Transtornos de Personalidade e Gestalt
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Transtornos de Personalidade e Gestalt
INSTITUTO GESTALT DE SÃO PAULO CURSO DE FORMAÇÃO EM GESTALT-TERAPIA LEONARDO SAUAIA TRANSTORNOS DE PERSONALIDADE E GESTALT-TERAPIA SÃO PAULO, AGOSTO DE 2012 LEONARDO SAUAIA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APRESENTADO COMO REQUISITO FINAL PARA A OBTENÇÃO DO TITULO DE GESTALT TERAPEUTA PELO INSTITUTO GESTALT DE SÃO PAULO ORIENTADORA: PROFª. DRª. SELMA CIORNAI AGRADECIMENTOS NENA, POR NUNCA TER DEIXADO A CHAMA SE APAGAR SELMA, POR ALIMENTÁ-LA COM MAIS LENHA ROBERTO, POR CUIDAR PRA QUE EU NÃO ME QUEIMASSE E MEUS PACIENTES, POR ME MOSTRAREM QUE MAIS IMPORTA O CALOR QUE O BRILHO. ÍNDICE APRESENTAÇÃO DEFINIÇÃO TIPOS DE TRANSTORNO DE PERSONALIDADE REPERCUSSÃO TRATAMENTOS CONTRIBUIÇÕES DA GESTALT (DIS)FUNÇÕES DE CONTATO CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA 5 7 9 14 15 16 19 24 25 1. Apresentação Meu encontro com os Transtornos de Personalidade remonta aos tempos da Faculdade de Medicina de Santo Amaro, quando acompanhava a Liga de Saúde Mental, já no fim da graduação. Lembro-me das discussões de alguns casos ditos como “difíceis” por nossos professores, com manejo complicado e freqüentemente frustrantes ao atendimento psiquiátrico e psicoterapêutico. Este breve contato se aprofundaria nos anos seguintes, durante a residência em Psiquiatria, no Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental, da Santa Casa de São Paulo. Meu preceptor, Dr Marsal Sanches, gentilmente me guiava no acompanhamento de pacientes que provocavam fortes e distintas reações na equipe multidisciplinar. Alguns casos eram encarados como “falha de caráter”, gerando condutas polêmicas – e geralmente pouco eficazes. Aos poucos, fui me afeiçoando destas situações tão desconcertantes ao modelo de assistência psiquiátrica vigente. Percebia que essas pessoas (sim, antes de tudo pessoas) evidenciavam as insuficiências e falhas dos serviços de Saúde Mental. Naquela época, a “contra-transferência” era invocada e abusada em nome de indisponibilidades pessoais ao adequado atendimento dos Transtornos de Personalidade. Buscando maior conhecimento e contato com as propostas de tratamento desenvolvidas especificamente para aqueles pacientes, fiz contato com centros especializados situados em outros países. Recebi uma resposta convidativa do Henderson Hospital, em Sutton, Inglaterra; uma comunidade terapêutica estritamente psicoterápica, de orientação predominantemente psicodinâmica, voltada ao atendimento de pacientes com Transtornos de Personalidade. Acompanhei o serviço diariamente durante cinco meses, integrando grupos de psicoterapia, assistência ao bem-estar social, jardinagem, psicodrama e arteterapia. Neste último, aprendi muito sobre uma abordagem diferente do costumeiramente aplicado por outros profissionais, que mais tarde descobri se tratar da postura fenomenológica. Pam, a arteterapeuta, encorajava-me a experimentar uma qualidade de contato diferente com os pacientes, permitindolhes maior participação e envolvimento no processo terapêutico. Com várias idéias e muitos sonhos, voltei ao Brasil em Fevereiro de 2005. Após tamanha imersão no universo psicoterapêutico, vim decidido a iniciar uma formação em psicoterapia. Inspirado pela postura de Pam, encorajado por colegas e agraciado pelo acaso, fiz contato com o Instituto Gestalt de São Paulo. Desde o início da formação, tornavam-se nítidas as contribuições da Gestalt-terapia para minha prática Psiquiátrica, principalmente junto aos pacientes com Transtornos de Personalidade. Alguns estudos preliminares, realizados durante o período de formação (2005-2007) proporcionavam melhor contorno àquele conteúdo intuitivamente emergente. Esta monografia é mais que uma compilação, mas uma ampliação destes conhecimentos e experiências vividos nos últimos anos de prática clínica, tanto como Psiquiatra como Psicoterapeuta. É também um gesto de gratidão a todos que, direta ou indiretamente, amadurecimento desde como o início proporcionaram terapeuta, incluindo meu crescimento e colegas (Psiquiatras e Psicoterapeutas), Mestres (na concepção da palavra) e pacientes (que, entre erros e acertos, sempre serão a razão deste trabalho). 