Visualizar/Abrir - Portal Barcos do Brasil

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SEARA
NOVA
EDITOR: JOSÉ BACELAR
DIRECTOR: CÂMARA REYS
·CORPO OIRECTJVO: Câmara Hegs, jalme Cortesão e ~armento Plrnentel. AntiSIO Director: Haúl Proença (19'Jl-lll41),
PHUPHIETAHIA E EDITORA: Empresa de Publicidade SEAHA NOVA
REDACÇÃO E ADMINISTRAÇÃO- RUA DA ROSA, 242, x.o.
Telefone, 23547
IMPRENSA
VISADO
P E L A
Composição e Impressão:
LIBANIO DA SILVA, Travessa do Fala ·Só, 24
COMISSÃO
J)
E
CENSURA
ÍNDICE
Pág.
Jaime Cortesão-Egas Moniz; Gago Coutinho; Joaquim de Canalho; Mário de Castro ........................................ · ... · ... · ·.
Um Homem, um Poeta, utn Sdbio-João de Barros.....................
Um Companheiro- Azevedo Gomes...................................
Página de Memórias- Câmara Reys...................................
Reencontro com Jaime Cortesão- Aquilino Ribeiro.....................
Regresso- Miguel Torga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma grande figura da R e-nascença- Veiga Pires . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Encontro com Jaime Cortesão- Hernâni Cidade........................
Portugueses emigrados políticos no Brasil- João Sarmento Pimentel....
O movimento da Renascença Portuguesa e os seus ideais. A acção de Jai'me
Cortesão nesse movimento- Sant'Anna Dionísio...................
Uma visita à lbituruna- José Rodrigues Miguéis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um preito e um voto a Jaime Cortesão- Vitorino Nemésio..............
Jaime Cortesão, soldado- Augusto Casimiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Sobre indivíduo e sociedade como elementos de explicação histórica- Joel
Serrão ......................................................... .
Jaime Cortesão e a sua última obra («A figura e a obra de Alexandre de
Gusmão») -Armando Marques Guedes .......................... .
O Verdadeiro Romance da Nau Catarineta- António Frois ............ .
Em resposta, e gratamente, a Jaime Cortesão- Sant'Iago·Prezado ....... .
Nota àcerca da poesia de Jaime Cortesão- David Mourão-Ferreira ...... .
Jaime Cortesão, o Clerc- A. Lobo Vilela ............................. .
Acerca da representação do Brast'l no plant'sfério dito de Cantina- Visconde
de. Lagoa ...................................................... .
Jaime C artesão 1zo Brasil- Henrique de Barros ....................... .
Jaime Cortesão, Dramaturgo- João Pedro de Andrade ................. .
Cortesão e a Historiografia Portuguesa- Jorge de Macedo ............. .
Para a biografia de /ai me Cortesão- Ricardo Saraiva ................. .
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JAIME
CORTESÃO
Já à saída da Escola manifestou na tese de formatura a sua orientação na vida.
E,. colega.
Intitulou-a Arte e Medicina e a Arte tinha precedência. Contudo exerceu a profissão quando,
alistando-se como voluntário da Grande Guerra, fez a campanha da Flandres como capitão-médico. Foi gravemente ferido em combate e ostenta a condecoração da Cruz de Guerra.
A medicina, porém, não o interessou _demasiadamente. A poesia seduziu-o e deixa preciosos
livros de versos desde «A Morte da Aguia», publicado no ano que alcançou a carta de doutor
(1909) até à «Divina Voluptuosidade», de 1923, e à «Missa da meia noite», de 1940. Também
triunfou no teatro com peças representadas em Lisboa, e, entre elas, a primeira é flecha a in.dicar
o caminho definitivo em que havia de tornar-se valor máximo na historiografia brasileira. E por
isso orgulho da Pátria onde nasceu, com que amigos e admiradores muito se ufanam.
Exilado no estrangeiro, deambulou por Espanha, França, Bélgica e Inglaterra, já definitivamente dominado pela investigação histórica, pedestal da sua glória, a que dava a máxima
actividade, perscrutando o que sobre o nosso país e Brasil havia em bibliotecas e arquivos,
frequentando Congressos onde a sua palavra era sempre apreciada e os seus conhecimentos
disputados pelos que queriam aproveitar-se da sua vasta erudição. Com invulgar bagagem informativa chegou ao Brasil, que o acarinhou e onde hoje disfruta uma invejável situação.
No Rio de Janeiro firmou os seus créditos de grande historiador, e tanto que o convidaram a preleccionar no Itamarati sobre História da cartografia do Brasil e História da formação
territorial da grande República irmã. Ultimamente os seus reconhecidos méritos foram utilizados
para obra de tomo, de que o governo brasileiro o incumbiu, dando-lhe a categoria que merece.
Ligado ao Instituto Rio Branco, ali iniciou a publicação da obra monumental «Alexandre de
Gusmão e o tnrtado de Madrid», escrita na linguagem sóbria e elegante em que historiador
e literato se ligam na formação do monumento histórico que ficará, através dos tempos, como
pedra fundamental do estudo das origens do Brasil e da América do Sul.
A minha admiração por Jaime Cortesão não se limita à sua obra de historiador, de poeta,
de autor teatral, da sua propaganda educativa, que vai da literatura infantil às «Cartas à Mocidade», dos seus contos, narrativas de viagens, e às notáveis «Memórias da Grande Guerra»; ao
literato enfim que soube marcar lugar de grande relevo nas diversas modalidades das letras pátrias.
Há mais alguma coisa que sobrevoa a sua obra magnífica: o seu carácter, a sua honestidade e a
sua coerência numa existência de lutas e canseiras, sempre ligado aos princípios que lhe dirigiram os passos pelo caminho da rectidão, e que, apesar de acerbas contrariedades, o levaram
ao apogeu da fama na ciência histórica dos nossos tempos.
EGAS MoNIZ
*
ÜCUPADO há bastantes anos no estudo «náutico» dos Descobrimentos Marítimos, já encontrei,
«caçando no mesmo terreno», o senhor Dr. Jaime Cortesão. O critério simplista que venho notando
em alguns Publicistas- para quem todo o sucesso é explicado apenas por navegações «a acertar»,
em obediência cega a ordens de chefes autoritários e ignorantes- tal critério tem sido substituído
pelo critério humano e verosímil que, sem me atrever a elogiar, eu sinceramente admiro nos escritos e conferências do Dr. Jaime Corteião. Tal é o caso do seu estudo documental da viagem de
Cabral, assim como o da intervenção portuguesa nas «Américas», desde as primitivas navegações
para a «Terra-Nova», até à nossa ocupação. Assim justifico a minha admiração por esse ramo da
Actividade do Dr. Jaime Cortesão.
Lisboa-Novembro.
GAGO Cou'fJNHO
*
(Publicista marítimo)
ADMIRO e prezo em Jaime Cortesão a dignidade moral, o portuguesismo visceral e insatisfeito
e a actividade intelectual impregnada de consciência histórica.
Outros terão feito historiografia com mais profundo sentido vertical ou com mais amplo
desenvolvimento monográfico, mas só Jaime Cortesão logrou fazer História dos Descobrimentos
em on!em a uma perspectiva que, a um tempo, os engloba e explica.
E isto que a meu ver confere singularidade à sua posição na actual Cultura Portuguesa.
JoAQUl\t DE CARVALHO
Coimbra, 27 de Nov. de I9J2.
*
LíDIMA figura de Plutarco, lhe chamou Aquílino. E realmente tem a grandeza de um Cúmulo:
o Cúmulo da sua requintada hombridade.
A este e àquele se vai para admirar uma ou outra virtude ou talento; em Jaime Cortesão
admira-se um vulto inteiro. Na perspectiva do actual momento histórico português eleva-se como
do fundo de uma planura uma eminência soberba. '
Seria impossível resistir~ sugestão de vê-lo um dia a presidir aos destinos de um povo livre.
II de Nm•embro dr I 952 .
M \RIO n1. CASTRO
UM HOMEM, UM
POETA~
UM SABIO
Por JOÃO DE BARROS
SEMPRE estimei, admirei e respeitei Jaime
Cortesão. Poeta e dramaturgo, pensador e homem de acção, sábio e patriota, nunca faltou ao
que deve aos seus prin~ípio~ e a si-mesmo. Em
toda a parte onde esta, seJa na paz, seja na
guerra~ herói que foi no terrível prélio de 1914-I9I8 -, seja em Portugal, seja no estrangeiro,
mantem-se e manteve-se, a cada passo, fiel aos
nobres imperativos da sua consciência. O seu
amor à Liberdade- é disciplina interior. A sua
dedicação à terra e ao povo lusíadas- condu-lo
a todo o momento. Sereno de palavras e de atitudes, a sua alma alimenta-se de idealismo
veemente, que em nenhuma circunstância, em
nenhuma oportunidade deixa de inspirá-lo. Caminha na vida com a segurança e a firmeza dos
fortes. Em tudo é mestre e exemplo. Tem sofrido muito, tem atravessado horas de insofreáveis dores. Mas não ·esquece nunca, na coragem
singela duma existência vitoriosa, que «O mistério do sorriso vale mais de que o segredo das
lágrimas». Moralmente, um homem completo.
Mentalmente, uma inteligência a· cuja alta compreensão não são estranhos os mais árduos pro-
UM
blemas da História nacional e unÍ\·er.sal que
e~e estuda, critica., observa e resolve com e~cep­
cwnal competência e rara erudição. Os serviços
qu~, ~o Brasi.l, ve.m prestando a Portugal e ao
pr_opno Brasll cnaram-lhe uma situação proeminente na cultura dos dois países. Ninguém
o excede, ninguém se lhe compara hoJ· e e no
l
I
'
passa d o, so. R'Icar d o s evero, na missão
desinteressada, que se impôs, de consolidar de cimentar assi~ _a amizad~ luso-br~sileira . Não conheço
outra, alias, de maiOr e mais prática eficiência
e de consequ ências mais. perduráveis. Procla~
má-lo, e agradecer a Jaime Cortesão, essa grande
e esplêndida .realidade do seu trabalho e esforço
constan.tes, eis o que a todos nós, àquem e além-Atlântico nos cumpre fazer. E, não o duvidemos: -o futuro, a posteridade, não virão :;enão
tornar mais patente ainda, a glória que já
cabe ao cid.adão insigne, e que a pura justiça
manda e exige que não se lhe negue, tanto a
merece e tanto o dignifica, tanto da sua obra
ela irradia, para honra, orgulho e prestígio de
Portugal.
Xl-I9J2
COMPANHEIRO
Por AZEVEDO GOMES
pARECE-ME que aos olhos dos antigos companheiros surge, nesta gostosa visita à pátria comum, o vulto de Jaime Cortesão como
que engrandecido.
Será que se fhe aprimoraram as qualidades
que o distinguem e que, através da vida que
tem levado longe de nós, lograram sublimar-se
os dotes, assim intelectuais como afectivos, que
dão relevo à sua inconfundível personalidade.
Será, também e mais simplesmente, que o
afastamento que lhe coube em sorte, pelo favor
do conhecido efeito da distância, no-lo apresenta
agora -liberto das contingências internas, dos
contactos e atritos donde podem bem resultar o
apoucamento e o próprio desprestígio- como
cidadão isento de toda a culpa.
O certo é que se nos revela, sob todos os
aspectos, sumamente agradável o encontro, embora fortuito, com este português de lei que
vem servindo, fóra, com tanto dignidade, a nossa
política do espírito, dando rara expressão à cultura nacional e, nas lições que em cursos sucessivos vem fazendo aos futuros diplomatas brasileiros, marcando com traços indeléveis o valor
da nossa gente, o significado histórico desta
Nação. Sob todos os aspectos, repito, o encontro
traz prazer e desusado conforto. Mas, o principal motivo de júbilo, pelo menos para os que
são da mesma geração e que ao lado de Jaime
Cortesão lidaram com o entusiasmo que acende
nas almas a devoção cívica, afigura·se-me precisamente ser aquilo que evoca a sua presença
entre nós: a confiança ilimitada em determinados princípios normativos do viver social;
o amor que não cansa da liberdade e da justiça;
a esperança que não morre de conseguir-se uma
dignificação humana generalizada; a persistência e julgar eficaz o desenvolvimento metódico
duma acção educativa; a firmeza no propósito
d~ continuar lutando no campo daquelas reivindicações que conduzem aos fins superiores da
referida dignificação.
Horas de sobressalto, vividas acaso em out~os climas, com ambientes di versos, passos da
vida a que se não regressa, energias que se
desbaratam num caudal de abundância de que
só minguadas parcelas conseguem a ventura
duma eficiência incontestável, tudo o que faz a
trama duma existência que foi forçada ao desassossego e à instabilidade, tudo isso bem pode
agora, por instantes ao menos, recalcar-se e
acomodar-se, para que entretanto voltem, como
nos melhores dias, a darem-se as mãos os
companheiros que sobrevivem e para que todos
tornemos, nesses instantes de elevação espiritual, à visão generosa daquele futuro humano .•. que nos escapa das mãos, que parece
fugir-nos, mas que nem por isso deixará de ser
esplêndida realidade de algum dia!
,
ONTEM E HOJE
/
PAGINA DE MEMORIAS
Por CÂMARA REYS
NAO conheci Jaime Cortesão, em 1902, quando
frequentei o I.0 ano de Direito e ele o
0
I. ano de Matemática e Ciências, em Coimbra.
Só quase dez anos depois, em I9II, ouvi
falar, creio que a Silva Passos, com o maior
elogio, da sua tese sobre «A Medicina e a
Arte». Devemos ter-nos conhecido em 1912,
quando houve uma reunião em Lisboa, à Praça
Camões, para a reorganização da Renascença
Portuguesa. Segui na «Aguia», com viva admiração, a sua actividade de colaborador, em prosa ·
e verso, e nessa Re vis ta se publicou o célebre
estudo de Fernando Pessoa, sobre a poesia portuguesa, em que citava Jaime Cortesão, a par de
Pascoais, como dois dos poetas que anunciavam
o advento dum super-Camões. Sentiria esse
grande fingidor a sério, em si próprio, o poder
criador duma tal missão? Lembro me duma
conversa que tive com Pessoa, quando publicou «Mensagem», sobre o carácter epigramático
dos seus pequenos poemas épicos, ainda que
muito belos, de curto fôlego, em comparação
com o caudal, impetuosamente avassalador,
duma grande epopeia - «Ilíada», «Divina Comédia», «Lusíadas», «Lenda dos Séculos».
Mas quando comecei a sentir, ainda que indirectamente, o influxo da poderosa individualidade de Jaime Cortesão, foi cerca de 1916,
quando ele e Leonardo Coimbra vieram para
Lisboa. Urna vez, na Reitoria do Gil Vicente, ao
entrar, deparei com um homem hercúleo e gordo,
de cara rapada e cabeleira puxada para a nuca,
que me deu, de chofre, a ideia dum abade do
Minho. Era Leonardo Coimbra. Trazia ainda a
dolorosa recordação, muito recente, do seu fracasso na Faculdade de Letras e na contenda
com Silva Cordeiro. Com ele convivi, dia a dia,
durante cerca de três anos. José Gomes Ferreira
recordou há dias, ao memorar-Pascoais, o que
foi o escol de professores que o acaso juntou, a
esse tempo, no Liceu recern-criado.
Le~brou, além de Coimbra, Newton de Macedo, Angelo Ribeiro, Damião Peres. Poderia
juntar-lhes Luís Cardim, Afonso Duarte, que .
publicara, havia pouco, o «Cancioneiro das Pedras», Joaquim Madureira, Lúcio Pinheiro dos
Santos. Na sala dos professores, fazendo ângulo
sobre Santa Engrácia, nos intervalos curtos de
aula para aula, Coimbra exibia a sua «verve~,
o seu ~humorismo » , em que ao proselitismo
dum Sócrates se misturava o optimismo risonho duma espécie de bonomia falstafiana.
Sempre achei da maior curiosidade o contraste entre a sua imperturbável alegria e o
carácter em geral soturnamente rneditabundo
dos seus sequa.zes e discípulos. Falando da
morte, dizia: «E a última curiosidade do filó-
-
sofo». Nos exames, dissertava todo o tempo e
dizia no fim: «Vá-se lá embora. Eu andei muito
bem». E, voltando-se para o presidente do Júri,
rematava: «Dez valores».
Metia-se muito com o Paiva, autor do «Mitraismo». Pegava nele por debaixo dos braços e
levava-o, a espernear, até junto da janela de
sacada, ameaçando atirá-lo de vinte metros de
altura, sobre os terrenos vagos da cêrca. Outras
vezes, provocava sizânias entre ele e o professor de ginástica, Oliveira. Também debicava
com o Afonso Duarte, que, já magrinho, seco e
amarelo como uma tocha, logo se empertigava,
pronto para a luta. Duma feita, lembro-me de
intervir, advertindo-o: «Tome cautela, Coimbra,
olhe que este homem faz chorar as pedras». Igualmente se divertia, às vezes, comigo. Numa festa
escolar, no jardim do Patriarcado, os rapazes
puseram-nos amàvelmente cadeiras debaixo
duma árvore frondosa. Coimbra logo me picou,
embora afável: «Que ideia literária lhe dá esta
árvore, ó C. R. ?» «De que mergulha as raízes
no húmus e a copa no Cosmos». Coimbra càrou e riu. A esse tempo, não havia discurso seu
em que o Cosmos não viesse à baila, e o vulgo
alvar apelidava os seus discípulos de «cosméticos~. U:q1a manhã, abriu uma carta de Unamuno diante de mim e vi-lhe nos olhos uma
expressão radiante: «Unamuno faz-me aqui um
elogio! ... ~ Mas logo murmurou: «Não, não é
bem o que eu supunha. Diz-me que a minha
filosofia é tal qual a pode conceber um peninsular». Quando me ofereceu o «Criacionismo~,
preguntei-lhe, sem sombra de ironia, que relaç~o havia a estabelecer entre esse livro e a
«Evolution créatrice~. Respondeu-me, corando:
«Devo muito à obra de Bergson». Lembro-me
ainda que Cardim nos juntou num passeio
largo, que nos fez deitar até Xabregas e Cheias.
No silêncio e na fadiga final da excursão, mergulhando penosamente os pés na terra húmida,
ele citou uma frase de Jaures, que tanto admirava: «}e marchais en profondeun. Eu andava
a esse tempo positivamente ensopado em Anatole France. Nele lhe falei e disse-me, sem entusiasmo, que lera a «Thai:s~.
Dava-me a impressão de que lia pouco e,
por isso, se limitava, lógica e inteligentemente,
aos grandes monumentos da literatura e da filosofia.
Os professores mais novos que nós uns dez
anos, e os alunos mais espertos, giravam, deslumbrados, na sua órbita avassaladora. O encantador e desditoso Manuel Duarte, alma duma
sensibilidade vivíssima, veio um dia desabafar comigo, de lágrimas nos olhos, julgando-se
desdenhado e desconsiderado pelo Mestre. Creio
rBs-
,
que uma palavra amiga, de intermediário, desfez
o mal-entendido. Porque, esse humorista jovial
e às vezes contundente, era também duma delicadeza afectuosíssima. Quando, ao realizar uma
conferência, no salão rla Trindade, houve tumulto
e a polícia matou um homem, oferecemos·lhe,
amigos e admiradores, um jantar, e ele encheu-me de confusão e orgulho, no começo do seu
discurso: «Há aqui uma pessoa que quero saúdar primeiro, porque não ;!parece muitas vezes
nas horas de festa e alegria, mas nestes momentos nunca falta ... ~ Ofereceu-me a hospitalidade da casa de Baleizão, onde passara o seu
noivado, e se de lá fugimos, ao cabo de dois
dias, não foi culpa sua, de estarem os sobrados
a desabar, abrindo-se ern alçapões, e ter-se
desertcadeado a mais pavorosa trovoada, com
vizinhos assombrados, aos gritos, e a repercutirem-se os trovões no imponente anfiteatro das
montanhas da Lixa. Quando foi ministro, se
assisti a uma cena violentíssima, - entre o visconde de Pedralva e um outro personagem eleitoral,-que ele seguia a fungar como um garoto,
foi lá também que vi uma comissão de professoras oferecer-lhe um ramo de flores, ouvin-do-lhe o mais enternecido improviso de agradecimento. Não havia sombra de retórica, de
literatura, de propósito oratório. Não fixei uma
só palavra. Tenho a impressão de que o grande
artista que era Leonardo Coimbra, ao aceitar
o ramalhete, realizou um novo milagre das rosas. Transformou-as numa floração estilizada
de palavras ...
Mas a que vem tudo isto,. sobre o autor da
«Luta pela lihortalidade » ? E ·que esse humorista impenit"ente e agarotado, esse improvisador
de «blagues», num permanente optimismo motejador, nunca deixava de se referir, cop1 orespeito mais profundo, ao carácter, ao talento, à
acção do seu amigo Jaime Cortesão. A esse
tempo, reuniam-se na Cervejaria da Trindade,
onde nunca fui, embora Eduardo de Noronha,
num dos seus volumes sobre Lisboa, me tenha
incluído no número dos frequentadores. U m
dia, Coimbra fazia-se eco do triunfo dum drama
de Cortesão. Outro dia, uma referência à sua
acção política e social. Foi assim que pude
habituar-me, a pouco e pouco, a conhecer a
forte individualidade que me ia ser dado admirar muito de perto.
Angelo Ribeiro, porque eu regia o 6. 0 e 7. 0
ano da Literatura Portuguesa, foi o intermediário para ir realizar uma série de conferências
no « Cours Su périeur pour jeunes filies~, aos
Anjos. Creio que foi essa série de conferências que sugeriu a Ferreira de Macedo convidar-me para iniciar as «Questões morais e sociais na literatura», na Universidade Popular
Portuguesa. Muitas vezes Alexandre Vieira me
acompanhou nas idas aos centros e sindicatos
operários. Essa aproximação mais me fez ama_r
e respeitar o povo, de que nunca me afastei,
por palavras, actos ou atitudes. Já, a esse tempo,
aime Cortesão, no Porto, realizara uma acção
semelhante, num nível muito mais elevado.
Também mais tarde, a quando do êxito das
suas «Cartas à Mocidade~, ele teve a generosidade de me comover com uma referência às
minhas pobres e balbuciantes «Cartas a um
-
irmão mais novo», há tantos anos esquecidas
nas páginas da «Arte e Vida».
O mesmo surto das ideias duma geração nos
impelia pelo mesmo caminho e nos iria fazer
encontrados. Ferreira de Macedo estava no grupo
da Biblioteca Nacional. Deve ter sido' de iniciativa sua ter eu recebido um convite para comparecer a uma reunião que seria o ponto de partida para a fundação da «Seara Nova», independentemente das excelentes relações que tinha
com Proença, Cortesão, Aquilino, Casimiro e
Faria de Vasconcelos. Foi aí que conheci Raúl
Brandão e ràpidamente nos vinculámos numa
grande amizade. Num ano preparatório, em que
houve uma insensível eliminação de ideias e
personalidades, foi-me dado conhecer de perto,
num convívio diário, o tacto, a inteligência, a
cultura, a capacidade de coordenação e direcção
do nosso prestigioso companheiro. As nossas
reuniões eram em távola redonda e tinham o
alor e a pureza duma cavalaria heróica. Num
plano diferente e não tão grandioso, Proença era
o nosso Nun'Álvares e Cortesão como um Mestre
de Aviz. Era a esse tempo duma imponente estatura e mais duma vez tenho ouvido atribuir-lhe a magestade física exemplar dum doge de
Veneza, digno do pincel de Ticiano. Cabelos
fartos, partidos numa risca à Nazareno, olhos
muito claros e barbiruivo, como os seus dois
irmãos mais velhos, de 1572 e 1871. Falar pausado, eloquente e duma prudência reflectida,
sublinhado pelo gesto geminado das mãos, de
dedos erguidos, numa expressão conciliadora ou
de prece. Limava atritos, sugeria problemas,
ultimava conclusões. Quando se deixou substituir, na pasta da Instrução, para o ministério
de Álvaro de Castro, isso provocou uma celeuma de rivalidades pequenas, que o seu prestígio
pessoal teria evitado. Para a acção política do
grupo «Seara Nova~, constituiu-se um triumvirato, em que as duas grandes figuras de primeiro plano eram Proença e Cortesão. Fomos,
em 1921, ao Porto, e aí Coimbra prestou a Cortesão a homenagem paradoxal de evitar, por ciumes, a fecunda união da Renascença e da «Seara
Nova».
·Havia dois anos que Coimbra partira para a
capital do Norte, levando para a Faculdade de
Letras alguns dos melhores professores do Gil
Vicente. Por várias razões, não aceitei o convite
para a cadeira de Literatura Portuguesa.
O despeito de Coimbra completou-se com
uma guinada do seu humorismo, alcunhando-nos
de «Serapiões>l. No entanto, a obra da «Seara»
prosseguia. Nesses sete a oito anos dum convívio
tão íntimo, tão sincero, tão profundo, houve uma
comunhão de ideais e de aspirações na plenitude
da vida, que ligam os homens duma geração
por laços mil vezes mais poderosos que os do
sangue.
Longe da pátria, Cortesão.mais se engrandeceu. O exílio tempera os caracteres fortes. Muitos
dignificam-se, submetendo-se a comer o pão
amargo da independência. Já é muito. Mas comer
esse pão e realizar, e continuar, e ampliar uma
obra que as gerações novas vão acolhendo como
o rasgar de horizontes novos; mas ofertar o trabalho constante, mesmo na pobreza, e, por vezes,
na miséria, como o pedestal dum monumento
r86-
que o seu espírito e o seu coração consagram à
Grei. .. Tal a tarefa de Cortesão. Era quando
Pessoa sempre que me encontrava-e, de 27 a 30,
todas ~s semanas nos jantares da R. D. Pedro V,
em casa dos Lobos de Ávila,- me perguntava
logo: «E o Jaime Cortesão?~.
Em 19401 vi·o um dia partir, de lágrimas nos
olhos, quase no limiar dos 6o anos, a refazer, no
Brasil, uma vida meio dest_roçada. Já era portador
dum grande nome. Mas ia torná-lo maior ainda,
num meio estuante de trabalho, de cultura, de
espírito inventivo, com um escol formidável de
valores intelectuais. Voltou agora à nossa terra,
na plenitude da sua vida e da sua obra. Aquele
cavaleiro de Távola Redonda, de r910, de 1920,
tem o mesmo porte magestoso do roble erecto,
mas com uma quase imperceptível tonalidade
outonal, uma finura e um~ suavidade de infinita
tolerância e bondade. Como o estuário imensurável dum grande rio, a corrente é mais funda e
mais lenta, por4ue mais espraiada. Ele vai partir de novo, dentro de poucos dias, continuar
uma obra magistral que glorifica duas pátrias.
E temos a consoladora certeza de que os grandes
valores da nossa terra o souberam acolher, e
acarinhar e dar-lhe aquele incentivo mínimo de
gratidão e respeito, sem o qual os grandes solitários do pensamento e os grandes agentes da
vida política e social não crêem possível levar
a bom termo a sua obra. Amigo querido, mais
uma vez, e bem vivo; o abraço fraternal de
sempre!
JAIME CoRTEsÃo, CAMARA REYS E F ERREIRA DE
CASTRO EM SINTRA, EM AGOSTO DE -I952
REENCONTRO COM
JAIME CORTESÃO
•
HA
um ror de anos que não via Jaime Cortesão. Tornei a vê-lo por uma noite calmosa, em sua casa, o nono andar dum meio
arranha-céus da rua P d.ysandu, rua fidalga vieux
style, com duas ordens de palmeiras a todo o
longo, altas, extáticas e espirituais como uma
procissão de DJmingo de Ramos num descanso
da Via Sacra. O termómetro no pino do dia
oscilara à volta dos 40 graus e com delícia me
repotreei, à varanda, num rocking-chair voltado
para as belas buritis. Mas em baixo, nas enseadas caprichosas do Flamengo, as águas estagnavam mortas, e não vinham brisas nocturnas
sacudir-lhes os flabelos. E elas permaneciam
longínquas, esgalgadas e bonitas, ao mesmo
tempo tão preguiçosamente tropicais e bisantinas que a sua função natural, dir-se-ia, era recrear-nos os olhos e mais nada.
De que é que nós conversámos a perder de
vista, a perder muitas vezes o fio do discurso,
depois do longo parêntesis? Ao cabo, se pretendêssemos reconstituir o diálogo, não · seria
menos difícil que refazer, voltando, o caminho
que se percorreu de passos impensados numa
floresta. Fui encontrar um Jaime Cortesão
eterno. Pouco se alterara aquela sua fisionomia
de doge, um doge bem disposto, no entanto
,
Por AQUILINO RIBEIRO
que ainda não tivesse acabado de arrumar os
negócios da República. O olhar era o mesmo,
penetrante e inquiridor sem ser inquieto, esse
olhar com que nos observam, dardejado do fundo raso das telas de Ticiano, os grandes senhores de Veneza. No mais, a máscara mantinha a
sua feição notória, fixa, como em estereótipo,
no jeito de reflectir ou ainda de prestar atenção, iluminada quando o pensamento começava
a traduzir-se em vozes, que na sua boca sabem
ser sérias, irónicas, facetas, consoante. Como
há dez, como há vinte anos, vi fulgurar-lhe no
rosto aquele sorriso ex pressionai, indefenível,
que breve se extingue, depois de deixar um
rasto de amenidade e obséquio. A esse luaceiro
rápido, espécie de Jair ptay, seguia-se, também
como antes, a paisagem fisionómica mi.nha
conhecida, paisagem, digamos, de pura contenção, na qual se desenrola, sempre com desconcertador à-vontade, o simples comentário ou a
réplica incisiva. No debate lá estava o argumentador comprovado: instantâneo e vigoroso
nos conceitos; semblante subitâneamente grave
como se escur~cesse ao calar a viseira; palavra
que vibra, se anima do belo tom do dardo na
trajectória alada. Tal como nos bons velhos
tempos, acontece-me provocar-lhe bruscas con-
-187-
ttaditas, e ainda como outrora tenho a impressão de ver brilhar diante dos olhos o aço dum
florete.
O verbo para Jaime Cortesão resulta sempre
um floreio. Tanto a proferir um discurso corno
a erguer um toast, a formular urna objecção
como a dar um recado, é mestre inegualável.
Também quando escuta, o rosto queda-lhe numa
postura de compenetr.ação que dá prazer e honra
ao seu interlocutor. E este um dos encantos do
homem experimentado, batido pelas vagas do
mundo: saber escutar.
Jaime Cortesão está nesse rol e possui tal
arte em sumo grau.
Tantos anos passados que lhe deixaram de
indelével além duma imperceptível poalha
branca no queixo do barbirruivo, neve especiosa? Nada, Se não (:>ti víssemos à sua volta
palavras estremecidas a denunciar-lhe uma
saúde que inculca certo melindre.
Na palestra, na discussão, no comum trato
social, Jaime Cortesão perdura o mesmo franco
e lealissimo entendimento, se bem que muito
senhor do seu nariz e das. suas opiniões. Assim,
por exemplo, a controvérsia é-lhe grata em
tanto que exercício que lhe serve para pôr à
prova a justeza e rigor dos seus argumentos e
não como operação do espírito em que recti~
fique, amplie ou restrinja os seus juízos. Compreende-se: Jaime Cortesão, além de personalidade feita, rígida e imperturbável como as
árvores que lançaram no solo raízes fundas,
possui uma ideia sua, definida, quanto aos problemas capitais que preocupam o nosso tempo.
Pode aplicar-se-lhe o calão de escola: não é
fácil apanhá-lo em branco.
No domínio da polí.tica e visão espiritual do
mundo, este nosso mundo levado por estradas
tão ínvias como tormentosas, Jaime Cortesão
mantém-se na posição que todos lhe conhe~ía­
mos. Também aí a sua personalidade pairou
superior às contingências do tempo e da fortuna, como diziam os antigos quando queriam
sublinhar a constância dos homens que não
arriavam bandeiras através de revezes e contrastes. O escritor ficou igualmente onde o
homem marcava passo. Em despeito, todavia,
do longo eclipse das ideias liberais, a sua obra
não só não esmoreceu neste sector, como avultou consideràvelmente em todos os outros. Poeta,
dramaturgo, ensaísta, historiador, é intuitivo
que devia desenvolver-se, de preferência, no
sentido que lhe era mais a talhe da sua natureza discursiva e a favor da oportunidade.
Assim, os seus estudos sobre as marcas territoriais do Brasil e prologómenos da nacionalidade brasileira firmaram-lhe um lugar de relevo
na historiografia contemporânea.
Todavia, diga-se, embora pareça supérfluo,
que Jaime Cortesão, exilado da sua terra, jàmais
se ausentou dela. Quer por sentimento, quer
por forçosa acidentação dos seus trabalhos, pois
que Brasil e Portugal se entrelaçam num longo
estirão dos tempos, a tónica da sua obra é lusíada. Para a pátria teve sempre os olhos voltados, sem com isso deixar fraquejar as obrigações contraídas para com a terra hospitaleira.
E como não, se aqui está o seu berço, a sua
primavera, o seu tavolado?! Neste consabido
tema de todos os proscritos, o seu olho glauco
enternece-se. A palavra não lhe treme, mas
entrecorta-se de pausa sucessivas. Sente-se
que o rio psicológico vai descendo as suas cachoeiras.
Quando saio de casa de Jaime Cortesão,
altas horas na noite abrasida, levo a consolação de haver recuperado o meu Portugal de há
vinte, que digo eu? de há trinta anos. Aquele
Portugal deslumbrado no limiar do mundo, sem
superstição nem as ferropeias do absolutismo,
que sacudira as escamas dos olhos e do espírito
e começava a convalescer da alma retrógrada
e enfezada. Reencontro ainda o amigo, extraviados como andávamos na década tenebrosa
do Século.
Tive ensejo durante a estadia que fiz no
Brasil de situar Jaime Cortesão no meio político e literário. Situá-lo com rigor psicológico
e exacta. proporção. Num e noutro meio, verifiquei que gozava fama e crédito correlativo
de grande e nobre português. Pude presenciar
a deferência com que o tratam no Itamaraty,
ou seja o Estado; na Biblioteca, centro de eruditos e estudiosos; aqui e além, nas casas de
homens de letras e artistas, onde, verdadeiros
cenáculos ou, se quiserem, academias à maneira ática, se praticam todos os jogos florais
do espírito e uma camaradagem ampla, estreme
de invejas e tolas rivalidades. Por toda a parte
Jaime Cortesão é o professor- suma dignidade
mental entre brasileiros. Proíessor, isto é, à
maneira germânica, o homem proficiente com
/ a autoridade necessária para que a sua opinião,
se não constitui matéria dogmática, se considere doutrina observanda até nova ordem.
Na sua companhia e do almirante Gago
Coutinho jornadeei pelos ares, através do Estado de S. Paulo e da terra assombrosa de
Mato Grosso, até as fronteiras da Bolívia. Nas
casas dos nossos compatriotas mais ilustres
pude ainda apreciar quanto erá querido e admirado.
Uma dessas casas- e para ela vão as minhas alvoroçadas saudades - era a de Ricardo
Seabra em Santa Tereza, uma vivenda de príncipe, entre velhas árvores copadas, com platibandas de relva em socalcos, onde não penetrava o ferrão do sol tropical. Os sábados eram
os dias de receber em Santa Tereza.
Estou a vermo-nos levar no «espada» potente,
pelo destro Gregório, que tem viajado com
o amo pela Europa toda, da Rua Visconde de
Inhaúma, através da Rua Marechal Floriano,
grulha e mais atravancada que um cais de embarque, torcer, à Praça da República, pela Rua
dos Inválidos em direcção a Riachuelo e Montalegre. A «Vila» era no alto e o horizonte, à
medida que subíamos, ganhava amplidão e alor.
Dos terraços, espraiando a vista, por cima de
palmeirais esbeltos e bosqtfes de jequitibás,
pela baía de Guanabara, com a terra da outra
banda, adormecida e silenciosa ao longo de
água, parecia termos diante de nós, apenas mais
vasto e com uma tonalidade mais quente, o
arco espacial que vai de Santa Catarina, Almada fora, até a Arrábida, roxa e dulcíssima
lomba do nosso fragão adorado.
Em casa de Ricardo Seabra foi-nos dado
-188-
travar conhecimento com alguns dos vultos
proeminentes na política, magistratura, finanças artes e letras do Brasil. Algumas fisionomi~s, como a de Carlos Alberto da Rocha Faria,
industrial gentleman, são das que nunca mais
se esquecem pelo halo de simpatia que irradiam e ainda pela compreensão da nossa terra,
que foi também a de seus avós.
A convívio tão cordial- não obstante Ricardo Seabra pôr esmero em distinguir- como
processo dos homens livres de Portug~l se encontrarem, matarem saudades e se debruçarem
com bem compreensível interesse sobre o panorama português, Moura Pinto era um dos que
nunca faltariam. Outro desterrado que onde vai,
p!!la sua presença gentil, pela sua palavra fácil
e colorida, pela sua cultura, pela sua afectuosidade tão espontânea como irradiante, representa a ala inconformista de Portugal. Também
ele não sofreu inpunemente o transcurso desta
década. Mas o seu espírito, sim, continua imarcessivelmente moço. Nas horas amenas ei-lo,
como antigamente, que sedesata em girândolas
de paradoxos desconcertadores, de belas frases,
de conceitos de atiladíssimo engenho e graça.
