Artigos - Claretiano
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Artigos O GOZO JOVIAL DE VIVER A PARTIR DO EVANGELHO Enjoy life from the gospel source Diego Irarrazaval * RESUMO: Em nosso contexto, cheio de ansiedade, cabe um reencontro com a alegre espiritualidade e ética que provém de Jesus de Nazaré. A vivência evangélica encara as situações de maldade, e também convida a ver sinais humanos da presença do Espírito. Muitos dizem que estamos em meio de uma mudança de época. Pois bem, a fé motiva a buscar alternativas e transformar o mundo. Em nossos espaços eclesiais vale redescobrir o prazer de crer e celebrar. PALAVRAS CHAVE: gozo, felicidade, comunidades, celebração, espiritualidade. ABSTRACT: In our context, full of anxiety, it is worth a re-encounter with the joyful spirituality and ethics that come from Jesus of Nazareth. The Evangelical experience sees the situations of evil, and also invites to see human signs of the presence of the Spirit. Many say that we are in the midst of a changing era. Well, faith motivates to seek alternatives and to transform the world. In our ecclesial spaces is worth rediscovering the pleasure of believing and celebrating. KEY WORDS: enjoyment, happiness, community, celebration, spirituality. * Chileno, professor de teologia, vigário na paróquia de San Roque (Chile). Assessor de cursos de lideranças de base e de profissionais, e de encontros eclesiais (durante 29 anos no Peru e em outros lugares da América Latina). Foi presidente (2001-2006) da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT / EATWOT). Livros publicados: Religión del pobre y liberación (1978); Tradición y porvenir andino (1992); Cultura y fe latinoamericana (1994); Inculturación (1998), La fiesta (1998); Teología en la fe del pueblo (1999); Audacia (2001); Un Jesús Jovial (2003); Raíces de la Esperanza (2004); Gozar la ética (2005) etc. Publicações em português: Um Jesus jovial (2003), numerosos artigos em livros e revistas. 13 Ao partilhar pontos de vista sobre a felicidade1 , desejo destacar alguns elementos bíblicos com respeito a gozar (alegrar-se com) a vida. Não me volto para a piedade, nem para uma reflexão sem espiritualidade. Interessa-me a meditação teológica, que é alimentada pela alegria do povo pobre. E o faço em um contexto onde são abundantes os sinais de êxito e comodidade, ainda que também cresçam a depressão e o mal-estar. São feitos muitos estudos sobre a felicidade2 . Ao examinar o cotidiano, se destaca o impacto dos meios de comunicação, o aumento de formas de angústia coletiva, e a primazia dada ao econômico. “Lógicas mercantis nos envolvem como eixo regulador no conjunto da produção e na distribuição cultural” 3 . O sentir-se chileno está marcado por um tipo de progresso macro-social, fascinado com objetos, com velozes imagens, e com os vínculos familiares. 14 Muitos indicadores mostram que no Chile abunda a depressão, a ansiedade, o transtorno afetivo4 . Estudos das Nações Unidas sobre desenvolvimento humano no Chile mostram que a modernização altera o cenário cultural e emocional. Em 1995, a Organização Mundial da Saúde sinalizou que 35% dos habitantes de Santiago sofrem por desanimo e depressão. Comenta-se que a ansiedade cresce quando a rota da modernidade é transitada com rapidez (como ocorre no Chile e em outros países). Roberto Mendez pergunta: “somos felizes, nós os chilenos, ao iniciarse o século XXI?”, e comenta tanto a prosperidade como o sentir-se vulnerável 1 Este texto tem origem numa contribuição minha ao Seminário sobre Felicidade, na Faculdade de Teologia do Chile (Teologia y Vida, 2/3, 2006); retomei algumas partes de Gozar la Espiritualidad, Buenos Aires: San Pablo, 2004, 7-19, 33-35,139-141. 2 Estudos desde várias disciplinas. Um economista inglês: Richard Layard, La felicidad, lecciones de una nueva ciencia, Bogotá: Taurus, 2005. Una perspectiva sicológica: Daniel Gilbert, O que nos faz felizes, Rio de Janeiro: Elsevier, 2006 (tradução de Stumbling on Happiness). Un enfoque histórico: Darrin McMahon, Happiness: a history, NY: Atlantic Monthly, 2006. 