2. Definição – O que são? Os Transtornos de Personalidade são definidos pela Organização Mundial de Saúde, na 10a Edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), como “padrões de comportamento profundamente enraizados e duradouros, manifestando-se como respostas inflexíveis à ampla gama de situações pessoais e sociais. Constituem-se em desvios extremos ou significativos da forma como um indivíduo médio, em uma dada cultura, percebe, pensa, sente e — particularmente — se relaciona com os outros. Tais padrões de comportamento tendem a ser estáveis e compreendem múltiplas áreas do comportamento e do funcionamento psicológico.”1 É interessante recuperar os itens destacados pelo negrito, por evidenciarem o caráter relacional da doença. Este aspecto central dos Transtornos de Personalidade (TP) será de grande relevância para a estruturação do tratamento, bem como pelo entendimento de sua gênese (na formação da Personalidade e suas distorções decorrentes das experiências relacionais turbulentas vividas). Para fins de pesquisa, a classificação mais utilizada é aquela proposta pela Associação Norte-americana de Psiquiatria, o Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental (DSM), atualmente em elaboração de sua quinta edição; na quarta edição, ainda vigente, os TP são dispostos em 10 tipos, distribuídos em 3 grupos (Clusters). O primeiro grupo, Cluster A, compreende aqueles tipos de Personalidade com características bizarras ou excêntricas: Esquizóide, Esquizotípico e Paranóide. Os tipos dramáticos e impulsivos estão contidos no Cluster B: Narcísico, Histriônico, Anti-social e Borderline (correspondente ao tipo Emocionalmente Instável na CID-10). Aqueles de característica predominantemente ansiosa constam no Cluster C: Esquivo, Obsessivo-Compulsivo e Dependente.2 É importante esclarecer que, apesar de usados correntemente por clínicos e pesquisadores como equivalentes, os critérios diagnósticos das duas classificações (CID-10 e DSM-IV) diferem entre si, chegando a discordâncias completas e até à inexistência de um dos tipos em cada uma delas: o tipo Narcísico inexiste na CID-10, enquanto o tipo Esquizotípico não é considerado um TP por esta classificação, mas sim uma doença do espectro Psicótico.3 A seguir, discorrerei brevemente sobre cada um dos tipos propostos pela DSM-IV. 3. Tipos de Transtorno de Personalidade TP Paranóide Este tipo se caracteriza principalmente por seu contato alerta e desconfiado. Mais prevalente em minorias étnicas e grupos costumeiramente segregados (por crença ou orientação sexual), podem apresentar tendências agressivas ou retraimento social. Seu comportamento belicoso e querelante provoca ou reforça sua exclusão de grupos sociais. No acompanhamento psicoterápico, a transparência tolerável gera confiança e facilita o processo de formação do vínculo, cuja lentidão pode prejudicar a disponibilidade do terapeuta. Especial atenção deve ser dada a fim de evitar que a relação enverede para cumplicidade, tranqüilizadora para este tipo de paciente, mas inviabilizadora para o processo terapêutico. TP Esquizóide Caracterizado por contato restrito com todos a seu redor, inclusive o terapeuta, os pacientes com TP Esquizóide dificilmente sustentam o processo de terapia, ou até mesmo verbalizam uma queixa espontânea decorrente de seu comportamento. Estes indivíduos apresentam baixa energia global e importante empobrecimento social. Um cuidado especial deve ser tomado com o respeito pelo fluxo moroso do processo terapêutico; a elaboração de uma figura a ser abordada pode levar longo tempo, sendo difícil a sustentação da terapia em períodos sem a emergência de um tema específico. O trabalho mais fundamental pode ser voltado à ampliação de awareness, o que já deverá dispender bastante energia do binômia terapeuta-cliente; lembrando que este tipo apresenta baixa energia, é fundamental que se observe a possibilidade de esgotamento do terapeuta durante o trabalho, evitando-se um vicariante resfriamento da relação. TP Esquizotípico Notório por histórias e experiências bizarras, o TP Esquizotípico representa o comportamento mais bizarro e excêntrico sem que haja a desagregação ou fragmentação da Personalidade. Suas alterações de conteúdo de pensamento ou distorções de sensopercepção flertam com um quadro Psicótico, mas ainda preservam linearidade e integridade suficientes para estabelecerem relações sociais consistentes, ainda que disfuncionais. Apresentam grande dispersão de energia e dificuldades cognitivas e emocionais decorrentes das mencionadas distorções. Podem desenvolver forte vínculo à medida que progride o acompanhamento psicoterapêutico, com especial sensibilidade para crítica. TP Antissocial Conhecido historicamente como Psicopatas, os TP