Outubro – Dezembro/2014
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Outubro – Dezembro/2014
EDITORIAL Relatos de caso: o passo inicial para escrita científica Desde Hipócrates, relatos de casos representam uma importante fonte de ensino e pesquisa em medicina. No início do século passado, Sir William Osler considerou os relatos de casos que foram registrados com rigor como um valioso recurso de educação e pesquisa. Harvey Cushing, indiscutivelmente o maior neurocirurgião do século XX e biógrafo de Osler, considerava o relato de caso como o mais velho, o mais básico e um dos mais valiosos meios de informação e ensino em medicina (1). Nos últimos anos, relatos de casos ganharam status de ‘segunda classe de publicação’ aos olhos dos editores e leitores experientes. Muito desta condição se deve ao fato do relato de caso ser uma desculpa para uma revisão de literatura despretensiosa, sem propósito claro e sem uma mensagem educacional para o leitor (2). Um relato de caso é definido e julgado pela importância, clareza e praticidade de sua mensagem educativa. A razão do relato de caso ter atingido esta pouca importância se deve ao fato de esses atributos serem ignorados. Nesta edição, estamos dando prioridade a relatos de caso e aproveitamos a ocasião para refletir sobre esta forma de artigo científico, muito comum em nossa revista e que representa o primeiro passo de muitos de nossos autores no terreno da divulgação científica. Relatos de casos e série de casos não fornecem evidências com a mesma força que a pesquisa clínica. Eles são altamente sensíveis em identificar peculiaridades de forma qualitativa, mas pouco específicos para confirmação quantitativa. Ensaios clínicos randomizados são desenhados para evitar vieses; por isso mesmo, eles não são o delineamento adequado para identificar o novo. Relatos de casos e série de casos têm grande potencial para estimular a aprendizagem do novo, mas carecem de garantias contra possíveis vieses. No entanto, não há nenhuma outra maneira de detectar novas ideias e, sem essas, cessa todo avanço da medicina (3). O relato de caso, idealmente, deve ser estimulante e agradável de ler e ajudar o leitor a reconhecer e lidar com uma questão ou um problema semelhante que surgir em sua própria prática. É essencial para a elaboração do relato de caso que o postulado central do mesmo deve ser claro, assim como a mensagem primária. Redação fluente, estilo e estrutura são essenciais, o relato de caso é escrito para o leitor e não para o autor. Um bom relato de caso é um artigo científico, por isso precisará da dedicação de tempo e de esforço. Um conhecimento profundo da literatura especializada aumenta as chances de uma exposição convincente. Na Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 265-266, out.-dez. 2014 discussão, é importante considerar possíveis confundidores, que possam influenciar a evolução do caso descrito (4). O que merece ser publicado como um relato de caso? Podemos arrolar algumas condições, a saber: 1) condição totalmente original, por exemplo, uma nova doença; 2) condição rara e de relato anterior ocasional; 3) apresentação incomum de uma doença comum; 4) associação inesperada entre sintomas/sinais relativamente incomuns; 5) impacto de uma doença em outra; 6) evento inesperado no decurso de um tratamento; 7) impacto de um regime de tratamento de uma condição em outra doença; 8) inesperada complicação de tratamento ou procedimento; 9) novo tratamento; 10) erros não intencionais no manuseio de pacientes (5). A lição que o leitor irá aprender e se beneficiar depois de ler o relato – a mensagem educativa – deve ser clara e sucinta. A seguir, alguns exemplos de temas para mensagens educativas: 1) alertar que o diagnóstico pode ser feito mais facilmente no futuro; 2) lançar uma nova luz sobre a possível etiologia/patogênese de uma condição ou complicação; 3) ilustrar um princípio novo, ou apoiar ou refutar a teoria atual; 4) elucidar uma condição clínica anteriormente incompreendida ou resposta a um tratamento; 5) informar sobre como um problema pode ser previsto e evitado no futuro. Uma vez selecionado o que é mais adequado, o caminho fica claro para produzir um bom relato (5). A estrutura de um relato de caso compreende: Introdução; Descrição do caso; Discussão e Comentários finais, em que são enunciadas as conclusões e recomendações. Não se recomenda introdução longa e revisão extensa da literatura. A discussão é o momento de contrapor os dados da revisão bibliográfica com os achados do caso relatado. Os aspectos encontrados assim como aqueles que não foram encontrados devem ser confrontados com os dados da literatura, com ênfase na mensagem educativa proposta. Ilustrações e fotografias devem obedecer exatamente aos requisitos do jornal; isso inclui tamanho, coloração, textura e rotulagem. Um relato de caso é uma produção científica simples, que não requer uma equipe de pesquisa com vários membros, portanto a autoria deve ficar restrita àqueles que estiveram mais próximos do caso e que tiveram participação ativa na condução do mesmo. O consentimento do paciente para o relato é imprescindível e deve ser obtido por meio da assinatura do paciente ou seu representante legal do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, referendado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição 265 RELATOS DE CASO: O PASSO INICIAL PARA ESCRITA CIENTÍFICA Fagundes na qual o paciente foi atendido. A não observância deste quesito implicará em rejeição do manuscrito pela maioria dos periódicos científicos. Relatos de casos, em virtude de sua simplicidade, são ideais para o escritor iniciante. A tentação é escrever qualquer coisa que pareça interessante na esperança de ser publicado. Por essa ótica, descobre-se que isso representará a frustração de ter o manuscrito recusado. Relatos de casos e série de casos têm seu lugar no progresso da ciência médica. Eles permitem a descoberta de novas doenças e efeitos adversos ou benéficos, bem como o estudo dos mecanismos das doenças, além de desempenharem papel importante na educação médica. Relatos de casos e série têm uma alta sensibilidade para a detecção de novidade e sugerir ideias novas. Ao mesmo tempo, bons relatos de caso exigem foco definido para tornar explícito 266 para o público por que uma observação particular é importante no contexto do conhecimento médico existente. RENATO B. FAGUNDES, MD PhD Editor Executivo REFERÊNCIAS 1. Cushing HW. The life of Sir William Osler. Oxford University Press 1926 Inc, USA. 2. Fox R. Writing a case report: an editor’s eye view. Hosp Med. 2000;61(12):863-4. 3. Vandenbroucke JP. Case reports in an evidence-based world. JRSM. 1999;92(4):159-63. 4. Kienle GS, Kiene H. Methodik der Einzelfallbeschreibung. Der Merkurstab 2009;62(3): 239-42. 5. Chelvarajah R, Bycroft J. Writing and publishing case reports: the road to success. Acta Neurochirur. 2004;146(3):313-6. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 265-266, out.-dez. 2014 RELATO DE CASO Mielinólise pontina em paciente etilista Pontine myelinolysis in an alcoholic patient Bianca Astrogildo de Freitas1, Camila Muratt Carpenedo1, Maura Cirne Rodrigues2, Guilherme Brandão Almeida3, Fernanda Dias Almeida4, Marcos Henrique Mattos de Sá5 RESUMO A Mielinólise Pontina (MP) define-se como uma lesão desmielinizante, associada a quadro de tetraparesia e incapacidade na fala, frequentemente relacionada a distúrbios eletrolíticos e observada em pacientes etilistas. Relatamos o caso de um paciente com diagnóstico de MP firmado por ressonância magnética. UNITERMOS: Mielinólise Central Pontina, Síndrome de Desmielinização Osmótica, Alcoolismo, Hiponatremia. ABSTRACT Pontine myelinolysis (MP) is defined as a demyelinating lesion associated with tetraparesis and disability in speech, often related to electrolyte disturbances and observed in alcoholic patients. Here we report the case of a patient diagnosed with MP through MRI. KEYWORDS: Central Pontine Myelinolysis, Osmotic Demyelination Syndrome, Alcoholism, Hyponatremia. INTRODUÇÃO A Mielinólise Pontina (MP) define-se como uma lesão desmielinizante do encéfalo (1), que atinge principalmente a ponte, podendo comprometer outras regiões, caracterizando, dessa forma, a Mielinólise Extra-Pontina (MEP). Pode ocorrer esporadicamente em todas as idades, na mesma proporção entre os dois sexos, e sua incidência exata ainda é desconhecida. Está relacionada, principalmente, à correção abrupta de hiponatremia, mas quando não associada a distúrbios hidroeletrolíticos, pode ser observada em pacientes com fatores de risco, como abuso de álcool e drogas, desnutrição, doença hepática, câncer e doença de Addison (2). Sua apresentação clínica, muito variável, inclui um quadro de paralisia pseudobulbar, tetraparesia, e alterações agudas no estado mental, variando de queda do nível de consciência até síndrome do encarceramento, coma e mor1 2 3 4 5 te (3). Pode haver melhora significativa do quadro após algumas semanas, e o prognóstico parece independer do grau de anormalidades neurológicas (4). Através da Ressonância nuclear magnética crânio-encefálica (RNM-CE), exame de melhor acurácia para detecção de lesões típicas da doença, pode ser feita a confirmação diagnóstica (2,4). Nenhum tratamento específico foi estabelecido até o presente momento (6). Os autores relatam um caso de paciente etilista com diagnósticos firmado de MP por RNM-CE, com evolução favorável. Foi obtido consentimento livre e esclarecido do paciente acerca da publicação deste estudo. RELATO DE CASO Paciente do sexo masculino, 44 anos, raça negra, aposentado, com antecedentes de etilismo crônico e tabagismo, recorreu a Pronto Socorro no dia 14/11 por um quadro Acadêmica de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Médica. Residente de Clínica Médica do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. da FURG. Mestre. Médico Cardiologista, Preceptor de Clínica Médica do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. e Docente da FURG. Mestre. Médica Neurologista do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. e Docente da FURG. Médico Clínico Geral, Preceptor de Clínica Médica do Hospital Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. e Docente da FURG. 268 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 268-271, out.-dez. 2014 MIELINÓLISE PONTINA EM PACIENTE ETILISTA Freitas et al. de vertigem e alteração da marcha. Na chegada, paciente encontrava-se com sinais vitais estáveis e ataxia. Foram realizados exames de rotina, incluindo eletrocardiograma, que não evidenciou alterações, e laboratoriais (Tabela 1). Após exames, foi iniciada a reposição iônica. No dia seguinte ao início do quadro, em 15/11, o paciente evoluiu com febre, sudorese intensa, agitação psicomotora, desorientação no tempo e espaço e déficit global de força. O exame neurológico evidenciou pupilas isocóricas e fotorreagentes, sem alterações oculomotoras, e tetraparesia assimétrica. Os sistemas cardíaco e respiratório e exame de abdome não evidenciavam nenhuma alteração. Foram solicitados novos exames (Tabela 1) e Tomografia Axial Computadorizada Crânio-Encefálica (TAC-CE). Teste rápido para HIV e sorologias para Hepatites A, B e C não reagentes. Exame comum de Urina apresentou bacteriúria moderada a intensa, com 20-25 eritrócitos e 10-15 leucócitos por campo. O exame tomográfico do crânio revelou proeminência dos sulcos corticais, cisternas basais e fissura de Sylvius; tecido encefálico com coeficiente de atenuação normal; sistema ventricular de configuração anatômica; fossa posterior sem alterações. Foram prescritos na emergência enema, dieta para hepatopatia crônica via sonda nasoenteral, sonda vesical de demora, para controle da diurese, lactulose solução, suplementos vitamínicos e antibioticoterapia após coleta de culturais, com as hipóteses diagnósticas de Encefalopatia Hepática, Síndrome da Abstinência e Infecção do Trato Urinário. Após quatro dias, diante da alteração de função renal apresentada pelo paciente, foram suspensas medidas para Encefalopatia e mantidos antibioticoterapia, suplementos vitamínicos, acrescidos de hidratação parenteral. Segundo avaliação do neurologista, as alterações apresentadas pelo paciente, nesse momento, eram sugestivas de Abstinência Alcoólica. Apesar da melhora do padrão laboratorial durante a internação, verificava-se redução progressiva da colaboração e persistência do quadro febril. Após cerca de 10 dias, observou-se degradação do estado geral do doente, o qual apresentou afasia motora, diaforese, tremor de extremidades e febre. O exame neurológico revelou “síndrome do encarceramento” (locked-in syndrome). O paciente apresentava abertura ocular espontânea, sem resposta verbal e obedecendo a comandos, pupilas isocóricas e fotorreagentes, movimento ocular extrínseco preservado, ausência de papiledema à fundoscopia, tetraparesia assimétrica, com força grau I em hemicorpo direito e grau 0 em esquerdo, hiporreflexia profunda e cutâneo-plantar extensor bilateral. Na ocasião, foi suspensa a antibioticoterapia e, após 48h, coletados novos culturais. A análise do líquido cefalorraquidiano foi inespecífica. Ultrassonografia de abdome revelou moderada hepatomegalia, ausência de líquido ascítico, veias porta-esplênicas de calibre normal e demais órgãos sem alterações. Nova TAC-CE evidenciou hipodensidade de tronco cerebral, comprometendo principalmente ponte e mesencéfalo, e proeminência dos sulcos corticais. Foram mantidas as medidas terapêuticas iniciais com vitaminas do complexo B, Tiamina, e reintroduzida antibioticoterapia. Diante da persistência do quadro neurológico, mesmo após normalização dos níveis séricos de Na e K do paciente, foi realizado exame de RNM-CE, que revelou leve redução volumétrica encefálica caracterizada por acentuação das cisternas basais e sulcos corticais, e hipersinal em T2 na região central da ponte (Figura 1), sem impregnação de contraste ou efeito de massa significativo. Embora a RNM-CE não tenha revelado a imagem clássica dessa patologia, o quadro clínico exuberante somado ao exame radiológico sugestivo permitiram selar o diagnóstico de Mielinólise Pontina. Durante a internação, a terapêutica baseou-se essencialmente em fisioterapia motora e respiratória, dieta por son- Tabela 1 – Exames Laboratoriais. 14/11 15/11 18/11 39 40 39 - Hemoglobina (g/dl) 12,8 13,4 12 - Sódio (mEq/L) 134 141 154 138 Potássio (mEq/L) 2,3 2,2 2,1 4,2 Magnésio (mg/dl) 1,9 0,7 1,5 1,7 Ureia (mg/dl) 21 12 - 35 Creatinina (mg/dl) 0,6 0,6 4,5 0,6 TGO (U/L) - 233 627 48 TGP (U/L) - 98 178 35 Gama GT (U/L) - 2.173 2.085 729 Hematócrito (%) Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 268-271, out.-dez. 2014 27/11 Figura 1 – Imagem de RNM-CE, no plano axial, que evidencia áreas de hipersinal em T2. 269 MIELINÓLISE PONTINA EM PACIENTE ETILISTA Freitas et al. da nasoentérica, além de antibioticoterapia, polivitamínicos e medidas de suporte. Após um mês, com melhora progressiva do quadro clínico, o paciente voltou a contatar verbalmente, houve progressão da dieta para via oral e recuperação parcial dos déficits de força. Foram mantidos os suplementos vitamínicos e fisioterapia, porém no dia 31/12, houve evasão hospitalar do paciente. DISCUSSÃO A Mielinólise Pontina define-se como uma lesão desmielinizante do encéfalo, descrita pela primeira vez em 1959, por Adams et al., que detectaram um quadro de tetraplegia, afetando pacientes alcoolistas ou com má nutrição (1). Em seguida, observou-se sua associação com distúrbios eletrolíticos e, mais tarde, seu maior risco quando a hiponatremia era corrigida rapidamente. Posteriormente, o conceito foi alargado com o reconhecimento de lesões fora da região pontina – Mielinólise Extra-Pontina (MPE). Após, a MPC e MEP foram integradas no conceito Síndrome da Desmielinização Osmótica (SDO). A SDO ocorre principalmente quando há correção excessivamente rápida da hiponatremia grave (geralmente com valores séricos de sódio iguais ou inferiores a 120 mEq/L ou menos), presente há mais de dois ou três dias (tempo necessário para a adaptação cerebral). No entanto, alguns pacientes podem desenvolver a SDO com concentrações séricas de sódio mais altas e com menores taxas de correção. Tais pacientes apresentam alguns fatores de risco como: doença hepática grave, transplante de fígado, diabetes insipidus em tratamento com desmopressina, desenvolvimento mais gradual de hiponatremia (dois a três dias), desnutrição e hipocalemia. A autocorreção do sódio sérico pode ocorrer quando há administração de solução salina a doentes com verdadeira depleção de volume, administração de glicocorticoides em pacientes com insuficiência adrenal, suspensão de medicações que causam Secreção Inapropriada do Hormônio Antidiurético (SIADH), como os inibidores seletivos da receptação de serotonina, carbamazepina e desmopressina, interrupção de diuréticos tiazídicos, resolução espontânea de uma causa transitória de SIADH e tratamento com um antagonista do receptor da vasopressina (5). Outros eventos já foram, também, associados à MP e MEP, tais como: queimaduras extensas e pós-cirurgias pituitárias, urológicas e ginecológicas (6). As lesões cerebrais desmielinizantes associadas à SDO podem ser detectadas ocasionalmente por TAC-CE, contudo, a RNM-CE é o método mais sensível (2, 4). As lesões são simétricas e hipointensas nas imagens pesadas em T1, poupando tipicamente a parte periférica da ponte, e hiperintensas nas imagens pesadas em T2 e FLAIR (3, 6), sendo esta última evidenciada na RNM-CE do paciente em questão. Em alguns casos também, esse exame de imagem pode revelar a lesão típica em “asa de morcego” na base 270 da ponte (3, 9). Ainda assim, a RNM-CE pode não demonstrar alterações nas primeiras semanas após o início da doença (10), por esse motivo, um exame radiológico inicial sem alterações em pacientes com alterações neurológicas sugestivas de SDO não exclui tal diagnóstico. Clinicamente, a MP costuma ter um curso bifásico. Inicialmente, os doentes apresentam-se encefalopatas ou com convulsões decorrentes da hiponatremia, o quadro que melhora assim que a normonatremia é restaurada, vindo a piorar apenas dias após a fase inicial. Na segunda fase da doença, a MP apresenta-se com disartria, disfagia, tetraparesia flácida – que, posteriormente, torna-se espástica – e, se houver comprometimento do tegumento da ponte, alterações oculomotoras podem ocorrer (6). O diagnóstico é fortemente sugerido nesta situação, tendo sido confirmado através da RNM, que mostrou aspectos consistentes com SDO. A forte associação com o alcoolismo fez com que os autores encontrassem similaridades patológicas entre MP e outras doenças também relacionadas ao etilismo. Outros efeitos patológicos do álcool sobre o SNC também foram colocados como hipótese de diagnóstico provável do caso, mas excluídos por não apresentarem quadro clínico nem exames confirmatórios. A Encefalopatia de Wernick é uma entidade frequentemente associada à MP, corresponde a uma desordem cerebral causada pela deficiência de tiamina e é caracterizada por anormalidades oculomotoras, ataxia da marcha e estado confusional. No caso anteriormente descrito, além do doente não apresentar a tríade clássica, a RNM não revelou sinais sugestivos dessa patologia, que consistem em lesões em nível dos corpos mamilares. A doença de Marchiafava-Bignami associada ao etilismo crônico também foi excluída, uma vez que a desmielinização e consequente necrose ocorrem principalmente no nível do corpo caloso (4,7). A evolução desses pacientes é variável, desde a recuperação total, sem sequelas, até o óbito por complicações como pneumonia, ITU e sepse, TVP ou TEP (2,8). Nosso doente apresentou algumas complicações como úlceras de pressão e sepse, no entanto, evoluiu favoravelmente. O tratamento desta patologia permanece incerto, pois não há estudos suficientes até o presente momento. Existem relatos de uso de esteroides, imunoglobulina intravenosa e hormônio liberador de tireoglobulina, mas sem benefício comprovado (3,8). No caso descrito, a terapêutica baseou-se essencialmente em polivitamínicos, fisioterapia e tratamento das complicações infecciosas. Em resumo, este relato visa apresentar a Mielinólise Pontina, patologia que ainda não tem um tratamento definitivo, mas que, muitas vezes, pode ser prevenida com o manejo cauteloso dos distúrbios eletrolíticos, principalmente naqueles indivíduos que têm maior risco. COMENTÁRIOS FINAIS A Mielinólise Pontina consiste em uma doença rara, manifestada por tetraparesia e dificuldade na fala, por veRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 268-271, out.