3 Paulo Slachevsky, “Los problemas de la diversidad cultural”, em José Weinstein y otros, Industrias culturales: un aporte al desarrollo, Santiago: LOM, 2005, 74. 4 Ver Programa das Nações Unidas com seus Informes sobre Desarrollo Humano en Chile, Santiago: PNUD (1998: Las paradojas de la modernización; 2002: Nosotros los chilenos, un desafío cultural; 2004: El poder: para qué y para quién). Os meios de comunicação reproduzem a busca da felicidad. Ver: Victor Duran, “Los factores que explican altos índices de la depresión en Chile” (El Mercurio, 31/10/2004), Eugenio Tirón, Entrevista (Que Pasa 1803, 2005) que propõe passar do PIB ao FIB (indice de felicidade), Paul Samuelson, “Dónde estas felicidad?” (La Tercera, 22/7/2005), Angelica Errazuriz, “La ciencia de la felicidad” (El Mercurio, 25/10/2005), Sergio Paz, “El indice de felicidad nacional”(El Mercurio, 4/11/2005), Carmen Rodriguez“Psiquiatras explican el alza de la depresión”(El Mercurio, 15/6/2006) que informa que a OMS destacou Santiago como “capital da depressão” em comparação com outras 14 cidades do mundo, Roberto Mendez “Somos felices?” (El Mercurio, 22/10/2006), Manuel A. Garreton “Felicidad injusta y vigencia de la política” (El Mercurio, 12/11/2006), Paula Leighton “Encuestas sobre el estado de ánimo de los chilenos” (El Mercurio, 15/12/2006), Daniela Varas “Atenciones a depresivos llegan a 180 mil en 2006” (El Mercurio, 28/12/2006). e desgraçado. Manuel Antonio Garretón aponta para a “desigual distribuição das oportunidades de felicidade entre os setores sociais”. Ressalta a angústia da população chilena aparentemente exitosa. Neste contexto, voltam os olhos para a mensagem bíblica. 1) MOTIVAÇÃO DE FUNDO A alegria não provém de uma pauta universal. No caso das culturas semitas, a emoção é inseparável do comportamento; isto é diferente (como anota G. Anderson) para a modernidade que ao tratar as emoções minimiza o comportamento5 . Na América Latina se tem dito que o povo é sentimental e festeiro. Destaca-se nas particularidades, segundo a maneira de ser de cada indivíduo, comportamentos de grupo, identidade s humanas, características de cada civilização. Além do que, existem vários modos de entender gozo, felicidade, prazer, alegria; e a linguagem comum vem desvalorizando estes termos. Quero acentuar a experiência integral de gozar, ser feliz, partilhar alegria. Pois bem, o que sinaliza a mensagem de Jesus Cristo a respeito de viver uma vida feliz? Esta é a pergunta fundamental. Os evangelhos sinóticos não apresentam a figura psicossocial do Filho do Carpinteiro, nem os pormenores humanos. Não trazem informações sobre a interioridade de Jesus, antes contam muito mais com o testemunho de sua pessoa e obra. Pode-se dizer, à base dos testemunhos bíblicos, que Jesus Cristo foi um homem feliz. Não difundiu conceitos nem regulamentos. Antes, dedicou-se à apaixonante Boa Nova, e proclamou as bem-aventuranças (“felizes vocês...”). Sua morte na cruz foi um caminho para a gozosa Ressurreição. O Espírito de Jesus enche de alegria a comunidade. Portanto, a experiência da fé não fica aprisionada por substantivos; antes se expressa bem mais mediante fórmulas verbais: deleitar-se com a criação, a salvação, a ressurreição. Esta revelação do Filho de Deus é significativa para a comunidade de fé, em meio aos desafios e sinais de nosso tempo. Por um lado, o Verbo é como uma luz que expulsa a escuridão. Cercam-nos atitudes céticas, a exaltação do individual e de fragmentários vínculos entre pessoas, o hedonismo, a 5 A alegria semítica/palestina é comer, a relação sexual, a unção com azeite, louvar a Deus. A emoção vai de mão dada com a ação. Não é assim no mundo ocidental. Gary Anderson: “terms for emotions in Western languages are used in ways that ignore or severely minimize their behavioral dimension” (A time to mourn, a time to dance, the expression of grief and joy in Israelite Religion, Pennsylvania: State University Press, 1991, 13 ss). Anderson explica o gozar ou deleitar-se segundo a Biblia Hebraica e os textos rabínicos (pgs. 19-49). 