Antissociais impactam por sua marcante manipulação e aparente ausência de emoções. Após vários estudos realizados, sua indicação para tratamento continua questionável, pois costumam fazer uso nocivo da terapia e qualquer outra intervenção. O terapeuta se vê constantemente tendo que se esquivar de possíveis situações de sedução e conluio. Outro difícil aspecto, até impeditivo ao trabalho psicoterapêutico é a manifestação de raiva e julgamento moral durante o processo. Atualmente, recomenda-se direcionar o tratamento, quando pertinente, a instituições de saúde (clínicas, hospitais, universidades), em que os desconfortos gerados no vínculo tortuoso podem se diluir dentro de uma equipe multiprofissional ou da própria organização. TP Histriônico Este tipo já fora repetidamente descrito pelos estudiosos mais clássicos de Psicopatologia, desde os primórdios das pesquisas em Psicoterapia (basta lembrar de Anna O, a paciente mais emblemática descrita por Sigmund Freud). Conhecido por sua expressão emocional dramática e contato prejudicado por inadequada intimidade, o tipo Histriônico apresenta importantes prejuízos de funcionamento emocional, social e profissional em decorrência de intenso desequilíbrio energético. A expressão hiperbólica e teatral de seus sentimentos, freqüentemente põe em cheque sua credibilidade, desgastando até mesmo seu vínculo com serviços de saúde, por seu contato superficial e intenso. Especial atenção deve se voltar à possibilidade de erotização e sedução no trabalho psicoterapêutico, tanto pela aproximação como pela repulsa decorrentes desse comportamento. TP Emocionalmente Instável (Borderline) Foco das principais pesquisas em TP na atualidade, o tipo Emocionalmente Instável, ou Borderline, é conhecido por comportamento impulsivo e constantes oscilações de humor. Atos de auto e heteroagressividade podem surgir durante o tratamento, prejudicando seu andamento. Trata-se de uma organização primitiva da Personalidade, com pouca capacidade para interações emocionalmente significativas, apesar de rica sensibilidade. Sua capacidade de leitura do ambiente e das pessoas que o rodeiam, está profundamente prejudicada pelas distorções decorrentes de eventos traumáticos pregressos – tais como abuso sexual, agressão física e negligências. Dotados de precário auto-suporte, provocam constantes interrupções no acompanhamento psicoterapêutico. Para estes casos, recomenda-se a confecção de contrato terapêutico claro e sustentável, a fim de minimizar as possíveis sabotagens ao trabalho. É comum a mobilização de fortes emoções no terapeuta, podendo acarretar um envolvimento insuportável, seguido de inevitável afastamento; tal padrão representa uma repetição constante nas experiências de vida dos pacientes com TP Borderline. TP Narcísico Normalmente estruturados em um funcionamento pautado por arrogância e pretensão, os indivíduos com TP Narcísico encontram seu “ponto ótimo” para o tratamento quando deprimem; o momento de maior vulnerabilidade é justamente aquele em que podem se defrontar com a realidade de sua existência, frustrada pelas expectativas irreais e infundadas de desempenho além de suas possibilidades. Após este inevitável período de depressão ou paralisia, o indivíduo com TP Narcísico se mobiliza quando abandonado ou frustrado. Se construir um vínculo saudável e confirmador com o terapeuta, poderá reconstruir sua perspectiva de mundo a partir de parâmetros reais e sustentáveis. Freqüentemente, para atender a necessidades de sua estrutura básica, subverte a relação terapêutica e considera o terapeuta como admirador, podendo invalidar a terapia caso esse cenário esteja ameaçado. TP Dependente Caracterizados por sua premente inabilidade para autonomia, o TP Dependente é encontrado em indivíduos portadores e doenças crônicas (não necessariamente incapacitantes). Apresentam aumento de prevalência ao longo da vida (com aumento da idade) e provocam reações de grande disparidade nas equipes de saúde. Em seu funcionamento psíquico, apresenta diminuição global de energia, o que pode provocar sobrecarga e esgotamento do terapeuta e de todos identificados como cuidadores. Freqüentemente, o terapeuta exerce a função de reposição de um perda pregressa, o que precisa ser delicada e constantemente abordado nas sessões, a fim de evitar a descaracterização do processo. O vínculo é fácil mas pode ser distorcido e irreal, uma vez que os indivíduos com TP Dependente evitam possíveis conflitos por medo de separação ou abandono. TP Obsessivo-compulsivo