ARTE, POLÍTICA E ESCRITA EPISTOLAR: A
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ARTE, POLÍTICA E ESCRITA EPISTOLAR: A
ARTE, POLÍTICA E ESCRITA EPISTOLAR: A CONSTITUIÇÃO DE UM ESPAÇO AFETIVO ENTRE JULIUS SCHMISCHKE E KARL GÖTZ Mariah Fank1 Resumo: Esta comunicação visa apresentar a análise das fontes discutidas em projeto de PIBIC que teve por objetivo investigar aspectos da trajetória, da obra e da escrita epistolar do pintor alemão Julius Schmischke, que viveu em Porto Alegre entre 1923 e 1937, quando retornou à Alemanha. Após seu retorno, o pintor iniciou uma troca de correspondências com o diretor do DAI, um instituto cultural voltado para os alemães no exterior, diante das dificuldades de reinserção na vida artística. O pintor utiliza de sua atuação em Porto Alegre no NSDAP e também como expositor no pavilhão cultural da exposição alusiva ao Centenário da Revolução Farroupilha para reivindicar seu espaço no campo artístico alemão. Utilizarei nesta comunicação as correspondências trocadas no período de 1938 a 1943 e transcrições de recortes de jornais alemães noticiando as exposições do pintor. É por meio dessas fontes que se torna possível conhecer aspectos da trajetória de vida do pouco conhecido artista e analisar como suas experiências no Brasil tiveram influência em sua arte. Além disso, as cartas permitem discutir a própria representação de si do autor ao destinatário e a constituição de uma relação político-afetivo que foi fundamental para sua reinserção. Palavras-chave: Escrita epistolar; Escrita de si; Arte; Política; Cultura. Este artigo é resultado do projeto de Iniciação Científica (PIBIC)2 intitulado “O artista plástico alemão Julius Schmischke entre o Brasil e a Alemanha (1890-1945): arte, política e escrita epistolar”, cujo objetivo foi investigar aspectos da trajetória, da obra e da escrita epistolar do pintor alemão Julius Schmischke, que viveu em Porto Alegre entre 1923 e 1937. A análise baseou-se em correspondências trocadas entre Julius Schmischke e Karl Götz, 1 Discente do 4º. Ano do curso de História da UNIOESTE. Email: [email protected]. A pesquisa de PIBIC, que se encerrou em julho de 2014, faz parte de um projeto de pesquisa coordenado pela Profa. Dra. MériFrotscher, intitulado “História memória autobiográfica de imigrantes alemães no Brasil”, financiado pelo CNPq. 2 2284 diretor do DAI – DeutschesAusland-Institut (Instituto para o Exterior Alemão), entre 1938 e 1943. Essas cartas são parte do fundo do DAI, sob guarda do Arquivo Nacional de Berlim. O conjunto documental é composto por 16 correspondências e alguns recortes de jornais sobre as exposições do artista em terras alemãs.3 A partir da análise das cartas do pintor, inclusive a maneira como ele se auto-representa ao destinatário, podemos apreender o papel importante dessatroca de correspondências, relacionadas também ao processo de reinserção do pintor no cenário artístico na Alemanha. Consideramos, então, que as cartas analisadas não são somente fontes de pesquisa. A própria troca de correspondência é também constituidora de um espaço afetivo entre remetente e destinatário, o que, no caso de Julius, foi fundamental para sua reinserção profissional em sua velha pátria. Portanto, a carta, enquanto fonte histórica, não é apenas um meio de comunicação entre remetente e destinatário. Por se tratar de uma fonte introspectiva, pode-se considerar quegrande parte das correspondências têm um sentido autobiográfico e possibilita ao pesquisador apreender a posição do indivíduo em relação à sua história e ao mundo, assim como o modo que ele se representa e se insere nessa escrita(MALATIAN, 2011, p. 195-249). Diferentemente de outras escritas de si, como diários e autobiografias, as cartas seguem regras e têm uma estrutura padronizada, o que limita a espontaneidade na escrita do remetente. Entretanto, mesmo que