Porque ficaram segregados de Portugal homens de tal escol? Volto atrás, trinta anos, ao
tempo em que Jaime Cortesão ,era director da
Biblioteca Nacional e Moura Pinto procurava
incutir uma vera noção das realidades, perigosas realidades, nos colegas do Parlamento, trabalho ímprobo que exigia mais dispêndio de
energia do que pegar touros. E, por isto, porque
tudo em S. Bento representava uma força irreprimível, é certo que tanto nas paixões como
na vontade d-e acertar.
Jaime Cortesão era dos que bracejavam de
fora, contra a maré de vesânia, sentindo as
forças de opugnação que vinham bater o invólucro ainda frágil da Democracia. A essa altura
centralizava ele as atenções e concitava as
simpatias gerais do pequeno meio letrado. Neste
papel, ia dizer função, era Jhano, afável, um
verdadeiro polarizador de doutrina. Superior
debaixo de muitos aspectos, com estranhas
faculdades de atracção, que lhe faltou para
vencer? Que lhe faltou para que todos os seus
anelos se realizassem e as suas volições lançassem pé no mundo real?
Há duas formas de triunfar no mundo: nutrir ambições e não ter carácter. Jaime Certesão
nutriria ambições, como artista, como patriota,
como catalizador que era de ideais. Tinha
porém o grande defeito, de que se despojam
aqueles que se propõem fazer fortuna, se é que
não nascem destituídos dele: carácter. Carácter,
isto é, respeito pela sua pessoa e a dos outros
que o cotavam segundo tal padrão, respeito por
determinada investidura ética de...que um dia
se cingiu, e respeito pelo seu ser soc~al e humano. Pecha imperdoável no nosso tempo!
Onde hoje em dia se vir um homem de talento
que falhou, indague-se se não foi porque padecia dessa protuberância maligna,- de que os
prudentes na esperteza fazem ablação, repetimos, como parte umbilical, absurda, inútil e
desproporcionada- que lhe ligava a consciência a uma noção superior do vero, do belo e
do justo.
Foi, devido à perdurabilidade desse aleijão,
que Jaime Cortesão teve de expatriar-se. O
Brasil descobriu-o, honra lhe seja.
REGRESSO
REGRESSO às fragas de onde me roubaram,
Ah, minha se:rra, minha dura hifância!
Como os rijos carvalhos me acenaram
Mal eu surgi, cansado, na distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos ve:rsos que o deste:rro esfarelou.
Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deiteirme no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do nwu velho paraíso.
MIGUEL TORGA
UMA GRANDE FIGURA
DA RENASCENCA
.>
Por VEIGA PIRES
AS gr~ndes figuras ?o liberalismo, os seus
morte de Garrett; as escolas encerram-se num
mais representativos valores mentaisensino estático, chatamente utilitário;- os horiou autodidatas ou instruídos. nas velhas escozontes da inteligência imobilizam-se. A gente
las pombalinas-, todos percorreram a Europa
moça, desgostosa, afasta-se progressivamente
durant~ os anos _desesperadps da emigração, e
dum sistema vazio de imaginação e ideaesta foi, sem dúvida, a sua grande escola. ·
lização artística ou literária. Entre a mociCoirnb_r~ fi_cara sempr~, quaisquer que fosdade das· escolas e o regime esboça-se um
sem as VICISsitudes políticas da nação, a mais
abismo, que se irá alargando até à queda da
alta cátedra, a grande forja do saher.
monarquia. A su1. primeira e decisiva demonsMas após a Reforma Pombalina, que intração surge em r865. Com a questão de Coimfluenciou profundamente a vida intelectual do
bra revelam-se muitos dos maiores valores da
seu tempo, jamais se pensara em proceder a
inteligência portuguesa da segunda metade do
uma revisão de programas adaptada à s transforséc. XlX. A proibição das Conferências do Casimações europeias e à nossa própria evolução.
no torna mais acre o conflito já em marcha.
Contudo, sessenta anos eram passados depois
Os centenários de Camões e de Pombal são
da reforma pombalina, quando o sistema libep~etextos para f_
e rir profundamente o prestíral dominou em r 834 a coligação apostólicogiO da Monarquia, proclamando a República
-miguelista; sessenta anos que tinham assiscomo a nova aurora de Portugal. Depois, o
tido. à Revolução Francesa, à convulsão napodesastre da Conferência de Berlim, onde Fonleónica, ao alvor do Romantismo, à industriates capitulou inesperadamente perante a surlização rápida do Continente, ao Congresso de
presa da Europa; a aliança infeliz de D. CarViena, às lições de Laennec, Lamarck e Saintlos, ligando-nos a uma Casa que todos os inte-Simon, à libertação das Américas. Nada menos!
resses da nação deviam afastar; finalmente, o
O ensino de Coimbra, distante e esquecido,
Ulti_maturn, última prova de inhabilidade, conencerrou-se passivamente na sua quietação
duziram ao ] I de janeiro, que evidenciou o diembora o marulho inquieto das lutas política~
vórcio total dos intelectuais e do povo com o
tantas vezes viesse bater junto dos seus muros
Constitucionalismo.
e agitasse os seus próprios alunos.
A partir daí, a remoção definitiva do reO facto é que as nossas escolas não sentigime exigia apenas um outro pretexto emocioram, nem acompanhuam o enriquecimento
nal. Ele gerou-se com a greve de r9'J7. As
intelectual, que estava transformando os Povos
escolas erguem-se através do país inteiro num
ocidentais.
movimento, sob a face de interesses acadéDecerto, quando a vitória dos constitucio~icos, no fundo nitidamente republicano. O
nais exige uma reformação dos esquemas naditador João Franco, com estranha incomcionais, surgiram dois homens- Mouzinho da
preensão,_ sufoca ~ Aca~emia e vexa-a pelas
Silveira e Passos Manuel- de visão aquilina
~uas medidas de viOlência. Este gesto perdeu,
a estrt:.turar cultural e administrativa,.mente o
irrepa.ràvelmente, os Braganças.
País dentro do sistema liberal. Mas, com esses
Com a greve de r9o7 surge J a.ime Cortesão
dois famosos e mal estudados refundidores se
no. grande quadro do drama nacional, onde
esgotou a capacidade adaptativa às novas
vai elevar-se até às proporções de valor repreestruturas que o liberalismo exigia. Clarasentativo internacional. Dirige no Porto, com
mente, Fernandes Tomás, Mouzinho da Silveira
L~on~rdo Coimbra, Augusto Martins, António
e Passos Manuel, foram as fortes personalidaCorreia de Sousa, Alvaro Pinto Amadeu En·
des na grande bltalha pela liberdade, no
carnação, Ribeiro Seixas, Artur Alves Ferreiséc. XIX, e ficaram como modelos estatuários
r~, Costa Júnior, e outros, o duro embate gredo Pantéon, que um dia Portugal há-de consvista «contra o espírito dogmático e reaccionátruir aos seus libertadores- vultos soberb)s de
rio do ensino universitário» (r ). Frequenta e
polarizadores do caos. Mas sobre eles se fechou
escreve na Vo z Pública, ao lado de Pádua Coro génio inspirado dos grandes anos da libertareia, um dos maiores jornalistas da República
ção. O s~stema constitu_cional n~o dá depois
e deste século, influenciando com a sua atitude
um teonzante económico, nem doutrinário
e palaVra vibrantes a juventude dé todo o norte
polí~_ico, ne.~ a~ministrador de elevado padrão.
do país na luta desigual, onde a greve se perA viCia politica do país mergulha numa agitação de grupos em redor do trono, que pouco a
pouco ~e. to~na presa de forças regressivas
(r) Palavras proferidas por J. Cortesão num comício
irresponsa veis.
levado a efei!o em I7-3-19071 no qual falaram também:
Leonardo Coimbra, Campos Lima, P ádua Correia. Por
Não se criava ciência; a literatura desviries s a altura a Escola Médica do Porto nomeia-o seu Deleliza-se numa contemplação passadista após a
ga do para tratar de todo s os as s untos grevistas.
-190-
deu mas a grande Causa ficara vitoriosa, porque teria como professores, no liceu, Augusto
Martins e o Leonardo. Foi uma revolução no
que' a part!r desse .~omento a Repúbli~a tornara-se o 1deal pohtlco de toda a mocidade.
meu espírito. Toda a concepçllo arcaica do
Agora já nada podia deter a sua proclamação.
professor longínquo, hirto, inquiridor e juiz
A acção brutal do ditador, forçando o desfeimplacável, marcador terrificante de notas ao
cho, lançara a semente redentora em todos os
pobre menino, desapareceu em frente desses
cora~ões juvenis. O golpe político fora magisdois rapazes compreensivos, afáveis compa. tral~ente conduzido pelo Partido Republicano
nheiros, que nos falavam e ouviam; nos aceitavam as dúvidas, as hesitações, os problemas,
Português.
Quando a greve terminou, ficara urna reduas pequenas angústias dos nossos espíritos inzida falange de intransigentes afirmando altivaquietos e ávidos; nos abriam horizontes e solumente os seus princípios morais e políticos.
ções, iluminando-nos os caminhos incertos, os
Jaime Cortesão aí se encontrava, intemerato (r).
círculos fechados, onde a inexperiência e a
Quase simultâneamente com essa batalha estuignorância nos encerravam.
dantil de repercussão nacional, os moços, que
Aos anseios da Revolução de 5 de Outubro,
tão decisiva acção tinham exercido aí, lançam-se
a esse momento genésico (r), deveriam corresna doutrinação política, organizando o centro
ponder novos conceitos, novos educadores em
«Os Amigos do A B C», de ressonância huface do problema fundamental: -criar espíguesca, e fundam a revista de literatura e críritos para a liberdade, gerações aptás a comtica social Nova Silva (2) sob direcção de Jaime
preender . as necessidades profundas da sua
Çortesão, Leonardo Coirn bra, Cláudio Basto,
Pátria enclausurada em muralhas sem janelas
Alvaro Pinto. Esta revista prenunciava A
sobre o futuro.
Esses homens que nos surgiam simples,
Aguia, a poucos anos de distância. Jaime Cortesão inicia os dois primeiros números com
com ideias novas e recursos insuspeitos, na
sua mocidade, para os transmitir e suscitar
magníficos portraits-charges de António José
entusiasmo fecundo e ardente, representavam
d'Almeida e João Chagas.
Na abertura da revista, afirma-se alto a
urna Era Nova que nos chamava a colaborar.
«Liberdade e, com ela, o Supremo Bem, ·a suDesde os primeiros dias ligou-me a Eles uma
prema Justiça», Seguem-se: um artigo de Leoamizade de irmão mais novo, que durou até à
morte.
nardo «0 homem livre e o homem legal», onde,
numa rápida frase, dá toda a substância da sua
Em breve chegava também Jaime Cortesão
filosofia futura- «A observação histórica, conque, por sua vez, iria reger algum~s disciplinas
• firmada pela observação actual, mostra-nos a
no meu liceu.
trajectória humana como um esforço contínuo
O poeta era então um homem de perfil apolíneo, loiro-fulvo, de conversa espirituosa e
para a liberdade» (3), e os versos de J. Corteculta. A voz musical, a vivacidade, a fascinação
são- «Meu Irmão Rouxinol»- preludiando o
patrícia que irradiava, impunham-no a urna
formoso artigo no I.0 número de A Aguia«0 Poeta».
simpatia a que ninguém ficava indiferente.
O retrato de Cervantes de Haro n'A AguiaQuer «Os Amigos do ABC», quer a Nova
11.0 4- r. a Série- mostra-nos um dos aspectos
Silva exerceram forte e duradoira impressão
da sua expressão incomparável.
na juventude desse tempo. Pouco depois, esse
Um estremecimento de renovação percorria
grupo dispersava-se, com a partida de]. Corteo país; vivia-se num ambiente de exaltação.
são, Augusto Martins, Leonardo Coimbra, para
Alguma coisa inefável e imensa alava os
Lisboa, a completar os seus cursos, o primeiro
homens até às esferas da esperança pura de
na Escola Médica, e os outros no Curso Superior de Letras.
mácula. Era uma alvorada, uma primavera do
espírito, um rejuvenescer d'almas; e este fenóEu não conhecia ainda pessoalmente qualmeno maravilhoso, que enchia de nova luz um
quer desses três homens, mas o seu prestígio
Povo entenebrecido, não podia deixar de traficara enorme; os seus nomes, familiares, ressoavam constantemente nas nossas conversas.
duzir-se em arte, em beleza, em coroamento
intelectual, científico, filosófico. E a República
Um dia, princípios de Outubro de r9ro, soube
encontrou no Porto os homens de talento para
darem expressão a essa febre heróica, para
dar valor permanente estético e mental a um
(r) O grupo dos Intransigentes foi constituído na
fenómeno
histórico que, cedo ou tarde, podia
0
Escola Médica do Porto por:- r. ano : Alex. Queiroz e
ser,
como
foi,
malsinado em nome de doutrinas
0
César F. Torres; 2. ano : J. Ú>rtesão, Cláudio Basto,
arcaicas, que nem as palavras última hora, que
Pedro Vitorino, Artur Alves Ferreira, A. Mendes Leal,
J .. Ferreira Alves, M. Ruivo da Fonseca, Virgílio Feras vestem, conseguem tingir de novidade. Porreira; 3- ano: A. Ribeiro 'Seixas, Miranda Guimarães,
tugal redescobriu-se em toda a plenitude de
José. d'Alm. e .Seixas. Dessa plêiade tão bela de médicos,
acção,
de pensamento, de emoção num esforço
es~rrtores, artistas, etnógrafos, filólogos, políticos, tenho,
alem de Jaime Corte são, conhecimento ainda de Ruivo
de transfiguração estética.
da Fonseca, major médico, res idente nos arredores do
Assim se erguia A Aguia, assim amanheceu
Porto, e Dr. A. Alves Ferreira, altíssima personalidade
a
Renascença
Portuguesa. Porque surgiu a Remoral esquecida pela sua recôndita e formo s a região minascença Portuguesa no Porto?
nhota.
. (2) Fundada a 2·2-1907 1 dela conhecemos apenas 4
O Porto ficara a capital da liberdade após
0
numeros.
(3) O dr. Alvaro Ribeiro dá, em Os Positivistas, uma
versao de Le<?nardo Coimbra que nenhum, daqueles que
com el.e conviveram e o conheceram intimamente subs-·
crevena.
'
-
•
. (2) Teixeira de .Pascoaes- Vol. I - 2.a Série -n.0 I
de A .Águia.
_ .
19~
- ·
,-
o 1820. As suas tradições liberais e cultas
marchavam de par; ao mesmo tempo que enviava deputados republicanos ao Parlamento,
mantinha vivíssima a chama da sua cultura.
Aqui viviam ainda em 1910:- Guerra Junqueiro, -Basílio Teles, Sampaio Bruno, Joaquim
de Vasconcelos, Carolina Michaelis, Júlio de
Matos, Magalhães Lemos, Plácido da Costa,
Maximiano de Lemos, Sousa Júnior, Paulo
Marcelino, Duarte Leite, Gomes Teixeira, Azevedo de Albuquerque, Luís Woodhouse, Pedro
Teixeira, Ferreira da Silva, Pádua Correia,
Teixeira Lopes, Cândido da Cunha, Marques
de Oliveira, António Carneiro, Augusto Ncbre, etc., recordando apenas os já desaparecidos. Esta cópia de pessoas ilustres mantinha
na cidade uma atmosfera intelectual, que permitiu a eclosão do movimento lançado por
Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Augusto
Martins, com a vontade férrea e organizadora
de Alvaro Pinto, e aos quais se ligou ,Teixeira
de Pascoaes, que n' A Aguia iria dar-nos a
sublimação estética da Saudade.
E não se estranhe que eu associe intimamente esses três homens, Jaime, Leonardo e
Martins- um poeta, outro poeta-filósofo, o terceiro matemático- porque eles possuíam a
mesma formação espiritual. E estranha-se menos ainda a presença aí do matemático. A
matemática é também uma forma de poesia e
não das menos belas; só a matemática pode,
como a poesia, libertar-se do imediato e do
concreto; nos homens de ciência só o médico
e o matemático podem ser sonhadores- e Augusto Martins era-o.
A Revolução ia cristalizar-se n' A Aguia e
na Renascença Portuguesa. Basta folhear os
números de A Aguia de 1910·12 para o reconhecer. Os seus fundadores e colaboradores
essenciais compreendiam e aceitavam plenamente o papel, que nela iam desempenhar.
«Nesta sagrada hora da nossa História, em
que o Povo Português, liberto, enfim!, da escravidão e da corrupção monárquicas, principia a
respirar e a viver uma vida mais justa e verdadeira (I)•. «Eu acredito na grandeza do momento actual, porque só agora é qpe a Raça
portuguesa, representada pelos seus Poetas
que são a sua florescência, principia a sentir-se
verdadeiramente revelada (2).»
Jaime Cortesão, logo ao iniciar a sua colaboração n' A Ag-teia, n. o I - I.a série, com o formoso poema em prosa- O Poeta- abre-nos o
seu ser profundo numa revelação para afirmar
-«Eu sou Poeta, sou a essência, o grito, o
fogo, a fonte. Eu sou a vida.• Ora esta declaração da sua sensibilidade estética não ficou
apenas como fogueira de palavras rubras que
desaparece na noite dos anos. Não. O Poeta foi
real e carnalmente o grito, o fogo, a vida em
todo o seu dramático sentido. E um dia a sua
obra será fonte também. No I, 0 vol. da 2.a série
continua a colaboração dando-nos dois trechos
da melhor poesia portuguesa:- «Esta história
é para os Anjos» e «Regendo a Sinfonia da
Tarde». · .
Mas o Poeta abrasa-se na ânsia de se tornar grito, e faz-se jornalista e depu ta do para
dizer a verdade esplendente do alto de tribunas sem mordaças; tornar-se fogo, e é professor para esclarecer os espíritos juvenis; viver
intensamente o seu drama, e oferece-se voluntârio para ir para a Flandres, donde regressou herói, ferido de guerra e condecorado. Na volta do
C. E. P. vai fixar-se em Lisboa para tomar a
direcção da Biblioteca Nacional. Da sua acção
aí, outros poderão falar melhor do que eu.
Passaram os anos. Um dia encontramo-nos
de novo. Dlas terríveis nos consumiram, angustiados, hora a hora. Depois, 25 anos correram ..•
Entretanto Jaime Cortesão percorre a Europa e vai fixar-se no Brasil. Trabalha sem
descanso, publica os seus estudos históricos. e
científicos, apresenta as suas teses, afirma-se
como um valor internacional, que, não podendo viver na sua Pátria, a nobilita trabalhando
ao serviço de estranhos:- a obra monumental
sobre Alexandre de Gusmão o demonstra.
Neste estudo imenso, que afirmaria só por si
um )lome, vemos o espírito português altear-se
àquela visão universal que fez a grandeza da
nossa ciência do séc. XVI. Alexandre de Gusmão não é visto, apenas, como o diplomata arguto e homem de fino humor da corte joanina.
Esse estadista típico da Ilustração serve de
ponto de partida para assistirmos à génese
civilizadora duqt Continentf', à formação de
nações, sob a acção genial dum homem de Estado que manejava os tratados com a razão
esclarecida por todos os conhecimentos, que a
sua época lhe podia fornecer. E o reinado joanino e a ciência do seu tempo são evocados
com uma superioridade de encher de orgulho
os portugueses. Lendo esse primeiro volume.
sentimos que a nossa cultura retoma a sua
altitude e sentido de universalidade, de que
Jaime Cortesão é um dos representantes no
estrangeiro. ·
Lendo-o, recordei e fiz o balanço duma
grande vida, a de um homem de pura essência
renascentista :-médico, escritor, artista, poeta,
dramaturgo, orador, jornalista, político, historiador, militar, homem de ciência e de acção
ardente. Foi pensamento nas suas multímodas
expressões com o equilíbrio ateniense e a cultura universalista duma figura da Renascença.
Foi acção, e, o que é tudo, tem vivido dolorosamente a tragédia do seu tempo.
Daí o espírito de humanidade e um desejo
apaixonado de Justiça que se imprimem na
sua obra.
Tal foi, tal é Jaime CÇ>rtesão.
(r) Teixeira de Pascoaes -A A guia- n.o r - r.a
série- rg1o-u,
(:..) ld., ld,- n. 0 I - Vol. r.o- 2.a série- rgr:o., artig
de apresentação da Revista.
o
Dr. Fernando de Abranches Ferrão
Advogado
Rua do Crucifixo, so-r. 0
Telef. 3 I975
-
LISBOA
ENCONTRO COM
JAIME COR TESÃO
Por HERNÂNI CIDADE
por
numa parda e la~ac~nta aldeia da Fl~ndres, durante a pnmeua: guerra mundtal,
que eu conheci o Dr. Jaime Cortesão. O sonhador dos Choupos ao luar, sobre uma de cujas
formosas quadras a subtil dialéctica de Fernando Pessoa construíra escandalosa profecia
literária, depois de me ter surpreendido, como
parlamentar democrático, todo integrado na
concreta realidade do momento político e social,
surgia-me, nesse crepúsculo nevoento e frio, a ·
toda a altura da sua capacidade de cidadania
heróica: voluntàriamente, por coerência com
su:1s afirmações sobre a necessidade da intervenção portuguesa num conflito de que estava
pendente o nosso futuro de país coloníal, alistara-se como alferes médico, e nessa qualidade
por ali andava afrontando a morte individual,
para mais eficientemente dignificar a vida
colectiva.
Veio a paz, e com ela, se não as vantagens
para a humanidade que todos sonhávamos, ao
menos algumas das que, em certa medida, compensavam os sacrifícios da Pátria, por Cortesão pessoalmente sentidos, vítima como foi dum
ataque de gaz, de que a sua saúde ainda se
ressente.
Regressámos à nossa terra. Cortesão foi
investido nas funções de director da Biblioteca
Nacional. Mas era urgente uma pedagogia social,
que acudisse à liberdade que desvairava, à democracia que se estava comprometendo, á própria dignidade da Pátria, que nllo exigia apenas
severa crítica aos costumes políticos e administrativos, senão também uma formação doutrinal que lhe esclarecesse a consciência do
momento que vivia e do futuro a preparar.
A tarefa solicitava, se bem em vários sentidos,
todos os melhores portugueses, de olhos mais
abertos e atentos. E de aí o nosso segundo encontro, no Porto, em 1921. Jaime Cortesão,
Câmara Reis, Augusto Casimiro iam ali chamar
o grupo de A n.guia, em que dominava Leonardo Coimbra, à fusão ou colaboração com o
grupo da Seara Nova, prestes a aparecer, no
sentido de uma acção intelectual mais directa
e eficiente sobre a vida contemporânea. Nada
se conseguiu. A Seara, todavia, nasceu e sobreviveu á Renascença Portuguesa e à Aguia, e os
trinta anos e tal de vida quer dela quer dos
que se lhe têm dedicado, em ambiente cada vez
menos propício, creio não haver português de
boa-fé, quaisquer que sejam as divergências
ideológicas, que os não considere como prova
irre!ragável de seriedade exemplar na coerência,
na Isenção, no esforço, na altura generosa dos
objectivos; ... Deixo, porém, em claro, por
falta de tempo e espaço, esse longo período de
idealismo e sacrifício, para falar do terceiro
encontro com Jaime Cortesão. Foi aquele em
que, na serenidade do · estudo e da meditação,
o trabalhador intelectual me surgiu em suas
verdadeiras dimensões, quase inteiramente
absorvido numa obra que a cultura portuguesa
jamais poderá esquecer. Como modesto traba· lhador neste campo, eu não podia deixar de
procurar quem nele é mestre e guia seguríssimo- e aqui repito o reconhecimento, tantas
vezes afirmado, das dívidas que para com ele
tenho contraído.
Podemos considerar uma felicidade para a
historiografia nacional que as circunst;\ncias
hajam gradualmente afastado Cortesão das preocupações políticas e que na sombra sossegada e propícia dos arquivos e bibliotecas, de
Madrid e Sevilha, de Paris e do Rio de Janeiro,
ele tenha procurado o ambiente deevasãonecessário às suas decepções e amarguras de exilado.
Ali encontrou a!! conàições, os meios e os estímulos para plenamente se realizar como homem
de ideias, sem abdicação dos princípios nem
sufocação dos sentimentos que são o cerne,
a trama mais íntima e funda do seu ser moral.
Sob o espírito do historiador, por mais absorto
na actividade de pesquisa e crítica, estremece
a alma do homem e do português, na consciente
vivência duma solidariedade humana e nacional, que seus estudos mais não fazem do que
aprofundar e dilatar.
.
Humana e nacional, na verdade. E tão ausente,
no patriotismo de Cortesão, o sombrio azedume
do nacionalismo fechado, e agressivo ainda
quando nem apenas é capaz de se defender,
que boa parte da sua obra de historiador a tem
realizado na pesquisa dos feitos do Português·
que mais têm interessado ao progresso do Homem.
Entre os trabalhos do .historiador, é sabido
que avultam, com excepcional relevo, os que
assentam em mais sólidas bases científicas e
põem, por isso mesmo, com mais impressior
nante evidência a contribuição portuguesa, em
primeiro lugar, na devassa do planeta, em segundo lugar, na colonização e construção política do Brasil. Foi seu primeiro ensaio o estudo
sobre a expedição de Pedro Alvares Cabral,
publicado na monumental História da Colonização Portuguesa do Brasil, ensaio que se completaria mais tarde com os que havia de consagrar ao povoamento e colonização deste p~ís,
na História de Portugal, dirigida por Damião
Peres, e naquela a que anda ligada a minha
responsabilidade- a História da Expansão PorI
-192-
-l93-
•
•
tuguesa 1t0 Mundo. E é coroamento dessa notável contribuição para a historiografia brasileira,
a publicação, por ele realizada, da obra de Alexandre de Gusmão, que insere o seu modelar
estudo, exaustivo e revelador, sobre o grande
político brasileiro.
Mas são de valor porventura mais para estimar os seus trabalhos sobre a colaboração portuguesa no descobrimento do Mundo. Lembro o
que se intitula L'Expansion des Portugais dans
l'Histoire de la Civi!isation, o primeiro publicado no exílio. Pelo confronto com roteiros portugueses de roteiros espanhóis, franceses, ingleses e holandeses, prova Cortesão que «todas as
grandes nações marítimas e colonizadoras aprenderam na escola náutica de Portugal, cuja vasta
ciência constituiu a base fundamental da hegemonia da Europa sobre o Mundo» -escreve ele.
Ou atraídos pelo Estrangeiro com promessa de
lucros ou afastados da Pátria pelo despeito,
foram pilotos nossos que comunicaram aos restantes pilotos da Europa navegadora seu saber
de experiências feito. Pagávamos assim com noções concretas, com ciências pragmáticas, por
nós arrancadas, à custa de nossas várias mortes,
ao mistério de oceanos e continentes, o que
recebíamos em formas de arte, ideias humanísticas e abstract'as, numa colaboração do mais
fecundo espírito de solidariedade humana. O
mesmo Cortesão, aliás, o salienta, com o caso
eloquente das informações desinteressadas que
D. João de Castro presta ao cosmógrafo de Carlos V, Alonso de Santa Cruz, segundo este
confessa em seu Libra de las Longitudes, lido
por J. Cortesão no original.
Para tal saber, porem, foi. necessano um
penoso, secular adextramento. E título de glória
para Jaime Cortesão ter notàvelmente contribuído para o esclarecimento do seu progresso.
Na mesma História de Portugal, dirigida por
Damião Peres, em páginas que aumentam consideràvelmente o que em tal matéria nos tinha
sido legado por Joaquim Bensaúde e Luciano
Pereira da Silva, Cortesão revela e estuda
os mss. dos Almanaques Astronómicos de Madrid, com que se reconstitui o processus científico que dos Libras dei Saber vem dar ao Regt'mento de Munique- monumentos da ciência
astrológica e astronómica inicialmente peninsular, mas que em Portugal teve seu final surto
- e sua fecunda aplicação.
Se a historiografia portuguesa muito ganhara
já com as andanças de Cortesão pelos arquivos
europeus, também é elevada a dívida que, por
virtude de sua estadia no Rio de Janeiro, para
com o insigne trabalhador contraiu a historiografia luso-brasileira. No Congresso de História Nacional realizado no Rio de Janeiro em
1949, tive eu o comovido prazer, que não foi
sem mistura de orgulho, de assistir a um esplêndido triunfo, que não mais esquecerei, do
historiador português. Entre historiadores brasileiros e lusitanos, de um lado, e colombianos,
equatorianos e peruanos do outro, de há muito
se debatia pleito em torno da expedição que
Pedro Teixeira realizou de 1637 a 1639, partind.o
de Camutá, pelo Amazonas, Napo e Paiamino,
até as proximidades de Quito, com o resultado
de incorporar na coroa portuguesa- e conse-
q uentemente no futuro território da Nação irmã
-vastas regiões que, sem tal esforço, pertenceriam hoje às repúblicas limítrofes. Corria na
historiografia luso-brasileira que a expedição
fora organizada em obediência à ordem de Filipe IV e que a Audiência de Quito, longe de
contrariar, antes autorizara aquela incorporação. Mas não faltavam historiadores dos países
que vieram a ser lesados, que negassem importância à expedição e até autenticidade ao documento que se lhe refere. De aí até pôr em causa
a legitimidade da integração daqueles territórios
no património brasileiro ia um passo, para que
na primeira ocasião políticos e di[Ylomatas ficavam antecipadamente autorizados por eruditos
e historiadores ... E eis o estado da questão,
quando Cortesão a estudou- e a resolveu à luz
de documentos colhidos no nosso Arquívo Colonial, na Biblioteca da Ajuda e no Museu Britânico, com este resultado novo e decisivo: a
expedição não fora de iniciativa da Corte espanhola, senão do governador de Maranhão e
Pará, Jácomo Raimundo de Noronha, que em
P. Teixeira encontrou óptimo executante- e
no presidente de Quito um suspeitoso oposicionista. A suspicácia do espanhol, aliás, não
tardaria a dar cabal justificação à Revolução
Restauradora do ano seguinte ...
Quando foi discutida a comunicação que
assim historicamente legitimava, com a iniciativa e o esforço luso-brasileiros, a integração
no nosso património de terras que nenhum
outro país podia invocar análogo ou qualquer
outro título a reivindicar como suas, as objecções que um congressista levantou contra o
significado dos documentos e a certeza das
conclusões, foi apenas pretexto para a calorosa
solidariedade expressa por todos os autênticos
historiadores brasileiros presentes. Agradeciam
a Cortesão, não apenas um esclarecimento imprevisto a uma página controvertida da história nacional, senão também mais uma sólida
base histórica oferecida à estrutt1ração geográfico-política do Brasil.
Não tardará muito que Jaime Cortesão regresse ao Brasil, a continuar suas -Pesquisas
nos Arquivos, suas liç5es no ltamarati. As
circunstâncias parece tornarem inevitável que
por mais algum tempo se conserve longe da
sua Pátria quem, no arquivo e na cátedra, tão
altos serviços mais directamente lhe poderia
prestar. Console-nos, porém, a ideia de que,
afinal, ele continua na atmosfera espiritual da
lusitanidade e por sua clarificação e dignidade trabalhando. Além de que muito importa
que em terras brasileiras esteja quem como
ele ou como Fidelino de Figueiredo autênticamente represente o que entre nós constitui,
pela altura, pela profundeza, pela seriedade,
valor indiscutível e unânimemente acatado.
Dr. Mário de Castro
Advogado
Rua de S. Julião,
Telef.
-194-
2
4189
72-1.
0
LISBOA
PORTUGUESES EMIGRADOS
POLÍTICOS NO BRASIL
Por JOÃO SARMENTO PIMENTEL
a revolta de 31 de Janeiro emigraram
A PÓS
para o Brasil dois republicanos portugueses com categoria de intelectuais:- Ricardo
Severo e Basílio Teles.
Basílio não se adaptara e regressava a Portugal passados alguns meses. Ricardo não o
deixou partir sem prova de .:brasileiro de retorna» e pôs-lhe no bolso do colete um relógio
de ouro, com corrente a dizer.
O relógio íoi o único objecto encontrado
no espólio do grande economista. (r) A corrente
nunca lha vi, mas deve ter ficado no prego
ou então tinha sido vendida por tuta-e-meia
num daqueles dias aflitivos em que o mísero
democrata precisou pagar as contas atrasadas
da mercearia onde comprava os géneros para
ele mesmo cozinhar suas frugalíssimas refeições.
Foi Ricardo Severo a figura maior e mais
prestigiosa da Colónia Portuguesa no seu
tempo.
Como homem de letras, a sua obra não se
condensa em volumes. Existe dispersa em várias publicações- jornais, folhetos, revistas e
anais de Sociedades e Academias científicas.
Esta dispersão está, de resto, em plena concordância com o carácter fundamental da sua
obra, por um dos seus aspectos obra de cientista, por outro de iniciador e propagandista,
e particularmente de apóstolo fervente da Democracia.
A sua vida mental, tão intensa quanto a sua
vida profissional em Portugal e no Brasil,
abrange dois períodos, o primeiro em Portugal
de 1886 a 19o8 sobre assuntos especiais de Arqueologia e Antropologia, o segundo, desde
1898 até 1940, com um espaço intermédio de
r898 a 19o8, em que lançou na pátria o movimento de ressurgimento tradicionalista sob a
bandeira da Portugália e a divisa Pola-Grey,
que marcam uma época e uma geração.
Como engenheiro e arquitecto traça, com
Ramos de Azevedo, as primeiras linhas mestras da grande metrópole bandeirante.
O velho burgo colonial virou urbe americana dentro daquele escritório técnico onde
foram concebidos e calculados os primeiros
arranha-céus e monumentais edifícios públicos
e particulares que São Paulo possui:- a Faculdade de Direito, a Penitenciária, o Forum,
os Correios e Telégrafos, a Faculdade de Medi(r) Este relógio voltou para o Brasil por gentileza e
gratidão da irmã de Basilio Teles que o ofereceu a Ricardo Severo. Ricardo nunca deixou de o usar durante
mais de vinte anos, até morrer. Hoje está na minha mão
como gratíssima lembrança de Ricardo Severo, e, a pedido
de Vasco Valente, irá para o Muset~ Soares dos Reis quando
o pobre de mim der a alma ao Criador.
cina, o Teatro Municipal, o Palácio do Comércio, o Mercado Municipal, o Stadium do Pacaembu, o Liceu de Artes e Ofícios, os prédios
magestosos da Light e do Matarazzo. E também
centenas de encantadoras residências nos então novos bairros aristocráticos da cidade, que
possuem o cunho da arte colonial e são padrões
de beleza e tradição a atestar influencia da
nossa grei no aglomerado cosmopolita de Piratininga (2).
Depois da República vieram outros patrícios
que alinhavam pela craveira intelectual de Ricardo, como foram Teixeira de Abreu, Betencourt Rodrigues e Malheiro Dias.
Teixeira de Abreu cingiu sua actividade a
fazer fortuna utilizando altos conhecimentos
das cousas forenses, consultor jurídico das
grandes organizações industriais e comerciais,
e não deixou rasto que perdurasse no acrescentamento da influência civilizadora do português de escol ao meio brasileiro. Assim também Betencourt Rodrigues, médico famoso que
mais queria saber dos seus doentes que daqtrele
«amor da pátria não movido de prémio vil»,
sem perder o ideal político que o levara a ser
um dos fundadores do Centro Republicano Português.
Malheiro Dias é figura q uichotesca de patriota extremado e tem, na arena das letras,
atitudes de Magriço vindo à estacada, de pena
em riste, por sua dama a Colónia, tantas vezes
quantas algum jacobino haveria tentado diminuir ou escarnecer seus valores, quer eles fossem os homens humildes do povo, quer gente
de algo pelo comércio, pela indústria, pela cultura, pela politica.
«A Mulata» sofrera auto de fé, e aquele
bate-boca da «descoberta do Brasil por acaso»
e outros mais foram lutas sangrentas e herÇiicas onde sua inteligência e força vigorosa de
escritor deram brado, deixando grata memória
a quantos se orgulham dum portuguesismo de
lei. E, como vivia da pena e precisava viver,
entrou para empresas gráficas com revistas de
fundo comercial onde ganhou aquelas centenas
(2) c .•. esta casa construtora tem sido também uma
verdadeira escola de técnicos.
Aproveitei este seu carácter de prestigiosa influencia
para lançar a orientação tradicionalista na arquitectura
brasileira. Era o mesmo princípio que dominou a campanha nas artes, nas ciencias e na politica, iniciada no meu
país pela geração que procurei englobar em torno da Portugálía (1897-1908). Continuei aqui o mesmo apostolado,
estabelecendo essa mesma base constitucional da tradição étnica e histórica, em um período de demolição e
renovamento, para que se não destruísse nas artes criadoras a essencia da nacionalidade.» (Revista Portuguesa,
de São Paulo, págs. soe 6r, Fase, I, Tomo I, da entrevista
escrita por S. P.).
-195-
de contos que diluiu, até ao último vintem,
ticos que, no seu pais, tinham ocupado os altos
numa sociedade de vinhos do Porto em Porpostos da Governação pública e dos estabelecimentos do Estado. E é mesmo de acreditar
tugal.