Os indivíduos caracterizados pelo tipo Obsessivo-compulsivo de Personalidade apresentam funcionamento perfeccionista e rígido, sendo na maioria das vezes socialmente aceito e até adaptável. O abalo à estrutura ocorre em momentos de transição para situações desconhecidas, o que lhes provoca apreensão e paralisia. Durante o processo terapêutico, pode disputar a autoridade pela terapia, uma vez que se atêm aos princípios e bases da orientação psicoterapêutica com mais afinco que o próprio profissional. TP Esquiva Caracterizados pela evitação de emoções e manutenção do estabelecido a altos custos de funcionamento, os indivíduos com TP Esquiva são justamente pouco afeitos aos processos de psicoterapia. Este processo lhes causa profunda perturbação. As intervenções propostas são raramente aceitas e o processo corre sério risco de interrupção sem sequer a formação adequada de vínculo. No entanto, a sustentação deste funcionamento demanda a quase completa anulação da identidade e voluntariedade do indivíduo, fato este que se manifesta invariavelmente em um abalo mais profundo da Saúde Mental. 4. Repercussão Vários estudos apontam a repercussão sócio-econômica dos TP. Há até poucos anos, os prejuízos funcionais decorrentes das características de Personalidade destes indivíduos eram erroneamente atribuídas a outros diagnósticos pretensamente mais prevalentes e incapacitantes, como Depressão Grave e Transtorno Afetivo Bipolar. Novos trabalhos evidenciaram o impacto de cada tipo de TP em cinco distintos domínios da vida dos pacientes: contexto familiar, desempenho profissional, saúde física, sofrimento psíquico e relações sociais; os resultados apontam diversas alterações plenamente atribuíveis ao comportamentos caracterizados pelos tipos de Personalidade.4 Recentemente, vários estudos se propuseram a avaliar os custos que os TP representam aos serviços de saúde, visando orientar de forma mais precisa os investimentos dos recursos públicos – econômicos e humanos. Os resultados apontam alto uso de serviços de emergência, internações hospitalares e agendamentos de consultas ambulatoriais. Além disso, custos indiretos, como benefícios previdenciários, gastos espúrios (drogas), fornecimento de medicamentos e deslocamento de suporte sócio-familiar para cuidados intensivos, representam mais ônus aos cofres públicos e privados.5 5. Tratamentos Como sugere a definição dos TP, uma doença de relação demanda fundamentalmente o tratamento psicoterápico. No entanto, as principais correntes psicoterapêuticas falharam em abordar adequadamente os TP, com resultados frustros e baixa adesão aos tratamentos. Reconhecidamente, adaptações eram necessárias a todas as orientações psicoterápicas vigentes. Desta forma, derivações como a Psicoterapia Focada na Transferência (proposta por Otto Kernberg a partir da Psicanálise),6 a Terapia Dialética Comportamental (desenvolvida por Marsha Linehan a partir da Terapia Cognitivo-comportamental),7 a Terapia Focada em Esquemas (criada por Jeffrey Young a partir de distintos referenciais teóricos)8 e o Tratamento Baseado em Mentalização (elaborado por Anthony Bateman e Peter Fonagy, de referencial psicodinâmico, a partir da Teoria do Apego de John Bowlby).9 Maiores detalhes sobre cada uma dessas abordagens pode ser encontrado nas referências citadas ao final. Como complemento do tratamento psicoterapêutico, a farmacoterapia aparece ainda em desenvolvimento. Não há um medicamento ou uma classe farmacológica conhecimento especificamente do destinada funcionamento ao tratamento neuroquímico dos TP. O correspondente a comportamentos característicos de cada tipo de TP vem avançando progressivamente; isso permite a escolha mais embasada de determinadas medicações para determinados fins, evitando o empirismo que regia a farmacoterapia dos TP até recentemente. 6. Contribuições da Gestalt A Gestalt-terapia, apesar de não ter desenvolvido um modelo específico ao tratamento dos TP, oferece diversas vantagens na abordagem psicoterapêutica. Conta com o referencial teórico da Fenomenologia, o que proporciona um olhar mais atento aos comportamentos manifestos dos indivíduos com TP, evitando a interpretação incompreensível e, por vezes, abusiva. É fundamental que se contextualize o comportamento do indivíduo nas situações experienciadas pelo mesmo, evitando-se o dano de julgar suas atitudes sob a óptica do terapeuta, pois se tratam de medidas de alguma forma adaptativas, denominadas pela Gestalt “ajustamentos criativos”. Presta-se especial