20 anos da carta de 1988 - Revista Política Democrática

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20 anos da carta de 1988 - Revista Política Democrática
20 Anos da
Carta de 1988
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Copyright © 2008 by Fundação Astrojildo Pereira
ISSN 1518-7446
Ficha catalográfica
Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF:
Fundação Astrojildo Pereira, 2008.
Nº 22, out./nov. 2008
200 p.
1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título.
CDU 32.008.1 (05)
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Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.
Política Democrática
Revista de Política e Cultura
Fundação Astrojildo Pereira
20 Anos da
Carta de 1988
Out./Nov. 2008
Sobre a capa
O
artista que nos presenteia com suas belas obras, que ilustram nossas capa e contra-capa, é o jovem cearense Ayrton
Rocha Junior (nome artístico Ayrton).
Seu encontro com a pintura começou em 1968, aos 6 anos de idade, na cidade do Rio de Janeiro/RJ, onde morou toda sua infância.
Continuou seu trabalho em Brasília, durante toda sua adolescência,
e depois em Fortaleza, fez várias exposições individuais e participou
de várias coletivas, entre elas o XXXIV Salão de Abril de 1984, uma
das mais antigas mostras de artes visuais do Brasil, da qual já participaram artistas como Antonio Bandeira, Zenon Barreto, Aldemir
Martins, Barrica, e outros importantes artistas.
Em 1990, fez sua primeira Exposição Individual, na Galeria de
Arte do IBEU, em Fortaleza/CE. Em 1991, em João Pessoa/PB, a
convite dos organizadores do XXII Encontro Nacional do Centro de
Estudos Freudianos, apresentou mais uma individual com o tema
Retratos de Freud. Participou de uma Coletiva, na TVE, e, na década de 1980, no Circo Voador, no Rio de Janeiro/RJ.
Mais recentemente, lançou na Internet a primeira Exposição
Virtual e inovadora “Arte Galeria Virtual”, em que expôs mais de
40 pinturas, tornando-se um sucesso em audiência, de acordo com
dados do google analityc. Além de pintor, trabalhou em criação em
diversas agências de propaganda e no Departamento de Arte de
várias televisões.
Este jovem grande artista, filho do jornalista, publicitário, poeta
e músico Ayrton Rocha, tem “educação singela, sensibilidade à flor
da pele, sua inteligência vai muito mais além dos homens que não
têm o poder da arte, e sempre transmite suas cores mentais num
gesto de amor”. Ele pinta o Cubismo, o Impressionismo, o Figurativo, o Surrealismo.
Sumário
I. Apresentação
Luiz Sérgio Henriques................................................................................................. 11
II. Entrevista
Roberto Freire............................................................................................................. 17
III. Tema de Capa – 20 Anos da Constituição de 1988
Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição
Marcello Cerqueira...................................................................................................... 39
A Constituição de 1988 e o início da era dos direitos no Brasil
Marco Mondaini e Shirley Nascimento........................................................................ 46
A Carta de 88 e a questão sindical
José Carlos Arouca..................................................................................................... 55
IV. Observatório Político
Problema do Bush?
Arnaldo Jardim........................................................................................................... 67
Chega de violência! Sem guerras justas e injustas!
Dina Lida Kinoshita.................................................................................................... 71
Tsunami sistêmico com batida de umbu no Pelô
Arthur Poerner............................................................................................................ 79
ONGs, sem preconceitos
Fausto Mato Grosso.................................................................................................... 81
5
A tragédia do clientelismo
Hamilton Garcia de Lima............................................................................................ 84
V. Batalha das Idéias
Uma identidade reformista para a esquerda
Alberto Aggio............................................................................................................... 89
Um poder de sedução que cresce
Tony Judt.................................................................................................................... 95
A gênese do petismo
Clayton Cardoso Romano........................................................................................... 99
VI. O Social e o Político
Resistências cor-de-rosa-choque
Andréa Bandeira...................................................................................................... 111
Notas sobre a Questão Urbana
Sérgio Augusto de Moraes......................................................................................... 119
Economia e conservação da Natureza
Gustavo Souto Maior................................................................................................. 124
VII. Ensaio
Esquerda, empresários e política
Fernando Mires......................................................................................................... 135
VIII. Mundo
O mundo está mudando
Alfredo Reichlin . ...................................................................................................... 149
6
A esquerda depois da “terceira via”
Ernst Hillebrand....................................................................................................... 153
Ai dos que crêem no Império
Immanuel Wallerstein............................................................................................... 162
IX. Vida Cultural
Livros que eu li
Ivan Alves Filho........................................................................................................ 169
Forma e conteúdo no vôo do Ícaro do sertão
Vladimir Carvalho..................................................................................................... 179
X. Resenha
Machado de Assis e Astrojildo Pereira: O livro e o filme
Martin Cezar Feijó..................................................................................................... 187
Aconteceu longe demais
Gonzalo Adrián Rojas............................................................................................... 189
O que Adam Smith foi fazer na China
Alexandre de Freitas Barbosa.................................................................................. 193
Uma antologia de agraristas políticos
Michel Zaidan........................................................................................................... 198
7
I. Apresentação
Luiz Sérgio Henriques
Editor do site Gramsci e o Brasil, ensaísta,
tradutor e um dos organizadores das obras de
Antonio Gramsci em português, especialmente a
nova edição das Cartas do Cárcere
O
presente número da Política Democrática, justamente por se
concentrar na comemoração dos vinte anos da Carta Magna de 1988 e por manter sua discussão quase permanente
sobre a história, limites e possibilidades da esquerda brasileira, é
particularmente relevante para o leitor atento, seja qual for o ponto
do espectro político em que estiver.
A Constituição de 1988, por exemplo, é aqui vista de ângulos diversos e até freqüentemente opostos. A partir do depoimento de Roberto Freire, um dos protagonistas do processo constituinte, desenrola-se uma série de textos e avaliações de uma Carta que, de fato,
está na base do mais longo período de vida democrática da história
moderna do país. O próprio Freire examina dilemas daquela época
que nos acompanham até hoje, como um grande desequilíbrio de
poderes, em favor do “presidencialismo imperial” e em detrimento
do Congresso, a casa por excelência da democracia; o tratamento
insuficiente dos problemas do Judiciário; os impasses relativos à
anistia; e a condução da reforma agrária. Em muitos desses casos, formulações constitucionais excessivamente analíticas, ainda
que de caráter progressista, contribuíram para retardar a aplicação
prática das medidas de reforma, contrariando a boa intenção de
constituintes, inclusive os de esquerda.
De todo modo, está claro que o documento de 1988 marca a
retomada vigorosa da construção de uma “era de direitos” no país,
embora, ao longo dos anos noventa, reformas liberais tenham incidido sobre o texto, no âmbito da rediscussão do papel do Estado
e do mercado, tão própria daquela década. Que balanço fazer dos
anos de reforma liberal que, a rigor, começou com Collor e, grosso
modo, não parou mais desde então, na falta de inflexões mais visíveis rumo a um desenvolvimentismo de novo tipo? Como entender
as sucessivas emendas sofridas pela Carta cidadã? Tratou-se de um
aggiornamento necessário, tendo em vista a intensa transformação
pela qual passavam a economia e a sociedade em nível planetário,
ou, ao contrário, significaram perda generalizada de direitos e inserção subalterna nas engrenagens do capitalismo globalizado?
11
I. Apresentação
Eram uma decorrência de excessos discursivos, que engessavam
a ação ordinária dos governos, ou, como afirma Marcello Cerqueira,
chegaram perigosamente a ameaçar “bens públicos, constitucionalmente indisponíveis”, como as florestas e os rios?
São discussões que ainda hoje animam o debate público, e pessoalmente considero difícil deixar de pensar que todo este tempo,
desde 1988, combinou substanciais ganhos democráticos que, aos
poucos, vão se enraizando capilarmente na nossa sociedade, com
a persistente “crise do desenvolvimento nacional”, que taxas relativamente altas nestes anos mais recentes encobriram, mas não
resolveram com firmeza. Discutem-se assim na sociedade os resultados do jogo que, muitas vezes, não são bons, mas, querendo ou
não, raramente se põe em questão o essencial, que é a manutenção
da regra democrática, a adesão mais ou menos generalizada aos
princípios do Estado democrático de Direito. Eventuais quebras das
regras do jogo, como a manobra da reeleição em meados dos anos
1990 em benefício do governante no poder, ou, mais recentemente,
indecentes sugestões de terceiro mandato, têm encontrado quase
unânime condenação, ainda que, no primeiro caso, isto só seja possível retrospectivamente. Não é pouco, num país de vida constitucional conturbada como a nossa.
Um outro eixo importante de discussão aqui presente é a questão da esquerda e dos desafios da sua renovação. Em tempos de
crise aguda dos mercados globais, cujo paralelo mais evidente é
1929 e a década trágica que se seguiu, até desembocar no flagelo da
Segunda Guerra, é bom ter presente a necessidade de uma esquerda de novo tipo, radicalmente democrática, que não se deixe desencaminhar pelo “grave equívoco [de] pensar que o que está ocorrendo
hoje é o fim da idéia do capitalismo” (Freire).
Neste mesmo sentido, Alberto Aggio lança a discussão de um
novo reformismo, recuperando semanticamente uma palavra que
costumava cair como chumbo sobre os militantes do velho Partidão,
supostamente desqualificando sua opção pela luta legal contra o regime militar. O que se propõe, a respeito, é a ruptura com o padrão
bolchevique/soviético e o cubano/guerrilheiro, ambos conformadores da esquerda brasileira e ambos flagrantemente insuficientes
para compreender nossa realidade e nela agir, introduzindo reformas incisivas, concretas – se não consensuais, pelo menos amplamente majoritárias, apontando para níveis mais altos de progresso
e civilização.
12
Política Democrática · Nº 22
I. Apresentação
Temos de admitir que o ato de nascimento deste reformismo forte, adepto incondicional da democracia política como o terreno mais
favorável para a luta dos setores “de baixo”, ainda não se deu, nem
mesmo como visão geral ou estilo de fazer política aceito pelas forças da esquerda brasileira, na variedade das suas manifestações.
E, diga-se de passagem, as dificuldades do PT em relação à Carta de
1988, contra a qual votou e que assinou apenas protocolarmente,
tais dificuldades são muito ilustrativas de um suposto radicalismo
que mal encobre subalternidade e incapacidade de uma verdadeira
direção do destino do país e das suas grandes escolhas.
O reformismo forte de que falamos supõe, evidentemente, a incorporação de outras matrizes e orientações além do marxismo, a assimilação de problemáticas novas, como a da ecologia ou a da questão
urbana, que adquirem uma feição antes inteiramente desconhecida e
que também são tratadas em outros textos deste número.
A associação pode ser arbitrária, mas não resisto a lembrar que,
certa vez, o poeta Caetano Veloso fustigou a selvageria do trânsito,
dizendo que nós, motoristas brasileiros, insistimos pateticamente
em perder os sinais verdes e avançar os vermelhos. É uma boa
imagem para compreender a situação das esquerdas, enquanto não
nascer e ganhar vigor este novo reformismo: continuaremos a ansiar por rupturas e revoluções, por ataques frontais ao palácio de
poder, enquanto desperdiçamos o sinal escancaradamente aberto
às mudanças que a vida em democracia proporciona.
13
II. Entrevista
Roberto Freire
Ex-senador e ex-deputado federal, é o presidente
nacional do Partido Popular Socialista
“Temos muito o que comemorar
com a nossa Constituição”
Caetano Araujo – Para iniciar nossa conversa, como avalia a Constituição que estamos festejando e o processo de sua
construção?
Roberto Freire – Ela tem uma virtude básica inegável: é a
mais democrática de todas as que o país já teve. A começar pelo
regimento e pela forma de elaboração. Nas outras constituintes
republicanas, havia uma Grande Comissão, formada pelos parlamentares mais notáveis, que elaboravam um anteprojeto, enquanto os demais constituintes apenas esperavam para votar.
Na de 1987/88, formaram-se oito comissões temáticas das quais
participaram todos os constituintes – os 487 deputados e 72 senadores – incorporados naquelas de cujo assunto tinham maior
familiaridade. Enquanto as constituintes de 1891, 1934 e 1946
trabalharam quase em segredo com suas comissões de notáveis,
a de 1987/88 praticamente forçou os brasileiros a participar dos
debates e da elaboração da nova Carta. Além do Jornal Nacional,
da TV Globo, com uma audiência de mais de 60 milhões, havia
ainda os noticiários de TV e Rádio chamados Diário da Constituinte, em rede nacional de 170 estações televisivas e mais de
mil emissoras radiofônicas, em que se prestavam contas de cada
passo na elaboração da Carta. Grande parte da sociedade se organizou em grupos de pressão e, durante 18 meses, cada brasileiro
se familiarizou com temas os mais complexos do país. Ao longo de
um ano e meio, analisaram-se 61.020 emendas de parlamentares,
além de 122 populares.
17
II. Entrevista
Francisco Almeida – Do seu ponto de vista, qual o balanço
das conquistas?
Roberto Freire – Francamente positivo e temos muito o que
comemorar. Nós conseguimos a superação do regime militar, com
uma ruptura constitucional, com um novo texto da Carta Magna.
Conseguimos construir uma sociedade com direitos democráticos, que poucos países conseguiram atingir, do ponto de vista da
sua formulação, da sua concepção. É fato indiscutível. Não devemos esquecer, quando formalizamos a Constituição, que se tinha
uma visão do Estado muito presente nas atividades econômicas,
na sociedade, que, com o colapso do socialismo real, ficou meio
anacrônica. Isso explica o que foi modificado por emenda, que
não é um número tão elevado, que deve ser debitado às mudanças que ocorreram no mundo, à superação da bipolaridade da
guerra-fria. Basta ver todo o processo de privatização, o debate
da questão dos monopólios... Hoje, quando vivemos uma profunda crise no sistema financeiro global, não devemos esperar que
venha outra mudança daquela magnitude, até porque é um grave equívoco pensar que o que está ocorrendo hoje é o fim da idéia
do capitalismo. O Estado está, como sempre esteve, a serviço dos
interesses privados. Nunca na história da humanidade se viu um
Estado tão dedicado ao serviço dos interesses do setor privado
como agora. Não se trata de nenhuma visão de intervenção estatal. Ocorre apenas que deixaram de tal forma solto o sistema
financeiro operativo, com uma regulamentação que favoreceu em
muito a especulação, que agora precisam intervir para mantê-lo.
Não é para acabar com a atividade, é para garantir a funcionalidade do sistema capitalista.
Claudio Vitorino – Como analisa a relação entre os Poderes,
do ponto de vista da Constituição e da prática concreta depois de
20 anos?
Roberto Freire– Um dos seus elementos mais problemáticos
diz respeito às Medidas Provisórias. Essa questão é complicadíssima, sobretudo pela visão que tínhamos do Executivo, e dos instrumentos que este detinha. Por força do poder do presidencialismo, como sabemos, há uma tendência de realização de uma
presidência “imperial”, em que o Executivo tem um papel preponderante, em relação aos outros Poderes e à própria sociedade civil.
No parlamentarismo, o Executivo é a expressão do parlamento,
portanto, é essencialmente democrático, não um império. No sistema presidencialista, há um descolamento da vontade democrá18
Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
tica representada pelo Legislativo, que é subalternizado. Esta é a
origem de toda distorção no exercício do poder. Nós vivemos na
América Latina historicamente um bolsão de atraso institucional
impressionante. Nós somos herdeiros diretos do absolutismo, do
despotismo, do império, do rei-sol, ainda dos salvadores. A América Latina é legatária dessa tradição.
C.A. – Mas, a nossa Constituição também dá poderes ao Congresso e o Congresso não os usa. Só para dar um exemplo, o nosso
Supremo Tribunal passou 20 anos sem usar as ferramentas que
a Constituição dava para ele. Depois de duas décadas, quando a
sua composição foi aprovada, os novos ministros entenderam por
bem fazer uso delas. No caso das MP’s, por exemplo, não bastaria
apenas o Congresso declarar a inadmissibilidade delas e rejeitálas, de pronto?
R.F.– Teoricamente, ele tem poderes, claro.
C.A. – E não funciona?
R.F. – Não. Por razões específicas, ligadas ao poder de pressão
do Executivo, o Congresso Nacional não utiliza o poder de negar a
Medida Provisória, que é típica do parlamentarismo. Nunca o fez!
Mas, precisamos considerar que o Estado moderno vem assumindo
crescente complexidade. É uma dinâmica que exige do Executivo
maior capacidade de intervenção e velocidade de resposta. Nessa
lógica, produzir MP’s em situações emergenciais tem todo o sentido, já que o serviço público só pode agir dentro da lei. Tem que
haver a lei e a MP é uma forma de lei. Agora, daí para a verdadeira
fábrica de MP’s vai uma enorme distância. O que estamos vivendo
é o risco de não termos uma democracia consolidada, no sentido
republicano do equilíbrio de poderes. Atualmente, o Executivo se
apropria da função de legislar, típica de outro poder, e com isso
produz um grave desequilíbrio nas instituições, na direção de um
Estado centralizado e centralizador e, pior, com a complacência de
deputados e senadores. No parlamentarismo, esse movimento de
sobreposição não é possível, pois o Executivo tem que ser ágil, fruto que é da maioria parlamentar.Além de haver um afastamento
natural do Executivo, que se dedica apenas à gestão da máquina
pública, seu planejamento e condução constituem resultado da
formação de maiorias estáveis no Legislativo.
19
II. Entrevista
C.A. – Ele está sujeito à maioria.
R.F. – Exatamente! No presidencialismo, não. Este tem que
subordinar a maioria aos seus interesses, e assim o faz. E só pode
governar se o fizer. E, para fazê-lo, subordina o Legislativo. No
caso dos poderes do Judiciário, não é que lhe tenham sido dados
muitos, mas houve no Brasil um processo chamado “judicialização”, em que a cidadania começou a ter maior acesso às instituições, como Ações Diretas de Inconstitucionalidade, e todo um processo de representação na Justiça, na ausência de normatização
do Legislativo.
C.A. – A criação do Ministério Público...
R.F. – Claro, o Ministério Público, a criação de uma instituição...
C.A. – Independente...
R.F. – Houve alguns grandes avanços na Constituinte, na
questão do Poder Judiciário, viabilizando alguns processos relativos a sua reforma, só que foram implementados de forma equivocada. Dou como exemplo a questão do Juizado de Pequenas
Causas, que era uma idéia importante na questão da reforma do
Judiciário, que garantia o acesso da cidadania à Justiça. Esse
Juizado de Pequenas Causas é a ampliação do Poder Judiciário,
para o acesso da cidadania ser maior. Houve, no entanto, uma
distorção, porque não se fez reforma nenhuma no que respeita
ao andamento dos processos, e que tinha a ver também com uma
melhor definição de competências entre os entes federativos, os
tribunais, os juízes, de melhorar a sua competência.Mexeu-se em
algo que é complexo demais. Na Constituinte deu-se um primeiro
passo, e a reforma do Judiciário foi por um outro caminho, procurando resolver problemas dos tribunais superiores. Então, toda
a discussão cingiu-se a como desafogar os tribunais superiores.
Assim, embora tenhamos conseguido avançar, não foi o suficiente. O avanço maior era o da instituição da Corte Suprema, que
não passou em função do regime parlamentarista não ter sido
aprovado, e, ao mesmo tempo, não se deu mandato aos membros
do Supremo, o que talvez possibilitasse maior mobilidade democrática, e não a vitaliciedade que, para o tipo de designação que
existe, não deve ser concedida. A vitaliciedade é uma prerrogativa
fundamental para a judicatura, principalmente para o juiz das
instâncias inferiores, por não ser fruto de uma designação política, mas de carreira, até para garantir a soberania das sentenças.
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Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
No que diz respeito às instâncias superiores, não. Houve boas
discussões sobre esse tema, trazendo a súmula vinculante e uma
série de novidades do ponto de vista dos tribunais superiores, mas
com poucos reflexos no que se constitui a grande reforma: o acesso irrestrito, a gratuidade completa no acesso à Justiça, que era
o que queríamos. Ao contrário, ficaram até alguns resquícios corporativos muito fortes, como os relativos às custas processuais,
privilegiando determinadas categorias, e isso é um grave equívoco
que, infelizmente, ainda se mantém. Na oportunidade, inclusive,
Roberto Campos, único voto contrário, afirmou que o advogado
– leia-se a OAB – “era a única categoria profissional no Brasil a
merecer um dispositivo constitucional”.
C.A. – Antes disso, uma coisa muito importante, que diz respeito à parte política, é o sufrágio universal, que foi conquistado
na Constituinte, e pouca gente fala disso. Foi um grande avanço.
R.F. – Ressaltem-se o voto dos analfabetos, que sempre foram
excluídos, e o dos jovens aos 16 anos. A Constituição é nomeada
“cidadã”, não por acaso. Lembro que, nessa discussão do voto a
partir dos 16 anos, destacou-se uma figura conhecida naquele trabalho, de uma grandeza interessante, que teve grande influência,
o conservador Afonso Arinos. Em alguns momentos, apesar do seu
papel e do uso de sua inteligência a favor algumas vezes de causas
anti-democráticas, como na tentativa de golpe contra JK, de criar a
maioria absoluta, ele foi brilhante nessa questão dos 16 anos, tornando-se o principal orador em defesa do voto dos jovens. Foi um
momento importante! Muitos talvez não saibam, mas, no Japão, o
voto era a partir de 21 anos. Quer dizer, o Brasil foi, talvez, um dos
primeiros, senão o primeiro país a dar o direito do voto aos jovens
a partir dos 16 anos. Nesse novo mundo em que vivemos, conectado em redes cada vez mais amplas, a juventude tem precocemente
condições de discernimento, de poder decidir, de poder participar,
mesmo que seja facultativo. Do ponto de vista político, a sociedade
brasileira avançou, e muito. É uma grande conquista.
C.A. – Desse mesmo ponto de vista, há uma outra questão de
que pouco se fala, que é a manutenção do voto proporcional, com
listas abertas, sistema que é um permanente foco de crise. Tanto
é assim que sempre há projeto de reforma política para se discutir
mudanças.
21
II. Entrevista
R.F.– Certo, mas me permitam uma teoria que eu não tinha na
época, tenho-a hoje: na Constituinte, defendíamos o sistema proporcional, e o Partido defendia o sistema de deputação nacional.
Era um sistema meio diferente, mas era um sistema em que você
votava em partidos nacionalmente.
C.A. – Com listas nacionais?
R.F. – Sim, com listas nacionais. Claro que era uma visão
para um sistema parlamentarista de país unitário, com grandes
dificuldades para um país federal como o nosso. Tinha esse grave
equívoco. Tanto é que, quando apresentamos essa proposta, ela,
de imediato, foi excluída, foi retirada. E não tivemos condições
de defendê-la. E era até muito bonito, e era bom para um partido
como o nosso, porque ele tinha um voto nacional, mas fugia à
própria realidade de uma federação, mesmo que meio torta como
a nossa... Tem-se que levar em conta o respeito aos estados. Como
era um sistema muito complicado, foi desconsiderado. E partimos
para o proporcional, fomos defendê-lo, e o embate ficou entre o
proporcional e o distrital misto. Não esquecer que o distrital misto
foi muito pouco defendido.Este só veio a crescer posteriormente, a
partir do PSDB e do Fernando Henrique Cardoso, que apresentou
um projeto para criá-lo.
C.A. – No Senado.
R.F.- No Senado, ele iniciou um debate a respeito. No entanto,
esse debate não foi muito presente na Constituinte, onde o sistema proporcional tinha ampla maioria.
C.A.- É que os nossos problemas com esse sistema, no bipartidarismo que tínhamos vivido na ditadura, não apareceram tanto,
mas com o pluripartidarismo ficaram evidentes.
R.F.- Independente disso, o problema grave não é o sistema
proporcional em si, mas a realidade do relacionamento do Legislativo com o Executivo, que transformou partido político, no Brasil,
em moeda de troca, como revelado pelo “mensalão”.
C.A.- Isso não era muito discutido na época.
R.F.- É verdade, e o sistema de voto proporcional ganhou bem,
até porque não tinha muitos adversários, e porque não havia ne-
22
Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
nhum experimento num regime pluripartidário sem ele. Como íamos ter um sistema pluripartidário, o sistema proporcional era o
que melhor atendia. O sistema distrital, mesmo que misto, tem
uma diminuição sensível no número de partidos, e caminha para
ter dois grandes partidos polarizando as posições. Talvez, por isso,
tenha sido rapidamente derrotado, até em função do passado muito recente, e não tinha havido nenhuma crise ainda do sistema pluripartidário. Depois é que surgiram alguns dos problemas, porque
nós não atinamos com o que o STF atinou agora, que o mandato
é do partido, e é efetivamente do partido! Não há nenhum país no
mundo que tenha esse sistema, que o mandato não seja do partido,
porque a origem do sistema proporcional brasileiro é belga, e lá o
mandato é partidário, porque é de lista.
C.A. – Só é lógico, se for assim.
R.F. – Claro, e era assim! Nós é que, pela frouxidão, pela inércia, começamos a admitir, depois do regime militar, a mudança de
partido, como se fosse troca-troca de camisa. No sistema constitucional de 1946, isso não era muito comum. Não é que não houvesse dissidências, partidos rachados. Isso sempre houve, mas
as pessoas não saíam dos partidos, criavam dissidências, mas
viviam dentro do partido, não os deixavam. Sair do partido era um
caso raro, e quando havia, na maioria das vezes, eram lideranças
de pequenos partidos, que surgiam por um certo populismo, e
Jânio Quadros talvez seja o melhor exemplo disso, porque entrou
de pára-quedas na UDN, nunca teve nenhuma tradição de nada.
Trata-se de um caso raro. Os políticos conviviam com essas contradições, não muito comuns, mas ficavam no partido. Esta realidade começou a afrouxar mesmo com o fim da ditadura, entrou
num crescendo, e com Lula foi esse festival do troca-troca... Bom,
o “mensalão” é isso...
C.A. – Como foi enfrentada a delicada questão da anistia?
R.F. – Antes de entrar nessa questão, deve-se salientar que o
PCB teve uma posição de não revanchismo, e isso tem a ver com o
processo de anistia no Brasil. A anistia – é bom que se saiba – não
foi concedida pelos militares. Num primeiro momento, ela o foi
pelo Congresso, claro que um Congresso com limitações, sob o regime militar. Mas foi um Congresso em que a oposição participou
das discussões e pactuou com os parlamentares que davam sustentação ao regime militar. E foi votada no Congresso que existia
23
II. Entrevista
à época. No entanto, esse processo de anistia se consolidou definitivamente na Constituinte, já sem os militares no poder, diferentemente da Argentina, do Uruguai, do Chile, onde as anistias foram
auto-concedidas, com os militares ainda no poder. E quando foi
reconquistada a democracia nesses países, evidentemente, as forças da resistência não aceitaram nada do que os militares fizeram.
Aqui, não foram os militares! A anistia ampla, geral e irrestrita
foi concedida pela nossa Constituinte. E foi uma luta importante,
com o PCB muito presente em todo esse debate. Aliás, nós estávamos presentes desde a Comissão Mista, lá em 1979, que votou o
primeiro tema da Constituinte, e da qual eu participei.
C.A. – A Constituinte, então, perdeu a oportunidade de fazer a
anistia avançar no sentido da divulgação de informações sobre os
casos, tal como na África do Sul?
R.F. – No Brasil, precisamos admitir, não tínhamos força política para fazer a anistia avançar, até porque a transição foi um
pouco pactuada com os militares. Eles não tinham mais força
para se manter no poder, mas tinham força para vetar algumas
das mudanças projetadas. É claramente isso. Quando conversei
com Tancredo Neves, depois de ele eleito pelo Colégio Eleitoral,
sobre a legalização do nosso Partido Comunista, ele disse ser necessário aguardar a convocação da Constituinte, pois antes dela
nada seria possível fazer. Isso porque ele não queria ter nenhum
contratempo no processo de transição negociada que fizera. E
isso se refletiu, inclusive, com José Sarney logo após assumir
o governo e com Fernando Lyra como ministro da Justiça, sem
que tivéssemos condições de publicar o manifesto, os estatutos
e o programa partidários, no Diário Oficial, para legalizar o PCB.
Sarney fez depois, porque, acredito, não tinha assumido nenhum
compromisso para manter-se na presidência. Desejo apenas
mostrar que no Brasil não houve ruptura. A Constituição, em alguns aspectos, provocou rupturas, mas nesse tema, não. O máximo conseguido foi ampliar a anistia para os que estavam soltos
e não tinham sido anistiados, os autores do que eles chamavam
de “crimes de sangue”. Não só obtivemos avanços na Constituição, retroagimos a anistia até para companheiros comunistas
que nunca tinham sido anistiados, como os de 1935. É só um detalhe, mas é importante ser afirmado, para não se perder a condição de se entender isso, porque, hoje, fica fácil esquecer o que
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Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
a anistia significou, como se não tivesse acontecido, como se não
fosse importante como conquista democrática. Claro que houve
erros, mas aquele foi um momento importante da cidadania.
F.A. – E o tratamento da complexa questão da reforma agrária?
R.F. – Ficou, durante algum tempo, por força da UDR, paralisando os trabalhos da Constituinte, já em Plenário. Passaram-se
duas sessões sem se chegar a nenhuma condição de votar nada
sobre o capítulo da reforma agrária. Lembro-me que participei de
vários debates, na CNBB, onde nos chamaram para discutir essa
temática, assim como na Contag, por ser matéria muito polêmica,
de confronto dos trabalhadores rurais com a UDR. É exatamente,
nesse momento, que surge, de um lado, o Ronaldo Caiado como
grande liderança, líder da UDR, com posições radicalíssimas contra a reforma agrária, e, do outro, a esquerda reunida para discutir o enfrentamento da questão. Os debates eram tão acirrados
que, por exemplo, aconteceu uma sessão, no plenário do Senado,
não terminou – algo impressionante – porque começaram a jogar
moedas das galerias, querendo dizer que os parlamentares estavam comprados. A situação era de tal ordem que todo mundo
teve que se abrigar das moedas, e a sessão ser encerrada. Sobre
a questão agrária, defendi uma tese, que, aliás, era a que, sem
nenhuma bazófia, deveria ficar: esquecermos a Constituição que,
segundo a esquerda mais radicalizada, era apenas uma carta de
declaração de intenções, e colocarmos nela apenas o que fosse
de fundamental importância para o processo da reforma agrária.
Ora, quem melhor definiu isso foi o regime militar, que produziu
um texto constitucional sintético: “a propriedade tem que exercer
sua função social, e quando não a exercer pode ser desapropriada
para o interesse social, pagando-se com o título da dívida agrária”. Mas aí, vinha a propensão de alguns setores da esquerda de
ter que colocar um discurso na Constituição, e venceu essa tese.
E isso, evidentemente, gerava polêmicas sem fim. Não tínhamos
condições de chegar a um acordo. Nesse capítulo, afirma-se o que
é propriedade da terra e produtividade, define-se um conjunto de
intenções que, na prática, significou a paralisação de todo um
posterior processo de desapropriações. Esse processo da reforma
agrária, aliás, só se efetivou quando o Osvaldo Russo foi indicado para o Incra pelo PCB, no governo Itamar. Eu era líder do
governo na Camara, onde votamos uma lei que definia o que era
propriedade produtiva, o que era função social da propriedade,
para poder desapropriar. Falava-se na desapropriação, mas cria25
II. Entrevista
vam-se tantas declarações de intenções sobre ela, que foi preciso
regulamentá-la. E isso complicou... Até hoje há discussões, por
exemplo, sobre qual o grau de produtividade das propriedades
para que possam ser desapropriadas. Esta questão poderia até se
constituir em uma luta política, mas não constar no texto da Carta, a qual deveria apenas definir que se desapropria, que se paga
em títulos da dívida agrária e que a propriedade tem que exercer
uma função social. Até porque já tínhamos o Estatuto da Terra,
que definia bem o que significava isso. Defendi essa posição, mas
não fomos vitoriosos. Ao se chegar ao ponto de não ter mais aonde ir, por meio de uma emenda aglutinativa, saímos do “buraco
negro”, na Constituinte, mas não no processo de reforma agrária.
Esta realidade durou muito tempo e só veio a ser resolvido no
governo Itamar, quando do Incra veio uma lei que definia a desapropriação, regulamentando muitos desses discursos da Constituição. Foi este o caminho que possibilitou começar o processo da
reforma agrária no país.
C.V.– Você colocou a reforma agrária como um ponto importante e progressista, e essa reforma foi um tema que serviu para aglutinar, inclusive, os setores mais conservadores, criando condições
para o advento da UDR, que viria a estar na base do Centrão.
R.F. – Sim, no Centrão estavam todas as forças conservadoras,
ou de direita, como referencial político, presentes desde o começo. Só que elas eram minoria nos primeiros grandes embates, em
torno da definição do regimento, o qual foi que permitiu viabilizar
essa forma de se elaborar a Constituição.
C.V.– E eles já perderam aí.
R.F.– Sim, mas quando sentiram que esta derrota era o que
poderia criar um grande problema por conta da sistematização,
eles se organizaram no Centrão. Antes, eles não estavam organizados, talvez porque não tivessem uma visão de conjunto. A Comissão de Sistematização foi o grande momento do Afonso Arinos,
do seu ante-projeto. No entanto, nela a maior contribuição não
foi de juristas ou de intelectuais da Comissão Afonso Arinos, mas
dos parlamentares constituintes e da sociedade civil. Foi dessa
fonte que surgiu o projeto da sistematização, já com a existência
do Centrão. E, as últimas votações já eram feitas quase sem a
participação do Centrão.
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Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
C.A. – Talvez estivessem se guardando para o plenário.
R.F.– Sim, porque na Comissão de Sistematização já se sentiam perdedores. Lembro-me bem de três deles: Luiz Eduardo Magalhães, José Lourenço e Ricardo Fiúza. Foram os que ficaram até
o fim brigando, mas apenas para cumprir tabela, já que sabiam
estar perdendo.
C.V. – E marcar posição.
R.F. – Evidente. Mas a preparação foi para o plenário, onde
começamos a ter perdas, nos grandes embates.
C.V.– Como você analisaria as forças conservadoras, no momento de formalização da nova Carta? Qual o caráter delas? Estavam vinculadas a que interesses, naquele momento?
R.F.– O que podemos chamar de forças conservadoras? Os
que defendem os interesses da propriedade da terra, do sistema
financeiro, dos empresários, ou os do ponto de vista dos costumes, da religião, da família? Tinha tudo isso e os da inteligência,
da universidade. Curioso é que o nacionalismo, vez por outra,
pontificava na esquerda e também na direita. E quando se juntavam os dois brotavam absurdos, como o da proibição de contratar
professores estrangeiros. Não se tratava de uma concepção meramente proibitiva, mas de nacionalismo exacerbado. E proibimos,
sem abrir exceções... A junção do conservadorismo com o nacionalismo resultou nessa excrescência.
C.V. – E lembrar que a USP foi fundada com professores franceses...
R.F. – Sim, mas lembre-se que foi a emenda de Sérgio Arouca
que resolveu isso. Muitas dessas dificuldades e contradições desaguaram na Comissão de Redação. E aí vem a declaração de Nelson
Jobim, ainda não bem esclarecida, de que a Comissão de Redação teria incluido algumas redações que, segundo ele, não teriam
sido aprovadas. Claro que não foi assim. O Jobim se expressou
mal, gerando uma grande polêmica, mas o que aconteceu na Comissão de Redação, da qual participei também, é que, em alguns
processos, ocorreu o mesmo que numa emenda aglutinativa, isto
é, necessidade de mudar algumas questões por serem contraditórias. E a redação é para isso, e não para contrariar uma decisão
majoritária, mas tão somente garantir o nexo das decisões.
27
II. Entrevista
F.A. – Uma adequação de redação...
R.F. – Claro! Algumas vezes tinha que se fazer, mas ninguém
decidiu contra o que o plenário tinha definido. Isso não houve,
até porque se ele fizesse teria havido protestos. Jobim não é alguém que passa desapercebido, e muito menos o que ele faz...
Não houve isso. Aquela declaração gerou uma polêmica, e não foi
nada disso. Houve alguns ajustes, evidentemente, e a Comissão
de Redação é para isso. Eu participei dela, e esse foi o grande
momento da cidadania brasileira. Disso, não tenho nenhuma
dúvida. É uma data a ser celebrada. Foi um grande momento de
afirmação – talvez o diga por ter participado diretamente como
constituinte – mas não tenho nenhuma dúvida de que foi o momento áureo da minha vida pública. Isso é tão verdadeiro que me
possibilitou a honra maior de minha vida de ter sido candidato
a presidente da República pelo Partido Comunista Brasileiro, e
minha atuação que viabilizou essa candidatura, não tenho nenhuma dúvida disso. Acho que o PCB conseguiu se mobilizar
em função da nossa participação, do que nós construímos lá na
Constituinte.
F.A.– Além da questão do monopólio estatal do petróleo, havia
outras questões?
R.F.– Havia sim, já que queríamos ampliar os monopólios,
ficando o do petróleo e o da energia nuclear. Uma coisa interessante que aconteceu na questão da Petrobrás foi a composição
de uma grande aliança de setores nacionalistas, unindo representantes dos setores mais à direita e conservadores com a esquerda, como o Jarbas Passarinho e Delfim Neto defendendo a
Petrobrás.
C.A. – A Constituição propôs o monopólio da distribuição
também?
R.F.– Claro. Houve propostas de outros monopólios. Por exemplo, na área social, educação e saúde, havia propostas mais radicais, como saúde só a pública, nada de saúde complementar
privada, enquanto outros defendiam colocar, no mesmo patamar,
a saúde pública e a privada. . E, ao final, foi aprovada a saúde
complementar. O mesmo ocorreu com a educação privada. Havia
os que não admitiam conceder recurso público nenhum, mas não
podiam proibi-lo, e não o conseguiram. Na educação, por exemplo,
houve interessante debate numa comissão a respeito do ensino
28
Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
religioso, e que dividia o PT ao meio, porque tinha a ala católica,
defensora do ensino religioso, e outra ala liderada pelo Florestan
Fernandes, que defendia o Estado laico. Lembro-me bem disso
porque fiz dobradinha com ele, grande figura humana, que defendia que, na República laica, o Estado não poderia promover
ensino religioso. A briga foi muito grande, mas nesse caso não jogaram moeda, mas dinheiro de papel, o que foi mais fácil, porque
pudemos continuar a sessão. No plenário, também houve uma
briga imensa na qual até o microfone foi quebrado. Ou seja, houve momentos de grandes acirramentos, grandes polêmicas. E no
setor econômico era onde havia mais atrito.Como havia o pressuposto da guerra-fria, da bipolaridade, da visão estatista, tinha-se
sempre essa disputa.
C.A. – E o que acha das críticas ao texto aprovado em 1988?
R.F.– Em alguns aspectos, considero normais e convergentes
com nossas observações. Porém, considero problemáticas certas
afirmações, como as do senador José Sarney, recentemente, na Folha de São Paulo. Somos reconhecedores que ele, como presidente
da República, foi importantíssimo, do ponto de vista da democracia brasileira. Ninguém pode tirar dele esse papel. Ele assumiu e
teve muita coragem, não só porque legalizou o Partido Comunista
Brasileiro antes da Constituinte, mas fundamentalmente por ter
removido os entulhos autoritários impostos pelo regime militar. Por
sua postura, ele conseguiu se afirmar como um presidente democrático. Este é um papel que ninguém tira dele. Mas, ao afirmar,
agora, que não sabia nada dos porões da ditadura, que não havia
tortura, essa desastrosa afirmação beira o absurdo. O Brasil inteiro e grande parte do planeta sabiam disso. Nós, como outras
forças da resistência, tivemos muitos companheiros barbaramente
torturados, assassinados e “desaparecidos”, sem falar de Vladimir
Herzog e Manoel Fiel Filho, cujas mortes no crepúsculo da ditadura
provocaram inclusive crises seríssimas no aparelho de repressão
no próprio regime militar. Até oficiais sérios e honestos reconhecem
os desmandos de setores militares. E Sarney dizer que não sabia
de nada disso?E também ficar falando que a Constituição é um
Frankstein, que não se podia governar com ela, que um exemplo
maior disso seriam as quase sessenta emendas, e complementa
sua declaração com uma infelicidade: compara nossa Constituição à norte-americana. A Constituição norte-americana é profundamente restrita porque trata apenas da relação entre os Estados
e a União, e a relação desta com o mundo. Porque a relação entre
29
II. Entrevista
o Estado, a cidadania e suas formas de organização estão regulamentadas em 54 constituições, que são as estaduais. Nessas constituições encontram-se garantias e direitos individuais os mais diversos, porque de um Estado para outro tem pena de morte, prisão
perpétua, alguns têm uma série de regulamentações de contratos
que outros não têm, são relações as mais distintas possíveis. As intervenções dessas constituições se dão por meio da Corte Suprema,
porque é esta Corte que, em última instância, julga a relação entre
a União e os Estados. Este é um sistema completamente distinto do
nosso, não podendo se comparar a Constituição norte-americana
com a brasileira.
C.V.– No começo de sua intervenção, você colocou que a esquerda no processo do trabalho da Constituinte teve um papel
muito importante, sobretudo nas comissões, trazendo a sociedade
civil organizada que, num processo de fim de ditadura, exercia
uma pressão muito grande, e o Congresso teve que aceitar isso,
inclusive pela forma como foi pensada a Constituinte. E você depois afirmou que muitas das bandeiras que certos setores da esquerda tinham combatido, na Constituição de 1988, defenderamnas depois como se fossem suas.
R.F. – Não diria que foram bandeiras. Eu diria que a Constituição que iria para a revisão qüinqüenal não era em relação a
pontos específicos. Quando foram contra a revisão, foram contra a
possibilidade de revisão! Era como se a Constituição servisse para
tudo. Ela não servia, quando votamos pela revisão no período de
cinco anos. O discurso final do PT e do PCdoB, por exemplo, é algo
impressionante. Parecia que a Constituição era um desastre completo, quando era exatamente o inverso.E ressalte-se que, e assim
sendo, a conquista da revisão foi dos setores de esquerda, particularmente os que mais radicalizavam contra o texto constitucional.
C.V.– A melhor conquista possível.
R.F. – Claro! É por isso que digo que precisamos comemorar,
porque algumas pessoas têm afirmado não termos o que comemorar. Inclusive, o ex-deputado Fernando Lyra, em Pernambuco, defendeu há pouco a idéia de que a Constituição não prestou porque
não foi exclusiva. Essa, a meu ver, é uma discussão bizantina.E
nós não entramos “nessa”. A única ação nossa a respeito foi ter,
tão logo abertos os trabalhos da Constituinte, levantado uma
questão de ordem sobre o fato de haver “senadores biônicos”, isto
30
Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
é, não eleitos pelos brasileiros. A idéia era que, para fazer a Constituição, tinham que ser todos eleitos, como se isso fosse algo que
maculasse o texto constitucional. Se fosse apenas para ser eleitos,
muitos daqueles não voltariam a ser parlamentares, se contentariam em ser constituintes, mas é uma discussão meio bizantina,
porque os constituintes que estavam ali tinham o poder de votar,
de acordo com a sua consciência, e de forma soberana. E ninguém
foi limitado em nenhum momento nas votações. Assim sendo, não
se pode dizer que se fosse uma Constituinte exclusiva seria melhor, ou não. Isso é um bizantinismo que justifica apenas posições
ideológicas, como se isso fosse um grande debate no país.
C.V. – Concluída a Constituinte, em 1988, um ano depois,
houve a queda do Muro de Berlim. Então, a revisão proposta para
1993 se daria com a esquerda em total defensiva, e a probabilidade das conquistas de 1988 serem superadas ou retiradas da
Constituição era muito grande. Talvez tenha sido esse um dos motivos da esquerda ter resistido tanto a mudá-la, porque ela estava
numa situação muito complicada?
R.F. – Sim, não nego haver justificativa, só que era completamente incoerente, pois as conquistas que eles achavam que poderiam perder depois da queda do muro, com o fim do socialismo
real, não eram conquista nenhuma! Não estou querendo dizer que
não havia essa contradição. Claro que existia. Nós sabíamos dela,
e dizíamos ser o PCB a única força de esquerda que defendeu a
revisão constitucional, até porque fomos a favor dela, lideramos
seu movimento e alertávamos que algumas conquistas poderiam
ser perdidas (considerávamos conquistas, fomos a favor delas lá
atrás, e sabíamos correr o risco de perdê-las, porque a correlação
de forças tinha mudado). Não devemos esquecer que a esquerda
não diminuiu em nada a sua representação. Quem a diminuiu foi
o PMDB, depois do fim da moeda Cruzado. Se houve no mundo
alguma perda da esquerda por conta da queda do Muro de Berlim,
no Brasil isso não ocorreu. Aqui, ao contrário, surgiu o grande
partido da esquerda no mundo, não era só no Brasil – o Partido
dos Trabalhadores, o PT.
C.V. – Sem esquecer a raiz católica dessa experiência partidária.
R.F.– Sim, claramente. Já citei esse exemplo, de nossa aliança com o grupo de Florestan Fernandes na briga pela república
laica, e perdemos... Incrível, já havia naquele momento a banca31
II. Entrevista
da evangélica. Era pequena, depois cresceu muito, e ainda bem
que desinflou. Não é que não tenha mais esses representantes,
mas não têm a força de antes. Talvez o envolvimento com todo o
processo do “mensalão” os tenha desmoralizado, porque nunca
vi tanto evangélico envolvido em picaretagem. Talvez por isso
tenha diminuído mesmo. Na Constituinte, discuti muito com alguns dos membros da bancada evangélica, argumentando que
não entendia o fato de eles desejarem votar a favor do ensino
religioso, quando este seria o da religião hegemônica. Vivemos no
Brasil em um calendário católico, gregoriano, que tem as festas
religiosas da Igreja Católica. Todo ele é assim. A posição correta
para eles, como minoria, era garantir a república laica, para eles
terem a igualdade de tratamento.Ensino religioso é assunto para
as famílias, para a igreja, mas não uma função do Estado, que
garante a todos a igualdade.
C.V. – De seu ponto de vista, qual foi a maior derrota nesse
processo?
R.F. – Se houve uma derrota foi a manutenção do sistema
presidencialista, comprovadamente um fator de impasses, de
processos antidemocráticos, e não é o que melhor representa o
mundo em que estamos vivendo, onde um maior nível de participação, de presenças mais constantes dos colegiados e coletividades, e suas intervenções se dão com maior agilidade. A meu
ver, os brasileiros perderam com a não aprovação do parlamentarismo. Há um momento a ser destacado: o de disputa sobre a
questão do mandato de 5 anos do presidente da República, ante
a tentativa de reduzi-lo de 6 anos para 4, e que no final ficou
em 5. Esse debate teve no PT o partido que mais se mobilizou
em torno da idéia dos 4 anos e, com isso, exercia uma pressão
muito grande em relação aos outros partidos democráticos que
discutiam essa questão. O PT defendia os 4 anos, mas com o
presidencialismo, já que não eram parlamentaristas. Nós éramos
parlamentaristas, e cometemos um equívoco, ao não admitirmos,
em nenhum momento, e esse momento existiu, uma negociação
de manutenção do mandato presidencial tal como estava, nos
cinco anos, e uma discussão do sistema parlamentarista, depois
do final do mandato. Por conta desta pressão dos 4 anos, exercida pelo PT e de um certo patrulhamento, deixamos passar essa
oportunidade. Quando digo “nós”, refiro-me particularmente a
Mário Covas e a mim, que poderíamos, e tínhamos condições, de
32
Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
discutir muito o que devíamos fazer, já que éramos parlamentaristas, e não aproveitamos aquela oportunidade como devíamos,
de incentivar a discussão do parlamentarismo. Preferimos imaginar que iríamos ser vitoriosos no parlamentarismo e nos quatro
anos. Foi um grande equívoco nosso, porque se ganhássemos o
parlamentarismo podia o mandato presidencial ser até de sete
anos. Naquele momento, o debate estava atrelado à duração do
governo Sarney, de reduzir o seu mandato, o que era uma bobagem, não tinha nenhum sentido. Poderíamos ter dado os cinco
anos e ter feito um grande acerto, e quem sabe, o Brasil teria saído daquele processo com o parlamentarismo, e estaríamos, sem
dúvida alguma, muito melhores hoje.