Voltou ao Brasil quase de tanga mas ainda
que o ouro de Moscovo, que se havia assacado
à sua oposição ao Estado Novo, fosse de pouca
com bastante prestígio para consegu~r q~e lhe
subsidiassem generosamente a «Históna da
monta, pois o cóbrinho que traziam nas magras
Colonização do Brasil~- tiro de grosso calialgibeiras nem dava para mandar tocar um
cego I Mas como os jornais tinham falado ...
bre na bolsa do Mecenas Sousa Cruz. Este moE assim o primeiro pão do exílio que por
numento, inda que imperfeito e inacabado, hácá comeram lhes foi mais duro de roer que o
·de ficar e honra a cultura lusitana muitíssimo
falado e conhecido Pão de Assúcar.
mais que todas as retóricas e parangonas enCada um deles se foi agarrando a qualquer
comend·a das pelos Governos para fortalecer e
trabalho ou serviço que lhe proporcionasse
aumentar na América o ascendente reino!.
vida independente, embora modestíssima.
O gesto de Sousa Cruz e amizade de AfrâPor si e seu esforço e aptidões foram sinnio Peixoto foram incentivo para Zeferino de
grando no mar egoísta que bordeja as praias
Oliveira fundar a «Cadeira de Estudos Camoda Guanabara, onde os senhores comendadores
neanos~ na Faculdade de Letras de Lisboa.
tapam a nudez. dos grandes cabedais com justos
Quando o saudoso Governador Sales de Olimaillots duma bem natural desconfiança.
veira, por sugestão de Júlio de Mesq~ita ~ilho,
No comércio e na indústria, para onde se
criou a Faculdade de Letras na Um versidade
de São Paulo, já existia entre os mestres e polívoltaram, Moura Pinto e Jaime de Morais cheticos paulistas ambiente para os professores
gariam a directores de poderosas organizações,
universitários de Portugal virem colaborar,
sujeitos, é de saber-se, a todos os tests que a
com muitos outros de fama mundial, no alto
prudência manda nestas terras, onde sempre
aportam «muitas e desvairadas gentes».
empreen~imento que h?je ~e.m luga~ d~stacado
na vida Intelectual e cientifica brasileira.
Cortesão obtem colaboração nos jornais do
Rebelo Gonçalves, Fidelino de Figueiredo,
Rio, é secretário do Gabinete Português de
Canuto Soares podem t~stemunhar o carinho
Leitura e dirige a «Colecção Clássicos e Contemporâneos~ da «Dois Mundos-Editora», que
com que foram recebidos e o interes~e que d~s­
pertaram suas lições. E por certo os ImpressiOlança no mercado como primeiro volume a
«Carta de Pero Vaz · de Caminha». Além da
nou o entusiasmo da multidão dos seus patrícios que acorria às festas cívicas da Colónia
reprodução fac-simz'le, o livro tem a leitura
onde· eles falaram.
paleográfica, a versão em linguagem actual,
Foram então possíveis as festas da Colónia
notas e estudo literário, histórico e topográfico,
Portuguesa, as semanas camoneanas durante
por Jaime Cortesão.
alguns anos e conferências de outros luminares
E este, se não me engano, o novo cartão de
visita com que o sábio professor de História
portugueses do mundo c~lto, como ~quelàs qu.e,
sobre assuntos económicos e de IntercâmbiO · há-de entrar nos arquivos do Itamarati, do
comercial luso-brasileiro aqui fez Nuno Simões,
Ministério da Guerra e na Biblioteca do Rio de
com êxito retumbante.
Janeiro. Mas todo o seu trabalho mental recebe
Por esses tempos já distantes se lançou a
pequena recompensa material e, de quando em
ideia da estátua de Camões num dos logradouvez, alguma contrariedade.
ros de São Paulo. A Casa de Portugal tomou a
Com 19 volumes publicados da Colecção,
iniciativa de angariar os fundos necessários
três deles da sua autoria, acaba esta actividade
para tal fim, que dias depois já estavam excena editora.
didos e ainda chegaram para pagar os grandes
O nome que trazia da Europa, as referên~ias
festejos da inauguração.
• que os escritores e cientistas brasileiros faz~a~
As delegações dos portugueses do ln terior
aos seus es.tudos e trabalhos eram credenciais
que aqui vieram, entusiasmadas com o brilhanbastantes para mais altas funções.
tismo de tais manifestações patrióticas, logo as
O paleógrafo e historiador é chamado para
secundaram- e outra estátua a Camões foi lea Biblioteca Pública, onde desentranha dos
vantada na praça principal de Ribeirão Preto.
tombos poeirentos preciosos documentos para
Com esses dois padrões da nova grei coloa História do Brasil. Ali o vemos com uma
nizadora termina, pela morte, a acção directa
équipe de jovens e inteligentes alunos a decide Ricardo Severo e seus lugares.tenentes dos
frar, a catalogar, a reproduzir, a interpretar
arraiais democráticos por um Portugal maior.
tudo quanto a sua competência e saber encon·
travam de valor real para o conhecimento
aprofundado dos factos que justificam a. ra.zão
*
de ser e de existir deste país nos seus lunttes
* *
actuais.
Empurrados pela Guerra da Europa, e sem
O Governo Federal convida Jaime Cortesão
acolhimento na mãe-Pátria, procuram guarida
para reger a cadeira de História e Geografia no
no Brasil três portugueses republicanos da
Instituto Rio Branco, do ltamarati, cujos alunos
velha guarda:- Moura Pinto, antigo ministro
são os futuros diplomatas do Brasil.
Na solenidade da aula inaugural do seu
da Justiça, Jaime de Morais, que fôra Governaprimeiro curso no Itamarati ouvi eu dizer ao
dor da ln dia e de Angola, e Jaime Cortesão,
chanceler Osvaldo Aranha para os alunos, cõn·
ex-director da Biblioteca Nacional de Lisboa,
poeta, historiador, jornalista.
sules, Embaixadores estrangeiros, ministros, e
Não vinham ~icos, não senhor, aqueles polínumerosa assistência de quanto de melhor e
-196-
mais culto se constitui a sociedade carioca:
cos professores do Instituto Rio Branco sempre
foram nacionais. Abrimos até hoje urna única
excepção, ch~mando a colabora~ connosco o
ilustre e sábio professor Dr. Jatme Cortesão,
que bem merece, por todos os títulos, esta
honra. É verdade que, como português de que
tanto se orgulha em o ser, nós não o consideramos estrangeiro».
Redobra a febril actividade intelectual de
Cortesão e o tempo parece que se alarga para
lhe · sobrar das suas ocupações oficiais na
capital Federal e permitir que possa voar para
os Estados onde faz conferências nas Universidades, ou vai localizar em longínquas fronteiras do Brasil os marcos da: ocupação do território da época colonial.
Voa nos aviões de Guerra e nos Douglas
C. 4 da carreira, desde o Amazonas às barrancas do Prata, ou corta meridianos até às margens do Paraguai, sertões de Mato Grosso,
Território do Acre.
-«Aquele seu patrício das barbas é um
bichão. Gosta de voar que nem urubu! Até
parece cá da turma da F. A. B.. E lá em cima,
pelo tempo fusco, vai revendo provas. Depois
sabe História como gente grande. Que na do
Brasil é o toruna da zona e anda mesmo a descobrir o resto da fazenda que D. Cabral nos
legou e não teve maré de olhar como era nem
onde acabava. E discursa qual \\eira ou o Rui.
Nós gostamos do doutor Jaime. E um camaradão. Você sabe? Tem panca dos nossos batutas
da F. A. B.:.
A~sim me falava aquele tenente aviador que
pilotou o avião numa das viagens de Jaime
Cortesão não sei até que cafundós dos limites
com a Bolívia ou Colômbia ou onde Judas perdeu as botas.
-Apanho cada susto, que não lhe conto
nada!
Estes moços aviadores são diabos com azas.
Voam de cima para baixo, de baixo para
cima e há ocasiões em que até penso que vou
de pernas para o ar. Mas aguento firme para
lhes mostrar que português não é sôpa- confidenciava-me depois Cortesão.
Um ofício, não sei de que Instituto, convidou-o para presidir ao congresso de geógrafos
americanos.
-Você agora está alto e por esse caminho
não sei bem onde irá parar.
-Eu também não, mas posso dizer-lhe onde
queria parar. Honras e glórias já quase me
enfadam. Agora só ambiciono o regresso à nossa
terra. Mas como, se a obra a que meti ombros
aqui no Brasil deve ser concluída?
. Tenho saudades da minha Beira, da sua
paisagem acolhedora, dos rios, do mar, do céu
azul, das árvores, do povo de Portugal. E dos
meus amigos de Lisboa, do Porto, de Coimbra,
do país inteiro. Ali é que é o meu meio, e
tenh.o ambiente para escrever o que devo e
preciso escrever da nossa História. Quantas
vezes a nostalgia me invade e entristece a tal
ponto meu coração de exilado que perco toda
a vontade de trabalhar, de comer, de tudo.
Comp.reendo agora a razão de você me dizer
que ttnha de ir à terra senão endoidecia. Eu
também tenho de ir para não adoecer gravemente.- E lá foi em missão do Governo do
Brasil e da Comissão do IV Centenário da
Fundação da cidade de São Paulo.
*
*
*
Eu, que sou homem de poucas letras, não
posso tentar aqui um esquisso da bibliografia
de Cortesão no seu exílio no Brasil. Outros da
falange das cousas da inteligência o farão. Mas
nestas atabalhoadas regras dep0nho como testemunha de vista e hei-de jurar aos Santos
Evangelhos, como ainda é de uso entre transmontanos, que este português herdou, por
direito, o prestígio e nobreza da representação
da Grei que Ricardo Severo deixara sem testamento - sua maior e mais sólida e mais honrosa fortuna- e que é hoje o autêntico embaixador da alta cultura lusíada neste continente
americano. Que os monumentos que levantou
no Brasil e outros que está a erguer- os seus
livros-são ainda mais duradouros, mais majestosos, mais perfeitos e mais fortes nos seus
alicerces que aqueles de pedra e cal saídos da
mão forte, vigorosa, portuguesíssima do sábio e
do artista a que me referi. E, para que a contradita deste depoimento não invoque a minha
amizade para me ter como suspeito, se transcreve o final dum artigo do crítico literário de
«Ü Jornal» do Rio de Janeiro, Artur César Ferr.eira Reis, sobre «Alexadre de Gusmão e a sua
Epoca»:
«Jaime Cortesão, nesse primeiro volume,
deixa-nos sequiosos pelo segundo, em que detalhará as negociações que culminariam no diploma de 1750, graças à perícia, ao civismo e à
inteligência pragmática, realística, de Alexandre de Gusmão. O Itamarati, chamando a realizá-la quem, como o eminente professor português, disponha da melhor preparação para a
magnitude da tarefa, andou com acêrto. Porque,
na verdade, uma nova história do Brasil se
começa a escrever e a aprendeu.
Mas como a maledicência e a inveja, o despeito e a política podem aí imaginar baganha
de compadrio, por ser Ferreira dos Reis da
Confraria das Letras, requeiro que se dê fé à
palavra do Ex.mo Senhor Ministro das Relações
Exteriores do Brasil, Dr. João Neves da Fontoura. Ela é, se não me falha a memória, nestes
termos:
«Entre os mais notáveis artífices dessa obra
(de pesquizas relativas ao passado histórico do
Brasil) salienta-se o Professor Jaime Cortesão,
a quem poderíamos apontar como um dos inspiradores desse empreendimento, conforme o
atestam, entre outros, os volumes sobre: ·
«Cabral e as origens do Brasil:. e a «Carta
de Pero Vaz de Caminha,., A obra «Alexandre
de Gusmão e o Tratado de Madrid ( 1750) em
nove tomos, também confiada ao Professor
Cortesão, é um índice eloquente do grande
adiantamento a que chegaram aquelas pesqui·
zas, jã agora colocadas sob a administração do •
Instituto Rio Branco,.,
São Paulo, Natal de 1952.
-197-
O movimento da Reilasceilça Portuguesa e os seus ideais. A acção de
•
Jaiine Cortesão nesse InOVIIDento
tão inefável que é natural que
dentre os sobreviventes alguns se
tenham esquecido do que vislumbraram. Esses serão, porém, os
menores. Os primeiros jamais poderão olvidar a luz da invisível
estrela que em certa hora adivinharam através da névoa do seu
anseio messiânico. Para esses, o
saudosismo é e será decerto até
o fim uma ideia-sentimento muito
séria.
Ao escrever estas palavras,
tenho presente a imagem espiritual de Jaime Cortesão e atrevo-me a afirmar que ele é um dos
que jamais renegará aquele sublime entusiasmo.
Só quem tiver a solicitude de
perscrutar, através de certas páginas de A A'guia ou da V ida
Portuguesa, o espírito que as animava, poderá intuir a grandeza de
alma dessa admirável plêiade de
sonhadores e homens de acção e
vislumbrar o sentido profundo dos
seus anseios.
Agora que Pascoaes acaba de
morrer (a infausta notícia bateunos à porta há instantes) torna-se
mais imperativa a indagação do
que foi na realidade o sonho da
Renascença e que espécie de sentimento irmanou os que foram
levitados nas asas desse spnho.
Por SANT)ANNA DIONiSIO
EM todo o ((movimento literário» há sempre
alguma coisa de indefinível que escapa ao espírito catalogante dos cronistas profissionais dfl
Literatura. E é fácil compreender porquê. Os
.que catalizam tais ((movimentos» são em regra
levitados por um ímpeto de idealismo que se
traduz mais em anseios do que em obras.
O grupo ou ((geração» que funda uma. revista
ou inicia uma luta contra alguma coisa que
considera caduco, ou se propõe abrir novos
caminhos num aparente impasse, ou se decide
a rasgar, no tapume dos preconceitos, qualquer
brecha que rasgue a vista para indefinidos horizontes emparedados,- fatalmente sonha mais
d~ que realiza. Essa lei pode dizer-se inevitável. Por isso o melhor de cada geração ou ((movimento» terá, sempre, de ir buscar-se, não
prõpriamente ao depósito de obras- pobres
carcassas ou concretizações das suas esperanças -,mas ao halo de sonho que foram as suas
aspirações veementes ou ingénuas veleidades.
No intimo, bem no íntimo, o ((grupo», que se
lança em dado momento numa campanha a favor
disto ou daquilo, é animado sempre por uma
espécie de convicção de que da sua acção está
dependente a St\lvação do mundo. Se são pintores, julgam que dos seus pinceis vai sair uma
visão única de todo o ser. Se são poetas, creem
que a verdade plena vai nascer, por um novo
fiat, dos seus poemas. Se são doutrinários,
convencem-se de que todas as discórdias humanas poderão cessar sob a acção lustral dos seus
esclarecimentos. E todos são profundamente
sinceros.
Grande e lamentável erro se comete, pois,
quando se julga qualquer movimento desse género pelas cinzas ou escórias que dele ficaram.
Como rudes geólogos destituídos de imaginação que, por automatismo, batem os seus martelos nos detritos de uma região vulcânica
tranquilizada, ruminando teorias, ~omendatu­
ras, fórmulas, sem pensarem um Instante nos
formidandos clarões que algum dia iluminaram
aqueles céus- assim o historiador das literaturas, em regra ressequido e positivo, examina
e aprecia esta ou aquela época literária, pelos
«detritos literários», esquecendo-se inteiramente
do fogo que os produziu e excedeu.
Perante o «movimento» da Renascença Portuguesa, nascido na cidade do Porto por alturas de 19101 e que fez da capital do Norte
durante uns dez anos o centro mais interes-
sante da vida espiritual do país, muitas vezes
a historiografia seca e peca de tipo pedagógico
tem tomado atitudes depreciativas que só se
justificam pela carência de capacidade de auscultação e compreensão profunda dos ideais
que obscuramente irmanavam os artistas, os
poetas, os homens de pensamento nele envolvidos.
A ideia do «saudosismo», logo à nascença,
foi dissecada com espírito positivista e hostil e
pode dizer-se que, a-pesar da coragem do Poeta
que estrenuamente procurou defendê-la, nunca
se conseguiu fazer compreender entre nós o sentido inteligível da profunda intuição, de ordem
metafísica, que nesse conceito cristalizou. Nuns, a
incompreensão tem ido ao ponto de se recusar
todo o conteúdo filosófico do conceito; noutros,
tem-se traduzido na afirmação sumária de que
essa palavra (ou flatus voeis) apenas teria sido
o peregrino paládio de um efémero conventículo
de poetas líricos condenado a rápida dissoluç~o.
Ainda há meia dúzia de anos, num escrito
(de circunstância, é certo, mas digno de ponderação) (r), um historiador de literatura, e de renome,entendeu dever afirmar, com bastante espírito displicente, que a Renascença Portuguesa faleceu de modo inglório (em consequência. de
um infeliz almoço) e que bem pequeno sena o
seu espólio se ela não tivesse deixado al~u~1a
coisa mais do que a ((descoberta:. do crzactonismo e do saudosismo . ..
Ora a verdade é bem simples. A Renascença Portuguesa, como todas as cot"sas humanas, tinha de morrer. Todos nós sabemos que
os grandes instantes de exaltação transmutante,
de combate ou de criação, têm necessàriamente
os seus limites de duração: após um dado momento, fulgurante, o seu destino, como o de
todas as escaladas humanas, é o de desfalecer
e extinguir-se, para dar lugar a outras tentativas mais juvenis, a ímpetos mais ricos de
virtualidades e audácia.
Isto quer dizer que o que importa não é a
tristeza própria do final de tais «movimentos»,
(1) Nesse escrito se comete, além de outro_s, o er~o
singular de se afirmar que o antigo gerente da tJpograha
Renascença- que, em 1916, com essa maquinaria se transferiu para o Brasil- fOra ca alma do movimento,. e que a
sua partida determinara o declínio fatal do mesmo. Com_o
se algum dia um temperamento de empresário, por ma 1.5
removente e ambicioso que seja, possa se~ a ca':sa pn:
meira e fundamental- ca alma»- de uma 1rrupçao con
vergente de forças espirituais ...
Antes de tudo, deverá acentuar-se que a Renascença Portuguesa, fundamentalmente, obra de
O DR. Jm1E CoRTEsÃo E o C AP. AuGusTo CAsiMIRo, NA ANTEescritores republicanos, de professores do ensino livre e de alVÉSPERA DA SUA PARTIDA PARA A GUERRA1 AO LADO DE
guns poetas de inspiração uniLEONARDO CoiMBRA
versalista, foi, de raiz, um movimento de exaltação dos valores
espirituais do povo portugues (a
mas o sonho que os animou no momento em
língua, a índole, a história, a paisagem, a sauque eles explodiram como aparições.
dade da terra, a nostalgia do mar, a aviA beleza desse estranho instante que foi
dez do futuro) e, portanto, alguma coisa mais
o da primeira fase de A A guia-inefável anseio
do que um simples «movimento literário:..
quase messiânico de uma imprevista geração
Ardia neles um tal desejo de total valorização
de poetas e artistas, de pedagogos e tribunos,
das «realidades lusíadas» que alguns, por inde es.píritos religiosos e laicos - está na veeconsciência ou malícia, vieram a considerar mais
mê~cia do seu momento germinal, traduzida na
tarde a cruzada do saudosismo pregada por Pasansiedade messiânica de Teixeira de Pascoaes,
coaes como a febrícula anunciadora do integrano «pa~a~is mo transcendente,. de Jaime Cortesão,
lismo lusitano. Na realidade, as reivindicações
~o optimismo eloquente trespassado de angúspolíticas (se assim lhes podemos chamar) dos hotia de Leonardo Coimbra, no secreto lirismo antemens da «Renascença» eram inteiramente isen~eano de António Carneiro, no retornismo frantas de qualquer animosidade à boa liberdade
Jado de .esperança metafísica de Raúl Proença,
que o século XIX nos trouxe e em tantos pontos
na hanttse nostálgica de Augusto Casimiro de
da Europa, por erros e fatalidades, se deixou
Mário Beirão, de Afonso Duarte de Alf;edo
vilipendiar e perder. A inalterável coragem poBrochado, e tantos outros.
'
lítica de Pascoaes, até final, bem demonstra que
Que queriam e que pensavam esses homens
só por maldade se poderia lançar sobre o Poeta
quando A A'guia desferiu os seus primeiros
do saudosismo o labeu do precursor do integravoos? Sabe-se lá.. . Queriam, titânicamente,
lismo lusitano.
escalar os céus. Queriam salvar o seu pequeno
Na verdade, a atmosfera de satisfação dema~un.do- a sua pátria- e com ela o mundo
siado positiva que, desde 19101 começou a tomar
l~teiro. Sente-se que, em dado momento, eles
a vez do espírito de exaltação e de esperança
VIsam alguma coisa de muito importante,- mas
bastante contribuiu para a atitude de repro·
- 199_-
vação e reivindicação espiritualista dos colaboradores de A A'guia. Muitos, no íntimo, e outros
declaradamente, requeriam que o ímpeto renovador que durante a fase de «propaganda» fizera
abrir escolas diurnas e nocturnas através de
todo o país não se deixasse esmorecer e reclamavam dos homens mais responsáveis do novo
regime mais atenção para os valores espirituais.
Não confundamos, porém, essa atitude nem com
a dos def~nsores do nacionalismo estrábico e
raivo~o, nem com a dos demolidores por sistema
dos fms do século passado. Ao contrário da
geração de 1870, tantas vezes truculenta e impiedosa, a geração de A A'guia raras vezes se
deixou arrastar para o pendor do ataque desabrido ou do vaticínio apocalíptico. Antes se
co~p~azia em formular, votos de esperança. Os
propnos poetas foram os primeiros a propor
planos de acção para que essas esperanças se
tornassem realidades. Jaime Cortesão por exemplo, fundava universidades popula;es e dava
~ e~empl? do ensino superior, genuinamente
livre; regia cursos de história pátria; aprofun.dava e interrogava as figuras e as questões
mais graves do Passado.
. Enq~anto ao l.ado, com igual.isenção e espírito levitante, ávido de levar alimento e ajuda
às almas humildes, Leonardo Coimbra ( reprovado e repelido pela positivista Faculdade de
Letras de Lisboa) regia alguns cursos de Filos?fia e História da Filosofia que sem favor poderiam ser prof~ridos num hemiciclo. do Colégio
de França, Jaime Cortesão, com a Intensidade
de ~!!Da que lhe é peculiar, procurava captar e
deflmr a força oculta que teria animado os
navegadores portugueses de quatrocentos a desafiar a& temidas e indefinidas águas do Mar-Oceano.
.
De cer_to modo podemos dizer que foi esse
P momento baptismal do Poeta Daquem e Da/em. Mort~ que .lhe. revelaria o seu futuro signo
de Investigador e Intérprete dos Descobrimentos. Dessa modesta experiência docente intei.
'
ramente 1Ivre,
· nasceria o futuro Historiador
A figura do Infante D. Henrique, por algum'
tempo, absor.ve-o. A tal ponto que a auscultação
se co';lverteria na all';la do poeta em alucinação
ar!fstlca: o drama épico do Infante de Sagres.
Jaime Cortesão vive, enfim, intensamente em
esp!rito criptomnési~o, a ansiedade que e~vol­
verla a. alm~ .do ~aciturno príncipe e sente por
fim a Insuficiência da tese, então ainda enraizada, da origem céltica dos Descobrimentos
que havi~ obsediado Oliveira Martins. O pro~
blema teria de ser posto sobre outras interrogações. Perante o seu auditório de almas ingénuas, de operários e burgueses do Porto, o
Poeta-pr?fessor tenta outras soluções e lança
outras hipóteses que só dez, quinze, vinte anos
mais tar?e adquiririam a plena maturidade de
tese~ h~Je plenamente aceites pela ciência Yniversitária- ou não andasse sempre a ciência
oficial vinte, trinta, cinquenta anos no encalço
do que a reflexão livre lhe vai deixando ficar
para trás, para ela mastigar e «classifican ...
Para que hoje possamos concretamente ter
uma ideia da dedicação que nessa obra da
Renas_c ença Portuguesa se consumiu, em alegre
co~unhão de esforços de evangelização educa-
tiva, bastará dizer que só no ano lectivo d
19r.2-13, na U?iversidade Popular do Porto, di:
ngida por Jaime Cortesão, se realizaram e
I
01
cursos. .pu'bl'
ICos, 49 conferências ' e I em cur
SOS
especiais,
a 1gomas centenas de lições
Um dia, os .:homens do Porto:. 'num act
de s~m.b~>li~o desass?mbr_o, resolv~ram leva~
es~a u;ncia tl va da um versidade livre. . . à própna cidade de Coimbra. E foram. A frente d
carav~na destacavam-se as figuras imponentea
de Jaime. Cortesão, A~gusto Casimiro e Leo~
nardo C01mbr:a. O ambiente na cidade do Mondego era mais do que de frieza: mostrava-se
carregado. Os próprios estudantes pareciam
apostados em _vaiar os «apóstolos:.. A sessão de
abertura, realizada num salão da Baixa, abrira-se e,ntre rumores de trovoada. Afinal tudo
se de.sf.ez. A eloq_uência persuasiva e sincera
d_os visitantes ràp~damente dissolveu os propóSI!os de perturbação e a jornada inaugural terrumou num autêntico fr~mito de confraternização dos «professores livres» com os escolares
da Universidade da Porta de Ferro.
Assim foram os primeiros dias da Renas-
cença ...
A definição mais sugestiva que talvez possa
ser ~ada da atmosfer·a de trabalho e de ansiedade que envol':'eu os colaboradores de A Aguia
ne~sa fase d~ mtensa e gratuita acção educativa que foi a da fundação das Universidades
Popu!ares do Porto, de Coimbra, da Póvoa de
Varzim, encontra-se em uma página memorável do mensário A Vida Portuguesa, que Jaime
Cortesão fundou e dirigiu desde 1912 e desem- ·
penhou por algum tempo, a par da revista liter~ria, a~ funções d.e bole~im da obra de pedagogia social que se Ia realizando.
Nessa páginas e proclamava este ideário I:
«A Renascença Portuguesa deseja dar uma finalidade à vida nacional. Temos vivido na embriaguez do
combate à deso!lestidade administrativa e todo o esforço
moral se tem afirmado nesse sentido. Na confusão do ataque e por motivo da banalidade das almas dps tribunos,
esqueceu-se o fundo eterno da vida moral. E assim que
na propaganda dos comícios se falava de filosofia natur~list~, de. Justiça_ imanente, etc. Como as almas simples
sao silenciO~as, ~ao é com rufdos obsediantes que ador!llece.m e hipnotizam, mas com palavras de simples e
Imediata ver.dade gue se há-de falar ao povo. Destruído o
passado e distendido o esforço de defender a República
ameaça~a,_ é precis? impedir a dissolução das vontades
pela cnaçao de um Ideal colectivo. Como criar esse ideal
col~~t~vo? Ev~dentemente que não pode ser por uma
artlflc_Ial reacça?. de laboratório, nem programa de qualquer Igreja politica ou literária. Em Portugal é solene o
momento e a seriedade e profundeza da alma nacional
~par~cerá logo que esta consiga furtar-se à fascinação dos
flgunnos estrangeiros. O poeta, o pintor, o músico devem
procurar ao povo português a sua alma verídica. E que
pod_e ouvir o povo? Só ouvirá aquilo que seja eterno.
~nflm, a ~e?-ascença Portuguesa, quanto a mim, tem
mtentos religiOsos. Isto explica que os seus ·homens sejam um~ minoria j~ em contacto com a alma popular d?
norte e Ignorada amda em Lisboa onde o ruidoso movimento de civilização exterior apaga as nossas palavras.
Somos poucos e em atitude oposta aos preconceitos desta
ê~oca de m~rc.antilismo cosmopolita industrial e i?dus·
tr:oso matenahsmo. Teremos a guerra canina dos hterateiros, mas, se conseguirmos achar a fórmula em que a
actualidade lusitana encarne o eterno, venceremos nós.Jt
r
De uma entrevista concedida por um colaborador
d~ A Vida Portuguesa (L. Coimbra) a um jornalista de
Lisboa.
-200-
Na verdade, pode dizer-se, a cruzada da Renascença fracassou. A esperança indef~nível que
seus promotores acalentavam foi evanesos
cendo.
E, por f'Im, ~pagou-se.
.
Mas alguma coisa de grande e d~ s~rlo s.e
passou ainda na sua fase crepuscul31~. fo1 a atitude de coragem e de .aposta decisiva que os
colaboradores de A Aguta tomaram no momento
grave em que Portugal vivia na dramática hesitação se deveria ou não intervir na Guerra terrível que desde I9I4 ensanguentava a Europa.
Que me conste! nenhuma geração de _Poetas
e tribune>s, até hoJe, em Portugal, assumm uma
tão grande responsabilidade como essa da Renascença ao defender abertamente, contra todos
os argum'entos evasivos, a necessidade da intervenção ao lado dos povos latinos e da !ne-laterra, ~oqtra as forças tenebrosas do Pangermanismo.
Foi nesse momento que a figura de Jaime
Cortesão atingiu a verdadeira altitude do heroismo. Depois de exortar, aqui e além, através
do país, os timoratos, de exprobar os defectistas,
de repreender os advogado~ da cultura teutónica, ·-o poeta-tribuno vê finalmente a guerra
declarada ao seu país pelo colosso germânico.
«Que fazer? Partid E o lar? E os filhos ternos
e carinhosos?» Durante uma longa noite, na
sua consciência, debate-se o tremendo dilema.
Ao amanhecer, a decisão está tomada. O poeta
oferece-se como voluntário e pllrte para o inferno verde e branco da Flandres, onde viveria como tantos outros companheiros de A Aguia
-como Augusto Casimiro, como Pina Moraisas lamacentas, trágicas e intérminas horas da
espectativa da Morte.
Por esse acto de hom bridade- o mais belo
e significativo de todos os poetas da Renascença
-bem poderemos dizer que a maior obra de
Arte de Jaime Cortesão é a sua própria Vida.
(r) A religiosidade do «movimento» da Rena11cença
traduz-se exemplarmente no discurso de abertura da
Universidade Popular proferido, em 28 de Outubro de
r913, por Jaime Cortesão, no qual, em dado passo, «evoca
l!ma cena sublime da vida do campo, que é a da sua terra.
E quando o lavrador, estendendo a mão cheia de sementes sobre a terra, faz o divino gesto de lançar a vida
generosamente. Assim ele (orador) quer que a ~Renas­
cença» seja humanamente verdadeira no gesto de semear
a verdade, a bondade e o amor».
'
UMA VISITA A IBITURU.NA
Por JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS
brev.es do nosso encontro no
DASRio:imagens
primeiro, no alvoroço do desembarque, depois nas névoas de Santa Teresa, e por
fim no «sobrado» da Rua Ibituruna, com a sua
grade rangente, o jardinzinho obscuro, a escada
exterior, os tetos altos e a ressonância antiga
-são estas últimas que me voltam com maior
insistência. Talvez porque, após anos e oceanos de separação, um ciclo demasiado longo
parecia fechar-se ali, numa convivência de memórias, aspirações, esperança e recomeço. Era
como folhear um livro de estampas e recortes,
e dizer: «Eu sou destes ... E aqui a história
continua ... » Era como achar alguma coisa de
q~erido e perdido, não só no amigo, como em
mim mesmo.
Nas sombras do bairro excêntrico, os livros,
os móveis, alguns quadros e objectos de arte
popul!lr, um não sei quê de antigo e de actual,
de distante e presente, de «português» em
suma~ tudo me fazia crer que tinha aportado a
uma I.lha em pleno mar de aridez e solidão, e
tudo Intensificava em mim o sentimento bom
de pertencer, de reatar-me. (Não serão as ilhas,
porventura, símbolos camoneanos das etapas
que marcam o nosso destino por enquanto
errante e marginal?)
'
O expatriado tem destas noções, estranhas
talvez para «os que ficam». Aprende o mérito
das pessoas e das coisas que lhe dão forças
~~ra não soss?brar, para recuperar-se ou identl Icar-se consigo mesmo ou a sua grei. E nada
é tão reconfortante, depois de se tér sido grão
de areia no deserto, ou rodízio anónimo dum
maquinismo que ameaça esmagar em nós tudo
o que seja personalidade e vivência.
Junto de Jaime Cortesão experimentei isso
mesmo. Talvez porque ele irradia uma profunda e convicta identidade com a nossa grei,
ou porque a sua obra de poeta, historiador, dramaturgo, ideólogo e homem de acção se modelou em torno dessa estrutura.
À cabeceira da mesa, rodeado da família,
mas sem atitudes patriarcais, e depois entre os
livros e as recordações que lhe restam, ouvi-o
falar do seu trabalho e dos seus planos, da jornada escabrosa, que não lhe provoca amargura
nem reproches. Era o mesmo homem que sempre
conheci: sóbrio e digno, preciso e re_catado de
gestos e expressões, quase tímido, revestido
dessa autoridade branda e justa que é fácil consentir-se, capaz de humor, apto a ser feliz e a
fazer os outros felizes: mas agora mais depurado, mais essencialmente ele mesmo, como os
vinhos que o tempo requintou ... (Mas nele,
foi antes a têmpera do fogo!)
E enquanto o ouvia, ou falava (falámos de
muita coisa, mas isto não é uma entrevista!),
eu ia assistindo, numa espécie de desdobramento interior, ao desenrolar das memórias
dum homem e duma época, dentro da qual eu
próprio cresci.
Ali está o retrato do tempo da «Águia»: a seduç~o que foi a «Renascença Portuguesa». Depois
-201-
o prisma novo do Infante de Sagres, a devoção
total do pioneiro à sua obra- que idade teria
eu? quinze, dezasseis anos? Na memória uns
retalhos da Glória Humilde: «. . . e eu tenho
um mar de lágrimas cá dentro!» O tumulto de
uma era de transição e aspirações, última fase
dum romantismo fiel á missão do homem: o
poeta-deputado que parte para a guerra como
outros cavaleiros de branca armadura (esperem,
é preciso procurar em tudo a sinceridade!), com
uma flor de paz no coração ... E vejo-o ( Memórias da Grande Guerra) de pé na estrada revolvida pelo bombardeio, cego, tateando, sufocado
pelos gases, ao lado da ambulância destruída ...
Segue-se o descalabro e· o protesto: o clarão
de esperança da Seara Nova e o sentimento
caloroso, reconfortante, de ver congregados,
reagindo contra os erros e a estreiteza, esses
homens de quarenta anos (quanto mais velhos
somos hoje, os ex-novos de então!), galeria para
nós de notáveis que incarnavam a crença no
mérito das ideias, a cultura, a Democracia purificada, a militância, o desapego de si, a crítica
construtiva, a confiança no progresso e na verdade, a pregação idealista erguendo-se dentro
da realidade como uma espada refulgente; e
que se aprestavam a escalar o futuro com a
doçura das pombas e a cólera de Jesus no Templo azorragando os vendilhões.
(Fraquezas? Ilusões? Omissões? E onde é
que as não há? O que importa nos homens é o
que os une para o bem, a possi!Dilidade de coexistir e actuar num mínimo de entendimento
positivo, sem renunciar aos princípios. A afirmação, mesmo débil, vale sempre mais do que
a passividade e a negação. Todas as ruínas
são transitórias, de todas elas brota sempre a
mesma flor tenaz de amor e humanidade. E que
importam divergências de pormenor, quando
por atalhos diversos, e até divergentes, se
marcha para a convergência final dos ideais
supremos- no Homem?)
Com a sua geração, Jaime Cortesão reagiu
contra a tese negativista e unilateral da «aventura» e do «materialismo» grosseiro dos Descobrimentos, para acentuar a racionalidade do
Plano e o carácter necessário, missionário, ecuménico, da expansão portuguesa, em que não houve
só sêde de oiro e especiarias (aliás geral na
Europa), mas amor do mundo e do descobrimento, sentido . órbico, função humana e histórica. Já na sua teoria da individualidade geográfica de Portugal, há longos anos exposta,
ele traduz a preocupação de definir o papel
histórico do Português pelas condições e qualidades naturais, e não pelo «messianismo», pelo
capricho de «élites», ou pela fome de lucro
somente. Esse determinismo, integrado pela
Vontade geral, de que o Infante é o vértice;
essa concepção naturalista e missionária (no
sentido laico) da Expansão, era um passo em
frente na formação da nossa consciência, porque
nos libertava da sátira, do pessimismo e da retórica. E um povo não vive menos da sua «consciência» do que do pão. Hoje, mais do que nunca,
precisamos dela ... O factor económico e o cálculo
enobrecem-se e transfiguram-se assim, dialecticamente, no correr da missão que, mais para
bem do que para mal, virá renovar o mundo.
Cada soldado obscuro ou Almirante das Índias
leva, a par da avidez e crueldade, a chama de
São Francisco ...
O seu franciscanismo, que é uma concepção
moral, envolve num manto de amor o povo
português: porque é o amor do povo que o leva
a sentir neste a santidade. (E digam-me: em
que é que a santidade contradiz a acção e a
realidade? Nã9 há santidade fora da acção
fora do mundo dos homens, da verdade e d~
erro!) Esse mesmo franciscanismo é nele um
prisma para avaliar os homens e as obras seja
na interpretação da Expansão, seja na d~ Eça
de Queiroz. O que ele procura no Romancista
é o servidor coerente dum mesmo ideal em
que só os meios, os processos, as aparê~cias
evoluem.
•
O que ele busca não é tanto castigar os
erros e vícios dos homens, como pôr em relevo
aquilo por que eles se salvam, regeneram e progridem como valores colectivos: a inteligência
a virtude, a vontade, o amor, a bondade. Iss~
o define como homem e lhe inspira a obra e a
acção. Para ele as grandes figuras -Infante ou
Alexandre de Gusmão, Mariana Alcoforado ou
Eça- não ·são anomalias nem excepções, mas
«expoentes», projecções do carácter do povo. Até
no «sigilo dos descobrimentos» eu entrevejo um
traço do carácter nacional, a obstinação algo
sombria do nosso camponês feito ao mar, de
que Magalhães seria o protótipo.
