Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1 ANAIS SIMPÓSIO MEMÓRIA, (AUTO) BIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO NARRATIVA Elizeu Clementino de Souza Kátia Maria Santos Motta Verbena Maria Rocha Cordeiro Jussara Fraga Portugal Mariana Martins de Meireles Lívia Alessandra Fialho da Costa (Orgs.) Salvador ‐ Bahia – Brasil 2015 Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 2 © 2015 Grupo de Pesquisa Autobiografia, Formação e História Oral Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de inpressão, em forma idêntica, resumida ou modificada, em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma Depósito legal na Biblioteca Nacional. Meio eletrônico ‐ Brasil 2015 Projeto Gráfico, Editoração, Normalização e Revisão Elizeu Clementino de Souza e Ednei Santos PPGEduC/UNEB Ficha Catalográfica – Biblioteca PPGEduC/UNEB Bibliotecária: Hildete Santos Pita Costa Simpósio Memória (Auto) biografia e Documentação Narrativa Simpósio Memória, (Auto)biografia e Documentação Narrativa (4.;2015: Salvador, BA) SOUZA, Elizeu Clementino de [et. al.]. Anais… Simpósio Memória, (Auto)biografia e Documentação Narrativa. Salvador. GRAFHO, 2015. 1428p. Salvador: PPGEduC/UNEB; DEDC‐I/UNEB/GRAFHO, 2015 ISSN 1. MemóriasAutobiográficas 2. Documentação Narrativa. I. Souza, Elizeu Clementino de II. Titulo CDD: 920 Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 3 José Bites Carvalho Reitor Carla Liane Nascimento Santos Vice‐Reitora Atson Carlos Souza Fernandes Pró‐Reitor de Pesquisa e Ensino de Pós‐Graduação Marta Valéria Almeida Santana Pró‐Reitora de Extensão Marcius de Almeida Gomes Pró‐Reitor de Ensino de Graduação Jairo Luiz Oliveira de Sá Pró‐Reitor de Administração Benjamin Ramos Filho Diretor da Unidade de Desenvolvimento Organizacional Valdélio Santos da Silva Diretor do Departamento de Educação – Campus I Eduardo José Fernandes Nunes Antonio Dias Nascimento Coordenador do Programa de Pós‐Graduação em Educação e Contemporaneidade Elizeu Clementino de Souza Coordenador IV Simpósio Memória, (Auto)biografia e Documentação Narrativa Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 4 Comissão Organizadora Elizeu Clementino de Souza – UNEB Kátia Maria Santos Motta – UNEB Verbena Maria Rocha Cordeiro – UNEB Lívia Alessandra Fialho da Costa – UNEB Jussara Fraga Portugal – UNEB Maria Martins de Meireles – UNEB Comitê Científico Elizeu Clementino de Souza – UNEB (Coordenador) Ana Chrystina Venâncio Mignot – UERJ Ana Sueli Teixeira de Pinho – UCSal Augusto Cesar Rios Leiro – UNEB/UFBA Carmen Teresa Gabriel – UFRJ Christine Delory‐Momberger – Paris 13/Nord Cláudio Orlando Costa do nascimento – UFRB Cynthia Pereira de Sousa – USP Daniel Hugo Suárez – UBA Ecleide Cunico Furlanetto – UNICID Edla Eggert – UNISINOS Elsa Lechner – CES/UC Gabriel Jaime Murillo Arango – UA/Medellín Inês Ferreira de Souza Bragança – UERJ Izabel Galvão – Paris 13/Nord Jorge Luiz da Cunha – UFSM Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios – UNEB José Antonio Serrano Castañeda – UPN/México Juan Mario Ramos Morales – UPN/México José Gonzáles Monteagudo – US/Espanha Jussara Fraga Portugal – UNEB Jussara Midlej – UESB Lúcia Maria Vaz Perez – UFPel Márcia Rios da Silva – UNEB Marcos Luciano Messeder – UNEB Maria Antonia Ramos Coutinho – UNEB Maria da Conceição Passeggi – UFRN Maria de Lordes Soares Ornellas – UNEB Maria Helena Menna Barreto Abrahão ‐ PUCRS Maria Roseli Gomes Brito de Sá – UFBA Maria Teresa Santos Cunha ‐ UDESC Marie‐Christine Josso – Université de Genève ‐ Suiça Paula Perin Vicentini – USP Rita de Cássia Gallego – USP Roberto Sidnei Macedo – UFBA Rosvita Kolb Bernardes – UEMG Tânia Regina Dantas – UNEB Verbena Maria Rocha Cordeiro – UNEB Yara Dulce Bandeira de Ataide – UNEB Vânia Alves Martins Chaigar – FURG Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 5 Sumário Apresentação 12
Comunicações por Eixo Temáticos 15
I ‐ Pesquisa (auto)biografia e práticas de formação 16
Narrativas autobiográficas como prática de formação de jovens do campo Adelson Dias de Oliveira Entre pedras e caminhos que levam à roça, as histórias de uma professora itinerante Alcione Costa Santos & Simone Santos de Oliveira Entre o ensino de Geografia e o cordel, a história de um geógrafo cordelista Ailson Porcino de Araujo & Simone Santos de Oliveira Imagens docentes: um diálogo entre a improvisação teatral e a memória escolar Alessandra Ancona de Faria & Ana Angélica Medeiros Albano Professores iniciantes na alfabetização: identidades em formação André Afonso Vilela; Eliane Greice Davanço Nogueira & Janine Cano Quintino “Cosme de Farias e sua contribuição para a formação da cidadania baiana” Andrea Tourinho Pacheco de Miranda Por caminhos contados e estéticas narradas: elementos que compõem a professoralidade Anthony Fábio Torres Santana & Maria Emérita Jaqueira Fernandes Vida universitária: contextos históricos de vida, adaptação e superação Bárbara do Carmo Passos Sobre os movimentos de professoralização e a subjetividade presentes na formação de professores de língua portuguesa Carla Sousa Ferreira & Lucília Santos da França Lopes A pedagogia da cooperação na prática docente nas escolas Claudia Almada Leite & Helena Amaral da Fontoura (Im)passes subjetivos em educação: história de vida dos arte‐educadores em formação de Camaçari/BA Claudia Bailão Opa PNAIC: narrativas de formação, (auto) biografia e alfabetização. O que dizem as professoras Cledineia Carvalho Santos Diário de bordo, prática de (auto)formação Crystina Di Santo D’Andrea A história de vida do Maestro Levino Ferreira de Alcântara: uma fonte autobiográfica da área de Educação Musical do Distrito Federal Delmary Vasconcelos de Abreu Subjetivação nas dobras da produção de si: como se vem a ser professor de filosofia Elenilda Alves Brandão Memórias de alfabetização: experiências de vida e de profissão. 17
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 6 Fabiane Santana Oliveira 213
Entre narrações e memórias: a docência como espaço de vida‐formação Fulvia de Aquino Rocha & Sara Menezes Reis de Azevedo 224
A formação político‐pedagógica dos Monitores das Escolas Famílias Agrícolas do Médio Jequitinhonha‐Minas Gerais Gilmar Vieira Freitas 236
Desafios do trabalho docente em classes multisseriadas: analisando interfaces nas narrativas dos professores Geângelo de Matos Rosa & Edna Souza Moreira Arquiteturas de si: (auto)biografia, ruralidades e docência na educação 247
profissional técnica Graziela Ninck Dias Menezes & Jane Adriana Pacheco Vasconcelos Rios Narrativa sobre a própria formação e a formação de pedagogos: contribuições 260
para a construção do currículo no contexto da disciplina História e Cultura Afro‐
Brasileira e Indígena Heldina Pereira Pinto Fagundes Os fios da matemática nas narrativas de pedagogas 276
Isabela Benevides de Melo & Jussara Midlej Nos movimentos de professoralização, as forças vivas da professoralida 287
Ivana Conceição de Deus Nogueira & Rosane Alves Rodrigues 298
Narrativas de professoras‐estudantes no contexto da formação no PARFOR Ivonete Barreto de Amorim Narrativas autobiográficas: análise crítico‐reflexiva da qualificação formativa de 310
estudantes universitários Jessica Santana Bruno; Valterci Ribeiro & Claudio Orlando Costa do Nascimento Nas desdobras dos movimentos de professoralização, os acordes da 319
professoralidade Jussara Midlej & Isabela Benevides de Melo “Vamos contar outra vez?” um relato de experiência 330
Luciene Freitas Mota & Luciene Souza Santos Narrando minha prática docente online: uma experiência formativa sobre as 341
relações na educação a distancia Lydia Passos Bispos Wanderley; Glaucia Guimarães História de vida, formação docente e emancipação humana 357
Maria Aparecida da Silva Andrade 367
Método autobiográfico e formação de docentes Marinalva Batista dos Santos Neves & Nívea Maria Fraga Rocha Recontextualização curricular na prática docente: dialogando com as narrativas 377
(auto) biográficas Marlene Moreira Xavier Memoriais dos professores supervisores de estágio 392
Maria Auxiliadora Lisboa Moreno Pires & Luiz Márcio Santos Farias Narrativas (auto)biográficas de professores: experiência e formação 408
Maria Emérita Jaqueira Fernandes & Anthony Fábio Torres Santana Trajetórias profissionais e de formação: lentes ampliadas a partir da experiência 419
no PIBID Maria do Socorro da Costa e Almeida A democratização da universidade e as escolas públicas no recôncavo da Bahia: 429
acesso, formação e extensão Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 7 Milena dos Santos; Miriam Feliciano de Barros & Samylle Pinto dos Santos
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Vida de professora: da estagiária que acalma o mar à professora que guarda tamanhos segredos Monique Millet de Lima & Roseli Chagas de Santana 451
Travessias de professoras rurais: apreendendo vida e trabalho docente em classes multisseriadas Natalina Assis de Carvalho 461
Histórias de vida dos professores de espanhol em formação na UNEB Campus I Núbia Cruz 469
A formação continuada de professores iniciantes nas classes de alfabetização de uma escola em tempo integral da rede municipal de ensino de Campo Grande‐MS Pabliane Lemes Macena; Eliane Greice Davanço Nogueira & Andre Afonso Vilela Da roça, onde nasci, para a cidade, onde me reconheci: narrativas de formação e 479
imagens‐lembranças que me tornaram um professor Priscila Lima de Carvalho & Áurea da Silva Pereira 490
Histórias de vida e formação do professor de música: desafios a partir da Lei 11.769/2008 Rafael de Souza Da formação da NATA@: um estudo sobre os modos de produção de sonhos na 501
escola Reinaldo Ramos da Silva 513
A diversão como sentido da escola na vida de futuros professores de matemática Renan Marcel Barros dos Santos & Rita de Cassia Gallego 527
Rastros de leitura: por entre histórias e memorias Rita de Cassia Brêda Mascarenhas Lima 535
Programa de formação inicial para professores em exercício na educação infantil: resultados dos docentes egressos da turma 2006/2007 de Vitória da Conquista‐ BA Ronilda Rodrigues da Silva Oliveira 547
Nas enunciações biográficas, as artes da professoralidade Rosane Alves Rodrigues & Rita de Cássia Santos Côrtes 558
Revisão conceitual da pesquisa sobre formação de Educadores do Campo: desafios e perspectivas contemporâneas para um novo projeto político‐
pedagógico Sandra Regina Magalhães de Araújo & Eduardo José Fernandes Nunes 569
Narrativas de Vida na Formação do Sacerdote Redentorista Sebastião Fernandes Daniel & Francisco Evangelista Narrativas autobiográficas: a EJA em Santo Antônio de Jesus 576
Silvania de Jesus Santiago & Regina Marques de Souza Oliveira 591
Formação docente: reflexões sobre a vida‐formação‐profissão no/para o ensino superior Simone Martins de Jesus A experiência formativa de mediação docente em meio rural: relato, memórias e 604
construção de saberes Susiara Moreira Reis Coutinho Os professores licenciados em Ciências Biológicas e suas histórias formativas: o 615
que os escritos nos contam Talamira Taita Rodrigues Brito & Maria Soares da Silva Teixeira 628
Aprendizagem da docência – aprender o saber‐fazer: um estudo a partir de Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 8 narrativas de professores de música da educação básica Tamar Genz Gaulke Escritas autobiográficas e autoformação: a construção de sujeitos atores/autores Valterci Ribeiro & Jessica Santana Bruno Memória, identidade e leitura: o professor José no Vozes Literárias do Portela Vanusia Maria dos Santos Oliveira; Denise Porto Cardoso & Tatiane Oliveira da Cunha Diários de leitura na sala de aula: narrativas de formação Zélia Malheiro Marques & Ginaldo Cardoso de Araújo II ‐ Memória e (auto)biografia: questões teórico‐metodológicas A vocação memorialística de Isaías Alves: variantes (auto)biográficas Carla de Quadros A trajetória de vida como percurso metodológico e epistemológico Cláudia Moraes da Costa & Cláudia Pato Memórias de cantigas de roda: percurso teórico‐metodológico na construção de saberes e de fazeres de mulheres quilombolas Cristiane Andrade Fernandes & Arlete Vieira da Silva Memória social: contando e recontando histórias sobre Lampião Geralda de Oliveira Santos Lima & Maristela Felix dos Santo Existem narrativas infantis? Herli de Sousa Carvalho; Gilcilene Lélia Souza do Nascimento & Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi Leituras literárias memorialísticas: em cena as escritoras alagoinhenses Maria Feijó, Joanita Santos e Luzia Senna Maria José de Oliveira Santos Autobiografia: práticas de leitura e de escrita no ensino fundamental Maristela Felix dos Santos & Geralda de Oliveira Santos Lima Memória e verdade: a importância da pesquisa documental para o nosso resgate histórico Monica Cristina Carneiro Simplício, Andrea Tourinho Pacheco de Miranda, Nair Patrique Matos Silva Lima & Nilton Oliveira A voz da oralidade vinda da “mãe das águas” – memória performática dos narradores de Icoaraci Nailce dos Santos Ferreira “A educação antes e depois da ditadura militar: breve análise sobre a formação do sujeito como ser pensante” Osimara de Barros & Andrea Tourinho Pacheco de Miranda Escuta no plural: grupo de discussão – possiblidades intercambiáveis das narrativas com adolescentes Rita de Cássia Magalhães de Oliveira A narrativa em Paul Ricouer: relendo Heidegger e acionando sentidos e significados para o mundo Rony Henrique Souza Genealogia do sobrenome: uma análise autobiográfica Rosa Maria da Motta Azambuja “Cartografias de amozades” e “relatos ecobio/gráficos”: a terminologia como poética do pensamento 643
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 9 Sahmaroni Rodrigues de Olinda Arquivos e memórias da Escola de Samba Deixa Malhar: um tipo de samba proscrito durante o Estado Novo Sormani da Silva As tramas narrativas em Ovelhas Negras: os aspectos de memória e autobiografia na obra de Caio Fernando Abreu Urandi Rosa Novais & Alessandra Leila Borges Gomes Relatos e reflexões sobre uma metodologia da pesquisa com crianças Vanessa Cristina Oliveira da Silva; Debora Borges de Araújo & Maria da Conceição Passeggi III ‐ Documentação narrativa, escritas de si e formação Carta a um jovem poeta e Drummond encantado, de Aleilton Fonseca: a construção do sujeito no discurso autobiográfico Adna Evangelista Couto dos Santos & Silvia La Regina Narrativa autobiográfica: espaço acadêmico e as implicações de pertencimento Aline Santos Santos Professor(a) pesquisador(a) na educação fundamental: os desafios do ensino, formação, pesquisa e produção acadêmica Analia Santana O início da carreira no ensino superior: narrativas de professores do curso de pedagogia da UESPI, campus de Parnaíba – PI Ana Patrícia Coelho Sousa & Renata Cristina da Cunha Memórias da escola: trilhando uma formação docente Ana Paula Silva da Conceição & Renata da Silva Massena Atos de currículo e re‐existências epistemológicas e formativas: um olhar crítico‐
hermenêutico sobre a formação de professores em atuação. Ana Verena Freitas Paim O caminho se faz ao caminhar: narrativas de uma prática formativa Cátia Nery Menezes Adylane Santos de Jesus As crianças e as escritas de si: os portfólios (auto)biográficos nas itinerâncias formativas da/na infancia Daniele Farias Freire Raic & Larissa Monique de Souza Almeida Narrativas da formação inicial à prática docente: dilemas e desafios entre a teoria e a prática Enoilma Simões Paixão Correia Silva & Tânia Regina Dantas Estágio supervisionado de língua materna: narrativas das aprendizagens na/sobre a formação Fabíola Silva de Oliveira Vilas Boas & Obdália Santana Ferraz A trajetória docente de uma licencianda: da escola do campo ao PIBID Fabrício Oliveira da Silva Estudos sobre a (auto) biografia no teatro documentário Fernanda Saldanha & Raquel Guerra Escritas e leituras de si: problematizando a permanência na universidade a partir de relatos autobiográficos Iansmin de Oliveira Gonçalves; Elder Luan dos Santos Silva; Thais Calixto dos Santos & Tatielle de Souza Silva 843
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 10 Emilia Biancardi e a escrita feminina censurada: memórias e identidades do povo baiano em “Dez Anos de Viva Bahia” Isabela Calmon & Rosinês de Jesus Duarte A visão da cordilheira: Daniel Galera e o campo literário Jamille Maria Nascimento de Assis As marcas identitárias do sujeito de transformação: autobiografias de duas educadoras rurais Juliana de Conti Macedo & José Rubens Lima Jardilino Negras e femininas escritas de si: (re) lembrando para (re) significar e dignificar negras memórias Júlio Cézar Barbosa & Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro O entretecimento do currículo com os fios do ciclo de formação humana: um vir a ser Larissa Monique de Souza Almeida & Daniele Farias Freire Raic Narrativas e escritas de si no processo formação: a contribuição das tensões e dificuldades vivenciadas pelos alunos em formação inicial Lucia de Fátima Carneiro Ferreira Lessa & Luiz Marcio Santos Faria A escrita de si como ferramenta de (auto) percepção e avaliação: um processo de formação Magnaldo Oliveira dos Santos & Jackeline Pinto Amor Divino Vivência pedagógica com xadrez numa escola do campo – a influência na formação docente através da atividade realizada do PIBID Manoel Henrique de Morais Neto & Daniela marques alexandrino Atos de currículo como mediação no processo de construção das políticas de sentido da didática no contexto da formação docente Maria Cláudia Silva do Carmo O nó que nos une na prática docente – Narrativas dos educadores (as) /alunos (as) sobre gênero e raça Maria da Anunciação Conceição Silva “Retalhos” que tecem subjetividades Maria Helena da Silva Reis Santos Contribuições da psicologia da educação na formação dos discentes do curso de licenciatura em Matemática: narrativas de uma experiência no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) – Campus de Camaçari Maria Raidalva Nery Barreto Do leme ao pontal: a travessia de si no tornar‐se professor(a) Maximiano Martins de Meireles Recordar é preciso: memória e histórias de idosos no sertão da Bahia Miriam Barreto de Almeida Passos Autobiografia de estudante de origem popular: um estudo de caso na UFRB Natanael Conceição Rocha De lagarta a borboleta: experiências de leitura como ecdisona necessária à metamorfose Patrícia Petitinga Silva Educação na contemporaneidade: experiência docente com o ensino fundamental I, numa escola soteropolitana Roseli Chagas de Santana & Monique Millet de Lima A narrativa autobiográfica como estratégia de construção e de compreensão da identidade da professora formadora 1041
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 11 Vera Luísa de Sousa IV – Espaços biográficos, fontes e análise 1253
Fontes para a história da formação de professores no Piauí: narrativas de egressos de instâncias formadoras atuantes no período de 1910 a 1970 Alessandra Raniery Alves de Sousa ; Samara Layse da Rocha Costa & Maria da Conceição Sousa de Carvalho Manoel Balthazar Pereira Diégues Júnior (1852‐1922): a tessitura de uma identidade docente Edna Telma Fonseca e Silva Vinlar & Izabela Cristina de Melo Santos Arquivo pessoal de Moreira Campos: um lugar de memoria Elisabete Sampaio Alencar Lima Um teatro vivo, livre, colorido, popular: origem, trajetória, gestão cultural, modos de produção e meios de sustentabilidade do Teatro Popular de Ilhéus Elson Luis Cunha Rosário Memórias de um intelectual revolucionário (fragmentos de uma autobiografia) Esmeralda Guimarães Meira & José Rubens Mascarenhas de Almeida Narrativas infantis: o olhar das crianças sobre o primeiro ano do ensino fundamental Iêda Licurgo Gurgel Fernandes; Evelyn Silva Soares & Maria da Conceição Passeggi “Casa de pai, escola de filho”: notas biográficas sobre o processo de formação de um vaqueiro do sertão baiano Izabel Dantas de Menezes Passos iniciais do cronista João Ubaldo Ribeiro: o riso no contexto da ditadura militar Karina Ramos Babosa Com o seio e conselhos, tornei‐me professora Lorena Passos & Rony Henrique Souza Memória e histórias da língua brasileira de sinais no processo educacional de pessoas surdas no município de Jequié/Bahia Lucília Santos da França Lopes & Carla Sousa Ferreira A identidade na blogesfera: (auto)biografia feminina em questão Manuela Cunha de Souza Reflexões sobre a criação de conhecimentos na EJA (Educação de Jovens e Adultos): o espaço biográfico como parte da formação Miriam Araújo Nascimento Eu quero ouvir minha voz: Henfil cronista Priscila Paschoalino As canções de alto‐falante: fontes de memórias biográficas Silvio Roberto Silva Carvalho 1254
Siglas das Instituições 1267
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 12 Apresentação Os diferentes Simpósio Memória e (Auto)Biografia configuram‐se como ações do Grupo de Pesquisa (Auto)Biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/PPGEduC/UNEB), no âmbito do movimento biográfico. Ele vem se consolidando no território das histórias de vida e da pesquisa (auto)biografia em seus diferentes domínios, perspectivas epistemológicas e métodos de investigação e de socialização do saber produzido na universidade e nas escolas de Educação Básica. Os estudos conduzidos nesses diferentes domínios caracterizam‐se como atividades de pesquisa‐formação que tomam como principios fundantes a constituição do sujeito em suas relações com as aprendizagens, com o outro e com o mundo ao longo da vida. Em suas diferentes edições, o Simpósio – Memória e (Auto)biografia – vem inovando a cada ano para ampliar as discussões, ao adjetivar, na sua proposição, enfoques específicos que que verticalizam diferentes entradas e perspectivam outros horizontes na busca de possibilidade do trabalho com o (auto)biográfico. A primeira edição, realizada entre os dias 02 e 03 de outubro de 2007, buscou entrecruzar e aprofundar discussões sobre as pesquisas no campo da memória, das histórias de vida e suas dimensões de diversidade e interculturalidade, tendo como temática Memória, (auto) biografia e diversidade. O olhar construído naquele momento histórico tomou como foco a interface entre as diferentes práticas de memória, as escritas (auto)biográficas e a diversidade constitutiva tanto das fontes e procedimentos de investigação, quanto de questões epistemológicas que marcam a emergência e expansão do campo das histórias de vida no quadro da pesquisa educacional no Brasil. A segunda edição, desdobrou‐se como extensão do III CIPA (Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)biográfica, realizado entre 14 a 17 de setembro de 2008, promovido pela UFRN em co‐organização com diferentes Grupos de Pesquisas vinculados aos Programas de Pós‐graduação em Educação do país. No âmbito regional, o Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Formação foi co‐organizado pelo GRAFHO (PPGEduC/UNEB) e FORMACCE (PPGE/UFBA), objetivando discutir questões teórico‐metodológicas, no âmbito Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 13 do movimento biográfico, que vem se consolidando como área de pesquisa na Pós‐
graduação em Educação na Bahia/Brasil. A terceira edição do Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Ruralidades realizou‐se com o apoio do IV CIPA, organizada pelo GRAFHO em colaboração com o Departamento de Educação do Campus I, o Programa de Pós‐graduação em Educação e Contemporaneidade, o Programa de Pós‐graduação em Estudos de Linguagens, como atividade vinculada à Pesquisa ‘Ruralidades diversas – diversas ruralidades: sujeitos, instituições e práticas pedagógicas das escolas rurais – Bahia/Brasil’, a qual conta com financiamento da Fundação de Aparo a Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB – Edital 004/2007 Temático Educação) e do Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Edital Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, 2008 e Edital Universal, 2010), bem como da Coordenadoria de Pessoal de Ensino Superior (CAPES), como atividade do Projeto ‘Pesquisa (Auto)biográfica: docência, formação e profissionalização’, no âmbito do Programa de Cooperação Acadêmica – Novas Fronteiras (PROCAD‐NF/2008). A quarta edição do Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa realiza‐se como ação dos Projetos ‘Multisseriação e trabalho docente: diversidade, cotidiano escolar e ritos de passagem’ (FAPESB – Edital 028/2012) e ‘Pesquisa (Auto)biográfica: narrativas e formação’ (PROFORTE‐PPG/UNEB – Edital 2011), bem como através de parcerias interinstitucionais empreendidas entre pesquisadores e grupos de pesquisas que vêm se debruçando sobre o biográfico como dimensão de investigação‐formação‐ação e de redes de colaboração entre estudiosos do campo (auto)biográfico. Objetivou‐se nesta quarta edição do Simpósio aprofundar questões teórico‐
metodológicas sobre biografias e documentação narrativa, nos domínios das práticas formativas no campo educacional em diálogo com diferentes fontes e perspectivas de análise. Do mesmo modo, o Simpósio amplou redes de pesquisas e colaboração entre pesquisadores brasileiros, latino‐americanos e europeus que têm assumido a pesquisa (auto)biográfica como perspectiva de investigação‐ação‐formação, ao intencionar ampliar a articulação entre grupos de pesquisa através da socialização de experiências de pesquisa e contemplar outras reflexões sobre diversos objetos de investigação e suas diferentes possibilidades de análise, de produção de conhecimento, ao enfocar questões sobre Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 14 documentação narrativa, escritas, análise de fontes e suas múltiplas manifestações no campo da pesquisa educacional com amplas aberturas para a sociedade contemporânea. O Simpósio é promovido pelo GRAFHO (PPGEduC/UNEB), com apoio da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOgraph), da Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação e de Pesquisa Biográfica em Educação (ASIHVIF‐RBE), da Rede Latinoamericana de Pesquisa Narrativa, (Auto)biografia e Educação (RedNAUE), da Rede Científica de Pesquisa Biográfica América Latina ‐ Europa (BioGraFia), do Colégio Internacional de Pesquisa Biográfica em Educação (CIRBE) e da Associação Norte e Nordeste das Histórias de Vida em Formação (ANNIHIVIF), contando ainda com apoio da LDM (Livraria de Distribuidora Multicampi) e da Pedagógic Assessoria Educacional (PEDAGÓGIC). A socialização de resultados de pesquisa cujos objetos contemplam aspectos teórico‐
metodológicos da pesquisa (auto)biográfica e outras dimensões de pesquisa‐formação‐ação, estão vinculados aos quatros eixos do Simpósio, a saber: I ‐ Pesquisa (auto)biografia e práticas de formação; II ‐ Memória e (auto)biografia: questões teórico‐metodológicas; III ‐ Documentação narrativa, escritas de si e formação; IV – Espaços biográficos, fontes e análise, os quais foram contemplados nas conferencias de abertura e de encerramento, nas seis mesas redondas e num conjunto de 220 comunicações de pesquisadores e estudantes vinculados aos programas de pós‐graduação de diferentes estados do páis, atestando modos próprios de circulação e consolidação das pesquisas na área. As parcerias construídas no PPGEduC/UNEB e o apoio/acolhimento da Universidade do Estado da Bahia, em suas diferentes instâncias, possibilitaram esta quarta edição do Simpósio e nos permitem partilhar experiências de vida em formação, na vertente das dimensões e das práticas de formação das pesquisas com (auto)biografias e histórias de vida, no campo da pesquisa educacional e da formação docente. Os textos aqui apresentados possibilitam a ampliação de espaços e de redes de pesquisas que têm contribuído para o fortalecimento da vida das pesquisas (auto)biográficas no campo educacional brasileiro. Terra, junho de 2015 Elizeu Clementino de Souza Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 15 Comunicações por Eixo Temáticos Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 16 Eixo Temático I PESQUISA (AUTO)BIOGRAFIA E PRÁTICAS DE FORMAÇÃO Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 17 Narrativas autobiográficas como prática de formação de jovens do campo Adelson Dias de Oliveira UNIVASF [email protected] O presente estudo apresenta as narrativas autobiográficas como elemento significativo para o processo formativo dos sujeitos jovens que vivem no campo. Toma o lugar do enunciado das experiências de vida e formação de sujeitos jovens que vivem no campo, no sentido de anunciação dos percursos sob os quais esses processos se constituem e se apresentam enquanto significados na vida dessas pessoas. Os aspectos teóricos e metodológicas da pesquisa foram se constituindo a partir do entendimento amplo sobre a temática e toda a sua composição conceitual, tomando como norteador os princípios da hermenêutica e fenomenologia, com ênfase nas narrativas de experiência de vida e formação desveladas, tomando como propulsor as entrevistas narrativas fortalecidas pelas concepções teórico‐metodológicas da autobiografia. Para analisar as narrativas, utilizei‐me das bases conceituais da Análise compreensiva proposta por Bertaux. Desse modo, a narrativa de vida pode ser compreendida como a totalidade dos fatos e experiências em que o sujeito vivencia. Todavia, para este estudo a dimensão evidencia a experiência a partir do momento em que o sujeito narra um fato vivido a outra pessoa, nesse caso, o pesquisador, significando a produção discursiva do sujeito como forma narrativa e amplia‐se para o entendimento de que o processo narrativo também contribui para a produção do sujeito diante da sociedade. Não obstante, o cenário contemporâneo aponta para a emergência da temática juvenil como campo de pesquisa e de aplicação de ações de intervenção social. Em meio a toda essa complexidade para se conceber a ideia de juventude no campo, encontram‐se a questão do desenvolvimento formativo e as possibilidades de acesso, que são destinadas para o público juvenil, sejam elas na educação, na cultura, no lazer, na saúde e, especialmente, geração de renda, questões essas desveladas por intermérdio das narrativas das práticas de formação desses jovens. Palavras‐chave: Percurso formativo; Jovens do campo; Juventudes; Narrativa. Para início de conversa Tratar do processo formativo de jovens requer ampliar o olhar para horizontes diversos diante da sociedade, em si tratando de jovens do campo as especificidades em que estes sujeitos vivem tomam‐se desafiadoras para a inserção na pesquisa. Assim, o texto apresenta as narrativas autobiográficas como elemento significativo para o processo formativo dos sujeitos jovens que vivem no campo e toma o lugar do enunciado das experiências de vida e formação destes que vivem no campo, no sentido de anunciação dos percursos sob os quais esses processos se constituem e se apresentam enquanto significados na vida dessas pessoas. Os aspectos teóricos e metodológicas da pesquisa foram se constituindo a partir do entendimento amplo sobre a temática e toda a sua composição conceitual, tomando como norteador os princípios da hermenêutica e fenomenologia, com ênfase nas narrativas de experiência de vida e formação desveladas, tomando como propulsor as entrevistas narrativas fortalecidas pelas concepções teórico‐metodológicas da autobiografia. Para analisar as narrativas, utilizei‐me das bases conceituais da Análise compreensiva proposta por Bertaux. Desse modo, a narrativa de vida pode ser compreendida como a totalidade dos fatos e experiências em que o sujeito vivencia. Todavia, para este estudo a dimensão evidencia a experiência a partir do momento em que o sujeito narra um fato vivido a outra pessoa, nesse caso, o pesquisador, significando a produção discursiva do sujeito como forma narrativa e amplia‐se para o entendimento de que o processo narrativo também contribui para a produção do sujeito diante da sociedade. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 18 Não obstante, o cenário contemporâneo aponta para a emergência da temática juvenil como campo de pesquisa e de aplicação de ações de intervenção social. Em meio a toda essa complexidade para se conceber a ideia de juventude no campo, encontram‐se a questão do desenvolvimento formativo e as possibilidades de acesso, que são destinadas para o público juvenil, sejam elas na educação, na cultura, no lazer, na saúde e, especialmente, geração de renda, questões essas desveladas por intermérdio das narrativas das práticas de formação desses jovens. Para melhor compreensão da temática o texto apresenta inicialmente as construções epistemológicas acerca das narrativas, seguindo da discussão de caracterização do espaço de pesquisa e os caminhos de análise como fundante para a ampliação do conhecimento, por fim, aponta reflexões acerca das narrativas e o processo de formação dos jovens que vivem no campo. Entrevistas narrativas: concepções e aproximações epistemológicas O trabalho com narrativas é crescente nas pesquisas em áreas sociais e humanas, considerando que estão presentes nas mais variadas experiências e espaços da sociedade. A relação com os mitos, lendas e sua consolidação vai se constituindo mediante a reprodução e/ou construção e interpretação dos fatos narrados pelos sujeitos que estão presentes em determinado ambiente social, diante dessa perspectiva os fatos passam a ser retratados e divulgados nas mais variadas formas e assim vão constituindo num universo amplo e provoca construções epistêmicas e formativas para a sociedade. Ao utilizar as narrativas como perspectiva teórica e metodológica nas pesquisas, encontra‐se o desafio de produzir o rigor e imparcialidade na divulgação dos resultados, por outro lado, aproxima o pesquisador das peculiaridades e aspectos intrínsecos aos sujeitos e a compreensão dos fenômenos que marcam a concepção de sociedade e das problemáticas que nela circundam. Dessa forma, ao trabalhar com jovens no intuito de ampliar a compreensão acerca de suas experiências, as narrativas aliadas às discussões autobiográficas possibilita a construção de elementos que reforçam a necessidade formativa e os elementos que estão envoltos a sua constituição enquanto sujeito na sociedade, o que me faz refletir que, [...] através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram possíveis explicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que constróem a vida individual e social. Contar histórias implica estados intencionais que aliviam, ou ao menos tornam familiares, acontecimentos e sentimentos que confrontam a vida cotidiana normal. (JOVCHELOVITCH & BAUER, 2002, p. 91) Um dos aspectos imprescindíveis na realização do trabalho com as narrativas de formação e vida é a questão da seleção das informações repassadas ao pesquisador, que impulsiona uma definição clara das práticas vividas que representam um fazer, que pode está diretamente ligado ao modo de agir e de viver de quem narra sua própria história. Diante disto, as Entrevistas Narrativas utilizadas como dispositivo de pesquisa, contribui de maneira significativa para o desenvolvimento da pesquisa com sujeitos jovens que vivem no campo e podem ser ampliadas para o campo formativo desses sujeitos consoante ao Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 19 entendimento de Bertaux, (2010, p. 29), onde “a narrativa de vida pode constituir um instrumento importante de extração dos saberes práticos, com a condição de orientar a descrição das experiências vividas pessoalmente e dos contextos nos quais elas se inscrevem. É importante elucidar que o momento das entrevistas narrativas esconde esse lugar do estranho, do limitado e que, a partir do instante em que pesquisador e pesquisado se encontram, buscam o desvelamento dos sentidos e significados pertinentes à pesquisa. Epistemologicamente, a Entrevista Narrativa tem raízes na etnossociologia, muito utilizada para o apoio à pesquisa empírica de campo nos estudos de caso inspirados na tradição da etnografia. Entretanto não se restringe à utilização pelos sociólogos ou etnólogos; sua contribuição é muito significativa nos demais campos de estudo e das ciências humanas. No campo das pesquisas de abordagem autobiográfica se dá principalmente no ato de contar os fatos, sejam eles na biografia por completo do sujeito ou na centralidade de uma categoria temática em que o protagonista da história narra a um intermediário o fato vivido. A flexibilidade que a Entrevista Narrativa traz em sua base de organização inspira o autor da narrativa a abrir o diálogo das mais íntimas situações vividas, às diversas esferas que circundam o fato narrado, tomando um rumo diferente. Provoca‐o, ainda, a refletir acerca de seu fazer, incluindo, nesse conjunto, aqueles que se pressupõem e predispõem a contribuir para o processo formativo do narrador. É pertinente considerar a diversidade de elementos que a Entrevista Narrativa possui, uma vez que nela está presente a experiência pessoal precedida de acontecimentos e fatos. A sua constituição está voltada para aspectos cronológicos que consideram uma sucessão de fatos voltados para diversos acontecimentos que envolvem a vida e formação do sujeito. Esses dois elementos possibilitam ao narrador ir, aos poucos constituindo sua história e assim apresentando enredos diferenciados. Conforme Bauer (2002), a entrevista narrativa visa encorajar e estimular o entrevistado a contar os acontecimentos e fatos que estão presentes em sua vida em seu contexto social. A ideia básica para a técnica é reconstruir acontecimentos sociais a partir dos informantes, sendo a reconstrução mais direta possível, quando maior for o entendimento e a significação dos resultados. Tomando os fatos vivenciados como desencadeadores das narrativas, do ato de contar as histórias torna‐se pertinente considerar que essa construção é permeada de sentimentos subjetivações em que o sujeito passa a fazer seleção dos fatos que irá narrar. Esta seleção é então marcada por uma temporalidade específica que dependendo do contexto em que o narrador se encontra e todos os elementos emocionais que a circunda, poderá ser apresentada de maneira superficial ou com profundidade reflexiva maior, por conseguinte, O tempo narrativo, em particular, é afetado pelo modo como a narração se estende em cenas em formas de quadros, ou se precipita de tempo forte em tempo forte. [...] Cenas longamente narradas e separadas por transições breves, ou por resumos interativos [...] podem ser os pilares do processo narrativo. (RICOEUR, 2010, p. 135) Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 20 É com o entendimento de que os fatos que o narrador trará à tona em sua fala de maneira aligeirada ou apresentada com maior reflexividade e recoberta de emoção, considerando os aspectos da temporalidade narrativa, que se pauta o processo de intermediação das Entrevistas Narrativas. Assim, é salutar a exposição da ideia de que o entendimento e o processo de reflexão e análise dos textos narrativos devam considerar em sua estruturação cada elemento presente no ato de narrar, marcados pelos gestos, imagens, sons e hesitações que o sujeito possa apresentar ao longo de sua rememoração de fatos sociais vividos os quais compõem a sua história de vida. As Entrevistas Narrativas, nesse contexto, como dispositivo de pesquisa, motivam por e articulam as mais variadas concepções a cerca dos processos formativos de sujeitos jovens em seu espaço de vivência, possibilitando a articulação dos conhecimentos na (re) configuração dos aspectos inerentes a formação que envolve estes sujeitos em seu local de vivência. As experiências significativas narradas pelos jovens do campo possibilitam a apreensão de sentidos e a quebra de paradigmas no que se refere ao proceder a constituição formativa desses sujeitos. Mais do que falas e relatos, as histórias revividas por intermédio da entrevista narrativa se constituíram como um espaço de diálogo e reconstrução de si, implícitas no ato de narrar. Não poderia deixar de destacar que cada entrevista foi marcada por muita emoção e interação com um passado vivido pelos jovens e estão presentes nas ações atuais desses sujeitos. Cada silêncio e pausa acompanhados de palavras emocionadas serviram para que as análises pudessem ser traçadas ao longo do texto que se constituiu, assim como um artesão constrói uma colcha de retalhos, revestidas de sentidos e significados particularizados e coletivos, as narrativas dos jovens estão balizadas por suas experiências de vida e formação. As entrevistas narrativas: descrevendo cenários e os sujeitos de interlocução Como elemento fundante na pesquisa autobiográfica, a definição do cenário e de seus sujeitos torna‐se primordial. Quando se trata de pesquisa que envolve a utilização dos princípios e aspectos teóricos – epistemológicos da autobiografia e das narrativas de vida e formação, o espaço e a representação dos sujeitos necessitam de descrição densa e minuciosa para que ao analisar os fatos narrados pelos sujeitos, estes possam fazer sentido e assim garantir a fidelidade ao fato e não se fazer generalizações, partindo de um “fragmento particular da realidade social‐histórica, um objeto social”. (BERTAUX, 2010, p. 16). Em conformidade com o exposto, os colaboradores deste estudo são jovens oriundos de lugares diversos do semiárido baiano. Todos eles fazem parte da República de Estudantes do Centro de Formação Dom José Rodrigues1 situada em Juazeiro/BA, mantida e coordenada pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA. A escolha por esse ambiente se justifica por ser um espaço heterogêneo, com jovens de origens diversas da região Semiárida Brasileira. 1
Espaço utilizado para realização de cursos de formação pelo IRPAA, distante 12 km da cidade de Juazeiro, sendo que, existem no mesmo ambiente casas onde moram algumas famílias, dentre elas duas utilizadas como República (masculina e feminina), para jovens que desejam a formação técnica profissionalizante, em especial, na área de agropecuária e meio ambiente. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 21 Este espaço, desde o ano de 1994, recebe jovens estudantes originários do campo para fazerem o curso profissionalizante técnico em Agropecuária e, mais recentemente, o curso técnico em Meio Ambiente no Centro Territorial de Educação Profissional do Vale do São Francisco – CETEP SF, sendo a República o espaço de apoio e convivência durante o período de estudo. O ingresso desses jovens à República do IRPAA tem critérios: ser jovem do campo onde não há escolas técnicas profissionalizantes mais próximas; ser de famílias com poucas condições financeiras para mantê‐los fora da propriedade familiar, indicados (as) por entidades e/ou organizações locais que também desenvolvam uma ação efetiva junto à comunidade; que a família seja participante de organizações e movimentos sociais locais; jovens que demonstrem interesse pela área agropecuária e militem nos movimentos sociais de base. Para tanto, a entidade de base da comunidade onde o jovem reside deve encaminhar carta de apresentação para o IRPAA. Sendo aceito, mediante a disponibilidade de vagas nas casas da República, o jovem faz a inscrição para participar do sorteio eletrônico2 realizado pelo CETEP SF. Sendo o jovem contemplado, a organização social de faz parte, valida a indicação, enviando para o IRPAA uma carta de recomendação. Após todo esse processo, o jovem é então, encaminhado para a República, que possui em sua estrutura organizacional um técnico da instituição responsável para acompanhar e orientar os estudantes ou “republicanos”, por eles assim denominados. Para desenvolver essa experiência, a instituição oferece algumas condições das quais se destaca: moradia em grupo (República masculina e feminina); sala com biblioteca e computador; transporte escolar; bolsa de meio salário mínimo3; àrea de produção animal e vegetal; cursos, seminários, oficinas, prática de campo, estágio. Os dois últimos itens contribuem diretamente para o processo formativo dos jovens que ali estão, pois a produção animal (criação de caprinos, galinha, abelha) e vegetal (grãos, hortaliças e frutas) é convertida para o consumo e manutenção das duas casas em que os jovens vivem (República masculina e feminina) e do veículo utilizado como transporte escolar. Com a intenção de elucidar a pertinência deste espaço enquanto importante para a formação dos sujeitos jovens e fortalecer a escolha por transitar nele e assim construir o entendimento proposto, trago a narrativa de um dos jovens colaboradores do estudo4, [...] quando você faz o paralelo escola e república, era tendo em vista essa nova concepção nós enquanto integrantes da república do IRPAA tinha, já que agrotécnica, enquanto espaço profissional tem área de experimentação 2
Mecanismo utilizado pela Secretaria Estadual de Educação da Bahia para seleção dos alunos que farão parte dos cursos profissionalizantes ofertados pelos CETEPS. Cf. www.educacao.ba.gov.br. 3
Apoiado por projeto financiado por instituição alemã, que às vezes não contempla todo o grupo, limitando assim a alguns, provocando dessa maneira as suas organizações de origem a mantê‐los com a bolsa até que surja a possibilidade de repasse via projeto do próprio IRPAA. 4
Pseudônimos utilizados para preservar a identidade dos entrevistados, conforme orientação da Resolução nº 196/96 e 466/12 do Ministério da Saúde e Comitê de Ética, uma vez que o texto em referência faz parte de uma pesquisa maior intitulada Percursos formativos das juventudes do/no meio rural aprovada pelo Comitê de Ética sob o parecer de nº 277.848/13, originária da Dissertação de Mestrado em Educação e Contemporaneidade – PPGEDUC/UNEB intitulada Jovens no Semiárido Baiano: Experiências de vida e formação no campo, do qual o texto foi extraído. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 22 na escola, nas empresas, nós a partir do que a gente acredita, numa agricultura orgânica, numa agricultura mais sustentável, nós tínhamos um espaço de experimentação no IRPAA, então no IRPAA tinha vários planteis de criação de animais, de caprinos, de galinha, várias áreas cultivadas, hortaliça, pomar, uma curva de nível com forragem, que a gente tinha a oportunidade nesse espaço, do IRPAA de desenvolver todas atividades que a gente compreendia naquele momento na escola, e aí a gente tinha muito forte a presença e o apoio dos colaboradores do IRPAA, nos finais de semana, nos mutirões, enfim... Mas a vivência na república, ela é muito parte disso, da experimentação, do fazer, do aprender fazendo, porque na república não tinha... o professor não tava lá lhe orientando, você tinha vez que experimentava, quebrar a cara ou não, enfim... mas do aprender fazer é muito das coisas da republica que eu digo. E o cotidiano na república era bem complexo, desde o acordar às cinco e trinta da manhã pra dar comida dos animais, do cortar capim, é... o capim elefante pra você dar comida pros animais, estudar o dia todo, de manhã e de tarde e chegar na república sete da noite e ainda ter que limpar a casa e fazer janta (ANGICO, CITAÇÃO VERBAL, 2013) A narrativa do jovem descreve um lugar dinâmico e possuidor de muitos elementos formativos que não se distancia de sua vida comunitária, uma vez que Por está localizada no campo, a vivência na República requer dos jovens a aplicação prática da experiência da lida na roça presente em suas vidas, considerando que são jovens filhos de agricultores familiares. Eles são provocados a desenvolver práticas que tenham vinculação com a lógica da discussão de convivência com o semiárido – CSA. Aspecto esse, que rompe com a ideia de combate à seca e insere a perspectiva de valorização do ambiente local e principalmente da compreensão de como é organizado, suas potencialidades, particularidades e especificidades, construindo um pensamento crítico sobre as formas predominantes de intervenção nessa realidade. Sendo assim, corroboro do pensamento de Silva (2008, p. 16) quando assevera que, A partir da década de 1980, novos atores sociais passaram a resgatar e a desenvolver propostas e práticas orientadas pela concepção de que a sustentabilidade do desenvolvimento implica a convivência com o Semi‐
Árido. Ao mesmo tempo, constroem‐se estratégias e proposições que relacionam o desenvolvimento sustentável no Semi‐Árido aos avanços econômicos alcançados com base na eficiência tecnológica e na racionalidade produtiva que permitem aproveitar as condições edafoclimáticas locais. Em outras palavras, a lógica da CSA diz respeito ao paradigma emergente que rompe com a lógica da política dominante secularmente existente no Brasil, principalmente porque as discussões nascem de órgãos de pesquisa e de movimentos sociais e organizações não governamentais. O intuito da ideia de CSA é ampliar o debate para o desenvolvimento local e regional a partir de práticas e tecnologias que se adequam a região e dessa maneira produzir conhecimento, desenvolvimento e particularmente formas de conviver com as características pertinentes ao Semiárido brasileiro, que vão desde as questões climáticas as voltadas para a produção econômica e social. O marcador principal da discussão de CSA está Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 23 na luta pela terra (discussão da reforma agrária e acesso a terra), no acesso a água (construção de política de recursos hídricos), no acesso a educação de qualidade e contextualizada e nas relações igualitárias de gênero, assim, acredito que, [...] é possível criar como estratégia de convivência com o Semiárido brasileiro, diversas possibilidades que facilitem a vida das pessoas que vivem nessa região. A proposta de Convivência com o Semiárido Brasileiro (CSA) traz uma série de tecnologias voltadas para a captação de água para o consumo humano e animal e para a produção, organizadas de maneira que possam existir em formas e ambientes diversificados e que garantam a qualidade de vida para todos os que vivem na região. (SANTOS, 2010, p. 88) A discussão de CSA é apresentada aos jovens desde o momento em que estão em suas comunidades a partir do trabalho desenvolvido pelas associações, sindicatos ou até mesmo pelas ações do IRPAA por meio das mais variadas ações que fazem parte do seu cotidiano. A participação dos jovens nos diversos cursos e oficinas, na comunidade e durante o convívio na República tem o objetivo de garantir a condição de discernir as questões que mais se adequam ao contexto em que vivem e, dessa maneira, propagar a missão institucional. Para permanecerem na República, os(as) jovens assumem algumas convenções, dentre as quais são destacadas: reformar, melhorar e conservar as instalações da residência; conservar, reformar e construir as instalações para a criação de animal e as áreas de plantio; produzir para alimentação e comercialização do excedente (venda); conservar e manter os livros e computadores, repondo o que for danificado ou extraviado; administrar e complementar a bolsa para pagar alimentação, transporte, material escolar e outros; ter disponibilidade e interesse para participar e atuar como multiplicador ou multiplicadora do conceito de convivência com o semiárido nos espaços, como a escola, grupos de estudo, seminários; participação ativa na vida escolar; aprovação em 80% dos módulos de formação desenvolvidos pela equipe técnica do IRPAA para os jovens da roça e em 100% no curso do ensino médio ou de formação técnica desenvolvido pelo CETEP SF; manter assiduidade na frequência escolar; buscar formas de convivência no grupo e no meio ambiente, entendendo‐se aí os espaços da roça e da escola, mantendo diálogo para encaminhamento e desenvolvimento do projeto de desenvolvimento da República na roça; cumprir com o acordo de convivência construído pelo grupo (DOCUMENTOS..., 2013). Para a escolha dos sujeitos da pesquisa, foram estabelecidos alguns critérios, entre eles: o jovem precisava fazer parte da República como estudante ou já ter vivenciado essa experiência no local; ter vínculo com as ações desenvolvidas pela instituição como estudante ou técnico; ter entre 15 a 29 anos de idade, fator que serviu apenas como demarcador para a discussão sobre a construção da categoria juventude do campo em consonância às políticas públicas nacionais. Para a apresentação dos narradores que dão vida ao estudo utilizo‐me de pseudônimos voltados para elementos presentes na fauna e flora da caatinga, aproximando‐
os da realidade em que vivem, garantindo ao mesmo tempo a confidencialidade e o sigilo a suas identidades originais. A partir daqui, apresento o perfil biográfico de Angico, Borboleta, Mandacaru, Umbuzeiro, Abelha e Asa‐Branca. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 24 Asa‐Branca é uma jovem de 21 anos, nascida em São Paulo, que viveu parte de sua infância e adolescência entre a Bahia e o Estado de São Paulo, sendo que na Bahia, viveu em uma comunidade remanescente de quilombo. Umbuzeiro, um jovem de 21 anos, nascido em área rural do interior da Bahia, viveu entre a roça, área de sequeiro, e a cidade. Mandacaru, jovem de 23 anos, viveu sua vida inteira na comunidade de área de fundo de pasto e Borboleta, jovem de 26 anos, nasceu no campo, na roça ou num sítio – uma comunidade um pouco afastada do povoado, numa área de projetos de irrigação. Todos os já citados possuem em comum o fato de serem filhos de pais separados e viverem uma vida que, desde muito cedo, agregaram‐lhes obrigações de adultos para administração de conflitos e organização familiar. Em contraposição Abelha, jovem de 21 anos, residia em uma comunidade em área de sequeiro, na qual os pais viviam de meeiros e tem dois irmãos, sendo um deles especial (pessoa com necessidades especiais). Esta se apresenta como uma das pessoas que tem muito carinho e sente‐se responsável pelo irmão. Angico, jovem de 23 anos, natural de uma comunidade também de área de sequeiro, tem a presença de seus pais constantemente ao longo de seu processo formativo e demonstra em suas narrativas o envolvimento emocional e o cuidado com os irmãos. Essa primeira caracterização demonstra o quanto a categoria família é significativa para o processo formativo dos jovens e para a aquisição de experiências de vida. O processo formativo desses sujeitos contempla ainda as diversas ruralidades e experiências locais como parte integrante do seu percurso de formação. Nesse sentido, Josso diz que, As experiências de vida de um indivíduo são formadoras na medida em que, a priori ou a posteriori, é possível explicitar o que foi aprendido (iniciar, integrar, subordinar), em termos de capacidade, de saber‐fazer, de saber pensar e de saber situar‐se. O ponto de referência das aquisições experienciais redimensiona o lugar e a importância dos percursos educativos certificados de formação aprendente, ao valorizar um conjunto de atividades, de situações, de relações, de acontecimentos como contextos formadores. (JOSSO, 2010, p. 266‐267) Compreendo, portanto que, a relação que as pessoas estabelecem ao longo de sua vida contribui, quiçá influencia em todo o seu percurso formativo. Com essa compreensão, é pertinente apresentar, de forma sucinta, algumas das experiências de vida dos narradores que fazem parte desse estudo. A jovem Asa‐Branca é de origem de uma comunidade remanescente quilombola (não reconhecida). Atuou como catequista e mobilizadora de grupo de jovem em sua comunidade, além de ser Agente de Desenvolvimento Social do programa Gente de Valor5. Envolvida com o processo de reconhecimento de comunidade Quilombola, transita pelas discussões ligadas à cultura afrodescendente e atuou na comunidade em conjunto com a associação comunitária. O jovem Umbuzeiro estudou na comunidade da área de sequeiro, concluiu o ensino médio por meio do telecurso 2000. Foi morar com o avô, que morava na cidade, para 5