-dez. 2014 MIELINÓLISE PONTINA EM PACIENTE ETILISTA Freitas et al. zes irreversíveis. Hoje, não existe um tratamento definitivo, apenas medidas de suporte que podem aumentar a sobrevida dos pacientes com essa patologia, que tem evolução grave e, frequentemente, fatal. REFERÊNCIAS 1. Adams RA, Victor M, Mancall EL. Central pontine myelinolysis: a hitherto undescribed disease ocurring in alcoholics and malnourished patients. Arch Neurol Psychiatry 1959;8:154-72 2. Germiniani FMB, Roriz M, Nabhan SK, Teive HAG, Werneck, LC. Cetral pontine and extra-pontine myelinolysis in an alcoholic patient without electrolyte disturbances: case report. Arq Neuropsiquiatr 2002;60(4):1030-1033. 3. Brito AB, Vasconcelos MM, Cruz Junior LC, Oliveira ME, Azevedo AR, Rocha LG, et al. Central Pontine and extrapontine myelinolysis: report of a case with a tragic outcome. J Pediatr (Rio J). 2006;82:157-60. 4. Haes TM, Clé DV, Nunes TF, Roriz-Filho JS, Morigutti JC. Álcool e sistema nervoso central. Medicina (Ribeirão Preto) 2010;43(2):153-63. 5. Snell DM, Bartley C. Osmotic demyelination syndrome following rapid correction of hyponatraemia. Anaesthesia, 2008, 63, pages 92-95. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 268-271, out.-dez. 2014 6. Martin RJ. Central pontine and extrapontine myelinolysis: the osmotic demyelination syndromes. J NeurolNeurosurgPsychiatry. 2004. 75: iii22-iii28. 7. Marreiros H et al. Mielinolise pôntica e extrapontica. Acta MedPort, 2010. 23(4):709-714 8. Jumo ME, Castro MHA, Lage MA, Dupin JH, Paula AJF, Bello GV. Osmotic demyelination syndrome: report of a case with favorable outcome. Radiol Bras. 2012 Jan/Fev;45(1):61-62. 9. Thompson, PD; Miller, D; Gledhill, Rf; Rossor, MN. Magnetic resonance imaging in Central pontine myelinolysis. Journal of Neurology, Neurosurgery, and Psychiatry. 1989;52:675-677. 10. Ruzeka, KA; Campeaua, NG; Miller, GM. Early Diagnosis of Central Pontine Myelinolysis with Diffusion-Weighted Imaging. American Journal of Neuroradiology. 2004 25: 210-213. Endereço para correspondência Bianca Astrogildo de Freitas Av. Buarque de Macedo, 337 96.211-110 – Rio Grande, RS – Brasil (53) 9975-8081 [email protected] Recebido 11/7/2013 – Aprovado: 7/9/2013 271 RELATO DE CASO Síndrome de Guillain-Barré: relato de caso da neuropatia sensitivo-motora axonal aguda em criança Guillain-barré syndrome: case report of a child with acute axonal sensorimotor neuropathy Ingrid Berger Severo1, Larissa Maria Zalewski2, Guilherme José Morgan2, Letícia Schwerz Weinert3, Fernando Antônio de Oliveira Costa4 RESUMO A forma sensitivo-motora axonal aguda da Síndrome de Guillain-Barré (SBG) é uma apresentação rara, a qual pode apresentar um comprometimento neurológico mais grave. O diagnóstico desta morbidade é realizado através da avaliação clínica associada à eletroneuromiografia. Neste artigo, reportamos o caso de um paciente de 13 anos, submetido a medidas de suporte isoladamente, com evolução neurológica favorável. Em crianças e adolescentes, a melhor abordagem terapêutica para esta condição ainda carece de evidência científica. UNITERMOS: Síndrome de Guillain-Barré, Parestesia, Polineuropatias. ABSTRACT The acute axonal sensorimotor form of Guillain-Barre Syndrome (GBS) is a rare presentation which may have a more severe neurological impairment. The diagnosis of this condition is made by clinical evaluation associated with electroneuromyography. In this paper we report the case of a 13-year-old patient who underwent supportive measures alone, with a favorable neurological outcome. In children and adolescents, the best therapeutic approach for this condition still lacks scientific evidence. KEYWORDS: Guillain-Barre Syndrome, Paresthesia, Polyneuropathies. INTRODUÇÃO A Síndrome de Guillain-Barré (SGB) é uma doença neurológica aguda, caracterizada por paralisia flácida e arreflexia, inicialmente em membros inferiores, e por aumento da proteinorraquia (1,2,3). Contudo, é relevante salientar que a SGB pode cursar com proteinorraquia normal no início da doença (3). Dois subtipos de SGB são mais frequentemente encontrados: o desmielinizante (polineuropatia inflamatória aguda desmielinizante [AIDP]), e o axonal (neuropatia axonal motora aguda [AMAN] (1,2) e neuropatia axonal sensitivo motora aguda [AM1 2 3 4 SAN]). Em crianças, a AMSAN, forma mais rara de SGB, pode apresentar um comprometimento mais grave que os demais subtipos, embora sua gravidade esteja associada à extensão da lesão axonal (1). RELATO DE CASO Paciente do sexo masculino, 13 anos, previamente hígido, iniciou com quadro de parestesia e alodinia em ambos os pés. Os sintomas evoluíram com piora progressiva e ascensão pelos membros inferiores de forma simétrica. Procurou o Pronto Socorro do Hospital Universitário com Pós-graduanda em Medicina na Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Graduando de Medicina na UCPel. Médica internista e endocrinologista. Professora da Faculdade de Medicina da UCPel, Doutorado em Ciências Médicas-Endocrinologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). PhD. Professor adjunto da Neurologia e Neurocirurgia da UCPel. 272 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 272-274, out.-dez. 2014 SÍNDROME DE GUILLAIN-BARRÉ: RELATO DE CASO DA NEUROPATIA SENSITIVO-MOTORA AXONAL AGUDA EM CRIANÇA Severo et al. dificuldade na deambulação e dor intensa nos membros inferiores, agravada pela dígito-pressão e movimentação, e com resposta parcial ao tratamento com morfina e gabapentina. Na história médica recente, relatava presença de nódulos em couro cabeludo, na região parietal, com desaparecimento espontâneo, havia dez dias. Entretanto, negava alterações gastrointestinais, sintomas de infecção ou vacinação recentes. No exame físico, evidenciavam-se arreflexia do aquileu e hiporreflexia patelar, com sinal de Babinski negativo. Não houve alteração dos sinais vitais, instabilidade cardiovascular ou respiratória durante a internação hospitalar. Para confirmação da suspeita clínica de polineuropatia, foram realizados exames complementares com urgência. A tomografia computadorizada de crânio (TC) não demonstrou anormalidades nem presença dos nódulos relatados pelo paciente; a punção lombar (PL) mostrou proteinorraquia elevada (101,2 mg/dl), glicose de 59 mg/dL e 35 leucócitos com 78% mononucleares e 22% polimorfonucleares. Solicitada eletroneuromiografia (ENMG) de membros superiores e inferiores, a qual foi compatível com neuropatia sensitivo-motora axonal aguda (AMSAN), não sendo detectadas lesões desmielinizantes. Foram excluídas alterações da função tireoideana, hiperglicemia, doenças virais como hepatites e HIV e deficiência de vitamina B12, e não se detectou evidência clínica de doença autoimune nem neoplásica. Assim, frente ao quadro clínico e a exames complementares, o diagnóstico definitivo foi de SGB forma sensitivo-motora axonal aguda. Iniciado tratamento de suporte, porém, devido ao fato de os sintomas estarem presentes por mais de 2 semanas no momento do diagnóstico e pela melhora clínica iniciada após 17 dias de evolução, optou-se pela observação clínica, sem intervenção medicamentosa. O paciente evoluiu com melhora quase completa da dor e paresia e recebeu alta hospitalar para acompanhamento neurológico e fisioterápico ambulatorial. Por se tratar de um menor de idade, foi autorizado pelo responsável legal, através de consentimento informado, o relato do caso em forma de artigo. DISCUSSÃO A SGB é uma doença neurológica aguda caracterizada por paralisia flácida, arreflexia e aumento da proteinorraquia, que ocorre principalmente após infecções virais e bacterianas por Campylobacter jejuni (2,3). Os sinais premonitórios mais frequentes são vômitos e diarreia (2). Os primeiros sintomas costumam ser parestesia, dor e paresia nos membros inferiores, geralmente bilateral, simétrica e progressiva. A paresia pode progredir em 12 horas a 28 dias, e, nos casos mais graves, pode acometer a musculatura respiratória, com necessidade de suporte ventilatório. Dois subtipos de SGB são mais frequentes: o desmielinizante AIDP, e o axonal AMAN e AMSAN (4), sendo que este último foi o subtipo diagnosticado neste caso. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 272-274, out.-dez. 2014 A distinção entre os subtipos da SGB não é facilmente realizada pela avaliação clínica, e a ENMG é mandatória. Desta forma, apesar de o caso relatado apresentar manifestações clínicas clássicas de SGB, a ENMG é o exame indicado para o diagnóstico definitivo e definição do subtipo. Entretanto, no início da doença, a ENMG pode superestimar a incidência do subtipo desmielinizante (3). Os subtipos axonais costumam ser menos frequentes. Em 2007, um estudo avaliou 121 crianças com suspeita de SGB, confirmando-se 78 casos, porém nenhum era do subtipo AMSAN (2). Já a AMAN representa 10-20% dos casos de SGB no mundo ocidental e 60-70% dos casos de SGB na China (1). A média de idade para AMAN é de 6,3 anos (intervalo de 1 a 16 anos), e a relação sexo masculino para sexo feminino é de 1,3 (2). O padrão de envolvimento nervoso das neuropatias axonais é motor e sensitivo (4), e costumam ser mais graves que a AIDP em crianças (2-4). Apesar disso, a gravidade depende da extensão da lesão axonal. Nos casos com exclusivo comprometimento distal, a recuperação é rápida e completa (2). Em estudo de condução nervosa, a AIDP apresenta as características de desmielinização em dois ou mais nervos, podendo estar associada aos sintomas neurológicos (3-5). No entanto, nas formas axonais, a redução de potencial de ação muscular composto e a ausência de resposta da onda F ou latência prolongada de onda F são proeminentes para conclusão eletrofisiológica. A ENMG revela fibrilações e ondas agudas positivas no período inicial da doença em pacientes com formas axonais, enquanto que os pacientes com AIDP apresentam potenciais de denervação no final da segunda semana (4,5). Já a avaliação autoimune, como autoanticorpos contra os constituintes da mielina, gangliosídeos e glicolipídeos das membranas axonais e mielinais, não é disponível em nosso meio. Além disso, estudo prévio demonstrou sua presença em apenas uma pequena parcela de crianças com SGB e ausência de correlação clínica com a gravidade ou o subtipo da síndrome (6). Uma vez diagnosticada a SGB, cuidados de suporte e monitorização neurológica devem ser instituídos. Em crianças, evidências apontam para possível benefício da imunoglobulina intravenosa (Ig IV) na recuperação dos pacientes em comparação com cuidados de suporte isoladamente (7). Por outro lado, não está definida qual a melhor dose de Ig IV em crianças (2,7). Um estudo observacional demonstrou que crianças com a forma axonal apresentam recuperação mais lenta do que aquelas com a forma desmielinizante após a terapia com Ig IV (4). A ineficácia da Ig IV pode ser devido à instituição tardia da terapia em pacientes com a forma axonal da SGB. Assim, frente à baixa qualidade da evidência sobre benefícios e potenciais riscos para o uso de Ig em crianças, em especial naquelas com evolução clínica superior a 2 semanas e forma sensitivo-motora axonal aguda, optou-se pela não utilização desta terapia. A plasmaférese (PE), outra opção terapêutica, tem efeitos semelhantes aos da Ig IV, porém a combinação de 273 SÍNDROME DE GUILLAIN-BARRÉ: RELATO DE CASO DA NEUROPATIA SENSITIVO-MOTORA AXONAL AGUDA EM CRIANÇA Severo et al. ambas não oferece benefício adicional. Contudo, a utilização da Ig IV vem sendo considerada mais segura em relação a PE, por ser menos invasiva (7). Estudos adicionais são necessários em crianças com SGB para determinarmos o real benefício das terapias citadas, já que muitos pacientes podem ter resolução espontânea. COMENTÁRIOS FINAIS A SGB em crianças, em especial o subtipo neuropatia axonal sensitivo-motora aguda, é uma neuropatia rara, porém com risco de dano neurológico permanente e morte. Entretanto, a melhor abordagem terapêutica nesses casos ainda não está completamente definida. O caso aqui relatado reporta um paciente com uma forma axonal e potencialmente grave da síndrome, com evolução benigna e recuperação da sensibilidade e força dos membros inferiores com medidas de suporte. REFERÊNCIAS 1. Torricelli RE. Sindrome de guillain barre em pediatria. Medicina (B Aires). 2009;(1/1):84-91. 274 2. Nachamkin P, Arzarte Barbosa P, Ung H, Lobato C, Gonzalez Rivera A, Robriguez P. et al. Patterns of Guillain-Barre syndrome in children: results from a Mexican population. Neurology. 2007;69(17):1665-71. 3. Yuki N, Hartung H-P. Guillain-Barré Syndrome. N Engl J Med. 2012;366:2294-304. 4. Tekgul H, Serdaroglu G, Tutuncuoglu S. Outcome of axonal and demyelinating forms of Guillain-Barré syndrome in children. Pediatr Neurol. 2003;28:295-9. 5. Paradiso G, Tripoli J, Galicchio S, Fejerman N. Epidemiological, clinical, and electrodiagnostic findings in childhood Guillain-Barré syndrome: a reappraisal. Ann Neurol. 1999;46(5):701-7. 6. Hughes RAC, van Doorn PA. Corticosteroids for Guillain-Barré syndrome. Cochrane Database syst. rev. 2012;Issue 8. 7. Hughes RAC, Swan AV, van Doorn PA. Intravenous immunoglobulin for Guillain-Barré syndrome. Cochrane Database syst. rev. 2012;Issue 7. Endereço para correspondência Ingrid Berger Severo Rua Bento Martins, 487/302 96.010-430 – Pelotas, RS – Brasil (53) 8137-5954 [email protected] Recebido: 23/7/2013 – Aprovado: 21/10/2013 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 272-274, out.-dez. 2014 RELATO DE CASO Abordagem multidisciplinar do trauma facial grave Combined approach of severe facial trauma soft tissue Evandro José Siqueira1, Gustavo Steffen Alvarez2, Patricia Borchadt Bolson3, Milton Paulo de Oliveira4 RESUMO As lesões faciais são comuns nos serviços de emergências médicas, representando cerca de 7% a 10% dos atendimentos. As agressões são as principais causas de fraturas faciais, enquanto que a maior proporção de lesões dos tecidos moles é causada por quedas e acidentes. Embora raramente fatais, o tratamento destas lesões pode ser complexo e determinar impacto significativo sobre a função e estética facial do paciente traumatizado. Este artigo apresenta um caso de lesão facial grave, enfatizando aspectos importantes no manejo do traumatismo facial de partes moles e revisa a literatura relacionada ao tema. UNITERMOS: Trauma Facial, Trauma de Partes Moles, Reconstrução Facial. ABSTRACT Facial lesions are common in emergency medical services, representing about 7-10 % of cases. Attacks are the main causes of facial fractures, while a higher proportion of soft tissue injuries are caused by falls and accidents. Although rarely fatal, treatment of these injuries can be complex and have a significant impact on facial function and aesthetics of the trauma patient. This article describes a case of severe facial injury, emphasizing important aspects in the management of facial trauma of soft tissues, and reviews the literature related to the topic. KEYWORDS: Facial Trauma, Soft Tissue Trauma, Facial Reconstruction. INTRODUÇÃO A lesão de partes moles é comumente encontrada no cuidado de pacientes com trauma facial, mais comumente as lacerações e as contusões (1, 2). A complexidade destas lesões deve-se principalmente pela potencial perda entre as relações estéticas e funcionais das unidades faciais afetadas, podendo ocasionar sequelas desagradáveis e, por vezes, estigmatizantes aos pacientes afetados. O principal objetivo no manejo adequado das lacerações faciais, portanto, é a minimização da formação de cicatrizes inestéticas e perdas funcionais com as suas consequências psicológicas a longo prazo (3). 1 2 3 4 Embora representem cerca de 10% de todos os atendimentos em uma unidade de emergência (4), existem poucos estudos que investigam sistematicamente o manejo dessas lesões (3). Deste modo, não existem algoritmos nem protocolos de classificação validados que orientem a avaliação e posterior tratamento a serem empregados. Como resultado, a maioria das decisões críticas é deixada exclusivamente ao critério do cirurgião assistente, baseando-se, muitas vezes, em dados retrospectivos com potencial limitado, além de experiência pessoal disponível para orientar o tratamento. Isto pode levar a muitas abordagens diferentes para o atendimento tanto a curto quanto a longo prazo (1). Cirurgião Plástico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Membro do Corpo Clínico do Hospital Medianeira, Pompéia e Saúde, Caxias do Sul – RS. Cirurgião Plástico do Programa Pró-Face do Hospital Nossa Senhora de Medianeira, Caxias do Sul – RS. Cirurgião Plástico pela PUCRS, Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Doutorando em Medicina e Ciências da Saúde da PUCRS. Cirurgião Plástico da Clínica MOB - Porto Alegre. Dermatologista pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Especialista pela Sociedade Brasileira de Dermatologia. Professora da Disciplina de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Cirurgião Plástico pela PUCRS, Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital São Lucas da PUCRS. Doutorando em Medicina e Ciências da Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014 275 ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al. Descrevemos neste trabalho o caso de um trauma facial grave, decorrente de acidente automobilístico, em que os princípios básicos da reconstrução facial e palpebral foram utilizados (1, 2), buscando restabelecer as funções faciais a curto prazo e amenizar possíveis sequelas a longo prazo, assim como relatamos a importância da abordagem imediata e multidisciplinar do atendimento ao traumatizado de face. RELATO DE CASO Relatamos o caso de um paciente masculino, 28 anos, vítima de colisão frontal de veículo automotor, cinemática grave. O mesmo estava usando apenas cinto de segurança 2 pontos no momento do acidente, sem mecanismo de “air-bag”, o que o projetou em direção ao para-brisa. Chegou ao Pronto Socorro imobilizado pelo Serviço Móvel de Urgência (SAMU), em ventilação espontânea, Glasgow 15. Em exame físico inicial na chegada, o paciente apresentava importante laceração de partes moles em região frontal, glabelar, palpebral direita e esquerda, inclusive com perda de partes moles em pálpebra superior esquerda (Figura 1). Após avaliação segundo normas do ATLS (Advanced Trauma Life Suport) e estabilização do paciente, o médico emergencista solicitou exame tomográfico de face, crânio, cervical, tórax e abdômen, visto a gravidade da cinemática do trauma. Foi acionada equipe de neurocirurgia, cirurgia do trauma, oftalmologia e cirurgia bucomaxilofacial. Após exames tomográficos, constatou-se fratura não cominutiva da parede anterior seio frontal direito, com discreto acúmulo de sangue no seio correspondente e presença de fragmentos de corpo estranho em teto da órbita esquerda, extraocular (figura 2), sem outras fraturas faciais ou cranianas importantes. Face aos extensos ferimentos de partes moles faciais, solicitou-se avaliação pelo cirurgião plástico. Após estabilização e avaliações iniciais, em virtude da gravidade das lacerações faciais, decidiu-se por levá-lo ao bloco cirúrgico para anestesia e melhor avaliação e manejo das lesões de partes moles faciais. O procedimento foi realizado com anestesia local assistida por decisão do anestesista, com utilização de lidocaína 2% e ropivacaína Figura 2 – Imagem tomográfica demonstrando presença de objeto radiopaco no teto orbitário (seta), provavelmente tratando-se de fragmento do para-brisa, em posição extraocular, evidenciando violência do impacto. Seio frontal direito com derrame e pequeno fragmento da parede anterior, sem outras particularidades. Figura 1 – Paciente Vítima de Colisão Frontal, apresentado importante lesão de partes moles das estruturas do terço médio-superior da face. Nota-se grave laceração palpebral esquerda, com desestruturação de todas as lamelas palpebrais, impondo cuidadosa reconstrução para manter a integridade da função palpebro-orbitária. Nesta foto, ferimentos fronto-glabelares e palpebrais direitos já reconstituídos. 