atenção aos padrões rígidos de relacionamento, a fim de evitar o desenvolvimento de padrões dependentes e manipuladores na relação com o terapeuta. Não são raros os casos de mal-estar do terapeuta quando se sente solicitado além das suas possibilidades de “atender a demanda do cliente”. A postura dialógica do Gestalt-terapeuta, baseada em inclusão, diferenciação, presença e confirmação possibilita ao paciente uma experiência nova.11 O paciente tem sua experiência valorizada e acolhida pelo terapeuta, com proximidade suficiente para se sentir suportado, e adequada distância para preservar as identidades de ambos. Além destes fatores, a manutenção do foco no Aqui e Agora oferece ao paciente uma oportunidade de atualização de sua história, sem se deixar paralisar por um passado traumático.10 A expressão verbal freqüentemente se revela limitada em situações terapêuticas mais delicadas, como por exemplo quando se aborda eventos traumáticos da história do paciente. Para tais situações, a utilização dos recursos expressivos da Gestalt-terapia (tais como formas de arte ou dramatizações) pode representar uma alternativa valiosa, contornando paralisias e resistências do processo terapêutico. Talvez o maior benefício oferecido pela abordagem fenomenológica da Gestalt-terapia seja a atitude não interpretativa, mais respeitosa com as limitações e fragilidades do indivíduo com TP, já comumente julgados e interpretados por aqueles que o circundam. Descrita habilmente por Gary Yontef, em alguns de seus ensaios sobre a importância da Relação Dialógica na Gestalt Terapia, a atitude dialógica não intenciona o desenvolvimento de uma relação, mas propicia maior fluidez e profundidade desta.11 Martin Buber sintetiza uma nova possibilidade relacional no contexto humano geral, a relação Eu-Tu, para a qual distingue quatro aspectos essenciais e indispensáveis: a reciprocidade, a presença, a imediatez e a responsabilidade.12 Vale notar que o enfoque se dá na relação, mais amplamente que apenas nas características de terapeuta ou paciente. A reciprocidade é condição primária para a relação dialógica plena; na prática, isto implica em desfazer-se de garantias de domínio da relação terapêutica, exigindo que o profissional esteja tão envolvido no processo quanto espera de seu interlocutor. A presença de qualidade é outra das condições sine qua non para o desenvolvimento do trabalho terapêutico pleno; sem isso não há psicoterapia, mas apenas uma atuação teatral; os abalos da qualidade de presença devem ser avaliados critica e bilateralmente, pois revelam indisponibilidade possível de qualquer um dos entes da relação. A imediatez é talvez a condição mais preciosa e difícil de se sustentar nos moldes profissionais atuais; muitos intermediários da relação terapêutica (como família, cônjuges, planos de saúde, empregadores, entre outros) podem interferir na relação terapêutica, o que corrompe sua fluidez. Por fim, Buber cita a responsabilidade, o que apenas reforça a atitude respeitosa com ambas figuras contidas na relação: Eu e Tu, Terapeuta e Paciente. Yontef ainda ressalta a relação Eu-Tu como não intencionada, mas fruto da disponibilidade mútua e verdadeira. A disponibilidade com que o Gestalt-terapeuta se coloca no encontro com seu paciente, proporciona uma horizontalização da relação; nesse contato não há intermediários nem expectativas prévias (como a de um diagnóstico ou de uma correspondência a alguma teoria previamente consagrada).12 Outra contribuição da Gestalt-terapia para o tratamento psicoterapêutico dos Transtornos de Personalidade provém de seu referencial Fenomenológico. O olhar Fenomenológico sobre a experiência da relação oferece uma expansão do entendimento do funcionamento patológico dos TP. Ilustrada na figura abaixo, extraída do livro “Transtornos de Personalidade: uma Perspectiva Gestáltica” de Gilles Delisle, a experiência da relação pode ser didaticamente dividida em três diferentes instâncias, que ocorrem simultaneamente: a experiência sensório-motora, a experiência cognitiva e a experiência emocional. A primeira se caracteriza pela obviedade do contato, com pouca distorção nos casos de TP; aquilo que um indivíduo percebe com seus sentidos neurológicos. A partir dessa primeira experiência, surge o processo cognitivo que dá contorno ao evento vivido, já contaminado por experiências prévias que induzem a interpretação da informação percebida com maior obviedade na primeira etapa (sensório-motora). O desdobramento emocional é consecutivo ao