O LUGAR DAS CRIANÇAS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Transcrição

O LUGAR DAS CRIANÇAS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 O LUGAR DAS CRIANÇAS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
CONSIDERAÇÕES SOBRE NOVOS ATORES E A DIFUSÃO DE PODER
Patrícia Nabuco Martuscelli (UnB)
[email protected]
Resumo: Esse artigo discute a atuação das crianças como um grupo social a ser considerado nas Relações
Internacionais, entendendo em que lugar elas se inserem na disciplina. Esse trabalho pretende responder se é
possível estudar as crianças como participantes das Relações Internacionais e, em caso positivo, porque a
disciplina não evidencia essa participação. Discutem-se inicialmente algumas concepções do conceito de
criança e como as teorias das Relações Internacionais entendem os atores e sua agência internacional.
Também se aborda a visão de agência invisível caracterizada por Cynthia Enloe e as considerações de
Alison M. S. Watson sobre como as RI veem as crianças para mostrar que as crianças possuem uma agência
invisível que não é reconhecida nas Relações Internacionais.
Palavras-chave: Crianças. Relações Internacionais. Agência. Atores. Agente-estrutura
Abstract: This article discusses children’s performance as a social group that has to be analyzed in
International Relations Studies in order to understand the place occupied by them in the discipline. This work
aims to answer if it is possible to see children as active participants in International Relations and, if they are,
why the discipline silences this participation. First of all, some conceptions of children are discussed and it is
presented how International Relations Theory understands the idea of international actors and agency. It is
also discussed the vision of invisible agency presented by Cynthia Enloe and the considerations of Allison
M. S. Watson on how International Relations see the children’s role in order to argue that children have an
invisible agency that is not recognized in the International Relations Studies.
Keywords: Children. International Relations. Agency. Actors. Agent-structure
Introdução
Crianças são, de acordo com o artigo 1º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança (1989), qualquer ser humano com menos de 18 anos. Muitas críticas são feitas sobre essa
definição, que não considera diferenças de idade e desenvolvimento dentro do grupo, de
experiências e de circunstâncias econômicas e culturais (JEFLERESS, 2002, p. 75). De fato, não é
possível considerar todas as crianças em uma generalização tão grande como a apresentada na
Convenção. Contudo, essa optou por esse tipo de conceituação ampla para abarcar o maior número
de indivíduos possíveis e garantir que os Estados chegassem a um consenso que pudesse ser aceito
no texto do instrumento jurídico.
Ainda que tenha seus problemas, esse é o conceito tradicionalmente adotado pela
comunidade internacional. A partir dele, pretende-se discutir a atuação das crianças como um grupo
social a ser considerado nas Relações Internacionais e não como indivíduos particulares. Ainda
assim, é importante considerar que crianças com idades diversas terão capacidades diferentes de
atuar na cena internacional e menores de diferentes países poderão exercer sua participação e sentir
a influência das decisões internacionais de maneiras distintas dependendo de seu contexto político,
econômico, cultural e social por exemplo.
100 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) existem mais de 2 bilhões
de crianças no mundo. Apesar da queda nas taxas de natalidade nos países desenvolvidos, a cada
ano nascem, no mundo todo, 135 milhões de bebês. Mesmo representando mais de 28% da
população mundial – que é estimada em 7 bilhões de habitantes – esse grupo nem sempre tem seu
papel reconhecido pela comunidade internacional. A figura da criança ainda hoje está associada à
esfera privada e doméstica e não participa do âmbito público onde a tomada de decisões acontece.
Como as Relações Internacionais são consideradas uma atividade do aspecto público, a
possibilidade de considerar crianças como atores que influenciam de maneira ativa questões
internacionais aparece silenciada.
A cada dia é possível observar mais exemplos da participação infantil no âmbito
internacional, seja lutando por direitos adquiridos, garantindo novos ou expondo sua opinião. O
exemplo mais recente dessa nova percepção das crianças na realidade internacional é o caso da
militante paquistanesa de 15 anos Malala Yousafzai (ESTADÃO, 2013). Desde que tinha 11 anos, a
blogueira defendia na Internet seu direito à educação (garantido pela Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos da Criança de 1989) e criticava a oposição do Talibã ao ensino feminino. Mesmo
sendo uma menina, o Talibã a percebeu como uma ameaça real ao regime e por isso perpetrou um
atentado contra ela em 9 de outubro de 2012, baleando-a na cabeça e no peito. Se as crianças não
tivessem nenhuma atuação política, um grupo como o Talibã não se preocuparia com um blog de
uma garota de 15 anos. Malala Yousafzai é um exemplo de que as crianças podem atuar ativamente
na política e em suas sociedades e que suas ações têm repercussões na vida de milhares de pessoas.
O avanço da tecnologia da comunicação aparece nesse caso como uma maneira de participação das
crianças na esfera pública.
O caso da paquistanesa mostra como na realidade uma criança pode impactar um país inteiro
e sensibilizar o mundo. Assim, faz-se necessário estudar a ação das crianças como grupo social nas
Relações Internacionais e entender porque a disciplina mantém em silêncio essa atuação. Nesse
sentido, esse trabalho pretende responder se é possível considerar as crianças como participantes
das Relações Internacionais e, em caso positivo, porque a disciplina não considera essa
participação.
Para analisar o lugar das crianças em questões internacionais e como a disciplina se
posiciona frente a isso, será utilizada a ideia de agência invisível caracterizada por Cynthia Enloe
(1990) e as considerações de Alison M. S. Watson sobre como as RI veem as crianças (2006).
Dessa forma, pretende-se argumentar que as crianças possuem uma agência invisível que não é
reconhecida nas Relações Internacionais.
Com o intuito de examinar a atuação das crianças nas RI, analisar porque a disciplina não
considera as crianças como atores relevantes e mostrar novos posicionamentos e formas de pensar o
101 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 lugar das crianças, esse artigo é organizado em introdução, três partes e conclusão. Na primeira
parte, são retomadas questões conceituais chave para a disciplina, como a concepção de poder,
agência internacional e a ideia de agência invisível de Enloe. Também será retomado brevemente o
debate agente-estrutura. A segunda parte discute alguns estudos sobre difusão de poder e o
reconhecimento pela disciplina de novos atores, incluindo o indivíduo, que impactam as Relações
Internacional.