15 cumplicidade com a maldade institucionalizada. Nestas condições, como é possível uma existência integralmente feliz? Por outro lado, a Boa Nova favorece ao pobre. Poder gozar constituí-se numa busca do ser humano. As multidões postergadas e abatidas (nos tempos de Jesus, e em cada época humana) são convocadas a alegrar-se com o Reino de Deus. A comunidade cristã dá testemunho da luz de Cristo, que ilumina e fortalece tais buscas, e a resposta divina é que, a partir do pobre, a humanidade é salva. É certo que a injustiça e a pobreza desumanizante põem imensos obstáculos à felicidade. Porém, o Espírito mobiliza a população abatida para a alegria de Deus. Isso é constatado nos ambientes pobres deste continente e deste país (Chile). Nas comunidades cristãs da América Latina, a Palavra de Deus é lida de modo orante, militante, festivo. Um desejo de que a oração a Deus seja fonte de gozo, que a comunicação do Evangelho seja jovial, e que com alegria seja transformado o mundo marcado pela depressão e pela injusta desigualdade . 16 Então, qual é a motivação de fundo? Viver e celebrar o Evangelho de Jesus Cristo. Isto não acontece em abstrato. Trata-se de evangelizar e refletir a fé em contextos de pobreza e também de ter esperança em meio ao infortúnio. Ser feliz como seres humanos na comunidade cristã, fazer teologia, e cultivar a espiritualidade da alegria do pobre; estas dimensões da fé vão de mãos dadas6. 2) NAS PEGADAS DO MESTRE A temática do gozo (alegria) deve ser abordada sem ingenuidade. A cada dia a população marginalizada passa fome, padece doenças que poderiam ser facilmente atendidas. O Filho do Homem foi sido crucificado. Parece então que ser cristão consistiria em sofrer; e nada teria que ver com alguém feliz. Não só nos impacta o drama de Jesus. Também na igreja, muitos setores têm ressaltado o sacrifício. Tem-se que carregar a cruz de cada dia; ela é projetada para o além; hoje se deve ser responsável e sacrificar-se, e só mais para frente esperar algo bom e a paz verdade ira. 6 Veja-se no caminhar humano e eclesial: Carlos Gonzalez V., Estas siempre alegres, Santander: Sal Terrae, 1999, Anselm Grun, Recuperar a propia alegria, Estella: Verbo Divino, 1999, Miguel Ortega, He decidido ser feliz, Santiago: San Pablo, 2000, Jose Rafael Prada, La felicidad e como alcanzarla, Bogotá: San Pablo, 2006; e na teologia: M. Barros, Celebrar o Deus da Vida, São Paulo: Loyola, 1992, Luis C. Bernal, Recuperar l fiesta en la Iglesia, Madrid: Edibesa, 1998, V. M. Fernández e C.M. Galli (dir.), Teologia e Espiritualidade, Buenos Aires: San Pablo, 2005. Tão pouco cabe espiritualizar a humanidade do Senhor. Concretamente ele sofreu, mas também em formas muito precisas alegrou-se com sua existência humana. Ao reprimir a alegria, se afiança a relação amorosa com Jesus Cristo. Fortalece-se a felicidade de seguir Jesus e de colaborar com sua obra libertadora. Isto pode ser chamado um prazer evangélico. Alegrar-se com Jesus é o fundamental. Isto ocorre a cada dia ao abrir o coração à Vida. Isso também é decisivo para nosso mundo tão pesado e tenso. A fé está centrada no Ressuscitado e na Páscoa celebrada pela Igreja. Neste sentido, alguém pode se pergunta como terão sido os deleites espirituais de Jesus. Também nós nos perguntamos como hoje vivenciar tal alegria, em meio a um mundo globalmente sobrecarregado. Ao seguir as pegadas de Jesus, pode-se dizer que a espiritualidade não consiste num “subir” até Deus, mas é muito mais num “abaixar-se” e estar junto ao Deus encarnado. É o espiritual inserido na vida cotidiana; é uma mística terrestre e não uma ilusória projeção ao céu. A este respeito, é uma lástima perceber alguém reiteradamente chamado a ser cristão, sobretudo, olhando para o céu. Antes, como comentou Marcelo Barros: na oração caminha-se, não para o celestial, senão o contrário, vai abaixando-se... para Deus 7. Deus pôs sua tenda no coração do peregrinar humano. É a atitude dos povos nômades de hoje, em formas tradicionais de viver em tendas como faz a população beduína, ou melhor, as moradias nos assentamentos de gente migrante nas cidade s. As pessoas que peregrinam não se apossam da terra. 