estar a fazer nada de mal. Rekha: entrara na sua vida quando ele comprou o aparta‑ mento do último andar do Everest Vilas e ela se ofereceu, como vizinha e mulher de negócios, para lhe mostrar os seus tapetes e antiguidades. O marido estava num congresso mundial de indus‑ triais de rolamentos em Gotemburgo, na Suécia, e durante a sua ausência ela convidou Gibreel a visitar a sua casa, com frisos de pedra rendilhada de Jaisalmer e corrimãos de madeira trabalhada dos palácios de Keralan, e um chhatri ou cúpula mongol de pedra transformada em piscina com repuxos; ao servir‑lhe champanhe francês, Rekha encostara‑se às paredes forradas de mármore e sentia nas costas os veios frescos da pedra. Depois, enquanto ele beberricava o champanhe, ela pusera‑se a arreliá‑lo, com certeza os deuses não estão autorizados a tomar bebidas alcoólicas, e ele respondera com uma frase que lera um dia numa entrevista do Aga Khan: Ah, sabe, este champanhe e só fogo de vista, no ins‑ tante em que me chega aos lábios transforma‑se em água. Depois disso não passou muito tempo antes que ela lhe tocasse os lábios e lhe desfalecesse nos braços. Quando os filhos regressaram da escola com a criada, ela estava irrepreensivelmente vestida e pen‑ teada, sentada com ele na sala a revelar‑lhe os segredos do negó‑ cio dos tapetes, confessando que art silk queria dizer seda artificial e não artística, dizendo‑lhe que não se deixasse enganar pela brochura em que ela própria descrevia sedutoramente um tapete como sendo feito de lã da garganta de cordeirinhos, e que no fundo, sabe, quer dizer apenas lã de má qualidade, é a publici‑ dade, o que é que se há‑de fazer, as coisas são assim mesmo. 40 Ele não a amou, não lhe foi fiel, esquecia‑se dos seus aniversá‑ rios, escusava‑se a responder aos seus telefonemas, aparecia nas ocasiões mais inconvenientes, quando a casa estava cheia de con‑ vidados do mundo dos rolamentos para jantar e, como toda a gente, ela perdoou‑lhe. Mas o seu perdão não era a absolvição silenciosa, discreta que as outras ofereciam. Recka lamentava‑se desvairadamente, fazia‑lhe a vida num inferno, gritava com ele e acusava‑o de ser um inútil, um lafanga, um haramzada, um salah, e mesmo, in extremis, de ter cometido a impossível proeza de foder com a irmã que não tinha. Não lhe poupava nada, censurando‑o por ser uma criatura de superfícies, como um ecrã de cinema, e depois passava adiante e perdoava, apesar de tudo, e permitia‑lhe que ele lhe abrisse a blusa. Gibreel não conseguia resistir ao perdão operático de Rekha Merchant, ainda mais comovente dada a falsidade da própria posição dela, a sua infide‑ lidade ao rei dos rolamentos, que Gibreel se abstinha de mencio‑ nar, aceitando como um homem aquelas tareias verbais. Deste modo, enquanto as absolvições que recebia do resto das suas mulheres o deixavam indiferente e ele as esquecia assim que eram proferidas, Gibreel continuava sempre a regressar a Rekha, para ela o poder insultar, consolando‑o a seguir como só ela sabia. Depois esteve quase a morrer. Foi nas filmagens em Kanya Kumari, no extremo sul da Ásia, onde participava numa cena de luta que tinha por cenário esse ponto do Cabo Comorin onde três oceanos parecem lançar‑se uns contra os outros. Três séries de ondas avançaram do Oeste Leste Sul e colidiram numa estrondosa ovação de mãos aquosas no preciso instante em que Gibreel apanhou um murro no queixo, timing perfeito, e ele perdeu logo os sentidos, caindo de costas na espuma trioceânica. Não tornou a levantar‑se. A princípio toda a gente atribuiu as culpas ao duplo Eustace Brown, o gigante inglês que dera o murro. Este protestou vee‑ mentemente. Pois não era ele o mesmo indivíduo que contrace‑ nara com o padre N. T. Rama Rao nos seus múltiplos papéis em filmes teológicos? Pois não levara ele a perfeição à arte de con‑ ferir verosimilhança aos combates com o velho sem o magoar? Porventura se queixara alguma vez do facto de ntr nunca 41 controlar os seus murros, de forma que ele, Eustace, acabava invariavelmente por ficar todo azul e negro, espancado por um velhinho enfezado que ele podia perfeitamente ter comido ao pequeno‑almoço a acompanhar as torradas? Pois bem, disses‑ sem lá se ele tinha uma vez que fosse perdido as estribeiras? Então como era? Como é que alguém podia pensar que ele magoara o imortal Gibreel? – Mesmo assim despediram‑no e a polícia, pelo sim pelo não, trancou‑o numa cela. Mas não fora o murro que abatera Gibreel. Depois de a estrela ter sido