Na terceira parte, a partir do pensamento de Allison M. S. Watson, discute-se o lugar da
criança na disciplina e faz-se um paralelo com o Direito Internacional que reconhece que as
crianças possuem direitos, dentre eles os de participação. Também são abordadas brevemente as
consequências da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e seu Terceiro
Protocolo sobre Procedimentos de Comunicação, que já se encontra em vigor e permite que
crianças e seus representantes apresentem queixas contra seus Estados ao Comitê sobre os Direitos
das Crianças. Nessa seção, argumenta-se que as RI são concebidas em dicotomias de idade (adulto
x criança) e isso impacta o reconhecimento da agência das crianças na disciplina. A conclusão
retoma as ideias apresentadas ao longo do trabalho e discute se a criança possui de fato uma atuação
ativa nas RI.
Esse estudo pretende considerar uma nova perspectiva para a produção do conhecimento nas
Relações Internacionais. Longe de excluir os atores tradicionais reconhecidos pela disciplina, esse
trabalho quer mostrar alternativas e adicionar novas formas de conceber o pensamento nas Relações
Internacionais. Ainda que essa proposta pareça recente na Academia Brasileira de Relações
Internacionais, há importantes trabalhos sobre o tema principalmente de Allison M. S. Watson
(2006), Jo Boyden (2001) e Helen Brocklehurst (2009).
1. A questão da agência nas Relações Internacionais
Uma das questões fundamentais para se entender o lugar das crianças nas Relações Internacionais é
analisar o conceito de agência na disciplina. A definição do que é ser um ator das Relações
Internacionais, como afirma Wight (2006), tende a ser pouco aprofundada. Assim, os termos ator e
agente são usados como sinônimos em diversos trabalhos e variam de significado dependendo da
teoria e do contexto analisado. Além disso, raramente fica claro o que é “agência” e o que significa
exercê-la (WIGHT, 2006, p. 178). Isso é extremamente complicado para o desenvolvimento teórico,
epistemológico e ontológico da disciplina porque, dependendo de como agência é conceituada,
pode-se inferir que qualquer coisa ou coisa nenhuma possui agência (WIGHT, 2006, p. 181).
Devido à ausência de maiores conceituações sobre o tema, esse trabalho entende que o uso do termo
ator das RI pode ser substituído sem prejuízos por agente e vice-versa.
102 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 O entendimento das RI como campo de estudo começou com o intuito de evitar conflitos
internacionais que pudessem levar, ao extremo, ao extermínio da raça humana. O marco foi a
publicação da obra Vinte Anos de Crise: 1919-1939, de Edward Carr, em 1939. Nesse sentido,
assumiu-se o Estado como o ator tradicional da disciplina, visto que era ele que poderia declarar
guerras e negociar a paz. Dessler (1989 apud WIGHT, 2006, p. 190) coloca os Estados como
agentes conscientes capazes de trazer seus poderes e capacidades para moldarem o mundo de
acordo com seus quereres e crenças. Dessa forma, permanece uma visão de agência na disciplina
relacionada com a capacidade de exercer poder, trazida por Barry Buzan (BUZAN et al., 1993, p.
103 apud WIGHT, 2006, p. 206). Essa visão está ligada com correntes tradicionais no pensamento
das RI que tendem a entender poder com foco nas capacidades e nos meios, especialmente os
militares e econômicos. Para Nye (2011, p. 18 e 21), poder seria a capacidade de fazer coisas e, em
contextos sociais, afetar outros para atingir as consequências desejadas e, ainda, esse poder seria
relacional e envolveria, assim, a possibilidade de comandar mudanças, controlar agendas e
estabelecer preferências. De fato, o poder de uma criança nas Relações Internacionais dificilmente
será militar ou econômico (apesar da existência de estudos do impacto da produção e consumo
infantis). Já a visão de poder relacional de Nye poderia ser entendida para considerar o impacto das
crianças.
A principal explicação para os poucos estudos sobre o conceito de ator estão na influência
estruturalista nas RI e no grande foco dado por teóricos da disciplina no debate “agente-estrutura”.
O pensamento estruturalista ganha força com a publicação da obra de Kenneth Waltz Theory of
International Politics, em 1979. Nessa, o autor coloca que a estrutura do sistema internacional seria
anárquica e isso obrigaria os Estados (atores das RI) a buscarem poder para garantir sua
sobrevivência no meio internacional. Nessa concepção, se os agentes não possuem qualquer
liberdade de ação, visto que dependem das estruturas que os constrangem, não faz sentido dedicar
estudos e análises sobre as qualidades necessárias para um ente ser reconhecido como agente das
Relações Internacionais.
Estudos posteriores começam a questionar a ideia de estrutura como grande determinante
das RI, mas ainda assim a discussão continua a ser se o agente possui liberdade de ação ou se ele é
condicionado pelas estruturas, pouco importando a conceituação desse agente. Wendt (1999) inova
ao considerar que agentes e estruturas se constroem mutuamente. Para Ramalho da Rocha (2002, p.
220), partindo do pressuposto de que os agentes do sistema internacional são racionais, acredita-se
que esses não apenas reagem às condições (estruturas) existentes, mas também internalizam padrões
de comportamento. Assim, o debate agente-estrutura consistiria em estabelecer em que grau a
atuação livre dos atores influencia os processos da realidade internacional e em que medida a sua
liberdade de ação é cerceada pelas estruturas internacionais. Steans (2004) argumenta que forças
103 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 estruturais determinam uma gama de opções disponíveis para um ator em certo contexto e
encorajam os agentes a tomarem certas decisões em detrimento de outras, mas as estruturas
dependem de um acúmulo das decisões desses para sua criação e perpetuação. Sendo assim,
principalmente em momentos de instabilidade e fluxo, atores podem ter influência considerável
para remodelar a ordem social vigente (p. 88).
É possível perceber um esforço teórico de Wendt (1999) para caracterizar um agente das RI.
Esse teria um entendimento teórico de suas atividades no sentido de que pode identificar
explicações para seus comportamentos; teria capacidade de monitorar reflexivamente suas
consequências e de adaptar potencialmente seu comportamento e de tomar decisões. Ainda assim, o
autor coloca o Estado como sua fonte de análise, a ponto de personificá-lo. Nesse sentido, Wight
(2006) argumenta que o Estado, como uma construção social, só pode agir por meio da ação
individual. De modo que a atividade estatal é sempre a atividade de indivíduos particulares em
formas sociais específicas (p. 188). Percebe-se aí a importância do indivíduo (principalmente dos
líderes e tomadores de decisão) nas Relações Internacionais, considerando tanto o aspecto de sua
ação individual como de sua ação coletiva.