3) ALEGRIA CONTRAPOSTA À MALDADE A alegria é cultivada em contraposição ao sofrimento e à maldade. A mensagem evangélica é encarnada, e não é fantasiosa. Isto, sim aparece nos escritos apócrifos. Supostamente Jesus teria reunido seus discípulos para dançar e cantar (segundo os “Atos de João”): “nos disse que formaríamos um círculo, dando-nos as mãos, e ele ficaria no centro... e daríamos voltas dizendo Amém... e Jesus diria: tocarei a flauta, dancem vocês todos... quem não baila não sabe o que perde...”8 . É um conto simpático, porém sem base nas Escrituras. A alegria de Jesus deve ser apreciada em base aos testemunhos bíblicos, os que foram entesourados pela comunidade eclesial. 7 8 Marcelo Barros; Reflexão feita num encontro do Instituto de Pastoral Andina, Peru, 2001 Cito partes do “Himno de Cristo”, nos “Hechos de Juan” (Edgar Hennecke, New Testament Apocrypha, London: Lutterworth Press, 1965, 227 ss). 17 Um segundo esclarecimento: a alegria humana de Jesus é inseparável do deleite devido a sua filiação divina. “A alegria humana de Jesus é a alegria do Filho de Deus” assinala Jorge Costadoat9. Foi o Jesus, humano e divino, quem se alegrou. Em Jesus Cristo, como ensina o Concílio de Calcedônia, o humano e o divino não se confundem nem se separam. O jovial Jesus de Nazaré é inseparável do Deus da alegria. No terreno cristológico, Jon Sobrino destacou que a “bondade de Deus produz alegria em Jesus, e se alegra de que Deus seja assim. Alegra-se quando os pequeninos conhecem a esse Deus, quando os pecadores não sentem medo desse Deus, quando os pobres se confiam a esse Deus. E irradia esta alegria aos demais”10. Neste modo de entender o Salvador da humanidade, J. Sobrino revolucionou a cristologia. 18 Por outra parte, H.U. Von Balthasar desenvolve com lucidez a temática da Glória. Esta temática inclui a cruz e a alegria, que se integram no mistério divino de perdoar11. A tensão entre sofrer e alegrar-se não tem sentido senão é em que o Crucificado é o Glorificado. Também existe descontinuidade; já que a ressurreição mostra que Deus impugna o injusto sofrimento. Assim também faz o cristão; um não carrega a cruz porque lhe apraz sofrer, mas porque o sofrer é transformado em alegria. A respeito disso, há diversas maneiras de entender a cotidiana e profunda contraposição entre o estar bem e o estar mal. Uma atitude é o dualismo. Por exemplo, separar o corpo e a alma. Com esta atitude, a pessoa de Jesus (e de cada cristão) seria desencarnada. Tal perspectiva tacha o prazer, e o associa ao pecado. Outro modo de viver é o ascético; que aceita alguns benefícios concretos, porém tende a rechaçar as realidades humanas. No pólo oposto se encontra a atitude hedonista. Ela promove um prazer totalitário e instantâneo. Os poderes modernos manipulam o hedonismo. Pareceme que a atitude com maior peso é a do bem-estar privado, que absolutiza o prazer a nível individual e grupal, e que não favorece a felicidade integral na história humana. Uma interpretação realista é a que reconhece a alegria contraposta à maldade. É possível “estar bem” graças à conversão do pecado, e ao caminhar animado pelo Espírito de Jesus. Deste modo existe um genuíno prazer. Como 9 Jorge Costadoat, Comunicación personal, 6/11/2002. 10 Jon Sobrino, Jesuscristo Liberador, lectura histórico-teológica de Jesusde Nazaret, Madrid: Trotta, 1993, 57. 11 Hans Urs von Balthasar, La gloire et la croix, Paris: Aubier, 1975, III:462, “la dialectique chretienne da joie et da croix renvoie a um mystere situe dans le coeur de Dieu...”