276 Figura 3 – Fragmentos de vidro retirados da órbita esquerda durante cirurgia. O fragmento maior encontrava-se alojado em posição superomedial da órbita esquerda, extraocular, conforme demonstrado em exame tomográfico pré-operatório. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014 ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al. 7,5%. Bloqueio regional dos nervos supra e infraorbitários foram realizados. Após irrigação copiosa dos ferimentos com solução salina estéril, iniciou-se com desbridamento cauteloso, visto as proximidades com estruturas nobres da face e pálpebra. Os ferimentos eram profundos em região glabelar e palpebral esquerda, com lesões aos vasos sanguíneos e nervos da face nesta localidade. Em região do teto orbitário, foi identificado fragmento de vidro, em região extraocular, sem comunicação intracraniana, conforme visualizado em exame tomográfico prévio, o qual foi retirado (Figura 3) e a loja irrigada posteriormente. Os ferimentos em glabela e periorbitários direitos foram reconstituídos com fio absorvível de poligalactina 4-0 em planos profundos e fio de nylon 5-0 em pele. Embora os ferimentos palpebrais esquerdos fossem de maior magnitude, decorrentes do trauma frontal, o globo ocular estava íntegro, sem déficit visual, ao contrário do globo ocular direito, que apresentava laceração de córnea e descolamento retiniano. A pálpebra superior esquerda possuía avulsão do ligamento cantal lateral esquerdo, dicotomização da pálpebra superior esquerda em dois fragmentos, medial e lateral (Figura 4), com secção completa do bordo tarsal e total desinserção do aparelho levantador da pálpebra, necessitando reconstrução. Inicialmente, realizou-se o realinhamento do bordo palpebral seccionado, seguida da fixação do tendão cantal lateral com fio de nylon 5-0 e ancoramento da rima palpebral esquerda, e refixação do aparelho levantador no bordo palpebral com fio de poligalactina 5-0. Após, seguiu-se a reconstituição das camadas palpebrais, conforme técnica-padrão. Por último, procedeu-se à síntese da pele com fio delicado de nylon 6-0 (Figura 5). O paciente apresentou boa evolução pós-operatória, utilizando medicações analgésicas e antibióticos, tendo de ser submetido à cirurgia oftalmológica devido aos traumas ocorridos no globo ocular direito pelo impacto, apresentando importante déficit visual à direita. Apesar dos graves ferimentos, o paciente apresentou boa evolução, estando em acompanhamento oftalmológico, neurocirúrgico e com cirurgião plástico, apresentando bom aspecto das cicatrizes com discreto déficit de elevação palpebral esquerda, devido ainda ao edema residual importante (Figura 6). DISCUSSÃO As lesões traumáticas dos tecidos moles faciais são comumente encontradas em salas de emergência por médicos emergencistas e cirurgiões plásticos (1). Embora raramente fatais, o tratamento destas lesões pode ser complexo e ter um impacto significativo na função e estética facial do indivíduo, uma vez que a face representa um segmento corporal de grande expressividade no relacionamento interpessoal. Em geral, a etiologia das lesões varia de acordo com a faixa etária dos pacientes. As quedas, que comumente causam lesões isoladas dos tecidos moles, como laceração e contusões, são mais comuns em crianças e idosos (1, 6, 7). Violência e acidentes automobilísticos são as causas predominantes de lesões em indivíduos que variam de 15 a 50 anos de idade (4). Em recente estudo realizado na Inglaterra, avaliou-se a prevalência de lesões de partes moles em traumas craniomaxilofaciais (8). Em 9.721 pacientes avaliados, 13.627 lesões dos tecidos moles foram documentados, Segmento lateral Segmento medial Figura 4 – Imagem ampliada demonstrando magnitude dos ferimentos palpebrais. Nota-se ruptura do septo orbitário, total desestruturação das lamelas (anterior e posterior) e dicotomização das mesmas em dois segmentos medial e lateral, necessitando reconstrução. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014 Figura 5 – Imagem pós-operatória imediata demonstrando sutura dos ferimentos e reconstituição dos segmentos faciais após o trauma. Foram utilizadas suturas em 2 planos nas regiões fronto-glabelar e palpebral direita, com vicryl 5,0 em plano subcutâneo e mononylon 5,0 (fronte) e mononylon 6,0 (pálpebras) em pele. Pálpebra superior esquerda reconstituída através da recomposição anatômica de todas as suas lamelas, com o alinhamento das mesmas iniciando-se por suturas com vicryl 5,0 passadas através dos 2/3 anteriores da placa tarsal, com o objetivo de evitar irritação corneana e reaproximar os segmentos dicotomizados pelo trauma, seguidas de suturas de colchoeiro vertical para aproximação precisa do bordo palpebral, deixado longo de modo a evitar irritação do globo ocular. Após, sutura de conjuntiva com pontos de vicryl 5,0 (sepultados), com recomposição da aponeurose elevadora e septo orbital. Por fim, sutura da pele com mononylon 6,0. 277 ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al. Figura 6A – Décimo quarto dia de pós-operatório demonstrando ainda edema residual devido aos extensos ferimentos. Nota-se pronta recomposição dos elementos fronto-palpebrais. Figura 6C – 12 meses de pós-operatório: observa-se total reconstituição das funções palpebrais danificadas no trauma, com abertura e fechamentos palpebrais normais, inclusive com recomposição do sulco palpebral superior da pálpebra esquerda, o que denota correta inserção do músculo levantador da pálpebra no bordo tarsal quando da cirurgia reconstrutora. Figura 6B – Décimo quarto dia de pós-operatório. Pálpebra esquerda recomposta nas suas estruturas anatômicas e reconstruída conforme técnica-padrão (descrição no texto). incluindo lacerações, hematomas, contusões e escoriações. As lacerações foram as lesões mais comuns (38%). Lesões de partes moles ocorreram entre as idades de 0 e 30 anos (61,5%), sendo as causas mais comuns para os ferimentos as atividades rotineiras diárias, levando a 49,4% de todas as lesões, seguido dos esportes (43,8%) (8). A avaliação inicial de um paciente vítima de trauma facial requer uma pesquisa em busca de lesões concomitantes e fatores específicos que coloquem em risco a vida do paciente, orientando um manejo direcionado. Na ausência de fraturas craniofaciais, estabilização urgente das vias aéreas raramente é indicada. Em pacientes com lesões isoladas de 278 tecidos moles, a necessidade de traqueostomia está associada com alta taxa de mortalidade (11,5%) e internação prolongada (9). Lesões concomitantes devem sempre ser pesquisadas, como injúrias intracranianas, craniofaciais, oftalmológicas e cervicais. O mecanismo de lesão e exame físico do paciente devem determinar se exame de imagem adicional é necessário (1). Os ferimentos isolados de partes moles devem ser suturados assim que possível. Reparação precoce, mesmo na indefinição das lesões concomitantes significativas, tem sido associada a melhores resultados estéticos pós-operatórias (1, 2). Atrasos no tratamento podem resultar em maior edema dos tecidos moles, distorcendo pontos de referência e tornando o fechamento primário mais difícil, além de aumentar o risco de infecção. Idealmente, o fechamento deve ocorrer dentro das primeiras oito horas após a lesão. Inicialmente, todas as lesões dos tecidos moles que podem ser suturadas na sala de emergência devem ser meticulosamente limpas de detritos, sob anestesia local. A intervenção cirúrgica é indicada quando da existência de lesões concomitantes que necessitam cirurgia e quando adequada hemostasia ou visualização ampla da ferida não pode ser alcançada na sala de emergência. Lacerações menores podem ser anestesiadas com bloqueios de campo locais, enquanto lesões maiores localizadas ao longo de Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014 ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al. Figura 7 – Zonas periorbitárias. Cada região possui considerações anatômicas, funcionais e estéticas individuais, devendo ser mantidas nas reconstruções, sempre que possível.( I: Pálpebra Superior; II: Pálpebra Inferior; III: Canto Medial; IV: Canto Lateral) – Referência 11. Figura 8B – Elementos Anatômicos da Pálpebra Superior em Corte Transversal. Cada elemento deve ser reconstituído individualmente nas reconstruções palpebrais, visando otimização dos resultados estéticos e funcionais. Figura 8A – Elementos Anatômicos da Pálpebra Inferior em Corte Transversal. Cada elemento deve ser reconstituído individualmente nas reconstruções palpebrais, visando à otimização dos resultados estéticos e funcionais. um território de inervação podem ser tratadas com bloqueios regionais. Pacientes pediátricos podem não tolerar a infiltração com anestesia local, podendo estar indicada a sedação consciente para o tratamento adequado (avaliação / desbridamento / fechamento) das lesões dos tecidos moles. Se contaminação significativa da ferida estiver presente, a mesma pode ser limpa com uma escova cirúrgica e anti-séptico. Subsequentemente, irrigação abundante deve ser realizada em todas feridas contaminadas. Cobertura antibiótica de amplo espectro é necessária em mordidas e em doentes com risco de má cicatrização devido ao tabagismo, alcoolismo, diabetes, ou outra formas de comprometimento imunológico. Profilaxia do tétano deve ser administrada de acordo com a história de imunizações. Os traumas faciais maiores, muitas vezes, envolvem várias unidades ou subunidades estéticas da face, e a reconsRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014 Figura 9 – Técnica de Sutura Palpebral. Deve-se realizar a sutura e o realinhamento das estruturas palpebrais, por camadas (lamela posterior, septo orbitário e lamela anterior, nesta ordem), de maneira a evitar o contato do material de sutura e dos nós diretamente com a superfície da córnea e do globo ocular. Mesmo os fios mais finos podem causar grande irritação e abrasão corneana. O alinhamento deverá ser o mais preciso possível, uma vez que 1 milímetro de desnível no bordo ciliar e linha cinzenta poderá ser notado pelo observador atento. trução prevista é planejada para cada unidade danificada, de modo que as incisões e locais de tecido utilizado para o avanço estejam dentro ou ao longo da borda da unidade a ser reconstruída (1, 3, 10). Quanto às lesões palpebrais, existem vários princípios fundamentais para o manejo adequado. Lesões da pálpebra ou região periorbitária podem ser classificadas em quatro classes com base na região le279 ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al. sada (pálpebra superior, pálpebra inferior, canto medial e lateral – Figura 7) e na espessura do dano (total ou parcial) (11). Para um reparo palpebral adequado, é importante o conhecimento anatômico detalhado da região. A pálpebra é uma estrutura bilamelar que compreende uma lamela anterior e outra posterior, separadas pelo septo orbitário. A lamela anterior consiste em pele e músculo orbicular palpebral. A lamela posterior engloba uma alça tarsoligamentosa que compreende uma placa tarsal e tendões cantais medial e lateral, juntamente com a fáscia capsulopalpebral e a conjuntiva. O septo se origina no arco marginal que acompanha o rebordo orbitário e separa as duas lamelas (Figura 8). Inicialmente, simples lacerações palpebrais devem ser fechadas em três camadas, nesta ordem: lamela posterior, septo orbitário e lamela anterior. Além disso, nas lacerações envolvendo o bordo tarsal, a linha cinzenta e a placa tarsal devem ser cuidadosamente reaproximadas, sendo o bordo suturado com sutura em colchoeiro vertical para que as margens fiquem evertidas (Figura 9). Para lacerações na pálpebra inferior, um alinhamento adequado também minimiza o risco do ectrópio. A inserção do músculo elevador na placa tarsal deve ser cuidadosamente avaliada nas lacerações da pálpebra superior. Defeitos em espessura total da pálpebra superior e inferior menores do que 33 e 50%, respectivamente, podem ser fechados primariamente utilizando-se os princípios básicos de reconstrução palpebral em camadas, conforme descrito anteriormente (12). Alguns autores, no entanto, mais conservadores, sugerem o fechamento primário apenas em espessura total inferior a 25% da pálpebra (11). Cantólise e cantotomia lateral podem ser utilizadas para aliviar tensão no reparo de defeitos maiores. Defeitos de espessura parcial de até 50% de comprimento da pálpebra podem, em contrapartida, serem fechados usando retalhos locais de avanço. Defeitos de espessura parcial superiores a 50% do comprimento da pálpebra superior ou inferior podem requerer um enxerto de pele de espessura total para alcançar fechamento sem tensão. Defeitos completos da pálpebra superior ou inferior apresentam maior desafio para o cirurgião plástico. Lesões da pálpebra laterais envolvem geralmente o canto lateral e podem exigir uma cantopexia ou cantoplastia para reparar o canto lesado. Dependendo do grau de lesão, reparação primária pode ser possível, mas, frequentemente, lesão extensa necessita reparo alternativo ou reconstrução do ligamento. COMENTÁRIOS FINAIS O manejo adequado e delicado dos tecidos já traumatizados, muitas vezes avulsionados pela ocasião do trauma, assim como a reestruturação anatômica das estruturas afetadas terão relevância, estética e funcional, para a recuperação do paciente traumatizado de face, evitando, por vezes, múltiplas cirurgias e sequelas de difícil tratamento a longo prazo. Para isso, torna-se imperativo o diagnóstico correto 280 das alterações apresentadas e decorrentes do traumatismo, assim como um planejamento adequado das condutas a serem tomadas, muitas vezes não tão fáceis e até desafiadoras em um ambiente ansiogênico como a emergência hospitalar. Descrevemos neste caso a importância do cirurgião plástico como um especialista integrante e necessário da equipe de atendimento do trauma grave na sala de emergência, assim como seu grau de resolutibilidade, utilizando-se de técnicas básicas e consagradas de reconstrução facial. A gravidade e a complexidade do trauma facial não exigem somente a cooperação interdisciplinar no cuidado desses pacientes, mas também medidas constantes do poder público para educação da população quanto a estratégias preventivas. Esta última continua a ser a forma mais barata de reduzir direta e indiretamente os custos das sequelas ocasionadas pelo trauma (13). AGRADECIMENTO Ao Dr Fábio Muradás Girardi, cirurgião de cabeça e pescoço que, com muito talento, criou as ilustrações deste trabalho. REFERÊNCIAS 1. Kretlow, J.D., A.J. McKnight, and S.A. Izaddoost, Facial soft tissue trauma. Semin Plast Surg, 2010. 24(4): p. 348-56. 2. Aveta, A. and P. Casati, Soft tissue injuries of the face: early aesthetic reconstruction in polytrauma patients. Ann Ital Chir, 2008. 79(6): p. 415-7. 3. Key, S.J., D.W. Thomas, and J.P. Shepherd, The management of soft tissue facial wounds. Br J Oral Maxillofac Surg, 1995. 33(2): p. 76-85. 4. 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Discutem-se formas de diagnóstico e estratégias de tratamento. UNITERMOS: Vertebroplastia, Embolia Pulmonar. ABSTRACT Puncture vertebroplasty is a procedure for providing bone support in the spine. Various complications may occur, including cement pulmonary embolism. Here we report a case of pulmonary artery embolism secondary to vertebroplasty, by a massive fragment of cement, treated by surgery. Forms of diagnosis and treatment strategies are discussed. KEYWORDS: Vertebroplasty, Pulmonary Embolism. INTRODUÇÃO Vertebroplastia percutânea (VP) é uma técnica em desenvolvimento cada vez mais utilizada em fraturas com compressão (1, 4). Vazamento local de cimento é uma complicação frequente, mas efeitos sistêmicos, como embolia de fragmento de cimento maior, são raramente descritos (1, 5). Os autores relatam um caso de embolia da artéria pulmonar que foi tratada de forma cirúrgica com sucesso. Relatam a técnica de diagnóstico e de tratamento em detalhes e discutem opções e recomendações a serem seguidas. Este relato foi aprovado pela Comissão de ética em seres humanos da instituição. RELATO DO CASO Paciente masculino, de 56 anos, portador de mieloma múltiplo descoberto em janeiro de 2010. Realizou vertebroplastia percutânea (VP) em 15 de março de 2010 por 1 2 3 4 fratura em T12, onde se constatou extravasamento posterior de cimento para o canal medular, sem repercussão clínica. Consultou em 15 de abril de 2010 trazendo RNM e cintilografia óssea mostrando fraturas em L1, L2, L3, L4 e L5 causadas pelo tumor. Apresentava dor grau 10/10 em região dorsal. Foi proposta vertebroplastia percutânea biportal nos cinco níveis. O procedimento foi realizado sob anestesia geral, com injeção de cimento em estado pastoso no corpo das vértebras fraturadas, sob orientação de fluoroscopia, injetando-se 1,5ml por pedículo (3ml por vértebra). Ao final do procedimento, ao fazer a revisão com intensificador de imagens, observou-se presença de massa com densidade semelhando ao PMMA em região abdominal anterior, sendo que a mesma pulsava ao RX contínuo. Não se observou vazamento de cimento durante o procedimento. Em novo controle de RX, ainda em bloco cirúrgico, observou-se migração da massa de PMMA para região pulmonar direita. O paciente permanecia assintomático no trans e pós-operatório imediato. Foi realizado Doutor. Chefe do Serviço de Cirurgia Torácica da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Cirurgião cardiovascular. Anestesiologista do Serviço de Cirurgia Torácica da Ulbra. Ortopedista especialista de Coluna. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 281-283, out.