Programa desenvolvido pelo Governo do Estado da Bahia pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional ‐ CAR que prioriza a participação direta dos homens e mulheres do campo na decisão e escolha das ações a serem implementadas em suas comunidades com foco na redução da fome e da pobreza, implementados em municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano ‐ IDH. Cf. http://www.car.ba.gov.br/inst_programas.asp?id=1 Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 25 trabalhar num comércio, aos 17 anos. Desde os 12 anos, trabalhou na roça como diarista na preparação e cultivo agrícola. Por influência do irmão, começou a acompanhar as reuniões de associação comunitária e, logo depois na participação junto às ações do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Abelha sempre foi calada e tinha poucos contatos durante a infância (especificamente até a quarta série), ampliando seus laços de amizade quando passou a residir com sua a avó, que morava na cidade. Voltou a residir com os pais na fazenda (assim denominada pela jovem) e viajava todos os dias para estudar na cidade, concluindo o ensino médio. Atendida pelo programa Gente de Valor, executado pelo IRPAA em parceria com o Governo Estadual, participou de diversos cursos e de reuniões comunitárias. Mandacaru estudou sempre na comunidade. Participou de grupos de jovens, chegando a ser coordenador. Envolveu‐se com atividades de mobilização comunitária, catequista, entre outras. Quando estudante foi representante de turma; participava como membro da associação comunitária, chegando a ser presidente. Foi alfabetizador de jovens e adultos na comunidade. É aluno do curso de juristas leigos, voltado para comunidades do campo, no sentido de instrumentalizar os jovens para que possam montar peças jurídicas em defesa das causas populares, com o propósito de garantir a essa população a condição de busca pela efetivação dos direitos garantidos em Constituição, onde pela falta de conhecimento são lesados. O curso é organizado em módulos, dentre os quais se destacam: Teoria geral do Estado; Teoria geral do Direito; Direito civil; Direito previdenciário; Direito ambiental; Direito agrário; Direitos humanos fundamentais; Direito do trabalho; Direito penal e processual penal (AATR, 2013). Borboleta sempre militou junto a grupo jovem e movimentos sociais na comunidade e também na associação de trabalhadores rurais. Participou junto à comunidade de um grupo de teatro. Após a aprovação no vestibular, mudou‐se para a cidade e logo depois sua mãe e a irmã também mudaram. Durante a graduação, fez parte de monitorias e grupos de pesquisa, além de se envolver com os movimentos estudantis, outros movimentos sociais, dentre eles Movimento do Sem Terra, Movimento pela revitalização do rio São Francisco. Angico estudou na comunidade até o final das séries iniciais, e concluinte do ensino fundamental na Escola Família. Sempre esteve envolvido com grupos de jovens e participação em associação, além de participar de cursos e encontros que eram ofertados na comunidade. Fez o curso técnico em Agropecuária em Juazeiro na Escola Agrotécnica, que atualmente, é o CETEP SF e, residente da República do IRPAA, como estudante bolsista. Mesmo no final do curso em 2009, já integrava a equipe da instituição no setor de produção. Ainda no campo da aproximação das experiências formativas, agora no campo institucionalizado, os jovens Angico, Asa‐Branca, Abelha e Umbuzeiro têm como aspecto em comum o curso Técnico em Agropecuária desenvolvido pelo CETEP SF e a experiência de viver na República, cada um em tempos diferenciados; entretanto, Angico já concluiu o curso e atua como técnico na própria instituição e está finalizando o curso de Gestão Ambiental em nível superior. Asa‐Branca finalizou o curso no primeiro semestre deste ano (2013) e Abelha e Umbuzeiro concluem no mês de janeiro do ano de 2014; ambos estão na fase de estágio, enquanto a jovem Borboleta já concluiu o curso de Comunicação e Licenciatura em História e atua como técnica em comunicação do IRPAA. Mandacaru está, atualmente, cursando Meio Ambiente (técnico) no CETEP SF. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 26 Com essa caracterização, é possível inferir que as experiências diversas dos jovens incidem diretamente na constituição desses sujeitos; os diversos espaços e os tempos que eles vivenciam traduzem para si a condição de interação com os demais sujeitos. Análise compreensiva das narrativas de vida Como perspectiva de análise, direciona‐se o olhar para as questões inerentes a Análise Compreensiva fundamentada nas discussões apresentadas por Bertaux (2010), uma vez que tem o objetivo de explicitar as informações e significações nela contidas. Nessa mesma perspectiva, as reflexões sobre o método da análise compreensiva da experiência de vida Josso (2010) é também evidenciada nesse processo. Essa forma de análise tem sua construção por meio do método hermenêutico, tendo como referência principal as reflexões apresentadas por Gadamer e também Delory – Momberger, os quais aproximam a metodologia dos aspectos da hermenêutica, dando ênfase à interpretação dos fatos vivenciados. A análise compreensiva em que me pauto para ir além das significações apresentadas pelos narradores é uma perspectiva, que tem como essência a funcionalidade do verbo “compreender” que exprime, dessa maneira, o espírito da análise. Para ampliar a compreensão das questões desta pesquisa, recorri à Fenomenologia para o processo de análise das narrativas de vida dos jovens do campo, uma vez que a abordagem fenomenológica preocupa‐se com a realidade incorporada nos processos das experiências humanas subjetivas (SCHUTZ, 2012). Como princípio básico da análise compreensiva, a imaginação e o rigor se constituem como elementos fecundos para o processo de compreensão das narrativas de vida, todavia dando ênfase à imaginação por se tratar da constituição de uma representação, inicialmente mental e na sequência discursiva, que marcam os fenômenos dos quais se falam (BERTAUX, 2010). Logo, é o processo de inteligibilidade do analista, seu mundo cultural em justaposição aos fatos narrados que possibilitarão a compreensão de suas particularidades expressas de maneira clara ou que se mantêm no anonimato das falas, fazendo vir à tona a condição imaginativa do analista no sentido de significar o que o narrador apresenta de maneira diacrônica reconstituída pelos sujeitos; além disso, a condição de recolocar os fatos e posicionar a imaginação de maneira a considerar os variados percursos de vida e os contextos históricos em que os fenômenos ocorrem. É, pertinente destacar que, sendo a análise pautada no processo hermenêutico, a interpretação dos indícios que se apresentam na narrativa dos sujeitos, denota dessa maneira o seu contexto vivencial e as nuances que compõem a sua identidade. Conforme expõe Delory – Momberger (2008, p. 56‐57): A narrativa autobiográfica instala uma hermenêutica da “história de vida”, esto é, um sistema de interpretação e de construção que situa, une e faz significar os acontecimentos da vida como elementos organizados no interior de um todo. [...] A compreensão desenvolvida a partir da inteligibilidade de sua própria vida revela ao pesquisador a capacidade epistemológica de aderir a sentidos que não eram os seus e reconstruir relações significantes particulares ao seu objeto de estudo: época da história, sistema cultural, instituição, obra de arte ou personalidade histórica. O princípio mesmo de uma ciência humana constrói‐se com base na autorreflexão e na auto‐interpretação que o homem, aqui o historiador ou Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 27 pesquisador, é capaz de realizar sobre si mesmo a partir de sua própria experiência de vida. A composição das narrativas e os seus significados passam a fazer sentido, considerando cada frase, casa palavra, cada gesto e silêncio que o narrador apresenta ao longo da sua produção. A análise, nesse caso, permite um processo permanente de implicação em sua produção, propondo o distanciamento necessário para a sua construção. A análise das narrativas dos jovens do campo, sujeitos desta pesquisa, foi constituída a partir de dois momentos. Inicialmente, após leitura indiscriminada e cuidadosa dos fatos narrados, levantou‐se um conjunto de categorias teóricas, que surgem como indícios de sua constituição, uma vez que toda narrativa vivenciada pelos sujeitos e mediada ao processo de reflexo produz numerosas indicações de fenômenos que não são normalmente evidenciados pela fala (BERTAUX, 2010). Como segundo momento, de posse das categorias e as reflexões epistemologicamente realizadas entre todos os fatos narrados e considerados pertinentes ao estudo diante da problemática apresentada e do conjunto de fatores históricos vividos, montou‐se um quadro analítico das categorias insurgidas, possibilitando, dessa maneira, realizar o cruzamento das narrativas e, assim, inferir o conhecimento válido, questionado ao longo da pesquisa. Surge neste momento, a percepção das relações intersubjetivas presentes nas falas do sujeito, também o entendimento de que: [...] É por meio da comparação entre os percursos biográficos que se percebem recorrências das mesmas situações, das lógicas de ação semelhantes; que se descobre, através de seus efeitos, um mesmo mecanismo social ou um mesmo processo. (BERTAUX, 2010, p. 121) Esse movimento possibilitou‐me enquanto pesquisador retomar as questões de pesquisa e objetivos no intuito de compor os resultados do estudo com os jovens que vivem na República do IRPAA e os que viveram nesse espaço de pluralidades significativas e, atualmente, atuam como técnicos/colaborares da instituição e também com aqueles que foram beneficiados pelas ações desenvolvidas em suas comunidades. A compreensão dos fenômenos intrínsecos as experiências de vida dos jovens foi fundamental para atribuir leituras validadas pelo rigor do método e de toda a composição. Narrativas e trajetórias de formação: sinalizações e perspectivas de formativas de jovens do campo Falar de si torna‐se uma tarefa não muito fácil, pois envolve um processo de rememorizar e reviver momentos que fizeram parte da vida do sujeito. A fala do sujeito que narra pode vir repleta de aspectos voltados para a emoção e hesitações, por sua vez, o estudioso de história de vida encontra desafio em extrair da enunciação informações disponibilizadas e aspectos que desvelem e estão presentes no cotidiano da sociedade que permitam a sua compreensão. Sócrates chamava esse procedimento de partejamento, não de si, mas das ideias alojadas dentro de si. No decorrer dos fatos históricos, as histórias de vida ligadas ao método autobiográfico foram modificando‐se, mediadas pelo pensamento de diversos autores. A prática da confecção de diários que registravam os fatos acontecidos e o ato de refletir sobre a intimidade, os desejos, sonhos e medos que permearam os tempos históricos, cada um deles vivido com uma conotação diferenciada a depender do período histórico em que era Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 28 esse estava inserido, fez avançar na construção de uma perspectiva de método. No Renascimento (séc. XVII), mediante os conflitos que se viviam na época, a publicação de autobiografias católicas surgem como determinante do desenvolvimento da consciência individual dos fiéis, A verdade já não se impõe, é conquistada cotidianamente. O exame de consciência, seguido de seu registro num diário intimo, torna‐se um meio pessoal importante de recolher vestígios e construir sentido num meio social turbulento. (PINEAU; LE GRAND, 2012, p. 51) As histórias de vida, na contemporaneidade, caracterizam‐se como estratégias de pesquisa pessoal e coletiva, que desestruturam paradigmas tradicionais de pesquisa, implicado na escuta da pessoa e no diálogo (RIOS, 2011). A interlocução do pesquisador para a obtenção das narrativas se constitui elemento fundante para a construção das histórias de vida. Conforme Poirier (1999, p. 26) A história de vida constitui um “acto” de pesquisa, implicando não somente a pessoa do locutor, não somente a sua envolvência social, mas também a pessoa do investigador, que realiza a entrevista, e o seu próprio meio sociocultural. A “recepção” da narrativa não é meramente passiva; o entrevistador encontra‐se inteiramente comprometido nesta empresa de criação comum. A criação comum, da qual trata o autor, pode também ser ampliada para a concepção de que a motivação da construção dos fatos que marca a vida dos sujeitos traz em sua constituição uma não linearidade e atemporalidade, por mais que se apresentem datas e se constitua um esforço em situar o ocorrido no tempo, o que é mais significativo é a apropriação pelo próprio sujeito de sua história e todo o processo de interpretação na direção de se projetar a sua vida. Diante desta perspectiva o jovem Mandacaru em sua narrativa aponta elementos que demonstram a não linearidade presente na narrativa, quando diz: Eu quero buscar estudar e conseguir uma profissão que venha a dizer o que eu gosto de fazer [...] eu como um jovem de uma comunidade rural acho que como muitos [colegas] que conheço, devia ter ido por outro caminho. Pararam de estudar, ter ido vagabundar junto com outra galera, mas não, escolhi outro caminho, caminho difícil, mas acho que proveitoso, e eu me sinto grato com que vivi hoje. (MANDACARU, 2013, CITAÇÃO VERBAL) O jovem Mandacaru sinaliza, na epígrafe acima, a presença do trabalho em sua vida, deixa transparecer os aspectos sociais construídos ao longo dos tempos e como estes influenciaram os seus percursos formativos, especialmente quando trata da relação familiar e a dimensão do trabalho na sociedade. Esses fatores e outros apontados no trabalho com as narrativas de vida e formação de jovens da roça possibilitou‐me a revisão de muitos conceitos preestabelecidos no que diz respeito à juventude. As trajetórias de formação presentes no contexto das novas ruralidades, desveladas nas narrativas dos jovens do campo apontam para uma complexidade na configuração dos Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 29 espaços e tempos em que ocorrem. A formação não é algo que se dá apenas com a institucionalização. Ela está implícita nas experiências individuais e coletivas a partir da família, da escola e do trabalho que desencadeiam naturalmente subcategorias significativas: religiosa, cultural, política e comunitária. Tais elementos estão voltados diretamente para a trajetória de formação dos jovens, necessitando de um olhar mais cuidadoso ao se pensar nos processos que envolvem ou atendem diretamente esse público. Tomo como princípio a compreensão de que “falar das próprias experiências formadoras, é contar a si mesmo a sua própria história, as suas qualidades pessoais e socioculturais” (JOSSO, 2004, p.48) as quais, aos poucos, vão internalizando‐se e sendo reconstituída. Com isso, a análise compreensiva das narrativas evidencia o reflexo da construção social em que os jovens vivem e a influência no seu processo formativo. A formação dos jovens no campo tem como princípio norteador as experiências familiares, tomando a família como primeira instituição social extremamente relevante na constituição de suas identidades. Um outro espaço formativo que ganha destaque neste processo é a vivência no ambiente escolar e no trabalho. Por isso, é apresentada também a relação de convivência com a comunidade como um processo de formação social, política e cultural presentes nas escolhas e nos projetos de vida que os narradores, colaboradores da pesquisa, sinalizaram em suas histórias de vida. A origem familiar é um aspecto que sobressai em todas as narrativas. Ao iniciar as narrativas, os jovens retomam a origem de seus pais ou de outra pessoa que possui vínculo parental e desvelam as singularidades das famílias que vivem na roça e as relações produzidas sobre suas formações. Podemos observar isto no trecho da narrativa de Umbuzeiro, estudante do Curso Técnico em Agropecuária e vive na República do IRPAA, ao iniciar sua narrativa de vida afirmando que: “minha história começa com a minha avó”. A sua história é a continuidade da vivência de outros sujeitos, sendo sempre retomada ao falar de si, como continua, Minha vó teve cinco filhos, filhos e filhas e, meu avô foi e largou ela, separou. Ai ela não tendo como criar esses cinco filhos, deu minha mãe, doou. [...] esse senhor criou minha mãe, e depois que ela cresceu, casou‐se, ai minha vó veio procurar minha mãe, ai quando chegou que, ai encontrou primeiro com Marmeleiro, ai falou: "Não, ela já tá casada, já tem filhos” e ai, minha vó foi atrás de minha mãe, acabou encontrando, e esse senhor que criou minha mãe, acabou se interessando por minha vó e os dois se casaram. (Depoimento) O jovem, em sua narrativa, sinaliza duas questões significativas para a compreensão de como a sua trajetória formativa se constituiu. A primeira trata do grande número de filhos que a avó tinha, aspecto que remonta a uma das questões sociais muito frequentes no campo pela própria dificuldade da vida em meio à seca e com relação à geração de renda, as doações das crianças, geralmente, para que parentes pudessem criá‐las. A segunda questão aponta as relações matrimoniais. Ao longo da história, o matrimônio aparece como algo sagrado nas comunidades rurais, se levado em consideração o contexto presente nas relações familiares constituídas até meados do século XX, no qual predominava o poder hegemônico e masculinizado. Nesse período, uma união não se desfazia com tanta facilidade por questões morais e éticas, particularmente no campo, preconizada pelo domínio de Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 30 coronéis. Contudo a narrativa de Umbuzeiro aponta para: “meu avô foi e largou ela [...] e quando eu tinha cinco meses de idade meu pai se separou de minha mãe”. É possível perceber que ocorre uma espécie de um continuum, possibilitando a compreensão de que o jovem Umbuzeiro demonstra a instabilidade da relação familiar presente em sua vida, que reflete de maneira significativa em sua constituição identitária. A elucidação das experiências familiares está como principio norteador tendo em vista que a família, como primeira instituição social, aparece como um dos ambientes de formação com significado relevante para a vida dos sujeitos. Outrossim, estão vinculados a estes processos a vivência no ambiente escolar e todas as especificidades geradas por esse espaço, sem desconsiderar o trabalho e a geração de renda como elementos fundantes para o processo formativo. E, por fim, o conjunto social que constitui a sua comunidade, destacando‐se para este último a formação social, política e de geração de renda presentes nas escolhas e nos projetos de vida que os narradores colaboradores da pesquisa sinalizam. Assim, destaco os principais aprendizados e sinalizações a partir das análises das análises realizadas. O primeiro aspecto que aponto como sinalização é a presença forte da família como alicerce de aprendizagem na formação dos jovens. Sendo a primeira instituição oficial em que os sujeitos passam, essa carrega em seu cerne aspectos sociais e culturais que serão balizares para a formação de qualquer indivíduo que passe a fazer parte dela. É nesse contexto que se desencadeiam as principais experiências formativas dos sujeitos. No caso dos jovens aqui referendados, tem destaque a estrutura familiar em que estão inseridos. A configuração familiar no semiárido baiano, desveladas por meio das narrativas, remonta à questões tradicionais, no que se refere à forma de organização familiar presente no início do século XIX, onde o casal é composto por homens mais velhos e as mulheres contraem o matrimônio ainda adolescente, construindo, a partir daí, famílias muito numerosas. Outro aspecto que os jovens desvelaram por meio de suas narrativas é o fato de que, além da perspectiva familiar apresentada, as separações entre o pai e a mãe é muito evidente no espaço estudado. Dos seis jovens entrevistados, somente dois deles convivem com a família composta pelo pai e a mãe, as demais possuem outras configurações, inserindo‐se, nesse contexto, a presença dos avós e tios. Nesse processo, a responsabilidade pela manutenção e cuidado dos filhos recai sobre a mulher e, geralmente, pelos pais (avôs) dessa mulher, inclusive construindo um núcleo familiar onde mais de uma família se agrega, quebrando o paradigma da família tradicional patriarcal e monoparental. Ainda falando do núcleo familiar, destaca‐se a questão do pouco conhecimento escolarizado por parte dos pais. Todavia, esse aspecto não traz prejuízos quanto ao incentivo desses jovens ao estudo, uma vez que em suas narrativas destacam sempre o incentivo dos pais para que continuem estudando, como forma de os filhos terem aquilo que não lhe foi possível adquirir em suas vidas. O desafio que este trabalho lança é o de proporcionar aos jovens, educadores e família uma reflexão sobre os processos formativos desses sujeitos, visando a necessidade de busca constante pela garantia de acesso aos seus direitos. Nesse sentido, não se pode perder de vista que o campo possui particularidades e necessidades que necessitam ser desveladas para que uma nova emergência paradigmática possa adentrar ao universo da pesquisa e da intervenção social, partindo da utilização das narrativas autobiográficas como elemento articulador de processos formativos desses sujeitos. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 31 Referências ASSOCIAÇÃO DE ADVOGADOS DE TRABALHADORES RURAIS DO ESTADO DA BAHIA. Juristas leigos. Disponível em: http://www.aatr.org.br/Programas/Juristas_Leigos.htm. Acesso em: 19 de dez. de 2013. BAUER, Martin W. GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som: um manual prático. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2002. BERTAUX, Daniel. Narrativa de vida: a pesquisa e seus métodos. Tradução Zuleide Alves Cardoso Cavalcante; Denise Maria Gurgel Lavallée. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010. DELORY‐MOMBERGER, Christine. 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formação‐profissão de uma professora de Geografia percebemos que as experiências e as aprendizagens vividas ao longo da trajetória pessoal e profissional são demarcadas por incertezas quanto à escolha profissional e o medo da inserção na profissão docente. Os excertos narrativos da professora pesquisada/colaboradora nesta investigação nos possibilitou entender como uma pessoa/profissional itinerante estabelece sentidos a sua história de vida‐formação‐profissão, as suas experiências formadoras inscritas em suas identidades e subjetividades construídas ao longo da vida, embora muito ainda esteja por entender e dizer, mas esta investigação contribuiu para compreender um pouco a dinâmica de quem exerce a profissão docente numa escola inserida num espaço rural no Território de Identidade do Sisal baiano. Palavras‐chave: História de Vida; Professora de Geografia; Roça. O contexto do trabalho: uma introdução No contexto da contemporaneidade torna‐se pertinente refletir e discutir sobre as concepções teóricas e metodológicas que norteiam as pesquisas de abordagens (auto)biográficas, bem como a importância que os estudos com e sobre histórias de vida de professores vêm adquirindo na área educacional, sejam eles como metodologia de pesquisa, prática de formação ou investigação‐formação. Como prática de investigação, estes estudos têm contribuído de forma crucial para compreendermos como os professores em atuação se constituem no devir da profissão, pois ao emergir nestes sujeitos as memórias de vida e as experiências formativas adquiridas ao longo de sua trajetória, estes nos apresentam elementos essenciais para compreendermos as razões e as origens pela qual optaram/chegaram à profissão docente. Esse trabalho é um recorte da pesquisa de conclusão apresentado ao curso de Licenciatura em Geografia da Universidade do Estado da Bahia, Campus XI, intitulado “A caminho da roça: história de vida, percursos formativos e atuação profissional de uma professora de Geografia”, cujo objetivo foi conhecer, a partir da narrativa (auto)biográfica, as trajetórias de vida e de formação de uma professora itinerante de Geografia que vive na Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 33 cidade e atua numa escola da roça localizada no Povoado de Isabel, espaço rural do município de Serrinha‐Ba, intentando analisar as implicações no seu devir profissional pelas suas itinerâncias de vida‐formação‐profissão. Vale ressaltar que esta pesquisa é ancorada na abordagem qualitativa, amparada no método (auto)biográfico por compreender que as narrativas de vida e de formação não podem ser desconsideradas num processo formativo docente, pois este “[...] possibilita, a partir das narrativas (auto) biográficas, entenderem os sentimentos e representações dos atores sociais no seu processo de formação e autoformação (SOUZA, 2006a, p. 34), permitindo que o sujeito se torne mais visível, possibilitando o conhecimento de si para poder promover ações transformadoras no seu devir profissional docente. Assim, o trabalho com (auto)biografia é considerado por muitos autores que pesquisam a formação docente, a exemplo de Souza (2006) como um campo fecundo de investigação e de grande potencial para os estudos na área da educação, sobretudo nos processos de formação inicial e continuada. Este método tem permitido aos sujeitos a ressignificação das lembranças que comportam a subjetividade e a singularidade, possibilitando‐os uma reflexão das experiências vivenciadas ao longo de sua trajetória de vida e de formação, exaltando não só a pessoa, mas também e, principalmente, o profissional. Desta forma, o método (auto)biográfico tem contribuído para a pesquisa educacional e a formação docente na medida em que tem nos permitido uma gama de conhecimento sobre os processos formativos docentes, bem como também na desconstrução de ideias e representações sobre a ação docente que vinculava até o início da segunda metade do século XIX e que exaltava o profissional em detrimento da pessoa que este se constituía (SOUZA, 2006). Assim, os estudos com o método (auto)biográfico: [...] se revela como pertinente para a autocompreensão do que somos, das aprendizagens que construímos ao longo da vida, das nossas experiências e de um processo de conhecimento de si e dos significados que atribuímos aos diferentes fenômenos que mobilizam e tecem a nossa vida individual/coletiva. Tal categoria integra uma diversidade de pesquisas ou de projetos de formação, a partir das vozes dos atores sobre uma vida singular, vidas plurais ou vidas profissionais, no particular e no geral, através da tomada da palavra como estatuto da singularidade, da subjetividade e dos contextos dos sujeitos (SOUZA, 2006a, p. 27). É nesta perspectiva de compreensão do singular e do plural da vida cotidiana que este trabalho se insere, uma vez que analisar a trajetória de vida e de formação de uma professora de Geografia que vive na cidade e atua na escola da roça6, localizada em Serrinha, torna‐se imprescindível para conhecer as subjetividades e as singularidades que constituem os sujeitos deste espaço (a roça) a fim de compreendermos o processo de ensino e de aprendizagem neste lugar. 6
Termo muito utilizado por Fábio Josué dos Santos Souza (2006) por considerar a roça, uma categoria teórica, e geográfica, importante por possuir múltiplos sentidos no modo de vida dos sujeitos que residem em áreas rurais. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 34 Nesta perspectiva, a narrativa (auto)biográfica nas pesquisas educacionais opera como um subsídio importante tanto para o pesquisador quanto para o docente, pois ajuda a compreender sua formação e refletir um pouco mais sobre suas experiências, suas aprendizagens e sua prática em sala de aula, pois a pesquisa (auto)biográfica nos permite “[...] compreender uma vida, ou parte dela, como possível para desvelar e/ou reconstituir processos históricos e ontrealvess vividos pelos sujeitos em diferentes contextos” (SOUZA, 2006a, p. 24). Como dispositivo de coleta de dados, utilizamos a entrevista narrativa, considerada importante neste trabalho por se caracterizar como “[...] uma forma de entrevista não estruturada, de profundidade, com características específicas” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2008, p. 95), com o intuito de conhecer, a partir da narrativa (auto)biográfica, as trajetórias de vida e de formação de uma professora itinerante de Geografia, colaboradora deste estudo, que nasceu na roça, vive na cidade e trabalha numa escola rural. A relevância desta temática para a escolha investigativa emerge, sobretudo, das observações e reflexões de uma das autoras deste artigo, moradora do Povoado, onde se localiza o locus desta pesquisa, sobretudo por ter sido aluna da Escola Marlene Assis de Lima, localizada no referido povoado, e por ter convivido com alguns professores que lecionavam/lecionam neste espaço educativo, além de ser uma temática emergente, com poucas produções acadêmicas que envolvem histórias de vida, formação e atuação docente nos espaços rurais. Além disso, a justificativa atribuída à escolha deste objeto de investigação também está relacionada ao fato desta mesma autora ter sido moradora da roça, cujas raízes culturais são de espaços rurais, inserida num espaço educativo superior, cujo curso não oferece uma disciplina/componente curricular que discuta melhor a educação rural/campo. Além disso, estas questões relacionadas às escolas localizadas em espaços rurais e, principalmente, aos professores que atuam nestes espaços, têm sido um tema periférico no meio acadêmico, sendo pouco discutidos em trabalhos científicos. Entre pedras e caminhos que levam à roça, as narrativas de uma professora itinerante Muitas são as subjetividades que envolvem a vida, a formação e a profissão de uma pessoa. Chaves (2006) anuncia que é “Conhecendo os cantores, conseguimos compreender melhor as canções que elas entoam, podendo, assim colaborar, na composição de novas/outras melodias (p. 162). Melodias estas que marcam a nossa vida, a nossa formação e atuação docente. Deste modo, falar de educação nos espaços rurais é falar dos sujeitos que interagem neste espaço. Assim, a entrevista narrativa contribuiu incisivamente para a atividade investigativa porque proporcionou o contato direto com o sujeito da pesquisa, admitindo ver, sentir, ouvir e perceber os gestos desta professora ao narrar sua vida, sua formação e sua profissão, pois a partir desta técnica, o pesquisador se apropria de informações acerca do que os entrevistados creem, esperam, expressam, sentem e desejam, numa perspectiva interpretativa analítica de fatos e fenômenos biográficos que marcaram sua história. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 35 A professora Sol7 em sua entrevista começa descrevendo quem ela é, sua idade, filhos, formação, entre outros. Neste sentido, foi/é importante a partir da entrevista narrativa contextualizar o perfil do sujeito (Quadro 1) no sentido de definir características e singularidades, como bem salienta Souza (2006). Quadro 1‐ Perfil biográfico da Professora Sol IDADE 42 anos ESTADO CIVIL Casada Nº DE FILHOS 2 FORMAÇÃO Pedagogia; Psicopedagogia; Letras Vernáculas TEMPO EM QUE ATUA COMO 16 anos PROFESSORA TEMPO EM QUE ATUA EM ESPAÇO 10 anos RURAL SITUAÇÃO FUNCIONAL Concursada TEMPO EM QUE ENSINA 9anos GEOGRAFIA TEMPO EM QUE ATUA NA ESCOLA 3anos Fonte: Dados da pesquisa. Em sua narrativa, sobre as lembranças do espaço onde vivia, a Professora Sol relata que quando morava na zona rural8 ia para a roça trabalhar com seus pais. Segundo ela, embora fosse a mais nova dos seus seis irmãos, fazia o trabalho mais leve na roça, como plantar milho, feijão e raspar mandioca, trabalho muito comum na vida dos moradores deste lugar. Ainda relata ter tido uma infância mal vivida porque não foi estimulada a realizar algumas das ações próprias da sua idade, como brincar e ser criança. Em seu relato, acredita não ter vivido esta fase por causa da cultura de seus pais e da educação que tivera na roça, “Não vivi muito a fase talvez por causa da cultura e da educação que tive. [...]. Não lembro que eu brincava de boneca, eu não vivi esse momento tão infantil. (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012).
Sobre o período de sua escolarização, a Professora Sol conta que, embora seus pais não fossem alfabetizados, eles se preocupavam com a escolarização de seus filhos por acreditar que a educação pudesse melhorar suas vidas, algo muito comum quando nos reportamos aos pais e o sentido da educação e da escola na vida de seus filhos. Segundo a Professora Sol, sua trajetória de vida estudantil nos anos iniciais ocorreu no espaço rural, onde estudou até a 4ª série/5º ano do ensino fundamental. Vítima da palmatória, diz ter sido uma aluna traumatizada ao enfatizar as recordações do processo de aprendizagem, sobretudo do conhecimento matemático. Fica evidente em sua narrativa que 7
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Nome fictício dado à professora colaboradora no intuito de preservar sua identidade. Termo bastante utilizado pela docente, colaboradora desta pesquisa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 36 para ela, aprender/decorar as quatro operações, como por exemplo, a multiplicação na 3ª e 4ª séries/4º e 5º ano foi muito difícil, entretanto, salienta que apesar desta não ter sido a forma correta, ela aprendeu muito e descreve que: Tinha pavor da aula de sexta‐feira porque era dia de tabuada, sabatina, pois apanhava dos colegas quando não acertava a tabuada[...]Na hora de ficar enfileirado porque a dinâmica era ficar todo mundo em pé, ai eu ficava sempre perto daqueles que não batiam forte [...] mas tomei muita palmatória. Agora assim, memorizei e realmente aprendi tabuada na terceira série. Na verdade, acho que não aprendi, apenas memorizei e decorei mesmo. Hoje sei que não aprendi da forma correta, mas na época, a forma era essa e a metodologia era apanhar, ficar de joelhos no caroço de milho. (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). Este excerto narrativo da Professora Sol fica evidenciado as marcas impressas/deixadas pelo seu processo de escolarização ocorrida na escola da roça, reconhecendo as formas de ensinar e aprender neste lugar. A palmatória fazia parte do cotidiano na sala de aula, tornava‐se um instrumento para moldar e adestrar o aluno, deixado marcas no processo de aprender e ensinar destes alunos. A Professora Sol ainda relata que estudou numa escola de classe multisseriada localizada numa casa que a sua professora havia herdado de seu pai e ela mesma que ministrava as aulas. Narra também que lembra muito do ABC e da cartilha. No seu processo de aprendizagem, ela recorda que não podia ler alto, mas não se lembra dos motivos para isto. Das lembranças deste processo inicial de escolarização, rememora que: A professora pedia muito para quando a gente voltasse da cidade para casa na roça, quando íamos de vez em quando, para a gente observar todos os nomes das casas comerciais e era para a gente ler. Dizia para a gente procurar modernizar‐se civilizar‐se, saber se posicionar nos ambientes, [...] a professora enfatizava muito os elementos da cidade (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). É de grande relevância perceber neste excerto narrativo, que o ensino no meio rural, desde períodos remotos, foi pensado a partir de um modelo de escola de padrão urbano, permeada por metodologias e ideologias destinada a fins políticos, contraditórias à realidade e o conhecimento das identidades rurais. Uma escola rural que foi, e ainda é, (de certa maneira) vista preponderantemente pelo Estado como uma extensão da escola urbana, sem uma preocupação em aproveitar e explorar a bagagem cultural, do aluno(a) da roça, impondo uma ficção, uma realidade social imaginária, contrastante com as observações e vivências destes sujeitos. Aliás, uma das principais dificuldades encontradas pelos professores que atuam no meio rural tem sido compreender que os moradores da roça “[...] mais do que instrumento da produção agrícola, são autores e consumidores de um modo de vida, [...] um produtor de um modo de ser” (RIOS, 2008, p. 95). Este modo de ser da roça, como nos diz Santos (2006), Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 37 não é contemplado por causa de um modelo de organização escolar que valoriza o urbano, ao colocar que: [...] Um modelo de organização escolar herdado da Modernidade que, embora seja fundado em referenciais universais de igualdade, acaba, também, por discriminar os/as alunos/as da roça por não considerar seus marcadores identitários e tratá‐los/as de forma semelhante aos/às alunos/as da cidade (SANTOS, 2006, p. 161). Ainda sobre a formação que tivera nos anos iniciais na escola da roça, a Professora Sol relata que tivera uma professora leiga que fazia um curso de formação na década de 1980 e não se lembra ao certo se era para a melhoria do exercício docente dela. Lembra‐se que ela se deslocava uma vez por semana para uma cidade próxima à zona rural onde morava. Em seu relato, diz ter recordações muito boas desta professora na infância. Foi sua primeira professora e a considerava uma pessoa “muito boa, muito sabida, moderna, bem civilizada” (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012), a qual deixou marcas significativas em sua vida. A Professora Sol relata que por volta dos nove ou dez anos de idade, não se lembra ao certo, migrou da zona rural para a cidade de Serrinha porque a escola em que estudava não ofertava o ensino Fundamental II, de 5ª a 8ª séries/6º ao 9º Ano, onde concluiu os cursos de Formação Geral e, em seguida, o de Magistério, numa escola pública. Sobre este período escolar, ela assim rememora: Me matriculei no magistério, mas quando cheguei à escola que assisti uma semana de aula fiquei com medo e desisti. Fiquei me imaginando o que ia fazer na sala de aula como professora [...] eu achava que não conseguiria superar esta dificuldade. Eu imaginava na hora quando chegasse o estágio como era que eu ia dar aula, que vergonha iria ter para dar aula, então desisti e mudei para o curso de Formação Geral e me senti aliviada. Que coisa boa não voltar a dar aula! Tirei um peso das minhas costas naquele momento. Tenho essa característica de ser medrosa, isto vem desde minha infância e tenho que trabalhar muito isso. Saí do magistério e conclui o curso de Formação Geral. Mas, após ter concluído o curso voltei a me matricular no magistério novamente. Era para ser professora mesmo! Então, encarei, peguei uma turma boa, tinha colegas que já conhecia. Era uma turma grande e cai no magistério e quando chegou a hora do estágio já estava um pouco mais solta, mais relaxada. Me dediquei, fiz as coisas tudo direitinho. Superei, consegui vencer a etapa e fiquei formada, quer dizer, concluinte do magistério porque formar, a gente está se formando sempre. Fiquei com essa certificação em mãos e continuei como vendedora autônoma (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). Ao narrar sobre suas trajetórias formativas, a Professora Sol fala de suas histórias de formação inicial, sobretudo, no Ensino Médio. Em sua narrativa fica evidente as incertezas quanto à escolha profissional, à sua formação e o medo da profissão docente, ao colocar que “[...] Tinha vergonha da regente, me achava muito inferior, me achava tão pequena” (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 38 Souza (2004) coloca que, no processo de formação, o estágio, pode representar para muitas pessoas “[...] momentos de afirmação, de questionamentos ou dúvidas sobre a opção pela profissão” (p. 275). Este momento é importante para que o aluno em formação esteja consciente de sua escolha profissional, e, foi neste período que a Professora Sol vivenciou tais anseios (as aprendizagens, dificuldades, medo, insegurança), entretanto, o estágio é um momento imprescindível para a formação docente, uma vez que nos possibilita o conhecimento e o (auto) conhecimento do que somos e das aprendizagens que construímos neste processo formativo, pois pode ser considerado como um momento fundamental na formação profissional por “[...] proporcionar aos futuros professores, além de conhecimento do espaço escolar, das relações que nele se constituem, possibilita ao aluno uma experiência da atividade docente” (KHAOULE, 2012, p. 57). Assim, o estágio também nos possibilita compreender, na prática, que o processo de ensinar está além das relações construídas dos saberes e da construção do conhecimento na sala de aula, mas ensinar perpassa por compreender todo o contexto social da escola e dos sujeitos envolvidos. Sobre as dificuldades encontradas ao longo do seu estágio no magistério, a Professora Sol narra que: [...] eu era muito recalcada, tímida e tinha vergonha, eu era muito envergonhada! Sofri muito com isso! “[...] no estágio encontrei meninos retados, faziam xixi e colocavam no barquinho de papel e me davam. Sentia o xixi quentinho em minha mão” “[...] fiz as coisas tudo direitinho. Superei, consegui vencer a etapa” (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). Em sua narrativa, a Professora Sol socializa as marcas deixadas pelo estágio como um dever cumprido. Os sentimentos revelados na narrativa desta professora expressam medo, angústia e insegurança sobre o início de experienciar a docência no estágio supervisionado, como também em sua vida pessoal e profissional por se sentir uma pessoa inferior, talvez pela forma de ter sido educada, talvez pelo fato de achar que o lugar de onde nasceu e cresceu (roça) fosse inferior, uma vez que os espaços rurais são vistos como lugares atrasados em relação aos espaços urbanos. Em sua narrativa, a Professora Sol não esclarece os motivos, mas ficam sutilmente relevados em suas expressões faciais durante a entrevista narrativa. Como salienta Rios (2008) “ser da roça” denota ser inferior, ignorante, ser de outro grupo, possuir outra linguagem e, acima de tudo, ser diferente. Assim, aos olhos urbanos, a roça é vista como aversão ao urbano que “é “evoluída e inovadora” fora do estereótipo do atraso da roça [...] um espaço atrasado, tradicional, rústico, incivilizado” (RIOS, 2008, p. 67). Esta ideia hegemônica que se tem da roça também ficou presente na narrativa da professora colaboradora desta investigação quando aceitou participar da pesquisa e conheceu a intenção desta investigação, ao me questionar por que o termo roça e não rural. Entretanto, embora o termo roça seja bastante utilizado na região do Território do Sisal, ultimamente temos percebido certa resistência ao termo, este vem sendo substituído pelos moradores da região por “zona rural”. Para eles, roça ainda é sinônimo de “tabaréu”, termo pejorativo e estereotipado que historicamente se deu aos moradores da roça, por isso, estes habitantes vêm criando esta resistência em não utilizar mais o termo roça, mas Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 39 sim zona rural, embora este último não seja suficiente para caracterizar, em sua totalidade, as especificidades que o termo roça carrega, como bem salienta Santos (2006). Estas considerações, dadas por Santos (2006) e Rios (2008) são pertinentes, uma vez que é compatível com o espaço da pesquisa, o Povoado de Isabel, localizado em Serrinha, intensamente caracterizado por elementos aqui abordados, uma vez que o modo de vida destes sujeitos se diferenciam da zona urbana: sua cultura, seu trabalho, seus sujeitos e suas crenças, a relação que estes mantêm com a natureza, por exemplo, quando é o período de plantação e colheita, saber do tempo certo para cada etapa do trabalho na roça, a lida com os animais, a relação de trabalho e de sobrevivência, enfim, o modo de ser e de fazer este espaço fazem parte do cotidiano que caracteriza este lugar. Sendo assim, essa é uma realidade que se insere na vida dos habitantes desse lugar, chamado Povoado de Isabel, localizado ao sudeste do município de Serrinha. No seu processo de escolarização, a Professora Sol ainda relata que não se lembra muito das aulas, sobretudo às de Geografia e conta que, “[...] não lembro. Até tenho uma simpatia por Geografia, não era uma disciplina que eu detestasse, mas não tenho nada marcante desta matéria em si. (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). A Professora Sol também revela que, ao mesmo tempo em que estudava, trabalhava como vendedora autônoma de revistas, louças e bijuterias para ajudar no sustento da sua família, contribuindo com a renda familiar. E, foi nesse período de sua juventude que começou a pensar na escolha profissional. Assim, ela se desvela: Eu comecei a ser professora, no início de minha juventude. Quando vim para a cidade para estudar e trabalhar como vendedora autônoma, eu vendia revistas, bijuterias e louças. Eu era sacoleira mesmo! [...]. Eu gostava deste trabalho autônomo, fui ganhando meu dinheiro dessa forma, estudando e trabalhando ao meu modo, determinando meus horários. Em 1996 abriu o concurso de magistério municipal em Serrinha e minha irmã logo se prontificou para fazer e aí eu pensei duas vezes, não queria fazer não, porque o emprego municipal não era muito valorizado naquela época, mas tinha melhorado com a nova gestão, estava começando a funcionar com mais seriedade, pagava certo, todo mundo começou a observar que tava melhor e aí comecei a observar também. Então, abriram as inscrições do concurso e eu me inscrevi, mas não tinha aquela vocação para ser professora [...] na verdade era por conta do salário, da segurança salarial, era um emprego e tal. E, assim me tornei professora, embora não exercesse a profissão com paixão (Trecho da narrativa da Professora Sol, 2012). Fica evidente neste excerto da narrativa da Professora Sol que a escolha profissional não se deu pelo desejo e pela vocação de estar na profissão docente e sim mediante à segurança de um emprego público que o concurso lhe daria. Percebemos também a influência de sua irmã, uma pessoa charneira, na escolha profissional ao relatar que “[...] eu e minha irmã éramos parceiras e, quando surgiu o concurso, minha irmã logo se prontificou para fazer, se empolgou e me chamou para fazer também [...]” (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). A Professora Sol relata que, após ser aprovada no concurso público municipal de Serrinha para o exercício docente, inicialmente não foi para a sala de aula, ela trabalhou com Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 40 um projeto de reforço escolar para alunos carentes do município de Serrinha, só depois atuou como docente na escola da roça. Ela relata que a escolha para lecionar na escola da roça não ocorreu por vontade própria, apesar de ter raízes culturais com este meio, não foi exatamente uma escolha sua, mas foi, sobretudo, pelas poucas vagas existentes nas escolas da cidade, uma vez que eram limitadas para pessoas gestantes e com problemas de saúde. Além disso, a professora Sol relata que a escolha pela escola da roça deve‐se a outros motivos, como: Na roça as turmas são menores, o fluxo de alunos também é menor. No contexto geral não são alunos ousados, desafiadores no sentido de querer descobrir, de questionar. São alunos mais tranquilos, não se expõem, não querem aprender, são mais acomodados, é um pouco fechado [...] Em geral, são alunos mais fácil de se trabalhar, então a gente acaba gostando disso e acha isso bom. Então, o contexto é outro e nós professores desejamos atuar na roça por conta dessas questões. (Trecho da narrativa da Professora Sol, 2012). São por estas questões, “vantagens”, anunciados pela Professora Sol que muitos profissionais da educação, em especial no espaço da pesquisa (espaço rural), desejam atuar na roça, pois essas representações sobre o espaço rural são muito fortes na narrativas de muitos profissionais da educação, como também de seus moradores que residem neste lugares. Esta consideração também foi presente em conversas informais com alguns outros professores de outras áreas do conhecimento que lecionam também nesta mesma escola pesquisada. Em sua primeira experiência como professora da roça, Sol relata que: Fui ensinar numa escola na zona rural, mas não era essa coisa apaixonante, [...], mas eu estava ali, é meu emprego. Não me achava professora boa. Depois veio a cobrança, começou a surgir que tinha que ter nível superior, que tinha que fazer uma licenciatura. Mas eu achava faculdade uma coisa grande demais para mim, eu pequena fazer faculdade! Meu marido também começou a me questionar que tinha que ter faculdade? Ele me perguntava, tu é professora de que? Tu é boa em quê? Meu marido foi o grande mentor, contribuiu para minha formação, dizia que tinha que ter faculdade. Mas eu me achava uma profissional de vendas e sempre ficava na retaguarda. Minha irmã logo achou seu lugar, era professora de Matemática e eu? Era professora de que? Aquilo começou a me incomodar [...] tentei o vestibular da UNEB, mas não passei. Minha irmã logo achou seu espaço e eu me perguntava: E eu? Sou professora de que? (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012) Percebe‐se que Sol, demonstra certa dificuldade em aceitar‐se, de fato, como uma docente, como também a dificuldade de aceitar o outro/aluno, entretanto, como coloca Oliveira (2006), é necessário que no processo de ensino/aprendizagem o professor tenha consciência de sua participação na formação e salienta que, como educador, “o professor deve “aceitar‐se como pessoa e saber aceitar os outros” (p.15). Foi também neste período Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 41 que surgiram às exigências da profissão, formação acadêmica para o exercício da docente, como também as cobranças de seu marido em relação à sua formação profissional. Mesmo exercendo a profissão docente há 16 anos, a Professora Sol, como ela mesma conta, ainda se achava uma profissional de vendas e não se sentia uma boa professora. O excerto narrativo demonstra que a procura pela faculdade se deu por três motivos: (1) pelas exigências da profissão docente naquele período; (2) pela cobrança de seu marido na busca pela sua formação acadêmica e (3) pelo fato de sua irmã ter se firmado na profissão docente como professora de Matemática. Esses motivos levaram a Professora Sol a pensar sobre sua formação e atuação profissional e foram fundamentais para que ela buscasse a ampliação de seus conhecimentos necessários para o exercício de sua profissão, uma vez que só tinha o magistério em nível médio. As novas exigências no âmbito da Educação, sobretudo a partir da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 9394/96 também exigiu da Professora Sol que ela se adequasse a este novo contexto. A partir das três questões apontadas pela narradora, a formação universitária passou a ser uma prioridade para o exercício docente, um estímulo para dar continuidade à formação inicial. Para Veiga (2008), a formação de professores é o ato de educar o profissional que, ao longo do tempo, se desenvolve em momentos individuais ou coletivos, no sentido de formar saberes alcançados pelas experiências ou pelas aprendizagens nas quais muitos elementos podem estar envolvidos. Em 2008, a Professora Sol conclui o curso de Pedagogia em uma instituição de educação superior privada, na modalidade EAD e, em 2010, conclui sua pós‐graduação em Psicopedagogia Clínica e Institucional em outra instituição privada na modalidade presencial. Sobre esse processo formativo ela relata: Eu sempre gostei e tive curiosidade nos assuntos que relacionavam as dificuldades e os comportamentos das pessoas [...], gostava de ajudar, sempre tive isso em mim. Tudo que relacionava com dificuldade me interessava. Neste período vivi um momento muito difícil com meu filho, que aliado a essas questões me aguçou ainda mais o desejo pela Psicopedagogia, pois queria entender as dificuldades de aprendizagens de meu filho [...] e vivia em função disso, não conseguia enxergar meus alunos e chegava até a ser egoísta, tudo que eu fazia era pensando no meu filho, não me importava com a dificuldade dos meus alunos[...]. Foi então que comecei a me questionar sobre o que era a psicopedagogia. Então resolvi juntamente com minha irmã, mais uma vez, fazer pós‐graduação em Psicopedagogia (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). A Professora Sol deixa evidente as marcas vividas nesse processo de formação e fala com carinho da relação com a Psicopedagogia Clínica, aliás, esta é a área em que esta professora diz pretender atuar futuramente. Ela destaca questões pessoais neste fragmento da sua narrativa, como o problema de aprendizagem escolar de seu filho que marcou muito a sua vida pessoal e profissional e que, aliado a esta questão, o desejo e a curiosidade em estudar o comportamento humano, despertou‐lhe ainda mais o anseio em estudar Psicopedagogia. Durante este período, esta docente fala da superação de suas dificuldades pessoais e profissionais e da convivência amigável com sua professora e amiga Cristina do Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 42 curso de Psicopedagogia em Feira de Santana, principalmente no período de estágio. Assim rememora: No curso tive a oportunidade de conhecer uma professora que marcou muito minha vida, Cristina. O estágio com esta professora foi o período mais marcante de minha vida e de minha formação como Psicopedagoga, a convivência com ela me marcou muito, ela me fez entender tanta coisa, me fez enxergar coisas que eu não via, me fez entender que eu posso tudo, que todo mundo tem problema e foi aí que eu me encontrei. E percebi que estava fazendo uma coisa que eu realmente gostava e já não me sentia menor, insegura, coisa que carreguei durante muito tempo em minha vida. Cristina me fez entender e me levou a resolver o problema de meu filho[...]Hoje, eu sou uma pessoa que sei como orientar uma mãe a criar seu filho. Entendi que a Psicopedagogia é para ajudar as pessoas a saírem do lugar, a mostrarem que são bons, aprendi e fiquei sabida nisso (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012). Ao falar das aprendizagens e da importância do outro em nossa vida Fernández (1990) coloca que, no processo de aprendizagem deve haver um vínculo de afetividade entre o ensinante e o aprendente e acrescenta que a aprendizagem se materializa no corpo, alimentado pelo desejo e o prazer de aprender, desejo este que ficou expresso na fala da Professora Sol ao relatar suas dificuldades e seus anseios em relação ao problema cognitivo de seu filho. Ainda segundo Fernández (1990) a maneira como aprendemos e como educamos, “[...] não se herda, se aprende” (p. 51). Desta forma, a aprendizagem é um processo que permite a aquisição de conhecimentos através da sistematização/transformação das informações, mediados por uma pessoa/professor. A relação entre Sol e sua professora Cristina no Curso de Pós‐graduação em Psicopedagogia explicita uma relação de confiança, de entrega ao outro, na condição de ensinante e aprendente, como expõe Fernández (1990), aprendemos com o sujeito “[...] a quem outorgamos confiança e direito de ensinar” (p. 52). Sol deixa explícita a relação de carinho com esta área de conhecimento e as aprendizagens construídas ao longo deste processo, ao contar que aprendeu muito durante e depois deste período formativo. Para Josso (2004), as experiências adquiridas ao longo da vida se tornam formadora quando falamos “sob o ângulo da aprendizagem” (p. 48). Desta forma, esta autora ainda acrescenta que “a formação é experiencial ou então não é formação [...]” (p. 48). Partindo desta premissa, compreendo que a formação é um processo de construção e reconstrução da identidade pessoal e profissional, a qual “envolve saberes, experiências e práticas sobre a cultura escolar e a docência” (SOUZA, 2004, p. 309), e ao recordar as experiências vivenciadas, o sujeito reconstrói sua história, reflete sobre ela e cria espaço para a compreensão de sua prática. Sobre as aprendizagens durante no curso de Psicopedagogia Clínica e Institucional, a Professora Sol ainda ressaltou: Meu olhar se ampliou, deixei de ver só meu filho e me vi como professora [...]. Eu vejo o aluno hoje com outro olhar, quero entender, quero zelar pela aprendizagem que tá lá na criança. [...] Hoje, pra mim, a família é coisa muito importante e a escola, a meu ver, tem que fazer diferente, só que Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 43 não é coisa fácil e, enquanto professora e agente desse processo, estou aqui para ajudar, tem hora que realmente a gente tem raiva dos meninos, mas hoje a raiva que eu sinto passa logo porque na Psicopedagogia não cabe olhar o sujeito em aprendizagem apenas como aluno e sim como um amigo, um sujeito que tem família, como um filho, enfim, tudo aquilo que o constitui e a Psicopedagogia vai me ajudando a ser professora. Às vezes até me atrapalho e chego a um ponto que eu não quero ser professora, pois eu já sei fazer outras coisas e ser professora me limita, porque a Psicopedagogia não é você estudar para ser professora é outra profissão, mas eu tô professora, aí eu vou pegando o gancho e a Psicopedagogia vai me ajudando a melhorar como docente, já que a Psicopedagogia é também pra ajudar o professor na sala de aula e hoje eu me vejo como uma professora, mas com um olhar diferente de muitos, até por conta do que já li, conheci e vivi. Chega um momento que me perco e não sei mais se eu sou professora, ou sou psicopedagoga? (Trecho da narrativa da Professora Sol, 2012). Apesar da formação em Psicopedagogia Clínica e Institucional ter proporcionado a Professora Sol muitas aprendizagens como ela ressalva, fica também evidente alguns conflitos internos sobre a sua profissão. Na sua narrativa, esta docente reconhece a importância dos conhecimentos adquiridos no curso de especialização em Psicopedagogia no seu exercício profissional docente, mas, ao mesmo tempo, não se reconhece como professora, ou não quer se assumir como docente, embora afirme que o curso lhe proporcionou um outro olhar no processo de ensinar, ajudando‐a na profissão que escolhera. Apesar de já ter uma formação inicial em Pedagogia, especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional e ensinar Geografia há três anos na Escola Marlene Assis de Lima, no Povoado de Isabel, espaço rural de Serrinha e encaminhada pela secretaria de educação municipal para escola como desdobramento, a qual já trabalha há nove anos, a Professora Sol cursa atualmente Letras Vernáculas no Programa da Plataforma Freire – PAFOR9, em Serrinha, mas diz não pretender atuar nesta área como conta em sua narrativa, apesar deste programa ter sido criado para graduar profissionais na área de educação nas respectivas disciplinas em que os professores atuam. Assim, Sol relata: Eu estou num curso de Letras, mas não vou ser professora de Língua Portuguesa, mas de qualquer forma estou aprendendo. Aprendo um monte de coisa que não necessariamente você tem que ir para a sala ensinar, mas você aprende pra vida, pra outras áreas, é pra você fazer um texto, redigir, é pra você ler, para você interpretar, saber falar com as pessoas, então eu tô com este olhar, não tô para sair de lá e ser professora de Português. Para o currículo é mais uma item, uma formação (Trecho da narrativa da Professora Sol, 2012). 9
Este Programa de formação para professores da rede pública foi criada para assegurar a formação exigida na LDB para todos os professores que atua na educação básica em diferentes municípios. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 44 A Professora Sol reconhece a importância da sua formação em Letras em sua trajetória pessoal e profissional e, apesar de ter certa simpatia por Geografia, como foi narrado anteriormente, e ter se inscrito no programa para esta área como 1ª opção, não conseguiu ser aprovada, entretanto, afirma que a formação em Letras Vernáculas lhe ajudará em outras áreas do conhecimento, além de ser um item a mais para enriquecer o seu currículo, embora este não seja o objetivo do PARFOR que é formar professores para atuarem nas áreas do conhecimento que lecionam nas unidades de ensino público. Sobre sua atuação, a professora Sol deixa expresso no seu devir profissional um modelo de organização escolar que pressupõe que os alunos da roça “[...] não sejam sujeitos com/de conhecimento” e que, portanto, “há um vazio muito grande a ser preenchido pelo saber escolar” (RIOS, 2011, p. 132) como expressos na narrativa da Professora Sol, ao colocar que: Eu diria que a aprendizagem, a construção de conhecimento dos alunos da roça não deve ser limitado ao contexto deles, porque um dia ele vai sair da zona rural e a zona rural não propicia uma vivência que o aluno possa conhecer outras realidades. Eu sou da roça e, como aluna rural, eu tinha esse olhar, de também querer evoluir [...] Enquanto professora, sempre chamo a atenção deles para algumas questões como: eles são da zona rural, mas são bons e tem que saber falar, saber adequar os termos, querer evoluir, construir novos conhecimentos. Eu sempre friso essas questões para estimular eles a querer sair do lugar seja um aluno da zona rural ou não. Na zona rural eu friso muito porque é muito comum chegar à roça e encontrar pessoas conformadas, acostumadas com sua realidade, coisa muito natural destas pessoas que mora na roça e se não tiver ninguém para ajudar, carrega isso para o resto da vida (Trecho da narrativa da Professora Sol, 2012). Para a Professora Sol, os saberes da roça são desnecessários para a formação dos alunos da roça, uma vez que este lugar é passageiro na vida destes, como afirma no trecho narrativo. Então, fica a pergunta: ‐ Como usar destes conhecimentos, adquiridos com a convivência num determinado espaço geográfico, se estes não são importantes na aprendizagem destes alunos? Logo, os saberes sobre a roça, sobre o espaço vivido pelos alunos, são silenciados ao negar o modo de viver da roça e a importância dos saberes construídos com o local de vivência na vida destes alunos. Para Sol, a roça é um lugar sem sentido e ser da roça é ser inferior, não‐civilizado, atrasado, incapaz que precisa “evoluir” sair deste lugar “pequeno”, “inferior”, incorporar aos valores urbanos, para ser “considerados/as gente (“ser alguém”)” (SANTOS, 2006, p. 155). Como coloca Santos (2003), historicamente esta descaracterização do rural é resultado de um processo econômico, social, cultural e de políticas educacionais traçado em nosso país que, considera como importante, no processo educativo os saberes urbanos, permeados pelo mecanismo das práticas escolares docentes que descaracteriza a roça em relação à cidade. Para Santos (2006), a “aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas Rurais apesar de um avanço significativo, não representa a superação de todo imaginário depreciativo sobre a roça, elaborado ao longo de séculos [...]” (p. 145). Este autor ainda diz que: Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 45 Os livros didáticos através de seus textos e gravuras desconsideram o homem, a mulher e a criança da roça [...]. Há anos, nas raras vezes em que apareciam, eram representados como seres sem cultura, marcados pelo estereótipo de sujeitos “atrasados”, um verdadeiro “bicho do mato que precisava ser civilizado”. Estas representações ainda persistem, mas, nos últimos anos, tem‐se visto o rural ser representado como um local destinado às monoculturas de exportação, ao agronegócio, ou seja, privilegia‐se a perspectiva dos detentores da propriedade da terra, dos empresários do setor agropecuário, preocupados com o estímulo à tecnologia e com o espírito empreendedor. [...] nas raras vezes que a roça é pautada nos livros didáticos é por coincidência e acontece de forma vazia “aprisionada por uma visão reducionista” [...] (SANTOS, 2006, p. 142‐177). Ainda sobre sua atuação, a Professora Sol, reconhece que sua prática segue o modelo de ensino tradicional, ao afirmar que: A gente ensina ainda hoje no tradicional muito bem. A nossa formação nos ensinou assim. Nós somos formados para ser esse tipo de professor, mesmo que ultimamente tende a tomar outros rumos, ainda não conseguimos sair do tradicional, e só dando uma biliscadinha no novo. É um pé no tradicional que não sai e têm muitos pontos positivos. A gente ainda ensina como a gente aprendeu, temos que melhorar, mas todo professor tem ainda essas questões muito presente, não tem como não ter (Trecho da narrativa da Professora Sol, 2012). Segundo a narrativa da Professora Sol, o ensino tradicional ainda é reforçado na prática de muitos professores, inclusive na sua, consequente da falta de uma formação consistente desvinculadas das necessidades imediatas dos sujeitos em aprendizagem, uma formação hegemônica pensada para atender a fins políticos, permeadas por um currículo homogêneo, monocultural e urbanocêntrico. Deste modo, desenvolver atividades em sala de aula considerando a escola como um lugar de cultura, de encontro de culturas é um grande desafio para os professores que atuam em espaços rurais. Na perspectiva de Vlach (2008), a Geografia Tradicional citado por Sol é aquela que: Parte de uma concepção abstrata do homem e de sociedade, que não considera as contradições (de classes entre outras) e a complementaridade, isto é, que praticamente desconhece as relações e poder que permeiam o tecido social e o Estado Nação enquanto a forma de organização política da sociedade capitalista e moderna [...] (VLACH, 2008, p. 4). Neste sentido, é necessário pensarmos numa formação adequada aos diversos contextos sociais e culturais em que os indivíduos estão inseridos. É imprescindível investir na formação destes profissionais que atuam em espaços rurais, pois a formação docente inicial e continuada no ensino de Geografia para atuar nestes espaços de aprendizagem da roça é necessária para auxiliar o docente em seu devir profissional, dando‐lhe uma formação mais adequada com a sua atuação, melhorando o seu desempenho docente nestes espaços. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 46 Diante destas considerações, afirmo também que, ao formar um profissional em educação, é necessário que este professor, ao adentrar qualquer espaço de aprendizagem, assuma o compromisso com a escola para alcançar êxito no processo de formação do sujeito crítico e reflexivo, ao invés de puramente trazer para os alunos da roça uma atuação docente desvinculada da realidade deste espaço. Neste sentido, é importante refletir sobre a contribuição da Universidade no âmbito da formação docente para o ensino de Geografia nas escolas localizadas em espaços rurais. Seria viável, e necessário, que os cursos de Licenciatura, proporcionassem aos seus alunos‐