O amor da grei torna-se aparente nas suas
colectâneas da lírica popular: em frente da paixão castelhana, o lirismo lusitano é a sua pedra
de toque, um lirismo em que, como no seu próprio (Divina Voluptuosidade), há uma sensualidade cristalizada. A Freira de Beja é fogo
que se fez luz.
Ainda agora, no estudo e compilação exaustiva da obra de Alexandre de Gusmão, enxergo
a mesma intenção amorosa de provar as originalidades e virtudes, o dom de si, o entendimento, o Talent de bien faire, que, através
do tempo, dos erros e infortúnios, presidem à
acção do povo português no mundo real. Que
lição, a sua, de patriotismo colectivo, radicular,
de tolerância, compreensão, amor da grei, de fé
guiada pela razão e a vontade criadora e transformadora do mundo! Para ele, como para Herculano, a democracia é a mola real da nossa
História.
Ouço-o falar e sorrio de gratidão, porque
vejo nele um obreiro paciente e delicado da
nossa personalidade, a incarnação viva da sua
obra- talvez ainda fragmentária (cOQlO tudo
hoje no tempo português), talvez «afectiva•,
mas una em si e com ele: em ambos a mesma
afirmação dessa dignidade sem sobranceria,
dessa doçura que um dia triunfará no mundo.
E acode-me a recordação do dia distant~ em
que o vi corrigir um colaborador que unha
errado: aprumado e grave, mas sem aspereza,
duma tal dignidade, ao invocar o argumento
moral, que deixou o outro sem voz.
Esse sentimento da dignidade o levou talvez
a participar menos na polémic'a: é um congraçador mais do que hostilizador dos homens. Sem
embargo, vimo-lo reagir mais de uma vez
maldade caluniosa, ao insulto. Ao ataque dum
-202-
panfletário de alma cariada, responde um dia
com uma página de hum_or candente: escreveu-a
ontem à noite, de um Jacto, e. acaba de entregá-la ao tipógrafo. Mas, de escrita com tão veemente espontaneidade e senso da razão, ficou-lhe
gravada na memória- e ele recita-a integralmente passeando na sala, sorrindo e erguendo
as mãos delgadas e ruivas, a sublinhar um
conceito, naquele gesto tão familiar aos que o
conhecem.
0 cidadão incarna a mesma dignidade: Na
fraqueza geral, que era mais das condições que
dos homens, erguia-se periodicamente a denunciar erros e perigos, a concitar as consciências.
E nas horas decisivas sabia marchar ao lado ou
à frente dos outros, quer dando o exemplo da
responsabilidade, em 1';!17 1 quer escal~ndo a
colina insurrecta, quer amda, anos depois, tentando galvanizar as almas inertes e hesitantes,
e derrubar a barreira das divergências, pára
servir sempre o mais alto dos fins.
Depois ...
Depois- mas já passa da uma da manhã, e
que faço eu aqui a esta hora, entregue a este
sonho de identificação e recomeço, na irradiação duma paz calorosa, a um tempo seda ti va e
estimulante, se amanhã é preciso partir de
novo, continuar a cumprir pena. . . Mas é preciso que isto não se aposse de mim, é preciso
que eu reaja! E prometo, del)cabidamente, fazer
alguma coisa, mais alguma coisa ...
Despedimo-nos, desço a escada, volto-me a
olhar o trio enternecedor que me acompanha
lá em cima (até onde? até quando?), e torno a
mergulhar, comovido, na estranheza do arrabalde e do futuro.
Só então avisto nas alturas o Cristo do Corcovado, todo branco de luz e algidez de alémmundo, como um sinaleiro que no silêncio que
sufoca a selva, a noite e os ho~ens, não aponta
o Norte nem o Sul, mas apenas o caminho do
céu.
JAIME CoRTEsÃo E MARro DE CASTRO EM
ÉvoRA, EM NovEMBRO DE 1952
UNI PREITO J1: UM ·V01_ 0 A
J-AINlE CORTESÃO
1
I
Por VITORINO NEMÉSIO
UM amigo
me~ qu_e investiga, pelo puro prazer de se mteirar, as raízes das nossas
"t'eputações intelectuais mais luzidas dos últimos
cem anos, depois de me mostrar uma colecção
f.e decepções e abordando o sector historiográlc.o,, de? largas à sua admiração pela solidez,
onglnahdade e elegância dos trabalhos de Jaife C~r.tesão. E, s.~b~ndo-o originário da atmosera hnca e mess1amca de A Aguia perguntava
como
· SI"d o possível ao poeta e ' dramaturgo
do . t ena
. dhma de 1914 converter-se no grande histona or dos nossos dias.
p ~ão ~scapava a esse vigilante intérprete de
« a ?"flres~ culturais a importância do surto
i:~ticista que 3: Renascença Portuguesa a um
od, 0 Integralismo Lusitano a outro tiveram
na
et erm1nação
·
•
d
de alguns moços portugueses
0
tempo num caminho objectivo de recupera-
ção· e exegese da consciência nacional. Raros
porém atingiram a maturação metódica, na aplicação reiterada às ciências do espírito, que caracteriza a obra do historiador dos descobrimentos e da colonização portuguesa que, após largos
anos de exílio e de trabalho em arquivos europeus e americanos, nos visita hoje como que
num alto decisivo da sua vida ardente de cidadão e de escritor. A maior parte dispersaram-se
num diletantismo simpático mas inglório. Meia
dúzia deles, fiéis à poesia sensivelmente deslocada do poema para a curiosidade humanística,
ora servida em conferências, ora em monografias, ora em actos avulsos de bibliofilia e
noutras formas de ardor intelectual de acaso,
salvando a pureza de intenções perderem a
hora e a sorte de uma obra acabada.
Dos poucos que verdadeiramente contam na
-203-
história da vida espiritual portuguesa Jaime
Cortesão é um dos mais genuinamente ilustres,
e de-certo o maior historiador. O seu primado,
nesse campo, ergue-se mesmo acima de limites
de geração e de roda, situando-o na alta linhagem dos nossos escritores de história.
Para semelhant~ triunfo nem lhe faltou a
salubre concorrência de tantos trabalhadores
insignes do fértil campo de temas da nossa
expansão marítima. Arqueólogos da náutica,
historiadores das ciências, cartógrafos, diplomatistas e filólogos, simples mas ávidos curiosos
do sedutor problema que obrigava ao manejo
das fontes e como que criava, com a força do
enigma, a técnica do decifrar, nada disso faltou
a dificultar-lhe a vitória. Mas historiografia é
uma coisa, e história outra. As operações de
desbravamento técnico do terreno da interpretação, por difíceis que sejam, não passam de
perícia e propedêutica. O foro das ciências auxiliares da história não exgota a instância do
juízo nem atinge o apuro da construção.
Para esta, que no âmbito dos descobrimentos
se mostra tão árdua e exigente, tinha Jaime
Cortesão a dupla disciplina espiritual do arthta
e do sábio. Só aquele, intuindo a realidade viva
do suceder e adiantando ao segundo a figura
intensiva do que é singular e pessoal no tempo,
poderia acabar por fazê-lo um cabouqueiro seguro e sóbrio do passado como edifício realmente
habitado pelo génio nacional uno e perene.
Mas o meu amigo, uno cardeal-diabo do processo de revisão da fama dos nossos escritores,
não se lembrava que Jaime Cortesão nasceu e
cresceu num meio singularmente propício à
vocação intelectual. O seu estilo integral -modo de escrever e de visar as coisas que o inspiram, de as citar e escolher num pensamento
que logo lhes adeqúa os termos e os enlaces
sintácticos- denuncia ao leitor avisado uma
tradição humanística em que escritor tão vivo
e rigoroso se insere,- uma disciplina que, nem
por ser tão fortemente identificada com o engenho em que transluz, deixa de inculcar o seu perfil objectivo de meio e de aprendizagem. O
meio de Jaime Cortesão foi uma família cultivada e solidamente assente nos Campos do
Mondego, com economia tradicional de trabalho
e fruto rurais, a livraria vizinhando a tulha e o
receituário da aldeia, o ideal citadino de Coimbra e do Porto acenando moderadamente à paz
de S. João do Campo. E o primeiro aprendizado
recebeu-o de um pai que era ao mesmo tempo
um cidadão activo e um sábio. A contemplação
dá-se como apanágio ao sabedor para taxá-lo
de inerte ... António Augusto Cortesão varreria
a testada perante essa hipócrita vénia mostrando os seus doentes a poucos passos dos seus
livros. Investigava a Idade Média como curaria
maleitas: com a vigilância e o ardor. do homem
que visa a resultados.
Na casa paterna do historiador da armada
de Cabral e da chancelaria de Alexandre de
Gusmão devia respirar-se essa atmosfera salubre e elevada que nasce de uma boa implantação familiar na tradição e no dia a dia. O pai
erudito e clínico realizara honradamente o tipo
do grande humanista confinado no silêncio da
província, satisfeito com o aplauso insuspeito
da pequena confraria caseira e internacional
dos arqueólogos, longe das crmulações e ojerizas
dos literatos pretensiosos. E quando o filho
médico também '7' e quem sabe se com algum'
vago viso de suceder ao pai no remanso da
clínica e do Onomástico?- desceu ao povoado
das academias e das tertúlias, vinha com-certeza couraçado de velhas resistências para a
luta.
Seja como for, não se ilude o sabor a vinho
velho de tudo o que Jaime Cortesão apura no
seu habitáculo de historiador do nosso período
áureo. O rigor diplomático dos seus textos não
pesa na aérea leveza da sua construção histórica, tão grave e segura no traçado como fluente na adesão de vivência a que incita. Sem
propósito de pesar aqui os seus conseguimentos
magníficos- pois nem teria balança bem aferida para tanto -limito-me a lembrar esse sugestivo austero quadro de Lisboa n? Ano de z;oo,
com que, há trinta anos, ou seJa na fase ascendente da sua carreira de humanista, Jaime
Cortesão abre o livro, cuja matéria puliu e
ampliou interpretativamente noutras obras,
sobre A Expedição de Pedro Alvares Cabral e
o Descobrimento do Brasil. Ai, como no aparato
da Carta de Pera Vaz de Caminha, como na
introdução à monumental série diplomática dos
actos de Alexandre de Gusmão, o impulso configurador de épocas, pessoas, ciclos económicos
e centros de propulsão exerce-se sempre cingi'do
às disciplinas da investigação e da destrinça
factual, de modo que a narrativa ganha, como
iustrumento de análise e figura global do tempo, aquele timbre de velha prosa histórica que
só as páginas dos grandes historiadores artistas e sábios ferem.
Mais o cavo bordão evocativo de um Herculano do que os carrilhões volúveis de um
Oliveira Martins. Mas uma herculaniana gravidade que se repassa das finas intuições do autor
dos Filhos de D. João I, em Jaime Cortesão vigiadas pelo constante rigor da prova do facto
singular e da coerência dos conjuntos.
.
Sacrificaríamos um tanto à hora do «preito
e menagem» se não disséssemos que à poderosa
construção histórica de Jaime Cortesão, já certa
e segura do vulto que põe nas tábuas da cultura portuguesa, falta aquele último retoque ou
gesto de síntese que, se não é indispensável.ao
historiógrafo puro, é conveniente ao grande ~Is­
toriador que em tão largo caminho se anunc~ou.
A multa paga pela história científica à glória é
talvez essa ascética exigência que retarda ao
hermeneuta a hora da aplicação à cfigura» geral
do tempo que beneditinamente devassou.
Por outras palavras: a ética de S. Mau~o
mata Tucídides à nascença. E nunca é de mais
lembrar-mesmo a quem harto lo sabe-que a
história perene, viva, reluz mais nos grandes
narradores que poupam o leitor ao forro das gavetas arrumadas do que nos meticulosos notários da gesta humana, carregados de provai
«à l'appui».
.
Mas Jaime Cortesão, que em si sente
certo a estirpe de Heródoto e Burckhardt, não
nos deixará sem o volume ou dois de «da capo•
que a sua gloriosa obra imperativamente pro·
mete.
JAIME CORTESÃO, SOLDADO
Por AUGUSTO CASIMIRO
Poeta não é amar ou servir sem dádt'va
SER
. ttem cantar com a virtude super ficia! dos
esttlos. .c. levar o Amor ao sacrifício e à luta
para servir as Pátrias e os homens.
O verdadeiro Poeta sobe aos assaltos como
Cristo subiu ao Calvário, para libertar e r;dimir
só P_ode se': S?ldado ao se:~iço da Vida, par~
faze-la 1~1a~s tftgna de ser vtvtda. Nâo sofre timit~s ou tft~ciplmas que. o levem a trair o que é na
vtda dtvmo e essencta!. Seu canto e sacrifício
abrem os caminhos do Futuro.
J.ait~ze Corte~ão, sob a face loira de Viking,
a sobrza austertdade do Historiador ou a regra
lumi1wsa do seu estilo de prosador, é sempre Poeta.
E onde o Poeta subsiste está o Homem deve estar
'
o Soldado ou o Apóstolo.
Um. escritor pode ter talento. Quando tem
lmmam~ade, o que nele há de vivo, de vivt'do, excede a hteratura. O que admiramos verdadeiramente no escritor é o que nele reflecte e serve
o huma'!o. _JI(ão é _o estilo que faz o homem. Este
é que dtgniftca e tmortaliza o estilo ..
Depois o verdadeiro escritor é sempre, de qualquer forma, um homem de Acção.
Falem ou_tros do Escritor e do Historiador
que eu admtro~ Atr~vo-me a falar do Soldado.
Esta_ palavra e pertgosa e estreita, empregue no
s~ntt.d~ comum. Uso-a no seu mais alto e puro
stgmftcado. Façam um esforço os que a lerem
para lhe transcender o sentido quotidiano.
No Soldado que foi Jaime esta vivo e activo
o ,Po.eta que é. se"?P:e na essência. Na Morte da
A guia em potencta tnquieta, ansiosa de acção, 0
Soldado da hora que chamámos de Nun'A'lvares.
d. dE1~ rgp6! c~mo em z;8;, o interesse e a dianz·'! e a atna, da própria espécie humana, ~xi­
g~~m- aos portugueses o pressentimento, a consc:e;J_cza_ dum dever e a Prática de actos capazes de
re wur os Pecados ou a inércia dos que lhes
eram estranhos ou inimi aos
.J
{~tme Cortesão pres~entt'u e viveu essa Hora
ue Hztn'A'l
N
, ,
vares. F. ot· um dos Companheiros de
unA !~ares. Quzs ser, pôde ser mais do ue
escrztor de tale1tto ou um poHtico. Foi p/!ta.
a s~uecera_-s~ quase de qua fora médico. Renovou
s sttas tecmcas de clínico. Andou petas tribunas
~mi q_ue_ os Soldados já se batiam, para reduzir ·
d nercza ou c_lerrubar os obstáculos que lhes vete:va;n can_ztnho dos sacrifícios necessários antard/ J,gz-etr para a Trincheira. Vimos, numa
encont o egante em que a tragédia e o riso se
ravam num iluminado e ardente verso de
juventude, entre as li11has de Neuve Cltapel/e a
s~h farda cinzmta riscada, queimada pelos ~s­
tt aços que acabavam de passar sobre nós.
Con!a':am.me daqueles dias de Março de z9z8:
-O medtco atendendo, sob as granadas, na atmosfera cac(a vez mais densa de gases, os feridos que
sucumbtam, na mesa do primeiro penso sob as
granadas.
'
Vejo-o. t~mbar, ao meio dos feridos e dos
mortos, exan~m:e, cego, com os pulmões decerto dt'la~er'!dos. Adtvtnho-o, sobre a abandonada mara
tmove! como num esquife, e lúcido embora ce . . o'
na grande '?"udez que lembra à m~rte. Em tofn~
as. casas ruzam. no desvarto da noite. Tinham-no
d~txado .u'!s mtnutos sozinho, como 1tum cemitérw. Adtv_:nhe quem Possa o momento supremo.
u/magmo a ~ua ~ntrada no Hospital de Sang · A mesma tmobtltdade, a mesma cegueira a
'f!leS~a presença: Sen:z um rueixume, ouve palav;as
t,mPtedosas ou tnsensíveis. De novo o abandonam
a. morte, como ~m condenado sem remissão, Presstnto a traQ"éd:a_ rue lhe vai na alma e ele domina na ~ua tmobtltdade e no seu silêncio.
d Aaor
? a e· a / 'tgura de Lázaro que regressa
do ~;muto Para encontrar na Pátria, naqueles
_on os .m.eses de z9z8, uma nova luta, o imperaitvo, .r~ltfftoso dever duma nova luta e de novos
sacrtfzctos.
Quando .os escritores são, puderam ser Hohe_ns / a vzda lhes permitiu certas experiências
a ne es alg~mlf coisa mais acima do que, na !itera~
1
pra, basta_rta a sua modéstia ou ao seu orgulho,
odem dz.sjJensar outras glórias ou os ciumes
doutros trzunfos mais ilusórios, menos duradoiros.
Em
°
,
.
Dr. José de liagalhães Godz'nho
Advogado
Rua Nova do Almada, 8o, r.o-Dt.o
T elef.
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5520
LISBOA
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CoRTEsÃo E A EsrosA No .AoRo &.a. 's~
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Sobre indivíduo e sociedade como
elementos de explicação histÓI-.ica
Por JOEL SERRÃO
Toda a história escrita tende a tornar-se uma interpretação actual do passado. Por isso se tem dito que cada geraç~o escreve, à sua maneira, a história.
Assim é ; assim deve ser.
JAIME CORTESÃO
... busquemos a história da sociedade
e deixemos por um pouco a dos individuas.
A. HERC ULA NO
EMBORA, oomo afirma Jaime Cortesão, (I)
nos pareça incontroverso o facto de que as
vivências de uma determinada geração condicionam e~etermina.m, além do mais, o sentido
e a perspectiva da sua visão dos eventos históricos; ainda que um grande historiador, apesar
da sua grandeza, possa ter deixado na sombra
aspectos da vida do passado que a outro, mesmo
de menor envergadura, mas senhor de diversa
experiência, não passarão desapercebidos; apesar do fluxo e refluxo de ideias-forças, de prós
e de contras, de teses e de antíteses, que constituem a seiva de uma ciência- pensamos que
as sucessivas visões históricas, acaso em conflito, se não excluem inteiramente; que tendem a completar-se e superar-se,- tal como
nas próprias ciências onde o grau de rigor é
tradicionalmente maior (2}. Na história, ciência
tão complexa, (e çonsiderada como ciência, nos
seus primeiros vagidos) os contrastes são mais
chocantes, mais vivas as arestas entre esforços
de compreensão que, afinal, são complementares. Que tem de ser complementares, ou a
história não será mais do que vã ilusão, como
certos, infundamentadamente, têm pretendido.
De outro ponto de vista, há que reconhecer-se o seguinte: perante um problema, se há
ciência dele, o acordo é possível, embora possibilidade não seja sinónimo de facilidade.
(A ciência não separa- une; não cava abismos
-soterra-os!). Mas quando a ciência se transforma em discussão teórica sobre os fundamentos da própria ciência, ou seja, quando ganha
consciência critica de si mesma; quando a história se devolve em análise do que seja historiar- eis- nos perante em presa onde o acordo é
ainda mais dificil, em hora possível. Necessária
pausa para ·reflexão sobre o caminho andado, e
para descortinar, na encruzilhada do presente,
o rumo do porvir. Ponhamos um exemplo: depois
de assistirmos ao admirável esforço e à bela
realização que é o Alexandre de Gusmão e o
(x) Á CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA
-Advertência.
(~) V. em L. de Broglie, Matiere 1t Lumiere, a história das concepções sobre a natureza da luz.
T":atado de Madrid (I. 0 tomo) (I ) da autoria de
Jatme ~or~esã~, en~ontramo-nos de acordo com
a reahzaçao htstórtca porque se nos afigura
verídica. Todavia, não aceitamos a concepção
~eó~ic.a do gran~e hi~toriador sobre o papel do
md1v1duo em htstóna, que no referido livro
expressa! E daqui, que concluir? Em nossa
opinião, apenas o seguinte: quando uma disco~da.ncia. se. man~festa! em ~ez de passar-se
adtante, hngtndo tgnora-la, ha que clarificá-la
para verificar se, resistindo à crítica, era fundamentada, se a ela cedendo, era apenas um
moinho de vent~ e não um gigante de espada
desembainhada. E o que vamos tentar fazer.
Este é o caso como Jaime Cortesão o expõe:
«Às nossas tendências filosóficas o homem no
que ele tem de individual, nuclear, e indi~so­
lúvel, naquilo em que se mostrou irredutível
às determinações opressivas do ambiente social;
e na pequena ou grande parte da sua criação,
interessa sumamente. A essa rara espécie de
homens, que, pelo génio e o carácter moral, são
criadores da história, pertenceu Alexandre de
Gusmão. A grandeza da sua obra mede-se pela
resistência do meio exterior, que teve de vencer.
Para melhor medir, por conseguinte, a estatura de Alexandre de Gusmão, é necessário
começar por situá-lo no seu tempo. Fazer um
estudo da sua formação ... E, depois, do choque entre essa e as formações alheias ... Este
livro poderia, pois, resumir-se na resposta a
estas perguntas:
Até que ponto a criatura Gusmão se tornou
criador por sua vez? Foi um mero produto da
época, ou depois de haver assimilado a seiva
da história, moldou também a vida? Como?
E em que proporções?~
· Se bem entendemos este texto, dele se
podem extrair as seguintes ideias fundamentais:
I) Pela sua formação filosófica e moral,
Jaime Cortesão tende a interessar-se por tudo
quanto se lhe afigure a liberdade (evid~nt~­
mente, no sentido metafísico do termo) do tndl·
vfduo, considerado em sua original qualidade.
2) Esses indivíduos, que são raros, pelo
seu génio e carácter moral, são criadores de
história na medida em que livremente vencem
a resistência que o meio exterior lhes opõe.
Alexandre de Gusmão é um desses homens.
3) Depois de sofrer a influencia do seu
tempo, Alexandre de Gusmão liberta-se da re·
sistência do seu meio, e «molda a vida~.
Nada deveremos opor ao primeiro ponto.
Livre-arbítrio?; determinismo? A discussAo
(x) Fizemos-lhe a devida referência no número 10
do jornal LER.
continua e continuará ... Mas não importa grandemente ao nosso objectivo, neste momento,
embora o problema seja candente, e a solução
pessoal dele a chave, ou uma das chaves, das
vivências de um homem.
.
.
Quanto ao segundo ponto, amda que Jatme
Çortesão não afirme que apenas sejam criadores de história esses tais indi viduos, verifica-se
que lhes atribui papel de excessiva imp ortâ n·
cia, segundo o noss? modo de ver o .assunto .
E por isso, o exammaremos com mais vagar.
' Criadores de história ou, se se preferir, perSDnagens históricos são, segundo nos parece : I)
os homens que, individualmente, e de qualquer
modo influíram no desenrolar dos acontecimentos do seu tempo, abrindo caminho para o futuro ou retardando-o; 2) os grupos sociais, a sua
constituição, as suas actividades, os seus conflitos. Como criadores de história se nos apresentam quem tenha inventa?o a azenha ou a «coelheira ~ para a tracção antmal; quem tenha fundado o primeiro « banco ~ e ideado as suas
operações; quem tenha concebido as «cantigas
de amigo ». Como tal se nos ap resentam os
pescadores e os marnotos portugueses; os burgueses dos port )S ; os grandes e pequenos proprietários rurais; os trovadores, obscuros ou
conhecidos, etc. Os escravos, os servos da gleba, os vilãos não foram também criadores de
história? Mas, um Alvaro Pais, um João das
Regras, um Infante D. Henrique, um Alexandre de Gusmão? Se os me rgulharmos até à
medula na vida do seu tempo, sim, s.enhores:
também foram criadores de história. E que, até
não há muito, a história tem sido considerada,
predominantemente, como individualista e «heroica ~ : um guerreiro, um pol ítico, um sábio
constituem o seu complacente objecto. O resto ...
Sim: esse resto, que é tanto! essa poeira de
seres insignificantes ... - · que não tinham solí-
Dr. Fernando JJ{ayer Garçüo
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citos cronistas para lhes contar a dolorosa história!
E que deveremos nós entender claramente
pelo que Jaime Cortesão chama «resistência do
meio exterior»? De uma coisa estamos convictos: apenas haverá criação histórica, em relação a um determinado homem, quando, de algum modo, a acção individual se repercutiu,
com maior ou menor profundeza, em largas ou
estreitas camadas sociais. Quando, na acção de
um indivíduo histórico repercutem, acaso em
conflito, o pró e o contra, a tese e a antítese
que informam a ambiência social. Porque a história ou é social ou não é possível. E ser ela
social isso implicará a fragmentação do chamado «meio exterior», em vários meios, em vários círculos sociais, com as suas mentalidades,
as suas maneiras características de encarar a
realidade ... Forças ou em momentâneo equilí brio, ou em conflito, numa permanente metamorfose - acções e reacções duma realidade em
devir.
De acordo com tudo isto estará, acaso,
Jaime Cortesão. Nós é que não poderemos aceitar o que nos parece a unilateralidade com que
o problema é posto- em geral, e em particular, relativamente a Alexandre de Gusmão.
Alexandre de Gusmão, criador de história?
Sim: torna-se evidente que o foi, na medida
das suas possibilidades históricas. Todavia,
ocorre perguntar: em função de que forças em
conflito com as dominantes no seu tempo?
Livre agente como um demiurgo, ou homem
que reag e, adequadamente, a um dado conjunto
de circunstâ ncias que, por hipótese, só ele
apreende, na sua original riqueza, e que, depois,
o empolga? Conjunto esse que, mediante a sua
acção, se torna mais premente, mais claro ...
Dramáticas perguntas estas que nos lançam no
â mago de um problema que só nos atrevemos
a abordar, em homenagem ao grande historiador que é Jaime Cortesão: primazia do indivíduo?; primazia da sociedade? O ecletismo
não é o nosso forte, - e não vamos, pois, pretender iludir o grave problema que assim se
formula. Nem resolvê-lo! Verificar apenas que
um historiador pertencente a geração posterior
à de Jaime Cortesão tenderia a reduzir a acção
do indivíduo e a acentuar o papel e a força
da sociedade. Tenderia, acaso, a investigar,
com mais pertinácia, que forças, embora obscuras e mal definidas, porventura se ocultavam
por detrás do indivíduo Alexandre de Gusmão;
a que situação concreta, a que conjuntura
procurou responder a acção do obreiro do Tratado de Madrid; a que futuro objectivo, necessàriamente social, ela apartava.
Indivíduo?; sociedade?- abstracções com
excessivo conteúdo ... Abstracções que necessitam ser repensadas. Indivíduo isolado de uma
determinada sociedade? Onde se encontra ele
que nunca ninguém teve a dita de o encontrar
-essa avis rara? Mas uma sociedade, que se
não divida em « sociedades~ (profissionais, religiosas, culturais) ; uma sociedade que se não
fragmente, à mais leve análise, em compartimentos que não diremos estanques, mas claramente diferenciados-em que civilização jamais
ela existiu? Não, de ,certo, no tempo de D. João
-207-
-206-
V, pois a análise de Jaime Cortesão a fragmenta
de modo perfeitamente inteligível: «A velha
burguesia de armadores, exportadores, grandes
comerciantes e a nova dos industriais, definharam em proveito da nobreza e do clero. Em boa
verdade, a população dividia-se em duas classes:
a nobreza e o alto clero, que mandavam, e o povo
que obedecia. Uma reduzida classe média deletrados, funcionários e logistas não vincava qualquer traço forte na fisionomia da grei» (p. 79).
Tudo isto, e o mais que se poderia dizer, se
fosse caso disso, nos leva a propor a seguinte
hipótese, ponto de partida para futuras discussões e esclarecimentos: um indivíduo histórico é sempre função de dado grupo temporalmente definido ~mais restrito ou mais vasto,
com estas ou aquelas características, sofrendo
a influênda .desse mesmo grupo, por sua vez,
actuando sobre ele, com maior ou menor eficiência-:- mas apenas na medida em que esse
mesmo grupo, presente ou futuro, comporte,
aceite! a sua iniciativa, e dela comparticipe.
Se nos dissessem que, desta forma, o indivíduo, ~eixa de existir, responderíamos: um
determinado indivíduo abstracto, talvez ... ;
mas a acção de um determinado homem poderá
passar, a ser objecto de compreensão- tornar-
-se-á inteligível, o que não é, parece, coisa para
menosprezar.
, .se nos retorquisse.m ~om os exemplos «histoncos» dos grandes Indivíduos- um Alexandre Magno, um Marquês de Pombal um Napoleão, etc. - pod.eríamos, acaso, alega~, em defesa
d? .ponto de vista que defendemos, que a historia do que esses homens significaram está
em parte, por fazer ou refazer. Devemos à his'
tória individualista- «heroica» a visão qudeles possuímos; quando, pois, com ela se ar~
gumen.ta, ap~esentam-se conclusões de premissas unilaterais, como se factos apurados fossem
pa.ra demonstrar a veracidade das próprias pre:
mis.sas et;n causa. On~e está o sofisma, não
sera preciso demonstra-lo: em boa linguagem
es~ol~~~ica, chamar-se-ia a isso, uma petição de
prmcípto.
.•. Todavia, não esqueçamos que Jaime Cortesã? nos promete explicar como, e em que proporçoes,logrou Alexandre de Gusmão libertar-se
do s.eu meio; como, e em que proporções, «moldou
a vi~ a». Esper~n:os ansiosamente pela con tinuaçao do adm1ravel esforço de Jaime Cortesão
:-e com a ~er.t~za de que! no. ter~o da longa
JOrnada, a htstona- ou seJa, a mtehgibilidade
-continuará triunfante.
'
J-aillle Cortesão e a sua -últinla
obJ·a
«A fígtlra e a obra de Alexa11clre ele Gtlsmão))
Por ARMANDO MARQUES GUEDES
(Do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro,
transcrevemos, com a devida vénia, os dois
artigos que o Dr. Armando Marques Guedes
ali acaba de publicar acerca do último trabalho de Jaime Cortesão.)
I
NÃO há muitos dias, tendo ido a Coimbra
~ive a felicidade de ali encontrar o me~
velho e prezado amigo Jaime Cortesão.
Havia já bastantes anos que não o via, desde
que os azares da vida nos separaram- eu permanecendo no torrão natal e ele homiziado no
B.ra~il.
Mas sempre através do mar, permanecemos
f.iéis um e outro aos princípios, que
um d1a nos Irmanaram.
Tinha-o conhecido nos recuados tempos da
«greve académica» de 1907, quando a Academia
Portuguesa, tomando como pretexto um incidente da vida universitária, formulou reclamações, que corresponderiam, se satisfeitas, a uma
completa renovação dos processos do nosso ensino superior.
Mais tarde, já formados, servimos juntos
cama~adas,
como vereadores da Câmara Municipal do Porto
e pouco depois aquela cidade elegeu-nos seus
deputados na mesma chapa eleitoral.
A evolução da nossa política interna separou-nos um tanto, mais tarde. Jaime Cortesâo
libertou-se de todos os laços partidários e constituiu, dentro da política republicana, um grupo
independente, e sem favor nenhum ilustre, que
contava, com ele, a Raúl Proença, António Sér·
gio, Câmara Reis e Aquilino Ribeiro. E porque
esse núcleo de homens de talento e duma clara
e desinteressada pureza de intenções, traba·
lha v a então com notável acerto na direcção da
Biblioteca Nacional de Lisboa, chamou-se-lhe,
no seio de amigos e de adversários políticos
-«O grupo da Biblioteca».
Quis a desventura que ele se disperssasse
e fosse forçado a seguir os caminhos da ~es­
graça política, numa odisseia que os méntos
dos seus componentes dentro em pouco puderam sobremaneira suavizar. Para alguns mesmo
ela veio assegurar meios de vida, que não te·
riam alcançado se tivessem prosseguido na rotina da sua vida anterior. ..
Quando o conheci, após a sua formatu~a em
medicina e ele enveredara, renunciando a eHnica, pela docência liceal 1 Jaime Cortesão des-
-208-
feria com inspirada elevação os seus primeiros
voos poéticos, numa deliciosa plaquett~ de que
há pouco falámos, com que enternecida saudade por parte dele !
Depois, tendo enveredado pela política no
desempenho dum mandato parlamentar, não
esqueceu a sua inata vocação literária. E foram
então duas peças de teatro histórico, que comoveram o seu público de nobre emoção patriótica.
Mas a participação nos trabalhos do «Gn;p.o
da Biblioteca)) levou-o outra vez para a actividade política, numa elevada doutrinação, enobrecedora de toda a vida da revista «Seara
Nova)), que a devoção de Câmara .~eis continua a manter, sabem Deus e ele -e eu também
um pouco!- à custa de quantos sacrifícios.
Na fase actual da sua vida, que é a da sua
adversidade política, ele dedicou muito do seu
trabalho aos estudos históricos, orientados quase
todos na investigação da nossa epopeia das
Descobertas. Mas, nesse campo, a sua rica personalidade apresentou-se com uma face nova.
Não foi, como seria de esperar, o homem de
letras seduzido por um tema grandioso, em
cuja narrativa. bem podia da.r ex~ansão 3;0 se?estro. Não. Foi, não um «histonador htstonzante» como costumava dizer Henri de Berr
(o luminoso criador da «síntese e·m história»),
mas o investigador, que começou por definir e
fixar os dados cta Geo-política da vida do Puvo
Português, que o levaram direito à sua política
de expansão naval e ultramarina, e alicerçou
os estudos dos nossos séculos de Quatrocentos
e de Quinhentos nos ensinamentos da Cartografia e da náutica dos descobrimentos.
O seu nome enfileira a justo título na luzida teoria constituída pelo Segundo Visconde
de Santarém, por Garção Stockler, · Joaquim
Bensaúde, Duarte Leite, Luciano Pereira da
Silva, Fontoura da Costa, Gago Coutinho, Armando Cortesão e outros, a quem se deve a
reivindicação da verdade histórica, hoje incontrovertível, da· inspiração e orientação científicas das navegações dos portugueses.
Os seus contactos com esses problemas históricos já o tinham fam~liarizado com .os do
«achamento» ou reconhecimento do Brasil, que
as novas condições da sua· vida levaram, naturalmente, a alargar aos da idade adulta e do
crescimento prodigioso do grande país. Justamente a essa nova luz eu pude travar conhecimento mais seguro e mais pormenorizado da
actual actividade mental de Jaime Cortesão.
Foi que este nosso encontro em Coimbra, entre
um desfolhar de recordações que nos foram
suaves e doces, porque eram as das nossas
mocidades, me trouxe um dom precioso- o do
tomo I duma obra monumental, a que ele meteu
ombros e já vai em grande adiantamento.
Nela faz, documenta e ajuíza da vida do
grande diplomata luso-brasileiro Alexandre de
Gusmão e, em especial, da sua acção na preparação e assinatura do Tratado de Madrid, q\le
deu a feição e o contorno definitivo da Nação
Brasil~ira. Logo que regressei à minha vida
habitual dei-me a ler com o maior interesse o
grande livro, ansioso de lhe conhecer, já agora,
a sequência. Do que li, guardo uma impressão
gratíssima e dou a grande parte das suas con
clusões uma adesão formal.
São de destacar merecidamente alguns pontos de vista justos sobre homens e factos, que
representam rehabilitações-que outros tentaram mas não souberam realizar. E porque eles
representam temas da história comum das nossas duas Pátrias, e, além do mais, aparecem
como julgamentos duma história fiel, quero
dizer liberta de- quaisquer paixões, bem vale
a pena que deles diga alguma coisa aos meus
leitores, a quem estes assuntos, o livro e o seu
autor, possam merecer a simpatia intelectual
e o respeito que sempre é devido ao trabalho
probo. Será isso feito em outro dia.
II
minha carta anterior comecei a abordar
N A alg·uns
comentários à obra de Jaime Cortesão a propósito do seu último livro, cujo
I tomo trouxe como precioso souven'if do nosso
recente encontro em Coimbra. E' esse livro um
monumento erguido à memória da grande figura
do diplomata luso-brasileiro Alexandre de 6-us- ·
mão.
Este tomo I é uma espécie de prefácio à
descrição da sua acção na preparação e negociações finais do Tratado de Madrid, que foi
o instrumento diplomático que estruturou definitivamente a grande Nação Brasileira do lado
do estuário do Prata.
O Autor situa primeiro a figura do seu retratado no clima espiritual da sua época. E em
seguida descreve a história pregressã da sua
actividade política e diplomática como chefe de
missão e ministro de D. João V.
Todos estes pontos estão tocados com mão
de Mestre. A figura histórica, até aqui meramente episódica, de Alexandre de Gusmão, ganha um relevo, que o coloca no primeiro plano
da política do seu tempo. Mas, ao mesmo tempo
que a ergue nas suas justas dimensões, Jaime
Cortesão não se dispensa de levar por diante
uma obra justa de rectificação das medidas
de certos h-omens e de certos acontecimentos.
Assim, por exemplo, ele procura rehabilitar
a figura histórica do rei D João V, absolvendo-a dos exageros das críticas, de que tem sido
vítima até há pouco.
Esta obra de rehabilitação histórica de cer;-tas figuras e instituições está bastante em moda..
Certos Funk-Brentanos têm tentado, em França,,
repintar a nossos olhos alguns retratos odiosos,
como o da célebre Lucrécia Bórgia, e refazer à
história de certas instituições, como a da Bas:tilha.