-dez. 2014 281 EMBOLIA DA ARTÉRIA PULMONAR APÓS VERTEBROPLASTIA POR PUNÇÃO Schneider et al. um RX de tórax que evidenciou um fragmento de cimento de quatro centímetros de comprimento no hemitórax direito. O paciente foi acordado e transferido à unidade de pós-operatório. Os sinais vitais permaneciam normais. Foi realizada uma angiotomografia computadorizada de mediastino que confirmou o fragmento de cimento na artéria pulmonar direita, após a emergência da artéria lobar superior direita (Figura 1). O paciente foi heparinizado. O paciente permanecia assintomático. A retirada percutânea do bloco de cimento foi descartada, devido à impossibilidade de trazê-lo a um local de fácil acesso. Foi proposta a retirada por toracotomia direita, por risco de fator emboligênico e trombose pulmonar subsequente. O procedimento indicado foi toracotomia direita, realizada após um RX de tórax em decúbito dorsal para confirmar que o êmbolo não havia mudado de lugar. Durante a toracotomia, que foi realizada em decúbito lateral esquerdo, não se encontrou o cimento na artéria pulmonar direita. Ainda em decúbito, a radioscopia identificou o fragmento de cimento na artéria pulmonar esquerda (Figura 2), mostrando migração do PMMA por mudança de decúbito. A toracotomia foi fechada e o paciente, colocado em decúbito dorsal. Chamada a equipe de cirurgia cardíaca, foi realizada uma esternotomia. Com circulação extra-corpórea (CEC) e parada cardiorrespiratória, foi aberto o ramo esquerdo da artéria pulmonar. Como havia muito sangramento de refluxo, foram realizadas a parada circulatória cerebral a 26 graus Celsius e a retirada do fragmento de cimento: com uma pinça de anel (Figura 3). Entre a parada circulatória cerebral e a rafia da artéria, foram decorridos treze minutos. O paciente apresentou pós-operatório sem intercorrências, tendo alta no sétimo dia pós-operatório. DISCUSSÃO E REVISÃO DA LITERATURA Figura 1 – Angiotomografia identificando êmbolo na artéria pulmonar direita. Escape de cimento pelo sistema venoso é uma complicação frequentemente relatada, usualmente assintomática (1,5). Há dois mecanismos relacionados com o extravasamento de cimento, primeiro, a insuficiente polimerização do cimento e sua migração pelo sistema ázigos ou cava inferior; segundo, a agulha pode estar dentro de um sistema venoso. Alguns autores recomendam esperar até que o cimento comece a polimerizar, podendo adicionar bário para identificar o local de injeção (1,2,3,6). A quantidade de bário existente no composto de PMMA também é fator relevante para a visualização da entrada de cimento e o não extravasamento do mesmo. Trabalhos mostram o aumento do índice de extravasamento de cimento em pacientes com lesões tumorais, atribuído a uma maior angiogênese e consequente circulação regional (5,7,8). Embolia de um fragmento de cimento maior é extremamente raro, existindo nos últimos 15 anos apenas 2 relatos (1,3). Nestes casos, a opção técnica foi transmediastinal Figura 2 – Radioscopia transoperatória identificando a migração do cimento para a artéria pulmonar esquerda. Figura 3 – Fragmento de 4 cm de cimento retirado do tronco da artéria pulmonar esquerda. 282 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 281-283, out.-dez. 2014 EMBOLIA DA ARTÉRIA PULMONAR APÓS VERTEBROPLASTIA POR PUNÇÃO Schneider et al. com cardioplegia, que incluiu, obrigatoriamente, circulação extra-corpórea. Mas, nestes 2 casos, havia êmbolos nos 2 lados, sendo que relato de um grande êmbolo não foi encontrado. Nos casos relatados de embolia assintomática de pequenos fragmentos, além do acompanhamento tomográfico, foi instituída de forma empírica a anticoagulação (3,5). Nos casos com sintomas relatados, houve a necessidade de retirada do êmbolo através da cirurgia com CEC. Neste caso, o paciente não apresentou nenhuma alteração hemodinâmica e foi proposto o acesso sem CEC na artéria pulmonar direita. Nos relatos descritos na literatura, foi notado que o cimento não adere na parede da artéria, diferentemente da embolia tradicional, o que pode explicar sua migração ao lado oposto quando o paciente foi colocado em decúbito lateral no caso relatado. Diante do que foi encontrado neste caso e na pouca documentação disponível, recomendamos que êmbolos de cimento que produzam sintomas ou possivelmente prejudicais sejam retirados em decúbito dorsal, pelo real risco de modificação de sua posição. A utilização de CEC pode ser postergada, com controle proximal da artéria e das veias, para evitar refluxo, evitando assim a parada circulatória total. A anticoagulação ainda carece de dados para que seja recomendada. A retirada percutânea permanece uma opção atraente e segura, mas há pouca literatura respaldando esta técnica. A abordagem através da esternotomia com CEC parece ser mais segura por permitir abordar os 2 lados, se necessário, mesmo que o êmbolo seja único e periférico. REFERÊNCIAS 1. Tozzi P, Abdelmoumene Y, Corno A, et al. Management of pulmonary embolism during acrylic vertebroplasty. Ann Thorac Surg 2002;74:1706-08. 2. Alvarez L, Alcaraz M, Perez-Higueras A, Granizo JJ, de Miguel I, Rossi RE, et al. Percutaneous vertebroplasty : functional improvement in patients with osteoporotic compression fractures. Spine 2006;31 (9):1113-18. 3. François K, Taeymans Y, Poffyn B, Van Nooten G. Successful management of a large pulmonary cement embolus after percutaneous vertebroplasty: a case report. Spine. 2003;28:(S)424-25. 4. NGG, Cordero JORG, Vieira LAG. Vertebroplastia percutânea: uma efetiva técnica cirúrgica minimamente invasiva. Rev Bras Ortop. 2008;43(12):15-22. 5. Padovani B, Kasriel O, Brunner P, et al. Pulmonary embolism caused by acrylic cement: a rare complication of percutaneous vertebroplasty. Am J Neuroradiol. 1999;20:375-77. 6. Jensen ME, Avery JE, Mathis JM, Kallmes DF, Cloft HJ, Dio JE. Percutaneous polymethylmetacrylate vertebroplasty in the treatment of osteoporotic vertebral body compression fractures: technical aspects. Am J Neuroradiol 1997;18:1897-1904. 7. Bosnjaković P, Ristić S, Mrvić M, Miljković AE, Vukićević T, Marjanović G, Macukanović-Golubović L.; Management of painful spinal lesions caused by multiple myeloma using percutaneous acrylic cement injection. Acta Chir Iugosl. 2009;56(4):153-8. 8. Lieberman I, Reinhardt MK.; Vertebroplasty and kyphoplasty for osteolytic vertebral collapse. Clin Orthop Relat Res. 2003 ;415 :Supl 176-86. COMENTÁRIOS FINAIS A embolia pulmonar de cimento utilizado para vertebroplastia é uma complicação comum, mas quando este êmbolo é volumoso, há poucos casos descritos na literatura. As estratégias cirúrgicas para a remoção são apresentadas neste artigo em que é relatada a experiência de um caso. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 281-283, out.-dez. 2014 Endereço para correspondência Airton Schneider Rua Cel. Bordini, 896/401 90.440-003 – Porto Alegre, RS – Brasil (51) 3346-8590 [email protected] Recebido: 16/10/2013 – Aprovado: 11/11/2013 283 RELATO DE CASO Tratamento de tumor carcinoide gástrico solitário por polipectomia endoscópica Treatment of solitary gastric carcinoid tumor by endoscopic polypectomy Uirá Fernandes Teixeira1, Daniel Andreoli Gomes2, Rodolfo dos Santos Monteiro2, Deise Bohn Rhoden3, José Artur Sampaio4 RESUMO Tumores carcinoides do estômago consistem em neoplasias do sistema neuroendócrino difuso que, embora raras, têm apresentado uma crescente incidência. Sua origem está nas células enterocromafins da mucosa gástrica. A abordagem clínica ideal ainda está sendo elucidada, dependendo do tipo, tamanho e número de lesões, bem como da presença de metástases. Este é o relato de caso de um tumor carcinoide gástrico solitário do tipo I, tratado satisfatoriamente por polipectomia endoscópica. UNITERMOS: Tumor Carcinoide, Neoplasias Gástricas, Endoscopia. ABSTRACT Carcinoid tumors of the stomach consist of neoplasms of the diffuse neuroendocrine system which, although rare, have shown increasing incidence. Their origin is in the enterochromaffin cells of the gastric mucosa. The optimal clinical approach is still being elucidated, depending on the type, size and number of lesions and the presence of metastases. This is the case report of a solitary gastric carcinoid tumor type I, treated successfully by endoscopic polypectomy. KEYWORDS: Carcinoid Tumor, Gastric Neoplasms, Endoscopy. INTRODUÇÃO Os tumores carcinoides gástricos, mais modernamente chamados de tumores neuroendócrinos (TNE) do estômago, são raros, compreendendo menos de 1% das neoplasias gástricas e, até pouco tempo, aproximadamente 2% dos tumores chamados carcinoides (1). Entretanto, dado o crescente uso do rastreamento por endoscopia digestiva alta, associado a biópsias de rotina e maior uso da imuno-histoquímica nas análises anatomopatológicas, estudos recentes apontam que esse percentual de diagnóstico no estômago passou a figurar entre 10 e 30% dos achados de tumores carcinoides gastrintestinais (2). 1 2 3 4 Sua origem está nas células enterocromafins (enterochromaffin-like ou ECL) da mucosa gástrica, sendo seu curso, de modo geral, indolente, e seu comportamento intermediário entre o adenoma e o adenocarcinoma gástricos, apresentando também etiologia e prognósticos notadamente distintos (2,3). O tratamento dessas lesões é variável, desde ressecções endoscópicas até cirurgias gástricas, de acordo com a classificação e o tamanho das lesões. Relatamos o caso de uma paciente com tumor carcinoide gástrico solitário, incidental, tratado de forma minimamente invasiva por polipectomia endoscópica. O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição, tendo a paciente assinado termo de consentimento livre e esclarecido. Mestrando em Medicina. Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Cirurgia do Aparelho Digestivo e Endoscopia Digestiva pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Acadêmico de Medicina da UFCSPA. Especialista em Patologia. Serviço de Patologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Doutor em Medicina. Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Professor de Cirurgia Geral e do Aparelho Digestivo da UFCSPA. Endoscopista do Pavilhão Pereira Filho – Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. 284 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 284-287, out.-dez. 2014 TRATAMENTO DE TUMOR CARCINOIDE GÁSTRICO SOLITÁRIO POR POLIPECTOMIA ENDOSCÓPICA Teixeira et al. RELATO DE CASO Paciente do sexo feminino, 69 anos, sem comorbidades ou antecedentes médicos significativos, apresentando sintomas dispépticos, realizou endoscopia digestiva alta na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, a qual evidenciou a presença de um pólipo semipediculado no fundo gástrico (Figura 1). Foi submetida então, no mesmo exame, a uma polipectomia endoscópica com alça diatérmica e biópsia gástrica. O resultado da biópsia revelou gastrite crônica moderada em atividade, com alterações cito-arquiteturais de padrão regenerativo e pesquisa de Helicobacter pylori positiva; a lesão polipoide foi classificada como tumor neuroendócrino (carcinoide), bem diferenciado, grau I segundo a OMS 2010, exibindo menos de 1 mitose por 10 campos de grande aumento, medindo 0,6 cm (Figura 2). Foi solicitado painel de imuno-histoquímica, cujo resultado encontra-se na Tabela 1. Testes de cromogranina A e gastrina sérica apresentaram valores levemente elevados (10nmol/L e 231pg/mL, respectivamente). A investigação foi complementada com cintilografia com análogos da somatostatina (octreoscan), que não mostrou captação. Foi instituído tratamento clínico para H. Pylori e optado por controle endoscópico após 3 e 6 meses da ressecção, que foram normais. A paciente seguirá fazendo o acompanhamento por endoscopia. DISCUSSÃO Os carcinoides gástricos são subdivididos em três grupos distintos: I, II e III. Os tipos I e II têm como fator predisponente e condição necessária, mas não suficiente, a hipergastrinemia. Os do tipo III, por sua vez, não se relacionam com essa condição (1,3). Nos carcinoides do tipo I (CG-1), a proliferação anormal das ECL, encontradas na mucosa oxíntica e correspondentes a 35% das células endócrinas do estômago, dá-se principalmente em função de quadros de gastrite atrófica crônica e/ou anemia perniciosa. Há, nos quadros em questão, o comprometimento de células gástricas parietais, e a subsequente acloridria/hipocloridria leva a uma produção desenfreada de gastrina pelas células do antro e, consequentemente, de histamina pelas ECL, na tentativa compensatória de estimular a produção gástrica. As lesões nas células enterocromafins apresentam-se como hiperplasia, displasia e, por fim, carcinoide (1,3). Nos carcinoides do tipo II (CG-2), a hiperplasia das ECL é decorrente de hipergastrinemia com origem em um quadro de Síndrome de Zollinger-Ellison (SZE) e Neoplasia Endócrina Múltipla (NEM-1), em que o paciente apresenta pequenos carcinomas pancreáticos ou duodenais produtores do hormônio. Assim, ao contrário do tipo I em que há acloridria/hipocloridria, os carcinoides do tipo II apresentam hipercloridria gerada por gastrinoma primário (1,3). Já os carcinoides do tipo III (CG-3) caracterizam-se por lesões esporádicas da mucosa gástrica, não tendo relação com hipergastrinemia. Ao contrário dos CG-1 e CG-2, o CG-3 pode estar associado com síndrome carcinoide atípica, que se apresenta com prurido, broncoespasmo e rubor cutâneo, possivelmente mediados por histamina liberada pelas ECL. Ainda que a etiologia não seja totalmente esclarecida, sabe-se que há uma predisposição genética para o desenvolvimento dos três tipos de carcinoides gástricos (3,4). A apresentação de carcinoides gástricos do tipo I se dá, em geral, na forma de múltiplos e pequenos pólipos (< 1cm), os quais se limitam às camadas mucosa e submucosa. Não há invasão angiolinfática, e o comportamento tende a ser benigno (1,3). A incidência de metástases tanto linfonodais quanto hepáticas é menor do que 2,5%, tendo a menor capacidade metastática entre os três tipos (2,5). Além disso, os tumores do tipo I tendem a ser bem diferenciados e localizados nas regiões de fundo e corpo gástricos, sendo mais frequentes em mulheres e pacientes com hipotireoidismo, na faixa etária dos 60 anos. Representam entre 70 e 85% do total dos tumores carcinoides gástricos (1). No caso da paciente em questão, contrariamente à maioria dos casos, a apresentação foi na forma de lesão polipoide única em fundo gástrico. Tabela 1 – Painel de imuno-histoquímica. Anticorpo testado Figura 1 – Tumor carcinoide em fundo gástrico Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 284-287, out.-dez. 2014 Resultado Citoqueratina 8/18 Positivo Citoqueratina 7 Negativo Citoqueratina 20 Negativo CDX2 Negativo Cromogranina Positivo Sinaptofisina Positivo LCA Negativo MUC5 Negativo Ki-67 Índice de proliferação celular de 2% 285 TRATAMENTO DE TUMOR CARCINOIDE GÁSTRICO SOLITÁRIO POR POLIPECTOMIA ENDOSCÓPICA Teixeira et al. A B C D Figura 2 – Histopatologia – A e B : Coloração usual (HE), onde podemos observar agregados microlobulares ou trabeculares de células pequenas, com núcleos regulares e monomórficos e escasso citoplasma eosinofílico. C e D (cromogranina e sinaptofisina, respectivamente). Identificamos intensa imunorreatividade para os marcadores, reforçando o diagnóstico de tumor carcinoide. Já os carcinoides do tipo II, por sua vez, também tendem a se apresentar como formações polipoides multifocais e, em sua maioria, pequenas (< 1-2 cm), limitados à mucosa e submucosa do fundo gástrico, entretanto, com curso mais agressivo e uma probabilidade de metástases um pouco mais elevada: 30% linfonodais e 10% hepáticas. A incidência não tem distinção apreciável entre os sexos, e representam de 5 a 10% dos casos. (1,2,3) Os carcinoides do tipo III, os quais correspondem de 15 a 25% dos casos, caracterizam-se, geralmente, como formações únicas, maiores (> 1-2 cm), com ulceração e penetração além da submucosa, atingindo vasos e, por consequência, com um curso mais agressivo, havendo probabilidade de aproximadamente 70% para metástases linfonodais e para outros tecidos. São mais frequentes em pacientes do sexo masculino, e mais comumente na faixa etária dos 50 aos 55 anos, como nos casos do tipo II (1,2,3,5). Em linhas gerais, no que tange ao diagnóstico, a sintomatologia é variada de acordo com o perfil de produção endócrina e com a localização do tumor, de modo que o diagnóstico baseado no quadro clínico torna-se difícil (4). Os tumores carcinoides gástricos, dessa forma, acabam sendo visualizados diretamente no exame endoscópico. 286 A confirmação do diagnóstico pode se dar pela análise histológica das lesões encontradas, pelo painel de imuno-histoquímica e também pela avaliação dos níveis séricos do hormônio peptídeo gastrina e da cromogranina A – grupo proteico presente em tecidos neuroendócrinos e de utilidade como marcador tumoral –, entre outros marcadores. Exames de imagem, tais como radiografia abdominal e exames de contraste, ultrassonografia abdominal, tomografia computadorizada (TC), ultrassonografia endoscópica e endorretal, e ressonância nuclear magnética (RNM), também podem ser empregados no diagnóstico, sendo, em geral, limitados para avaliar pequenos tumores (CG-1 e CG-2), mas podendo ser úteis nos pacientes com doenças notadamente mais invasivas (CG-3) e, portanto, na localização e estadiamento de tumores carcinoides, mas, em geral, com efetividade inferior a 50% (1,4). Além disso, há exames mais específicos, os quais se baseiam em cintilografia com a utilização de isótopos derivados de somatostatina, que têm grande utilidade na análise de disseminação metastática, como o octreoscan, com uma efetividade de 80%, haja vista que 85% dos carcinoides gástricos expressam receptores de somatostatina (1,3,4). Em se tratando de neoplasias malignas, o tratamento cirúrgico dos tumores carcinoides é, na maioria das vezes, Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 284-287, out.-dez. 2014 TRATAMENTO DE TUMOR CARCINOIDE GÁSTRICO SOLITÁRIO POR POLIPECTOMIA ENDOSCÓPICA Teixeira et al. essencial, observando-se, é claro, o tipo e o tamanho das lesões, de modo a se traçar a estratégia mais adequada (3,4). Para carcinoides do tipo I, que apresentem de 3 a 5 pólipos, com o maior não ultrapassando a marca de 1 cm, recomenda-se ressecção e acompanhamento por endoscopia digestiva alta anual (1). Já para tumores ainda pouco agressivos dos tipos I e II, com menos de 2 cm e um total de até 6 pólipos, é recomendada a ressecção endoscópica, com posterior acompanhamento endoscópico semestral (2,4). No caso de pacientes com tumores dos tipos I e II maiores do que 2 cm ou com mais do que 6 formações polipoides, ou, ainda, com invasão da camada muscular própria, recomenda-se uma abordagem mais agressiva, com ressecção cirúrgica local e linfadenectomia regional e antrectomia (no tipo I) para reduzir a fonte de produção gástrica e reduzir as chances de recidiva (1, 2, 4). Para os pacientes com tumores superiores a 1 cm e sem a ocorrência de hipergastrinemia – tipo III –, recomenda-se gastrectomia total e linfadenectomia regional, com posterior acompanhamento por exames de imagem e de dosagem sérica de cromogranina A semestralmente nos dois primeiros anos e anualmente, por mais três anos (1,4). Observa-se ainda que, em pacientes com tumor carcinoide gástrico do tipo II – associado à Síndrome de Zollinger-Ellison e NEM-1 –, o tratamento com derivados de somatostatina pode apresentar bons resultados na redução tumoral, da mesma forma que a antrectomia nos casos do tipo I (2). Kim et al (7) compararam a ressecção de carcinoides gástricos tipo I por mucosectomia endoscópica (ME) convencional com aqueles submetidos à dissecção endoscópica da submucosa (DES), muito utilizada no Oriente para o tratamento do câncer gástrico precoce (8). A conclusão foi que a DES resultou em ressecção histológica completa em 94,9% dos pacientes, comparativamente aos 83,3% alcançados com a ME, obtendo-se ainda menor comprometimento de margem vertical com a primeira técnica (7). Para casos recidivantes em tipos I e II, recomendam-se a gastrectomia total ou subtotal e a linfadenectomia regional. E em caso de doença metastática e metástases no território hepático, deve-se analisar a possibilidade de ressecção cirúrgica no fígado, ou, então, do uso de outras técnicas, como a quimioembolização ou a ablação por radiofrequência. Metástases pulmonares também são passíveis de ressecção cirúrgica, enquanto uma disseminação óssea pode ser abordada com radioterapia (1,4). Grozinsky-Glasberg et al (9), em estudo sobre carcinoides gástricos tipo I avaliaram os fatores relacionados a me- Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 284-287, out.-dez. 2014 tástases neste perfil de pacientes. Parece que a disseminação à distância dessas lesões está relacionada a um tamanho maior que 1 cm, ao índice de proliferação Ki-67 elevado e a níveis aumentados de gástrica sérica, características também ressaltadas em outros trabalhos (10). COMENTÁRIOS FINAIS Os tumores carcinoides gástricos, apesar de serem neoplasias raras, vêm apresentando incidência crescente, provavelmente em decorrência do aumento no diagnóstico em virtude da disseminação da endoscopia digestiva alta. O tratamento endoscópico é, muitas vezes, factível e realizado com sucesso, sendo o seu prognóstico melhor do que outras neoplasias gástricas, mesmo no caso de metástases. REFERÊNCIAS 1. Dal Pizzol AC, Linhares E, Gonçalves R, Ramos C. Tumores Neuroendócrinos do Estômago: Série de Casos. 