245 1. O samba entre a preservação e a ruptura Do ponto de vista

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245 1. O samba entre a preservação e a ruptura Do ponto de vista
CONCLUSÃO
1. O samba entre a preservação e a ruptura
Do ponto de vista da produção a Bossa Nova tem sido colocada em discussão
sob duas linhas principais de raciocínio: a que a vê como um “estilo de ruptura” com
os padrões das práticas anteriores da música popular ou como “manifestação da
burguesia” contra uma música popular própria das classes dominadas.
A historiografia tem marcado a década de 50 como um período de renovação na
produção das canções populares. Se então houve de fato uma intensa renovação, ela
não ocorreu apenas como apanágio da Bossa Nova, nem se restringiu à canção
popular. A renovação de mentalidade nos chamados anos JK atingiu todas as
atividades e todos os gêneros. É um equívoco pensar a Bossa Nova como um
movimento singular de ruptura, como se as demais práticas artísticas fossem
retrógradas e se esforçassem por manter os velhos modelos que ela teria a missão de
renovar. Muitos artistas buscavam uma imagem diferente para as suas carreiras,
incluindo-se os instrumentistas e os cantores. Os movimentos de transformação e
reforma eram abrangentes e a renovação atingia a cultura popular de várias formas e
não só na maneira intimista de tocar e cantar o samba. A renovação no estilo das
letras, por exemplo, parece ter sido uma tendência geral que não se restringiu ao
samba ou à Bossa Nova. O tom melodramático e o tratamento “tu”, antes usual, foram
definitivamente abandonados em todos gêneros.
A produção recebeu forte estímulo, resultando em variedade e multiplicidade
de gêneros musicais e estilos poéticos, novos modelos de arranjos e de formas
musicais, exploração inusitada do material melódico e harmônico, inusitadas formas
de articular letra e música, associação inédita com elementos de extração regional e
com produções de outros países (música latina e norte-americana, por exemplo), e até
ímpeto renovado para celebrar e reviver canções e sambas mais antigos. No repertório
traços característicos da Bossa Nova podem ser localizados mesclados a muitos outros
que lhes são opostos e mesmo conflitantes.
Colocado em dimensões adequadas, vale o comentário já citado de Giulio Carlo
Argan que, de certa forma, nega a oposição entre regra e ruptura: “Nada mais fácil do
que encontrar, ao lado de idéias audaciosamente precursoras, elementos cujo fim a
cultura da época já decretou.”
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A repetição de padrões figura como um traço primordial da negação da ruptura.
Canções puderam ser reunidas em conjuntos em razão da presença sistemática de
elementos repetidos. Observa-se claramente que as canções listadas dentro de cada
grupo contém traços que as aproximam e as afastam entre si. Estes mesmos traços
também as aproximam e as afastam dos possíveis modelos da Bossa Nova. Canções
que aparecem na lista das 26 canções consideradas bossanovistas podem ser reunidas
a canções que facilmente seriam excluídas da categoria. Este é um ponto de tensão
verdadeiro.
E é este o ambiente do principal representante da Bossa Nova: o samba suave e
discreto, cuja síncope é seu único elemento indispensável.
O samba, como gênero de canção, pode ser reconhecido por dois padrões
básicos de figuras rítmicas. Nos padrões mais convencionais as síncopes seriam mais
contínuas e se iniciariam na segunda parte da primeira frase musical, enquanto que no
samba bossa-nova a síncope apareceria mais fragmentada e seria introduzida
imediatamente como primeiro elemento fraseológico. Mencionamos dois sambas do
mesmo compositor, Tom Jobim, que reproduzem com exatidão os dois tipos: “A
felicidade”, de parceria com Vinicius de Moraes, como samba mais convencional e
“Garota de Ipanema”, como samba bossa-nova. O forte contraste temático que se
produz entre uma entonação inicial com poucas notas longas e intervalos mais ou
menos amplos, seguida de frase mais desenvolvida com ritmo sincopado de valores
curtos e graus conjuntos, é uma característica rítmica em geral excluída do samba
suave bossa-nova. Este modelo permaneceu e mesmo nos anos 60 e seguintes
encontramos vários sambas que o adotaram. É o caso de “Deixa”, de Baden Powell e
Vinicius de Moraes, que, por este e por outros motivos, guarda uma aparência de
“samba tradicional”. A expressão “samba tradicional” está sendo utilizada para se
referir ao fato de que tal peculiaridade pode ser encontrada em muitos sambas
produzidos anteriormente, como “É luxo só”, de Ari Barroso e Luiz Peixoto e “Rosa
morena“, de Dorival Caymmi, que traduzem um ambiente diferente do que caracteriza
o samba bossa-nova.