possuam uma pré-estrutura, não têm compromisso literário, e tem por objetivo apenas testemunhar, explicar, ensinar, pedir ou mesmo denunciar, agredir, acusar(WADI; SOUZA, 2009, p. 99). Dessa forma, a carta possibilita a análise de vários aspectos relativos à vida pública e privada daquele que escreve, assim como ocultam e revelam partes de si, trazem consigo diálogos, emoções, rupturas, silêncios e, principalmente, aspectos culturais. Nesse artigo propomos a análise das cartas trocadas somente entre os dois primeiros anos, de 1938 a 1939, nas quais é possível visualizar a primeira fase do processo de reinserção do pintor no meio artístico alemão. Esse 3 Estas fontes foram localizadas durante pesquisa para o projeto de pós-doutoramento da professora orientadora, a qual buscou investigar a reemigração de alemães e descendentes que residiam no Brasil durante o regime nacional-socialista. Sobre isso ver FROTSCHER,2013:a e parte inicial do artigo FROTSCHER, 2013:b. 2285 momento é caracterizado peloinício do contato e fortalecimento da relação entre ele e o diretor do DAI, Karl Götz. Essa relação, que primeiramente se tratava de um contato profissional, não ocorreu por acaso. O órgão DAI foi criado em 1917 com o intuito de orientar alemães e descendentes no exterior, documentar minuciosamente sua presença, produzir pesquisas e publicações, assim como aconselhar e orientar pessoas que desejassem emigrar(GESCHE, 2006). O instituto desempenhou funções importantes na política cultural alemã voltada para o exterior. Portanto, ao escrever para o diretor desse instituto, Julius buscava auxílio nesse primeiro momento, caracterizado por seu retorno à sua terra natal, após 14 anos afastado. Nesse período em que esteve no Brasil, novos artistas e concepções artísticas surgiram e disputavam espaço na Alemanha, também por conta da ascensão do nacional-socialismo ao poder e, consequentemente, de sua política cultural, da qual o DAI tomou parte.4 Quase a maior parte de dados biográficos do autor está contida nas próprias cartas endereçadas a Karl Götz, no período de 1938 a 1943, e também nos recortes de jornais, anexados às cartas. Localizamos uma curta biografia contida num catálogo dos professores e alunos da escola de artes de Königsberg5 e alguns dados sobre o artista no Dicionário de artes plásticas no Rio Grande do Sul (ROSA, 2000, p. 24). Schmischke nasceu em 20 de setembro de 1890, em Rossitten/KurischeNehrung, uma pequena vila de pescadores da Prússia Oriental, onde seu pai exercia a função de professor da escola local. Julius escreve não ter desejado seguir seus passos e, aos 16 anos, tornou-se artista autônomo. Estudou na Academia de Artes de Königsberg, capital da Prússia Oriental, e também estudou na Academia de Artes de Munique. Durante a Primeira Guerra Mundial, Schmischke serviu por quatro anos no front, tendo participado de batalhas como a de Verdun e a de Ypern, que lhe teriam marcado profundamente. Depois, tentou viver como pintor, mas a “luta 4 É importante ressaltar que durante o nazismo observa-se no meio cultural alemão a proibição do que o regime chamava pejorativamente de “arte degenerada”, que se caracterizava por obras modernistas e produzidas por judeus. Valorizava-se a arte de cunho patriótico, que enfatizava o militarismo, a ordem e a pureza e libertação racial. Para saber mais verificar o texto: CAPELATO, 1995, p. 82 – 93. 5 KunstakademieKönigsberg 1845 – 1945. BIOGRAPHIEN DER DIREKTOREN UND LEHRER. Bearbeitet von IngeborgNolde. Darin: „Biographien der Direktoren und Lehrer“. „Biographiender Schüler“, 65-94. 