professores, uma formação mais ampla, efetiva e direcionada também para este espaço. Vale ressaltar também que é necessário e urgente que o Município de Serrinha dê às escolas da roça uma maior atenção porque muito mais do que imaginamos, é comum encontrarmos professores na escola rural atuando em disciplinas em que não possuem formação específica, contribuindo ainda mais para a desvalorização do ensino nestes espaços escolares localizados em espaços rurais. Entre os caminhos trilhados, algumas considerações... Os estudos (auto)biográficos trazidos pela memória, ressignificado pelo imbricamento da história pessoal e profissional têm contribuído de forma categórica para as pesquisas educacionais, nos oferecendo uma gama de elementos essenciais para compreendermos as razões e origens pelas quais os professores em atuação tem se constituído na profissão docente. De tal modo, a (auto)biografia nos permitiu compreender algumas tessituras da Professora Sol, ao tecer suas histórias, reviver os dilemas e as marcas que tiveram origem no seu passado e que, de alguma forma, refletem no presente, na sua atuação docente enquanto professora de Geografia numa escola da roça, localizada no Povoado de Isabel, na zona rural de Serrinha‐BA. A Professora Sol traz em sua trajetória de vida e formação, algumas incertezas quanto à sua profissão docente, docência esta constituída pela segurança de um concurso público e não pelo desejo e/ou vocação de experienciar e estar na profissão docente, como também pelas influências daquelas pessoas que já convivera/convivem com ela, os problemas familiares, o conflito consigo próprio em relação sua profissão e formação. São questões que de alguma forma, influencia na sua atuação profissional e que, são compreendidas quando analisamos a tríade vida‐formação‐profissão desta professora. Ao narrar uma história de vida‐formação‐profissão, neste trabalho, é importante perceber que as experiências e aprendizagens vividas ao longo da trajetória pessoal e profissional da Professora Sol tornaram‐se processos constantes de formação, isto porque, para Souza (2004), a formação integra a construção da identidade social, pessoal e profissional que envolvem saberes, experiências e práticas. Desta forma, a formação é um “movimento constante e contínuo de construção e reconstrução da aprendizagem pessoal e profissional” (SOUZA, 2004, p. 55). Nesta perspectiva, as aprendizagens constituídas tornam‐
se um processo contínuo de descobertas e/ou redescobertas, de permanente busca, de outras aprendizagens e outras experiências que vão nos moldando, dando outras formas de pensar e agir, pois muitas transformações acontecem ao longo de nossas vidas, como salienta Josso (2004). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 47 Assim, ao rememorar suas experiências e refletir sobre elas, estas lembranças permitiram à Professora Sol redimensionar as marcas deixadas pelas primeiras vivências escolares e nos cursos da sua trajetória de formação profissional, expressando suas dificuldades e as subjetividades implícitas nestes processos. De tal modo, os excertos narrativos desta professora pesquisada/colaboradora nesta investigação têm possibilitado entender como uma pessoa/profissional itinerante estabelece sentidos a sua história, as suas experiências formadoras inscritas em suas identidades e subjetividades construídas ao longo da vida, embora muito ainda esteja por entender e dizer, mas tem contribuído para compreender a dinâmica de quem exerce a profissão docente numa escola inserida num espaço rural. É importante também frisar que é necessário pensar em uma escola em que o professor também esteja consciente da sua participação neste processo de transformação social, ao invés de puramente ser um professor com uma visão pouco aprofundada do espaço rural e de seus alunos moradores deste lugar, rotulando‐os como ser “ignorante” sem “cultura”, “inferior” e que não pensa e para ser considerado “gente” precisa sair deste lugar “atrasado”, “pequeno” que não tem nada a oferecer. Assim, não acreditamos que o aluno da roça, por ser deste espaço, deve ali permanecer e não possa escolher o seu caminho, a questão envolve uma gama de outras questões que não se esgotam aqui! Referências: alimentando a prosa com... BUENO, Belmira Oliveira. Histórias de vida de professores: a questão da subjetividade. Universidade de São Paulo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 11‐30, jan./jun. 2002. CHAVES, Silvia Nogueira. Memória e auto‐biografia: nos subterrâneos da formação docente. In. SOUZA, Elizeu Clementino de. (Org.) Autobiografias, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino. Porto Alegre: EDIPUCRS; EDUNEB, Salvador, 2006, p. 161‐176. FERNÁNDEZ, Alícia. A inteligência aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990, p. 4‐77. JOSSO, Marie‐Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004. KHAOULE, Anna Maria Kovacs. O Estágio Supervisionado e suas contribuições na formação do professor de Geografia. In: BENTO, Izabella Peracini, OLIVEIRA, Karla Annyelly Teixeira de (Orgs.). Formação de professores. Pesquisa e Prática Pedagógica em Geografia. Goiânia: PUC, 2012. p. 57‐78. OLIVEIRA, Marlene Macário de. A geografia escolar: reflexões sobre o processo Didático‐
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Neste recorte específico, a intenção é socializar parte da trajetória formativa de um professor de Geografia em formação que se constitui um cordelista e discutir as aproximações e proposições metodológicas para o ensino de Geografia ancoradas no cordel, sobretudo sinalizar temas e conceitos da Geografia escolar que podem ser evidenciados, discutidos e aprendidos a partir de textos literários e xilogravuras de cordéis construídos pelo mesmo professor cordelista. Além da discussão que envolve o ensino de Geografia e o cordel como uma linguagem para intermediar conceitos e temas da Geografia escolar, este trabalho intenta também desvelar elementos que constituem a história de vida e de formação do professor cordelista que se encontra em processo de formação docente e socializar algumas de suas produções da literatura em cordel, de modo a evidenciar que é possível relacionar eventos da formação e da profissão com os fatos e fenômenos (auto)biográficos. Palavras‐chave: Geografia; História de vida; Literatura em Cordel. Iniciando a prosa: a história de um geógrafo cordelista Este artigo é um recorte do Trabalho de Conclusão de Curso–TCC, empreendido no âmbito do Curso de Licenciatura em Geografia do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia‐UNEB que tem como objetivo discutir a literatura de cordel como uma diferente linguagem no processo de ensino de Geografia na educação básica. Neste trabalho específico, a intenção é socializar parte da trajetória formativa de um professor de Geografia em formação que se constitui um cordelista e discutir as aproximações e proposições metodológicas para o ensino de Geografia ancoradas no cordel, sobretudo sinalizar temas e conceitos da Geografia escolar que podem ser evidenciados, discutidos e aprendidos a partir de textos literários e xilogravuras de cordéis construídos pelo mesmo professor cordelista. Além da discussão que envolve o ensino de Geografia e o cordel como uma linguagem para intermediar conceitos e temas da Geografia escolar, este trabalho intenta também desvelar elementos que constituem a história de vida e de formação do professor cordelista que se encontra em processo de formação docente e socializar algumas de suas produções da literatura em cordel, de modo a evidenciar que é possível relacionar eventos da formação e da profissão com os fatos e fenômenos (auto)biográficos, uma vez que: Sentir que somos Terra nos faz ter os pés no chão; sentir sua força, às vezes, ameaçadora, às vezes, encantadora. Sentir a Terra é sentir a chuva na pele, a brisa refrescante no rosto, o sol escaldante dos trópicos em todo o corpo. Sentir a paixão que queima o corpo e o coração. Sentir a Terra é explodir Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 50 sentimentos em versos, em poesia! (MARANDOLA JR, GRATÃO, 2010, p. 321). Esta citação de Mandarola Jr. e Gratão (2010) retrata bem o potencial reflexivo que a poesia e a literatura podem trazer para as nossas vidas, ao expor que ser Terra é, ao mesmo tempo, sentir‐se Terra e ao sentir a Terra no sabor da chuva, do sol, do vento, na leveza do pensamento e na poesia falada, imaginada, sentida, vivida, damos sentido àquilo que está ao nosso redor, uma vez que somos Terra e parte dela, pois Terra é aquarela, não só constituída por cores, mas de sentidos, de sabores e de amores. Para manter esse punhado de prosa, vou iniciar falando da minha infância e como se delineou a minha relação com o Cordel e a Geografia e a tessitura de sentidos que elencaram a minha história e assim ir de encontro aos fatores que meandraram a justificativa pela escolha da temática deste trabalho. E, para tanto, recorro às minhas trajetórias de vida e de formação que se imbricam com as possibilidades da utilização do Cordel como um artefato em potencial para o ensino de Geografia na educação básica, a partir das minhas produções de cordéis, consideradas como uma linguagem que podem propiciar a intermediação de conceitos e temas da Geografia escolar. Nasci em 23 de janeiro de 1987, fui criado na zona rural do município de Serrinha, em uma localidade de nome Tabuleiro. Sou filho de lavradores e desde muito cedo foi se estabelecendo uma necessidade de trabalhar na roça como meio de ajudar os meus pais nas suas labutas. Assim, fui criado na lida árdua do trabalho familiar rural. Com minhas limitações de infância, estava, muitas das vezes, mais voltado ao trabalho como uma necessidade do que às diversões de direito à toda criança da minha idade e, isso de certo modo, me incumbiu desde cedo noções de responsabilidade. Lembro‐me que sempre dividia o tempo entre os trabalhos na roça e a escola, pois meus pais por terem pouca escolaridade, alegavam a falta de oportunidade que tiveram para o estudo em suas épocas e, apesar das limitações culturais e econômicas, sempre priorizaram a escola em nossas vidas. Era muito comum na minha infância os meus pais relatarem que não queriam que nenhum dos seus quatro filhos tivessem a mesma vida que eles e nos incentivavam. E, mesmo diante das condições financeiras limitadíssimas, não deixavam de nos fornecer os materiais mais básicos para frequentarmos a escola, lembro‐
me inclusive, que ao final do ano, em que coincidia com a safra da castanha do caju entre os meses de novembro a início de janeiro, ficávamos na expectativa da coleta desses frutos e com sua venda comprar os materiais escolares. E, assim foi se dando o período de vivência da infância, “ao sabor” dos trabalhos árduos, da escola e das brincadeiras que nos divertiam por essência, repletas de criatividade, improviso e imaginação. Aos banhos nos riachos, as pescarias, “aos babas10” de final de tarde em um terreno próximo ao açude da comunidade, as brincadeiras no pé de tamarindo na casa da minha vó materna, os brinquedos criados manualmente, era tão intrínseca a relação com a escola nos anos iniciais, ao ponto de sermos escalados pelas merendeiras da época para providenciar lenha para fazer a merenda, pois dificilmente os responsáveis pelo abastecimento da merenda forneciam também o botijão de gás e, como não aceitávamos a 10
Futebol com curto tempo, cujo objetivo é proporcionar o lazer entre amigos no espaço rural onde morávamos. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 51 ideia de ficar sem merenda, formávamos “equipes” que se responsabilizavam em providenciar os feixes de lenha para o preparo da merenda escolar. Estudei a terceira e a quarta séries em uma escola distante de casa, e as memórias que me cercam são do trajeto percorrido até chegar lá, pois era distante e, às vezes, percorríamos um atalho em que “cortávamos” pastos com inúmeros arames farpados com variadas vegetações, passávamos por açudes onde pescávamos ou tomávamos banhos, essas foram algumas das experiências que contribuíram para marcar o vivenciar a escola naquele período. Lembro que a área da escola era grande e chamávamos de “terreiro”, onde tínhamos oportunidade de descontrair e ali brincávamos, pelo menos, no meu caso, para compensar os momentos em que estava centrado nas reponsabilidades do trabalho na roça com meus pais. Era na escola que eu me refugiava e me sentia menino, lugar que marcou a minha vida. Como a escola se situava distante de casa, me locomovia diariamente a pé e depois de muito tempo, com muitos esforços do meu pai, ganhei uma bicicleta usada, que por sinal não condizia com o meu tamanho na época, me obrigando a subir em barrancos mais altos todas as vezes que necessitasse me equilibrar nela para prosseguir viagem. Foram momentos que ficaram no recôndito das minhas lembranças. Foi nesse período de escola que tive acesso aos livros de estudos sociais, um compêndio histórico e geográfico da Bahia mesmo de forma muito simplista. Os conteúdos de Geografia e de História que mais me chamava atenção naquela época eram os que retratavam o sertão, abordagens frequentemente fiéis às paisagens secas, ao lugar hostilizado, enfim em uma concepção muito naturalizada da seca e dos contrastes sociais. Lembro também dos frequentes elementos folclóricos e culturais que também eram abordados e das cantigas de roda presentes nestes livros em que lia para minha avó paterna Ana, mais conhecida como “Anita”, e ela recitava poemas de cordel que conhecia e cantava frequentemente as cantigas regionais e religiosas na nossa casa. Presenciava frequentemente as praticas religiosas de um cristianismo primitivo tanto da minha avó paterna como materna. Minha avó Anita e o bê a bá do (ser) tão ABC dos cordéis Quanto à minha avó paterna, a leitura era um requisito frequente que me fazia devido as suas impossibilidades de exercer a pouca leitura que tinha, pois ela alegava que não conseguia ler as letras “miúdas” (pequenas) como ela mesma costumava dizer por causa das “vistas curtas”, esse ritual de leitura se dava sempre na varanda de casa, sob uma “cama de vento” assim chamada por ser feita de cordas de sisal ou comumente de caroá sob algumas madeiras entrecruzadas a qual minha avó se assentava para passar o dia a tecer suas tranças de chapéu de palha, ou pindoba como é comumente conhecida. Era dali que diariamente ouvíamos seus versos, poesias e benditos, ou quando chegava alguma visita em casa ela demonstrava prazerosamente a sua sensibilidade poética sempre recitando um verso e “arrancando” gestos espontâneos em sorrisos e elogios. Posso dizer que minha vó era multimídia tamanha a sua habilidade com as palavras, com a poética e com a imaginação. Quando convidado a sentar na cama para ler para ela, naquele momento, virávamos interlocutores, era comum ouvir dela a seguinte expressão: “é meu fio, meu estudo é pouco, nasci e me criei sem saber o que é um banco de uma escola”. Minha avó sempre nos dizia Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 52 que nunca foi à escola, mas o pouco que aprendeu a ler foi com “os outros” à noite, sob a luz do candeeiro, já que durante o dia trabalhava arduamente na roça e não tinha como dar “ligança” a estas coisas, como ela mesma dizia. E, mesmo não ter frequentado a escola, minha avó habilitou‐se suficientemente bem na leitura, embora nada soubesse fazer de escrito, pois era da gaveta da mesinha do antigo oratório, com cheiro de coisa antiga, onde ficavam as imagens dos santos herdados da sua mãe, que eu encontrava seus velhos livrinhos os quais lia curiosamente. Sempre considerei minha avó um verdadeiro livro vivo, a história, a literatura e a poesia em pessoa, lembro que uma das coisas que ela mais gostava de ouvir nas minhas leituras eram alguns benditos desses livrinhos antigos que ela tinha, ou muito frequentemente algumas histórias que os livros contavam do cangaço e de Lampião. Ainda lembro quando ela pedia para que lesse versos que falavam de Lampião e um dos que ela mais gostava de ouvir era o seguinte: Lampião tava dormindo Acordou com dor de dente Deu um tiro no umbuzeiro Pensando que era o tenente [...] Ao término da minha leitura, era correspondido com alguns risos saudosos, ela de prontidão retribuía com o que sabia, dentre eles lembro perfeitamente desses: Ôlê Mulé rendêra Ôlê mulé renda Tu me ensina a fazer renda Que eu te ensino a namorar [...] Acorda Maria “Bunita” Acorda pra fazer café O dia já tá raiando E a “puliça” já tá de pé [...] Minha avó nasceu no dia 20 de julho de 1909, órfã aos quatro anos de idade, vivenciou mesmo que indiretamente diversos períodos conturbados nesse meio tempo, refere‐se aqui às duas guerras mundiais, presenciou de certa forma diversos regimes presidencialistas no país, distintos episódios políticos, revoluções, dentre eles o cangaço, como ela mesma contava – que ainda criança quando a mãe dela ouvia rumores de Lampião e seu bando estarem “dando para os lados de cá” como a mesma dizia, pegavam algumas coisas, como um pouco de comida, umas cobertas e esteiras de pindoba para dormirem à noite pelos matos, sempre debaixo de um pé de “laranjeira braba”, próxima a uma fonte de agua refrescada pela sombra do arvoredo em suas bordas, nas terras de sua mãe, de nome Fazenda Suçuarana, atribuído este nome por terem matado uma onça vermelha de nome suçuarana que andava vagando aquelas redondezas. Cresci ouvindo suas histórias, lendas, casos de assombrações ou visagens como ela mesma falava, ou na frequente presença de seus vários amigos e amigas em idade semelhante que a visitava, eu ficava a escutar os casos contados, e lembro perfeitamente Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 53 até hoje uma das histórias que um dos seus compadres de nome Rafael lhe contava, segundo ele – quando menino, tinha visto uma galinha diferente com pintinhos em um local remoto na serra denominada Serra de São Caetano11 que tem na nossa localidade e que essa galinha e seus pintinhos sumiram do nada, alegando ele ser o “ouro” que se encantou e apareceu para ele em forma de visagem. Sobre estas crenças populares em torno da serra de São Caetano corrobora Oliveira12 (2004), ao dizer que; “Ainda hoje, quando se aproxima a trovoada, nas tardes e noites de atmosfera carregada, uma luz mortiça percorre a serra. O povo da região diz que é espírito do ouro encantado” (OLIVEIRA, 2004, p. 42). Outra crença que ela nos contava era a respeito dos festejos da noite de São João, quando dizia que quem ouvisse o galo cantar a meia noite, quando se comemora o nascimento de João Batista, viveria mais de cem anos. Já cheguei a tentar por muitas vezes quando criança resistir ao sono para ver o galo cantar de tão convicto a essas crenças. Coloco aqui também a riqueza de alguns saberes populares que presenciei para justificar a escolha deste objeto, em meio a tantas narrativas, como as profecias do tempo ou “a ciênça dos mais velhos” como ouvia dizer, estes eram interpretados segundo os sinais da natureza que definiriam se o ano seria bom ou não, se demonstravam se iria chover em breve ou fazer sol, se o inverno seria bom, ou se as trovoadas não “iam negar”. Aqui refiro‐
me a alguns como os doze punhados de sal em uma tábua na virada do ano no intuito de verificar quais os meses do novo ano seriam de chuva ou não, de acordo àqueles punhados que representavam cada mês do ano e se estes ao amanhecer permaneceriam secos ou úmidos; a crença em torno da flor do mandacaru que ao desabrochar só cairia com a chuva, os distintos comportamentos de alguns insetos que significariam que ia chover ou fazer sol; as características e disposição das nuvens no céu indicaria se o dia seria de sol ou chuva; alguns planetas visíveis no horizonte à noite e como estes se comportavam também eram motivos para interpretação do tempo, como tantas outras crenças que cresci ouvindo. Lembro‐me das conversas das pessoas mais velhas sobre o período que compreendia o “inverno”, quando sinalizavam que as chuvas iniciavam no final do mês de abril ou início de maio e se estendia em torno do final de agosto ou início de setembro. Independente da definição oficial do calendário das estações do ano, cresci ouvindo dos meus familiares a definição do plantio e da colheita a partir de duas destas estações. O inverno sempre tido 11
A Serra de São Caetano é situada em meio a quatro localidades, que são elas; Tabuleiro (onde reside o autor), Bela Vista, Praianos e Lage, esta serra além de ser um dos mais significativos redutos de peregrinação religiosa no período da Semana Santa com a tradicional procissão do fogaréu na Quinta Feira Santa, tem a celebração da Via Sacra e Oficio na madrugada da Sexta Feira da Paixão. Sendo um dos mais antigos e tradicionais acontecimentos religiosos do município de Serrinha, pois a construção de um pequeno reduto de orações denominado “Cruzeiro” data de 1913, porém há relatos de que estas práticas religiosas já aconteciam muito antes. Foi palco de outro significativo acontecimento histórico para o município de Serrinha, ao lado sul dessa Serra, entre as localidades de Praianos e Lage foi ambientado o cenário de refúgio de escravos evadidos provenientes do Recôncavo Baiano e que se instalaram ali provavelmente por está as margens de uma estrada de boiadeiro que seguia para outros estados do Nordeste, principalmente o Piauí, esta mesma estrada também era rota para os exploradores de ouro de Jacobina, aonde viria a se denominar Quilombo da Flor Roxa, sendo mais tarde dizimado os escravos que ali se instalaram pelo capitão do mato José Joaquim, outra figura que ficou marcada por histórias lendárias. 12
Antonio José de Oliveira nascido em 27 de julho de 1943, no município de Riachão do Jacuípe Bahia, reside no povoado vizinho de Bela Vista. Formado em Teologia, Pedagogia e Psicanálise Clínica. Estudioso da História da serra de São Caetano e povoados circunvizinhos. Autor do livro em que foi extraída a referida citação: Principais Raízes do Nosso Povo: O indígena, o africano e o português. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 54 como o período chuvoso, de plantio de culturas temporárias, como o milho, o feijão, a batata, amendoim, etc. e o verão como uma estação de predominância do sol e tempo seco, considerada a estação propícia às trovoadas. Ah! O “inverno”! Tempo de expectativas para o plantio, tempo de chuva fina e frio, de ventos litorâneos prenunciadores da sua chegada, com sua fina e constante chuva que a terra deixa molhada. Ah! O vento! Vento que varria e empoeirava a estrada nas tardes findadas, de brincadeiras inventadas. Minhas vivências sempre foram movidas e ligadas às sazonalidades de cada época do ano, as distintas frutas em seus períodos que davam um sabor singular a cada época, aos plantios e safras de “inverno”, as rancas de mandioca e a labuta na casa de farinha. Eram práticas frequentes das pessoas mais velhas na nossa localidade, destacando‐se as cantorias populares, samba de roda, bata de milho e feijão, rezas, geralmente composta pelas mais variadas tradições populares e, embora eu não tivesse vivenciado algumas destas coisas, reconheço que crescer em meio a estas narrativas foi algo que veio influenciar a simpatia pela literatura popular. Inclusive atribuo muito a isso a minha relação com a Literatura de Cordel, aos encantos da narrativa que presenciava nas histórias vivenciadas por minha avó Anita, pois foi pela boca dela que ouvi muitos contos e histórias de cordéis, que ela lia ou também ouvia quando criança e nos contava porque tinha uma memória vívida, os folhetos de cordéis, como em vários outros cantos e com outras pessoas deste imenso Nordeste, contribuíram para a inserção da minha avó Anita no mundo da leitura. Com frequência ouvia clássicos da literatura de Cordel como A vida de Pedro Cem, e aqui abro parênteses para dizer o quanto minha avó Anita se utilizava da mensagem dessa clássica história para tirar exemplos de que não devíamos ser gananciosos, pois muito frequente ouvia dela “Pedro cem também tinha de tudo e acabou sem nada”. Minha avó se espelhava na educação que deu aos seus cinco filhos e relatava trechos de alguns temas do Cordel para nos educar, como fragmentos de cordéis intitulados A vida de Canção de Fogo e o seu testamento, O cavalo que defecava dinheiro do grande mestre Leandro Gomes de Barros; A chegada de Lampião no inferno, Grande debate de Lampião com São Pedro, de José Pacheco da Rocha; Piadas do Bocage, de Antônio Teodoro dos Santos; A guerra dos pássaros de Manoel de Almeida Filho; Presepadas de Pedro Malasartes, de Francisco Sales Arêda; No Tempo em que os Bichos Falavam, Elias e a Princesa Açucena, de Manoel Pereira Sobrinho. Ouvia frequentemente, ora por meio de casos, histórias ou romances, estes clássicos da Literatura de Cordel, tamanha era a importância do Cordel, muitas das vezes chegava até a confundir realidade com ficção, para minha vó como para algumas outras pessoas estes livretos eram mais conhecidos por ABC. A nominação mais generalizada para estes folhetos é proveniente da forma com que alguns folhetos do gênero tratavam de certos temas, por discorrerem determinados assuntos obedecendo a ordenação do alfabeto, e assim ficou corriqueiro o nome no meio popular, inclusive em se tratando de outras obras do Cordel que não eram no estilo ABC. Até porque, quando algum assunto era digno de “render comentários” ouvia frequentemente dela a seguinte expressão – Tá bom de fazer um ABC – Fazendo uma alusão aos acontecimentos da cotidianidade e que subentendiam que de “tão inusitados” esses temas se igualariam e ganhariam importância àqueles tratados em algumas narrativas dos folhetos de cordel. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 55 Para exemplificar, podemos observar um exemplo do que seria a estrutura de um ABC, na obra repercutida somente na narrativa oral, de José Farias, mais conhecido como padrinho José (1918‐2007), intitulada o ABC da Fazenda Formosa. O trecho diz: A Fazenda da Formosa É fazenda garantida. Deu uma carreira no boi E foi parar na bebida, Morrendo de fome e frio, Dando a viagem perdida. Bons cavalos, bons cachorros Os vaqueiros conduziam. Nem que fosse como um veado Com esse boi eles corriam, Mas corriam o dia inteiro Até cansavam e caíam. Camilo de Augustinho Com fama de bom vaqueiro, Mas foi ele quem deixou O boi ir embora primeiro. Se fosse ele eu não ia em casa Nem para ganhar dinheiro Dava Francisco uma banda Quem desse o boi amarrado, Reuniu a vaqueirama, Ficou tudo variado. Cavalo com corredor, Ficava entregue, cansado.13 Como se observa no exemplo acima, cada estrofe dessa narrativa em forma de sextilhas segue os parâmetros do que se constitui uma modalidade de ABC, em que as iniciais de cada estrofe são ordenadas pelas letras do alfabeto. A literatura de cordel foi tão incorporada na cotidianidade das pessoas por meio da diversidade de temas tratados e do potencial de informar divertir e entreter, e até de convencer, que a exemplo da minha avó, que insistia convictamente na ideia de que houve uma época “no início do mundo”, como ela mesma dizia, em que os bichos realmente falavam esta crença atrelada ao cordel No Tempo em que os Bichos Falavam de Manoel Pereira Sobrinho foi tida como verdade, como em inúmeros outros casos em que alguns contos na literatura de Cordel eram tão levados a sério. A veracidade dada a estes mitos têm 13
Informações levantadas por Marco Haurélio no livro: Breve História da Literatura de Cordel (2010, p. 48), o mesmo faz uma alusão a narrativa oral de seu conterrâneo, um poeta praticamente anônimo do interior da Bahia, na cidade de Riacho de Santana, em que este “trata” do um fato verídico de um boi que despistou tudo quanto que é vaqueiro na tentativa de sua captura, sendo que o único vaqueiro que conseguiu capturá‐lo e leva‐lo ao mourão foi o vaqueiro Fulozino, e como de práxis após o ato de astúcia e coragem premiou‐se o vaqueiro com uma “parte” do boi como forma de recompensá‐lo. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 56 certa influência das crendices populares e nos vestígios também de uma religiosidade primitiva, pois seguindo essa lógica iria de encontro às narrativas bíblicas da criação do mundo em que estava em primeiro plano da criação divina a existência dos animais e, por último, a espécie humana, e “nesse meio tempo os animais teriam sido protagonistas dessa façanha”. As bússolas que me direcionaram para a Licenciatura em Geografia Viver em meio às narrativas orais foi uma constante para mim, diversos elementos delineadores da construção do sentimento topofílico se entrecruzaram neste percurso. E daí, explico em primeira instância a proximidade com a Geografia, mesmo que de forma inconsciente, pois posteriormente fui reafirmando essa proximidade com as afinidades que tinha com essa disciplina na escola ou com disciplinas afins. Desde pequeno fui grande apreciador dos livros de ciências e daqueles que continham histórias, versos e poesias, marcas da influencia interlocutora da minha avó Anita. Lembro‐me que geralmente só tinha acesso aos livros didáticos e refugiava a minha timidez nestes poucos livros ou revistas, muitas das vezes recortadas da escola, para saciar meu imaginário. Na escola, nos anos iniciais, a minha leitura era movida por visões romancistas de assuntos que condiziam a Geografia, vinculada com a disciplina de Ciências, quando eram expostas temáticas relacionadas à natureza e que descrevia ou fazia relação com o semiárido. E, por já conviver tão intensamente no meu cotidiano com situações evocadoras de um ideário de grandiosidade de natureza ambientada na nossa caatinga, e refiro‐me a “nossa caatinga” pelo vivenciar de forma tão próxima esse ideário, fica encantado com essas questões regionais. E, isso, desde se embrenhar nas mais ásperas vegetações para a coleta de lenha ou ração para os animais nas secas mais severas quando menino, à satisfação de ver o cheiro que essa vegetação e a terra ganhavam quando caía a chuva, pois o cheiro de mato molhado e terra são inconfundíveis como o aroma de um café espumante (daqueles processados no pilão) em um final de tarde fria, memórias que me veem das águas dos riachos em que brincávamos chuvas de trovoadas que mal se infiltravam no solo e já estavam escorregando ligeiramente riacho abaixo, como a oportunidade de acordar ao amanhecer com a alvorada dos pássaros. Algo que me marcou bastante também foi o “ideário de cidade”, pois nestas épocas de infância já cumpria a rigor a responsabilidade de auxiliar minha família nos diversos trabalhos, como nas safras de manga que sazonalmente levava meu pai e alguns de nossos familiares a se dirigir a duas cidades para comercializar mangas, eram elas: Serrinha, situada à treze quilômetros de distância, e Candeal a quinze quilômetros aproximadamente, ou como dizia meu pai, “pra mais de duas léguas”, quanto a Serrinha geralmente tinha um ônibus que transportava as pessoas para a cidade e mercadorias que iam ser vendidas nela, pois não tínhamos problemas com o transporte para levar as mercadorias para comercializar na cidade. Quanto a Candeal, lembro‐me perfeitamente das caravanas de carroças que eram formadas por meu pai e alguns tios pela madrugada para levar as mangas à feira. E, lá vendíamos e ao final da tarde retornávamos, embora fosse uma cidade muito pequena como de certa forma ainda se preserva atualmente, não me incumbia tanta expectativa quanto “o ir a Serrinha”, já diferenciava ambas ao achar Serrinha uma cidade maior e mais Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 57 movimentada, e assim criava uma expectativa de “ideário de cidade” com apreensão, pois o estar na cidade enquanto criança da zona rural era algo meio que vislumbrante. Nesse período ainda tive a oportunidade de presenciar a feira quando esta ainda era realizada na praça Luiz Nogueira nos inícios da década de noventa. Embora beba na fonte de alguns geógrafos que defendem a não existência da dicotomia campo cidade e sim das ruralidades e urbanidades que cada uma em suas especificidades comportam e que atualmente se fazem mais presentes do que nunca, sendo assim, os relatos anteriores são tentativas de descrever algo condizente com as minhas vivências e memórias. Ao chegar ao ginásio, no Colégio Estadual Aloysio Carneiro da Silva fui vivenciando outras circunstâncias, pois a proximidade de algumas professoras e disciplinas me direcionaram para minhas predileções e reconheço que a figura de algumas professoras foram verdadeiras bússolas na orientação de algumas escolhas, inclusive para a Licenciatura em Geografia. Era na escola que encontrava a correspondência ao que me dedicava em um deleite prazeroso, a escrita autônoma de diversos textos e versos, ora de adolescente vislumbrado por suas primeiras paixões, às vezes nem correspondido, mas sentindo‐se amparado naquelas escritas, ora pelas mais variadas expressões de sentimentos de vivência da cotidianidade, angustiosas, reflexivas, ansiosas e utópicas. A escola era o único espaço possível para de algum modo me expressar, vivenciar e estimular as minhas utopias, considerada um ambiente complementar a estes estímulos. Por sinal, destaco como uma destas responsáveis as aulas de Biologia e Filosofia da professora Marisane e da própria professora com suas provocações filosóficas que perpetuou o meu desejo de ser não somente aluno, mas um curioso, um incessante investigador, alguém que preza pelo conhecer. Reconheço que a disciplina de Geografia também cumpriu esse papel impecavelmente e aqui também reconheço na professora Cássia, uma das minhas motivações, suas discussões e abordagens nas aulas de Geografia tiveram grandes significados na minha afinidade com esta ciência. O que mais gostava na disciplina era as suas abordagens geopolíticas e interpretação da realidade social, o que achava uma motivação para “o despertar” da consciência. Neste mesmo Colégio que estudei maior parte da educação básica, nos anos finais da minha formação, fiz magistério e concluí no ano de 2006. No ano de 2008 tive uma experiência na docência nessa escola lecionando disciplinas, como História, Ensino Religioso e Artes da 6° série ao terceiro ano, sendo crucial para reafirmar minha escolha pela docência. Inesquecivelmente estas professoras foram as responsáveis pelo meu ingresso na universidade e torcedoras pela minha escolha em Geografia, e especialmente as professoras Marisane e Conceição que, ao saberem da minha aprovação no vestibular, me levaram até o passeio da escola, em uma daquelas manhãs de sol de agosto me parabenizaram pela escolha em Licenciatura em Geografia e me motivaram a seguir adiante. Universidade: o despertar para o fazer Geografia fazendo cordel No segundo semestre do ano de 2009 ingressei na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XI de Serrinha, mas ainda em um início difícil, por dividir o estudo com as obrigações de quem vive no espaço rural e pelas dificuldades advindas pelo ingresso na Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 58 academia. Logo em seguida no ano de 2010, realizei atividades como Educador Social em um programa socioeducativo do município de Serrinha o Projovem Adolescente, vinculado pela Secretaria de Ação Social, programa este, que me legou inúmeras outras experiências na área da docência, pois tive a oportunidade de estar trabalhando oficinas temáticas abordando inúmeros assuntos. Contudo, o gosto pela Geografia e Literatura mesmo existindo, estava contido interiormente, principalmente a simpatia pela Literatura de Cordel. E, aqui expresso melhor como se deu minha aproximação com ambas, pois foi em um curso de férias em 2012, da disciplina Educação Ambiental, na UNEB Campus XI, com o professor Marcos Paulo que pensei mais seriamente na possibilidade vislumbrante da abordagem cultural entre a Geografia e a Literatura de Cordel depois de ter recitado um memorial em forma de poesia de Cordel, em uma das nossas aulas. Geralmente esse memorial era feito em trio, contudo, estava se convertendo em simplesmente uma alusão descritiva das aulas anteriores e o professor Marcos sempre alertava para estarmos apresentando aquela atividade de uma forma mais lúdica e chamativa, pois achava que o memorial ainda estava muito descritivo e quebrando a intenção primária da proposta que era dinamizar as aulas. Foi, então, de onde surgiu a ideia, inclusive de contrariar o grupo ao qual fazia parte e elaborar por mim mesmo um memorial em forma de poesia de cordel e, ao recitá‐lo, percebi a aceitação positiva dos colegas e do professor, inclusive com elogios e apoios pela iniciativa lúdica e diferenciada. Esta poesia de Cordel apresentada na referida disciplina ofertada no curso de férias é a que segue, embora se fosse alvo do julgo de um cordelista, este iria denominá‐la como um Cordel de “pé quebrado” por não apresentar a rítmica de uma estrofe de Cordel, ou não ser em forma de sextilha ou setilha14. Aqui será colocada na integra com intuito de representar fidedignamente sua finalidade inicial na aula de Educação Ambiental: Memorial da aula Educação Ambiental em Forma de Cordel No dia vinte e oito de janeiro as duas e quinze começa a provocação A colega Mariana cobra a todos atenção O professor em seguida Faz uma recomendação Para lermos uma matéria Da Caros Amigos Que trata da usurpação Da nossa floresta querida 14
Termo utilizado na literatura de cordel e que retrata a sua estruturação. Para uma boa estruturação, o cordel deve respeitar três requisitos básicos. Inicialmente, as rimas aproximam uma combinância sonora das palavras, a oração em versos é que dá significado textual e a métrica seria a simetria precisamente. As estrofes dos textos dos cordéis, além de obedecer estas determinações básicas para a sua construção, classificam‐se em sextilhas, que tem a maior utilização na literatura de cordel: Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 59 Erroneamente entendida Como do mundo pulmão. Em seguida Para o debate esquentar, O professor passa um vídeo Que da Educação Ambiental Ao longo da História vem tratar Nele alguém dizia Que a causa ambiental Desde 1800 já acontecia Nessa época acredite, Ia‐se de encontro Ao poder da autarquia Pois a natureza degradada Traz ao Homem melancolia. As décadas de 40 e 50 O Pós‐Guerra vem marcar A recuperação econômica Em que os países afetados Começam se reestruturar Mas essa recuperação custou caro meu irmão O custo dela foi a tal poluição. No Brasil a indústria automobilística acelera com JK, Pois 50 em 5 anos ele queria transformar Na década de 60 os movimentos Libertários começam a crescer Nos EUA e Europa A educação Ambiental Começa a ferver No Brasil se deu a ampliação Do parque industrial A natureza mais uma vez Sob a lógica do capital Na década de 70 Corre um cochicho mundial, O mundo tá doente, É a doença ambiental, Assim surgem com força Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 60 Os levantes populares É o povo se incomodando Saindo de seus lugares No Brasil uma árvore abraçada É da ganancia poupada. Nessa mesma década Duas conferencias importantes Na Geórgia e Suécia Vão acontecer, De lá saem leis importantes Para o mundo proteger. Na década de 80 O muro que separa cai A Europa se redemocratiza O Capitalismo cruel O Socialismo pisa. Em 86 na Ucrânia Explode a usina nuclear Ceifando muitas vidas Pondo o mundo a se lamentar. Na década de 90 Temos a Rio 92, Muitas conferências Vão se suceder E o problema ambiental Nada de resolver. (Ailson de Araujo, 2013)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 61 A partir daí fui refletindo em torno da abordagem dessa temática em âmbito acadêmico, o envolvimento mais acentuado com a ideia de trabalhar a literatura de Cordel como artefato didático em sala de aula, até por perceber a ausência de abordagens desse gênero literário e, principalmente, associados ao ensino de Geografia, pois sempre fui movido por uma inquietação incessante, ao notar os poucos trabalhos relacionados à Geografia Cultural e o quanto essa abordagem poderia trazer à tona discussões extremamente relevantes, sobretudo na educação básica. Nas experiências vivenciadas nos estágios supervisionados apareceram algumas oportunidades para trabalhar o Cordel como artefato didático em sala de aula e exponho a seguir o texto de Cordel que utilizei na Escola 30 de junho, na turma do terceiro ano B, do ensino médio. Tema: Energia e meio ambiente Aqui estamos mais uma vez Para da Geografia tratar, Fazer uma grande viagem Sem sair do nosso lugar, Começaremos desse modo, Para o tema não chatear. O que foi antes discutido Assim vamos relembrar Energia e Meio Ambiente Para a memória refrescar, É esse tema interessante Que iremos inculcar. De antemão vou advertir Que aprender Geografia Não é o mesmo que decorar, Para aqueles que têm mania Desse modo interpretar, Deve‐se usá‐la para As “máscaras sociais elucidar” O homem é responsável Pelo espaço em construção A sociedade modernizada Se apresenta em contradição Pois de tudo que é produzido, É pouco que chega em muitas mãos A exemplo da energia Do mundo em produção Onde amplia‐se a riqueza Gerando também exclusão Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 62 Pois no auge do acúmulo Está a natureza em degradação. Em torno disso Há uma grande discussão Certas fontes de energia E sua utilização São aquelas poluentes Lenha, gás, petróleo e carvão. Algumas estão no planeta Em quase estado de extinção Pois o seu uso intensivo É causa dessa diminuição Desde o mal ao ambiente Pelo mal da poluição. De energia limpa Há também produção; Hidrelétrica, eólica, geotérmica e solar Apresentadas como prováveis soluções Para alguns males ao ambiente amenizar Servem até de discurso para o planeta salvar. (Ailson Araujo, 2013) E, assim, sucederam outros ensaios, como o da Feira Livre de Serrinha e As faces da Região Nordeste que mesmo se constituindo de versos de “pés quebrados” são versos que retratam temáticas da Geografia. Sobre a questão de “pés quebrados”, alguns cordelistas afirmam que, em certos casos como, por exemplo, os versos que criei durante o meu processo de formação inicial e de atuação docente, como professor estagiário, “não se deve sacrificar uma ideia em favor de uma rima”. Feira livre de Serrinha Numa quarta dia de feira, Fomos à cidade observar, A dinâmica espacial Que configura a paisagem, Demarca o território E estabelece o lugar. Na feira livre de Serrinha Como no comércio formal Foi possível perceber, Que de modo integrado O circuito inferior Vem se estabelecer. Uma grande característica Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 63 No circuito inferior São os pequenos lucros De acordo ao volume de negócios, Dinheiro, ligeiro Como pólvora, tem que correr. Para o acúmulo de capital Em pouco tempo acontecer Esse é o grande motivo, Para o excedente se obter O princípio da mais valia, Aí se pode perceber. Ao comprar mais mercadorias, Para os negócios ampliar Crescem os lucros no ato de vender. Emprego não assalariado E muitas vezes familiar, Outra característica Nesse circuito vem se revelar. A visita à feira livre nos trouxe reflexão, Que além de compra e venda Aquilo tudo é uma interação. No ato das relações sociais, Está o espaço em construção, Pois, além da sobrevivência, Está a vivência do cidadão. (Ailson Araujo, 2013) As faces da Região Nordeste Com muita atenção vamos tratar do Nordeste querido Bem representado por Nove estados ‘unidos’, Mas por uma parte do país ainda despercebido Pois além de região Alguns consideram nação Por sua grandeza e história Sem falar da cultural composição Da diversidade tremenda Cantorias, rezas, e lendas E da potencial disposição... Recursos naturais, Gente pra trabalhar Tudo isso e muito mais Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 64 Se encontra por lá Coisas que poderiam evitar Aqueles que ali vivem do seu lugar emigrar Não se pode esquecer da caatinga Um bioma espetacular Com uma diversidade de espécies Que não existe em outro lugar Uma vegetação que aparenta está morta Tem uma beleza singular Cai umas gotas de chuva E onde só tinha espinhos Folhas e flores começam a brotar E pra conversa continuar Mais uma coisa vou lhe falar Que a seca que ali existe Não é só um fenômeno natural é herança colonial de uma elite perversa e sua politica social Gente faminta e tristonha Que geralmente é passada Construindo no imaginário coletivo Que aquele povo vive um eterno castigo De uma “sina que não acaba” Dizem ser culpa de Deus Por lá não chover Desculpa criada Pra verdade esconder, Pois quem manda e decide É a Oligarquia e o poder. (Ailson de Araujo, 2013) E, assim foram se constituindo as teias da minha história de vida, entre devaneios, ardores da labuta na roça, palavras enrijecidas ou suaves, na sonoridade da vida, dos afetos da família, do amor ao seio da terra, das memórias não esquecidas. Para não concluir... Destrinchando esse gênero Da Literatura popular Em textos e xilogravuras A história a contar Herança de grande riqueza Que veio se perpetuar Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 65 Em forma de Cordel Esse trabalho vou desfechar Com uma pequena síntese Do que se pode observar Na narrativa (auto)biográfica Fatos e fenômenos relacionar Desse modo é possível O que se sabe, em prática colocar O Cordel como potencial Para a Geografia ensinar Valorizando‐se a História de vida E da vida o vivenciar (Ailson de Araujo, 2014) De fato, a Literatura de Cordel retrata elementos do cotidiano das pessoas, como os modos de vida, tema explorado pela Geografia escolar que retrata fatos e vivências populares em versos. Penso que a Geografia, enquanto campo de ensino, possibilita abordagens diversificadas em torno das suas temáticas, pois a escolha referente ao tema é uma tentativa de tornar mais presente a discussão/sugestão em torno de alternativas que venham contribuir e auxiliar o professor de Geografia no processo de mediação ensino‐
aprendizagem, tendo a linguagem do Cordel como uma importante possibilidade para ensinar e aprender temas e conceitos da Geografia escolar. Por se constituir o Cordel, uma literatura que surge no meio popular, talvez ainda exista alguma resistência a este enfoque cultural, não tão presente, tanto na escola, como em trabalhos acadêmicos, pois é fundamental trazer à tona esta abordagem literária, não somente para expor a relação desta literatura com a minha história de vida e de formação profissional, mas, acima de tudo, ressaltar a significação que a mesma pode conferir à prática docente, como algo que venha servir de interesse geral para a comunidade acadêmica e pesquisadores da educação que, porventura, venham utilizar desse viés de investigação. E, assim, encerro esta prosa para poder continuar, valorizando a minha história de vida e da vida o meu vivenciar. Referências Academia brasileira de Literatura de Cordel (ABLC). Disponível em: http://www.ablc.com.br. Acesso em 27 set. 2013. MARANDOLA JR. Eduardo; GRATÃO, Lucia Helena Batista Geografia e Literatura: ensaios sobre geograficidade, poética e imaginação. Londrina: EDUEL, 2010. OLIVEIRA, Antônio José de. Principais Raízes do Nosso Povo: O indígena, o africano e o português. Serrinha/ Ba, 2004. HAURÉLIO, Marco. Breve História da Literatura de Cordel. São Paulo/ SP: Claridade, 2010. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 66 Imagens docentes: um diálogo entre a improvisação teatral e a memória escolar Alessandra Ancona de Faria UNICAMP [email protected] Ana Angélica Medeiros Albano UNICAMP [email protected] O trabalho aqui apresentado é parte de uma pesquisa de pós‐doutorado, intitulada Imagens da docência: histórias de vida e a escrita espetacular, que tem a intenção de investigar as semelhanças e diferenças da imagem sobre o significado da profissão docente para estudantes de licenciatura e professores em exercício, partindo da narrativa sobre as histórias de vida e da improvisação teatral sobre as mesmas. Tal improvisação partiu dos elementos da cena e das memórias dos participantes sobre seus professores. Como processo de reconstituição desta memória trabalhamos com situações de broncas e elogios recebidos, e este aspecto é o que apresentaremos neste trabalho. A realização de cenas improvisadas, durante todo o percurso de formação, partiu da concepção de que pelo processo criativo é possível dar‐se conta de aspectos que somente com a reflexão racional não ocorreria. Foi possível evidenciar diferentes aspectos da prática docente, representações e concepções sobre o papel do professor nos momentos de criação das cenas. Poder refletir sobre as criações e sobre seus significados, oportunizou aos grupos de alunos e professores o questionamento da docência, tanto pelo sentimento de humilhação, presente em parte das cenas, como o de reconhecimento quando o elogio permitiu a valorização de aspectos importantes para cada um. Investigamos se tornar o professor(a) consciente, através do ato criativo, dos elementos da cena que compõe o cotidiano escolar, pode possibilitar reflexões, revisão e recriação da sua imagem sobre a docência. Palavras‐chave: Formação de professores; Teatro; Memória. Introdução O trabalho aqui apresentado é parte de uma pesquisa de pós‐doutorado, intitulada Imagens da docência: histórias de vida e a escrita espetacular, que tem a intenção de investigar as semelhanças e diferenças da imagem sobre o significado da profissão docente para estudantes de licenciatura e professores em exercício, partindo da narrativa sobre as histórias de vida e da improvisação teatral sobre as mesmas. Tal improvisação partiu dos elementos da cena e das memórias dos participantes sobre seus professores. Como processo de reconstituição desta memória trabalhamos com situações de broncas e elogios recebidos, e este aspecto é o que apresentaremos neste trabalho. Esta pesquisa é qualitativa e se configura como uma investigação‐formação. Teve como base a retomada de lembranças sobre os professores com os quais os participantes conviveram, recriadas na exploração teatral. As propostas desenvolvidas tendo a história de vida dos estudantes/professores como possibilidade de reflexão e formação do professor são inúmeras e caminham por diferentes percursos, mas em todas elas temos a referência das experiências vividas como fonte de reflexão. A escolha pela improvisação sobre as narrativas de história de vida ocorre pelo entendimento de que tal vivência permite uma nova percepção sobre o fato narrado, estabelecendo diálogo com possibilidades de encenação do mesmo. Ao narrar sua própria história, a pessoa procura dar sentido às suas experiências e, nesse percurso, constrói outra representação de si: Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 67 reinventa‐se. Como sugere Larrosa, na epígrafe15, somos a narrativa aberta e contingente da história de nossas vidas, a história de quem somos em relação ao que nos acontece. (PASSEGGI, 2011, p. 147) A possibilidade de falar sobre suas experiências, sobre as lembranças de seus professores permite ao aluno/professor dar sentido ao vivido. Entendemos que ao se recordar de situações passadas, como aluno, será possível perceber aspectos passados que constituíram a imagem docente. Como nos fala Passegi, a percepção desta história não é fixa, imutável, o que dá sentido ao processo de revisitá‐la. Entendemos que neste olhar para os professores com os quais conviveu, este grupo de alunos/professores poderá fazer escolhas, repensar práticas, reelaborar a maneira pela qual se vê professor. A reflexão sobre seu processo de formação não permite apenas situar‐se numa história e numa continuidade temporal, ela conduz progressivamente o sujeito a questionar‐se sobre sua visão do humano em sua dimensão terrestre (de que é feito o humano?) e em sua dimensão cósmica (o que é a humanidade?). Essa dupla dimensão tem o efeito de clarear a atitude do sujeito a respeito da aprendizagem e das atividades educativas. (JOSSO, 2010, p. 190) Investigamos a seguinte hipótese: tornar o professor(a) consciente, através do ato criativo, dos elementos da cena que compõe o cotidiano escolar, pode possibilitar reflexões, revisão e recriação da sua imagem sobre a docência? O corpo Acho que a minha mais sincera intenção é me sentir confortável, o máximo que eu puder, estando na minha própria pele. Estarmos na nossa própria pele não é fácil e essa percepção é capaz de nos humanizar o bastante para nos aproximarmos, com o coração do entendimento, do quanto também não seria fácil estarmos na pele de nenhum outro. Por maiores que sejam as diferenças, as singularidades de enredo, as particularidades de cenário, não nos enganemos: toda gente é bem parecida com toda gente. Toda gente é promessa de florescimento, anseia por amor, costuma ter um medo absurdo e se atrapalhar à beça nessa vida sem ensaio. (JÁCOMO, 2011) Trabalharmos corporalmente buscando a possibilidade de perceber o próprio corpo e de se relacionar com os demais corpos do grupo possibilitou uma aproximação, uma outra maneira de que cada um conhecesse o outro, além da descobertas de coisas de si. 15
Lo que somos es la elaboración narrativa (particular, contingente, abierta, interminable) de la historia de nuestras vidas, de quién somos en relación a lo que nos pasa (Jorge Larrosa). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 68 Esta proposta de formação de professores explora a linguagem teatral, que é uma linguagem essencialmente corporal. É pelo gesto do ator que a cena se configura, e acreditamos ser também no gesto do professor que a aula se elabora. A escolha por trabalhar o corpo não se deve exclusivamente ao fato de ser um trabalho teatral, mas, também, a razão de que uma melhor compreensão de seu corpo, dá ao professor, muitos recursos expressivos. A linguagem teatral, assim como a dança, possibilitam um conhecimento do próprio corpo e uma ampliação das possibilidades de vivência dele e com ele. Ao descobrir maneiras pelas quais podemos nos expressar corporalmente, descobrimos novas formas de nos movimentarmos, novas expressões e recursos que podemos utilizar na relação com outros corpos, nas relações sociais. (FARIA, 2011, p. 127) A descoberta das possibilidades de diálogo que o contato corporal traz, perpassou todos os momentos desta formação. A dificuldade de entrar em contato com o próprio corpo, assim como com os outros corpos também foi sentida, porém, aos poucos, a alegria do jogo, do movimento e do se conhecer desta outra maneira permitiu que o estranhamento abrisse espaço a esta descoberta, a esta nova forma de se relacionar. Devido à escolha de trabalharmos com a improvisação teatral, em todo o processo foi dada uma grande importância para a expressão do corpo. Para tanto, foram estabelecidas propostas que exploravam o contato com o próprio corpo e com o corpo dos colegas, permitindo um maior conhecimento e domínio das possibilidades expressivas corporais. A importância dada à percepção corporal é o que nos faz incluir neste texto o percurso pelo qual este processo se constituiu. Perceber que a maneira pela qual nos expressamos é uma, dentre as muitas possibilidades, que nossos gestos podem ser ampliados, que podemos aumentar a consciência sobre as formas de nos expressarmos corporalmente é a base para a percepção de como eu, professor, me expresso e de como posso ler nos corpos dos meus alunos aspectos que não são ditos por palavras. O trabalho corporal esteve estruturado com três enfoques: o de conhecer melhor as possibilidades expressivas individuais, o de se relacionar coletivamente pelo corpo e o de expressar as memórias docentes corporalmente. Para tanto realizamos diversas propostas no decorrer dos encontros, que serão relatadas nos capítulos, conforme o aspecto abordado. Pesquisa de Campo A pesquisa de campo, que coletou os dados aqui analisados, aconteceu em dois momentos. Neste texto serão apresentados apenas dados do primeiro momento, ocorrido no segundo semestre de 2012, com dois grupos, tendo a duração de um semestre letivo. Um dos grupos foi formado por alunos da Faculdade de Educação da UNICAMP – Universidade de Campinas e o outro por professores da FAACG ‐ Fundação Antônio e Antonieta Cintra Gordinho. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 69 O grupo da UNICAMP foi composto por 35 mulheres e 1 homem, 85% do curso de pedagogia, sendo que apenas 11% tinha experiência docente. 65% dos participantes não tinha nenhuma formação em arte, 61% já havia feito teatro e 94% já havia lido peças teatrais. Devido a escrita ter sido parte da pesquisa, foi questionado quem gostava ou não de escrever e 64% afirmaram gostar, 23% disseram que um pouco e 13% não gostavam.16 O grupo da FAACG composto por 18 professores, estava dividido em 4 homens e 14 mulheres, sendo 41% de graduados, 53% de especialistas e 6% de mestres. 35% havia cursado pedagogia e o restante diferentes graduações, como: moda, letras, sistema de informação, física, matemática, química, artes visuais, artes cênicas, ciências sociais e educação física. As disciplinas lecionadas estavam diretamente relacionadas às suas formações especificas, o que possibilitou um grupo bastante diversificado. Com relação às séries que lecionavam no momento da pesquisa, 12% no Educação Infantil, 28% no Ensino Fundamental I, 28% no Ensino Fundamental II, 26% no Ensino Médio e 2% em Cursinho, Curso Técnico e Curso Superior. 71% lecionava somente na instituição na qual a pesquisa se realizou e o restante também lecionava em outras instituições. Com relação ao tempo docência, 23% 1 a 2 anos, 18% de 3 a 5, 29% de 6 a 10, 24% de 11 a 15 e 6% de 16 a 20 anos. Com relação à formação em arte, 76% não possuía nenhuma, 65% nunca havia feito teatro, 65% já havia lido peças teatrais e 71% gostava de escrever diferentes tipos de textos. Broncas O pinto, esse piava. Sobre a mesa envernizada ele não ousava um passo, um movimento, ele piava para dentro. Eu não sabia sequer onde cabia tanto terror numa coisa que era só penas. Penas encobrindo o quê? meia dúzia de ossos que se haviam reunido fracos para quê? para o piar de um terror. (LISPECTOR, 1998, p. 65) A proposta de lembrar de broncas e elogios deveu‐se ao fato de que estes momentos costumam ser marcantes e trazem com maior força a imagem de um professor. Em minha memória sobre professores que tive, os momentos de ser elogiada ou repreendida foram significativos, embora muitos outros também tenham me deixado marcas sobre o que é ser professor. No decorrer de todo este trabalho foram recordados momentos ou professores que eram extremamente severos, comentários doídos e que geraram insegurança sobre a capacidade de aprender. Infelizmente as lembranças das broncas foram mais fortes e com maior presença que dos elogios. Porém os elogios relatados também foram constantes e a importância dos mesmos para que muitos tivessem coragem e desejo de continuar a estudar é marcante. Nos relatos apresentados é possível verificar a importância de comentários feitos por professores para que a pessoa tivesse coragem de seguir um estudo, uma profissão ou realizar ações em outros aspectos de sua vida. 16
Estes dados foram obtidos por meio de um questionário inicial para todos os grupos pesquisados, apresentado como anexo. As características das participantes estão apresentadas desta maneira para que seja possível saber um pouco de suas características. Não existe qualquer intensão de que esta pesquisa ganhe delimitações de uma pesquisa quantitativa. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 70 O encontro no qual exploramos as broncas levadas se iniciou com o grupo deitado nos colchões. Pedi que fizessem movimentos próximos aos corpos e que depois expandissem os movimentos, como se estivessem dentro de uma bolha e quisessem estourá‐la. Ficamos um tempo variando entre o expandir e o encolher, com movimentos que iniciaram em um único lugar, mas ganharam espaço e se espalharam pela sala. Passamos para o pega‐pega com explosão17 que foi muito divertido. A alegria do correr, de fugir, de tentar pegar e de explodir foi contagiante. Após este momento propus o jogo da bola18, que manteve a alegria do pega‐pega. As bolas se fizeram presentes e os grupos se mantiveram envolvidos. Estes três aquecimentos tinham como propósito trabalhar o corpo e a relação de grupo, porém com enfoque em um tipo de movimento que se assemelha ao de uma bronca, especificamente o pega‐pega com explosão, já que em muitas broncas ocorre certa explosão. Os movimentos de expansão e recolhimento também foram propostos levando em conta o “encolhimento” resultante de levar uma bronca e a possível expansão ao dar uma bronca. Solicitei que cada um se recordasse de uma bronca levada e quando não se recordasse de nenhuma, poderia escolher alguma que tivesse presenciado. Poucos participantes do grupo da UNICAMP não se recordavam de nenhuma. No caso da FAACG, os professores poderiam escolher broncas recebidas ou dadas. As broncas foram anotadas, compartilhadas nos subgrupos e então cada um escolheu uma cena para apresentar, partindo de uma sensação comum. Antes das cenas serem apresentadas solicitei que escolhessem o lugar na sala onde a cena seria feita, quais os objetos que deveriam fazer parte e qual a posição da plateia. Cenas apresentadas na UNICAMP As cenas estão relatadas tendo uma imagem da mesma para que a compreensão do relato se torne maior. Após o relato do ocorrido apresento a sensação que motivou a cena e as sensações e impressões comentadas opôs cada uma delas. Primeira cena UNICAMP: Primeira cena 17