Sobre essa ótica, trabalhos racionalistas/realistas tendem a evidenciar como agente os
soberanos cuja preocupação central é sua própria segurança. Os marxistas focam as classes e elites
como agentes de ação com a preocupação maior de acumulação de riquezas. As teorias de análise
de processo decisório consideram os indivíduos como agentes, dentro do modelo racional, definindo
suas preferências empiricamente. Já os construtivistas acreditam que os agentes dão origem às
estruturas por meio de seus comportamentos e estas constrangem os limites de percepção e atuação
desses agentes (RAMALHO DA ROCHA, 2002, p. 222).
Outras visões de agência que tendem a abarcar outros atores, não apenas os Estados, podem
ser vistas em estudos mais críticos do pensamento tradicional da Teoria das Relações
Internacionais. De acordo com Ernest Haas (1964, p. 84 apud WIGHT, 2006, p. 199), atores das
Relações Internacionais são aquelas entidades capazes de apresentar demandas efetivas. Já Gayatri
Spivak (1996, p. 103, apud WIGHT, 2006, p. 206 e 212) relaciona a ideia de agência com três
elementos centrais: accountability, intencionalidade e subjetividade. De modo que um agente
exerce suas ações com responsabilidade, assumindo a possibilidade de intenção e gozando a
liberdade de sua subjetividade. Ao mesmo tempo, esse agente tem a habilidade/poder de agir de
acordo com a sua intenção. Para Wight (2006, p. 213), é preciso repensar a ideia de agência nas RI
porque essa está intrinsecamente ligada aos contextos sociais nos quais as relações ocorrem. O autor
desenvolve uma teoria de agência que considera três níveis de atuação, abarcando tanto atores
individuais quanto uma nova forma de compreender, a partir dessa visão, a atuação do Estado no
meio internacional.
104 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 Outra perspectiva interessante de análise é a ideia de agência invisível desenvolvida por
Cynthia Enloe. Em sua obra “Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International
Politics” (1990), a autora defende que as mulheres não são estudadas na política internacional
porque seus papéis são considerados “naturais” e, por isso, irrelevantes para a investigação (p. 4).
Nesse sentido, Enloe apresenta exemplos claros da atuação das mulheres em diversas áreas
internacionais que não são percebidas e reconhecidas como tal pelos estudiosos da disciplina. Isso
porque existiria uma percepção dominante de que “[o]nly men, not women or children, have been
imagined capable of the sort of public decisiveness international politics is presumed to require”
(ENLOE, 1990, p. 4).
Como o pessoal é político, as relações concebidas como privadas estão embutidas em
lógicas de poder, normalmente desiguais e apoiadas por autoridades públicas (ENLOE, 1990, p.
195). Os escritos feministas também ressaltam que a estrutura das Relações Internacionais (tanto na
disciplina como na realidade) não é neutra quanto ao gênero e perpetua a exclusão das mulheres, ao
mesmo tempo em que os agentes do sistema reforçam mutuamente essa estrutura, o que leva a um
contínuo que dificilmente será quebrado. Essa lógica de dominação reforça o fato de que as
mulheres não são reconhecidas como agentes desse sistema, porque sua atuação ocorreria apenas no
plano doméstico, o que pouco impacta o meio internacional.
Os argumentos de Enloe, articulados para defender a inclusão das mulheres na política
internacional, também podem ser aplicados à questão das crianças. Assim como as mulheres, as
crianças tendem a não ser visíveis como atores em nenhuma das esferas públicas com as quais as RI
estão mais preocupadas (WATSON, 2008, p. 1). Além disso, crianças não são devidamente
estudadas na disciplina porque as áreas em que elas estão mais visíveis são subexaminadas pelas
teorias (WATSON, 2008, p. 11). Crianças também podem ser afetadas pelas estruturas que as
circundam, mas elas também influenciam essas mesmas estruturas. Elas podem empregar uma
variedade de modelos de agência dependendo dos meios sociais em que se encontram. Assim, focar
nas crianças como atores sociais individuais e competentes pode render novas formas de pensar
como a sociedade e as estruturas sociais moldam as experiências sociais e são redesenhadas por
meio da ação social de seus membros (WATSON, 2008, p. 8).
Para Enloe, o mundo foi concebido de uma forma na qual as mulheres possuem uma agência
invisível, mas esse mundo pode ser refeito. De modo que “[w]omen need to be made visible in
order to understand how and why international power takes the forms it does. But women are not
just the objects of that power, not merely passive puppets or victims.” (ENLOE, 1990, p. 198).
Nessa visão, é possível considerar a atuação das crianças ao tornar visível sua agência. A partir dos
argumentos de Enloe, pode-se supor que as crianças influenciam e participam de questões
internacionais, mas sua agência permanece invisível para o estudo das RI.
105 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 Esse trabalho entende a ideia de agência invisível como uma atuação que existe, mas não é
reconhecida pela disciplina em questão, seja porque ela ocorre em uma área que a Academia dedica
poucos estudos, porque ela é realizada por um grupo não considerado tradicionalmente como ator
ativo ou porque a produção do conhecimento acadêmico está embasada em construções sociais,
epistemológicas e metodológicas que impedem o reconhecimento dessa agência. O reconhecimento
do indivíduo como ator nas RI por meio de estudos sobre governança global, redes transnacionais
ou difusão de poder e a contribuição das teóricas feministas representam importantes avanços que
serão analisados na próxima seção.
2. O surgimento de novos atores na disciplina e as implicações da difusão de poder
Novos estudos em Relações Internacionais têm caracterizado o fenômeno da difusão de poder e do
surgimento de novos atores até então não considerados na disciplina. Dentre eles, destaca-se o papel
do indivíduo – um ativista, uma criança ou uma mulher cujas estruturas da disciplina até então
perpetuavam seus silêncios. A revolução da informação e as novas tecnologias da informação e da
comunicação têm auxiliado nessas novas abordagens de participação, agência e poder.