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Endereço para correspondência Uirá Fernandes Teixeira Rua Prof. Cristiano Fischer, 818 91.410-000 – Porto Alegre, RS – Brasil (51) 3226-4859 [email protected] Recebido: 9/3/2014 – Aprovado: 23/5/2014 287 RELATO DE CASO Doença de Erdheim-Chester Erdheim-Chester Disease Marina Plain Olmi1, Diniz Brum Lamaison1, Otávio Rigoni Rossa1, Cristiane Bernardelli1, Cassian Rodrigues Belettini2, Laura Maria Fogliatto3 RESUMO A Doença de Erdheim-Chester é uma histiocitose não Langerhans rara e de incidência ainda desconhecida. Caracteriza-se por lesões osteoescleróticas de ossos longos podendo, também, infiltrar tecidos extraesqueléticos como coração, pulmões, olhos e retroperitônio. É relatado o caso de uma paciente portadora de Doença de Erdheim-Chester tratada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. UNITERMOS: Erdheim-Chester, Histiocitose, Osteoesclerose. ABSTRACT Erdheim-Chester disease is a rare form of non-Langerhans histiocytosis whose incidence remains unknown. Characterized by osteosclerotic lesions in long bones, it can also penetrate such extraskeletal tissues as heart, lungs, eyes and retroperitoneum. Here we report the case of a female patient with ErdheimChester disease treated at the Hospital de Clínicas of Porto Alegre. KEYWORDS: Erdheim-Chester, Histiocytosis, Osteosclerosis. INTRODUÇÃO RELATO DE CASO A Doença de Erdheim-Chester (DEC) é uma patologia rara caracterizada por uma histiocitose não Langerhans, com acometimento multissistêmico. Sua apresentação histológica consiste em lesões histiocíticas infiltrativas difusas, comumente ósseas, de aspecto xantomatoso (1). Devido às manifestações sistêmicas, podendo acometer coração, ossos, fígado, retroperitôneo, rins e aorta, o diagnóstico é difícil, devendo ser inferido em pacientes com lesões osteoscleróticas bilaterais em ossos longos ao RX (1). Este trabalho objetiva apresentar um caso de DEC, evidenciando alguns dos possíveis sítios de acometimento e complicações desta enfermidade, cuja etiopatogenia ainda é pobremente compreendida. N.L.Z, sexo feminino, 50 anos, procurou serviço médico em sua cidade de origem em 2002, apresentando dor em perna direita. Foi solicitada uma radiografia que evidenciou lesões osteoscleróticas simétricas predominantes nas diáfises tibiais. O hemograma revelou anemia, plaquetopenia e leucocitose. Posteriormente, manifestou proptose em olho direito e diminuição da acuidade visual. Foi encaminhada, então, para biópsias em tíbia direita e ocular. Na biópsia óssea, havia fibrose, reação pseudoxantomatosa e inflamação crônica e no olho direito, xantogranuloma retrobulbar. O estudo imuno-histoquímico foi positivo para os marcadores CD68 e S100 e negativo para CD1a, achados compatíveis com o diagnóstico de Erdheim-Chester. A tomografia de órbitas mostrou lesões tumescentes na gordura retro- 1 2 3 Estudante de Medicina. Residente de Medicina Interna no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Mestre. Médica Hematologista no HCPA e na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). 288 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 288-290, out.-dez. 2014 DOENÇA DE ERDHEIM-CHESTER Olmi et al. -orbitária intraconal bilateralmente. Diante destes achados, iniciou-se terapia com corticosteroides e Interferon alfa, obtendo-se resposta satisfatória ao tratamento. Em 2008, foi admitida no Hospital de Clínicas de Porto Alegre com quadro de insuficiência cardíaca descompensada, derrame pleural volumoso à esquerda e derrame pericárdico. Foi drenado 1 L na toracocentese, e o exame do derrame pleural demonstrou tratar-se de um transudato. Devido aos sinais de tamponamento cardíaco, foi realizada pericardiocentese com drenagem de 800 mL. Na tomografia de abdome, evidenciavam-se lesões fibróticas retroperitoneais com acometimento de seios e vasos renais, que acarretaram insuficiência renal crônica não dialítica, com novo episódio de agudização em 2010. No final de 2013, novamente hospitalizou por descompensação da insuficiência cardíaca, com dispneia aos mínimos esforços, dispneia paroxística noturna, astenia, dor em hemitórax anterior esquerdo e edema em membros inferiores. O ecocardiograma demonstrou fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 25%, disfunções sistólica e diastólica graves e derrame pericárdico moderado sem sinais de tamponamento. Iniciou o manejo da descompensação e, após 10 dias, foi solicitado novo ecocardiograma que apontou melhora na fração de ejeção para 50%. A paciente segue em acompanhamento ambulatorial com a Hematologia. DISCUSSÃO A DEC cursa com envolvimento sistêmico, podendo acometer ossos longos, seio maxilar, grandes vasos, retroperitôneo, pulmões, coração, pele, sistema nervoso central, hipófise e órbitas oculares (1). Devido ao envolvimento de diversos órgãos, o diagnóstico clínico é complicado, sendo necessária a biópsia do tecido afetado. Os achados clássicos na análise imuno-histoquímica desta doença são a expressão de CD68 e ausência de S100, CD1a e grânulos de Birbeck (2). Há, no entanto, sinais radiológicos que podem ser considerados patognomônicos da doença: esclerose cortical bilateral envolvendo as regiões diametafisárias de ossos longos no raio x, associado a um aumento na captação de Tecnécio 99 na cintilografia e infiltração simétrica e bilateral de ambos os espaços perirrenais e pararrenais posteriores (3, 4). A incidência da doença é praticamente igual entre homens e mulheres, sendo levemente maior em homens, e geralmente se manifesta entre a 5ª e 7ª décadas de vida (4). Em uma revisão de 59 casos, a idade média no momento do diagnóstico foi de 53 anos e a mortalidade, de 57% (5). Foram relatados apenas 8 casos em crianças (4). A etiologia ainda não foi totalmente elucidada, mas acredita-se que não haja componente genético, nem associação com agente infeccioso (4). Nessa perspectiva, ainda persistem dúvidas se a DEC se caracteriza por ser um processo neoplásico monoclonal ou policlonal reativo. Dentre as manifestações clínicas iniciais, os sintomas inespecíficos predominam, como fraqueza, perda ponderal, febre e sudorese noturna. Levando em consideração o acometimento sistêmico, acredita-se que 96% dos pacientes apresentem lesões ósseas e, dentre esses, 50% referem como sintoma a dor, sendo mais comum nas proximidades dos joelhos e tornozelos. Os ossos mais afetados são o fêmur, a tíbia e a fíbula. Ademais, uma característica importante é que a patologia tende a poupar o esqueleto axial e as regiões epifisárias (4). No momento do diagnóstico, 50% dos pacientes apresentam comprometimento extraósseo. O acometimento cardíaco, quando presente, revela pior resposta ao trata- Figura 1 e 2 – Infiltração de tecidos moles periaórticos, retroperitoneais e mesentéricos com densidade de tecidos moles com extensa obliteração de planos adiposos. Dilatação de cavidades coletoras dos rins. Há calcificações renais bilaterais. Baço com dimensões normais, apresentando pequena calcificação. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 288-290, out.-dez. 2014 289 DOENÇA DE ERDHEIM-CHESTER Olmi et al. mento e prognóstico. O infiltrado pericárdico é o achado mais comum; além disso, o envolvimento do átrio direito com infiltração pseudotumoral e do sulco auriculoventricular também são encontrados com relativa frequência. A infiltração vascular, como a fibrose periaórtica, principalmente na camada adventícia, pode atingir o tronco braquiocefálico, tronco pulmonar, tronco celíaco, mesentérica superior, dentre outros. O acometimento venoso é muito menos frequente (4). Outrossim, 68% dos pacientes apresentam envolvimento do espaço retroperitoneal (6). A infiltração massiva perirrenal pode comprimir os rins evoluindo para falência renal progressiva (7). As artérias renais também estão sujeitas a infiltração e estenose, acarretando na diminuição da perfusão sanguínea e hipertensão renovascular por meio da via renina-angiotensina. Cerca de 43% dos pacientes apresentam acometimento pulmonar, sendo uma das causas de doença intersticial. A presença de CD68 (+) e CD1a (-) no lavado broncoalveolar confirma o diagnóstico, e as provas pulmonares geralmente apontam para um distúrbio restritivo (8). Dentre as manifestações raras, as cutâneas são as mais comuns, com xantomas e xantelasmas periorbitais (9). No que diz respeito ao tratamento, ainda não há consenso entre os médicos; entretanto, Braiteh et al. usaram Interferon alfa em 3 pacientes, havendo regressão de lesões ósseas, dor, diabetes insipidus. Haroche et al., em um estudo com 53 pacientes, verificaram que o uso de Interferon alfa ou Interferon peguilado era preditor independente de maior sobrevivência. Sabe-se, contudo, que Interferon peguilado é melhor tolerado pelos pacientes. A paciente em questão procurou serviço médico por dores em membro inferior direito e teve seu diagnóstico definitivo a partir da biópsia. A doença continua em evolução, haja vista que o derrame pericárdico de moderado volume permanece, mesmo com o uso de corticoterapia. Em novo ultrassom de vias urinárias, evidenciou-se progressão da fibrose retroperitoneal bilateral, contraindicando o uso de Inibidores da Enzima Conversora da Angiotensina, medicamento que a levou à insuficiência renal aguda durante sua internação no fim de 2013. COMENTÁRIOS FINAIS Considerando a gravidade da DEC e os períodos de exacerbação, a sobrevida desta paciente é de mais de 11 290 anos. É importante enfatizar que a mesma encontra-se em tratamento ambulatorial, mantendo suas atividades diárias com poucas restrições. Para tanto, é necessário que esses pacientes possam ter acesso ao tratamento da doença de base, bem como à assistência médica global, envolvendo várias especialidades no manejo das complicações multissistêmicas. REFERÊNCIAS 1. Braiteh F, Boxrud C, Esmaeli B, et al. Successful treatment of Erdheim-Chester disease, a non-Langerhans-cell histiocytosis, with interferon-alpha. Blood 2005; 106:2992-4) 2. Botelho, Ana et al. Histiocitose Rara com Envolvimento Cardíaco Exuberante - Doença de Erdheim-Chester. Rev Port Cardiol 2008; 27 (5): 727-740. 3. Dion E, Graef C, Haroche J, Renard-Penna R, Cluzel P, Wechsler B, Piette JC, Grenier PA: Imaging of thoracoabdominal involvement in Erdheim-Chester disease.AJR Am J Roentgenol 2004,183:12531260. 4. Mazor RD, Manevich-Mazor M, Shoenfeld Y. Erdheim-Chester Disease: a comprehensive review of the literature.Orphanet J Rare Dis 20138:137) 5. Veyssier-Belot C, Cacoub P, Caparros-Lefebvre D, et al. Erdheim-Chester disease: clinical and radiologic characteristics of 59 cases. Medicine (Baltimore) 1996;75:157-169 6. Arnaud L, Hervier B, Neel A, Hamidou MA, Kahn JE, Wechsler B, Perez-Pastor G, Blomberg B, Fuzibet JG, Dubourguet F. et al. CNS involvement and treatment with interferon-alpha are independent prognostic factors in Erdheim-Chester disease: a multicenter survival analysis of 53 patients. Blood. 2011;8:2778-2782 7. Sanchez JE, Mora C, Macia M, Navarro JF. Erdheim-Chester disease as cause of end-stage renal failure: a case report and review of the literature. Int Urol Nephrol. 2010;8:1107-1112 8. Arnaud L, Pierre I, Beigelman-Aubry C, Capron F, Brun AL, Rigolet A, Girerd X, Weber N, Piette JC, Grenier PA. et al. Pulmonary involvement in Erdheim-Chester disease: a single-center study of thirty-four patients and a review of the literature. Arthritis Rheum.2010;8:3504-3512 9. Volpicelli ER, Doyle L, Annes JP, Murray MF, Jacobsen E, Murphy GF, Saavedra AP. Erdheim-Chester disease presenting with cutaneous involvement: a case report and literature review. J Cutan Pathol. 2011;8:280-285. Endereço para correspondência Marina Plain Olmi Rua Júlio de Castilhos, 22 95.970-000 – Muçum, RS – Brasil (51) 9724-9403 [email protected] Recebido: 5/4/2014 – Aprovado: 1/5/2014 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 288-290, out.-dez. 2014 ARTIGO DE REVISÃO Trauma complexo da mão parte II: lesão óssea, amputação e reimplante, perda de substância dos dedos, lesão da polpa digital e lesão ungueal Complex trauma of the hand, part II: bone injury, amputation and replantation, loss of finger substance, digital pulp injury and nail injury Jefferson Braga Silva1, Renato Franz Matta Ramos2, Alan Rodriguez Muñíz2, Márcio Pereira Lima Ferdinando3 RESUMO O trauma da mão representa uma das lesões que com maior frequência pode deixar sequelas funcionais importantes. A idade mais afetada é a economicamente ativa. Valorizamos o conhecimento adequado do primeiro atendimento e do manejo das lesões mais frequentes na mão traumatizada. Nesta segunda parte, serão abordados os fundamentos e conceitos considerados como essenciais na lesão óssea, amputações e reimplantes, perda de substância na mão, lesão da polpa digital e do complexo ungueal. Procuramos orientar a conduta dos médicos nas diversas situações clínico-cirúrgicas para diminuir o grau de complicações e sequelas. UNITERMOS: Trauma, Lesões, Traumatismo Da Mão, Amputação, Reimplante. ABSTRACT Hand trauma is one of the injuries that can most often leave important functional sequelae. The most affected age group is economically active people. We appreciate proper knowledge of the initial treatment and management of the most common injuries in the traumatized hand. In this second part we address the fundamentals and concepts considered essential in bone injury, amputation and replantation, loss of substance in the hand, and injuries of digital pulp and ungual complex. We aim to guide the conduct of physicians in different clinical and surgical situations to reduce the degree of complications and sequelae. KEYWORDS: Injuries, Trauma Of The Hand, Amputation, Replantation. INTRODUÇÃO O trauma complexo é uma condição clínica em que existe lesão de várias estruturas associadas. No primeiro atendimento, são necessárias medidas sobre as condições que implicam risco de vida. O diagnóstico certeiro das lesões ósseas, das perdas de substância e do comprometimento da polpa digital e do 1 2 3 complexo ungueal condicionará a terapêutica, interferindo não apenas sob o desenvolvimento natural da doença, como também nas intercorrências e sequelas decorrentes ao traumatismo da mão. O principal objetivo desta segunda parte do artigo é de ele servir como guia para médicos das especialidades da saúde envolvidas com o trauma. São discutidos temas sobre lesão óssea, amputação e reimplante, perda de subs- PhD. Professor Livre-docente em Cirurgia da Mão na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor do Departamento de Cirurgia e diretor da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Chefe do Serviço de Cirurgia da Mão e Microcirurgia Reconstrutiva do Hospital São Lucas da PUCRS. Pós-Graduação em Cirurgia Geral. Residente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital São Lucas da PUCRS. Pós-Graduação em Cirurgia Geral. Residente de Serviço de Cirurgia da Mão e Microcirurgia do Hospital São Lucas da PUCRS. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 291 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. tância na mão e dedos, lesão da polpa digital e do complexo ungueal, para orientar a conduta do médico nas diversas situações clínico-cirúrgicas. REVISÃO DA LITERATURA Lesão óssea Fratura dos metacarpianos Estas são lesões que, quando mal conduzidas, podem levar a deformidades, dor crônica e limitação funcional do segmento comprometido. A maioria das fraturas dos metacarpianos (MTC) é tratada conservadoramente. No exame físico, procura-se descartar a presença de desvios na rotação ou angulação da estrutura óssea, observando a projeção e o posicionamento das unhas, junto com a avaliação da flexão ativa dos dedos, acompanhando o diagnóstico com estudos de imagem. O tratamento imediato dependerá de fatores como local da fratura, formato, grau de angulação, ou se a lesão é limpa ou contaminada (fratura exposta, lesão de mais de 6 horas). A correção da deformidade e a estabilização da fratura são, sem dúvida, o foco do atendimento inicial, em que se procura diminuir a dor, melhorar o edema, e evitar o desenvolvimento de uma lesão secundária (1). Caso houver outra lesão associada (lesão vascular, infecção, etc.), o tratamento da fratura passaria para um segundo plano. Dessa forma, o atendimento ideal começa com limpeza da ferida, redução da fratura se possível, tração, fixação externa, imobilização com órtese ou tala de gesso (dependendo do caso), cobertura com antibiótico de largo espectro e uma adequada analgesia. Serão necessários exames radiográficos com 3 projeções (AP, perfil e oblíqua), para avaliar a rotação e o grau de angulação da fratura, sustentado pela avaliação clínica da extremidade com o intuito de definir a gravidade da lesão. Em quanto ao tratamento não cirúrgico dos metacarpianos, para aquelas lesões sem alteração na estabilidade articular, sem rotação ou deformidade importante, preconiza-se a imobilização da articulação metacarpofangiana (MTF) e do dedo correspondente por um período de 3 semanas, devendo-se orientar o paciente a manter o membro elevado (uso de tipoia) e mobilizar os dedos não comprometidos (2). Para alguns autores, fraturas no nível do segundo MTC, com angulação maior de 10 graus, representam uma condição de caráter cirúrgico. Para o terceiro MTC, angulação menor ou igual a 10 seria permissível, com relação ao quarto e quinto metacarpianos, devido que estes apresentam um grau maior de mobilidade, pode-se aceitar deformidades com um grau de angulação menor de 20 graus e 30 graus, respectivamente (3, 4). A fratura do primeiro metacarpiano considera-se incapacitante quando apresenta um nível de angulação maior de 30 graus (5). 292 Fratura das falanges Sem o tratamento adequado, a fratura da falange pode evoluir em limitação significativa na função da mão. Na maioria dos casos, este tipo de lesão não requererá abordagem cirúrgica. O bloqueio digital antes da redução da fratura é uma ferramenta muito útil para o manejo da dor (Lidocaína sem vasoconstritor e Ropivacaína), consequentemente atenuando a ansiedade e o desconforto no paciente. Una fratura na diáfise das falanges proximais e médias deve ser imobilizada com tala de Zimmer, com a articulação parcialmente fletida, por um período de 3 a 4 semanas. Quanto a uma fratura condilea das articulações interfalangianas (IF), sempre que possível, devem ser reduzidas, caso contrário, o desenvolvimento de rigidez articular, alteração na configuração dos dedos e limitação funcional poderiam ser evidentes. Se necessário, a redução aberta da fratura poderia estar indicada (alinhar a fratura com parafuso, fixador externo ou fio de kirschner). A falange distal é o segmento digital mais atingido, e geralmente cursa com lesão concomitante do leito ungueal. As fraturas da falange distal consolidam, de modo geral, sem necessidade de intervenção. Nestes casos, a imobilização seria utilizada com a finalidade de diminuir a dor e o desconforto (6). Luxação da articulação IF/MTC Dependendo da presença ou não de fratura associada, a luxação articular pode-se classificar em simples (sem fratura) ou complexa, quando a luxação é não reduzível e apresenta uma fratura concomitante. A técnica utilizada para a redução da luxação digital inicia-se com um adequado bloqueio anestésico da articulação, seguido de flexão da articulação comprometida, para depois continuar com uma leve pressão na face dorsal da falange distal. Depois, segurando o dedo se traciona a falange distal em sentido volar, procurando conseguir o reposicionamento da articulação IF ou MTF. A seguir, o dedo comprometido é imobilizado por um período de 2 a 3 semanas para prevenir a hiperextensão da articulação (7). Os pacientes com luxação complexa necessitarão de exploração cirúrgica da lesão, precisando da atenção e dos cuidados de um especialista. Amputação e reimplante dos dedos É importante enfatizar a prevalência da funcionalidade desta estrutura e deixar de lado a estética. Embora a estética esteja dentro dos objetivos de tratamento, devemos ter preferência por uma mão funcional e útil (função de pinça). A princípio, dependendo do nível da amputação, a ferida incisa pode ser indicação de reimplante. O que seria pouco provável se for por esmagamento (8). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. Amputação dos dedos Exame e avaliação inicial da lesão Formato da lesão - Limpeza exaustiva - Curativo estéril - Elevação do membro - *Antibiótico - Reposição de volume Amputação Parcial Pesquisar - Sensibilidade - Lesão tendinosa - Vascularização do coto distal da amputação *Solicitar Rx (2 incidências) Amputação total Segmento amputado - Proteção com gaze - Colocar em sacola plástica - Colocar dentro de recipiente com gelo Avaliar a dor - Anestesia adequada - Bloqueio de plexo braquial - *Avaliação secundária - Qualificar viabilidade dos tecidos *Iniciar profilaxia antibiótica de largo espectro, para maior segurança. * Solicitar raio x da extremidade para avaliar lesão óssea e/ou nível da amputação. *Avaliação 2ª: revisar viabilidade dos tecidos, preservar todo tecido possível. Devido que poderão ser utilizados para rotações de retalho e cobertura do segmento amputado, caso a possibilidade de reimplantação for remota. Figura 1 – Algoritmo de Conduta na amputação na mão. Devemos indagar pelo ambiente em que ocorreu a lesão e sobre o tempo decorrido entre a lesão e o atendimento primário (ferimento limpo ou contaminado) (9) (Figura 1). Como medida inicial diante deste tipo de eventos, recomenda-se envolver a ferida (coto proximal da extremidade amputada) com um pano limpo ou compressa estéril, seguido de compressão local com atadura de crepe. Com relação ao segmento amputado, deve ser lavado exaustivamente com soro fisiológico 0,9%, envolto por compressa limpa e colocado em um recipiente com gelo, pois, normotérmico, a lesão tecidual ocorre em um perío- do de 3 a 6 horas e, com o resfriamento (4oC), pode chegar de 12 a 24 horas (10, 11). No entanto, a lesão tecidual pode ser mais precoce, o que irá depender da quantidade de tecido muscular comprometido. O tempo entre o trauma e a revascularização não deveria ultrapassar as 6 horas (Figuras 2, 3). Recomenda-se realizar a avaliação primária do paciente ainda com o mesmo não anestesiado, para conferir se há permeabilidade capilar, examinar tendões e pesquisar sensibilidade. Solicitar pelo menos 2 incidências de raio x ortogonais (90º entre si), para avaliar lesão óssea e confirmar o nível Figura 2 – Peça amputada adequadamente conservada. Figura 3 – Peça amputada pronta para o reimplante. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 293 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. Quadro 2 – Indicações absolutas de reimplante. Quadro 1 – Procedimento cirúrgico nos reimplantes. Limpeza cirúrgica Amputação do polegar Desbridamento *Amputação de múltiplos dedos Encurtamento esquelético Amputação no nível do punho Osteossíntese Amputação no nível da palma da mão Anastomoses vasculares Segmento amputado na criança Tenorrafias *Nas amputações de múltiplos dedos, prefere-se realizar o reimplante de forma sequencial, de radial para ulnar. Sempre iniciando pelo polegar. *Amputações de múltiplos dedos por esmagamento ou avulsão, deve-se reimplantar pelo menos um dos dedos, de preferência o indicador, com o objetivo de restituir a pinça com o polegar. Neurorrafias Reparação do revestimento cutâneo Quadro 3 – Zonas de amputação e níveis de reimplante. Zonas do 2o ao 5o dedo 1 Distal sem comprometimento ósseo Zonas do polegar 1 Amputação distal sem comprometimento ósseo 2 Comprometimento ósseo e do leito ungueal 2 Comprometimento ósseo e do leito ungueal 3 Proximal ao leito ungueal, sem compromisso articular 3 Proximal ao leito ungueal, sem comprometimento articular 4 Articulação IFD 4 Lesão no nível da articulação interfalangiana 5 Proximal à articulação IFD 5 Interfalangiana até articulação MF Proximal à articulação 6 metacarpofalangiana Sem comprometimento da musculatura tenar Com comprometimento da musculatura tenar *Classificação dos reimplantes Zona I Entre a polpa digital e a base da unha Zona II Entre a articulação IFP e a base da unha Zona III Compreende a região entre a articulação metacarpofalangiana e a IFD *Articulação Interfalangiana Proximal (IFP), articulação interfalangiana distal (IFD), articulação metacarpofalangiana (MF). *Classificação dos reimplantes: os reimplantes de dedos são classificados em três tipos, segundo a localização da amputação. de amputação. Já anestesiado, deve-se realizar uma nova avaliação, para ver a viabilidade dos tecidos (obs.: nunca ressecar tecido que não pareça vascularizado devido à isquemia reativa), reavaliar 24-48h depois, pois estes podem ser necessários para serem usados como cobertura. (Quadro 1). Funcionalmente importante, a falange distal, sempre que possível, deve ser reimplantada (12) (Quadro 2). Porém, a anastomose dos vasos pode ser extremamente difícil e, em alguns casos, impossível (13). Os reimplantes apresentam melhores prognósticos nas amputações mais proximais, regulares e com lesão tecidual menos extensa (Quadro 3). O resultado funcional é mais favorável, sendo possível o reimplante de todos os dedos (14) (Figuras 4, 5, 6, 7). Nas amputações que envolvem polegar e indicador, a prioridade é o reimplante do polegar. Quando o polegar não pode ser reimplantado devido à extensa lesão do segmento amputado, pode-se realizar o reimplante heterotópico, utilizando o indicador amputado para reconstruir o polegar (Figuras 8, 9, 10, 11). Figura 4 – Amputação traumática do polegar. Figura 5 – Peça amputada adequadamente conservada. 294 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. Figura 6 – Resultado funcional após o reimplante microcirúrgico. Figura 7 – Resultado estético após o reimplante microcirúrgico. Figura 8 – Lesão complexa da mão com amputação traumática do polegar e do dedo indicador. Figura 9 – Peças amputadas. Maior lesão e esmagamento do polegar. Figura 10 – Reimplante heterotópico do indicador para reconstruir o polegar. Figura 11 – Resultado funcional do reimplante heterotópico do indicador para reconstruir o polegar. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 295 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. Quanto à reparação vascular, as anastomoses são do tipo termino-terminal sempre que possível. Em casos de perdas mais extensas, é aconselhável a interposição de enxertos vasculares. Para enxertos de maior calibre, dá-se preferência aos enxertos de veias localizadas na face anterior do punho. Quando não há variação de calibre, pode-se usar uma artéria digital retirada de um dedo não comprometido. No caso do polegar, a transferência da artéria digital ulnar do dedo indicador ou médio pode-se usar como uma boa alternativa cirúrgica. As neurorrafias e as tenorrafias devem ser realizadas sempre que possível em primeiro tempo. Uma vez que as estruturas neurovasculares do segmento amputado são identificadas, é importante avaliar a necessidade de encurtamento ósseo. O encurtamento ósseo (5-10 mm) será essencial para tirar a tensão, e assim permitir o reparo das estruturas comprometidas, evitando o uso de enxerto (15). Por último, em referência aos cuidados pós-operatórios, deve-se prevenir as baixas temperaturas e iniciar tratamento anticoagulante (AAS e heparina) para evitar espasmos arteriais ou trombose vascular (complicações imediatas), além de manter o membro reimplantado em posição elevada para diminuir o edema. Perdas de Substância dos Dedos Nos casos em que há perda de substância, ou lesão importante de partes moles com injúria e presença de áreas com tecido desvitalizado, o desbridamento sempre deverá ser corajoso e agressivo, seguindo os sinais de coloração e sangramento, priorizando nas lesões vasculares, nervosas, ósseas e tendíneas (Figura 12). Tipos de Cobertura Cutânea: 1. Enxertos de pele: de espessura variada (parcial ou total), necessitam de um leito receptor adequado (vascularizado e com contaminação limitada). Integrará sobre tecido celular subcutâneo, periósteo, peritendão, músculo; mas não sobre tendão, cartilagem ou osso desperiostizado. A retração secundária e o aspecto estético são outros inconvenientes da técnica. 2. Retalhos Homodigitais 2.1. Retalho de Hueston: permite a cobertura de perdas de substância (PDS) transversais e oblíquas. Preferido em lesões dorsais articulares. É um retalho em “L”, com incisão longitudinal na borda lateral do dígito, seguida por incisão transversa ao nível da Perdas de substância na mão Lesão traumática da mão Lesão superficial da mão Lesão profunda da mão sem compromisso ósseo, tendíneo ou vascular Lesão complexa da mão com compromisso ósseo, tendíneo ou vascular Controle da hemorragia Estabilização das fraturas Lavagem, curativo e cobertura com gaze baselinada estéril Lavagem, desbridamento se necessário, antibiótico de amplo espectro e cobertura com gaze baselinada estéril Avaliar necessidade de cobertura cutânea Enxerto de pele parcial ou completa Lavagem, desbridamento, antibióticos de amplo espectro, cobertura com gaze baselinada estéril, curativo compressivo Definir o melhor tipo de cobertura cutânea Cicatrização dirigida por segunda intenção Retalho PDS na palma ou dorso da mão PDS digital Retalhos antebraquiais (arteria ulnar, radial ou interóssea anterior ou posterior) Retalho Hueston doral ou palmar Retalho desepidermizado dorsal Retalho em ilha neurovascular direito Retalho de troca pulpar Figura 12 – Algoritmo em perdas de substância na mão e nos dedos. 296 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. prega de flexão, permitindo a rotação e cobertura da lesão. A zona doadora, em forma de triângulo, pode ser coberta por enxerto de pele ou cicatrização dirigida. Podem ser feitos dois retalhos (proximal e distal) quando a perda é grande. 2.2. Retalho desepidermizado dorsal: este retalho recebe vascularização dos ramos dorsais da artéria colateral dorsal. Útil em PDS palmar para cobertura de tendões. A incisão da pele é realizada proximal à perda de substância, como do tipo “folha de livro” em H; segue-se a desepidermização da pele com individualização do tecido celular subcutâneo (16, 17). A secção proximal desse tecido dar-se-á o quanto for necessário para adequar-se à PDS, acrescido de 1 cm. Essa adição, a partir da interlinha articular, deve-se ao fato de que a vascularização provém de ramos dorsais das artérias colaterais palmares, tanto em nível da articulação MF quanto à IFP. Giro de 180º, com posterior enxertia de pele parcial sobre o retalho (18, 19). 2.3. Retalho em ilha neurovascular direto unipediculado: demarca-se uma ilha de pele volar proximal e contígua à PDS. Identificação e dissecção do pedículo por incisão de Brunner até a prega proximal da articulação MF. A área doadora é coberta por enxerto de pele parcial ou total. O procedimento finaliza com imobilização em posição intrinsic plus (MF 45º-70º, IFP e IFD em extensão). Como complicações, pode-se apresentar necrose do retalho por excesso de tração/rotação ou sensibilidade cruzada (ao palpar o retalho, o paciente apresenta sensibilidade à área doadora) (Figuras 13, 14, 15, 16). 2.4. Retalho de troca pulpar: consiste na substituição da polpa digital para a face funcionalmente mais im- Figura 13 – Lesão da face ulnar da polpa digital D5. Figura 14 – Retalho em ilha descolado e posicionado. Figura 15 – Resultado pós-operatório imediato. Figura 16 – Resultado pós-operatório de 3 meses. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 297 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. 19, 20), retalho de ramos da artéria radial (Galbiatti) ou dos ramos perfurantes da artéria radial, retalho da artéria interóssea posterior (Masquelet, Zancolli), interóssea anterior (Hu) (21). portante, por meio de um retalho homodigital em ilha com pedículo neurovascular, baseado na artéria digital palmar. Este retalho é liberado totalmente em sua circunferência cutânea, com exceção do seu pedículo neurovascular, o que lhe permite maior mobilidade. Quando a perda da polpa digital ocorre no 2o, 3o, 4o ou 5o dedos, a face do dedo usada para a obtenção da ilha de pele (nova polpa digital) é a ulnar (20). No polegar é usada a face radial. Isso se justifica pela maior importância da face radial do 2o ao 5o dígitos que fazem contato com a face ulnar do polegar quando a pinça é realizada. 3. Retalhos Regionais e a Distância: retalhos antebraquiais para perdas extensas da face palmar de vários dedos. A sindactilização é uma opção interessante. Retalho da artéria ulnar (Guinberteau-Lovie), de um dos seus ramos (Beker), da artéria radial (chinés) (Figuras 17, 18, A porção mais distal da última falange corresponde à polpa digital e ao complexo ungueal. É uma área de grande aglomeração de corpúsculos sensitivos. Para definir e indicar a área acometida, a falange distal é dividida em zonas, segundo a classificação de Braga Silva: Zona 1 (sem exposição óssea, PDS pequena); Zona 2 (PDS maior, ¾ do leito ungueal, fratura da tuberosidade da falange); Zona 3 (PDS de todo o leito ungueal e fratura do terço distal da falange), Zona 4 (perda de quase toda a flange distal). O manejo nas lesões da ponta digital detalha-se a seguir (Figura 21). Figura 17 – Lesão traumática complexa da mão. Amputação dos dedos D3-D5. Perda dos metacarpianos D2-D5. Figura 18 – Enxerto ósseo da crista ilíaca para substituição do segundo metacarpiano. Figura 19 – Resultado pós-operatório imediato da reconstrução e cobertura com retalho chinês. Figura 20 – Resultado funcional após 6 meses. 298 Lesões da Polpa Digital Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. Lesão digital distal Sem lesão ungueal Lesão ungueal Com perda da unha Sem perda da unha Com lesão óssea Lesão do leito ungueal? Hematoma subungueal? Estabilização da fratura Sim Lavagem, desbridamento se necessário, sutura do leito ungueal, cobertura com lâmina de silicone estéril, *enxerto de leito ungueal Não Lavagem, cobertura com lâmina de silicone estéril Sim <50% Drenagem com agulha, drenagem com lâmina de bisturí n° 11, curativo compressivo >50% Sem lesão óssea Fechamento primário Não Reconstrução Lavagem, desbridamento se necessário, sutura da unha ao leito para cobertura Retalho de Atasoy, retalho de Kutler, retalho em ilha neurovascular direito, retalho Moberg (polegar) Descolamento e exploração do leito ungueal Figura 21 – Algoritmo de manejo nas lesões digitais distais. 1. Reconstruções: 1.1. Retalho Atasoy: indicado para as lesões distais transversais e oblíquas. O avançamento médio é de 0,5 cm. O retalho apresenta forma triangular palmar sobre a falange distal, com o vértice à altura da prega de flexão da articulação IFD. A dissecção é realizada por descolamento e avançamento. 1.2. Retalho Kutler: consiste em dois retalhos triangulares laterais e simétricos, suturados na linha média, para amputações transversais. A incisão dos retalhos não deve estender-se além da prega de flexão distal da articulação IFD. A sutura é realizada na linha média. O defeito na área doadora é fechado bilateralmente em forma de “Y”. 1.3. Retalho de Moberg: utilizado preferencialmente no polegar. Delimita-se contiguamente a perda de substância, realizam-se duas incisões médio-laterais, mas se mantém o pedículo cutâneo até a base da eminência tenariana. A região ocasionada pelo avanço do retalho normalmente se cobre com enxerto de pele total retirado da borda ulnar da mão. A sua maior vantagem é a preservação da sensibilidade, e a sua maior desvantagem é o avanço limitado, em torno de 20 mm. 1.4. Retalho em ilha neurovascular direto (ver ponto 2.3). Lesões do Complexo Ungueal Entre as lesões mais frequentes do complexo ungueal, descrevem-se o hematoma subungueal, as lacerações, os esRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 magamentos e a avulsão do leito ungueal. Os hematomas ocorrem devido a trauma microvascular no leito da unha. A perfuração da unha com agulha ou lâmina de bisturi nº 11 para drenagem do hematoma subungueal (menos do que 50% da superfície da unha) parece ser o método mais simples de tratar um trauma sem fraturas. O alívio da dor é imediato. Para os casos com hematoma subungueal maior que 50% da superfície ungueal, será necessário realizar descolamento da unha para permitir o reparo microcirúrgico do leito ungueal. Cobertura antibiótica e analgésicos são necessários. Para avulsão ou esmagamento severo de leitos ungueais e pontas de dedo, é necessário substituir a perda de substância com enxertos de leitos (leito ungueal do hallux) e retalhos regionais. Enxertos de leito de unha podem ser feitos frequentemente no contexto agudo e atrasado. É importante levar em conta a possibilidade de cicatriz ou possível deformidade da unha no local doador. Nos casos de traumatismo com perda da unha, tenta-se, dentro do possível, dar cobertura ao leito com a própria unha do paciente. Se isso não for possível, pode-se utilizar uma cobertura de silicone (por exemplo, bolsa do soro fisiológico estéril) (Figuras 22, 23, 24, 25, 26). DISCUSSÃO O trauma da mão acarreta consigo uma caracterização socioeconômica importante com um saldo negativo. Porem, é relevante identificar as alterações envolvidas neste fenômeno, pois tem importância vital para perpetuar a função da extremidade afetada. Acreditamos importante o 299 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. Figura 22 – Lesão da polpa digital e do complexo ungueal. Figura 23 – Exposição óssea e lesão da matriz ungueal. Figura 24 – Fixação com agulha nº 21. Reconstrução do leito ungueal e pele. Figura 25 – Cobertura do leito ungueal com a própria unha do paciente. conhecimento dos conceitos básicos no atendimento primário nas lesões com perda de substância da mão, assim como as diferentes opções cirúrgicas de reconstrução, para serem utilizadas, quando necessário. Portanto, a abordagem multidisciplinar fornecerá maior integridade na atenção do paciente e, certamente, favorecerá na obtenção de melhores resultados tanto funcionais como estéticos. COMENTÁRIOS FINAIS Figura 26 – Resultado estético após 24 meses da cirurgia. 300 O conhecimento da anatomia do membro superior é importante para um atendimento e encaminhamento precoce e adequado pelos profissionais envolvidos com o trauma. Valorizamos o atendimento primário adequado para diminuir as consequências desfavoráveis e sequelas funcionais deste tipo de lesões. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014 TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al. REFERÊNCIAS 1. Weinstein LP, Hanel DP. 