Este jogo é semelhante ao jogo tradicional de pega‐pega, porém quando a pessoa é pega ela deve agir como se seu corpo explodisse, com movimentos e sons. 18
Neste jogo o grupo escolhe uma bola imaginária e deve jogar a bola de um para outro participante. A coordenadora do jogo dá diferentes comandos de ações que levem o grupo a manter a bola presente. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 71 Optaram por fazer a cena na diagonal da sala. Professora escrevendo na lousa, alunas escrevendo ou conversando. Professora se vira e dá uma bronca na aluna que não estava conversando, dizendo: Quem você pensa que eu sou? Sensação comum escolhida pelo grupo: injustiça, indignação. Sensações e impressões: broncas desnecessárias, descontrole do professor, bronca desmedida. Nos comentários sobre a cena surge a referência de que é típico do professor se descontrolar e perguntar “quem você pensa que eu sou”. A ideia de que as professoras se descontrolam com facilidade, que tem ataques histéricos é presente. As alunas relataram situações nas quais os alunos atuam para que a professora perca o controle. Segunda cena UNICAMP: Segunda cena Fazem a cena em círculo e pedem que a plateia fique em volta, de tal maneira que a plateia seja mais um circulo em volta da pessoa que está no meio, levando a bronca. Na cena, uma pessoa no meio, pedindo que tenham paciência, que ele vai explicar, que esperem, que está doendo. Em volta, sobre as cadeiras, acusam, fazem gestos de bater, de incriminar. Para algumas alunas é difícil manter a concentração e a risada aparece, mas a cena não perde a força. Sensação comum escolhida pelo grupo: sentimento de inferioridade, situação de exposição. Sensações e impressões: Assusta o estar doendo, comentamos sobre a possível dor física, mas também sobre a dor psíquica. Falta de paciência, não querer escutar nenhuma explicação. Professor não acolher, quando surge o conflito dá a bronca sem perguntar o que aconteceu. O grande sentido da bronca é fazer a pessoa passar vergonha, se sentir indefesa, impotente. Uma aluna espanhola19 que fazia a cena chama a atenção por ficar em uma única 19
Esta aluna participou de toda a pesquisa por estar fazendo um intercâmbio entre a UNICAMP e a universidade na qual estuda, em Barcelona. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 72 posição, congelada. Ao explicar a posição relata que estudou em uma escola religiosa e que seus pais eram contra a ditadura franquista, mas as freiras em uma situação obrigaram que os alunos cantassem o hino de Franco, em um momento de abertura política. Esta situação de não poder se negar a fazer algo que ela era contra foi muito marcante. Outra aluna conta que não teve coragem de defender um colega que estava levando uma bronca indevida e que a sensação de impotência era muito ruim. È interessante observar o quanto as cenas trazem emoções vividas em diferentes situações. Nesta cena observamos a atitude da aluna em se negar a fazer o que ela não acredita como correto, atuando hoje de uma forma que não pode quando criança, por estar em um regime ditatorial e por ser uma criança obrigada pelos adultos. A segunda aluna também relata uma situação na qual não teve coragem de agir da forma que acreditava ser correta, pelo sentimento de impotência perante o professor. Insistimos, em todo o corpo de nosso estudo, na integração e não na acomodação, como atividade da órbita puramente humana. A integração resulta da capacidade de ajustar‐se à realidade acrescida da de transformá‐la a que se junta a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade. Na medida em que o homem perde a capacidade de optar e vai sendo submetido a prescrições alheias que o minimizam e as suas decisões já não são suas, porque resultadas de comandos estranhos, já não se integra. Acomoda‐se. Ajusta‐se. O homem integrado é o homem Sujeito. A adaptação é assim um conceito passivo – a integração ou comunhão, ativo. (FREIRE, 2001, p. 50) O sentimento de impotência trazido pela cena e também escolhido como sensação a ser representada, inferioridade, exposição, são formas de gerar a adaptação, a inatividade, o não questionamento, seja pelo autoritarismo de um governo, seja pelo de um professor. As duas alunas se sentiram obrigadas a aquietar‐se, a obedecer, mesmo que discordando. No momento da cena puderam retomar este sentimento e encontrar outras soluções, soluções que acolhiam a possibilidade de crítica, a possibilidade de se integrar. Terceira cena UNICAMP: Terceira cena A plateia se mantém em circulo em volta da cena, porém todos sentados. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 73 Uma roda com uma pessoa no meio, que é a professora. Esta professora repreende uma das pessoas da roda, que passa a ocupar o lugar do centro e repreender outra e assim sucessivamente até que todas tenham ocupado o centro. Sensação comum escolhida pelo grupo: autoritarismo. Sensações e impressões: A aluna que foi reprimida se torna uma professora repressora. O professor é o centro. Fez pensar no papel de aluna e professora ocupado por elas. Uma das alunas relatou o fato de ter levado um beliscão de uma professora quando era pequena e que foi tão forte que ficou roxo. Sua mãe foi à escola reclamar e a professora foi afastada. Muito tempo depois ela foi fazer seu registro como professora e a pessoa que a atendeu era a professora de então, pegou os papéis e não voltou para terminar o atendimento. Relata nunca ter agido assim com seus alunos e manter as unhas curtas. Comenta que a outra não era professora e que ela é. A cena proposta retrata um dos aspectos centrais desta pesquisa, que é o entendimento de que somente com a reflexão, e aqui também com a criação, sobre situações vividas é que poderemos não repetir de maneira mecânica. A cena mostra esta repetição, este moto‐contínuo que mantém atitudes sem a opção, que agem pelo modelo, porém sem terem escolhido por ele. Quarta cena UNICAMP: Quarta cena A cena se passa em um lado da sala, com a plateia do outro. Uma aluna é cutucada pela colega e a xinga. A professora se vira e repreende a aluna que disse o palavrão, ignorando o ocorrido de antes, diz para a aluna que ela nem parece filha do diretor do banco. Chama a coordenadora que além de dar uma bronca, leva as duas para a diretoria e diz que elas devem ir de mãos dadas. Sensação comum escolhida pelo grupo: comparação com os pais ou irmãos. Sensações e impressões: Incomodo de ser comparado com os pais ou com os irmãos, incomodo para todos os irmãos, os que são elogiados e os que são repreendidos. Absurdo da situação de ter que dar as mãos ou abraçar um colega de quem você está com raiva, brigando. Absurdo da ameaça da professora com a diretora, e que algumas vezes acontece com outro professor. Uma aluna relatou a situação de ter um professor que era o mais temido da escola e que quando alguém fazia algo errado ia ficar um tempo na sala de aula dele. Também foi comentado que além dos professores, algumas salas são rotuladas e muitas vezes se comportam conforme os rótulos. Na situação da cena as alunas recebem como punição não fazer aula de Educação Física nunca mais, até a faculdade. Comentamos sobre o absurdo das punições que não tem nenhuma relação com o que as motivou. Sensação de injustiça. Uma aluna relatou uma situação na qual dois alunos são punidos por Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 74 assumirem um erro que estava sendo feito por quase todos da sala. Punição para o aluno que tem coragem de assumir o erro. A obediência é mais importante que os valores morais. Esta cena e seus comentários exploram diferentes aspectos da bronca. O primeiro deles é da comparação entre parentes, ignorando a pessoa que está na sala de aula e colocando‐a como parte de um grupo, um grupo que possuí características que devem ser seguidas por todos. Esta situação ocorre não apenas com irmãos ou pais, mas também entre colegas de sala, tornando um o modelo a ser seguido e outro o exemplo do fracasso. Evidentemente existem matizes e não são todas as escolas ou professores que dividem seus alunos entre bons e ruins, porém a cena trata da dificuldade observada em educar cada um com suas potencialidades e dificuldades, não necessitando de um modelo ideal a ser seguido. Outro aspecto explorado, que complementa o anterior, foi o da ameaça da diretora ou do professor bravo. Novamente uma visão dicotomizada, na qual alguns ocupam o papel do bravo e outros o do bonzinho. A professora se utiliza da diretora para ameaçar as alunas e a diretora assume este papel da brava, da que castiga, de quem não poderá ser questionada, obrigando inclusive que as duas alunas que brigavam fossem hipócritas, dando as mãos enquanto caminham. Conciliação imposta. Por fim, a cena apresenta um castigo que não tem qualquer relação com a causa. Novamente neste momento vemos a escola separando entre dois polos, agora das disciplinas importantes e das que não importam. Neste caso, a que não importa é a de Educação Física. Agrada, mas não importa. Como professora de arte em diferentes escolas, nunca vi um aluno ser castigado a perder a aula de matemática ou de português. As de Artes, junto com as de Educação Física eram as que mais entravam como barganha. Evidentemente pode‐se supor que os alunos gostem mais destas, razão pela qual são castigados perdendo‐as, porém, ao propor que estas aulas possam ser perdidas, entende‐se que são dispensáveis. Quinta cena20 A cena se passa em um lado da sala, com a plateia do outro. Na cena vemos três alunas escrevendo quando entra a professora, representada por uma aluna sobre os ombros da outra. A professora repreende as alunas, que gritam: eu odeio a escola, eu odeio a escola, eu odeio você. A professora grita: Não pode! Sensações e impressões: A cena lembrou o filme The Wall do Pink Floyd. A aluna que fez este comentário diz que já havia se lembrado do filme em outras cenas, mas que nesta foi igual. O professor mostra na voz e no gesto sua autoridade. Uma aluna relata o comentário de um colega professor que a orientou para não entrar na sala de aula sorrindo se quisesse ter o respeito dos alunos. A cena passa a sensação de não poder ir contra o que já está estabelecido. Duas alunas relatam que o tamanho da professora aumentou milhares de vezes quando levaram a bronca. A escolha cênica de colocar uma pessoa sobre os ombros da outra foi bastante impactante e este fato seguido aos gritos das alunas de odiarem a professora e da professora de afirmar que não podem odiar, possibilitou que a sensação de opressão ficasse muito marcante. É interessante pensar o quanto a diferença de altura pode ser opressora. 20
Não foi possível fotografar esta cena. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 75 Os professores que trabalham com crianças pequenas, mesmo em situações nas quais estão conversando, devem buscar soluções para se colocarem mais próximos das crianças, com os olhos em uma altura semelhante a de seus olhos. A opressão sentida por uma bronca pode provocar a impressão de que a professora aumenta de tamanho, “vira um monstro”, mas este fato somado a real diferença de altura pode agravar ainda mais a forma pela qual a criança dialogará com seus professores. Sexta cena UNICAMP: Sexta cena A cena é uma sequência de cenas. Uma narradora vai lendo os textos das lembranças escritas pelas alunas dos grupos e estas leituras se misturam com as cenas apresentadas. Uma das situações é o relato de um fato ocorrido na UNICAMP e faz parte da memória de todas, o que gera muitos comentários no decorrer da apresentação. As cenas apresentam uma grande intensidade devido às broncas escolhidas. O sentimento de humilhação, de inferioridade, de injustiça, de exposição e de indignação ficam fortes nos corpos da cada participante. São relatos doídos, mesmo com a distância do tempo no qual ocorreu. Foi necessário fazer um relaxamento para que todos pudessem sair da aula mais neutros. Neste encontro foi possível observar as escolhas teatrais para a apresentação da cana. O fato de que eu tenha solicitado uma elaboração prévia sobre a relação dos “atores” e da plateia, indicando a possibilidade de que a plateia poderia estar em diferentes posturas, além da convencional sentada em frente a cena, gerou soluções que deram dramaticidade à situação e maior intensidade nos sentimentos apresentados. Cenas apresentadas na FAACG Na FAACG as orientações para as cenas foram as mesmas que na UNICAMP. Primeira cena Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 76 FAACG: Primeira cena A primeira cena mostrou um dia de prova na qual um dos alunos é mandado embora da sala sem que a professora tivesse perguntado nada. Ele treme ao receber a bronca, gagueja um pouco, mas obedece sem discutir ou questionar. Ao comentarmos sobre a cena alguns professores disseram ter tido a impressão de que o aluno estava muito aéreo, o que dava a impressão de querer colar. Embora esta opinião não tenha sido de todos os professores participantes, fica evidente a intensão de justificar atitudes, muitas vezes incompreensíveis, por parte dos professores. Nota‐se um intuito de protecionismo ao colega, ainda que estivéssemos em uma situação ficcional ou de lembranças de algo que não havia ocorrido naquela escola. Ao refletirmos sobre o caso do aluno maltratado, ficou evidente a dificuldade de expor um colega que esteja com uma conduta inadequada. Foram apresentados diversos argumentos, desde a questão ética, até do protecionismo que observamos entre os pares. Algumas professoras relataram casos nos quais elas chegaram a conversar com alguma colega que teve uma atitude inadequada, mas ficou evidente a dificuldade de apresentar a queixa para outras instâncias. Julia argumentou da dificuldade de falar sobre o trabalho do outro com receio de que ele faça o mesmo. (FARIA, 2009) O receio relatado por Faria surgiu em diferentes comentários das cenas apresentadas. Nota‐se uma busca por encontrar justificativas para diferentes atuações docentes. Entretanto, o fato de que muitas destas situações partiram de lembranças dos professores nos momentos em que se encontravam como alunos, surgiu claramente um conflito entre estes dois papeis, podendo ampliar a visão sobre as situações relatadas e encenadas. O professor que foi autor da lembrança, ocorrida na terceira série do fundamental, explicou que ele só estava pensando, mas teve a prova tomada e foi expulso da sala. Relatou ter ficado muito nervoso, mas que era muito tímido para questionar a atitude da professora. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 77 Segunda cena FAACG: Segunda cena A segunda cena mostra as alunas fazendo uma atividade quando a professora passa perto do caderno de uma delas e dá um grito dizendo que estava errado, mostrando o caderno para os outros alunos e dizendo para ninguém fazer como ela. No comentário sobre a cena falamos sobre a humilhação pelo qual a aluna passou. Terceira cena FAACG: Terceira cena A terceira cena mostra alguns alunos que entram atrasados na sala, conversando, atrapalhando a aula quando um deles solta um pum e os dois resolvem colocar a culpa do pum em uma colega que fica muito chateada. A professora depois de um tempo dá uma bronca e leva um dos alunos para a diretoria. O autor do pum não é castigado. No comentário sobre a cena uma professora disse que a professora da cena era muito mole. Falamos sobre a frequência com que este tipo de situação ocorre, na qual os alunos soltam puns e não é possível identificar o autor do mesmo, ocasionando confusão na sala. Uma professora disse que nunca consegue identificar o autor e por isso todos levam bronca, outro disse que apazigua a turma dizendo que cada um fique com sua cota de cheiro e pronto. Esta sugestão foi bem aceita pelo grupo. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 78 Quarta cena FAACG: Quarta cena Na quarta cena, novamente os alunos estão fazendo prova, depois de terem sido alertados para guardarem anotações. Um dos alunos começa a fazer a prova com um caderno debaixo da perna, olhando para suas anotações todo o tempo. O professor retira a prova e rasga‐a em pedaços, joga o caderno do aluno no chão. Quando a prova acaba ele vai até o lixo e pega os pedaços rasgados e leva com ele, por receio do que poderia ocorrer com sua atitude. Após cada uma das cenas comentamos o que o grupo havia visto e quem fez comentou sobre a lembrança que havia gerado a cena. De maneira geral surgiram sensações e lembranças sobre esta situação vivida como aluno na qual o sentimento predominante era de humilhação e de injustiça, mas este sentimento se contrabalanceava com outro de compreensão sobre a atitude do professor ou de parte dos professores, gerado pela condição atual de ser professor. Em muitos momentos o grupo justificou uma ou outra atitude por se colocar na posição do professor e afirmar que os alunos atuam de forma a tirar o professor do controle, desafiar, provocar até que o professor perca o controle. Esta discussão surgiu em parte pela atitude do professor que rasga a prova do aluno. Surgiram diversos comentários sobre a falta de clareza e sobre a flexibilidade das regras. O exemplo dado foi a situação de buscar‐se ensinar o aluno a ir ao banheiro e beber água no intervalo, porém quando o professor é rígido, cobrando o combinado e não deixando que o aluno saia da sala, corre o risco de ser repreendido se o aluno faz xixi na calça, da mesma forma quando o professor cede ao apelo do aluno, leva bronca por ter deixado ele sair. A sensação passada foi de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Comentei que os professores retratados nas cenas, excetuando a professora que observa a situação do pum antes de punir, pareciam descontrolados. O grupo concordou com esta percepção. Questionei o comentário de que esta professora era mole e não ficou muito clara qual era a posição do grupo sobre esta questão, mas existia certa concordância de que ela havia sido mole com os alunos e ao mesmo tempo a percepção dela ter sido a única professora que observou a situação antes de intervir. A professora que fez o papel da professora na cena comentou que mesmo observando ela agiu de forma equivocada, punindo somente um dos alunos. O fato dela punir apenas um dos alunos gerou o comentário de que existem momentos onde é necessário punir um aluno para que seja um exemplo para o grupo. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 79 A reflexão sobre quando e como punir, sobre o sentido da bronca, da advertência sobre atitudes inadequadas para o grupo, da orientação sobre as regras e os combinados não se esgotou neste encontro e, certamente, poderíamos ter muitos outros momentos para refletir sobre o sentido de atitudes como as que foram lembradas e representadas. Um dos aspectos marcante em muitas das falas foi da falta de apoio da equipe de educadores, resultando em muitas dúvidas sobre como agir, além da pouca coerência entre o grupo de professores, que por vezes, atua concomitantemente com o mesmo grupo de alunos. Conversa sem fim As cenas relatadas, seja por alunos, seja pelos professores demonstram diversas questões sobre as quais professores e pesquisadores da educação refletem e, por vezes, encontram caminhos para que não tenhamos que ser punidos ou punir, em uma roda‐viva de tristeza, angústia e uma permanente sensação de impotência. Segura de si, a autoridade não necessita de, a cada instante, fazer o discurso sobre sua existência, sobre si mesma. Não precisa perguntar a ninguém, certa de sua legitimidade, se "sabe com quem está falando?" Segura de si, ela é por que tem autoridade, porque a exerce com indiscutível sabedoria. (FREIRE, 1996, p. 102) Um dos saberes que parece ausente nos relatos sobre broncas é o da escuta, o do olhar para o outro, o da quietude em se colocar disponível para compreender o que está acontecendo em uma dada situação, antes de agir sobre ela, antes de punir. As broncas levadas e dadas apresentam uma imagem de professor como alguém que necessita estar em permanente ação, em permanente proposição de maneiras pelas quais o grupo ou um determinado aluno deve agir. Os professores das cenas se mostram como donos da verdade, como donos do poder, que não precisam ouvir as versões dos alunos para tomarem a atitude certa. O diálogo não se mostra como possibilidade para a resolução dos conflitos apresentados. Os sentimentos apresentados são de injustiça, inferioridade, exposição, humilhação e indignação. Observa‐se em muitas das representações o autoritarismo imperando na forma de relacionar‐se com os alunos. Porém na fala dos professores da FAACG, embora suas lembranças como alunos tenha sido marcada pelos mesmos sentimentos que dos alunos da UNICAMP, surgem outros conflitos. A impotência diante do não saber como solucionar momentos de conflitos é constante. A falta de apoio da coordenação e direção e de regras claras sobre como lidar com as situações apresentadas reforça a angústia por não saber como agir, levando a atitudes de descontrole e de consequente receio das consequências deste descontrole, como na cena onde o professor rasga a prova do aluno. Este mesmo descontrole, que soa a um acesso de loucura, também é parte das situações encenadas. Os professores e professoras se mostram como pessoas que não respiram, que não conseguem dominar sua raiva junto aos alunos. A impressão deixada é de que não respiram mesmo, que não dominam seus corpos perante os sentimentos que as Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 80 atitudes dos alunos provocam. Também os professores das cenas se sentem humilhados, expostos e indignados. Retomamos a necessidade do diálogo, da disponibilidade para perceber as necessidades e conflitos do aluno, assim como poder mostrar as suas. Certamente será também outra imagem de professor, de um professor que se emociona, se fragiliza, carrega dúvidas junto a seus saberes. Entendemos que olhar para estas lembranças doídas e torná‐las cenas, podendo refletir sobre os personagens e conflitos apresentados, possibilitou para cada participante um momento de respiro, uma chance de descobrir outras soluções que não apenas a da bronca, que traz em sua essência a perspectiva da dominação, que traz o desejo de silenciar o aluno que incomoda. Não sem sofrimento, buscamos este caminho da conversa. Referências FARIA, Alessandra Ancona de. Teatro na formação de educadores: o jogo teatral e a escrita dramatúrgica. Tese de doutorado apresentada na PUC‐SP, São Paulo, 2009. ___________ Contar histórias com o jogo teatral. São Paulo: Perspectiva, 2011. FREIRE, Paulo. A educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. _____________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. JÁCOMO, Ana. Minha maior intenção. Publicado em 22/07/2011. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3111888>. Acesso em: 14 abr. 2014. JOSSO, Marie‐Christine. Caminhar para si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010 LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. PASSEGGI, Maria da Conceição. A experiência em formação. Revista Educação Vol. 34, N° 2 (2011) Dossiê ‐ Pesquisa (Auto)biográfica e Formação. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 81 Professores iniciantes na alfabetização: identidades em formação Andre Afonso Vilela UEMS [email protected] Eliane Greice Davanço Nogueira Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul UEMS [email protected] Janine Cano Quintino UEMS [email protected] Este artigo é fruto das inquietações geradas durante os encontros Grupo de Estudo e Pesquisa em Narrativas Formativas (GEPENAF). Tem como sujeitos de investigação professoras alfabetizadoras em fase inicial da carreira docente, 0 a 5 anos de docência, e tem como objetivo principal apresentar e problematizar aspectos referentes ao processo de construção da identidade profissional dessas docentes. Utiliza‐se de uma abordagem qualitativa com o método da narrativa oral, tendo como instrumento de coleta de dados entrevistas semiestruturadas. Apoia‐se nos estudos desenvolvidos acerca das temáticas: identidade docente, fases da carreira docente e alfabetização. Participaram deste estudo 04 professoras alfabetizadoras cujo tempo de docência as caracteriza como iniciantes na docência. O lócus da pesquisa foi a uma escola municipal de Campo Grande/MS, por apresentar o maior número de professores em início de carreira. Ficou evidenciado neste estudo o quanto as experiências escolares vivenciadas enquanto alunas e os modelos de professores e métodos utilizados na alfabetização das professoras colaboradoras deste estudo interferem em suas práticas pedagógicas e como consequência na formação da sua identidade profissional. No caso específico das professoras em questão esses modelos foram ressignificados durante a graduação, a ponto de elegerem os professores da academia como as mais significativas referências para a docência, além de estabelecerem o domínio do conteúdo a ser ensinado e a afetividade como sendo os principais atributos de um professor alfabetizador. Diante de todo o exposto, é válido destacar a relevância do envolvimento dos membros da comunidade escolar no acompanhamento desses professores iniciantes a fim de minimizar o choque da realidade, uma vez que nessa fase os docentes vivenciam uma transição de identidades. Além disso, é fundamental a sistematização de programas de formação continuada que foquem a questão da identidade docente. Palavras‐chave: Professores Iniciantes; Formação de Professores; Narrativas identitárias. Introdução A produção de conhecimento na área educacional tem ampliado significativamente o olhar para a figura do docente a fim de alcançar avanços, solucionar problemas e elevar a qualidade da educação brasileira. Nesse sentido, esta pesquisa busca dar sua contribuição uma vez que tem como objetivo geral apresentar e problematizar aspectos referentes ao processo de formação da identidade profissional de 04 professoras alfabetizadoras em início de carreira. Os objetivos específicos estão centrados na identificação e análise das concepções e saberes constituídos desde as primeiras experiências escolares, incluindo o período de alfabetização, perpassando pelas vivências da graduação e culminando na prática pedagógica dessas professoras. Durante todo o processo de investigação e análise foram estabelecidas as seguintes referências: Nóvoa (2009), Tardif (2012,), Pimenta (2009), Nono (2011) e Ferreiro (2011). A pesquisa está fundamentada em uma metodologia qualitativa, realizada por meio de entrevista semiestruturada e caracteriza‐se como sendo de caráter exploratório, descritivo, utilizando‐se em sua operacionalização o método da história oral, uma vez que “o Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 82 depoimento oral viabiliza os objetos em sujeitos, contribuindo para compor uma história mais rica, mais envolvente, mas também mais verdadeira” (THOMPSON, 1992). Sua relevância social deve‐se ao fato de fornecer subsídios aos órgãos competentes a fim de sistematizar e implementar programas de formação continuada voltados aos professores alfabetizadores em fase inicial da carreira docente, contribuindo com a minimização do choque da realidade e subsidiar a prática pedagógica desses profissionais. Esse choque explica‐se pelas discrepâncias entre os ideais educacionais e o cotidiano nas escolas. A docência e a construção da identidade profissional O ponto de partida dessa pesquisa versa sobre o processo de construção da identidade profissional de professores alfabetizadores em início de carreira21, levando em consideração aspectos relacionados à formação inicial e continuada do professor alfabetizador e à sua história de vida. De acordo com Huberman (1993), o processo de formação do eu professor, ou seja, sua identidade profissional, é marcado por fases, ciclos ou momentos. Antes de serem apresentadas tais fases, faz‐se necessário explicitar o conceito de identidade profissional ou identidade docente, visto que o termo configura‐se como objeto de investigação da presente pesquisa: É preciso entender o conceito de identidade docente como uma realidade que evolui e se desenvolve tanto pessoal como coletivamente. A identidade não é algo “dado” ou que se possua, ao contrário, é algo que se desenvolve ao longo da vida. A identidade não é um atributo fixo para uma pessoa, mas sim um fenômeno relacional. O desenvolvimento da identidade ocorre no terreno do intersubjetivo e se caracteriza por ser um processo evolutivo, um processo de interpretação de si mesmo como pessoa dentro de um determinado contexto (GARCIA, 2010, p. 19). Pelo que se pode apreender acerca das colocações do autor, a identidade docente além de ser formada pelas experiências vivenciadas no coletivo também depende da maneira como o docente vai se percebendo enquanto educador. Desta forma, a fim de complementação, apresenta‐se a concepção de Nóvoa (1995) acerca do termo em questão: [...] uma construção que tem uma dimensão espaço‐temporal, atravessa a vida profissional desde a fase da opção pela profissão até a reforma, passando pelo tempo concreto da formação inicial e pelos diferentes espaços institucionais onde a profissão se desenrola. [...] É uma construção que tem as marcas das experiências feitas, das opções tomadas, das práticas desenvolvidas, das continuidades e descontinuidades, quer ao nível das representações quer ao nível do trabalho concreto (NÓVOA, 1995, p.115) Evidencia‐se, no entanto, a necessidade de investigação do processo de construção da identidade docente, uma vez que esta se dá na relação com os discentes, com os demais professores e consigo próprio. Tal identidade está atrelada também à maneira como o 21DeacordocomHuberman(1993),éconsideradoprofessorinicianteaquelecujotempodeatuaçãona
docênciasejade0a5anos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 83 sujeito vai se percebendo enquanto professor, estabelecendo qual o seu papel, analisando e refletindo acerca do seu fazer pedagógico e por consequência, expandindo sua consciência. Como dissemos, a construção da identidade docente é marcada por fases, a saber: a) fase da entrada na carreira; b) fase da estabilização; c) fase da experimentação ou diversificação; d) fase da procura de uma situação profissional estável e, finalmente, e) fase de preparação da jubilação (HUBERMAN, 1993). De acordo com Huberman (1993 apud NONO, 2011, p. 16), os professores que estão na primeira fase – no caso, os sujeitos de pesquisa deste trabalho –, estão no: Período de sobrevivência e descoberta. O aspecto de sobrevivência tem a ver com o “choque de realidade”, com o embate inicial com a complexidade e a imprevisibilidade que caracterizam a sala de aula, com a discrepância entre os ideais educacionais e a vida cotidiana nas classes de alunos e nas escolas, com a fragmentação do trabalho, com a dificuldade em combinar ensino e gestão de sala de aula, com a falta de materiais didáticos, etc. O elemento de descoberta tem a ver com o entusiasmo do iniciante, com o orgulho de, finalmente, ter sua própria classe, seus alunos, e fazer parte de um corpo profissional. Sobrevivência e descoberta caminham lado a lado no período de entrada na carreira. Para alguns professores, o entusiasmo inicial torna fácil o início na docência; para outros, as dificuldades tornam o período muito difícil. O termo “choque de realidade”, criado por Veenman e citado por Huberman, ou “choque da transição”, citado por outros autores, é o momento inicial da carreira docente de “medo e tacteamento” (SILVA, 1997), ou seja, os professores realizam uma série de indagações e reflexões acerca da complexidade das relações existentes no cenário educacional brasileiro, e que envolvem as condições materiais e institucionais, as questões relacionadas à formação inicial e continuada e ao papel da escola e do professor na sociedade contemporânea. Muitas vezes as conclusões vão de encontro a valores e crenças construídas durante toda uma trajetória pessoal, gerando sentimentos antagônicos como euforia e frustração. Perrenoud (2002) pontua que os professores que estão na primeira fase encontram‐se num período de “transição de identidades”, ou seja, deixam de ser estudantes e passam a ser profissionais responsáveis pela aprendizagem de um grupo de alunos. O referido autor caracteriza os professores em fase inicial da carreira como aqueles que demonstram sentimento de pânico, estresse, angústia e medo que com o tempo são levados a reajustar suas expectativas e percepções anteriores. Na fase de estabilização, considerada a mais positiva por Huberman (1993), os professores adquirem o domínio das técnicas de ensino, desenvolvem uma certa independência no que tange à seleção de métodos e materiais a serem utilizados em sua prática. A fase de experimentação ou diversificação (HUBERMANN, 1993) é marcada pelo desejo que os docentes têm de ousar, resolver aspectos que dificultam a sua prática, tornando‐a mais eficaz. Muitas vezes vive‐se o dilema de continuar ou abandonar a carreira. Na fase de procura de uma situação profissional estável, ou seja, a fase do conservadorismo, há a coexistência de dois grupos de docentes, ou seja, aqueles que evidenciam uma maior serenidade e distanciamento afetivo dos discentes e aqueles que estagnam profissionalmente, tornando‐se amargurados. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 84 Finalmente, na fase de preparação da jubilação (HUBERMANN, 1993), muitos docentes influenciam negativamente os jovens professores, visto que assumem uma posição de desencanto. Porém existem aqueles que apesar de estarem prestes a atingir a etapa de encerramento da carreira profissional, ainda demonstram uma atitude tida como positiva, visto que evidenciam uma preocupação no que tange à qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem. Diante disso, torna‐se evidente a relevância e a singularidade do tratamento que deve ser destinado a esses profissionais iniciantes por parte das instituições de ensino, visto que as experiências dos primeiros anos da profissão interferem diretamente na decisão do professor em permanecer ou não na carreira e definem o tipo de profissional que ele virá a ser. Dessa forma, salienta‐se a relevância social desse estudo, uma vez que o Brasil, diferentemente da Argentina, Chile e França, ainda não dispõe de políticas voltadas aos professores que vivenciam a fase inicial da carreira docente. A formação do eu professor O processo de formação do eu professor, ou seja, sua identidade profissional pode se compreendido pela exposição e análise da história de vida do docente, das experiências vivenciadas durante os momentos de formação inicial e continuada e os saberes apreendidos nessa trajetória. Surgidas a partir de 1980, as pesquisas envolvendo histórias de vidas de professores postulam que a prática profissional do docente evidencia saberes constituídos a partir de experiências/vivências que antecedem à preparação profissional formal para o ensino, ou seja, na posição de aluno ele assume uma visão de educação difícil de ser modificada, podendo assim ser reproduzida, muitas vezes inconscientemente, em sua prática em sala de aula e na relação com os discentes. Aos estudos que investigam o processo de formação da identidade profissional docente, as histórias de vida configuram‐se como uma categoria que possibilita aos pesquisadores e aos próprios docentes a compreensão desses processos de internalização, de aprendizagem e de socialização, uma vez que “a história de vida é tomada como memória coletiva do passado, consciência crítica do presente e premissa operatória para o futuro” (FERRAROTTI, 1982 apud KRAMER, 2010, p. 155). E ainda, no que se refere às histórias de vida, Tardif (2012) tece algumas considerações que complementam e enriquecem este estudo: Ao longo de sua história de vida pessoal e escolar, supõe‐se que o futuro professor interiorize um certo número de conhecimentos, de competências, de crenças, de valores, etc,, os quais estruturam a sua personalidade e suas relações com os outros (especialmente com as crianças) e são reatualizados e reutilizados, de maneira não reflexiva mas com grande convicção, na prática de seu ofício. Nessa perspectiva, os saberes experienciais do professor de profissão, longe de serem baseados unicamente no trabalho em sala de aula, decorreriam em grande parte de preconcepções do ensino e da aprendizagem herdadas da história escolar (p.72). Pensando nas histórias de vida, as “matrizes pedagógicas” surgem como categoria para identificação e análise dos “nichos, nos quais são gestados e guardados os registros Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 85 sensoriais, emocionais, cognitivos e simbólicos vividos pelos sujeitos ao transitarem nos espaços intersubjetivos, onde se constela o arquétipo do Mestre‐Aprendiz” (FURLANETTO, 2011, p.32). As matrizes pedagógicas, na concepção de Furlanetto, seriam: [...] As matrizes pedagógicas podem ser simbolicamente consideradas em espaços, nos quais a prática dos professores é gestada. Conteúdos do mundo interno encontram‐se com os do mundo externo e são por eles fecundados, originando o novo. A matriz, além de configurar‐se como local de fecundação e gestação, também se apresenta com possibilidade de retorno em busca da regeneração e da transformação...... não começam a se constituir nos cursos de formação, mas estão enraizadas em instâncias muito mais profundas de sua psique e vão ganhando formas pessoais, conforme ele vivencia situações de aprendizagem nas quais foi constelado o Arquétipo de Mestre‐Aprendiz, o que ocorre desde o início de sua vida (FURLANETTO, 2011, p. 19). Uma vez investigadas, retomadas, desconfiguradas e ressignificadas pelos professores, as matrizes pedagógicas possibilitam a regeneração e a transformação do fazer pedagógico. De acordo com Fusari (1988), os cursos de formação inicial pouco têm contribuído no processo de construção de uma nova identidade do profissional docente, visto que são estruturados de forma a contemplar um currículo que não toma por base a realidade das escolas, ou seja, as contradições nelas presentes. Já, os de formação continuada, primam apenas pela atualização dos conteúdos de ensino, não possibilitando aos docentes uma alteração significativa da sua prática em sala de aula. A transformação da prática docente configura‐se no aparato das culturas colaborativas. As “culturas colaborativas” (NÓVOA, 2009) pressupõem todo um aparato existente no interior da instituição escolar a fim de que o docente iniciante não caia no isolamento, e sim, seja acompanhado pela supervisão e pelos demais professores. O trabalho em equipe possibilita que os membros da comunidade escolar compartilhem de objetivos comuns, assim, ajudam‐se mutuamente. A reflexibilidade lhe proporcionará a capacidade de analisar‐
se enquanto docente, sua prática, quais as alterações necessárias a fim de que essa prática possibilite a aprendizagem efetiva dos discentes. Garcia (2010, p. 21), afirma que: A professora no exercício da prática docente é portadora de uma teoria adquirida em seu curso de formação inicial, teoria atualizada a cada dia, em sua relação com as crianças na sala de aula e com as suas colegas professoras nas reuniões pedagógicas, nas experiências que vive dentro e fora da escola, nas leituras que faz, nos cursos de que participa, nas reflexões que produz. Outra proposta valiosíssima de formação continuada de professores seria aquela que “construísse uma teoria da pessoalidade no interior de uma teoria da profissionalidade” (NÓVOA, 2009). Assim, seriam proporcionados ao professor momentos em que tivesse a oportunidade de iniciar um processo de seleção e análise de ícones que lhe possibilitasse a tomada de consciência da origem da sua própria prática. É no interior dessa proposta que nasce a construção de narrativas sobre as suas próprias histórias de vida pessoal e profissional. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 86 Dessa forma, é possível oferecer aos docentes instrumentos que lhes possibilitem uma mudança em sua prática pedagógica – prática essa que requer uma urgente reforma educacional. O processo de formação continuada de professores é extremamente complexo. Jackson (2009) descreve dois paradigmas presentes nesse tipo de formação: a perspectiva do déficit e a perspectiva do crescimento. De acordo com o autor, as propostas de formação continuada que visam ao desenvolvimento de saberes/competências específicas são ineficazes, o que de fato deve ser pensado é o favorecimento de uma maior expansão docente. Para melhor explicitar o processo de análise dos dados obtidos na pesquisa, bem como por questões éticas, e no intuito de preservar suas identidades, os sujeitos selecionados foram identificados pela letra P: professora (P1, P2, P3 e P4): P1: 31 anos e 3 anos de docência; P2: 32 anos e 5 anos de docência; P3: 24 anos e 09 meses de docência; P4: 24 anos e 1 anos de docência. Conforme dados coletados foi possível observar que: ‐ 75% (n=03) formaram‐se em instituições privadas de ensino superior e 25% (n=01) em instituição pública; ‐ 100% (n=04) dos sujeitos são convocados na Rede Municipal de Ensino, evidenciando também uma certa instabilidade profissional; ‐ 75% (n=03) das docentes estão matriculadas em cursos de pós‐graduação lato sensu e 25% (n=01) ainda não o faz, porém manifesta interesse e reconhece a importância; ‐ 75% (n=03) das docentes que cursam pós‐graduação lato sensu o fazem em instituições privadas de ensino superior e 25% (n=01) em instituição pública. Com o intuito facilitar o processo de análise dos dados da pesquisa, optou‐se pelo agrupamento das informações em 03 eixos: infância e experiências escolares anteriores à graduação, período da formação inicial (Licenciatura em Pedagogia) e prática docente/ formação continuada. 1º Eixo: infância e experiências escolares anteriores à graduação. O primeiro contato estabelecido entre pesquisadora e P1 foi marcado pela insegurança e ansiedade por parte desta ‐ “Não sei se vou dar conta, falar sobre a minha história assim no improviso”(P1). Porém, após obter informações acerca do objetivo da pesquisa, bem como da ética que a ela deve estar atrelada, P1 iniciou a narrativa de sua história de vida. Ao ser questionada inicialmente acerca dos motivos que a levaram a optar pelo curso de Pedagogia, a mesma, após um breve silêncio, fazendo uso de um tom de voz firme, demonstrando ressentimento e tristeza, afima: “A não alfabetização do meu filho na idade certa” (P1). De acordo com P1, o filho cursava o 2º ano do Ensino Fundamental e não havia desenvolvido habilidades de leitura e escrita. Suas colocações evidenciam que os fatores considerados por ela como responsáveis pelo insucesso da aprendizagem de seu filho, foram o método pelo qual seu filho foi alfabetizado, no caso o tradicional, e a Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 87 formação/concepções da docente responsável. “Eu sabia que poderia fazer muito mais do que aquelas meras xérox” (P1). “Hoje eu me considero uma professora adequada para a alfabetização” (P1). Ao discorrer sobre a sua infância no que se refere às suas experiências escolares, suas referências de professores, destacando seus atributos, P1 mais uma vez demonstra mágoa e tristeza, destacando a intolerância e a não afetividade por parte dos docentes que participaram de sua formação e atribui que muitas dificuldades encontradas em sua prática docente advêm desse período: As minhas experiências escolares não foram muito agradáveis, principalmente devido à intolerância dos professores e a falta de interesse em nos conhecer. Na época, nós tínhamos que memorizar os textos e os professores não nos cobravam interpretação e muito menos aceitavam a exposição de nossos pontos de vista. Todos esses aspectos fragilizaram a nossa aprendizagem e os reflexos são sentidos em nossa prática pedagógica nos momentos da produção de um artigo, por exemplo. (P1: 32 anos e 03 anos de docência). Em suas narrativas P1 salienta que os atributos indispensáveis a um docente são: pontualidade, sensibilidade no que se refere à percepção dos alunos em sua totalidade, considerando suas potencialidades e as dificuldades de cada discente: “Eu apenas conheci um excelente professor na Educação de Jovens e Adultos, a pontualidade no horário em sala de aula, o “Boa noite”, o interesse em saber como estávamos psicologicamente. Ele tinha um caderninho onde registrava o histórico de cada aluno. As atividades eram individuais, respeitando as dificuldades de cada aluno, e exigiam reflexão (P1). P2 entretanto, desde o início de sua narrativa, demonstrou tranquilidade e serenidade, no entanto evidenciou por diversas vezes sua fragilidade no trabalho com a alfabetização. “Eu sou novata na área..., mesmo sabendo da minha pouca experiência a direção depositou muita confiança em mim e eu irei fazer jus a esse voto de confiança” (P2). Ressalta que a opção pelo curso de Pedagogia se deu por influência da mãe que era uma leitora apaixonada que acabou influenciando os filhos. “A minha mãe sempre foi a minha fonte de inspiração, era uma apaixonada pela leitura e nos contagiou. Durante as brincadeiras de escolinha eu buscava fazer o mesmo com os meus alunos imaginários” (P2). Ao realizar o relato de sua infância, enfatiza que durante toda a sua vida escolar teve muita dificuldade de aprendizagem, principalmente na área de exatas, cita o componente curricular de Matemática ‐ “Eu sempre tive muita dificuldade, nunca fui uma aluna modelo no quesito nota”. Emociona‐se ao falar de sua professora de Geografia, Sra. Bonfim, e ressalta os atributos que lhe tornaram uma professora inesquecível: Ela valorizava muito a leitura, propunha a leitura crítica de textos diversos a fim de desenvolver habilidades de interpretação e análise crítica, ou seja, nos fazia pensar, era disciplinada, pontual no cumprimento de seus deveres e obrigações e presente na vida dos alunos. (P2: 35 anos e 05 anos de docência). P3 possui apenas 09 meses de docência e demonstrou durante todo o seu relato segurança, propriedade em suas colocações e muita vontade de fazer a diferença e marcar positivamente a vida dos alunos. Afirma que a função social da profissão docente a motivou Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 88 quanto à escolha de seguir a carreira no magistério, mais especificamente na área da alfabetização ‐ “Não consegui me imaginar atuando em outra profissão”. Da infância, destaca as experiências que vivenciou na primeira série com a professora Zuleide. P3 condena a prática tradicional adotada pela referida professora, mas enfatiza que apesar de tal prática era uma professora atenciosa ‐ “A sua prática era a tradicional, porém isso não me gerou traumas como alguns podem pensar... por mais que trouxesse atividades tradicionais, estava sempre ali presente, tentando fazer com que aprendêssemos”. Complementa seu relato pontuando: “Hoje, pensando sobre a prática dela, julgo não ser a prática docente a geradora de traumas, porque as vezes o docente faz uso do método tradicional, mas tem outra maneira de se relacionar com os alunos”. P4 afirma que a sua opção por cursar Pedagogia foi fortemente influenciada pelos aconselhamentos dos ex‐sogros, que são pedagogos. Das memórias que tem da infância, destaca o período em que cursou a primeira série, enfatizando práticas rígidas e tradicionais dos docentes ‐ “Eu me lembro de um professor que não deu muito certo por sua postura rígida. Em uma determinada ocasião, eu precisei ir ao banheiro e não obtendo a autorização por parte do professor fiz xixi na roupa”. Quanto à metodologia, P4 destaca que a professora era tradicional e fazia uso das cartilhas. Em seu discurso, percebe‐se que prática tradicional também é tida como algo negativo ‐ “A professora era tradicional, mas a gente gostava muito dela”. Antunes (2010, p. 191) salienta a relevância das experiências escolares na construção da identidade docente: A escola produz, nas histórias de vida das alfabetizadoras, significados sobre o processo de construção da leitura e da escrita, bem como lembranças da maneira como as primeiras professoras ensinaram a ler e a escrever, das relações estabelecidas entre professor (a) e aluno (a) e também da relação do eu com o outro. São memórias que atravessam o tempo e acompanham o fazer docente, possibilitando ao professor refletir sobre elas. Neste sentido, refletindo sobre as narrativas apresentadas por P1, P2, P3 e P4, apesar da diferença de idade, com base em suas experiências escolares enquanto alunas, apresentam concepções afins sobre da função da escola, do papel do professor e do aluno tendo como base suas vivências como alunas e o método no qual foram alfabetizadas, no caso o tradicional. Assim, evidenciaram que a escola era um espaço de disciplina, os professores eram tidos como meros transmissores de conhecimento e o aluno um receptor passivo desse conhecimento. O único saber necessário ao docente era o domínio do conteúdo o qual iria lecionar. Pela maneira como fazem suas colocações, os sujeitos da pesquisa, deixam transparecer uma crítica severa ao método tradicional, além do reconhecimento de que um dos atributos essenciais do professor alfabetizador deve ser a afetividade, característica não identificada nos modelos de professores alfabetizadores que tiveram. Eixo 2: período da formação inicial (graduação) Quanto às contribuições da graduação para a identidade docente, P1 ressalta que cursou Pedagogia no período noturno e evidencia em sua fala que possui algumas ressalvas em relação aos cursos não‐presenciais ‐ “Eu fiz faculdade a noite e tive o prazer de ser presencial graças a Deus”. Salienta que teve excelentes professores e considera que a obra Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 89 Didática Magna foi de grande relevância em sua formação e prática pedagógica a ponto de considerar a referida obra “...a bíblia do professor”. P1 dá continuidade às suas narrativas defendendo a sua concepção de criança: A criança tem que ser ouvida, pois ela é uma caixa se surpresa. A todo momento ela te oferece algo e não o contrário. A partir do que a criança evidenciou por meio da fala, do olhar ou de suas ações, é possível identificar suas necessidades, sejam afetivas, fisiológicas. A criança reproduz o que ela vivencia na escola, em casa, ou seja, em todos os espaços sociais onde está inserida. Se todos os professores tivessem um olhar sensível para perceber a infância, as crianças, conseguiriam desenvolver um trabalho muito mais prazeroso e significativo. No que tange aos saberes necessários à formação e atuação de um professor alfabetizador, P1 julga que desse profissional é exigido que se tenha uma compreensão acerca de como a criança aprende, uma vez que a aprendizagem é individual. Um trabalho mal direcionado pode ocasionar bloqueios. Segundo P1 é preciso aliar teoria à prática. P2 afirma que seu curso de graduação foi modalidade semipresencial e que a aquisição do conhecimento durante esse período se deu muito pouco pelo contato direto com o professor, muito mais em pesquisas na internet e pesquisa de campo ‐ “As minhas pesquisas fora do ambiente acadêmico foram muito mais significativas para a minha formação do que as experiências vivenciadas na universidade”. Apresenta a sua concepção de criança: A criança deve vivenciar momentos da brincadeira, porém a ela deve ser atribuídos deveres e obrigações, bem como deve haver a imposição de limites, pois a sociedade atual assim exige. Como educadora, eu preciso objetivar a formação de cidadãos. Criança tem que ser criança na hora certa, após a realização das obrigações. (P2) Ao discorrer sobre os saberes necessários à formação e atuação de um professor alfabetizador, ressalta que um dos principais atributos é ser um pesquisador, deve ter como prática a busca de informações e de métodos diferenciados a fim de possibilitar a aprendizagem das crianças. “Hoje é muito difícil uma criança entender como antes”. P3 se remete às contribuições da graduação para a sua identidade docente e expõe que o que fez a diferença foi a professora Constantina, principalmente pelo seu compromisso ético e temática de trabalho ‐ “Direitos Humanos”. No que tange à sua concepção de criança, P3 enfatiza que foi formada na graduação “... é um ser social que tem voz e direitos. Assim, devem ser ouvidas e suas opiniões consideradas e valorizadas na prática pedagógica. Quanto aos saberes inerentes ao professor alfabetizador, ressalta a compreensão do processo de aprendizagem da criança, ter clara a função social do professor e o tipo de ser humano que quer formar e quais habilidades desenvolver. Dentro desse eixo, apresenta‐se finalmente as considerações de P4. Quanto à graduação destaca as contribuições dos professores e do estágio supervisionado ‐ “Foi no estágio que eu descobri que estava me preparando para atuar na profissão certa”. Ao se posicionar acerca da sua concepção de criança P4 defende que a infância está acabando e que as crianças são miniadultos por questões que envolvem vestimenta e o comportamento quanto ao manuseio precoce das tecnologias ‐ “A gente tem que resgatar essa ideia de infância que hoje está perdida”. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 90 Referindo‐se aos saberes docentes, especificamente do professor alfabetizador, P4 enfatiza ser necessário o domínio dos conteúdos a serem ensinados, conhecer e conquistar os alunos a fim de traçar o perfil da turma, manter a disciplina em sala de aula e ser capaz de estruturar um bom planejamento. Sendo assim, as narrativas apresentadas possibilitaram compreender que a entrada das professoras na universidade possibilitou‐lhes a realização de um contraponto entre esse novo contexto, qual seja o meio acadêmico, e todas as experiências escolares, concepções e saberes já constituídos. Sendo assim, ficou evidenciado que os vínculos de afetividade e de confiança foram estabelecidos com os docentes da graduação, os quais constituíram‐se modelos para a prática docente dos sujeitos da pesquisa. Eixo 3 – prática docente/formação continuada Após as reflexões sobre das experiências escolares e a formação inicial, P1 descreve e analisa sua identidade como professora alfabetizadora. Considera‐se uma professora pesquisadora uma vez que o sistema de escrita na alfabetização é complexo e exige embasamento teórico do professor ‐ “Eu me apoio na pesquisa a fim de possibilitar o desenvolvimento de um bom trabalho e não me tornar uma professora de xérox”. Ressalta que em sua prática procura não se remeter aos modelos de professores que teve na infância/adolescência, mais uma vez a professora carrega o tom de voz e afirma: “Eu não gosto nem de lembrar, prefiro pular essa parte”. Enfatiza que os impactos sofridos no início da carreira foram inúmeros dentre os quais está o elevado quantitativo de alunos em sala de aula ‐ “Eu me assustei muito com o número de alunos por sala, eram 36 alunos na minha turma de 2º ano e isso me causou muito medo e insegurança”. Outro aspecto mencionado foi a discrepância existente entre o que é ensinado na graduação e a prática que envolve a realidade de sala de aula. P1 afirma que apesar dos impactos iniciais percebe‐se professora a todo momento, não apenas em sala de aula, mas em todos os espaços sociais que frequenta ‐ “Ser professor não é apenas sistematizar e executar bons planos de aula, é ir além da sala de aula e dos demais espaços escolares. A busca por novos conhecimentos e estratégias eficazes para possibilitar a aprendizagem dos alunos deve ser uma das principais ações do professor”. “Tanto como os meus alunos eu já evoluí bastante”. Salienta que a escola tem contribuído efetivamente para a construção da sua identidade profissional, pois desde o início de sua prática tem “...carta branca da direção da escola...” para realizar projetos e executar todas as ações que acredita que possam contribuir para a aprendizagem dos alunos. Durante a realização desses projetos afirma: “Eu me sinto um pouco criança juntamente com as minhas crianças. Por meio dos projetos eu consigo realizar tudo aquilo que não foi possível realizar durante a minha infância”. No que diz respeito aos recursos utilizados para promover a sua formação continuada, P1 ressalta que participa do Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, oferecido pelo governo federal, além de participar de palestras e cursos oferecidos pela Secretaria Municipal de Campo Grande/MS, dialogar com professores mais experientes e realizar a leitura de teóricos da educação tanto nas aulas do curso de pós‐graduação como durante a sistematização dos planos de aula. De acordo com ela, para que a formação continuada aconteça efetivamente faz‐se necessário que o professor promova uma reflexão, estabeleça uma paralelo entre as concepções já formadas com o que está sendo Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 91 apresentado como novo. Desse paralelo emergem novos conhecimentos, valores e novas práticas docentes. Ao apresentar a sua concepção acerca dos elementos que compõem a identidade profissional do docente, P1 enfatiza questões de ordem teórica. P2 tece algumas considerações sobre a sua identidade de professora alfabetizadora enfatizando que se considera uma apaixonada pela educação e salienta que lhe falta vivência na alfabetização, porém garante que carrega um desejo muito grande de superar os obstáculos apresentados, principalmente a falta de embasamento teórico. Essa professora também reconhece as influências dos modelos de professores que teve em sua prática pedagógica. Porém ressalta que tenta unir as práticas docentes de sua infância com as atuais a fim de aprimorar sua prática em sala de aula. Enfatiza que os impactos do início da carreira foram muito grandes, uma vez que toda a sua experiência docente foi vivenciada em escolas particulares e pela primeira vez leciona na rede pública na qual os alunos evidenciam uma realidade totalmente divergente. Dessa forma, ela tenta suprir um pouco das carências dos alunos, principalmente a afetiva ‐ “Quero que eles me considerem futuramente e se lembrem de mim assim como eu me lembrei dos meus professores anteriores”. Afirma que se percebe professora tanto na vida profissional como pessoal, porém confessa que ‐ “Eu já pensei e tentei desistir da educação várias vezes, mas me convenci de que ela é a minha paixão e busco a cada dia ser uma profissional melhor” (P2). Salienta que a escola tem contribuído muito no processo de construção da sua identidade profissional ‐ “Mesmo sabendo que a minha experiência não era forte na alfabetização, eles depositaram uma confiança em mim”. Afirma que o seu aperfeiçoamento profissional é alcançado por meio das formações oferecidas pela secretaria de educação, pelo governo federal (PNAIC), cursos gratuitos online, além das leituras na área da educação. Diz que todas as oportunidades de se participar de momentos de formação continuada são válidas e tudo o que for relevante é aplicado como ferramenta em sala de aula e na vida pessoal. Quando questionada quanto os elementos que compõem a identidade profissional do docente P2 sustenta que são as experiências compartilhadas com professores mais antigos, os conhecimentos oriundos das pesquisas e da prática em sala de aula. P3 trata de sua identidade de professora alfabetizadora como algo em construção e evidencia insegurança e fragilidade teórica. Afirma que: “A universidade tenha contribuído talvez para a quebra de alguns paradigmas, porém não forneceu uma carga de conhecimento que me oportunizasse segurança ao alfabetizar uma criança”. Afirma que em sua prática tenta romper com os modelos de professores que teve durante a sua fase de alfabetização. Procura utilizar conhecimentos construídos durante a universidade. No início da carreira afirma que o que a impactou foram a intensidade com que os problemas externos influenciam em sala de aula “Muitas vezes a criança não tem modelos a seguir e se apresenta totalmente apática e desinteressada em sala de aula” (P3). Quanto a se perceber professora, P3 afirma, entre risos: “Eu acho que sim, quando eu me importo com a aprendizagem e tento oportunizar vivências que talvez não fossem possíveis em casa, motivá‐los a fim de promover o resgate da autoestima”. Ao fazer suas considerações sobre as contribuições da escola para a sua identidade profissional, P3 indaga a pesquisadora, sorrindo ‐ “A escola?” ‐ o que evidencia dúvidas. Posteriormente, responde positivamente e salienta que a escola possibilita que as teorias apreendidas durante a graduação sejam postas em prática. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 92 No tocante à sua formação continuada, P3 salienta que busca nas leituras e no curso de pós‐graduação e ressalta que a identidade profissional docente é constituída mais amplamente pelo acervo teórico a que o professor teve acesso durante a graduação. Finalmente, P4 apresenta suas considerações acerca de sua identidade como alfabetizadora e afirma que está vivenciando uma crise de identidades, ou seja, está tentando se desprender de modelos e de práticas dos professores da escola. Afirma que procura remeter‐se aos modelos de professores a que teve acesso durante a graduação: “Eu busco os modelos de professores que eu tive na faculdade, eles eram excelentes, além de atuarem no ensino superior vivenciavam e socializavam suas experiências na educação infantil e no ensino fundamental (P4). P4, pontua que o início da carreira foi muito difícil, pois há muitos contrastes entre a realidade da escola e o que se visualiza na universidade. Além disso, as concepções acerca do brincar, atividade tão importante na fase da alfabetização, verbalizados por diretores e coordenadores das escolas, ou seja, muitas vezes é solicitado ao professor que foque na alfabetização e reserve as brincadeiras para as aulas de Educação Física. Afirma que se percebe professora, uma fez que a sua prática está dando resultados. Além disso, considera que a escola tem contribuído na construção da sua identidade uma vez que: “É com as pessoas que ali estão que eu busco referências diante das dificuldades”. Ressalta que a sua formação continuada é realizada através da leitura de teóricos que tratam da educação em sua totalidade e aborda aspectos relacionados à alfabetização. Está cursando o PNAIC. No que tange aos aspectos que compõem a identidade profissional docente, P4 destaca as contribuições da graduação por meio da teoria a que os acadêmicos têm acesso. Nesse processo de construção da identidade profissional, a influência dos modelos de professores é fator de grande relevância. É gritante nas narrativas o quanto as experiências escolares vivenciadas pelos sujeitos deste estudo, enquanto alunos foram negativas a ponto de não serem revisitadas durante as suas práticas docentes. E, é válido salientar que a maneira como esse docente é recepcionado pelos membros da comunidade escolar, o relacionamento estabelecido com os professores mais experientes, bem como as experiências vivenciadas em sala de aula são fatores que interferem diretamente na decisão em permanecer ou desistir da docência e na construção da identidade profissional. Diante do exposto torna‐se relevante que sejam propostos modelos de formação continuada, como o que é apresentado por Furlanetto (2007, p.26): A descoberta desse “professor interno” multifacetado, ambíguo e complexo possibilitou‐nos das início à construção do conceito de Matriz Pedagógica, que pareceu‐nos fundamental para poder compreender os processos de formação vividos pelos professores. Poderíamos, com base nessa ferramenta conceitual, conhecer alguns núcleos de onde emergem as práticas dos professores. Conclui‐se que dentro de cada docente reside um “professor interno”. A partir do momento em que o docente tem a consciência de suas matrizes pedagógicas, passa a compreender todo o processo de construção de sua identidade profissional e assim terá a oportunidade de ressignificá‐la e redirecioná‐la visando não somente a aprendizagem dos discentes, mas um crescimento profissional. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 93 Considerações finais Este estudo foi realizado a partir do reconhecimento e da relevância do acompanhamento sistemático das professoras alfabetizadoras em fase inicial da carreira, uma vez que é nesta etapa em que as concepções e saberes constituídos da infância à graduação são testados e experienciados, gerando muitas vezes, segundo Silva (1997), um período de “choque com a realidade”. O foco da pesquisa centrou‐se no processo de formação da identidade profissional de quatro professoras alfabetizadoras na tentativa de identificar concepções e saberes. Assim, por meio da metodologia qualitativa e das histórias de vida essas informações puderam ser evidenciadas e analisadas em três eixos principais. No primeiro eixo ficou explicitado que essas professoras foram alfabetizadas no método tradicional de ensino e que de uma forma ou de outra as concepções e saberes constituídos nesse período permearam todo o período de graduação e da prática docente, uma vez que tiveram que ser ressignificados e continuam sendo ‐ “É preciso entender o conceito de identidade docente como uma realidade que evolui e se desenvolve tanto pessoal como coletivamente” (GARCIA, 2010, p.19), ou seja, ela não é dada ou adquirida, mas sim desenvolvida por meio das diversas experiências sociais vivenciadas pelos docentes desde a infância. No segundo eixo, as professoras apresentaram uma grande ênfase aos modelos de professores que tiveram durante a graduação, salientando que são esses os modelos referenciados durante a prática pedagógica. Cabe ressaltar a relevância da realização de novos estudos a fim de averiguar se os professores universitários tem essa consciência no que se refere a sua contribuição no processo de construção da identidade dos futuros professores. Apesar de todas as contribuições dessa etapa percebe‐se por parte dos sujeitos da pesquisa uma fragilidade teórica sobre a concepção de criança, já que nesta pesquisa estão em questão aspectos relacionados à alfabetização. Além disso, percebe‐se a utilização de jargões teóricos adotados por essas professoras no processo de alfabetização. No terceiro e último eixo, momento da prática pedagógica e formação continuada, as professoras se reconhecem professoras em todos os momentos e lugares, porém quando questionadas sobre a sua identidade profissional, as mesmas reforçam que estão em construção e apesar de evidenciarem todo um mal estar gerado em suas primeiras experiências escolares, as professores não identificam essas experiências como elementos que compõem a sua identidade profissional, ou seja, os saberes experenciais, ou seja, a maneira como se reconhecem enquanto educadoras. A partir do exposto, pretendeu‐se evidenciar neste estudo que todas essas vivências estão presentes no cotidiano das professoras iniciantes em forma de concepções e saberes estabelecidos. Esses saberes são postos a prova e ressignificados na prática docente o que muitas vezes geram um choque com a realidade. Assim tornam‐se necessárias a sistematização e implementação de Programas de Formação em ambientes externos e internos ao espaço escolar a fim de minimizar esse choque, uma vez que identificam as experiências que vivenciaram durante o seu período de escolarização, principalmente na fase da alfabetização, compreender‐se‐ão quanto à sua prática pedagógica, possibilitando assim a efetivação de mudanças. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 94 Toda essa reflexão possibilitou‐nos visitar e revisitar fatos, lugares e pessoas que contribuíram para a construção da nossa identidade e na posição de pesquisadores nos sensibilizou no tocante à percepção e às atitudes a serem tomadas com relação aos professores iniciantes. Referências FURLANETTO, Ecleide Cunico. Como Nasce um Professor? 4ª Ed. São Paulo‐SP: Paulus, 2003. FUSARI, José Cerchi. A educação do Educador em Serviço: o treinamento de professores em questão.PUC – SP, 1988 (Dissertação de Mestrado). 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Nossa pesquisa procura demonstrar sua atuação como educador e sua importância na construção da cidadania, sobretudo a criação da Liga Baiana contra o Analfabetismo, órgão fundado por ele em 1915 e a elaboração da Cartilha do ABC, manuscrito distribuído por ele em diversas escolas baianas e em eventos públicos. A Cartilha do ABC, era uma pequena cartilha, dedicada as crianças proletárias, elaborada e confeccionada por ele mesmo, e que foi distribuída gratuitamente nas ruas e escolas públicas naquele período histórico. A Cartilha possuía sua própria metodologia de ensino, onde constava na página 3, o hino da campanha do ABC, em seguida, havia o alfabeto redondo maiúsculo, seguido do minúsculo, as consoantes minúsculas e maiúsculas respectivamente, frases iniciais com os fonemas, lista de músicos notáveis, militares, oradores, jornalistas, poetas, estadistas, magistrados, médicos populares, engenheiros distintos, homens de grande coração, marujos, professores primários brilhantes, versos dele, hinos patrióticos, (hino nacional brasileiro, hino 2 de Julho, hino a bandeira nacional, hino da proclamação da república, hino da independência do Brasil), e alguns escritos populares denominados de “verdades engraçadas”. A Liga Baiana contra o Analfabetismo passou a ter existência em 1915, mas se manteve durante mais de sessenta anos, apoiada por duzentas escolas aproximadamente, onde se alfabetizavam jovens e adultos, e, segundo consta em depoimentos, até hoje nenhum movimento teve repercussão tão gigantesca como a Liga Baiana Contra o Analfabetismo, sendo um marco para a formação da cidadania baiana. Palavras‐Chave: Cosme de Farias; Educador; Liga Baiana Contra o Analfabetismo; Cartilha do ABC; Cidadania. Introdução Cosme de Farias nasceu em São Tomé de Paripe, subúrbio de Salvador, na Bahia, em 02 de abril de 1875, filho de Paulino Manuel, um pequeno comerciante, e de Júlia Cândida de Farias, dona de casa. Concluiu apenas o curso primário na Escola Benvindo Siqueira, localizada nos arredores da Igreja da Conceição da Praia, em Salvador, em uma época em que a educação era privilégio de alguns e os negros raramente frequentavam a escola. Aos 13 anos de idade, Cosme de Farias vivenciou a abolição da escravatura que se deu em 1888, tendo a oportunidade de discursar sobre o tema, em diversas comemorações. Nesse período, a Bahia era constituída de muitas fazendas situadas no interior, com alto índice de mão de obra escrava. Essa minoria nunca teve acesso à educação no Brasil, sendo esta inatingível para a população negra. Cosme de Farias, nasceu nesse período de desigualdades e, talvez por isso, teve a importante função de protetor dos marginalizados, dedicando sua vida sempre a favor dos excluídos, dos portadores de transtornos mentais, das prostitutas. Seu trabalho para a erradicação do analfabetismo na Bahia, foi intenso, marcado pela criação da Liga Baiana contra o Analfabetismo. Mesmo sem titulação acadêmica, Cosme de Faria criou a Liga Baiana contra o Analfabetismo, uma das principais referências do seu trabalho e a qual lutou até a morte, sendo destaque na sua função como educador. O entusiasmo pela educação, até como forma de ressocialização do detento, era constante nas ideias de Cosme de Farias, cujo sentimento era perfeitamente expressado em seus textos, cartilhas e poesias. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 96 Campanha do abc e a liga baiana contra o analfabetismo: uma luta incansável Cosme de Farias criou a Campanha do ABC, e em 1915 a Liga Baiana contra o Analfabetismo (LBA). O Major abraçou a causa, participando de uma grande mobilização para a alfabetização de crianças, demonstrando a sua preocupação pelas causas sociais e pela democracia, que só é alcançado através da implementação e investimento na educação. A Liga Baiana contra o Analfabetismo tinha esse propósito. O sentimento patriota do Major Cosme de Farias era também percebível por todos, principalmente nos eventos cívicos, quando desfilava de terno branco, com fitinhas verdes e amarelas pregadas em seu terno, discursando e distribuindo as Cartilhas do ABC. Nas comemorações pela independência da Bahia, do Brasil, da Proclamação da República, o Major, quando podia, aparecia com faixas onde se podia ler: “Abaixo o Analfabetismo! um ideal que foi sempre por ele defendido. O Major sempre discursava em defesa da cidadania e da alfabetização das crianças carentes. A referida campanha foi oficializada pela “Liga Bahiana contra o Analfabetismo” (LBA). A cidadania e a inclusão social eram fortemente difundidos em suas campanhas. A carta de abc Em 1970, o Major Cosme de Farias distribui a Carta de ABC, uma pequena cartilha, dedicada as crianças proletárias, confeccionada por ele mesmo e que foi distribuída gratuitamente nas ruas e escolas públicas. A Cartilha possuía sua própria metodologia de ensino, onde constava na página 3, o hino da campanha do ABC. Logo em seguida, havia o alfabeto redondo maiúsculo, seguido do minúsculo, as consoantes minúsculas e maiúsculas respectivamente, frases inicias com os fonemas, lista de músicos notáveis, militares, oradores , jornalistas, poetas, estadistas, magistrados, médicos populares, engenheiros distintos, homens de grande coração, marujos, professores primários brilhantes, versos dele, hinos patrióticos , ( hino nacional brasileiro, hino 2 de julho, hino a bandeira nacional, hino da proclamação da república, hino da independência do Brasil), verdades engraçadas.22 Na capa da cartilha, se estampava a seguinte frase: “A Cartilha do ABC é Chave da Sabedoria”. Na contra‐ capa, o Major fazia um apelo, assinado de próprio punho: Professor amigo: Tenha paciência com a criança que apresentar esta CARTA, e ajude a mesma a aprender depressa. Será um relevante serviço prestado à nossa Pátria. Muito grato a JESUS que proteja e abençoe a todos que protegem A Campanha do A B C. Com muito empenho e carisma, o Major, conseguiu apoio de muitas pessoas que aderiam aos seus apelos e com isso, se estimulou a educação, com seu jeito simples em promover o bem. Dessa maneira, Cosme de Farias não só conseguiu apoio de professores leigos, mas também de educadores capacitados que eram motivados por seus ideais e contribuíam com o movimento. Essa atitude altruísta, fez com que os educadores que inaugurassem escolas, passassem a receber o título de delegado da Liga Baiana contra o Analfabetismo. 22
Cf. FARIAS, Cosme de. Carta de ABC. (s.e) (s.d) Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 97 Com a abertura de escolas, a Liga Baiana contra o Analfabetismo oferecia material e apoio para seu regular funcionamento. Destacamos algumas escolas que foram abertas e apoiadas pela LBA, como a Escola de São Roque, Escola Cosme de Farias, (no Centro da cidade), Escola Joviniano dos Passos e Escola Antônio Viana. Milhares de Cartilhas do ABC foram editadas e distribuídas. O Major fez dessa luta a sua vida. Pedia ajuda a conhecidos e autoridades, sem nunca deixar de acreditar nesse ideal. Todos esses pedidos eram feitos, muitas vezes a autoridades, e quando podia, o Major reiterava o pedido por meio da imprensa, como foi a solicitação feita ao Secretário de Saúde, Manoel Artur Vilaboim, promessa que foi relembrada na sua coluna Linhas Ligeiras23: Linhas Ligeiras O Dr. Manoel Artur Vilaboim, ilustrado secretário de Saúde Pública deste grande Estado, prestará um grande benefício à educação das crianças da Bahia mandando comprar duas mil bandeiras do Brasil, tipo médio, para serem distribuídas gratuitamente pelas escolas primárias, públicas e particulares de todo o nosso querido território, onde, infelizmente, em dezenas de localidades o auriverde pendão ainda é desconhecido, conforme por diversas vezes tenho dito. Faço, pois, neste sentido, um sincero e forte apelo aos sentimentos cívicos de S. Exa. e espero que desta feita o meu justíssimo reclamo seja, sem delongas, atendido. (Cosme de Farias) Como se vê, o sentimento de cidadania e patriotismo constantes na vida e nos textos do Major. Na Carta de ABC, por exemplo, em “Versos à Infância” (pag. 33), ele expressava seu sentimento cívico com veemência, de uma maneira contagiante e entusiasta: Versos a infância24 Crianças: ‐ amai a Pátria, A vossa Pátria gentil! Trabalhai, quando crescerdes, Pelas glórias do Brasil! A terra de vosso berço, Tem reverberos e flores, Incalculáveis riquezas, Maravilhas e primores! Correi, portanto, às escolas, Para o batismo da luz... Palpita na voz dos mestres A doce voz de JESUS! [...] Respeitai vossos maiores Os patriotas sinceros, Derrubai as tiranias, Os Bandoleiros e os Neros. 23
FARIAS, Cosme de. Carta de ABC. (s.e) (s.d). 24
FARIAS, Cosme de . Carta de ABC. (s.e) (s.d). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 98 Na mesma Cartilha, O Major escreve o Hino da campanha do ABC.25 Hino da Campanha do A B C: Pelo bem de nossa Pátria, Florão gentil do Civismo, Moços e velhos erguei‐vos Contra o analfabetismo! Desfruta muitos prazeres, Uma alegria sem par, Toda pessoa que sabe Ler, escrever e contar! O gérmen da Ignorância Diversos males produz, Mate‐se, pois, este “bicho” Dentro de um jorro de LUZ! A ciência é um Tesouro. Tesouro de alto valor, Quem dedicar‐se aos estudos Pode dele ser senhor! O Brasil será maior. Oh! Que Nação respeitada! Quando toda sua gente For uma gente letrada! Corações grandes e nobres, Vinde, sorrindo ajudar A meritória Campanha Da Instrução Popular!. A Liga Baiana contra o Analfabetismo, passou a ter existência em 1915, mas se manteve durante mais de sessenta anos, apoiada por duzentas escolas aproximadamente, onde se alfabetizavam jovens e adultos. Segundo registro de jornais locais com declarações de contemporâneos, até hoje na Bahia, nenhum movimento contra o analfabetismo teve repercussão tão gigantesca como a Liga Baiana contra o Analfabetismo, que pode promover a inclusão e difusão da educação aos menos privilegiados. Conclusão A história de vida do Major Cosme de Farias serve como um estímulo para as pessoas resilientes. O Major reverteu o seu status, trabalhando pela inclusão social e defesa da cidadania, num tempo de “homens de anel no dedo e de diploma de Direito”. Cosme de Farias foi um rábula, defensor dos excluídos e da cidadania, trabalhando para a população carente, os excluídos e marginalizados, tornando‐se uma das figuras mais 25
Idem. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 99 importantes da Bahia antiga. Sua carreira foi marcada entre as defesas jurídicas, o assistencialismo, a luta pela erradicação do analfabetismo, a contribuição para a formação do jornalismo destemido e a militância política em favor das classes destituídas de oportunidades. O Major Cosme de Farias se dedicou as causas sociais e sua campanha contra o analfabetismo, deve eternamente, a sua solidariedade e vontade de realização, especialmente por suas ideias visionárias que colaboraram para a construção de um Brasil democrático. Considerado como um homem “acima do seu tempo”, no que concerne ao cumprimento dos direitos fundamentais e da construção de uma sociedade mais justa, Cosme de Farias foi um guerreiro da cidadania. Em suas últimas vontades, Cosme de Farias se despede do mundo, fazendo um apelo altruísta, que foi atendido por todos aqueles que jamais o esquecerão: (...) “Fiz do bem o meu pendão e do trabalho honesto o meu escudo” Caso o governo do Estado, a Assembleia Legislativa da Bahia, a Prefeitura deste município e a Câmera de Vereadores de Salvador queiram, num belo gesto de fidalguia espiritual, fazer o meu enterro, dispenso essa delicada atitude. Quero ser sepultado em cova rasa, na Quinta dos Lázaros, sendo meu caixão de 3ª classe, tendo por cima, apenas umas florezinhas. Se algumas pessoas generosas quiserem oferecer‐
me coroas, flores e capelas peço‐lhes encarecidamente, que apliquem o dinheiro destinado a compra das mesmas, em favor das casas‐pias, como por exemplo: a Vila Vicentina, Instituto Alberto de Assis, antigo Instituto dos Cegos da Bahia.26 Referências AMADO, Jorge. Bahia de todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Ilustrações de Carlos Bastos. 27. ed. Rio de Janeiro: Record, 1977. _____________.Tenda dos Milagres. São Paulo: Companhia das Letras. 2008. CADENA, Nelson Varon. Associação Bahiana de Imprensa 1930‐1980, 50 anos. Salvador: ABI, 198CARVALHO, Aloysio de. A Imprensa na Bahia em 100 Anos. In: TAVARES, Luis Guilherme P. Apontamentos para a história da imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2005. CELESTINO, Monica. Major Cosme de Farias, o anjo da guarda dos excluídos da Bahia. Salvador: Programa de Pós‐graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/ Universidade Federal da Bahia. 2005. Dissertação (Mestrado em História). __________ . Deputado Cosme de Farias. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. 2006. COELHO, Carlos; RIBEIRO, Hamilton. O quitandeiro da Liberdade. Realidade, Rio de Janeiro, v. 6, n. 61, abr. 1971. CUNHA, Vanda Angélica da. Memória, sociedade e mídia impressa: a experiência do arquivo histórico municipal de Salvador. Salvador: FGM, 2004. FARIAS, Cosme de. Carta de ABC. Salvador. (s.e.) (s.d). Fac símile de um exemplar. ______. Estrophes. Salvador: Officinas Graphicas d´A Luva, 1933. ______. Lama e Sangue. Salvador, Bahia (s.e.), 1926. 26. FARIAS, Cosme de. Escritos mimeografados, s/d. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 100 HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil Monárquico. Vol. 1º: O progresso de emancipação. Livro segundo: O movimento de independência. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. ______________. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. Histórico do Asilo São João de Deus /Hospital Juliano Moreira (1874‐1947). [Tese de Doutoramento]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública–
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aprendizagem. O campo de pesquisa em que atuamos foi o da formação do professor e o objeto em questão é o docente da educação básica. O professor, nesse contexto, é entendido como aquele que aceita conduzir a criação de espaços de convivência. Nossa problematização, ao trazer a formação em seu cerne, e esta, concebida como movimentos de linhas e segmentaridades, dá mostras de conduzir a produção da subjetividade que ensina e constitui o professor. A questão que nos mobilizou a caminhar por estas e outras rotas, impulsionou inquietações e análises: como as experiências que compõem as estéticas dos professores, os constituem docentes? A justificativa para a realização deste estudo, reside no fato de que tornar‐se professor, é uma jornada inconclusa. A prática docente, via de regra, se constitui em ações mediadoras entre os diferentes mundos que se entrecruzam. Por isso, pelo fato de serem mundos vivos no tempoespaço, essa mediação implica em permanentes tramas de estudo, aprendizagem, formação e proposição. Esta pesquisa, de cunho qualitativo, numa abordagem (auto)biográfica desenvolveu‐se no período de 18 meses, tendo como partícipes três professoras do ensino básico da rede pública municipal, de uma cidade do interior de Sergipe. Utilizamos para compor o campo metodológico, entrevistas semi‐estruturadas, conversas informais e narrativas. Nestas, as marcas das histórias de vida transparecem no processo formativo das docentes estudadas, quando do resgate de suas práticas de formação. O resultado da pesquisa é um recorte da produção subjetivada da vida profissional destas três professoras, a partir dos movimentos que as fazem docentes e ao mesmo tempo criam seus desmanches. Palavras‐chave: Professor; Estética; Formação. Iniciações... Pretendemos com este texto, compreender como as experiências que compõem as estéticas dos professores, os constituem docentes. Fizemos este percurso, através do olhar, para o que chamamos de movimento estético do ensinar, percorrendo assim, caminhos a pensar os conceitos de estética e professor, bem como seus entendimentos na educação. Denominamos de movimento estético do ensinar, a ação desenvolvida entre a prática do ensino, e a experiência estética apreendida nessa relação. Nesse contexto, refletimos a estética enquanto materialidades que nos compõem, e decompõem em movimentos simultâneos, no estabelecimento das relações cotidianas. E o professor como aquele que aceita conduzir a criação de espaços de convivência. Dessa forma, este trabalho vislumbra um olhar acerca das estéticas que estão compondo os movimentos do ser professor, nas relações desses profissionais com seus alunos, na vida. Vale ressaltar, que a ideia de estética aqui empregada não compõem com os lugares comuns do que possamos achar ou não belo, mas sim, com as expressões artísticas, com a ética, onde a vida possa ser vista através dos acontecimentos, por meio das ações em um estado de constantes aprendências, como forma de perceber que a educação é sempre abalos, respiração, transpiração, inspiração, suor, expressões, vozes, dores e principalmente vida. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 102 Assim, a estética docente que estamos experimentando se revela pelas relações de aprendências e ensinâncias, através das misturas dos corpos presentes nas tramas tecidas entre professores e alunos, ou seja, nos movimentos dos docentes, quando do desenvolvimento dos processos de ensino‐aprendizagem. Essa estética vai se compondo nos atravessamentos, quando da tecitura das experiências resultantes das ações do aprender e do ensinar. Pensamos ainda a estética docente como um infinito compor‐se, uma constante transmutação do ser professor. Tecituras em movimentos de desfeituras, um processo de contínua desconstrução e reconstrução, do docente que por acaso achávamos que tínhamosaprendido a ser nos bancos das universidades. Não nos esqueçamos de que aprender é tornar‐se desigual, acentuação das diferenças que estão a nos percorrer, é perceber‐nos indivíduos esteticamente singulares, ainda quedentro dos territórios que aprisionam os saberes. Aprender requer que sejamos não apenas professores, alunos, mas também decifradores de signos, que estejamos atentos às nuances que nos envolvem quando tramamos nossas relações. Ao falarmos em estética e docência, estamos pensando na produção das subjetividades, nas materialidades que compõe os modos de existência a partir das relações e experimentações com a vida. Assim, as tecituras que vão compondo as linhas da docência se modificam a cada ação que propomos, ou mesmo que nos atinge dentro dessa ampla “conjuntura” chamada educação. São encontros que nos mostram possibilidades para refletirmos sobre nossos pensamentos e ações para com os outros, bem como acerca das ações do pensar exteriores a nós, materialidades estas, também encontradas no professor que estamos sendo. A partir de agora, convidamos você que nos ler, a transitar conosco, através das linhas acerca do ser professor, esclarecemos de antemão, que trata‐se apenas, de algumas possibilidades. Linhas acerca do ser professor... pela possível composição do conceito Diferente do que muitas pessoas pensavam, e outras ainda continuam pensando, particularmente nunca enxergamos os professores, como aqueles que sabiam algo, e que do alto do pedestal imaginário criado por alguns deles, buscavam somente transmitir determinados conhecimentos aos seus alunos. Na contramão desse pensamento, desde muito cedo passamos a compreender os professores por outro viés, a partir da possibilidade de pensá‐los artistas. Artistas capazes de criar para si não uma identidade, um modelo de docência, mas sim, de produzir diferenças no infinito percurso de tornar‐se professor. Como nos mostra Marcos Villela Pereira (2013): [...] a professoralidade não é uma identidade que um sujeito constrói ou assume ou incorporamos, de outro modo, é uma diferença que o sujeito produz em si. Vir a ser professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, é diferir de si mesmo. E, no caso de ser uma diferença, não é a recorrência a um mesmo, a um modelo ou padrão. Por isso, a professoralidade não é, a meu ver, uma identidade: ela é uma diferença produzida no sujeito. E, como diferença, não pode ser um estado estável a que chegaria o sujeito. A professoralidade é um estado em risco de desequilíbrio permanente. Se for Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 103 um estado estável, estagnado, redundaria numa identidade e o fluxo seria prejudicado. (PEREIRA, 2013, p. 35) Mas como conceituar o professor? Como fazer fluir as palavras que possam juntas dizer o que é ser professor? Quem é o professor? O que pode um professor? Acontece que este é um conceito o qual possivelmente as palavras não conseguem, nem dariam conta. Penso que sempre faltarão termos, ou mesmo expressões que possam mostrar algo que ainda ficou por ser dito em relação a ser professor. Pensamos, que dentre as possibilidades do ser professor, a sua atuação em sala de aula, mostra‐se na maioria das vezes, como movimentos potentes e potencializantes, ao passo que permite que os alunos tenham contato e experimentem a construção de novos conhecimentos, apresentando ainda a esses, outras formas de acioná‐los. A questão que aqui está imbuída é a da possível afetação de diferentes vidas que o professor tem durante a sua prática de ensino. Esta, comumente produz nomadismos no pensamento das pessoas, alunos, que por sua vez em alguns casos, também já são professores. São experiências... Composições de encontros em sala de aula. Como ensinar se não há convite para experimentações em conjunto? Dessa maneira, o embasamento para as mudanças do pensar, e consequentemente do ser aluno e professor, também passa pelas desconstruções, pelos experimentos do cotidiano, na perspectiva da composição de novos conhecimentos. Perpassando tais ações encontramos o pulsar dos sentimentos que nos acompanham às vezes alegres, por outras tristes, revoltosos, nunca saberemos de antemão. A nós caberá sempre a coragem de percorrer os caminhos que através dos nossos alunos também nos chegam. Assim, o professor é responsável pela criação de espaços de convivência. A criação desses espaços é vital para o transitar de múltiplas opiniões, onde as diferenças possam dialogar harmoniosamente na construção de caminhos ainda não percorridos. Possivelmente o professor apresente‐se ainda, como encorajador dentro do processo de condução dos alunos até a aprendizagem, já que por vezes “foge” a coragem do pensar, e agir sozinhos a esses. Não nos esqueçamos de que igualmente, nessa “fuga”, o processo de ensino se constrói em via mútua. Nenhum professor irá apenas ensinar em toda uma aula, de forma que seus alunos não irão apenas aprender na mesma, são diálogos, conversas a tecerem lugares desconhecidos, rotas a serem desbravadas. Se possível, devemos estar sempre abertos a acolher as vozes, as falas, os diferentes espaços de convivências criados, também através das ações dos nossos alunos, dessa forma a construção mútua do conhecimento se fortalece, são tecituras do que os ecos dos encontros estão a nos dizer, e assim, igualmente a nos ensinar. Vejamos agora, o que o Deleuze nos fala em seu Abecedário (1988) na letra P de professor: É preciso estar totalmente impregnado do assunto e amar o assunto do qual falamos. Isso não acontece sozinho. É preciso ensaiar, preparar. É preciso ensaiar na própria cabeça, encontrar o ponto em que... É muito divertido, é preciso encontrar [...] É como uma porta que não conseguimos atravessar em qualquer posição. (Abecedário de Gilles Deleuze, Letra P de Professor) Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 104 Pensamos que o professor precisa estar impregnado de vida, para assim compor os movimentos estéticos do ensinar. Quando o Gilles Deleuze nos diz que é preciso ensaiar, pensemos em “tecer” conceitos, senti‐los, utilizá‐los em nosso cotidiano, pensemos em lançar convites aos nossos alunos e juntos irmos todos ao encontro deles, talvez esta ação propicie a nós, a sensação de estarmos vivos. Tal ação implica em reconhecermos as multiplicidades que estão em sala de aula. Salas essas, que podem nem sempre ser aquelas clássicas com cadeiras enfileiradas, e um birô, ou tablado posicionado lá na frente. São os encontros das singularidades, que acentuam as diferenças potencializantes da vida, que nos fazem conhecer outros caminhos, e nos convidam a percorrê‐los. Estética... pensando possibilidades e relações Quando pensamos em estética, buscamos deslocar‐nos do lugar comum que é o caminho curto e previsível do pensamento acerca de um estilo, ou modelo com características mensuráveis e previsíveis. Algo posto, definido e acabado. Seguindo essa linha do pensar procuramos ainda nos desapegar do tradicional dualismo que insiste em nos perseguir e partir ao meio, quando da atribuição do conceito de belo ou feio ao que nos propomos refletir. Provavelmente, um dos primeiros passos que precisamos dar na busca por entendimentos sobre a estética, seja não relacioná‐la com perspectivas abstratas. É imprescindível entender estética como materialidades que nos compõem, e decompõem em movimentos simultâneos, no estabelecimento das relações cotidianas. “O importante é não encarar o fenômeno estético de modo abstrato e distante”. (PERISSÉ, 2009, p. 45) A estética que estamos pensando é antes um modo, a composição do que nos tornamos, quando das ações que constituímos perante a vida. São dissonâncias a nos compor, heterogeneidades que nos põem em movimentos de desconstruções e construções acerca do que somos no agora, no presente que acabou de passar. Dessa forma, ao nos propormos pensar o movimento estético do ensinar, sentimos a necessidade de entender quais elementos estão transpassando e compondo a docência cotidianamente. Mais ainda, se faz importante, percorrer junto os seus movimentos, perceber quais as linhas e territórios estão produzindo as suas subjetividades, possibilitando as transformações que vivemos no percurso que é tornar‐se professor. É importante atentarmos que não se trata de criar para si uma estética, mas sim, de perceber quais as linhas que estão a compô‐la através das experiências tecidas com os outros, consigo mesmo e com a vida. Possivelmente, a existência de algumas formas equivocadas de pensar a estética, se deva ao entrelaçamento das fronteiras entre a vida e a arte na contemporaneidade. Somos cotidianamente bombardeados por elementos inerentes ao campo artístico, são criações que por vezes nos levam a refletir acerca da sociedade a qual estamos inseridos, das tramas que temos tecido, mas que também são responsáveis pela propagação de uma acentuada tendência de homogeneização entre as relações, produzindo portanto modelos de existência, não contribuindo dessa forma, para o surgimento de outros possíveis estilos de vida, que se mostrem singulares a partir das relações entre a vida e a arte. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 105 [...] a dissolução da arte na vida não tornou nossa existência propriamente criadora. A estetização da existência na contemporaneidade parece não significar um incremento da invenção de formas de vida. De fato, a disseminação da arte na vida contrasta com uma tendência de homogeneização das relações entre as subjetividades, de suas formas de comunicação, de suas formas de entretenimento, de suas formas de circulação de informação e cultura. A mescla arte e vida não trouxe como efeitos a criação de novas formas de perceber e pensar [...]. (FARINA, 2009, p. 5) Portanto, buscamos refletir a estética, a partir das nossas próprias experiências, daquelas que compusemos através das relações constituídas com outras pessoas... Com as obras de arte, com a música, com a literatura, com os nossos professores, com os nossos alunos, com a vida. Trazemos conosco possibilidades e marcas, um pouco de cada corpo que nos afetou. Para tanto, não podemos pensar em unidade, essência, mas sim, em imanência, campo fértil compondo movimentos, sendo sensíveis ao ponto de quando tocados compor‐
nos outros.Dessa forma, diferimos do que estávamos a ser, não somos apenas nós, nem só os corpos que nos afetaram, porém, outros. “Entendemos que experimentada é a pessoa que, justamente por ter tido as experiências que teve, está aberta a novas e inéditas experiências. Experimentado não é aquele que sabe, mas, ao contrário, aquele que está aberto ao porvir, o que ainda não sabe”. (PEREIRA, 2010, p. 110) Pensamos ser imprescindível estarmos, sempre que possível, abertos à composições de processos experimentais, experimentar é tecer encontros, precisamos reconhecermo‐nos enquanto indivíduos transitórios. Mudamos constantemente... Formas de pensar, ações e mudar é tornar‐se outro. Nessa perspectiva, pensamos ser importante refletir acerca da possibilidade de uma vida de autoria de si. Pensar sua própria autoria, requer que estejamos cientes das ações e forças que estão de alguma forma nos afetando. Esta ação sugere ainda, que nós, enquanto indivíduos comprometidos com a nossa existência, possamos intervir na composição estética do que estamos a nos tornar. Essa tomada de decisão implica possivelmente em assumirmos os riscos de nos compor outros, ou na reafirmação de modelos que já estão a fazer de nós o que somos. Ressaltamosainda, que a vida de autoria de si, implica também em uma atitude estética, no comprometimento e no cuidado quando das tecituras das nossas relações. Esse possível modo nada tem a ver com esquemas ou conceitos pré‐definidos, mas de outra maneira com os encontros da vida. Antes de pensarmos na atitude, devemos estar no mundo, atirando‐se à vida. A autora Nadja Hermann (2010), ao referir‐se à criação de si, nos fala dessa construção enquanto uma: “tarefa ética e estética, envolvendo o sensível e o racional, o singular e o universal, enfatizando que a relação entre os domínios tão separados não é de oposição ou exclusão, mas de complementação”. (p.22). Levando‐nos a pensar a estética como um possível espaço de refúgio à pluralidade. Foi pensando na possibilidade de outro olhar acerca da tecitura que está a compor a docência, que resolvemos nos instrumentalizar com os conceitos de professor, e estética. Procurando dessa forma, nos colocarmos atentos e refletir sobre um tornar‐se docente que não acaba nunca, compondo assim, no percorrer dessas linhas, encontros possivelmente não mensuráveis, já que, existem sempre ressonâncias de autores lidos, de pessoas com as Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 106 quais compusemos encontros, proporcionando desse modo, a abertura para o reconhecimento da alteridade nessas relações, produzindo assim, sentido ao que nos chega de fora, através do outro. Aspectos metodológicos Para entendermos o contexto em que se insere o presente estudo, achamos válidas algumas considerações metodológicas. O campo de pesquisa em que estamos atuando é a formação do professor, e o objeto em questão é o docente da educação básica. A nossa problematização continua sendo a formação, a qual pensamosenquanto movimentos de linhas e segmentaridades, considerando a produção da subjetividade que ensina e constitui o professor. Assim, a questão que nos mobilizou a caminhar por estas e outras rotas, e impulsionou inquietações e análises, foi: como as experiências que compõem as estéticas dos professores, os constituem docentes? Na procura pela composição de um campo metodológico menos cartesiano, onde possam transitar as vozes das docências para escrever conosco estas linhas, é que buscamos mostrar os caminhos percorridos por essa pesquisa. Para tanto, se fez necessário nos colocarmos atentos às histórias e experiências trazidas pelas professoras pesquisadas. Esta pesquisa de cunho qualitativo, numa abordagem (auto)biográfica, desenvolveu‐
se no período de 18 meses, tendo como partícipes três professoras do ensino básico da rede pública municipal, de uma cidade do interior de Sergipe. Utilizamos para compor o campo metodológico, entrevistas semi‐estruturadas, conversas informais e narrativas. Para a composição deste texto, optamos por trazer apenas o recorte do trabalho com uma das professoras. O motivo, é que o material coletado com as entrevistas, é muito extenso. Ao pensar esta pesquisa, não foi nosso foco a busca por qualquer tipo de verdade, ou sequer apontar modelos, mas sim, perceber o delineamento através das experiências relatadas pelas professoras pesquisadas, acerca de como estas chegaram a ser as docentes que estão sendo no presente, qual é a estética, ou quais são as estéticas que estão a transpassá‐las no agora. Assim, a pesquisa teórica forneceu o aporte para o desenvolvimento e a compreensão das análises dos conceitos utilizados no decorrer do estudo.Por outro lado, ao optar‐se por entrevistas semi‐estruturadas, e conversas informais, a intenção foi poder construir um diálogo fluido, mas ao mesmo tempo produtivo com os sujeitos da pesquisa. Estes foram três professoras atuantes no ensino básico, sendo todas pedagogas, mas algumas com várias formações, a exemplo de uma que também é formada em Letras e outra que, igualmente, é Artista Plástica. A escolha por trabalhar com essas docentes foi pautada no acesso que tínhamos a elas, já que todas haviam sido professoras de um dos autores deste estudo, o que facilitou bastante inclusive o diálogo acerca de determinados temas, como por exemplo: os aspectos que envolviam as suas práticas de ensino; as relações tecidas entre essas professoras e os seus alunos; as experimentações propostas por elas no dia a dia do ser professor. As entrevistas foram desenvolvidas em blocos, para ser mais preciso, dez blocos com cada professora. Não coube por diversos motivos, bem como não existia intenção da nossa parte, que houvesse uma linearidade acerca da ordem em que entrevistaria cada professora. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 107 A maior parte das entrevistas foram realizadas nas casas das docentes, que preferiram assim, pela comodidade e por se sentirem mais à vontade a falar. A princípio pensamos em um roteiro simples, voltado a saber informações como: quais as respectivas formações, o tempo de trabalho de cada uma, como havia sido a experiência de dar aula pela primeira vez, o que da relação com seus alunos haviam aprendido. Com o intuito de ir ganhando mais a confiança das docentes estudadas. Uma grande surpresa que o campo de pesquisa nos proporcionou, interferindo inclusive na composição da metodologia deste estudo, foi que mesmo trabalhando com entrevistas semi‐estruturadas e com conversas informais, quase que comumente, quando as professoras iamnos responder alguma pergunta, elas recorriam a um caso, melhor dizendo a uma história, e então, narravam aqueles episódios, chegando muitas vezes a se emocionarem. Não podemos esquecer, que tratava‐se de elementos constitutivos das suas próprias vidas. Neste sentido, trabalhamos ainda com narrativas, por pensarmos que estas revelaram nuances nem sempre claras no percurso da pesquisa, principalmente, quando do contato com as professoras pesquisadas na perspectiva da coleta dos dados. Dessa forma, compomos com o conceito de narrativa desenvolvido por Walter Benjamin, no qual o autor vai pensá‐la, a partir das experiências tecidas pelo narrador. “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”. (BENJAMIN, 1994, p.199) Narramos sempre histórias que revelam experiências vividas. Dessa maneira, a experiência se relaciona diretamente com o que não apenas ocorreu com a gente, mas também com o que de alguma forma nos toca ou tocou. O que nos toca produz sentidos em nossas vidas, nos leva a percorrer caminhos antes ainda não habitados por nós. Ao nos propormos pensar estéticas docentes, sentimos a necessidade de caminhar o mais próximo possível das histórias narradas, quando das nossas idas ao campo de pesquisa, pois elas mostram através das experiências contadas, muito das composições, das afecções que estão a atravessar os corpos e as vidas das professoras estudadas. Ou seja, a compor o que elas estão a ser no agora. Assim, o processo de análise dos dados coletados nas entrevistas e conversas, exigiu o retorno e aprofundamento das discussões teóricas anteriormente realizadas. Desse modo, convidamos o leitor para nos acompanhar, ou melhor, percorrer docências e estéticas, ao passo que apresentaremos o conteúdo empírico da nossa pesquisa. As vozes do campo de pesquisa...a professora Shopia A primeira entrevista que realizamos durante o percurso de pesquisa, foi com a professora Sophia. Estávamos ansiosos, muitas perguntas nos percorriam, era uma situação nova, pois não estávamos ali mais como alunos, mas sim, como pesquisadores, curiosos, inquietos, querendo saber da docência que compunha aquela professora. Mas como trazermos esses movimentos até este trabalho? Como lidarmos com os ecos de uma trajetória infinita, tornar‐se professor? Talvez o melhor a fazer agora, seja ouvi‐las. As primeiras expressões da Sophia se referiam ao caminho que ela havia percorrido até chegar a sua primeira ação enquanto docente. Vejamos o que ela nos conta: Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 108 Sophia: O que me levou a me tornar professora foi a oportunidade do emprego. E lá eu descobri que eu tinha toda a afinidade. Eu me descobri a partir do momento em que comecei a ensinar, a ensinar, porque eu gosto. Eu descobri que estava fazendo aquilo que eu gosto de fazer. O que me deixa mais desmotivada é a falta de vontade dos alunos, a somação, porque se eles se somassem comigo, a minha boa vontade que eu tenho porque entendo que é pelo estudo que as pessoas melhoram suas vidas. É pelo estudo, mas eles ainda não têm essa visão, e fica muito complicado eu trabalhar [...] até hoje me recordo da primeira vez que entrei numa sala de aula para ensinar, tô vendo agora (emoção). Uma primeira série. Só tinha muitas crianças por causa da faixa etária e fui bem recebida, porque eu também gosto de criança. Foi muito bom. Era uma escola estadual, e assim as crianças com muita energia, mas algumas tímidas, eu ia lá cuidava, porque eram meninos pobres e eu via que precisavam de muito carinho, mas foi bom. Foi uma das experiências que mais me marcou, porque eu trabalho assim, eu trabalho visando o futuro deles, a minha vontade é tão grande e eu sei que eles precisam disso, ter essa consciência. Então eu fico trabalhando assim, querendo superar tudo [...] porque a gente lutando assim, a gente consegue, não se acomodando, porque mesmo que cinquenta não consigam, mas têm cinco ali que conseguem, e até uma colega minha me disse “olha Sophia um aluno seu disse que tem professores que marcam e uma das pessoas que ele citou foi você”. Porque eu não faço jogo mole dentro da sala de aula, eu sei que eles precisam disso. Então é por conta disso, dessa minha consciência, já que são pessoas que vêm de uma classe menos favorecida e o caminho é o estudo. Então eu tenho que fazer qualquer negócio [...] eu sempre trabalhei e vou continuar trabalhando visando um futuro melhor para os meus alunos27. Algumas lembranças, lágrimas, sala de aula, uma jovem em busca de oportunidade de emprego, muitas crianças do primeiroano numa escola pública da rede municipal habitada pela alegria, e pelo vigor da infância, também pela perspectiva de uma melhoria de vida da futura professora, timidez, ausência de carinho... Assim, nessa “atmosfera”, começa a se compor a estética docente da professora Sophia. Ao falar em estética, estamos pensando na produção das subjetividades, nas materialidades que compõem os modos de existência a partir das relações e experimentações com a vida. Dessa forma, ao ouvir o que nos contou a Sophia, nos pomos a pensar acerca da estetização do ser professora que vem compondo a mesma desde aquele momento em que entrou na sala do primeiroano para ensinar e aprender, e o quanto aquela experiência se fez ou não importante para a constituição da professora que Sophia ainda é nos dias atuais. Quais linhas foram cruzadas, que encontros foram suscitados naquele ambiente. As tecituras que vai compondo as linhas da docência se modificam a cada ação que propomos, ou mesmo que nos atinge dentro dessa ampla “conjuntura” chamada educação. São encontros que nos mostram possibilidades para refletirmos sobre nossos pensamentos e ações para com os outros, bem como acerca das ações do pensar exteriores a nós, 27
Entrevista realizada com a professora Sophia no segundo semestre de 2010. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 109 materialidades estas, também encontradas no professor que estamos a ser. “Encontro significa “entrelaçamento”, intercâmbio de possibilidades”. (PERRISÉ, 2009, p. 85) A composição estética da docência apresenta‐se enquanto um espaço de possibilidades. Não podemos mensurar o início nem sequer o final do processo que é tornar‐
se professor de qualquer que seja a pessoa, como também não podemos ousar prever com quem, e quais encontros serão tecidos no percorrer dessa mesma trajetória. Compor‐se professor é igualmente encontrar‐se em um permanente estado de desfeitura do docente que somos, tornando‐se nessa perspectiva outro a partir das situações encontradas na constituição das relações com os alunos, com as escolas, com a vida. Possivelmente são os acontecimentos presentes nas aulas, as misturas tecidas nesses momentos, que nos constituem professores “desse ou daquele modo”, mostrando dessa maneira os movimentos feitos por nós quando em contato com vozes e vidas desconhecidas a docência que estamos a exercer. “[...] o acontecimento é a representação do não‐corporal, do entrelaçamento dos corpos [...]”.(DELEUZE, 2006, p.135‐136). À medida que íamos ao campo de pesquisa, éramos tomados por uma preocupação constantemente traduzida na seguinte pergunta: mas como vamos conseguir traçar os movimentos experimentados pelas docências das professoras na construção deste trabalho? Confessamos que esse era o nosso maior receio. Continuávamos apenas perguntando, tentando compreender os ambientes trazidos para nós e então, buscando aprender com eles. Aprender num campo de pesquisa é um exercício – ouvir sem ouvidos duros, estar olhando uma professora informante como se olha algo ou alguma coisa que se faz naquele instante – olhar sem os olhos. Não atrás, não na frente, em nenhum lado; mas dentro das falas para dali poder sair – sair das falas – des‐falar, des‐ver, habitar no não espaço, estando. (FELDENS, 2008, p. 29) Eis que a professora Sophia continua contando algumas histórias vividas em sala de aula. Assim, podemos mais de perto acompanhar o traçado das linhas compositoras do ser professora tão próprias a ela. Continuemos... E também eu sempre faço assim, sempre após meu horário de... Meu horário de trabalho, né? Eu cumpro meu horário e depois fico ainda uns cinquenta minutos, dando aula de reforço aos alunos que queiram. Eu faço isso... Eles querem... Perguntam‐me, professora dá para ficar? E eu fico porque eu estou vendo que aqueles dali, querem alguma coisa. E vejo que alguns daqueles já conseguiram um emprego, não é um emprego assim, mas pelo menos eles se empregaram, eu tive alunas aqui... Tive não, ainda tenho alunos e alunas que conseguiram ingressar no mercado de trabalho, e já podemos dizer que muitos têm uma vida bem melhor do que tinham antes (pausa). Teve muitas situações, muitas, muitas marcantes. Eu tenho uma redação de uma aluna que me contou a vida dela por escrito e que eu guardei, porque eu disse não meu Deus, ali tem que ser editado (emoção). E eu ficava, e assim, ela foi contar a vida dela porque já era uma pessoa, assim, que tinha uma idade mais avançada em relação aos outros alunos, e foi contar aquela vida que eu fiquei assim, eu chorei, todas as vezes que eu leio a redação dela eu choro, porque eu disse: meu Deus, como é que se Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 110 cria uma pessoa desse jeito? O povo de antigamente era tão carrasco, aquele povo tão atrasado, ignorante eu não vou dizer, da falta de conhecimento, você entende? Que ela disse que a maior felicidade da vida dela, foi quando ela foi pra escola (emoção). E uma coisa também, ela me disse que quando chegou à escola a professora ao vê‐la fez a maior alegria. Bom dia fulana! E disse o nome dela, isso fez com que ela se sentisse acolhida, e além disso, fez com que eu transformasse toda a minha ação em sala de aula, depois desse fato, sou outra professora, em todos os meus primeiros dias, de aula eu pego a relação, o caderno de chamadas, e fico chamando. Aí, bom dia. Quem é fulano? Aí a pessoa se apresenta e eu bom dia, boa tarde, que era pela tarde. Boa tarde, seja bem‐vindo, era uma alegria, eu vou até eles, os abraços, quer dizer por que a gente vai aprendendo. Nós vamos lendo e vendo as experiências dos outros e a gente aprende e vê que isso é muito importante na vida deles, passando a ser na nossa também. Aí eu comecei a fazer isso. Esse foi sem dúvida, um dos casos mais marcantes da minha trajetória como professora, que eu ia ler as redações dos meninos e ficava chorando. Meu Deus olhe que situação, quando eu chegava lá conversava, assim, fazer um apanhado geral e pra melhorar essa situação, pra eles se sentirem mais seguros, mas essa redação dessa minha aluna tá aqui até hoje guardada28. No exercício da docência que nos constitui professor, constantemente estamos nos tornando “outros”, a partir do contato com vidas desconhecidas a nós, que também nos chegam através das salas de aula, passando dessa maneira a nos compor de alguma forma. O professor muda e vai construindo a sua estética não apenas em contato com livros, autores, pensamentos diversificados, mas igualmente, na mistura presente nos ambientes escolares, nos pátios, nos corredores, nas salas, nas secretarias, nos refeitórios, ao ser afectado, atravessado por linhas e subjetividades, estrangeiras as que estavam lhe compondo. A afecção é o estado de um corpo quando ele sofre a ação de outro corpo, é uma “mistura de corpos” em que um corpo age sobre outro e este recebe as relações características do primeiro. E, correlativamente, as ideias afecção indicam o estado do corpo modificado, sua constituição presente. [...] são signos indicativos [...]. (MACHADO, 2010, p. 74) Ser professor é ainda percorrer os movimentos e as linhas da vida daqueles que estão a tecer conosco outros caminhos e possibilidades. Assim nos misturamos, passamos também a experimentar de alguma forma situações diversas, no amplo contexto social o qual fazemos parte. Nessa perspectiva tornar‐se professor requer que percorramos infinitas trajetórias, onde a cada passo, em contato com experimentações alheias às já vividas por nós, vislumbremos as possibilidades de outros encontros e mudanças aos elementos que estão a fazer de nós os docentes que somos. Sophia nos relatou que só teve acesso à história de vida daquela sua aluna, porque percebeu nas aulas de redação a dificuldade que os discentes tinham de se expressarem em 28
Entrevista realizada com a professora Sophia no segundo semestre de 2010. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 111 relação às temáticas sugeridas. Dessa maneira, passou a desenvolver algumas ações de incentivo à leitura, pois ainda percebia a falta de interesse dos estudantes em fazê‐la. Assim, ela sorteava livros de contos, romances, com o intuito de vê‐los melhorar nesses aspectos que envolviam não só a prática da sua disciplina, mas também se refletia no cotidiano da vida daqueles alunos. Atenta a essas dificuldades, a professora Sophia resolveu então propor que eles escrevessem sobre a própria vida. De tal modo, começaram a chegar até a mesma, narrativas que traziam consigo marcas nada agradáveis de serem percebidas, mas que compunham o que seus alunos estavam sendo naquele momento da vida. Esses escritos mostraram à professora o que também estava a compor as estéticas dos seus discentes, e a passagem é sutil no contar da história, mas como Sophia mesmo nos disse: “sou outra professora”. São essas mudanças, em algumas situações, radicais mudanças, já que estamos falando da transformação do ser professora, que igualmente estão compondo a estética docente da Sophia. Portanto, é importante entendermos o quanto, a partir das experiências e aprendizados dos outros, nos fazemos diferentes, nos desconstruímos, entramos em ações de tecituras em estado de desfeituras, assim como já anunciamos em partesanteriores deste escrito, tecemos com o que era desconhecido em nós, desfazendo desse modo, impressões que embasam, por exemplo, as práticas de ensino que desenvolvemos cotidianamente. A experiência estética ‐ na medida em que abala nossas convicções comuns e suspende a normalidade das certezas justificadas – é reivindicada para uma ampliação da compreensão ética de educação, um modo de trazer novos elementos para o juízo moral, como alternativa à reflexão ética exclusivamente racional. Tais experiências de liberação da subjetividade cumprem um papel formativo do eu. (HERMANN, 2010, p. 17) O contato com o que o outro tem a nos dizer e ensinar nos coloca em movimentos, fazendo muitas vezes com que nos desloquemos para diferentes lugares que não seja apenas o do ser professor. Esses movimentos nos levam a reflexão sobre a importância de experienciar as possibilidades de mudarmos face o desconhecido, frente ao que ainda não tivemos a oportunidade de viver. Como nos contou da primeira vez que a entrevistamos, Sophia havia dito que já atuou no ensino fundamental menor e maior, no ensino médio, e que chegou inclusive a ensinar em cursos de formação de professores. Voltemos ao que ela tem a nos dizer: Bom... Esses diferentes públicos me ajudaram a ser uma pessoa melhor, é porque a gente que se relaciona com o ser humano tem que entender todas as dificuldades deles. E eu como professora tenho que entender mais ainda, e buscar mecanismos, até o que me ajudou muito mesmo é, eu acho, que a minha maneira de ser uma pessoa assim, minha maneira de ser, de entender as pessoas. A gente termina sendo até psicólogo. Eu me acho hoje até uma psicóloga, porque às vezes eu olho pra uma pessoa, e essa pessoa não precisa me dizer, mas eu já sei da dificuldade dela. Então eu buscava junto com elas amenizar as dificuldades. Elas mostravam as dificuldades delas e eu junto com elas tentava fazer diferente, ajudava assim a amenizar as dificuldades, porque eu sempre trabalhei a minha assim... A maior parte da minha vida eu trabalhei com pessoas menos favorecidas, por isso meu Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 112 desejo de querer que eles crescessem, porque esse é o caminho. Acho que isso foi tudo de me somar, de me doar, de mergulhar mesmo e hoje graças a Deus já tenho muitas alunas formadas na faculdade, muitas... Muitas... E quando me encontram fazem a maior festa, porque sempre dizem, porque eu reconheço que eu ajudei a abrir as portas. Eu sempre, quando ia aos sábados, tinha os encontros de sábados sempre fazia alguma coisa, tirava as dúvidas. Porque eu não sou daquelas que chegam e tiram a dúvida com pressa, porque tô com pressa de sair, eu passava do horário. Eu não tenho pressa. A minha pressa é deles aprenderem. Então eu fazia o passo a passo até que quando eu estava dando as aulas de redação eu fazia o passo a passo. Vamos gente! Então é assim, uma troca de experiências, uma troca muito rica porque eu aprendi, tem gente que tem uma experiência... (pausa). Olhe que eu tenho uma aluna, aquela devia sair nos livros do MEC29. Uma aluna da zona rural, aquela devia, porque ela foi criada com os avós e aprendeu muita coisa, muita coisa assim de, de sobrevivência, da cultura deles, eles são indígenas, eu ficava encantada como é que ela preparava uma pimenta, uma comida, como ensina as coisas às outras pessoas. O ritual que envolve a questão de ensinar para ela. Tudo nessa aluna minha é ritual, professora eu vou fazer isso e dizia como era que ia fazer e, quer dizer que foi uma troca de experiências riquíssima, riquíssima mesmo. Então foi muita troca de experiência. Eu com o conhecimento que tenho, levava textos, dando a elas um conhecimento que elas precisavam pra melhorar o estudo delas, pra passar em um concurso, pra fazer uma faculdade, pra melhorar o nível de escrita, de leitura. Eu entrei com esses conhecimentos e elas trouxeram outros, que me ajudaram a crescer, e me ajudaram também nesse, e nesse meio e nesses caminhos nós fomos aprendendo e eu mesma já sou uma pessoa assim, diferente, na verdade, eu fui mesmo foi aprender com todas elas30. Pensamos importante refletirmos acerca do caráter ético que atravessa não apenas as ações dos professores, como também o percurso de formação das pessoas envolvidas nos processos educacionais. Esses “deslocamentos” possibilitam a existência da transmutação31 do ser docente, a partir do contato com experimentações alheias aos seus círculos de convivência, através de ensinamentos e aprendizados que vão se constituindo, nos espaços de diálogos gerados pelas relações tecidas não apenas entre professores e alunos. Compor‐se incessantemente professor, requer não somente atenção aos elementos estéticos, mas também o cuidado ético na composição de si. [...] a constituição de modos de existência ou estilos de vida não é apenas estética, é o que Foucault chama a ética, por oposição a moral. A diferença é esta: a moral apresenta‐se como um conjunto de regras que coagem, regras de um tipo especial que consistem em julgar as ações e as intenções a partir de valores transcendentais (está bem, está mal...); a ética é um 29
MEC ‐ Ministério de Educação e Cultura. Quinta entrevista realizada com Sophia no segundo semestre de 2012. 31
Conceito criado por Friedrich Nietzsche, presente em sua obra Assim falava Zaratustra.