As características do cyberespaço reduzem alguns diferenciais de poder entre os atores, isso
produz um exemplo de difusão de poder que acontece no momento atual. No entanto, essa difusão
de poder não significa igualdade de poder entre os atores (NYE, 2011, p. 108). Além disso, segundo
Manjikian (2010, p. 398), o cyberespaço pode ser visto tanto como um espaço e um lugar que
oferece potencial para a liberação pessoal, a criação de estruturas para a cooperação internacional e
maior mobilização e participação internacional, quanto uma extensão negra e sinistra de algum dos
mais perigosos e não governados (anárquicos) exemplos do mundo real. Para ele, essa última visão
pode significar uma ameaça única à segurança por apresentar vantagens aos atores não estatais
engajados em modos não tradicionais de guerra. O cyberespaço possui, ainda, a capacidade de
mobilizar cidadãos não tradicionalmente envolvidos em atividades políticas e econômicas em várias
expansões geográficas, criando um espaço ideal onde geografia, status social e gênero são
insignificantes (MANJIKIAN, 2010, p. 392).
As novas tecnologias afetam as relações de poder entre Estados e entre esses e a sociedade
civil. Elas também criam novas formas de accountability global e participação (SIMMONS, 2011).
A Internet permite que novos atores como os indivíduos passem a atuar nas Relações Internacionais
e o mais importante é que façam isso da segurança e privacidade de suas casas. Dessa forma, o fato
de excluir a divisão entre o público e o privado faz com a Internet permita a atuação de indivíduos
não tradicionalmente considerados como atores das Relações Internacionais. A Internet pode
auxiliar que ações de grupos, indivíduos e da sociedade civil tenham seu impacto internacional
reconhecido na ação de Estados e organizações internacionais.
106 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 Para Wenger (2001), a revolução da tecnologia da informação estaria mudando a clássica
divisão entre interno e externo que pautou o estudo das Relações Internacionais desde Westfália.
Isso aconteceria porque a Internet, assim como outros fenômenos, instituições e estruturas que
passam a surgir no contexto internacional, vai além das fronteiras nacionais. Ainda, segundo o
autor, o crescimento da importância da tecnologia e das informações leva a um aumento da
relevância do soft power proporcionado pelo conhecimento, crenças e ideias que permitem aos
atores políticos atingirem seus objetivos. Esse fenômeno levaria à emergência de novos agentes na
disciplina, que passam a atuar nesses espaços transnacionais, tais como: organizações não
governamentais e indivíduos.
Para Nye (2011), uma grande parte da população dentro e entre fronteiras tem acesso ao
poder que vem da informação, isso acontece por causa da redução nos custos de sua transmissão (p.
84). O poder baseado em informações não é novo, mas o cyberpoder é. Este pode ser definido como
“the ability to obtain preferred outcomes through use of the electronically interconnected
information resources of the cyberdomain” (NYE, 2011, p. 88), o que inclui a Internet, tecnologias
de celular e outros tipos de comunicação baseadas no espaço.
Solingen (2012) caracteriza que há um ritmo mais acelerado da difusão de informações do
que no passado. Isso acontece por meio da existência de um estímulo inicial (evento, inovação,
modelo); um meio (contexto, estrutura, ambiente favorável); agente social (que pode bloquear ou
auxiliar a difusão por meio de aprendizado, melhoramento; diversificação de mecanismos causais e
adaptação ao meio) e consequências (p. 632). A difusão internacional de poder leva a maior
igualdade e novas formas de governança global (SOLINGEN, 2012, p. 637-8). A difusão de poder
seria uma das mais importantes dimensões dos espaços de poder no século XXI (MANJIKIAN,
2010).
Os agentes sociais que impactam nesta difusão são os governos; instituições regionais e
internacionais, organizações não governamentais, corporações multinacionais, movimentos sociais,
formadores de opinião, ativistas morais e políticos, fundações, agências classificadoras de crédito,
organizações da mídia, universidades, redes transnacionais, associações profissionais, migrantes e
outros (SOLINGEN, 2012, p. 634). Nessa visão, não há só o reconhecimento da agência dos
indivíduos, mas também de grupos marginalizados como os migrantes.
Nesse sentido, indivíduos (inclusive as “celebridades”), organizações privadas (incluindo
multinacionais, organizações da sociedade civil e redes terroristas) conseguiram aumentar e difundir
seu soft power, ou seja, é reconhecida a sua capacidade de persuadir outros para mudar seus
comportamentos (NYE, 2011, p. 65-6 e 93). A Revolução da Informação permitiu de fato um
empoderamento desses atores transnacionais que passam a exercer diretamente papéis na política
mundial. Alguns atuando como “consciência global” ao pressionar governos e empresários para
107 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 mudar políticas ou indiretamente trabalhando para mudar a percepção de legitimidade de certos
temas (NYE, 2011, p. 85 e 87).
Nye (2011, p. 96) coloca, ainda, que os indivíduos possuem poucos custos de investimento
para entrar na rede, gozam de anonimato e podem sair facilmente, se necessário. Por outro lado,
possuem vulnerabilidade frente aos governos e grandes organizações que podem coagi-los legal e
ilegalmente. Simmons (2011, p. 589) reconhece a habilidade dos indivíduos de criar, transferir e
acessar informação globalmente. Há, assim, uma participação ativa do indivíduo nas redes sociais e,
consequentemente, nas Relações Internacionais, principalmente considerando a capacidade de a
sociedade civil alterar as relações de poder e gerar pressão para que os governos cumpram seus
compromissos internacionais. As novas mídias sociais contribuem para resolver problemas de ação
coletiva e para desafiar o controle centralizado do Estado sobre a informação (SIMMONS, 2011, p.
590). A jovem Malala difundia sua mensagem a favor do direito da educação das meninas por meio
de blogs, o que teve um impacto em sua sociedade e permitiu que sua luta fosse conhecida
internacionalmente.
Gerbaudo (2012) insere em sua análise o impacto dos ativistas como atores das Relações
Internacionais a partir do estudo de seu impacto em movimentos sociais como a Primavera Árabe.
Essa visão vai ao encontro da literatura que começa a surgir sobre as redes transnacionais de
pressão. Esses autores reconhecem que há Estados e atores não Estatais que interagem entre si e
com organizações internacionais por meio de relações transnacionais. Essas são caracterizadas
como interações regulares além das fronteiras quando pelo menos um desses atores não é estatal ou
não age em favor de um governo ou organização governamental (KECK & SIKKINK, 1998, p. 1 e
3). Um exemplo tradicional de rede transnacional são as comunidades epistêmicas (com expertise
técnico e capacidade de convencimento de tomadores de decisão), cujo impacto é reconhecido nas
Relações Internacionais (KECK & SIKKINK, 1998, p. 16 e 31). Também é reconhecido o papel das
ONG internacionais e das empresas multi e transnacionais (KECK & SIKKINK, 1998, p. 10).
