antes do furacão: o mardi gras de um folião brasileiro em nova orleans
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antes do furacão: o mardi gras de um folião brasileiro em nova orleans
Fred Góes ANTES DO FURACÃO: O MARDI GRAS DE UM FOLIÃO BRASILEIRO EM NOVA ORLEANS Fotografias de Graça Coutinho antes do furacao v4.indd 3 19.02.08 17:41:06 introdução: VESTINDO A FANTASIA O que aqui se narra são experiências pessoais, intransferíveis, de um ano de pesquisa sobre o Mardi Gras1 e minha vivência em Nova Orleans. Portanto, não é meu propósito chegar a conclusões abrangentes, pseudo-definitivas sobre o carnaval que se realiza naquela cidade. Além disso, as considerações sobre Nova Orleans aqui apresentadas dizem respeito, exclusivamente, ao que pude observar no curto espaço de tempo de um ano. Digo isto porque Nova Orleans tem uma configuração cultural tão abrangente, tão cheia de sutilezas, onde se desenvolveu uma sociedade tão singular em sua multiplicidade de influências, que seria leviano pretender, com meu olhar estrangeiro, dar conta da pluralidade desse universo. Assim sendo, meu intento é, sob a influência de Jean Baptiste Debret,2 um dos artistas convidados por dom João VI para vir ao Brasil, na primeira metade do século xix, com o grupo que ficou conhecido como a missão Francesa, registrar aspectos a meu ver relevantes e, por que não?, pitorescos, dessa 1 Palavra do francês que significa “terça-feira gorda”. Passou a designar genericamente as celebrações carnavalescas em Luisiana desde os tempos da colonização francesa. 2 DEBRET, Jean Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, ou Séjour d’un Artiste Français au Brésil depuis 1816 jusqu’à 1831. Paris: Firmin Didot, 1834-1839. 3 t. 11 antes do furacao v5.indd 11 22.02.08 16:27:16 Fred Góes experiência. Com os mesmos olhos exóticos dos viajantes que registraram e continuam registrando em diários suas impressões, olhos curiosos em captar o mundo do outro, procurei tirar o maior proveito possível dessa oportunidade de aprofundar minha pesquisa no que é meu objeto de interesse: as diferentes formas de celebração do carnaval. A bolsa No início de 2003, candidatei-me e recebi uma das duas prestigiosas bolsas de estudo, na área de humanidades, do programa “Heranças compartilhadas: estudos comparativos em criatividade e performance no golfo do Mississipi e região do Caribe”. Pela primeira vez, eram oferecidas pela fundação Rockefeller junto ao centro de estudos latino-americanos Roger Thayer Stone, da universidade de Tulane, em Nova Orleans. A vigência da bolsa era de dois semestres letivos, o segundo de 2003 e o primeiro de 2004. O centro de estudos franqueava-me todas as facilidades para que desenvolvesse a pesquisa. Tinha a minha disposição o arquivo Hogan de jazz, a extraordinária biblioteca da universidade, como também uma jovem mestranda, Denise Frazier, como pesquisadora auxiliar. Além do acesso a livros, periódicos, vídeos, gravações, era fundamental sair em campo, conhecer outros acervos e, especialmente, estudiosos do assunto, participantes e organizadores do carnaval, os sujeitos da festa. A princípio, julguei que aí residiria a maior dificuldade, já que, recém-chegado, deveria criar mecanismos para me aproximar do universo carnavalesco. Além disso, não fazia parte do meu 12 antes do furacao v4.indd 12 19.02.08 17:41:07 Antes do furacão: o Mardi Gras de um folião brasileiro em Nova Orleans rol de expectativas a possibilidade de contar com o auxílio ou empenho de desconhecidos. Para minha surpresa, no entanto, o que ocorreu foi exatamente o contrário. As portas foram se abrindo de forma quase mágica. A cada contato, era feita uma nova conexão, uma nova indicação e, como numa corrente humana, numa rede, fui conhecendo pessoas estratégicas que obtinham informações preciosas para o desenvolvimento do trabalho. O dado curioso, que persistiu durante todo o processo, foi o fato de que sempre que o objeto da pesquisa era informado o interlocutor impreterivelmente sorria e, na seqüência, fazia alguma observação relativa à originalidade do estudo, com frases do tipo: “Poxa, você está juntando prazer com trabalho!”, “Como eu não pensei isso antes?”, “Nossa, isso é uma grande idéia!”