Canto (quase) livre

Transcrição

Canto (quase) livre
29 DE MARÇO DE 1974
Canto (quase) livre
Há 30 anos, o Coliseu de Lisboa enchia-se para ouvir
os «artistas representativos da moderna canção
portuguesa». Apesar das palavras censuradas e das
canções proibidas, já se sentia a revolução no ar
S
Reconhecidos méritos
Mas os sinais do declínio e queda do
velhinho «Estado Novo» eram já muitos
(recorde-se, aliás, que o golpe frustrado
CARLOS GIL
eriam seis mil, sete mil, um pouco
mais ou um pouco menos, os presentes na noite de 29 de Março de
1974 na sala de espectáculos da
Rua das Portas de Santo Antão. Dentro
do Coliseu dos Recreios (agora mais conhecido por Coliseu de Lisboa) estavam
os que cabiam. Alguns ficaram de fora.
Mas não foi o número exacto de espectadores que transformou aquele concerto numa data memorável. Foi, antes, o
instante em que todos se transformaram
num só, numa só voz. O momento em
que «filas e filas da plateia, das bancadas,
dos camarotes, das galerias eram massas
de gente, de braços dados, como que a
participar de um fantástico cerimonial»
– palavras de uma notícia não assinada
na edição de 30 de Março de 1974 do
vespertino A Capital. E esse momento
aconteceu quando José Afonso (com
muitos outros músicos a acompanhá-lo
em palco) cantou por duas vezes Grândola Vila Morena. A canção era uma se-
gunda – mesmo terceira – escolha. José
Afonso estava frustrado por lhe terem
proibido integralmente a interpretação
de Venham Mais Cinco e O Que Faz Falta. Mas Grândola, sobre a terra onde «o
povo é quem mais ordena», parecia inofensiva aos olhos dos censores, talvez pelo seu carácter aparentemente regionalista, em lenta e arrastada cadência alentejana. O coro de milhares de vozes foi
de tal modo impressionante, que seria
nessa noite que Grândola era escolhida
por militares do Movimento das Forças
Armadas presentes na assistência como
senha radiofónica principal para o golpe
de 25 de Abril – a menos de um mês de
distância, uma madrugada pressentida
por todos mas ainda secreta, desconhecida. Para muitos, quase todos, uma data
que ainda pertencia ao mundo perdido
das utopias.
D.R.
PEDRO DIAS DE ALMEIDA
■ ENCHENTE Com o cartaz anunciado e os sinais evidentes de fragilidade do regime,
pressentia-se que o I Encontro da Canção Portuguesa fosse um concerto histórico. Foi mesmo
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de 16 de Março tinha ocorrido poucos
dias antes). Sentiam-se, até, na organização dessa histórica noite musical. O
I Encontro da Canção Portuguesa – assim se chamou ao evento – foi organizado pela Casa da Imprensa e servia como
cerimónia da entrega dos Prémios da
Imprensa de 1972 nas categorias de rádio, música ligeira, música erudita, televisão, bailado e literatura.
Até à última hora, os promotores
aguardaram autorização da Secretaria
de Estado da Informação e Turismo.
A organização de um festival como este
exigia várias conversações com as instituições do regime, negociações prévias,
avanços e recuos, muitas cedências. Numa carta datada de 27 de Março de
1974, assinada pelo então presidente da
Casa Imprensa, Mário Cardoso, e dirigida ao dr. Caetano de Carvalho, «Ilustre
Subsecretário de Estado da Informação
e Turismo», podia ler-se: «No momento
da entrega das letras das composições,
foi a direcção da Casa da Imprensa surpreendida com a informação de que os
artistas José Afonso e Adriano Correia
de Oliveira não poderiam cantar no espectáculo. Espectáculo, sublinhamos,
que não tem carácter comercial, contendo sim verdadeiras intenções altruístas,
pelo que os próprios artistas, que o sabem, actuam graciosamente.» Segue depois a argumentação sobre os dois múVISÃO 25 de o de 2004
■ PROTAGONISTAS Da esquerda para
a direita, Barata Moura, Vitorino,
José Jorge Letria, Manuel Freire, Fausto,
José Afonso e Adriano Correia de Oliveira
sicos proibidos – José Afonso, «artista
de reconhecido mérito e com numerosos e recentes discos livremente à venda
no mercado», e Adriano: «(…)estamos
certos que nada mais poderia acontecer
com a sua interpretação de duas canções, das que forem autorizadas, no Coliseu dos Recreios do que o aumento
substancial do brilho artístico que pretendemos imprimir ao nosso espectáculo, para o qual tivemos a honra de convidar V.Exa.» – no sentido de fazer a autoridade voltar atrás na decisão a apenas
dois dias do concerto. Não conseguiria.