A bem dizer, o movimento já começara com
o Balzac, quando antes ou num inter~a.lo da
«Comédia Humana», empreendeu rehab1htar a
rainha Catarina de Médicis ...
Entre nós, os que, não se cansando de las:timar a influência da Revolução Francesa na,.
Formação da nossa mentalidade liberal, não
deixam de macaquear a França de Maurras e
dos seus discípulos, resolver~m~ ~á um temy.o
a esta parte, «emendar a H1stona)), rehabill-
-209-
tando certas figuras históricas bâ muito julgadas, como a do Rei D. João III, a da Rainha
louca D. Maria I e até a da megera Carlota
Joaquina, bem digna filha de Maria Luísa, esposa oficial de Carlos IV de Espanha e am ás ia
do infame Godoy.
Ainda não soara a hora do Rei Magnânimo,
que condenaram todos os historiadores e historiógrafos liberais, desde Oliveira Martins ao
próprio Herculano. Muitos porventura, como
se costuma dizer, teriam querido dizer Amor
mas não lhes chegara a língua. Pois, na falha
ou insuficiência deles, cabe a tarefa a Jaime
Cortesão, que pode, esse-, fazê-la com a plena
consciência dum historiador moderno, sem facciosismo de escola nem inibições politicas de
qualquer ordem. E assim o começo de rehabilitação daquele Soberano está feito neste tomo
da grande obra em publicação, a que estou
aludindo.
Por sob os traços deformantes da sua clássica figura de rei freirático, devasso e dissipador, começam a desenhar-se com certa nitidez
os dum Rei cõnscio e cioso dos deveres do seu
ofício, sempre cuidadoso de sa 1v ar o prestígio
diplomático do seu País, e propulsor de obras
de acrescentamento da Cultura.
E, no domínio brasileiro, procurando com
acerto resolver a velha questão da colónia, do
Sacramento e dos limites da «ilha do Brasil)t,
entre o Amazonas e o estuário do Prata.
A pecha da sua louca prodigalidade é redu-
zida às suas justas proporções, até mesmo porque é preciso acerlar tanto quanto possível os
montantes dos réditos da C01ôa de Portugal
nos rendimentos da mineração brasileira do
ouro e dos diamantes.
Esta demonstração de Cortesão parece-me
inédita e sobremaneira convincente.
A prodigalidade mãos-rotas de D. João V
não podia chegar aos extremos de que a têm
acusado, até mesmo porque não teiia havido
como soi dizer-se, pano para tão grandes man~
gas. As apreciações do Historiador sobre a
realidade da economia e da política económica
daquela época nem sempre me parecem inteiramente aceitáveis sem reserva- como são
por exemplo, as que por mais duma vez aplic~
aos efeitos do Tratado de Methwen. Sobre esse
ponto haverei, porventura, de voltar ao assunto
em ocasião oportuna.
Mas os dados, que carreia para um cálculo
exacto dos «quintos» da Coróa no ouro e diamantes do Brasil, são extremamente pertinentes, interessantes e até mesmo impressionantes.
Além do mais, eles valorizam singularmente
este I tomo do livro de Jaime Cortesão sobre
«Alexandre de Gusmão e o tratado de Madrid». Para mim, eles servirão de poderoso
aperitivo e estimulante para o conhecimento
dos tomos restantes da valiosa obra, que, me
parece, infelizmente está fora do comércio, como
edição que é do Ministério das Rela~ões Exteriores do Brasil.
o Verdadeiro
Roillailce da Natl Catari11eta
A SANTIAGO-PREZADO
Ao capitão da nau, perdida, à qual,
já finda a áKua e o pão, roído o coiro,
a morte ia afundar no sorvedoiro,
surgiu e disse o Príncipe infernal:
«Ânimo! Vês além num laranjal
uma donzela em flor, areias de oiro?!
Queres aquele cândido tesoiro
e deitar ferro, à tarde, em Portugal?!
Dá-m,e a tua alma; não te peço mais!»
E o capitão, até no últinzo transe,
pôde bradar:- «Negar a fé, jamais!
Antes me trague o Mar, demónio inzundo !»
E, contra a letra ingénua do romance,
a nau Catarineta foi ao fundo . ..
(Do livro Missa da Meia-Noite e Outros Poemas)
ANTÓNIO
FROIS
(pseudónimo de Jaime Cortesão)
LIVROS
DO
BRASIL,
A CASA EDITORA QUE SE DIRIGE
CINCO
COLECÇÕES,
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DA
TODOS OS PÚBLICOS
CINCO
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COLECÇÃO DOIS MUNDOS
traduções dos melhores romances da literatura mundial
COLECÇÃO LIVROS DO BRASIL
as obras mais notáveis da moderna literatura brasileira
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as biografias vivas e palpitantes dos grandes da história
COLECÇÃO VAMPIRO
que renovou o gosto pelo género policial revelando os autores mais célebres
LIVROS QUE SE RECOMENDAM A TODOS
LIVROS QUE TODOS RECOMENDAM
LIVROS
DO
BRASIL)
L, DA -Rua Vítor Cordon) 29- LISBOA
Em resposta, e gratame11te, a Jaime Cortesão
Não, bom amigo ! - a Lenda nem a História
(embora nesta arguto sabedor!)
versão nos não deixaram ao teor
do fim que à Nau lhe dás de torva glória.
Mas grata ao meu sentir e meritória
foi a contribuição, sem vão louvor,
que em um soneto de pesquisador
me consagraste na dedicatória.
Se a queres ver, boiante e marinheira,
a Nau Catarineta aventureira,
depois das fomes, guerras, temporais,
ei-la aqui, aprestada, ao vento as velas
-pra que desígnios novos e procelas?e aqui me tens, amigo, o seu arrais !
(Na abertura do romance dramático, inédito,
Na Volta do Mar)
-210-
-211-
SANT'!AGo-PREZADO
(I940)
ACEl~<:A
DA _PO_ESIA
D_E JAIME COR,-fESÃO
Por DAVID MOURAO-FERREIRA
modernismo poético teve qualquer
O chamado
coisa de erupção vulcânica: acima do seu
relevo verdadeiro, e a par da lava mais
profunda que jorrou, ergueu ele também uma
coluna de fumo, ainda não dissipada,- a qual,
parecendo aumentar-lhe o vulto, tem contribuído para manter na obscuridade tudo quanto
lhe foi imediatamente anterior. Pelo seu carácter revolucionàriamente eruptivo, o modernismo, em vez de esclarecer ou iluminar, ensombrou a Poesia que o antecedeu. Assim, os
Poetas da Renascença Portuguesa- bem como
um Feijó, um Patrício, um João de Barrostêm sofrido um injustíssimo eclipse,-semelhante ao que sofreram, em meados do século
XVI, um Gil Vicente e os líricos do Cancioneiro
Geral, mercê da súbita nomeada dos cultores
do «stil nuovo». Em ambos os casos, porém, o
abismo será mais aparente que real; e não chega, de facto, a existir uma solução de continuidade: Sá de Miranda começara por participar
no Cancioneiro de Resende,-tal como Fernando
Pessoa principia por colaborar na A'guia. Eq uívocos? Acasos? Creio que não. Já no Cancioneiro
Geral se encontravam, ainda que em gérmen,
os temas essenciais da chamada escola italiana,
-como também na obra de muitos dos Poetas
da Renascença Portuguesa se esboçavam já algumas das futuras ««novidades» do Orfeu. Mas
é sempre ao redor do problema de novas formas
e de 'novos ritmos que a polémica se estabelece: sempre, entre uma «medida velha» e um
«stil nu<?VO». Os próprios que vêm reagir contra «formalismos» em novos «formalismos» se
entrincheiram.- Assim, o que, na Poesia desta
geração anterior ao modernismo, poderá chocar certos leitores de hoje (e, também, certos críticos,- que, pela sua função, deveriam
ser menos impressionáveis) é, principalmente,
o conjunto de algumas particularidades de expressão: por exemplo, o emprego de um vocabulário que repugna a esses leitores,- até
porque o ignoram; a tendência para a construção poemática,- o que os desorienta, pois
que, viciados de Poesia epigramática, falta-lhes
o fôlego para mais; e ainda, de quando em
quando, um tom que parecerá retórico,- mas
que é, afinal, uma das «condições» de toda a
Poesia de longa duração. Tais pormenores de
forma, acima de quaisquer divergências de
fundo, é que mantêm, creio eu, uma certa distância entre os Poetas dessa geração e grande
número de leitores novos.- Supondo, to:lavia,
que também haverá um «abismo» de sensibilidade oa de problemática, reconheceremos que
a situação dessa geração poética é algo perturbante. «Abismo• de sensibilidade ou de proble-
mática igualmente existe entre o leitor de hoje
e a Poesia dos românticos, dos árcades ou dos
preciosos seiscentistas: nestes casos, porém, a
perspectiva histórica age como factor de compreensão. No caso que nos interessa, e aceitando como válida a imputação de tal «abismo»,
verificaremos que essa geração, se está longe
de nós pela sensibilidade ou pela problemática
características, ainda se encontra demasiado
perto no tempo para permitir uma atitude compreensiva,- o que não deve, no entanto, impedir-nos de desde já a irmos tentando.
O livro com que Jaime Cortesão se estreia
na Literatura, em 1909, é precisamente um livro
de Poesia:- A Morte da A'guia. Este «poema
heroico em sete cantos» revelava, a um tempo,
um Poeta e um Homem,- o que é um fenómeno bem mais raro do que pode supor-se,
ainda que não isento de certos perigos. Nessa
sua primeira obra, patenteava-se, a par de um
iniludível dom poético, uma veemência, um
vigor combativo, um fôlego oratório (no sentido
melhor e mais alto)- que, sendo de raiz mais
humana do que lírica, o teriam levado a adoptar, de início, esse género poético- o heroico
-que não seria afinal aquele em que, ulteriormente, mais se notabilizaria.- Nutre-se a Poesia de elementos humanos,- mas não de todos;
em cada personalidade poética (assim o notou
T.-S. Eliot), certos dados da personalidade humana permanecerão apenas como catalizadores,
assistindo ou promovendo a criação,- sem que
nela participem, ou intervenham. Em A Morte
da A'guia, ainda essa misteriosa «escolha» de
elementos se não realizou: depara-se-nos, deste
modo, a tumultuária presença de aspectos que
deveriam talvez estar apenas subentendidos,
mas não expressos. E, de facto, essa veemência,
esse vigor combativo, esse fôlego oratório, encontrariam, mais tarde, e das mais di vefsas
formas, na obra e na vida de Jaime Cortesão,
o seu mais amplo e adequado desenvolvimento.
Assim, A Morte da A'guia apresenta-nos um
equívoco inicial,- que é, pJr outro lado, altamente revelador: poderíamos, a propósito, repetir, embora noutro sentido, as conhecidas
palavras de Pascal acerca de Mon taigne: é que,
também aqui, se fica espantado e encantado
por se encontrar um Homem, quando se esperaria apenas um autor.- A par de uma individualidade poética manifestava-se, pois, uma
individualidade moral, atraída por tudo quanto
é alto e singular- a águia, a árvore trágica,
a montanha- e, consequentemente, pela vida
heroica e pelas atmosferas dilatadas, puras e
-212-
rarefeitas: «A li, dessa M01ztanha erguida a prumo, f Onde o fresco: _da vida era tão escasso,
1 A Tempestade deczdta o rumo I E as dguias
abalavam pelo espaço:..- Falou-se em individualidade moral~ em individualidade poética:
mas não se julgue haver, na Poesia de Jaime
Cortesão, submissão de uma a outra, aproveitamento de uma pela outra. Nunca, de facto, se
nos depara qualquer tom apologética,- mas
tão só mente vislumbramos, através do Poeta
a •exemplaridade do homem moral. Por aquel~
fenómeno a que Bergson chamava «o movimento
retrógrado do verdadeiro», poderemos e devet;,emos hoj~ ver, em A M~rte da A'guia, a prévia garanna do que havenam de ser a obra e a
acção futuras de Jaime Corte~ão.
Três anos depois cia sua estreia poética
publica Jaime Cortesão, em «plaq uetto da R e~
nascença Portuguesa, o poemeto Esta História
é para os Anjos, cuja realização datava no
entanto, de 1910, e mais tarde inserto nd volume Glória Humilde. Poemeto de amor tcdo
ele em redondilhas, Esta Ht"stória é pdra os
Anjos representa, quer pelo tema quer pela
forma, o encontro do Poeta com o tipo de
lirismo mais adequado ao seu estro. A atracção da Altura, manifestada, como vimos em
A Morte da A'guia, vivifica igualmente 'este
poemeto,- mas, aqui, os sim bolos são outros
isentos já de qualquer sugestão «literária»: e~
vez de encarnar numa águia, numa árvore,
numa tempestade ou numa montanha, a sua
sede d.! elevação e de absoluto, o Poeta descobre-se, através do Amor, pairando «onde nem
a iVuvem erra I Onde nem astro a-ravita» ·porque
- d o a T erra, I Vê-la
lj
'
« A mar e,. pzsan
a distância
infinita:'"'·-Não se trata, como poderia supor-se,
d~ sublimar o Amor; mas de reconhecer que ele
so é possível, assim sublime, nessa elevada
atmosfera, de onde tudo o mais parece diminuído ou absurdo,- impressão magistralmente
~xpressa nestes dois versos admiráveis: «Amar
c ter a surpresa I De ver os homens sem asas 1».
Pan~lelo a este descobrimento do Amor
(«No dta _em que A vi mais perto, I Logo acordei
uoutra _Vzda»), no~amos, em Esta História é para
os An;os: um~ .discreta apologia do regresso à
Natureza. «So e homem verdadeiro f Quem viveu
de e11~ontro à Terra l/Ai! dessa raça doentia 'Que
nas czdades tzasceu». ~or estes dois aspectos (de
qu~ A Morte. da Aguza se encontrava privada),
se .Integra J~I.me Cortesão na tradição mais genurna do Linsmo português; e destes dois aspectos n~s dá mais alongada notícia o volume
~iue public~ e~ 1914:-G/~ria Humzide. Anun. ara-o, pnmeiramente, Jaime Cortesão, sob o
~tulo, menos belo mas mais si'g-nificativo de
u canto o meu Amor e a minha Terra De f~cto
·
os'
tnestas pai avr~s se encontravam, não apenas
a~mda~ deste livro, ~?as_, s~bretudo, sintetizadas
tica as frentes pnncipais da sua atitude poécad pera_nte a VIda,- desenvolvida e autentieru~Í mais _tarde, em diferentes sentidos: na
ção e Interpretação históricas· no teatro·
na acção 1· ·
•
•
mi/de s po ltlca e pedagógica.-Da Glória HuPoe . ão contemporâneas duas antologias de
das ~a popular p~r~uguesa (ambas acompanhae a ;, es~udos cnticos): o Cancioneiro Po-nutar
s '-anita-as
do p ovo p ara as E sco!as. Ao rmes,. .,
mo tempo que se manifestava o entusiasmo
pela realidade telúric~ portuguesa (gerAen te
nos seus aspectos mais amaráveis ou mais elegíacos), explicitava-se também, e~ Jaime Cortesão, o natural interesse pelo Povo que, vivendo nessa Terra e dessa Terra, a cantava, e
se cantava,- nos momentos mais variados da
s~a vida e da sua História, com uma força lírica eternamente renovada. Este interesse pelo
Povo português, através das suas criações ingénuas e profundas, é, na mesma época, acornpanh_ado_ de outro não menos importante: o
efectivo Intere_ss_e pelo d~stino desse Povo, pe;las suas cond1çoes de vida e s0brevivência. E
o tempo da participação de Jaime Cvrtesã0
como deputado, na vida política portuguesa, ~
alvorada da campanha a fa, or da intervenção
de P~rtugal na Grande Guerra,-soluçãu indispensavel para salvaguardarmos os nossos dire,tos e mantermos a nossa individualidade
histórica. Neste triplo interesse pelo passado,
pelo presente e pelo futuro da Grei, revelava-~e
não apenas o Poeta ou o homem moral:- tra
também_ o histor_iador que se esboçava. Mas é
o seu livro seguinte que melhor e mais curiosamente explicitará essa presença da História
dentro da sua Poesia.
A Divina Voluptuosidade aparece em 1923.
~ecolhe, portanto, este volume a produção puetlca de nove anos de aparente silêncio; e essa
produç~o, toda ela constituída por poemas em
redondilhas, se por um lado assinala a fixação
do P?eta num só tipo métrico- o mais grato à
Poesia de ~arácter popular-, por outro reflecte a vanada experiência existend;,l do seu
autor, durante esses anos, e a sua afirmação
noutros campos de actividélde literária. Populcr
pela forJ?~ 1 este .será, pelo significado e pela
problemattca, o ltvro menos popular de Jaime
Cortesão. Ignoro sP, a quando do seu aparecimento, se terá evocado o nome de Garrett· e
parece-me que teria sido natural evocá-lo n'a.o
s~gund~. um _c_rit~rio de influências- qu~ senam, alias, dtftceis de provar-, mas sim num
plano de puras afinidades. Num verso da G!órt'a
Humilde, aludia Jaime Cortesão a João de Deus
como seu «mestre»: ora eu creio ser muito mais
flagrante o seu parentesco com o autor das
Folhas Caídas do que com o lírico do Campo
d_e Flores. João de Deus, por aquelas deficitlncias culturais que Vitorino Nemésio tão bem
demonstrou, num excelente estudo acerca do
erotismo deste Poeta (inserto em Sob os Signos
de Agora), encontra-se nos antípodas de Jaime
Cortesão. Semelhantes, sem dúvida em ambos
s~rão certas características líricas 'e, em espe~
cial, a atracção peJa Poesia de inspiração popular: mas, em Cortesão, tal como em Garrett
há o aproveitamento cu!ticizante dessa inspira~
ção e dessas características. Em João de Deus
surpreendeu ainda Vitorino Nemésio um ero~
ti~~ o de idealização; em Garrett e no autor da
f!tvma Voluptuosidade, depara-se-nos um ero·
tlsmo de realização. João de Deus mantém-se a
grande altura antes da posse, e ante a posse,
- ~ue, no entanto, evita sempre, ou sempre
adia; Garre.tt e Cortesão ascendem principalmente depois de ela se realizar e por via de
ela se realizar. Garrett conserv~·seI contudo I
-213-
mentos-estanques entre os divers?s meios de
mais do que }.lime Cortesão, preso à rea~idade
sentir, de agir ou de pensar.: por Iss? me~mo,
que dlfaz vibrar; e, socorrendo-me de dots vera referencia a uns necessànamente Imphca a
sos célebres do grande Pasc?aes- «.A folha que
alusão a todos os outros.
tombava / Era al-ma que ~ubta» -, direi que em
Oir-se-á que depois da Divina VoluptuosiAlmeida G.1rrett há, mult-'lS vez~s, tão somente
dade, Jaime Co;tesão deixou de .se exprimir
a «folha caída»,- enquanto em Cortesão se
em verso; di-lo-á, decerto, quem _Ig?-orar que,
realiza, quase sempre, a transmutaçãn da folha
em 1940, publicou ele,.sob o pseudommo de A~­
que to.nba em alma que ascende.-Por outro
tónio F'rois, e em é~tção da ~eara Nov.a, ma_ls
lado, reconheceremos ainda em ambos (ou nã_o
uma colectânea p)éttca:- Mtssa da M.eta-Notte
foss~m amb ·JS também dramaturgos!) um iree Outros Poemas. E muito pruvável é que ninmito dramático a percorrer ce.rtas ~as su~~ poeguém reconhecesse, neste livro,. o. autor. da
shs: mnnologais embora, dir-se-Iam dzalogos
Divina Voluptuosidade ou da Glorta Hu!mlde,
algumas deld~, de tal modo se nos torna~ prede tal modo são diferentes os temas, os ntmos,
sentes- nos s~o 1·e-presentados- os dois pro0 próprio tom. No entanto ... , a quem bem
tagonistas do conflito amoroso; e at~ o. emconhecesse a obra poéti~a d~ Jaime Cortes.ão
prego dos verbos no presente. contnbui, de
não pareceria esse tom mteiramente no~o, e
maneira decisiva, para nos sentirmos coD:tempor certo 0 identificaria, por certo o h a v ena ~e
porâneos e «próximos» desses protagonistas.
localizar- não, de fac.to, em qualquer dos, do_ts
A'>sim, em poemas como Es~ada .de Jacob o.u
livros citados-mas, sim, em A Morte da A gma.
!Iora Mística de Amor, tão «tmedtatos~ ?a viÉ que a sua experiência desses dezasset~ anos
bratilidade da sua expressão,. não se duia q~e
motivara, de novo, aquele tom d.e .poesn _ h~­
lemos um lírico relato, mas stm que presencta·
roica, _ao mesmo tempo que ex1g1a o refugw
mos o próprio conflito,- que também a ~le
noutros símbolos. Agora, porém, esse tom heassistimos. s~m dúvida, esta é uma caracten~­
roico tingia-se de desencanto e dece~ção; e
tica eminentemente dramática: provocar a suisso torna bastante estranha esta Mzssa da
bita mudança do leitor. em espectado_r. E tal
Meia-Noite- simultâneament:, .como declara a
caracterí5tica possuem Igualmente muitos ~os
rubrica inicial, «drama metah.slco entre ~r~sa
poemas das Flores sem Fruto e, ~m espe;tal,
e verso, e cenário para um hlme ~o~ musica
das Folhas Caídas. Mas ... nova dlferen_ça. em
do maestro X». Outro tanto se d1ra dos resGurett, quase sempre ficam ess~s. conflt~o~ ~~
tantes poemas que constituem o volume: os
suspenso, no mesmo ~onto dramattco do IrtlCio,
motivos os mitos e as lendas, de que um e
em Jaime Cortesão, eis que eles se r~~olvem!­
outros ~e alimentam, inserem, ~o~os ~les, co~­
precisamente em virtude daquele Ja aludi~o
ceitos bem diferentes dos tradiciOna~s, e mats
impulso transcendental: «0 .m eu Amor ~ubzu
amargos mais desesperançados: o Cnsto desta
tantoiiExcedeu-me de tC!'l sorte/ Que te J:ossu~ num_
Segundd Paixão <~.desta vez não perdoa», e «Por
transporte,/ Além de mzm e da morte», ou en tã.~.
isso 0 pão da Nova Eucaristia I Torna as alm~s
«Lei descem Anjos dos Céus/f Olho~ rasos!. !Jet;o
amara-as. Sabe a fel.,; noutro poema, Andr~­
os teusfE tu em êxtase os meuslj/]a .nos be~;am?s
medab já não merec~ ser salva por Perseu, poi_s
em Deus!»; ou ainda: «E eis que a vtda se extasta,
que ante os ataques do Dragão, agora ~~.ma:s
ISobe à última ~legrialf!Jeijo em Deus. t:ucaue' sofrer gozava, j Com sórdida _impu4en~ta,
ristial».- E, assim, subltmada a s.en~ua.lldade,
Das sevícias, I Das delícias I Da. Vtolencza»' e,
harmonizados o paganismo e o cnstlam~mo, e
num soneto, «, .. contra a letra mgénua do roeuforicamente exaltados um e outro,. ~Ica de
~ance 1 A Nau Catarineta foi ao futzdo. · .».
todo justificado o título do ~olume: Dz~zna Vo-Note-se como tudo isto se encontra longe do
· i c0 '. da sua
.
luptuosidade.- Mas, neste livro, não h a apena~
tom geralmente con fIante,
e eu for
sto
esta prob-lemática a prender-nos a atenção·
Poesia: é um parênte~is de amargura, Impa~me
noutros poemas, em vez da exaltação ante essa
por duras circunstânctas. E talvez qu.e J ue
excedência do encontro amoroso, depara-se-nos
Cortesão além de todos os outros motivos q t
a procura, igualmente eufórica, .das ante~edên­
a isso 0 tenham conduzido, haja adoptado nes r~
cias desse encontro. Quem assim acredita no
livro um pseudónimo,- ta~bém por s~e~~a
Amor (e Jaime Cortesão é, sobretudo, um. Poeta
ceber do carácter parentético ~ue e~e ude vul·
do Amor) implicitamente crê na predestmação
sua atitude poética perante a VIda, atl~e lírica
dos seres. Esta crença, porém, é ap.ontada de
garmente carregada de esperança e
maneira pessoalíssima,- e n.ela ~urtos.ament;
exaltação.
.
C
ão nos dará
se reflecte além do Poeta, o histonador. «AmaImpossível saber se Jaime ortes
isa te·
mo-nos se:npre. A Sorte I Em seus mistérios. é
.
novos livros
de versos. Mas de uma co deste
sabia. 1Os meus Avós são do Norte;I O~ teus vteremos a certeza: da contínua presença e cujo
ram da Arábia»; e mais adiante: «Vtemos. das
Poeta a quem os vers?s não basta{:mcÚversos
idas erasi Com as torrentes humanas:jEu a tz, sodestino se tem cumpndo dos ; a um ideal
bre as galeras;ITu a mim, nas caravanas». Qu~r
modos, renovando, em nossos tas, de acç!io
dizer: a predestinação vem de bem longe, htsdos homens do Renascimento. Homembrimentos
0
tàricamente se radica,- provocando urna con:o
e erudito,- e quer nos fale d?s deJ~ ue 0 p 0 vo
vertigem, pela fecunda e confusa con~erg~~cla
portugueses ou de Eça de Qu~Ir?z! d~ Brasil-,
de vários tempos e raças. Este sen tlr hncacanta em Portugal ou da histonaã 0 0 Poeta se
mente em termos históricos, que me p~rece
nunca de facto, em Jaime Cortes '
uma das maiores originalidades da Poesta de
deixa 'de manl•f estar.
Jaime Cortesão, muito bem sugere, .por outro
lado, que em indivíduos da s~a estirpe- e~?
Lisboa
Dezembro de 1952.
·I
tudo, íntegros e unos- não existem comparti·
r
JAIME CORTESÃO
O
CLERC
Por A. LOBO VILELA
OI através das Cartas à Mocidade(I) que tomei
F os primeiros contactos com Jaime Cortesão.
Tinha eu chegado à «encruzilhada dos mil cami-
nhos», pressentia já a complexidade e variedade dos destinos humanos e ainda hesitava,
perplexo, sobre algumas directrizes que me
cumpria seguir. Não me seduziam os caminhos
lamacentos da subserviência, do mimetismo
psicológico, da hipocrisia pérfida ou amável,
da abdicação moral, em suma, por muito cómodos e macios que parecessem. Por outro lado,
a solene indiferença, a austera solidão moral
do individualismo estreme, também não correspondiam às exigências afectivas do meu
espírito. Sentia em mim uma reserva de energias morais suficiente para afrontar riscos e
ameaças, para suportar agruras e dissabores, a
isenção que ensina os homens a sacrificarem
conveniências e vantagens aparentes aos valores espirituais. Aliás, tinha marcado já uma
posição definida e firme por ocasião da revolta
monárquica de Mcnsanto e da Monarquia do
Norte. (2).
A primeira Carta à Moct"dade trazia, em
exergo, esta pergunta: «Queres ser um homem?»
-e procurava responder-lhe, apontando como
normas de conduta o culto da inteligência e da
bondade, a disciplina da vontade, a resistência
tenaz aos preconceitos perigosos e às solicitações mesquinhas. Aquela voz, cheia de ressonâncias proféticas e de tonalidades místicas,
tinha um timbre de autoridade moral que im~ressionava. Corria já uma lenda de heroísmo
hgada ao autor, quando fizera parte do corpo
expedicionário português à França na guerra de
1914, e à Cruz de Guerra que ostentava no peito. Considerando a intervenção de Portugal na
guerra uma imposição patriótica, oferecera-se
como voluntário. Assim, ao significado axiológico da mensagem, acrescentava-se um exemplo
de coerência e de fidelidade aos princípios e o
de se.rena coragem ante o perigo. O cenário
desc~lto no seu apelo era também o que mais
convmha à acção cívica que nos propunha:
. «Nasceste na mais bela e trágica hora da
~Ida d.a humanidade. Rodeiam-te catástrofes,
n~cêndios, ruínas, incertezas. Todavia, um vago
coro de esperança se ergue do coração dos
homens. De ti depende que essa esperança se
V_?lva em realidade e que outro canto mais anSioso e alevantado se erga sobre a terra».
(I) A primeira carta foi publicada no n.o 3 da Seara
ov:,
d~.2o de Novembro de .1:924.
ColV. F ~t;ra parte do grupo de alunos que fugira do
Não pretendiã impor-nos dogmas, nem sub-meter-nos a uma disciplina externa, agressiva
e hostil: vinha apenas convidar-nos à reflexão
e à meditação, incitar-nos a mergulhar no mais
secreto da nossa consciência moral, para a iluminarmos e realizarmos o aperfeiçoamento de
dentro para fora, excedendo-nos a cada momento: <~.Não venho impôr-te um credo. Não.
Crê em ti: Constroi a sós contigo a obra do teu
destino. Es uma fonte de vida. E deves ser a
única fonte da tua vida.»
Na época em que estas cartas foram escritas, havia, felizmente, um vasto sector da juventude que compreendia esta linguagem e via
nela a expressão das suas aspirações mais altas.
Isso explica o êxito das epístolas e o papel que
desempenharam na formação cívica dos jovens
de há trinta anos.
Acima do fatalismo bio-psíquico ergue-se a
personalidade adquirida através da experiência
individual, sob o influxo das influências sociais.
<~.Mas, de todos os factores de transformação do
indivíduo, o mais poderoso elemento de criação
pessoal do carácter é a vontade». A formação
do carácter apresentava-se, pois, como uma tarefa pessoal de progressiva consciencialização e
de incessante superação: «Carácter, no sentido
moral, quere dizer nobreza de sentimentos, independência no espírito e na acção e perseverança nos princípios através de todas as circunstâncias,.. A dificuldade da tarefa ressalta destas
normas: «A verdadeira firmeza e coragem moral
implicam uma resistência invencível a todos os
obstáculos, perigos e desgostos. As mais altas
afirmações do carácter impõem a intervenção
serena e reflectida do conjunto da personalidade. E para atingires a pura unidade e solidez
dos princípios, que definem o perfeito carácter,
mister se torna que sejas capaz de sacrificar o
bem-estar, os gestos próprios, a riqueza, a situação, a própria vida para realizar o acto mais
conforme com as tuas ideias e os teus sentimentos» (1).
O papel que cada qual desempenha na formação do seu carácter pressupõe a liberdade de
escolha das directrizes éticas; e a capacidade
de superação das tendências hereditárias, ou
mesmo adquiridas, é, por sua vez, criadora de
liberdade: «A liberdade é uma vitória contínua
sobre ti mesmo e sobre as fatalidades e as forças
da natureza» (2). Essa vitória implica uma dis-
N
ae uf' 0
1
Mthta_r para tomar parte no assalto a Monsanto e
g ra, depois, para o Norte como voluntário.
(1) Os caracteres e o carácter, in «Seara Nova» n. 0 Io
(15/3{922).
(2) Queres ser um homem livre ?, in «Seara Novu n.o 9
(I/3/97.2).
-215-
ciplina moral e uma regra p~~a. consegu_i-la.
Cortesão considera o exame penodico e ass1duo
de consciência (3) a regra mais eficaz de aperfeiçoamento moral e recomenda-o como fo_nte
de meditações fecundas, como processo de Iluminação interior. Sem negar totalmente o valor
axiológico da tradição, procura nela o elemento
vivo, que é fermento de vida sã, para o destacar
do tecido morto, com os seus gérmens de corrupção. É na época de esplendor nacional que
encontra as virtudes cívicas e as fórmulas que
podem valer como tradições re~peitáv~~s. Referindo· se ao período da epopeia mantlma, escreve ele: «Precisamente o que caracteriza essa
época e esses homens é que neles um alto sentido da liberdade se acompanhava duma compreensão igual da responsabilidade; e que a
autoridade plena dum D. João II foi compatível
com essa feição de rude desassombro nos homens. O mesmo teatro português, que nasce
desse esplendor da consciência nacional, revela
a mesma franca e irreverente independência
do espírito».
Eu creio que só é possível exercer-se uma
Dr. Nuno Rodrigues dos Santos
I
Advogado
Rua Augusta,
Telef,
2
123-2.
0
autêntica cleresia quando se -ultrapassa a esfera
racional da per!uasão e se assume uma atitude
estética de exemplaridade, porque só assim se
·c onverte em respeitoso culto o sentimento de
admiração intelectual que se desperta. Jaime
Cortesão incita a juventude à «excedência do
que foi», porque resume todo o dinamismo da
vida numa «aspiração cresce~ te· de beleza e perfeição». E também invoca razõ~s estéticas para
reivindicar direitos de cleresia: «Através de
hesitações e quedas, sempre a luz me bateu de
frente sobre o rosto. Já me sacrifiquei pelos homens todos, pela beleza da vida. Posso falan.
Na verdade, o sacrifício é a condição e a pedra
de toque de todos os apostolados, e a beleza
moral, pela sua mesma transcendência, projecta
na vida um clarão deslumbrante de eternidade.
Durante os inquietos ·e atormentados anos que
nos separam . da época em que escreveu a primeira mensagem à Mocidade, Jaime Cortesão
enriqueceu de novas e raras gemas o seu pecúlio moral e acrescentou nQvos títulos de cleresia àqueles que invocava e dão à sua voz um
tom de autoridade inconfundível com o coaxar
impertinente das rãs impantes de balofa soberba.
A obra que realizou posteriormente e a austeridade da sua conduta, através de ásperas vicissitudes e dificuldades, não desmentiram as palavras que há 30 anos dirigiu à juventude e deram
à sua cleresia novos e excepcionais motivos de
respeito ~ de admiração.
LISBOA
3708
A disciplina, in «Seara Nova)) n.o 4I (r /3/925)
(3)
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-216-
ACÊRC.A DA REPRESENTAÇÃO DO
BRASJL NO PLANISFÉRio · DITO
DE CANTINO
Ao cartólogo
Dr.
J airne
Cortesão
Pelo VISCONDE DE LAGOA
actuação do obreiro inicial até à conclusão em
Setembro ou Outubro de 1502.
O facto de a ilha da Ascenção, achada por
tógrafo português que o construiu, um fragmento
João da Nova ao findar o semestre primário de
do litoral brasileiro, em que figuram, para leste
1501, figurar no planisfério grafada em semigódo meridiano divisório, duas bandeiras das quinas, colocadas nos locais ali denominados Cabo
tico, parece, à primeira vista, condenatório da
tese que enunciamos, dada a dificuldade de
de Sam Jorge e a bera cruz, u.ma legenda alusiva
ao descobrimento de Pedro Alvares Cabral, que
estender a actuação do calígrafo original à data
envolve a segunda das referidas bandeiras, e
do regresso de João da Nova a Lisboa, em Seoito indicações toponímicas que são, no sentido
tembro de 1502.
norte-sul, cabo de Sam /urge, san miguel, Rio de
A análise cuidadosa do assunto e a constatação de que o mapa omite a ilha de Santa
sã franc 0 , A baia de todos Sanctos, porto seHelena, achada por João da Nova; mas na viagem
guro, Rio de brasi!, a bera cruz e Cabo seta Marta.
de regresso, destroi porém as ilações mais preA lessueste do cabo de Sam Jorge vê-se uma
judiciais à nossa tese e demonstra que a noilha cujo nome se lê anaresma no fac-simile do
tícia do descobrimento da Ascensão chegou ao
planisfério, nas dimensões do original, que
reino antes de ali se saber da descoberta da
acompanha a obra de Henry Harrisse sobre os
Santa Helena e portanto antes da volta do desCorte Real e as suas viagens ao Novo Mundo,
cobridor.
·
mas que pode interpretar-se como Quaresma na
Não pode assim haver-se por posterior ao
reprodução fotográfica inserta entre as páginas
regresso de João da Nova a inserção em semi268 e 269 do volume II da História da Colonização Portuguesa do Brasil.
góti'co, no planisfério em causa, da ilha Ascensão, cuja existência foi provàvelmente revelada
Na grafia destes topónimos utilizaram-se
dois tipos de letra: o semigótico na legenda,
em Portugal com considerável antecipação, talno Cabo de Sam Jorge, em porto seguro, no Rio
vez por um. dos navios desgarrados da armada
de brasil, e em a bera cruz, e o cursivo no cabo
de Pedro Alvares Cabral, que do facto teria
de são Jorge, assinalado pela repetição do topóconhecimento, quando tornava à pátria, na
nimo em semigótico e cursivo, em san miguel,
Aguada de São Braz, em Moçambique ou em
no rio de sã franco, em A baia de todos Sanctos,
outro qualquer porto onde João da Nova tocou
no Cabo de seta Marta e na ilha anaresma ou
quando demandava a ndia.
quaresma.