O samba convencional é reconhecido também pelo andamento mais rápido do
que o samba bossa-nova, mais introspectivo e arrastado, menos eufórico. É evidente
que, para ser observada, esta qualidade depende das execuções e gravações. No
entanto é também possível detectá-las nas linhas das canções registradas em notação
gráfica. A distinção, nestes casos, não se dá apenas na execução instrumental ou na
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interpretação dos andamentos. A linha melódica composta em âmbito intervalar
restrito está apta a revelá-la claramente no registro em notação musical. O clima ideal
para o samba suave surge com o ritmo fragmentado da síncope, adicionado a
melodias fabricadas com intervalos restritos a segundas e terças. Para sustentar a
síncope suavizada do samba bossa-nova a melodia mais adequada é a formada de
intervalos econômicos, parcimoniosos, sem grandes saltos nem entonações
grandiloqüentes.
A restrição intervalar melódica não só reduziu as entonações ao mínimo
essencial, mas abreviou a forma das canções, e excluiu as seções musicais que pode.
Muitos sambas contém uma só seção e alguns um só período musical composto de
duas frases. “Fotografia” de Tom Jobim e “Água de beber“, de Tom Jobim e Vinicius
de Moraes ilustram bem esta tendência.
A simplificação pode ser observada também nas canções puramente motívicas,
construídas com um só motivo que se repete durante toda a peça, como nos sambas
“Feitinha pro poeta”, de Baden Powell e Lula Freire e “Ah se eu pudesse”, de Roberto
Menescal e Ronaldo Bôscoli.
A peculiaridade da síncope e o âmbito intervalar restrito são acompanhados de
outra característica melódica indispensável ao samba suave: a leve instabilidade tonal
de melodias iniciadas com sétimas e nonas. A instabilidade é relativa e é notada
quando se compara às melodias cujo eixo intervalar é a terça ou a quinta do acorde de
tônica. Nas canções analisadas esta estética tem predominância absoluta, fato que só é
possível com a sofisticação da linguagem harmônica.
A valorização da linguagem harmônica durante a Bossa Nova tem várias
explicações que vão desde o aspecto formal do despojamento melódico até a
necessidade de valorizar a própria produção.
Na época houve de fato uma sofisticação na harmonização das canções,
constantemente atribuída aos recursos musicais do jazz e avaliada como atestadora do
seu alto valor artístico. Entretanto há outra avaliação possível, a que a considera como
ênfase temporária em um aspecto do material musical ou como outra alternativa na
ordenação dos temas, por imposição das condições de produção. As ousadias da
linguagem harmônica e melódica do jazz de fato seduziam como seduzem os
instrumentistas de todos os quadrantes. No entanto o "entortamento" da relação
melodia-harmonia, que se dá com o uso sistemático de dissonâncias, não se constituiu
em prática musical apenas na Bossa Nova e por inspiração dos músicos americanos,
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mas por uma antiga tradição cultivada pelos próprios instrumentistas ao executarem
os acompanhamentos das canções no violão.
Podemos dizer que a área de interlocução entre a música popular brasileira e a
música norte-americana se estende por sobre uma quantidade bem maior de elementos
musicais intercambiáveis do que a que se poderia encontrar nas canções da Bossa
Nova ou nas de caráter mais típico, como as que Carmen Miranda divulgou. A
reivindicação que se ouve, às vezes, da invenção da Bossa Nova pelos americanos é
menos motivada pela tendência inescrupulosa de roubar patentes do que pela
dificuldade de se distinguir a sua "identidade brasileira". A linguagem harmônica
sofisticada não constitui parâmetro universal de valoração artística, mas pode cumprir
o papel de redimensionar a importância do material musical utilizado nas canções
populares, valorizando o acompanhamento e a sua concepção harmônica.
2. O canto e a Bossa Nova
A concepção musical da melodia solista apoiada por um acompanhamento,
induz à valorização do papel do solista na performance. A autonomia excessiva do
solo, a sua independência completa em relação ao acompanhamento, prejudica a
relação melodia-harmonia e enfraquece o sentido harmônico. A precisão das
entonações, despidas de vibratos exagerados, valoriza a relação entre a melodia e a
harmonia que a sustenta, dá transparência aos intervalos e às dissonâncias das vozes
internas, e proporciona uma audição completa da verticalidade.