30
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 113 conjunto de regras facultativas que fixam o valor do que fazemos, do que dizemos, segundo o modo de existência que isso implica. [...] São os estilos de vida, que estão sempre implicados nos gestos e nas palavras, que nos constituem como este ou aquele. (DELEUZE, 1996, p. 79‐80) Por vezes, ainda vemos que nós professores pensamos as relações em uma única via, ou seja, estou levando tais teorias e conhecimentos para ensinar a turma da disciplina “X”. Sem perceber, que corriqueiramente, somos nós os surpreendidos ao entrarmos em contato com as expressões daqueles indivíduos, com os saberes trazidos por eles ao espaço da sala de aula. Mesmo quando nos colocamos a pensar em uma possível previsão a partir das ações que tecemos no cotidiano do exercício da docência, talvez nunca consigamos imaginar os espaços e caminhos que criaremos com os nossos alunos, mais ainda, quais eles optarão por trilhar. Dessa maneira, ser professor também é estar munido de uma espécie de paciência que nos acalenta, de modo que estamos a criar rotas, percursos, outras vezes labirintos. Mas, se estes são os melhores, e o que de certo podemos fazer com eles, só a experimentação nos levará a essa resposta, só os possíveis futuros encontros nos levarão, a saber, o que, a partir das nossas escolhas, e do acaso, conseguimos ou não desencadear nas vidas das outras pessoas. Talvez o fascínio em ser professor, esteja na possibilidade de um aprendizado constante, que a todo tempo insiste em tirar a terra firme que estamos pisando, e nos atira na vida. Levando‐nos a tornarmos apesar de professores, outros, eternos alunos na escola que nem sempre tem muros, salas, mas é sempre vida. Aprender está para o rato no labirinto, está para o cão que escava seu buraco; está para alguém que procura, mesmo que não saiba o que e para alguém que encontra, mesmo que seja algo que não tenha sido procurado. E, neste aspecto, a aprendizagem coloca‐se para além de qualquer controle. (GALLO, 2003, p. 80) Aprendemos ainda sem que de fato tenhamos nos colocado a procurar esse ou aquele conhecimento. O aprendizado acontece também no acaso, no “inesperado”, não somente quando toda ação que havíamos pensado na elaboração dos planos de aula acontecem do jeito, e forma que planejamos. Aprender requer que estejamos no mundo, experimentando os tons que a vida nos traz. A experiência se constitui ainda, a partir do que nos toca e produz sentido em nossas vidas. Dessa maneira, aprendemos também quando nos colocamos abertos a novas experimentações, a aprender com os outros. Ao nos falar da sua aluna da zona rural, a qual só depois fiquei sabendo que igualmente era docente, e estava participando do Proformação, um projeto de formação de professores, no qual Sophia ensinava, esta nos diz: “fui aprender”. E então mostra o quanto foi potencializante para a sua vida o aprendizado com aquelas professoras‐alunas, em especial com a sua aluna índia, cujo aprender se deu através da prática de alguns rituais, das trocas de experiências que estão compondo a sua estética docente, sendo sensível ainda, as diferenças que atravessavam o espaço formativo que era a sua sala de aula. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 114 Ao entrar em contato com aquela forma até então desconhecida de ensinar, a professora Sophia buscou integrar os conhecimentos que trazia gestados nas universidades pelas quais havia passado, com os novos, trazidos pela sua aluna, e neste momento a professora fez questão de destacar: “Eu [...] levava textos, dando a elas um conhecimento que elas precisavam pra melhorar o estudo delas [...] e elas trouxeram outros [...] nesse meio e nesses caminhos nós fomos aprendendo e eu mesma já sou uma pessoa assim, diferente, fui aprender”. Vejamos que as relações de ensinar e aprender estão permeadas de histórias e encontros inusitados. Sophia nunca tinha imaginado que encontraria uma aluna índia na aula que iria ministrar, sequer poderia prever que com ela aprenderia saberes ligados à cultura indígena, seus rituais, modo de ensinar, de preparar seus alimentos. Existem, nos acontecimentos que é o ensinar e o aprender, misturas entre corpos, composição de experiências que se mostram além do caráter instrutivo que possa ser pensado a esta ação. Aprender também é movimento. Pensar o ser professor, o ensinar e o aprender... A partir das experiências relatadas pela professora Sophia, nos pôs em contato com docências moventes, que se desfazem a todo tempo, na perspectiva de estarem se compondo novamente ao colocar‐se à disposição dos alunos, dos saberes... Da vida. Por um possível final... Os encontros potentes da vida suscitam entrelaçamentos, nem sempre harmonia de vozes, aspectos que compõe com o espectro do inusitado. Como ensinar sem lançar convites? Como aprender sem que nos desloquemos, sem que passemos a habitar territórios desconhecidos? Assim, na trama dessas relações, silenciosamente, sem que percebamos, os tratados oficiais que possivelmente possam ser lançados à vida, vão se desmanchando, tornando‐se movediços. Dessa forma, nunca saberemos como nós ou os outros aprenderão, quando das nossas ações enquanto professores. Pensamosna não existênciade um único método que se faça funcionar com todos os indivíduos, e que os levem ao exercício do aprender e do ensinar.Acreditamos sim, nas tecituras, contato com diferenças e singularidades que permitem movimentos, e descobertas, fluidez de novas experiências. Possivelmente, as estratégias não resistem às forças e à potência que habitam os encontros, são muitos corpos, vozes diversas tecendo junto, as regras e linhas que compõem as metodologias rendem‐se, fraquejam e então, acontece a mistura dos corpos, a mistura das estéticas, essas são múltiplas, nesse momento tornar‐se professor, é igualmente aprender. Percorrer essas linhas foi estar em contato com estéticas que apresentam‐se pertencentes a tempos, espaços e contextos sociais diferenciados, mas que ainda assim, encontram‐se em estado de tecituras, compondo, e decompondo o constante transmutar‐se dos professores, bem como dos seus alunos. Portanto, podemos perceber em momentos distintos, os nossos conceitos fugirem ao tecer opiniões e diálogos com as vozes que chegavam através das entrevistas, das histórias narradas pela professora, que nunca estão sós, mas sempre povoadas por turmas, alunos, escolas, sentimentos, famílias, ideias e especialmente, pelas forças que estão a mover a vida, as forças que estão nos ensinando a importância de continuarmos sempre aprendendo. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 115 Sentimos agora uma imensa dificuldade em abandonar este texto, temos conversado com as professoras, estamos sendo atravessados por um querer compor... Caminhar, e porque não dizer, viver o que a nós foi dito... Da composição e dos desmanches que é tornar‐se professor, ou seja, das suas múltiplas estéticas. Referências BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7 ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 117 Vida universitária: contextos históricos de vida, adaptação e superação Bárbara do Carmo Passos UFRB [email protected] Através de estudos realizados no âmbito do PET ‐ UFRB e Recôncavo em Conexão (Programa de Educação Tutorial – PET ‐ Conexões de Saberes ‐ MEC‐SESu), sentiu‐ se a necessidade de tratar e pesquisar a respeito do estudo e das experiências sobre os campos do currículo e da formação, que nos remete a valorização das historias de vida de cada sujeito, o que nos fez compreender que as vivências nos propiciam conhecimento e formação e dessa forma não podem ser ignoradas no âmbito da universidade. Inicialmente, as estratégias consistiram na produção escrita de textos autobiográficos produzidos pelos bolsistas/pesquisadores do grupo PET, com identificação e análise dos sentidos de formação acadêmica, relatos de suas experiências de vida, cultural e humana conforme narrativas de cada estudante, o qual á partir das autobiografias foi publicado um livro intitulado “Currículo, Formação e Universidade: Autobiografias, permanência e êxito acadêmico de estudantes de origem popular”, que tem como um dos objetivos propiciar aos estudantes e á comunidade, reconhecimento da importância das vivências seja qual for o âmbito inserido. Como embasamentos da escrita foram relatados: a vida estudantil da educação básica; o acesso à universidade, as escolhas dos cursos; as estratégias de permanência em contraste com as vivências familiares, comunitárias e com as experiências, saberes e fazeres relativos às populações tradicionais de origem popular, de onde advém a maioria dos estudantes do Recôncavo da Bahia, entre outros tópicos que nos remetem a pensar sobre algumas experiências de vida. Os relatos das vivências de cada estudante demonstraram para o grupo que alguns de tantos problemas enfrentados na vida acadêmica e pessoal, podem ser comuns aos de outros sujeitos e que se deve entender que essas dificuldades são momentâneas e formativas, ao visto que nos fazem aprender e compreender a viver. Palavras‐chave: Conexões de Saberes; Estudantes universitário; Histórias de vida. Introdução A partir de estudos realizados no âmbito do Programa de Educação Tutorial ‐ PET Conexões de Saberes: UFRB e Recôncavo em Conexão (Ministério da Educação ‐ MEC, Secretaria de Educação Superior ‐ SESu), sentiu‐se a necessidade de pesquisar através de narrativas autobiográficas, a respeito das experiências formativas e curriculares voltadas a valorização das historias de vida de cada sujeito, pondo em questão o processo de adaptação á universidade dos discentes e suas relações com o êxito acadêmico. O PET é um projeto institucional, interdisciplinar de formação de estudantes universitários de origem popular, mediante ações integradas de educação tutorial, pesquisa e extensão, onde pesquisamos temas como: Currículo/Formação, Acesso e Permanência, Pós‐permanência e Desenvolvimento Local. Nosso trabalho consiste em colaborar com o Programa, notadamente, com discussões a respeito das experiências curriculares e formativas, contribuindo para uma formação exitosa, prioritariamente nos cursos de Licenciatura da UFRB, onde existe uma grande fragilidade por parte dos estudantes em se adaptar ao curso, aos métodos e as regras da instituição e posteriormente nos Bacharelados interdisciplinares, porém os trabalhos já evoluem e os resultados obtidos podem ajudar não só apenas os alunos da UFRB e alunos dos cursos de licenciatura, mas estudantes de todo o Brasil. No edital de seleção para novos integrantes do grupo são escolhidos estudantes, exclusivamente de graduação, oriundos de comunidades populares urbanas periféricas, conforme os critérios de renda familiar, escolaridade dos pais, proveniência de escolas Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 118 pública, entre outros critérios, a exemplo do ingresso mediante reservas de vagas/cotas, podendo ter no máximo no grupo, 12 estudantes bolsistas, alunos de graduação, que trabalham com educação tutorial, por meio do professor tutor/orientador do grupo, pesquisa e extensão. As ações realizadas no âmbito do PET têm como foco contribuir para a qualidade de formação dos estudantes de origem popular, e colaborar com a superação de problemas ligados ao ambiente universitário, sejam a nível acadêmico e profissional, tal como também propiciar a formação de cidadãos críticos com apropriação necessária de conhecimento e dessa forma poderem cumprir o papel social da instituição e da futura/atual profissão. Dessa forma podendo compreender que as vivências podem nos propiciar conhecimento e formação, e dessa forma não podem ser ignoradas no âmbito da universidade. Trabalhamos com ações que possam contribuir para o crescimento de relação dos estudantes com a sua comunidade e assim, possam perceber suas potencialidades formativas, cidadãs, tanto no âmbito institucional da UFRB, quanto nos cenários sociais e culturais do Recôncavo Baiano, dessa forma contribuindo para que os estudantes encarem alguns de tantos problemas enfrentados no campo universitário, visto que no inicio da vida estudantil, os alunos passam por um processo/período de desconhecimento ou período de estranhamento do ambiente universitário, onde para esta análise foram utilizadas as abordagens de Alain Coulon (2008), que explica o processo como uma inadequação universitária, onde se estranha à linguagem, a escrita, os diferentes e novos saberes que são incorporados no dia a dia dos alunos e as regras gerais da instituição. As estratégias utilizadas para a pesquisa consistiram na produção escrita de textos autobiográficos produzidos pelos bolsistas/pesquisadores do grupo PET, com identificação e análise de temas relevantes a formação acadêmica e a vida pessoal de cada sujeito, com o objetivo de propiciar aos estudantes uma formação exitosa, onde não esteja voltada apenas para a profissionalização, mas contudo contribuir para a concepção e relevância de sua origem e historicidade. Diante disso avaliamos o processo de adaptação, como sendo este uma das questões mais importantes para proporcionar aos estudantes uma formação com êxito, visto que o tema da adequação ao ambiente universitário deveria ser mais discutido, sendo que o desconhecimento de tal questão por parte dos alunos dificulta a permanência dos educandos na universidade, e dessa forma colabora para o aumento dos índices de evasão universitária, que em muitos casos é explicado pela inadequação á universidade. A pesquisa tem a intenção de abordar à problemática que gira em torno das dificuldades de adaptação e permanência dos estudantes universitários, explanando para os mesmos a naturalidade das dificuldades, bem como da sua superação por parte da vontade pessoal e ajuda social que perpassa a adequação a este novo ambiente, visando também entender e contribuir com a historicidade de cada individuo, tendo como maior ênfase o entendimento e superação de fases da vida, onde muitas vezes nos parecem ser únicas de cada sujeito. Tais ações são relevantes, ao ponto que perpassam e evidenciam a importância de escrever e reescrever suas trajetórias de vida, dessa forma tornando o sujeito, ator/autor da sua história e dessa forma o levando a entender que todos os problemas que já foram e são enfrentados, não apenas no campo universitário, mas em sua vida em geral são formativos e devem ser valorizados, pois contribui tanto para a formação acadêmica, quanto para a vida pessoal, pondo em questão vários cenários de vida. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 119 Escritas autobiográficas e sua implicação na adaptação e superação ao ambiente universitário Inicialmente, as estratégias consistiram na produção escrita de textos autobiográficos produzidos pelos bolsistas/pesquisadores do grupo PET, com identificação e análise dos sentidos de formação acadêmica, relatos de suas experiências de vida, cultural e humana conforme narrativas de cada estudante, depois houve um período de socialização dos trabalhos com os colegas e o professor tutor do grupo, a partir de uma roda de saberes, com o intuito de analisar e proceder com entendimento de que as etapas as quais seguimos são formativas. Como embasamentos da escrita foram relatados: a vida estudantil da educação básica; o acesso à universidade, as escolhas dos cursos; as estratégias de permanência em contraste com as vivências familiares, comunitárias e com as experiências, saberes e fazeres relativos às populações tradicionais de origem popular, de onde advém a maioria dos estudantes do Recôncavo da Bahia, entre outros tópicos que nos remetem a pensar sobre algumas experiências de vida. Foram utilizadas na escrita as seguintes indagações: 1 ‐ Identidade de origem popular (incluir também referenciais positivos coletivos e individuais). 2 ‐ A Vida Estudantil na educação Básica (infantil até ensino médio). 3 ‐ O acesso à Universidade, e também o que a família, a comunidade e a Universidade contribuíram para esse êxito? 4 ‐ A construção da Permanência com êxito acadêmico: o que você faz? o que faz em grupo? e a Universidade compreende e favorece sua condição de estudante de origem popular? Como? Como poderia melhorar? Fale da s etapas/ciclos da sua vida estudantil na universidade. 5 ‐ Que sugestões você teria para os currículos, conhecimentos e saberes trabalhados nos cursos e na sua Formação? Como a UFRB poderia estar em conexão com o Recôncavo, tendo em vista a história, a cultura, o desenvolvimento local das cidades, os saberes tradicionais, as tecnologias sociais. Escreva de forma mais geral e também relacione com os estudos do seu Curso. Posicione‐se também sobre os cursos e as formações serem interdisciplinares. 6 ‐ Descreva o que considera causas da Evasão e das Repetências (de quem? e por quê? Quais os semestres que mais ocorre? O que pode ser feito para diminuir as evasões e repetências?) 7 ‐ Você defenderia que a UFRB fosse uma Universidade Popular? Como seria? 8 ‐ É possível uma Educação Superior de Qualidade socialmente e culturalmente referenciada? Como seria? Que conhecimentos, saberes, experiências sociais, culturais, e que práticas do Recôncavo já estão incluídas e podem ser incluídos mais ainda? A partir das escritas autobiográficas foi confeccionado publicado um livro intitulado “Currículo, Formação e Universidade: Autobiografias, permanência e êxito acadêmico de estudantes de origem popular”, que tem como um dos objetivos propiciar aos estudantes e á comunidade, reconhecimento da importância das vivências seja qual for o âmbito inserido e conhecimento dos problemas e superações que são comuns á estudantes. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 120 Para Coulon (2008), a primeira tarefa de um estudante ao entrar em uma universidade é aprender o oficio de estudante, que nem sempre é uma tarefa tão simples, contudo isso pode notar que o currículo imposto pelos cursos dificulta a adequação dos estudantes ao meio universitário, pois as disciplinas estabelecidas, principalmente nos primeiros semestres, não contribuem e não colabora com a realidade desses novos alunos, que desconhecem esse novo formato diferenciado de ensino encontrado nas universidades. O processo de adaptação está diretamente ligado à superação do período de estranhamento, onde há um total desconhecimento dos estudantes ao ambiente universitário, onde a superação do estranhamento perpassa duas fases, o período da aprendizagem que consiste numa fase lenta de adaptação, onde se é superada a agitação e ansiedade, abrindo espaço para a acomodação e o período de afiliação, onde o estudante passa a incorporar as práticas, regras e métodos de funcionamentos da Universidade, que antes não faziam parte do seu conhecimento e da sua rotina. Conclusão A vida acadêmica caracteriza‐se como um processo permanente de construção e adaptação, e os estudantes precisam está preparados para enfrentar e superar este contexto diferenciado de educação. Os relatos das vivências de cada estudante demonstraram para o grupo alguns problemas comuns, como o de adaptação e superação no ambiente acadêmico, onde foram utilizadas abordagens de Alain Coulon(2008). Segundo Coulon (2008), o período de estranhamento, consiste como processo de inadequação ao ambiente universitário, onde estranha‐se a linguagem, os diferentes e novos saberes, as regras e estruturas da instituição. A superação do estranhamento ao ingressar no ambiente Universitário perpassa duas fases, o tempo da aprendizagem e o tempo da afiliação, onde o período da aprendizagem consiste em uma etapa lenta de adaptação progressiva, onde se é superada a inquietação, abrindo‐se espaço para a acomodação. No período de afiliação o estudante passa a incorporar as práticas, regras e métodos de funcionamentos correntes na Universidade que antes não faziam parte da sua rotina. Esse trabalho tem a intenção de abordar e colaborar com a superação dessas dificuldades, colocando em discussões essa problemática que gira em torno das dificuldades de adaptação e permanência dos estudantes universitários, explanando para os mesmos a naturalidade das dificuldades, bem como da sua superação por parte da vontade pessoal e ajuda social que perpassa a adequação a este novo ambiente, além de fazer com que os estudantes entendam que tais problemas são comuns aos de outros sujeitos e que essas dificuldades são momentâneas e formativas, ao visto que nos fazem aprender e compreender a viver. Esse estudo evidencia a necessidade dessa questão ser conhecida e incorporada pela universidade, tanto no âmbito das ações afirmativas, quanto nos currículos e nas metodologias docente. Referências COULON, Alain. A condição de Estudante: a entrada na vida universitária / Alain Coulon; Tradução de: Georgina Gonçalves dos Santos, Sônia Maria Rocha Sampaio. – Salvador: EDUFBA, 2008. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 121 JESUS. Rita de Cássia Dias P. de, NASCIMENTO. Cláudio O. C. Educação tutorial de estudantes de origem popular: Universidade e Recôncavo em conexão. Cruz das Almas: 2012 NASCIMENTO, Cláudio Orlando C. e JESUS, Rita de Cássia D. Pereira. Currículo e Formação: Diversidade e Educação das Relações Étnico‐Raciais. Curitiba: Progressiva, 2010. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 122 Sobre os movimentos de professoralização e a subjetividade presentes na formação de professores de língua portuguesa Carla Sousa Ferreira Escola Estadual Reunidas Castro Alves (EERCA) [email protected] Lucília Santos da França Lopes Universidade Norte do Paraná (UNOPAR) [email protected] Este trabalho apresenta uma pesquisa em estágio inicial, realizada na Escola Estadual Reunidas Castro Alves, no município de Jiquiriçá/BA, com professoras de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II. Destaca‐se, nesta investigação, a relevância das narrativas (auto)biográficas elaboradas pelas docentes envolvidas na pesquisa, no sentido de investigar como a subjetividade se faz presente na formação e na prática pedagógica dessas profissionais. A primeira etapa da pesquisa encontra‐se centrada em leituras sobre a formação docente na perspectiva de compreender as relações entre o comportamento individual e o coletivo, de forma a problematizar o viés social que tranversaliza os saberes tecidos no ambiente escolar. A partir de estudos relacionados ao universo da linguagem, bem como da palavra, apostamos que a produção escrita suscita desvelamentos essenciais para tomadas de consciência dos movimentos de professoralização que compõem a professoralidade de cada professora. A abordagem (auto)biográfica permite que as ideologias e ações experienciadas, nos espaços educativos, sejam fundamentadas, compreendidas e, por conseguinte, ressignificadas neste processo de investigação‐formação. Assim, os próximos direcionamentos da pesquisa visam criar possibilidades de estudos referentes ao “como se chegou a ser o que se vem sendo” na condição de professora de Língua Portuguesa. O agenciamento da palavra e a linguagem atuam, portanto, como fontes potencializadoras de encontros formativos e, sobretudo, de interação com o outro e consigo à medida que provoca (re)posicionamentos profissionais bastante significativos. Palavras‐chave: Auto)biografia; Movimentos de professoralização; Linguagem. Notas Introdutórias A educação contemporânea despontou significativas mudanças que atraíram, naturalmente, os olhares de estudiosos, comunidade e esferas governamentais. Concomitantemente, a Formação de Professores tem se revelado um fecundo campo investigativo para pesquisadores interessados em conhecer os fluxos advindos deste novo paradigma, posicionar‐se diante dos estudos desenvolvidos e contribuir com a produção acadêmica. Postula‐se que há uma carência significativa de retorno entre as pesquisas e produções realizadas na academia e o que é chegado nas Escolas, nas salas de aula. O linguista Kanavillil Rajagopalan afirma que o conhecimento acadêmico não atinge realidades da educação básica, pois muitos pesquisadores vivem “enclausurados em seu “retiro intelectual”. Assim, práticas e posturas tendenciadas ao distanciamento entre as Instituições educacionais só reforçam a ideia de que professor e pesquisador são papeis distintos que desempenham funções também distintas. O interesse em investigar os modos como a linguagem (res)significa os movimentos de professoralização de professores de Língua Portuguesa da educação básica para compreender e refletir sobre a sua professoralidade justifica‐se, portanto, pela relevância de aproximar os eixos ensino, pesquisa e extensão entre a universidade e os demais espaços educativos. A linguagem não só permitirá que os processos formativos das docentes sejam narrados em textos (auto)biográficos, como propiciará possíveis análises de como a Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 123 subjetividade encontra‐se presente nas práticas pedagógicas e como as composições da vida desarranjam‐se e rearranjam‐se, em desdobras complexas e elucidativas. A pesquisa pretende explorar algumas considerações acerca da formação de professores de Língua Portuguesa, de modo a entender como se dão as tessituras que compõem e conduzem o ser e o agir dessas profissionais. Procuramos pensar a formação como um processo de produção de subjetividades que atravessam as vidas de docentes que formam os outros à medida que formam a si mesmas, em movimentos complexos e interligados. Neste sentido, o foco nas professoras de Língua Portuguesa deve‐se ao fato de querer estudar os modos de conceber a linguagem e o ensino de língua materna, no decorrer da docência. Buscamos, com as narrativas (auto)biográficas, expandir o contato com os movimentos de professoralização de cada profissional e, sobretudo, criar possibilidades de (re)pensar concepções e ações da/na prática pedagógica. O trabalho encontra‐se organizado em uma composição de tópicos que contemplam as abordagens necessárias para apresentar a pesquisa “Sobre os movimentos de professoralização e a subjetividade presentes na formação de professoras de Língua Portuguesa”. Inicialmente, fazemos uma explanação sobre alguns estudos que versam sobre a Formação Docente e sua relação com a Subjetividade, pincelando sobre as marcas da professoralidade, para que estas sejam entendidas como responsáveis pela consciência de como se está sendo o que se é. Adentramos, em seguida, no universo do professor de Língua Portuguesa (LP) e de como ocorrem os movimentos de professoralização. As narrativas (auto)biográficas são trazidas para a discussão como fontes potencializadoras para este processo de (res)significações, articulando o individual com o social. Por fim, temos os direcionamentos futuros para a pesquisa. Formação Docente e Subjetividade Em resumo, crer e inventar, eis o que faz o sujeito como sujeito. (Deleuze, 1953). Muitos teóricos das ciências da educação debruçam‐se acerca de variadas questões relacionadas a temas e métodos que orientam as pesquisas. O historiador da educação, António Nóvoa, é um ilustre exemplo. O pesquisador português aborda a formação docente com vistas para a identidade profissional e para as maneiras de ser e estar na profissão. Pereira, tem a formação de professores como seu objeto de pesquisa e é a partir de processos de subjetivação e do entendimento estético que é colocada a necessidade de pensar a formação docente pelo viés da problematização. Neste sentido, Pereira convida‐
nos a refletir sobre como o sujeito se torna professor e como se chegou a ser o que é. O interesse pelos aspectos subjetivos dos docentes no campo educacional fez com que Pereira escrevesse o livro “Estética da Professoralidade: um estudo crítico sobre a formação do professor”, no qual traz parte de sua trajetória, refletindo algumas atitudes que compuseram sua escolha de ser professor. Além disso, busca modos de apropriação e ativação de marcas produzidas no sujeito, por acreditar que, nestas tramas, não há espaço para vocação, identidade ou destino. Ainda sobre questões concernentes ao processo formativo do professor, a professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Ester Souza (2011, p.27), afirma que Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 124 “a questão da formação docente qualifica‐se e revigora‐se, exigindo o nascimento de um professor‐pesquisador, mobilizador de conhecimentos e saberes na escola”. Tendenciando seus estudos para a relação entre o currículo, a linguagem e o ensino, a pesquisadora desenvolve e instiga um olhar perspicaz para o (re)fazimento de ações pedagógicas que contemplem as perspectivas de um fazer docente dialético e, sobretudo, humano. A subjetividade está intimamente ligada aos processos formativos dos sujeitos. Além de situações individuais de aprendizagem, situações nas quais não há nenhum tipo de interação com o outro, os encontros de trocas, socializações e crescimento coletivo revelam aspetos subjetivos que se manifestam nas diferenças. Deleuze (1953, p.76) “aí está o único conteúdo que se pode dar à idéia de subjetividade: a mediação, a transcendência. Porém, cabe observar que é duplo o movimento de desenvolver‐se a si mesmo ou de devir outro: o sujeito se ultrapassa, o sujeito se reflete”. Este duplo movimento ao qual Deleuze se refere diz respeito aos fluxos complexos que fazem das ressonâncias acionadas, verdadeiras potências de vir a ser‐sendo. Transcender os modos de como se vinha sendo, agindo e pensando significaabrir‐se para possibilidades de reflexão acerca de si, do outro e dos espaços pelos quais o sujeito passou, compreendendo escolhas, direcionamentos e apostas. Significa ampliar o olhar para (re)construções que ganham sentido após tomadas de consciência responsáveis por transformações sociais e pedagógicas, por uma práxis significativa. É nesse sentido que Guattari (1992) coloca‐nos o seguinte: No ponto em que nos encontramos, a definição provisória mais englobante que eu proporia da subjetividade é: o conjunto das condições que torna possível que instancias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto‐referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesmo subjetiva. (GUATTARI, 1992, p. 19, grifo do autor) A subjetividade faz com que o indivíduo exista, reflita essa existência e viva movimentos de formação junto a outros indivíduos que, coletivamente, também manifestam suas subjetividades. É nesta diferença, nas marcas produzidas no sujeito que Pereira (2013) enuncia alguns conceitos ao relatar partes de sua trajetória. O interesse não reside na identidade do professor, mas em investigar “modos de produção de diferenças no percurso de constituição do professor” (2013, p. 22). Para o autor, diversas atualizações de marcas e potencialidades realizam‐se no campo da subjetividade. Logo, importa‐se pesquisar o como os movimentos aconteceram, como ocorrem. Seguindo algumas linhas metodológicas de Foucault, Pereira problematiza a formação docente com o como e o porquê. Ao fazer considerações acerca da relação entre a formação e a subjetividade, Pereira evidencia que a aquela é produtora desta em processos complexos e multifacetados, o que significa que “o sujeito se professoraliza e se subjetiva ao mesmo tempo. E, ao se professoralizar, contribui para a subjetivação de outros sujeitos” (PEREIRA, 2010, p. 61). As dimensões conceituais apresentadas até aqui – Professoralidade e Movimentos de Professoralização – são apresentadas na tese32 de doutoramento de Marcos Villela Pereira, 32
PEREIRA, Marcos Villela. A estética da professoralidade: um estudo interdisciplinar sobre a subjetividade do professor. Tese de Doutorado em Supervisão e Currículo. 293 f. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: PUCSP. Brasil. 1996. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 125 na perspectiva de propor um estudo voltado para uma investigação‐formativa no qual é entendida a professoralidade como “uma marca, um estado singular, um efeito produzido no (e pelo) sujeito” (Ibidem). Encaminhamos nossa investigação, de acordo com Pineau (2010, p. 99), na perspectiva de que o sujeito forma‐se a partir de três processos valiosos: autoformação, heteroformação e ecoformação. A autoformação refere‐se à formação do eu, torna o decurso da vida mais complexo e cria um campo dialético de tensões. A heteroformação volta‐se para o movimento com o(s) outro(s), enquanto que a ecoformação dirige‐se aos fluxos formativos nos quais o ambiente, o meio interfere e forma o sujeito ali inserido. Movimentos de Professoralização de Professoras de Língua Portuguesa Numa palavra, o passado como passado não está dado; ele é constituído por e numa síntese que dá ao sujeito sua verdadeira origem, sua fonte. (Deleuze, 1953). O profissional da linguagem ou o professor de Português, como é mais conhecido, atravessou fases bastante representativas nas esferas sociais. As maneiras de ver o mundo, de conceber a aula e a postura diante de um texto exemplificam mudanças gritantes que podem ou não ter acontecido entre docentes. Entender como as singularidades de cada professor aglutinam‐se às marcas da coletividade para suscitar aprendizagens e subjetivações é relevante, uma vez que identificar como as trajetórias são traçadas permite momentos de reflexividade e, muitas vezes, práticas pedagógicas e olhares, eminentemente, maleáveis e sujeitos a transformações. Pretende‐se investigar como a linguagem compõe e (des)vela os movimentos de professoralização das docentes da área de Linguagem da Escola Estadual Reunidas Castro Alves, localizada no município de Jiquiçá‐BA, com um total de cinco professoras do Ensino Fundamental II. Inclui‐se nesta contagem uma das autoras deste texto, Carla Ferreira, por acreditar que ao querer investigar o outro, acaba‐se, consequentemente, e por que não, intencionalmente, investigando a si mesma, como nos aponta Ferraço (2003): [...] Somos, no final de tudo, pesquisadores de nós mesmos, somos nosso próprio tema de investigação [...]. Assim, em nossos estudos ‘com’ os cotidianos, há sempre uma busca por nós mesmos. Apesar de pretendermos, nesses estudos, explicar os ‘outros’, no fundo estamos nos explicando. Buscamos nos entender fazendo de conta que estamos entendendo os outros, mas nós somos também esses outros e outros ‘outros’ (FERRAÇO, 2003, p. 160). Compreender como o ensino de língua materna é visto e vivido pelas docentes e, sobretudo, como se chegou a determinadas ideologias, concepções e práticas, atualmente, concebidas, é o que nos interessa nesta pesquisa, afinal, nestas circunstâncias a linguagem – objeto basilar de pesquisa – será elemento revelador de movimentos de professoralização que definem questões intimamente ligadas à subjetivação do sujeito, às diferenças produzidas ao longo dos seus percursos formativos. Assim, acreditamos que ao ter clareza da função que desempenhamos nos espaços educativos, bem como a importância da língua e da linguagem nas situações discursivas, de comunicação e interação. A conscientização das teorias que embasam nossa prática favorecem maiores possibilidades de (re)pensar o trabalho desenvolvido em sala de aula, refletir os andamentos Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 126 dos projetos e transformá‐los, em uma práxis renovada, como atesta Paulo Freire (1979). Maria Lúcia Neder (1993) defende que a metodologia no trabalho docente “é um dos determinantes no fracasso escolar, um dos maiores problemas hoje, sem dúvida, da educação brasileira”. Afirma, ainda, que “o suporte teórico que tenha sobre a linguagem é fundamental para o encaminhamento de seu ensino, mesmo que ele não tenha consciência disso”. De uma forma geral, “exige‐se que sejam discriminados os conteúdos definidos para a educação básica e as didáticas próprias de cada conteúdo e as pesquisas que as embasam” (SOUZA, 2011, p. 16‐17), além disso, espera‐se que os licenciados nos cursos de Letras saibam que a dicotomia estabelecida entre teoria e prática na educação não passa de uma ideia equivocada, afinal, faz‐se necessário que haja embasamento, fundamentação teórica de um fazer. Defende‐se, pois, uma indissociabilidade entre teoria e prática, de modo que o ciclo seja representado em um holomovimento. Com as discussões acerca dos novos rumos do ensino de Língua Portuguesa, muitos profissionais ainda aproveitam o discurso de ensino inovador e negligenciam, por vezes, conhecimentos relevantes, em uma interpretação simplista do que significa valorizar competências diversas, como a interação do educando com a realidade extraclasse, a interdisciplinaridade em sala de aula, a leitura e a escrita como práticas sociais ou o uso do texto. Quando as mudanças são tomadas neste sentido, o professor nega ao sujeito conhecimento necessário à sua formação. De acordo com Possenti (1996, p. 16), “para que o ensino mude, não basta remendar alguns aspectos. É necessário uma revolução. No caso específico do ensino de português, nada será resolvido se não mudar a concepção de língua e de ensino de língua na escola [...].” Contudo, precisamos estar atentos aos perigos da contradição (que pode ou não estar carregada de hipocrisia) daqueles que proclamam discursos renovadores e reproduzem práticas improdutivas. Embasamos nossa prática docente na concepção de linguagem adotada por Travaglia: a linguagem é, pois, um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um contexto sócio‐histórico e ideológico (TRAVAGLIA, 2007, p.84). Marcuschi (2001, p.15) vai além, afirma que “mais do que uma simples mudança de perspectiva, isso representa a construção de um novo objeto de análise e uma nova concepção de língua e de texto, agora vistos como um conjunto de práticas sociais”. Os princípios educativos que norteiam as concepções de letramento encontram‐se ancorados na colocação anterior, ou seja, práticas de escrita, leitura, interpretação, juntamente ao exercício da oralidade em sala de aula, devem ser entendidas como práticas sociais. Na perspectiva bakhtiniana, “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1986, p. 124). Visto isso, não se pode pensar em uma aula de português sem texto, sem leituras, sem diálogo, sem interação. A sala de aula deve ser um espaço para dar sentido àquilo que não está presente no cotidiano do discente, para que este possa perceber a função social da língua. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 127 Igualmente preocupado com o distanciamento entre as Instituições, ocorrência já abordada na introdução deste artigo, o professor Luciano Amaral (2010), motivado pela “constatação da existência de uma grande distância entre, de um lado, as pesquisas realizadas nas universidades e nos livros teóricos sobre o ensino de português e, de outro, os professores de português do ensino fundamental e do ensino médio” (p. 140) tornou‐se autor do livro “Coisas que todo professor de Língua Portuguesa deveria saber: a teoria na prática”. A pretensão é apresentar os principais estudos realizados acerca do ensino de língua materna, a fim de promover imbricações entre pesquisas realizadas e as realidades das escolas e provocar o devido entrosamento entre os docentes de espaços que são distintos e igualmente interdependentes. Produções acadêmicas que valorizam o que acontece no cotidiano das salas de aula, o que se manifesta nas inquietações de docentes, bem como nas especificidades dos processos de ensino‐aprendizagem são valorizadas por nós no sentido de celebrar tentativas de aproximar polos de aprendizagem que são essencialmente produtivos quando trabalhados conjuntamente. O fato de pensar a linguagem como possibilitadora de reflexões pertinentes sobre os saberes e os fazeres educativos será abordado com mais precisão quando os próximos segmentos a pesquisa forem acontecendo. Por ora, fiquemos com levantamentos temáticos e conceituais que provocam novos fluxos de devires. Os objetivos da pesquisa “Os movimentos de professoralização e a subjetividade presentes na formação de professoras de Língua Portuguesa” contemplam ora o estudo da evolução das possíveis vertentes de se direcionar o ensino de língua materna, ora investiga como a linguagem atua como potência (re)veladora de escolhas, posturas e apostas no que tange à educação e à língua. A busca pelas trajetórias das docentes em narrativas (auto)biográficas, sejam elas compartilhadas na modalidade oral ou escrita da língua, remete‐nos à experiência que, para Passeggi (2001, p. 149), “constitui‐se nessa relação entre o que nos acontece e a significação que atribuímos ao que nos afetou. Isso se faz mediante o ato de dizer, de narrar, de (re)interpretar”. Sobre as Narrativas (Auto)biográficas Devemos chamar passado, não simplesmente aquilo que foi, mas aquilo que determina, que atua, que compele, que pesa de uma certa maneira. (Deleuze, 1953). Por acreditar que ao contar as vivências no exercício de atribuir‐lhes significados, podemos transformá‐las em experiências formativas, escolhemos o método (auto)biográfico para o desenvolvimento da pesquisa, com a intenção de resgatar intencionalmente marcas capazes de ecoar e reverberar quem fomos e quem estamos sendo, na condição de sujeitos inacabados. Importa‐nos perceber que o mais importante nestas evocações é suscitar os porquês que nos conduziram às escolhas profissionais e pessoais que compõem as diferenças de cada um, produzidas coletivamente e reconhecer o como tais movimentos atravessaram‐se. As docentes que participação efetivamente da pesquisa – que tem um perfil qualitativo e etnográfico – terão grandes possibilidades de ativar marcas singulares, em movimentos de apropriação, constituindo‐se professoras. A narrativa (auto)biográfica “media a própria experiência e configura a construção social da realidade, o que também Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 128 inclui a subjetividade, sempre relacionada com o discurso comunicativo” (RABELO, 2011, p.03). Os encontros33, previamente acordados entre os envolvidos, serão organizados em formatos que propiciarão o envolvimento das docentes e as elaborações concretas à medida que as ações forem se realizando. Para Ferrarotti (2010, p. 46), “uma narrativa biográfica não é um relatório de “acontecimentos”, mas uma ação social pela qual um indivíduo retotaliza sinteticamente a sua vida (a biografia) e a interação social em curso (a entrevista), por meio de uma narrativa‐
interação.” Podemos inferir, neste contexto, que as narrativas serão analisadas considerando a situação enunciativa em que foram produzidas, as funções que desempenham no grupo social em que, certamente, serão circuladas e as estratégias textuais e enunciativo‐discursivas utilizadas pelas professoras. Os modos de contar e expressar parte de suas trajetórias serão entendidos por meio de diferentes óticas interpretativas, justamente por reconhecermos a complexidade presente nos discursos e nas construções de sentido, quando há um exercício de usar a linguagem para narrar vivências e ou experiências com e sobre a linguagem, em um movimento, por conseguinte, metalinguístico. Isso ocasiona uma conjuntura excepcionalmente subjetiva, considerando os efeitos produzidos, reproduzidos e refletidos no outro, mutuamente. A pesquisa com narrativas (auto)biográficas traz a necessidade de contextualizar o vivido, individualmente, com o que mais havia/há de parecido ou diferente em outros espaços sociais, principalmente referentes à época na qual a história é narrada. Passeggi (2001, p. 149) evidencia que “a narrativa autobiográfica [...] só se justifica se permitir à pessoa que narra compreender a historicidade de suas aprendizagens e construir uma imagem de si como sujeito histórico, situado em seu tempo”. Logo, há um elo entre o individual e o social que se manifesta, concretiza e é documentado nos escritos (auto)biográficos. O método (auto)biográfico foi e ainda é muito questionado por grupos que não vêem cientificidade ou rigor científico nas pesquisas desenvolvidas a partir de seus pressupostos. Justamente para evitar situações de prováveis lacunas ou fragilidades no método, Delory‐
Momberger (2005) alerta‐nos para a devida colocação: Os acentos pessoais que tem, forçosamente, toda narrativa autobiográfica não devem ser caraterizados como da ordem do íntimo, mas integrados no espaço público a partir do qual eles podem ser lidos. Eles são a coloração de uma escrita, os traços estilísticos segundo os quais faz‐se conhecer uma empreitada específica de biografização. Percebemos, claramente, o cuidado em estabelecer sempre relações entre as individualidades e as coletividades, entre o individual e o social, de forma que a parte represente o todo sem acarretar nenhum desconforto ou insegurança no trabalho que adota como metodologia, narrativas (auto)biográficas, histórias de vida, escritas de si, memoriais, cartografias e demais aportes epistemológicos que estudam as individuações e subjetivações do sujeito em formação. 33
Por ora, não será discriminada aqui a estrutura de organização a ser utilizada para desenvolver os encontros e os demais momentos de interação entre as docentes pelo motivo de a pesquisa estar, ainda, em estágio inicial, o que dá margem para possíveis modificações e desvios de planejamentos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 129 Neste coletivo social, estamos prestes a vivenciar momentos ímpares e, com eles, produzir renovadas composições de nós mesmas. Ao produzir novos devires, a partir das leituras instigantes que estamos a realizar, nos desdobramos em potências provisórias e maleáveis, nas quais há desfiguramentos e constituição de novas figuras, há desarranjos e rearranjos, conjuntamente (re)contruídos. O objetivo é experienciar transcendências, nas quais a linguagem é a principal responsável pela entrega e pelo comprometimento das docentes pesquisadoras de si. Considerações e Direcionamentos Visto que a formação docente, a educação e a linguagem, juntamente às narrativas (auto)biográficas, constituem um campo investigativo especial para a pesquisa, reforçamos o interesse em contribuir para as necessárias aproximações entre pesquisas acadêmicas e realidades da Educação Básica, mais especificamente, queremos ressaltar a importância das pesquisas serem realizadas dentro das escolas, com os professores, com e sobre o cotidiano escolar. Trata‐se de um campo interminável de (trans)formações sociais que refletem o que há de mais fantástico na natureza humana: a busca pela aprendizagem do mundo, do outro e de si, em movimentos conscientizados e, sobretudo, (res)significados. Para apresentar os direcionamentos da pesquisa, tomamos Deleuze (1953) para elucidar como pretendemos dar seguimento às ações, considerando que esta fase inicial encontra‐se centrada em leituras referenciais, garimpagem de dimensões conceituais, retroalimentação de textos variados e planejamentos. O referido autor enfatiza que “em suma, a síntese consiste em colocar o passado como regrado porvir” (DELEUZE, 1953, p. 339). Assim, pretendemos criar possibilidades de estudos referentes ao “como se chegou a ser o que se vem sendo”, na condição de professora de Língua Portuguesa. O agenciamento da palavra e a linguagem atuarão como fontes potencializadoras de encontros formativos e de interação à medida que provocam (re)posicionamentos profissionais bastante significativos. O agenciamento da palavra e os modos como a linguagem transversaliza a formação humana, serão forças em potencial para que as professoras de Língua Portuguesa da Escola Estadual Reunidas Castro Alves revelem, coletivamente e a cada etapa da pesquisa, o nosso maior objetivo: compreender como a linguagem compõe e (des)vela seus movimentos de professoralização. Referências DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade. In: Empirismo e subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. Coleção TRANS. 1953. FERRAÇO, Carlos Eduardo. Eu caçador de mim. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 157‐175. FERRAROTTI. Franco. Sobre a autonomia do método autobiográfico. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (Org.) O método (auto)biográfico e a formação. São Paulo; Natal: EDUFRN; Paulus, 2010, p. 31‐57, GUATTARI, F. Caosmose. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. HESS, Remi. Produzir sua obra: o momento da tese. Apresentação de Delory‐Momberger, Tradução de Dr. Sérgio da Costa Borba e Dr. Davi Gonçalves. Brasília: Liber Livro Editora, 2005. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 130 NÓVOA, A.; FINGER, M. (Org.) O método (auto)biográfico e a formação. São Paulo; Natal: EDUFRN; Paulus, 2010 OLIVEIRA, Luciano Amaral. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. PEREIRA, Marcos Villela. Pesquisa em Educação e Arte: a consolidação de um campo interminável. In: Revista Ibero Americana de Educação. N. 52. 2010a, p. 61‐80. ______. Estética da professoralidade: um estudo sobre a formação do professor. Santa Maria: Editora UFSM, 2013. PINEAU, Gaston. A autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a ecoformação. In: NÓVOA, António; FINGER, Mathias. (Org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDURFN; São Paulo: Paulus, 2010, p. 97‐118. RABELO, Amanda Oliveira. A importância da investigação narrativa na educação. Educ. Soc. Vol. 32 n. 114 Campinas Jan./Mar. 2011 SOUZA, Ester Maria de Figueiredo. Linguagem: currículo e formação docente. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2011. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 131 A pedagogia da cooperação na prática docente nas escolas Claudia Almada Leite FFP/UERJ [email protected] Helena Amaral da Fontoura FFP/UERJ [email protected] A Pedagogia da Cooperação é um conjunto de princípios, processos, procedimentos e práticas, que podem orientar o profissional de educação que pretenda trabalhar na linha da aprendizagem cooperativa. Esta, por sua vez, é aquela em que os objetivos são comuns, as ações compartilhadas, e os resultados benéficos para todos, propiciando a formação do sujeito cooperativo, pois trabalha com metodologias que motivam e desenvolvem a integração e cooperação. A presente pesquisa é parte integrante de uma dissertação de Mestrado em Educação em uma instituição pública no estado do Rio de Janeiro em fase de trabalho de campo com o objetivo de investigar as possibilidades da aplicação da Pedagogia da Cooperação na prática docente, analisar esta pedagogia como instrumento de fortalecimento da capacidade argumentativa e discutir uma sequência de processos para um aprendizado mais dinâmico e cooperativo em sala de aula. A metodologia será realizada através de pesquisa exploratória visando avaliar o papel da Pedagogia da Cooperação na prática docente, em parceria com os professores participantes da Residência Pedagógica na instituição. Focamos na possibilidade do uso dos Jogos Cooperativos, do Diálogo, e da Comunicação não‐violenta (CNV) que são processos da Pedagogia da Cooperação que podem ser aplicados pelos educadores para desenvolver a criatividade e a cooperação entre os educandos, visando às metas coletivas e não apenas individuais. A pesquisa tem como referencial teórico as contribuições de Brotto com o conceito de Pedagogia da Cooperação; Vigotski com os conceitos de vivência e Zona de Desenvolvimento Iminente, e García sobre Desenvolvimento Profissional Docente. Buscamos contribuir para ampliar as concepções de ensino referenciadas em práticas docentes cooperativas e participativas. Palavras‐chave: Pedagogia da Cooperação; Prática Docente; Desenvolvimento Profissional Docente. Introdução A profissão docente tem como elemento legitimador o saber, e cabe ao educador ampliar, aprofundar, e melhorar a sua competência profissional e pessoal, transformando o seu saber em aprendizagens relevantes para os seus alunos. Os educadores têm que ter a capacidade de manter a curiosidade sobre a sua turma, identificar interesses significativos nos processos de ensino e aprendizagem, e valorizar e procurar o diálogo em sala de aula, pois sabemos que “são as conversações nas quais estamos imersos ao fazermos ciência que determinam o curso da ciência” (MATURANA, 2001, p. 146), e também o despertar dos alunos pelo interesse pela observação, pesquisa e ciência. Dentro deste contexto, para os educadores terem êxito em sua profissão, devem focar os seus esforços na atualização contínua, que integra saberes individuais, coletivos e científicos de tal forma que estes se correlacionem harmoniosamente numa integração de saberes com a finalidade de uma prática docente coerente, crítica e criativa. Este trabalho pretende trazer contribuições de Brotto sobre Pedagogia da Cooperação, com seus princípios, suas práticas e alguns de seus processos. Ressaltaremos a importância da compreensão dos valores de cooperação e convivência, com os conceitos de Desenvolvimento Profissional Docente de García, e de vivência e Zona de Desenvolvimento Iminente de Vigotski, para o objetivo de contribuir para ampliar as concepções de ensino Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 132 referenciadas em práticas docentes cooperativas e participativas, e na possibilidade de formação do sujeito cooperativo. A Pedagogia da Cooperação é uma pedagogia viva, porque se renova constantemente, na medida em que se articula e se incorpora às experiências vividas por quem decide aplicá‐la. Porém há um ponto de partida para a realização desta Pedagogia. São quatro momentos, definidos como transdisciplinares, e orientados para o propósito final da prática da cooperação: princípios, práticas, procedimentos e processos. Em uma visão mais ampliada, pode ser entendida ainda, como “uma jornada de realização exterior para promover a transformação interior da pessoa e do grupo” (BROTTO, 2013, p. 11). No contexto da Pedagogia da Cooperação, as conversações baseadas na aceitação mútua e na cooperação para um projeto comum, são possíveis, e durarão até que os envolvidos no processo educacional saiam do espaço emocional estabelecido pela relação de ensinagem. Uma “convivência democrática surge da aceitação mútua e não a gera, pois é somente a partir da aceitação mútua que uma conspiração ontológica definidora de um modo de convivência que não leve ao abuso pode ocorrer” (MATURANA, 2002, p. 81). Na reflexão sobre Desenvolvimento Profissional Docente (GARCÍA, 2009b) é fundamental pensar sobre as questões que atravessam a chamada crise dos modelos de escolarização na contemporaneidade, com foco na massificação da escolaridade, nas transformações no mundo do trabalho e sua relação com os processos de escolarização. Propomos reflexões direcionadas à formação inicial e contínua dos professores, que se vejam como educadores sempre atentos aos reais motivos e mecanismos que levam a esta crise. E que tenham potencial de autorreflexão crítica sobre a sua prática docente, em prol de uma aprendizagem democrática, mesmo diante de uma “ciência moderna que surgiu em uma cultura que... trata o conhecimento como uma fonte de poder... que perdeu de vista a sabedoria e não faz nada para cultivá‐la” (MATURANA, 2001, p. 157). Maturana (2001) destaca que esta “sabedoria desenvolve‐se no respeito pelos outros, no reconhecimento que o poder surge pela submissão e perda de dignidade, no reconhecimento de que o amor é o sentimento que constitui a coexistência social, a honestidade e a confiança” (p.157). Pretendemos com a utilização da Pedagogia da Cooperação uma possibilidade de apoio ao educador no seu papel de mediador no processo de ensino‐aprendizagem, permitindo uma troca de saberes entre os indivíduos em prol do desenvolvimento e aprendizagem contínuos num movimento de cooperação e respeito mútuo. É importante que o educador estimule um ambiente motivador e desafiador em sala de aula, direcionado à pesquisa, argumentação, elaboração e cooperação, colocando como meta a ser alcançada pelo aluno, o desafio científico de se tornar autor. Este movimento possibilita ao aluno desenvolver a capacidade de produzir o seu próprio texto, utilizando a linguagem científica e os devidos cuidados metodológicos. Desta forma, pensando num ambiente escolar direcionado ao aprendizado, fazemos uma reflexão sobre a importância da Pedagogia da Cooperação como instrumento de apoio aos educadores, mas sempre mantendo relação direta com as outras dimensões do planejamento pedagógico. A Pedagogia da Cooperação favorece o diálogo entre os alunos, e entre professores e alunos, o desenvolvimento de uma dimensão relacional de cooperação, com ética e responsabilidade na apropriação dos conteúdos aprendidos e apreendidos em sala de aula, que possibilita a aquisição do conhecimento dentro de uma perspectiva de Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 133 questionamentos, de vivências e convivências. Não somente de mecanicidade estrutural, mas sim no despertar do prazer do educando pelo espírito investigador, criativo e crítico. Pedagogia da cooperação, prática docente e desenvolvimento profissional docente Neste estudo contamos com as contribuições de Brotto sobre Pedagogia da Cooperação. A Pedagogia da Cooperação é um conjunto de princípios, processos, procedimentos e práticas, que podem orientar o profissional de educação que pretenda trabalhar na linha da aprendizagem cooperativa. Esta, por sua vez, é aquela em que os objetivos são comuns, as ações compartilhadas, e os resultados benéficos para todos, propiciando a formação do sujeito cooperativo, pois trabalha com processos que desenvolvem a integração e cooperação (BROTTO, 2013). A co‐existência, a com‐vivência, a cooperação e a comum‐unidade34 são os princípios da Pedagogia da Cooperação. A co‐existência pressupõe a consciência de interdependência humana, e por isso, é importante dedicar boa parte do que se faz na escola, no trabalho, na comunidade e na família para recuperar a consciência da integração. Brotto (2013, p. 19, grifo do autor) destaca que “é necessário saber cuidar do que está no centro de todo de qualquer grupo: a liberdade para ser quem se é e, ao mesmo tempo, cooperar para o bem comum.” A com‐vivência e o aprender a conviver não são apenas para facilitar a convivência entre os diferentes, isto é, pessoas portadoras de necessidades especiais, sem uma visão mais ampliada. “Propõe‐se a inclusão de ideias, de sentimentos, de visões, de sensações, de atitudes, de comportamentos, de valores das pessoas” (BROTTO, 2013, p. 14, grifo do autor). O destaque é dado à inclusão, que possibilita a “com‐vivência de todos que queiram fazer parte do jogo de aprender a ven‐ser quem se é” (BROTTO, 2013, p. 15, grifo do autor). A cooperação, juntamente com a confiança e o respeito mútuo, é o exercício de um novo modo de fazer, de olhar os outros e a si mesmo, que favorece o aparecimento de novos modos de com‐viver. Envolve habilidades de “co‐operar consigo mesmo, com o outro, com o ambiente e com toda a comum‐unidade humana” (BROTTO, 2013, p. 17, grifo do autor). O sentido da comum‐unidade é o reconhecimento de que pertencemos à comum‐