A arrumação ao sul e junto da Ascensão de
A dupla caligrafia originou a tese de que o · seis ilhetas denominadas Tebas, tende a dea~tor português do protótipo original se limitou
monstrar que os primeiros informes trazidos
a Inscrever ali, em caracteres semigóticos, parte
ao reino da ilha em causa, precisos no que
da legenda e os topónimos Cabo de Sam Jorge,
respeita à situação, tiveram cunho fantasista
Porto seguro e a bera cruz, e de que o cursivo
no que toca aos ilheus que indevidamente a
se usou mais tarde, em aditamentos provocados
acompanham e que não podem por sem dúvida
por descobertas e reconhecimentos posteriores
provir de quem comparticipou no descobrià conclusão do planisfério, tese condenada, a
mento.
nosso ver, pelo facto de o cursivo aparecer em
Circunscrito à região que ora nos ocupa,
~últiplos pontos da carta que eram bem conheo critério manifestado leva-nos à hipótese, que
etd~s quando da sua construção.
acalentamos, da utilização do semigótico no
litoral brasileiro para assinalar os lugares visifo Somos e~ crer que o ~ursivo, grafado por
rma descuidada que desdiz do acabamento do
t?ldos, em 15001 por navios da frota de Pedro
semigótico e denuncia precipitação foi de facto
Alvares Cabral, ou antes, para registar aqueles
·
'
de que o reino teve notícia por Gaspar de
ausado _Pa~a Inscrever
apressadamente
no mapa
Lemos, cujo regresso se fez provàvelmente com
f:leO~Issoe~ _deixadas pelo cartógrafo original,
did Cl 0 qmça antes de acabar a obra ou impevista do cabo de Sam Jorge do mapa de Cantino, identificável com o do Calcanhar ou com
por outra qualquer circunstância de lea a cabo, e para acrescentar-lhe bem assim
o São Roque de nossos dias.
que se descobriu desde que nela cessou a
A dupla grafia daquele promontório furta-se
o planisfério anónimo a que chamamos
I NSERE
de Cantino, por ignorância d.o nome do car-
Vá-l
-217 ~
.
-
/
à interpretação lógica de quem, como nós, só
através de reproduções conhece o planisfério
em causa, e presta-se assim a suposições várias
como a do recurso ao cursivo para corrigir a
inserção, descabida, em semigótico de um cabo
achado posteriormente às viagens de Cabral e
Lemos ou, vice-versa, ao semigótico para atribuir a navio da armada cabralina a descoberta
de um promontório cujo nome figurava, por
lapso, em cursivo, ou, ainda, aos dois tipos
para evidenciar dúvida quanto à frota ou navio que primeiro avistou a saliência em causa.
A circunstância de o cursivo estar junto ao
cabo, no sítio apropriado, e de o semigótico
figurar considerà velmen te deslocado para leste,
em pleno oceano e portanto em lugar inadequado, abonaria a eventualidade de este corrigir aquele e consequentemente a do achamento
do promontório por Gaspar de Lemos.
A dúvida é porém esclarecida com -acerto
pelas conclusões que o exame do original facultou ao falecido embaixador Duarte Leite, publicadas no vol. II da História da colonização
portuguesa do Brasil, segundo as quais o mapa
sofreu neste ponto uma emenda bem visivel: há
uma tira de perga,m inho sobreposta desde o
marco até A baia de todos sanctos, debaixo da
qual corria um traçado até agora desconhecido.
O artista, acrescenta Duarte Leite, tinha desenhado, aâma de Porto S eguro, uma linha de
costa dt"reita no rumo nordeste até à primitiva
situação do cabo, onde pôs a bandet"ra portuguesa; neste ponto inclinou o contôrno em ângulo
obtuso, encaminhando-o ao marco. Mais tarde,
reconhecendo a necessidade de rectijt"cação, recuou o litoral, fa zendo-o seguir a partir de
A baia de todos sanctos com a direcção norte até
S. Jorge, prolongou a haste da bandeira até
alcançar terra, quebrando-a um tanto na operação, e fez a nova ligação com o marco por meio
Dr. Agostinho de Sá Vieira
Advogado
CART A DA NAUIGAR PER LE JSOLE NOUAM.te TR ..•
IN LE PARTE DE L'JNDIA: DONO ALBERTO CANT!NO
AL S. DUCA HERCOLE.
Rua da Prata, 198-2. 0
Telef.
2
de um denteado que representa terras itzexploradas. O debuxo primitivo traduzia a noção inicial
da costa brasilet"ra, que só pode ter sido a trazida
por Gaspar de Lemos; o definitivo proveio de
informação doutro explorador.
Ora se o desenho inicial se inspirou, como
pretende o douto historiador com formal concordância nossa, nas notícias trazidas por Gaspar de Lemos ao reino, e se nele figurava,
como se nos afigura óbvio, o cabo de Sam Jorge, é quási certo que o descobrimento se deve
ao dito Lemos, no decurso da viagem de regresso a Lisboa.
A preciosa revelação que o exame atento
do original proporcionou ao embaixador Duarte
Leite leva-nos simultâneamente à conclusão
de que Cabral e Lemos viram com acerto a
configuração daquela parte do litoral brasílico
que se estende, no sentido pràticamente sudoeste-nordeste, da Baía de São Salvador ou
de todos os Santos a Pernambuco, acerto que
se não verifica do Recife ao cabo de São Roque
mas que não obstante evidencia melhor observação e maior exactidão do que a da emenda
sobreposta não pelo Cdrtógrafo original mas
sim, em nossa opinião, pela entidade incumbida da conclusão apressada do planisfério e
do acrescento de descobrimentos e observaçães posteriores à actuação do construtor primitivo.
·
A delineação errada que a carta apresentava, segundo Duarte Leite, na região que se
situa entre Pernambuco e o cabo de São Roque,
significa com basta probabilidade que Gaspar
de Lemos se afastou do litoral, a partir do
Recife, para rumar, corno lhe cumpria, a nordeste e que a vista daquele cabo foi obra dos
ventos dominantes de sueste que de novo o
impeliram para a costa, na altura do dito promontório, cuja longitude calculou com considerável desvio para leste.
A mesma dualidade de caracteres sernigóticos e cursivos se observa na seguinte legenda-título do planisfério, inserta no canto inferior esquerdo:
LISBOA
13ro
Dr. Luis Veiga
ADVOGADO
P. S1'dónio Pais) 287-2. Dt.
0
PORTO
Usaram-se, corno dissemos, nestes dizeres,
dois tipos de letra mal cuidada que desfeiam o
título de urna carta construída com esmero,
em que o gótico e semigótico de legendas destacadas denota perfeição e condigno acabamento.
Tal desleixo na grafia do título, ou seja de
uma das legendas mais em evidência e que
maior primor exigia do calígrafo, colocada por
baixo e junto da indicação, caligràficamente
perfeita, do trópico de Capricórnio, conduz à
suposição de que o cartógrafo deixou, corno é
natural, para o fim a inscrição do título do ~la­
nisfério, que não chegou a escrever por mottvo
idêntico ao que o impediu de concluir a.t?poní1nia. Não pode, por outro lado, admitir-se
que um mapa tipicamente português os~ente
título em italiano, ou antes, que ele haJa de
atribuir-se ao autor da carta.
O estudo da oJ:igem do planisfério impró-
-218-
priamente chamado de Cantino, que aqui aborchamaram de Santa Marta, um pouco ao sul
damos a título fortuito e traços largos mas a
do trópico de Capricórnio, em local onde é
que possivelmente voltaremos em trabalho esac~ntuada a curva que a costa faz entre o cabo
pecial, arreiga em nós a convicção de que se
Fno e a ilha de Santa Catarina, ou seja, com
não trata de reprodução de desaparecido protóbasta probabilidade, no sítio da ponta Guarau
tipo mas sim do próprio original português,
do~ mapas modernos, em cerca de 24°25' de
adquirido por Cantino antes da conclusão e
latitude austral, ou nas proximidades.
precipitadamente acrescentado por um italiano,
A posição que Sam michel ocupa na carta
estante em Portugal, com topónirnos que o carde Nicolau Canério, mais chegada ao Cabo sta,
tógrafo omitiu, especialmente com os que assiCroche do que ao rio de sam fransesco, e pornalam as últimas navegações lusitanas de então.
tanto em altura que corresponde ao litoral do
Entre outros argumentos subjectivos, apoia
actual estado de Paraíba, recomenda a identia nossa convicção de que se trata do próprio
ficação com o Sam Miguel dos mapas moderoriginal e não de cópia mandada executar por
nos- a ex barra de São Miguel-, no muniCantino para o duque Hércules d'Este, como é
cípio de Cabaceiras, concelho de Campina
versão corrente, a omissão do ducado de FerGrande, com formal prejuízo do porto mais
rara e da própria cidade deste nome no plaaustral de São Miguel on São Miguel dos Milanisfério, omissão que contrasta com o realce .de
gres, em 9°I7 1 lat. S. por 35°23' long. W.
que Ferrara seria objecto, pela inserção de
Quanto à ilha designada no planisfério de
bandeira, brasão ou monumento, em carta feita
Cantino por Anaresma ou Quaresma, temos
especialmente para aquele príncipe.
por sem dúvida que corresponde à Fernão de
Se o cursivo denunciasse, como se pretende,
Noronha, a despeito da arrumação errada, e
acréscimos sofrido~ pela carta depois da expepropendemos para a hipótese de a grafia em
dição para Itália, nada justificava a precipitacursivo significar que foi descoberta ou avisção que eles denotam e o prejuízo artístico que
tada pela frota de rso1-1502 ou por qualquer
o mapa tira do repúdio do gótico e semigótico
dos seus navios.
e da execução péssima do cursivo. Em tal hipóImpossibilita-nos de examinar aqui o protese os aditamentos far-se-iam com cuidado e
blema à luz da interessante argumentação que
vagar, por calígrafo que imitasse os tipos orio em baixado r Duarte Leite lhe dedica no vol.
ginais e mantivesse assim ·a bela harmonia do
II_da História da colonização portuguesa no Braconjunto. Outro tanto não sucederia se houstl o desconhecimento do original da carta
vesse urgência de preencher, antes do envio
dita de Cantina e a fragilidade das conclusões
do planisfério ao destinatário, as principais
que neste passo poderíamos basear em reprolacunas toponímicas e em enriquece-lo com a
duções cujo decalque não é isento de imperindicação dos descobrimentos mais recentes,
feição.
de que Cantino tinha indiscutível e apressada
Não hesitamos todavia em admitir, a desconveniência em chamar a si a primazia da
peito do informe de Américo Vespúcio de que
divulgação junto do duque de Ferrara.
o. regresso ao reino se fez com o propósito de
No exposto fundamentamos a opinião de
visitar portos africanos, a possibilidade de a
que a toponímia do litoral brasílico, grafada
ilha ser achada no decurso da viagem para
em cursivo na carta dita de Cantino, provém,
Portugal, feita com recurso aos ventos gerais
com provável excepção do cabo ali chamado
d~ sueste que sopram ao largo da costa braside Sam Jorge, de exploração posterior e imeleira e que fácilmente levariam à ilha em
diata ao regresso de Gaspar de Lemos a Lisquestão.
boa,, com yero~s.emelhança da de 1501-1502, que
Do descobrimento que Vespúcio s.e arroga
assim tena visitado a ex-barra de S. Miguel,
da ilha na sua quarta viagem, ou seja na que
n? município de Cabaceiras, concelho de Cam- largou de Lisboa em 1503 para continuar a
pina Grande do actual estado de Paraíba, em
exploração do litoral brasileiro, diremos que ele
c~rca de 7° lat. S., a foz do rio de São Frané reivindicado na afirmação de que stmt do di
Cisco, em 10°25' lat. S., a Baía de todos os Sangla fuora delta linea eqnociionale uerso !austro
tos ou de S. Salvador, em 13° 1 e o cabo a que
ben 3· grad. ci sidiscoperse una terra... et
trouãmo eh era una isola.
Esta pretensão não visa contudo, como à
primeira vista pode inferir-se, postergar a prioridade alheia, e isto porque o descobrimento
no decurso da expedição de 1501·I502 pode, e
deve com probabilidade, ter sido obra de outro
dos navios da frota, que não do de Vespúcio,
REPRESENTAÇOES DE CASAS
que assim só no regresso a Lisboa teria conheESTRANGEIRAS:
cimento da ilha pelo planisfério dito de Cantina ou por narrativa idêntica à que provocou
Papeis, cartolinas, artigos de escritório,
a
:Sua inserção ali em cerca de 9° lat. S., ou
artigos de desenho e arte aplicada
seJa em altura que não abonava a identificação
com a que o florentino julgou descobrir em
rso3, na altura aproximada de apenas 3 graus
Rua da Misericórdia, 25 sjloja - LISBOA
Sul.
Admissível e lógica era portanto a suposiTel. 22984:
ção de que se tratava de ilhas distintas, separadas por mais de uma centena de léguas.
EUG~NW ~ARVALH~, t.nA
I
-2!9-
JAIME CORTESÃO NO BRASIL
Cortesão- Dramaturgo
Por HENRIQUE DE BARROS
Por JOÃO PEDRO DE ANDRADE
CORTESÃO é, desde sempre, um
J AIME
grande e nobre portul{uês. Hoje, porém, a sua
figura tornou-se naczonal. O seu_l~ngo afastamento do pais, em vez de o despresttgtar ou ~e o
Jazer esquecer, S8rviu apenas para realçar a tmponência da sua estatura mental e moral.. No
Brasil, a sua preocupação constante tem stdo a
de servir o nome português, colocando na sua verdadeira perspectiva ? n~sso papel na forma_ç~o
daquela Pátria, ho;e atnda e.m plena ebuhçao
criadora. Grande parte dos diplomatas que, por
esse vasto Mundo, representam actualmente o Brasil foram discípulos de Jaime C01·tesã_o, professo:
de «História da Formação do Braszl., no instttzdo Rio Branco, e com ele aprenderam a amar
Portugal, o que já é muito; a admira~ os talentos
e as virtudes dos portugueses, o que e certl!m~n!e
muito mais; e a compreender a nossa contrtbutçao
especifica para a civilização moderna, o que vale
.
_
mais do que tudo.
Sou admirador devotado de ]atme Cortesao,
mas não possuo evidentemente títulos que me autorizem a comentar a sua obra de homem de letras
ori(J'inal e renovador e de investigador histórico
prgfundo, sagaz e rer:ovador, també~. O único
contributo que poderez trazer a esta ;u~tr:z consa._gração que se lhe presta•. é o de tr~n.sm_zttr ao publico português o. que sez do presttgt? tmenso que
usufrui no Brastl fraterno este luszada dos quatro costados, patriota como não há muitos, que ao
culto do patriotismo soube consagrar no estrangeiro, com aprumo inexcedível, as horas todas dos
seus dias de exílio.
Seja-me permiti~o citar um ep~sódio a que
assisti e de que fut, em certa medzda, protagonista. Em Outubro de I9JI, encontrando-me no
Brasil no desempenho duma missão da « Organização de Alimentação e Agricultura das Nações
Unidas., (F A O), proferi na Associação Brasileira de Imprensa uma confe:ência sobre.o «Programa de Assistência Técmca Internacwnaf., a
cargo da F AO. Entre a assistência e~contrava-se
Jaime Cortesão, inesperada mas mutto honrosamente para o orador. Concluída a palestra, o representante permanente do Brasil junto da F A O,
Dr. Adão e Silva
Médico
ALMADA
Dr. Armando Adão e Silva
Advogado
Rua de S. Julião,
Telef.
2
5415
72-2.
0
LISBOA
eng.o agrónomo João Gonçalves de Souza, fez
uma rápida apreciação do que eu dissera, do
sfgnificado da reunião. e do modo com_o decorrera.
E um hábito generaltzado no Brastl- um bom
hábito, quanto a mim- este de se comentar e debater pública e livremente uma conferência acabada de proferir. Um dos pontos que Gonçalves
de Souza mais salientou, como sendo dos mais
relevantes e st'gnificativos, foi a presença ali de
Jaime Cortesão. Conhecia bem a obra e a figura
do nosso compatriota e estava a par das missões
que desempenhava no Brasil,· sabia do apreço em
que era tido pelos dirigentes de~se País; e não
ignorava tampouco que, a servtço do Governo
Brasileiro, Jaime Cortesão continuava também a
servir Portugal. A tudo isto fez Gonçalves de
Souza referência, de tudo isto deu noticia aos seus
compatriotas reunidos para ouvir um português,
naquela tarde já quente de Outubro, numa sala
acolhedora do imponente «arranha-céun da prestigiosa e independente associação dos jornalistas
brasileiros, a famosa A. B. I.
João Gonçalves de S,o11,za conhe;ia, portanto,
muito bem a obra de ]atme Cortesao. E também
a este conhecia pessoalmente. Onde, e em que circunstâncias, o encontrara? Eis o que não tardámos também a saber. Em I948, reuniu-se em
Goiana a <~.Prim eira Conferência Brasileira de
Emigração'», organizada, sob .os auspícios 4o .Ministério das Relações Exterwres, pelo Mzntstro
Jorge Latour. Foi uma reunião muito_importante,
pela magnitude que têm para o Brastl os problemas emigratórios, e para_ ela_ foram con_vocadas
todas as autoridades nactonats na matérta, todos
os brasileiros que, sob qualquer dos seus. múltiplos aspectos, conheciam o problema da emtgraçao
e com ele lidavam. Jaime Cortesão não é, não
fin(J'e
·ser e não pretende ser brasileiro: conserva0
-se e proclama se sempre portu[Juês. Mas os .brasileiros tanto o admiram, estzmam e respettam,
tão bem sabem como ele é capaz de lhes ser útil,
que não hesitaram em o convidar, único es~ran­
geiro a quem tal fizeram, para aquel~ ar~opago
nacional destinado a discutir entre nacwnats problemas ~acionais. Cortesão proferiu em ~oia1ta,
nessa ocasião, uma conferência bri!hantísstma em
que, entre outros assuntos, abordou um prob.lema
de palpitante interesse e permanente .actua!tdqde
para os brasileiros: o da transferêttcta da cap:tal
federal do Rio de janeiro para Goiaz.
Isto foi, em síntese, o que nos contou tzaque!a
tarde João Gonçalves de Souza, agróno!""'? 1t~­
tinto, funet'oncirio muito influente do Mzn.tsterto
da Agricultura, um dos criador_es r_!o Ser~tÇO
cial Rural e membro da Comtssao N acw~za~
Política Agrária. Isto mesmo, e com gratzssmzo
prazer, transmito aos leitores da «Seara N o~m·
como uma prova- a acrescentar, aliás, a muttas
outras-do prestí(J'io que tem no Brasil este twss_o
"'
· e,1rtcaz e brseminente compatriota,
e da manetra
lhante como, longe da Pátria, honra e serve 0
nome de Portugal.
-~20-
sd;
fecundo e multímodo labor literário de
Jaime Cortesão, (fecundo no duplo aspecto
de fértil pela multiplicidade de trabalhos que
constituem a sua ficha bibliográfica, e de proveitoso pelo seu alcance e profundidade), não
nos deixa, em consciência, lastimar o seu afastamento da literatura dramática, que em determinado período o atraiu poderosamente. Tenhamos a coragem de não desejar circunscrita
a um género que nos apaixona uma actividade
que em tão variados campos, nomeadamente
no da investigação e exegese histórica, se tem
manifestado.
No entanto, para um estudo completo da
sua obra, não se poderá, no futuro, ignorar
essa pequena parte dela que são os três dramas
que de 1916 a 1921 Jaime Cortesão escreveu e
fez representar. Não anda o teatro português
tão rico de produções e de individualidades,
que possamos esquecer alguém que, num passado ainda recente, sobremaneira o honrou.
Para os que desconhecem a actividade dramatúrgica do grande polígrafo- e infelizmente
isso é possível num país onde os grandes êxitos
teatrais só excepcionalmente têm prolongada
irradiação editorial- diremos, de entrada, que
não se trata de um violino de Ingres, mais ou
menos afinado, mais ou menus precioso, que
em dada altura o artista abandonou, entre desdenhoso e enjoado.
Jaime Cortesão entrou na dramaturgia perfeitamente conhecedor das leis que regem o
desenvolvimento duma acção teatral. Nos seus
três dramas- aliás bem dissemelhantes entre
si-há um sentido da progressão do interesse
dramático que ainda hoje, após sucessivas inovações e renovações, nos parece actual. Livre
d~s vicissitudes da produção contínua. mais
ainda pela largueza do seu espírito que pela
escassez do tempo que dedicou ao teatro, não
poderia o autor de O Infante de Sagres, mesmo que por intermitências tivesse voltado a
cultivar o género, seguir o exemplo de grandes
e pequenos dramaturgos que descansam das
obras em que puseram o melhor de si próprios
n~ :o!lfecção de batagelas. Nos dois dramas
histoncos de Jaime Cortesão, como na sua peça
de ambiente moderno, sente-se a fusão completa. do autor com o seu tema e as suas figuras.
Du-se-iam escritos em momentos de transe,
quando toda a personalidade de quem os concebera vibrava no sonho ali contido e se encarnava nas figuras centrais. Assim, e porque a
sua pequenez se presta ao símile, diríamos que,
na s.ua coesão e na sua unidade, esta obra dra:fática. se. nos apresenta como as três faces
t~m tnptico em que, por singularidade, as duas
. uas laterais sobrelevassem em ~xtensão o
painel central, marcado esse, na sua brevidade,
pe a grandeza ilimitada dos horizontes.
O
Não fugiu Jaime Cortesão, nas suas duas
primeiras peças, àquela predilecção do seu espírito que depois se afirmaria em obras de índole diferente. O Infante de Sagres e Egas
Moniz representam momentos da história. As
figuras escolhidas para centro e alvo da acção
dizem, por si sós, bastante para definirem a
essência do pensamento do autor. Com efeito,
há em D. Henrique e no velho aio de Afonso
Henriques algo que os irmana. Em cada um
deles se divisa o visionário e o homem de acção
firme, que, aliados, decidem a eclosão duma nova
era. Para ambos se an tolha necessário o sacrifício dos deveres transitórios do homem comum,
cujo cumprimento se opõe à conversão do sonho em realidade. Em ambos se gera, assim,
a crise de consciência, que faz destes dramas
mais do que simples exaltação de glórias pretéritas, mas verdadeiros momentos de teatro.
. Falámos, no entanto, em dissemelhanças, e
não esquecemos, ao fazê-lo, os fortes elos que
unem estes dois dramas como criações do mesmo talento, nem o quanto Adão e Eva se i ere
na mesma Jinha de continuidade. Surgido numa
época em que o brilho de duas ou três décadas
do teatro português acusava já o desbotado
dos ouropeis, Jaime Cortesão não apareceu
com ímpetos de inovador. A tradição recente
oscilava entre o historicismo e o regionalismo,
àparte uma ou outra tentativa de adaptação das
correntes europeias aos ares lusitanos. O autor
de O Infante de Sagres seguiu aquele dos caminhos que mais horizontes abria ao seu espírito, e ergueu a figura do iniciador dos descobrimentos, rodeando-o de nautas, de cavaleiros,
de frades, e de gente do povo. Mas o drama não
é a epopeia, e ao teatro não interessa apenas
a exaltação de feitos, por muito elevados. Em
cada heroi tem de existir um homem, sob pena
de o drama mentir a si próprio, antes de mentir
ao espectador. Jaime Cortesão curvou-se sobre
o coração do Infante, e auscultou as angústias
que teria sentido o homem obrigado a sacrificar
o irmão por uma empresa que transcendia uma
vida humana. A sua volta não estão só os entusiastas; assistem também os descrentes. Os
sucessos não históricos inserem-se, assim, no
drann sem descontinuidadt", como determinantes visíveis da crise de consciência. O. Beatriz
e O. Mécia encarnam o curso normal da vida,
o amor que ignora glórias e sublimidades que
lhe são estranhas: a primeira, amando o infante
D. Fernando, não perdoa nem entende a energia
inquebrantável do heroi de Sagres; a outra é o
próprio amor feito renúncia, porque não cabe
na vida do homem que se votou a outros destinos. Para escrever a formosa alegoria, o autor
compôs alexandrinos admiráveis, alternando a
espaços com outras cadências. O lnfattte de
Sagres não revolucionou b teatro, mas reviveu
•-221
•
um género que encontra o seu similar mais
perfeito, dentro da nossa dramaturgia, na Castro, de Ferreira.
Egas Moniz, saído da mesma pena dois anos
mais tarde, oferecia tal vez maiores dificuldades,
pelos remotos tempos em que decorre a acção
e pelos perigos da linguagem semi-bárbara a
que tinha de se dar expressão teatral. Por
outro lado, o movimento dramático encontrava-se já nas velhas crónicas, pleno de lances trágicos. Jaime Cortesão saiu vencedor da empresa
usando dum mínimo de arcaísmos, adoçando
discretamente o centro violento da acção com
o fundo idílico dos amores de Fernão Mendes
da Maia e Elvira, filha de Egas Moniz. Se
na peça anterior a figura do protagonista se
erguia, soberana, eclipsando todas as demais,
em Egas Moniz a trama psicológica e o interesse teatral abrangem várias personagens.
Afonso Henriques aparece-nos de início pouco
seguro da sua realeza, e ainda no primeiro acto
assistimos aos primeiros lampejos da sua consciência de chefe. No segundo acto- um dos
mais belos do teatro histórico português, lembrando Corneille pela violência das situações
e pela energia da linguagem- o dramaturgo esbateu a crueza do príncipe fazendo-o ceder aos
rogos do aio para que libertasse sua mãe. Este
sucesso, porventura historicamente contestável,
além da virtude teatral que em si próprio possui,.faz que decorram logicamente encadeados
os .,.Ue preenchem os últimos actos, que assim
deixam de ser episódios desligados: a promessa
de Egas ao Imperador é já um acto de contrição,
que se completa com a bela e histórica cena do
quadro derradeiro.
Jaime Cortesão deu-nos em dois dramas,
por processos diferentes, duas épocas decisivas
da História. No primeiro, estudando as reacções
internas duma vida quase extática, através de
episódios exteriores; no segundo, aproveitando
Dr. Luís Francisco Rebelo
Advogado
Rua do Crucifixo, 50-1°
Telef. 31976
LISBOA
a acção intensa dum período agitado, para plasticizar um dos mais formosos e significativos
episódios da nossa História.
Em 1921, mortos alguns dos grandes actores
que tinham dado corpo às suas criações, divididos outros em companhias de acaso- acentuava-se a crise temerosa do teatro, já esboçada
antes-, Jaime Cortesão escreveu Adão e Eva
que encontrou em Alves da Cunha o intérpret~
ideal, como nas duas peças anteriores o encontrara no grande Ferreira da Silva. Diferente no
fundo e na forma, o novo drama produziu desencontro de opiniões que Câmara Reys evocou
numa conferência da época. Dum crítico que
era, aliás, notável escritor, nos lembramos de
ter lido, entre outras coisas, que Marcos, o
protagonista, era inchado de vaidade. Adão e
Eva é um quadro naturalista da época, um
pouco exagerados, aliás, os pormenores no seu
confronto com a realidade. O interior burguês
do início do drama, as frases triviais, as figuras
vulgares, não lembram de longe a violenta
atmosfera do Egas nem a exaltação heroica ou
os arroubos líricos do Infante. Mas o Egas e o
Infante estão em Marcos, o homem do futuro.
E por aqui se vincula este drama aos anteriores.
Marcos entra, e as vulgaridades de que ele parece participar, pouco a pouco transformam-se
em inquietação. E eis-nos de novo em plena
atmosfera heroica, não a do heroísmo que ergue
nacionalidades ou descobre mundos, porque no
mundo de hoje são diferentes as aspirações.
Talvez que, não fazendo decorrer toda a peça
em torno de Marcos, não lhe opondo como
adversário o trivial sr. Domingos, tornando
mais característica, mais simbólica a sua Eva,
que só nos últimos momentos do drama se
mostra à altura do companheiro, Jaime Cortesão tivesse conseguido uma peça mais intensamente teatral, no melhor sentido, que é o que
confere perdurabilidade aos símbolos ocultos
em todo o grande teatro. Mas este espírito leal
ignora tudo o que seja maquillage ou disfarce,
e o que nas suas peças históricas o poderá parecer é o que já estava implícito nos ambientes
evocados, o que, se não sucedeu, podia ter
sucedido. Paradoxalmente, a peça realista de
Jaime Cortesão é talvez a menos real. Há
em Marcos uma idealização do homem que
existiu, de facto, em Egas Moniz, em Afonso
Henriques, no Infante, mas que não vislum·
bramos no homem moderno. Assim, Marcos é
um heroi em potência, um heroi não apenas das
lutas dos homens- vemo-lo fugir da refrega
para não matar um amigo, quase um irm~o-,
mas tam bé rn da lealdade aos próprios ideais.
Colocado num ambiente de hoje- ou de 1921
- , e ouvindo-o falar como fala-que é dizer,
como sente-, é fácil tomá-lo por um inclzado
de vaidade, quando não se tem em conta a su·
blimidade a que propendem os personagens de
teatro, se não s~o títeres e neles se condensa
alguma coisa dos anseios da humanidade.
Jaime Cortesão foi um momento do teatro
português, tão pobre, tão miseramente tratado
por quem lhe dirige os destinos, que não sâo
de esperar- ainda que proliferassem talentos
do quilate deste que evocamos- muitos mo·
mentos semelhantes.
CORTESÃO E A HISTORIOGRAFIA
PORTUGUESA
Por JORGE DE MACEDO
UM~
constante-. com os seus aspectos positlvos e negativos- na historiografia na.
cwnal é que ~sta tem ~ido sempre chamada a
exercer um~ missão naciOnal. Além do seu papel. no c_onJunto ?a actividade cultural, a histori~grafla t_em tido também uma actividade
funciOnal, du_ecta .e de p_rim~ira importância,
de~tr<;> das ~xigê!lcias naciOnais e na criação da
propna naciOnalidade.
Papel funcional da história entendido em
todos. os tempos de variadas formas. Desde a
C_rónica Br~ve de Sta. Cruz a Fernão Lopes, à
historiowaha re~ascen tis ta, à argumentação
dos Lustad~s e amda até às próprias patacoadas de Frei B:rnardo de Brito, encontramos
provas ~xpressivas de uma actividade hjstórica
ao serviço de uma ideia nacional.
~s gr~ndes h~storiadores do Século XIX,
mu~to ~~Is evolut?os no ponto de vista crítico
e. ~Ientlhco, mantiveram, naturalmentê, a hist?na no plano nacional, quer em face de necess~d:'-d~s resultantes de problemas político-socia.Is Internos, quer nas polémicas internacionais em volta dos descobrimentos . No primeiro
a_specto, por exemplo, as páginas de Herculano
!Ivera~ um papel importantíssimo na forma ão
I?eológtca da burguesia liberal. Oliveira Mçar
tlns, p~r seu turno, não esquece nunca a fun~
ç~o nacional o~ social da História e constantem~~te a enuncia; deste espírito saem as páginas
cl~I.ca_s do Portugal Contemporâneo Brasil e
T~ó~~IasBportuguesas, Portugal nos rdares, etc..
1 o . raga procurou na História uma tradikâto nEacional militante, antagónica da realeza.
c. te.
b ~~crítica à historiografia portuguesa do Liq~ra tsmo t~m sido feita e com tanto mais razão
co::tro troais se dirige, não aos seus grandes
corro u ores, mas aos deformadores que ou a
lar mperam num feiticismo nacional ou a isoco:tf em pequenos problemas. Crítica que não
domi~fou. a o_b.ra desses historiadores nem no
Século XIXntt!Ico nem prát!co: ao contrário do
tória de p 0 ornem de hoJe não tem uma bishoje. A s <;>rtugal à _altura d?s problemas de
ral veio óhfa e_ consistente historiografia libemica q u: ;~ ver~zar-.se numa historiografia poléOs grandes lo r Iro ma se. pode chamar nacional.
pequeninas ~mas têm sido abandon~dos pelas
folclóricos o eses, pelos peq ~enos. Interesses
requentado ~ entã~ pelo pamel Jornalístico
dores hou '
m~neira de exposição. Historiagnificânci vedporem, que não se traíram na insi..""'''-- f .a. 0 pormenor, na conquista de um
· ff'
tilhas acll
C ou n a JUS
I I.cação de um prato de
Taime' artesão ~ um desses poucos.
Cortesão Inculca-se na tradição dos
~istor~adores nacionais de sólida formaça.o de
mvestlgad?res com perfeita noção do seu papel
na co_nsolidação da consciência nacional 1 na
p~rte Importantíssima em que esta depend e da
«lição. eloquente do passado para os homens
de hoJe»,_ nas suas próprias palavras. A maneira
c?mo se mse~e nessa tradição não é porém um
s_tmples continuar de caminhos, mas um efectivo renovar de perspectivas e é isso certamente? que mais importa: «a consciência duma
solidanedad_e e de um ideal colectivo, 0 sentimento e a Ideia duma pátria elaboram-se lentamente através desses movimentos de grupos
e das lutas entre eles suscitadas. E por via de
regra <;>s grandes homens são tanto mais representativos, quanto melhor incarnam e orientam
as necessidades e aspirações colectivas»
. E' num ~onceito de história global, d~ históna. de ?ocie~ade que Jaime Cortesão continua
a histonogr~ha ~or~uguesa. São, por certo, muitas vezes, discu t1 veis as soluções que apresenta
para os problem~s su~citados. Mas, construídas
sempre com a exigência de uma explicação conf·reta e ampla, colocam as questões num terreno
Irme de discussão com sentido. Com efeito no
debate que se tem desenvolvido à volta das
suas teses, não é possível esquecer a plataforma
em que C?rtesão as. coloca: recusa em aceitar
como explicação aquilo a que se.dá o nome de
acaso, o. que _constitui um elemento fundamental da historiografia científica.
Oco_rre, muit_as vezes, lembrar Michelet a
propósito de Jaime Cortesão: a mesma intenção de u~a história dotada de uma causalidade
com sentido humano, a mesma ideia do homem
agente . tran.sform_ador de um meio, não inerte
mas cuJas virtualidades variam com os recursos
humanos. E se em toda a obra de Cortesão essas preocupações se revelam, são porventura os
«Factores Democráticos na formação de Portugal» aquela em que se me apresentam mais·
transparente e sug~stivamente aplicadas.
p Nos «Factores Democráticos da formação de
ortugah a~teram-se radicalmente os termos
e~ que habitualmente era posto 0 problema da'
ongem da nacionalidade. A volta desse tema
glosava:n-se as soluções políticas, rácicas e
geográficas-esquemas e resumos-que afinal
fm. face das nossas preocuDações nada mai~
aztam do que adiar a que;tão. E se o forte
bom s:_nso de. Herculano lhe fez recusar as lucubraçoes ráciCas d~ um seu mestre, Thierry, e
assentar a_ sua _te_ona nas raízes mais concretas
-embora Insuficientes -dos fenómenos políticos, logo se lh~ seguiu todo um delírio de racismo
-celta~, ~eltlb~ros, visigodos, suevos, etc.ou uma mitologia de grandes homens ou ainda
-223-2~2-
uma metafísica de fronteiras naturais para
explicar a formaçao da N açao e do Estado. O pe~­
samento de Cortesão nos cFacto~es De?loc~a­
ticos» ultrapassa estes pontos de vista. A1 o ~ls­
toriador visa construir, não um ponto de vis~a
que mais ou menos se postula., ma~ uma teoria
onde efectivamente se possam mclmr os resultados das investigações erudit~s que arque.ólogos,
etnólogos, geógrafos e hist.onadores realizaram,
onde todos os factores se Integrem, ~em s~ acumularem, na formação de uma nactona!tdade.
Estamos efectivamente longe de uma s1mpl~s
enumeração num ecletismo ansioso de tranqUIlidade. O problema é post? em equação dentro
do estilo da unidade funciOnal das causas, tão
característico do pensamento h~s~órico de Cortesão, Recusando o factor geograhco- a~strac­
çao sem dinamismo- dá-lhe .logo a seguir u.m.a
importância nova quando o llga com as actividades humanas que o aproveitam e o tornam
assim um elemento humano na formação, a
Dr. Gustavo Soromenho
Advogado
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LISBOA
ocidente da península, de um_ corpo social ~em
diferenciado do resto da Ibéna. Romanos, arabes e moçárabes, aproveitando o factor geográfico, dentro dos seus recursos .e formas
próprias, enrique.ceram-no progressivamente.
Foram-se construmdo deste modo os elementos
fundamentais para a estruturação i~de~endent.e
de uma Sociedade (língua, comumcaçoes, actividade económica). A actividade urbana, que
renasceu em toda a Europa nos séculos XI e
XII ligou-se a ocidente da Península com
ess~s factores anteriores, particularmente propícios à constituição de um estado: ((Em Portu:
galé do próprio movimento das comunas que vai
nascer o conceito supremo da ~ação». Nest.a
base surge-nos uma independ~ncta como cul.mtnância de fenómenos de longmqua e próxima
origem que convergem na formação ~e um
estado que se consolida «n.um comércio ~a­
rítimo com base na agncul~ura,., Assu~:
... Antes que ao Conde ·n. Hennque fosse atnbuído o governo do condado portucalense ~a­
via-se lentamente realizado um facto! ~e. m~1or
alcance, para o futuro, .que postas. as ~n~ciatl~as
imediatamente postenores d~s mdividuos ..a
constituição de um núcleo social,. ~m povo umficado pela língua e pronto a adquuu, pela an;umação sobre o território, o carácter atlântlc.o
essencial à definição suprema da ~-ação. N~ ~c~­
d.>!nte da península havia desde Ja a posstbthd~de em marcha de um novo Estado. Os chefes
do século Xll e dos seguintes foram (o que não
lhes apouca a estatura), sim, os suscitadores
dessa promessa,..
Suscitadores, decerto. Mas Cortes~o não
perde de vista o contexto do corpo social que
os acompanha:
((A formação da nacionalidade obedece a um
processo bem mais orgânico e natural em que
as massas o povo na sua totalidade de classes,
religiões ~raças-mescla de cristãos estremes,
de moçárabes, de mouros e judeus falando to~os
um dialecto semelhante- desempenha o prm·
cipal papeh.
.