C.V. – Mas isso tem muito a ver com a cultura da nossa sociedade e nossa própria formação histórica, quer dizer, em toda a
América Latina não temos experiência de parlamentarismo. Nenhuma.
R.F. – O Brasil teve uma boa experiência.
C.V. – No Império.
R.F. – Não, não... Tivemos uma pequena experiência nos
anos 1960. O grave é que nós, os comunistas, fomos contra o
parlamentarismo, e o derrubamos. Não conseguimos entender
nada. Foi um erro que cometemos no bojo da campanha da legalidade pela posse de João Goulart. Tancredo Neves articulou
um Ato Adicional para Jango assumir, porque os militares não
o aceitavam. Havia um clima de guerra civil no Brasil, rede da
legalidade, “reforma agrária na lei ou na marra”, essas coisas.
Na Constituinte, mesmo derrotados no parlamentarismo, conseguimos colocar nas disposições transitórias o plebiscito sobre
o assunto. Plebiscito que teve até um aspecto interessante, ao
anistiarmos os monarquistas, permitindo que eles apresentassem a Monarquia no plebiscito. Porque a República era cláusula
pétrea, ninguém podia falar contra a República nem apresentar
emenda contra ela.
33
II. Entrevista
C.A. – A República não é mais cláusula pétrea. A Federação
sim.
R.F. – Quando votamos o plebiscito nas disposições transitórias, ele ia antes da revisão constitucional, para já dizer que na
revisão iria entrar. O que aconteceu? Quando o governo Collor
começou a desandar, José Serra e Ulisses Guimarães conversaram com várias pessoas, comigo também, sobre a idéia de se
apresentar uma emenda constitucional antecipando o plebiscito,
não esperando os cinco anos, pois o governo Collor era de muita
instabilidade, e poderia ocorrer um impasse por causa das denúncias de corrupção, todo um quadro adverso, e o temor de um
retrocesso. Então, pensamos em fazer o plebiscito, e, admitindo
que ganhasse o parlamentarismo, qualquer problema que houvesse implantaríamos o parlamentarismo, decidido já em plebiscito.Tudo calculando que, se o impeachment não acontecesse,
teríamos o parlamentarismo aprovado pelo plebiscito. E o que
aconteceu? Conseguimos aprovar a emenda do José Serra, antecipamos o plebiscito, e ele se deu após o impeachment a Collor
ter ocorrido. Tal fato viabilizou a defesa dos presidencialistas ao
afirmarem: “Quando há um vagabundo na Presidência, o sistema
pode funcionar, porque se pode tirá-lo do exercício do poder”.
F.A. – Eram comportamentos do PT, do Brizola...
R.F. – PT, Brizola, e os conservadores da direita bem tradicional, Marco Maciel e todos os outros.
C.V. – Porque, na verdade, parlamentarista era o Partidão, e
até hoje somos parlamentaristas.
F.A. – E o PSDB.
R.F. – E o PSDB, cujo surgimento foi possível a partir da
idéia de que 40 parlamentares podiam fundar um novo partido.
O PSDB nasceu parlamentarista. E aí vem o grande drama brasileiro, pois tivemos Fernando Henrique Cardoso, um parlamentarista histórico, que passa oito anos no governo, e não propõe
nada, quando tinha tudo para fazê-lo! Em vez de propor a reeleição, deveria ter proposto um referendo de sua reeleição e do
parlamentarismo, ao final. E não fez nada. E aí estamos hoje pagando um regime imperial que tem trazido e ainda vai nos trazer
grandes problemas. E Fernando Henrique perdeu essa grande
34
Política Democrática · Nº 22
Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição
oportunidade histórica. Que fique registrado. E eu já lhe disse isso, pessoalmente. O PSDB não podia ter passado oito anos
no governo e não ter proposto a emenda parlamentarista. Quem
pensou isso e ainda tentou alguma coisa foi Franco Montoro.
C.V. – Foi o que eu disse, parlamentaristas somos nós...
R.F. – Somos nós, e eu vou sugerir ao José Serra que, se eleito,
em 2010, no seu primeiro dia de trabalho, proponha uma emenda
parlamentarista para 2014. Se um presidente da República fizer
essa proposta, não será apenas uma decisão do Congresso. No
Brasil, qualquer mudança dessas tem que ser por referendo, até
porque também essas mudanças de regime acontecem com rupturas, a não ser que um presidente da República faça a proposta
e trabalhe por ela. Ele pode ter força política no Congresso e na
sociedade para que seja aprovada.
35
III. Tema de Capa
20 Anos da
Carta de 1988
Autores
Marcello Cerqueira
Advogado, ex-deputado federal, ex-presidente do Instituto dos Advogados do Brasil e
Procurador-Geral da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.
Marco Mondaini
Historiador e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Shirley Nascimento
Assistente social e mestranda em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
José Carlos Arouca
Advogado, desembargador aposentado do Tribunal do Trabalho da II Região, membro
da Academia Nacional de Direito do Trabalho, do Instituto de Direito Social Cesarino Jr
e do Instituto dos Advogados do Brasil.
Batalhas para redigir e aplicar a
nova Constituição
Marcello Cerqueira
A
Para Betinho
ruptura com a extenuante ditadura militar de 64 foi feita através de negociações, como a anterior de 1946 (ruptura pactuada). O que a aproximou do modelo espanhol (transición pactada) e se afastou do modelo português (revolucionária, na origem).
Os setores mais avançados não queriam repetir o modelo anterior
e propunham, como se recorda, “Constituinte livre, soberana e exclusiva”. Livre se auto-explica e com “soberana” e “exclusiva” queria-se
dizer que ela não teria funções legislativas ordinárias e que se dissolveria após a promulgação do novo Texto, convocando eleições gerais.
A primeira questão que então se colocava para a OAB era a convocação da Constituinte, pois ela poderia definir, ou pelo menos fortemente orientar, seu modelo. Sabe-se que uma Constituinte só está
vinculada aos termos de sua convocação.
Nesse sentido, o então presidente da OAB nacional, advogado Herman Assis Baeta, levou ao ministro da Justiça Fernando Lyra os termos da entidade. O ministro encarregou o consultor jurídico do Ministério de redigir o caminho por onde deveria caminhar a convocação:
Simples projeto de lei ordinária de iniciativa do Executivo submeteria
ao Congresso Nacional a outorga de poderes constituintes aos representantes do povo eleitos em 1986. A lei daí resultante seria submetida a referendo popular. Evitava-se a convocação por Emenda Constitucional, já que a sistemática de sua aprovação exige quorum de
dois terços em ambas as casas do Congresso. Ora, em 1982, foram
39
III. Tema de capa – 20 Anos da Carta de 1988
eleitos um terço dos membros do Senado Federal que em sua maioria
gostariam de participar da Constituinte, embora não tivessem poderes
originários para tanto. A fixação do quorum de maioria simples contornaria esse obstáculo. Diferentemente, a hipótese de convocação por
meio de Emenda Constitucional, teria de conciliar-se com a pretensão
de Senadores residuais. (o texto original foi transcrito in Comentários
à Constituição Federal, de Eugênio Haddock Lobo e Julio Cesar do
Prado Leite, Edições Trabalhistas, Rio de Janeiro, 1989, p. 4).
Tal não se deu, e de certa forma embaraçou o passo dos trabalhos constituintes. É que naturalmente os interesses permanentes
de uma Assembléia Constituinte são diferentes daqueles que pressionam o Congresso no dia-a-dia.
De qualquer forma, a Constituinte foi promulgada e trouxe um
aporte significativo de direitos fundamentais e sociais ao mesmo
tempo em que seu texto, por demasiadamente analítico, incorporou
normas que mais bem seriam tratadas em leis ordinárias.
Mesmo a lei que criou a Petrobrás, por exemplo, alçada à norma
constitucional nem por isso viu protegida a integralidade do monopólio estatal do petróleo.
Pouco tempo após a sua celebração e a pretexto do fim do socialismo real, que teve a queda do muro de Berlim como seu ponto de
maior expressão e exploração, setores inconformados com os inegáveis avanços da Constituição de 1988 já reclamavam a “revisão”
dela brandindo dispositivo do Ato das Disposições Transitórias que
chamava a plebiscito o eleitor para decidir entre a forma de governo
(presidencialismo ou parlamentarismo) e a nostálgica volta ao passado com outro exótico Império nos trópicos. Isso, se o eleitor pudesse escolher entre um sistema desconhecido (o parlamentarismo com
vida efêmera com Jango) e a forte atração messiânica do presidencialismo. (Marx no VIII Brumário, ao comentar o golpe do II Bonaparte
[que de alguma forma aqui se reproduziria com a recandidatura de
Fernando Henrique], dizia que um parlamento eleito estava em relação metafísica com o povo, ao passo que o presidente eleito mantinha
com ele relação direta.)
Recorda-se que, presidente eleito, Tancredo Neves constituiu comissão de estudos para oferecer um anteprojeto de Constituição, que restou conhecida pelo nome de seu presidente, professor Afonso Arinos.
A Comissão Arinos inclinou-se para o semipresidencialismo (ou
o semiparlamentarismo) nos moldes já praticados na França desde
De Gaulle e em Portugal (mais mitigado) após Constituição nascida
40
Política Democrática · Nº 22
Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição
da Revolução dos Cravos (e que permanece, mesmo após as reformas
liberais que aproximaram o país da Comunidade Européia).
Já assumindo a curul presidencial e em face de divergências com
o texto Arinos, sobretudo com a adoção do semipresidencialismo, que
sugeria uma nova eleição para um novo governo, o presidente Sarney
limita-se a publicar o relatório Arinos no Diário Oficial da União e não
enviá-lo como proposta do governo para a nascente Constituinte.
Razoável que no projeto Arinos constasse a “medida provisória”,
que vai buscar raízes na “ordenanza” italiana, cultura tão a gosto
do saudoso professor. Só que, naquele contexto, a medida é expedida por um primeiro-ministro dependente do Parlamento que o
escolheu e a qualquer momento pode derrubá-lo com uma moção
de desconfiança.
Transplantá-lo para um regime presidencialista (forte), foi uma
insensatez da qual se paga o preço da desorganização legislativa e
mesmo do desequilíbrio entre poderes (Executivo versus Legislativo),
pedra angular do princípio de separação de poderes. O excesso de poderes do presidente da República enfraquece e desorganiza o Legislativo além de abrir passo para situações de exceção (como esse arremedo
de “estado policial” que ora se apresenta desenvolto e incontrolável).
II
Mal entrada em vigor e a nova Constituição já enfrentava a arremetida de setores conservadores dentro e fora do governo de então. Logo
em seguida, veio a investida do “Emendão” do governo Collor, que já
usara o remédio amargo da “medida provisória” para confiscar a poupança. Depois, cláusula perempta das Disposições Constitucionais
Transitórias seria ilegalmente ativada na pretensão inútil de operar
uma ambiciosa “revisão constitucional”, instituto, como se sabe, estranho ao Direito Constitucional brasileiro, que só reconhece o Poder
de Emenda ao seu texto.
A “revisão” seria convocada na forma do art. 3° do ADCT, mas
sua fonte material estava no anterior art. 2° do mesmo diploma. Ou
em outras palavras: na hipótese de o eleitorado sancionar o sistema
“parlamentarista” ou a “monarquia”, então a norma seria ativada,
mas apenas para compatibilizar o texto constitucional com a novidade (parlamentarismo e monarquia). Os demais dispositivos da Constituição restariam intocados.
41
III. Tema de capa – 20 Anos da Carta de 1988
A pretensão de votar uma “revisão” ampla da Constituição (uma
espécie de terceiro turno constituinte) iria esbarrar na dificuldade de
operar interesses que se repelem. No início, observou-se até uma certa euforia envolvendo setores que desejavam reformas para servir exclusivamente aos seus interesses. No curso dos debates, entretanto,
verificou-se a impossibilidade de agradar a todos. Naturalmente, uma
modificação atendia a uma parte, mas prejudicava outra, que, por sua
vez, entrava em conflito com uma terceira, e assim sucessivamente. A
reforma, aparentemente inovadora, é contida pelo conservadorismo.
O espírito que animou a Constituição parcialmente já deixou
seu corpo. As reformas mutilaram a Constituição brasileira. As vicissitudes políticas afastaram a prática da aplicação da Constituição dos ideais que a escreveram. A proposta da criação de um Estado Democrático de Direito fundado na soberania, na cidadania, na
dignidade, nos valores sociais do trabalho e no pluralismo político
foi substituída por um Estado liberal.
Os objetivos fundamentais da República, grafados no art. 3º da
Carta Magna, mais parecem agora motivo de triste ironia: construir
uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
A Constituição de 1988, para além de retomar e ampliar a ordem
democrática, antes ferida de morte pela ditadura militar, consolida
como direitos – e também os amplia – aquilo que era um misto de
conquistas populares e concessões das elites na esfera social. Ela
adiciona à cidadania civil e política a dimensão social.
Desde a Revolução de 30, um pacto não escrito, impregnado de contradições, a que não faltaram períodos demorados de autoritarismo,
dava curso a um projeto nacional. Seu conteúdo era a busca do desenvolvimento, às vezes acelerado, outras, lento. Mas sempre buscado.
A longa e penosa construção do pacto envolvia a coesão das mais
diferentes forças sociais e políticas. O conflito entre essas forças,
contudo, era menor do que o consenso na implementação do pacto.
Militares, por exemplo, desferem o golpe de Estado de 1964 de que
resultaria a longa e amarga ditadura. E mesmo assim, dão seqüência, em parte, a um projeto que antes era conduzido por seus adversários, embora os governos militares exacerbassem o lado perverso
do desenvolvimento capitalista no Brasil: a concentração de propriedade e de renda, que agravou a já secular discriminação social.
42
Política Democrática · Nº 22
Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição
A Constituição teria vindo para conduzir o mesmo processo, mas de
forma a reduzir os seus aspectos negativos. Afinal, uma nação efetivamente para todos. Essa utopia foi frustrada pelas “reformas” que,
mutilando o corpo da Constituição, afastaram seu espírito.
O desmanche do pacto constitucional produzido pelas forças do
mercado e seus subalternos operou-se em fraude à Constituição. A
acumulação democrática e social que o processo constituinte (constituição material) fez desaguar na Constituição em vigor é subtraída
pela vontade do governo federal conjugada à maioria congressual de
três quintos, que modifica o texto ao sabor dos interesses do mercado, de conveniências políticas casuísticas e, sobretudo, de insuportável pressão norte-americana.
No que respeita à soberania nacional, foram suprimidas da Constituição significativas normas de proteção à economia do país: controle da remessa de lucros do capital estrangeiro; conceito de empresa nacional; domínio da União sobre o subsolo; monopólio do
petróleo, monopólio sobre a pesquisa e a lavra de recursos minerais
e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica; monopólio
ou controle estatal sobre as telecomunicações. Tratou o texto constitucional de proteger a economia de aberturas tão insensatas quanto
apressadas, que afinal ocorreram, acentuando a dependência externa que o país terá enorme dificuldade de reverter. As privatizações
selvagens alienaram o patrimônio público e empenharam o futuro na
medida em que haveremos de sofrer indefinidamente a remessa para
o exterior de lucros de empresas que não exportam bens ou serviços.
No limite, a ameaça mais grave foi a tentativa de privatização dos
nossos rios, privatização que agora parece afastada. Os rios existem
sem hidroelétricas, mas estas não podem viver sem os rios. O ar, as
florestas e os rios não são bens do Estado e nem de particulares. São
bens públicos, constitucionalmente indisponíveis, são direitos difusos, pertencem a toda a população.
Quanto aos direitos do cidadão, sua dimensão dá bem a medida
do regresso a que o país continua, até hoje, sendo submetido.
Como se sabe, um dos grandes esforços dos socialismos desse século consistiu em desmercantilizar aspectos essenciais da relação de
trabalho. A educação universal e gratuita, o sistema público de saúde,
as várias formas de previdência e seguridade, consagraram direitos
que passaram a fazer parte significativa da remuneração do trabalho;
o mercado, ou seja, a força patronal, deixou de ser a principal reguladora do comportamento dos seres humanos enquanto trabalhadores.
43
III. Tema de capa – 20 Anos da Carta de 1988
Compatível com esses progressos da humanidade, a Constituição
de 88 consagrou esses direitos, especificamente em seu Capítulo II.
As “reformas” realizadas ou ainda em andamento e agora sob novo
patrocínio, objetivam reduzir ou suprimir esses direitos. Trata-se regressivamente de empreender um esforço global de remercantilização
das relações de trabalho.
Tornam-se mercantis as prestações de educação, a saúde pelo
sistema de seguro privado, a previdência comandada por fundos de
pensão, apenas para citar alguns exemplos. Os direitos sociais são
substituídos pelo perfil da demanda de serviços em um mercado em
expansão. O mesmo processo de encolhimento ocorre com a cidadania política.
As formas clássicas de supressão dos direitos políticos são as
ditaduras ou tiranias. Desgraçadamente, o nosso país experimentou
todas. Mas o neoliberalismo, oferece soluções mais sutis. Os anuários
políticos revelam que nunca houve um número tão grande de democracias liberais na história contemporânea como agora (excetuando
episódios em curso na França e na Itália). Para alguns comentadores, trata-se de uma avassaladora onda de democratização que
penetrou na América Latina, na África e nos antigos países do Leste
Europeu. Contudo, nunca a forma democrática esteve tão dissociada
da substância democrática que a ela dá vida.
A elite do poder busca impor um sistema político que se assenta
em chefias de governo identificado com a “globalização” predatória,
uma administração pública baseada em agências regulatórias que
a experiência de outros países nos permite afirmar que se tornam
independentes de tal forma que sobre elas não recaem controles de
qualquer natureza E, finalmente, um Poder Legislativo esvaziado de
suas atribuições, submetido ao garrote vil das medidas provisórias e
ameaçado por reforma partidária e eleitoral restritiva à soberania popular e a imposição da perda de mandato por “infidelidade partidária” imposta por um Judiciário ao qual falecem poderes para tanto.
III
A economia mundial se retrai e os novos romanos já demonstram
sinais de exaustão ao manter suas conquistas guerreiras no Iraque e
no Afeganistão. A chamada “Ata Patriótica” é o santo e a senha para
ampliar as perseguições em Guantánamo aos suspeitos de sempre e
também sempre em prejuízo das liberdades civis na América. O petróleo alcança preços inesperados e a carência de alimentos assombra o
mundo (“Um fantasma ronda a Europa ...”). Aqui em nossas praias,
44
Política Democrática · Nº 22
Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição
temos a constante ameaça à soberania da Amazônia e a Colômbia
de Uribe como ponta-de-lança dos interesses norte-americanos, já
agora respaldados pelo ressurgimento da desarquivada 4ª Frota. Internamente, a ação macarthista da Polícia Federal e do Ministério
Público, às quais setores do Judiciário se associam.
Releio o texto e verifico que imprimi a ele um tom pessimista,
longe do meu habitual ver e sentir o mundo e com isso pareceu-me
ter desconsiderado as conquistas democráticas e sociais que vieram
com a redemocratização e a Constituição em vigor. De certa forma,
ao realçar os recuos da Constituição posso passar a impressão de
que, longe de minha vontade, “anistiei”, por assim dizer, os que revogaram pela força a Constituição de 1946 os quais, entretanto, não
foram anistiados pelas sucessivas leis de anistia: é que a anistia não
foi recíproca e os torturadores, ou o que resta deles, não foram anistiados. Os subúrbios do autoritarismo se expressam não apenas nas
milhares de escutas policiais, muitas e muitas clandestinas, ou na
espetacularização das prisões sempre cobertas por uma rede de televisão, ou na “denúncia” do Ministério Público do Rio Grande do
Sul contra o MST, que procura restaurar procedimentos próprios da
ditadura militar, tentativa canhestra de repristinar a revogada lei de
segurança nacional do regime militar.
É claro que sonhamos com “a volta do irmão do Henfil” e devemos
render nossas homenagens aos que lutaram pela redemocratização
do país. E ficar alertas.
Vida que segue.
45
A Constituição e o início da
era dos direitos no Brasil
Marco Mondaini e Shirley Nascimento
O
ano de 1988 configura-se como um marco fundamental para
toda e qualquer análise que pretenda ser realizada sobre o
desenvolvimento dos direitos de cidadania nos últimos anos
da história brasileira. Então, há exatos vinte anos, foi promulgada a
Constituição que representa o ato de fundação (ou refundação) de um
país que teve raríssimos momentos de vida plenamente democrática, nos seus quase dois séculos de independência nacional. Chamada
pelo deputado federal Ulysses Guimarães – presidente da Assembléia
Nacional Constituinte eleita em 1986 – de “Constituição Cidadã”, a
nova Carta Magna inaugura, no Brasil, ainda que no plano formal,
uma autêntica “Era dos Direitos”, responsável pela afirmação inédita
de garantias tanto no plano individual, quanto no plano coletivo – no
campo civil e político, da mesma forma que no campo social.
Com isso, tem início entre nós um novo momento histórico, qual
seja, aquele marcado pelo nascimento de um Estado de Direito Democrático no Brasil.
É bem verdade que, nos países da Europa Ocidental e América
do Norte, esse Estado de Direito que acabara de nascer no Brasil já
havia completado, na pior das hipóteses, quatro décadas de existência, tendo sido concebido mais generalizadamente junto ao fim da
Segunda Guerra Mundial, em 1945. Assim, ainda que tardia, esta
nova configuração do Estado brasileiro é singularmente valiosa, pois
traz por meio da sua nova Constituição a oportunidade histórica de
livrar o país de um sombrio passado de regimes discricionários, a
exemplo dos horripilantes pesadelos representados pelo Estado Novo
varguista (1937-1945) e pelo regime militar (1964-1985) – ditaduras
diretamente responsáveis pela inclusão do Brasil no seleto grupo de
nações tristemente famosas por fazerem do desrespeito aos direitos
fundamentais da pessoa humana uma prática constante. Isto, ao
mesmo tempo em que vacinava o país contra quaisquer ameaças
autoritárias vindouras.
46
A Constituição de 1988 e o início da era dos direitos no Brasil
Dentro desse contexto, já no seu preâmbulo, a nova Carta Magna
expõe o intuito de servir como referência legal para a construção de
uma nova nação, assentada sobre os alicerces dos direitos humanos.
Tal fato se revela de maneira clara à medida que se afirma a intenção de se “instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança,
o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.
A partir de então, a República Federativa do Brasil passa a ser
definida como um Estado Democrático de Direito, por intermédio da
valorização de três princípios muito caros à tradição política liberaldemocrática: o pluralismo político, a separação dos poderes do Estado e a representação eleitoral. No entanto, se o fio condutor da
nova Constituição encontra-se localizado no pensamento liberal-democrático, isto não implica dizer que o ideário defendido pela tradição socialdemocrática tenha sido ignorado por completo, já que não
faltam referências, ainda mesmo na identificação dos seus princípios
fundamentais, às noções de participação e de combate às desigualdades sociais e regionais, o mesmo podendo ser afirmado em relação à tradição multifacetária presente nos assim denominados novos
movimentos sociais, pois que é explícita a referência ao objetivo de
promoção do bem comum sem qualquer espécie de preconceito de
origem, raça, sexo, cor, idade.
No campo dos direitos sociais, em particular, a grande inovação
formal trazida pelo texto constitucional consistiu na ruptura estabelecida com a tradição varguista de conceber a cidadania como uma
condição regulada pelo trabalho, ou seja, o acesso aos direitos de
cidadania deixa de depender da ocupação profissional do indivíduo.
A fim de que isso fosse feito, a seguridade social foi definida como
“um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e
da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social”, com base em três princípios fundamentais: universalidade, descentralização e participação.
O desencontro entre o legal e o real
No plano legal, é indiscutível o fato de que, por intermédio da
Constituição promulgada em 1988, o Brasil conseguiu concretizar o
desejo que há muito pairava no horizonte das mais diversas forças de
47
III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988
vanguarda democrática, reconhecendo formalmente o que havia de
mais avançado nas esferas dos direitos civis, políticos e sociais.
Porém, se a Constituição de 1988 conseguiu reavivar de fato a
liberdade perdida durante os 21 anos de ditadura militar, o mesmo
não pode ser afirmado em relação à igualdade, pois a questão social,
com o seu complexo conjunto de implicações, permanece não resolvida satisfatoriamente até os dias atuais. Por esta razão, durante os
vinte anos que nos separam da entrada em vigor da nova Carta Magna, o Brasil viveu intensamente a dicotomia entre o que está posto
no plano legal e o que é vivenciado por seus concidadãos no campo
do real.
É inquestionável o fato de vivermos hoje no Brasil sob uma forma democrática de Estado garantidora dos procedimentos centrais
que possibilitam a expressão da vontade popular. No entanto, se a
liberdade de expressão e o direito universal ao voto foram conquistados na sua plenitude, muito ainda há de ser feito a fim de que a
democracia brasileira não se limite apenas à forma, passando a ser
também preenchida de conteúdo. Isto porque a desigualdade social
continua a se fazer presente entre nós de maneira alarmante, não
obstante os tímidos sinais de redução sentidos nos últimos dez anos.
O conjunto dos indicadores sociais brasileiros fala quase por si só a
esse respeito: as elevadas taxas de desemprego e trabalho informal,
de um lado, e o crescimento vertiginoso da violência urbana e rural,
de outro lado, podem muito bem ser vistos como as duas pontas do
mesmo gigantesco iceberg da iniqüidade nacional.
No decorrer das duas últimas décadas, o país amadureceu politicamente a ponto de ter sido capaz de afastar um presidente eleito
(Collor) de maneira legal, dentro dos quadros institucionais. Assim,
por meio de uma onda de manifestações que trouxeram à memória
o movimento pelo restabelecimento das eleições para presidente, em
1984 (o Diretas Já), os brasileiros, principalmente os mais jovens,
pressionaram o Congresso Nacional a abrir um processo de impedimento contra um político que, de arauto da moralidade durante
a campanha eleitoral, se revelara responsável pela edificação de um
esquema de corrupção absolutamente vergonhoso.
Além disso, por meio das lutas, nem sempre razoáveis do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a nação tomou
conhecimento da sofrida realidade vivida no campo brasileiro por
uma massa de seres humanos completamente alijados do mundo
dos direitos, uma realidade resultante diretamente da situação de
extrema concentração fundiária, característica do nosso meio rural.
48
Política Democrática · Nº 22
A Constituição de 1988 e o início da era dos direitos no Brasil
Com isso, tanto no campo indireto da representação, como no campo
direto da participação, a democracia brasileira parece ter amadurecido bastante. Isto, a ponto de não ser considerada mais absurda a
hipótese de as instituições nacionais terem se fortalecido o suficiente
para tornarem coisa do passado a tradição de resolução das crises
políticas por intermédio de golpes de Estado.
Sem dúvida, as ameaças à jovem democracia brasileira não se encontram localizadas no plano estritamente político e sim na área social. Mais especificamente, na crônica insistência em não se resolver
o problema da extrema concentração de riquezas em nosso país, com
todos os males daí decorrentes. Dessa forma, a carência de igualdade
acompanhada de suas inúmeras conseqüências poderá destruir a
própria liberdade alcançada no decorrer dos últimos vinte anos.
Infelizmente, isso não se trata de uma previsão. A restrição a uma
vida livre já se apresenta como uma constatação do dia-a-dia. Não no
campo político, mas sim no civil. Dito de forma direta: a falta de conteúdo social da democracia brasileira poderá minar as bases daquilo
que foi arduamente conquistado em termos políticos.
Em virtude do assustador crescimento da violência urbana (e,
também, da continuidade da crônica violência que assola o campo),
os cidadãos brasileiros têm visto o direito à segurança individual
ser negado cotidianamente, numa seqüência de atos que coloca em
xeque a capacidade do Estado para se fazer presente no seu tradicional papel de detentor do monopólio da coerção física. A sensação
de insegurança cresce na exata medida em que o Estado se apresenta cada vez menos capaz de garantir a ordem pública democrática,
mantendo-se responsável pela realização da justiça, por intermédio
das forças policiais (civil e militar) e do Poder Judiciário – fato que
acaba por gerar um questionamento sobre a sua própria legitimidade
para desempenhar as funções de justiça, dando forma a um verdadeiro círculo vicioso.
Para o crescente descrédito da população em relação à capacidade do Estado brasileiro ser o artífice da justiça, colaboram três
constatações principais realizadas por qualquer cidadão comum. Em
primeiro lugar, em função da grande impunidade dos crimes de colarinho branco, a constatação de que a justiça está do lado dos mais
ricos, já que os mesmos quase nunca são devidamente punidos. Em
segundo lugar, mediante a observação do público que compõe a atual
população carcerária e dos assassinatos diários de moradores – principalmente jovens – das favelas e periferias, a constatação de que a
Justiça pune, em número significativamente maior, os mais pobres,
49
III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988
seja com ou sem o respaldo legal. Em terceiro lugar, devido ao crescimento avassalador das ações de grupos como o Comando Vermelho
(no Rio de Janeiro) e do PCC (em São Paulo), a de que a justiça não é
capaz de fazer frear o avanço das organizações criminosas e do banditismo em geral.
Com isso, para a maioria da população brasileira, uma inquietante conclusão não pode deixar de ser tirada: a de que os órgãos
responsáveis pela afirmação e defesa da justiça em nosso país são
completamente injustos. É possível que o exemplo mais contundente do caráter injusto de tais órgãos encontre-se localizado na série
de chacinas praticadas por forças policiais contra membros das camadas subalternas da sociedade, no decorrer dos anos noventa: o
fuzilamento dos 111 presos na Casa de Detenção do Carandiru, em
São Paulo, no ano de 1992; as chacinas de Vigário Geral, com 21
moradores mortos, e da Candelária, com 7 menores assassinados,
no Rio de Janeiro, respectivamente em 1992 e 1996; e o massacre
de 19 trabalhadores rurais sem-terra, no Pará, em 1996. Reunidos,
esses fatos assinalam o quanto a violência policial contra os cidadãos
comuns continua sendo uma prática rotineira, mesmo o Brasil tendo
deixado de ser um regime ditatorial, tornando-se um Estado Democrático de Direito.
Para além disso, cotidianamente, nos deparamos com notícias
que demonstram o não aggiornamento das policias civil e militar em
relação ao novo tipo de Estado comprometido com o respeito, garantia e proteção dos direitos humanos, o qual, somado ao forte despreparo operacional dos seus agentes nos mais diferentes estados do
país, resultam numa série de atitudes arbitrárias e, por vezes, desastrosas, praticadas por aqueles que deveriam garantir a segurança
pública da população e que, por não conseguirem agir com êxito,
nesse sentido, provocam exatamente o contrário: o crescimento da
sensação de medo e insegurança já existente em função do avanço
da criminalidade.
Não bastasse isso, o Poder Judiciário continua a ser, em grande
medida, um poder inacessível para a grande maioria da população,
não obstante as iniciativas de democratização do acesso à justiça,
como, por exemplo, a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais e a expansão da Defensoria Pública. No geral, porém, a prestação jurisdicional no país continua a ser excessivamente cara e lenta.
Tal déficit de justiça responsável pela crise que atravessa os direitos
civis atualmente no Brasil encontra-se intimamente associado a uma
ordem de questões mais amplas, situadas, por um lado, nos fundamentos sociais da estrutura capitalista brasileira e, por outro lado,
50
Política Democrática · Nº 22
A Constituição de 1988 e o início da era dos direitos no Brasil
nas opções econômicas realizadas nas duas últimas décadas por sucessivos governos eleitos democraticamente.
Dito de outra maneira, a selvageria do capitalismo brasileiro – um
capitalismo dependente, enraizado historicamente na tradição ibérica patrimonialista – ganhou dimensões ainda mais brutais em virtude das escolhas feitas no plano das políticas econômicas, isto é, a
adoção do receituário imposto por um liberalismo econômico renascido das cinzas na passagem dos anos setenta para os anos oitenta, nos países do capitalismo central, em especial, a Inglaterra e os
Estados Unidos. A fundamentar esse neoliberalismo, encontra-se o
pressuposto central de que cabe ao mercado o papel fundamental de
gestão da economia, o que traz como corolário a diminuição drástica
das funções socioeconômicas desempenhadas até então pelo Estado,
isto é, seja na sua versão européia (o Estado de Bem-Estar Social),
seja na sua versão latino-americana (o Estado Desenvolvimentista),
o Estado deveria se tornar mínimo.
Ora, a grande contradição que nos assola, desde o ano de 1988,
encontra-se justamente relacionada ao fato de termos uma legalidade constitucional que traz em si a exigência de um Estado atuante,
de um lado, e uma realidade político-econômica que se fundamenta
na necessidade oposta da retirada do Estado, de outro lado. Será
exatamente dessa grave contradição entre “uma legalidade constitucional progressista” e “uma realidade político-econômica conservadora” que advirá tanto a atual crise social, como grande parte dos
nossos conflitos sociais. Os resultados não poderiam deixar de ser
outros senão uma cidadania aviltada. O Brasil continua sendo um
dos maiores PIBs (Produto Interno Bruto) do planeta, mantendo-se,
também, entre os primeiros colocados na infame competição pelo
título de campeão mundial de desigualdade social.
A situação de recesso dos direitos sociais se dá por todos os setores, ainda que com mais gravidade na região Nordeste e entre negros
e pardos, tendo as suas expressões mais visíveis no crescimento do
desemprego, do trabalho informal e das inúmeras formas de trabalho
precarizado, incluindo-se aí o trabalho infantil e, até mesmo, o trabalho escravo. Na Educação, o crescimento do número de matrículas
no ensino fundamental não consegue encobrir os altíssimos índices de reprovação e de analfabetismo funcional ainda existentes. Na
Saúde, a visão não é menos apavorante, apesar da implantação do
SUS (Sistema Único de Saúde), sendo a falta de leitos disponíveis e
as filas para atendimento clínico e emergencial uma perversa rotina.
Na Previdência Social, as sucessivas reformas levadas a cabo pelo
governo FHC limparam o terreno para o avanço dos planos de previ51
III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988
dência privada, com a justificativa de redução do déficit do sistema
previdenciário público.
De maneira esclarecedora, os grandes progressos realizados na
área das garantias sociais deram-se no campo da Assistência Social,
por meio da expansão dos programas sociais de caráter compensatório, dos quais o Bolsa Família implementado pelo governo Lula é o
mais famoso.
Mas, até quando, o tecido social brasileiro suportará a ausência
de trabalho formal com a compensação assistencial?
Um caminho para o encontro entre o legal e o real
Não são poucas, muito menos de fácil solução, as tarefas necessárias para que o Brasil tenha não apenas uma “Constituição
Cidadã”, mas que seja de fato uma “Nação Cidadã”, na qual todos
os seus habitantes sejam reconhecidos como portadores de direitos
(cidadãos) e não apenas como simples habitantes de um território
(citadinos). No entanto, se são muitas as tarefas a serem realizadas,
um princípio norteador não pode deixar de ser apontado, com risco
de nos perdermos em meio à difícil luta contra o déficit de cidadania
que caracteriza a sociedade brasileira: a construção de um espaço
público solidamente republicano e radicalmente democrático.
Para que esse caminho seja trilhado, em primeiro lugar, é preciso
fazer com que o ideal republicano de prevalência da coisa pública se
afirme plenamente, neutralizando a chaga colonial patrimonialista,
que insiste em se fazer presente confundindo os espaços público e
privado, por intermédio da utilização do primeiro em benefício do
segundo. Esse hábito herdado de nosso passado colonial do uso privado da coisa pública enraizou-se de tal maneira no Estado e na sociedade brasileiros, que a própria idéia clássica de cidadania ganhou
entre nós um sentido próprio, marcado pela confusão quase generalizada entre o que é próprio do ambiente doméstico-familiar e o que
é específico do Estado.
Em conseqüência de tal noção pessoalizada de cidadania, é que se
fazem presentes no nosso cotidiano, como se fosse algo perfeitamente
normal, expressões como “sabe com quem está falando”, “aos amigos
tudo, aos inimigos a força da lei”, “QI – quem indica” etc. E o Fernando Henrique perdeu essa oportunidade histórica. Que fique registrado. E eu já lhe disse, pessoalmente, que ele perdeu essa grande
oportunidade histórica. O PSDB não podia ter passado oito anos no
governo e não ter proposto a emenda parlamentarista. Quem pensou
52
Política Democrática · Nº 22
Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição
isso e ainda tentou alguma coisa foi Franco Montoro., que só fazem
comprovar a tremenda incompreensão em relação à idéia de cidadania
existente no Brasil, até mesmo quando pensada apenas nos termos da
igualdade formal perante a lei, já que, por aqui, se todos são formalmente iguais como cidadãos, alguns privilegiados são realmente muito
mais iguais do que outros em virtude das suas relações pessoais.
Em outras palavras, a cidadania patrimonialista brasileira é exatamente aquela na qual as relações de caráter privado se impõem
sobre as de caráter público, ou seja, entre nós, são as relações de
conhecimento – parentesco e amizade – que servem de princípio articulador da idéia de cidadania e não o critério da impessoalidade.
Assim, a fim de que uma cidadania autenticamente republicana – direcionada para a realização do interesse público por meio de critérios
absolutamente impessoais – possa se afirmar no Brasil, é urgente a
eliminação deste passado que insiste em não passar, este passado
que se reatualiza continuamente fazendo-se presente de forma crônica: o passado patrimonialista.
Em segundo lugar, é necessário que se implemente uma decidida
oposição ao projeto neoliberal de ampliação dos espaços privados em
detrimento dos públicos, oposição esta não apenas à sua apologia de
uma economia de mercado, mas também, o que é muito mais grave,
ao seu desaguar extremado em uma sociedade de mercado. Se a idéia
de um Estado mínimo que não se intrometa nos negócios do mercado
já representa um retrocesso no campo dos direitos, principalmente
aqueles sociais, a noção de uma sociedade regulada pelos princípios
mercadológicos do lucro e da competição assinala um verdadeiro passo atrás em termos civilizacionais, já que torna francamente possível
a abertura das portas a um processo de mercantilização completa de
todos os valores e relações presentes na vida social.
Infelizmente, dois sinais óbvios desse processo de mercantilização
da sociedade já são percebidos claramente em curso na atualidade –
uma lamentável constatação que só vem reforçar a urgência da resistência a ela. De um lado, a redução da idéia de cidadania ao campo do
consumo, fazendo com que o ato de ser cidadão represente apenas e
tão somente a ação de poder consumir e ter direitos de consumidor.
De outro lado, a transformação da própria política em instrumento
de troca, fato que tem a sua face mais aberrante na relação de compra
e venda de votos de deputados e senadores levada a cabo na rotina dos
trabalhos parlamentares. Ademais, não se pode esquecer do simbolismo presente na entrega da responsabilidade pela direção das campanhas eleitorais de praticamente todos os partidos políticos aos espe53
III. Tema de capa – 20 Anos da Carta de 1988
cialistas em marketing, uma inovação que faz com que o debate plural
acerca dos projetos de sociedade e\ou governo passe a ser substituído
pela apresentação de candidatos como se fossem produtos expostos à
venda numa prateleira qualquer de shopping center.
O que se pretende afirmar com isso, em suma, é que, com a introdução do ideário neoliberal, o Brasil – e não apenas o Brasil, mas
o sistema capitalista como um todo – passa a vivenciar a submissão
da própria política (entendida como espaço de afirmação do interesse público) aos ditames da economia (entendida como afirmação do
interesse privado).
Assim, concluímos pensando ser na esteira dessa dupla batalha
contra o passado patrimonialista e contra o presente neoliberal, que
o “Brasil legal” e o “Brasil real” poderão finalmente se encontrar, fazendo com que de tal encontro surja uma nação integrada, com cidadãos de um único país, sem fraturas internas. Não mais uma bizarra
mistura entre Bélgica e Índia (uma “Belíndia”), formada por cidadãos
incluídos (os “belgas”) e cidadãos excluídos (os “hindus”), mas uma
nação chamada apenas de Brasil, composta por cidadãos plenos, na
liberdade e na igualdade – os brasileiros.
54
Política Democrática · Nº 22
A Carta de 88 e a questão sindical
José Carlos Arouca
A
origem de nossa legislação sindical não é boa. Formou-se com o
Estado Novo, cópia do fascismo de Mussolini, juntamente com
a Justiça do Trabalho, para substituir os sindicatos na solução
dos conflitos coletivos. Por isso mesmo, proibiu-se a greve. O modelo
corporativo prendia-se à intervenção do Estado no domínio econômico
e o sindicato assumia papel de seu auxiliar para que “a economia da
população” fosse “organizada em corporações, e estas, como entidades representativas das forças do trabalho nacional, colocadas sob a
assistência e a proteção do Estado, como órgãos destes”, exercendo
“funções delegadas de Poder Público”. Foi com esta roupagem que, em
1943, entrou como Título V da Consolidação das Leis do Trabalho.
Nossa primeira lei sindical, no começo do século XX, atendeu
proposta da Igreja Católica que pregava a união do capital e do trabalho no campo – afinal o Brasil era um país essencialmente agrícola. Um decreto de 1903 adotava a forma de organização de trabalhadores e empregadores rurais, para o estudo, custeio e defesa
de seus interesses. Era muito mais uma corporação cooperativa do
que sindical. Seguiu-se o decreto de 1907, com a mesma origem e
natureza, abrindo seu alcance para todos os trabalhadores, inclusive profissionais liberais, mas sem mudar o âmbito de representação
das duas “classes antagônicas”.
Getúlio Vargas chegou ao poder em 1930 e criou o Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio para administrar a questão social.
Em 1934, a Constituição assegurou a pluralidade sindical e a autonomia dos sindicatos, mas pela metade. A experiência teve pequena
duração e minguados efeitos. O sistema só permitia dois sindicatos
para um mesmo grupo em idêntica base e a tutela ministerial não
foi afastada. A pluralidade serviu apenas para abrir espaço para a
representação classista no Congresso e na Justiça do Trabalho, considerada “a gênese do peleguismo”.
Com o manto ideológico do Estado Novo, denominação pomposa
para a ditadura de 1937, veio um decreto-lei de 1939, disciplinando
o sindicato como órgão de colaboração com os poderes públicos no
desenvolvimento da solidariedade das profissões e de sua subordi55
III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988
nação aos interesses nacionais. Quanto à Justiça do Trabalho foi
recriada com poder normativo para resolver os conflitos trabalhistas,
até porque a greve era proibida.
O sistema atravessou a Constituição democrática de 1946, que
se limitou a dizer no art. 159, que a associação sindical era livre,
transferindo para a lei ordinária sua constituição, a representação
legal nas convenções coletivas e o exercício de funções delegadas
de Poder Público, redação que se repetiu na Constituição de 1969
imposta pelos militares. Finalmente, a Constituição de 1988, no art.
8°, assegurou a mais ampla autonomia conjugada com a unicidade
de representação.
A situação presente
A organização sindical disciplinada no Título V, da CLT, deve,
hoje, necessariamente, ser aplicada atentando-se para as normas
constitucionais democráticas, de modo a desprezar o que com ela
não se compatibiliza. Quanto à liberdade sindical, o inciso V, do art.
8°, da Constituição, deu ênfase à liberdade individual, mas negativa
de filiação a sindicato e desligamento a qualquer tempo. Todavia, a
liberdade positiva, não só de ingresso, mas de participação nas assembléias e campanhas, de votar e ser votado constitui expressão
da cidadania e vem posta no inciso II que, apesar de sua redação
defeituosa, atribui aos trabalhadores ou empregadores interessados
a definição da base territorial de suas organizações sindicais e, portanto, também de sua representação.
No tocante à autonomia sindical, a disciplinação da CLT transportou para os arts.514, “a”, e 581, “c”, a natureza dada aos sindicatos
de órgãos de colaboração com os poderes públicos, sujeitos à tutela
exercida pelo Ministério do Trabalho mediante controle autoritário e
repressivo. A representação teria que se ater ao quadro casuístico de
atividades e profissões, distribuídas em planos de confederações, um
dos empregadores, outro, correspondente, dos trabalhadores, isolados os profissionais liberais e trabalhadores autônomos, e excluídos
os rurais e servidores públicos.
Possível hoje a definição da atividade empresarial ou do grupo
profissional livremente, tendo-se presente apenas o princípio da razoabilidade, que não é observado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, provocando o notável inchaço da estatística divulgada pela
imprensa para descrédito do sistema. O enquadramento sindical, individual e coletivo, era resolvido por uma comissão tripartite, na qual
56
Política Democrática · Nº 22
A Carta de 88 e a questão sindical
o peso da bancada governamental era decisivo, além do que possuía
o ministro de Estado poder para avocar e decidir qualquer processo.
O procedimento eleitoral, por sua vez, era regido segundo instruções expedidas pelo Ministério tutelar que, de resto, tinha competência para homologar o resultado do pleito. O Ministério controlava
também a gestão financeira, impondo que a contabilidade seguisse
suas instruções e modelos. A repressão ocupava toda a seção VIII,
sob o título Penalidades, indo desde multa até fechamento da entidade, passando pela suspensão e destituição de seus diretores.
A ingerência do Estado, na atuação interna dos sindicatos, confundia-se com o controle político, não sendo permitida a pessoas
estranhas qualquer interferência na sua administração ou nos seus
serviços, excetuados, naturalmente, os delegados do Ministério do
Trabalho, além do que, proibia-se qualquer propaganda de doutrina
incompatível com as instituições e os interesses da nação, de candidatura a cargos eletivos estranhos ao sindicato, e atividades que destoassem das permitidas: estudo, defesa e coordenação dos interesses
profissionais ou econômicos, finalmente, cessão gratuita ou remunerada da respectiva sede à entidade de índole político-partidária.
O art. 565 só admitia filiação às organizações internacionais mediante autorização do presidente da República e o art. 565 vedava o
exercício de atividade econômica. Quanto à primeira situação, hoje, é
livre e comum. CUT, Força Sindical e CGT ligaram-se à Confederação
Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL), próxima do
sindicalismo americano, a CAT compunha o quadro da Confederação
Mundial do Trabalho (CMT), católica, e a CGTB, da Federação Sindical Mundial (FSM), socialista, quase extinta. No final de 2006, em
Congresso realizado na Áustria, CIOSL e CMT fundiram-se na CSI,
Confederação Sindical Internacional. CUT, Força Sindical e a UGT
participam do seu Conselho. Quanto à segunda, apesar da autonomia amplíssima, poucos sindicatos foram seduzidos.
A Constituição de 1988 escreveu no art. 8° ser livre a associação
profissional ou sindical, especificando no inciso I que a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização
sindical.
Excetuada, portanto, a organização com base no sistema de unicidade, isto é, um único sindicato para um mesmo ramo de atividade
em idêntica base territorial, no mais, a autonomia atende o que se
contém na Convenção n° 87, da OIT, que não foi ratificada pelo Brasil, ou seja, o direito de constituir, sem autorização prévia organiza57
III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988
ções conforme a escolha dos interessados, bem como o direito de se
filiar a elas, de elaborar seus estatutos e regulamentos administrativos, de eleger livremente seus representantes, de organizar a gestão
e a atividade e de formular o programa de ação, vedada a dissolução
ou suspensão pela via administrativa. Para grande parte dos teorizadores, o Brasil não poderá ratificar a Convenção enquanto mantiver
o regime de sindicato único e a contribuição sindical compulsória.