unidade humana, e passa pelo desafio de promover e sustentar a melhoria da qualidade das relações entre as pessoas e entre os grupos, fortalecendo “a promoção da autonomia individual e do bem comum” (FUNDAÇÃO VALE, 2013, p. 9). Brotto (2013b) esquematizou as práticas essenciais da Pedagogia da Cooperação relacionando‐as com os quatro princípios da educação da UNESCO, numa direção em que seja vivenciado o “ser‐e‐estar em grupo de uma maneira integral e integrada” (BROTTO, 2013, p. 31). As práticas são: “fazer com‐tato: aprender a ser e a conviver”; “estabelecer com‐trato: aprender a conviver”; “compartilhar in‐quieta‐ações: aprender a conhecer”; “fortalecer alianças e parcerias: aprender a conviver”; “reunir soluções como‐uns: aprender a conhecer e a conviver”; e “praticar a transformação: aprender a fazer e a ser” (p. 31, grifos do autor). 34
Brotto pretende enfatizar e resgatar o sentido que algumas palavras possuem na Pedagogia da Cooperação, apresentando uma escrita diferenciada com a separação das sílabas.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 134 Brotto (2013) alerta que o conjunto de práticas colaborativas, destacadas pela Pedagogia da Cooperação devem ser utilizadas pelo educador de acordo com a sua percepção sobre as condições do grupo e do momento. Para ele, pedagogicamente no esporte é recomendável combinar atividades específicas da disciplina com atividades cooperativas, desse modo poderão ser aperfeiçoadas tanto as habilidades de rendimento como as habilidades de relacionamento. Buscamos neste caminho fazer um paralelo para o ensino das diversas disciplinas em sala de aula, e que essas práticas possam servir como base para a condução de uma Pedagogia cooperativa em sala de aula, em prol da formação de um sujeito colaborador e pesquisador. Dentro deste contexto, é de suma importância os educadores estarem atentos “ao planejamento de ensino [...] Decidir, prever, selecionar, escolher, organizar, refazer, redimensionar, refletir sobre o processo antes, durante e depois da ação concluída”, pois “as estratégias de um bom professor [...] acontece na conjuntura de diferentes processos de significação [...] nos entrelaçamentos dos saberes que provém dos alunos e alunas, o que possibilita a formação do pensamento reflexivo” (FONTOURA, PIERRO e CHAVES, 2011, p. 78). Outro fato importante para os educadores é estarem conscientes que “o valor da ciência para a vida humana está nas possibilidades que ela abre para compreendermos esta mesma vida, ao nos permitir entrar em reflexões recursivas sobre nosso domínio de experiências” e “nossas operações cotidianas em nosso domínio de experiências” (MATURANA, 2001, p. 157) num fluir de interações e comunicações. Os procedimentos da Pedagogia da Cooperação destacados por Brotto (2013b, p.30) indicam uma maneira de se conciliar no processo de ensino‐aprendizagem “as habilidades de rendimento (capacidades físicas, habilidades motoras e conhecimentos técnicos, relacionados diretamente ao domínio cognitivo) com as habilidades de relacionamento (atitudes,... envolvidos diretamente com o domínio não cognitivo).” Brotto (2013b, p. 29, grifo do autor) elucida os “procedimentos” que podem nortear a aplicação dos processos cooperativos visando promover a integração e a cooperação dos participantes do Programa proposto pela Fundação Vale (2013) para o esporte. Buscamos neste caminho fazer um paralelo para o ensino das diversas disciplinas no ambiente escolar, e que estes procedimentos possam servir como base para a condução de uma Pedagogia cooperativa em sala de aula. Dentre esses procedimentos tem‐se: o círculo e o centro; a ensinagem cooperativa; do mais simples para o mais complexo; ser mestre‐e‐aprendiz; começar e terminar juntos; e a roda de diálogo, que serão apresentados a seguir baseados nas definições apresentadas por este educador. No “círculo... todos são vistos como iguais” e “reconhece‐se a existência de um centro, de algo que está entre‐nós, ...e que deve ser cuidado por cada um, durante todo tempo.” Devemos “sempre que possível, trabalhar em círculo, para começar e terminar a aula, pelo menos”, e ter no centro do círculo um elemento representativo para o grupo (BROTTO, 2013b, p.30, grifos do autor). A “ensinagem cooperativa” (BROTTO, 2013b, p. 30) consiste na interdependência entre consciência, compartilh‐essência, e transcendência, que são os principais eixos dos Jogos Cooperativos. Na prática docente no ensino das diversas disciplinas escolares esses eixos podem ajudar os professores no incentivo aos alunos para uma reflexão sobre o próprio aprendizado; o favorecimento do diálogo; e a possibilidade de experimentar as mudanças nas vivências pessoais e coletivas (transcendência), e assim o desenvolvimento das funções psíquicas superiores (VIGOTSKI, 1998a). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 135 Brotto (2013b, p.30) nos faz refletir que “toda evolução ocorre de dentro para fora,... do mais simples para o mais complexo.” E que inicialmente deve‐se propor atividades que favoreçam a integração entre os colegas mais próximos, depois, aos poucos inserir atividades com um grupo maior, até conseguir a integração e cooperação de todo o grupo. Atentos em “ser mestre‐e‐aprendiz”, cientes que nesta dinâmica o educador deve estar aberto para ensinar, “aprender com os próprios erros”, ouvir, estimular e aceitar sugestões sobre “como aprender e praticar um determinado fundamento”. Como educadores, podemos promover algumas atividades em sala de aula e “começar e terminar a atividade reunindo todos no círculo, em torno do centro” para uma reflexão conjunta, e “aconteça o que acontecer deve‐se começar e terminar juntos” (p.31) essas atividades. A “Roda do diálogo” (BROTTO, 2013b, p. 31) incentiva “conversas sobre as experiências e os aprendizados” e cria um “continente de segurança e de confiança”, facilitando a troca de vivências em busca de um aprendizado partilhado por todos podendo ser utilizada na prática docente para mediar um conflito (WEIL, 2011) ou para desenvolver um trabalho de CNV (ROSENBERG, 2006). “Esse conjunto de procedimentos pode ser tomado como inspiração didática ou pedagógica para fomentar a integração e a cooperação durante a ensinagem do esporte em todas as suas três dimensões (BROTTO, 2013b, p. 31).” Na prática docente utilizar os procedimentos propostos pela Pedagogia da Cooperação também podem estimular a integração e cooperação, numa conjugação com os seus princípios e processos. Brotto (2013b, p. 31) destaca que “quanto mais complexa é a prática do esporte, mais é preciso cuidar da harmonia entre o desenvolvimento técnico‐tático (elementos cognitivos) e o aprimoramento das relações humanas presentes nela (elementos não cognitivos)”. Também devemos considerar que quanto mais complexo o conteúdo, mais é preciso cuidar da harmonia entre o desenvolvimento do aprendizado (elementos cognitivos) e o desenvolvimento “das relações humanas presentes” nele (elementos não cognitivos). E por isso a Pedagogia da Cooperação pode ser um caminho de possibilidades para que os educadores construam saberes numa coexistência entre os conteúdos e valores humanos. Desta forma, a Pedagogia da Cooperação pode possibilitar o desenvolvimento profissional dos professores direcionado a um ensino cooperativo em prol da formação do sujeito cooperativo, e sabemos que o educador exerce cooperação quando convive, explica e compartilha os seus conhecimentos e vivências com os seus alunos. García (2009a) analisa as transformações no conceito de Desenvolvimento Profissional Docente tendo como base as definições, as características e as mudanças que ocorreram nos anos de 1990 e na última década. E ressalta que este desenvolvimento é contínuo, é um campo vasto, que está diretamente relacionado com a procura da identidade profissional do professor, e de como as experiências, vivências, crenças e efetivamente o conhecimento do conteúdo influem neste processo, que tem como foco principal garantir a qualidade da aprendizagem dos alunos. Tardif (2012) indica que “o saber dos professores é plural e também temporal, uma vez que, [...] é adquirido no contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional” (p. 19). Dentro deste contexto, Vigotski (1998, p. 63) afirma que “a natureza do próprio desenvolvimento se transforma do biológico para o sócio‐histórico”, e Brotto (2013) nos faz refletir sobre a abordagem dos processos da Pedagogia da Cooperação como facilitadores da cooperação e do desenvolvimento humano, e que para o entendimento da condição humana, é preciso entender o sujeito como ser histórico‐cultural, que coexiste em Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 136 “conversações de aceitação mútua, de cooperação e de conspiração para um projeto comum” (MATURANA, 2002, p. 81). “A cultura, do ponto de vista de Vigotski, não é uma configuração rígida, pronta, acabada, um sistema estático ao qual o indivíduo se adapta ou se submete” (VASCONCELLOS, 2008, p.102), ela está num permanente fluxo contínuo. “As funções psicológicas superiores, têm sua gênese nas interações sociais. Ou seja, para Vigotski, as bases do funcionamento próprio do gênero humano são sociais, são históricas” (p.103), e a cultura representa o que o sujeito internaliza nas suas relações sociais, “a cultura, como uma rede de conversações, é um modo específico de entrelaçamento do linguajear e do emocionar (MATURANA, 2004, p. 53). De acordo com Vigotski (1988), “todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, [...] a segunda nas atividades sociais, e a segunda, nas atividades individuais. (p.114, grifos do autor) “Na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência” (VIGOTSKI, 1935/2010, p. 686 itálicos do autor). Para este autor, “nem o meio, nem o professor ou a professora, e nem a criança considerados isoladamente, mas a unidade indivisível da relação que se estabelece entre eles e que se constitui na vivência” (MELLO, 2012, p.730) é que são protagonistas no processo educativo. Prestes (2012) destaca que “a Zona de Desenvolvimento Iminente tem como característica essencial a possibilidade de desenvolvimento, pois se a criança não puder contar com o apoio de outra pessoa em determinados momentos de sua vida, “poderá não amadurecer certas funções intelectuais e, mesmo tendo essa pessoa, isso não garante por si só o seu amadurecimento” (p.205). Vigotski não fala de nível potencial de desenvolvimento, pois entende que nada está predeterminado na criança, o que existe é um campo de possibilidades para o seu desenvolvimento, em colaboração com os seus companheiros. Então, é fundamental que os educadores percebam o quanto é importante o incentivo às redes de comunicação colaborativas em sala de aula, baseadas “na aceitação mútua e no compartilhamento, na cooperação, na participação, no auto‐respeito e na dignidade, numa convivência social que surge e se constitui no viver em respeito por si mesmo e pelo outro” (MATURANA, 2004, p. 45). Por tudo que foi dito, este trabalho tem o intuito de promover a reflexão dos educadores sobre a aplicação alguns dos processos da Pedagogia da Cooperação, que são os Jogos Cooperativos, o Diálogo e a Comunicação não‐violenta (CNV). Vemos nessa proposta, a possibilidade do desenvolvimento dos educandos de uma forma integral e integrada a criação, a autonomia e o sentido de comum‐unidade, visando às metas coletivas e não individuais, com o intuito de desenvolver atitudes de empatia, cooperação e comunicação, bem como o reconhecimento do valor das emoções que circulam no ambiente escolar e em sociedade. Os Jogos Cooperativos, o Diálogo, e a CNV são processos que podem ajudar a um acordo de com‐vivência em sala de aula em prol de uma aprendizagem de qualidade. O professor aplicar esses processos na sua prática docente não significa promover a transformação no educando, e sim viver a transformação com o educando, já que somente o meio não transforma o indivíduo, e sim a unidade indivisível entre as particularidades do educando, o educador e o meio é que gera uma vivência que pode criar possibilidades para essa transformação (VIGOTSKI, 2010a/1935). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 137 O Jogo Cooperativo é um dos processos da Pedagogia da Cooperação, e sendo processo, facilitam “o aprender a considerar o(s) outro(s), a ter consciência dos próprios sentimentos e a agir objetivando interesses mútuos” (BROTTO, 2013b, p. 22). É importante ressaltar que Brotto (2013b, p.21) apresenta “alguns jogos cooperativos, como sugestão de atividades provocadoras de reflexões sobre a prática dos valores humanos por meio do esporte.” E neste trabalho estamos inter‐relacionando os estudos de Brotto como possibilidade da utilização dos Jogos Cooperativos na prática docente para também provocar reflexões nos educandos e educadores sobre a prática dos valores humanos por meio de um ambiente em sala de aula, direcionado para o ensino das diversas disciplinas escolares. Esse processo “apóia‐se na interdependência das três dimensões” da Pedagogia Cooperativa, a convivência, a consciência e a transcendência. A convivência como incentivadora e que valoriza a inclusão de todos através da “vivência compartilhada”; a consciência que estimula a cumplicidade entre os alunos, e incentiva‐os a refletirem “sobre as possibilidades de mudar comportamentos, relacionamentos e até o próprio jogo”, e a transcendência que “ajuda a sustentar a abertura ao diálogo, decidir em consenso, experimentar as mudanças propostas e integrar, no Jogo e na vida, as transformações desejadas” (BROTTO, 2013a, p. 76). Os Jogos Cooperativos podem funcionar como uma estratégia pedagógica, num fluxo de conversações, necessários ao fazer científico através de desenvolvimento da auto‐estima e a alteronomia. A auto‐estima desperta e desenvolvem talentos, vocações, dons e tons pessoais, como peças singulares e fundamentais ao grande jogo de coexistência. A alteronomia, habilidade do ser humano de viver em grupo de uma forma sinérgica, eficiente e harmônica, age como crucial para a aproximação, entrelaçamento e arranjo harmonioso, de cada uma das diferentes peças para recriar o todo (BROTTO, 2013). O Jogo Cooperativo proporciona ao educando a possibilidade de manifestar‐se com as suas próprias características e individualidades, afirmando a importância de expressar o próprio jeito de Ser e de fazer no mundo em sintonia com os outros, numa sincronia da co‐
existência humana. O movimento dos Jogos Cooperativos contribui para o aperfeiçoamento de um conjunto de habilidades denominadas de Habilidades de Com‐Vivência e Cooperação que incluem a Visão Compartilhada, o Propósito Como‐Um, a Re‐descoberta pessoal, a Co‐
operação, a Comunicação, a Auto‐mútua confiança e o Bom humor e descontração. “Com isso, para um novo tempo, não é necessário um novo jogo. Precisa‐se, sim, de uma nova maneira de jogar” (BROTTO, 2013, p.12) num entrelaçamento dialógico entre os indivíduos. Ressaltamos aqui com a ajuda da Pedagogia da Cooperação a importância dos educadores e educandos perceberem o diálogo como processo, e que o seu “objetivo não é analisar as coisas, ganhar discussões ou trocar opiniões”, em vez disso tentarmos seguir numa direção que o diálogo norteie para a compreensão das nossas opiniões, e dos outros, e assim “compartilharemos um conteúdo comum, mesmo se não concordarmos plenamente”, e neste caminho “simplesmente compartilhar a apreciação dos resultados” num fluxo em que “a verdade emerge sem anunciar, sem que a tenhamos escolhido”, em prol de despertar a consciência participativa do grupo (BOHM, 2005, p. 65). “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 1987, p.66). O diálogo na dinâmica de ensino‐aprendizagem possibilita a escuta sem julgamentos, o ouvir empático que segundo Weil (2011, p. 170) é “um esforço de cada um para se colocar no lugar do outro e de compreendê‐lo”, num acordo de Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 138 convivência de falar e ouvir através de uma comunicação aberta e colaborativa, sem julgamentos e pressupostos que traz a possibilidade de desenvolvimento do educando através das trocas vivenciais, que são reflexo da unidade educando‐educador e o meio, e educando‐educando e o meio como bem nos elucida Vigotski (1935/2010a). Algumas das dicas de Brotto (2013b, p. 31) para o processo de diálogo e que podem servir como orientações dos professores aos seus alunos são sempre que for possível falar na 1ª pessoa do singular para o centro do grupo, de modo que todos ouçam e após falar “esperar até que pelo menos três ou quatro pessoas falem antes de voltar a fazer o uso da palavra” escutando “o outro até o final sem interromper” e ouvindo “sem julgamentos e pressupostos” numa compreensão que possibilita uma escuta ativa, empática e generosa. Habilidades cooperativas de “agradecer, elogiar, pedir ajuda, dar ajuda, verificar se a outra pessoa entendeu,... explorar idéias e discordar de forma cortês” possibilitam a cooperação entre grupos e “ouvir atentamente também é uma habilidade importante para o aprendizado cooperativo” (JACOBS e GOH, 2008, p. 35). Outro processo da Pedagogia da Cooperação é a Comunicação não‐violenta (CNV) que “se baseia em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a capacidade de continuarmos humanos, mesmo em condições adversas” (ROSENBERG, 2006, p. 21), nos expressando honestamente por meio dos seus “quatro componentes: observação, sentimento, necessidades e pedido” (p. 25). A CNV possibilita a percepção e reflexão sobre as ações concretas que estamos observando e que afetam o nosso bem‐estar; como nos sentimos em relação ao que estamos observando; as necessidades, valores e desejos que estão gerando nossos sentimentos; e as ações concretas que pedimos para enriquecer nossa vida. É primordial compreender que esse processo “não consiste numa fórmula preestabelecida; antes, ela se adapta a várias situações e estilos pessoais e culturais” (ROSENBERG, 2006, p. 27). O primeiro componente da CNV é a observação. É necessário perceber que há um distanciamento entre observação e avaliação, já que quando os combinamos, quem nos ouve tende a receber isso como crítica e resistir ao que dizemos. Devemos evitar generalizar os acontecimentos, e isso é justamente o que a CNV propõe, ela estimula que as observações sejam feitas para um determinado tempo e contexto (ROSENBERG, 2006). Rosenberg (2006) define como segundo componente da CNV, necessário para nos expressarmos, os sentimentos. Afirma que “desenvolver um vocabulário de sentimentos que nos permita nomear e identificar de forma clara e específica nossas emoções nos conecta mais facilmente uns com os outros” (p. 76). A CNV permite distinguir a expressão de sentimentos verdadeiros, de outros que descrevem pensamentos, avaliações e interpretações. Dentre os exemplos citados por Rosenberg (p.76, grifos do autor), destaco esse: “Quando você não me cumprimenta, sinto‐me negligenciado”. Essa frase, de acordo com o autor, não representa a expressão verbal de um sentimento, porque a palavra negligenciado, não é um sentimento, e sim a expressão do que a pessoa pensa que a outra está fazendo a ela. Para ele, uma expressão de sentimento poderia ser: “Quando você não me cumprimenta à porta, sinto‐me solitário”. O terceiro componente da CNV é o reconhecimento das necessidades que acompanham os nossos sentimentos. Temos que ficar atentos, porque “o que os outros dizem e fazem pode ser o estímulo, mas nunca a causa de nossos sentimentos” (ROSENBERG, 2006, p.95, grifo do autor), e quanto mais diretamente pudermos aliar nossos sentimentos as nossas necessidades, e assumirmos a responsabilidade pelos nossos Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 139 sentimentos, mais fácil e natural será para os outros reagirem compreensivamente ao que dizemos. Destacamos um exemplo citado por Rosenberg (2006, p. 100) para o reconhecimento das necessidades: “Você me irrita quando deixa documentos da empresa no chão da sala de conferências”. Segundo o autor esta afirmação implica que o comportamento da outra pessoa é exclusivamente responsável pelos sentimentos de quem falou, e assim, não revela as necessidades ou pensamentos que estão contribuindo para os sentimentos dessa pessoa. Para tanto, o autor ressalta que a pessoa poderia ter dito: “Fico irritado quando você deixa documentos da companhia no chão da sala de conferências, porque quero que nossos documentos sejam guardados em segurança e fiquem acessíveis”. Assim podemos refletir sobre o universo escolar. Se o educador diz: “Você me irrita quando não participa da atividade proposta”, poderia dizer: “Fico irritado quando você não participa da atividade proposta, porque ela é uma oportunidade de você perceber as suas dúvidas sobre a disciplina, e discuti‐las comigo”. O quarto componente da CNV aborda a questão do que gostaríamos de pedir uns aos outros para enriquecer nossa vida. Quando falamos, quanto mais claro formos a respeito do que desejamos, mais provável será o que consigamos. Devemos evitar frases vagas, e nos lembrarmos de usar uma linguagem de ações positivas e assertivas, ao declararmos o que estamos pedindo, em vez de o que não estamos. É importante sabermos que pedidos podem ser percebidos como exigências, quando as pessoas têm a impressão de que serão culpadas ou punidas se não os atenderem. Podemos ajudar os outros a confiar em que estamos fazendo um pedido, e não uma exigência, se sinalizarmos nosso desejo de que eles nos atendam somente se quiserem ou puderem (ROSENBERG, 2006). Dessa forma, o educador para o desenvolvimento do processo da CNV em sala de aula deve orientar cada aluno do grupo a ter a sua vez de falar, e para isso precisa ter uma escuta ativa para observar o argumento do outro, e saber expressar seus sentimentos, as suas necessidades, e as suas opiniões ou pedidos, evitando que o outro entenda como uma exigência. Rosenberg (2006) orienta que, ao nos dirigirmos a um grupo, sejamos claros a respeito do tipo de entendimento que buscamos dele depois de nos expressarmos. E salienta que o “objetivo da CNV não é mudar as pessoas e seu comportamento para conseguir o que queremos, mas, sim, estabelecer relacionamentos baseados em honestidade e empatia, que acabarão atendendo às necessidades de todos” (p. 127). Sendo assim, fazendo um paralelo com a relação educador‐educando, também quando nos dirigirmos ao grupo de alunos, sejamos claros a respeito do tipo de compreensão que pretendemos obter dela. Terry Orlick (1989, p. 19) destaca que nosso sistema educacional é baseado na competição, e que “não ensinamos nossas crianças a amarem o aprendizado, e sim ensinamos a se esforçarem para conseguir notas altas”. Como educadores temos a responsabilidade de caminhar numa direção de um ensino que esteja inserido numa dinâmica da compreensão de que os seres humanos vivem e convivem num fluir do “linguajar e emocionar” (MATURANA, 2001, p. 149), por isso destacamos aqui a possibilidade da aplicação da Pedagogia da Cooperação em sala de aula, para que atitudes de cooperação e respeito possam contribuir para a formação de um sujeito com uma maior capacidade argumentativa e crítica, a partir do momento que é capaz de manter uma convivência cooperativa no ambiente em que estuda, vive e convive. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 140 Brotto (2013) sugere a apresentação gradual e a inserção sem pressa da Pedagogia da Cooperação no esporte, de forma a minimizar possíveis resistências ao novo e a ampliar a disposição dos participantes para a transformação e desenvolvimento. E ele ainda nos indica que, pequenas iniciativas, podem ser suficientes para proporcionar novas vivências, motivando assim os educandos no caminho para o seu desenvolvimento. Nessa perspectiva, podemos estabelecer um paralelo com o ensino das diversas disciplinas no ambiente de sala de aula, iniciando “uma aula com todos em círculo”, abrindo “pequenos espaços para uma roda de conversa e apresentar alternativas cooperativas para que todos exerçam o direito de falar e escutar” (BROTTO, 2013, p. 35). Algumas considerações Este estudo, percorrendo e refletindo sobre as proposições de diversos autores da área de Educação e Pedagogia da Cooperação, teve o objetivo de contribuir para ampliar as concepções de ensino referenciadas em práticas docentes cooperativas e participativas. Pretendeu ressaltar a importância do Desenvolvimento Profissional Docente e a possibilidade do seu entrelaçamento com a Pedagogia da Cooperação aliadas aos conceitos de vivência e de Zona de Desenvolvimento Iminente de Vigotski. Reafirmamos, por fim, que a utilização da Pedagogia da Cooperação, pode contribuir com a prática docente, na medida em que otimiza a integração, a socialização, a cooperação, e estimula a criatividade, a criticidade, a argumentação, promovendo o desenvolvimento do educando na direção da compreensão de si mesmo, dos outros, da realidade e do prazer pela pesquisa. Vigotski (2003) convida os educadores a refletirem que se a intenção é “que os alunos recordem melhor ou exercitem mais seu pensamento, devemos fazer com que essas atividades sejam emocionalmente estimuladas” (p. 121), e assim, pensando na prática docente “antes de comunicar algum conhecimento o professor tem de provocar a correspondente emoção do aluno” (p.121), possibilitando “a formação de uma série de outras conexões emocionais” (p. 120), e “se preocupar para que essa emoção esteja ligada ao novo conhecimento” (p. 121). De acordo com Maturana (2004, p. 135) “todo o fazer humano ocorre em conversações, como coordenações de coordenações, consensuais do fazer e do emocionar”. Brotto nos remete aos aspectos interdisciplinar, relacional e motivacional do ensino, e propõe a Pedagogia da Cooperação na prática docente como um recurso pedagógico ou didático complementar às aulas que pode ser utilizado conforme o discernimento e criatividade do professor, e que cria possibilidades de cooperação e convivência nos grupos (BROTTO, 2013), com o intuito do exercício do pensamento e desenvolvimento integral do alunos. O educador tem papel de facilitador na vivência dos princípios, processos, procedimentos e práticas da Pedagogia da Cooperação em sala de aula, que estão diretamente relacionadas com o processo de Desenvolvimento Profissional Docente. Para que o educador trabalhe com a Pedagogia da Cooperação em sala de aula, tem que vivenciar, aprender e apreender os conceitos e aplicações desta pedagogia, e entender que ela se baseia no indivíduo tomar consciência de que a cooperação está dentro de si. Desta forma, ao analisarmos as possibilidades da aplicação da Pedagogia da Cooperação pelos educadores devemos estudar os processos de Desenvolvimento Profissional Docente, que é um campo de conhecimento amplo e diverso. “Aprofundar Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 141 requer uma análise mais pormenorizada dos diferentes processos e conteúdos que levam os docentes a aprender a ensinar. E não existe apenas uma resposta a esta questão” (GARCÍA, 2009a, p. 19). Porém, seja qual for à orientação que se adote, deve‐se compreender que a profissão docente e seu desenvolvimento asseguram a qualidade da aprendizagem dos alunos. García (2009b) ressalta que é importante salientar que a aprendizagem deve ser bem orientada, e nesta ótica destacamos a importância do educador. À medida que o educador se compromete como uma das peças importantes do processo de aprendizagem com o aluno fica estabelecida uma interação aluno‐professor, uma interação ensino‐aprendizagem que evolui para o maior interesse do aluno em aprender. Referências BROTTO, F. O; ARIMATÉA, D. J. Pedagogia da Cooperação. Brasília: Fundação Vale, UNESCO, 2013b (Cadernos de referência de esporte; 12). FONTOURA, H. A.; PIERRO, G. S.; CHAVES, I. M. B. C. Didática: do ofício e da arte de ensinar. Niterói: Intertexto, 2011. GARCÍA, C. M. Desenvolvimento Profissional Docente: passado e futuro. Sísifo. Revista de Ciências da Educação. Sevilha, Espanha: n.08, p. 7‐22, Jan/Abr, 2009a. ______________. A identidade docente: constantes e desafios. Autêntica. Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação Docente. Belo Horizonte: n.01, p. 109‐131, Ago/Dez, 2009b. MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001. _____________. Emoções e linguagens na educação e na política. 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A fim de impulsionar o refinar do conhecimento para além da mesmice, propõe uma análise dos atos e afetos que se presentificam na escola e favorecem uma discussão acerca da história de vida em formação de professores. Põe‐se a pensar sobre a subjetividade e em particular sobre seus (im)passes, desejando compreender: Quais dimensões da subjetividade do educador estão ligadas ao ato de educar? e Como a relação de prazer e (des)prazer no ensinar pode repercutir no trabalho cotidiano do arte‐educador? Entendendo a natureza qualitativa desse estudo, decide‐se pela pertinência epistemológica do método da biografização, pois o processo (auto)biográfico possibilita a experiência de si, revisitando suas origens o sujeito pode resinificar suas relações consigo, com o outro e com o mundo. Dessa forma, a biografização remete à construção da identidade e à utilização de processos identitarios. Tais processos são facilitadores da aprendizagem, e porque não, da formação de professores. Segundo SOUZA (2006), os modelos biográficos assentam‐se na inserção individual e coletiva da memória e nas histórias de vida, os quais centram‐se na temporalidade, nos territórios, na individualização e individuação da existência e do sentido da vida. Nesse contexto, propôs‐se a investigar a história de vida em formação de cinco arte‐educadores do sistema municipal de ensino de Camaçari. Para tal, utiliza‐se as entrevistas narrativas com a seguinte temática: ‐ processo de escolarização; ‐ escolha da carreira profissional; ‐ formação continuada; ‐ relação com o trabalho cotidiano; ‐ perspectivas para o futuro. Sendo assim, este estudo se sustenta na crença de que o sujeito ao falar e ser escutado é capaz de (re)configurar as suas matrizes icônicas, de ampliar os canais de comunicação e expressão, auxiliando‐o a (re)conhecer seus sentimentos e desejos, impulsionando‐o a novas e distintas experiências. Palavras‐chave: Histórias de vida; Arte‐educadores; Subjetividade; Formação docente. Histórias de vida dos arte‐educadores em formação: contexto inicial... “Ouço mil tambores tocando dentro de mim. Sinto um rio gélido correndo em minhas veias. Uma borboleta voando, atordoadamente, dentro de meu estômago, foi difícil organizar meus pensamentos para começar a aula”. Essas foram algumas palavras que resgatei do diário de bordo, sobre o meu primeiro dia de trabalho como arte‐educadora. Isso aconteceu no início de 2001, dois meses após de ter concluído o curso de licenciatura em Artes Plásticas, havia sido contratada para dar aulas nas turmas de ensino médio, numa escola privada, de Salvador/BA. A aula começava às 7h30 da manhã, como na maioria das escolas brasileiras, e lá estava eu, numa sala repleta de adolescentes pela primeira vez. Muitos pensamentos percorriam a minha cabeça: sobre o conteúdo, a metodologia, a didática, afinal, aquele momento trazia muita expectativa. Para minha surpresa, tudo aconteceu diferente do esperado. Quando enfim, eu consegui ser notada, já haviam se passado quase 15 minutos, os alunos, simplesmente, não percebiam a minha presença. Eu era um elemento estranho, insignificante, não era escutada. Eles continuavam a conversar com seus pares, jogar ao celular, correr e brincar, mesmo eu tendo tentado, por diversas vezes, me apresentar e dar início a aula programada. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 143 Foi então, que por intuição, eu decidi que com um silvo iria interromper aquele caos. E com um forte apito, feito com os dedos, consegui chamar a atenção e ao mesmo tempo criar um vínculo com eles. O que para mim, pareceu extremamente violento, para eles soou como moderno. Eles começaram a me olhar e rapidamente foram sentando‐se, como se eu tivesse acabado de entrar na sala, prontos para me ouvir. Parecia brincadeira, nem eu mesma sabia o que tinha feito. Dessa forma, nós pudemos nos apresentar. No ano seguinte, eu deixei a escola privada, pois fui aprovada no concurso da Prefeitura Municipal de Camaçari/BA, nessa ocasião, me sentia mais segura, aquela primeira experiência me dava mais confiança para trabalhar com os alunos. Camaçari não era uma cidade estranha, eu como filha de bancários, vivi quando criança em algumas cidades do interior da Bahia, entre elas Camaçari. A história do município remonta aos primeiros anos da colonização portuguesa no Brasil, ainda no século XVI, quando em 1558, foi criada a Aldeia do Divino Espírito Santo pelos padres jesuítas reunindo índios das várias aldeias tupinambás, ao redor de uma capela de taipa sob o comando do padre João Gonçalves e do Irmão Antônio Rodrigues às margens do Rio Joanes. O nome, que inicialmente se escrevia Camassary, tem origem tupi, e significa leite e lágrimas, uma referência ao tronco de uma árvore da mata úmida, muito utilizada para construção de embarcações; a sua seiva é usada como cicatrizante e também na construção civil, sendo assim conhecida como “pau para toda obra”. O município é situado a 41 quilômetros da capital Salvador, conhecido por Cidade Industrial (já que abriga muitas empresas do Polo Industrial) e aquele que nele nasce é chamado de camaçariense. Camaçari é a quarta cidade mais populosa do estado e segunda maior cidade da Região Metropolitana de Salvador. Possui uma área equivalente a 784,658 quilômetros, com uma população de 255,238 habitantes, tem o segundo maior PIB municipal do estado (depois de Salvador, sendo também o 5º maior da Região Nordeste e o 38º maior do País), estimado em cerca de 14 bilhões de reais (dados do IBGE), em 2010. Faz parte dos 71 municípios brasileiros integrados ao MERCOSUL. É sede da Ford Motor Company Brasil (inaugurada em 12 de outubro de 2001, sendo a primeira fábrica de automóveis a se instalar na Região Nordeste do Brasil) e do Polo Petroquímico, o maior polo industrial do estado, abrigando diversas indústrias químicas e petroquímicas, mas com o passar dos anos, começou a abrigar outros ramos da indústria como: celulose, borracha, metalurgia do cobre, têxtil, fertilizantes, energia eólica, bebidas e serviços. É o primeiro complexo petroquímico planejado do País e o maior complexo industrial integrado do Hemisfério Sul, com mais de 90 empresas instaladas. O município tem uma multiplicidade de recursos naturais composta de: Bacias Hidrográficas (rios Joanes, Jacuípe e Pojuca), de água subterrânea (aquífero São Sebastião), Lagoas, Dunas, Manguezais, Restinga, Mata Ciliar e Mata Atlântica, além de ser banhado pelo Oceano Atlântico. No entanto, as riquezas naturais e econômicas não são capazes de produzir justiça social no município. Existe uma grande quantidade de cidadãos vivendo em pobreza extrema, alojados na periferia da cidade. E foi numa escola da periferia que eu fui trabalhar. Claramente, o maior aprendizado da minha vida, lá além de lidar com as dificuldades cotidianas da sala de aula, nós professores somos convocados ao enfrentamento de questões como: violência doméstica, drogas, alcoolismo, abusos de toda ordem que fazem eco na vida escolar. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 144 Neste período, tive dois grandes suportes, primeiro o programa de formação continuada oferecido pelo município, que tem como objetivo incentivar a troca de experiência entre os professores, promover a pesquisa e pensar diretrizes curriculares; e segundo o curso de Pós‐Graduação em Arteterapia ‐ com ênfase em Educação, neste pude não só perceber, mas vivenciar o arte‐educador como mediador da aprendizagem, agente de transformação. Este curso foi de base psicanalítica, portanto os conceitos eram discutidos a luz da teoria freudiana. Até hoje não sei se fui formada ou (de)formada por essa experiência. O fato é que, diante dessa perspectiva, o saber do professor se revela limitado e faltante na prática educativa, pois, mesmo que o professor tenha refletido e construído, ao longo do seu processo formativo, um conhecimento a respeito do saber‐fazer na sala de aula, a psicanálise vai dizer que o saber não diz respeito a algo que se repete, mas a um saber em movimento. Um saber que não é tecido a partir do lugar do mestre, mas do saber inconsciente, um saber descentrado que conduz o sujeito, antes de ser conduzido por ele (MRECH, 2005). Talvez, tenha sido este saber descentrado que impulsionou‐me a uivar verazmente, num momento em que o programado escapou. E talvez por isso, passei a compreender o conceito de sujeito faltante. Pela ótica da psicanálise o sujeito da falta é o sujeito do inconsciente, se configura sujeito do desejo, constituído pela linguagem que representa o interdito da cultura. Não é por acaso que os professores se sentem tão angustiados e sem saber o que fazer, muitas vezes sem conseguir verbalizar, ou mesmo colocar em movimento o que pensam ou sentem, anulam‐se e/ou revoltam‐se frente à realidade. Hoje, porém, penso que seria reducionista e ingênuo isolar os impasses subjetivos docentes na questão do inconsciente, pois depois de alguns anos em sala de aula, fui convidada pela Coordenadora Pedagógica do Município para assumir a formação dos professores de Artes. Neste momento, tive contato com os meus colegas numa outra dimensão. Passei a escutá‐los e ter obrigação de pensar possibilidades de intervenção para auxiliá‐los. Decidi então, buscar uma formação para também me auxiliar, foi quando comecei a frequentar como aluna especial do mestrado em Educação e Contemporaneidade, da Universidade do Estado da Bahia, a disciplina (Auto)Biografias e Histórias de Vida em Formação de Professores. As (Auto)Biografias e Histórias de Vida se apresentaram como uma base epistemológica e metodológica que acolhiam a palavra e a expressão dos arte‐educadores, a partir de uma visão sócio‐histórica, valorizando as suas narrativas, possibilitando a experiência de si, revisitando suas origens, dessa forma o sujeito resinifica suas relações consigo, com o outro e com o mundo. A biografização remete à novas e definitivas configurações de si. Tais processos são facilitadores da aprendizagem, e porque não, da formação de professores; as ideias de biografia, trabalho biográfico, biografização e aprendizagem biográfica emergem e enraízam‐se no curso da vida, como uma maneira que representamos a nossa existência e como contamos para nós mesmos e para os outros, em estreita relação com a história e a cultura. É em meio a este contexto, que nasce este estudo. Inquietada pela minha prática cotidiana, fui impelida à escuta sensível e à reflexão pragmática, pois o quadro que começava tomar forma em minha frente figurava o mal estar dos professores através de um discurso por vezes descompassado, entre as condições de trabalho dos professores deste Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 145 município (se comparado aos municípios vizinhos e ao panorama brasileiro) e a insatisfação que demonstravam durante os momentos em formação. Fato inusitado numa formação de professores de Artes, sempre marcada pela alegria e satisfação. Estes sujeitos durante toda sua formação, seja inicial ou continuada, vivem uma ambivalência de afetos, ora prazerosos, posto que o ensino da Arte traz em si a possibilidade de expressão e reflexão, ora (des)prazerosos, enfrentando situações não previstas no cotidiano da sala de aula, que fogem a ordem desejada. Sendo assim, desejo compreender:  Por que essa insatisfação permanente dos arte‐educadores de Camaçari/BA?  Como a relação de prazer e (des)prazer em ensinar pode repercutir no trabalho cotidiano deste arte‐educador?  Quais dimensões subjetivas do arte‐educador estão ligadas ao ato de ensinar? Meus objetivos são:  Investigar como a relação de prazer e (des)prazer do arte‐educador, aliada as suas histórias de vida em formação, podem fazer eco no cotidiano escolar;  Discutir questões vinculadas as dimensões subjetivas do arte‐educador e que estão ligadas ao ato de ensinar. Trabalho com as seguintes hipóteses de pesquisa:  As relações com o ensinar não são somente determinadas por condições objetivas, as dimensões subjetivas têm uma participação muito importante neste exercício profissional; 
Os arte‐educadores se sentem sujeitos não autorizados, não apreciados e desrespeitados; por conseguinte, eles sofrem, e deixam de oferecer oportunidades significativas de aprendizagem para seus alunos. Para desenvolver esta temática, tratarei de alguns conceitos pertinentes a este estudo, tais como: contemporaneidade, subjetividade, (im)passes, formação; bem como explicitarei o método de pesquisa utilizado para coleta e interpretação dos dados coletados nas entrevistas, sem com isso fazer juízo de valor ou por em suspenso o debate. Por hora, escutar e falar com os arte‐educadores teceu a teia de saber que preencherá as próximas paginas, às vezes com cores vibrantes, outras vezes opacas, ora com contornos figurativos, ora abstratos, e esse diálogo que se articula a cada momento de forma diferente diz também “muito de mim”. Os (im)passes em educação: revisitando conceitos A contemporaneidade mostra‐se muito complexa – as referências que tínhamos no século XX já não servem mais para compreendermos o tempo atual. Transformações e rupturas são exaustivamente assinaladas. O ponto de referência é o chamado projeto da Modernidade (HENNIGEN, 2006). Um mundo idealizado em que a história é vista como o caminho – linear e contínuo – em direção a um estágio mais evoluído da sociedade e do ser humano; em que se espera que o sujeito – dotado de razão – seja capaz de desvendar os mistérios da natureza e, através de procedimentos científicos objetivos, leve a humanidade ao progresso. Tanto em termos de vivência subjetiva quanto em relação à almejada busca da verdade universal, a ‘promessa’ não se concretizou. A partir daí analistas da Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 146 contemporaneidade começaram a lançar mão de conceitos – como o da pós‐modernidade35 – para compreender nosso tempo, nossos modos de ser e estar no mundo, nossa possibilidade de produzir (algum) conhecimento. Em diferentes campos das ciências humanas e sociais constituem‐se perspectivas que propõem uma outra forma de produzir ciência em que não se busca uma explicação – externa – para os acontecimentos, para os modos de ser. As noções de cultura, de discurso, de relações de poder e de subjetivação se enlaçam e questões até então tidas como ‘banais’ são problematizadas. Para PEREIRA (2008), os professores « sentem‐se ‘desvalorizados’, ‘desmoralizados’, ‘desrespeitados’ e, sobretudo, ‘desautorizados’ ». Não sendo difícil encontrar junto aos teóricos da profissão docente quem respalde essa fala. No imaginário social, o professor nostalgicamente idealizado cedeu lugar a um sujeito cansado, inseguro e despreparado, incapaz de lidar com a diversidade que se impõem. É neste contexto, que a contemporaneidade se abre para escutar os docentes, e suas falas fortemente carregadas de afetos36. Os professores em sala de aula vão além da transmissão de conteúdos, revestem‐se de subjetividades, pois não são vistos apenas no campo do prazer (alegria, realização, satisfação, etc.), mas também no campo do desprazer, como luto, tristeza, desatenção, etc. O professor e o aluno são possuidores da sua cultura e da sua história, desenvolvem relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo, e essas dimensões estão (entre)laçadas na sala de aula. A banalização deste problema não o faz menor, não é novidade que os professores vem sofrendo com a falta de reconhecimento e valorização do seu ofício, com a sobrecarga de trabalho e, com a maior de todas as queixas, o desinteresse dos alunos. A estes são atribuídos o ônus da desautorização e desrespeito aos professores. Tal contingência societal forja um docente que tende a desaparecer, não tanto devido a sua permanência a priori fugaz, por ser uma consciência dividida que substitui o que realmente sabe por uma prática negadora de seu saber efetivo, mas devido a um apagamento de si como índice de autoridade (PEREIRA, 2008). O autor propõem que o professor não esteja preparado para lidar com, o que aqui eu nomearei de, (im)passes subjetivos que se presentificam no cotidiano da sala de aula. Se tomarmos como base a origem semântica da palavra impasse, ela nos revela uma situação difícil para qual não parece haver saída favorável, no entanto, eu me proponho a trabalhar com o construto (im)passe, entre parêntese, o que na dimensão polissêmica, nos faz pensar que podem haver situações que passam e outras não. Sendo assim, chamo a atenção dos atores (os arte‐educadores), não apenas para as suas impossibilidades, mas também para as portas que podem se abrir, neste caso o saber da subjetividade. SUBJETIVIDADE do latim subjectivus (subicere: “colocar sob” + jacere: “atirar, jogar, lançar”) 35
O livro The postmodern condition, publicado por Lyotard, mais do que introduzir um novo conceito no cenário das ciências sociais, teve o mérito de aquecer o debate sobre as transformações que se processavam em nossa sociedade. Passado mais de 20 anos, não existe consenso quanto ao conceito de pós‐modernidade, que tem recebido significados distintos e gerado muita discussão: o que para alguns é pós‐modernidade, para outros é alta modernidade ou modernidade tardia (TASCHNER, 1999). 36
Tomo de empréstimo duas definições para o conceito de afeto, a primeira de SCHNEIDER (1976) «O afeto é, antes de tudo, esta perturbação a ser reduzida para que o aparelho psíquico reencontre um equilíbrio satisfatório», a segunda de FREUD (1920) que associa os afetos a ambivalência entre prazer e desprazer, também entendida em termos de aumento (desprazer) e diminuição (prazer) da quantitativa de excitação, o que influenciaria na qualidade da consciência. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 147 Inúmeros pesquisadores dedicaram‐se ao estudo da subjetividade a partir das inquietações do sujeito, para CIFALI (2004) não se trabalha a subjetividade a partir do eu para se conduzir ao eu, mas a partir do « eu » para se conduzir ao nós, tratar o eu para não ser o centro, mas poder ser tocado pelo meio. Nesse sentido, o sujeito busca experiências que mise en place seus afetos na dimensão sócio‐individual, ou seja promovendo ações onde o sujeito se compreenda e se estruture em relação a si mesmo e ao mundo social. Pesquisa biográfica: fundamentos epistêmicos e metodológicos Em face da natureza qualitativa deste estudo, que tem como intenção revelar afetos, pensamentos e comportamentos, categorias estas incomuns a métodos convencionais, optou‐se por desenvolver o trabalho com base na pesquisa biográfica, pois segundo DELORY‐MOMBERGER (2012): O projeto fundador da pesquisa biográfica se inscreve na questão central da antropologia social, que é a constituição individual: Como os indivíduos se tornam indivíduos? Questão que convoca muitas outras complexas relações entre indivíduos e suas inscrições e meios (históricos, sociais, culturais, linguísticos, econômicos, políticos) entre o individuo e seus representantes, entre o individuo e a dimensão temporal de sua experiencia e de sua existência. Dessa forma, o objetivo da pesquisa biográfica é o de inscrever o sujeito num espaço social a partir de suas experiências, dando significado singular a situações de sua existência. Para tal, a dimensão temporal se apresenta como a dimensão constitutiva da experiência humana. Ela que intermediada pela linguagem produzirá escrituras, narrativas. A narrativa « é significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal » (RICOEUR, 1983, p. 17), pois ao criar um enredo, com começo, meio e fim, « a narrativa transforma os acontecimentos, as ações e as pessoas do vivido em episódios, [...] a narrativa é o lugar onde a existência humana toma forma, onde ela se elabora e se experimenta sob a forma de uma história » (DELORY‐MOMBERGER, 2012, p. 39‐40), por isso ela é o meio e também o lugar onde acontecerá a operação de configuração37. O ato de contar histórias Advinda de uma grande tradição hermenêutica (Dilthey, Gadamer, Ricoeur) e fenomenológica (Schapp, Schütz, Berger & Luckmann), a pesquisa biográfica como toda pesquisa é orientada por aquilo que é pesquisado, não está dissociada de um projeto, nem de uma problemática, constitui um eixo de reflexão ao mesmo tempo epistemológico e metodológico, bem como um movimento de práticas sociais de pesquisa e formação. Dessa forma, o ato de narrar a sua história de vida, possibilita ao sujeito organizar‐se num constante diálogo interior a partir dos momentos de reflexão e de formação; pois põe em evidência as experiências que construiu ao longo da vida. 37 TermodescritoporPaulRicoeurcomomiseenintrigue,realiza‐senaepelalinguagem.Éanarrativa,
enquantogênerododiscurso,queconstituinãosomenteomeio,masolugardessaoperação:avidatem
lugarnanarrativaetemlugarcomohistória(DELORY‐MOMBERGER,2012,p.40).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 148 Para MORIN (1980), a definição de história de vida mobiliza o indivíduo vivo, ao mesmo tempo intensivamente, em seu lugar de origem, e extensivamente, em sua totalidade de biosfera. É essa complexidade que devemos agora encarar de frente. Esse é um processo que busca produzir por si mesmo sua própria identidade. PINEAU et LES GRAND (2002, p. 15), afirmam que: “as histórias de vida, aqui definidas como busca e construção de sentido a partir de fatos temporais pessoais, envolve um processo de expressão e experiência”, essa definição alarga o território das histórias de vida, aborda um processo humano, um fenômeno antropológico. Nesse contexto, cabe detalhar que fazer da vida uma história passa pelas três razões descritas por PINEAU et LES GRAND (2002, p. 109‐112): Agir, compreender, mas também emancipar‐se – essa trilogia de finalidades de ação, de compreensão e de emancipação começa a se consolidar teoricamente, de modo perfeitamente heurístico, na formação de adultos, com a distinção de Habermas (1976) entre três tipos de interesse de conhecimento: o técnico, o prático e o emancipador. O último deles, em particular, vai além da emancipação política no seu sentido restrito, identificando‐se com a libertação relativa operada pela tomada de consciência crítica e reflexiva dos determinantes existenciais por meio de sua expressão. Adquirir sua historicidade – buscar compreender o significado da sua própria história, à sua construção, e não apenas à história dos outros. É fazer jorrar a fonte, num sentido temporal desde a origem. Ter acesso a um presente histórico singular – o surgimento desse presente singular estabelece, de modo sincronizado, um contato direto com os fatores determinantes da existência. A entrevista na pesquisa biografica: um momento singular A entrevista na pesquisa biografica é entendida como um momento singular. Afinal, a entrevistas é um dos instrumentos básicos nas ciências sociais e, de modo especial, na educação. Os pesquisadores, por vezes, usam esse instrumento de forma abusiva, na medida em que as perguntas são elaboradas de forma capciosa e respondidas conforme o desejo do investigador. Um dos aspectos fundamentais da entrevista na pesquisa biografica é a interação, a mediação, e deve haver um clima de reciprocidade entre quem pergunta e quem responde. Faz‐se necessário, portanto, que o pesquisador (ou estudante‐pesquisador) propicie um laço de acolhimento e diálogo a fim de captar a fala desejada e não desejada. No meu trabalho, de forma mais especifica, elaborei um roteiro no qual se revestisse de sentido o diálogo entre o entrevistador e entrevistado. Os temas abordados foram:  Processo de escolarização;  Escolha da carreira e formação inicial;  Formação continuada;  Relação com o trabalho cotidiano;  Perspectiva para o futuro profissional. De posse desse roteiro, busquei os arte‐educadores para agendar o horário de cada entrevistas, foram aplicadas individualmente, com duração aproximada de 1h, sempre no espaço escolar. Este foi escolhido por propiciar maior conforto aos professores e oferecer Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 149 um ambiente que garantia a concentração e a privacidade. As entrevistas foram gravadas e transcritas para posterior análise. Foram cinco os arte‐educadores que colaboraram com esta pesquisa, quatro do sexo feminino e um do sexo masculino, eles pertencem ao ensino fundamental – Anos Finais. Aqui serão caracterizados por nomes escolhidos de forma aleatória, guardando especificidade de gênero. A seleção desses professores deu‐se após consulta ao cadastro de professores de Artes do Município de Camaçari, em acordo com a Secretaria de Educação. Os critérios estabelecidos pela SEDUC38 foram que, prioritariamente, poderiam participar os professores que tivessem 40h de trabalho semanais no município e que as entrevistas não acarretassem prejuízos para a dinâmica escolar. Sendo observado todos estes critérios, os cinco professores foram contatados e aceitaram participar na condição de sujeitos da pesquisa biográfica39. Quadro 1: Apresentação dos Sujeitos ALICE ELISA
EDDY
MANON MABEL
Idade 39 anos 50 anos
40 anos
53 anos 34 anos
Experiência
14 anos 16 anos
07 anos
17 anos 08 anos
profissional
Sim Não
Sim
Não Sim
Recebeu estimulo artísticos durante a infância? Não Não
Não
Não Não
Estava certo no momento da escolha profissional? Contente Desconten
Contente
Contente Conten
Como se sente Interpretação das produções biográficas Em sentido amplo e diversificado, o conceito de ciência (do latim scientia, traduzido por "conhecimento") se refere a um conhecimento ou prática sistemática. Em sentido estrito, ciência refere‐se ao sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico bem como ao corpo organizado de conhecimento conseguido através de pesquisa. 38
SEDUC – Secretaria de Educação de Camaçari. Os formulários de consentimento estão arquivados, sob a responsabilidade do estudante‐pesquisador. 39
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 150 Pesquisar é procurar resposta para uma questão. Em se tratando de Ciência (produção de conhecimento) a pesquisa é a busca de solução a um problema que alguém queira saber a resposta. Não é conveniente, nesse caso, dizer que se faz ciência, mas que se produz ciência através de uma pesquisa. Pesquisar é, portanto, o caminho para se chegar à ciência, ao conhecimento. A evolução do pensamento científico nos apresenta a expressão Ciência da Educação, que pour MIALARET (2006) se constitue « por uma disciplina que estuda as condições de existência, de funcionamento e de evolução da educação ». Trata‐se de uma nova realidade, no qual o estudo científico não pode ser realizado sem que se conheça o campo em que se pretende intervir. A Ciência da Educação aparece, portanto, como um conjunto de abordagens científicas de um real pedagógico, que marca a passagem do absoluto, ou seja, da Pedagogia enquanto prática educativa conservadora, para o plural, onde a Ciência da Educação se apresenta como um campo de conhecimento sobre a problemática educativa na sua totalidade e historicidade e, ao mesmo tempo, uma diretriz orientadora da ação educativa. Assim, uma pesquisa é, antes de tudo, orientada por aquilo que é pesquisado; no caso deste estudo a abordagem biográfica ao escutar os arte‐educadores, põem em foco as características singulares destes sujeitos. Isso me faz crer que esta perspectiva é a mais apropriada para dar conta das dimensões subjetivas e produtivas da formação docente, pois segundo SUÁREZ & DÁVILA (2012, p. 366)40 “toda narrativa biográfica supõem em si mesma interpretação, construção e recriação de sentido, leituras de mundo e da própria vida”, quando narram suas experiências, os professores descobrem sentidos parcialmente ocultos ou ignorados. Dessa forma, procurarei esboçar algumas interpretações, reflexões, inquietudes e sensações a cerca das produções biográficas dos sujeitos pesquisados. Em outras palavras, buscarei fazer uma leitura concisa, dentro do amplo campo da subjetividade docente, tentando articular a problemática deste estudo e as experiências de formação dos arte‐
educadores de Camaçari/Bahia. Portanto, para que essa construção de saber e conhecimento sejam possíveis, eu retomo o as questões que problematizaram este estudo: Como a relação de prazer e (des)prazer em ensinar pode repercutir no trabalho cotidiano deste arte‐educador? Quais dimensões subjetivas do arte‐educador estão ligadas ao ato de ensinar? Para começar a pensar essas questões eu apresento os conceitos de prazer e desprazer que foram mais finamente elaborados na obra freudiana em 1911, e designam dois princípios que regem o funcionamento do aparelho psíquico. O princípio de prazer é o propósito dominante dos processos inconscientes (processos primários), isto é, busca proporcionar prazer e evitar o desprazer. Eles foram a priori pensados, pois eu acreditava que uma das questões que concretizavam o (im)passe subjetivo dos professores de artes era o fato deles não conseguirem organizar seus sentimentos e desejos frente ao seu trabalho cotidiano, ao ato de ensinar. No entanto, os cinco professores que compuseram o corpo deste estudo, fizeram emergir duas categorias interpretativas distintas, pois ao dar forma e nome aos seus 40
SUÁREZ, D. H.; DÁVILA, P. V. (2012). “Documentação narrativa de experiências pedagógicas”, dans SOUZA, E. C. (dir.). Educação e ruralidade: memórias e narrativas (auto)biográficas. Salvador : EDUFBA, p. 353‐376. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 151 pensamentos e sentimentos eles deixaram a dimensão inconsciente e passaram a dar significado as suas experiências, ou seja, através de suas narrativas biográficas eles mise en place seus percursos de vida singular, conscientemente. O quadro a seguir indica como foram subdivididas e relacionadas às categorias. Quadro 2: Categorias interpretativas Categorias Interpretativas Ambivalência Dimensão afetiva: vinculo com o aluno e com a aprendizagem. Idealização do aluno e do ato de ensinar. Condição de trabalho.