Foi João Gilberto que explicitou o fato de que as harmonias e os arranjos
transparecem por obra do próprio canto, quando este se empenha na entonação exata
das alturas e da clareza da relação entre a harmonia e a melodia. A interpretação vocal
minimalista e intimista, empreendida por ele, exigiu do arranjador e dos
instrumentistas uma estética semelhante, também despojada, naturalista. Daí a
rejeição ao arranjo com grande orquestra, que era praticado para acompanhar o
repertório mais convencional, e a valorização das entonações e do equilíbrio sonoro.
A sua apresentação suave e intimista é aplicada a todas as canções sem que se
percebam ênfases diferentes associadas aos conteúdos dos versos. Na estética do
naturalismo as ênfases ou são muito discretas ou não são permitidas.
O naturalismo se impôs nas últimas décadas do último século como estilo
definitivo para as artes performáticas. No entanto a luta simbólica entre ele e a
expressão exagerada sempre ocorreu, representada por categorias ou estilos com
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outras designações. Na Bossa Nova o embate entre a modernidade, representada pelo
naturalismo, e a tradição retrógrada, o canto impostado, foi representada pelas
diferenças de estilo entre Elizeth Cardoso e João Gilberto.
O canto é referência essencial para se estabelecer que uma canção popular não é
uma obra com vida própria no papel, na forma de edição gráfica, e que a sua
existência depende da performance ou da forma “desencarnada”, isto é, gravada.
A gravação de João Gilberto da canção “Chega de saudade” se tornou clássica
sem ter sido inaugural. A obra canção popular “Chega de saudade” não é uma
composição no sentido schumanniano porque não subsiste na sua versão em notação
musical. A obra “Chega de saudade” não é tampouco a transcrição editada por Almir
Chediak, incluída na coleção de Song Books da Bossa Nova. A gravação de Elizeth
Cardoso, apesar de anterior, mostra um samba de certa forma distorcido, diverso da
versão posterior, mais “autêntica”, registrada por João Gilberto.
João Gilberto é sambista, e todas as suas gravações tendem ao samba, inclusive
o bolero “Eclipse”, de Lecuona, cantado em espanhol com sotaque baiano, e os
sambas-canções “Da cor do pecado“, de Bororó e “Segredo“, de Herivelto Martins e
Marino Pinto.262 Ele lhes nega o gênero mas lhes reconhece valor musical. É uma
verdadeira profissão de fé no samba ritmado, que transforma em samba todas as
canções escolhidas para o seu repertório. Vale a performance ou a gravação
fonográfica.
A oposição da Bossa Nova ao samba-canção, se houve, efetivou-se na
interpretação vocal minimalista e intimista. Nem a expressão da letra e muito menos a
qualidade musical da canção foram suficientes para tornar explícita esta oposição. Ela
se revela principalmente na maneira de cantar, com as divisões rítmicas articuladas
nas sílabas dos versos, que fazem transparecer os elementos rítmicos da
instrumentação.
Contudo tem papel decisivo a percepção do ouvinte. A maneira de cantar pode
ser um forte argumento para os que porventura considerem João Gilberto uma fraude.
É evidente que os contrastes de interpretação e a valorização da letra estão relegados a
um plano secundário, e podem fazer crer que a sua performance é precária do ponto
de vista artístico. A obsessão com a qualidade musical pode se tornar um fator de
desinteresse artístico.
262 João Voz e Violão. Universal Polygram 3145456f132, 1999.
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A Bossa Nova tem se definido mais claramente por oposição ao que não é
Bossa Nova. Seu estatuto estilístico, quando surge, é cheio de incongruências.
Tom Jobim a negou quando declarou que a bossa é eterna e reside nos sambas
de todas as épocas. Elis Regina a negou em 1965 com o Fino da Bossa, pois era uma
cantora com voz demais e energia demais para fazer escolhas de interpretações
minimalistas, e na TV o estilo “banquinho e violão” não se impunha como estilo de
“comunicação imediata”.
Uma década depois, em 1974, Elis a admite explicitamente no LP Tom &
Elis.263
O álbum é um bem sucedido concerto de arranjo, composição e interpretação de
sambas suaves e, sendo uma produção de 1974, a sua possível classificação como
bossa-nova seria anacrônica. Tom, Elis e o arranjador César Camargo Mariano se
afirmam neste disco como expoentes da bossa de todos os tempos, como músicos que
contribuíram para a permanência do samba como gênero que constantemente se
revitaliza, transformado ou não. E denunciam o equívoco dos que decretaram a morte
da Bossa Nova em 1962.