Mas…
O primeiro dia
José Jorge Letria, escritor e actual vice-presidente da Sociedade Portuguesa
de Autores, não podia ter estado mais
envolvido na preparação desse I Encontro da Canção Portuguesa: à data
fazia parte da comissão cultural da Casa da Imprensa, era jornalista (no República) e, mais importante, era autor
e intérprete de canções – pelo que tinha um lugar reservado no palco do
Coliseu naquela noite. As suas palavras antes de começar a cantar seriam
mesmo, segundo A Capital, «proféticas», ao falar da «necessidade de todos
cantarem juntos». É ele quem nos recorda, passadas três décadas, os momentos que antecederam a realização
VISÃO 25 de Março de 2004
do histórico concerto. «O regime já estava, nitidamente, em fase de implosão. Quiseram derrotar-nos não com
uma proibição do Festival, mas com
uma não-resposta. Até ao dia do espectáculo ainda não sabíamos se tínhamos, ou não, autorização. Por volta
das 17 e 30 do dia 29, quando cheguei
ao Coliseu, já havia muita gente à sua
volta, e ao fundo da Avenida da Liberdade lá estava a polícia de choque, os
carros de água… Estava a desenhar-se
ali um confronto.» O concerto estava
marcado para as 21 e 30, os bilhetes
tinham-se vendido como pãezinhos
quentes e, já à noite, com a casa cheia,
ainda se hesitava em avançar ou não.
«Lembro-me de que por volta das 10
da noite, já depois de termos recebido
os papéis com os cortes, com o que podíamos e não podíamos cantar, o Caetano de Carvalho foi ao Coliseu negociar o cancelamento do espectáculo,
dizendo que ‘o bom senso assim o recomendava’. Decidimos fazer o concerto, mas obedecemos aos cortes impostos às canções».
Todos os artistas previstos subiram
ao palco, excepto alguns músicos espanhóis que não tiveram autorização para passar a fronteira. Na primeira parte, Carlos Alberto Moniz, ao lado de
Maria do Amparo, avisou: «Os grandes
vêm já a seguir…». E os grandes eram,
sobretudo, Manuel Freire, Adriano
Correia de Oliveira e, claro, José Afonso. Os Prémios da Imprensa, esses, não
ficariam para a história – mas, recorde-se, foram entregues nessa noite a Carlos Trincheiras, Nella Maissa, Adelino
Gomes (os únicos premiados presentes), Patrick Hurd, Sérgio Godinho,
António Vitorino de Almeida, Elsa Saque, Jorge Peixinho e António Ramos
Rosa. José Jorge Letria recorda sobretudo, como todos os que ali estiveram
nessa noite, «a comoção generalizada,
o momento mágico que não se explica»
dos minutos em que Grândola Vila
Morena foi cantada por José Afonso
acompanhado por todo o Coliseu. «Foi
algo que nunca ninguém tinha visto em
Portugal. Os músicos que ali cantaram
e tocaram naquela noite, como eu, estavam habituados a palcos muito mais
pequenos, em universidades, em associações…» No final, as pessoas saíram
emocionadas do Coliseu, ordeiramente, e não houve detenções, nem qualquer carga policial. José Jorge Letria
considera que aquela noite «foi o principal momento em que a canção política se apresentou perante uma multidão, como um espectáculo de massas;
foi um grande contributo dos músicos
para, naquela altura, confrontar o regime com a sua fragilidade».
Na comunicação lida no início do espectáculo, Mário Cardoso disse, apelando à calma: «Pedimos, portanto, a vossa colaboração para que o espectáculo
decorra, todo ele, da melhor forma possível. Essa será, estamos certos, a maneira de todos nós garantirmos a possibilidade de nos encontrarmos aqui novamente no próximo ano.» Tudo correu
bem, é verdade, mas ele não poderia estar mais enganado. Em 1975, muitos daqueles músicos não partilhavam já os
mesmo palcos. Em liberdade, com o
Processo Revolucionário Em Curso, as
opções eram muitas. E as guerras já
eram outras. ■
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