2286 pela existência”, segundo ele, o teria impelido à emigração ao Brasil em 1923, quando seguiu o chamado de um amigo. Em Porto Alegre, Schmischke exerceu diversas ocupações, até se firmar na carreira de artista plástico. Durante as comemorações do Centenário da Revolução Farroupilha, em 1935, expôs obras no Pavilhão Cultural.6Schmischketambém atuou como diretor cultural do NSDAP – Partido Nacional-Socialista Alemão. Por meio da consulta às listas dos filiados ao NSDAP, obtivemos a confirmação desta informação, assim como o número de sua filiação e entrada no partido7. Em 1937, Schmischke retorna à Alemanha. Não encontramos informações sobre as motivações de sua vinda ao Brasil, bem como sobre a sua volta, pois as fontes as quais temos acesso não abordam nada sobre esse tema. Na Alemanha, como afirmamos anteriormente, para se reinserir na função de artista, recebeu ajuda do diretor do DAI, Karl Götz. Podemos notar ao longo da análise das cartas, a relação entre o artista e o diretor não se iniciou nessa primeira carta localizada, mas sim, anterior a esse período. É possível que tenha se iniciado após seu retorno, pois Julius retornou entre o período de 1937 e 1938. Estima-se que a carta, datada de meados de dezembro de 1938, tenha sido escrita cerca de um ano depois de Julius ter retornado.A relação estabelecida entre esses dois sujeitos é importante para o processo de recolocação profissional em um período em que a situação política era muito diferente da vivida antes da emigração ao Brasil. Muito embora o pintor tivesse sido membro do NSDAP no Brasil, ele tinha se afastado do meio artístico alemão por 14 anos e certamente havia disputas nesse campo, assim como existiam no campo político.A dificuldade de reinserção é reconhecida por Julius em sua carta do dia 19 de dezembro de 1938: Quero agradecê-lo de todo coração por isso, pelo senhor ter ficado desde o início firme ao meu lado; pois sempre é algo difícil tornar um 6 Em carta afirma apenas ter participado da “Exposição do Centenário”, em Porto Alegre. Por meio de uma tese de doutoramento deMACHADO,1990, tomamos conhecimento sobre a dimensão da Exposição do Centenário da Farroupilha e, da consulta de algumas fontes indicadas, pudemos ter certeza de que era essa a exposição que Julius havia mencionado. 7 Sua filiação ao NSDAP consta na lista de membros compilada pelo governo norte-americano logo após a Segunda Guerra Mundial. Na lista dos membros do NSDAP no exterior, confeccionada em 1948 e depositada no Arquivo Nacional de Berlim, Julius Schmieschke, nascido em Paroesken, Prússia Oriental em 20.09.1890, havia se filiado em 10 de janeiro de 1934 sob o número 02111410. Fonte: NS 9/183, Barch Berlin. 2287 “desconhecido” uma pessoa conhecida, principalmente no atual 8 momento, quando os conceitos artísticos ainda estão bem caóticos. Nas cartas, o artista utiliza dessa relação com o diretor, assim como cita sua trajetória política no Brasil a favor do NSDAP, para realizar suas exposições, vender seus trabalhos e obter reconhecimento. Quando relembra sua atuação no exterior, nos âmbitos artísticos e políticos, em prol do regime vigente na Alemanha nesse momento, ele busca articular arte e política na finalidade de sensibilizar o diretor do DAI. Na carta, ressalta seu trabalho no partido em Porto Alegre, quando propõe a Götz que este escreva sobre ele e suas obras artísticas no periódico OstdeutscheMonatshefte: A sua questão é mesmo a germanidade no exterior. Por isso, um bom começo teria sido um primeiro encontro no meu atelier em Porto Alegre. Talvez também o meu trabalho no Partido acolá; pois posso tranquilamente dizer que consegui, sob a minha direção artística, como responsável pela área cultural do círculo do partido no RGS, que todas as reuniões do Partido fossem as mais visitadas da cidade 9 de Porto Alegre (Na de 1º de Maio de 1936, havia 7 mil visitantes). Essa revista, segundo ele, era lida em círculos do governo. Por isso, talvez, a importância de dar ênfase não apenas ao fato de ter sido membro, mas seu engajamento e responsabilidade na organização de atividades culturais em nome do partido no exterior, como