Os governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique Cardoso,
através de seus ministros do Trabalho, apenas pensaram modernizar as relações coletivas de trabalho sacrificando a trindade maldita:
unicidade, contribuição compulsória e solução arbitral dos conflitos
pela via jurisdicional. Já no governo Lula, o Ministério do Trabalho
cuidou de retomar o controle das organizações sindicais, restringindo
a autonomia. Começou com o ministro Ricardo Berzoini (PT-SP) que,
sem competência para tanto, quis regulamentar o inciso IV do art. 8º
da Constituição e editou uma portaria para disciplinar o desconto da
contribuição dita assistencial. O STF impediu o atrevimento, mas o
ministro não se conteve e partiu para o recadastramento das entidades já registradas, num processo de re-reconhecimento: só passava
quem se ajustasse às exigências dos técnicos ministeriais.
Saiu o PT e entrou o PDT de Brizola; Lula trocou Berzoini por
Carlos Lupi e veio a Portaria nº 282, de abril de 2007, instituindo o
Sistema Mediador ou o registro de acordos e convenções coletivas,
mediante depósito eletrônico, via internet. Só que foram ressuscitados os “analistas”, com a missão de avaliar o que as assembléias
aprovaram e decidir o que podia ou não podia figurar num instrumento normativo; foi a volta do art. 614 que dava ao ministro do
Trabalho poder para homologar os acordos e convenções negociados
e ajustados para resolver conflitos coletivos; só para empubescer o
ministro e sua equipe, a troca da homologação pelo simples registro
foi obra da ditadura militar, decreto-lei 229 de 1965. E veio a Portaria nº 186, de abril de 2008, dirigida para ordenar o registro sindical.
Em suma, a autonomia cantada em estudos sérios perdeu, pouco a
pouco, sua força, justo no atual governo, composto, em sua grande
maioria, por quem mais a defendeu.
Quanto ao registro, distinguem-se, na Constituição de 1988, associação civil e sindical, ficando reservado para esta tratamento específico no art. 8°, enquanto a primeira teve disciplinação no art. 5°,
incisos XVII a XXI. No inciso I, ficou ressalvada a obrigatoriedade do
registro no órgão competente, sem especificá-lo. O Superior Tribunal de Justiça, todavia, entendeu que “a Constituição Federal erigiu
como postulado a livre associação profissional e sindical, estabele58
Política Democrática · Nº 22
A Carta de 88 e a questão sindical
cendo que a lei não pode exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvando o registro no órgão competente, vedada
ao Poder Público a intervenção na organização sindical”.
Com a redemocratização tardia e desatrelamento da tutela estatal, mesmo assim, cada ministro expediu pelo menos uma instrução
normativa para disciplinar o registro. A última foi de todas a pior,
editada na gestão de Carlos Lupi (PDT-RJ), extravasando os desmandos do ministro anterior, a ponto de ser assumidamente ilegal
e inconstitucional, no propósito de recuperar o poder de tutela perdido, passando por cima do inciso XIX do art. 5°, da Constituição,
para permitir a suspensão do registro sindical de federações e pior de
tudo, atropelando o inciso II do art. 8°, e instituiu a pluralidade nos
órgãos de grau superior da organização sindical. As confederações de
trabalhadores e patronais responderam ajuizando ações diretas de
inconstitucionalidade. As centrais silenciaram.
No que diz respeito à estrutura, tanto a Constituição de 1946
como a de 1967 permitiam que a lei ordinária adotasse o regime de
sindicato único ou de pluralidade organizativa. Assim manteve-se o
art. 516, da CLT, pois o inciso II, do art. 8°, da Constituição de 1988,
optou pelo primeiro, vedando a criação de mais de uma organização
sindical, em qualquer nível, representativa de categoria profissional
ou econômica na mesma base territorial. O inciso IV, de outra parte,
instituiu o sistema confederativo de representação sindical. As confederações de trabalhadores e de empregadores perderam espaço com
o crescimento das centrais e, por isso, uniram-se e conseguiram, na
Assembléia Constituinte, a inclusão no dispositivo que tratava da
fonte de custeio dos sindicatos, do sistema que assegurava sua continuação. Com isto, as centrais ficaram de fora, mesmo existindo de
fato, com reconhecimento do Estado que as preferia para formar os
colegiados de composição paritária.
As centrais não tinham existência legal, mas também não assumiram natureza sindical, constituídas num ambiente de pluralismo. Em 1983, foi fundada a Central Única dos Trabalhadores
(CUT); em 1986, a Central Geral dos Trabalhadores (CGT); em 1991,
a Força Sindical (FS), tendo em 1996 sua primeira dissidência, a Social Democracia Sindical (SDS); em 1994, surgiu a Central Autônoma dos Trabalhadores (CAT); em 1997, a União Sindical Independente (USI). As confederações reagiram e, em 2005, se organizaram na
Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST); em 2006, mesmo
não se assumindo como central, a Coordenação Nacional de Lutas
(Conlutas) se constituiu como dissidência da CUT; no início de 2008,
a CGT, SDS e CAT, com dissidentes da Força Sindical, fundiram-se
59
III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988
formando a União Geral dos Trabalhadores (UGT). Nesse ano, a Corrente Sindical Classista (CSC), desligou-se da CUT para se transformar na Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB).
O sistema confederativo inicialmente tinha estrutura vertical e
triangular, formado por sindicatos na base, federações no meio e
confederação no vértice, num regime de unicidade de categorias, as
profissionais em correspondência às econômicas. Tardiamente, só
em 2008, a Lei n° 11.648, de 31 de março, reconheceu as centrais,
plurais, como entidades de representação geral dos trabalhadores
em âmbito nacional.
Os sindicatos, por sua vez, em número de pelo menos cinco, organizam-se em federações, para a coordenação de seus interesses, em
nível estadual como regra, podendo, também, ter base interestadual
e até nacional. Já as federações, com número mínimo de três podem
organizar-se em confederações de âmbito nacional. Perderam eficácia os parágrafos do art. 535, de modo que além das confederações
nomeadas, outras podem ser criadas, como de fato ocorreu, inclusive
do ramo da agricultura.
No que se refere à área geográfica mínima de representação do
sindicato deve corresponder a de um município, como exige o inciso
II do art. 8° da Constituição. Deste modo, não se permite o sindicato
por empresa. No regime da CLT, o ministro do Trabalho outorgava e
delimitava a base territorial, agora a teor do texto constitucional, cabe
aos trabalhadores e empregadores interessados definir a base territorial de suas organizações de classe. Os sindicatos podem ter extensão
municipal, intermunicipal, estadual, interestadual e nacional.
A representatividade do sindicato tem a ver com a sua legitimação para assumir natureza sindical. Representação, de outra parte,
constitui o núcleo abrangido. O art. 8° da Constituição, no inciso III,
atribui ao sindicato a defesa de direitos individuais e interesses coletivos da categoria considerada como um todo. Por isso, a representação é ampla e vai além do quadro associativo. Os interesses coletivos
são definidos na assembléia e defendidos em negociações coletivas,
como forma de auto-tutela, servindo, para tanto, a greve.
A receita das organizações sindicais é constituída basicamente
pelas contribuições de sócios e sindical. A chamada “mensalidade”
ou taxa associativa é fixada livremente pela assembléia geral e seu
pagamento regular assegura aos sócios o exercício dos direitos estatutários, inclusive de votar e ser votado, além de acesso aos serviços
mantidos. O desconto será feito em folha, pelo empregador e por ele
recolhido ao sindicato, desde que o trabalhador assim autorize.
60
Política Democrática · Nº 22
A Carta de 88 e a questão sindical
Já a contribuição sindical teve como modelo a Carta del Lavoro,
significando o poder de tributação dado ao sindicato. A contribuição,
ex-imposto sindical, foi inserida na Constituição de 1988 diante da
pressão das confederações patronais e de trabalhadores. Uma diária/
salário, a cada ano, descontada em folha no mês de março e recolhida até final de abril, tratando-se de trabalhador assalariado; se
avulso, o recolhimento será feito no mês de abril, se autônomo ou
profissional liberal, corresponderá a 30% do maior valor de referência, recolhida diretamente em fevereiro, podendo este, quando empregado, optar pelo pagamento em função do exercício da profissão.
Quanto aos empregadores, o valor corresponde a alíquotas de 0,8% a
0,02% incidentes sobre o capital social, conforme tabela progressiva,
com recolhimento em janeiro. O projeto de lei do governo Lula, reconhecendo as centrais sindicais, amparou-as financeiramente com a
transferência da quota da contribuição sindical que ia para o Ministério, nada menos do que 10% do rateio.
A Constituição, no art. 9°, garantiu aos trabalhadores o direito
amplo de greve para a defesa dos interesses coletivos definidos na
assembléia geral, desde que assegurado o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. A regulamentação veio com a Lei
nº 7.783 de 1989, definindo como tais aquelas que não sendo atendidas, colocam em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a
segurança da população.
O Estado Democrático de Direito tem como sustentação, dentre
outros pilares os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. O
regime político cuida de apaziguar o conflito entre capital e trabalho
reconhecendo os acordos e convenções coletivas, como tratados de
paz, frutos de negociações entre sindicatos profissionais e patronais
ou entre os primeiros com uma ou mais empresas, objetivando novas
condições de trabalho. Os sindicatos de trabalhadores, diante do que
estabelece o inciso VI do art. 8°, detêm o monopólio das negociações
coletivas, o que não se dá com os patronais diante da previsão do
art. 7°, inciso XXVI, que reconhece, também, os acordos coletivos
negociados diretamente com empresas. A assinatura do acordo ou
da convenção supõe autorização da assembléia dos interessados, a
qual, também, definirá os interesses a serem defendidos nas negociações coletivas.
Importante acentuar que as condições fixadas não poderiam ser
contrariadas na celebração de contratos individuais, prevalecendo,
quando as mais favoráveis se confrontassem acordos e convenções. No
61
III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988
entanto, a Constituição, nos incisos VI, XII e XIII, permitiu flexibilizar,
mediante negociações, os dois componentes principais do contrato de
trabalho: o salário e a jornada. E a Justiça do Trabalho concilia e julga
os dissídios que tenham origem no cumprimento de convenções ou
acordos, mesmo quando ocorram entre sindicatos de trabalhadores e
empregadores. Recusando-se qualquer das partes à arbitragem, é facultado o ajuizamento do dissídio coletivo, hipótese em que a Justiça
do Trabalho exercerá seu poder normativo, respeitadas as disposições
convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.
Quanto à participação política, ficou como presença nos colegiados dos órgãos públicos, nos quais os interesses profissionais ou
previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação, segundo o
comando do art. 10 da Constituição. A partir do governo FHC, as
confederações de trabalhadores foram marginalizadas, substituídas
pelas centrais, embora estranhas ao sistema confederativo da representação sindical. No que diz respeito à representação nos locais de
trabalho, a Constituição de 1988 não foi generosa, diante da resistência patronal, pois o art. 11 só permitiu a eleição de um representante
dos trabalhadores e ainda assim apenas nas empresas com mais de
200 empregados, para o fim exclusivo de promover o entendimento
direto com o empregador.
Fracassada a tentativa de uma reforma sindical, o ministro do
Trabalho, Luiz Marinho, anunciou outra, uma “mini”, como foi qualificada por ele e pela imprensa. E num mesmo dia, vieram duas
medidas provisórias, uma, de nº 294 criando o Conselho Nacional
de Relações do Trabalho no âmbito do Ministério; outra, de nº 293,
reconhecendo as centrais. A inconstitucionalidade da segunda era
manifesta diante da literalidade do inciso II do art. 8º da Constituição. Mas a Câmara dos Deputados, atolada de projetos para aprovar,
foi obrigada, com a conivência do Poder Executivo, a rejeitar as duas
medidas provisórias. As centrais e confederações não reclamaram,
acredito mesmo que aplaudiram.
Do hoje para o amanhã
Nesse quadro, pensar no futuro da organização sindical significa
pensar no avanço da globalização, no fatalismo que não vê remédio
para o desemprego, na precarização da previdência social, e principalmente, no abandono da ideologia, com renúncia das bandeiras do
socialismo de esquerda e até pálido de centro-esquerda. Se depender
62
Política Democrática · Nº 22
A Carta de 88 e a questão sindical
das lideranças e dos governantes de hoje, o sindicalismo continuará
sendo assistencialista, reformista e cada vez mais burocratizado. O
Ministério do Trabalho cada vez mais assumirá o controle dos sindicatos, recuperando seu poder de tutela repressiva. As negociações
coletivas não serão livres enquanto a contribuição assistencial for
moeda de troca para aceitação da produção neoliberal do governo
Fernando Henrique Cardoso: contrato por prazo determinado para
emprego de terceira categoria, por tempo parcial, passível de suspensão e o banco de horas que liberou o trabalho extraordinário.
Mas necessário pensar, também, na reação política para discutir
um novo modelo sindical para o Brasil, atento à nossa realidade e à
indispensabilidade da união dos trabalhadores para o enfrentamento
com os detentores do poder e do capital na retomada da luta para
sua ascensão social que está a exigir o desenvolvimento do país, mas
de forma a assegurar que todos participem do avanço tecnológico e
científico, tornando verdade o que foi escrito na Constituição brasileira: Estado Democrático de Direito fundado, também, na cidadania, nos valores sociais do trabalho, a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária com erradicação da pobreza, acesso ao Poder
Judiciário, direito à educação, à saúde, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância,
à assistência aos desamparados, à valorização e ao primado do trabalho, à existência digna conforme os ditames da justiça social e do
bem-estar, priorizando o pleno emprego.
Constitui dever do sindicato a defesa dos interesses da classe
trabalhadora, de modo que não poderá afastar-se da ação política,
de resistência. Seu papel não se restringe às relações de trabalho e
às negociações para a obtenção do salário justo capaz de atender as
necessidades vitais básicas familiares, com moradia, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência
social além de melhores condições de trabalho, mas vai muito além
para a defesa da soberania nacional em toda sua plenitude, compreendendo a língua, a música, os costumes, o sentimento de nacionalidade. A organização da classe trabalhadora deve estar acima da
organização dos partidos que representam, como regra, segmentos
pouco ou mal identificados. A ação política-sindical tem que atender sua vocação internacionalista e lugar para combater a fome e a
miséria, o que reclama a desglobalização imposta pelo imperialismo
norte-americano.
63
III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988
Uma nova Lei Sindical é inevitável, mas se depender do consenso
trabalho-capital-estado, as organizações de classe dos trabalhadores
pouco avançará. Logo, independentemente da lei, todos os esforços
de suas lideranças deverão conduzir à unidade para possibilitar a
ação política eficaz e autêntica. Cabe às entidades de trabalhadores
elaborar uma proposta unificada de lei sindical que assegure a autonomia e a liberdade positiva para defenderem no Congresso e no governo onde pontificam antigas lideranças com experiência bastante
para entendê-la e atendê-la.
A organização sindical do futuro deve ser pautada conforme os
princípios básicos da autonomia, da unidade, da democracia interna, da autenticidade, da garantia e exercício do direito de greve, da
livre negociação, da ampla representação dos grupos profissionais,
tanto nos setores administrativos como no Poder Judiciário.
64
Política Democrática · Nº 22
IV. Observatório
Político
Autores
Arnaldo Jardim
Engenheiro civil, formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP),
é o 1º vice-líder da bancada do PPS na Câmara Federal, onde também é membro da Comissão de Minas e Energia e do Grupo de Trabalho para Consolidação das Leis (em que
responde pelas áreas de mineração, águas e energia).
Dina Lida Kinoshita
Membro da Cátedra Unesco para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, do
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
Arthur Poerner
Escritor e jornalista, autor, dentre outros, de O poder jovem.
Fausto Mato Grosso
Engenheiro civil, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e dirigente
nacional do PPS. [email protected] e http://faustomattogrosso.blogspot.com/
Hamilton Garcia de Lima
Cientista político e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Campos, RJ).
Problema do Bush?
Arnaldo Jardim
O
estouro da bolha especulativo-financeira começou nos EUA
e logo se alastrou pelo mundo, colocando em xeque as estruturas de um capitalismo que privatiza os lucros e socializa os
prejuízos. Alguns chegaram a relembrar a quebra da bolsa em 1929,
mas comparações são sempre delicadas, principalmente quando se
tratam de períodos tão distintos da nossa história. Além do mais, a
atual crise não encontra paralelo na história, tanto pelo volume de
recursos envolvidos, como pela amplitude dos seus impactos.
Nada parece suficiente para estancar liquidação violenta nos
mercados de ações, nem mesmo a estatização de bancos privados, as
reduções drásticas nas taxas de juros e os investimentos públicos,
seja nos EUA, na Europa ou na Ásia. O rastro de pólvora não respeita fronteiras. O que começou no setor financeiro começa a atingir
gigantes do setor produtivo, como a General Motors, a General Eletric e a Exxon, só para citar algumas empresas que sofreram quedas
abruptas no mercado de ações.
Entretanto, mais do que um problema de liquidez, acredito que
o maior obstáculo a ser superado é a crise de credibilidade que se
instalou no mercado financeiro, o que nos faz questionar se o caso
da Enron (de fraudes fiscais e contábeis) foi mesmo isolado. De certo
é que numa economia globalizada, quando a principal potência entra
em parafuso, o mundo sente os seus efeitos.
Guardadas as devidas proporções, a atual “Crise Global” pode ser
didática para o Brasil, partindo do princípio de que ela é resultante
de uma combinação entre o descontrole de gastos públicos e priva67
IV. Observatório Político
dos, as brechas regulatórias do mercado e sua primazia em detrimento da produção, além de uma euforia consumista demasiada.
Não há dúvida de que os EUA têm uma parcela maior de responsabilidade, diante da política belicista do Governo Bush (vide as
guerras do Afeganistão e do Iraque), o grande desequilíbrio da sua
balança comercial, a política de juros negativos do FED (Federal Reserve, o Banco Central norte-americano), na época do ex-presidente
Alan Greenspan, além da pressão chinesa por insumos básicos. Todos estes fatores culminaram numa enxurrada de capital no mercado que acabou por estimular o seu descolamento dos meios de
produção, criando um terreno fértil para especulação.
Assim, criou-se uma bolha especulativo-inflacionária, alimentada pelos “dólares vagabundos” que viajam atrás do lucro fácil e que
turbinaram as cotações das principais commodities (agrícolas e minerais), pressionaram para baixo a cotação da moeda norte-americana em todo o mundo e usufruíram de altas taxas de juros de países
emergentes, como o Brasil.
Num primeiro momento, essa movimentação impulsionou os países em desenvolvimento. O Governo Lula sempre apostou na exuberância externa como motor principal do nosso crescimento. A forte
alta nos preços dos produtos da nossa pauta de exportação gerou
um aumento de renda, propiciando um ciclo de crescimento no setor privado e a ampliação de gastos no setor público. Este fenômeno
mundial teve, entre outros efeitos, o aumento de fluxo de capital ao
Brasil, possibilitando a expansão do crédito em nossa economia. A
crise atual, portanto, coloca ambos os fatores em risco.
No plano externo, o Governo Lula precisa manter uma postura incisiva, sem dubiedades, no sentido de cobrar medidas dos governos
centrais dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia, principalmente
dos integrantes do G8, no que diz respeito a sanear o mercado financeiro. Até agora, o que vimos são compras maciças de ações de
instituições financeiras com dinheiro público, medida que até agora
se mostrou ineficiente e questionável. Afinal, o povo deve pagar pela
irresponsabilidade e a ganância de alguns?
No Brasil, para amenizar os efeitos desta crise, algo que deve ficar
mais evidente no início de 2009, o governo, o Congresso Nacional e
o Banco Central precisam se debruçar na elaboração de um pacote
de medidas preventivas, sobretudo em relação à questão cambial, a
política de juros (que continuam os mais altos do mundo e inibem
sobremaneira o setor produtivo), além da questão tributária, ainda
mais agora que o crédito em todo mundo começa a escassear.
68
Política Democrática · Nº 22
Problema do Bush?
Precisamos de uma reformulação total da atual política econômica para mudar o eixo do crescimento, a começar por uma coordenação verdadeira entre políticas fiscais, monetárias e cambiais para
prover ao país as fontes de poupança internas para financiar o nosso
crescimento de forma sustentável.
A partir de agora, o mercado tende a ficar mais conservador e
os investimentos em países emergentes ainda é considerado de risco, devido justamente ao que chamamos de “Custo Brasil”, ou seja,
infra-estrutura precária, elevada incidência tributária, a falta de incentivos à exportação, frágeis marcos regulatórios e o uso de altas
taxas de juros para combater a inflação.
Num primeiro momento, a revisão no câmbio será fundamental
para respaldar e apoiar o fluxo das exportações diante de uma iminente queda do preço das commodities. O governo precisa utilizar
o câmbio como um instrumento de desenvolvimento, por meio do
fortalecimento de programas já existentes como o Proex (Programa
de Crédito à Exportação) e oferecer mais linhas de Adiantamento de
Contratos de Câmbio (ACC), além de elaborar um Plano de Exportação, capaz de identificar novos mercados, promover a “Marca Brasil”
e buscar investir na inovação tecnológica para exportarmos produtos
de maior valor agregado.
Se nos EUA um dos estopins da crise foi à inadimplência imobiliária, por aqui, o mesmo pode acontecer com as vendas a prazos,
que chegam a 60 meses, para aquisição de um veículo, por exemplo.
Desta maneira, o governo torna-se cúmplice de uma política de juros
perversa que estimula o crédito sem lastro que pode fomentar um
surto de inadimplência. Quem revisita as declarações do ministro
Guido Mantega, no mês de setembro, se espanta com a sua alienação. No dia 10 de setembro, ele convidou os brasileiros a continuar
comprando e se endividando. Exatamente, três dias depois do socorro do governo dos EUA à Fannie Mae e à Freddie Mac e quando
qualquer desavisado sabia que a crise se agravava.
Este governo também tem se notabilizado pelo aumento dos gastos correntes, ano a ano, o que pode comprometer a sua capacidade
de investimentos, mesmo batendo recordes sucessivos de arrecadação de impostos. Ou seja, o inchaço da máquina pública pode comprometer ainda mais a liberação dos recursos para as obras estruturais do PAC.
Por isso, o controle fiscal é uma medida de extrema importância
para assegurar os investimentos em infra-estrutura e das Parcerias
Público Privadas (PPPs). Afinal, é preciso garantir o fluxo de investi69
IV. Observatório Político
mentos e de crédito, para atender os grandes empreendimentos no
plano da logística, da infra-estrutura, dos desafios da exploração de
petróleo e gás que exigem investimentos fartos e a custo adequado.
O caminho é ampliar a oferta de crédito oficial, sem o comprometimento da estabilidade fiscal. Neste ponto, o BNDES pode desempenhar um papel ainda mais destacado na oferta de crédito, mas precisa reavaliar suas políticas de concessão de empréstimos sob a ótica
do interesse público. Afinal, qual o interesse do BNDES em investir,
por exemplo, na fusão da Oi com a Brasil Telecom (?!).
No Congresso Nacional, devemos rever não só a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) como também a LOA (Lei Orçamentária Anual),
diante da previsão de desaceleração da economia, para que a execução
orçamentária não enfrente os mesmos problemas do início deste ano.
Além disso, os parlamentares precisam se mobilizar para a aprovação da Reforma Tributária, a Lei Geral das Agências Reguladoras e a
Lei do Gás, no sentido de prover estabilidade regulatória necessária
para multiplicar os investimentos do setor produtivo e mantermos o
crescimento econômico.
No médio prazo, proponho ainda o abatimento da nossa dívida
pública interna, que chega a 40,8% do PIB, enquanto em economias
que atingiram o grau de investimento a média é de 30%. Para isso,
poderíamos fazer uso das nossas reservas em moeda estrangeira
(hoje, na casa de US$ 200 bilhões), para readquirir títulos da dívida
interna, mantendo o aquecimento da economia e escorando uma redução pragmática dos juros.
Temos de abrir mão da “visão escapista” propagada pelo governo.
É hora de tomarmos as medidas necessárias, com a agilidade que a
gravidade do momento requer, para que seus efeitos não contaminem a nossa estabilidade econômica conquistada a duras penas ao
longo dos últimos 15 anos.
70
Política Democrática · Nº 22
Chega de violência! Sem guerras
justas e injustas!
Dina Lida Kinoshita
O
século XX foi palco de duas guerras mundiais e um grande
número de guerras localizadas, mas nem por isso menos violentas, que causaram terríveis sofrimentos e imensas perdas
humanas e materiais. Assiste-se na atualidade à solução de certos
conflitos exacerbados pela Guerra Fria e ao mesmo tempo afloram
outros contidos anteriormente pelas grandes potências, num mundo
que vem se redesenhando em função de profundas mudanças em todas as esferas da vida humana (tecnológicas, econômicas, políticas,
sociais e culturais), bem como pelo desenvolvimento econômico de
regiões antes atrasadas.
Certas discussões que vêm ocorrendo nos meios de esquerda a
respeito de conflitos regionais da atualidade me fizeram dar um passeio mental pela nossa história. Refiro-me ao Movimento Comunista
Internacional, na tradição Terceiro Internacionalista que se vincula
às idéias libertárias e revolucionárias da Revolução de Outubro de
1917. Embora o primeiro decreto da nova Rússia, após a Revolução
de Outubro, tenha proclamado como primado do regime Paz, Pão e
Terra, deixou de mencionar a liberdade. E os comunistas, em nível
internacional, assumiram a vanguarda da mobilização pela paz, porém, vi comoa herança da violênciajacobina da Revolução Francesa (alguém já prestou atenção na letra da Marselhesa?), somadaà
violência durante a Comuna de Paris e à falta de democracia dos
bolcheviques na URSS, influenciaram a todos nós, em nível internacional. Como é difícil abandonar este arcabouço!
O historiador inglês Colin Lucas, entre outros, faz uma série de
estudos muito interessantes a respeito das conseqüências da violência durantee após osprocessos revolucionários.A questão da liberdade e da igualdade não é nova e está presente no ideário da Revolução
Francesa, razão pela qual, desde então, há pensadores que apontam
a necessidade de desfazer o par revolução-terror. E esta discussão
perpassa o debate entre marxistas na forma de ditadura do proletariado – liberdade democrática.
71
IV. Observatório Político
Passamos décadas falando em paz, mas acabamos apoiando muitas guerras, inventamos uma distinção entre guerras justas e injustas. Creio que devemos afastar-nos deste paradigma edefender a
não-violência. Valter Veltroni já o fez durante a campanha eleitoral
na Itália. O fato de ter perdido a eleição não significa que esteja errado; a médio e longo prazo suas idéias prevalecerão ou iremos para
a barbárie.
Fatos
Pelo menos desde os anos 30 do século passado, com a consolidação do poder stalinista na URSS, a tradição autoritária da III Internacional aflora com muita força. A justificativa da violência deixa de
ser defensiva e assume, segundo F. Furet, um “caráter instrumental
positivo de instauração do bom regime e da regeneração do homem”.
Um primeiro momento em que isso se torna evidente ocorre na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Durante este episódio ocorrem vários “ajustes de contas” com líderes das Brigadas Internacionais, e
com a derrota da República Espanhola, os generais soviéticos e os
comissários políticos que regressam à URSS são todos presos. Alguns foram assassinados e outros amargaram o Gulag, onde vários
morreram enquanto outros só seriam libertados para lutar contra o
invasor nazista. Enquanto a palavra de ordem na Espanha era “Pela
vossa e pela nossa liberdade”, ao regressar à URSS, estes quadros
partidários e militares se depararam com um fechamento total da era
dos Processos de Moscou (1935-1938). A primeira grande ambigüidade e dubiedade. Data da mesma época a dissolução dos partidos
comunistas polonês e palestino e o expurgo em vários outros.
Segundo H. Smoliar, durante a II Guerra Mundial, muitos grupos
guerrilheiros operavam nas zonas soviéticas ocupadas pelos nazistas. Estes grupos atuavam com mais liberdade, uma vez que o acesso de militares e comissários se tornara muito difícil. Logo após a
derrota do invasor, estes combatentes foram enquadrados, pois na
prática, o “livre pensamento” não era tolerado. De novo aparecem
dois discursos.
Ainda durante o período da guerra, Stalin formou um Comitê
Antifascista enviado aos EUA para influenciar o povo americano visando à organização de um movimento pela abertura da II Frente.
Este Comitê era constituído de artistas e escritores, em sua maioria,
judeus comunistas soviéticos. Entre 1948 e 1952, os membros deste
Comitê foram presos e assassinados.
72
Política Democrática · Nº 22
Chega de violência! Sem guerras justas e injustas!
Em todos estes episódios, prevaleceu a teoria conspiratória, em
que velhos companheiros experimentados poderiam ter-se passado
para o inimigo. Neste período, ocorre uma série de episódios semelhantes nas Repúblicas Populares dos quais o processo de Slanski e
Arthur London, na Checoslováquia, é o mais notório.
Em entrevista, Armênio Guedes recorda as aulas de história ministradas na Escola de Formação de Quadros em Moscou, em meados
dos anos 50. A professora afirmava o papel progressista do imperialismo russo na Ásia Central ao passo que negava este papel ao imperialismo inglês. Armênio discordava desta abordagem na medida em
que ambos os capitalismos, ao chegarem a uma colônia, significavam
um avanço nos modos de produção e nas relações de trabalho que
não se encaixavam nos sistemas feudais, uma vez que surgiam nas
colônias a indústria e o proletariado. Mas a lógica sempre era a de
justificar tudo no âmbito do que viriam a ser as repúblicas soviéticas
e condenar as ditas democracias burguesas.
Uma das resoluções dos Acordos de Yalta se referia à dissolução
da III Internacional. Entretanto no imediato pós-guerra todas as estruturas desta organização foram reconstruídas através do Cominform, do Conselho Mundial da Paz, da Federação Sindical Mundial,
da Federação Internacional de Mulheres Democráticas, da Federação
Mundial da Juventude Democrática e da Revista Internacional. Após
o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki e com
o advento da Guerra Fria, ao mesmo tempo em que se acentuavam as
campanhas pela paz e pela abolição de artefatos bélicos de destruição em massa, através dos organismos recriados já citados, assistiuse a uma escalada armamentista jamais vista anteriormente e a uma
série de conflitos regionais tais como os da Coréia, do Vietnã, do Irã
com Iraque e do Afeganistão, entre outros, e a sempre preocupante
tensão no Oriente Médio onde a URSS e as Repúblicas Populares
apóiam um dos contendores. A cada avanço de um dos blocos, vinha
uma resposta do outro lado.
Sem dúvida, houve no pós-guerra um decidido apoio internacionalista para a libertação dos povos do jugo colonial na África e Ásia
e a criação de um vigoroso movimento dos não-alinhados, precursor
do G-77. Por outro lado, sentindo-se cercado pelos mísseis da OTAN
e da ASEAN, e pela existência de bases militares ocidentais em todos os mares e oceanos, o socialismo real busca desesperadamente
parceiros, apoios logísticos e materiais que acarretam a crise dos
mísseis em Cuba ou criam-se as ilusões de implantação de regimes
socialistas em sociedades, muitas vezes tribais, na África, apesar do
custo que acarretava aos povos que viviam na esfera do socialismo
73
IV. Observatório Político
real e da dificuldade de construir sociedades socialistas em países
atrasados. Neste caso, a posição soviética também foi ambígua, sendo difícil a distinção entre os interesses do Estado Soviético e os interesses do Movimento Comunista Internacional.
Ressalte-se que, durante a Guerra Fria, praticamente todos os
países acabaram sendo peões das duas superpotências e alguns
peões, ao longo do tempo, mudavam de lado.
Apesar do degelo khruscheviano com dezenas de milhares de pessoas libertadas do Gulag, da distensão na política internacional e
do discurso da coexistência pacífica, este quadro não muda muito.
Internamente, na URSS, Khruschev foi derrotado e substituído no
poder por uma troika liderada por Brezhnev, responsável por um
retrocesso neo-stalinista onde dissidentes não eram mais internados
no Gulag, mas em hospícios.
Esta política só começa a mudar de fato com a “perestroika” e
a “glasnost” de Gorbachev, num país em que o tecido social já está
muito esgarçado e a Guerra no Afeganistão bem como a escalada
armamentista até então jamais vista empreendida pelo presidente
Reagan, nocauteiam a URSS economicamente e fica escancarado o
esgotamento do modelo do socialismo real devido a um acúmulo de
erros ao longo de décadas, em que a falta de democracia e liberdade
é um fator de suma importância.
De todo modo, os anos gorbachevianos são muito importantes
para o mundo, na medida em que conceitos novos são incorporados.
Na era nuclear, é preciso reconhecer a existência de valores gerais
que interessam a toda a humanidade e que estão acima dos interesses de classe ou nação. Nestas condições, é preciso solucionar
primeiro os problemas globais de sobrevivência da humanidade (paz,
desarmamento, meio ambiente, energia etc.) e só depois a questão
das revoluções. Dentro desta lógica, existe um limite objetivo para
a confrontação de classe em nível internacional bem como para a
solidariedade de classe. Como corolário, as formas de luta de classes devem ser mais sutis e sofisticadas, não podendo ultrapassar as
fronteiras nacionais. É preciso salvar o mundo para transformá-lo,
mas não é mais possível transformar o mundo para salvá-lo. Certas teses da socialdemocracia são retomadas e discutidas. A Terra é
considerada a casa comum de toda a humanidade e se consolida o
conceito de que a via militar não é solução para dirimir conflitos uma
vez que numa guerra moderna não há vencedores nem vencidos. Há
um esforço para desideologizar as guerras bem como pela destruição e abolição dos artefatos bélicos de destruição em massa. Neste
74
Política Democrática · Nº 22
Chega de violência! Sem guerras justas e injustas!
contexto torna-se imperiosa a democratização da ONU e de todos os
organismos multilaterais internacionais pela governança global democrática.
A esquerda democrática moderna já vinha incorporando estes
conceitos desde os anos 70. O PCB consagra esta política em seu
IX Congresso, realizado em 1991, e reitera-a no X Congresso que dá
origem ao PPS.
A esquerda democrática moderna e os resquícios da
velha política
No novo mundo que se delineia no fim da Era dos Extremos, forças
conservadoras de direita e de esquerda continuam se confrontando.
Na África, alguns conflitos, como o de Angola, foram solucionados
enquanto outros surgem com muita violência. Este continente é palco de regimes antidemocráticos com lutas tribais e além dos interesses históricos dos antigos colonizadores europeus, países emergentes buscam fincar posições visando uma nova divisão dos recursos
naturais da região.
Na América do Sul, as ditaduras militares foram derrotadas, e, na
América Central, houve acordos de paz com os grupos guerrilheiros.
Na Colômbia, a maioria dos grupos de esquerda se uniu num partido
político e optou pela luta no terreno democrático. Os únicos remanescentes que seguem pela via militar são as FARC e o governo deste
país apóia os paramilitares de direita das AUC.
Persiste o barril de pólvora no Oriente Médio e na Ásia Central
com suas diversas facetas numa região estratégica e detentora das
maiores fontes de petróleo mundiais. São vários conflitos que se estendem numa vasta região que engloba Índia-Paquistão, Afeganistão,
Irã, Iraque, o conflito palestino-israelense, a região dos Bálcãs (no sul
da Europa) e atualmente atinge as franjas da antiga URSS no Cáucaso e na Ásia Central. Todos estes conflitos apresentam formas mistas
ou transicionais uma vez que têm características étnicas, raciais e de
fundamentalismo religioso e altamente correlacionados a problemas
econômicos e de deslocamentos populacionais e alguns destes países
são detentores de artefatos bélicos de destruição em massa.
Os conservadores da direita, sobretudo nos EUA, com seus aliados da OTAN não desistem da velha ordem, não atentam para a crise
ambiental na medida em que se recusam a assinar os Protocolos de
Kyoto e os seus sucessores, e tentam normalizar vários destes confli75
IV. Observatório Político
tos pela via armada, notadamente no Afeganistão e no Iraque. A esquerda conservadora continua utilizando um discurso antiimperialista ultrapassado de uma lógica primária na qual é inimigo dos EUA
necessariamente seria amigo da esquerda. E defende qualquer grupo
de esquerda ainda que utilize métodos injustificáveis, na lógica de
que os fins justificam os meios. Assim continuam sendo justificadas
as guerras justas e injustas.
Seria impossível tratar neste espaço de todos estes conflitos. Pretendo me ater a alguns deles e advogar um novo paradigma de solução de conflitos pela negociação e pelo diálogo na medida em que a
via militar não leva a soluções de paz duradouras.
Não há muita diferença, por exemplo, entre a guerrilha colombiana
e o conflito israelense-palestino, no Iraque ou no Afeganistão, apesar
de ocupação de território por potências estrangeiras nos três últimos.
Quem vamos mesmo defender no Afeganistão, no Iraque e no
conflito palestino-israelense?
O Iraque, berço de antigas civilizações, é um dos problemas deixados pelo Império Britânico no Oriente Médio. Estado artificial criado
nos anos 20 do século passado é um aglomerado de três províncias
do Império Otomano que entra em colapso no fim da I Guerra Mundial, com populações árabes xiitas e sunitas e o complicador curdo.
É uma região riquíssima em petróleo e uma das poucas com recursos
hídricos expressivos e que sofre instabilidades sociopolíticas internas ao longo do século XX. Saddam Hussein dá um golpe e se torna
ditador em 1980. Alguém, por acaso se lembra que os americanos,
ao perderem um de seus grandes aliados, o Irã, após a Revolução
Islâmica, apoiaram Saddam Hussein na guerra Irã-Iraque para derrubar os ayatolás e quando Saddam contrariou os seus interesses
no Kuweit, virou o demônio? Mas Saddam foi um ditador brutal e
matou centenas de milhares de curdos e comunistas iraquianos. Por
que ninguém fala da questão curda pelo menos tão antiga quanto a
palestino-israelense?
O Afeganistão fazia parte da Rota da Seda e é ponto estratégico
desde a Antiguidade. O conflito afegão não é recente, e foi objeto de
um artigo de Engels no século XIX, e Rudyard Kipling, o poeta do
colonialismo inglês na Ásia, denominava-o “O Grande Jogo”, em que
se definiam as complicadas maquinações anglo-russas pelo controle
da Ásia Central. Mais precisamente sobre as regiões situadas entre
o norte da Índia e o Mar Cáspio, enfrentamento travado entre a Rainha Vitória e os czares da Rússia ao longo do século XIX, coadjuvado
pelo Império Otomano. Desde o colapso da URSS, este embate vem
76
Política Democrática · Nº 22
Chega de violência! Sem guerras justas e injustas!
se reproduzindo, mas os EUA substituíram a Grã-Bretanha no papel
de fazer frente a uma Rússia fragilizada. Na atualidade, trata-se da
dominação das grandes reservas petrolíferas da bacia do Mar Cáspio
e do controle dos dutos que levam esta riqueza para os grandes centros consumidores. No entanto, um fato novo vem permeando esta
disputa de titãs e ganhando vulto – o fundamentalismo islâmico. Pois
bem, os americanos armaram até os dentes, nos anos 80, o que havia
de mais conservador e retrógrado naquelas terras para derrotar um
governo modernizador apoiado pela URSS, no contexto da Guerra
Fria. E o feitiço viroucontra o feiticeiro. E setores da esquerda, na
lógica de “quem é inimigo dos EUA é nosso amigo”, apóiam grupos
como os mujahedin e taleban ou Akhmadinejad, presidente iraniano
apoiado pelos ayatolás.
A situação do conflito palestino-israelense é mais complexa mas
está na mesma lógica. Não há bandidos e mocinhos neste conflito.
Chamar o Estado de Israel de terrorista é uma visão parcial na medida em que, ao longo de décadas, nenhum país árabe da região reconheceu este Estado criado por uma Resolução da ONU e, por sua
vez,ao mesmo tempo, todos estes paísesfacilitaramas incursões de
grupos guerrilheiros palestinos que atacavam a população civil judaica cotidianamente. Estes fatos, objetivamente contribuíram para
o crescimento das forças de direita no seio da sociedade israelense
que utilizava soberbamente o discurso da segurança num país onde
parte expressiva da população era constituída por sobreviventes do
Holocausto e seus parentes e descendentes. Em alguns pontos, o território israelense tinha uma largura inferior a 10 km e havia ameaças
diárias à integridade do Estado. O governo tomou então a decisão
de ocupar os territórios da Cisjordânia e Gaza, as colinas do Golan,
o Sinai e Jerusalém Oriental. E a extrema direita adotou o discurso
dos fundamentalistas religiosos da Grande Israel bíblica que inclui
a Judéia e Samaria. O PC israelense luta pela criação do Estado Palestino (sem solução, até o momento) desde 1948, visando ao cumprimento integral da Resolução da ONU e é contrário à ocupação, há
mais de quatro décadas. Mas as forças de centro-esquerda, socialistas sionistas (a partir dos anos 80) e trabalhistas (num processo
de aggiornamento pós-Guerra Fria) tentam resolver o conflito com o
campo da paz palestino dentro da OLP. Cada vez que se chega próximo a uma solução, as forças fundamentalistas de ambos os lados
se revezam em provocações e os atentados terroristas inviabilizam
as negociações. Apesar disto, os governos de direita que se sucediam
devolveram o Sinai e fizeram as pazes com o Egito. Mas não assumiram completara tarefa. Ao contrário, foram acirrando cada vez mais
a situação e os grupos que optam pela via militar foram se fortale77
IV. Observatório Político
cendo e adquirindo caráter fundamentalista. Vamos ficar culpando
Israel e apoiar o Hamas, a Jihad, o Hezbolah? Esta é uma questão
de ovo e galinha; enquanto ficarmos tentando descobrir quem veio
antes, o ovo ou a galinha, vamos patinar. Sem acusações mútuas, as
forças laicas do campo da paz depalestinos e israelenses devem retomar as negociações o quanto antes por uma paz justa e duradoura
para todos os povos da região.
É preciso retomar o discurso de “nossa casa comum” de Gorbachev, a luta pela redemocratização da ONU e todos os organismos multilaterais bem como pela governança global democrática. A
esquerda democrática mundial assumiu este discurso e o PCB, em
particular, na Resolução Política do IX Congresso e não há razão
para retroceder. As “guerras justas” não ajudam neste sentido, ao
contrário, só atrapalham. Em um congresso de cientistas americanos e soviéticos, realizado no fim dos anos 80, Andrey Y. Melville
chama a atenção para “o obstáculo mais importante e talvez o mais
difícil de vencer: a mudança da mentalidade humana; as barreiras
psicológicas e emocionais resultam da relutância natural da mente
humana em aceitar mudanças. Trata-se de uma defesa psicológica,
muitas vezes atrativa, que nos salva do incômodo de pensar nos difíceis problemas da atualidade e permite o uso de idéias e conceitos
ultrapassados, porém bem conhecidos. Assim, o papel exercido pela
“Cultura da Paz”, através da educação e pela informação, torna-se
fundamental tanto para a formação dos jovens como para as gerações adultas que cresceram com as tradições do passado e freqüentemente consideram-nas como normas únicas”.
E como afirma Peter Demant, “os graves problemas de violência
que acometem a humanidade neste momento podem evoluir, a longo
prazo, através de uma transição difícil e dolorosa para uma situação
mais positiva em que através da auto organização, (ver: Prigogine, I.
e Stenger, I em “Order out of Chaos: man’s new dialog with nature”),
a humanidade seja capaz de controlar os seus destinos para viver
em paz, com liberdade, democracia e justiça social numa sociedade
planetária de identidades reconstruídas. Nunca houve um contraste
tão agudo entre esperança e realização. Sem determinismos, esta é
uma possibilidade”.
78
Política Democrática · Nº 22
Tsunami sistêmico com
batida de umbu no Pelô
Arthur Poerner
A
té mesmo no Pelourinho, sorvendo batida de umbu depois de
uma palestra, a convite da UNE, na Universidade Católica de
Salvador, foi impossível ignorar os estrépitos e as marolas do tsunami no coração do capitalismo, no “areópago do mercado mundial” do
poema que Drummond dedicou ao FMI. Esse Mercado que, como Deus,
mereceria inicial maiúscula, padece de moléstia grave e insidiosa, conseqüência da desenfreada cobiça que estimulou nos banqueiros e especuladores, sedentos de lucros fáceis, sem trabalho, a qualquer preço.
O diagnóstico que grassava entre os turistas das mesas próximas
já era dos mais sombrios: crise sistêmica, isto é, bem mais ampla e
generalizada do que as periféricas que acometeram alguns países e
regiões nas últimas décadas, como a da Ásia, em 1997. Na medicina,
equivaleria a câncer com metástase. As células afetadas que migram,
há ano e meio, da lesão inicial, no sistema de crédito imobiliário e
hipotecário dos Estados Unidos, estão provocando a maior crise do
sistema desde a Grande Depressão que se seguiu ao crash da Bolsa de
Nova Iorque em 1929, com a derrota do capital financeiro e o “formidável enterro” de uma quimera que não é a única nem a “última” – como
a do Augusto dos Anjos – do capitalismo, mas, certamente, uma das
mais resistentes: Ele, o Mercado, seria auto-regulável. Falácia promovida, no início dos anos 80, conforme o megainvestidor húngaroamericano George Soros, a “dogma ideológico”, pelo presidente Ronald
Reagan e pela primeira-ministra britânica Margareth Thatcher.
O candidato republicano John McCain perdeu logo alguns pontos na disputa com o democrata Barack Obama, por insistir na tese
da solidez dos fundamentos da economia norte-americana, um dos
sagrados mandamentos dos fundamentalistas do Mercado, os adoradores do Charging Bull, o touro de bronze que simboliza a força do
capitalismo no distrito financeiro nova-iorquino.
O que eles estarão pensando agora, depois da estatização de bancos e do pacotão antifalências, socorro governamental, à custa dos
contribuintes (socialização dos prejuízos), de US$ 850 bilhões para
79
IV. Observatório Político
a compra dos papéis podres das subprimes, que os economistas estão chamando de “lixo tóxico” – para Soros, um band-aid para quem
está com hemorragia? E as receitas neoliberais que nos prescreviam?
Será que os “irmãos do Norte”, como eram chamados pelos “revolucionários” da ditadura, entendem de finanças tanto quanto de direitos humanos e respeitam os princípios da economia tanto quanto o
Direito Internacional e a autodeterminação dos povos?
Sei que, lá do alto dos templos de Wall Street, Ele, que tudo vê,
sabe, mercantiliza e coisifica, inclusive eu e o umbu, pode não gostar,
mas quero mais uma batida. Que desce ainda mais redonda quando
me lembro de que, antes de ACM, a Bahia viveu sob o reinado de Juraci Magalhães, também criador, em 1965, de um dogma ideológico,
sacralizado pela ditadura e responsável por uma era de vassalagem
em nossa política externa: “O que é bom para os Estados Unidos é
bom para o Brasil”. Não era, como também não é necessariamente,
mau para nós o que é ruim para eles.
Com a redução da nossa vulnerabilidade externa nos governos
Lula, podemos, ao longo do maremoto, diminuir, com os três outros
emergentes do Bric (Rússia, Índia e China), a distância que nos separa dos países ricos. Desde 2003, a dependência do Brasil em relação
às exportações para os EUA caiu de mais de 23% para 15%; na China, é inferior a 3%. E é por isso que o vagalhão chega ao Pelô como
marola, sem os redemoinhos em que se afogam os bancos norte-americanos. Aqui, o processo de submissão ao Consenso de Washington,
iniciado com a atabalhoada abertura da economia no governo Collor
e continuado com as privatizações e desnacionalizações de Fernando
Henrique, ainda pôde ser contido.