As redes transnacionais se centram em valores ou ideias principais, na crença de que
indivíduos podem fazer a diferença, no uso criativo da informação e no emprego de estratégias
políticas por atores não governamentais para alavancar suas campanhas (KECK & SIKKINK, 1998,
p. 2). Assim, é possível reconhecer a agência internacional de ativistas (pessoas que se importam
com um tema a ponto de estarem preparados a agir e incorrer em custos para atingir seus alvos)
(KECK & SIKKINK, 1998, p. 14). Esses desempenham papel de monitoramento, trazem novos
assuntos para a agenda de maneira criativa, realizam lobby, construindo, fornecendo e
disseminando informações. Dessa forma, são atores capazes de transmitir suas mensagens e
persuadir outros atores (especialmente os Estados) por meio de pressão, incentivos materiais ou
sanções devido a lacunas entre comprometimentos e práticas (KECK & SIKKINK, 1998, p. 29-30).
108 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 A velocidade e a descentralização do cyberespaço têm incentivado e possibilitado que
grupos marginalizados (tais como: mulheres no Oriente Médio, crianças e jovens) juntem-se nessa
esfera participativa; conectem-se e desenvolvam suas próprias redes (TADROS, 2005, p. 1). Para
Watson (2008), a Internet providenciaria uma esfera pública alternativa, na qual crianças e grupos
marginalizados poderiam assumir um maior papel público e lutar por seus direitos (p. 75-6). Como
possibilita a mistura entre os espaços públicos e privados, pode permitir a atuação de grupos como
as mulheres, que são excluídas de diversas formas das Relações Internacionais.
As teóricas feministas das RI constroem seus trabalhos utilizando principalmente a
dicotomia público e privado. As Relações Internacionais seriam um espaço público, portanto, local
de agência masculina; já as mulheres como pertencentes ao plano doméstico e privado não teriam
possibilidade de atuação reconhecida nas Relações Internacionais. As ideias de gênero e patriarcado
são socialmente construídas e variam ao longo do tempo, espaços e culturas (TICKNER, 1997, p.
619). Dessa forma, essa literatura feminista estaria comprometida com metas emancipatórias para
alcançar a igualdade para as mulheres a partir da eliminação de relações desiguais de gênero
(TICKNER, 1997, p. 616). Assim, mulheres não devem ser entendidas apenas como vítimas do
patriarcado, pois são agentes autodeterminantes capazes de desafiar e resistir a estruturas de
dominação. Mulheres são agentes por virtude de suas atividades econômicas, mas essa agência não
pode ser entendida apenas por referência a suas atividades públicas e identidades, pois o domínio
privado também é um local de luta e essas concepções feministas também desconstroem as visões
unidimensionais e tradicionais de poder como coerção, trazendo uma abordagem multidimensional
de poder como persuasão (STEANS, 2004, p. 91)). Uma das maneiras utilizadas para tal
emancipação da mulher foi a formação de redes transnacionais.
Estudos sobre governança global também têm caracterizado o surgimento de novos autores
(como organizações supranacionais e atores privados) com autoridade e legitimidade de atuação no
cenário internacional, principalmente com o aprofundamento do processo de globalização, que
dissolve a fronteira entre o que é política doméstica e política internacional (LAKE, 2010). Esses
novos atores não estatais querem "governar" em áreas em que objetivam criar novas estruturas e
regras para resolver problemas, mudar as consequências e transformar a vida internacional
(AVANT; FINNEMORE; SELL, 2010, p. 360) e estes governadores globais são autoridades (com
habilidade de influenciar a decisão de outros) que exercem poder além das fronteiras com o objetivo
de afetar políticas; definir agendas e criar temas, ditar as regras, buscando sua implementação e
entrada em vigor (cumprimento); realizar avaliações, monitorar e ajustar suas consequências. É
importante salientar que o fato de outros autores não estatais possuírem poder não necessariamente
diminui o poder dos Estados.
109 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 Mesmo na temática da governança global do clima, há o reconhecimento das iniciativas em
várias escalas dos atores não estatais e suas implicações significativas na temática da mudança
climática (OKEREKE; BULKELEY; SCHROEDER, 2009, p. 2). Essa atuação contribui para
mudar as visões tradicionais de poder e autoridade de modo que uma cooperação internacional
efetiva deve incluir o papel desses grupos de atores não estatais (OKEREKE; BULKELEY;
SCHROEDER, 2009, p. 16). Assim, poder deve ser visto como co-constitutivo de relações sociais,
de modo a derivar de interações culturais (OKEREKE; BULKELEY; SCHROEDER, 2009, p. 43).
A própria definição de governança global reconhece profundamente o papel dos atores não estatais:
the sum of the many ways individuals and institutions, public and private, manage
their common affairs. It is a continuing process through which conflicting or
diverse interests may be accommodated and co-operative action may be taken. It
includes formal institutions and regimes empowered to enforce compliance, as well
as informal arrangements that people and institutions either have agreed to or
perceive to be in their interest (OKEREKE; BULKELEY; SCHROEDER,
2009, p. 14)
A Internet impacta as Relações Internacionais de diversas formas. Primeiro, multiplica e amplifica o
número de vozes e interesses envolvidos no processo de formulação de políticas internacionais,
dificultando o processo de tomada de decisão internacional e reduzindo o controle exclusivo dos
Estados. Também acelera e possibilita a livre disseminação de informações, sejam essas precisas ou
não, sobre qualquer assunto ou evento. O fenômeno da difusão de poder e o reconhecimento de
novos atores nas RI não descaracteriza a identidade dos atores tradicionais da disciplina,
especialmente dos Estados, que permanecem como os principais atores das Relações Internacionais.
As novas concepções de poder também levam ao questionamento de que não se deve considerar
apenas os recursos de poder detidos por um ator, mas sim sua capacidade de utilizar tais resultados
para alcançar o resultado almejado no meio internacional.
O reconhecimento em diversas frentes do indivíduo como agente das Relações
Internacionais, assim como as novas concepções de agência e poder, representam um avanço no
intuito de reconhecer os grupos silenciados pela disciplina. Tais aproximações teóricas são úteis
para analisar o lugar das crianças nas Relações Internacionais e sua possibilidade de atuação
internacional. A próxima seção considera o pensamento de teóricos que estudam o lugar da criança
na disciplina.
