Paulo Francis - Portal IMPRENSA

Transcrição

Paulo Francis - Portal IMPRENSA
Ele pode ter jeito de
Deus, pose de Deus,
sobretudo pode falar
como Deus. Mas é um
mortal comum. Enfim,
Francis trabalha na
Globo. E, lá, Deus tem
outro nome
Paulo Francis, março de 1989
Ano II, nº 19
322 | VINTENÁRIO: duas décadas de IMPRENSA em revista
O bondoso
Professor Heilborn
Paulo Francis, acredite, está dentro daquela loja comprando comida para gatos. Logo ele,
que riu muito da história da psicanalista que foi “flagrada” num supermercado por uma cliente: “Você
aqui? Fazendo supermercado? Nunca pensei”. Paulo Francis acha que essas coisas acontecem porque nós
acabamos com Deus. Pois eu mesmo nunca pensei que o Francis comprasse comida de gatos. Claro que
ele pode ter jeito de Deus, pose de Deus, sobretudo pode falar como Deus. Ainda assim, de uma coisa eu
estou certo: ele é um mortal comum. Enfim, Francis trabalha na Globo. E, lá, Deus tem outro nome.
Se um dia você encontrar, num restaurante de Nova York, um homem com cara de Paulo Francis
e tiver a idéia de confirmar se está diante do famoso comentarista da Globo e articulista da Folha, confira: ele está bebendo água mineral Perrier? Está comendo carne? Está na seção de não-fumantes? Se o
homem com cara de Paulo Francis estiver bebendo Perrier e comendo carne, é o Paulo Francis. Vamos
esquecer essa história de não-fumantes, pois ele só parou de fumar há duas semanas e já é a terceira vez
que abandona o cigarro. Mas até é possível que, desta vez, ele deixe o fumo para sempre. Em Nova York,
está cada vez mais cafona fumar.
O frugal Paulo Francis, o mais polêmico jornalista do Brasil, é, na verdade, uma pessoa doce, tímida
e elegante. Uma excepcional pessoa comum que, no fundo, como quase todos nós, gostaria de fazer logo
uns 2 milhões de dólares, no mínimo, para se aposentar com toda a segurança e muitíssimo conforto.
Ele sabe que ganha bem, mas sabe também que deveria ganhar mais. Não há outro Paulo Francis para
o lugar de Paulo Francis. Dinheiro, claro, tem importância para ele. Em Dan Rather, o âncora da CBS
que substituiu o legendário Walter Cronkite, o que Francis mais admira é o salário: 1 milhão e meio
de dólares por ano. Paulo Francis acha Dan Rather bom, mas o seu âncora preferido, aquele que acha
perfeito, é o canadense Peter Jennings, da ABC. Jennings é mais fino, mais sofisticado. Mas, infelizmente,
não ganha nem a metade do que o rival.
Paulo Francis vive em boa rua e boa vizinhança, perto da ONU. Logo que ele mudou para esse
prédio, os empregados pensavam que ele era embaixador da Inglaterra ou da Alemanha. No edifício
em que morou antes, achavam que ele era professor. Outros também pensavam assim e o chamavam de
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Professor Heilborn. O verdadeiro nome de Paulo
Francis é Franz Paulo Heilborn. Para ser completo,
Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn.
De família fortemente alemã, Paulo Francis
cresceu protegido e emparedado no então tranqüilo bairro de Botafogo. Só mergulhou no Rio
quando foi para o colégio. Como Fidel Castro,
Francis é produto de colégio jesuíta. Ambos não
acreditam em Deus. Mas desconfiam de que Ele
exista. Francis tem certeza de que Castro nunca
leu Marx. E a única vez que visitou a ilha ainda
eram os tempos de Batista. Fidel custou a terminar
a faculdade, ocupado com política e revolução.
Francis nem entrou na faculdade. Foi revolucionar
o teatro. Queria ser ator. Ganhou o nome de Paulo
Francis do grande idealista do teatro brasileiro
Pascoal Carlos Magno. Francis subiu aos palcos e
excursionou pelo Nordeste. Foi aí que descobriu
o Brasil.
Do palco, passou à crítica teatral. Às vezes
violenta. Paulo Autran brigou com ele a socos, para
desagravar Tônia Carrero, de quem Francis disse
horrores. O arrependimento de Francis não foi
suficiente para resgatar as amizades. A vida é assim,
os ofendidos acabam mais duros que o ofensor.
Paulo Francis nasceu no Rio, a 2 de setembro de 1930. Vai fazer, portanto, 59 anos. Está
em ótima forma, mais magro e ágil, apesar da
gripe destes dias. Ele chegou ao jornalismo pela
porta estreita da crítica, há 32 anos. Foi crítico de
teatro do Diário Carioca, teve coluna de cinema no
Jornal do Brasil e fez crítica de TV no Última Hora,
onde se tornou colunista político e editorialista.
Editou a revista Senhor do passado, foi uma das
cabeças mais importantes do Correio da Manhã.
Colaborou em Realidade e Manchete. Trabalhou
ainda na Visão e na Tribuna da Imprensa. Tudo
isso sem esquecer O Pasquim, onde ganhou prestígio nacional.
Os gatos – No seu apartamento de sexto andar,
divide a grande sala com três gatos, substitutos
de Alzira, a inesquecível, uma gata grande e fofa
que, ao morrer, deixou saudades. Alzira, herança
de Lucas Mendes, era tão querida que os amigos
de Francis, quando viajavam, mandavam postais
endereçados a Alzira Heilborn. O apartamento é
a casa dele e da mulher, Sônia Nolasco, jornalista
competente e laboriosa que escreve para o “Caderno
2” de O Estado de S. Paulo, para a revista Elle e
tem três bons livros publicados.