. Parecia que eu havia descoberto o ovo de Colombo. Evidenciava-se claramente, nas primeiras reações dos interlocutores, que a celebração do Mardi Gras tinha especial importância para aquela comunidade, não importando qual o estrato social ou origem daqueles com quem eu conversava. E a reação seguinte à surpresa inicial era a de se colocarem à disposição para ajudar de alguma forma, intermediando a apresentação de algum conhecedor do tema ou membro de alguma associação carnavalesca, sugerindo um texto específico, enfim, dando indicações para minha atuação. A partir disso me dei conta de que na minha predisposição para o estabelecimento de relações estavam previstos contatos formais, pragmáticos, frios, e não, em muitos casos, laços de amizade afetivos e calorosos. Eu tanto me enganara, como qualquer um que pré-conceitua, quanto ficava evidente, de imediato, que Nova Orleans tem muito mais a ver com a Bahia do que com o resto dos Estados Unidos, em termos de 13 antes do furacao v4.indd 13 19.02.08 17:41:07 Fred Góes hospitalidade, de calor humano, de simpatia, de apimentado tempero, de ritmo e ginga dos afro-descendentes e de uma energia astral mágica, encantatória, que só a palavra “axé” é capaz de exprimir. O projeto O programa da bolsa previa que os projetos concorrentes versassem sobre temas que privilegiassem o compartilhamento de heranças culturais das regiões do golfo do Mississipi e do Caribe com as Américas, através de estudos comparativos. Minha proposta se enquadrava com precisão no solicitado. Já no título pode-se comprovar tal fato: “O Mardi Gras de Nova Orleans e o carnaval do Rio de Janeiro: similitudes e diferenças nos reinos de rex e momo”. A idéia principal residiria, portanto, na compreensão das relações entre o Mardi Gras de Nova Orleans e o carnaval do Rio de Janeiro, como referência mater do carnaval brasileiro, através de uma perspectiva histórico-cultural para o estabelecimento das semelhanças e diferenças mais expressivas das duas formas de celebração. Sendo manifestações nascidas em contextos culturais diversos, tanto o Mardi Gras quanto o carnaval carioca se fixam na segunda metade do século xix, sob inspiração dos carnavais europeus, em especial o carnaval burguês parisiense, tendo as krewes (associações carnavalescas) e as grandes sociedades como expressão “civilizada” oficial da população branca. Em contrapartida, os grupos e blocos negros fantasiados de índios, em ambas as celebrações, se apresentam como formas não 14 antes do furacao v4.indd 14 19.02.08 17:41:07 Antes do furacão: o Mardi Gras de um folião brasileiro em Nova Orleans oficiais, que parecem revelar, sob aspectos diversos, tanto a possibilidade de afirmação de pertencimento dos afro-descendentes ao continente americano, através da identificação com os aborígines, os “donos da terra”, quanto uma contraposição dissimulada ao carnaval branco, fato evidente em Nova Orleans. Não importa o segmento social e tampouco a etnia, o certo é que a carga significativa da festa tem tanto peso cultural para os nova-orleaneses quanto tem para nós brasileiros. O Mardi Gras é uma celebração sulista, em especial do estado de Luisiana, ainda que seja comemorado também em Mobile, no Alabama, por exemplo, antes mesmo de Nova Orleans. Mobile estabelece o início de sua tradição carnavalesca em 1704, ano em que Nicholas Langois funda a Société Saint Louis, protótipo das sociedades secretas, krewes, que posteriormente serão instituídas em Nova Orleans. As motivações Foi em 1978, no meio da rua, em plena folia baia na, na praça Castro Alves, em Salvador, atrás do trio elétrico, que caiu a ficha do que viria a ser a minha dissertação de mestrado, o processo de criação e de desenvolvimento do primeiro trio elétrico, o de Dodô e Osmar. O texto foi publicado em forma de livro, em 1982, logo depois que a dissertação foi defendida, e se tornou obra de referência sobre o carnaval baiano, com o título de O país do carnaval elétrico.3 A partir daí, segui pesquisando sobre carnaval, publicando artigos, ensaios, promovendo cursos, proferindo palestras etc. No ano de 2000, quando da comemoração do jubileu de ouro do trio elétrico, 3 GÓES, Fred. O país do carnaval elétrico. Salvador: Editora Corrupio, 1982. 15 antes do furacao v4.indd 15 19.02.08 17:41:08 Fred Góes 4 GÓES, Fred. 50 anos de trio. Salvador: Editora Corrupio, 2000. 