Embora o colapso de Wall Street assinale a decadência do império
norte-americano e a História já tenha demonstrado que hegemonias
e sistemas não são eternos, ainda não é hora de comemorar o acerto
das previsões de Marx quanto ao fim do capitalismo. Mesmo porque
é impossível prever que sistema o sucederia. Para o cientista político
norte-americano Imannuel Wallerstein, no momento, “a única alternativa no cardápio é o Fórum Social Mundial”.
No que se refere à hegemonia, que ele define como “um fenômeno
do sistema capitalista mundial”, a China desponta como favorita,
inclusive porque já vem promovendo a reconversão da sua economia
para o mercado interno. A se confirmar o prognóstico, que o embaixador brasileiro Miguel Osório de Almeida já fazia, baseado em
projeções econométricas, há algumas décadas, eu me permitirei uma
profecia: a Grande Muralha desbancará a Disneylândia como supremo objetivo de consumo cultural da nossa classe média.
80
Política Democrática · Nº 22
ONGs, sem preconceitos
Fausto Mato Grosso
ONGs são comitês da cidadania e surgiram
para ajudar a construir a sociedade democrática com que todos sonham”
(Herbert de Souza – Betinho)
A
s organizações não-governamentais (ONGs) estão no centro de
um grande debate. A tônica das discussões tem sido, quase
sempre, a suspeição dos seus financiamentos e objetivos. A
“teoria da conspiração” volta à tona com a mesma sanha do passado quando apontava para o “ouro de Moscou” e para as “ligações
com potências estrangeiras”. Não se discute a validade ou não de
suas propostas e sim se busca descredenciá-las como interlocutoras.
Agora é o ouro do príncipe Charles, da rainha Sofia, de alguma multinacional ou dos países centrais interessados em nossos recursos
naturais.
No geral, essa discussão é eivada de uma grande confusão. Afinal
se tem algo difícil de se definir é esse tipo de instituição, pela amplitude e fluidez de seu campo de existência. É ONG desde a Pastoral
da Criança, da dra. Zilda Arns, exemplar no combate à desnutrição
infantil, aliás, com dinheiro público bem usado, até “Meu Guri” da
esposa do deputado Paulo Pereira da Silva (Paulinho), da Força Sindical, agraciada com generosas doações do BNDES.
Tudo que não é governo, nem mercado, pode ser classificado
como ONG. A expressão surgiu pela primeira vez no âmbito da ONU,
após a segunda guerra mundial, para designar organizações supranacionais e internacionais que não foram estabelecidas por acordos
governamentais, ou seja, as ONGs nasceram primariamente como
organizações internacionais e, desde esse início, são reconhecidas
pelos relevantes serviços prestados à humanidade – Anistia Internacional, Greenpeace, Médicos pela Paz e outras tantas que se dedicam
a defesa de valores e princípios universais, como direitos humanos,
conservação ambiental, tolerância e paz.
81
IV. Observatório Político
Os impulsos mais recentes para a proliferação dessas instituições
foram a revolução científico-tecnológica e a globalização. Esse dois
fatores, inter-relacionados que são, produziram o espaço virtual online, fazendo desaparecer o tempo e a distância no intercâmbio entre
os homens, ao mesmo tempo em que modificava o papel dos Estados
nacionais. A moeda e os bancos centrais – a expressão mais tradicional do poder nacional – hoje são controlados pelas instituições
mundiais do capital e pelo mercado da economia desprovida de base
material.
Paralelamente ao Estado e ao mercado, surgiu o chamado Terceiro Setor, espaço de existência das ONGs. Esse novo segmento é
a nova sociedade civil assumindo o papel de fiscalização das políticas públicas e das estripulias deletérias do mercado. São elas que
começam também a cumprir funções na esfera pública não-estatal,
muitas vezes com maior competência que o Estado crescentemente
despreparado para cumprir as suas presentes e futuras indelegáveis
funções.
Nesse período, dois segmentos com visões antagônicas confluíram
para o apoio e criação das ONGs, o pensamento neoliberal, que as
via como um artifício para esvaziamento do Estado, que deveria ser
mínimo, e o pensamento libertário, que enxergava a oportunidade de
controlá-lo, ao controlar suas políticas. O pensamento de direita e de
esquerda, com diferentes perspectivas, se somaram, então, na idéia
de criação dessas organizações.
Portanto, pode-se gostar ou não gostar das ONGs, mas elas vieram para ficar, por que não são frutos de conspirações e sim, formas
novas que estão nascendo sintonizadas com o processo de implantação de um novo momento da civilização, marcado pela aceleração
das mudanças do padrão produtivo, que clama por novos atores e
novas relações sociais.
Que as ONGs nos diversos países se articulem internacionalmente não há nada a se criticar, afinal os Estados se articulam também
nesse nível e ainda mais evidente é a internacionalização do mercado
e do capital. Essa articulação internacional das ONGs tem o grande mérito de permitir a atuação local da cidadania, informada pela
experiência internacional. O que estamos vendo é o surgimento de
uma opinião pública e de uma sociedade civil mundiais, com maior
possibilidade de enfrentar os desafios da humanização global. Quem
sabe o conceito de estrangeiro esteja com os dias contados.
ONGs, sem preconceito
Essa articulação global das ONGs tem se dado através do mecanismo ultra sofisticado de formações de redes de atores sociais locais
e globais, que lhes dá enorme capacidade de influenciar localmente,
com a visão de mundo e mundialmente com a riqueza da visão das
diversas comunidades locais. Essas redes estão cada vez mais presentes nas decisões mundiais, realizando reuniões paralelas às dos
chefes de Estados, e a das agências de articulação do capital. Para
desespero destes, as redes estão em todas as partes e são difíceis
de combater, afinal, elas nunca são, estão em constantes vir-a-ser
típicos do processo de mudanças rápidas e generalizadas do tempo
em que vivemos.
Mas e a corrupção, o uso indevido do dinheiro público e os atrelamentos espúrios que a política tem feito delas? Serão elas antros de
corrupção? A transparência, o controle público, as CPIs e a Justiça
são os remédios para isso, quando o dinheiro público estiver envolvido. Tenho certeza que menos será encontrado de nocivo do que no
Estado e no mercado.
83
IV. Observatório Político
A tragédia
do clientelismo
Hamilton Garcia de Lima
V
em se tornando bastante comum, no meio acadêmico e entre
os formadores de opinião, a percepção de que o clientelismo
é um falso problema, pois manifestação hodierna, mesmo
que enviesada, da inclusão política e social. Para estes intelectuais,
o clientelismo vem ao encontro dos anseios de cidadania dos excluídos, derivando daí a razão de sua popularidade entre as maiorias
carentes de políticas públicas e sua impopularidade entre a minoria
já atendida por elas ou pagadora de serviços privados.
Os argumentos positivantes do clientelismo são, como ocorre em
grande medida à maioria dos produtos da perspectiva funcionalista de viés conservador, bastante simplificadores, não obstante sua
aparente sofisticação. O aspecto mais problemático deste tipo de
abordagem encontra-se em sua relativa alienação histórica: partindo de uma literatura estrangeira e de sua tosca adaptação ao nosso
contexto nacional, perde-se de vista que não se trata de fenômeno
assincrônico, ou seja, desconectado de um contexto específico que
lhe empresta determinado sentido em vez de outro.
Se alguma inteligibilidade tal análise nos permitisse, ela não
ultrapassaria os umbrais das periferias das maiores cidades brasileiras nos anos 1960-1980, quando a expansão econômica criou as
grandes cidades-dormitório carentes de Estado. Neste cenário, as
políticas públicas adentraram a vida cotidiana pela mão de chefes
políticos locais que manipulavam discricionariamente recursos de
estruturas estatais embotadas – como foi o caso da Baixada Fluminense sob o tenorismo e o chaguismo.
Hoje, ao contrário, a função social do clientelismo é marginalmente prover serviços onde eles não existem e muito mais perverter
estruturas estatais razoavelmente desenvolvidas e estruturadas, em
proveito de grupos privados de poder. Não que não existam buracos
na malha estatal de serviços – no plano federal, estadual e municipal –, mas tais “buracos” são politicamente construídos visando
84
Política Democrática · Nº 22
A tragédia do clientelismo
a enfraquecer o Estado em proveito do empoderamento dos grupos
que controlam o voto popular.
Neste novo contexto predominante, em níveis diferentes conforme o desenvolvimento regional, estes “buracos negros” atraem uma
massa compacta de interesses privados que impedem o fluxo normal do interesse público, promovendo-o por caminhos perversos.
Apesar da irracionalidade burocrática do procedimento, sua legitimação ocorre pela prevalência do senso comum popular, que tende
a perceber o interessse privado como mais palpável e seguro que o
interesse público – pecado venial da superficialidade leiga, que não
poderia ser repetido por intelectuais de alta cultura.
Na modernidade, o interesse público é provido através de estruturas burocráticas, cujos objetivos são o de maximizar os benefícios
ao maior número possível de pessoas a um custo economicamente
sustentável. Nela, o clientelismo atua não como agente catalizador
de políticas públicas, como na protomodernidade, mas como corrosivo de estruturas burocráticas que as canalizariam em proveito da
cidadania, restringindo, ao invés de ampliar, o alcance e a efetividade das políticas de bem-estar.
É o caso, por exemplo, das freqüentes interferências de vereadores e deputados, ou pretendentes, nas organizações públicas de
ensino, saúde, assistência social etc., visando a privatizar parcelas
de suas estruturas de atendimento em benefício de seus cabos eleitorais e potenciais eleitores. Neste esforço político predatório, os
agentes públicos são coagidos, sob pena de perderem seus cargos
ou bônus de promoção, a fraudarem a ética pública em proveito da
ética egoísta dos dirigentes do Estado e seus asseclas, sacrificando,
em proveito de critérios eleitorais, os critérios técnicos e impessoais
de seleção para admissão em creches, escolas e leitos hospitalares
dependentes da rede pública.
O clientelismo, sob esta ótica, é muito mais perverso do que outrora, quando as estruturas burocráticas do Estado mal se formavam. Isto porque, hoje, ele se limita a corromper as possibilidades
de atendimento generalizado de boa qualidade, criando, de quebra,
um grave problema político: a desmotivação e o desvirtuamento do
funcionário público, bem como a fragmentação da própria cidadania. Ambas as vítimas do clientelismo perdem sua autonomia e passam a cultivar laços de dependência com quadrilhas “políticas” que
as transformam em verdadeiros vassalos, pedintes de seus algozes,
em meio a uma anomia civil e corporativa que lembra mais o velho
“coronelismo” que a tão almejada modernidade.
85
IV. Observatório Político
As eleições municipais que acabam de se materializar, sem as
reformas políticas que fortaleceriam os partidos e outros atores coletivos democráticos, em vários de seus momentos, repuseram o
status quo do clientelismo hodierno e seus malefícios, marca registrada do Brasil: um país desigual e injusto que tropeça na tacanhez
histórica de sua elite política.
86
Política Democrática · Nº 22
V. Batalha
das Idéias
Autores
Alberto Aggio
Graduado em História pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP
(1982), tem mestrado (1990) e doutorado (1996) em História Social pela mesma faculdade. Realizou estudos de pós-doutoramento na área de História da América Contemporânea na Universidade de Valencia (Espanha), entre 1997 e 1998. É atualmente
professor adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus
de Franca.
Tony Judt
Historiador britânico, diretor desde 1995 do Instituto Erich Maria Remarque de Estudos Europeus da New York University, autor, dentre outros, do livro Após-guerra: uma
história da Europa a partir de 1945.
Clayton Cardoso Romano
Doutor em História pela UNESP, campus de Franca.
Uma identidade reformista
para a esquerda
Alberto Aggio
Q
ual o significado, no mundo e no Brasil de hoje, de uma esquerda contemporânea, reformista e transformadora? A identidade da esquerda – algo que, a bem da verdade, sempre
esteve em questão – é um tema em permanente debate e permanece aberto no século XXI. Como sabemos, o problema é intrincado e
merece muito cuidado tanto na aproximação a ele quanto no seu
desenvolvimento. O que se quer aqui é organizar algumas idéias e
um conjunto de argumentos com o intuito de contribuir para uma
reflexão sem a qual ficará cada vez mais difícil agir no presente e
projetar o futuro.
De início, podemos anotar que, em sua integralidade, uma esquerda com esse perfil ainda não existe, não está abrigada em nenhum partido político e tampouco se encontra expressa oficialmente
em governos ao redor do mundo – ainda que, em alguns países, possa se notar vivamente que um processo rumo a sua construção ganhe um curso expressivo (a despeito de todas as suas dificuldades).
Assim, é forçoso reconhecer, antes de mais nada, que a afirmação de
uma esquerda com esse perfil configura-se como uma criação política e cultural de grande envergadura. Mas ela não se inicia nem se
desenvolve a partir do vazio.
Em função da crise que hoje vive a esquerda, há uma necessidade imperiosa de que o percurso dessa criação revele capacidade
para superar várias idéias que se afirmaram como identificadoras
da esquerda ao longo da história – e que representaram verdadeiros
89
V. Batalha das Idéias
desastres políticos – e, ao mesmo tempo, reafirmar outras tantas, às
vezes equivocadamente desprezadas.
Como sabemos, “esquerda” é um conceito contextual e situacional. Ela se define em relação a uma direita e a um centro, ambos
histórica e conjunturalmente determinados. Mesmo assim é possível
rascunhar algumas referências ou valores da esquerda que permanecem como eixos da sua identidade política e cultural, a saber: (1)
a defesa do bem-estar social ao invés do bem-estar individual; (2) a
valorização das responsabilidades coletivas; (3) a extensão da igualdade de oportunidades para todos; (4) a vigência de um Estado forte
que seja capaz de corrigir as injustiças sociais por meio de uma ação
distributivista da riqueza material produzida pela sociedade; e, por
fim,(5) a perspectiva de uma mudança das estruturas de poder por
meio da democratização e da participação política.1
Além desses propósitos de caráter geral, que deram e ainda dão
sustentação a uma prática política de esquerda, não há como negar
que historicamente a perspectiva de conquista e exercício do poder
por parte da esquerda deu a ela um sentido de finalidade que, regra
geral, foi semantizado na palavra socialismo. E este, por sua vez,
transformou-se no horizonte político e/ou utópico da esquerda. Da
mesma forma, não há duvida de que, embora não integralmente identificáveis, os vínculos entre esquerda e socialismo são historicamente
incontestáveis. O socialismo foi reconhecidamente um programa de
mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de
pessoas no correr dos séculos XIX e XX.
As três últimas décadas do século XX produziram mudanças de
tal ordem na estrutura do mundo que as bases de referência do socialismo ruíram integralmente: a estrutura produtiva foi alterada de
maneira drástica, reduzindo muito a necessidade de mão-de-obra;
um cenário pós-fordista foi se estabelecendo, ao mesmo tempo em
que diminuíam a auto-organização coletiva, a vida associativa e diversas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do
socialismo. Para a esquerda e para o socialismo talvez essa mudança
histórica tenha sido mais decisiva do que a própria queda da URSS e
o colapso do chamado “socialismo real”.
Por outro lado, há que se incorporar definitivamente a idéia de
que somente uma visão crítica da história do socialismo nos permitirá construir uma nova síntese para se pensar o futuro. Uma atitude
1 Ainda que não idênticas tais indicações são expostas em SMITH, Peter H. “Perspectivas de la izquierda latinoamericana” In PÉREZ HERRERO, Pedro (Ed.). La “izquierda” en América Latina. Madrid: Editorial Pablo Iglesias, 2006, p. 291-305.
90
Política Democrática · Nº 22
Uma identidade reformista para a esquerda
profundamente crítica ao passado do socialismo nos ajuda a pensar
que devemos, hoje, ir além dele. Não há como não reconhecer o fato
de que hoje o socialismo não se configura mais como um programa
de ação revolucionária tal como pretendeu ser ou, de fato, foi no
correr dos séculos XIX e XX. De um ponto de vista cultural ou intelectual, o socialismo não se sustenta nem mais como uma tradição,
hoje isolada e anquilosada no pensamento marxista. Resta a ele encontrar a melhor maneira de colher os frutos de uma necessária e
real contaminação cultural que possa lhe alargar os horizontes e impulsionar a afirmação de um novo reformismo, estratégia que poderá
lhe dar um novo sentido histórico.
Entretanto, surpreendentemente, é possível recolher alguns elementos da história do socialismo que apontam para o caminho da
sua superação. Por um lado, alguns historiadores do socialismo o
criticam fortemente em razão de alguns equívocos em sua trajetória. Para esses estudiosos, o socialismo pecou profundamente na
sua concepção de “homem novo”, foi fechado e estreito em relação à
questão das mulheres, desconheceu rotundamente o tema da “fraternidade” etc. Por outro lado, há elementos extremamente virtuosos
nessa trajetória. De acordo com Giuseppe Vacca, presidente da Fundação Instituto Gramsci, de Roma, os socialistas do início do século
XX realizaram uma mudança de paradigma nas suas concepções que
representou, para a época, uma verdadeira renovação da cultura política do socialismo. Essa mudança foi muitas vezes relegada a um
segundo plano na interpretação mais geral da história do socialismo.
Se refizermos essa trajetória, perceberemos que:
(...) desde os anos trinta do século XX, a distinção entre “reformistas”
e “revolucionários” torna-se anacrônica. (...) a disputa sobre o “fim último” baseava-se num equívoco. A idéia da “superação do capitalismo”
nascia da contraposição entre capitalismo e socialismo, que é histórica e conceitualmente infundada. Capitalismo e socialismo referem-se
a dois planos diversos da realidade e não são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação
do desenvolvimento econômico, que, portanto, não se contrapõe ao
primeiro, mas propõe-se orientá-lo .2
O resultado foi que “para superar este falso dilema, foi necessário
elaborar o conceito de regulação, e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente intelectual, mas de experiência histórica concreta”. Para Giuseppe Vacca, esse é um marco histórico essencial que deve ser recuperado. É efetivamente o “ato de nascimento
2 VACCA, G. “A esquerda italiana e o reformismo no século XX”. Política Democrática,
n. 18, p. 111-125, 2007.
91
V. Batalha das Idéias
do reformismo: a crise dos anos trinta e a invenção de um ‘modo de
regulação’ do desenvolvimento alternativo ao do velho liberalismo,
que entra em colapso”.3
Outra idéia a ser superada pela esquerda é a idéia de revolução
como fiat da história. Para a esquerda do século XXI realmente se
constituir numa esquerda contemporânea, reformista e transformadora é necessário superar a idéia e a representação da revolução
como seu eixo e lugar simbólico. Esse pressuposto implica conceber
a esquerda a partir de uma definição clara pelo ideário e pela política
das reformas. Contudo, esta não é uma formulação muito clara no
campo da esquerda real, isto é, no mundo dos homens e mulheres
que se identificam com a esquerda. Não é difícil de se observar isso
dentro de partidos como o PT, o PCdoB ou mesmo na recente trajetória dos comunistas brasileiros, do PCB para o PPS. A compreensão de que uma esquerda democrática e moderna é uma esquerda
reformista é algo ainda não inteiramente assimilado. O sentido do
reformismo como o núcleo da política de esquerda no Brasil é muito
rarefeito ou praticamente inexistente.
Entendo que é precisamente esse o ponto ou a pista que se deve
perseguir: organizarmos um debate a respeito dos sentidos do reformismo, de como construir uma esquerda de reformas no Brasil. Isto
porque pensar uma esquerda de reformas na Europa Ocidental já é
algo que se pode fazer a partir da revisão de uma história concreta.
No Brasil e na América Latina é ainda um problema a ser definido, a
ser pensado em inúmeras variáveis, inclusive na superação da condenação ao reformismo que marcou a geração de jovens desde os
anos sessenta. Por outro lado, no caso brasileiro, especificamente, é
preciso lembrar que até mesmo a palavra reforma foi capturada e se
afastou do campo da esquerda, desde o governo de Collor de Melo, no
inicio da década de 1990.
De qualquer forma, há algo a se recuperar. Se observarmos bem,
em termos de idéias e conduta política, havia alguma coisa na trajetória do PCB que indicava para essa direção. O socialismo sempre
foi um referente importante na história do PCB, ainda que a sua
prática, especialmente depois de 1958, tenha sido abertamente a de
um reformismo político que tinha como ênfases as noções de democratização e desenvolvimento. Contudo, não há espaço para que aqui
possamos examinar essa história e tampouco levantar uma série de
aspectos que julgamos pertinentes para essa reflexão a partir daque-
3 Idem, ibidem.
92
Política Democrática · Nº 22
Uma identidade reformista para a esquerda
la experiência do PCB. Apenas vamos partir de um ponto que para
nós configura-se como emblemático.
É indiscutível que há na história da esquerda brasileira uma parcela ou fração que assumiu para si, desde o final da década de 1970,
o tema da democracia e que efetivamente se afastou das idéias dogmáticas que habitavam o ideário mais convencional da esquerda,
tanto da “esquerda tradicional” quanto da chamada “nova esquerda”.
Sua maior expressão emergiu com a publicação do famoso ensaio de
Carlos Nelson Coutinho, A democracia como valor universal (1979),
formando-se, a partir daí, um entorno de militantes ativos dessa
idéia, que jogava por terra o entendimento de que a democracia não
era mais do que uma tática a ser desprezada depois da conquista do
poder. Dessa linhagem há que se destacar, sem nenhuma dúvida, a
revista Presença, que circulou entre 1983 e 1992. Reconhecidamente, esse movimento fez parte daquilo que Maria Alice Rezende de Carvalho, em texto recente, chamou de “breve história do ‘comunismo
democrático’ no Brasil’.4
Ainda assim, passados alguns anos e depois de inúmeras transformações, no mundo e no Brasil, é forçoso reconhecer que o fim do
tempo histórico das revoluções, como método e critério para a mudança histórica, não foi capaz de produzir, entre nós, uma nova fórmula identitária que garantisse, simbólica e politicamente, uma nova
expressão para a esquerda. Os fatos do mundo e do Brasil no final
do século XX são os responsáveis diretos pelo esgotamento dos dois
mais potentes núcleos de identidade da esquerda brasileira, a saber,
o núcleo bolchevique/soviético e o núcleo cubano/guerrilheiro.
Surpreendentemente, a esquerda pós-1989, que havia surgido
pouco antes e ambicionava se configurar como um novo paradigma, fracassou mais rapidamente que aquela dos modelos anteriores.
Contudo, o cenário que ela deixa depois da sua fulgurante trajetória
é ainda mais inconsistente: fundada no mercado, a esquerda representada pelo PT se expressa como uma esquerda de simulacros, nos
quais realidade e ilusão se integram em erráticas metamorfoses.
A história e a vida é que colocaram para nós o desafio de superar
simultaneamente três dimensões históricas da esquerda brasileira.
Mas aqui a história não deve e nem merece ser repetida. Essa não
pode ser uma das muitas oportunidades perdidas na trajetória de
construção da esquerda e da democracia brasileira. Dentre muitas
4 REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice. “Breve história do ‘comunismo democrático’
no Brasil” In p. 261-281. FERREIRA, J. e AARÃO REIS, D.(org.) Revolução e Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (As esquerdas no Brasil, v.3).
93
V. Batalha das Idéias
razões porque o nosso penoso e débil processo de modernização e de
democratização somente se consumou, em seus traços conhecidos,
devido a não existência, entre nós, de uma esquerda radicalmente
democrática e reformista.
Por essa razão, é preciso recapturar o tema das reformas para o
campo da esquerda brasileira, por meio da elaboração de um programa que concentre suas propostas nas demandas democratizadoras
do mundo do trabalho e da vida, condenando tanto o Estado ineficiente (independente do seu tamanho) quanto o mercado ególatra
e desqualificado. Baseado numa política aberta e em amplo diálogo com a sociedade, é preciso pensar as reformas como mudanças
que envolvam a democratização do poder na sociedade brasileira, ou
seja, é preciso conectar as reformas com o tema da civilização democrática. É preciso pensar as reformas para além do minimalismo e da
lógica de mercado a que elas foram reduzidas na política brasileira
recente. Em outras palavras, é preciso resgatá-las como uma perspectiva de realização da modernidade.
O país necessita forjar outra esquerda, com amplas bases sociais,
legitimada como reformista e que fale ao coração de milhões. No Brasil, um partido das reformas deve defender a melhoria da vida das
pessoas e, em função dessa perspectiva, deve privilegiar a elaboração
e implementação de um programa que tenha as características e o
sentido de um “reformismo desenvolvimentista”. Esse “novo reformismo” deve ser enfim a base de uma nova cultura política para uma
esquerda moderna e democrática, o correlato, no discurso político,
daquilo que o filosofo Antonio Cícero reivindicou recentemente como
“um reformismo profundo e conseqüente”.
94
Política Democrática · Nº 22
Um poder de sedução que cresce1
Tony Judt
O
marxismo, como o reconhece abertamente um de seus críticos
mais virulentos, o historiador polonês Andrzej Walicki, tem
sido o mais influente movimento “de reação às múltiplas taras
das sociedades capitalistas e da tradição liberal”. Se o marxismo saiu
de moda, no último terço do século XX, foi em grande parte porque os
piores defeitos do capitalismo pareciam ter sido enfim resolvidos.
A tradição liberal, tentando com sucesso, de forma inesperada,
adaptar-se às dificuldades da crise de 1929 e da Segunda Guerra
Mundial, e a dotar as democracias ocidentais de instituições estabilizadoras como o New Deal e o Estado-providência, tinha manifestamente triunfado de suas críticas antidemocráticas, de esquerda
como de direita. Uma doutrina política perfeitamente bem colocada
para explicar e explorar as crises e as injustiças de um outro período
parecia, a partir de agora, a ponta da placa.
Hoje, portanto, as coisas estão, uma vez mais, prestes a mudar. O
que os contemporâneos de Marx, no século XIX, chamavam a “questão social” – isto é, como acabar com o enorme abismo entre ricos
e pobres, e com as odiosas desigualdades em matéria de saúde, de
educação e de oportunidades – talvez tenha se fixado no Ocidente
(enquanto o fosso entre ricos e pobres, que parecia à época dever desaparecer, reaparece novamente após alguns anos, no Reino Unido e
principalmente nos Estados Unidos), mas opera um retorno de força
na atualidade internacional.
O que aparecia aos seus ricos beneficiários como sendo um crescimento econômico mundial e a abertura dos mercados nacionais e
internacionais aos investimentos e às trocas era percebido, de mais
em mais, por milhões de outras pessoas, como uma redistribuição da
riqueza mundial em proveito de um punhado de multinacionais e de
detentores de capitais.
1 Extratos de artigo publicado na revista The New York Review of Books, edição de
julho, e reproduzidos na revista parisiense Courier International nº 924 (de 17 a 23
de julho de 2008).
95
V. Batalha das Idéias
Nestes últimos anos, críticas respeitáveis começaram a modernizar o discurso radical do século XIX e a aplicar com um sucesso
perturbador as relações sociais do século XXI. Não há necessidade
de ser marxista para reconhecer o que Marx e outros chamavam o
“exército industrial de reserva”, o qual hoje volta à superfície não
mais nos quarteirões pobres das cidades industriais européias, mas
por toda a parte, no mundo.
Contendo os custos de mão-de-obra – graças às ameaças de externalização, de deslocalização das fábricas ou de desinvestimento –
esta reserva mundial de trabalhadores pouco remunerados contribui
para preservar os lucros e manter o crescimento, como ela fazia na
Europa industrial do século XIX, em todo o caso antes que as organizações sindicais e os partidos operários de massa se tornassem suficientemente fortes para impor aumentos de salários, uma legislação
fiscal redistributiva, e, enfim, no século XX, uma mudança decisiva
da relação das forças políticas, contradizendo as predições revolucionárias de seus próprios dirigentes.
Em suma, o mundo parece dar início a um novo ciclo, um ciclo
que era familiar a nossos predecessores do século XIX, mas do qual
os ocidentais não tiveram experiência recente. Nos próximos anos,
com o aprofundamento dos sinais visíveis de riqueza e a exacerbação de conflitos decorrentes dos termos de troca, a localização dos
empregos e o controle de recursos naturais em vias de rarefação,
entendemos verdadeiramente ser oportuno falar de desigualdade, de
injustiça, de iniqüidade e de exploração – nos países ocidentais, mas
principalmente no resto do mundo. Desta forma, à medida que a
lembrança do comunismo se esmaece, o marxismo é suscetível de
exercer uma atração moral ainda maior em uma versão renovada ou
uma outra.
Isso pode parecer algo difícil de acreditar, mas não esqueçamos
que, na América Latina ou no Oriente Médio por exemplo, o marxismo, em uma ou outra de suas versões, jamais perdeu seu poder
de sedução junto aos intelectuais e políticos radicais. Enquanto explicação convincente da situação local, o marxismo conserva muito
de sua atração, como entre os que pensam e lutam por um mundo
melhor, os chamados altermundialistas. Estes últimos vêem nas tensões e nas fraquezas da economia capitalista internacional de hoje
exatamente as mesmas injustiças e as mesmas possibilidades que
conduziram os observadores da primeira “mundialização” econômica, dos anos 1890, a aplicar a crítica do capitalismo formulada por
Marx e pelas novas teorias do “imperialismo”.
96
Política Democrática · Nº 22
Um poder de sedução que cresce
E porque ninguém, por sua vez, não parece ter estratégia mais
convincente a propor para corrigir as injustiças do capitalismo moderno, o lugar está novamente livre para aqueles que têm a história mais
coerente a narrar e a receita mais radical a fazer. Lembremo-nos do
destaque profético que fazia Heinrich Heine a propósito de Marx e de
seus amigos em meados do século XIX: “Estes doutores em revolução
e seus discípulos impiedosamente determinados são as únicas pessoas na Alemanha que têm vida e é a eles que pertence o futuro”.
Eu não sei se o futuro do radicalismo político pertence a uma
nova geração de marxistas, indiferentes aos crimes e às derrotas de
seus antecessores comunistas (e talvez não estejam deles informados). Espero que não, mas não me arriscaria a apostar nisso.
Jacques Attali publicou, em 2005, um grosso livro escrito às
pressas sobre Karl Marx (Karl Marx ou l’esprit du monde, éd. Fayard,
2005). Ele estima que a queda da União Soviética libertou Marx de
seus herdeiros, autorizando-nos a ver nele o profeta inspirado do
capitalismo que soube antecipar os dilemas contemporâneos, notadamente as desigualdades mundiais engendradas por uma concorrência desenfreada. Sua tese foi amplamente debatida na França,
mas também na Grã Bretanha.
Claro que se poderia responder a Attali o que disse a respeito o
filósofo polonês Leszek Kolakowski ao historiador britânico Edward
P. Thomson, que afirmava que faltava talvez salvar as boas idéias do
comunismo de sua lamentável atualidade: “Faz anos que não espero
nada das tentativas visando a emendar, renovar, limpar ou corrigir a
idéia comunista. Péssima idéia, olá! Eu o sabia, Edward. Esta cabeça
de morto não sorrirá nunca mais”.
Porém, Jacques Attali é um homem dotado de antenas políticas
ultrasensíveis que captam as menores variações do humor do momento. Se ele pensa, e nisso ele certamente não está só, que a cabeça do morto pode sorrir de novo e que as explicações moribundas e
totalizantes estão realmente chamadas a renascer – não seria senão
como um contraponto à irritante arrogância da direita ultraliberal –
então, isso não é tão falso assim.
Nestes primeiros anos do novo século, encontramo-nos assim
face a duas miragens opostas e, portanto, estranhamente similares.
A primeira destas miragens é bem conhecida dos americanos, mas
ela tem curso em todos os países desenvolvidos. Consiste em crer,
como o martelam beatamente comentaristas, políticos e experts, que
o consenso atual sobre a economia de mercado é a condição de toda
97
V. Batalha das Idéias
democracia moderna bem gerida e que ele durará eternamente; e que
aqueles que se opõem são mal informados, caluniadores, e em todos
os casos, condenados a pregar no deserto.
A segunda miragem é a de crer que o marxismo tem um futuro
intelectual e político, não em razão da decadência do comunismo,
mas precisamente deste fato. Relegado até aqui à “periferia” internacional e às margens da instituição universitária, esta fé renovada no
marxismo é devida, em grande parte, à não existência de nenhuma
concorrência neste terreno, o denominador comum dos movimentos
contestadores internacionais.
A similaridade destas duas miragens reside, seguramente, em sua
incapacidade comum de extrair lições do passado. Elas apresentam
para além disso uma interdependência simbiótica, já que é a miopia
da primeira que oferece uma credibilidade falaciosa aos argumentos
da segunda.
Aqueles que aplaudem o triunfo do mercado e o recuo do Estado,
aqueles que gostariam de nos ver celebrar o campo livre deixado à
iniciativa econômica no mundo “plat” (plano, cuja superfície não tem
relevo) de hoje, esqueceram o que se passou na última vez que seguimos este caminho. Um rude choque lhes espera (qualquer que seja
este choque, se se crer na experiência do passado, tem boas chances
de afetar quem quer que seja).
Quanto àqueles que sonham difundir novamente o filme marxista, remasterizado e liberado de suas ranhuras comunistas, seriam
bem informados de se perguntar, antes que não seja muito tarde, o
que faz que os “sistemas” de pensamento totalizante conduzam inexoravelmente a “sistemas” políticos totalitários.
98
Política Democrática · Nº 22
A gênese do petismo1
Clayton Cardoso Romano
A
ntonio Gramsci ensina que a virtude da política está na combinação do uso da coerção com consentimento. Seu conceito
de hegemonia afirma que a constituição de um bloco histórico
– isto é, de um projeto político-cultural capaz de legitimar perante a
sociedade o poder usufruído por determinada elite dirigente – começa propriamente no campo das ideologias, esfera em que os homens
e suas classes tomam consciência da realidade.
Em sociedades complexas, com interesses variados e em permanente estado de tensão, diz Gramsci, as elites dirigentes são obrigadas a fundar canais de diálogo com demais setores e classes sociais,
além daqueles aos quais estão vinculados de modo orgânico. A força
cede lugar à astúcia e as elites são convidadas a demonstrar outras
virtudes, que não sejam verificadas apenas através de métodos eficazes no uso exclusivo e legal da violência.
Muito embora a hegemonia política de determinado grupo sobre o
conjunto social possa ser conquistada e sustentada por certo tempo
com base na coerção, no arbítrio, na força, mesmo nas modernas sociedades capitalistas, Gramsci alerta que, em algum momento, esse
regime terá de fazer “concessões” para garantir sua legitimidade e assim consolidar a hegemonia alcançada. Para que as concessões não
ameacem a estabilidade do poder constituído, o grupo dirigente passa a mobilizar instrumentos político-culturais com vistas à “formar”
os interesses dos outros grupos sociais e difundir “novos” valores no
interior da sociedade.
Numa relação dialética, portanto, a longevidade de um bloco histórico está associada à capacidade de seus dirigentes em manusear
armas e palavras com igual destreza, extraindo disso uma síntese
possível. Nas sociedades democráticas, com a arena da política livre
de impedimentos, a lógica do consenso se torna a principal estratégia
na luta por posições no interior da sociedade política e, em casos assim, as palavras costumam fazer as armas baixarem. Nas ditaduras,
1 Este texto é um fragmento da tese de doutorado intitulada “Do ABC ao Planalto: a
cultura política do petismo”, defendida em 2008 no Programa de Pós-Graduação em
História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Unesp/Franca.
99
V. Batalha das Idéias
ao contrário, com os meios políticos interditados pela força, as táticas de conflito costumam prevalecer alimentadas pela convicção de
que há um inimigo a ser vencido, num contexto em que as palavras
são geralmente incapazes de acompanhar o ritmo frenético imposto
pela guerra de movimento. Em ambos os casos, porém, coerção e
consentimento são necessários para preservar a hegemonia política, legitimar a elite dirigente e realizar o projeto político-cultural
promulgado por determinados setores e classes sociais.
E, historicamente, a teoria se aplica à prática.
Após a queda do Estado Novo, o Brasil viveu uma experiência
democrática então sem precedentes em sua história. Entre 1945 e
1964, em detrimento das teses de populismo, de fato os brasileiros
foram às ruas: para saudar a FEB na volta da campanha contra
o fascismo, para dizer ao lado de Getúlio Vargas que “O Petróleo
é Nosso” e mais tarde chorar a morte do fundador do trabalhismo
brasileiro; para comemorar o primeiro título de campeão mundial
de futebol e depois também o segundo; para exigir reformas de base
ou mesmo marchar em devoção a Deus, à família e à propriedade.
De acordo com Jorge Ferreira, durante aquele período, a política nacional passou a ser discutida nas ruas, nos sindicatos, na
imprensa e nos quartéis. E não foram poucos os episódios que mobilizaram a sociedade em torno dos ideais de democracia e de reformas. Ferreira cita o “queremismo”, tornado um amplo movimento
de massas, como expressão marcante da cultura popular registrada
entre as décadas de 1940 e 1960 (FERREIRA, 2005: 375-376).
A política fora apropriada por parcelas da população secularmente excluídas do jogo político. Estas tomavam o céu de assalto
e faziam da política matéria-prima na produção de identidades individuais e de classe. Aos trancos e barrancos, isto é, colecionando
toda sorte de conflitos, contradições, imperfeições, a República parecia finalmente completar o arco inaugurado em 1889 e ampliado
a partir de 1930, sob evidente base autoritária.
No plano da organização sindical, cerca de 500 sindicatos, 49
federações e 4 confederações atuavam sem restrições no Brasil até
1° de abril de 1964 (CAMARGO, 1976: 131). E até 27 de outubro de
1965, data da promulgação do Ato Institucional n° 2, eram 13 os
partidos políticos que dispunham de registro eleitoral e funcionavam livremente no país, sem falar do clandestino PCB. (SCHMITT,
2001: 11-30)
100
Política Democrática · Nº 22
A gênese do petismo
Os militares golpearam tudo isso. Em nome da democracia, promoveram intervenções nos sindicatos, fecharam os partidos e instituíram o bipartidarismo. Conciliaram eleições livres, diretas e regulares para assentos parlamentares de todos os níveis – municipal,
estadual e federal – com escolhas indiretas, muitas vezes extemporâneas, para cargos executivos e de senadores da República. Sacrificaram e excluíram do território nacional as principais lideranças e
referências da época. Enfim, parecendo encarnar o genuíno espírito
revolucionário – afinal, aquilo se autoproclamava uma “revolução” –,
os militares se dedicaram com empenho à premissa reservada aos
“novos” regimes de apagar os vestígios do passado e executaram uma
esterilização política sem paralelo na trajetória do republicanismo
brasileiro.
Quanto aos métodos coercitivos empenhados pelos militares na
consolidação da “nova” hegemonia, existe uma literatura realmente
extensa dissertando sobre o assunto. No entanto, ainda pouco se
sabe sobre as relações de consentimento estabelecidas durante as
duas décadas de vigência do regime militar (1964-1985).
Admitindo a vitalidade explicativa da tese gramsciana, a ditadura
brasileira pode ser vista então enquanto a representação política de
um “novo” bloco histórico, este portador de “novas” bases políticoculturais a serem difundidas na sociedade. Esta seria a motivação
derradeira para a instalação do “novo” regime, fundar um “novo” processo civilizador no Brasil. Nestes termos, portanto, cabe a pergunta:
qual a matéria que compõe a cultura política legada pelos militares a
toda uma geração de brasileiros, formados sob o manto do autoritarismo e do cerceamento político?
Tecnocracia costuma ser a resposta mais lembrada. Um governo
de técnicos, comandado de cima para baixo por um príncipe despersonalizado e que suplanta as contradições através do esmagamento
da antítese. E se todos os conflitos de interesses e valores desaguam
na política, que se interditem então seus afluentes ou que se mantenha sua vazão sob estrito controle. Retirados os homens, entram em
cena as máquinas, as coisas; é a vez dos técnicos.
Não resta dúvida: o viés tecnocrático do militarismo impregnou
vários setores da sociedade brasileira, contaminando sucessivas gerações. Dotados de certo nível de conhecimento – ainda que específico –, os tecnocratas formavam também uma elite dirigente, em
boa medida, separada do todo social em função dos baixos índices
educacionais colecionados no país. Intelectuais orgânicos (GRAMS101
V. Batalha das Idéias
CI, 2007: 15), oriundos de classes que participavam daquele vigoroso
processo de produção capitalista empreendido pelos militares. Dirigentes no mundo da produção; estes eram os tecnocratas.
Mas a tecnocracia, enquanto projeto político-cultural, não parece
ter sido capaz de afirmar-se de modo preponderante sobre a sociedade brasileira como um todo. Atuando como uma espécie de “cultura
de especialistas”, a tecnocracia não dispunha de condições estruturais totalmente favoráveis, algo que lhe permitisse enterrar de vez a
cultura popular do período anterior ao golpe. Mesmo que através do
mundo do trabalho tenha sido transformada em parâmetro de disciplina por uma quantidade enorme de trabalhadores, definitivamente, a tecnocracia não resume a cultura política daquele período pelo
simples fato de não ter alcançado o status de cultura popular; talvez,
os populares se sentissem mais bem representados por um jogador
de futebol, tricampeão mundial, do que pela figura aritmética de um
técnico industrial.
Do ponto de vista econômico, o nacionalismo entoado pelos militares não se revelava estatista, ancorando sua idéia de “Brasil Grande”
no substantivo fomento dado à iniciativa privada. Numa arriscada cirurgia, operada pelos tecnocratas, irmãos siameses foram separados
e o eixo nacional-desenvolvimentista do pré-1964 foi enfim desarticulado. Antes, o desenvolvimento estava a serviço dos interesses da
nação; com os militares, o nacional é que parecia se submeter aos
ditames do capital industrial.
A indústria de bens duráveis e semiduráveis colecionava recordes
de produção e vendas, instituindo novos padrões de consumo. A mediação daquele Estado protetor do pré-1964 dava lugar a uma postura que instigava a livre iniciativa econômica e estimulava a competição. Fortalecido, o mercado surgia como “novo” ente mediador.
Colecionando índices de crescimento econômico jamais vistos, o Estado se concentrava na emergência do “espírito do capitalismo” e na
promoção da “paz social”, deixando à própria sorte todos os milhares
de migrantes que seguiam a trilha da industrialização brasileira.
Pela TV a cores – uma das novidades da época – aquela nova sociedade de massas se descobriria. E justamente através da tela colorida, coincidência ou não, o enigma começaria a ser revelado. Num
comercial dos cigarros Vila Rica, um dos campeões mundiais com a
seleção brasileira de futebol em 1970 aparecia no vídeo e indagavaafirmando: “Você gosta de levar vantagem em tudo, certo?” A versão
impressa da mesma propaganda trazia um cartaz com o jogador ao
102
Política Democrática · Nº 22
A gênese do petismo
lado do maço de cigarros, em baixo da marca e dos dizeres: “Leve
mais vantagem”; logo abaixo, o preço em destaque (Cz$ 18,00). Estava promulgada a “Lei de Gerson”.
De início, a peça publicitária não causou qualquer polêmica. Mais
tarde, incorporada pela cultura popular, a lógica da vantagem seria
narrada como uma nova versão do “jeitinho brasileiro”, definida como
elemento constitutivo da identidade nacional. A “Lei de Gerson” passava então a figurar no rol das leis que realmente parecem valer algo
neste país, a saber, as não escritas; outro traço da cultura brasileira.
A idéia de levar vantagem em tudo sintetizava a fórmula dos tecnocratas de superexposição do mercado – e superexploração do trabalho, é sempre bom lembrar – combinada com o cerceamento dos
espaços políticos. A “Lei de Gerson” expunha, sobretudo, o predomínio da noção de competição – esta francamente estimulada pela livre
concorrência – convertida em matéria-prima das relações sociais então estabelecidas. Na ausência de valores político-culturais, aquela
nova sociedade de massas valia-se daquilo que estava disponível na
tentativa de soldar suas identidades individuais e coletivas, tomando
de empréstimo termos e procedimentos retirados de sua – recémostensiva – convivência com o capital. E assim, equações econômicas
se transformavam em cultura política.
Outra face do mesmo processo pode ser vista na profusão de organizações associativas de novo tipo. Criadas à margem do Estado
e alijadas da política, as Sociedades de Amigos de Bairro (SABs) e
as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) têm nas questões sociais
uma fonte comum em suas demandas.
A perversa combinação de crescimento e pobreza produzia um
rastro de degradação ambiental e humana. Cidades inteiras foram
erguidas no entorno dos pólos industriais, sobrepondo-se barracos,
expandindo-se avenidas. Pontes de concreto armado para escoar o
tráfego pesado, por “milagre”, se tornaram improvisados conjuntos
habitacionais, que, em detrimento do improviso e das condições precárias, duraram anos até serem removidos. E como tantos outros direitos conquistados neste país, também a urbanização se fez, melhor
dizendo, quando se fez, utilizando-se a via da reivindicação.
Mas, na época dos militares, o Brasil não se expandiu apenas nos
grandes centros. Intenso no eixo Rio-São Paulo, o fluxo migratório
de entradas também foi constante nas regiões Norte e Centro-Oeste.
Diante da ineficiência – quando não, total inexistência – do Estado
103
V. Batalha das Idéias
na prestação de serviços e garantia de direitos, parcelas significativas
das populações localizadas nos chamados grotões do país tiveram
de se organizar do mesmo modo que ocorria nos centros urbanos.
Em localidades assim, as CEBs cumpriram um papel fundamental
no sentido de sistematizar os pleitos colhidos da realidade social e
transformá-los em vontade coletiva.
O impacto do novo associativismo não se fazia sentir apenas nas
classes populares. Setores médios da sociedade registraram igual
profusão de associações esportivas e grêmios recreativos. Era o
mundo privado, laico ou não, dando forma a uma prática associativa
responsável por formalizar novos comportamentos e valores sociais,
auxiliando de modo decisivo a composição da identidade políticocultural de toda uma geração de brasileiros.
Não se trata aqui de desqualificar ou diminuir a importância dos
atores mais decididamente empenhados na resistência democrática
emedebista. Ao contrário, o que se busca afirmar é a configuração
de outras formas de resistência ao excessivo controle exercido pelos
militares sobre a política. Formas estas nascidas da iniciativa privada, vinculadas ao social e cujo ponto de unidade sugeria uma mútua
negação ao Estado, aos políticos e à política. Fenômeno que pôde ser
observado de Norte a Sul do país, desde o início da década de 1970;
talvez, fruto da concessão de um regime temeroso em moderar o rígido domínio mantido sobre o mundo político.
A escolha democrática feita pela sociedade brasileira no começo dos anos 1980 apresentava uma fissura que, em boa medida,
determinaria o curso da transição democrática no Brasil. Ensaiada
desde meados da década de 1970, ainda no contexto da abertura,
a dissociação entre democratização política e democratização social
(AGGIO, 1997: 101-134) deixava claro que os atores envolvidos naquele processo haviam sido formados em diferentes locais durante os
últimos vinte anos.
A escolha dos brasileiros foi antes uma recusa ao autoritarismo.