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Ipiranga, 630/605 90.160-090 – Porto Alegre, RS – Brasil (51) 3320-3000 [email protected] Recebido: 19/12/2013 – Aprovado: 13/1/2014 301 ARTIGO ESPECIAL Reflexões sobre a saúde pública e o ensino médico Reflections on public health and medical education Cyro Castro Júnior1 RESUMO O Brasil vive um período de intensos debates sobre a saúde pública, a sua qualidade e a sua abrangência a todos os brasileiros, além do questionamento referente à formação médica nas instituições de ensino quanto ao aprendizado técnico e à formação humanística, o que determinou medidas por parte do governo no sentido de oferecer atendimento médico a periferias das grandes cidades e lugares longínquos, além de mudanças na área pedagógica, na grade curricular e na política de autorização para o funcionamento das faculdades de Medicina. O presente artigo traz uma breve revisão sobre o assunto, com as experiências existentes tanto no campo assistencial quanto no educacional no nosso país e no mundo, sem a pretensão de esgotar o assunto, porém auxiliando na reflexão sobre quais medidas poderiam representar impacto real sobre a qualidade da assistência de saúde à nossa população. UNITERMOS: Saúde Pública, Educação Médica, Métodos, Currículo. ABSTRACT Brazil is experiencing a period of intense debates on public health, its quality and its scope to all Brazilians, as well as the questioning of medical training in educational institutions as for technical learning and humanistic training. This has determined governmental measures to provide medical care to the outskirts of large cities and remote locations, as well as changes in the pedagogical area, in the curriculum and in the authorization policy for the operation of medical schools. This article provides a brief review of the subject, with existing experiences both in the healthcare field and in education in our country and the world, with no claim to exhaust the subject, but helping to consider what measures could have a real impact on the quality of the healthcare delivered to our population. KEYWORDS: Public Health, Medical Education, Methods, Curriculum. O País vive um período de intensos debates sobre a saúde pública, a sua qualidade e a sua abrangência a todos os brasileiros, determinando medidas por parte do governo, ditas emergenciais, no sentido de oferecer atendimento médico a periferias das grandes cidades e lugares longínquos que o poder público, historicamente, tem dificuldade para alcançar por motivos diversos ao longo dos anos, sejam eles econômicos, culturais, políticos, etc. Porém, permanece a dúvida se essas medidas representarão impacto real sobre a qualidade da assistência de saúde a essas populações. A Organização Mundial da Saúde (OMS) (1), em 1948, definiu saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”, entendendo-se, então, a saúde como um valor da comu1 nidade e não apenas do indivíduo. Portanto, a discussão principal gira em torno do que significa oferecer melhores cuidados de saúde a uma população, uma vez que sabemos que a saúde é conquistada através de um extenso leque de necessidades básicas a serem atingidas, tais como água tratada, saneamento básico, noções de higiene pessoal e alimentação, orientação e combate ao uso ou abuso de drogas, sejam lícitas ou ilícitas, práticas saudáveis diárias, como atividade física, ensino, educação, cultura, boas condições de moradia e convívio social, segurança, entre outras. A Constituição Federal (1988) (2), no artigo 196, refere-se à saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para Médico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com especialização em Cirurgia Geral e Cirurgia Vascular. Mestre em Medicina Cirúrgica pela UFRGS. 302 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 302-305, out.-dez. 2014 REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE PÚBLICA E O ENSINO MÉDICO Castro Júnior sua promoção, proteção e recuperação”. Os cuidados aos agravos à saúde têm importância fundamental nesse contexto, pois estes necessitam de uma estrutura completa de atendimento à população no âmbito da prevenção e do tratamento. Para a prevenção e o acompanhamento à saúde dos indivíduos, se faz necessária uma estrutura multiprofissional, com suporte de instalações físicas adequadas, acesso a profissionais médicos, odontólogos, enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos, fisioterapeutas, nutricionistas, entre outros, acesso a exames laboratoriais, vacinas, medicação, demandando uma organização sistêmica, regionalizada e hierarquizada (3). Na sociedade brasileira, observamos carências importantes em grandes extensões do nosso território, seja na estrutura física ou na distribuição de profissionais, para a garantia desse direito constitucional. A Constituição Federal de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) como uma nova formulação política e organizacional para o reordenamento dos serviços e ações de saúde. O SUS deve ter a mesma doutrina e os mesmos princípios organizativos em todo o território nacional, sob a responsabilidade das três esferas autônomas de governo federal, estadual e municipal. Assim, o SUS não é um serviço ou uma instituição, mas um sistema que significa um conjunto de unidades, de serviços e ações que interagem para um fim comum. Esses elementos integrantes do sistema referem-se, ao mesmo tempo, às atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde (2, 4). Baseado nos preceitos constitucionais, a construção do SUS se norteia pelos princípios doutrinários da “universalidade, equidade e integralidade”. Nesta visão, “o homem é um ser integral, bio-psico-social, e deverá ser atendido com esta visão por um sistema de saúde também integral, voltado a promover, proteger e recuperar a sua saúde” (3, 4). Com base no descrito, o que se vê na prática é que os cuidados da saúde da população brasileira carecem da presença do Estado como garantidor da previsão constitucional em várias partes do território há longa data. Segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) (5), o gasto com saúde no Brasil representa 8,4% do PIB, sendo que o setor público arca com 41,6%, ficando os restantes 58,4% a cargo do setor privado, embora mais de 90% da população seja usuária do SUS, 28,6% utilizam exclusivamente o SUS e apenas 8,7% da população não o utilizam. Como garantir os princípios do SUS de universalidade, equidade e integralidade em um território tão extenso e tão diverso do ponto de vista econômico, social e cultural? A primeira tentativa de interiorização da saúde ocorreu com o Projeto Rondon, criado em 1967, e, durante as décadas de 1970 e 1980, permaneceu em franca atividade, tornando-se conhecido em todo o Brasil, envolvendo mais de 350 mil estudantes universitários e professores em atividades assistenciais. No final dos anos 1980, o Projeto deixou de receber prioridade no Governo Federal, sendo extinto em 1989. Em 2005, com nova roupagem, o Projeto Rondon voltou à pauta dos programas governamentais, Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 302-305, out.-dez. 2014 sendo atribuída a sua coordenação ao Ministério da Defesa. Desde então, o Rondon já levou mais de 12 mil rondonistas a cerca de 800 municípios. O Rondon é um projeto de integração social que envolve a participação voluntária de estudantes universitários na busca de soluções que contribuam para o desenvolvimento sustentável de comunidades carentes e ampliem o bem-estar da população. O Projeto Rondon tem por objetivos: contribuir para a formação do universitário como cidadão; integrar o universitário ao processo de desenvolvimento nacional, por meio de ações participativas sobre a realidade do País; consolidar no universitário brasileiro o sentido de responsabilidade social, coletiva, em prol da cidadania, do desenvolvimento e da defesa dos interesses nacionais e estimular no universitário a produção de projetos coletivos locais, em parceria com as comunidades assistidas (6). Outra iniciativa, iniciada em 1994, a Saúde da Família é entendida como uma estratégia de reorientação do modelo assistencial, mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde. Essas equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais frequentes, e na manutenção da saúde desta comunidade. A Saúde da Família busca maior racionalidade na utilização dos demais níveis assistenciais e tem produzido resultados positivos nos principais indicadores de saúde das populações assistidas pelas equipes de saúde da família (7). Tendo em vista a necessidade não apenas de levar médicos por períodos para intervenções de atendimento no Interior, mas, sim, manter a presença desses profissionais nestas localidades, existe em tramitação no Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 34/2011, que cria a Carreira de Médico do Estado no âmbito do SUS, como uma forma de fixar médicos em municípios distantes, através de concurso público e com plano de carreira atrativo, porém sem suficiente apoio político para a sua aprovação (8). A Medida Provisória nº 621, de 08 de julho de 2013, e a Lei nº 12871, de 12 de outubro de 2013, instituem o Programa Mais Médicos, que “prevê investimento em infraestrutura dos hospitais e unidades de saúde, além de levar mais médicos para regiões onde não existem profissionais”. De imediato, o programa fez a contratação de mais de 14 mil médicos para a atuação em periferias e municípios longínquos, remunerados por bolsa federal e com um período de atuação definido de três anos. Com a pequena adesão dos médicos brasileiros e dos demais estrangeiros, a grande maioria dos profissionais foi trazida de Cuba, por meio de convênio que suscitou grandes discussões sobre a legalidade e também sobre o impacto que um programa com prazo estabelecido possa trazer de benefício à população assistida. Em parceria com o Ministério da Educação, o programa prevê ainda a abertura de 11,5 mil vagas nos cursos de Medicina no País até 2017 e 12 mil vagas para 303 REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE PÚBLICA E O ENSINO MÉDICO Castro Júnior formação de especialistas até 2020, com uma mudança na formação dos estudantes de Medicina na tentativa de “aproximar ainda mais os novos médicos à realidade de saúde do país” (9). Este debate levantou questões sobre a formação dos médicos brasileiros, polarizando quanto ao aprendizado técnico e à formação humanística nas faculdades de Medicina do País, generalizando e rotulando a formação médica no Brasil. Podemos observar que essa discussão não é nova, e várias experiências concretas existem no mundo e no Brasil com o uso de metodologias de ensino que propiciam o desenvolvimento do conhecimento médico vinculado ao atendimento humanizado à população, através de metodologias ativas de ensino, contrastando com o uso de metodologias tradicionais que compartimentalizam o conhecimento em campos altamente especializados (10). As metodologias de ensino-aprendizagem ativas foram, primeiro, instituídas na Escola de Medicina da Universidade de McMaster, no Canadá, a partir de 1966, criando a aprendizagem baseada em problemas (ABP) em estudos preliminares sobre mudança curricular e oficializando essa mudança em 1969. Desde então, a ABP foi adotada pelas Universidades de Maastrch, na Holanda; Harvard e Havaí, nos Estados Unidos, Sherbrook, no Canadá, entre um total de 60 outras escolas e Universidades distribuídas também pela Ásia, África e América Latina. No Brasil, essa modalidade de estrutura curricular foi implantada na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), em 1997; no Curso de Medicina da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em 1998; na Faculdade de Medicina da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO), do Rio de Janeiro, em 2005 (após a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – SBMFC – realizar a primeira exposição em Medicina de Família e Comunidade na UNIFESO, com experiências do Sul e Sudeste do Brasil e destacando o potencial das metodologias ativas no cuidado e na promoção da saúde integral), no curso de Medicina do Centro Universitário do Pará (CESUPA), em 2006 (3, 10, 11, 12, 13). A Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), o Programa de Incentivo para Mudanças no Currículo na Educação Médica (PROMED, 2002) e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde, 2005) surgem estimulando a educação superior ao conhecimento dos problemas do mundo atual e a prestação de serviço em reciprocidade com a população. As Diretrizes Curriculares Nacionais (2011) para a maioria dos cursos da área da saúde reafirmam a importância do atendimento às demandas sociais, com destaque para o SUS (3, 10, 12, 14). As alternativas pedagógicas conhecidas como metodologias ativas de ensino têm buscado auxiliar nessa mudança desejada na área de formação desses profissionais, pois elas se caracterizam por colocar o estudante no centro do processo de ensino-aprendizagem, tornando-o construtor do seu próprio conhecimento por meio de um currículo que agrega as diferentes disciplinas, permitindo que ele de304 senvolva um olhar amplo acerca do ser humano, nas suas relações com a sociedade e com o ambiente. Essas metodologias ativas baseiam-se na autonomia, pressupondo um discente capaz de autogerenciar o seu processo de formação para um profissional ativo e apto a aprender a aprender, baseando-se nos pilares da educação ao longo da vida: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser, como citado no relatório da Unesco (3, 10, 15). As metodologias ativas têm permitido a articulação entre a Universidade, o serviço e a comunidade. Esse sistema pedagógico visa ao aumento da capacidade do discente em participar como agente de transformação social, mobilizando o potencial social, político e ético do estudante. O ensino pela problematização e a organização curricular em torno da ABP apresentam como principais aspectos a aprendizagem significativa, a indissociabilidade entre teoria e prática, o respeito à autonomia do estudante, o trabalho em pequeno grupo, a avaliação formativa e a educação permanente que extingue a noção de terminalidade da formação (10). Manfroi, Machado, et al. (2002) (16) relatam um programa de ensino em cardiologia na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na década de 1990. Enfatizando mudanças na prática pedagógica com atividades dinâmicas de ensino, concluíram que o programa provou ser eficiente tanto para o aprendizado quanto para a performance dos estudantes. Em estudo qualitativo sobre o internato médico na Universidade de Santa Catarina, Chaves e Grosseman (2007) (14) relatam que o modelo “tem por objetivo incluir a participação do estudante junto a uma nova realidade de trabalho, tentando contemplar o modelo de saúde preconizado para o País, com integralidade na atenção e promoção à saúde, num sistema hierarquizado de referência, contra-referência e trabalho em equipe” e que, “apesar de avançarem, as iniciativas também encontram dificuldades: o despreparo dos profissionais do serviço para receber os estudantes, a resistência para estabelecer convênios com esses serviços e a falta de estrutura física que permitisse o aprendizado”. Citam ainda as dificuldades para a contratação de profissionais, ausência de financiamento específico, ausência de carreira para os profissionais que orientam os estudantes na rede, disfunção do sistema e problemas na integração. Concluem que “a luta pela transformação do ensino médico deve caminhar em conjunto com a luta por um ensino de qualidade para o País e em conjunto com a luta pela concretização de um sistema de saúde de qualidade que supra as necessidades de saúde de toda a população brasileira, pois a mudança curricular não pode ser isolada do contexto socioeconômico no qual estamos inseridos ou dos problemas da educação e da saúde em nosso país”. Em artigo científico publicado pelo Núcleo de Avaliação Institucional da FAMEMA, em avaliação qualitativa com egressos, Hafner et al. (2010) (17) concluíram que o curso “se aproxima da formação do médico generalista, Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 302-305, out.-dez. 2014 REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE PÚBLICA E O ENSINO MÉDICO Castro Júnior humanista, crítico e reflexivo, que pode intervir tanto nos diferentes níveis de atenção de saúde quanto no enfoque individual e coletivo”, no entanto “há limites para a efetivação de uma clínica ampliada nos diversos cenários da saúde”. Os egressos apontam que o curso proporcionou “uma teoria direcionada ao doente” e uma “formação humanitária”, mas fazem referência a limites para se estabelecer uma boa relação médico-paciente, pois “o meio (sistema de saúde) obriga a distorcer essa relação”, diante da precarização de alguns serviços públicos de saúde, frente a demandas reprimidas, comprometendo a qualidade do atendimento. Concluem ainda que é preciso investir também na educação em saúde dos usuários ou pacientes, porque, culturalmente, esses já esperam médicos que os atendam rapidamente, peçam exames e os mediquem, esperando passivamente serem curados em vez de se curarem. Quanto à visão de estudantes de Medicina da UNIFESO sobre a ABP, Costa et al. (2011) (11) relatam que “a maioria dos alunos teve uma impressão positiva do novo currículo, enfatizando a necessidade de melhorar o método de ensino”. Caldas et al. (2013) (13), relatando a experiência no ensino da reumatologia na CESUPA, utilizando metodologias ativas de aprendizagem, citam que “a literatura destaca a necessidade de diversas oportunidades de observação direta, com a utilização de treinamento em laboratório de habilidades, ambiente real e de outras formas de avaliação, pois cada uma tem a sua finalidade”, e que não existe uma única resposta correta, mas diversas abordagens têm sido tentadas para melhorar o rendimento dos graduandos de Medicina, especialmente a utilização de metodologias ativas de aprendizado e a APB. COMENTÁRIOS FINAIS Com base nessa breve revisão sobre as problemáticas da saúde pública e o enfoque sobre o ensino médico, vemos que esses são temas que, de longa data, estão presentes em discussões pelo mundo. As alternativas existem para serem estudadas e compartilhadas, com experiência de implantação em vários países e também em várias localidades do Brasil, enfatizando a melhoria do conjunto das necessidades que o setor da saúde apresenta para o bom exercício laboral dos profissionais da saúde em todas as esferas, no sentido de melhorar a qualidade do atendimento da saúde da população. Acredito que estaremos mais perto de melhorar essa situação se encararmos a saúde pública não como um programa de governo, fragmentada, mas, sim, Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 302-305, out.-dez. 2014 como uma política de Estado, com atenção permanente e mudanças sólidas, conjuntas e duradouras. REFERÊNCIAS 1. World Health Organization. Disponível em <http://www.who.int/ kobe_centre/about/faq/en/> Acesso em 01 jul 2014. 2. Brasil, Senado Federal. Constituição. Brasília, 1988. 3. Gomes AP, Arcuri MB, Cristel EC, Ribeiro RM, Souza LMBM, Siqueira-Batista R. 