Abordado o problema nestes termos, verl·
fica-se desde logo que, no debate em torno da
origem da nacionalidade, se introduzem novos
valores que o alteram, ultrapassando os moldes
em que se apresentava no Século XI~. E é, sem
dúvida dentro destas noções geográfica~, demográfica~ económicas, sociais e culturais que ,0
proble~a fica posto, de tal forma qu~ a pró~r~:
crítica às concepções de Cortesão so podera l
ser feita dentro do caminho que as suas teses
e investigações suscitaram. Evidentemente~~:
novos dados terão que ser apresentad~s. or
esqueçamos que Cortesao nada nos diz, P
da navega·
exe mplo ' sobre os aspectos técnicos
·
" · M
para
ção atlântica e sobre a sua tmporta.ncla
d'1 o•
desenvolvimento de Portugal na Idade ~ : ;
não esqueçamos que há todo um estudo a az
sobre vias de com~~ica.ção int~rnas e ext:rMa~
portos, classes s~clats,, Ideol?gtas, etc., e!· dades
é nesta seguríssima via cheta de virtua 1 0 bra
novas que Cortesão exemplifica na sua
de
cOs Factores democráticos na formação on·
·
h'~~ t onca
· ·
encrea·
Portugah que a investigação
trará o interesse teórico e prático em se
lizar.
-224-
Para a biografia de
JAIME CORTESÃO
Por RICARDO SARAIVA
de vários outros, dois factores importantes devem ter exercido grande influência na formação esALÉM
Jaime Cortesão: o meio geográfico e o
piritual .~ e
ambiente famthar.
Nascido em Ançã, povoação situada a pequena distância de Coimbra, portanto, na região unanimemente
considerada como aquela em que melhor se fala a Ungua
portuguesa, esta circunstância contribuiu certamente, embora de maneira a principio inapreensível, para o esmero
de expressão verbal na forma literária de Jaime Cortesão,
Jogo mesmo evidenciado nos seus primeiros escritos.
Filho de António Augusto Cortesão, que, a par da sua
profissão de médico, foi um filólogo distintissimo-muito
justamente tido em grande apreço por José Leite deVasconcelos- e foi autor de obras valiosas desta especialidade, nomeadamente os seus trabalhos sobre gramática
e sobre o dicionário histórico da l!ngua portuguesa, a influência paterna em Jaime Cortesão, sob o ponto de vista
literário, foi sem dúvida bastante sensível. A valiosíssima
livraria de que o Dr. António Augusto Cortesão era possuidor, a natureza dos trabalhos em que empregava todos
os momentos que a cUnica lhe deixava livres e a sua própria profissão foram exercendo lentamente uma influência
de deslumbramento e atracção no espírito do filho.
A fam!lia fixara-se em S. João do Campo poucos anos
depois do nascimento de Jaime Cortesão. Já, portanto,
mais perto de Coimbra, onde faz o curso dos Liceus, a
influencia do meio geográfico e do ambiente familiar torna-se então mais evidente. Arrastado pela paixão dos estudos filológicos e impulsionado também pelo romântico
desejo do pai, que vislumbrara para o filho um lugar proeminente na carreira dos estudos clássicos, Jaime Cortesão,
ao terminar o liceu, matricula-se na Universidade de Coimbra, onde faz com distinção o seu primeiro ano de Grego.
Mas, como que a justificar as palavras de Max Bonnet:
c/'unité de la phitologie classique est depure convention;
cette scimce est formée d'utz Jaisceau de branches tres diVIrses de la scimce universelle». (v. La philologie classique,
Paris, r8g2, págs. 8 e g), o próprio estudo da filologia, des·
vendando-lhe a todo o momento novas perspectivas para
a actividade do pensamento humano, cria em Jaime Cortesão uma avidez de cultura, que o leva a interessar-se
cada vez mais por todos os problemas- os do passado,
os do presente e os do futuro.
Hesitando entre as Belas-Arte's e o Direito, opta por
este e matricula-se durante dois anos na respectiva Faculdade da Universidade de Coimbra. O estudo da antiguidade clássica e das maravilhosas obras artlsticas do
paSBado, aliado a uma natural vocação para o desenho,
empolgara-o por momentos, e a tal ponto que chegou a
supor ter o seu destino marcado naquele sentido.
. Ao mesmo tempo, porém, que se alargava a sua capaCld~de ~~abranger horizontes, apareciam-lhe também com
mats. nthdez os erros, os horrores e as injustiças, quer
polltlcos, económicos e sociais, tanto do passado como do
pre.sente. Uma voz consciente e livre, que, apoiada em
séria ~or~ação jurídica, se erguesse ao serviço do direito
~ da JUstiça, poderia sem dúvida contribuir, embora mo.e~tamente, para o triunfo de condições morais e mateI'I&Is que tornassem os homens melhores e os fizessem
mais feli::_es. A retórica e a eloquência haviam assim lan0 o grao de areia da sua influencia no esplrito do jovem
dC: filologia, que, decidindo-se mais tarde pelo
. do direito, o fazia também por sentir-se servido
lllvulgares faculdades oratórias.
. Nu~ a altura da vida em que os homens de certo tipo
Inquietação interior, por se julgarem prementemente
nas mais variadas direcções, se debatem no
moral da impo10sibilidade de fixação, Jaime Cor-
tesão sentia·se hesitante e perplexo perante a dificuldade
de se orientar finalmente no sentido em que melhor pudesse pôr de acordo as suas predilecções espirituais e os
anseios ainda obscuros da sua arte com a sua veemente
aspiração de ser útil à humanidade e concorrer para lhe
minorar as dores e libertá-la da miséria. Matricula-se
então nos preparatórios de Medicina, em Coimbra, pois
lhe parece que, exercida como um autentico sacerdócio, a
medicina poderá ser o veiculo mais seguro e directo da
sua quota de contribuição para o bem da humanidade.
Vai, porém, terminá-los no Porto, onde fixa residência e
onde vivem algumas pessoas da sua famllia.
O Porto parece a cidade destinada para Jaime Cortesão desenvolver a sua actividade literária, a principio
ainda hesitante; mas, ao voltar lá, decorridos poucos anos,
exerce então, quer no campo literário como no politico e
social, uma acção de destaque, que entronca directamente
num dos períodos de maior prestigio espiritual da capital
do Norte.
Fundador, com Leonardo Coimbra, Cláudio Basto e
Alvaro Pinto, da Nova Silva, revista de tendências anarquistas, Jaime Cortesão publica ai algumas das suas primeiras poesias e, na primeira página dos números r e 2,
os portraits-charges, respectivamente, de António José de
Almeida e João Chagas, além de vária outra colaboração
artlstica em todos os números, o mesmo fazendo mais
tarde em toda a colecção da I série de A Aguia. O apaixonado das Belas-Artes, que por elas havia sido tentado,
continua, sempre que pode, a prestar-lhes o culto da sua
devoção. As suas poesias não tem, porém, nada de anarq uizante, de panfletário, nem de reivindicativo: a primeira,
Meu irmão Rouxinol!, é uma poesia de sabor acentuadamente l!rico; a segunda, Boa vizinha, acusando, sobretudo
nas primeiras quadras, a influência de Cesário Verde,
quando poeta dos aspectos da vida citadina, é um caso
raro, excepcional, talvez único na poética de Jaime Cortesão. De resto, quer litarária quer artisticamente, ele é
dos menos ácidos e dos menos iconoclastas dos colaboradores da Nova Silva- revista de que apenas saíram, que
nós saibamos, quatro números, o primeiro com data de 2
de Fevereiro de 1907 e o último com a de 24 de Março do
mesmo ano.
*
"'
*
Entretanto, como era natural numa pessoa solicitada
por tantos interesses, a actividade politica tinha-o atraído
também. Era no tempo em que o Porto dispunha de uma
brilhante constelação de notáveis valores morais e espirituais. Entre outros, Sampaio Bruno exercia então grande
influência nas camadas intelectuais de todo o pais, mas
especialmente nas do Porto, seu burgo predilecto e seu
lugar de residência, quando as vicissitudes da politica o
não obrigavam a refugiar·se no estrangeiro. Encontravam-se então no auge a autoridade moral e o prestigio
intelectual de que o insigne polfgrafo disfrutava. Ciosa dos
seus pergaminhos de liberdade, a cidade do Porto, onde ·
uma nobre plêiade de republicanos mantinha aceso e brilhante o culto pelos ideais e pelos homens subjugados em
.31 de Janeiro de r8gr, acolhia e acarinhava todos aqueles
que se mostravam aptos a empunhar, nas suas mãos mais
júvens e mais robustas, o facho revolucionário que os veteranos se obstinavam, honrada e heroicamente, por
sustentar.
Em seguida ao regicfdio de r de Fevereiro de tgo8,
foi confiada a Jaime Cortesão uma missão politica de
certa importância. Vejamos o que a tal respeito ele pró·
-225-
sonalidade alheia, a tolerânci_a c?m as opiniõe~ cont~árias
prio conta no Elogio histórico de Bemardino J.!achado:
e a supremacia da consciência livre sobre a viOlência e a
.:Conheci-o (a Bernardino Machado) em 1908, dots ou trjs
força bruta.:.
..
dias após 0 regic!dio. Eu era àquele temp~ es~uda~te e
Em 1909 matricula-se na :faculdade de Medtcm_a_ de
medicina no Porto; e, como tal, estabe~ecta hgaç~~ enLisboa, onde conclui o respectivo curso, com a classt!t~a­
tre a arte mais combativa da academt,a e o com1te que
ção final de 18 valores,. intitulando-se A Arte e a M edtcma
re afava no norte a revoluçã? rep~bhcana, prestes a
a tese que apresentou ' e defendeu. O_ ano de Grego e os
~cl!dir. o inesperado acto de vtolêncta e_ desespero landois anos de Direito tinham-no obn~ado a atrasar-se,
hesitação entre os dirigentes republicanos do Porto.
embora tivessem sido altamente proveitosos para o alar~::s:s circunstâncias, fui comissio!lado para, à sdom~a
gamento .da sua cultura.
. .
.
da minha mocidade anónima, ir a Ltsboa_mdagar os _1Data de 1910 o aparecimento do seu pn~etro hvro ?-e
rigentes 0 que pensavam fazer e se tenciOnavam ou nao
versos: A Morte da Aguia (sete poemas herotcos)-escn!o
a roveitar a confusão que o atentado l~nçara entre os
entre Setembro de 1908 e Outubro de 1909, em S. Joao
ofonárquicos. Chegado à capita~, C?n.contret quase t_odos_ o_s
do Campo.
.
_
.
.
chefes republicanos presos ou mtbtdos pc:la es~rett~ vtgtÉ nesta localidade que fixa entao restdêt;tcta, ~~ e_xerlância policial. O único a quem consegui ou~:r fot Bercendo a medicina durante cerca de a~o e meto, prmctpa~nat;dino Machado. Morava ele então à _rua ~e ~ao Bernarente ocupado com a cllnica do pat, que cada ve~ mats
do onde me acolheu por volta da meta nOite, com aquela
: vai libertando da profissão para se _entre~ar m~us atusi~plicidade afectuo~a do professor, habituado a faz~r dos
radamente aos trabalhos e estudos ftlológtcos tao seus
alunos cllmaradas. Nada de dogmático ou empertigado.
preferidos.
. .
Era 0 mesmo homem do retrato de Ramalho, apenas um
Implantara-se entretanto a R:epubhca 17m ~ortu~a.l.
ouco retocado pelo tempo e pelos tempos. O corte do
Em Maio de 19II, quand? se real~zam as pr~metras e et~a belo rente re~lçava·lhe a fronte poderosa; a sarça da~
ções sob 0 regime republicano, Jatme Cortesao ai?r~senta
sobrancelhas negras dava mais brilho ao olhar penetrante,
a sua candidatura a deputa~o. pelo circulo de t.:otmbr~.
mas no rosto de traços finos, emoldurado Pt?la ~arba, o
Não contando com o patro~mto nem com o apoto ~o disorriso da su'a bonomia habitual não conseguia disfarçar
rectório do Partido Republicano Portu~uês, que tgu~las graves inquietações pela hora que passava.
d
te os negou a grande parte de candtdatos que e~tao
"Sai de sua casa cerca das quatro da madruga a, com
:e~ropuseram ao sufrágio eleitoral em todo o pais,Jatme
uma inexprimível impressão de embaraço, er;n que se
Cortesão, dispondo apenas dos seus recur~os e dos
debatiam a admiração pela sua forte personah~ade e a
seus amigos e admiradores para a sus~entaçao da ca~­
reacção de estranheza às suas ideias, então tão dtferentes
panha eleitoral, consegue, ~mbora_ venctdo pelos can~t­
das minhas. Durante aquelas longas h~ras empenhou-se
datos patrocinados pelo dtrectóno, obter . uma vot~çao
em convencer-me, para que eu, por mmha vez, persuafinal que não anda muito longe da dos candtd~t~s elettos.
disse os dirigentes portuenses a 9.ue não pensassem por
Volta novamente ao Porto em 1912. Dectdtra abanentão em violências e, ao contráno, ~e. prepar~s:em,~?r
donar a medicina e procurar mai~ u_ma vez novos _rumos
uma propaganda intensa, para as prox:ma~ eletçoes. d ~
ara a sua vida. Em contacto dtáno C?m_ o sof~tme_nto
só em seu entender, os republicanos nao dtspunham u.
~lheio, durante o exercício da sll:a p::oh~sao climca! t.m1
ch efe militar de grande prestigio,_ mas sup~nha n_ecessán~
ressionara-o profundamente a mehcácta da medtcu~a
completar a revolução nos espintos. Asstm o VI e d 'ouv
;empre que se tinha visto em face de c!lsos p~ra os quats
através da sua vida e até ao dia em que nos despe tm~s
a ciência, impotente por enqu~nto, nao podt~ fornecer
pela última vez, procurando convencer pela p_alavri e nar~
soluções satisfatórias. Sabia mutto be~ que !!ao e_ra mopelas armas, e proclamando sempre o respeito pe a pe
tivo para desesperar e que as conq~tstas_ ctent!hcas se
tinham feito sempre, e certan;tente contm_uan_am a fazer-se,
à custa de obstinado esp!nto de pertmácta: de toda _a
espécie de contrariedades, amargura~, ~~cepçoes e sa_cnfícios. Mas, apesar disso, a s~a senst.bthdade, ang~sttada
perante 0 impossivel e o inevitável, vtbrava e . funciOnava
como 0 Indice mais seguro de que _noutras dtrecções estaria sem dúvida traçado o seu destmo.
*
*
Um órgão de defesa da culltlra portttguesa revelador da actividade dos nossos. escritores, ensaístas,
poetas, artistas e cientistas. jornal a~ert~ a toda~ as
correntes literárias e a todas as tendenctas estéttcas,
LER é um mensageiro da culttera nacional, respeitando
e servindo todas as sttas tonalidades e expressões.
LITERATURA
PORTUGUESA
LITERATURA ESTRANGEIRA
BIBLIOGRAFIA- ARTES PLÁSTICAS
MÚSICA- TEATRO- CINEMA- CRíTICA
Um iornal que Informa e esclarece
o b i e a t i v a m .e n te o p 6 b I i c o'
12 páginas Ilustradas..... 3$00
r8$oo
6 números
Assinaturas (pag. adiantado) { 12 números 32$oo
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Estrangeiro: 12 números.
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em selos do correio.
ADMlNISTRA.ÇÃO
PUBLICAÇOES EUROPA-AMÉRICA
Rua da Barroca, 4
LISBOA
*
Instala-se no Porto, concorre ao magistéri~ secundário e entra como professor para o Lice~ Ro~ngues ~e
Freitas. Inicia-se então uma das fas~s ma~s activas, mats
brilhantes e de maior interesse da vtda agttada e fecunda
de Jaime Cortesão. É um dos fundadores da J!.en~scença
Portu uesa _sócio n.o r - figurando desde o mlcto tam·
bém fomo um dos seus administradores. ": RenaJ/e:f:
toma a seu cargo 0 reaparecimento da revtsta_ A d.f ã~
que entra então na sua II série; mas, p~ra ma~o~i~o~s os
da sua propaganda e para tornar n;tats con .e Pariuobjectivos que se propõe, de~ide pubhcar A _V,~~ na imguesa quinzenário que funcwna como seu org
lh'do
prens'a e para cuja direcção Jaime Cortesão.; ~c;a/de~
Nem 0 tempo nem o espaço nos permt e
p tu·
senvolvida noticia da actividade da RenascenJ.a. e~es
guesa, nem da influência que ela e os s_eus. l[~fectual:
colaboradores e adeptos exerceram na vtda tn
basta
moral e politica da socieda~e portugue~a- r?r ago~:le pelembrar que a ac~ão de J:u.me Corte~ao ot, na-jorto das
riodo áureo da vtda espmtual da ctdade ·âod Nâo se
mais úteis e proveitosas para. a comum a e. m cu'as
limita a dirigir e orientar A Vtda Porttl'fi'!'esa, ~e desltacolunas colabora frequentem~nte, s_endo tgna das Ut~i·
que a série de artigos que ah pub~tcou acer~a Jes cola·
versidades Populares, nem se confma como ;tm~ Aguia.
borador embora de grande envergadura, e. dores da
Como u'm dos mais ardentes e entusiastas ena Portu·
Universidade Popular ~o. Porto, que a R~~~s~:f: activos
gzusa tinha fundado, e ~gua_lm_e~te um
a-se a toda a
propagandistas da nova mstttutçao. D_eslo~ dos objecti·
parte onde é necessário levar a eXJ?hcaça_o para fazer
vos da Universidade Popular e do t?<:e~ttvNão fica, po·
crescer e triunfar a obra acabada e tmctar.
-226-
rém aqui a sua dedicada colaboração: inscreve-se no
núm'ero dos professores que, graciosa e abnegadamente,
vão reger os cursos criados pela Universidade Popular.
Além de palestras e conferências proferidas aqui e acolá
e da regência de um curso especial de História Pátria,
dá nomeadamente duas outras séries de lições, uma sobre
0 mesmo tema e a outra àcerca de A obra e a vida de Camilo
Castelo Branco.
São daquela época as edições do seu livro de contos
Daquém e Dalém Morte e, em poesia, da cplaquette, Esta
história é para os Anjos e do volume Glória Humilde,
transparecendo claramente, em especial neste último,
a influência do meio geográfico na formação poética do
autor. Quer na escolha dos motivos, quer na preferência
do local onde quase toda a sua poesia é concebida e realizada- S. João do Campo-, quer até na presença da
Natureza em grande parte dos seus versos, com referências e constantes invocações ao ambiente e à própria flora
da região coimbrã, se verifica a acção exercida pelo meio
geográfico no espírito de Jaime Cortesão. Embora tenha
afirmado desde sempre marcadas características de uma
personalidade forte e indeyendente, não deixou por isso
de ser igualmente sensive à influência paterna, que se
exerceu sobretudo nos aspectos morais da austeridade e
da honra, nos espirituais do culto das letras e das artes
e até em certa semelhança de atitudes perante a vida, em
que se destacam a escolha da profissão e ·o seu abandono
em face de prementes e inelutáveis solicitações noutro
sentido.
Quando a acção meritória e inteligente da Renascença
Portuguesa se ia alastrando a todo o país, no cumprimento de um programa de ensino, educação e cultura,
que os dirigentes republicanos haviam lamentàvelmente
descurado depois de implantada a República, a eclosão
da Guerra Europeia, em Agosto de 1914, veio agravar a
situação politica em Portugal. Avizinhava-se a primeira
grande crise da República Portuguesa. Realmente, a brusca
demissão imposta pelo presidente Arriaga ao ministério
chefiado pelo sr. VItor Hugo de Azevedo Coutinho e a
entrega do governo, com poderes ditatoriais, ao general
Pimenta de Castro, constituindo uma verdadeira afronta
ao Parlamento, eram o ponto de partida para pôr em conflito o legislativo com o executivo. Organizado em 28 de
Janeiro de 1915, o governo da presidência de Pimenta de
Castro foi obrigado a abandonar o poder perante o movimento revolucionário de 14 de Maio do mesmo ano. Com
Alexandre Braga e outros, Jaime Cortesão fizera parte da
junta revolucionária do Porto. Mas, antes, assumira já, de
r de Julho de 1914 a 4 de Março de 1915, a direcção do
«diário democrático da tarde• O Norte, em cujo primeiro
número havia escrito, entre outras afirmações contidas
no artigo de fundo intitulado A nossa Politica:« ... propomo-nos defender também a República e esta dentro do
ideal mais avançado que a possa nortean. Teve vida efémera O Norte; mas, apesar disso, contribuiu deveras, no
último mês da sua existência, para criar no Porto o ambiente de protesto e resistência ao governo de Pimenta
de Castro. E é o Porto que logo em seguida, durante o
acto eleitoral de 13 de Junho, elege Jaime Cortesão deputado.
*
*
*
Arduas batalhas o aguardavam, porém, na capital
quando aqui se instala para tomar assento na Câmara dos
~~p.utados e para prosseguir na campanha patriótica que
mtctara no Porto e de que O Norte fôra porta-voz, Convencido de que a situação de Portugal, o seu futuro como
n~ção de vastos domínios ultramarinos, a sua posição de
ahada da Inglaterra e o imperativo moral a que a Nação
deveria obedecer num momento em que a luta se travava
~ntre .a força e o direito aconselhavam os portugueses a
tntervtr directa e activamente ao lado das potências que
- a despeito de quaisquer restrições, recentes ou longinqbuas, que houvessem de ser-lhes feitas- se batiam tamé_m por inegáveis razões de superior ordem moral,
Jatme Cortesão entra então ardorosamente na propaganda entusiástica da participação de Portugal na guerra
ao l~~o das chamadas nações aliadas. Passa-se isto numa
ocastao em que alguns dos mais belos esplritos de Por::gal, constituindo um escol admirável de homens cujas
ades oscilam entre os 20 e os 50 anos, tornam a peito eselarecer os seus concidadãos àcerca dos motivos morais e
patrióticos da intervenção de Portugal na guerra e dar-lhes
exemplo convincente. Os idealistas dessa enorme fange, composta na sua quase totalidade por adeptos do
i.
regime repuhlicano, oferecem-se para bater-se nos campos de batalha, quer na França quer em Africa, em cujos
campos é vertido o sangue generoso e ardente de muitos
deles. A elevadís~tima percentagem daqueles de entre eles
que não mais voltaram à Pátria explica até certo ponto o
desamparo em que, em determinados momentos, a República se encontrou depois. Mas não foi apenas em África
e em França que sucumbiram muitos dos voluntários republicanos que preferiram bater-se a ficar comodamente
na Pátria ou a anichar-se em trabalhos subalternos: no ar
e no mar muitos outros foram mortos. Inútil citar nomes
que andam na memória e no coração de todos os verdadeiros patriotas.
Não obstante poder aproveitar-se, caso fOsse mobilizado, das imunidades parlamentares que lhe davam a faculdade de opção -servir no Parlamento ou servir no
Exército-Jaime Cortesão, coerente com a sua pregação
patriótica, antecipa-se e oferece-se também como voluntãrio. Depois de um curto estágio nos hospitais e de aperfeiçoamento na especialização oto-rino-laringológica junto
do falecido professor Carlos de Melo, segue para França
como oficial-médico-miliciano. Chegado ao campo de batalha, desgostoso por ter sido colocado numa base, afastada da frente, requer para ser transferido para as primeiras linhas- e vê prontamente satisfeito o seu pedido,
que, como é natural, não deixa de causar estranheza num
ou noutro dos seus camaradas, pois os lugares das bases
eram muito apetecidos e disputados.
Gravemente ferido em campanha durante a ofensiva
alemã de Março de 1918, é vitima dos gases, que o cegam
por algum tempo. O seu comportamento perante o inimigo proporciona-lhe ser condecorado com a Cruz d&
Guerra e receber o louvor que passamos a transcrever:
«1918- Agosto, Louvado pela muita coragem e al/ruismo
que manifestou, tendo durante 8 dias em circunstáncias
difíceis e apesar do seu ma·n ifesto mau estado de saúde
assegurado sõzinho os serviços clinicos do Batalhão de Infantaria n.o 2.)1 a que pertencia, e porque tendo na tarde
de 21 de Março último sido atingido directamente o seu
posto de socorros pelo bombardeamento inimigo, com o
maior sangue frio tratou num local próximo vários feri·
dos de graviáade, só baixando a uma ambulância, por
intoxicação de gases de gravidade, só terminado o seu serviço.» (v. ((Boletim do Corpo Expedicionário Português,
em França:.).
Além dos sofrimentos de toda a ordem e da saúde
grandemente abalada, da condecoração que lhe foi confe·
rida e do louvor com que foi galardoado, Jaime Cortesão
trouxe também, do formidando conflito humano em que
esteve envolvido, um livro precioso-Memórias da Grande
Guerra-, que, spbre ser uma obra de alto valor literário,
constitui um documento impressionante àcerca daquela
conturbada época e um dos testemunhos de maior interesse e da mais profunda seriedade sobre as razões e as
condições da participação de Portugal na guerra de I9I4·
·I918. No ponto de vista político, é um livro absolutamente
indispensável ao conhecimento das lutas partidárias travadas em Portugal e da crise do próprio Partido Republicano Português, à apreciação de alguns chefes políticos e
de algumas figuras militares de então e ao estudo objectivo de certos aspectos de tão agitado perfodo da vida
portuguesa. Ao publicá-lo, já depois de extintos os últimos rumores da chamada Monarquia do Norte, Jaime
Cortesão fê-lo no momento em que, orientadas as forças
politicas nacionais no sentido de nova arrumação, ele
próprio se podia considerar liberto dos compromissos
partidários que anos antes havia contrafdo. Só então abandonou o Partido Democrático. Continuav.a, porém, fiel
aos ideais de Democracia, pugnando sempre pela -realização das reformas politicas, sociais e económicas preconizadas pela extrema esquerda republicana.
*
•
•
Antes de ter partido para a guerra, fizera Jaime Cortesão a sua estreia de autor dramático, em r5 de Dezembro de 1916, com a peça O lttfa11te de SaJ!res, que na
noite da primeira representação, no antigo Teatro República (actualmente Cinema S. Luis), obtém um triunfo
retumbante e dá aso a uma grande manifestação patriótica, amplamente justificada pelo tema e pelo momento
de exaltação nacional que então decorria. A frustrada
tentativa revolucionária da antevéspera, 13 de Dezembro,
que ficou conhecida pela revolta do Nabão em virtude do
seu mais categorizado dirigente, Machado Santos, ter sido
preso na cidade de Tomar, onde contava assumir o
comando das tropas que porventura se sublevassem, concorrera em parte para a eclosão da manifestação patriótica tendo o público mostrado dessa maneira o seu repúdio' por todas as manobras que tivessem por o~jec~i'::o
desviar ou enfraquecer o esforço da nossa contribuiçao
de guerra contra a Alemanha.
Três anos depois, em 9 de Janeiro de 1919, estreia-se
também no mesmo Teatro a peça Egas Moniz, a qual,
confirmando em absoluto o talento de dramaturgo revelado por Jaime Cortesão em O bzfantede Sagres, alcança
igualmente um grande êxito. Por curiosa coincidência,
esta segunda peça de Jaime Cortesão, tal como sucedera
com a primeira, é estreada num momento político particularmente delicado: na véspera de deflagrar o fracassado
movimento republicano conhecido pela revolução de Santarém, e a ro dias de se instalar no Porto a Junta Monárquica do Norte, que durante cerca de um mês, depois de
ter instaurado o regime cognominado da traulilâtzia, leva
a morte e o terror a toda a parte onde chega o seu poder
e põe, de facto, em grave risco as próprias instituições
republicanas de Portugal. Daqui se infere fàcilmente que,
mercê de circunstâncias que nesta ocasião não podemos
pormenorizar, o ambiente político do pais se encontrava
deveras perturbado. Por isso e por se saber que o autor
de Egas Moniz partira voluntàriamente para a guerra,
onde tinha ficado ferido de gravidade, e por se conhecer
a sua odisseia desde o seu regresso à Pátria, a quase
totalidade do público do Teatro República aproveita o
ensejo da representação de Egas Moniz para tributar a
Jaime Cortesão delirantes aclamações e calorosos aplauI!IOS de simpatia pela sua nobre íigura moral, de admiração pelo seu talento e de solidariedade com o seu elevado
patriotismo.
Dissabores, sobressaltos e inquietações lhe tinham
estado, na verdade, reservados quando voltou da guerra.
Sidónio Pais, enclausurado num gâchis politico de que já
não conseguiria libertar-se, por a isso se opor uma facção
importante dos seus sequazes- facção q ne, constituída
quase em absoluto por aventureiros polfticos e por indivíduos intelectualmente inferiores, se apostava apenas em
comprometer e minar a posição do próprio ditador, com
intuitos não confessados mas de fácil compreensão-,
permitira, talvez relutante e contrafeito, como então se
dizia, que alguns dos seus adeptos tivessem instituído
um regime de violência!! e terror que não poderia aumentar nunca o seu prestigio pessoal nem solidificar a
sua situação politica. Pouco depois de ter regressado a
Portugal, Jaime Cortesão,_ ainda convalescente, foi vitima
da arbitrariedade e da perseguição politicas, sendo mantido preso durante algum tempo e sujeito a rigorosa incomunicabilidade.
Entretanto a epidemia de gripe pneumónica tinha
invadido o pais inteiro, ceifando vidas aos milhares. É
então que lhe levantam a incomunicabilidade e o encarregam- a ele, também já atacado pela pneumónicade, na -sua qualidade de médico, ministrar assistência
clínica aos seus companheiros de cativeiro politico, a
ferros na Penitenciária de Coimbra.
Já liberto, encontrava-se em Lisboa quando, na manhã de 23 de Janeiro de 19191 os monárquicos, certos do
seu triunfo, se instalam com a quase totalidade da guarnição militar da capital na Serra de Monsanto, donde,
LORD
5
secundando o gesto de Paiva Couceiro no Porto, intimam
o estranho governo presidido pelo republicano João
Tamagnini Barbosa a render-se e a dar por finda a República em Portugal.
Foi naquela memorável manhã que falei pela primeira vez a Jaime Cortesão. Com três amigos meus e
mais dois indivíduos desconhecidos, fomos, nós seis, os
primeiros civis a aparecer no Parque Eduardo VII, para
onde nos arrastara a avidez de noticias e o ardente desejo
de contribuirmos, com a modéstia da nossa participação
para a defesa das instituições republicanas, tão grave~
mente ameaçadas naquele perigosfssimo transe. O Parque, então muito mais vasto, era muito diferente do que
é actualmente. Não lhe haviam sido feitas ainda as enormes amputações a que o sujeitaram nas últimas duas décadas e meia para efeitos das construções urbanas dentro
das quais o foram comprimindo e asfixiando; e, embora
estivesse ainda por se desenvolver o seu povoamento
florestal, o certo é que a vastidão das suas dimensões
constituía, mais do que uma esperança, a segura garantia de que a população de Lisboa poderia possuir um dia
intra-muros e em lugar acessível, um verdadeiro e bel~
parque- de que continua a carecer. De resto, todo 0
local em volta do actual Parque Eduardo VII pouco se
assemelhava àquele que vemos agora.
Uma diminuta força da marinha de guerra,, composta
de cerca deviute homens, acabava de chegar numa camionnltte à Rua de Campolide. Decorridos poucos instantes,
uma patrulha de cavalaria da Guarda Republicana, que
anteriormente avançara a um reconhecimento, apresentou-se de novo, com a informação de que, a avaliar pelo
que lhe fOra possível observar de longe, lhe parecia que
na Serra de Monsanto se estava preparando um movimento de tropas com a intenção de marcharem sobre o
Parque. Ficara-lhe mesmo a impressão de que a marcha se
teria iniciado já. Como que coincidindo com esta informação, nós verificávamos que a artilharia de Monsanto,
depois de disparar alguns tiros sobre o Parque, onde o
rebentamento de umas três granadas nos obrigara a protegermo-nos e a procurarmos abrigo detrás dos morros
ali existentes, em1,1decera havia um bocado, depois de uma
granada ter cafdo perto do Pátio do Geraldes. Calados e
resolutos, os marinheiros apressaram-se a retirar da
camionnette sacos de areia que começaram a colocar na
rua, ao longo da embocadura donde melhor se divisava
Monsanto e se dominava a parte baixa de Campolide.
Entretanto o comandante Vilarinho, depois de ter ouvido
a patrulha da Guarda Republicana, trocou impressões
com o único oficial de marinha seu subalterno, ali presente,
e transmitiu em seguida qualquer missão ao encarregado da camiotznette, porque esta partiu imediatamente.
Talvez cheio de terríveis apreensões, o comandante apresentava, porém, um aspecto de grande sP.renidade. Realmente, era preciso ser e mostrar-se confiante, apesar da
situação desesperada em que a República se encon.trava.
Indizível angústia se apossara de nós, ao ouvirmos
da boca dos dois soldados da Guarda Republicana o
relato do seu reconhecimento, Víamos já a República
derrotada e banida. Quando Unhamos passado junto do
quartel de artilharia r, a sentinela do portão informara-nos da saída, durante a noite, de todo o regimento, em
cujo quartel tinha fiÇ,ado apenas a pequena força indispensável à sua guarda. Aquela hora já sabíamos também que
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E XISTÊNCIAS
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-2~8-
tecas. nu. ma sociedade com aspirações a elevar-se e a
contnbu1r para o melhor exercício do espírito humano
As _Regras de Catalogação, notável trabalho da autoria d~
Raul Proença; o acolhimento encomiástico que foi tributa~o à te.se apresentada por ambos ao Congresso de Bibhotecános, re~mido e~ Paris em 1923; as facilidades que
todo~ o~ estud10s~s e mvestigadores encontravam então
na Biblioteca NaciOnal de Lisboa, e o centro de atracção
~m que e!a se tornara de alguns dos mais altos valores
Intel~ctuais po_r!ugueses, independentemente das suas
convicções poh!1cas e dos seus credos religiosos, são 0
t~stemunho ~ais eloquente de quanto aquela Biblioteca
tmha progredido. e do utilfssimo papel que e 8 tava desempenhando na sociedade portuguesa. Mas a paixão poUtica
e a má:vontade pessoalforam suficientemente fortes para
d~str?-Ir tudo: E .certo que, passados anos, 0 professor
F1delmo de Figueiredo reconheceu que a paixão 0 arrasta~a quando na Biblioteca Nacional de Lisboa sucedeu a
Ja1me Cortesã<;>, a quem depois tem manifestado publicamente no .Brasil o elevado apreço em que lhe tem a honra
e o valor mte~ectual. ~mbora isto possa, no ponto de vista
pessoal, ter ImpressiOnado Jaime Cortesão a verdade
porém, é. que o mal praticado ficou sem r~médio, con:
grave preJ.ufzo da cultura nacional, e muitas pessoas, por
~esconhec!~ento dos factos posteriores, terão sido mantidas na duv1da àcer.ca de afir':lações que então se fizeram.
As consequências da pnmeira Guerra Europeia tinham .entretanto começado a fazer-se sentir em todos os
domf~Ios ~a activi<iade humana de maneira mais profunda .e ~nqu1etante do que geralmente se previra. Dir-se-ia
ass1s.t1rmos a u!D malogro total de prognósticos, planos e
]AIME CoRTEsÃo E JosÉ RÉGIO EM PoRTALEGRE
~revisões. A VIda no mundo tinha mudado muito e conEM D EZEM BRO DE 1952
'
ti.nuava a mudar. Onde as mudanças não haviam chegado
amda nos seus .aspectos exteriores ou através de transformações polftJca~, económi~as e sociais, tinha chegado,
porém, o seu_ anseio, que se Instalara no inquieto e alvoro_çado coraçao dos homens. Estava ainda no esboço uma
o_ ~esm? _acontece.ra em quase todos os quarteis da guarcnse que em breve as~umil}a proporções patéticas e camçao mth_tar de Lisboa. Para opor à vaga de ferro e fogo
tas_tróhcas .. É desses dias, tao caracterizados como os de
que ?um mstante para o ou!ro poderia cobrir a capital e
hoJe pela Incerteza da alma humana em busca de novos
dommá-la completamente, Ignorávamos o que se estaria
rumos que lhe propiciem um pouco mais de felicidade
passando no. r:sto da. cidade; mas, para obstar à tomada
so.bre a terra, a peça de Jaime Cortesão A dão e Eva que
daq~~la pos1çao de Importância vital e possivelmente
fo1 rep~esentada pela primeira vez no Teatro do Gi~ásio,
decJsJva para a facção que a retivesse, havia ali no alto
em Ma10 de 192r. Sob as formas transitórias da época
d~ ~otund.a,_ talvez nem vinte marinheiros e udta meia
decorrente, o aut<;>r traz para a literatura dramática portuduz1a ~e c1v1s ansiosos e inermes. Com a sua aparência
âuesa o seu depoimento acerca de problemas de significatranquila, o comandante Vilarinho sossegava todavia a
o etern_? e condensa nele algumas das dúvidas e das innossa alma, cuja inquietação estava sem dúvida reflecu'da
tc:_rrogaçoes atormentadoras do seu espírito e do seu coranos olhos. alarmados com que o olhávamos a distância e
çao d~rante o largo período em que se tinha entregado,
em ~e~pe1to. E certo é que uma mortiça esperança que
e dadJVos~rnente continuava a entregar-se, a tudo o que
pers1st~ra sempre em não se extinguir obstinava-se em
lhe parecia poder conc<;>rrer para o bem da humanidade.
sobreviVer n_os nossos coraçõee.