. Balthasar destaca a articulação entre sofrimento e alegria. comunidade, seguimos as pegadas do Mestre da Galileia, que nos convoca a uma felicidade concreta e universal. O paradigma é o modo de viver de Jesus, o Cristo. Em relação a isso não cabe analisar a alegria, já que ela não é “objeto” de estudos; nem as estruturas de humor, já que o Novo Testamento não registrou os chistes. Tão pouco cabe adivinhar se o Jesus histórico se ria e contava piadas (num estilo dos apócrifos). A todos nos impressiona que a mensagem de Jesus é para que o pobre já não sofra e seja feliz; que no seja vítima do mal; que goze da liberdade dos filhos e filhas de Deus. Vale, pois, ser fiel à espiritualidade e à ética de alegria que provem de Jesus de Nazaré. É evidente que nos encontramos em um terreno polêmico; já que durantes séculos o gozar a vida foi desvalorizado ou posposto para depois da morte. Não deve ser assim. Qualquer bom estudo da mensagem mostra que seu centro é a Boa (Gozosa) Notícia. Como anota Y. Radday, a maioria dos estudiosos da Bíblia fez estudos tão sérios que não detectaram o humor bíblico; ainda que, como indica D. Maguire, a sensibilidade bíblica é absolutamente terrestre e concreta12. Vale, pois, redescobrir o prazer de viver hoje a fé em Jesus e como Jesus. Não vale andar entristecido, pesaroso ou desencantado! Em nossas situações e vivências latino-americanas, a maldade anda por toda parte. Arrastamos problemas profundos de pecado e maldade, e não só os sentimentos de tristeza. São nossos contextos de maldade os que clamam ao céu para que o Espírito infunda vida e alegria. 4) DISCERNIMENTO ESPIRITUAL Durante séculos existiram formas de violência e de marginalização; também é desolador o maltrato entre pessoas, mesmo na intimidade, e em especial em ambientes empobrecidos. A modernidade, por uma parte, oferece um progresso que humaniza, mas também tem ambivalências, e também difunde alienação pessoal e social. Pode-se dizer que se caminha no lusco-fusco, 12 Yehuda Radday: “for the last 1500 years the majority of biblical scholars, in the seriousness of their research, have not detected the slightest touch of humour in the Bible”; e explica como um “multicausal phenomena” (particularidades do humor, carência de humor nos experts em biblia, a teologia cristã centrada na paixão de Cristo, e o maniqueísmo em que algo é o bom ou mal); ver seu On humour and the comic in the Hebrew Bible, Sheffield: Almond Press, 1990, 32, 33-36. Por outro lado, Daniel C. Maguire esclarece: “biblical joy is not a gossamer strain of other worldly spirituality; it is of the earth and earthly”; em The moral core of Judaism and Christianisy, Minneapolis: Fortress Press, 1993, 234-246. 19 que se questionam alguns absolutos racionais, e que sobram incertezas e também a busca espiritual. Por outra parte, nos rodeiam fascinantes ídolos diante dos quais sucumbem pessoas e povos. Cabe, pois, um discernimento espiritual. Nós nos encontramos como em uma noite escura. “Precisamente nestas circunstâncias - segundo José Comblin - se faz presente o Espírito Santo... a vida no Espírito não se desenvolve na tranqüilidade do conhecido, mas bem é arriscar-se e assumir os desafios do desconhecido”13. Em meio da obscuridade e de fatores tanto positivos como negativos, se manifesta o Espírito que tudo renova. Comblin acrescenta que tanto nos pobres como em gente acomodada há sinais de Sua ação. Há sinais de uma espiritualidade de libertação. A maldade é superada mediante um gozoso caminhar no Espírito. 20 Geralmente se trata de vivências da gente comum que passa dum estar mal a um estar bem, e em tal processo sentem felicidade. Trata-se de práticas que em geral não são qualificadas como algo espiritual. Sem dúvida, em se tratando de humanização, podem ser consideradas como sinais do Espírito. Por exemplo. O anônimo cuidar de quem sofre com enfermidades, em que se usam medicinas alternativas; e onde se supera desconforto diário. O resolver problemas de subsistência material mediante iniciativas informais e criativas; por exemplo, o comércio e a empresa de caráter informal onde as multidões resolvem a questão da falta de ocupação (trabalho). Por outro lado existem as atividades artísticas (artesanato, folclore) em que muitas pessoas plasmam a beleza que tem