os festejos do Primeiro de Maio em Porto Alegre. Nesse sentido, cumpria a função de propagandista do modelo de regime e nação nazista. Além disso, a sua filiação ao partido, como outros alemães imigrantes, significava também manter-se ligado à vida política da pátria de origem(GERTZ, 1987). Porém, no caso de Julius, significava também estar comprometido com o projeto de nação nacional-socialista, que no momento do qual escreve, está no poder.Julius envia esta correspondênciaà Karl Götz após ter acesso às críticas dos jornais sobre seu trabalho exposto nas dependências da Sociedade de Artes de Wüttemberg, em Stuttgart, em 1938.Schmischke expôs na sala principal dessa exposição, chamada pelos jornais como 8 Carta enviada de Julius Schmischke a Karl Götz, de 19/12/1938. Fundo R 57 Neu – 353. Barch Berlin. 9 Carta enviada de Julius Schmischke a Karl Götz, em 19/12/1938. Fundo R 57 Neu – 353. Barch Berlin. 2288 “Exposição de Novembro”, com obras que tinham como temática o intercâmbio cultural teuto-brasileiro. Anexado às cartas, Julius enviou notícias dos jornais sobre dessa mostra artística e comenta que as críticas positivas representariam “a primeira grande entrada na pátria e na arte alemã”10. Tal afirmação nos possibilita refletir acerca do que significava para o artista “entrar em sua pátria”, pois esta carta foi escrita cerca de um ano após seu retorno – físico – à Alemanha, porém, para ele, ainda faltava a entrada enquanto sujeito público do campo artístico e político. Portanto, para Schmischke, sua reinserção e o reconhecimento de seu talentosignificamobter visibilidade no espaço público. Ou seja, nesse momento, o artista busca por duas formas de reinserção: na vida econômica-social em sua pátria e no campo artístico. Sua inserção econômico-social é representada por ele como dependente de sua inserção no campo artístico. Para ele, o reconhecimento de seu trabalho significaria sucesso e este, segundo o próprio artista, se dividiria em dois tipos: É certo que o sucesso material foi bem modesto, mas culpa disso foram os motivos estrangeiros [das telas]. Entretanto, nesse caso, o mais importante é o sucesso moral. Depois, espero, virá também em 11 breve o outro [sucesso]. A busca pelo reconhecimento tem a ver com dois aspectos: o artístico, que remete a questão fundamental para um artista, ser conhecido e reconhecido pelo público; e o nacional: ser reconhecido por um público que se identifique com sua obra, daí ter reconhecido que as obras expostas, com motivos brasileiros, talvez não tivessem contribuído para aquilo.Porém, assim como compartilha em sua carta, Schmischke crê que neste momento no qual escreve é mais importante a busca pelo reconhecimento da sua arte na Alemanha, por isso, afirma que o sucesso moral, possui maior importância que o sucesso econômico. Escrever ao diretor do DAI e pedir que este faça um artigo sobre sua arte para uma revista que tem como público o círculo político, significa, para 10 Carta enviada de Julius Schmischke a Karl Götz, em 19/12/1938. Fundo R 57 Neu – 353. Barch Berlin. 11 Carta de Julius Schmischke a Karl Götz, de 19/12/1938. Fundo R 57 Neu – 353. Barch Berlin. 2289 Julius Schmischke, promover sua arte em círculos de grande influência e poder aquisitivo. Dessa forma, a sequência de ideias estabelecida em sua carta nos permite compreender que Schmischke busca afirmar seu talento, pois após o pedido da redação da matéria, o artista descreve um pouco de sua vida: Eu nasci em 20/09/1890, no coração da Prússia Oriental, numa vila de camponeses mais retirada. Cresci entre camponeses e, depois, entre pescadores, os meus antepassados eram eles mesmos camponeses e meu pai foi professor da escola da vila. Se eu sou um pouco rude na minha letra e na forma de me expressar, isso é algo 12 natural e consequência daquilo. Na análise das trajetórias deve-se