3. Crianças nas Relações Internacionais
As ideias de criança e infância são construções históricas e sociais baseadas na dicotomia adulto e
criança, sendo o primeiro a negação do segundo e um ator racional capaz de tomar decisões no
110 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 âmbito público. A visão de criança predominante é a de um ser que ainda não é desenvolvido, mas
está em processo de desenvolvimento e para tal precisa de proteção, alimentação, disciplina e
educação (SCHAPIRO, 1999, p. 716).
Read (2002, p. 401) afirma que é importante conceber o conceito de infância como algo
além de um momento de inocência. Dessa forma, sugere pensar crianças como seres que mudam e
se desenvolvem como agentes morais em um período de tempo de grandes complexidades. Nisso, o
autor afirma que é possível definir crianças de muitas formas, dentre elas, como um ser pensante
com sua própria agência. Para Brocklehurst (2009), infância é uma construção social, cultural e
política. Crianças desempenham uma variedade de papéis no sistema internacional (WATSON,
2006a, p. 237). Há evidências de suas atividades e capacidades em tempos de paz e guerra que não
são reconhecidas porque há o predomínio de uma visão adultocêntrica e ocidental nas RI
(BROCKLEHURST, 2009).
Por outro lado, a figura de criança como vítima em necessidade de proteção do Estado
sustenta movimentos políticos, causas, eventos e intervenções internacionais. O silêncio das
crianças e em relação à sua agência internacional legitima conflitos políticos dos adultos, de modo
que a imagem da infância é usada para suportar as ansiedades e aspirações políticas de adultos
(DUBINSKY, 2012, p. 9).
Outras ciências sociais já começaram a adotar novas perspectivas sobre o estudo da criança e
da infância, tais como: a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, a História e a Geografia. Novas
leituras sobre o papel da criança estão se multiplicando em jornais especializados, contudo as
Relações Internacionais e a Economia Política Internacional continuam a não considerar essas
novas concepções de infância. Ainda que haja alguns trabalhos que tratem do tema de crianças
envolvidas em conflitos (crianças soldados e refugiadas), ainda há uma subteorização e
subconcepção do tema nessas disciplinas, como explicita Watson (2008) ao argumentar que o
sistema de conhecimento dominante falha em reconhecer a significância da atuação das crianças no
campo internacional.
Allison M. S, Watson (2006a) mostra a importância de estudar as crianças como atores nas
Relações Internacionais (RI). A autora afirma que as crianças devem ser consideradas como atores
ativos das RI e para isso a concepção de infância compartilhada no mundo deve ser desconstruída.
In the case of the discourse that specifically surrounds the analysis of international
relations, however, the study of children could be characterized as still being on the
fringes of the discipline, despite the body of work that already exists in areas
traditionally seen as being of interest to international relations scholars (WATSON,
2006a, p. 240).
111 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 A lógica para essa exclusão está no fato de que as Relações Internacionais são espaços públicos e,
portanto, dos adultos, enquanto que as crianças são pertencentes aos espaços domésticos e privados,
pois precisam de proteção para ser tornarem adultos (WATSON, 2006b). O conceito de infância é
uma construção social e histórica baseada na dicotomia entre a idade adulta (adulthood) e a infância
(childhood). A autora ainda retoma o debate agente-estrutura, muito aprofundado nas RI, e acaba
por concluir que as crianças são constrangidas pelas diferentes estruturas, mas que elas também as
afetam, pois conseguem adaptar sua agência a diferentes ambientes sociais.
As crianças agem tanto nas Relações Internacionais quanto na Economia Política
Internacional, mas esses campos de estudo investigam apenas áreas onde as crianças não são
visíveis. Dessa forma, a autora propõe mostrar os papéis que as crianças exercem na economia
global, considerando espaços que nem sempre são analisados pelo mainstream. As crianças
produzem, lutam, consomem e também participam de uma variedade de eventos locais, regionais,
nacionais e internacionais nos quais suas vozes são encorajadas, suas opiniões ouvidas e suas
preocupações consideradas (WATSON, 2006a, p. 238).
Nenhuma teoria de Relações Internacionais faz qualquer referência sobre as crianças como
atores. Para elas, esse grupo permanece como uma força silenciada que não possui qualquer agência
ou tem uma agência limitada (WATSON, 2006a, p. 239, 244 e 246). Watson (2008) afirma que o
materialismo/realismo/nacionalismo econômico está preocupado com o poder militar que é exercido
pelo homem adulto. Já o liberalismo, ainda que considere o papel do indivíduo, esse é uma
generalização amorfa que não assume o lugar, nem de uma mulher, nem de uma criança. O
estruturalismo/materialismo também tem em seu conceito de classe uma generalização amorfa. Por
outro lado, a autora se surpreende ao perceber que nenhuma das chamadas teorias críticas ou pósmodernas trata da questão das crianças. Mesmo as teorias feministas, ainda que compartilhem a
mesma crença de exclusão de um grupo da esfera pública que compreende as RI, nem sempre
consideram o papel da criança visto que, para algumas teóricas, associar o papel da mulher ao da
mãe pode prejudicar o empoderamento da figura feminina.
Colocar o foco no lugar das crianças nas RI desafia a concepção tradicional de poder no
sistema internacional porque poder é concebido como uma questão de agência, de influência ou
efeito nas estruturas e em certos contextos e na definição de outras possibilidades. Crianças são
geralmente percebidas como não tendo poder e são entendidas como pessoas dominadas
(WATSON, 2004, p. 162), assim sem agência. Dessa forma, a percepção de que crianças fazem
escolhas é importante para o reconhecimento do papel que elas exercem no sistema internacional e
pede revisão na maneira como as ideias de poder e agência estão relacionadas (WATSON, 2004, p.
163).