no coração, e que também tem um sentido pragmático. Pode-se mencionar quantidade de exemplos concretos. Trata-se de rotas cotidianas de superação da maldade, graças ao engenho, à criatividade e à solidariedade da gente comum. Ainda que nada seja dito sobre o Espírito, existem sinais claros (não verbais) de sua Presença. Além do mais, ainda que o povo não os interprete como lugares de alegria espiritual, existem, sim, sinais da presença do Espírito que nos enche de alegria. Assim mesmo são muitos os gritos a favor da transparência na convivência social e internacional, e em toda a rede de intercâmbios entre pessoas e grupos. Um sinal positivo no Ocidente é a luta pelos direitos humanos, que se acentuou durante a segunda metade do século 20. A isso se soma a agenda ecológica. Também a adesão à Vida se manifesta em tantos processos de reforma educacional, na emancipação e criatividade da mulher, em reivindicações e propostas feitas por povos marginalizados, em outras iniciativas na sociedade civil e nos estados. Em tudo isso se pode ler sinais do Espírito de vida e gozo no acontecer humano. 13 José Comblin, O Espirito Santo e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1987, 126-128. Sem dúvida, nas vivências de cada dia, além de perceber o Espírito, tem-se também que pesar o falso e o destruidor. No mundo de hoje, existe um conjunto de meias verdades e de falsidades. Nos meios de comunicação são muitas as imagens em função dum mercado totalitário. Junto a sérios esforços por democratizar as sociedades, reaparece a dialética entre mentira e verdade. Na educação e na política existe uma tensão entre linguagens democráticos e práticas hierárquicas. A quantidade de elogios dirigidos às mulheres não impedem sua postergação e sua invisibilidade social. Também sobram mentiras e prejuízos sobre as mal chamadas minorias que tentam integrar-se à “civilização”. Estas falsidades humanas têm um transfundo transcendente. Os defeitos humanos comportam estruturas de pecado. Trata-se de energias negativas que a tradição judeu-cristã atribui a espíritos do mal. Cabe aqui a reflexão de São João sobre o diabo como pai da mentira (Jo 8:44, cf 12:31) e a maldade da mentira (Rom 1:18, 2 Tes 2:9-12). Acontecimento negativo não devem ser atribuído só ao diabo; porém, sem dúvida, nas armadilhas e abismos da maldade se manifestam forças diabólicas. Por conseguinte, no lusco-fusco e às vezes na penumbra da maldade, o acontecer histórico conta com a presença do Espírito do Ressuscitado. Isto fundamenta a espiritualidade da alegria. Vale insistir nisto, porque persiste a dicotomia entre realidades do Espírito (onde haveria bem-estar) e o acontecer humano (cheio de maldade). No meu parecer, a espiritualidade não vai por um lado, e a história por outro. Tal dicotomia não corresponde à norma evangélica. - A que se deve a íntima correlação entre presença de Deus e responsabilidade humana? A correlação existe em torno do único Mandamento de amar a Deus e ao próximo. A espiritualidade é inválida, se não existe responsabilidade histórica pelo próximo e alegria entre pessoas concretas. 5) GOZAR (SENTIR ALEGRIA) HOJE Começo esta última secção anotando duas objeções quando um postula a alegria no contexto atual. Uma chamada de atenção: a população pobre vive pior que as outras pessoas e é devastada pela maldade. Outra chamada de atenção: o comportamento de representantes do cristianismo não costuma suscitar alegria humana. Mais que objeções ao que se diz, se trata de problemas dos tempos atuais. As maiorias pobres não só levam cargas pesadíssimas, e passam mal. Também buscam alívios em diversões instantâneas. As empresas e meios de comunicação 21 lhes oportunizam festivais de pão e circo. Estas realidades funcionam como um obstáculo à genuína felicidade. É, pois, urgente superar o entretenimento frívolo, e abrir-se à plenitude. Por outra parte, a gente pobre tem razões para confiar na bondade de familiares e amizades, e confiar em suas responsabilidades sociais. Em geral, em meio às