considerar a maneira como foi estruturada essa autobiografia, ou seja, considerar o que está “no” texto e não o que está “por trás” deste. Portanto, ao dedicar trecho de sua carta à sua história de vida, o artista nos permite conhecer como faz a construção de sua auto-representação e questionar a sua escrita sobre si, pois essa se faz de acordo com a sua intenção. Devemos considerar que o que é ditoestá sempre “em contexto” (HALL,1996, p. 68 – 75).Ou seja, é necessário levar em conta que é uma construção feita em determinado momento e direcionada a um determinado destinatário que, neste caso, era um contato profissional e influente no campo político-cultural, uma autoridade. Além disso, é importante analisar o espaço que sua autobiografia – parcial, pois resume nela apenas sua vida até a participação na primeira guerra – ocupa em sua carta, que é apenas um parágrafo. Portanto, relatar sobre sua origem em uma de suas cartas a Götz, significava mais do que um simples informe sobre seu nível de escolaridade. Ao afirmar que a vivência entre camponeses e pescadores teve influência em sua escrita e na maneira como se expressa, que caracteriza como “rude” e como consequência direta daquilo, significa que é importante para aquele que escreve justificar-se pela sua instrução. Isto ocorre justamente por estar se relacionando em busca de um apoio na sua reinserção no meio artístico alemão, se tratava de um contato profissional. Na sequência da carta, Julius relata brevemente sua participação na Primeira Guerra Mundial. Ele não apenas escreve que cumpriu um dever 12 Carta de Karl Götz a Julius Schmieschke, de 19/12/1938. Fundo R 57 Neu – 353. Barch Berlin. 2290 perante a nação, mas expressa o trauma de ter participado daquelas batalhas, de um momento marcante também presente na memória do destinatário e de outros alemães e franceses. Em uma das cartas, afirma que a arte teria sido sua motivação de vida, sua indenização pelas poucas alegrias que teve na vida13. Nesse momento, expressa também o trauma de ter participado de um momento marcante da memória de outros alemães e também franceses 14, quando relembram as batalhas mais sangrentas e marcantes da Primeira Guerra Mundial. Quando Julius se refere ao trauma da guerra, sabemos que ele se refere a uma memória a qual Götz também compartilhava. Nesse sentido, essa fonte permite ao historiador ter acesso não somente às experiências de vida do sujeito, como também aos significados que esse imprime aquele evento e a sua própria trajetória de vida. Ao ressaltar a importância da arte em sua vida e relacioná-la com uma experiência traumática vivida por alemães e também franceses, o artista enfatiza que serviu à sua pátria anteriormente, como soldado, e neste momento, quer poder viver de sua arte. E, ao procurar alguém que representa uma influência no campo políticocultural, apresenta mais uma justificativa da razão do merecimento de tal suporte e apoio. Julius dedica as últimas linhas de sua carta para falar sobre as pessoas que teriam como intermediar a publicação sobre suas obras nas revistas alemãs e retoma outros títulos de revistas que poderiam receber uma publicação do diretor, porém ressalta a importância de se conhecer e escrever publicações diferentes, de acordo com o público destas. Após isso, concluiu sua correspondência com desejos de um feliz natal para o direto, juntamente um objeto artesanal feito de araucária, arvore típica do sul do Brasil. As duas cartas que dão sequência ao diálogo, que temos acesso, são breves, porém nos permitem analisar alguns aspectos primordiais acerca da reinserção de Julius, assim como se refere as suas próprias obras. Na carta de 12 de janeiro de 1939, o artista escreve ao diretor e agradece o recebimento de uma carta do dia 30 de dezembro de 1938, a qual não temos acesso, mas por meio de Julius, sabemos que Götz aceitou escrever o artigo. Além disso, Julius 13 Carta de Julius Schmischke a Karl Götz, de 19/12/1938. Fundo R 57 Neu – 353. Barch Berlin. 