112 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 In terms of IR discourse, considering that children might have agency challenges
the rather narrow way in which the agent-structure debate is currently viewed by
bringing out the distribution of power that may exist between sections of a given
society and the differences that result from it (WATSON, 2006a, p. 247)
No tema de agência das crianças, é importante ressaltar que houve um reconhecimento por parte dos
Estados e da comunidade internacional como um todo de que crianças são seres que possuem
direitos que devem ser respeitados frente ao outros sujeitos de Direito Internacional. A Convenção
das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) foi ratificada por todos os Estados
existentes, com exceção da Somália e dos Estados Unidos da América. Ela reconhece os direitos
das crianças de sobrevivência, desenvolvimento e participação, o que inclui seus direitos civis e
políticos. Além disso, com a entrada em vigor, em 2014, do Terceiro Protocolo à Convenção sobre
os Direitos da Criança sobre Procedimentos de Comunicação, os Estados Partes passam a aceitar a
competência das crianças e seus representantes de demandarem ao Comitê sobre os Direitos da
Criança contra seus próprios Estados. Ainda que o relatório final do Comitê não tenha seu
cumprimento obrigatório para os Estados, a “condenação moral” do principal ator das Relações
Internacionais por causa de questões levadas por crianças e seus representantes revela que os
próprios Estados passam a perceber a capacidade de participação e agência internacional das
crianças.
Há uma falha nas Teorias das Relações Internacionais ao não entender do que as crianças
são capazes, mas também ao não considerar o significado das crianças nos assuntos que mais
preocupam a humanidade, tais como: aquisição de direitos, igualdade, desenvolvimento, pobreza e
segurança. Assim, se as crianças fossem consideradas em estudos e práticas de segurança como
grupos de referência, haveria uma significativa evolução nos conceitos de infância, conflito e
segurança que poderia auxiliar no tema de crianças em conflitos armados, o que representaria uma
grande contribuição para a disciplina (BROCKLEHURST, 2009). Reconhecer o lugar das crianças
nas RI pode mudar o foco da disciplina ao revelar os dilemas de idade presentes em seus discursos,
de modo que temas como a natureza da guerra e soluções para a paz poderiam ser entendidos de
maneira completamente diferente e mais inclusiva (WATSON, 2006a, p. 250).
Conclusão: Crianças como atores das Relações Internacionais?
A visão tradicionalmente predominante nas Relações Internacionais de agência relacionada a poder,
sendo esse poder militar ou econômico, dificilmente permitiria observar a agência internacional de
nenhum ator que não o Estado como concebido em Westfália. Por outro lado, percebe-se uma
lacuna na disciplina diante da ausência de estudos mais aprofundados que possam de fato discutir o
que seria uma atuação ou agência internacional. Isso se faz necessário para poder caracterizar as
113 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 novas situações e os novos participantes da cena internacional que começam a aparecer devido às
tecnologias da informação e da comunicação e ao processo de difusão de poder.
Novos estudos sobre o tema da governança global, das redes transnacionais e da influência
da Internet na vida internacional passam a considerar o papel do indivíduo na cena internacional,
ainda que esse indivíduo esteja inserido em estruturas de gênero e de idade que marginalizam
grupos como as mulheres e as crianças. Mesmo assim, considerar o indivíduo como um ator
internacional contribui para desconstruir as ideias tradicionais de poder (com o surgimento da noção
de cyberpoder e o fortalecimento da importância do soft power) e de agência (considerando novas
formas de participação e por meios diversos na comunidade internacional).
Essas novas visões de poder e agência podem permitir que a agência internacional de
crianças seja observada em exemplos individuais, como o da Malala Yousafzai, ou coletivos, como
o impacto da juventude durante a Primavera Árabe, o Movimento Occupy Wall Street ou as
manifestações de junho de 2013 no Brasil. Apesar disso, as Relações Internacionais ainda não
reconhecem a agência das crianças porque a disciplina é dominada por relações de idade (o adulto
atua na esfera pública das RI e a criança na privada). A disciplina também não estuda áreas onde a
agência da criança é mais facilmente perceptível, ou seja, muitas vezes as crianças possuem uma
“agência invisível”, como definida por Enloe (1990).
Além disso, as teorias críticas e pós-modernas, apesar de focarem em silêncios da
disciplina, nem sempre inserem novos temas e atores nas discussões das Teorias das Relações
Internacionais. Muitas vezes, tratam apenas as mesmas questões com visões e enfoques diferentes.
A exclusão das crianças das Relações Internacionais também implica que temas importantes para o
desenvolvimento da disciplina permaneçam subestudados e considerados low politics, de modo a
obterem menos atenção da mídia e dos tomadores de decisão internacional.
Reconhecer a importância do estudo das crianças nas Relações Internacionais pode trazer
novos temas para a agenda de pesquisa, tais como: crianças soldado, tráfico e adoção internacional
de crianças, trabalho infantil, exploração sexual e comercial de menores, crianças refugiadas,
menores migrantes desacompanhados e separados, a relação entre direitos da criança e estudos de
desenvolvimento, a questão das gerações futuras. Além disso, pode mudar a concepção do estudo
de temas tradicionais, como segurança, desenvolvimento, conflitos armados, entre outros.
Por fim, é provável que muitas crianças no mundo não tenham consciência do que é ser um
ator internacional ou não ambicionem tal meta. No entanto, nunca houve uma consulta a esse grupo
sobre sua opinião, sobre se elas querem ou não ser agentes das Relações Internacionais. Na lógica
tradicional de que crianças são entes em preparação para um dia se tornarem adultos, poderia ser
interessante começar a inserir e “treinar” esse grupo para que um dia eles possam tomar decisões no
âmbito internacional. Ao mesmo tempo, a exclusão das crianças das Relações Internacionais não
114 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 está contribuindo para protegê-las. Pelo contrário, o silêncio sobre temas de interesse para esse
grupo permite que elas sejam exploradas em diversas instâncias sem terem a quem recorrer,
enquanto a Academia não busca encontrar explicações e transformar essas realidades.
Referências
AVANT, Deborah; FINNEMORE, Martha; SELL, Susan (2010). Who governs the globe? New
York: Cambridge University Press.
BOYDEN, Jo (2001). Children’s participation in the context of forced migration. PLA Notes, Issue
42: 52–6.
BROCKLEHURST, Helen (2009). Childhood in Conflict: Can the Real Child Soldier Please Stand
Up?. Ethics, Law and Society, IV (259): 259-70.
CARR, Edward Hallet (2001). Vinte Anos de Crise: 1919-1939. Uma Introdução ao Estudo das
Relações Internacionais. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
DEL FELICE, Celina; WISLER, Andria (2007). The Unexplored Power and Potential of Youth as
Peace-builders. Journal of Peace Conflict & Development. Issue 11, November..
DUBINSKY, Karen (2012). Children, Ideology, and Iconography: How Babies Rule the World.