transportada para o Breach Candy Hospital de Bombaim num avião da Força Aérea posto à disposição do estúdio para o efeito; depois de uma série de exames exaustivos ter dado resul‑ tados quase nulos; e enquanto ele jazia inconsciente, moribundo, com uma contagem de plaquetas que descera dos quinze normais para uns temíveis quatro vírgula dois, o porta‑voz do hospital enfrentou a imprensa nacional na ampla escadaria branca do Breach Candy. «É um mistério estranhíssimo», confessou ele. «Chamem‑lhe, se quiserem, um acto de Deus.» Gibreel Farishta começara a ter, sem qualquer motivo apa‑ rente, hemorragias em todas as vísceras, e estava, muito simples‑ mente, a esvair‑se em sangue por debaixo da pele. No pior momento, o sangue desatou a correr‑lhe do recto e do pénis, e dir ‑se‑ia que a qualquer momento irromperia torrencialmente pelo nariz e pelos ouvidos e pelo canto dos olhos. Sangrou durante sete dias, e recebeu transfusões, e todos os agentes coagulantes conhe‑ cidos da ciência médica, incluindo uma forma concentrada de veneno para ratos, e embora o tratamento resultasse numa ligeira melhoria os médicos deram‑no como um caso perdido. A Índia inteira estava à cabeceira de Gibreel. O seu estado era o tema de abertura de todos os noticiários da rádio, era pretexto para flashes noticiosos de hora a hora na rede nacional de televi‑ são, e a multidão reunida em Warden Road era tão grande que a polícia se viu obrigada a dispersá‑la à cacetada e com gás lacrimo‑ génio, tendo insistido em servir‑se deste último apesar de o meio milhão de carpidores e carpideiras já estar, antes disso, lacrime‑ jante e gemebundo. A primeira‑ministra cancelou os seus com‑ promissos e meteu‑se num avião para o ir visitar. O filho dela, o 42 piloto da aviação comercial, passou longos minutos sentado no quarto de Farishta, apertando a mão do actor entre as suas. Instalou‑se em toda a nação um clima de a apreensão, pois se Deus consumara um tal acto de represálias contra a sua encarna‑ ção mais famosa, que sorte reservaria ao resto do país? Se Gibreel morresse, quanto tempo lhe sobreviveria a Índia? Nas mesquitas e templos da nação, congregações reunidas oravam, não apenas pela vida do actor moribundo, mas pelo futuro e por si próprias. Quem não foi visitar Gibreel ao hospital? Quem nunca escre‑ veu um bilhete, nem telefonou, nem mandou flores ou lancheiras com deliciosos cozinhados caseiros? Enquanto tantas amantes lhe enviavam, sem sombra de pudor, cartões com votos de resta‑ belecimento e pasandas de borrego, quem é que, amando‑o mais do que qualquer outra pessoa, guardou para si os seus sentimen‑ tos, evitando levantar as suspeitas do rolamento de seu marido? Rekha Merchant revestiu de ferro o seu coração e continuou a executar os gestos da vida de todos os dias, brincando com os filhos, tagarelando com o marido, desempenhando sempre que necessário o seu papel de anfitriã, e nunca, nem uma só vez, reve‑ lando a desolação da sua alma devastada. Gibreel recuperou. A recuperação foi tão misteriosa como a doença, e igualmente rápida. Também ela seria considerada (pelo hospital, pelos jorna‑ listas, pelos amigos) um acto do Ser Supremo. Foi decretado um feriado nacional; de lés a lés do país houve fogos‑de‑artifício. Mas quando Gibreel recobrou forças, tornou‑se claro que mudara, mudara num grau surpreendente, porque perdera a fé. No dia em que teve alta do hospital atravessou, escoltado pela polícia, a enorme multidão que se reunira para celebrar tanto a sua própria redenção como a dele; entrou para o seu Mercedes e pediu ao motorista que escapasse a todos os veículos que o perseguiam, o que levou sete horas e cinquenta e um minutos a conseguir, e quando esta operação chegou ao fim congeminara já o que era preciso fazer. Saiu da limusina diante do hotel Taj e, sem olhar à direita nem à esquerda, entrou directamente na grande sala de jantar, com a mesa do bufete ajoujada sob o peso dos manjares proibidos, de que ele encheu o prato, as salsichas de porco de Wiltshire e o presunto 43 fumado de York e as tiras de toucinho entremeado de sabedeusonde, os bifes de presunto da descrença e os pés de porco do lai‑ cismo; e depois, ali mesmo, de pé no meio da sala, enquanto surgiam, sabe‑se lá de onde, fotógrafos e mais fotógrafos, começou a comer o mais depressa possível, atafulhando tão rapidamente a boca de por‑ cos mortos que lhe pendiam dos cantos da boca fatias de toucinho. Durante a sua doença passara todos os minutos em que