3. O samba entre o discreto e o vulgar
O samba deixou, há décadas, de ser expressão étnica ou regional para se tornar
símbolo nacional dentro de um processo de invenção da brasilidade. As redes de
divulgação e recepção que fizeram funcionar este processo são muito semelhantes às
que hoje promovem a massificação da produção cultural. Esta vai aos poucos
adquirindo uma aparência de vulgaridade que incomoda, mas que ao mesmo tempo é
absorvida com naturalidade. O movimento social parece não obedecer à lógica do
senso comum e dos comportamentos disciplinados e adquiridos.
A argumentação contra a possível predominância da vulgaridade geralmente se
baseia em princípios morais ou estéticos, como o que preceitua que a arte deveria
perseguir o belo, o elevado, o precioso. Os ataques e as defesas em relação a certos
comportamentos continuam opondo o erudito ao popular, a arte pura à arte comercial,
o discreto ao vulgar.
263 JOBIM, Tom e REGINA, Elis. Elis & Tom. Elenco ME-37, 1974.
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Há no ambiente dos profissionais da música uma preocupação constante com a
banalização, atribuindo-a aos mecanismos de produção e às novas gerações, vistas
como as responsáveis pelo “baixo nível” da arte. No entanto a vulgarização e a
banalização da produção cultural não são deliberadas. Há evidências de que elas se
orientam pelo consumo cultural. Os indicadores do consumo são determinantes nas
decisões quanto aos produtos que devem ou não ser lançados no mercado cultural.
A difusão da produção cultural, cada vez mais sistemática, provoca a
banalização da produção, independente do valor que se atribui ao objeto artístico. Ao
consumidor de música é oferecida uma ampla escolha de gêneros, que vai da música
artística à produção mais dependente. Através dos atuais mecanismos de distribuição
e vendas de CDs vemos que até mesmo os gêneros mais refinados da música erudita
tendem à banalização, num processo muito semelhante ao que se dá com os gêneros
mais relegados da cultura popular. Qualquer que seja o produto ou o seu formato, o
custo final para o consumidor é o mesmo. A banalização não é resultado direto da
vulgarização da produção; na verdade ela acontece apenas na medida em que o
receptor foi transformado em mero consumidor sem nenhuma visão crítica nem
participação no objeto da produção, alheio a como, quando, onde e porque se produz.
O samba suave e discreto da Bossa Nova procurou escapar da vulgaridade. João
Gilberto personifica-o pela maneira de tocar o violão e de cantar. Baden Powell
buscou uma outra estética, mais banal, para a qual a parceria com Vinicius de Moraes
foi decisiva.
4. Obra e performance
O ponto de vista que enfoca a música através das suas práticas e não através de
seu acervo de obras talvez resulte também da democratização da crítica musical, que
pode assim se tornar mais inclusiva e considerar para análise não só o repertório
consagrado pela crítica mas toda a produção, desde a mais artística até a mais
comercial. É como se a pesquisa aceitasse as regras do que é politicamente correto.
Temos dois modelos: o do valor distinto, discreto e pouco compartilhado, que
procura o além das práticas, a "estética pura", a originalidade, a arte pela arte, e o do
vulgar, que permanece aquém, nos truques, no que se aprende com o outro.
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A discussão aprofundada da recorrência de padrões é dificultada em parte por
força da crítica de arte tradicional e do pensamento acadêmico, que despreza a
possibilidade da reprodução de padrões.
A aprendizagem de reprodução ocorre em todas as situações de ensino, seja nas
aulas ministradas dentro dos currículos formais acadêmicos, seja nos processos mais
simples de ensino por imitação. A presença da reprodução em música deixa traços em
toda parte, dos clássicos vienenses aos artistas da MPB.
Elementos repetidos de uma canção a outra não são tratados como plágios mas
como clichês que deram certo.
A discussão sobre prováveis conflitos entre a música erudita e a popular se
exauriu bem antes de prover explicações satisfatórias para a questão. A suposta
oposição erudito-popular mostrou-se insuficiente e comprovou ser apenas o resultado
de uma construção para atender às interrogações dos estudiosos. Não cumpriu esta
tarefa e conduziu a novas perguntas, produzindo mais dúvidas do que certezas.
Na verdade o estudo de qualquer material musical vai de encontro a dois
grandes modelos do ponto de vista da produção, que determinam a existência de
tensões importantes no campo da música: o modelo da música notada e o da que se
transmite principalmente por audição.