processo cognitivo, sendo atribuído um sentimento, igualmente distorcido por eventos previamente vividos. Essa fragmentação, ainda que didática, nos permite compreender o processo de adoecimento relacional que acomete os indivíduos com TP. Apenas a partir do entendimento global de seu funcionamento de contato é possível planejar uma intervenção terapêutica, oferecendo-se a oportunidade de ampliação de awareness e re-significação da nova experiência.13 7. (Dis)Funções de Contato Os indivíduos com TP sofrem prejuízos de relacionamento decorrentes de padrões rígidos e disfuncionais de contato com aqueles que os circundam. Os conceitos ciclo de contato e interrupção de contato (modalidades funcionais e disfuncionais) propostos pela Gestalt-terapia enriquecem a construção de um diagnóstico mais amplo, além de possibilitarem intervenções psicoterapêuticas mais efetivas. Seguem os quatro tipos básicos de contato disfuncional14 encontrados nos diversos TP, ressaltando que estes são vivenciados pela maioria das pessoas em momentos variados; tornam-se patológicos apenas quando um indivíduo se relaciona de forma crônica e recorrente através desta modalidade de contato com o mundo que o circunda – quando adota uma forma fixa cristalizada de relacionamento. Introjeção O movimento de introjeção é caracterizado pela aceitação indiscriminada de conteúdos externos. Conceitos, princípios e normas são tomados como próprios pelo indivíduo, sem que sofram transformações nessa passagem. No processo de aprendizado e formação da personalidade, a introjeção é importante na assimilação de valores externos que possibilitam a adaptação do indivíduo em seu meio. No entanto, assimilação implica em transformação, em processamento. O exemplo clássico do alimento que deve ser mastigado, engolido e digerido para que seja absorvido ilustra a necessidade do organismo de processar o que se recebe para que possa ser utilizado. O indivíduo que introjeta não lida com as informações externas de forma critica e transformadora, “engolindo tudo sem mastigar” e sofrendo uma conseqüente “indigestão”. Tal comportamento impede a construção de conceitos próprios, o que prejudica o desenvolvimento da personalidade. Sem a capacidade de se apoderar e autenticar sua visão do mundo, o introjetor se exime do conflito entre o externo e o interno, pagando o preço da adequação forçada aos moldes impostos pelo meio. A conseqüência disso é a não-integração da personalidade, representada pela ambivalência entre as vontades próprias, emergentes naturalmente na relação com o mundo, e o sufocamento destas por interesses alheios. Transtornos de Personalidade do tipo Obsessivo-compulsiva e Esquiva, ambos pertencentes ao anteriormente citado Cluster C, apresentam a introjeção como disfunção de contato mais marcante. O TP Obsessivocompulsivo tem como características o perfeccionismo e a excessiva preocupação com detalhes e regras, prejudicando o resultado da execução de suas tarefas; não consegue delegar responsabilidades, dispensando mais atenção aos outros, em detrimento próprio; abre mão de atividades de interesse próprio e se dedica exaustivamente a questões de interesse alheio (não necessariamente coletivo). O indivíduo com Transtorno de Personalidade Esquiva evita contato interpessoal significativo, temendo inadequação e críticas; considera-se socialmente inepto, sem atrativos pessoais; é reticente em relação a atividades novas, evitando riscos a qualquer custo. Projeção A projeção ocorre quando o indivíduo atribui a responsabilidade sobre suas vontades ao meio. O projetor considera-se vitima de atitudes alheias, negando qualquer participação atuante nos acontecimentos que regem sua vida. Em movimento oposto à introjeção, os princípios e conceitos (desejos e intenções) próprios são percebidos como externos. Além de gozar de falsa isenção de responsabilidade na relação, o indivíduo perde a oportunidade de transformação enquanto não se apodera de suas atitudes e sentimentos; a projeção o priva de entrar em contato com o conteúdo não-aceito, e conseqüentemente alienado. Para manter tal funcionamento, o indivíduo lança mão de distorções da realidade, tomando como verdadeiras as suposições levantadas na relação, a fim de confirmar sua forma particular de perceber uma determinada situação. No entanto, vale ressaltar a diferenciação que Zinker faz entre projeções criativas e patológicas: “Enquanto na projeção patológica a pessoa não tem noção de que o que ela vê tem relação com a natureza de suas