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Endereço para correspondência Cyro Castro Júnior Rua Irmão Agnelo Chaves, 130 92.020-080 – Canoas, RS – Brasil (51) 3452-9221 [email protected] Recebido: 17/9/2014 – Aprovado: 8/10/2014 305 SEÇÃO BIOÉTICA Violação de fronteiras: envolvimento sexual médico-paciente Boundary Violations: Sexual Misconduct in the Practice of Medicine Gabriel José Chittó Gauer1, Alfredo Cataldo Neto2, Patrícia Inglez de Souza Machado3, Fernando Inglez de Souza Machado4 RESUMO O objetivo do presente artigo é abordar a questão do envolvimento sexual entre médico e paciente. São analisados brevemente os aspectos psicológicos, as consequências e medidas preventivas e de reabilitação no que se refere ao abuso da relação médico-paciente para seu favorecimento sexual. UNITERMOS: Relação Médico e Paciente, Bioética, Ética Médica. ABSTRACT The aim of this article is to address the issue of sexual relationship between doctor and patient. This article reviews briefly psychological aspects and consequences as well as preventive and rehab measures regarding sexual abuse in the doctor-patient relationship. KEYWORDS: Physician-Patient Relationship, Bioethics, Medical Ethics. INTRODUÇÃO Apesar de ser um tema que remonta ao início do exercício da Medicina, as questões concernentes às relações sexuais entre médicos e pacientes permanecem sendo tema de estudo na área da ética e da bioética. As primeiras proscrições no contato sexual com os pacientes datam do juramento Hipocrático: “... na casa onde eu for, entrarei apenas para o bem do doente, abstendo-me de qualquer mal voluntário, de toda sedução, e, sobretudo, dos prazeres do amor com mulheres e homens, sejam livres ou escravos...” (1,2,3,4). Nas normativas ético-profissionais brasileiras, percebe-se tal preocupação desde o Código da Moral Médica de 1929, que prescrevia: o médico não deverá examinar a mulher casada sem a presença de seu marido ou de uma pessoa da família devidamente autorizada. As normativas posteriores seguiram estabelecendo a necessidade de o exame de uma mulher ser realizado na presença de terceiro, bem como do 1 2 4 5 respeito ao pudor do paciente. O Código de Ética Médica de 1988, vigente por mais de 20 anos, conquanto não abordasse a questão de forma pontual, ao tratar sobre a relação com pacientes e familiares, posicionava-se sobre o tema vedando ao médico aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou política. Tal assertiva foi mantida integralmente no atual Código de Ética Médica (6,7,8). Nos Estados Unidos, em 1989, a Associação Médica Americana divulgou uma normativa ética um pouco mais específica proibindo o contato sexual entre médico, de qualquer especialidade, e paciente. Esta normativa foi ampliada em 1991, englobando a proibição, por um período indefinido, de ligações sexuais entre médicos e pacientes “se o médico usa ou explora a confiança, conhecimento, emoções, ou influência derivada do relacionamento profissional prévio” (9). O tema, além de ser motivo de reflexões na área da ética e da bioética, também tem tido uma influência na Médico Psiquiatra. Professor Titular da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais. Membro do Comitê Gestor do Instituto de Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Médico Psiquiatra. Professor da Faculdade de Medicina e Coordenador do Grupo de Pesquisa, Envelhecimento e Saúde Mental (GPESM) do Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUCRS. Aluna do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, da Faculdade de Direito da PUCRS. Estudante de Direito. 306 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014 VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS: ENVOLVIMENTO SEXUAL MÉDICO-PACIENTE Gauer et al. prática médica. Em especial nos Estados Unidos, houve crescimento do número de processos movidos por pacientes nestas situações. O mesmo ocorre no Brasil e em várias partes do mundo. O exercício da Medicina passou a ser feito de forma mais defensiva e foram criados mecanismos para auxiliar os próprios profissionais envolvidos em tais situações (10). A proposta deste estudo consiste em analisar brevemente os aspectos psicológicos, as consequências e as medidas preventivas e de reabilitação no que se refere ao abuso da relação médico-paciente para seu favorecimento sexual. Buscaremos, com isso, compreender o que faz alguns médicos exporem-se ao risco de perder tudo o que conquistaram em sua vida profissional e pessoal e a irem contra o princípio mais arraigado na prática da medicina: o respeito aos pacientes. CONCEITOS ÉTICOS A PROPÓSITO DA CONDUTA SEXUAL NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE A relação profissional de saúde-paciente se constitui em uma “aliança terapêutica” necessária para promover a recuperação da saúde. Os laços de confiança e credibilidade que se estabelecem durante a interação entre quem cuida e o doente são fundamentais para o sucesso do tratamento (11). O relacionamento médico-paciente começa quando uma pessoa “contrata” os serviços de um médico, ainda que não esteja pagando por eles, e termina quando os serviços não são mais necessários, ou não são desejados, ou quando o relacionamento profissional tiver sido formalmente encerrado pelo paciente ou pelo médico. Este relacionamento varia em intensidade e duração, podendo ser desde breve e superficial até longo e intenso (12,13). O contato sexual médico-paciente inclui qualquer toque nas diversas partes do corpo “com a intenção de provocar ou de satisfazer o desejo sexual do paciente, do médico, ou de ambos”. O contato sexual médico-paciente é eticamente incorreto, independentemente de quem toma a iniciativa de sexualizar a relação terapêutica que deveria existir entre ambos. Este caráter de transgressão existe porque o contato sexual entre médico e paciente não é consensual: o paciente não é capaz de dar um consentimento moralmente válido a seu médico, no sentido de permitir um relacionamento sexual com o mesmo, porque os elementos fundamentais para que isso ocorra – intencionalidade, entendimento substancial, livre escolha e autorização autônoma – estão ausentes. No sentido de evitar o contato sexual médico-paciente, a Associação Médica Canadense refere que é responsabilidade do médico estabelecer e manter os limites de comportamento aceitáveis para si próprio e para seus pacientes (12). Para que o consentimento seja considerado moralmente válido, deve haver uma autorização autônoma e intencioRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014 nal, baseada em um entendimento substancial das informações relevantes, dentro de um contexto livre de influências controladoras, tais como a coerção, o constrangimento e a fraude, conforme é descrito a seguir: I) Intencionalidade: O paciente, ao começar o tratamento, encontra-se em posição vulnerável e com a capacidade de decisão prejudicada, tornando-se inapto para decidir ter ou não relações sexuais com o médico. Isso o impossibilita de fazer uma escolha intencional quanto a iniciar um relacionamento sexual com o terapeuta. Este estado de vulnerabilidade pode fazer parte da desordem primária que o levou a buscar tratamento, ou pode ser consequência da transferência, que resultou na idealização e na erotização do terapeuta (12,13). II) Entendimento Substancial: Os pacientes não percebem que a relação sexualizada compromete a distância médico-paciente, necessária para que o terapeuta seja capaz de prover cuidados efetivos durante o tratamento (12,13). III) Livre Escolha: Na relação médico-paciente, o paciente está vulnerável emocionalmente, dependente, e vê no médico a pessoa que detém os conhecimentos necessários para suprir suas necessidades e fraquezas. Este conhecimento pode ser usado pelo médico para manipular ou pressionar o paciente através da falsa promessa de que a relação terapêutica não será afetada com o início do contato sexual terapeuta-paciente, ou para ameaçá-lo com a retirada dos cuidados profissionais caso não “concorde” com o contato sexual, ou para, enganosamente, dizer que a relação sexual é terapêutica. De qualquer modo, a ameaça (implícita ou explícita) remove a possibilidade de livre escolha. Além disso, médico e paciente não estão no mesmo nível quanto ao poder que detêm, e isso favorece a coerção (12,13). Há também o fato, já citado, de que os abusadores são, na sua maioria, homens e as abusadas são, na sua maioria, mulheres. Este predomínio encontra respaldo no contexto social e cultural, que tolera, e, muitas vezes, promove a discriminação e a violência contra a mulher. IV) Autorização Autônoma: A autorização autônoma exige do paciente mais que simplesmente “expressar concordância, consentimento, entrega, ou cumprir com um acordo ou proposta do médico”. Segundo esta abordagem, um paciente pode se submeter ou se entregar ao contato sexual com o seu médico, sem, contudo, consentir com tal atitude. Para que haja consentimento moralmente válido, deve existir uma autorização autônoma, que é um ato de vontade (em oposição a um ato de submissão). Entretanto, por sua natureza intrínseca, o relacionamento médico-paciente impossibilita a consecução da vontade do paciente (12,13). COMPREENDENDO A RELAÇÃO Os fenômenos psicopatológicos foram descritos como uma síndrome denominada “Síndrome Sexual Terapeuta-Paciente”. Na relação terapêutica, pode-se estabelecer um intenso vínculo, primitivo, profundo, semelhante ao da crian307 VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS: ENVOLVIMENTO SEXUAL MÉDICO-PACIENTE Gauer et al. ça à figura parental. Os médicos, neste caso, são percebidos como objetos onipotentes e imbuídos com as capacidades mágicas dos pais, idealizados e temidos. O terapeuta que reforçar esta transferência e explorar sexualmente a relação terapêutica, que, neste momento, seria antiterapêutica, pode fazer com que o paciente se sinta em uma verdadeira armadilha. Por um lado, o paciente deseja unir-se, além de cuidar e até proteger o médico, mas, à semelhança de uma criança abusada sexualmente por um progenitor, teme isso e deseja escapar a todo custo. Por outro lado, o paciente sente-se culpado pelo envolvimento sexual, pois acredita ser ele quem detém o controle do tratamento. Ainda que um paciente sinta uma forte atração pelo médico e, por exemplo, se vista de uma maneira sedutora, a responsabilidade pelo abuso não é dele (14). Outra possível iatrogenia é o estabelecimento de uma grande confusão sexual, como, por exemplo, nos casos em que o paciente pode buscar tratamento por baixa autoestima, ou falta de satisfação nas relações interpessoais (14). Existem, ainda, possibilidades de racionalização, ou seja, o médico usa esse mecanismo tentando não levar em consideração a natureza profissional da relação, com suas responsabilidades inerentes. Terapeuta e paciente podem achar que sentem algo “tão especial” um pelo outro que transcende os códigos de ética, e a paixão valeria o julgamento dos riscos da relação (3). Estudos de caso e levantamentos detalhados retratam que o perfil mais comum do médico é o do sexo masculino, de meia idade, que tem dificuldade nas relações íntimas em sua própria vida e que se “apaixona” por uma paciente em média 16,5 anos mais jovem (15). Estima-se que metade dos casos registrados de contato sexual terapeuta-paciente envolve tal “paixão”. A paixão do médico pela paciente tem as seguintes características: dependência emocional, pensamento intrusivo e sensações físicas. O profissional que “se apaixona”, frequentemente, sente que não recebeu o amor que merecia quando criança. Com pretexto de “alimentar” a paciente com o amor que ela não teve, espera gratificar os próprios anseios. Muitos desses terapeutas têm um transtorno narcisista e estão em busca de objetos que os espelhem e integrem o seu self. Eles se apaixonam por sua própria imagem projetada, sendo, deste modo, a relação uma representação parcial do seu self(3). Os médicos que abusam sexualmente de suas pacientes foram classificados em quatro categorias: 1) psicóticos, que representam um subgrupo pequeno e que traz prejuízos menores, necessitando psicofármacos e aconselhamento; 2) antissociais com atitudes predatórias, que têm uma carreira como abusadores e que sofreram eles próprios abuso sexual durante a infância, estes podem ver seus pacientes como objetos, como “um pedaço de carne”, com o qual irão se satisfazer, sem nenhum envolvimento emocional; 3) apaixonados, que têm um transtorno narcisista; 4) masoquistas, que reconhecem a natureza eticamente incorreta de seus atos, chegando, por vezes, a se autodenunciarem na procura de ajuda (3). 308 Os pacientes abusados podem apresentar características masoquistas e autodestrutivas, uma vez que o fato irá destruir a relação terapêutica. Ou podem se tratar de pacientes com transtornos mentais, como nos casos de pacientes bipolares em fase maníaca, na qual existem um aumento importante da libido e diminuição da capacidade do paciente em testar a realidade. CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS A literatura relativa ao tema aponta a existência de diversas consequências drásticas decorrentes da relação sexual entre médicos e pacientes. Dentre elas, temos desde algumas menos danosas, como a vergonha, a culpa e o isolamento, até as mais graves, como a ansiedade, a depressão, a necessidade de hospitalização e o suicídio do paciente (3,13). O envolvimento sexual pode afetar ou obscurecer o julgamento médico, colocando em perigo, deste modo, o diagnóstico ou o tratamento do paciente. Médicos envolvidos sexualmente com seus pacientes podem, por exemplo, desencorajá-los a procurar os cuidados médicos de outros especialistas, por medo de que seu relacionamento inapropriado seja revelado. A erosão da confiança na profissão médica, causada pela exploração dos pacientes por parte de médicos, pode levar até mesmo pessoas não envolvidas diretamente em tais episódios a adiarem os cuidados médicos (3, 13). Entre os pacientes particularmente suscetíveis ao dano causado pelo contato sexual com seus médicos, um estudo ressalta a vulnerabilidade especial de: (a) pacientes com menos de 19 anos; (b) pacientes que estejam sofrendo transtornos capazes de prejudicar a capacidade de julgamento; (c) pacientes que estão em psicoterapia com seus médicos (3, 13). ESTRATÉGIAS EDUCACIONAIS E PREVENTIVAS A profissão médica tem um importante papel de liderança a desempenhar, no sentido de facilitar o desenvolvimento de estratégias para educar pacientes e médicos no que diz respeito ao relacionamento apropriado entre estas duas partes e para prevenir o abuso sexual de pacientes por parte de médicos (3). Quando apropriado, as atividades durante a graduação, a pós-graduação e a educação médica continuada deveriam incluir objetivos educacionais em áreas ligadas ao relacionamento médico-paciente e especificamente em relação ao problema do abuso sexual de pacientes por médicos. Exemplos de áreas vinculadas ao relacionamento médico-paciente incluem: ética; habilidades de comunicação (exemplo: como explicar e conduzir exames físicos normais e como discutir sexualidade); sensibilidade em relação às necessidades únicas do paciente (exemplo: relacionadas Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014 VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS: ENVOLVIMENTO SEXUAL MÉDICO-PACIENTE Gauer et al. à idade, ao gênero e à cultura); comportamentos de transferência e de contratransferência. Exemplos de áreas especificamente ligadas ao abuso de pacientes por médicos incluem: conhecimento e entendimento dos limites apropriados de comportamento dentro da relação médico-paciente; reconhecimento, tratamento e comunicação do abuso sexual de pacientes por médicos; identificação de procedimentos que têm alto risco para abuso sexual ou desavença; modos de prevenir o abuso sexual de pacientes, incluindo boa comunicação, consentimento do paciente e a presença de uma terceira pessoa durante um exame. No sentido da prevenção do abuso sexual de pacientes por médicos, os mesmos deveriam ser encorajados a se apresentar espontaneamente se estiverem preocupados com seu comportamento real ou potencial. Linhas telefônicas confidenciais de ajuda a médicos e acesso à assistência profissional podem encorajar intervenções precoces, tentando prevenir o abuso de pacientes e ajudar com a reabilitação, quando possível. Um ambiente regulador que não garanta a confidencialidade dos médicos, assim como a dos pacientes, é incompatível com essa abordagem preventiva. A reconstrução de uma base para a ética médica e para a moralidade baseia-se na concepção filosófica da relação médico-paciente. Argumenta-se que a redefinição de uma Filosofia da Medicina é crucial para o desenvolvimento de uma moralidade médica coesiva. Sugerem-se algumas estratégias para a implementação da educação médica no que diz respeito à relação médico-paciente, como, por exemplo: elaboração de um novo currículo que inclua áreas como a Bioética, as Ciências Sociais e a Filosofia; promoção do desenvolvimento da habilidade do médico em considerar o aspecto social, psicológico, espiritual e biológico dos seus pacientes; conscientização do médico no sentido de que ele deve ser sensível e receptivo na interação com seus pacientes, objetivando, principalmente, um desenvolvimento pessoal de valores humanísticos e uma aproximação integrada entre o raciocínio clínico e o cuidado médico (3, 15). AVALIAÇÃO E REABILITAÇÃO DE MÉDICOS A maioria dos médicos envolvidos neste tipo de situação chega à apreciação de conselhos de ética disciplinares ou organizações profissionais quando uma queixa é apresentada pelo paciente ou por outra parte interessada. Os relatos feitos a estes grupos motivam uma investigação das alegações que determina se o médico deve receber uma punição, advertência ou suspensão de atividade. Também é útil que o médico seja avaliado em relação à possibilidade de reabilitação. As avaliações são bem melhor conduzidas por partes desinteressadas que estejam fora da cidade em que o médico atua. Avaliadores locais, muitas vezes, não têm a objetividade necessária para uma avaliação válida (10). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014 Importante ressaltar que os limites entre o que pode ser considerado como “normal” ou não são pouco claros, como as cores de um arco-íris. Desta forma, cada caso deve ser avaliado individualmente, considerando, por exemplo, entre outras situações: a existência de um conhecimento prévio entre médico e paciente ou uma localidade onde apenas um médico atua em determinada especialidade. Há que se atentar para o fato de que a idealização é, até mesmo, necessária no início das relações de casal, porém temos de ter muito cuidado em relação ao que a Bioética denomina “slippery slope argument”. Em especial quando, ao fazermos uma análise de caso, não temos certeza das consequências de abrirmos exceção no que é considerado eticamente incorreto, todo o cuidado é pouco. Se o médico negar a violação de fronteiras, há pouco valor em realizar avaliação. Médicos que estão negando sua responsabilidade apresentam-se como não tendo motivos para estarem sendo avaliados (10). Se o médico está genuinamente arrependido e profundamente comprometido a evitar futuras transgressões, esta atitude é um bom sinal prognóstico. Da mesma forma, médicos que são capazes de assumir total responsabilidade pelo que aconteceu e empatizam com a experiência do paciente de ter sido prejudicado também são bons candidatos à reabilitação. Os tipos predatórios, que são transgressores repetidos, não deveriam receber permissão para retornar à prática da profissão (10). A reabilitação é indicada quando o profissional está profundamente motivado a mudar e a evitar futuros problemas. Nos Estados Unidos, é estabelecido um plano de reabilitação com psicoterapia pessoal, a escolha de um coordenador de reabilitação, supervisão do trabalho e limitações da prática (10). COMENTÁRIOS FINAIS Ainda que este tema já fosse abordado desde os primórdios da história médica, tem recebido maior atenção por médicos e outros profissionais da área da saúde. Ocorre que, na medida em que a relação médico-paciente torna-se mais horizontal e menos idealizada, as atitudes do médico também passam a ser passíveis de questionamento. Contribuindo para este fenômeno está o do desenvolvimento, nos anos recentes, da Bioética, sendo um dos seus objetivos o estudo da conduta humana, à luz dos valores e princípios morais, na área da saúde. Fica evidente que cada vez mais devemos pensar não apenas no conhecimento técnico-científico dos médicos, como também nos seus aspectos afetivos e humanos, bem como em uma capacidade de estabelecer uma adequada relação médico-paciente. Tal relação não será satisfatória e estará sendo violada sempre que o médico se utilizar de seus pacientes para alcançar a satisfação das suas necessidades pessoais, em detrimento do bem-estar daqueles. Baseado no exposto, podemos dizer que o relacionamento médico-paciente deve ser repen309 VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS: ENVOLVIMENTO SEXUAL MÉDICO-PACIENTE Gauer et al. sado, não com o objetivo de descobrir algo novo, mas, sim, de redescobrir algo que tem sido perdido (3,4). Encerrando, gostaríamos de citar Gabbard, um profundo estudioso deste assunto de violações de fronteiras profissionais na relação médico-paciente: “Um salva-vidas não pode salvar uma vítima de afogamento se ele próprio estiver se afogando” (10). REFERÊNCIAS 1. Kastner S, Linden M. 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