Esta era a conclusão de José Álvaro Moisés, em meados dos anos
1990, após analisar a mudança de atitudes e opiniões da sociedade brasileira quanto a instituições e participação política (MOISÉS,
1995: 117). Dentre tantas questões possíveis, especificamente duas
chamam a atenção em relação aos dados reunidos por Moisés: (1) a
queda nos percentuais de adesão à presença dos militares na política, entendida como uma negação às formas autoritárias de governo,
não foi acompanhada de crescimento correspondente nos índices de
104
Política Democrática · Nº 22
A gênese do petismo
apoio aos partidos ou à participação eleitoral, termômetros importantes de qualquer sistema democrático que se preze; (2) a trajetória
descente dos apoiadores do autoritarismo é seguida da rota ascendente nos números de brasileiros que rechaçavam a intervenção estatal ao livre direito de associação e organização dos trabalhadores e
de seus interesses.
E diante dos fatos, duas conclusões são inevitáveis. A primeira
diz respeito às bases político-culturais da legitimidade democrática
no Brasil. Tendo em vista que os índices aferidos por José Álvaro
Moisés não sofreram qualquer alteração substancial desde então,
especialmente em relação aos níveis de apoio aos partidos e às eleições, caberia indagar: os processos de transição e consolidação da
democracia no país logram êxito em difundir uma cultura política
democrática capaz de assegurar a hegemonia conquistada por anos
a fio, sem riscos de retorno ao arbítrio?
A escolha democrática dos brasileiros não significou um decidido
gesto de afirmação e apego aos valores democráticos, mas sim uma firme opção contrária ao domínio dos militares. Este novo ciclo da democracia no Brasil foi inaugurado negando-se o autoritarismo, ao invés
de assumir-se de modo integral as responsabilidades, os desafios e as
possibilidades colocados por aquele regime democrático que brotava.
A segunda conclusão se refere à notável ascendência nos percentuais de brasileiros que se manifestavam contrários à intervenção
do Estado no direito de greve e na livre associação; vale dizer, o único quesito que registrou crescimento ininterrupto durante o período
1972-1994. Isto seria reflexo do associativismo dos anos 1970-1980
ou do “espírito do capitalismo” e de seu “instinto animal”? De todo
modo, a negação à presença estatal em temas de interesse dos entes
privados, esta sim, parecia consolidada em meados da década de
1990, nos “anos dourados” do neoliberalismo.
Portanto, fica a impressão de que aquela versão de americanismo
(VIANNA, 2004) posta em prática pelos militares no Brasil resultou
numa obra estranha. De um modo, consentiu no desenvolvimento
de um novo tipo de associativismo, aparentando estimular a organização cívica da sociedade. De outro, retirou-lhe a dimensão política,
obrigando as novas práticas associativas a tomar de empréstimo referências e procedimentos específicos às outras esferas da vida em
sociedade. Raciocínios econômicos e questões sociais ditariam a partir de então o comportamento adotado em cena pelos novos atores.
105
V. Batalha das Idéias
Livre das amarras autoritárias de um ator que, embora despersonalizado, trazia consigo a marca da Ibéria, o americanismo ressentiuse, no curso da transição, de uma cultura política que lhe subsidiasse e de um partido que fosse seu legítimo porta-voz. Na escassez de
valores político-culturais, teve de se contentar em dispor da equação
custo-benefício sem o auxílio de qualquer tradição democrática ou
mesmo de qualquer outra tradição política.
Diferente do que supõe a sociologia contemporânea, a escolha
racional (rational choice) – isto é, a livre opção de mobilizar a fórmula perdas-e-ganhos para determinar atitudes e comportamentos
políticos – não exigiu uma cultura política democrática robusta por
parte dos brasileiros como condição necessária à sua efetivação. Segundo os teóricos da escolha racional (GREEN e SHAPIRO, 2000),
o procedimento é geralmente verificado em sociedades complexas,
com predomínio das relações de mercado e profundo compromisso
democrático.
Nestes casos, afirmam, costuma ser grande a possibilidade de
transferência desta lógica da vantagem, própria aos raciocínios e
equações econômicas, às questões referentes ao universo da política.
No entanto, a escolha racional não substitui ou invalida a presença
de elementos políticos-culturais, ao invés disso, por se tratar de um
modo de proceder, um comportamento em relação ao mundo político,
busca selecionar racionalmente os valores e as tradições que deverão
ser empregados em tal ou qual oportunidade. Em função disso, a
escolha racional dependeria de um ambiente cívico consolidado, com
culturas políticas enraizadas e de forte apelo democrático.
Na prática, contudo, a teoria se mostrou outra. Proclamada no
Brasil pela “Lei Gerson”, a lógica da vantagem, a relação perdas-eganhos, a equação custo-benefício, todas passavam diretamente do
mercado para a política. Sem tradição democrática capaz de lhe dar
suporte, o que de início era para ser uma atitude assumiu status de
valor e princípio político-cultural.
Nascia uma nova cultura política na sociedade brasileira: a escolha racional. Sem contar com um portador que lhe garantisse vazão
integral, o americanismo no Brasil se abrigou então em uma de suas
criações mais originais. Um organismo novo, aparentemente despersonalizado, avesso a teorias e sem tradições políticas a lhe guiar o
caminho, que deveria ser trilhado na prática.
106
Política Democrática · Nº 22
A gênese do petismo
Mas havia um problema. Aquele moderno partido valia-se da
“vantagem do atraso” (VIANNA, 1989: 79) para se inserir no mercado da política. Nascido a partir de estratos avançados daquela nova
sociedade, logo, igualmente interessado em fazer escolhas racionais,
o novo partido compartilhava o comportamento registrado pelo associativismo, de negação do Estado e da política. Estes deveriam ser
tomados e “purificados” pelos instintos egoísticos da sociedade civil.
E, assim como faziam os sindicalistas autênticos, as CEBs e algumas SABs, a arma daquele novo partido era o conflito, convertido por
seus adeptos em método político. A fundação do PT selou o encontro
entre escolha racional e lógica do conflito. Nascia uma nova cultura
política partidária no Brasil: o petismo.
Referências
AGGIO, A. Revolução e democracia no nosso tempo. Franca:Unesp/Franca, 1997.
CAMARGO, C.P.F. (et al). São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza. São Paulo:
Loyola, 1976.
FERREIRA, J. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura popular 19451964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. 3. ed., v. 2. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
GREEN, D.P. e SHAPIRO, I. Teoria da escolha racional e ciência política: um
encontro com poucos frutos? Perspectivas, São Paulo, n. 23, p. 169-206, 2000.
MOISÉS, J. A. Os brasileiros e a democracia. Bases sócio-políticas da legitimidade democrática. São Paulo: Ática, 1995.
SCHMITT, R. Partidos políticos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2001.
VIANNA, L.W. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. 2. ed.,
Rio de Janeiro: Revan, 2004.
______. A transição. Da Constituinte à sucessão presidencial. Rio de Janeiro:
Revan, 1989.
107
VI. O Social
e o Político
Autores
Andréa Bandeira
Professora Assistente da Universidade de Pernambuco.
Sergio Augusto de Moraes
Engenheiro, Diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.
Gustavo Souto Maior
Gustavo Souto Maior é engenheiro, com mestrado em economia do meio ambiente, e
atualmente preside o Instituto Brasília Ambiental, órgão de meio ambiente do Governo
do Distrito Federal.
Resistências cor-de-rosa-choque
Andréa Bandeira
É
notável na literatura histórica atual, o aparecimento de livros
que têm como objeto a crescente participação das mulheres
em todas as esferas de atividades na sociedade brasileira,
bem como seus diferentes papéis. Antes esquecido ou minimizado,
o papel das mulheres vem-se modificando nas falas e nos discursos
produzidos sobre o feminino, falas estas que são resultado do espaço
aberto nas academias por uma nova metodologia que insere, como
objeto da pesquisa, os diversos sujeitos da história.
Sabemos que a contrapartida à violenta ditadura militar, que se
instalou no Brasil em 1964, foi a explosão de uma vigorosa cultura
de resistência, que se expressou na crítica ao regime, assim como em
propostas de modos alternativos e libertários de vida em sociedade.
Em princípio dirigida ao regime militar, a revolução que se deu nas
artes, nas letras, nos costumes, nas décadas de 1960 e 1970, no Brasil, estendeu seus questionamentos à sociedade patriarcal e burguesa
mais amplamente, ao par com várias correntes do pensamento que,
naquele momento, envolveram-se com uma crítica à modernidade.
Assim, no momento em que se viveu no país uma violenta repressão política e cultural, afetando radicalmente a vida pública, cerceando a palavra e a ação, desfazendo os conhecidos espaços de sociabilidade e interação social, assistiu-se à emergência de novas formas
de produção cultural como resultado da ação de vários segmentos
da sociedade. Foi nesse contexto de crise e de construção de novos
modelos de subjetividade que surgiram, nos anos 1960–1970, movimentos de mulheres, provenientes das camadas médias, intelectua-
111
VI. O Social e o Político
lizadas, buscando novas formas de expressão da sua individualidade
(GOLDEBERG, 1987). Muitos desses movimentos foram retomados
de antigas lutas já empreendidas em favor de sua igualdade política e
social, realizadas dentro de clubes, associações e federações, quando
não eram formas individuais de expressão na corrente de um movimento mais amplo que culminou na “primavera” de 1968.
Na luta contra a ditadura militar, essas mulheres se defrontaram
com o autoritarismo masculino dentro das organizações de esquerda, o que muitas vezes impediu sua participação em condições de
igualdade nos grupos que se formaram. Elas demonstraram atitudes
de recusa radical dos padrões sexuais e do modelo de feminilidade
construídos na história da mulher brasileira, modelo este que a colocava sempre como auxiliar do crescimento masculino. Questionaram
enfaticamente as relações de poder entre os gêneros que se estabeleciam no interior dos grupos políticos de esquerda, tentando, a partir
de um referencial marxista de relação entre os sexos, impedir que a
dominação machista fosse diluída ou subsumida pelo discurso tradicional da revolução.
Assim, em um contexto de crise, de repressão e de construção de
novos modelos de subjetividade, observamos as diversas formas de
inserção delas nos movimentos de reação ao regime autoritário, instalado no Brasil, pós-1964, com especificidade em Pernambuco. Pois
escolher o tema das várias participações da mulher nordestina, notadamente a pernambucana, no processo de resistência ao regime instaurado, ao mesmo tempo que dá voz a uma sujeita pouco observada
na historiografia, recupera parte da história recente do nosso país.
Sabemos também que a História de Pernambuco é marcada por
movimentos políticos refletores das lutas cotidianas entre os diversos grupos que formam a sua sociedade. Essas lutas se alternam
desde conflitos entre setores de um mesmo grupo até os conflitos
entre grupos, demonstrando a complexidade e a instabilidade das
relações sociais, transversadas por diferentes interesses (das economias material e sexual) dialeticamente integrados, possibilitando
o desenvolvimento desigual e combinado desses grupos (LÖWY, Michael, 1995; NOVAK, George, 1977). As lutas estabelecidas entre os
grupos e entre os setores podem e geram movimentos de resistências
que muitas vezes resultam apenas em reequilíbrio (de forma dialética) do sistema, sem alteração do status quo dos conflitantes, porém
sempre marcados por uma mudança nas relações de força/reprodução das partes. A História de Pernambuco é, então na micro-história
(REVEL, J., 1998), a história dos conflitos entre os grupos e entre os
setores que formam a sua sociedade (MARX, K., 2007), e, na macro112
Política Democrática · Nº 22
Resistências cor-de-rosa-choque
história ou história totalizante (BRAUDEL, F., 1992), a história das
lutas entre os grupos inter e multinacionais do mundo globalizado
(HOLANDA, F., 1998; IANNI, O., 2001).
A história do golpe, ainda não terminada, abre muitas lacunas,
do viés metodológico ao temático. Por isso, pesquisamos os diversos
movimentos de lutas e resistências femininas ao advento da ditadura
militar, em Pernambuco, observadas as premissas analíticas fundamentadas na história social (BURKE, P., 2002; CARDOSO e VAINFAS, 1997), tranversada pelo conceito de gênero (SCOTT, Jean, 1991
e 1992) e utilizando como marco a teoria marxista para uma leitura
e escritura materialista-dialética da História (MARX, K., 1989, 1991,
1997 e 2007; PLEKHÂNOV, G., 1989), bem como, entendendo as
razões do golpe a partir do avanço do sistema do capital, na sua
fase neoliberal, e na crise resultante dos conflitos gerados entre os
setores da burguesia multinacional (internacional e brasileira, DREIFUSS, R. A., 2006) que, no desenvolvimento das suas contradições,
possibilitou a ingerência das mulheres em assuntos restritos aos homens, o monopólio dos bens de produção e sua reprodução pública
(ARENDT H., 2000; BANDEIRA, A., 2003; BARTLER, J., 2003).
É possível e necessário destacar a atuação das mulheres em diversos momentos do processo implantado para conter o paradigma
do Well fare State, instituir uma nova hegemonia do capital multinacional e dos setores que o conduziram, assim como um novo modelo
de relações interpessoais entre humanos, dando às mulheres um
moderno lugar na estrutura econômica, política e social como marca
do avanço do sistema de mercadoria para o arquétipo pós-moderno
(HARVEY, D., 1992; HELLER, A. e FEHÉR, F., 2002).
A partir das premissas elencadas, entende-se que as mulheres
participaram dos diversos movimentos de resistência mais como portadoras de uma nova ordem social que revolucionaria as relações
entre os sexos do que como transformadoras das relações de gênero, porque exigiria uma mudança nas relações de poder advindas
apenas com uma mudança na estrutura econômica. Observamos
na pesquisa que as lutas se travaram no campo das resistências
às desigualdades de sexo na práxis social e menos no campo das
desigualdades de classe. O resultado dessas lutas foi a manutenção
do status quo do capital multinacional no Brasil, porém realinhado ao moderno paradigma do capital internacional, uma vez que a
paridade das mulheres aos homens na inserção pública da relação
capital/trabalho é antes um facilitador para a reprodução do regime
no período neoliberal. É importante salientar, também, que as lutas
das mulheres poderia reverter-se em luta revolucionária e, para a
113
VI. O Social e o Político
História, o estudo ganha significado quando pensadas as suas conseqüências como discurso político. Entender a apropriação feita pelo
sistema de mercadoria dos atuais modelos de relações interpessoais
entre os sexos é garantir sua desapropriação e assegurar uma outra
moral (JOFFILY, O. R., 2005; LEVY, Nelson, 2004) mais humana,
que admita a igualdade com respeito às diferenças entre homens e
homens, homens e mulheres e mulheres e mulheres (YANNOULAS,
S. C., 1994).
Ao analisarmos o período de autoritarismo militar (1964-1979),
vemos que as restrições à liberdade de manifestação de pensamento
foram a sua característica marcante, a qual se expressava no exercício sistemático da censura dos meios de comunicação à produção
cultural e científica, além do agravamento do “Estado de Exceção”,
com o cerceamento de outras liberdades. Neste clima desfavorável ao
pensamento crítico, sobretudo no que dizia respeito à interpretação
da realidade política, econômica e social do país, surgiram grupos de
uma oposição coesa, que se manifestaram das mais variadas formas
no dia-a-dia da sociedade. Seus componentes pertenciam a setores
intelectuais da Igreja e da sociedade civil (DREIFUSS, R. A., 2006;
ALVES, M. H. M., 2003), e de diversos segmentos sociais nacionais.
Também estavam presentes as mulheres que, nas suas várias instâncias de ação, desempenharam papéis, muitas vezes, sem visibilidade na memória nacional. Ao incluí-las, estabelecemos uma ponte
no processo do Golpe, uma vez que é notável a origem de muitas
dessas lutas e resistências em movimentos populares remontados ao
período democrático-popular (FERREIRA. J. e DELGADO, L., 2003),
muitas delas conduzidas por militantes de partidos de esquerda,
mulheres provenientes da classe média, mas também das classes
populares, refletindo o avanço das mobilizações dos trabalhadores
e da sociedade civil como um todo, no bojo das idéias democráticopopulares, do “bem-estar-social”, quando não em ideais socialistas
e comunistas.
Até à realização do golpe de 1964, o Brasil foi palco de muitos
movimentos rurais e urbanos que emergiram nas diversas camadas
sociais influenciados pela conjuntura ou forjados nas lutas partidárias, com destaque para os grupos liderados por militantes ou simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro, nesse período colocado na
clandestinidade. As décadas anteriores ao golpe conviveram assim
com uma luta marginal tecida cotidianamente nas ruas e nos campos, sendo Pernambuco liderança dessas ações. As ligas camponesas
na zona rural pernambucana e os clubes de mulheres nos bairros
da Área Metropolitana do Recife refletem a atuação do povo e o seu
114
Política Democrática · Nº 22
Resistências cor-de-rosa-choque
envolvimento na luta por mudanças na conjuntura do país. Lutas
diárias desenhadas em campanhas por melhores condições de vida,
de trabalho e solidariedade contra a repressão institucional.
Essas lutas empreendidas pelas mulheres deixaram vestígios em
documentos produzidos por elas mesmas, pelos órgãos de repressão
ou de informação. São exemplos: Carta de Solidariedade da União
Feminina de Marupiava, no Estado do Ceará, pela ação que sofreu a
Associação de Mulheres de Pernambuco pela polícia do governador
Barbosa Lima Sobrinho, datada de Fortaleza, 15/12/1950 e assinada pela presidente Diassis Queiróz:
(...) vem junto a esta entidade solidarizar-se com as valorosas combatentes em defesa da paz e que sofreram a ação mais brutal e covarde
por parte da polícia [...] Portanto conclamamos as nossas amigas não
esmorecer diante desta selvageria. Pelo contrário devemos nos fortalecer mais e continuar a luta em defesa da paz mundial, pelo progresso
e bem estar da humanidade. (Prontuário Funcional do DOPS-PE, Fundo SSP Nº 28.717, doc nº 14)
Carta essa enviada em repúdio pela ação repressiva e violenta da
polícia de Pernambuco contra o ato de coleta de assinaturas promovido pela Associação de Mulheres de Pernambuco contra a bomba
atômica. Violência que não se restringiu apenas ao impedimento do
ato público, mas resultou em torturas contra as mulheres envolvidas na organização do evento, como bem expressa a Carta Denúncia
enviada pela Federação das Mulheres do Estado de São Paulo, datada de 09/11/1950 ao Ministro da Justiça, Bias Fortes, informando
que foram presas, tiveram os cabelos cortados à faca e ainda foram
submetidas a atos imorais que só nos vem mostrar que as garantias
de liberdade individual não existem naquele estado e que os mantenedores da ordem pública são indivíduos que deviam estar segregados da sociedade. (Prontuário Funcional do DOPS-PE, Fundo SSP Nº
28.717, doc nº 14)
Atos de tortura que se repetirão e serão depois relatados pelas
vítimas da repressão. Quatorze anos depois, a polícia atuará com
o apoio do Exército em cerco sistemático aos opositores do Golpe e
com a autoridade de uma instituição que foi considerada o lastro do
regime. Presa política em Recife, no ano de 1964, aos 17 anos, Sílvia
Lúcia Viana Montarroyos era militante e integrava o Partido Operário
Revolucionário Trotskista, uma seção brasileira da IV Internacional.
No seu relato, o passado se restaura e sua fala representa a memória da tortura de todas as mulheres que viveram a experiência do
silêncio autoritário. Há uma permanência nos modos de violentar
mulheres que se relaciona com o próprio discurso social sobre a fe115
VI. O Social e o Político
minilidade: “eu estava com os cabelos por aqui, na altura abaixo dos
ombros, bastante abaixo dos ombros, e foi todo arrancado à mão”
(FUNDAJ – CEHIBRA: Entrevista transcrita com Sílvia Lúcia Viana
Montarroyos, em 10/09/2004, p 6). Essa violência sistemática, para
além da tortura física, busca no imaginário as suas raízes e os arquétipos Maria e Eva se tocam e trocam constantemente de lugar e na
troca estabelecem um vazio de identidade: a torturada. São histórias,
as suas histórias das mulheres.
Com o conjunto da documentação produzida e memória pessoal
é possível refazermos os passos dessas mulheres e conhecer seus
nomes e atividades, bem como acompanhar suas histórias, refazendo a história da luta e da resistência. Tal o documento que contém
uma lista de nomes de mulheres, e seus respectivos prontuários,
que participaram de reunião na sede da Associação das Mulheres de
Pernambuco, feita pela Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, datada de 23/01/1953. “Adalgisa Cavalcanti, prontuário nº
5306; Áurea Góes, prontuário nº 10.530; Júlia Santiago, prontuário
nº 1811 [...] Neuza Cardim da Silveira Barros, prontuário nº 10.153”
(Prontuário Funcional do DOPS-PE, Fundo SSP Nº 28.728, doc nº
14). Entre outros, que informam inclusive batida nessa sede feita
pela polícia de Pernambuco, numa clara demonstração da preocupação do Estado sobre esses movimentos e como esses movimentos
mobilizavam a população.
Atos que, quando públicos, realizados pela Associação, eram noticiados pela imprensa local, como a Folha do Povo que, na sua edição de 10/03/56, informou a presença de Ofélia Cavalcante, editora
da revista Momento Feminino, no ato em comemoração ao 8 de Março
e que terminou com um show de música popular, com a presença do
Trio Arco-Íris.
Esses movimentos e lideranças populares mantiveram suas condutas de lutas, articulando protestos e incentivando a resistência
até a instauração da repressão militar pós-golpe. O desbaratamento dos muitos movimentos, então instalados nas periferias urbanas
e rurais, bem como nas rodas das classes médias e intelectualizadas ao longo dos anos de chumbo não amorteceram completamente
essa oposição que, naquele momento, se articulou a outros desafios,
questionando não apenas o governo, mas toda a sociedade burguesa,
numa forte crítica à modernidade. Através da arte panfletária (música, literatura, teatro), das atitudes “ousadas” na moda de cabelos e
roupas, essas mulheres demonstraram sua insatisfação e uma forte
liderança com objetivos nítidos, ora dúbios de mudanças.
116
Política Democrática · Nº 22
Resistências cor-de-rosa-choque
Seguindo esses passos, podemos observar as vidas ao longo dos
anos até à emergência do golpe e suas conseqüências, quando as
reencontraremos para ampliar o conhecimento sobre o evento da ditadura militar. Em entrevista, Adalgisa Rodrigues Cavalcanti conta a
perseguição do Estado aos resistentes e aos militantes de esquerda,
como ela mesma foi caçada pela Justiça em, segundo ela, processos
fraudulentos, “Fui funcionária da Prefeitura e lá abriram um inquérito falso sobre mim. Um inquérito imundo, nojento, mentiroso, fraudulento, toda espécie de adjetivo negativo que se possa empregar.
Esse inquérito me condenou a um ano de prisão” (FUNDAJ – CEHIBRA: Entrevista transcrita com Adalgisa Rodrigues Cavalcanti, p 41),
e depois pelo Exército e pela Polícia do DOPS, no Governo Militar:
Ah! Esse Golpe me atingiu... Não tive prisão imediata, fui muito procurada [...] Logo reconheci a batida do policial na porta [...] Também
quando estive fora do meu lar recebi a visita, inclusive do Exército [...]
a polícia veio ao meio dia e me levou... Num grande aparato, as varandas cheias de policiais. Chegando lá fui apresentada ao delegado do
DOPS. Ele muito irritado... Uma série de invencionices”. (Idem, p. 48)
Assim, também reencontraremos Júlia Santiago da Conceição,
Ofélia Cavalcanti e outras militantes que fizeram das suas Histórias
a História das Mulheres (PERROT, M. Minha História das Mulheres) e
a História de Pernambuco.
Da mesma forma, na contramão das lutas contra a opressão do
Estado Militar, porém integrando o avanço nas relações de gênero,
numa sociedade marcadamente patriarcal, observamos a atuação de
mulheres, líderes nas ações em apoio ao governo do golpe, a partir
das diversas instâncias de convivência social, refletindo o moderno
papel do feminino na sociedade contemporânea: a expressão política, a participação no mundo do público. Nas memórias de Ângela
de Araújo Barreto Campelo, sobre o período do governo estadual de
Miguel Arraes, e as muitas manifestações populares e da classe média, que ela integra, tal como as marchas conduzidas pela Cruzada
Democrática, assim ela entre outras se inseriram no movimento:
A tomada de posição da Cruzada foi uma coisa espontânea. Elas
iam ali se reunir [no Colégio São José, no Recife], discutir entre si, o
que é que uma pensava, o que é que a outra pensava e dizer, eu estou
com você [...] precisamos fazer alguma coisa [...] E diziam [entre si]
que nós devemos fazer alguma coisa, nós vamos fazer alguma coisa.
E de repente aquela multidão viu que já era uma força em si mesmo
e saiu à rua (FUNDAJ – CEHIBRA: Entrevista transcrita com Ângela
de Araújo Barreto Campelo, p. 7-8).
117
VI. O Social e o Político
Observamos que a fala dessa mulher reflete uma necessária inclusão do feminino nos acontecimentos, como se ela, e as mulheres,
que seu discurso abarca, naturalmente não se pudessem abster. E,
no entanto, a essas mulheres foi negada a sua própria história.
Por isso, além de atender à necessária inclusão de outros atores na construção histórica, objetivamos também suprir, como já
foi dito, a falta de informações sobre o cotidiano pernambucano das
mulheres participantes das resistências ao regime militar, sem negar
outras realidades, que não são objeto dessa narrativa, articulado a
outras críticas nas estruturas objetivas e subjetivas da sociedade.
É preciso entender que as práticas cotidianas ao construírem o
conhecimento estão reafirmando um conhecimento construído e fundamentado (ideológico) nas diferenças e conseqüentemente na exclusão de parcela significativa da sociedade. Ou seja, pelo conhecimento
aprendido em sala de aula produz-se um conhecimento que reproduz
a exclusão de outros muitos sujeitos e, entre eles, as mulheres.
A economia política do sexo faz parte de sistemas sociais totais,
costurados em arranjos econômicos e políticos, numa interdependência que não subestima a total significação de cada elemento subjetivo e/ou objetivo integrante do complexo humano e social. E ao
adotar tal critério de análise da realidade humana, estamos nos posicionando ideologicamente (ética) em favor da igualdade política e
social e no direito às diferenças particulares (identidades individuais)
de cada integrante da sociedade.
118
Política Democrática · Nº 22
Notas sobre a Questão Urbana
Sergio Augusto de Moraes
Desaparecerá a cidade ou – o que seria outro modo de desaparecimento – transformar-se-á todo o planeta numa enorme colméia urbana?
Podem as necessidades e desejos que impeliram os homens a morar
em cidades recuperar, num nível ainda mais elevado, tudo aquilo que
Jerusalém, Atenas ou Florença pareciam outrora prometer? Existe
ainda uma alternativa real a meio caminho entre Necrópolis e Utopia
– a possibilidade de construir um novo tipo de cidade que, livre das
contradições interiores, enriquecerá e incentivará de maneira positiva
o desenvolvimento humano? (Lewis Mumford)
Durante milênios, o homem viveu deslocando-se, de um a outro
lugar, em busca de alimentos. Era uma vida duríssima, pois a caça
e a coleta eram incertos, disputados com outros grupos humanos e/
ou animais selvagens.
Dois fatores concorreram para que ele se tornasse sedentário: o
ponto de encontro cerimonial, que servia de meta para a peregrinação, sítios aos quais os clãs eram atraídos, a intervalos determinados
e regulares de tempo, e a domesticação de vegetais, que lhe permitia um abastecimento regular de alimentos. Esses são os germes da
aldeia, que surge a aproximadamente quinze mil anos a.C. Foi um
salto qualitativo para a humanidade.
Cumpre notar que a mulher joga aqui um papel decisivo: é a necessidade de criar seus filhos, sua intimidade com os processos de
crescimento, que a levam a desenvolver essas novas atividades. Era
a mulher que manejava o bastão de cavar ou a enxada, foi ela que
fabricou os primeiros recipientes, tecendo cestos e dando forma aos
primeiros vasos de barro.
Esse processo de colonização e a regularidade alimentar permitiram o desenvolvimento da domesticação de outros vegetais, de animais; a utilização da irrigação, primeiro natural, depois artificial;
a utilização da força do boi e depois a do jumento e a do cavalo. A
produtividade agrícola atinge um nível que permite a uma parte da
população viver sem produzir alimentos.
O homem não abandonou de imediato suas antigas funções de
caçador e coletor, mas elas foram, a cada milênio, diminuindo de
119
VI. O Social e o Político
importância. Aqui a primeira grande divisão do trabalho coincide
com a distinção de sexos. Mas eles, especialistas no uso de armas,
passam, pouco a pouco, a desempenhar novas funções, de proteção
da aldeia, dos rebanhos, das plantações e com isso aumentam seu
poder na comunidade. Surgem os Conselhos de Anciãos, o primeiro
germe de Estado.
O crescimento e o adensamento da população permite a difusão
do conhecimento, estimula a divisão do trabalho, potencializa a produtividade social. No período neolítico (também chamado de “pedra
polida”), que vai aproximadamente de 9000 a 5000 a.C., a população
mundial estimada cresce de seis a quase 100 milhões de pessoas. A
transição entre a cidade rural neolítica, pouco mais que uma aldeia,
até os primeiros aglomerados urbanos se dá nesse período. O homem
aprende a fundir e a usar o cobre. No centro do surgimento da cidade
está o templo, o celeiro, a fonte e o palácio, vale dizer a religião, a
técnica, a política. Para protegê-los, além do surgimento de grupos
armados, erguem-se muros.
Munford1 descreve a cidade como “...uma estrutura especialmente equipada para armazenar e transmitir os bens da civilização e
suficientemente condensada para admitir a quantidade máxima de
facilidades num mínimo de espaço, mas também capaz de um alargamento estrutural que lhe permite encontrar um lugar que sirva de
abrigo às necessidades mutáveis e às formas mais complexas de uma
sociedade crescente e de sua herança social acumulada”.
Na segunda metade do quarto milênio a.C., surge a escrita e a
fundição do bronze; a produtividade social cresce tanto que passa
a ser mais vantajoso manter vivos os prisioneiros de guerra do que
matá-los como se fazia até então. Aparece a escravidão, a primeira
divisão da sociedade em classes.
Evolução e Transição
Combinando, em proporções variáveis, trabalho livre e trabalho
escravo, a cidade se desenvolve no mundo até chegar a aglomerações
de centenas de milhares de pessoas, como aconteceu em Roma. A
penetração da cultura greco-romana em outras civilizações toma a
forma de uma colonização urbana, suporte, ao mesmo tempo, das
funções administrativas e de exploração mercantil.
1 MUMFORD, Lewis, A cidade na história. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1982, p.
38-9.
120
Política Democrática · Nº 22
Notas sobre a Questão Urbana
A cidade ganha também as funções de gestão e de domínio, ligado à primazia social do aparelho político-administrativo. Não é de
estranhar, portanto, que a queda do Império Romano do Ocidente –
as invasões bárbaras começam no século III d.C. e vão até o século
XIII – ocasione quase o desaparecimento da forma socioespacial da
cidade, pois, tendo as funções político-administrativas centrais sido
substituídas pelas dominações locais dos senhores feudais, não houve outro fundamento social a encargo das cidades a não ser o das
divisões da administração da Igreja ou a colonização e defesa das
regiões de fronteira.2
Em vista do poder feudal, forma-se, com efeito, uma classe negociante
que, rompendo o sistema vertical de distribuição do produto, estabelece elos horizontais servindo de intermediária, ultrapassa a economia
de subsistência e acumula uma autonomia suficiente para ser capaz
de investir nas manufaturas. Como a cidade medieval representa a
libertação da burguesia comerciante na sua luta para emancipar-se
do feudalismo e do poder central, sua evolução será bem diferente,
conforme os laços estabelecidos entre burguesia e nobreza3.
A transição da burguesia mercantil para a burguesia industrial
vai refletir-se nas cidades. “A urbanização ligada à primeira revolução industrial e inserida no desenvolvimento do tipo de produção
capitalista é um processo de organização do espaço (grifo meu , S.M.)
que repousa sobre dois conjuntos de fatos fundamentais:
1. A decomposição prévia das estruturas sociais agrárias e a emigração das populações para centros urbanos já existentes, fornecendo a força de trabalho essencial à industrialização.
2. A passagem de uma economia doméstica para uma economia
de manufatura e depois para uma economia de fábrica, o que quer
dizer, ao mesmo tempo concentração de mão-de-obra, criação de um
mercado e constituição de um meio industrial.
As cidades atraem as indústrias devido a estes dois fatores essenciais (mão-de-obra e mercado)... Mas o processo inverso também
é importante: onde há elementos funcionais, em particular matériasprimas e meios de transporte, a indústria coloniza e provoca a urbanização (idem, idem).
2 DERRY, T. K. e WILLIAMS, T. I. História de la Tecnologia. Madrid: Oxford Univ.
Press-Ed. Siglo XXI, 1977.
3 CASTELLS, M., A questão urbana. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2006, p. 43-44.
121
VI. O Social e o Político
A cidade no Brasil
Dizia Marx que todo regime histórico concreto de produção tem
suas próprias leis de reprodução da população. Marx inferiu esta lei
estudando as sociedades “clássicas”, particularmente a inglesa. Os
vínculos do modo de produção com as mudanças urbanas também
existem, mas não são lineares, são complexos. Uma das variáveis
que integra esta complexidade é o momento histórico em que se plasmam os modos de produção.
No Brasil, a conquista portuguesa tumultua e subverte o desenvolvimento das aldeias aqui existentes que viviam a transição do
nomadismo para o sedentarismo. Bota pelo avesso do avesso qualquer lei de desenvolvimento das populações pré-existentes. Dizima
e escraviza indígenas, importa e escraviza milhares de africanos. O
Brasil e os países da África negra pagam um preço incalculável à
acumulação primitiva do capital europeu.
No Brasil, como em outros países da América, as primeiras aglomerações urbanas se dão no litoral, em torno dos portos e dos contingentes civis e militares destinados a organizar e garantir a pilhagem
e o comércio colonial. No interior, aparecem também aglomerações
urbanas nas regiões de mineração.
À importação massiva de escravos africanos – do século do descobrimento até 1860 entram no Brasil 4,3 milhões4 – soma-se, particularmente após a abolição da escravatura, a migração massiva de
milhares de trabalhadores do campo provocando nas cidades brasileiras um crescimento urbano desordenado e difícil de ser expresso
por qualquer lei.
Fora de dúvida que as melhores condições de vida da cidade são
um atrativo para essa migração. Mas na base desse fenômeno está
a desorganização da sociedade rural, a crise das relações no campo.
Um seminário da Unesco para a América Latina chega a atribuir a
este fator 50% da responsabilidade pelo crescimento da população
urbana sendo a outra metade atribuída aos fatores naturais.
M. Castells constata, para a América Latina “...uma disparidade
entre um ritmo de urbanização alto e um nível e um ritmo de industrialização nitidamente inferiores aos de outras regiões também urbanizadas.” Daí o crescimento desproporcional do setor de serviços,
denominação “enganadora” segundo esse estudioso, pois, sob esta
rubrica, esconde o subemprego e até a marginalidade.
4 ALENCASTRO, Luiz Felipe de, O Trato dos Viventes. São Paulo: Ed. Cia. das Letras.
2000, p. 69.
122
Política Democrática · Nº 22
Notas sobre a Questão Urbana
No Rio de Janeiro, por exemplo, mesmo após a redução do fluxo
migratório, a cidade convive com problemas originados no ambiente
rural e transferidos para nossas favelas, como é o caso da taxa de
reprodução da população. Segundo o Instituto Pereira Passos5, a população favelada do Rio cresceu 71,3% entre 1980 e 2000, taxa seis
vezes maior que a das áreas formais.
Estas são as marcas profundas deixadas pelo capitalismo tardio
e dependente que ainda domina nosso país.
Como diz Mumford, “Sem uma longa carreira de saída pela
História, não teremos a velocidade necessária, em nosso próprio
consciente, para empreender um salto suficientemente ousado em
direção do futuro...”6. Talvez seja essa uma das lacunas que vêm
dificultando os dirigentes de nossas cidades a encontrar soluções
para nossos problemas.
Nota do autor: Para uma visão mais detalhada dos problemas
das grandes cidades brasileiras remeto o leitor para as matérias publicadas no Le Monde Diplomatique/Brasil, de agosto de 2008, em
especial para: “Quem pode fazer?” Editorial de Silvio Caccia Bava;
“Precisamos plantar a semente da mudança” – Entrevista com Luiza
Erundina; “A lógica da desordem”, de Raquel Rolnik; “O desafio das
metrópoles”, de Luiz César Queiroz Ribeiro; e “Propostas para um
futuro melhor”, do Movimento Nossa São Paulo.
5 IETS – Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (www.iets.org.br)
6 Idem nota 1, p. 9
123
Economia e conservação
da natureza1
Gustavo Souto Maior
A
segunda metade do século XIX testemunhou mudanças marcantes no conhecimento humano sobre teorias econômicas e
sobre estratégias de conservação da natureza. Preocupações
manifestadas por alguns economistas europeus sobre crescimento populacional, disponibilidade de recursos naturais e progresso
econômico no início do século XIX, passaram a ser compartilhadas por intelectuais em ambos os lados do Atlântico norte ao final
do século. Muitos desses intelectuais estiveram envolvidos com a
criação das primeiras unidades de conservação ao final do século.
Apesar de terem em comum os mesmos temas, cientistas naturais
discordavam das relações entre eles estabelecidas pelos economistas, taxando-as de grosseiras simplificações.
A partir de então, e durante os cem anos seguintes, o raciocínio econômico e a conservação da natureza ficaram cada vez mais
distantes. Na verdade, eles pareciam crescentemente incompatíveis.
Somente na segunda metade do século XX, Economia e Conservação voltaram a demonstrar certa compatibilidade. A partir dos anos
60, passou-se a utilizar crescentemente a análise econômica para a
identificação das causas da degradação do meio ambiente e das dificuldades de se alcançar metas de conservação da natureza. Na década seguinte, inicia-se a difusão crescente do uso de instrumentos
econômicos na política de meio ambiente.
Teorias e práticas econômicas continuam sendo, no entanto,
encaradas com desconfiança por certas áreas do pensamento e da
prática da conservação da natureza. Isto é particularmente evidente
entre os proponentes de espaços protegidos – unidades de conservação da diversidade biológica. Uma desafiadora questão surge da
análise histórica: qual eficiência tem predominado entre os defensores contemporâneos de áreas protegidas/unidades de conservação?
A eficiência física dos conservacionistas, a eficiência econômica tão
1 A elaboração desse artigo teve a valiosa colaboração do Professor Titular Jorge Madeira Nogueira, do Departamento de Economia da Universidade de Brasília – UnB.
124
Economia e conservação da Natureza
ao gosto de economistas de diferentes vertentes, ou nenhuma das
duas? Aceitando o desafio de tentar fornecer respostas para elas,
mostraremos que as três opções estão presentes no atual estágio de
definição e implantação de áreas protegidas/unidades de conservação. Essas têm por objetivos básicos proteger a diversidade biológica,
disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do
uso dos recursos naturais.
Unidade de conservação é, assim, uma especialização do espaço
protegido, possuindo regras próprias de uso e de não uso, manejo e definição legal para sua criação. Mais especificamente para o
caso brasileiro, as unidades de conservação são “espaços territoriais
e seus componentes, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de
proteção” (SNUC, art. 2°, I). Logo, as unidades são áreas específicas
criadas pelo Poder Público, cujo domínio pode ser público ou privado, podendo ter ou não proteção integral de seus recursos naturais,
e, dependendo do tipo, ser compatível com a presença de populações
tradicionais no seu interior.
Atualmente, temos no Brasil, segundo dados do Ministério do
Meio Ambiente, 4,8% do território sob proteção governamental na
forma de Unidades de Proteção Integral – estação ecológica, reserva
biológica, parque nacional, monumento natural e refúgio de vida silvestre – e 6,8% de Unidades de Uso Sustentável – área de proteção
ambiental, área de relevante interesse ecológico, floresta nacional,
reserva extrativista, reserva de fauna, reserva de desenvolvimento
sustentável e reserva particular do patrimônio natural.
Governos em todo o mundo, incentivados por organizações internacionais dedicadas à conservação, têm respondido à perda de biodiversidade destacando áreas com importância ecológica, para protegêlas contra a influência humana adversa. As áreas protegidas , assim,
emergiram como uma solução global para as ameaças locais à biodiversidade. Em 1985, existiam cerca de 3.500 sítios protegidos, distribuídos em 136 países, cobrindo cerca de 423 milhões de hectares. Já
em 1992, a quantidade de áreas protegidas em todo o mundo subiu
para aproximadamente 8.000, abrangendo um território de quase 750
milhões de hectares, e representando 5,1% dos ecossistemas terrestres. E, em 1997, as áreas protegidas já somavam mais de 30.000
unidades, envolvendo uma parcela do globo terrestre de cerca de 13,2
milhões de km2, uma área maior que a Índia e a China juntas.
125
VI. O Social e o Político
Parques nacionais, e outras áreas protegidas equivalentes, são,
com freqüência, descritos como “ilhas”. E essa é uma descrição bem
adequada da forma como muitas das áreas protegidas têm sido geridas, como se fossem efetivamente “ilhas” isoladas do contexto regional socioeconômico e político em que se inserem. Atualmente, é
reconhecido que o modelo histórico de conservação da natureza, que
constrói uma cerca – virtual ou real – em volta da área protegida para
preservá-la da influência humana, afastando-a do contexto social,
econômico, cultural, e mesmo ecológico em que se insere, tem gerado
conflitos, assim como resistências locais, e argumenta-se ser social e
ecologicamente contraproducente, e, em certos casos, nocivo à própria biodiversidade.
As áreas protegidas contêm alguns dos cenários e paisagens mais
espetaculares do planeta. Em algumas localidades as suas atrações
se tornaram a pedra de toque para turismo e atividades recreativas.
Contudo, turismo e recreação não são os únicos ou principais papéis
da maior parte das áreas protegidas. A conservação da biodiversidade e o provimento de recursos naturais permitem que cientistas,
educadores e a comunidade em geral encontrem material para suas
pesquisas e satisfação de diversas necessidades. Porém, conflitos entre a gestão de áreas protegidas e o desenvolvimento econômico local
são intensos em muitas regiões, demandando novas abordagens para
se proteger a biodiversidade, bem como os direitos da população que
vive ao redor das unidades.
Assim, qualquer que seja o papel desempenhado pelas áreas protegidas é de suma importância o debate travado em torno da questão
do desenvolvimento ou não dessas áreas. Deve-se mantê-las em seu
estado natural, ou próximo a este, ou deve-se desenvolvê-las e explorá-las? Os argumentos pró e contra cada um dos questionamentos
são de origens diversas, e pode-se enquadrá-los em argumentos de
origem científica, político-administrativos e sociais. A comunidade
internacional de conservação tem percebido que áreas protegidas
não podem ser administradas isoladas dos ecossistemas, assentamentos humanos e usos da terra existentes ao seu redor.
As abordagens tradicionais para a gestão das áreas protegidas,
principalmente de parques nacionais, geralmente são antipáticas e
constrangedoras para a comunidade local, reprimindo-as com vigilância e penalidades. De fato, a gestão de parques nacionais tem
enfatizado o papel policial visando o cerceamento e a exclusão da
população local. O resultado é que conflitos sociais e econômicos
surgem ao longo dos limites das áreas, e a consciência popular e
o apoio político para os programas de gestão das áreas protegidas
126
Política Democrática · Nº 22
Economia e conservação da Natureza
diminuem. Nesse contexto, áreas protegidas não podem ser consideradas “à parte” do desenvolvimento sustentável de um país. Elas são,
desta forma, parte do processo de desenvolvimento.
Se essa percepção predominar, a análise econômica tem muito
a dizer sobre como essas unidades podem melhor contribuir para o
processo de desenvolvimento. Todos os programas de gestão de áreas
protegidas refletem um conflito de interesses entre usos alternativos
de recursos escassos – escassez relativa, portanto econômica, e não
necessariamente escassez física –, e, por conseguinte, envolvem um
componente econômico.
Usar para não degradar: possibilidades e limitações
O debate sobre a gestão das áreas protegidas no Brasil é usualmente colocado em termos de se tentar alcançar o equilíbrio deixando as
áreas protegidas em seu estado natural, ou desenvolvê-las e explorálas. Será que o modelo tradicional de gestão, que tenta isolar, por
exemplo, os parques nacionais da influência humana e do contexto
social e econômico que os rodeiam, tem obtido sucesso? Ou, pelo
contrário, gerou conflitos, resistências locais, e é social, econômica e
ecologicamente improdutivo, e, por conseqüência, nocivo à proteção
da biodiversidade? Será que se pode almejar alcançar a proteção de
uma mancha de um determinado ecossistema promovendo-se o desenvolvimento socioeconômico, integrando-se a população local no
gerenciamento da área e viabilizando-se mais áreas para visitação
pública, tornando as áreas protegidas mais conhecidas da sociedade
em geral?
Estudos indicam um impacto de 35 bilhões de dólares anuais da
indústria “outdoor” na economia dos EUA, o que representa 0,5% do
PIB americano. Associado a isso, pode ser computada a manutenção
de mais de 700 mil empregos diretos em atividades relacionadas com
a recreação em ambientes naturais naquele país. Segundo dados de
1998 da IUCN, os gastos de turistas em atividades relacionadas com
áreas protegidas no Canadá sustentaram 159.000 postos de trabalho, contribuindo com 6,5 bilhões de dólares canadenses no Produto
Interno Bruto. Já a Austrália recebe mais de 2 bilhões de dólares
australianos em gastos realizados em oito parques nacionais, com
investimentos governamentais de cerca de 60 milhões de dólares. E,
na Costa Rica, aproximadamente 12 milhões de dólares são gastos
anualmente na manutenção dos Parques Nacionais, mas os gastos
de cerca de 500.000 visitantes em 1991 foram maiores do que 330
127
VI. O Social e o Político
milhões de dólares, sendo o turismo gerado a partir dos parques, a
segunda maior indústria no país.
Fica claro, então, que as áreas protegidas são muitas vezes entidades que podem gerar rendimentos significativos, e assim contribuir de forma importante para as economias locais. Assim, o investimento em áreas protegidas pode prover um benefício expressivo para
as economias locais e mesmo nacionais. A questão é se identificar
os bens e serviços, ou produtos, que as áreas protegidas oferecem, e
que são adequados para a obtenção de renda para as mesmas. Com
uma administração apropriada, o produto em “oferta” pode ser “vendido” continuamente sem que se diminua o valor respectivo, sendo
que a renda pode ser utilizada para a manutenção da área protegida.
Alternativas inovadoras em relação às fontes tradicionais de manutenção das áreas protegidas são necessárias, principalmente para
assegurar a sua viabilidade e existência a longo prazo.
Por outro lado e contraditoriamente, enquanto a quantidade de
áreas protegidas implantadas teve um rápido crescimento no mundo todo, especialmente em países em desenvolvimento, as unidades
criadas não têm alcançado o sucesso previsto inicialmente na manutenção da biodiversidade. As razões do insucesso incluem aspectos
econômicos, a saber:
•d
ébil apoio nacional – os benefícios numerosos advindos das
áreas protegidas são raramente apreciados pela sociedade, e
principalmente pelos governos em geral, porque tais áreas são
vistas mais como lugares de recreação “exótica”, ou de vida silvestre remota, do que como uma contribuição efetiva para o
bem-estar nacional; a falta de apoio redunda em recursos de
gestão insuficientes – humanos e financeiros;
•c
onflitos com a população local – a criação de uma área protegida geralmente requer a implantação de medidas restritivas em
relação ao uso dos recursos existentes pela população local, em
favor dos interesses da nação e das futuras gerações;
•c
onflitos com outras agências governamentais – as agências
responsáveis pelas áreas protegidas tendem a ser relativamente
frágeis na estrutura governamental, sendo assim vulneráveis
em relação a conflitos de políticas adotadas e a cortes orçamentários; as ameaças vêm, por exemplo, da área de transporte
(tentativas de se construir estradas em áreas protegidas), de turismo (ao se atrair mais turistas do que a área suporta, sem que
sejam degradados os recursos existentes), de saneamento (ao se
128
Política Democrática · Nº 22
Economia e conservação da Natureza
tentar construir barragens), de desenvolvimento (ao se instalarem setores industriais e comerciais próximos às áreas) etc.;
•g
estão limitada – ainda se considera que os maiores desafios de
gestão em áreas protegidas são primariamente de cunho ecológico, e não social, econômico e político; assim, os administradores consideram seus problemas administrativos sob uma visão
estreita, meramente preservacionista, tentando isolar a área do
ambiente em que ela se insere, e não tendo uma visão mais ampla, envolvendo as áreas adjacentes e a sociedade local, entre
outros setores.