experiências internas, o projetor criativo sabe que suas projeções são fruto de sua imaginação, seu poder, seu diálogo consigo mesmo e com o mundo”.15 Três tipos de TP apresentam características projetivas em seus funcionamentos. O primeiro é o TP Paranóide, do Cluster A, cujos traços mais marcantes são: suspeição de prejuízo, exploração ou ludibrio (em todas as relações vividas) sem fundamento suficiente; relutância em confiar nos outros; interpretações distorcidas de fatos, atribuindo significados ocultos a situações benignas; percepções depreciativas de comentários sobre si. Os outros dois são do grupo dos “dramáticos”, são o TP Histriônica – cujo padrão mais característico de funcionamento é atribuir ao outro a responsabilidade por seu sofrimento e por sua felicidade – e o TP Narcísica – presente apenas na classificação do DSM-IV. O indivíduo com TP Histriônico é marcado por tentativas (por vezes desesperadas) de manipular o meio para que este atenda suas necessidades, evidenciadas em comportamentos como: auto- dramatização, teatralização e expressão exagerada de suas emoções; utilização da aparência física para chamar atenção sobre si, lançando mão de artifícios de sedução e provocação sexual; desconforto nas situações nas quais não é o centro das atenções; precipitação de intimidade nos relacionamentos. Já o indivíduo com TP Narcísica apresenta funcionamento semelhante, caracterizado por exigência de admiração excessiva, crença de ser especial e único, comportamentos e atitudes arrogantes e insolentes e ausência de empatia. Retroflexão Em decorrência de um enrijecimento da barreira de contato entre meio e indivíduo, este pode adotar uma postura excludente daquele, limitando suas experiências a sua própria pessoa. Suas atitudes, boas ou más, são todas dirigidas a si, privando o outro de seu contato e de suas ações, igualmente boas ou más. Isso gera em si uma postura de auto-exigência, obrigando-se a satisfazer suas próprias necessidades sem a participação de outra pessoa. Trata-se de um desenvolvimento deficiente e cindido da personalidade, pois o retrofletor é basicamente uma pessoa que perdeu – ou nunca teve – a confiança de ser bem recebido e aceito pelos outros; por isso controla seus impulsos ou movimentos que o dirigiriam para o outro. Dentre o grupo dos “bizarros”, o Transtorno de Personalidade Esquizóide é mais característico por comportamentos decorrentes deste tipo de disfunção de contato, como escolha por atividades solitárias, falta de apreço por relacionamentos íntimos, indiferença a criticas e desinteresse em experiências sexuais com outra pessoa. Confluência As disfunções de contato até agora descritas apresentam entre si a semelhança de limites entre indivíduo e meio preservados. Nos dois primeiros casos – introjeção e projeção – a disfunção se dá na atribuição da responsabilidade pelas ações vividas na relação. O indivíduo que retroflete sofre com a rigidez de um limite intransponível entre si e o meio. No que se refere à confluência, tal limite não existe; é nesse aspecto que reside a disfunção de contato. A ausência na barreira de contato entre indivíduo e meio pode ser vista como defesa conseqüente ao impacto gerado por ela. O simples esboço de uma estrutura que limite o contato (mas que não o impeça) provoca angústia e frustração no confluente. Nesse contato disfuncional, o indivíduo é incapaz de ver diferença entre si e o meio, acarretando a impossibilidade de atribuir responsabilidade a qualquer das partes da relação por suas ações. Três tipos de Transtornos de Personalidade, de três Clusters diferentes, apresentam a confluência como principal forma de contato. Do Cluster A, o Transtorno de Personalidade Esquizotípica é evidenciado por uma formação bastante rudimentar de personalidade, razão pela qual é considerado pela CIDX um quadro psicótico por apresentar entre seus traços experiências perceptivas incomuns e distorcidas, afeto inadequado, idéias de referência, crenças bizarras e pensamentos mágicos inconsistentes com a cultura do indivíduo. O grupo dos “ansiosos” inclui o TP Dependente, cujo comportamento confluente é explicitado por características como preocupação irrealista com temores de abandono e de incapacidade de auto-cuidado, necessidade de estabelecer relacionamentos íntimos e dificuldade em expressar discordância por medo de perda de apoio. O Transtorno de Personalidade Borderline, incluso no Cluster B, talvez seja o mais emblemático de contato disfuncional confluente, evidenciado na descrição