14 Sobre a noção de memória coletiva, nos baseamos em HALBWACHS, 2006, p. 29-70. 2291 envia em anexo algumas fotos de seus trabalhos, para serem utilizadas na publicação, porém, aponta a deficiência das fotografias: Para tanto lhe envio em anexo algumas fotos de meus trabalhos, as quais o senhor pode escolher a que melhor convier. Como as minhas telas falam, sobretudo através das cores, as fotos são deficientes, pois as retratam muito mal em preto e branco.15 Nesse momento, notamos que Julius se refere a um aspecto discutido por Walter Benjamin em seu artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1994, p. 165): a reprodução fotográfica das obras de artes. Apesar do desenvolvimento da técnica, que possibilitava que a cópia alcançasse públicos antes impossíveis, as fotografias não apresentariam, segundo o pintor,um elemento fundamental em sua arte: as cores. Na carta de 01 de maio de 1939, também enviada pelo artista, este cita que mudou de casa e está “contente de poder novamente viver como uma pessoa”, aspecto esse, que representa o início da reestruturação pessoal de Schmischke em sua terra natal. Como veremos adiante, o artista aos poucos se insere no meio artístico alemão, apesar de alguns percalços. Julius Schmischke escreve, em 31 de maio de 1939, na qual informa sua participação na exposição do centenário de Porto Alegre. Trata-se da Exposição do Centenário Farroupilha, que ocorreu em 1935 e foi uma grande Feira Internacional, onde cada estado brasileiro tinha um pavilhão que mostrava um pouco da sua história, costumes e seus produtos. A exposição teve como marca a diversidade e foi um espetáculo, com uma grande estrutura e mostras de produtos industriais e agrícolas, obras de arte, livros, jornais e até achados paleontológicos.16 Entre essas estruturas, existiu o Pavilhão Cultural, no qual Julius Schmischke expôs a obra “Homem com Galo”. Porém, no momento em que Julius traz essa informação, ele busca reivindicar o seu espaço no meio artístico alemão, utilizando dessa experiência em solo brasileiro, onde teve seu trabalho reconhecido e exposto: 15 Carta de Julius Schmischke a Karl Götz, de 12/01/1939. Fundo R 57 Neu – 353. Barch Berlin. 16 Para compreender mais sobre o que foi a Comemoração do Centenário Farroupilha, em 1935, ver: MACHADO, 1990. E ainda, acessar: http://lealevalerosa.blogspot.com.br/2010/05/centenario-da-revolucao-farroupilha.html Acessado em 23/01/2014. 2292 Nos meus 30 anos de atividade enquanto pintor até agora sempre fui um dos melhores. Numa exposição do centenário de Porto Alegre, me deram um grande espaço no salão de honra, apesar de eu ser estrangeiro. Em Stuttgart também recebi o salão principal! Só para a minha pátria eu não basto.17 (grifo nosso) Schmischkedeixa claro em suas cartas sua atuação como líder político no exterior para favorecer seu reconhecimento. Por meio da intervenção do NSDAP, Julius foi informado que teria uma exposição somente dele, após reclamar das respostas negativas que havia recebido. Outro aspecto que nos é exibido pelas cartas é que, apesar de não ser claro sobre as motivações do seu retorno à Alemanha, nas cartas é acentuada a ascensão do Nacional-Socialismo na Alemanha como um forte motivo para o retorno pelos “alemães no exterior” à “Nova Alemanha” propagada pela propaganda política que ressaltava a estabilidade econômica e social alcançada sob o regime nazista no país. Nós, alemães no exterior, pesamos na balança de ouro toda a palavra que aqui foi falada e fixamos as nossas esperanças nelas.Deveria-se evitar que se devesse morrer por se ter acalmado sua saudade! Eu me alegro e sou muito agradecido ao senhor por ter possibilitado essa mudança, em meu caso. Mas não se podem encontrar caminhos