Um modelo alternativo tem como característica fundamental a
participação de todos os setores afetados ou interessados na criação
e na gestão de uma área protegida, especialmente as comunidades
locais. As comunidades locais participam, desde o início, da criação
da unidade e têm poder de fato para intervir na sua gestão. Também no que diz respeito à gestão das áreas protegidas é fundamental
existirem mecanismos com o propósito de assegurar a participação
das comunidades locais. A relação custo-benefício de conservar uma
área protegida deve no final ser positiva para a população local se se
aspira à prosperidade dessa região e para isso as populações devem
ser envolvidas no planejamento e manejo das áreas protegidas, e
participar de seus benefícios.
Não obstante, modelos alternativos não são panacéias. Eles
exigem criatividade e eficácia do gestor ambiental. Criatividade no
sentido de estabelecimento de planos de manejo que permitam a
exploração socioeconômica da área com um mínimo sacrifício da diversidade biológica que se busca proteger. O gestor ambiental precisa
ser sensibilizado, motivado e estimulado na busca de atividades no
interior das áreas protegidas que permitam a auto-sustentabilidade
econômica da unidade, sem que isso implique destruição da fauna
e da flora locais. Com certeza é muito difícil se isolar a diversidade
biológica da influência humana adversa, pois mesmo nas Unidades
de Proteção Integral se conviverá diuturnamente com um poderoso
predador, o ser humano. Assim, a eficácia do gestor ambiental, no
caso das áreas protegidas, dependerá de sua capacidade de criar,
implementar e gerir projetos, programas e políticas ambientais, e não
apenas do seu poder de polícia, de coerção, de proibição.
A socioeconomia de uma região “deve ir bem” para que uma área
protegida nela contida “possa ir bem”. Só há uma alternativa: para as
áreas protegidas terem sucesso na proteção ambiental, o desenvolvimento econômico deve ser bem sucedido na proteção das aspirações
129
VI. O Social e o Político
sociais de níveis de renda e de bem-estar mais elevados. Ou ambos
“vão bem” ou ambos “vão mal”. Eis aí a oportunidade de Economia e
Ecologia se encontrarem na busca do sempre polêmico “desenvolvimento sustentável”. Sem dúvida, uma oportunidade única para transformar um conceito vazio, teórica e operacionalmente, em um objetivo
concreto da intervenção pública e privada em assuntos ambientais.
A mais evidente e relevante das motivações comuns ao pensamento econômico e ao conservacionista era (e tem sido) o repúdio ao
desperdício no uso de escassos recursos naturais. Conservacionistas
e economistas concordam que escassez exige uso eficiente. No entanto, para os primeiros, eficiência física; para os economistas, eficiência econômica. Conservacionistas e economistas precisam discutir
possibilidades de aproximar a eficiência física da econômica.
Pode-se argumentar que a meta da conservação da biodiversidade
deve ser apoiar o desenvolvimento sustentável por meio da proteção
e do uso de recursos biológicos sem reduzir a variedade mundial de
genes e espécies, nem destruir habitats e ecossistemas importantes.
Desse modo, a estratégia para conservação deve ser também abrangente, podendo ser resumida em três elementos básicos: salvar a
biodiversidade, estudá-la e usá-la de modo sustentável e eqüitativo.
Entretanto, necessário se faz uma mudança do enfoque defensivo,
preocupado apenas em defender a natureza das repercussões do desenvolvimento, para um enfoque mais ativo, com o objetivo de satisfazer a demanda humana por recursos biológicos e, ao mesmo tempo, garantir a sustentabilidade da riqueza biótica, no longo prazo.
Alternativas inovadoras em relação às fontes tradicionais de manutenção das áreas protegidas passaram a ser buscadas para assegurar
a sua viabilidade e existência no longo prazo. Essa percepção levou a
uma mudança no significado de conservação. A noção de proteção da
natureza deixou de ser apenas proteção “contra” (por exemplo, contra o desenvolvimento desenfreado e a pressão humana), buscando
também a proteção “a favor” (por exemplo, a favor da conservação da
biodiversidade, do turismo, do aumento do desenvolvimento humano
local em bases sustentáveis). Atualmente reconhece-se que a aprovação e o apoio da comunidade local são especialmente importantes
para a segurança das áreas protegidas. Assim, a comunidade local,
ao invés de ser excluída do processo de conservação, deve na verdade
é nele ser introduzida.
Essa abordagem sugere que o objetivo dos administradores de
sistemas de áreas protegidas deve ser o de incrementar o valor das
mesmas, maximizando os seus benefícios e a quantidade de pesso130
Política Democrática · Nº 22
Economia e conservação da Natureza
as que podem ser beneficiadas – sem causar danos ecológicos e no
custo mínimo possível. Tal mudança reflete-se, por exemplo, na Declaração da IUCN (Imperatives for Protected Áreas), na qual se convoca toda a comunidade envolvida com áreas protegidas no mundo
a demonstrar que elas contribuem para as economias locais e para o
bem-estar humano, e que é necessário o estabelecimento de parcerias e de cooperação com todos os interessados e interventores que
têm relações com elas.
Isso exige informação sobre os benefícios do desenvolvimento a
longo prazo de áreas protegidas, e também a consideração de metodologias apropriadas que sirvam para avaliar todos os benefícios que
as áreas protegidas proporcionam à sociedade. Pelo fato dos benefícios não serem bem definidos, e geralmente subestimados, eles não
têm servido para se contrapor aos custos imediatos associados com
a implantação e manutenção das unidades de conservação. Assim, o
comportamento da administração pública geralmente tem sido o de
levar em conta o custo de oportunidade ao não desenvolverem as terras para outros fins, e o custo do manejo, da manutenção e da infraestrutura. A conclusão a que geralmente se chega é que os custos
são elevados face os benefícios incertos que se podem obter.
Fatores como ocupação desordenada do solo, usos conflitantes do
solo, desemprego, políticas de manejo de recursos naturais distorcidas
e informação inadequada contribuem para a ocorrência de uma série
de ameaças. Ameaças não só internas, relativas à gestão, mas principalmente externas, que colocam um grau de incerteza significativo em
relação à sua sobrevivência e quanto ao cumprimento das finalidades
para as quais as unidades foram criadas. Raramente se percebe que
os comportamentos que afetam a manutenção da diversidade biológica podem ser alterados providenciando-se novas abordagens para a
conservação, que alterem a percepção das pessoas em relação a qual
conduta é a de seu interesse próprio. Como os interesses são, constantemente, definidos em termos econômicos, a conservação também
necessita ser promovida por meio de incentivos econômicos.
Para saber qual é a estratégia ótima de conservação da diversidade biológica é preciso: decidir o que vai ser preservado; examinar as
características econômicas e sociais da região detentora dos recursos e determinar o mecanismo de financiamento, ou seja, determinar o montante de recursos disponíveis para a preservação. Ou seja,
aplicar uma das ferramentas básicas da análise econômica, que é a
avaliação de custos e benefícios, com a aplicação da análise custobenefício.
131
VI. O Social e o Político
Esse tipo de avaliação é essencial para a manutenção das áreas
protegidas, e para definir o espaço que essas áreas ocupam em uma
sociedade moderna.
Para que a sociedade demonstre aos administradores seus verdadeiros desejos em relação à manutenção do meio ambiente natural, é
essencial que a população tenha uma idéia clara dos benefícios que
obtêm da natureza em seu estado mais preservado – em outras palavras, o valor das áreas protegidas. Não se pode esquecer, no entanto,
que os benefícios econômicos advindos das áreas protegidas, embora
sejam difíceis de medir e variem de sítio para sítio, são limitados na escala local, aumentam no nível regional e nacional, e são potencialmente substanciais na escala global. Por outro lado, os custos econômicos
das áreas protegidas seguem uma tendência oposta, sendo significantes do ponto de vista local, e pequenos, pensando-se globalmente.
Desde que essa postura vem sendo disseminada, o pensamento conservacionista tem rejeitado largamente as políticas puramente preservacionistas e tem abraçado o conceito de “desenvolvimento
sustentado”, o qual encoraja a utilização dos recursos naturais para
gerar renda local e a inclusão da sociedade local no planejamento e
na administração das áreas protegidas, fazendo a conservação mais
aceitável para ela. Com essa perspectiva, a conservação da natureza
é vista como uma forma de desenvolvimento econômico, baseado no
uso racional dos recursos.
Não há a menor dúvida de que a ciência econômica tem as suas
limitações. Não é fácil, por exemplo, atribuir valores econômicos na
preservação de espécies, devido aos fatores de irreversibilidade que
acompanham espécies em extinção, das dificuldades em se medir
as preferências das futuras gerações, da oposição entre custos presentes e benefícios futuros, e da distinção entre valor de mercado
(commodity) e valor moral. E é sempre necessário contrastar o que é
benéfico para alguns segmentos da sociedade do que é amplamente
benéfico para a sociedade como um todo, o que, em última instância,
é um julgamento político. Mas não temos dúvida: o casamento da
economia com o meio ambiente trará benefícios para todos nós.
132
Política Democrática · Nº 22
VII. Ensaio
Autor
Fernando Mires
Nasceu no Chile, doutor em Ciências Econômicas e Sociais e atualmente é professor de
Política Internacional na Universidade de Oldenburg, na Alemanha.
Publicado originalmente em Nueva Sociedad, Buenos Aires, nº 22, p. 60-73, março/
abril de 2006.
Esquerda, empresários e política
Fernando Mires
Q
uando a revista Nueva Sociedad me solicitou um artigo a respeito da possibilidade dos empresários serem de esquerda,
um certo reflexo-condicionado por paradigmas que apesar de
haverem desaparecido continuam me perseguindo como almas penadas me fizeram pensar de modo automático que se tratava de uma
impossibilidade. É que, de acordo com os antigos paradigmas, a pertinência à esquerda se definia, em primeiro lugar, por uma posição de
classe determinada por supostos interesses frente aos quais alguém,
como intelectual orgânico da classe despossuída, devia declarar-se
inimigo ou servidor confiável. Não obstante, um segundo olhar me
levou a concluir que essa pergunta, ainda de acordo com o antigo
paradigma, é perfeitamente lógica. Basta recordar que a chamada
“esquerda mundial”, hegemonizada pelo movimento comunista soviético – com exceção dos breves períodos em que se viu afligida pela
“doença infantil (esquerdista) do comunismo”– postulou um projeto
de alianças em que as chamadas “burguesias patrióticas ou nacionais” tinham um lugar privilegiado.
Recordações do passado
O “movimento comunista mundial”, máximo depositário da identidade simbólica da esquerda durante a Guerra Fria, postulava para
os países do chamado Terceiro Mundo um projeto de revolução por
etapas. Na primeira, a democrático-nacional, o proletariado deveria
135
VII. Ensaio
recorrer à unidade com as “burguesias patrióticas”. Em termos mais
práticos que ideológicos, esse suposto movimento comunista propiciava ganhar a afluência das classes médias, que continham, naturalmente, muitos empresários intermédios. Inclusive em alguns países
europeus, onde não podia ocorrer um projeto de libertação nacional,
os comunistas propunham uma estratégia baseada na luta contra o
“capitalismo monopolista”, de acordo com a qual os capitalistas (empresários) eram segmentados em duas camadas: uma pró-monopolista e outra antimonopolista. Com a primeira, o proletariado devia
estabelecer uma aliança tática em função de um projeto estratégico
de tomada do poder que, passando pela ante-sala de um “capitalismo
monopolista de Estado”, deveria culminar na fase final, a comunista.
Portanto, a idéia de que parte do empresariado, ainda que não
fosse de esquerda, podia ser ganho para um projeto de esquerda, não
era alheio à antiga esquerda marxista. De certo modo, essa intenção provinha não só de uma ideologia soviética, mas também de uma
constatação realista: nunca o proletariado (isto é, seu partido) poderia
tornar-se poder sem uma aliança com as burguesias nacionais, ou das
camadas médias, ou do “capitalismo não monopolista”, ou de quem
fosse (as denominações diferiam ao longo do tempo e do espaço).
Daí, que, para cumprir esse objetivo, era necessário o apoio de
outras “classes subalternas”. O aliado natural ou estratégico do proletariado devia ser o campesinato. Um aliado menos natural, não estratégico, ou melhor, tático, era constituído por determinados grupos
do “empresariado patriótico”.
A fim de realizar um programa que integrasse setores da burguesia (empresários), a esquerda pró-soviética começou a favorecer, depois da Segunda Guerra Mundial, a formação de frentes ou blocos de
ação política, de que surgiram algumas expressões na América Latina, na Unidade Popular chilena e na Frente Ampla uruguaia. Que
essas formações políticas efetivamente tivessem conseguido arrastar
setores empresariais para posições de esquerda é outra história. A
dificuldade para alcançar aquela meta residia no corte que essa esquerda fazia entre os objetivos estratégicos e os objetivos táticos.
Os setores empresariais, bem como as camadas médias, deveriam
seguir o proletariado só até chegar a um determinado ponto: os empresários, não sem certa lógica, entendiam que iam ser usados para
chegar ao poder, e que depois seriam fuzilados como já havia ocorrido com a “classe camponesa progressista” durante a era de Stalin na
ex-União Soviética.
136
Política Democrática · Nº 22
Esquerda, empresários e política
Além disso, os partidos comunistas mais realistas do Ocidente
estabeleceram uma relação puramente instrumental com a “democracia burguesa”, o que, decerto, não era o meio mais adequado
para conquistar o amor das camadas burguesas deslocadas pelo
“imperialismo” ou pelo “capital monopolista”.
O único partido comunista do mundo que estabeleceu uma relação não instrumental com a democracia foi o italiano, mas para isso
teve que deixar de ser comunista ainda antes da queda do Muro de
Berlim. Mas apesar dos chamados formuladores pela esquerda prósoviética, ocorreu que alguns setores empresariais se integraram
nas socialdemocracias européias que, pelo menos, lhes garantiam
não ser fuzilados em uma fase “mais avançada” do “processo histórico”. Isto significa que, no passado, a pergunta sobre a possibilidade de alguns empresários ser de esquerda foi respondida afirmativamente: para a esquerda pró-soviética, a aliança com setores da
burguesia era necessária, mas foi impossível; para a socialdemocracia (que, segundo os comunistas, não era esquerda, mas direita,
e que, segundo a direita, era de esquerda), era e foi possível.
Até aqui temos as recordações. Voltemos agora ao presente latino-americano e à pergunta formulada por Nueva Sociedad: um empresário pode ser de esquerda? Para responder a este interrogante é
necessário, antes, responder a outro: que significa ser de esquerda
hoje na América Latina?
O que é ser de esquerda hoje na América Latina?
Algumas respostas a esta pergunta foram incluídas no número 197 de Nueva Sociedad1. É interessante constatar que cada um
dos autores definiu a esquerda de um modo distinto, ainda que
todos estivessem de acordo em um ponto: na América Latina há
duas esquerdas, uma “arcaica”, que equivale aos restos marxistasleninistas da Guerra Fria, e outra “moderna”, presente em diversos
governos como os da Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. A maioria
coincidiu em assinalar, como um caso à parte, o governo da Venezuela, que parece representar uma síntese entre o velho populismo
nacionalista, a antiga esquerda da Guerra Fria e algumas conotações menores que correspondem à esquerda moderna, às que se
1 A edição inclui textos de Carlos M. Vilas, Demetrio Boersner, Teodoro Petkoff,
Wilfredo Lozano, Rodrigo Arocena e Manuel Antonio Garretón e está disponível em
<www.nuso.org>.
137
VII. Ensaio
somam certas expressões fascistóides; isso é, um embróglio que, em
algum momento. os venezuelanos teriam que desatar.
Em que pese a qualidade dos artigos, dois temas enormes ficaram
sem explicação. O primeiro é a referência à esquerda latino-americana como se fosse parte de alguma esquerda universal cuja existência
“quintessencial” se dá como certa.
Por outro lado, todos se esqueceram que para existir uma esquerda é preciso que haja uma direita, isto é, que a esquerda exista em intensa relação com uma direita ou, dito de outro modo, é parte insubstituível de uma relação e não uma identidade moral que se explica por
si mesma. Decorre daí que ninguém conseguiu definir politicamente a
esquerda a não ser moralmente, adjudicando-lhe atributos imaginários como os de lutar pela igualdade, a emancipação, os trabalhadores
etc. A direita, desde logo, poderia dizer o mesmo de si.
O tema tem certa importância: se a esquerda latino-americana é
um atributo da política de uma esquerda universal, a pergunta sobre
a possibilidade dos empresários serem de esquerda só pode ser respondida em termos teóricos. Ao passo que, se a noção de esquerda
não é universal, isto é, se está sujeita às particularidades das regiões
onde esta esquerda existe, se faz necessário responder em termos
não universais, analisando caso a caso, de acordo com as relações
que se dão em cada país. Nesta última situação, a resposta tem que
ser política e não teórica (não existe uma política universal; o próprio
conceito de política é a negação de todo universalismo).
O fim do universalismo de esquerda
Pois bem, se analisarmos o tema com certo cuidado, é evidente
que nem mesmo no passado, durante a Guerra Fria, a esquerda teve
uma expressão universal. Existia, tanto em sua forma comunista
como em seu modo socialdemocrata, na maioria dos países da Europa Ocidental. Também existiu, durante um breve período, como
esquerda estudantil extraparlamentar, que se fez presente no espaço
moral, mas muito debilmente no político.
Essa esquerda já não existe. Tampouco a esquerda dos países da
órbita soviética, uma vez que ali foram os próprios comunistas que
suprimiram o jogo político, que é o mínimo necessário para a existência de uma esquerda. E menos ainda existia uma esquerda no mundo islâmico ou nos países asiáticos, e menos ainda na África. Não
foi pouco, é preciso acrescentar já que a lógica política dos Estados
Unidos nunca se deixou reger pelos esquemas esquerda-direita.
138
Política Democrática · Nº 22
Esquerda, empresários e política
Isto é, “a” esquerda era, ainda nesse período, um fenômeno europeu e latino-americano, e em nenhum caso universal. Depois da
queda do Muro de Berlim, a esquerda perdeu, ademais, seus catalisadores planetários e regionais. Não só porque a URSS não existe,
mas porque a China embarcou num colossal projeto capitalista.
Os catalisadores sub-regionais também desapareceram. Cuba, por
exemplo, só tem seguidores em setores ideológicos reduzidos dissociados da realidade política. O castrismo, certamente, espera incrementar sua influência em países extremamente empobrecidos ao
surgirem governos “socialistas-nacionais”, como já ocorreu na Bolívia com o triunfo de Evo Morales. Mas, mesmo que estes governos
consigam se manter por algum tempo, não seria o suficiente para
converter Cuba em um catalisador.
Segundo os autores mencionados, o atual presidente da Venezuela
poderia herdar a liderança que o ditador cubano já não pode exercer numa reduzida fração da esquerda latino-americana (a chamada
“arcaica”). No entanto, não se pode esquecer que Cuba pôde ocupar
esse lugar somente graças a sua extrema dependência, econômica e
ideológica, em relação ao império soviético. Hoje, por sua vez, não
existe nenhuma potência mundial que queira abrigar em seus braços
a Venezuela de Chávez. A imagem internacional do presidente Chávez
não é positiva, e não só nos EUA. Os contatos que ele tem travado com
o totalitarismo islâmico do Irã têm prejudicado sua imagem internacional, sobretudo na Europa, onde o perigo islâmico “é sentido”. Além
disso, Chávez conta com uma oposição local que, embora desagregada, é numerosíssima, e seu governo não se encontra em condições de
destruir fisicamente, como ocorreu em Cuba (com execuções, prisões,
torturas e exílio). Naturalmente, Chávez pode mostrar internamente
alguns êxitos em matéria social, mas o que importa em política internacional não é isso, mas as contribuições à ampliação das relações
democráticas, tanto locais como externas.
Mas, para além de qualquer avaliação particular, a perspectiva
da instalação dos “socialismos nacionais” em alguns países latinoamericanos dificilmente pode ser atrativa para os setores empresariais, tema do presente artigo. E mais: mesmo que um «socialismo
nacional» consiga manter-se no governo em um país como a Bolívia, não existem ali setores empresariais relevantes, de modo que a
pergunta, também nesse caso, perde seu sentido. Desta maneira, o
interrogante principal – podem alguns empresários ser de esquerda?
– seria válido apenas para a esquerda política (“moderna”) e, em nenhum caso para a esquerda antipolítica (“arcaica”). Antes de tentar
139
VII. Ensaio
continuar avançando com uma resposta, permitam-me uma observação sobre a pergunta em si.
Trata-se de uma pergunta puramente latino-americana. Ninguém
na Europa poderia formular um interrogante similar, e não só porque já no passado era lógico que um empresário fosse de esquerda
ou de direita, mas porque a relação esquerda-direita se encontra em
extinção no planeta. Unicamente no sul da Europa tem certo uso o
termo “esquerda”, ainda que mais como um atributo simbólico do
passado que se utiliza para designar espaços regulatórios da política. O fato de que o tema da esquerda adquira na América Latina um
sentido tão mítico, quase sacramental, escapa à centralidade deste
breve artigo.
As regras do jogo
A esquerda definida como moderna, ou modernizada, em contraposição à esquerda arcaica, não é moderna porque haja aparecido
recentemente (em muitos casos é tão antiga como a arcaica), mas
porque forma parte de um sistema de regulação política moderna,
que lhe permite entrar em uma relação negativa e positiva com uma
determinada direita, isto é, que lhe permite participar do jogo político
em uma contenda que aponta desde o extremo até o centro.
Utilizo o conceito “jogo político” para me referir a uma ordem dinâmica de posições onde diversos atores vinculam suas demandas
com determinadas organizações que as representam simbolicamente
no espaço público, demandas que se contrapõem a outras que também buscam ser representadas. Ditas representações são partidárias
em dois sentidos: partem (dividem) o espaço político em duas ou mais
partes, e compartilham o mesmo espaço dividido. Gera-se, então, um
modo de relação negativa e positiva entre esquerda e direita que supõe, além de se opor à política do opositor, cuidar do espaço político
compartilhado, a fim de poder continuar se opondo. Na confrontação entre dois ou mais posições (podem ser democratas contra republicanos, moderados contra radicais, conservadores contra liberais,
esquerda contra direita, bons contra maus), se encontra a origem e
o próprio sentido do político. Sem confrontação não existe política.
Mas sem espaço político não pode haver confrontação (pelo menos,
não uma que exclua a violência).
A precariedade do espaço político em países como a Bolívia, o
Equador e inclusive a Argentina da “grande crise econômica” permitiu que movimentos sociais sem espaço constitutivo se dedicassem
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Política Democrática · Nº 22
Esquerda, empresários e política
alegremente a derrubar governos, sem oferecer alternativas de substituição. De fato, não há nada mais destrutivo que um movimento
social sem órbita política. É por isso que uma ordem política democrática supõe a divisibilidade antagônica de suas partes (partidos),
mas também a capacidade de realizar coalizões de umas com outras
no caso de aparecerem ameaças que atentem contra o espaço político
comum. O ideal de uma ordem democrática implica que cada partido pode ser, em determinadas circunstâncias, vinculável com outro.
Esse ideal vem despontando recentemente em alguns países do Cone
Sul, e de um modo ainda muito débil.
O espaço político se vê ameaçado quando é ocupado por forças
puramente confrontativas. Nesse sentido, a qualidade política de um
partido se dá somente quando reúne a capacidade de confrontação
com o diálogo. Ao se limitar ao aspecto da confrontação é, no melhor
dos casos, uma organização pré-política.
Pois bem, essa é a diferença essencial entre a esquerda moderna
– que a meu ver deve ser chamada esquerda política – e a esquerda
arcaica que, em muitos casos, é não política, e inclusive antipolítica.
Não só os empresários, mas também a maior parte da população (se
é que não está atravessada por um emocionalismo fora de controle)
desejam representar seus interesses no espaço público e necessitam,
ademais, preservar esse espaço frente à ameaça de representações
antipolíticas (populistas, etnicistas, comunistas, fascistóides e militares). Essa é, sem dúvida, uma razão adicional que explica porque
os empresários, do mesmo modo que boa parte dos setores sociais
médios, preferem aderir a organizações políticas que garantam uma
ordem que permita a representação política de interesses e idéias
opostos.
As esquerdas puramente confrontativas não oferecem as mínimas condições de ordem que todo empresário requer. Por isso, como
ocorreu em passado recente, os empresários não apóiam as esquerdas não políticas (quando têm outra opção), ainda que lhes ofereçam todo o ouro do mundo. Os partidos políticos não só existem
para, representando interesses, lutar gramaticalmente uns contra
os outros, mas também para não destruir a ordem que lhes permite
existir como tais. Se os empresários se dão conta que os partidos de
esquerda não oferecem garantias para a conservação dessa ordem,
buscarão sua segurança de outro modo, representando-se eles mesmos, apoiando a direita política (se existir) ou, como tem sido mais
freqüente, apelando aos militares. O fato de que em muitos países
latino-americanos os empresários estejam dispostos a apoiar uma
esquerda política não se deve a nenhuma razão ideológica, mas ao
141
VII. Ensaio
fato dessa esquerda se encontrar em melhores condições de garantir
a ordem política que a direita.
A tarefa da esquerda política na América Latina é muito grande,
porque é dupla. A primeira consiste em representar os interesses
de vastos setores excluídos politicamente, isto é, canalizar para a
política real os grupos que, de outro modo, poderiam ser vítimas de
demagogos inflamados (de esquerda ou de direita) ou da destrutiva
ação dos partidos da esquerda arcaica.
A segunda consiste em preservar o espaço político. Esta última
tarefa é tanto ou mais difícil ao se levar em conta que, em algumas
ocasiões, não só se deve preservar, mas também criar esse espaço, o
que implica construir alternativas para a politização da direita que,
em muitos casos, se situa em posições tanto ou mais selvagens que a
esquerda arcaica. Talvez a resposta à possibilidade dos empresários
serem de esquerda implique contestar antes a pergunta a respeito
deles reunirem as condições para se deixarem representar por um
partido democrático, seja de direita ou de esquerda, em uma ordem
caracterizada pelo jogo político da afirmação e da negação.
O problema primário, então, é a vinculação dos empresários com
a política e, em um lugar secundário, a definição sobre a possibilidade de ser de esquerda ou de direita. Se existe política em termos
reais, isto é, se existe antagonismos articulados, os empresários
podem ser de esquerda ou de direita, e não só como empresários,
mas como cidadãos. É importante sublinhar este último, porque não
existe no mundo um empresário que seja unicamente empresário,
sem ser ao mesmo tempo cidadão, crente de uma religião ou ateu,
membro de uma família etc. Cada uma dessas pertinências implica
uma determinada identidade, e cada identidade produz interesses
próprios que, ao se darem as condições, podem ser representados
no cenário político, pois não existe nenhuma lei que estabeleça que
os únicos interesses dignos de ser representados são os econômicos.
Esta última é uma lenda liberal que o marxismo assumiu como própria.
Entretanto, o fato da esquerda política não conseguir cumprir
essas duas tarefas de modo simultâneo, ou de que ao fazê-lo experimente um desgaste que a leve a perder eleições, não deve ser visto
como um fracasso, nem como a perda de uma “oportunidade histórica”, nem muito menos como uma tragédia social. O poder político
não está aí para ser ocupado de uma vez e para sempre, como reza
o ideário da esquerda arcaica. O poder também existe para “ser perdido”, já que quem ingressa na política pensando que vai ganhar a
142
Política Democrática · Nº 22
Esquerda, empresários e política
entrada para a eternidade, se equivocou de lugar. Por definição, em
um regime político, todo governo é – e deve ser – transitório.
O trauma revolucionário
Hoje, por exemplo, existe certa euforia porque, em alguns países
da região, têm coincidido diversos governos de esquerda, a tal ponto,
que muitos comentaristas falam de uma “nova era” latino-americana.
Essa euforia se vê acrescentada pelo fato de que não poucos empresários têm optado por inclinar-se para a esquerda. Não obstante, em
mais quatro ou cinco anos, a correlação pode ser a inversa. É importante, portanto, que cada governo de esquerda assegure lugares de
exercício da oposição para a direita, pois cedo ou tarde esses mesmos
lugares vão ser ocupados por eles, o que não tem nada de negativo.
Em uma política democrática sói ocorrer que a partir da oposição
se tenha mais poder que a partir do governo ou, pelo menos, mais
liberdade. O exercício do governo desgasta e inclusive corrompe os
partidos.
A oposição é o lugar da renovação, tanto programática como pessoal. Essas premissas são ainda o abecê de toda política, mas não na
América Latina, onde a “classe política” ainda se encontra intoxicada
com tanta ideologia de “tomada do poder” propagada pela esquerda
antipolítica do passado, cujos representantes ainda atuam no presente, inclusive dentro de alguns governos democráticos.
Para muitas pessoas, inclusive pertencentes à esquerda política,
resulta difícil aceitar a idéia de que ser de esquerda não significa ser
revolucionário. Efetivamente, ser de esquerda e ser revolucionário
são duas identidades distintas. São, inclusive, antagônicas. Ser de
esquerda significa formar parte de um jogo de relações (esquerdacentro-direita) e, por isso mesmo, supõe a integração dentro desse
jogo. Ser revolucionário supõe não aceitar o jogo, isto é, romper com
as regras do jogo. Desta maneira, quando um governo se declara a
si próprio revolucionário, divide o espaço político em duas partes
irreconciliáveis. Os opositores, segundo a própria lógica do governo “revolucionário”, já não podem ser opositores, mas simplesmente
“contra-revolucionários”. Mediante o apelo à idéia de revolução, se
suspende a lógica política e os adversários se convertem definitivamente em inimigos, pois, de acordo com Montesquieu, Kant e Arendt,
toda revolução é “guerra interna”. E na guerra, tanto interna como
externa, não podem existir esquerdas nem direitas. Este é um tema
decisivo (que terá que ser tratado mais detidamente em uma próxima
143
VII. Ensaio
ocasião), não só no que respeita ao papel dos empresários na política, mas para a teoria política em geral.
É interessante constatar que existem esquerdas políticas na América Latina que, ao renunciar ao apocalipse revolucionário, têm civilizado parcialmente não só a direita, mas também a esquerda arcaica. Este é o caso, por exemplo, da esquerda política chilena que, ao
constituir-se como esquerda democrática, tem obrigado a ambos os
pólos a integrar-se ao jogo, algo que, para uma direita cujo passado
recente era radicalmente ditatorial, tem significado um processo mais
que complicado. Na Argentina, Uruguai e Brasil começa também a
estruturar-se um espaço de confronto político cuja força democrática
de integração provém mais do lado esquerdo que do direito.
A grande novidade na América Latina não reside só na confluência de diversos governos de esquerda, mas na crescente politização
democrática da esquerda, que a vem convertendo na criadora de um
espaço para o jogo político que, até há pouco, só existia de um modo
precário.
Que essa esquerda apareça como um meio fundacional do processo político democrático é um fato que começa a ser reconhecido
por um eleitorado já cansado de traumas «revolucionários» e «contrarevolucionários». A esse eleitorado também pertencem, sem dúvida,
alguns empresários que vêem na esquerda – e não na direita – a
principal força democrática.
Sobre os empresários
Ainda supondo que os empresários ingressem no cenário político
só como empresariado (o que do ponto de vista antropológico não é
possível), mais importante que saber se optam pela esquerda ou pela
direita é a forma que assume sua integração política em algum partido. Da perspectiva de uma tipologia quase weberiana, seria possível
distinguir três formas de adesão partidária por parte do setor empresarial: como militantes, como clientes ou como eleitores.
Para qualquer partido, não só de esquerda, é altamente problemático contar com as associações empresariais como forças militantes. Se alguns empresários ingressam em um partido de esquerda
como cidadãos, não há, certamente, nenhum problema. Mas se entram como empresários-militantes, o mais provável é que façam todo
o possível para que esse partido atenda seus interesses particulares.
Convertem-se então em um grupo de pressão dentro do partido e tentarão direcionar sua política. Nesse caso, estaríamos diante do perigo
144
Política Democrática · Nº 22
Esquerda, empresários e política
da “economicização da política”, uma realidade em alguns partidos
políticos latino-americanos.
A segunda opção é o clientelismo, mediante o qual setores empresariais brindam seu apoio (incluído o financeiro) a um determinado
partido político em troca do cumprimento de certos objetivos. Aqui se
repete o fenômeno de “economicização da política”, ao que se agrega
o correspondente grau de corrupção que implica toda relação clientelista. Dita relação se articula geralmente entre os empresários e os
partidos de direita, ou os partidos nacional-populistas, que tendem a
estabelecer comunicações de tipo vertical com os grupos econômicos,
sejam estes empresariais (associações) ou assalariados (sindicatos).
O clientelismo, empresarial ou sindical, é um dos males mais graves
da política latino-americana, e nenhum partido de governo está livre
dele. Que grau de clientelismo pode suportar um partido de esquerda
democrático sem deixar de ser de esquerda e, sobretudo, sem deixar
de ser democrático?
A terceira opção é, politicamente falando, a mais saudável. Que
determinados grupos empresariais se convertam durante um período
em eleitores de um partido de esquerda pode obedecer a muitíssimas
razões. Entre elas, uma central é a capacidade da esquerda para
oferecer uma maior estabilidade social que garanta investimentos a
longo prazo. O apoio eleitoral não implica nenhum compromisso fixo,
é uma relação sujeita a prazos, e não converte um partido político em
um meio de acesso ao poder econômico. Se for essa a relação que se
vem estabelecendo entre os empresários e a esquerda moderna política, não há nenhuma razão para gritar alarmado.
Por último, antes de terminar este artigo, permitam-me uma breve referência ao setor empresarial na atualidade. Em princípio, é preciso observar que já não se trata de uma só classe, como a ideologia
marxista definiu em seu tempo aos “capitalistas” ou à “burguesia”.
Os empresários estão hoje longe de ser um setor unificado e, por isso
mesmo, se encontram sujeitos a diversas classificações internas. Por
exemplo, os grandes empresários de hoje já não são só aqueles que
exercer um maior controle quantitativo sobre a chamada força de
trabalho, o que implica que “empresários pequenos” podem ser mais
poderosos que os “grandes” se é que dispõem de uma melhor infraestrutura informática e um acesso mais direto aos mercados. Isso
significa que, na chamada “composição orgânica do capital”, deve-se
integrar – além da força de trabalho e o maquinário (termos quase
em desuso) – a informação, a comunicação e a inteligência, tanto
computacional como pessoal.
145
VII. Ensaio
Por outro lado, e como resultado da globalização, a atividade empresarial não se encontra sujeita aos limites de uma nação, e opera em um espaço de navegação transnacional que já articula não
só postos estáveis de trabalho, mas “projetos” que produzem, e ao
mesmo tempo destroem, lugares ocupacionais. Isso tem acarretado
como consequência que a atividade empresarial já não seja específica
e que se difunda a múltiplas atividades cotidianas. Os empresários
do crescente setor de serviços são mais bem caracterizados como
empresários ocasionais, que podem ser também, em determinados
momentos, profissionais ou simples trabalhadores. Empresários são,
inclusive, alguns empresários que não sabem que são empresários.
Um dentista, para dar um simples exemplo, pode ser um trabalhador profissional ao cumprir quatro horas de trabalho em um hospital; empregado, se é que trabalha quatro horas mais em uma clínica privada; empresário, se, além disso, é co-proprietário da clínica, e
acionista de grande empresa, se investe parte de seus excedentes na
bolsa. Nesse sentido, não há nenhuma razão específica para que esse
dentista vote ou não vote pela esquerda, pois ele mesmo é (ou chegou
a ser) um ser “multidimensional”. Que dimensão é a mais decisiva na
hora de definir suas opções políticas é algo que só ele pode decidir
diante da urna, algo que não se encontra escrito em nenhum tratado
de sociologia. Em minha própria atividade, a acadêmica, conheço colegas “de esquerda”, inclusive da mais arcaica, que inventam projetos
“de investigação” que são financiados por bancos e fundações – que
distribuem postos de trabalho e inclusive fixam salários – que um
dia desaparecem para dar lugar a outros. Ditos acadêmicos dirigem,
de fato, microempresas de pesquisa e são, além de acadêmicos, empresários (ainda que não lhes agrade). O empresário “puro” ameaça
transformar-se em uma relíquia do passado, uma relíquia arqueológica, igual à esquerda arcaica. A transformação da vida empresarial
continuará tendo lugar no marco de uma ordem chamada capitalista
que, em capacidade de transformação, deixa cada vez mais de se
parecer consigo mesma. Isto, porém, é outro tema, sobre o qual se
poderiam escrever livros volumosos. Cheguemos então até aqui: cada
artigo, ao fim, não é mais que um breve fragmento do pensamento
de seu autor.
146
Política Democrática · Nº 22
VIII. Mundo
Autores
Alfredo Reichlin
Ex-membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável
pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi
também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do
PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe (Centro Studi di Politica Economica), em Roma.
Ernst Hillebrand
Doutor em Ciências Políticas; atual representante da Fundação Friedrich Ebert, em Paris.
Immanuel Wallerstein
Sociólogo americano, foi esporadicamente diretor de estudos associado na École de
Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, e presidente da Associação Internacional
de Sociologia entre 1994 e 1998. Desde 2000, é investigador sénior na Universidade de
Yale.
O mundo está mudando1
Alfredo Reichlin
M
ichele Salvati reconhece, no Corriere della Sera, que não
explodiu só uma bolha especulativa. Aconteceu algo muito grande que marca uma virada. Chegou ao fim da linha
um ordenamento econômico. Mudam as relações entre os poderes
mundiais. Peço desculpas por não ser economista, mas se deve falar
disso. Assistimos a um acontecimento inteiramente novo na história
moderna, isto é, ao fato de que uma oligarquia político-financeira
quis governar o mundo submetendo a política ao seu poder, entendendo política como soberania do Estado (inclusive a moeda), direitos universais do cidadão, independentemente da sua capacidade de
consumo, e entendendo sociedade como histórias, culturas, laços,
projetos não redutíveis à troca econômica. Disso é que se tratou. E é
bem verdade que o mundo exulta, porque os Estados europeus mostraram a intenção de restituir o comando ao “Soberano”.
Era evidente (pelo menos para as mentes livres) que não podia
continuar ao infinito um sistema com base no qual somas imensas
de dinheiro (muitas vezes maiores do que a riqueza real produzida)
movimentam-se de um lugar para o outro do mundo em tempo real,
prescindindo das necessidades reais das pessoas, das relações humanas, dos direitos sociais, dos recursos reais, dos territórios. O
fenômeno foi, de fato, grandioso, e certas polêmicas anticapitalistas
de “revolucionários” envelhecidos não têm efeito algum. Deste modo,
também se favoreceu a abertura de novos mercados e o financiamento de coisas extraordinárias, como a inteligência artificial, os remé1 L’Unità & Gramsci e o Brasil. Tradução: A. Veiga Fialho. Outubro 2008)
149
VIII. Mundo
dios (e, por que não, as armas do século XXI). E tudo isso também
possibilitou um salto no desenvolvimento dos países emergentes.
Todavia, graças a este sistema é que o país mais rico do mundo
pôde viver de crédito e muito acima dos seus recursos, atraindo, graças ao papel imperial do dólar, 80% da poupança mundial. Ao mesmo tempo (mas não só dentro dos Estados Unidos), desenvolvia-se
um enorme jogo especulativo: crédito fácil, endividamento de massa,
muito além do rendimento do próprio trabalho, criação de uma economia de consumo, a qual se traduziu num crescente aumento das
desigualdades e numa pressão devastadora sobre os bens públicos e
os recursos naturais. E, enquanto se oferecia aos trabalhadores e às
camadas médias a eterna ilusão de que, endividando-se, podiam se
enriquecer ao infinito, com a idéia de que se pode fazer dinheiro com
dinheiro, ocorria na realidade uma impressionante redistribuição do
poder e das riquezas em favor das oligarquias dominantes.
Um enorme jogo de espelhos, que se quebrou quando – como dizia Keynes – “o desenvolvimento do capital real de um país torna-se
o subproduto das atividades de um ‘cassino’”. Salvati não usa estas
palavras. Mas me pareceu significativo sua referência ao livro de Robert Reich ferozmente polêmico com este sistema. Bem. Mas, se é assim, não pode deixar de se colocar um problema muito grande – político, mas também intelectual e moral. E não só para quem escreve.
Parece-me evidente que começar a pensar num modelo diverso para
a gestão da economia mundial é uma tarefa (mas também um dever
ético-político) não mais adiável. Além do mais, os governos europeus
puseram na mesa algo como dois ou três trilhões de dólares (tirados, evidentemente, do bolso das pessoas, inclusive de aposentados
e operários). Muito bem. Pode-se pelo menos começar a pensar num
futuro diferente?
Salvati não evita este problema. Não nega que seria necessária
uma alternativa e reconhece que os modelos capitalistas podem ser
diferentes entre si, até mesmo profundamente: o modelo keynesiano,
isto é, o compromisso entre o capitalismo e a democracia era inteiramente diferente da virada ultraliberista dos anos 1970. O problema
que ele levanta é outro, e é o verdadeiro problema que desafia hoje
a esquerda e justifica sua inércia. Faltam – diz – as condições. E as
condições de que fala não são tanto as objetivas (a profundidade da
crise, a insustentabilidade do modelo atual) quanto as “grandes reorientações ideológicas, culturais, teóricas e, por fim, reorientações
políticas igualmente profundas”, que permitiram aquelas duas grandes transformações (o keynesianismo entre os anos 1930 e 1940) e o
neoliberismo dos anos 1970.
150
Política Democrática · Nº 22
O mundo está mudando
Tenho muito respeito por Salvati, um velho amigo que sempre
escuto com atenção. Mas não resisto à necessidade (até moral) de
lembrar, a propósito de condições culturais, o que foi nestes anos a
verdadeira destruição do pensamento político da esquerda e de qualquer visão autônoma da esquerda em relação ao pensamento único
da oligarquia financeira. Uma repetição cotidiana nunca vista antes
contra os salários (sempre altos demais), os sindicatos (inúteis), a
privatização das aposentadorias como condição para o desenvolvimento (é o que vão perceber os aposentados americanos ligados aos
títulos de Wall Street).
Para não falar das empresas que valem só pelo valor das ações e
não por aquilo que produzem. E a escala dos valores dominantes: a
reverência até ridícula diante da riqueza e da genialidade dos banqueiros, estes novos heróis do nosso tempo.
Talvez fale em mim um velho comunista, que deveria ficar calado.
Então que falem os liberais. Expliquem-nos aonde vai terminar não
a “classe”, mas a liberdade da pessoa, se a sociedade for reduzida à
sociedade de mercado, se os homens forem postos em relação entre
si sem tomar como referência sua substância humana, mas sim suas
“máscaras”, sob as quais não existem criatividade nem projeto de
vida, só indivíduos que se medem com uma só medida: a capacidade
de consumo, o dinheiro.
Por que Salvati chama este sistema de “liberal”? Lamento, não estou de acordo. E não porque não compreenda a necessidade de uma
revolução cultural ou subestime a fraqueza da esquerda, que também paga pela ilusão de delimitar para si um espaço (uma “terceira
via”?) no “cassino” destes anos. Não havia as condições: foi o que nos
disseram. É muito triste ouvir isso de novo. Por certo, eu também,
como Salvati, não vejo por aí um novo Keynes e não creio que Obama tenha a estatura de Roosevelt. Mas recuso a idéia da política que
existe neste modo de pensar.
É exatamente isso que nos levou não ao risco de perder (podese sempre perder e depois voltar a vencer), mas de sermos irrelevantes. Condições são criadas. É o que não se compreendeu e se
continua sem compreender: mais do que a riqueza, conta a inteligência das pessoas. As condições não existirão nunca, se a política não voltar a ser, antes de mais nada, conhecimento, descoberta
da realidade, liberdade de pensamento, idéias fortes e, portanto,
novas energias recolocadas em movimento. A história destes anos
deveria ensinar algo.
151
VIII. Mundo
Homens como Salvati têm a inteligência e o nível para contribuir
para criar estas famosas condições, pelo menos culturais. E muitos, muitos deles não o fizeram nestes anos. No entanto, não era
preciso nenhuma cigana para adivinhar que este gigantesco jogo de
dívidas era insustentável. Por isso, não gosto quando, agora, são os
mesmos a nos dizer que a crise é grave, acrescentando, porém, que
não existem as condições para mudar. Também sei que não será
fácil mudar. Mas ponho uma condição: poder dizer às pessoas que
existe uma grande e nobre razão pela qual construímos um novo
partido. E esta consiste na convicção de que chegou o momento de
lutar por um mundo mais justo, no qual uma nova esquerda européia seja protagonista.
152
Política Democrática · Nº 22
A esquerda depois
da “terceira via”1
Ernst Hillebrand2
A
presença dos partidos de esquerda no governo dos países da
Europa ocidental vem diminuindo, o que marca o fim do ciclo
da esquerda tecnocrática e reformista no estilo “terceira via”.
Este fracasso se explica pelo impacto negativo da globalização e a
europeização sobre seu eleitorado tradicional, pelas promessas incumpridas da revolução educacional e pela falta de respostas frente
a fenômenos sociais fundamentais como a imigração.
Para recuperar terreno, a esquerda deverá reorientar sua estratégia, desembaraçando-se do economicismo cerrado, sem abandonar o
apelo estratégico ao centro da sociedade. Só assim poderá enfrentar
com êxito os desafios do conservadorismo light.
Os partidos de centro-esquerda da Europa ocidental estão em crise.
Desde os princípios dos 90, quando a esquerda ainda exercia o governo
em muitos países europeus, sua presença no poder vem caindo.
Em vários países, entre eles a Alemanha, seu papel se limita ao de
sócio menor de governos de coalizão, com predomínio conservador.
Chefes de governo de orientação conservadora exercem o poder inclusive em quatro dos cinco países escandinavos, que muitos observadores consideram como sociedades socialdemocratas por excelência.
O mais inquietante de tudo isto é que esta tendência não reflete
apenas as oscilações habituais das preferências políticas. Os partidos de centro-esquerda perdem votos em favor de seus tradicionais
adversários de centro-direita, mas também, cada vez mais, frente a
partidos populistas de direita ou de extrema direita de recente for-
1 Publicado originalmente na revista Nueva Sociedad nº 211, setembro-outubro de
2007, ISSN: 0251-3552, www.nuso.org).
2 Este não é apenas o caso da Itália (Força Itália, Movimento Social Italiano, Liga do
Norte) e da França (com a Frente Nacional), mas também o dos Países Baixos (a
Lista Pim Fortuyn), da Bélgica (Vlaams Belang), da Áustria (o Partido da Liberdade
da Áustria, FPÖ), da Dinamarca, da Suécia e, até certo ponto, também da Grã Bretanha, onde o crescimento do nacionalista Partido Nacional Britânico se converte em
uma dor de cabeça para o Partido Trabalhista.