Agora, Paulo Francis vai trabalhar. Só que
ele pega o elevador e sobe. Pois é no décimo nono
que ele tem um apartamento de uma peça que
funciona como escritório. Ali, o telex, onde antes
batia direto os seus artigos para a Folha, cedeu
lugar a um computador. E ali está Paulo Francis,
escrevendo o artigo que você vai ler amanhã.
Logo cedo, o fax lhe traz as principais páginas da Folha. Acaba de entrar a primeira página. A
manchete é sobre a dívida e o autor é Paulo Francis.
Neste escritório, Francis tem os livros de referência,
revistas e jornais. Ele assina The New York Times,
The Wall Street Journal e a edição de domingo de
The Washington Post. Compra, também, as revistas New York, New Republic e New York Review of
Books. Ah, como não podia deixar de ser, assina
também a sofisticada New Yorker. Toda semana, na
banca do Citicorp, compra os londrinos Observer e
Sunday Times. Lê muito rápido, quando é trabalho.
Demora, quando é prazer.
Para ir à Globo cumprir sua obrigação
diária, caminha oito quarteirões. São sete ruas
e um quarteirão grande entre avenidas. A chegada à redação da Globo é sempre gloriosa. É
recebido com carinho por todos. Alguns dizem,
brincando: “Nhô Nhô chegou”. É uma gozação
em cima do apelido que ele colocou em Ronald
Reagan – “Nhô Reagan”. Francis é meio irmão e
meio pai da moçada.
Lucas Mendes, o chefe do escritório, comenta:
“O Paulo Francis é mais importante do que ele
pensa, neste escritório. Ele faz bem às pessoas”.
Paulo Francis conversa com os colegas, discute
com os companheiros o assunto que vai gravar,
se isola, se concentra e reaparece com um texto
montado na cabeça. Luzes. E ele troca suas grossas
lentes por uma armação vazia e inocente, incapaz
de ofender a câmera com reflexos. Senta, então, no
banquinho, e grava seu comentário. Quase nunca
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de primeira. Quase sempre logo. Costuma misturar palavrões aos eventuais erros. Vai sempre ver
o que gravou. Não satisfeito, regrava.
Às vezes, faz alguns telefonemas. Queiram
ou não seus detratores, ele tem boas fontes norteamericanas. É capaz de conversar com banqueiros, com gente do Departamento de Estado, com
jornalistas importantes. É normal que seja assim:
Francis mora aqui há 18 anos, é um bom jornalista, é bem-preparado, fala um inglês de primeira
qualidade, representa um bom jornal e a TV Globo
e, além de tudo, é o Paulo Francis.
Não que seja só amado. A antiga sala de Boris
Casoy na Folha era conhecida como o muro das
lamentações. Por lá passaram, com reclamações
sobre possíveis ofensas de Francis, embaixadores de vários países. Entre eles, os dos Estados
Unidos e da União Soviética. Um deles o acusou
de agente da Alemanha Ocidental. Por coincidência, chegara naquele dia ao jornal um artigo
do Francis acabando com a Alemanha Ocidental.
Enfim, o jornalista que chamava Henry Kissinger
de “cabeça de toicinho” não veio ao mundo só
para agradar.
Em política, Francis saiu da esquerda para
uma posição neoconservadora. Acredita na economia de mercado e sente que o único caminho
é o capitalismo moderno, onde pode caber até
uma social-democracia. Lamenta que o Brasil não
entenda isso e que a opção para o pré-capitalismo
brasileiro seja o pré-socialismo. Não tem muita
paciência com Lula, Erundina e o PT. Teria um
pouco mais com Plínio de Arruda Sampaio. A foto
de Trotsky, na parede do apartamento de Francis, é
apenas reminiscência. E admiração intelectual.
Paulo Francis deixou o Brasil em 71, não por
falta de amor, mas por falta de paz. Estava farto
de ser preso. Costuma dizer que o Brasil perdeu o
bonde da história. Não tem a menor contemplação
pelo presidente Sarney. Mas é amigo do ministro
José Aparecido. Também não tem a menor simpatia por George Bush [o pai]. Considera ridícula a
novela John Tower. Simpatiza com Gorbachev. Acha
que o líder soviético só não diz tudo o que pensa
porque não dá pé. Para Francis, a economia de
Estado faliu. Francis é homem de sentenças curtas e
definitivas. Como esta: “O livro de Salman Rushdie,
‘Os Versos Satânicos’, é chato”. Entre os seus ídolos
estão Freud, Rosa de Luxemburgo, Walter Benjamin
e Isaac Deutscher. O que não o impede de afirmar
que Freud cafungou por uns dez anos.
Terá defeitos, o Paulo Francis? Certamente
uma incontida impaciência, uma represada agressividade que o faz grunhir diante do menor obstáculo e esse corajoso defeito de dizer tudo o que
pensa. Na hora. Sem rodeios. Ele usa a terapia
do palavrão diante das dificuldades do dia-a-dia.
Nunca contra os outros. Paulo Francis seria o meu
tipo inesquecível, se a revista “Seleções” não estivesse tão fora de moda.
Paulo Francis pára diante de Marilyn Monroe
e murmura: “Que beleza!”. Se detém em frente a
Hitler e comenta: “Que horror!”. E passa silencioso diante de Churchill, Hemingway e Kennedy.
Está numa exposição do grande fotógrafo Alfred
Eisensteadt, que marcou com a sua arte as páginas
da revista Life. Para Paulo Francis, a Life foi, de
certa maneira, a melhor revista do mundo. De um
mundo que já não existe mais. (por Luiz Fernando
Mercadante)

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