para se evitar que casos como esse se repitam? É impossível que nós roubemos a crença de nossos camaradas no 18 exterior! (Grifos nossos) Julius se insere num coletivo, os “alemães no exterior”, e procura falar em nome deles. Ele expressa nitidamente sua identificação em relação à Alemanha nazista e de como ela teria motivado seu retorno. Mas expressa também o problema das dificuldades que ele e outros retornados à pátria estavam tendo. Não ajudá-los seria má propaganda para os alemães que continuavam no exterior (vide última frase). Neste momento e altura da troca de correspondências, parece falar de igual para igual com Götz, ou seja, de partidário para partidário. Além disso, esse trecho nos permite perceber o reconhecimento do artista do auxílio do diretor do DAI a seu favor, o que amenizou as dificuldades iniciais encontradas para se inserir novamente em sua pátria. Em resposta, 17 Carta de Julius Schmischkea Karl Götz, em 31.05.1939. Fundo R 57 Neu – 353. Barch Berlin. 18 Carta de Julius Schmischke a Karl Götz, em 31.05.1939. Fundo R 57 Neu – 353, Barch Berlin. 2293 Götzconcorda e afirma: “O senhor tem razão, nós devemos aqui intervir. O senhor não acredita quantas frustrações de retornados me chegam aos ouvidos”19. Nessa mesma carta, o diretor deixa claro sua prontidão em ajudar o artista com qualquer dificuldade que venha a enfrentar: Mas por favor, me escreva como as coisas estão indo, se o senhor recebe encomendas, se o senhor recebe o pão de cada dia, etc. Em qualquer momento [falta trecho da tradução] lhe ajudar, onde eu 20 puder. A carta enviada ao final de 1939, nos indica uma estabilidade na vida de Julius, que apesar dos efeitos que a 2ª guerra mundial tem em seus negócios, consegue uma exposição individual. Além disso, consegue fazer uma venda ao VDA de Berlim de duas obras, entre elas, a “BDM Mädel”, que aparece referida também como “Deutsche Jugendführerin in Südamerika”(Líder da juventude nazista na América do Sul). Essa imagem é apropriada por esse órgão e transformada em um cartão postal. Além disso, é convidado pelo mesmo instituto a fazer visitas nos campos de prisioneiros e nos territórios ocupados durante a guerra e retratar as paisagens, na finalidade de publicar mais tarde em uma revista. Como o próprio Julius reconhece, tais avanços e possibilidades se deram graças à intervenção de Karl Götz. Julius e Götz continuam a trocar cartas até 1943, quando a esposa do diretor encaminha uma resposta à Schmischke e o avisa que seu marido foi enviado à guerra. Mais tarde, o artista também é enviado ao front, onde morre pouco antes do final da mesma. O restante das cartas nos mostra uma segunda fase na vida do artista após o retorno à Alemanha. Entre os anos de 1940 e 1943, é um período caracterizado pela superação das dificuldades na sua inserção. Julius relata estar estável em sua carreira artística e ter sido reconhecido pela sua pátria pela sua arte. Por mais que tenhamos nos limitado a análise do primeiro momento do seu retorno, é possível compreender a importância do papel do DAI no processo de reinserção e reconhecimento do talento do artista. Além disso, podemos visualizar e investigar os aspectos que se sobressaem na 19 Carta de Karl Götz a Julius Schmischke, em 23.06.1939. Fundo R 57 Neu – 353, Barch Berlin. 20 Carta de Karl Götz a Julius Schmischke, em 23.06.1939. Fundo R 57 Neu – 353, Barch Berlin. 2294 representação do próprio artista em suas cartas, assim como esse se relaciona com o meio no qual está inserido. Trata-se, portanto, de uma fonte riquíssima em informações e possibilidades de análise, que nos possibilita tambémpensarmos sobre as relações entre arte e política, no caso, o nacionalsocialismo. Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In.: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 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