do quadro psicopatológico segundo o DSM-IV: esforços frenéticos para evitar abandono (real ou imaginário), perturbação da identidade, comportamento auto-mutilador em situações de forte carga emocional (até mesmo benigna) e pseudo-psicoses, caracterizadas por atribuição alucinatória a pensamentos e percepções reais. De todos os Transtornos de Personalidade discriminados pelo DSM-IV, o único ainda não mencionado é o TP Anti-social. No entanto, sua ausência se explica por não se tratar de um funcionamento neurótico; o indivíduo se põe acima do meio, utilizando-se deste apenas para atingir seus objetivos. Verdadeiramente, não ocorre contato nem mesmo de forma disfuncional, decorrente do não estabelecimento de relações que reconheçam a presença do outro. 8. Conclusão A Gestalt-terapia representa uma valiosa alternativa de abordagem psicoterapêutica no tratamento dos Transtornos de Personalidade. Certamente encontra limitações como outros referenciais teóricos, mas possibilita em diversos aspectos um acompanhamento psicoterápico construtivo e sustentável, tanto para os indivíduos com TP como para terapeutas dispostos a este trabalho. Da mesma forma que em outras abordagens psicoterapêuticas, adaptações devem ser feitas ao atendimento dos pacientes com TP; no entanto, sob o referencial fenomenológico, essa adaptação é premissa básica da prática clínica, uma vez que o fenômeno é princípio delineador do trabalho psicoterapêutico. Não se planeja um acompanhamento Gestáltico sem que o paciente seja parte ativa e determinante para a condução (ou até interrupção) deste trabalho. Talvez o maior desafio resida em expandir a visão dos Gestalt-terapeutas sobre os Transtornos de Personalidade, pois os diagnósticos podem ser vistos como rótulos que reduzem o acompanhamento a algumas características específicas e impedem que o terapeuta veja aquele indivíduo em sua totalidade. Esse é um temor que, conforme aconselha Gary Yontef em um de seus ensaios,11 só a experiência poderá dirimir. É provável que esse temor seja um traço de fundamentalismo fenomenológico, e aí sim, tristemente aquelas necessidades especiais daquele indivíduo de estrutura relacional precária não serão adequadamente atendidas. Com este trabalho, pretendo não apenas expandir a visão dos profissionais não familiarizados com as particularidades e potenciais contribuições da Gestalt-terapia para o trabalho com Transtornos de Personalidade, mas também convidar Gestalt-terapeutas a uma maior sensibilização e compreensão das dificuldades relacionais essenciais dos Transtornos de Personalidade. Espero sinceramente ter me aproximado disso. 9. Bibliografia 1 OMS – Organização Mundial da Saúde. Classificação Internacional de Doenças, 10ª Edição (CID-‐X). Edusp 1994. 2 APA – American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4ª Edição (DSM-‐IV). Tradução Cláudia Dornelles. Artmed 2002, pp 641-‐81. 3 Ottosson H e colaboradores, Cross-‐System Concordance of Personality Disorder Diagnoses of DSM-‐IV and Diagnostic Criteria for Research of IDC-‐10, Journal of Personality Disorders, 16 (3) 283-‐292, Guildford Press, 2002 4 Chen H e colaboradores, Relative Impact of Young Adult Personality Disorders on Subsequent Quality of Life: Findings of A Community-‐Based Longitudinal Study, Journal of Personality Disorders, 20 (5) 510-‐523, Guildford Press, 2006. 5 Soeteman DI e colaboradores, The Economic Burden of Personality Disorders in Mental Health Care, Journal of Clinical Psychiatry, 2008, 69 (2) 259-‐265, Physicians Postgraduate Press Inc, 2008. 6 Kernberg OF e colaboradores, Psicoterapia Psicodinâmica de Pacientes Borderline, Artmed, 2000. 7 Linehan M e colaboradores, Cognitive Behavioral Treatment of Borderline, Guildford Press, 1993. 8 Young J e colaboradores, Schema Therapy, Guildford Publications, 2006. 9 Bateman A e Fonagy P, Mentalization-‐based Treatment for Borderline Personality Disorder: A Practical Guide, Oxford University Press, 2006. 10 Hall CS, Lindzey G, Introduction to Theories of Personality, 194-‐233, John Wiley & Sons, 1985. 11 Yontef GM, Processo, Diálogo e Awareness, 2a Edição, Summus Editorial, 1998. 12 Von Zuben NA, em Forghieri YC (org.), Fenomenologia e Psicologia, Editora Cortez, 1984. 13 Delisle G, Personality Disorders: a Gestalt Therapy Perspective, Gestalt Journal Press, 1995. 14 Perls FS, A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia, 2ª edição, pp 39-‐56, LTC 1988. 15 Zinker P, citado em Ciornai S, Percursos em Arteterapia, p 97, Summus Editorial, 2004