ambivalências e injustiças humanas são esquadrinhados os sinais do Espírito do Ressuscitado. Em relação aos espaços eclesiais, é urgente redescobrir o prazer de crer e celebrar14. Muitas pessoas ao comunicar a fé põem entre parêntese a sensibilidade e a paixão vital. Chega-se aos extremos: ser crente e ser igreja seria aborrecido, desumanizante, monotemático. Como aponta Carmiña Navia: “temos confundido a transcendência com a ausência de riso, e o sagrado com a negação do cotidiano... Jesus de Nazaré nos revela um rosto de Deus festivo que se alegra... com os acontecimentos sensíveis de nosso caminhar”15. Pode–se acrescentar que os dois grandes pecados eclesiais são a omissão do gozo e a censura ao bom humor. Diante desta problemática, é necessário voltar às nossas fontes evangélicas. 22 Afinal de contas, é o Espírito de Jesus quem motiva a superar deficiências sociais e religiosas, e a gozar a vida em plenitude. O Galileu nos mostrou o dom divino da Alegria. Por isso a fé é como é. Não se trata de simples desejos, nem de objetos que me fazem sentir feliz, nem de fragmentos pós-modernos. O desejado e encontrado é algo definitivo. Isto é manifestado pelo Espírito de Jesus de Nazaré. Gozar é algo definitivo ao qual está chamado cada pessoa, a historia toda da humanidade, a criação. Insisto. O gozo é definitivo e não tem barreiras. Assim se tem manifestado a Amável Trindade. Ela ama tudo e a todos, sem por limites e sem excluir ninguém. Ela convoca ao amor incondicional, ao próximo e a todo ser vivente, e de modo especial ao pobre preferido por Jesus e por seu Pai. Por isso não pode haver barreiras na espiritualidade e nem na ética que provem da Boa Nova. A meu modo de ver, nem há carência de alternativas à injustiça humana, nem estamos chegando ao “fim da história” pressuposto por um esquema de poder. Antes, transitamos por uma complicada e apaixonante mudança de época. Nosso mundo em crise, como dizia Paulo VI, devido a uma “civilização mercantil, hedonista, materialista, que tenta ainda apresentar-se como portadora de futuro”16. Nós nos encontramos numa profunda crise de civilização; n um mudança de época. A modernidade globalizada tem suas luzes e suas sombras. 14 Ver textos citados na nota 6. 15 Carmiña Navia, Jesus de Nazaret, miradas femeninas, Bogotá, 2000 (em que se sobressai seu capítulo 4: Jesus festivo). Outro escrito iluminador: Ana Maria Tepedino, “Qué dizem as mujeres que soy yo?”, em VV.AA., 10 palabras clave sobre Jesus de Nazaret, Estella: Verbo Divino, 1999, 415-452. 16 Paulo VI, Gaudete in Domino, 1975, capítulo VI. Há incerteza, empobrecimento, depressão. Ao encarar esta realidade, a fé no Ressuscitado suscita alternativas concretas. Quer dizer, não se está paralisado nem o agir humano, nem a igreja nem a espiritualidade. Ao contrário, estamos numa época cheia de oportunidades de felicidade. Alguém poderia desejar que ao documento dos Direitos Humanos das Nações Unidas se lhes fosse acrescentado o direito universal de gozar a vida. Em relação à Igreja, ela escuta e lê os sinais de nosso tempo que clamam pelo bem-estar integral. Ser igreja não é autocentrar-se; antes, ela dá testemunho da vocação universal a ser feliz. A pessoa humana – como escreveu Paulo VI- tem uma “vocação à felicidade para sempre, pelos caminhos do conhecimento e do amor, da contemplação e da ação”17. No marco desta vocação universal à Vida se desenvolve um maior contacto entre diferentes religiões e modos de ser feliz. Não há indicadores que se caminhe para uma mega religião mundial; nem que o cristianismo recrie outros sistemas simbólicos. Trata-se isto sim de viver em harmonia e interagir entre aqueles que somos diferentes, de crescer e enriquecer-nos mutuamente, graças a diversas formas de crer e gozar. Esta é uma convicção e uma aposta. Talvez algo similar é sentido pelos que lêem estas páginas. A convicção é irrestrita. Ao apostar, um se arrisca com alegria. Sigamos apostando no mistério de gozar, no mistério que nos libera. Tradução Hr. 17 idem , Conclusão . 23 24