153
VIII. Mundo
mação3. Em alguns casos, o enraizamento destes partidos entre os
eleitores tradicionais da esquerda tem alcançado níveis alarmantes:
no primeiro turno das eleições presidenciais francesas de 2002, Jean-Marie Le Pen se converteu no candidato mais votado pelos assalariados do país.4
O projeto da nova esquerda reformista
As derrotas eleitorais dos últimos anos marcam o fim de um ciclo político-ideológico: o projeto tecnocrático e centrista no estilo
da “terceira via” da Grã Bretanha, o “novo centro” da Alemanha ou
a “triangulação” de Bill Clinton, tão bem sucedido durante muitos
anos, chegou a seu limite. Este projeto se caracterizava por uma
adaptação bem sucedida dos partidos de esquerda à política e à economia globais.
Foi a expressão de uma interpretação acertada do espírito da época e permitiu que, desde a segunda metade dos 90, os partidos de
centro-esquerda se afirmassem como a força política predominante na Europa. Compartilhavam aspectos programáticos similares: a
combinação entre uma posição moderadamente neoliberal no econômico e fiscal, a insistência em um papel limitado mas ativo do Estado, e uma perspectiva liberal progressista com respeito a questões
culturais e de valores que, ao serem apresentadas como evidência
simbólica de uma convicção progressista, adquiriram um peso político importante.
Os aspectos mais relevantes do projeto desta “esquerda tecnocrática reformista”5 na Europa ocidental foram, em princípio, as reformas do Estado social, com ênfase em reformas no mercado de
trabalho e a redução ou redefinição das prestações sociais, a diminuição dos elementos redistributivos nos sistemas tributários e a
privatização de empresas e serviços públicos em áreas não essenciais, visando reduzir o déficit fiscal. Ao mesmo tempo, se propiciou
uma adaptação da economia e dos sistemas de previsão ao espaço
3 Philippe Guibert e Alain Mergier: Le descenseur social. Enquête sur les milieux populaires, Fondation Jean-Jaurès/PLON, París, 2007, p. 18, disponível em www.jeanjaures.org/PUB/ledescenseursocial.pdf.
4 Esta tendência vem acompanhada de uma profunda crise das organizações partidárias: como consequência da redução maciça do número de filiados (o Partido
Trabalhista Britânico, por exemplo, perdeu quase a metade de seus membros desde
1997), os partidos estão perdendo a capacidade de organizar campanhas eleitorais
e mobilizações.
5 Werner A. Perger: “Die Lage der Progressiven in Europa” [A situação das forças progressistas na Europa] em Berliner Republik N. 3/2007, p. 52-61.
154
Política Democrática · Nº 22
A esquerda depois da “terceira via”
europeu: profundização do mercado interno, políticas européias de
desregulação e competência, moeda única e forte restrição das políticas industriais nacionais.
A oferta política se orientou para o centro e para a classe média.
Os partidos de centro-esquerda se apresentaram ante estes grupos
como os gestores mais eficazes do capitalismo. Esta reorientação foi
necessária para ampliar a aliança eleitoral e recuperar a possibilidade de converter-se em maioria. Partiu do pressuposto de que os
eleitores tradicionais dos partidos de centro-esquerda não teriam
outras opções para apoiar e que, a longo prazo, os respaldos sociais
tradicionais da esquerda – os setores operários e a classe baixa da
era industrial – se desintegrariam como conseqüência da passagem
a uma economia de serviços pós-industrial.
Paralelamente, a educação foi colocada no centro do projeto político. Atribuíram-lhe algumas tarefas que excediam o papel clássico das escolas e das universidades. No novo projeto, a educação
assumiu o papel que a política fiscal redistributiva havia cumprido
no pós-guerra como instrumento fundamental da estratégia reformista. De agora em diante, os investimentos em educação tinham
que apontar soluções aos problemas de justiça social, desemprego e
competitividade internacional.
As causas do fracasso
Estas políticas permitiram aos partidos progressistas atravessar
três lustros ganhando eleições e com governos bastante bem sucedidos.
No entanto, na atualidade, esta oferta política já não resulta suficientemente atraente para gerar maiorias e garantir vitórias eleitorais.6
Um dos problemas que explicam esta situação é o impacto negativo da globalização e da europeização (como versão especificamente
européia da internacionalização) sobre a situação econômica relativa
dos trabalhadores. Nos últimos 25 anos, a cota salarial – isto é, a
porcentagem do produto total de uma economia que corresponde a
soldos e salários – tem decrescido continuamente na União Européia, passando de 72,1% a 68,4%. Ao mesmo tempo, o número de
pessoas empregadas aumentou: a taxa de emprego passou de 61,2%,
em meados da década de 1990, a 64,5%, na atualidade. Isto significa
que a um número crescente de empregados deve se repartir um volume decrescente de salários. Paralelamente, aumentou a desigualda6
Ibid.
155
VIII. Mundo
de do ingresso. Em muitos países da Europa ocidental, o Coeficiente
de Gini vem piorando desde os 807. À raiz destas tendências, o compromisso central da esquerda reformista de representar melhor os
interesses econômicos e sociais das «pessoas humildes», mediante a
aplicação de uma política tecnicamente eficiente e de reformas «factíveis», perdeu a credibilidade.
Da mesma maneira, perdeu aceitação a segunda resposta dos
partidos de centro-esquerda diante das mudanças econômicas: a
promessa de criar um espaço econômico europeu integrado que estabelecesse um marco novo e eficiente para a política social e econômica. Na atualidade, muitos cidadãos têm uma visão negativa da União
Européia, não só na França e nos Países Baixos, onde fracassaram
os plebiscitos sobre a Constituição8. E não se trata de uma reação
irracional: embora a UE tenha atuado com êxito como instrumento
de política exterior e de paz, seus avanços em matéria de crescimento
econômico e desemprego são insuficientes.
As promessas da “revolução educacional” se revelaram vazias.
Segundo estatísticas oficiais, na Europa o desemprego juvenil se situa em 18,7%, embora a porcentagem real pudesse ser mais elevada.
A possibilidade de que os europeus nascidos em lares pobres alcancem os níveis mais altos do sistema educacional não tem melhorado
(ao contrário, tendencialmente está piorando), e a porcentagem de
estudantes com formação secundária completa continua quase igual
20 anos atrás9. Paralelamente, o financiamento insuficiente tem minado a qualidade dos títulos universitários. Os novos empregos não
se criam nos setores bem remunerados da economia de serviços, mas
na base: na Grã Bretanha dos 90, a profissão de cabeleireiro cresceu
mais que todas as outras10. Na Europa de hoje, os jovens, inclusive
aqueles com uma boa formação, padecem taxas de desemprego superiores à média e seu ingresso se situa abaixo da média: na Grã
Bretanha, entre os menores de 30 anos, 37% são estatisticamente
“pobres”; na Alemanha, 42%; nos Países Baixos, 49%11.
Ao mesmo tempo, têm surgido novos desafios sociais, para os
quais a esquerda não tem encontrado respostas adequadas. Isto vale
7 Roger Liddle e Frederic Lerais: “Europe´s Social Reality. A Consultation Paper from
the Bureau of European Policy Advisers”, Comissão Européia, Bruxelas, 2007, p. 30.
8 René Cuperus: “European Social Unease: A Threat to the EU?” en Internationale
Politik und Gesellschaft N. 1/2006, p. 65-90.
9 R. Liddle y F. Lerais: op. cit., p. 24.
10 Larry Elliott y Dan Atkinson: Fantasy Island, Constable and Robinson, Londres,
2007, p. 79.
11 R. Liddle y F. Lerais: op. cit., p. 28.
156
Política Democrática · Nº 22
A esquerda depois da “terceira via”
sobretudo para o tema da imigração. O conceito de “sociedade multicultural”, núcleo ideológico da resposta da esquerda à imigração
maciça na Europa, fracassou. Este conceito criou sociedades fragmentadas e guetos de minorias marginalizadas que não vêm se integrando com êxito. Ao mesmo tempo, as frustrações, tanto dos “velhos
europeus” como dos imigrantes, se intensificaram. Isto é particularmente correto para os imigrantes procedentes de países islâmicos,
entre cujos descendentes de segunda e terceira geração se observam
amiúde posições muito mais hostis frente às sociedades ocidentais
que entre os da primeira. Durante anos, a esquerda se negou a discutir essas tendências e as converteu em um tabu. Isso explica porque, hoje em dia, a imigração seja o tema sobre o qual os ativistas e
os funcionários dos partidos de centro-esquerda estejam mais afastados das opiniões e manifestações de seu eleitorado tradicional12.
Outro problema que deve ser enfrentado pela esquerda é o discurso passivo diante das tendências globalizadoras e internacionalizadoras. A esquerda reformista e tecnocrática sustentou que só restava adaptar-se, como indivíduo e coletivo, a essas tendências, já que
não podem ser detidas ou modificadas. Este discurso reflete cada
vez menos o sentimento da população, que aspira a que os Estadosnação assumam um papel mais pró-ativo do que aquele que a nova
esquerda lhes assinalava. Em muitos países, se vive um processo de
renacionalização emocional radicalmente oposto ao discurso pró- europeu e favorável à globalização.13
Existem indícios de uma paulatina mudança de valores que os
partidos de centro-esquerda não sabem entender nem têm conseguido aproveitar politicamente. O espírito da época (Zeitgeist) parece
inclinar-se para posições mais conservadoras. Segundo algumas pesquisas, se registra um deslocamento do barômetro de valores para
posições mais tradicionais. Como conseqüência, existe uma crescente percepção crítica do liberalismo sociocultural e do relativismo de
valores característicos das sociedades hedonistas ocidentais das últimas décadas (e muito importantes para os tecnocratas de centro12 Segundo uma pesquisa recente de YouGov, na Grã Bretanha, sobre as prioridades
do futuro governo de Gordon Brown, 65% do eleitorado em geral – e 53% dos eleitores do Partido Trabalhista – mencionaram a imigração como o desafio mais importante para o novo primeiro ministro. Por outro lado, somente 20% dos filiados do
Partido Trabalhista consideraram que este fosse um tema prioritário.
13 René Cuperus: “Populism against globalisation: A new european revolt” em AAVV:
Rethinking immigration and integration: A new centre left agenda, Policy Network,
Londres, 2007, p. 101-120. V. também David Goodhart: “National Anxieties” em
Prospect N. 123, 6/2006, p. 30-35, disponível em <www.prospect-magazine.co.uk/
article_details.php?id=7478>.
157
VIII. Mundo
esquerda como prova de sua contínua orientação “progressista”).
Cada vez mais, a direita se faz eco deste estado de ânimo: em sua
bem sucedida campanha eleitoral, Nicolás Sarkozy dedicou muito
tempo ao “ajuste de contas” com a Geração 68.
Como resultado destes problemas, na atualidade os partidos de
centro-esquerda de muitos países da Europa ocidental se encontram
distanciados de uma parte substancial de seu eleitorado tradicional.14 Justamente é com os setores mais humildes da sociedade
com os quais estes partidos já não sabem se comunicar nem se
relacionar culturalmente: não falam seu idioma nem compartilham
suas preocupações e problemas. Nas zonas desfavorecidas de muitas cidades européias, as forças políticas de centro-esquerda praticamente já não contam com organização nem infra-estrutura. Este
vazio está sendo ocupado pelos novos movimentos populistas de direita, que são utilizados em forma crescente como um veículo para
manifestar a frustração e que são percebidos como forças dispostas
a se ocupar daqueles problemas cotidianos que os partidos majoritários – sobretudo de esquerda – não querem ver.15
Os partidos de centro-esquerda não encontram respostas à perda
de credibilidade de seu discurso tecnocrático, que tem minimizado o
potencial emancipador da política e oferecido somente uma adaptação sem alternativas à realidade “pós-moderna” no econômico, social
e cultural. Nesse contexto, uma pesquisa da Fundação Jean Jaurès,
próxima ao Partido Socialista francês, sobre as condições de vida dos
“setores populares” na França, cita um habitante de uma banlieue
francesa: “Não somos nós que nos tornamos apolíticos; são os políticos que têm dado as costas à política”. Pela primeira vez em décadas,
se vislumbra a ruptura da aliança social estratégica entre a classe
baixa e a classe média baixa a partir da qual os partidos progressistas da Europa se converteram em majoritários.
Um novo projeto é necessário
Diante desta situação, a centro-esquerda se vê obrigada a formular um novo projeto capaz de conquistar as maiorias. Para isso
14 W. A. Perger: ob. cit.
15 Ver Jörg Flecker (ed.): Changing Working Life and the Appeal of the Extreme Right,
Ashgate, Aldershot, 2007 e P. Guibert e A. Mergier: op. cit. Uma pesquisa do Partido
Trabalhista entre simpatizantes do Partido Nacional Britânico sobre os termos associados a este partido obteve um resultado deprimente para os trabalhistas: “liberdade de expressão” e “tratamento justo” foram os termos com os quais se associou ao
Partido Nacional Britânico nos distritos eleitorais tradicionalmente trabalhistas.
158
Política Democrática · Nº 22
A esquerda depois da “terceira via”
deverá desembaraçar-se do economicismo cerrado da “terceira via”,
sem abandonar o apelo estratégico ao centro. Não pode haver um
recuo para os conceitos dos 70 e 80. Necessita-se de um discurso político que não só interprete corretamente as ambições da população
– um dos pontos fortes do projeto tecnocrático reformista que não se
deveria abandonar –, mas também que se ajuste a seus crescentes
temores em um mundo cada vez menos previsível.16 Deve pôr fim à
estigmatização de determinados grupos da sociedade (“perdedores da
modernização”, “conservadores do statu quo”) e reconhecer que, para
muitas pessoas, os últimos anos têm deixado um saldo negativo em
termos econômicos e sociais.
Ao mesmo tempo, será iniludível que a esquerda deixe de lado
alguns tabus ideológicos, sobretudo em relação à questão da imigração. Neste tema, mais que em qualquer outro, a esquerda tem
se negado a enfrentar as realidades sociais, o que tem contribuído a
afastá-la de seu eleitorado tradicional.17 A esquerda, além disso, deve
buscar uma nova posição a respeito do Estado-nação e da temática
da identidade nacional.
Nos últimos cem anos, tem utilizado o Estado-nação como o instrumento central para conseguir seus objetivos políticos e sociais e,
até o momento, não tem encontrado um substituto capaz de cumprir
essa função.
Hoje, muitas pessoas esperam que o Estado-nação recupere um
papel mais ativo, atuando como “protetor” contra a globalização e não
como seu executor, como durante os governos da “terceira via”. Trata-se de uma tarefa complexa: formular um reclamo positivo sobre o
Estado-nação, mas sem deixar de aprofundar a integração européia.
Em última instância, a esquerda deve voltar a desenvolver projetos políticos que beneficiem seu eleitorado. Durante os últimos anos,
tem optado por situar os espaços de construção de políticas exclusivamente na esfera dos temas socioculturais. Ao mesmo tempo, as
questões econômicas, fiscais e político-institucionais (duras) foram
declaradas “zonas proibidas”.
À luz da crescente desigualdade e do bloqueio das possibilidades de
ascensão social das classes baixa e média baixa, isto terá que mudar.
16 Cf. Richard Sennett: The Culture of the New Capitalism, Yale University Press, Londres, 2006, sobre todo cap. 2, “Talent and the Spectre of Uselessness”, p. 83-130. [Hay
edición en español: La cultura del nuevo capitalismo, Anagrama, Barcelona, 2006.]
17 V. também R. Cuperus: op. cit., y E. Hillebrand: “Migration and Integration. The Errors of the European Left” en AAVV: Rethinking Immigration and Integration…, cit.,
p. 35-44.
159
VIII. Mundo
Um dilema adicional: a direita também se renova
Além dos desafios assinalados, as forças progressistas devem enfrentar uma ameaça adicional: a direita também se renova. Nos últimos anos tem se afastado do neoliberalismo radical para recuperar
espaço no centro da sociedade.
O “retorno ao centro” dos conservadores se observa em vários
países: George W. Bush ganhou duas campanhas eleitorais com a
promessa de um conservadorismo compassivo (compassionate conservatism); os conservadores suecos, sob a condução de Fredrik
Reinfeldt, aceitaram não abandonar o Estado social e, desta maneira, ganharam as eleições contra o Partido Social Democrata; a União
Democrata Cristã (CDU) alemã, logo depois de seu quase desmanche
eleitoral de 2005, resultado de sua campanha de inspiração neoliberal, voltou-se a uma orientação de centro-direita mais tradicional; na
Grã Bretanha, o Partido Conservador, liderado por David Cameron,
logrou uma reorientação surpreendente (e bem sucedida, segundo
as pesquisas) que incluiu a promessa de realizar investimentos públicos, manter o sistema estatal de saúde e defender a ecologia e
o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo; por último, durante a
campanha eleitoral na França, Nicolás Sarkozy não só destacou a
“dignidade do trabalho” e a laicidade da República, como se referiu
também a Victor Hugo e a Léon Blum, figuras sagradas para a esquerda. A estratégia do novo conservadorismo light já não passa pela
rejeição aos objetivos do projeto de centro-esquerda – previsão e solidaridade social com limites, ênfases na igualdade de oportunidades
educacionais e nos direitos das minorias –, mas por um questionamento ao caminho escolhido para concretizar tais objetivos.
Segundo este enfoque, o Estado não é o instrumento idôneo para
alcançá-los; o mercado, a oferta privada e o compromisso voluntário
seriam mais apropriados.
Paralelamente, se relativizam as diferenças em matéria de política econômica e financeira, pelo menos nos países com governos de
centro-esquerda bem sucedidos. Mais uma vez, a estratégia deste
novo enfoque da direita consiste em centrar a crítica em uma suposta burocratização excessiva e nos problemas técnicos: a política
da esquerda ofereceria pouco value for money ou, mais diretamente,
estaria malfeita. Naqueles países em que os governos de centro-esquerda lutaram com êxito contra o desemprego, como na Grã Bretanha ou Estados Unidos durante a gestão de Clinton, se assinala um
suposto exagero da importância da política para a criação de fontes
de trabalho. O setor privado – se argumenta – se encarregaria disto.
160
Política Democrática · Nº 22
A esquerda depois da “terceira via”
No fundo, trata-se da versão conservadora do slogan do Partido
Socialdemocrata Alemão durante a campanha eleitoral de 1998 contra Helmut Kohl: “Não mudaremos tudo, mas melhoraremos muito”.
Hoje, a nova “direita branda” promete: “Não mudaremos tudo, mas
melhoraremos muito... com menos fundos”. Até o momento, os partidos de centro-esquerda não encontraram uma resposta eficiente a
este conservadorismo light. Parece que a oferta de uma política econômica e social similar à da esquerda tecnocrática, sem suas particularidades em matéria social e cultural, resulta bastante atraente.
Uma eventual contra-estratégia deverá atacar muitas frentes, das
quais o papel do Estado é o mais importante. Neste ponto, existe sim
uma diferença entre as visões da nova direita e da nova esquerda,
particularmente quando se trata da questão do papel do Estado na
produção das prestações de serviços sociais e bens públicos (public
goods). Há claros indícios de que, em tempos de crescente incerteza,
muitas pessoas preferem um Estado forte e ativo, em lugar de um
sistema no qual as prestações de serviços sociais passem da esfera
dos direitos cidadãos à esfera do arbitrário, seletivo e assistencial
dos setores comerciais e não estatais. Em tempos de incerteza vital e
profissional, a esquerda deveria poder ganhar esta batalha. Mas será
igualmente importante romper duas vantagens eleitorais adicionais
da direita: a monopolização da nação e o posicionamento sincero
com relação aos problemas ligados à imigração.
Os atuais partidos de direita e de esquerda já não dispõem de
muito tempo para formular novos projetos políticos. A crise de representação começa a superar os partidos e afeta, cada vez mais, a
legitimidade do sistema político em geral, cujo caráter democrático
e participativo está sendo questionado. Uma pesquisa Gallup, de finais de 2006, revelou que só 30% dos britânicos, 28% dos italianos,
21% dos franceses e um alarmante 18% dos alemães responderam
afirmativamente à pergunta “se seu país está governado segundo a
vontade do povo”18.
18 Encuesta Gallup “Voice of the people”, www.voice-of-the-people.net, p. 101-120.
161
Ai dos que crêem no Império
Immanuel Wallerstein
A
inda que muito breve, a guerra entre Geórgia e Rússia revelou
algo chocante para o pensamento convencional. Menos de vinte anos após vencerem a Guerra Fria, os EUA já perderam a
condição de poder mundial solitário. Na verdade, deixaram até mesmo de ser superpotência...
O mundo assistiu recentemente a uma mini-guerra no Cáucaso.
A retórica, embora apaixonada, foi muito irrelevante. A geopolítica é
uma série gigantesca de jogos de xadrez a dois, nos quais os jogadores buscam vantagens de posição. Nestes jogos, é crucial saber as
regras que permitem os movimentos. Cavalos não podem mover-se
em diagonal.
De 1945 a 1989, o principal jogo de xadrez era jogado entre os Estados Unidos e a União Soviética. Era conhecido como Guerra Fria,
e as regras básicas eram chamadas “Yalta”. A mais importante delas
dizia respeito à linha que dividia a Europa em duas zonas de influência. Foi chamada por Winston Churchill de “Cortina de Ferro” e ia de
Stettin a Trieste. A regra era: não importava quanto conflito fosse
provocado na Europa pelos peões, eles não deveriam provocar uma
guerra real entre os Estados Unidos e a União Soviética. E ao fim de
cada episódio de conflito, as peças deveriam retornar para os postos
de onde haviam saído. Esta regra foi observada meticulosamente até
o colapso do comunismo em 1989, episódio marcado notoriamente
pela destruição do muro de Berlim.
É perfeitamente claro, como todo o mundo observou na época,
que as regras de Yalta foram revogadas em 1989, e que o jogo entre
os Estados Unidos e a Rússia (a partir de 1991) mudou radicalmente.
O maior problema desde então é que os Estados Unidos não compreenderam bem as novas regras. Eles proclamaram a si próprios
— e foram proclamados por outros — a superpotência solitária. Em
termos de regras de xadrez isto foi interpretado como se estivessem
livres para mover-se pelo tabuleiro da forma que bem entendessem.
E, em particular, para trazer os antigos peões soviéticos para sua
esfera de influência. Sob o governo Clinton, e de forma mais espeta-
162
Política Democrática · Nº 22
Ai dos que crêem no Império
cular sob o de George Bush, os Estados Unidos foram levando o jogo
dessa forma.
Havia um único problema: os Estados Unidos não eram a superpotência solitária; e sequer, uma superpotência. O fim da Guerra
Fria fez com que deixassem de ser uma das duas superpotências,
para se tornarem um Estado forte, em uma redistribuição verdadeiramente multilateral de poder real, no sistema interestatal. Muitos
países grandes são agora capazes de jogar os seus próprios jogos de
xadrez sem ter de pedir licença às duas superpotências de outrora. E
eles começaram a fazer isso.
Derrotada a União Soviética, Clinton age para conquistar seus
peões e ampliar a OTAN. Mas o grande delírio veio com Bush, que
renegou acordos, invadiu o Iraque e quis controlar a Ásia Central
Duas grandes decisões geopolíticas foram tomadas nos anos de
Clinton. Primeiro, os Estados Unidos forçaram bastante, e foram
relativamente bem-sucedidos, para incorporar os antigos satélites
soviéticos do Leste Europeu à OTAN. Tais países estavam ansiosos
por este ingresso, ainda que os Estados-chave da Europa Ocidental
– Alemanha e França – relutassem de algum modo. Percebiam que a
manobra norte-americana também os transformava em alvo, ao limitar a liberdade de ação geopolítica que recém haviam adquirido.
A segunda decisão estratégica norte-americana era tornar-se parte ativa nos realinhamentos de fronteiras na antiga República Federal da Iugoslávia. Isto levou-os a sancionar – e reforçar, com suas
tropas – a secessão de fato do Kosovo em relação à Sérvia.
Mesmo sob Yeltsin, a Rússia sentia-se descontente com estas
duas iniciativas geopolíticas norte-americanas. No entanto, a desordem politica e econômica naqueles anos era tão grande que o máximo que podiam fazer era reclamar — deve-se dizer que de um modo
um tanto débil...
George W. Bush e Vladimir Putin assumiram o poder mais ou
menos simultaneamente. Bush decidiu levar adiante as táticas da
potência solitária (em que os Estados Unidos decidem por si mesmos
como mover suas peças) com muito mais audácia do que Clinton
havia feito. Em 2001, recuou do tratado antimísseis assinado com
a União Soviética, em 1972. Depois, anunciou que os Estados Unidos não se prontificariam a ratificar os novos tratados assinados
por Clinton em 1996; o Tratado de supressão dos testes nucleares
[Compreensive Test Ban], e as mudanças acordadas para o tratado
de desarmamento nuclear SALT II. Para completar, comunicou que
163
VIII. Mundo
Washington manteria seu projeto de militarização do espaço, conhecido como “escudo antimísseis”.
E, é claro, Bush invadiu o Iraque em 2003. Como parte deste
envolvimento, os Estados Unidos vislumbraram e obtiveram direitos às bases militares e de sobrevôo nas repúblicas da Ásia Central
– que anteriormente faziam parte da União Soviética. Além disso,
promoveram a construção de óleodutos e gasodutos que procuravam
tornar desnecessários os sistemas russos. E finalmente entraram em
acordo com a Polônia e a República Tcheca para estabelecer pontos
de defesa de mísseis, sob alegação de defesa contra o Irã. A Rússia,
porém, os viu como voltados contra si.
Duas causas imediatas explicam a guerra. Diante da independência do Kosovo, a Rússia reivindicou direitos iguais. E, sem exército,
Saakashvilli acreditou no conto do poder unilateral de Washington
Putin estava disposto a resistir com mais força que Yeltsin. Como
jogador prudente, porém, ele se preocupou primeiro em fortalecer
sua base, restabelecendo a autoridade central e revigorando o aparato militar russo. Neste período, as marés da economia mundial mudaram, e a Rússia tornou-se de repente um rica e poderosa controladora de reservas e linhas de abastecimento de petróleo e gás natural,
dos quais os países ocidentais dependem fortemente.
O presidente russo começou a agir. Negociou acordos com. Manteve relações próximas com o Irã. Começou a pressionar os Estados
Unidos para fora das bases militares na Ásia Central. E se posicionou firmemente contra a extensão da OTAN em duas zonas estratégicas: Ucrânia e Geórgia.
O colapso da União Soviética deflagrou movimentos separatistas
em diversas de suas antigas repúblicas, inclusive a Geórgia. Quando,
em 1990, a Geórgia buscou acabar com o status de autonomia das
zonas étnicas não-georgianas, estas imediatamente proclamaram-se
Estados independentes. Não foram reconhecidos, mas a Rússia garantiu sua autonomia.
As causas imediatas para a mini-guerra deste ano têm dupla origem dupla. Em fevereiro, Kosovo institucionalizou sua autonomia de
fato. Este movimento foi apoiado por e reconhecido pelos Estados Unidos e por boa parte dos países europeus. A Rússia alertou, na época,
que a lógica deste movimento aplicava-se igualmente às secessões de
fato nas antigas repúblicas soviéticas. Na Geórgia, a Rússia agiu imediatamente, pela primeira vez, reconhecendo a independência de jure
da Ossétia do Sul, em resposta direta aos fatos em Kosovo, Em abril,
os Estados Unidos propuseram, durante reunião da OTAN, que a Geórgia e a Ucrânia fossem recebidas, em um plano de adesão chamado
164
Política Democrática · Nº 22
Ai dos que crêem no Império
Membership Action Plan. Alemanha, França e o Reino Unido opuseram-se a isso, alegando que seria uma provocação à Rússia.
Neoliberal e fortemente pró-Washington, o presidente da Geórgia,
Mikhail Saakashvili, estava agora desesperado. Ele deu-se conta de
que a reafirmação da autoridade georgiana na Ossétia do Sul (e na
Abkházia) poderia perder-se para sempre. Aproveitou-se de um momento em que a Rússia estava supostamente desatenta (Putin, agora
primeiro-ministro nas Olimpíadas; o presidente Dmitri Medvedev, de
férias) para invadir a Ossétia do Sul. Seu exército fracassou completamente, como era de esperar. Mas Saakashvili imaginou que estivesse
forçando a mão dos EUA (aliás, da Alemanha e da França também).
Como nota irônica, a Geórgia, uma das últimas aliadas dos Estados Unidos na coalizão no Iraque, retirou todos os 2 mil soldados
que ainda mantinha por lá
Ao invés disso, ele teve uma resposta imediata da força militar
russa, que esmagou a pequena armada georgiana. De George W.
Bush, obteve retórica. Mas afinal de contas, o que Bush poderia fazer? Os Estados Unidos não são uma superpotência. Suas forças armadas estão atoladas em duas guerras sem perspectivas no Oriente
Médio. E, mais importante que tudo, eles precisam muito mais da
Rússia do que o contrário. O ministro de Relações Exteriores russo,
Sergei Lavrov, frisou, num artigo publicado pelo Financial Times, que
a Rússia é um “parceiro do Ocidente no Oriente Médio, Irã e Coréia
do Norte”.
A Rússia também controla, em essência, o abastecimento de gás
da Europa Ocidental. Não por acaso, foi o presidente Sarkozy da
França – e não Condolezza Rice – quem negociou a suspensão do
conflito. No acordo firmado entre os dois países, a Geórgia faz duas
concessões essenciais. Compromete-se em não mais utilizar a força
contra a Ossétia do Sul, e aceita um documento que não faz nenhuma referência a sua integridade territorial.
A Rússia saiu, portanto, muito mais forte que antes. Saakashvili
apostou tudo o que tinha e está agora geopoliticamente falido. Como
nota irônica, a Geórgia, uma das últimas aliadas dos Estados Unidos
na coalizão no Iraque, retirou todos os 2 mil soldados que ainda mantinha por lá. Estas tropas jogaram um papel importante nas áreas xiitas, e agora precisam ser substituídas por tropas norte-americanas,
que terão que deixar outras áreas.
Quem joga o xadrez geopolítico precisa conhecer suas regras. Do
contrário, corre o risco de ficar emparedado.
165
IX. Vida Cultural
Autores
Ivan Alves Filho
Historiador, autor, dentre outros, do clássico Memorial de Palmares.
Vladimir Carvalho
Cineasta e documentarista, integrou o chamado movimento do cinema novo. Dentre
seus filmes destacam-se Conterrâneos velhos de guerra e O engenho de Zé Lins.
Livros que eu li
Ivan Alves Filho
H
á um exercício extremamente salutar e que gosto de praticar de vez em quando. Trata-se de estabelecer, mentalmente,
uma lista dos livros que mais me impressionaram na vida.
Uma lista que sempre fica alojada na minha memória e que hoje, pela
primeira vez, tento colocar no papel de forma organizada. Certamente, haverá graves omissões, por conta de nossas próprias insuficiências. Há obras para lá de clássicas que ainda não li e, outras, que
talvez não tenham tanta importância assim aos olhos de alguns.
Começando pelas minhas primeiras leituras, o primeiro livro que
gostaria de lembrar é Caçadas de Pedrinho. Para o menino da cidade
grande que eu era, ele abria as portas – ou as porteiras... – do mundo. Quando eu partia de férias para a casa dos meus avós, em Minas,
eu me sentia o próprio herói-mirim de Monteiro Lobato: minha vida
por um quintal! Eu era o dono daquela porçãozinha de terra com
árvores frutíferas por todos os lados, um riozinho ao fundo e a Maria
Fumaça sacolejando e apitando pelos trilhos da estradinha de ferro
que passava atrás da casa. Além de avistar o trenzinho caipira, eu
ainda percebia, da janela do quarto do meu avô, as palmeiras imperiais que enquadravam o quintal. Infelizmente eu não me chamava
Pedro – mas o meu filho não escapou de ter este nome...
Outro clássico da literatura infanto-juvenil que me fascinou foi
Robinson Crusoé, do inglês Daniel Defoe. Trata-se de uma história
verídica, na origem. O naufrágio do marinheiro que passou anos isolado em uma ilha no Pacífico serviu de pretexto para o autor – um
antigo membro do serviço de espionagem de Sua Majestade – tra-
169
IX. Vida Cultural
balhar magistralmente a oposição civilização versus natureza. Moby
Dick, do norte-americano Herman Melville, é mais um desses livros
que povoaram a minha infância. As referências às minhas leituras
de guri ficariam incompletas se eu não citasse Os meninos da Rua
Paulo, do húngaro Ferenc Molnár, em tradução de Paulo Rónai. Um
livro triste – mas de beleza ímpar. E não só: Meu pé de laranja lima,
de José Mauro de Vasconcelos, é um livro que me comove ainda hoje.
Digo o mesmo de Rosinha, minha canoa, também dele.
Outro livro delicioso, já por conta das minhas leituras de adolescência, foi A Moreninha. Eu o reli há uns dez anos, por influência do
saudoso Nelson Werneck Sodré, admirador da obra. Reli e continuei
gostando, o que nem sempre é muito comum. De um romantismo arrebatador, escrito como um folhetim, era uma história com começo,
meio e fim – e eu aprecio histórias assim, mesmo que não sejam forçosamente lineares. Mas histórias têm que fazer sentido. Outro livro
arrebatador do romantismo brasileiro? Inocência, de Alfredo Taunay.
Essas notas ficariam incompletas se deixasse de citar outros romances, de uma fase mais madura minha. Vamos àqueles de Machado de Assis. Curiosamente, não tenho preferência por nenhum
romance seu. Li-os todos, acredito, e gosto de todos, sem exceção.
Mas... – vá entender porque motivo – devo confessar que sou particularmente atraído pela atmosfera de Helena, romance passado na bucólica Santa Teresa. E acho imbatível o início de Memórias póstumas
de Brás Cubas: “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias
pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu
nascimento ou a minha morte.” Não tenho como decidir...mas, lá no
fundo, Brás Cubas...
Vidas secas é outro livro marcante. Pela economia de diálogos
– pois o sertanejo é acima de tudo um taciturno, antes mesmo de
ser um forte. E o velho Graça conhecia o homem do sertão melhor
do que ninguém. Afinal, era um deles. Mas a grande cena do livro
envolve um cão. Eu me pergunto quem mais, além de Graciliano Ramos, conseguiria ver o mundo sob a ótica de um animal. O Baleia,
no caso, cuja morte é descrita de forma pungente. “Madame Bovary,
c´est moi!”, exclamou Flaubert. E Baleia é o Graça, digo eu.
Jorge Amado merece um capítulo à parte.Talvez ninguém saiba
contar uma história como ele. Jubiabá é meu livro preferido dele. Mas
tem também Tereza Batista Cansada da Guerra, o livro de memórias
Navegação de cabotagem e a formidável trilogia Os subterrâneos da
liberdade, que narra a luta dos comunistas contra a ditadura Vargas. Amado Jorge. Outro que possui o dom da narrativa: o paraense
170
Política Democrática · Nº 22
Livros que eu li
Dalcídio Jurandir. Dele li a bela obra Chove nos Campos de Cachoeira e deveria ter lido muito mais coisas. Eu li Chove nos Campos de
Cachoeira ao mesmo tempo que Incidente em Antares, no começo dos
anos 70. Foi mais uma dessas obras impressionantes de Érico Veríssimo, de quem já admirava não só a trilogia O tempo e o vento como
As aventuras de Tibicuera, uma saborosa narrativa infanto-juvenil.
Dos romances estrangeiros – se é que algum romance é de fato estrangeiro a alguém – eu destacaria, lá atrás, Razão e sensibilidade, de
Jane Austen. Livro saboroso, retratando a Inglaterra pastoril, de mocinhas suspirando por seu amor, em cenas de doce romantismo que
se desenrolam na quietude do ambiente rural. O livro de Jane Austen representa um mergulho quase sem igual na alma humana (como
mais tarde somente Dostoiévski saberia fazer). Jane Eyre, de Charlotte
Brontë, é mais um belo livro sobre a Inglaterra romântica e um libelo
pela emancipação da mulher. Outro retratista extraordinário de seu
tempo foi Honoré de Balzac, o autor preferido de ninguém menos do
que Karl Marx. Dotado de incrível capacidade de trabalho – dizem que
labutava em média 15 horas por dia –, Balzac estabeleceu um painel impressionante da classe dominante francesa de seu tempo, tanto
mais impressionante quanto ele não poupava críticas ao comportamento de uma classe que apoiava resolutamente...Mas a honestidade
do artista, a sua genialidade mesmo, estava acima de suas preferências políticas. O homem era um; o artista outro. Do que li dele, o que
mais gostei foi Lírio no vale, um caso de amor trágico. O que Karl Marx
percebeu em Balzac, Astrojildo Pereira notou em Machado.
Há pelo menos seis ou sete outras obras, um pouco mais recentes, que me fascinaram. A primeira delas é Os irmãos Karamazov, do
mestre F. Dostoiévski, cuja densidade aumenta à medida que relemos a obra. Outro livro que emociona – e muito – é A dama das camélias, o romance-verdade de Alexandre Dumas Filho. Outro ainda é A
cidade e as serras, hino ecológico de Eça de Queirós, sobre as agruras da civilização industrial. Toda a vida pela frente, de Emile Ajar,
pseudônimo de Roman Gary, de um humor refinadíssimo e uma ternura sem limites, é uma das leituras mais agradáveis que fiz na vida.
O país das neves, de Yasunari Kawabata, toca pela fragilidade do
ser humano diante da vida, tema recorrente da obra desse magnífico
autor japonês. Drácula, do irlandês Bram Stocker, não poderia, até
pelo pioneirismo, deixar de figurar em qualquer lista. Do colombiano
Gabriel Garcia Marquez li Cem anos de solidão, que me reteve do
começo ao fim da história. E o último que gostaria de citar é o épico
Dr. Jivago, de Boris Pasternak, uma das obra-primas do século XX e
171
IX. Vida Cultural
que versa sobre as vicissitudes da Revolução Russa. Aqui, o romance
como que se encontra com suas origens, resvalando para a epopéia.
Bem, as novelas. As russas me encantam. Acho a Rússia o país
mais fascinante do mundo e isso talvez se deva ao fato de se encontrar na fronteira do Ocidente com o Oriente. De todos aqueles gênios
da literatura russa – Gogol, Dostoiévski, Tchécov, Turgueniev – o que
mais me impressionou foi A. Pushkin e sua formidável descrição do
modo de vida dos camponeses de seu país. A rudeza dos seus escritos guarda um amor quase inigualável pelo povo – mesmo se comparado a Máximo Górki e outros autores engajados. Para mim, seu
mais belo livro é A dama de espadas.
“Ao despertar após uma noite de sonhos agitados, Gregor Samsa
encontrou-se em sua cama transformado num inseto gigantesco.”
Esse o começo de Metamorfose, de Franz Kafka. Não existe metáfora
maior do homem moderno do que essa. E início mais impactante de
novela do que esse, que causasse tanta estranheza ao leitor. Franz
Kafka não era russo – era checo. Isto é, gravitava de qualquer forma
em torno da cultura eslava. Percebia a gestação da alienação do homem moderno como ninguém. As instituições burocráticas substituindo as relações sociais. Não saberia dizer se Kafka era pessimista,
pois um autor não tem que apontar diretrizes, acho eu.
Outra novela que leio com prazer sempre é O velho e o mar, de
Hemingway. Trata-se de um hino de louvor à tenacidade humana.
O final do livro é apoteótico. É o chamado pequeno grande livro.
Sempre volto a ele. Outra novela que reputo formidável? O chamado
selvagem, de Jack London – verdadeiro triunfo das leis da natureza.
E de início arrebatador também. Mais uma novela? O estrangeiro, do
franco-argelino Albert Camus. A derrradeira? Uma vida em segredo,
de Autran Dourado, obra-prima em matéria de sensibilidade.
Ainda no âmbito da literatura de ficção, eu não poderia deixar de
lado os contos. Eles possuem as mesmas características do romance, mas são bem mais concisos, senão precisos e surpreendentes.
Os contos mais extraordinários que li são aqueles de Giovanni Boccaccio, reunidos no belíssimo Decamerão. Depois, os que mais gosto
são os escritos por Guy de Maupassant, o mestre incontestável do
gênero na modernidade. Alia crítica de corte social e profundidade
psicológica na análise das personagens. O seu Bola de sebo é um dos
maiores livros que li. Maupassant fez escola e Somerset Maugham
pode ser considerado um filho literário seu. Histórias extraordinárias, do norte-americano Edgar Allan Poe é outro livro quase que de
cabeceira meu. Guimarães Rosa, com Sagarana, realiza a proeza de
172
Política Democrática · Nº 22
Livros que eu li
unir o universal e o regional. Seu magistral A hora e vez de Augusto
Matraga é uma aula de conto. Dele também li com prazer Famigerado
e A terceira margem do rio. Entre os contistas nacionais, destacaria
ainda dois: Samuel Rawet e Breno Accioly.
Os poetas não ficam atrás dos grandes pensadores, demonstrando, muitas vezes, que a sensibilidade rivaliza com o conhecimento e
pode até se antecipar a ele. Nomes? Horácio, Virgílio... As Bucólicas
(e também as Geórgicas) cantam a vida campestre como nenhum
outro poeta cantou depois de Virgílio, esse filho de lavradores. São
os poemas que mais me agradam, até hoje. Sem prejuízo do prazer
que provocam em mim a leitura dos sonetos de Camões ou Marília de
Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, ou ainda Castro Alves e Álvares
de Azevedo e os poetas mais modernos, de versos livres. Poema sujo,
do Gullar, é uma obra-prima: “O homem está na cidade / como uma
coisa está em outra / e a cidade está no homem / que está em outra
cidade...” Entre os antigos, Li T´ai Po, Ovídio e Omar Kahyyam são
os que mais me dão prazer. E eu não poderia fechar esse parágrafo
sobre os livros de poesia sem mencionar Manoel Bandeira e Manoel
de Barros, os dois fantásticos manoéis da nossa literatura. Gosto
especialmente de Ritmo dissoluto, de Bandeira, pois foi nesse livro
que ele publicou Vou embora para Pasárgada. Do segundo Manoel,
aprecio particularmente O livros das ignorãças. Imensos, os dois.
Não leio teatro. Penso que o texto teatral é para ser encenado e
não lido. Provavelmente me equivoco. Mas... William Shakespeare
acaba com as nossas eventuais resistências. Seus livros são portadores dos dialógos mais bonitos que alguém jamais escreveu! Quem
duvidar que leia Hamlet, por exemplo, esta bela defesa da necessidade de se colocar ordem em nossas vidas.
Aprecio muito a leitura de livros sobre gêneros literários. Cartas a
um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke, descortinou para mim o horizonte da poesia, quando tinha 16 anos. Demonstrou Rilke que poeta
é aquele que retira inspiração do cotidiano e, acima de tudo, alguém
que morreria se não escrevesse poesia. A cidade e o campo, do inglês Raymond Williams, é outro estudo primoroso, centrado sobre o
impacto da transição da vida rural para a urbana na literatura moderna. Aprecio ainda os ensaios sobre poesia e literatura em geral de
Jorge Luis Borges, Italo Calvino, Mario Vargas Llosa e Octavio Paz.
Eu não saberia classificar o Mitológicas, de Roland Barthes. Livro de
crítica? Só posso dizer que raramente um livro me deu tanto prazer
ao lê-lo. Mitológicas, na verdade, põe em discussão todos os ícones
culturais da modernidade.
173
IX. Vida Cultural
Romance, conto ou novela – o importante é que a literatura transborde de humanismo e seja prazerosa.
Encanta-me também um gênero brasileiríssimo (se fosse fruta
seria, logicamente, jabuticaba...): estou me referindo à crônica. Ai
de ti, Copacabana, do carioca honorário Rubem Braga é a bíblia do
gênero. O próprio Braga é um ícone do gênero. O charme da crônica,
a meu juízo, é que cabe tudo nela – da reflexão de caráter filosófico
aos pequenos fatos do cotidiano das gentes -, sempre sob uma ótica intimista. Outros mestres da crônica? Raquel de Queirós, Paulo
Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta, Elsie Lessa, José Carlos de
Oliveira, Lygia Fagundes Telles, Cecília Meireles, Antônio Maria, Artur da Távola e Caio Fernando de Abreu. E peço perdão antecipado
por alguma omissão.
As máximas e aforismas também me encantam e muito. Numerosos filósofos da Antigüidade – como Marco Aurélio – recorreram
a essa forma de expressão, que quase sempre revela um sistema
aberto de pensamento. Mais perto do nosso tempo, homens como
Friedrich Nietzsche também se valeram do aforisma para expor suas
reflexões e inquietações. O livro de máximas que li com maior prazer se intitula Reflexões, do moralista francês Le Rochefoucauld. O
jesuíta Baltasar Gracián y Morales, autor de A arte da prudência, é
outro pensador que se expressa magistralmente por intermédio das
máximas: “Por maior que seja a tarefa, o que a desempenha deve
demonstrar uma grandeza ainda maior”.
Há uma obra que representou um divisor de águas na minha vida
e, creio, na vida de muitas outras pessoas: trata-se do Manifesto do
Partido Comunista, dos alemães Karl Marx e Friedrich Engels. Que
universo esse livro descortinou na minha existência! Que lição de
História e que sopro humanista! Desde então, o fantasma do capitalismo não deixaria mais de rondar o meu mundo. E eu não poderia
deixar de mencionar, já que estamos no terreno do marxismo, um
livro... muito criticado por Marx: O direito à preguiça, de seu genro
Paul Lafargue. Para Marx, Lafargue era um pouco ingênuo em suas
observações sobre o fim do trabalho. Mas trata-se sem dúvida de um
panfleto formidável contra o trabalho embrutecedor.
Há um livro, ainda na área que poderíamos denominar de política
ou de estudos sociais, que provocou grande impacto em mim, como
se estivesse lendo um Friedrich Engels atualizado. Refiro-me ao ensaio Os danados da terra, do psiquiatra martiniquês Franz Fanon,
uma análise das mais aprofundadas sobre o fenômeno colonial e
suas conseqüências para o desenvolvimento mental dos colonizados.
174
Política Democrática · Nº 22
Livros que eu li
O prefácio desse livro é de ninguém menos do que Jean-Paul Sartre.
Franz Fanon morreu aos 36 anos de idade, deixando o nosso pensamento certamente mais pobre. O ensaísmo político me fez entrar em
contato com autores como Astrojildo Pereira, Ernest Bloch, Antonio
Gramsci, Walter Benjamin, Roger Garaudy e Norberto Bobbio.
Não posso deixar de lado o domínio da Arte. Muitos livros sobre
a prática artística me marcaram ao longo das minhas leituras. Mas
nenhum como A necessidade da arte, do austríaco Ernest Fischer.
Com sensibilidade extraordinária, o autor sobrevoa a história da
arte, estabelecendo como cada um de nós precisa da imaginação e
da beleza para alcançar uma existência mais rica. Para quem quer
se iniciar nos estudos das artes plásticas e da poesia, não recomendaria obra melhor.