Entretanto a permanência de significado na música independe do modelo, ele se
transmite de uma prática a outra. Nesta perspectiva faz sentido tentar desvendar ou
descrever sentimentos motivados pelas peças musicais. É surpreendente verificar que
a emoção produzida pela audição pode ser comum a um grupo de pessoas com
formações musicais distintas ou com níveis diferentes de musicalização.
Se a música é uma linguagem universal, que atravessa o tempo e o espaço, ela
certamente necessita de condições de inteligibilidade para manter a sua força de
significação. Como obra que permanece, ela terá força para ressurgir séculos adiante
motivando a descoberta de uma gama muito rica e variada de sentimentos. A
descrição, através da linguagem falada, dos sentimentos que ela provoca pode ser
conduzida com maior ou menor precisão. No entanto a imprecisão da sua descrição
não os invalida, ao contrário, pode até enriquecer a sua expressão e ampliar a
percepção do público.
Temos aqui um parâmetro de análise completamente válido: a dos sentimentos
que a música pode expressar e estimular no ouvinte. É um parâmetro que pode
constituir excelente técnica, à qual a crítica musical poderá recorrer com segurança. A
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maior parte das técnicas de análise são mais facilmente passíveis de falhas do que
esta. A constituição de uma Semântica da Música produziria um corpo de técnicas,
reiniciando um trabalho que aparentemente estagnou na Teoria dos Afetos.
Podemos questionar a visão estrutural que Schumann elegeu para falar da sólida
estrutura da música de Beethoven. Podemos questionar a pureza da "música do povo",
cuja força provém da sua "espontaneidade e consistência moral". Podemos contestar,
por outro lado, que a música escrita é o único suporte aceitável para a expressão
musical valiosa. Podemos descartar o imponderável artístico e o au-delá que Thomas
Mann descreve em várias obras. Em todos os casos a resposta teria de se iniciar com
uma Semântica Musical que pudesse definir qualidades de emoções e sentimentos a
partir de elementos composicionais como andamentos, dinâmicas, articulações, etc. E
demonstrar por este meio que a música prescinde da prosódia para a produção de
sentido. Ela precisa apenas produzir um encontro positivo entre os produtores, o
produto e os receptores.
5. O consumo de canções populares
O sentido da música se produz no encontro da sua produção e da obra
propriamente dita com a sua recepção. Apontam-se muitas dificuldades para restringilo exclusivamente à força interna e à estrutura da própria obra, isolada das suas
condições de produção e de recepção. Atender a condições de possibilidade para a
percepção de uma obra não nos obriga a destituí-la de sua significação e de sua força
expressiva. Ao contrário, facilita o seu entendimento e reforça a sua expressividade.
Constata-se hoje em dia facilmente que a produção cultural qualificada de
popular é compartilhada por meios sociais diversos, não só populares. Não se pode
identificar a cultura popular pela sua distribuição: à hierarquia de classes ou grupos
não corresponde uma hierarquia paralela das produções e hábitos culturais.
Constata-se também que são exigidas cada vez menos qualidades técnicas
específicas para a prática musical. Cantar em público democratizou-se de tal maneira
que o preparo musical não constitui nenhum obstáculo para quem quer se expressar.
A canção é a possibilidade de se ter a música como idioma de todos, cada vez mais
democratizada, à medida que decrescem as exigências de habilidades ou de “dotes”
específicos.
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Assim se inicia a morte da figura do artista, como possuidor de talentos
especiais. Se todos nós podemos cantar porque esperar pelo artista? Em tal processo o
músico instrumentista se recolherá cada vez mais à função de prestador de serviços
técnicos, acompanhando os cantores, estes os focos da atenção. A democracia atinge a
música: o número de pessoas que pode cantar é incomensuravelmente maior do que as
que podem tocar um instrumento.
*
A vulgarização e a democratização, a sensibilização e o estímulo das emoções
do público, a fixação das regras estilísticas e das peculiaridades dos gêneros musicais,
o gesto criador e as estratégias da produção artística, a análise musical semântica,
todos estes temas podem auxiliar na compreensão da produção, do produto e da
recepção da música.
Apesar de aparentemente amplos são setoriais, inspirando interrogações
principalmente por parte de pesquisadores em campos artísticos específicos. Não se
deve, no entanto, prescindir das questões de caráter cultural mais amplas, que são
incontornáveis. Elas marcam sua presença a cada passo da pesquisa artística e
instigam de todas as maneiras os estudiosos, mesmo aqueles mais obstinados com as
especificidades das linguagens.
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