5 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 4 a edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. foi lançado mais um livro de minha autoria, em que, além da contextualização histórica, de rica iconografia e luxuosa programação gráfica, foram incluídas entrevistas exclusivas com as principais estrelas da música baiana ligadas ao universo do trio. O título deste trabalho é 50 anos de trio. 4 Sempre considerei o carnaval uma expressão singular de nossa cultura e que, por meio dele, que tem marcas claras de subversão do cotidiano, do tempo, da ordem, podem-se observar de maneira privilegiada traços da fisionomia de nossa polifacetada identidade cultural. E um dos meus interesses foi o de também tentar localizar no Mardi Gras marcas de identidade, sendo que lá flagrei, de forma recorrente, que, no lugar de subversão, confirmavam-se ou eram realçados certos aspectos comportamentais menos evidentes no dia-a-dia. A primeira motivação para o encaminhamento de minha proposta de pesquisa em Nova Orleans se deu ao observar que a publicação mais difundida entre nós sobre o Mardi Gras, e provavelmente a única então, era o capítulo “Carnavais da igualdade e da hierarquia”, do livro Carnavais, malandros e heróis, do professor Roberto Damatta. 5 No livro mencionado, que vem a público em 1979, Damatta estabelece relações entre o carnaval brasileiro e o nova-orleanês, tendo, como referência, o trabalho do antropólogo americano Munro Edmonson, publicado em 1956. Havia, portanto, um gap histórico significativo a ser observado. Além disso, o professor Damatta não vivenciara a experiência do Mardi Gras quando da publicação do texto. Fui, então, pesquisar, em loco, como o Mardi Gras se configura hoje, tendo em mente que as festas, ou celebrações públicas, por estarem vivas, estão sujeitas a mudanças, a transformações com o tempo. Tal fato está 16 antes do furacao v4.indd 16 19.02.08 17:41:08 Antes do furacão: o Mardi Gras de um folião brasileiro em Nova Orleans precisamente indicado por Maria Clementina Pereira Cunha, na apresentação da coletânea de ensaios de história social da cultura, por ela organizada, intitulada Carnavais e outras f(r)estas, quando observa: Dionísio, Baco, Afrodite e Eros, desde seu antigo Pantheon, assumiram máscaras e rostos muito diferentes ao longo do tempo. Longe de constituírem ocasiões dotadas de alguma espécie de herança imemorial, elas (as festas) têm — mesmo sob uma aparente semelhança — dia, hora, lugar, sujeitos vários e predicados transitórios, significados mutantes e (inevitavelmente) polissêmicos, capazes de expressar a mudança e o movimento.6 Em “Carnavais da igualdade e da hierarquia” Damatta toma como parâmetro de comparação o carnaval das krewes, isto é, o carnaval “oficial”, praticado predominan te men te pela população branca. Não menciona a existência de um carnaval negro, o dos Mardi Gras Indians (Índios do Mardi Gras) ou dos Black Indians (Índios Negros), como preferem chamar os insiders (os de dentro). E isso se dá, provavelmente, porque o texto de Edmonson, no qual Damatta se baseia, se restringe ao lado branco, mais difundido, do Mardi Gras. Nos anos 1950, quando Edmonson escreveu o ensaio, os Índios do Mardi Gras se apresentavam restritamente nas áreas negras da cidade, de forma muito reservada, quase secreta, como até hoje, tempos de direitos civis igualitários, ainda ocorre. Além disso, era uma manifestação conhecida como extremamente violenta, o que efetivamente era, face às desavenças entre as tribos. Some-se o fato de que, no período em que Edmonson escreveu sobre o Mardi Gras, estava-se vivendo um momento 6 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura. Campinas; São Paulo: Editora da Unicamp; Cecult, 2002. p. 12. 17 antes do furacao v4.indd 17 19.02.08 17:41:08 Fred Góes de acirrada luta pelos direitos civis, e Nova Orleans se caracterizava como uma cidade racialmente cindida. A expressão carnavalesca negra não era, portanto, objeto de interesse no universo acadêmico branco. A segunda motivação surgiu com a leitura do ensaio de Reid Michell, intitulado “Significando: carnaval afrocreole em New Orleans do século xix e início do xx”, 7 que consta da já mencionada coletânea organizada por Maria Clementina Pereira Cunha. Mais uma vez, deparava-me com um gap histórico e meu interesse recaía sobre a maneira como o carnaval afrocreole se configurava agora, no início do século xxi. 7 Id., ibid., p. 41-66. 18 antes do furacao v4.indd 18 19.02.08 17:41:08