Há livros que decidem um destino. O Quilombo dos Palmares, do
antropólogo Edison Carneiro, praticamente selou o meu. Explico. Fiquei tão fascinado pela epopéia dos escravos rebelados na Serra da
Barriga, em Alagoas atual, que resolvi estudar a sua história. Posso
dizer que, desde 1974, pelo menos, nunca mais abandonei os estudos sobre Palmares, produzindo desde então pesquisas, dissertações, livros e artigos sobre o assunto. Outros dois livros que influenciaram decisivamente nessa minha paixão pelos estudos históricos:
A República comunista-cristã dos guaranis, do jesuíta Claude Lugon,
bela pesquisa sobre a saga dos índios na América do Sul, e História
da riqueza do homem, de Leo Huberman, um relato extremamente
bem escrito da luta dos trabalhadores através dos tempos. “Dezessete anos antes do fim do século XIX, Karl Marx morria. Dezessete
anos após o início do século XX, Karl Marx tornava a viver”. Outro
livro de História – na realidade, a meio caminho da História com H
maiúsculo e da história pessoal, ainda que com P maiúsculo... – é o
denso Tempos interessantes – Uma vida no século XX, de Eric Hobsbawn, provavelmente o mais influente historiador do século passado.
O homem e o mundo natural, do inglês Keith Thomas, é também um
dos melhores livros de História que conheço. Mais, até: trata-se um
dos melhores livros que já li em toda minha vida.
Prosseguindo. Se a antropologia se apresenta, hoje, como um
campo fascinante da reflexão humana isso se deve em boa medida
a um centenário senhor chamado Claude Lévi-Strauss. E em particular ao seu Tristes trópicos, um dos primeiros livros a reconhecer
o direito à História aos índios das Américas e aos demais povos que
desconheciam o Estado e a divisão da sociedade em classes. Mais:
Lévi-Strauss deu aos mitos indígenas uma dignidade de tratamento
desconhecida até então. Outros antropólogos franceses cujas obras
175
IX. Vida Cultural
muito admiro são Maurice Godelier e Pierre Clastres. O primeiro
trabalhou o espaço da economia nas sociedades ditas primitivas, o
outro, se esforçou – com sucesso, na visão de alguns – para provar
que essas sociedades queriam evitar a qualquer preço a formação do
Estado, do Um.
A Antigüidade clássica revelou pensadores extraordinários. Os
pré-socráticos, Aristóteles (que conheço menos do que deveria), Platão (este, o primeiro a dizer que a sociedade era passível de conhecimento, inaugurando assim as ciências sociais) e, sobretudo, Epicuro, pelo seu apego à liberdade e ao prazer. Carta sobre a felicidade (a
Meneceu) é um dos meus livros preferidos. Com Epicuro aprendi algo
fundamental: a importância da serenidade – ainda que eu mesmo
tenha grande dificuldade em praticá-la.
E, acima de tudo, Epicuro nos ensina sobre a necessidade de
exercer controle sobre nossa própria existência. Outros autores – e
penso em Montaigne do Ensaios, escrito na linha da valorização ou
aproximação da filosofia com os problemas do cotidiano e da subjetividade – enveredaram pela mesma seara. Sêneca foi um deles
também. Marco Aurélio outro. Mas Epicuro segue sendo inigualável,
único.
A psicanálise me reservou leituras profícuas. A começar pelo Mal
estar na civilização, livro no qual Sigmund Freud expõe o quanto o
processo civilizatório depende da repressão aos instintos agressivos
presentes no homem. Mais do que um livro, Mal estar na civilização
é um código de conduta, como os Dez mandamentos, por exemplo.
Outro trabalho que me encantou foi o relato Memórias, sonhos, reflexões, do psicanalista suíço Carl Jung, cujo pai achava que ele não
seria nada na vida. Se o genitor era ruim de diagnóstico, o mesmo não
poderia ser dito a propósito do filho, discípulo – depois dissidente – de
Sigmund Freud.
Ainda na linha dos livros de ou sobre a psicanálise, não poderia
deixar de lado o fundamental A arte de amar, de Erich Fromm. O autor repõe, com muita propriedade, o amor no centro de nossas vidas,
seja ele materno, paterno, fraternal ou aquele de um homem por uma
mulher. Nem que seja por esse motivo, o livro é insubstituível.
O tempo das lembranças e da valorização do Eu. Assim vejo os
relatos memorialísticos. O mais incrível que conheço são as Memórias de Pedro Nava. Li somente os três primeiros volumes. São seis,
ao todo. Emocionante, lascivo, contundente, estonteante, lírico, despedaçado, abusado, cruel por vezes, Pedro Nava é o maior escritor
barroco que conheço. Um livro seu tem a leveza de um poema de
176
Política Democrática · Nº 22
Livros que eu li
Bandeira, a profundidade das reminescências de Proust, a beleza
do corpo de mulher amada e a transparência de uma mina d´água.
Um livro seu é simplesmente puro esplendor. Confesso que vivi, de
Pablo Neruda, emociona pelas circunstâncias em que o livro nasceu:
foi ditado pelo poeta poucos dias antes de sua morte, acelerada pelo
golpe militar de Augusto Pinochet. Reconheço que em matéria de
literatura do Eu, tudo começou com Agostinho de Hipona, com suas
Confissões, um relato que impressiona pela sinceridade.: “Deus, daime castidade, mas não já!”
O homem certo no lugar certo – a fórmula entrou para a história
da literatura. É a força do relato, a qual está presente em Os sertões, de Euclides da Cunha, e também em Os dez dias que abalaram
o mundo, do norte-americano John Reed. Sem esquecer o formidável Dersu Uzala, do militar russo Vladimir Arseniev, uma espécie de
Rondon eslavo.
Livros de viagem têm uma característica interessante. Ou seja,
podem nos transportar a todos os lugares do mundo sem que precisemos sair do nosso quarto. A literatura de viagem configura, no
fundo, uma evasão do mundo pasteurizado, do modo de vida único.
Pode ser um documento histórico ou científico; um relato de aventura ou um diário pessoal – mas é sempre uma descrição singular,
intransferível, subjetiva quase ao extremo. Há livros abolutamente
extraordinários, os quais revelam, muitas vezes, que a grande viagem
é aquela que o autor faz em torno de si mesmo – através dos outros.
O primeiro livro que destacaria – e que possui, justamente, um tom
irresistivelmente intimista – é Caminhada, de Herman Hesse. Tratase de um travessia de uma parte dos Alpes, mais exatamente dos
alpes alemães por parte do autor. É um livro de reflexão filosófica
sobre a solidão e também a imensidão da natureza.
De certa forma, segue no rastro do célebre Devaneios de um caminhante solitário, de Jean-Jacques Rousseau, outra obra-prima do
gênero. Um dos inspiradores da Revolução Francesa – que iria colocar forças incontroláveis em movimento pelo mundo afora – Rousseau era, paradoxalmente, um homem só. Henry David Thoreau, que
passaria dois anos de sua vida sozinho no lago Walden, era um partidário dessas idéias. Seu livro Walden, datado de 1854, descreve
seu isolamento – e sua busca pela autosuficiência – em uma floresta
norte-americana, tornando-se por assim dizer a bíblia da geração
beatnik um século depois. Era uma figura mística, solteirão convicto,
cultíssimo.
177
IX. Vida Cultural
Lugares exóticos sempre atraíram os viajantes. Penso em Viagens, de Marco Polo – clássico dos clássicos –, e também em Viagem
pela África, de Paul Theroux, além do ótimo Nos Mares do Sul, de
Robert Louis Stevenson. E penso igualmente em Viagem ao Tibet,
da orientalista francesa Alexandra David Neel (não tenho certeza se
existe tradução desse livro em língua portuguesa). Há muitos e muitos outros relatos fascinantes, como o estupendo Patagônia, de Bruce
Chatwin, autor precocemente desaparecido e o não menos estupendo
Sob o sol da Toscana, de Frances Mayes, um livro de cultura, A outra
Europa, do alemão Hans Enzensberger, e Um ano na provence, do inglês Peter Mayle, são dois outros livros que podemos ler com imenso
proveito e prazer. Em matéria de livros de viagens, teve até um relato
sobre o México – quase um guia turístico, pela precisão –, elaborado
pelo português José Agostinho Baptista, que simplesmente nunca
estivera por lá, na terra de Emiliano Zapata e David Alfaro Siqueiros.
Trata-se de uma viagem imaginária.
No fundo, talvez todas as viagens o sejam.
178
Política Democrática · Nº 22
Forma e conteúdo no
vôo do Ícaro do sertão1
Vladimir Carvalho
A
propósito do Romance do Vaqueiro Voador, filme, ocorreu-me,
logo que o assisti no ano passado, o que à primeira vista pode
parecer rematada extravagância: fosse o pintor flamengo Pieter Brueghel, o Velho, nosso contemporâneo, o tema da construção
de Brasília não escaparia à sua palheta tão chegada aos escancarados espaços e às gentes que nele circulam. Aqui ele poderia trocar
de inspiração e ao invés de se inspirar em Hyeronimus Bosch procuraria um outro quase homônimo, o João Bosco, autor do cordel que
deu margem ao filme de Manfredo Caldas.
Logo em sua abertura magnificente, com os créditos de apresentação de Fernando Pimenta, senti-me planar junto com a câmera,
flutuando com ela sobre a Esplanada dos Ministérios e o cenário
em sua volta. E, tomado pela vertigem do movimento e da música
impactante de Marcus Vinícius, experimentei a sensação de reencontrar a obra do mestre renascentista que quase sempre abarcava
com a vista do alto os seus temas como se os sobrevoasse até os difusos horizontes. Mas olhados mais de perto no foco desses plongês
se viam as cenas que flagrava, cheias de movimento e intenções, de
figuras prestes a se mexerem para o deleite de uma invisível câmera
de filmar. Assim são as suas telas célebres como o Porto de Nápoles,
A Colheita do Feno, A Torre de Babel, A Luta de Carnaval e Quaresma
ou a apavorante O Triunfo da Morte, aterradora “panorâmica” sobre o
tema da guerra e da destruição.
Já havia esquecido o pintor com relação ao Vaqueiro Voador,
quando revendo agora o filme e relendo o longo e tocante poema de
João Bosco Bonfim, tornou-me a baixar o fantasma de Brueghel e
dessa feita mais explicitamente. É que casualmente decifrei nos versos do cordel o nome Oraci, um dos apelidos do Vaqueiro, que lido
1 Integrante da significativa leva de documentários de longa metragem que veio a
público este ano, O Romance do Vaqueiro Voador, de Manfredo Caldas, tematiza o
pouco conhecido episódio da chacina de operários durante a construção de Brasília. Com excelente crítica quando do seu lançamento, o filme conquistou também o
principal prêmio do Festival de Cinema de Toulouse, na França.
179
IX. Vida Cultural
ao contrário é Ícaro, justo o tema do holandês na fabulosa Paisagem
com a Queda de Ícaro, quadro que tem a mesma e característica visão do alto a contemplar a condição e a faina humanas, alimentadas
de sonho e utopia. E aí associei essas ilações à estratégia poética
adotada por Manfredo Caldas e seu roteirista Sérgio Moriconi para
traduzir no cinema a narrativa literária de JB. Ele sobrevoa com sua
câmera em plongê os amplos espaços da grande urbe já construída e
movimentada, prenunciando o assunto que persegue, até descer vertiginosamente em mergulho e aterrissar nas tensões da tragédia que
vai contar. Nesse lance, primeiro procede sorrateiro como se cercasse
a caça à maneira do gavião que a espreita do alto antes do bote final.
Essa é a primeira manifestação de uma “forma” de que Manfredo se
acerca e termina por se apossar por inteiro no transcurso do filme,
como se aos poucos fabricasse a carnadura que vai encobrir e visibilizar o esqueleto de um duro e implacável conteúdo.
Nunca antes Manfredo foi tão obsessivo no encalço de sua expressão. Diferente do seu primeiro filme de longa duração, Uma Questão
de Terra, como de seus curtas (Feira, Boi de Reis e Cinema Paraibano – Vinte Anos ), O Vaqueiro Voador está longe de ser um registro
puramente documental, radicalmente fiel à tradição do gênero que
procurava no real a sua razão de ser e quando, mais do que tudo,
era ao chamado conteúdo que se dava mais atenção. No caso em
tela, não. É a busca obstinada de um modo particular de “dizer”, de
expressar-se na língua do cinema que importa. E aqui ele claramente
faz côrte à forma como se ela existisse por si só, e em si, separada
do seu conteúdo, como se dirigindo a uma musa difícil de conquistar. Nesse sentido, o Vaqueiro Voador é um salto em sua carreira,
quase uma ruptura drástica. O aparente impulso inicial advém, a
meu ver, do fato de o poema de JB configurar flagrantemente uma
metáfora via ficção – o vaqueiro no vôo da morte – com toda carga de
iniludível imaginário, mas o tema que subjaz, motiva e permeia é de
fundo documental inarredável – um massacre de operários durante
a construção de Brasília nos idos de 50. A estória do vaqueiro é a
sublimação inequívoca da tragédia coletiva.
Entretanto, não há qualquer contradição e a empreitada se torna viável e bem sucedida, quando a aranha da criação, ao dar
início à sua teia, adota como método narrativo a “reiteração”, quer
dizer, trazer de novo à baila e desdobrar um tema que já esteve
sob o crivo do cinema em pelo menos três documentários (Brasília
Segundo Feldman, Perseghini e Conterrâneos Velhos de Guerra), o que
deflagrou outras manifestações no rastro da faraônica construção,
como teses acadêmicas, romances, composições musicais e cordel.
180
Política Democrática · Nº 22
Forma e conteúdo no vôo do Ícaro do sertão
E Manfredo manteve-se consciente do desafio que enfrentou, isto é,
se avizinhar e assumir a ficção para reelaborar a matéria vencida no
tempo, e tratar intertextualmente não só a poesia escrita como um
considerável acervo de imagens de amplo espectro na linguagem do
cinema. Um copioso arsenal que esteve disponível e que foi criteriosamente incorporado, desde reportagens e antigos “jornais da tela”,
institucionais da era JK, como, e sobretudo, filmes conhecidos como
Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Memória do Cangaço, de
Paulo Gil Soares, entre outros.
Nesse processo, joga papel importante a criação da figura do atornarrador e é interessante acompanhar a maneira curiosa como esse
assimila, também por força da montagem, o personagem do drama,
numa tríplice operação. E não há aqui ambigüidades e sim ambivalências. Primeiro, talhadíssimo para o papel do Vaqueiro, Luís Carlos
Vasconcelos chega a Brasília e é filmado como qualquer profissional
numa espécie de aquecimento e aparece lendo ou decorando seu texto. Ato contínuo já encourado se esgueira cerrado adentro na pele de
Raimundo (ou Oraci?), o Vaqueiro, num lance brechtiano, num jogo
de lúdico e proposital vai-e-vem. Oportunidades em que os versos
da narração já se instalaram com seu estribilho e se repetirão compassivos: “Ei-lo caído de bruços/Para o campo paramentado (...”). E
aqui cabe um parêntese para frisar a total felicidade na escolha de
Vasconcelos. É quando, em curta seqüência de Memória do Cangaço,
aparece no canto do quadro, mas quase em close, o rosto de um homem do bando de Lampião do qual o ator é praticamente um clone
tal a estarrecedora semelhança física.
Tanto é assim que a edição não foi indiferente ao fato e o corte vem rápido e certeiro para o ator aproximando-o do seu “modelo”. Isso empresta naturalmente enorme verossimilhança e concorre
para a força do filme que se nutre do diálogo com outros materiais. E
tratando-se da montagem foi crucial para o êxito do Vaqueiro Voador
o concurso absolutamente providencial de Ricardo Miranda, num reencontro com o Manfredo dos tempos da então chamada “sala de
montagem” com película, hoje remoto ancestral das ilhas de edição
e dos final cut, quando ambos militavam quase tão somente como
montadores.
Esse diálogo de almas irmãs também trouxe enorme benefício
ao filme. E o seu efeito se faz sentir sobretudo na longa trajetória e
estruturação dramatúrgica do personagem até o terço final quando o filme “vira”. Especialmente quando o entrecho se torna mais
autoral no código do cinema e exige sutil condução em que nunca
se sabe onde termina o ator, o narrador e começa o personagem.
181
IX. Vida Cultural
Exemplos disso são os pequenos travelling em que sibilinamente (ou
claramente?) a câmera se afasta para acompanhar em separado Vasconcelos andando absorto e introvertido, decorando o seu texto. Primeiro, numa visita a lugares significativos do tempo da construção.
A mesma coisa acontece numa exposição de fotografias onde o ator
interage conversando com seus interlocutores, quase assumindo o
papel de entrevistador e depois se afasta, parando em frente a uma
foto desse tempo “antigo”, imprescindível para a instauração de um
certo e determinado clima ou clímax.
E destaque-se, não de passagem, que aqui brilha generosa a estrela de Waldir de Pina, senhor absoluto de seus recursos de iluminação e trabalho de câmera.
Por outro lado, a recorrência insistente do estribilho domina todo
o filme e cadencia o tempo da montagem, promovendo simultaneamente a sensação de que toda imagem usada – num diálogo com a
cidade de hoje – assume a mesma função de um ritornelo reforçando
o madrigal do Vaqueiro na sua caminhada de trágico flaneur. E todo
esse aparato estético segue sendo um inestimável achado, até o filme
cruzar com seu ponto de inflexão e rumar de rota batida em direção ao seu encapsulado tema que é o da matança de trabalhadores.
O primeiro sintoma dessa virada para os mais atentos acontece no momento em que numa entrevista um dos três homens que
aparecem sentados num banco de praça introduz timidamente o assunto que não quer calar: – E a matança? pergunta ele fora do foco
do som, enquanto o parceiro que está com a palavra faz ouvido de
mercador e segue em frente.
Prossegue o deambulante Vaqueiro com seu séqüito de imagens
e sons recorrentes, mas a pista da chacina já foi dada e exerce sua
perturbadora função subliminar na memória do público. Vinte minutos depois o Vaqueiro sofre uma desmoralização num entrevero
que termina em surra e cadeia (em contraponto imagens de Fabiano
e o soldado amarelo em Vidas Secas, este último da mesma cepa dos
bate-paus da GEB que metralharam seus irmãos durante a construção) e vem lamber suas feridas no acampamento.
Depois daí chega-se, ou volta-se, enfim à barbearia (foi numa
barbearia da Vila do IAPI que ouvi falar do massacre pela primeira
vez, em 1970) já vista e ouvida antes sobre as péssimas condições do
trabalho na construção, mas não ainda sobre o massacre.
182
Política Democrática · Nº 22
Forma e conteúdo no vôo do Ícaro do sertão
Para terminar, vamos nos deter embora rapidamente nesse ponto
apenas para sublinhar o feliz domínio do tempo da narrativa (logo
depois, em outro lance de distanciamento brechtiano, a equipe de
edição se faz retratar no próprio filme como a chamar para a realidade) fazendo-a infletir no momento exato em que ficção e documentário definitivamente se acoplam, ensejando a esperada modulação.
Essa curva de ascensão leva o filme até a sua culminância catártica,
quando o drama do indivíduo e a tragédia dos trabalhadores se tornam praticamente simbióticas.
Na barbearia, diante de meridiana verdade pode-se dizer sem
medo de estar sendo tosco, que o filme faz barba, cabelo e bigode. O
serviço é completo. Sob os cuidados do fígaro suburbano, os depoimentos sobre a chacina, muito bem disfarçados em conversa, fluem
contundentes e duram pouco mais de dez minutos, levando o filme
ao seu pico máximo, alçando seu vôo derradeiro e arremetendo com
toda força para o seu desenlace, após o que alcança a conseqüente
ressaca como que acordando das profundezas do transe. Nunca antes de Raimundo (ou Oraci?) precipitar-se como um ícaro sertanejo
no vazio de discutível suicídio. Nessa altura, o rotativo vem subindo
e a música faz a “festa” até o final, narradora e participativa como foi
desde o início.
183
X. Resenha
Autores
Martin Cezar Feijó
Organizador do livro, é escritor e professor universitário na FACOM-FAAP e no programa de pós-gradução em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade
Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
Gonzalo Adrián Rojas
Doutor Ciência Política (USP). Pesquisador Colaborador e Pós-doutorando no Departamento de Ciência Política – IFCH/Unicamp. Professor da Escola Nacional Florestan
Fernandes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (ENFF/MST). Email:
[email protected]
Alexandre de Freitas Barbosa
Pesquisador do Cebrap e doutor em Economia Aplicada pela Unicamp.
Michel Zaidan
Professor da Universidade Federal de Pernambuco.
Uma antologia de agraristas políticos
Machado de Assis e Astrojildo
Pereira: O livro e o filme
Martin Cezar Feijó
E
m 1939, centenário do nascimento de Machado de Assis, Astrojildo Pereira, então afastado da militância política no PCB,
vendendo frutas em uma quitanda, publicou um curto ensaio
com o título sugestivo de “Machado de Assis, Romancista do Segundo Reinado”. Um estudo pioneiro, de base pretensamente marxista,
mas não dogmático, que inseria a obra de Machado de Assis em seu
contexto histórico. O ensaio pode ser considerado, talvez até por ele
próprio, como o mais importante trabalho intelectual escrito em sua
vida, pois além da publicação em revista no ano de 1939, ainda o
republicou em mais dois livros, Interpretações (1944) e Machado de
Assis – Ensaios e Apontamentos Avulsos (1958); este último agora
relançado em edição comemorativa pela Fundação Astrojildo Pereira,
com apoio significativo – tanto no sentido material como simbólico –
da Academia Brasileira de Letras, e contando com a inclusão de um
sensível curta-metragem de Zelito Viana, produção da Mapa Filmes
do Brasil, intitulado A Última Visita.
A relação de Astrojildo Pereira com a obra de Machado de Assis
antecede sua militância política e, paradoxalmente, sua ação pública, cujo primeiro ato se deu de forma anônima, mas de repercussão
nacional, quando ainda nem havia completado 18 anos, exatamente
no dia, ou no princípio da noite, que antecedeu a morte de Machado
de Assis: 28 de setembro de 1908. Exatamente cem anos atrás, logo
após a morte do Mestre do Cosme Velho, esse ato foi registrado em
texto primoroso de Euclides da Cunha, intitulado “A Última Visita”.
187
X. Resenha
Uma crônica que se tornou célebre, publicada no dia 30 de setembro,
depois reproduzida em vários jornais do país, inclusive por duas vezes no Jornal do Commercio.
Na crônica, que deu base ao belo filme de Zelito Viana, com Marcos Palmeira no papel de Euclides da Cunha, ele dizia que aquele
rapaz deveria ficar anônimo, e talvez não fosse ser nada na vida, mas
naquele momento havia representado toda uma nação, emocionando
a todos os presentes e deixando com sua partida a “impressão visual
de uma posteridade”. Com estes dois elementos, Zelito Viana constrói sua narrativa visual, cujos sete minutos nos informam e emocionam, como deve ser a missão do melhor cinema, em que formato for,
ou tempo de exposição.
Zelito Viana realizou um grande curta-metragem, unindo sua habilidade já demonstrada em vários filmes – destacando-se aqui esta
referência cinematográfica que é o Villa-Lobos – Uma Vida de Paixão, de 1998, agora relançado em DVD com comentários do diretor,
acompanhado pela excepcional trilha sonora do filme em CD, basicamente com músicas de Villa-Lobos.
Em A Última Visita, – DVD que acompanha o livro – Zelito Viana
demonstra toda uma capacidade de síntese, sensibilidade e criatividade. Com uma equipe altamente profissionalizada – que vai dos
atores (Marcos Palmeira já citado, Archimedes Bava como Machado
de Assis e Cleber Salgado como Astrojildo Pereira); equipe de realização (Walter Carvalho na fotografia, Zezé D’Alice no som, Sérgio Schmid nos efeitos, Kika Lopes no figurino, entre outros profissionais de
ponta) – à produção executiva de Vera de Paula.
Em suma, além de um livro que já é um clássico nos estudos
sobre Machado de Assis, agora disponível com belas ilustrações de
Cláudio de Oliveira (também autor da capa), numa edição primorosa de Tereza Vitale – como merecem tanto o autor como o escritor
estudado nesta edição comemorativa e em tiragem limitada – ainda
há uma novidade, em que o diálogo entre literatura e cinema se faz
possível, que é a bela realização de Zelito Viana em torno da visita
do adolescente, então anônimo, ao escritor momentos antes de sua
morte. Morte que, tanto pelo livro quanto pelo filme, não significa do
ponto de vista simbólico fim; mas começo, re-começo, vida, enfim.
Sobre a obra: Machado de Assis – Ensaios e Apontamentos Avulsos, de Astrojildo Pereira. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira; Rio
de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2008.
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Política Democrática · Nº 22
Aconteceu longe demais1
Gonzalo Adrián Rojas
A
s classes subalternas, por definição, não estão unificadas;
portanto, a importância da política radica na possibilidade da
sua unificação histórica. Diferentemente das classes dominantes, cuja unidade orgânica se dá no Estado ou na sociedade política, a história das classes subordinadas é uma função desagregada
e descontínua da história da sociedade civil. Na esteira de Gramsci,
podemos entender as classes subalternas como um conjunto heterogêneo de frações de classes que não formam parte do bloco histórico
dominante em uma formação econômico-social dada.
Com espírito militante e rigor acadêmico, Paulo Ribeiro da Cunha
convida-nos a atravessar esta ponte que liga as lutas dos posseiros
de Formoso e Trombas em Goiás (1950-1964) e a atualidade das lutas populares no Brasil.
A pouco conhecida “República de Formoso e Trombas”, uma vitória na história construída dialeticamente pelo campesinato brasileiro
na sua luta pela terra, é analisada no marco dos processos políticos
da sua época. O autor debruça-se, assim, na análise dos processos
de ocupação e das lutas que o precederam, da fase de resistência, do
período da luta revolucionária e do papel de José Porfirio, principal
liderança que se incorporou como militante comunista nesse mesmo
processo da luta.
Uma das hipóteses mais instigantes, trabalhada com força e bem
argumentada é que os comunistas locais da região estudada e membros do Partidão (desde 1962, Partido Comunista Brasileiro – PCB)
estariam em descompasso com a política partidária do Comitê Estadual em Goiás. Esta conclusão advém da análise das diversas formas
de luta e organizações, nas distintas fases do conflito. A idéia da
autonomia é necessária para se apreender a tensão entre as direções
e as bases, entre a teoria e a prática. Logo, autor critica com clareza
uma dada bibliografia, cuja leitura expõe que o PCB, no campo, somente teria elaborado uma estratégia deliberada de contenção dos
1 Publicado originalmente na revista Crítica Marxista, nº 26, 2008.
189
X. Resenha
movimentos sociais, já que os critérios adotados pelo Partido veiculariam uma postura ambígua entre a proposta política e a ação prática
decorrente dos seus militantes.
É neste sentido que Cunha procura entender historicamente a
ação do PCB. Nos movimentos localizados, em particular os geograficamente mais distantes dos grandes centros, defende a existência de uma autonomia política significativa em muitos momentos
das direções partidárias intermediárias. Os principais fundamentos
dessa defesa estão pautados nas crises de 1956, após o informe de
Kruschev apresentado no XX Congresso do Partido Comunista da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (PCUS) e nas contradições internas às várias tendências partidárias. Uma estratégia, a
“via chinesa”, viabilizaria as condições de cerco das cidades, a partir
do campo, sendo a luta armada o eixo norteador. Esse impasse durou até o início de 1958. Lembremos que esta discussão é realizada
internamente ao PCB; já o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) é
conseqüência da ruptura de 1962. A corrente stalinista é quem funda o PCdoB por não admitir a mudança de nome e a supressão da
ditadura do proletariado como palavra de ordem.
Em termos teóricos, o livro reflete com profundidade as elaborações acerca das relações sociais no Brasil – feudais ou capitalistas?
– um debate encerrado na “academia”, mas que ainda se encontra
em aberto entre os movimentos populares. Retoma, assim, as teses
de Caio Prado Junior, Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck
Sodré, bem como as polêmicas decorrentes desse debate.
Ao problematizar, em termos teóricos e políticos, o conceito de
campesinato, Cunha introduz agudas observações às teses desenvolvidas por Eric Hobsbawm e Eric Wolf, privilegiando como sujeito
da história o povo organizado e criticando, assim, as análises marxistas – as quais denomina “ortodoxas” – centradas no proletariado
urbano enquanto sujeito. Os traços essenciais dessas críticas estão
presentes em intelectuais militantes do PCB como Mário Alves e Nestor Vera, os quais reavaliam o papel do campesinato, que passa a
adquirir centralidade no processo revolucionário brasileiro.
O autor retoma, portanto, a trajetória do PCB – partido do qual
foi militante – fazendo, no entanto, emergir as dificuldades da intervenção do Partido, principalmente no campo, em virtude de vários
fatores: sua debilidade, tanto organizativa, como da sua formação
teórica, bem como as crises políticas nacionais e internacionais que
o afetaram naquele momento.
190
Política Democrática · Nº 22
Aconteceu longe demais
Abordando, em particular, a formação de PCB no estado de Goiás,
Cunha faz um levantamento dos elementos que dificultaram sua inserção no campo até a década de 1950. Procura, pois, apontar as
mudanças ocorridas nas políticas e nos elementos delineadores da
estratégia política do PCB e de seu Comitê Central, mudanças estas
concernentes à luta de Formoso e Trombas, no marco da crise do XX
Congresso de PCUS, assim como aos impasses e às dicotomias entre
lideranças intelectuais e camponesas até 1964.
Desta forma, resgata o processo de luta e a intervenção do PCB
nesta região, analisando, assim, a complexa articulação, entre o PCB,
a Associação dos Trabalhadores e Lavradores Agrícolas de Formoso e
Trombas (fundada em 1955) e a criação dos Conselhos de Córregos,
que viabilizaram e facilitaram a comunicação e a atuação dos posseiros que resistiam à repressão policial. É, pois, através deste resgate
que tenta demonstrar que o real poder político estava inserido naquilo que denomina Núcleo Hegemônico, o eixo político e organizacional
condutor do processo de luta na região, sendo a Diretoria da Associação composta de uma maioria comunista.
O autor propõe uma discussão política, necessariamente polêmica e aberta, acerca do caráter das revoluções camponesas, criticando
deste modo as leituras preconceituosas e superficiais sobre o PCB do
referido período. Considera, a partir dessa crítica, ser um equívoco
a avaliação, após 1954, da possibilidade de um completo controle
orgânico do comitê central de todo o processo político, independentemente das particularidades regionais e locais, nas quais os militantes comunistas estavam inseridos.
Cunha faz uma reconstrução sistemática e polêmica. Sistemática
por conter a expectativa de restauração da ponte entre um passado
de lutas e a atualidade; polêmica porque, muitas vezes, tanto em sua
sagaz crítica aos críticos do PCB, como na sua idéia de autonomia
política das direções locais, parece existir uma excessiva diferenciação entre a direção e os quadros intermediários, algo difícil de ser
imaginado num partido com a característica organizativa do PCB,
ou seja, formalmente centralista democrática, mas, nos fatos, muito
provavelmente centralista burocrática.
Cunha também nos faz lembrar que a estratégia das Ligas Camponesas (LC), dirigidas por Francisco Julião, gerou resultados diametralmente opostos aos esperados. No momento em que abandona
a linha legalista em 1962 propõe, externamente ao PCB, a fundação
de um Partido Revolucionário. Os resultados – dúbios – dessa fun191
X. Resenha
dação acarretaram, pois, a perda da sua influência junto ao campesinato e o crescimento, junto ao PCB, de setores da Igreja e da
Ação Popular (AP). A debilidade das LC faz com que elas se ausentem da fundação da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura
(Contag), controlada pelo PCB e aliada à AP. O autor não temeu a
intenção do “moralista” de julgar se essa possibilidade era correta,
reconhecida e coerente, procurando, assim, analisar como se justifica essa posição política ou quando e como os atores pensaram
as possibilidades fornecidas pela realidade para organizar sua ação.
É importante antecipar a seguinte elucidação: tanto as estratégias
políticas “reformistas” como as “revolucionárias” foram derrotadas,
embora não de maneira definitiva. Disto resulta que, na tentativa de
análise do processo político não se deve confundir categorias políticas com categorias analíticas.
Finalmente, é através de uma importante reflexão que o livro nos
mostra que as lutas não começam sempre do zero ou do mesmo
ponto de partida; há sempre uma tradição de luta que devemos recuperar para o entendimento as lutas atuais como sua continuidade; e esse é um aporte político de suma importância. Sem dúvida,
as ditaduras militares na América Latina procuraram destruir essa
memória histórica das lutas dos setores subalternos, através das
prisões, assassinatos e desaparecimentos. Mas qualquer alternativa contra-hegemônica que procure construir um novo bloco histórico deve reconstruir essas pontes, tal como pretende o autor. Neste
sentido, Aconteceu longe demais... é um livro que combina, na dose
certa, a energia de um militante e o rigor teórico e acadêmico de um
importante pesquisador.
Sobre a obra: Paulo Ribeiro da Cunha. Aconteceu longe demais.
A luta pela terra dos posseiros de Formoso e Trombas e a Revolução
Brasileira (1950-1964). São Paulo, Editora Unesp, 2007, 306 p.
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Política Democrática · Nº 22
O que Adam Smith
foi fazer na China
Alexandre de Freitas Barbosa
N
ão poderia haver nada mais insólito. O filósofo escocês defensor da mão invisível acampando no país do capitalismo
selvagem. Ou insólitos não seriam os clips que a mídia oligopolizada e a opinião pública catequizada nos querem transmitir
sob o disfarce de bons sentimentos?
O livro de Giovanni Arrighi lança uma artilharia pesada contra os
mitos construídos ao redor da muralha chinesa e do pensamento do
“pai da economia”. A partir de um olhar antieurocêntrico e antinorteamericano, este intelectual multifacetado – que também rompe com
as muralhas acadêmicas, transitando com desenvoltura pela historiografia, economia e sociologia – resgata o melhor do pensamento
ocidental de modo a devassar os dilemas e as possibilidades abertas
ao sistema mundial neste momento de ultrapassagem histórica.
Não se trata de um panfleto maoísta, ou de um libelo em defesa
do partido único. Este italiano do Norte, professor radicado nos Estados Unidos, e que publicou em terras brasílicas O longo século XX
(Ed. Contraponto) e A ilusão do desenvolvimento (Ed. Vozes), associa
numa mesma obra três discursos paralelos e complementares, cada
qual com seu respectivo método.
Depois de um mergulho sobre o melhor da sociologia histórica
do capitalismo, passando por Smith, Marx, Schumpeter e Braudel,
o autor empreende uma análise factual da ordem global, em que a
crise terminal da hegemonia norte-americana e a ascensão chinesa
compõem os dois lados de uma mesma moeda; para, finalmente,
empreender uma reconstrução do padrão de desenvolvimento chinês
antes da Revolução Industrial, durante a grande divergência que separa o Sul do Norte na aurora do capitalismo, até o momento do seu
renascimento, agora sob novos moldes.
Comecemos pelo último argumento, mesclando-o ao primeiro.
Não é verdade que a China foi superada pela Europa, no início do
século XIX, por possuir piores instituições ou por contar com um
193
X. Resenha
Estado onipotente que tornava a sua economia ineficiente. Ou tampouco que o Estado Nacional, o sistema internacional de Estados e a
economia de mercado interno sejam criações ocidentais.
Arrighi, fazendo uso de uma rica pesquisa em fontes bibliográficas, traça o nascimento de um sistema político multicentrado no Sudeste Asiático durante a Era Song (960-1276), o qual encontraria o
seu centro na China durante a Dinastia Ming (1348-1643), quando a
Europa sequer existia. Desequilibrado em favor da China, e desprovido de tendências expansionistas e militaristas, este sistema lograria
uma invejável estabilidade política.
Economicamente, por meio da construção de canais, criara-se
durante os séculos XV e XVI, um mercado interno chinês com grande
desenvoltura e crescente especialização, fornecendo recursos fiscais
ao Estado centralizado, que procurava regular o comércio externo.
O modelo se esgota por suas próprias fraquezas, e depois pela expansão européia, que combina extroversão comercial e militarismo.
Uma maior liberdade do comércio poderia ter incrementado a riqueza
nacional chinesa, mas os ideais confucianos de harmonia social falaram mais alto.
Na leitura arrighiana, diferentemente do senso comum, Smith,
em A riqueza das nações – um dos livros mais citados e menos lidos
por economistas do mundo inteiro –, encara o padrão chinês como
aquele que melhor refletia a sua concepção de desenvolvimento,
acionado por uma progressão da divisão do trabalho, da agricultura
para indústria, e desta para a expansão do comércio exterior. Enfim,
um padrão de ampliação do mercado que reforça os laços sociais, ao
invés de dissolvê-los.
O padrão “não-natural” de Smith, que Arrighi chama de capitalista, e localiza na Europa, é uma outra história. A sua fonte de
inspiração é o próprio Smith, ainda que este não utilizasse o termo
“capitalismo”. Para não deixar margem a dúvidas, o filósofo escocês é, por várias vezes, chamado ao texto. Esta citação é exemplar:
“o capital investido no comércio interno possui o mais positivo dos
impactos, porque acarreta um maior incremento de renda, ao criar
mais empregos para as pessoas do país”.
Mas então por que os chineses perderam o bonde da história, ao
menos temporariamente? Porque o padrão capitalista engendra consigo um maior poderio militar. Ao contrário da hipótese metafórica
de Marx no Manifesto comunista, não foi a artilharia pesada dos pro194
Política Democrática · Nº 22
O que Adam Smith foi fazer na China
dutos europeus competitivos que destruiu a muralha chinesa, mas
a Guerra do Ópio.
Marx pode explicar o desenvolvimento capitalista, dos países europeus, e do sistema em escala planetária, mas não o padrão de
desenvolvimento de uma economia de mercado, regulada nacionalmente, na qual se amplia a divisão social do trabalho, a partir da
concorrência entre as unidades produtivas, e se constrange o processo de expropriação da força de trabalho.
O que tudo isto tem a ver com a China pós-Deng Xiaoping? Acompanhemos a seqüência do raciocínio de Arrighi. A China perdeu o
bonde da história porque recorrera a uma “Revolução Industriosa”,
cujo traço distintivo estava na gestão de uma estrutura institucional
e tecnológica voltada para a absorção de mão-de-obra. O foco estava,
tanto nas comunidades rurais como nas cidades, na mobilização de
recursos humanos.
A sacada japonesa, ao longo do século XX, e da China nas últimas décadas, foi a de fundir os dois padrões de desenvolvimento.
Surgem então redes de indústrias e empresas com variados níveis
de utilização de capital e trabalho, focadas sempre no incremento
da competitividade. Trata-se não apenas de substituir capital por
trabalho, já que a qualidade do trabalho é um diferencial em si, propiciando a ampliação da divisão social do trabalho na direção das
atividades intensivas em conhecimento.
Desta feita, o mercado externo não seria desprezado, mas vitaminaria – a partir das zonas de processamento das exportações – o
crescimento intensivo em trabalho que vem de dentro e propicia,
graças aos ganhos de escala, excedentes vultosos.
A China aperfeiçoa e amplifica o modelo japonês, contando para
tanto com o apoio vital da diáspora chinesa capitalista, que havia fertilizado em Hong Kong e Taiwan, durante o período pós-Revolução,
uma rede de interações sociais e econômicas, transplantada para o
continente com a abertura. As empresas multinacionais chegariam
bem mais tarde. Ao Estado chinês caberia promover o encontro entre
empresários, funcionários públicos e trabalhadores chineses, o capital da diáspora e as empresas “imperialistas”.
Seria, portanto, ingenuidade imaginar que o diferencial da China
se encontra na mão-de-obra barata. Não fosse a capacidade de estimular a expansão da oferta e da demanda, via investimento estatal,
atração de capital externo e formação das empresas rurais não-agrí195
X. Resenha
colas, de forma gradual no tempo e no espaço. Ou de realizar reformas no sistema agrícola e fiscal, conferindo maior poder às comunidades rurais e aos governos locais. E a o motor da acumulação não
teria sido acionado.
Finalmente, pasmem!, a China pode ser descrita como um caso
de acumulação sem expropriação. Não, Arrighi não desconsidera a
superexploração dos imigrantes rurais e nem a apropriação corriqueira pelos novos magnatas do setor privado de propriedades e benefícios públicos.
Ele ressalta que existem contradições internas à sociedade e ao
Partido Comunista, as quais podem levar a uma afirmação do capitalismo selvagem na China. Esta tendência parecia inclusive provável
durante o governo anterior de Jiang Zemin. Já a nova geração de
líderes vem defendendo de forma exaustiva os princípios confucianos de “sociedade harmoniosa”, tendo inclusive lançado a proposta
de “um novo interior socialista”, que congrega um conjunto de ações
voltadas para a expansão da educação, da saúde e de programas
sociais no campo.
Trata-se, não de um movimento espontâneo, mas de uma reação
do Estado – a partir da combinação de medidas repressivas e de concessões – num contexto de crescentes lutas sociais nos campo e nas
cidades.
Em síntese, o professor italiano desmonta cada um dos mitos
perpetrados pela mídia ocidental sob a sociedade chinesa, sem cair
na repetição monótona das fórmulas gastas utilizadas pela burocracia do PC chinês, que continua falando de “socialismo com características chinesas”.
Como se não bastasse, o autor de Adam Smith em Pequim nos
brinda com um escopo teórico robusto, que permite situar a problemática chinesa no âmbito do sistema capitalista contemporâneo,
além de revelar com detalhe as idas e vindas do governo Bush nas
relações com a nova potência.
O resultado da “trapalhada” no Iraque teria sido justamente o
de consolidar a ascensão chinesa, envolvendo os Estados Unidos
numa armadilha tecida na melhor tradição da política realista. Na
sua visão, a sinofobia norte-americana pode ser explicada como a
“constatação de que a China é a grande beneficiária pelo projeto de
globalização bancado por este país”.
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Política Democrática · Nº 22
O que Adam Smith foi fazer na China
Vez por outra, Arrighi toma partido do seu objeto e sugere a possibilidade de que a ascensão chinesa, junto com a de outros países
do “Sul”, possa trazer consigo uma mudança da ordem internacional,
propiciando um padrão de desenvolvimento mais justo e sustentável
ecologicamente. Haja pretensão! A sua utopia não impede, contudo,
que ele forneça os elementos para compreensão da atual desordem internacional e das várias forças econômicas e políticas em ação, além de
apontar para as possibilidades entreabertas, goste-se delas ou não.
Sobre a obra: Giovanni Arrighi. Adam Smith em Pequim: origens e
fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
197
Uma antologia
de agraristas políticos
Michel Zaidan
R
aimundo Santos, reconhecido pesquisador do pensamento
comunista, associa com muita competência a sua especialidade na teoria política marxista e o crescente interesse pelo
estudo das idéias agrárias de vários publicistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Há muitos anos, Santos vem se dedicando a uma
paciente exegese de textos e documentos e textos no sentido de recuperar os “perfis políticos” desses intelectuaisque constituem amatriz
agrarista “Caio Prado Jr.–PCB”, como os considera.
Com base nesse projeto, já organizou uma antologiade textos
agrários pecebistas e publicou vários ensaios sobre a obra desses
autores, notadamente Caio Prado Jr., a quem dedicou todo um volume, sem falar que,há pouco,lançou uma nova coleção de escritos
caiopradianos num só volume, por ele chamado de Caio Prado Jr.:
dissertações sobre a revolução brasileira, sob o selo editorial da Fundação Astrojildo Pereira e da histórica Editora Brasiliense.
Surge agora o novo livro de Raimundo Santos Agraristas políticos
brasileiros, publicado por um pool de editores (a mesma Fundação
Astrojildo Pereira, o Núcleo de Estudos Agrários (NEAD–MDA) e o
Instituto Interamericano para a Cooperação na Agricultura (IICA). No
livro, Santos apresenta três substanciosos ensaios sobre Caio Prado
Jr., Alberto Passos Guimarães e Ivan Otero Ribeiro. E acrescenta textos representativos das visões agrárias de cada um deles. É mais um
serviço prestado pelo antologista à sociologia rural e ao pensamento
político brasileiro.
Na parte dedicada a Caio Prado Jr., o interesse de Raimundo
Santos é resgatar a contribuição do “marxismo político” caiopradiano, como ele o chama, para a questão da agricultura brasileira, ao
acentuar o reformismo agrário do historiador e o papel subordinado
das mudanças agrárias nos caminhos da revolução brasileira.
Coerentemente com o seu “circulacionismo” (para Santos, base
do seu “marxismo político”), Caio Prado nega qualquer importância
revolucionária à luta pela pequena propriedade e à reforma agrária
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Política Democrática · Nº 22
Uma antologia de agraristas políticos
redistributiva,privilegiando o desenvolvimento da indústria, para o
que deveria ser subordinada qualquer política agrária. Como se sabe,
o “marxismo político” do autor paulistano e seu reformismo agrário
entraram em choque direto com o programa do seu Partido Comunista, e ele sempre foi mais valorizado como historiador marxista do
que como político.
Em seguida, Raimundo Santos passa para o pensamento do dirigente comunista Alberto Passos Guimarães,responsável por uma posição mais ortodoxa ligada ao partido comunista. Os textos de Alberto
Passos são emblemáticos da posição do PCB no que diz respeito à
questão agrária. Santos sublinha a referência do autor a uma passagem de Lenin sobre o caso hipotético de uma “revolução agrária nãocamponesa”, onde o capitalismo já subordinara toda a agricultura.
Segundo Santos, esse cenário inspira o autor de Quatro séculos
de latifúndio a imaginar no Brasil uma variante de revolução rural,
ou seja, uma revolução (reforma) agrária que começaria sem ser protagonizada pelos camponeses. Postos em ação por sindicatos rurais
criados com este fim tático, os pequenos produtores assumiriam,
no decurso do processo revolucionário, a direção da reforma agrária
tornando-a uma reforma camponesa.
Santos pretende que esse argumento amparou a política dos comunistas de “fundar sindicatos de assalariados e semi-assalariados
agrícolas para mobilizar camponeses”, bem-sucedida quando, nos
anos 1950-1960, o PCBA criou a União dos Trabalhadores e Lavradores da Agricultura (Ultab, 1954) e a Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Agricultura (Contag, 1963).
Finalmente, Raimundo Santos aborda a ensaística de Ivan Otero
Ribeiro, morto durante a Nova República no acidente de avião que
vitimou o ministro da reforma agrária Marcos Freire e membros da
sua equipe da qual fazia parte. A reflexão desse jovem pesquisador
desperta grande interesse, ao acentuar a sobrevivência do pequeno
camponês no mundo inteiro (que é difícil negar) e trabalhar com o
conceito de via prussiana do desenvolvimento capitalista.
Para Ribeiro, o processo de desenvolvimento capitalista da agricultura brasileira foi de cima para baixo, não eliminando a questão
da pequena propriedade e da mentalidade camponesa. Daí o seu empenho militante, quando estava no Ministério da Reforma Agrária, de
levar adiante um programa de fomento à agricultura familiar; tema
de suas pesquisas na Universidade Rural do Rio de Janeiro da qual
era professor. Infelizmente, a trágica morte do Ribeiro o impediu de
extrair as conseqüências de seu pensamento teórico.
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X. Resenha
Toda essa discussão é de uma atualidade indiscutível, se se tem
em conta os rumos da política do governo Lula para o mundo rural,
sobretudo no que diz respeito à reforma agrária e à pequena agricultura familiar. Oxalá esses estudos desenvolvidos por Santos no
âmbito do pensamento social e a releitura dos próprios textos dos
intelectuais comunistas ajudem a pensar os rumos dessa política
e inspirem um programa agrário condizente com os interesses da
“maioria da população”, no dizer de um deles (Caio Prado), ao insistir
sobre o “ponto de vista do trabalho”na hora da definição das políticas
públicas.
Sobre a obra: Raimundo Santos. Agraristas políticos brasileiros.
Brasília: Fundação Astrojildo Pereira–NEAD (MDA)/ IICA, 2007. 200p.
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