The Journal of the History of Childhood and Youth, 5 (1): 5-13.
ENLOE, Cynthia (1990). Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International
Politics. Berkeley: University of California Press.
ESTADÃO (2013). Adolescente Paquistanesa baleada pelo Talibã deixa o hospital. Publicado em
[http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,adolescente-paquistanesa-baleada-pelo-talebadeixa-hospital,980514,0.htm]. Disponibilidade: 01/07/2014.
GERBAUDO, Paolo (2012). Tweets and the Streets. Social Media and Contemporary Activism.
London: Pluto Press.
JEFLERESS, David (2012). Neither Seen Nor Heard: The Idea of the "Child" as Impediment to the
Rights of Children. TOPIA: Canadian Journal of Cultural Studies, 75-97.
KECK, Margaret E.; SIKKINK, Kathryn (1998). Activists beyond boarders: advocacy networks
in international politics. Ithaca e Londres: Cornell University Press.
KEOHANE, Robert O. (1998). Beyond Dichotomy: Conversations Between International Relations
and Feminist Theory. International Studies Quarterly, 42 (1): 193-7.
LAKE, David (2010). Rightful rules: authority, order, and the foundations of global governance.
International Studies Quarterly, 54: 587-613.
MANJIKIAN, Mary McEvoy (2010). From Global Village to Virtual Battlespace: The Colonizing
of the Internet and the Extension of Realpolitik. International Studies Quarterly, 54: 381–401.
115 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 MCEVOY-LEVY, Siobhán (2001). Youth as Social and Political Agents: Issues in Post-Settlement
Peace Building. Kroc Institute Occasional Paper, #21:OP:2. December.
NYE, Joseph S. Jr (2011). The Future of Power. New York: Public Affairs.
OKEREKE, Chukwumerije; BULKELEY, Harriet; SCHROEDER, Heike (2009). Conceptualizing
Climate Governance Beyond the International Regime. Global Environmental Politics, 9 (l): 5878.
ONU (1989). Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Publicado em
[http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm]. Disponibilidade: 23/04/2013.
ONU (2012). Terceiro Protocolo Opcional a CRC sobre Procedimento de Comunicação.
PUECHGUIRBA, Nadine (2004). Women and Children: Deconstructing a Paradigm. Seton Hall
Journal of Diplomacy and International Relations, 5-20.
READ, Kay (2002). When Is a Kid a Kid? Negotiating Children's Rights in El Salvador's Civil
War. History of Religions, 41 (4): 391-409.
RAMALHO DA ROCHA, Antônio Jorge (2002). Relações internacionais: teorias e agendas.
Brasília: Funag/Ibri.
RISSE-KAPPEN, Thomas, Ed. (1995) .Bringing transnational relations back in: Non-state
actors, domestic structures and international institutions. New York: Cambridge University Press.
RUGGIE, John Gerard (1998). Constructing the world polity: essays on international
institutionalization. London: Routledge.
SCHAPIRO, Tamar (1999). What Is a Child? Ethics, 109 (4): 715-38.
SHEPHERD, Laura J. (2009) Ed. Gender Matters in Global Politics: A Feminist Introduction to
International Relations. New York: Routledge.
SIMMONS, Beth A. (2011). International Studies in the Global Information Age. International
Studies Quarterly, 55: 589-99.
SOLINGEN, Etel (2012). Of Dominoes and Firewalls: The Domestic, Regional, and Global Politics
of International Diffusion. International Studies Quarterly, 56: 632-44.
STEANS, Jill (2004). Global Governance: a Feminist Perspective. In HELD, D.; MCGREW, A.
(eds.). Governing Globalization: Power, Authority and Global Governance. London: Polity
Press.
TADROS, Marlyn (2005). Arab Women, the Internet, and the Public Sphere. Virtual Activism.
Publicado em [http://www.mafhoum.com/press9/278T45.pdf]. Disponibilidade: 09/05/2013.
TICKNER, J. Ann (1988). Hans Morgenthau’s Principles of Political Realism: A Feminist
Reformulation. In DER DERIAN, James (ed.). International Theory: Critical Investigations. New
York: New York University Press, 53-71.
116 Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 4 (1), 2013 TICKNER, J. Ann (1997). You Just Don’t Understand: Troubled Engagements Between Feminists
and IR Theorists. International Studies Quarterly, 41: 611-32.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado (1997). Dilemas e desafios da Proteção Internacional dos
Direitos Humanos no limiar do século XXI. Rev. bras. polít. int. [online], 40 (1): 167-77.
VOLK, Anthony (2011). The Evolution of Childhood. The Journal of the History of Childhood
and Youth, 4 (3): 470-94.
WALTZ, Kenneth (1979). Theory of international politics. Long Grove: Waveland Press.
WATSON, Allison M. S. (2008). Child in International Political Economy: a Place at the
Table. RIPE Studies in Global Political Economy. New York: Routledge.
WATSON, Alison M. S. (2006a). Children and International Relations: a new site of knowledge?
Review of International Studies, 32: 237- 50.
WATSON, Alison M. S. (2006b). Saving More than the Children: The Role of Child-Focused
NGOs in the Creation of Southern Security Norms. Third World Quarterly, 27 (2): 227-37.
WATSON, Alison M. S. (2004). The Child That Bombs Built. Studies in Conflict & Terrorism,
27: 159–68.
WENDT, Alexander (1999). Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge
University Press.
WENGER, Andreas, Ed.(2001). The Internet and the Changing Face of International Relations and
Security. Information & Security, 7, International Relations and Security Network (ISN), Zurich,
Switzerland. ProCon Ltd: Sofia, Bulgaria. Publicado em [http://www.isn.ethz.ch/DigitalLibrary/Publications/Detail/?ots591=4888caa0-b3db-1461-98b9-e20e7b9c13d4&lng=en&id=694].
Disponibilidade: 21/10/2013.
WIGHT, Colin (2006). Agents, Structures and International Relations: Politics as Ontology.
Cambridge: Cambridge University Press.
117 

Documentos relacionados

Baixar este arquivo PDF - Revista de Estudos Internacionais

Baixar este arquivo PDF - Revista de Estudos Internacionais geral, a mudança global é possível. Os custos e os perigos da guerra levam os liberais a rejeitá-la. A guerra somente terá, portanto, tendência a ocorrer se tiver como finalidade aumentar a autopre...

Leia mais