esti‑ vera consciente a invocar Deus, todos os segundos de cada minuto. Ó Alá cujo servo aqui está a esvair‑se em sangue não me abando‑ nes agora depois de tanto teres velado por mim. Ó Alá, envia‑me algum sinal, alguma pequena prova do teu favor, para que eu possa encontrar em mim a força de curar este mal. Ó Deus benevolente, Deus misericordioso, fica comigo nesta minha hora de aflição, de tão grande aflição. Depois ocorrera‑lhe a ideia de que estava a ser castigado, e durante algum tempo isso permitiu‑lhe suportar a dor, mas passado algum tempo começou a enfurecer‑se. Chega, Deus, clamavam as palavras que não dizia, por que é que hei‑de morrer se não matei, afinal és vingança ou és amor? A raiva contra Deus acompanhou‑o um dia inteiro, mas depois desvaneceu‑se, e em seu lugar surgiu um vazio terrível, o isolamento, quando Gibreel se apercebeu de que estava a falar com uma parede, que não estava ali ninguém para o ouvir, e então sentiu‑se mais tolo que nunca em toda a sua vida, e começou a suplicar para o vazio, ó Alá, não dei‑ xes de estar aí, que diabo, não deixes de existir. Mas não sentiu nada, nada nada, e depois um dia descobriu que já não precisava de que houvesse alguma coisa que sentisse. Nesse dia de metamor‑ fose, a doença modificou‑se e teve início o restabelecimento. E, para provar a si próprio a inexistência de Deus, ele estava agora no meio da sala de jantar do hotel mais famoso da cidade, com porcos a caírem‑lhe da boca para fora. Levantou os olhos do prato e viu que uma mulher o obser‑ vava. O seu cabelo era de um louro quase branco, e a sua pele tinha a cor e a translucidez do gelo das montanhas. Soltou uma gargalhada e virou‑lhe as costas. «Mas será que não percebe?», gritou‑lhe ele, cuspindo frag‑ mentos de salsicha pelos cantos da boca. «Não houve raios nem trovões. É isso que importa.» 44 Ela veio de novo postar‑se diante dele. «Você esta vivo», disse. «Recuperou a sua vida. Isso é que importa.» Gibreel disse a Rekha: no instante em que ela se voltou e começou a caminhar para mim, apaixonei‑me. Alleluia Cone, escaladora de montanhas, vencedora do Everest, loura yahudan, rainha do gelo. Desafiou‑me: muda a tua vida, ou não te serviu de nada tê‑la recuperado?, e eu não pude resistir. «Tu e as tuas histórias de reencarnação», disse Rekha num tom condescendente. «Os disparates que vão nessa cabeça. Sais do hospital onde estiveste às portas da morte e a coisa sobe‑te à cabeça, meu doido, tinhas logo que arranjar uma aventura qual‑ quer, e pronto, ela apareceu ali como num passe de mágica, a loura donzela. Não penses que eu não sei como tu és, Gibbo, e agora diz lá, queres que eu te perdoe ou quê?» Não é preciso, disse ele. Saiu do apartamento de Rekha (a proprietária chorava, deitada com a cara no chão); e nunca mais lá entrou. Três dias depois de o conhecer com a boca cheia de carnes impuras, Allie meteu‑se num avião e partiu. Três dias fora do tempo ao abrigo de um letreiro «Não incomode», mas ao fim desses dias concordaram que o mundo era real, que o que era possível era possível e o impossível, breve encontro, navios que se cruzam, amor numa sala para passageiros em trânsito. Depois de ela partir, Gibreel repousou, tentou ignorar o seu desafio, decidiu voltar à vida normal. Lá por ter perdido a fé, isso não queria dizer que não pudesse fazer o seu trabalho, e apesar do escândalo das fotografias a comer presunto, o primeiro escândalo alguma vez associado ao seu nome, assinou vários contratos e vol‑ tou a trabalhar. E depois, certa manhã, uma cadeira de rodas ficou vazia e ele desapareceu. Um passageiro de barba, um certo Ismail Najmuddin, tomou o voo AI‑420 para Londres. O 747 tinha o nome de um dos jardins do Paraíso, não Gulistan. mas Bostan. «Para se 45 nascer de novo», disse muito mais tarde Gibreel Farishta a Sala‑ din Chamcha, «é preciso primeiro morrer. Eu, por mim, só expi‑ rei até meio, mas fi‑lo em duas ocasiões, hospital e avião, por isso somando as duas já tenho a conta. E agora, meu amigo Pateta, aqui estou à tua frente na Digna Londres, Vilayet, regenerado, um homem novo com uma vida nova. Caramba, Pateta, não achas que é uma coisa estupenda?» Por que é que ele partiu? Por causa dela, do desafio dela, da novidade, do ímpeto da união entre ambos, por causa da inexorabilidade de uma coisa impossível que insistia no seu direito à existência. E, ou, talvez: porque depois de ele comer os porcos teve início o castigo, um castigo nocturno, uma punição de sonhos. 46