Algun~ m_eses depois aparecia, em 15 de Outubro de
Co~v:nc_Idos de que talvez noutros locais pudéssemos
1921, o pnmeiro número da Seara Nova. Foi então que
~er ma1s ute1s à causa da República e de que urgia colaestabelecemos rel~ções pessoais, datando dai uma sólida
or~ssemos quanto antes na sua defesa, retrocedemos
e nunca ~e~m~nhda amizade entre ambos. Nem mais
cammho. Do alto da Rua de Artilharia r avistámos um
tarde as VICI~situdes da vida e os seus infortúnios, a senumeroso gr.up~ de pessoas que, ao longo do muro do
paração :a distância f~ram capazes de a levar a um afroud~a~tel,
.s.e d1~1g1a na nossa direcção. Ainda a distância,
xa~ento, pelo contráno, a adversidade tem-na radicado
1
~tlngui Imediatamente a figura de Jaime Cortesão já de
e Cimentado cada vez mais.
rr;:m conhecida havia muito. Corri ao encontro d~s que
. J?e tão afirmada e reafirmada a necessidade que então
~ c:_gavam e comuniquei o que se passava a Jaime Cor~:C: 1 ~ha de uma .Publicação como a Seara Nova, nem vale
ue~ao, que, . f~rdado de capitão-médico, tinha a seu lado
Ja a pena repeti-la. De resto, a pertinácia da sua sobrevivind~utro .oficial! em quem, no momento, mal reparei, só
vência, apesar das terríveis dificuldades que têm marcado
mais tarde a saber que era o alferes-miliciano
~ sua c?nturbadfssima existência, é o melhor e 0 mais
R au. 1 pmu1to
roença.
1mpr~ss10nan~e testemunho da sua razão de ser.
de ~tpós dois dias de int_ensa luta, as forças monárquicas
E quase Impossível neste momento dar uma notícia
falad obsanto_ a~abaram fmalmente por capitular. Ao tão
exacta, emb<;>ra pouco desenvolvida, da actividade multio amburrto da Rotunda, em Outubro de 1910 J·unt ava-se
moda de Jaime Cortesão durante o período agitado e
agora 0 '
alma d 0
nao ~enos surpr~endente milagre que a
operoso que vai .de Janeiro de 1919 a Fevereiro de 1927
escalad J:ov~ republicano de L1sboa tinha operado na
em espe:1al depois da fundação da Seara Nova.
'
de 1
a eróica da Serra de Monsanto, naquele Janeiro
_ Politicamente, a actividade de Jaime Cortesão, a par919,
tir de O~tubro de 1921, anda sempre dependente da acção
e d~s atitudes do .Gru.po Seara Nova, a cujos princípios
*
*
<: one~tação doutnnána se tem mantido inalteràvelmente
f1el. Nao vamos agora alongar· nos num assunto que já foi
meaJ: -5 de Abril ~o .mesmo ano é Jaime Cortesão notratado no n.o _r.ooo ~~ Seara Nova, de 26 de Outubro de
Intima c~~:ector ~a Bibhote;a Nacional de Lisboa. Ar, em
1946 (v. A acçao po!JtJca da «Seara Nova-. artigo de David
de chefe d 0boraça~ com Rau.I Proença, que exercia o cargo
rerreua), rn~s não podemos deixar de no~ referir a certos
realiza e f ~ ~ervlços. Té<:,mcos daquele estabelecimento,
a<;tos que aJ':dam a co.nhecer melhor a personalidade de
lb~rit
aci Ita a r_eahzaçao de uma obra de elevruHssimo
Jaime Cortesao. Unammemente escolhido pelo Grupo
rea)iz~d no~ do mimos da cultura. Principal inspirador e
e sempre com o voto caloroso de Raúl Proença, para sed
ça u or os asp~ctos técnicos de tal obra é Raúl Proendelegado em to.dos os trabalhos de carácter politico onde
lpli~are~ ~orno antigo funcionário da Biblioteca Nacional
fOsse necessáno levar a representação da Seara Nova
eno uranle anos a sua penetrante inteligência e ;
de todas as incumbências se desempenhou sempre a con~
e rme ~u tura ao estudo profundo, pormenorizado
te~to geral dos seus camaradas do Grupo tendo para tal
exaustivo, da função e do funcionamento das biblio~
êxito contribuído invariàvelmente a sua inteligência, a um
1
-229-
tempo esclarecedora e compreensiva, os pri~ores da sua
educação e 0 seu tacto diplomático de negociador e co;t·
graçador _faculdades e qualidades inv~lgares que tao
bem se harmonizam com o seu carácter mflexível e com
eu sentimento de permanente fidelidade à palavra dada
0 15
e aos compromissos assumidos.
__
..
Depois da malsinada tentativa da Uma o Cwtca e _da
inútil colaboração da Seara Nova numa ou_tra te~tattva
que pelo seu hibridismo e pelas obscuras u~tençoes de
alg~ns dos outros intervenientes, nunca dev_ena ter m_erecido a sua adesão (referimo-nos à. tent~ttva que flcou
conhecida pelos Home~ts livres-destgnaçao_que os acodtecimentos ulteriores vieram provar ter stdo, a~ém e
caricata inteiramente paradoxal no que respeitava a
alguns dos seus componentes), o Grupo Sear~ Nova, em
face da situação política nacional, ?~c1de-se fm~lmente a
tomar parte mais saliente na actlvtdade politlca portuguesa.
· de
Em Dezembro de 1923, A lvaro de C astro, d epo1s
ter convidado particularmente Jaime ~o:te~ã? e de ter
insistido para que este participasse no mimsteno que fOra
encarregado de constitúir, dirige, ante a recusa com que
depara convite formal e oficial à Seara Nova para que
esta ddsigne as individualidades que a de;re~ representar no governo a organizar, para as quais hcam desde
logo reservadas três pastas.
.
Reunido 0 Grupo Seara Nova e ?~po1~ de largo
debate sobre a participação ou não-parhctpaçao _ no g~­
verno de Alvaro de Castro, o Grupo resolve ~or_ ftm aceitar 0 convite que lhe é dirigido e, por unanu:uda~e, _escolhe Jaime Cort~s~o p~ra rr:inistro da Instruçao Publ_Ica.
A perspectiva mimstenal na~ agradav_a, porém, a Jaime
Cortesão, a quem já noutras c1rcustâncias Alvar? de Castro convidara uma vez e voltará, passados d01s !lleses,
a convidar de novo para ministro, e a que_m ~ntónw José
de Almeida, quando presidente da Repub_l!ca_, mandara
chamar mais de uma vez com o mesmo obJectlvo, e com
especial empenho em determinado t;nomento em _que de15ejava vê-lo na pasta dos Negóctos Estrangetros. De
resto, basta ler os periódicos da época decorre~te entre
192o e 1926 e especialmente os de carácter polfhco, para
verificar q u'antas vezes o nome de J aiO? e C?rtesão aparece
citado entre os dos cidadãos ministenáve1s. Ocorna t_u.do
isto numa ocasião em que a actividade meramente po~thca
lhe não interessava; em grande parte, ~s~a sua atltude
filiava-se nas razões expostas nas Memorzas da Grande
Guerra, no sincero desejo de não le_var por enquant<;> _a
Seara Nova para a intervenção politica dtrecta e n~ dificuldade em pOr de acordo ~s. absorvent_es e agitadas
preocupações inerentes à actlvtdade poUtica _c<;>m a n~­
cessidade de calma meditação e sossego espmtual exigidos pelos seus trabalhos literário~, sobretudo pelos de
carácter histórico, em cujos domínios aca~ar~ d~ e?trar
resolutamente. Nesta disposição, não l~e f01_dtfícJl hbertar-se do encargo que lhe fOra cornet1do. Ja no automóvel, a caminho da casa de Alvaro de Castro! d?nde ~e­
veria dirigir-se depois ao Presidente da Rel(ubhca, a ftm
de assumir o compromisso de honra, aprove1ta o pretexto
salvador que uma das pessoas que o acompanhavam
su aeriu e passados momentos, regressa de novo à Bibliote;a Naci~nal- aliviado por não se: m~nistro ..
O sr. António Sérgio, que havta stdo dest&nado pe!o
Grupo para sobraçar uma outra pasta, transttou entao
para a da Instrução Pública.
. .
Qua,ndo depoi~, em. Dezembro de 192;4, é constllutdo
0 governo da pres1dênc1a do sr. José Dom_mgues dos Sa_ntos a Seara Nova resolve dar-lhe lambem o seu apow,
co~siderando, até certo ponto, l?omo seu representante no
referido ministério o sr. Ezequiel de Campos, que ent~ava
nele ~para poder tentar a execução de algumas medidas
fundamentais do programa da Seara Nova)) (v. Seara
Nova, n.o 39, de Novembro-Dezem_bro de 1924) e a quem
havia sido confiada a pasta da Agncultura.
Em todos os actos oficiais, quer se trate dos da posse
dos ministros que representam a Seara Nova o~ a que~
esta dá 0 seu apoio ou se trate de levar ~ adesao, a _opinião e os pontos de vi~~a do Gr~po a quaisquer manifestações públicas, a reumoes partlculares ou a _outros actos
solenes pelo seu significa?o e transcendência, é sempre
Jaime Cortesão o escolhido para, em nome da Sear_a
Nova falar e fazer as afirmações definidoras das suas atltude; decisões e compromissos.
.
.
Em Novembro de 1925, num momento poU~tc_o_parh­
cularmente melindroso em virtude das inc~mpatibthdades
partidárias e das graves ameaças que palravam so_br~ a
República, 0 Grupo Seara Nova, pe:_ant~ ?s. apelos mststentes e quase dramáticos que lhe sao dtngtdos de ~oda a
parte em especial de determinados sectores r~publ!canos
da c~pital, anui .a que individualidades ~umd~s da sua
representação se apresentei? ao su_frágw_ el~Itoral. ~
Seara Nova não era um parhdo politico, na? tmh_a orga
nizado nunca o cadastro dos seus amigo_s e stmpatJzante~,
não possuía nem tivera nunca a veletdade de possutr
força eleitoral no sentido político que lhe é d~do pelos
partidos organizados, sempre atento~ à flutuaçao numérica dos filiádos inscritos nos seus regtstos ~ às oper_a~õ~s
de recenseamento nas respectivas repartlções of~ctais.
Sabia, pois, muito bem que a participação de ~all:d!dat?s
seus nas eleições teria apenas um valor de siyuf~caçao
simbólica: despertar do marasmo p_ol!ti~o a massa merte
dos indiferentes e dar pública solldanedad_e aos representantes dos partidos e agrupamentos_polítJcos que participassem das mesmas listas e se obrigassem,_ caso fossem eleitos, a pregar e defender, duran.te a legis~atura, o
programa de realizBções em que previamente tiv~~~em
acordado. E esperava contribuir assim p~ra a clanhcação do ambiente político e para ? renasc1me_nto da confiança nas possibilidades do regime repubhcano e na
capacidade, aliás já bastas vezes comprovada, de alguns
dos estadistas da Repú~lica.
.
_
.
Embora contrariado teve Ja1me Cortesao de ace1tar
a indicação do seu nom~ para figu_rar na li&ta que a oposição tencionava apresentar a_o el~1torado de L~sbo~. ~!!
as negociações para a orgamzaçao de u~a cohgaça?
esquerdas- que deveria englobar _o Pa~tldo Repubhcan~
da Esquerda Democrática (da presidência do sr. Jo~é ?o
mingues dos Santos), o Partido Republicano Radica' 0
Partido Socialista Português, o Grupo Seara Nova, ele-
IMPRENSA
LIBANIO DA SILvA I
Trav. do Fala-Só, 24
L
I
S
B
*
O
TRABA1.HOS
GRÁFICOS
EM TODOS
OS GÉNEROS
-230. -
A
mentos das classes operarias e, possivelmente, a Acção
Republicana (agrupamento chefiado por Alvaro de Castro)- fracassaram perante dificuldades que na ocasião
não puderam ser superadas. Duas semanas depois do acto
eleitoral para as Câmaras legiSl'ativas, realizaram-se, em
22 de Novembro de 1925, as eleições de parte dos corpos
administrativos (Câmaras Municipais e procuradores às
Juntas Gerais dos Distritos). O nome de Jaime Cortesão
foi então incluído na lista apresentada pela conjunção radical-esquerdista, constituída pelos Partidos Radical e da
Esquerda Democrática e por elementos de vários sectores das classes trabalhadoras. Sem ter tomado parte na
organização da referida conjunção, a Seara Nova via-a,
porém,_com t<?da a simpatia; _mas a ver~ade é que nada
havia s1do deliberado no sentido de ca ndidatos seus participarem nas listas que ela apresentasse. Foi até com
certa surpresa que Jaime Cortesão soube que o seu nome
ia ser proposto ao eleitorado, embora, quando de maneira
sumária o assunto havia sido ventilado, o Grupo se tivesse
fixado, em principio, no nome dele e no de José Rodrigues Miguéis. E Jaime Cortesão foi realmente eleito para
a Câmara Municipal de Lisboa.
*
*
*
Nos domínios da activida:le intelectual e da criação
literária, e também científica, desde a fundação da Seara
Nova, Jaime Cortesão, além dos trabalhos a que já fizemos referencia, publicou, em 1923, o livro de ~poemas em
redondilhas» Divina Voluptuosidade, cujo estro, buscando
embora temas tão diferentes dos da sua produção poética
anterior, o confirmou no lugar que já lhe havia sido consignado na vasta galeria dos poetas portugueses. A sua
frequente colaboração nas próprias colunas desta Revista,
onde se arquivam alguns notáveis artigos seus em que
trata dos mais variados assuntos, tanto de política interna
como de questões internacionais ou referentes às possessões ultramarinas portuguesas, ficou assinalada especialmente pela série das suas Cartas à Mocidade. Os leitores
da Seara Nova dessa época e cujas idades variam actualmente entre os 45 e os 55 anos têm decerto bem presente
a impressão benéfica, salutar, que aquelas cartas lhes deixavam quando acabavam de as ler. Isto explica o grande
exito obtido mais tarde pela sua publicação em volume:
as sucessivas edições feitas pela Seara Nova tem-se esgotado _s empre ràpidamente.
E de todos os tempos, como já acentuámos, o interesse e a curiosidade de Jaime Cortesão por todas as
manifestações do espírito humano. A sua avidez de conhecer e compreender- sem que compreender seja sinónimo
de concordar- para enriquecer depois a formulação dos
seus juízos e poder integrá-los da maneira mais consciente em todos os actos da sua vida, desde os do pensamento aos do procedimento, tem sido sempre uma das
características da sua forte personalidade. Evitamos propositadamente, neste momento, o emprego da palavra
cultura. Dele não se poderá dizer nunca: ~on voit les plus
grands hommes, savants, artistes, hommes politiques, absolument ignorants et balbutiants, donc barbares, en dehors
de leur spécia/ité. Et /e plus extraordinaire est que l'o~z
recherche letu atüorité en dehors justement de leur spécialité.r. (v. Civilisation Nouvelle, n. 0 I, pág. 3, Abril-Junho
de 1938, Paris). Pôde, por isso, Jaime Cortesão tratar sempre com probidade e competencia todas as questões em
que decidiu intervir.
São já daquela época algumas das suas mais brilhantes e sólidas palestras e conferencias. Destacamos
duas delas, que foram como que os longínquos prefácios
de d_uas obras posteriores. Quem tiver assistido à conferencta que, promovida pela União Intelectual Portuguesa,
ele fez no salão nobre do Teatro de S. Carlos àcerca de
Santo António de Lisboa e tiver lido mais tarde o seu trabalho Eça de Queiroz e a questão social, publicado em 1949,
~erta~ent~ terá verificado que o papel desempenhado pelo
ranciscan1smo na Europa, mas particularmente em Por~ugal, 1:_1unca mais deixou de interessar o espírito do conl~encista de então. Pelas conversas que temos tido com
da• me Cortesão durante a sua actual visita à Pátria, poemos mesmo acrescentar que o franciscanismo constitui
bYora J.?ara ele um dos elementos mais valiosos dum prolema Importantíssimo para o esclarecimento e compreen0 de alguns passos ainda muito obscuros da história de
q~rtu_gal- problema que Jaime Cortesão, com os dados
ea e Jâ possui e com outros que continua recolhendo,
Pera resolver quando escrever uma obra, que será
p
talvez a obra capital da sua vastis sima bibliografia, acerca
de O culto do Espírito Santo em Portugal.
A outra conferência, que efectuou na Universidade
Livre, de Lisboa, em Janeiro de 1925, subordinada ao
titulo As relações entre a geografia e a história de Portugal, foi um acontecimento notável no nosso meio intelectual. Jaime Cortesão pôs em evid ê ncia as características de diferenciação entre portugueses e espanhóis,
tendo sugerido ao numeroso e atento auditório que a independência de Portu gal lhe é assegurada não somente por
motivos de condicionalismo geográfico, mas também, e
sobretudo, por outros factores de grande irn portância,
embora até então mal estudados e definidos, e por uma
espécie de mandato hi s tórico que empurra a Nação para
uma missão atlântic<~. Foi ele então - e parece ter sido o
primeiro a fazê -lo de m a neira tão ampla e concludentequem pôs em destaque a parte muito importante que os
portos, os rios e os seu s estuários, com as flutuações provenientes dos assoreamentos, e, duma maneira geral, toda
a costa marítima de Portugal desempenharam na formação
e no crescimento da nacionalidade. Já outros autores se
haviam referido ao facto, mas nenhum o tinha feito ainda
com aquele desenvolvimento. Pode-se dizer que este trabalho foi também o prólogo doutro estudo magnifico e convincente- Os factores democráticos tza forma ção de Porltt·
gal -, publicado no I. 0 volume da História do Regimen
Rept~blicano em Porlttgal, onde Jaime Cortesão, além de ,
alargar os pontos de vista expendidos na sua conferênci~
de 1925, prova, mediante cerrada argumentação científica e apoiando-se constantemente em documentação de
reconhecida autoridade, que a formação de Portugal · e o
seu desenvolvimento até aos momentos culminantes da
sua história são de inegável raiz democrática.
Poderíamos talvez afirmar que a arte de conferencista
é nele urna faculdade nata, como exuberantemente o atestam todas as suas conferências do passado e mais brilhantemente ainda, se é possível, aquelas que, em Lisboa e
no Porto, fez agora, durante a sua curta permanência na
Pátria. Nas da capital, tanto no Instituto Frances corno na
Sociedade de Geografia, Jaime Cortesão não só deliciou
e maravilhou o numerosíssimo e escolhido auditório, perante o qual falou da maneira mais clara e persuasiva,
empregando sempre a linguagem rigorosamente justa e
apropriada, como também lhe ministrou duas verdadeiras
lições àcerca do Brasil e das condições em que se fez
a sua formação e se tem operado o seu desenvolvimento
desde os recuados tempos em que os Portuguese.s aportaram a terras de Santa Cruz. A respeito da primeira conferência que efectuou no Porto, no Club Fenianos, um dos
ouvintes, o Dr. Veiga Pires, escreveu-nos o que segue:
« ... foi um exito inigualável. De opinião unânime, foi
a melhor realizada na vida dos menores de 40 anos no
Porto, porque nunca ouviram nada semelhante todos
aqueles que já não viveram o passado de 26. Todos esses
ou viram pela primeira vez um orador português. Arte
verbal e miolo. Eles próprios, e indivíduos cultivados,
o afirmaram >.
Esta sua arte verbal, que tanto prende e .eo!Jlpolga,
aparece sempre que ele é forçado a falar, não apenas
em público mas mesmo em presença de restrito número
de pessoas, quando o seu espírito, atraído ou tocado por
qualquer facto, sugestão ou circunstância, como que sente
a necessidade: irrefreável de se elevar e expandir. Apesar
de tantos anos decorridos, nunca esqueci o gratíssimo prazer de o ter ouvido, numa frígida manhã de Dezembro de
1928, proferir, dentro do próprio templo, uma autêntica
conferencia àcerca da Notre-Dame de Paris. O auditório
era constituído por Aquilino Ribeiro e por mim. No final,
o Aquilino, que conhecia Paris muito bem, pois já lá tinha vivido durante bastante tempo, endereçou a Jaime
Cortesão palavras ;de agradecimento e louvor, com as
quais sublinhou o encanto que ele e eu hav!amos sentido.
E ainda há dias, ao recordar o caso a Aquilino Ribeiro,
este comentou: «Com o Jaime é sempre assim. Além do
dom da palavra, tem aquela cultura enciclopédica que lhe
permite falar de tudo à vontade».
Eu fazia então a minha primeira visita a Paris, onde
tive também a sorte de ter Raúl Proença como guia dos
aspectos exteriores da capital fancesa. Dias depois Alexandre Vieira e eu visitámos o Museu do Lotwre, na
companhia de Jaime Cortesão, que igualmente nos deliciou com várias pequenas palestras sugeridas pelas obras
de arte que contemplávamos, relacionando-as com os
seus autores, êpocas e escolas. Mas os comentários de
Jaime Cortesão quando da visita. à Notre-Dame foram os
que mais nos impressionaram. E natural que o ambiente
-231-
·sossegado e austero da catedral, ao contrário do do Louvre, onde o movimento, as vozes e o sussurro dos visitantes não eram tão propícios à concentração espiritual,
tivessem favorecido tambem quer o conferencista quer o
auditório. As apreci •ções da técnica artlstica, do momento
histórico, da evolução económica, das condições do trab.\lho humano, das lutas sociais, de tudo, enfim, o que ca racte-rizou a longa e rude caminhada da Idade-Média foi
magi~tralmente descrito e evidenciado por Jaime Cortesão, já então na posse do espírito de síntese tão indispensável, de futuro, aos seus estudos históricos mais importantes.
A sua palestra na Notre- Dame não poderia surpreender quem, como nós, tivesse lido o seu livro ltá1ia A z t{/,
aparecido em 1922, no qual os dons de estilista de Jaime
Cortesão, as suas f.tculdades de observação profunda, a
cultura clássica, herdada, em parte, do contacto com o
estudo da filologia e o sentido humano e humanista da
sua sensibilidade se expõem exuberantemente e o afirmam como pensador e prosador de largo fôlego.
Passados anos, tivemos novamente a ventura de tê-lo
como nosso guia nas visitas aos Museus do Prado e de
Arte Moderna, de Madrid, onde o ouvimos com o mesmo
deleite e!>piritual de sempre. A sua de•crição e a sua interpretação dos monstros de Goya constituíram também
uma verdadeira cqnferencia. Pena que ].time Cortesão
não a tenha escrito nunca.
Tem estas considerações e recordações de ordem pessoal o propósito de salientar uma faceta do talento multiforme de Jaime Cortesão, que já acentuámos nas primeiras linhas deste apressado trabalho: a sua paixão por
todas as formas da arte, o seu culto por ela e os seus profundos conhecimentos em tais domínios. Seria mesmo
de grande interesse, se as exigencias impostas pelo
espaço e pelo tempo de que dispomos nos permitissem
faze-lo, recordar a sua intervenção em trabalhos de crítica e interpretação artlstica, como, por exemplo, aquele
em que tratou também, embora talvez sem ter chegado a
conclusões de todo convincentes, o debatido problema
chamado dos Paineis de S. Vicente.
A sua actividade em trabalhos de investigação histórica começou sem dúvida muito cedo. É natural que nos
cursos de História Pátria, que professou na Universidade Popular do Porto, ela se tivesse exercido já. Para
interpretar as figuras do ftzjante de Sagres e de Egas
Moniz e se documentar àcerca das suas respectivas épocas, teve certamente de se dedicar a afincados estudos
históricos. E talvez não fosse falho de interesse surpreender na sua própria produção poética um ou outro surto a
domínios a que voltará mais tarde, especialmente alguns
surtos que preludiarão o escritor empenhado no estudo da
geografia e dos descobrimentos geográficos e marítimos.
O seu primeiro trabalho de fôlego, segura promessa
dos que virão depois, é o volume A expedição de Pedro
Alvares Cabral e o descobrimento do Brasil, aparecido em
19221 e de que uma parte importante foi publicada na História da Colonização rio Brasil, dirigida por Carlos Malheiro Dias. Em seguida faz sair na Lusitânia, em Janeiro
de 19241 o seu estudo Do sigilo nacional sobre os Descobrimetz/os, que vem levantar certos aspectos dum problema
de incalculável interesse para o traçado da linha geral dos
descobrimentos dos Portugueses, se porventura não é
aquele seu estudo que coloca pela primeira vez alguns
daqueles aspectos à apreciação de historiadores e investigadores. Este trabalho de Jaime Cortesão suscitou uma
larga controvérsia nos meios internacionais especializados
no estudo e na história dos Descobrimentos. Publica depois, em 1925, no n. 0 5 do Boletim da Agência Geral das
Coló11ias, um novo estudo histórico intitulado A tomada
e ocupação de Ce"ta, até que, para ser lida ao XXII Congresso Internacional dos Americanistas, reunido em Roma (aonde vai, em Setembro de 1926, como um dos representantes de Portugal e da Academia das Ciências de
Lisboa), escreve e publica a sua comunicação Le traité de
Tordesil/as et la decouverte de l'Amérique- trabalho em
que expõe e defende, com novos elementos e nova e mais
ousada argumentação, pontos de vista até aí inéditos ou,
quando já apresentados, defendidos sempre com pouca
segurança e falta de convicção, mas que ele traz agora ao
conhecimento e à discussão das pessoas competentes,
assentando as suas afirmações ou sugestões em mais
sólidos e mais amplos fundamentos.
Mas podemos talvez aventar que esta primeira fase
da actividade histórica de Jaime Cortesão culmina no
aparecimento, em 1930, da sua obra L' Expansion des Portugais dans I' Histoire de la Civilisatiots1 publicada para
JAIME CoRTEs à o EXP O NDO A D .wm F ERR EIRA,
NU~I PARQUE DE Sr~TR .\ 1 e-1 A Gos T o DE 1952,
O PLAX O ll .\ O llR.\. ACERCA DE
«Ü
CULT O llO
E s rinrr o
S .\ :-<TO E \1 P oRTU G.\L»
figurar na Exposição Internacional de Anvers, que se
efectuou naquele ano. O autor, apesar de se encontrar
emigrado, por motivos políticos, havia já cerca de três
anos, e de não ter sido entretanto poupado a ataques torpes e caluniosos, conseguiu achar, no amargurado pão do
exílio, o alimento indispensável para glorificar Portugal,
dando a conhecer- podemos dizer a todo o mundo culto,
atendendo à difusão que a obra teve- a síntese admirável dos feitos dos Portug ueses no estabelecimento de
novas rotas marítimas, nos descobrimentos geográficos e
na participação notável e inconfundível que tiveram no
advento de uma nova e brilhante fase da civilização
humana. Parece-nos que nunca tinha sido publicado um
trabalho de síntese em que se reivindicasse para Portugal, com tão larga soma de factos e razões, o mérito e a
glória da sua vasta contribuição para o progresso da humanidade, não apenas pelos feitos directos dos Portugueses
e de estrangeiros a seu soldo e a seu mandado como também pela enorme influência exercida por Portugal sobre
as outras nações cultas daquela época, como foi, por
exemplo, a que exerceu nos domínio s da ciência náutica
em Espanha, França, Inglaterra e Holanda - ponto de
partida para o alargamento do saber humano e para a
criação de novas condições de vida em muitas regiões de
todo o mundo.
*
*
*
Adversário irredutível, desde a primeira hora, tal
como todo o Grupo Seara Nova, do movimento revolu·
cionário de 28 de Maio de 1926, fez Jaime Cortesão parte
da Junta Revolucionária que levou a efeito no Porto arevolução de 3 de Fevereiro de 1927, depois de cujo fracasso
se dirigiu para Espanha, tendo vtvido cerca de um _mês
em Madrid. Partiu em seguida para França, onde fixou
residência, primeiramente em Paris e, mais tarde, nos
arrabaldes da capital francesa e em Biarritz e Bayonne.
Quando, em Abril de 193r, se implantou a República em
Espanha, regressou a Madrid, onde viveu, quase pe;ma·
nentemente, até à eclosão da guerra civil espanhola. f_endo-se, já em pleno conflito, instalado em Barcelona, a1 se
-232-
manteve até às vésperas da entrada das tropas franquis tas da capital catalã.
A sua partida de terras de Espanha, novamente a caminho da França,_ foi uma verdadeira odisseia. Ele, a esposa e uma das filhas atravessam penosamente a região
piranaic~,_arrastando-se a custo no meio da neve, que em
certos s1ttos .lhes chega quase aos joelhos, e arrastando
também consigo, num esforço sobrehumano, os poucos haveres ~ue lhes_ restam e aquilo que, acima de tudo, Jaime
Cortesao deseJa salvar: os seus documentos os seus arquivos e o seu val!osíssimo ficheiro, onde tem' assinalados
os resultados obtidos e as preciosas indicações de refer.ências das _laboriosas e pacientes investigações a que
tmha procedido desde que se encontrava no exílio. M.ts,
acossados por violento temporal de vento e neve durante
a e:raustiva travessia d<:'s Pirin_éus, uma parte importantíssima daquele ve_r~adeiro tesoiro é-lhes impiedosamente
arrebatada pela fana da tempestade implacável- e fica
para sempre destruída.
Instala-se de novo em Paris e procura febrilmente
embora _debaixo. das terríveis preocupações e inquieta.;õe~
pelos dia~ tr~~1cos que pressente próximos, reconstituir
o esforço mutJIJzado e, apesar das circunstâncias adversas
enriq?-ecer um pat_rimónio cultural, que, roais do que a si
própno, perte11ce Já à cultura portuguesa. Quando o ataque a~emão está por momentos, sente-se forçado a
encammhar-se para o sul, em busca de refúgio menos cont!ngente. ~cha-se ~m Biarr.itz no momento em que a
I• r~n5~ aceita e assma o arm1st!cio. Por várias razões, que
é mutll recordar agora, Jaime Cortesão e os restantes
e:nigrados políticos portugueses que se encontravam entao no sul da França optam, entre outros caminhos de salvação que lhes restavam ainda, pelo de regressar a Portugal. Entre eles, Eorém, havia um nonagenário que segundo a frase de Jaime Cortesão, «encarnava, naquele' momento, um século de história-.: era Bernardino Machado.
· Jaime Cortesão toma a seu cargo ir junto do antigo
presidente te~tar c_onvencê-lo a que, em face da gravidade
extrema _da ~~t~3:çao, os acompanhe no regresso à Pátria.
~o Elogso hJStfJYICo de Bernardino Machado, a que já aludimos, as págmas que Jaime Cortesão dedica ao seu encontro com o vel_ho estadista republicano, nas quais traça,
com um poder msuperável de escritor e artista o ambiente da natureza e do confrangedor espectáculo humano
de uma deb~ndada apocalíptica e nos narra também o estado de aba~tmento-que pela primeira vez lhe conheceu
em toda a v1da- de Bernardino Machado e as suas reacções de_ respeitável e pungente desesperança, são páginas
das mats belas de toda a sua obra literária.
Em Portugal esteve Jaime Cortesão apenas quatro
meses, durante os quais a sorte continuou a ser-lhe contrária.
~m 2o de Outubro de 1940 partiu finalmente para o
Br~stl. Sõ~ente na véspera puderam alguns dos seus mais
íntimos am1gos, admiradores e colaboradores e entre eles
como é óbvio, o Grupo Seara Nova, reunir-se CO!Jl el~
durante um chá de despedida, na Padaria Inglesa. E impossível relatar a ~moção, a profunda e amargurada tristeza. que ele senha ao ter de se ausentar novamente da
Pátna. Mas nos sinceríssimos votos de todos os presentes
e. na certeza que todos lhe afirmámos de que as suas
vutu~es e o seu ~alento o imporiam ao respeito, à consid_eraçao e ao carmho dos brasileiros devem ter concorndo para lhe minorar o desgosto do apartamento e lhe
fortalecer a esperança no triunfo inevitável. Assim aconteceu em absoluto.
. Não d_:sejamo~ chamar a nós a grata tarefa de historiar a a~çao exerctda e desenvolvida por Jaime Cortesão
no Brasil. Outros, com mais títulos e competência sobre
ela escreverão certamente.
'
Encarregado de duas honrosas missões de carácter
cultural, pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil
e p_:lo Go_verno do Estado de S. Paulo, chegou Jaime Cortesao a L1sb~a no dia 31 de Julho de 1952. Não é fácil su:.,~r o que fot o seu choq_ue emocional quando, depois do
se tdes te: atracado ao cais, as pessoas de sua família e os
bus am1~os entrara~ a bordo para o cumprimentar e
a raçar. Só quem asststiu pode ter a ideia disso.
verdEst~ homem alto e de aspecto vigoroso- aspecto
adeiramente hercúleo, noutros tempos- é uma pes8
aoa que, sob a máscara por vezes fria e distante oculta
e' ao m~smo tempo, mais forte e mais delicada da~ almas
in~ ~ais apurada e vibrátil sensibilidade. O alvoroço e a
vol~Ietação com que ele esperava ansiosamente o dia de
ar a Portugal chegaram a constituir motivo de apreen-
sõe_s ace_rca da sua abalada saúde para os seus amig 0 ,.
mais íntimos do Brasil, e ta~bém para _nós mesmo, que,
através da sua correspondéncJa, conseguimos avaliar mais
de uma vez os dolorosos efeitos morais e sentimentais
da saudade.
Não conhe~emos ninguém que tenha dedicado mais
amor do que Jaime Cortesão a Portugal e às coisas poi tugoesas. Tanto co_mo ele, sv Raúl Proença- que, como
testemunho admirável, nos deixou o Guia de Portugal
Mas o a~or dest.es dois grandes portugueses pela Pãtri;
c_omum_ e, se asst.~ lhe podemos chamar, um amor reflectido!. feito d~ analise serena de v•rtudes e defeitos e da
opJ3:o conscien!e yelo saldo pos_itivo obtir!o~ depois de
SUJeitarem a Pat11a a um exame Imparcial em que a não
poupam à c~nsura e condenação de quanto pode apoucá-la e rebaixá-la. Nunca o ridículo e intolerável amor
daqueles que, sup?n?o inconsciente e tolamente engrandecê-la, antes a dtrniOuem e desprestigiam, na energúmena exaltação de.tudo aquilo que, em boa verdade, não
passa de erros, vfc10s e defeitos.
A .longa ausência de Jaime Cortesão por terras estrangeiras e os seus porfiados estudos históricos de inter.esse tão transcendente _Para Portugal e para o Brasil
tiveram o poder de sublimar-lhe as qualidades e as virtudes. lnalteràvelmente fiel aos princípios que sempre o
tem nortead?, este homem, que tanto tem sofrjjo durante
toda~ sua vida, aportou de novo a Portugal e aqui se tem
m~ntid? sem uma palavra nem o mais leve sentimento de
ó?w seJa contra quem for, numa elevada atitude de esqueciment? pelos agravos recebidos, de perdão pelas ofensas
e. ultraJes- e de confraternização com todos os homens
dignos.
Democrata -podemos dizer visceralmente democra~a- Jaime Cortesão aceita e agradece até todas as
crftH:;as que lhe fazem ou_p_o~sam ~azer-lhe. Nunca se julgou mfalível: ~elo contrano, admtte sempre, como aliás
se'?I?!e ad;Illttu, que os seus pontos de vista e as suas
opmwes nao sejaii_J sempre os mais pertinentes: estima,
portanto, que os discutam. Encorajados por esta sua atitude, nós mesmo, que nesta modesta contribuição para
a sua biografia ~mpregamos por v.ezes um tom que pode
parece_r excessivamente laudatóno, nos temos atrevido
a mamfestar-lhe em algumas ocasiões as nossas dúvidas
e as nossas discordâncias a respeito de certos passos dos
seus trabalhos; nem por isso lhe notámos nunca o mais
ténue movimento de enfado, aborrecimento ou contraried~de. Co_mo não acredita em super-homens, ele mesmo
nao se JUlga sê-lo. Mas esta sua atitude 1 ao conferir a
todos os seus opositores e contraditares o direito à liberdade de dis~ordar, ~ão reveste nele o aspecto daquela
falsa m?dést~a qu~, amda a grande distância, cheira logo à
modéstia mats vatdosa do que a própria vaidade.
Outro, de resto, não poderia ser o comportamento
II_Joral de ~m homem que tem abominado sempre o fana!ts~o.' quaisquer que sejam os motivos com que pretende
JUS~tftcar-se e as formas capciosas sob as quais tenta
mutt.as v~zes ocultar-.se. Conhece Jaime Cortesão bastante
d!l htstóna da humantdade para, embora respeitando religiOsamente todas as crenças e todos os ideais, condenar
o~ excessos a que umas e outros são capazes de conduzir,
~ao t.endo certamente esquecido nunca- ele, que também
Jamais renegou a s.ua fé -.que «la foi, mime la plus pttre,
est utzs jlamme qu• peut atsbnent allttmer ttn búcher» segundo a frase lapidar de Frank Abauzit no seu livr~ Le
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AGÊNCIAS EM
AS QUESTÕES MORAIS E SOCIAIS
NA LITERATURA
TODO O PAIS
ACABA DE
APARtCERr
COMO OBJECTQ DE PEDAGOGIA
por SANT'ANMA DIOMISIO
CÂMARA REYS
{{.Será a Filosofia ensi1lál•el? O Povo e a Estado perante
os filósofos. O que há de inefdloelno ensino de certos
mestres. Como se revelaram alguns 'dos grandes filósofos. A filosofia nas escolas da adolescê11cia. A filosofia na Universidade. Valor da eloqtifncia. Se o
m'!gísUrio ~a filosofia .déve ser 011 não zetúpico».
III
OLIVEIRA MARTINS
Tais slo afguns temas que neste livro singular
• .se reflecteme esclarecem
A R T. 1 S T A )
I yolume brochado
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