Desilusão Imagem, prestigio, disciplina. valorização da Ambivalência A ambivalência se caracteriza pela presença simultânea em relação ao mesmo objeto de tendências, atitudes e sentimentos conflitantes. Em ORNELLAS (2005, p. 195), ela pode ser sentida em três áreas: Voluntário ‐ por exemplo, o sujeito não quer comer e comer; Intelectual ‐ o sujeito afirma simultaneamente uma proposição e o seu oposto; Afetiva ‐ ama e odeia na mesma circunstância a mesma pessoa. Para CHEMAMA (1995, p. 11), “É uma disposição psíquica do sujeito, que se sente ou manifesta, sentimentalmente, dois sentimentos; duas atividades opostas em relação a um mesmo objeto, a uma mesma situação”. Nesse sentido, os professores, durante as suas narrativas, fizeram notar sua postura ambivalente ao descreverem o bom vinculo afetivo que têm com os seus alunos e com a aprendizagem deles, e ao mesmo tempo o desencanto quando comparado à idealização do aluno e do ato de ensinar. Para uma melhor compreensão eu subdividi esta categoria em duas: a) Dimensão afetiva: vinculo com o aluno e com a aprendizagem Não é nova a discussão sobre a relevância da dimensão afetiva na constituição do sujeito e na construção do conhecimento, tendo como pressupostos básicos as teorias de WALLON41 e VYGOTSKY42, essas discussões, buscam identificar a presença de aspectos 41
Henri Paul Hyacinthe WALLON (França, 15/06/1879 – 1/12/1962) foi filósofo, médico e psicólogo. Sua teoria pedagógica, afirma que o desenvolvimento intelectual envolve muito mais do que um simples cérebro. Wallon foi o primeiro a levar não só o corpo da criança, mas também suas emoções, para dentro da sala de aula. Baseou suas ideias em quatro elementos básicos que se comunicam o tempo todo: a afetividade, o movimento, a inteligência e a formação do eu como pessoa. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 152 afetivos na relação professor‐aluno e as possíveis influências destes no processo de aprendizagem. Muitos autores (FERNANDEZ, 1991; DANTAS, 1992; GALVAO 1995, entre outros) vêm defendendo que o afeto é indispensável na atividade de ensinar, entendendo que as relações entre ensino e aprendizagem são movidas pelo desejo e pela paixão e que, portanto, é possível identificar e prever condições afetivas favoráveis que facilitam a aprendizagem. Para GALVAO (1995) “a emoção causa impacto no outro e tende a se propagar no meio social", sendo assim, não causa surpresa que o envolvimento entre professor‐aluno seja um detonador de estímulos mútuos, podendo ser confirmado nas palavras dos professores: ALICE – “Saber que o meu conhecimento atingiu o deles (os alunos), e que a Artes atingiu‐os fazendo‐os olhar o mundo. Então isso pra mim é o meu ganho”. ELISA – “Então o prazer de estar em sala de aula, é um prazer real, é um prazer de mudança, um prazer de busca, uma prazer de chegar junto do aluno”. EDDY – “Pensando em educação a relação de prazer é enorme, porque o trabalho de arte‐educador me da autonomia de pensar, me da à possibilidade de transformar, construir, organizar e atuar com o material humano”. MANON – “Alguns (alunos) têm que atravessar o rio para ir à escola, quando o rio enche não vão, e esse alunos têm uma vontade, eles querem algo, eles têm esse diferencial. Consegue‐se trabalhar com eles”. MABEL – “A relação professor X aluno, um aprendendo com o outro a decifrar a mente humana, vínculos mais profundos podem levar certo tempo para se formar, porém criar desde o primeiro instante um clima de aceitação e de naturalidade vai estimular o crescimento da confiança e o desejo de participar”. b) Idealização do aluno e do ato de ensinar No entanto, muitos desses sentimentos vão se contradizer e até mesmo se opor, quando os professores deixam de examinar a sua experiência docente e começam a divagar por um ideal de aluno e de profissão. Vejamos43: ALICE – “a minha frustração maior, é eles não conseguirem enxergar como eu enxergo ou terem o prazer que eu tenho no mundo das linguagens artísticas”. ALICE manifesta um estado de quem experimenta, ao mesmo tempo, comportamentos conflitantes: o aluno “real” é afetado pelo conhecimento artístico, mas o aluno “ideal” não. À análise do "real" e do "ideal" proposta nesta pesquisa, encontra na discussão moscoviciana elementos que sustentam a possibilidade de que no "ato de pensamento" pelo qual se representa, ocorrem simultaneamente o "real" (vivenciado nas experiências práticas do cotidiano) e o "ideal" esperado ou "desejado". Para MOSCOVICI (1978, p.59), "as representações individuais ou sociais fazem com que o mundo seja o que pensamos que ele é ou deve ser". "Ser" ou "dever ser" mesclam‐se nas percepções e 42
Lev Semenovitch VYGOTSKY (Orsha, 17/11/1896 ‐ Moscou, 11/06/1934) foi um cientista humano bielo‐
russo. Segundo Vygotsky, o desenvolvimento cognitivo do aluno se dá por meio da interação social, ou seja, de sua interação com outros indivíduos e com o meio. A interação entre os indivíduos possibilita a geração de novas experiências e conhecimento. 43
Para fins de interpretação, eu relaciono às citações dos professores de artes nos itens a) e b). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 153 conceitos. E a imagem "ideal" pode então interferir na percepção da imagem real do objeto. Desse modo, pode‐se afirmar que ALICE revela‐se num estado de ambivalência na medida em que verbaliza, numa determinada situação sentimentos opostos. ELISA – “O prazer de estar em sala de aula pra mim é constante, o que acontece é o cansaço. Eu acho que você tem muito trabalho, e é muito mal remunerado, e o tempo para preparar essas aulas é muito curto”. Neste caso ELISA, apresenta tendências opostas no contexto da profissão docente, ao citar as dificuldades da carreira é possível observar o (im)passe de sentimentos por estar em sala de aula: “um prazer constante” X “muito trabalho”. Para ORNELLAS (2005, p. 198): “Constitui‐se assim numa oposição do tipo sim‐não, e esse movimento acontece de maneira simultânea, o que possivelmente dificulta o processo de ensino‐aprendizagem”. EDDY – “as escola não sabem cuidar do bem intelectual que possuem”. Em meio à autonomia de pensar e o não saber, há um hiato, uma lacuna que não está clara. Nesse par ambivalente, EDDY em sua relação com o objeto flutua entre afirmação e negação. LAPLANCHE & PONTALIS (1985) compreende aqui uma complexidade de sentimentos e atitudes, em que a afirmação e negação são simultâneas e indissociáveis. MANON – “mas quando você vai pra uma 5ª série que eles vêm com todo um histórico social, a questão da diferença de idade, mesmo a relação deles com a escola, pois antes eles tinham apenas um professor para todas as disciplinas, e veem com defasagem na aprendizagem, quase analfabetos, é muito complicado de se fazer um trabalho. Eu não tenho prazer nenhum”. MANON relata o aspecto heterogêneo da escola, denuncia o desnível cultural dos alunos oriundos de realidades marcadas pela diferença. Nesse sentido, ela apresenta tendências opostas em relação ao contexto e mostra ambivalência para lidar com essa realidade. Para CHEMAMA (1995), MANON evoca atitudes fundamentalmente ambivalentes em relação ao objeto, que lhe surge qualitativamente clivado em “objeto bom” e “objeto mau”. Ela fala como se quisesse uma classe homogênea, no entanto, a princípio era a diferença que lhe agradava, sendo assim o objeto (heterogêneo) encontra‐se adjetivado como bom ou ruim. MABEL – “para o sucesso é necessário à participação de todos [...] escola e professores tem sua dose de responsabilidade, mas é preciso um exame de consciência antes de tudo: Porque não fazemos a nossa parte?”. A ambiguidade se manifesta aqui quando MABEL pergunta: “Porque não fazemos a nossa parte?”, pois ao mesmo tempo em que ela expressa o que deve ser feito na “relação professor X aluno”, a dúvida emerge, revelando sentimentos diferenciados para a questão que antes tinha resposta. O (im)passe verificado, quando afirma e ao mesmo tempo questiona, encontra‐se com o desejo de buscar uma resposta para sua indagação. Desilusão A desilusão caracteriza‐se como um estado em que o sujeito se acha decepcionado/frustrado frente a suas idealizações. Para Florence GUIST‐DESPRAIRIES (2003, p. 73) é um « processo inerente e necessário a evolução psiquica, a desilusão é uma renúncia de algum conteúdo idealizada que não cumprir sua função de apoio ». Na maioria das vezes como uma decepção manifestada por uma interpretação persecutória de uma exigência da realidade. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 154 Em inúmeros momentos, os arte‐educadores de Camaçari, concretizaram os (im)passes subjetivos através do estado de desilusão. De maneira geral, os profissionais da educação brasileira, vivem um momento de exigentes reflexões sobre a esfera das condições de trabalho que os professores vêm enfrentando. A falta de reconhecimento e prestígio social os tem colocado numa situação de compadecimento e sofrimento. A seguir, vejamos as duas subcategorias descritas pelos sujeitos: c) Condição de trabalho A própria etimologia da palavra, segundo RIBEIRO (2000) guarda o sentido de tortura. Trabalho tem origem no vocábulo latino tripalium, que significa aparelho de tortura composto por três paus, que também servia para imobilizar animais difíceis de domar. Seguindo esta compreensão, o termo sugere uma reflexão sobre o trabalho e o sentimento de realização na esfera humana. Se julgarmos o trajeto da própria história, observamos que a organização de qualquer sociedade confirma que o trabalho ocupa o centro da existência humana. No campo da Educação, devemos refletir sobre o desenvolvimento das relações sociais e políticas que se estabelecem no ambiente da escola pelos sujeitos que nela transitam ‐ especificamente o professor ‐ na condição de trabalhador, busca estabelecer mediações com o saber, produto de seu trabalho e com a técnica, esta elaborada nas relações mútuas dos produtores dos saberes. Ainda nesta dimensão professor‐trabalhador, o status ocupacional do professor contemporâneo implica em pensá‐lo como um trabalhador em descompasso entre o que pensa e o que efetiva, concretamente, no cenário escolar. Dessa forma, ao ouvir os professores de artes de Camaçari, observa‐se o estado de desilusão atual em que se encontram: ALICE – “Gostaria de ter uma carga horária menor, porque Artes só tem duas aulas por semana, então a gente precisa trabalhar em dois, três lugares ao mesmo tempo, pra ter uma renda melhor, e isso prejudica o meu doar, na ultima aula eu já estou esgotada. Você já esta carregada de energia pesada, e acaba não tendo o mesmo valor da primeira aula que você deu no primeiro horário. Eu fico triste em relação a isso”. ELISA – “Eu tenho um prazer enorme em estar na sala de aula, as vezes não tenho prazer em estar em algumas instituições, as vezes não concordo com a engrenagem, não concordo com a gestão, não concordo com os conceitos, mas também entendo que todo mundo tem limitação. O gestor tem suas limitações. Quando você esta em sala de aula e tem 500 alunos do lado de fora fazendo barulho é uma limitação, porque não tem um pessoal de apoio”. EDDY – “O momento de desprazer que acontece quando estou atuando, é quando a infraestrutura seja ela do ambiente escolar ou do próprio método de trabalho, não esta adequada para atuar, ou para a ação, pois isso gera um conflito, uma tempestade mental muito grande, a nossa desorganização parte daí”. MANON – “a vida de educador é difícil, porque é muito trabalho [...] Eu gostaria de envelhecer tranquila, eu não quero viver essa agonia que eu estou hoje, saindo de uma escola pra ir para outra, dando conta de ser um bom profissional. Os alunos não tem nada haver com isso, eles estão lá aguardando a gente, vão em baixo de chuva, enfim, como Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 155 profissional eu me sinto muito sobrecarregada, eu quero diminuir esse pique para ver se eu consigo chegar pelo menos aos 70 anos bem”. MABEL – “percebi que a escola tende a sistematizar, homogeneizar procedimentos e quando não se faz isto, corre‐se o risco de ter o trabalho mal visto... como se fosse contribuir para a indisciplina dos alunos, a arte mexe com o ego das pessoas e se isso não for trabalhado psicologicamente pode gerar alguns conflitos entre os alunos ou colegas de trabalho, despertando sentimentos variados”. O que constatamos é que os professores de artes sentem‐se compelidos a intensificar individualmente suas forças intelectuais e físicas para abastecer um sistema que os oprime. Em “O capital”, Marx (1986, p. 546‐47) assinala várias vezes a condição de precariedade do trabalhador submetido à ordem capitalista em que todos “os métodos destinados a intensificar a força produtiva social do trabalho se realizam as custas do operário individual [...] mutilam transformando‐o num homem fragmentário”. Assim, o professorado encontra‐
se anestesiado diante das demandas políticas, que anulam no sujeito a sua singularidade, bem como as suas experiências. A verbalização do cansaço, do desgaste e dos baixos salários, entre outras queixas, revela a decepção com a profissão e a desilusão bordeja o trabalho docente. d) Imagem, prestígio, valorização da disciplina GATTI & BARRETO (2009), informam que menos de 50% dos estudantes de licenciatura, no Brasil, desejam se tornar, de fato, professores. Eles querem apenas o diploma de educação superior. Na verdade, é só ler os jornais e ouvir os noticiários para que qualquer jovem, que não seja um grande entusiasta pela educação desista de procurar a carreira do magistério: baixos salários, infraestrutura deficiente, salas de aula mal cuidadas ou bloqueadas por intermináveis reformas, agressões de alunos, desvalorização do saber e omissão dos gestores, montam um panorama assustador e desanimador. Tal panorama põem em evidencia a imagem, o prestígio e a valorização dos professores e de suas disciplinas. Esse cenário pode ser confirmado na fala dos professores44: ALICE – “Porque o mundo e o país, só vão ser desenvolvidos quando eles investirem realmente na área de educação, e não é balela, chega a ser demagogo, todo mundo fala, tem o mesmo discurso, mas falta a prática. Porque o que a gente encontra são colegas doentes, colegas estressados, sem prazer nenhum de estar fazendo o que estão fazendo, ficam reclamando o tempo todo”. ELISA – “o desprazer é quando você percebe que é um pra dez, é desumano, começa com os professores que não valorizam a disciplina. “A vocês vão pra aula de Artes porque lá é como se fosse uma terapia!”, “E aquela loucura que vocês fazem a professora entende?”. [...] Eles (os professores de outras disciplinas) desconstroem o trabalho”. MANON – “Imagine, se o profissional tivesse 40h só naquele local, com dedicação exclusiva, todo apoio pedagógico, cursos de formação, etc. Eu acho que seria maravilhoso, pra mim e para a escola. Mas a situação não é essa, então você tem que está trabalhando, geralmente em dois lugares diferentes, e ai complica”. 44
Exceto EDDY, que não apresentou estado de desilusão na subcategoria: Imagem, prestígio e valorização da disciplina. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 156 MABEL – “pensei em desistir ao me deparar com o preconceito e desvalorização da arte‐educação, e dentre muitos diálogos, decidi por um objetivo explicito nos meus questionamentos: “Que tipo de educadora eu quero ser nos tempos atuais?”. Os professores têm características especiais de vulnerabilidade e importância, provavelmente são essas ambiguidades não resolvidas a respeito de seu papel na sociedade, que qualificam o estado de desilusão, pois sentem‐se enevoados entre herói e subalterno, o que, de certa forma, o fazem síntese das contradições do sistema social. Nesse discurso de queixa, de mágoa, de ressentimento, e por que não, de dor, os professores apresentam‐se embaraçados e impedidos de concretizar seus ideais. A importância das dimensões subjetivas da experiência O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás da casa./ Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada./ Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia a volta atrás da casa./ Era uma enseada./ Acho que o nome empobreceu a imagem (BARROS, 2001, p. 25). O presente estudo reflete sobre a fertilidade epistemológica que se enquadra numa linha de investigação entre educação e biografização. Neste sentido, JOSSO acrescenta “o imaginário biográfico em ação conquistou, então o seu lugar o que falta desenvolver uma reflexão profunda sobre essa imensa produção com finalidades ‘educativas’ diversas”. Desse modo, desafiei‐me a pensar os (im)passes subjetivos no mundo contemporâneo, entendendo que a subjetividade se dá a partir da capacidade de si situar a si mesmo em relação ao outro. Assim o sujeito fala e interpreta a vida, pois segundo PASSEGGI (2013) “não há vida humana sem narrativa, porque não há vida sem história”. De acordo com Jean‐Marie Barbier (2011, p. 74), "a formação é uma ação na qual o sujeito se reconhece, a partir da sua experiência profissional e/ou social e se engaja". As queixas cotidianas dos professores envolvem incertezas e são marcas registradas da profissão docente. Elas nos dizem sobre a existência de outras dimensões que devem ser levadas em conta, não só o que é objetivo, mas sobre o que esta para além do âmbito da razão, onde a formação de professores é central. Afinal de contas, a formação é um momento especial na construção do sentido e no desenvolvimento da reflexão entre os professores. Durante o tempo em que convivi com os arte‐educadores de Camaçari, experimentei angústias e aflições, encantos e desencantos, persistência e vontade de desistir da luta. Percebi que sofrem, que em suas faces repousam as asperezas do trabalho docente, mas que nesta mesma face estampam a graciosidade da esperança e o crédito que depositam em sua profissão. Talvez por isso, outras questões tenham surgido durante o percurso e possam se desdobrar num prolongamento dessa pesquisa: Como os professores podem dar forma as suas experiências? Por que a maioria os dispositivos de formação não estimulam a dimensão subjetiva do professor? É possível a formação de professores explorar as múltiplas linguagem expressivas (oral, corporal, imagética, etc)? Esta pesquisa não se esgota, ao contrário põe em movimento a interlocução de saberes, dessa forma, espero ter permitido a reflexão nas dimensões subjetivas do exercício da docência, a fim de promover um efetivo engrandecimento do professor e Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 157 consequentemente do aluno, pois além de construir o conhecimento, este deve ser preparado para produzir a sua própria consciência, que dialogará com um amplo horizonte repleto de possibilidades. Por fim, eu desejo dizer que diferente da cobra de vidro que se tornou enseada, deixar o meu país e atravessar o oceano em buscar do saber, enriqueceu‐me enormemente. Eu penso que as trocas de experiência entre os colegas de diversas formações e a possibilidade de acesso a uma vasta bibliografia marcam a minha produção. Sem falar que, o que pra mim antes parecia irrelevante, hoje tem grande importância. Eu não compreendo mais o trabalho da pesquisa sem o devido distanciamento do locus, segundo GALVAO (2012) "A grande proximidade com o outro cria uma confusão entre o eu e o outro, o outro pode se tornar refém de nossas emoções. Este estado de participação é desgastante e perigoso para a nossa própria sobrevivência psíquica", guardar essa distância permitiu que eu vivenciasse com amplitude o processo de reflexão, indispensável para o meu trabalho, fazendo de mim, laboratório de mim mesma. Referências BARBIER, J.‐M. Vocabulaire d’analyse des activités. Paris : PUF. 2011. BARROS, M. O fazedor de amanhecer. Belo Horizonte: Salamandra. 2001. CHEMAMA, R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas. 1995. CIFALI, M. «Esquisses d'un entre‐deux»,Le Coq‐héron1/2004 (no176), p.75‐88. 2004. DANTAS, H. “Afetividade e a construção do sujeito na psicogenética de Wallon”, dans LA TAILLE, Y.; DANTAS, H.; OLIVEIRA, M. K. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 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O que dizem as professoras Cledineia Carvalho Santos UNEB [email protected] Sendo o método autobiográfico o estudo de documentos pessoais narrados ou escritos que inclui biografias, autobiografias, diários, memoriais e outros este trabalho tem como objetivo refletir sobre a formação de professores no Programa Pnaic – Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa, que visa à formação de professores alfabetizadores que atuam nos primeiros anos da Educação Básica, partindo de revisão bibliográfica, bem como das reflexões provenientes dos professores a partir de seus memoriais em que expõem como veem as formações e as relações feitas entre sua vivência e práticas docentes enquanto alfabetizadores. A partir desses pressupostos, objetivamos expor de forma crítica o que pensam as professoras a fim de evidenciar a visão que este público de educadores tem a cerca do programa/ formações e da relação com a alfabetização na idade certa relacionando com a sua autobiografia em que expõem suas próprias experiências do vivido deslocando‐a para as suas práticas alfabetizadoras, pois a escrita narrativa de si propõem também uma tomada de consciência por emergir do conhecimento pessoal e das posições críticas a serem tomadas por conta dos constantes desafios reflexivos em relação às suas experiências docentes. Palavras‐chaves: Formação; Pnaic; Memória; (Auto) Biografia; Alfabetização. Introdução A formação profissional de um Programa de Formação de Professores que atuam no ciclo de alfabetização é uma oportunidade para refletir sobre as narrativas autobiográficas registradas nos memoriais, uma vez que este método de pesquisa oportuniza analisar sobre quem são e o que pensam as professoras sobre suas práticas docentes bem como observar a forma em que apreendem a relação entre suas vivências e suas atividades docentes. Assim, este trabalho situa‐se na perspectiva da formação de professores alfabetizadores no Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa – PNAIC do MEC. Programa que visa alfabetizar todos os alunos no ciclo de alfabetização na idade regular e para tanto oferece formação para os professores alfabetizadores a fim de que a partir de estudos em rede entre professores, formadores e orientadores de estudo para que o aprofundem‐se sobre os embasamentos teóricos que orienta a alfabetização como também temas mais amplos como Educação Inclusiva e Avaliação. O programa tem como estratégiasformativas potencializar a autoestima e as habilidades sociais por meio de situações que necessitem o desenvolvimento de cordialidades, gentilezas e solidariedades, favorecer a aprendizagem coletiva, de troca de experiências, evidenciando a pertinência de estratégias formativas que favoreçam a interação entre pares e desse modo refletir criticamente a respeito da prática durante o andamento da formação de forma a compartilhar boas práticas sempre valorizando as diferentes experiências. Nesse sentido, os professores alfabetizadores ocupam lugar de destaque neste processo, por isso é importante dar voz a estes personagens buscando compreender a forma como eles veem estas formações enquanto agentes ativos, capazes de construir saberes cotidianos, refletindo sobre sua trajetória e construindo novo saberes. Sobre isto afirma Souza (2006) que as abordagens biográfica e autobiográfica das trajetórias de escolarização e formação, tomadas como narrativas de formação inscrevem‐se nesta abordagem epistemológica e metodológica, por compreendê‐la como processo formativo e Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 160 autoformativo, através das experiências dos atores em formação. Para isso, é necessário ouvirmos o que dizem essas professoras*. Entretanto, sabemos que a subjetividade ocupa um lugar central como via do lugar do sujeito, do narrar de si e de que forma este sujeito enxerga o que lhe é proposto. Nesta perspectiva, o professor encontra‐se num cenário em que é pertinente refletir sobre si, como profissional e como pessoa, dado que são dimensões inseparáveis. Diante desse contexto, compreende‐se que as autobiografias podem auxiliar na identificação dos novos sentidos que os professores atribuem ao seu pensar, fazer e sentir. Analisar os memoriais desses professores, bem como suas historias de vida relacionada à sua prática docente possibilita um olhar mais humano mesmo que subjetivo sobre estes profissionais. Para tanto, é necessário compreendermos as pesquisas (auto) Biográfica e as respectivas reflexões teórico‐metodológicos uma vez que esta se centra na compreensão sobre a vida cotidiana, tensões, contradições, medos, alegrias, ações, etc. Souza, citando Ferraroti (1979), diz que suas reflexões pontuam aspectos sobe as metamorfoses, especificidades do método biográfico e as mediações sociais do trabalho com as biografias de grupos, na medida em que o homem no seu cotidiano universal pode ser tomado para análise como referência da totalidade da experiência humana, reproduzindo‐se na sua singularidade. Por isso, os estudos (auto) biográficos têm como papel principal o sujeito como sendo livre para narrar, dizer, negar, omitir, silenciar, organizar, selecionar o que vai dizer. O professor não está fora da sociedade, ao contrário tudo muda o tempo todo e é claro que isso exige desses profissionais conhecimentos mais especializados e mais abrangentes, ao tempo em que precisam aliar os estudos teóricos com suas próprias experiências uma vez que a reflexão deve fazer parte da prática do professor e assim ele poder construir sua identidade profissional. Memoriais, (auto) biografias – reflexões teórico‐metodológicas Nos últimos anos, pesquisas acadêmicas passaram a considerar as memoriais, relatos de vida, biografias, autobiografias, narrativas, ensaios entre outros como instrumentos importantes para a pesquisa científica nas áreas de humanas por considerar o sujeito de todo lugar como produtor de conhecimento (...) nesse tipo de escrita oscila entre a resistência À pressão institucional, que “obriga” o candidato a refletir sobre a história de sua formação intelectual e profissional, e o fascínio da escrita autobiográfica, que desencadeia o prazer de escrever sobre si mesmo. (Passeggi,2010, p.19) Assim, tomar memoriais de formação de professores como objeto de investigação é buscar compreender como estes profissionais compreendem as formações e as experiências docentes à medida que relatam experiências e criticam o que está posto a partir de processos culturais vivenciados. O método autobiográfico reconhece tanto os saberes formais externos aos sujeitos, quanto os saberes subjetivos e não formalizados que as pessoas transportam consigo, os quais são tecidos nas suas experiências de vida em diferentes contextos socioculturais (Delory‐Momberger, 2008). E nesta conjuntura o ser professor alfabetizador é trazer para seu cotidiano suas histórias de vida, suas memórias e sua socialização com os outros assim como salienta Bosi (1994, p.37) Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Considerando a afirmativa de Bolívar (2002) de que (...) pesquisa biográfico‐científica, no contexto de formação de Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 161 professores, possibilita compreender os modos como estes profissionais dão sentido ao seu trabalho e atuam em seu universo docente, é possível dizer que os professores trazem para sua prática docente enquanto alfabetizadores as suas experiências vivida no seu cotidiano particular. Analisar memoriais de formação é uma estratégia metodológica que visa não silenciar a memória pedagógica do professor, mas entender através de seus relatos as experiências da sua ação pedagógica, analisando seu modo de ser e pensar e repensar criticamente. Então é a documentação narrativa um arquivo produtor de saberes que promove a liberdade crítica dos docentes no processo de formação de si mesmo uma vez que sempre falamos de certo lugar configurando a construção histórica do sujeito histórico que nós somos e da capacidade de reflexibilidade é (...) processo de aprendizagem e permite a quem escreve retornos críticos sobre o desenrolar cotidiano de sua formação. (Passeggi,2010, p.23) É o memorial um mundo sem fim de possibilidades por compor um campo de reflexão crítica sobre seu próprio percurso biográfico na área de sua atuação/ formação profissional a partir de suas experiências que valem a pena contar. E mais, por meio da escrita autobiográfica, as professoras inscrevem seus pequenos poderes na sala de aula, na escola e na comunidade em que atuam. Reconstruindo o significado do magistério em suas vidas (...) (MIGNOT, 2002,p. 145). Nesse sentido, os memoriais de formação dos professores alfabetizados do PNAIC, expressam a voz desses sujeitos aqui investigados, que expõem as reflexões de si, sua relação com o outro nos seus processos formativos, nas trocas de experiências e suas práticas alfabetizadoras. Memorial de formação: instrumento de reflexão da formação profissional O memorial é um mundo sem fim de possibilidades e com várias finalidades que centra nas narrativas de formação na voz de professores no qual relata sobre suas experiências na carreira no sentido de explorar aspectos da memória e do “ser” do professor na relação com o outro e com a docência. Segundo Passeggi (2010) ele se encontra por múltiplas designações entre os quais podemos citar: o memorial, memorial descritivo, memorial reflexivo, memorial acadêmico, memorial de formação e o autobiográfico. Sendo este último, uma escrita institucional em que o autor registra reflexões críticas de sobre seu percurso biográfico na área de sua formação profissional conforme expõe Passeggi é uma escrita institucional na qual a pessoa que escreve faz uma reflexão crítica sobre os fatos que marcaram sua formação intelectual e/ou sua trajetória profissional, com o objetivo de situar‐
se no momento atual de sua carreira e projetar‐se em devir (2010, p. 21). Souza (2006) salienta que as pesquisas pautadas nas narrativas de formação contribuem para a superação da racionalidade técnica como princípio único e modelo de formação. Historicamente o memorial só poderia ser escrito pelos catedráticos, porém, a mais de setenta anos vem se construindo e se modificando de acordo com a própria transformação do ensino superior no Brasil e hoje eles são mais democráticos. E sobre isto Passeggi diz que A escrita autobiográfica já não se reserva a autores consagrados nem a pessoas lustres. (2010, p. 23). Em consonância diz Ferraroti, Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 162 O memorial tem seu uso intensificado na década de 80 do século XX, com o objetivo derenovar, metodologicamente, a pesquisa em ciências humanas, contrapondo‐se ao paradigmadominante, que tem como pilares a objetividade e a intencionalidade nomotética. (FERRAROTI, 1988, p. 19 apud OLINDA, 2008, p. 93). Frente ao exposto, o memorial de formação dos professores alfabetizadores do Pnaic, se configura como um instrumento que serve de termômetro para que possamos entender como a partir de suas escritas reflexivas e críticas elas (as professoras) compreendem e ou apropriam as formações e orientações e de como as suas experiências cotidianas interferem na prática docente enquanto alfabetizadoras, pois estes constituem registros do processo de aprendizagem e permite a quem escreve retornos críticos sobre o desenrolar cotidiano de sua formação. (Passeggi, 2010, p. 23). Dessa forma, estas professoras ao escrever seus memoriais, permitem‐se refletir sobre si tanto no aspecto pessoal como no profissional, uma vez que muitas vezes são dimensões inseparáveis. Isso pode ser afirmado no relato de uma professora quando registra em seu memorial que Ao se recordar de como foi alfabetizada, lembra que foi com muito esforço, pois seus pais não tinham noção da importância da escola e que a escola por sua vez utilizava métodos tradicionais, então quando decidiu ser professora sempre preferiu atuar neste ciclo, pois queria ser uma professoradiferente. Onde seus alunos não tivessem medo da professora. (...) que por isso busca sempre se lembrar de como foi alfabetizada para não repetir com seus alunos. Ao considerar este depoimento é possível dizer que está em um curso de formação de professores onde eles possam expor suas experiências é notamos que estas professoras falam de si associando suas experiências de vida com a profissional tornando‐as quase que indistintas. Neste sentido, a autobiografia, que se centra no passado profissional do professor e no seu mundo pessoal, é fonte de compreensão das respostas e ações no contexto presente. (Bolívar, 2002). Quanto as experiências com as formações com o PNAIC as professoras afirmamque participar do PACTO e PNAIC proporcionou‐lhes aperfeiçoar a prática pedagógica, ao apresentar práticas com ênfase nas atividades de apropriação da escrita alfabética, leitura e produção de textos e ressaltam que as trocas de experiências durante o curso com colegas e orientadora se configuram como sendo de suma importância, pois possibilitou reflexões e mudanças de suas práticas em Sala de aula. Nesse sentido Nóvoa (1988) diz que [...] repensar as questões da formação, acentuando a ideia que ninguém forma ninguém e que a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos da vida [...] Por fim, os professores, realizam o ensino com um conjunto particular de habilidades e conhecimentos pessoais, obtidos ao longo de sua história de vida particular. Sobre a alfabetização na idade certa – o que dizem as professoras? O Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa é um programa do MEC‐ Ministério da Educação em parceria com os municípios que objetiva a alfabetização em Língua Portuguesa e Matemática, até o 3º ano do Ensino Fundamental, de todas as crianças das escolas municipais e estaduais, urbanas e rurais, brasileiras eu se caracteriza, sobretudo pela integração e estruturação, a partir da Formação Continuada de Professores Alfabetizadores, de diversas ações, materiais e referências curriculares e pedagógicas que Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 163 contribuem para a alfabetização na perspectivada garantia os direitos de aprendizagem e desenvolvimento, aserem aferidos por avaliações anuais. E para que tais propósitos sejam alcançados uma das estratégias é a Formação continuada, presencial, para os Professores Alfabetizadores conforme diz o documento, Na história do Brasil, temos vivenciado a dura realidade de identificar que muitas crianças têm concluído sua escolarização sem estar plenamente alfabetizadas, assim, este Pacto surge como uma luta para garantir o direito de alfabetização plena a meninas e meninos, até o 3º ano do ciclo de alfabetização. Busca‐se, para tal, contribuir para o aperfeiçoamento da formação dos professores alfabetizadores. (MÓDULO PNAIC, Caderno de apresentação, 2012. p, 5). Frente ao exposto, salientamos que além dos alunos o professor alfabetizar é parte importante deste processo, daí a importância de entendermos a visão que estes profissionais têm a respeito da proposta ao mesmo tempo em que analisao que sentem a cerca das formações e suas perspectivas de alfabetização através de seus memoriais construídos ao longo das formações e sendo as escritas de si a arte do conhecimento estes se configuram como um termômetro para entender o que é que as professoras dizem. Sintetizando, o programa promove cursos voltados para os professores alfabetizadores que pretendem entre outros refletirem sobre o currículo nos anos iniciais do Ensino Fundamental, definir os direitos de aprendizagem e desenvolvimento nas áreas da leitura, escrita e matemática. Os fragmentos aqui trazidos parecem indicar a ótica que estas professoras vão construindo ao longo de seus relatóriosconstruindo as suas próprias concepções a respeito do que julgam importantestanto ao que tange o programa de formação com também sobre a alfabetização a partir da reflexão que vão tecendo à medida que registram suas memórias. Mediante o supracitado, sobre o programa em si, uma professora diz ser o PNAIC O maior programa de formação de professores da sua carreira e continuaafirmando que tem surpreendido a todos e principalmente os docentes envolvidos “chacoalhando” a vida dos alfabetizadores (PA1). Em conformidade com a professora anterior a PA2 diz que Participar do PACTO proporciona momentos de reflexão, interação e diversos aprendizados a cada encontro eram novas experiências que contribuíram para aperfeiçoar o trabalho em sala de aula e a PA3 diz: por muito tempo me senti insegura e ansiosa com o fato de ter alunos com níveis muito diferenciados de conhecimento em uma mesma turma, com o Pnaic descobrir a sequência didática. (...) É para nos amparar. Sempre houve muita teoria e pouco amparo. As orientações de como fazer ficavam por nossa conta. Agora, podemos trocar “figurinhas”. Prosseguindo, em outras memórias, as professoras expõem que, PA4:O Programa Pacto proporcionou‐me um crescimento significativo com relação a minha prática pedagógica e no convívio com o grupo de professores da escola em que leciono, oportunizando a troca de experiências, o trabalho em equipe, a reflexão e análise, referente à qualidade do ensino. PA5: O PNAIC contribuiu positivamente e enriqueceu a minha prática pedagógica, pois me possibilitou utilizar os conhecimentos teóricos adquiridos sobre os processos de aprendizagem e situações desafiadoras de alfabetização, pautadas no desenvolvimento escolar dos alunos. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 164 Estes testemunhos nos fazem perceber que embora sejam construções individuais, a memória coletiva se faz presente uma vez que as formações não existem sem o outro. Existe na coo‐formação citando Suárez, e como disse a PA4: contribuiu com a construção de um espaço de partilha, troca de experiência, fortalecimento dos vínculos de amizade. Nesse sentido, parece claro que oprocesso reflexivo envolve uma percepção dos momentos partilhados tanto na formação como nas rodas de conversas constituídas ao longo do processo, pois o sujeito ao lembrar‐se de suas experiências passadas, no momento de escrita, no presente, avalia o vivido tanto individual quanto o coletivo como registra esta professora, PA3: (...) o curso fortaleceu a nossa equipe de professores, uma vez que propôs várias atividades que possibilitaram momentos de reflexão sobre a prática, proporcionando conhecimento, integração, compreensão das diferenças, respeito a opinião do outro,construção e reconstrução de ideias, ampliando a visão particular de cada indivíduo. Esta fala reforça a ideia de que por mais que o memorial seja particular, a memória coletiva se se apresenta marcante no qual a professora expõe a aprendizagem constituída na co‐formação, como também demonstra como os memoriais conseguem transparecer a auto‐avaliação que estas professoras fazem de si mesmo na relação e aprendizagem com outros no processo formativo como nos diz Delory‐Momberger: A partir da narrativa pessoal, a corrente das histórias de vida traduze transpõe no domínio da formação um processo mais geral, que é aquele da maneira pela qual os indivíduos se apropriam do mundo histórico, social, cultural no qual eles vivem. [...] este processo que constitui a interface entre o individual e o social e que designei pelo termo de processo de biografização. (2011, p. 49) Ao continuar debruçando nas leituras dos memoriais das professoras alfabetizadoras é possível traçar um perfil das suas histórias de vida e como isto influenciou na sua carreira no magistério com podemos constatar nestes relatos; PA1:Quando concluir o 2º grau estava sem expectativas em relação o que fazer depois te ter feito magistério por não ter outra opção de curso, ainda não tinha descoberto minha vocação profissional. Mas de uma coisa tinha certeza não queria ser professora. Na minha cabeça fantasiava as mais belas profissões. Enfim fui contratada para lecionar na zona rural em classes multisseriadas, porém sem saber ainda da minha vocação foi os piores dias da minha vida, mas felizmente ou infelizmente meu contrato acabou e não foi mais renovado vibrei com esta notícia. Com a falta de opção (...) com o passar do tempo fui pegando gosto pela sala de aula e percebi que a profissão de professor é bela então passei a valorizar meu magistério. E foi por meios destes percalços que estou cursando pedagogiaseguindo a carreira do magistério. PA6:Embora eu tenha tido uma vida escolar relativamente agradável, um fato negativo, interessante isso, me motivou a seguir sempre em frente. Tive uma professora não me lembro de bem se foi na 3ª ou 4ª série que era bastante carrasca. Tratava‐nos de forma preconceituosa e me lembro que gostaria de ser a Emília em uma encenação sobre Monteiro Lobato, mas ela me impediu de ser “Emília” argumentando que este papel era de... (citando nome de outra colega) porque tinha condição de fazer a roupa. Esse fato foi determinante para minha postura enquanto professora. Sei que até aqui já errei e acertei, mas busca sempre a reflexão e a retomada sempre no caminho do acerto. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 165 Neste sentido o memorial serve para que o educar reflita como se tornou professora se colocando numa posição de retomada de consciência e desse modo pensar sobre sua vocação ou não e tudo isso influencia sobre sua prática docente. Podemos então dizer que os memoriais de formação potencializam a reflexão constituindo variadas dimensões seja de vida, dos caminhos e descaminhos, dos processos formativos e do exercício na docência. É possível ainda compreender como o professor, à medida que registra compreendem‐se não como mero expectador da história, mas como protagonista dela construída no cotidiano pois, Las historias de vida Del profesorado se vinculanaldesarrolloprofesional, identidadprofesional o al cambio educativo (Bolívar, 1999; 2005). Analisando os memoriais passamos a compreender o quanto as histórias de vida de cada professor são únicas e como tal irá influenciar na construção da sua identidade profissional, pois cada professor tem uma história única e trazem consigo caminhos particulares que as levaram a serem professoras. A esse respeito Dominicé (1998, p. 140) diz que a história de vida “(...)é outra maneira de considerar a educação. (...) passa pela família. É marcada pela escola. (...) a educação éassim (...) adquirem o seu sentido na história de uma vida”. Ao que tange a receptividade ao Pnaic, os fragmentos expostos nos memoriais de formação das professoras cursista demonstram uma aceitação ao programa conforme expõe a PA6 que já atua como professora da rede há 17 anos diz que participar desse curso, é uma grande oportunidade, pontuando o seguinte, O curso nos faz crescer, inovar a nossa dinâmica em planejar, repensar e conduzir a nossa prática pedagógica. Cada encontro propicia momentos de reflexão, troca de experiências que fortalecem nossas atividades pedagógicas e um novo olhar aos alunos, principalmente ao que diz respeito a heterogeneidade, principalmente sobre o tempo de cada um aprender. A cursista, a PA2 que atua nos anos iniciais da educação básica há 20 anos, destaca, De início achei que seria apenas mais um programa, mas com o Pnaic, percebo que este está alicerçado e novos tempos nos esperam para a efetivação de uma educação de qualidade garantido os direitos dos nossos alunos, que é aprender ler e escrever com autonomia nos primeiros anos escolar. Outra temática que foi analisada nos memoriais de formação das professoras do Pnaic foram as suas concepções de Alfabetização sob a ótica de suas próprias experiências de quando foram alfabetizadas e como isto influenciou na sua prática docente enquanto alfabetizadoras como podemos perceber na fala de uma das professoras colaboradoras que diz: PA6: Como fui alfabetizada pelo método tradicional, caminhei por esse caminho também. Com o tempo, com os cursos de formação, fui mudando minha postura e assim tenho buscado outras metodologias para poder enriquecer minha prática que tem como principal objetivo, fazer o aluno aprender. Podemos então, perceber neste relato a importância que esta professora concebe a formação continuada e de que forma atribui isto ao seu crescimento e podemos perceber também que a escrever no seu memorial, a professora pensa no que vai dizer, pois tem consciência que este memorial está a serviço de um programa e de que precisa demonstrar de certa forma a contribuição do mesmo para o seu crescimento. Esta assertiva compactua Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 166 com os estudos (auto) biográficos que visa à liberdade do sujeito em narrar, podendo inclusive, acrescentar, omitir, florear, enfim, selecionar o que dizer ou não. Por meio dos relatos nos memoriais, as professores revivem suas próprias experiências ao entrarem em contato com suas próprias histórias e com isto conscientizam‐
se de suas responsabilidades à medida que compreendemseu trabalho enquanto profissionais de alfabetização como podemos perceber nestes relatos: PA2:Tive uma ótima professora na alfabetização. Ela ensinava de forma dinâmica e com musiquinha e esta experiência me faz, relacionar com o PACTO que trabalha com gêneros textuais de conhecimento dos alunos e me reporta a esta professora que me alfabetizou. PA6: Pensando sobre minha alfabetização, de como fui alfabetizada, concluir que me alto alfabetizei, pois minha professora, não que ela tivesse essa consciência, trabalhava só para quem já conhecia o sistema notacional. Eu e outros colegas ficávamos à parte. Mas eu era muito curiosa e fui juntando as palavrinhas e um dia descobrir que tinha aprendido a ler. Isso me marcou profundamente tanto que busco da atenção a todos os meus alunos. Pelo menos tento. De fato os professores, são pessoas, e como tal, transfere suas experiências pessoais adquiridosao longo de suahistória de vida particular para a sua vida profissional e no caso do professor alfabetizador pensar como foram alfabetizados é muita importância, pois sem dúvida irá influenciar na sua maneira de agir enquanto alfabetizador. Assim, este profissional, ao ver‐se diante da escrita de um relatório que tem de registrar suas memórias encontra‐se numa posição em que é pertinente refletirsobre si, como profissional e como pessoa, visto que são relações entrelaçadas. Por esta premissa, entende‐se a escrita de si como uma oportunidade para os professores alfabetizadores dar novos sentidos ao seu modo de pensar e fazer o ensino nesta fase de ensino que o ato de alfabetizar. E assim, as escritas de si permitem reconstruir, documentar experiências significativas do vivido associando ao conhecimento pedagógico e consequentemente a sua pratica docente. PA1: Recordo‐me que comecei estudar com sete anos de idade onde estudei no primeiro ano fraco, depois no primeiro ano forte (era assim que se dizia). Foi onde aprendi ler sem muitos recursos. Busco não agir de forma tradicionale hoje vejo que é muito mais fácil alfabetizar e com certeza os alfabetizandos são mais inseridos no mundo letrado. Os memoriais de formação se configuram com importante instrumento de investigação da ação docente, pois neles estes profissionais oportunizam‐se escrever sobre sua vida cotidiana, suas experiências e assim criam possibilidades de construir sua identidade profissional, pois nenhum professor se tornou profissional da educação pelos mesmos motivos e por isso cada um constrói seus modos próprios de planejar e produzir suas aulas e de posicionar‐se frente os imprevistos. A escrita de si é formação. No caso destes memoriais, é como se as professoras se vissem frente a um espelho, no qual refletem sobre momentos que julgam mais importantes ou também o que querem selecionar e mostrar, pois quem escreve tem esta autonomia em sua escrita e no caso do memorial em formação serve para cumprir uma etapa da formação em serviço, então não há como fugir desta “seleção”. Passeggi (2010, p. 27) destaca que O memorial autobiográfico pode então ser definido como uma escrita acadêmica, pela qual o ator faz uma reflexão crítica sobre seu percurso intelectual e profissional em função de um Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 167 demanda institucional. E mais, a escrita de si, a autobiografia, serve para oportunizar as professoras, tornarem‐ se mais visíveis para si mesmas e assim poderem a partir deste autoconhecimento possam modificar a si e suas práticas docentes cumprindo a proposta da formação. Sobre isto podemos dizer que os memoriais é instrumento de percepção de como os profissionais relatam suas vivencias que em envolve também reavaliação de experiências proporcionando‐lhe outra forma de pensar e sentir sobre concepções cristalizadas construindo outras e outras vezes colocando em jogo passado e presente em que numa visão diacrônica desvalorizam totalmente o “velho” avaliando‐se negativamente e tentando em certos momentos se colocar em uma posição de que não age mais daquele modo. Soares ( 1991, p. 37) diz que Na lembrança, o passado se torna presente e se transfigura, contaminado pelo aqui e o agora. (...) não posso separar o passado do presente, e o que encontro é sempre o meu pensamento atual sobre o passado, é o presente projetado sobre o passado. Enfim, analisar os memoriaisde formação é compreender o quanto as histórias de vida de cada professora expõem um mosaico de entendimento de como estes educadores constroem suas ações, pois de acordo o que explana Bolívar (2002, p. 175) a autobiografia, que se centra no passadoprofissional do professor e no seu mundo pessoal, é fonte de compreensão das respostas eações no contexto presente. Tecendo algumas considerações Narrar, refletindo sobre o que se fez, é uma prática humana. (Passeggi, 2010, p.37) Diríamos mais, concretiza a verdade, mesmo que subjetiva. Verdade de quem vivenciou. E nesta perspectiva, é que procuramosanalisar os memoriais de professoras alfabetizadoras do PNAIC através da abordagem (auto) biográficao que possibilitou enxergar a humanização que estas profissionais dão as suas práticas, pois à medida que escrevem, repensavam, revisam, refletem sobre suas ações e assim mudam a si e a sua prática numa perspectiva metarreflexiva como ressalta Souza (2006) ao dizer que esta leva o sujeito uma tomada de consciência, por emergir do conhecimento de si (...) remetendo a constantes desafios em relação às suasexperiências e às posições tomadas numa visão de emancipação do sujeito. Assim, o memorial, as escritas de si medeiam à palavra reflexão no contexto dos relatórios de professores em formação produzindo conhecimento da e para a vida profissional, abrindo caminho para a transformação uma vez que compreende o professor sob a ótica da sua globalidade uma vez que aborda tudo que foi vivido. É verdade que na formação nos moldes tradicionais, a participação do professor de modo geral é minimizada e por isso, os memoriais de formação oportuniza ao professor a liberdade e a coragem de dizer o que sentem. Portanto, com o método (auto) biográfico valoriza‐se a superação do estrutural para a construção de um conhecimento que é refletido. Josso (2010, p.195) ressalta que o sujeito que constrói sua narrativa e que reflete sobre sua dinâmica é o mesmo que vive sua vida e se orienta em cada etapa. Dizer isso equivale a colocar o sujeito no centro do processo de formação. É fazer dele o escultor de sua existência. Nesta pesquisa, foi possível compreender, a partir da narrativa de seus memoriais o que pensam, o que sentem e o que dizem as professoras alfabetizadoras do Pnaic no município de Jaguaquara Bahia, permitindo trazer para o campo da pesquisa seus anseios e críticas e como relacionam suas histórias vida com a profissional ao tempo em que vai Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 168 conscientizando‐se sobre o lugar que ocupa socialmente. Esta análise traz também a percepção destas alfabetizadoras sobre o programa, sendo que este e outros são implantados sem que suas vozes sejam ouvidas. Nesse sentido, a partir das análises que aqui foram feitas, a questão central proposta foi respondida, mas ressaltamos que não é uma analise conclusiva, pois o método (auto) biográfico é subjetivo e dinâmico, portanto, outras leituras e outras escritas podem vir a acrescentar o que aqui foi exposto tanto em concordância quanto ao contrário. Referencias BOLIVAR, A. (Dir.). 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Teorizei essa prática a partir da pesquisa nos meus escritos e no das minhas alunas, pensando‐a como uma estratégia que possibilita inverter a lógica da avaliação linear, comportamentalista e conteudista, em prática de formação pessoal e conceitual, pelas narrativas que vão compondo as histórias de vida dos sujeitos expressas em diferentes gêneros textuais impregnados no Diário de Bordo. Dizer‐se em Diário de Bordo potencializa a reflexão sobre aprendizagens vivenciadas, sem engessar o aluno em objetivos externos e em resultados previsíveis às aprendizagens. Através do Diário de Bordo, possibilitamos que nossos alunos sejam protagonistas dos seus conhecimentos pela reflexão das suas vivências pedagógicas da forma como lhes são mais significativas. Os professores desejam o inesperado e possibilitam inovações pedagógicas, abrindo e ampliando o campo existencial dos seus alunos no tempo/movimento de suas aprendizagens, sem mensurá‐las. Também conseguem perceber‐se nas diferentes formas narrativas gerando uma relação de autoavaliação para todos envolvidos no processo pedagógico. Diários de Bordo são expressões das aprendizagens dos sujeitos, da sua história de vida em diferentes domínios e perspectivas de socialização do conhecimento, experienciando o sujeito e sua vida como princípios fundantes da formação, do conhecimento e da cultura. Palavras‐chave: Diários; Escritas de formação; (Auto)formação. Introdução Toda uma vida não é longa o bastante para a melhor coisa que fazemos por nós mesmos, isto é, despertar o que na mente não se esgota, que ela nunca teme e de que nunca se arrepende (...) o aprendizado. Leonardo da Vinci Escrever não é tarefa fácil, mas acredito que seja a melhor forma de refletirmos sobre o que aprendemos no nosso cotidiano. No segundo semestre de 2013, participei de duas disciplinas na UFSM, como Doutoranda, nas quartas feiras, pela manhã e pela tarde, o que foi fundamental para o desenvolvimento da minha Tese. Entre outras coisas, associo o trabalho desenvolvido com a escrita de si em Diários de Bordo, potencializando a reflexão sobre as aprendizagens, o que foi fazendo com que também refletisse em relação a minha própria formação e a sua compreensão. (Re)escrever‐se no cotidiano Começo esse estudo falando (acredito que escrever também é falar, já que propomos, ao escrevermos, uma interlocução com o leitor que vai estabelecendo relações com o pensamento do escritor ao possibilitar suas próprias aprendizagens) sobre o cotidiano. Para tanto, quero valer‐me do pensamento de Certeau (2012) que afirma que mais do que o lugar, são as relações entre os sujeitos e entre esse lugar que compõem uma cultura inventiva do cotidiano. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 170 De um lado, a análise mostra antes que a relação (sempre social) determina seus termos, e não o inverso, e que cada individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais. De outro lado, e sobretudo, a questão tratada se refere a modos de operação ou esquemas de ação e não diretamente ao sujeito que é seu autor ou seu veículo.” (p. 37) São as “maneiras de fazer” (CERTEAU, 2012) que vão transformando as coisas, as pessoas e os lugares e vão inventando o cotidiano, o fazer‐se a cada dia. Utilizo minha própria experiência como acadêmica, para estabelecer relações com a minha pesquisa de Tese e com meu trabalho como Formadora de Professores, e possibilitar o estranhamento necessário que me distancie do discurso comum, formador do objeto e que o nomeia em práticas naturalizadoras. Dei‐me conta de que também pratico o Diário de Bordo com minhas alunas nos cursos de formação permanente e que obtenho ótimos resultados. Resolvi teorizar essa prática, que já fazia parte do meu cotidiano como formadora e escrever‐me nas reflexões do meu cotidiano, acabou por ser um exercício fundamental para minha (auto)formação. A formação acadêmica acaba por seguir a formação escolar, ainda muito centrada na transmissão dos saberes e os próprios professores demonstram dificuldades em pensar e agir de outra forma, o que pude comprovar nas diferentes disciplinas que cursei desde que ingressei no Doutorado, em março de 2012. E também, pelos depoimentos das professoras alfabetizadoras participantes do meu atual grupo de formação permanente, que dizem que suas professoras até preocupam‐se em acompanhar o método da moda, mas muitas crianças ainda continuam sem alfabetizar‐se, como se, simplesmente acompanhar as propostas da moda sem saber o que se está fazendo e sem ter certeza da intenção pela qual se faz alguma coisa, fosse resolver a questão das aprendizagens. Assim como os professores de outros níveis de ensino esperam resultados previsíveis de seus alunos, estabelecendo objetivos externos a eles, também muitos professores da Universidade estão preocupados com o que deveriam ensinar, direcionando os conhecimentos dos seus alunos de uma forma linear e transmissora. Sem inovações. Sem favorecer que os alunos protagonizem seus conhecimentos. Ao contrário, nessas disciplinas de quartas‐feiras, foi o inédito que aconteceu: os professores conseguiram desejar o inesperado, abrindo e ampliando o campo existencial dos seus alunos no tempo/movimento de aprendizagens sobre nossas teses. Quer dizer, sobre nossas aprendizagens. Escrever‐se também é uma forma de aprender‐se. Nesse semestre, descobri que a escola (a Academia por extensão), não me constitui aquilo que sou, mas aquilo que me possibilita ser, redescobrindo o universo da pesquisa em educação. Ambas as disciplinas, embora articuladas e realizadas de formas diferentes, criaram um ambiente de aprendizagens favorável à nossa formação, tanto pessoal, como de pesquisadores (acredito que elas estejam intrinsecamente relacionadas), visto que objetivavam potencializar a discussão a cerca da prática de pesquisa no cenário contemporâneo. Propunham leituras de diferentes textos e a discussão de ideias e conceitos objetivando articular questões de ordem teórico metodológicas ao campo da educação, assim como outras disciplinas que já cursei. O diferencial, eu acredito que esteja na forma como as aulas foram organizadas, propondo dialogicidade entre o pensar e o fazer; na forma como os conceitos foram discutidos em sugestões de leituras, filmografias, análise de teses e Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 171 na produção de Diários de Bordo, sempre discutidos em grupo, em clima de parceria e compartilhamento, o que nos deixou extremamente à vontade para expor nossas ideias, nossas angústias e nossos projetos. Embora todos soubéssemos que estávamos sendo avaliados, percebíamos que a avaliação acontecia de uma forma natural, contribuindo com nossas produções e não, mensurando nossas práticas. Como (re)pensar práticas pedagógicas além das dimensões consensuais que obliteram a alfabetização? Em quais rituais de incorporação e de investidura (Bourdieu, 1994, p.3) realizaríamos de forma eficaz a troca dialógica, silenciosa, invisível e talvez, indizível que nos levaria a transformar nossas práticas pedagógicas em felizes movimentos de alfabetização e letramento? (Fragmento do Diario de Bordo, 2013) A efetivação do Diário de Bordo em ambas as disciplinas foi primordial para romper com a comumente utilizada lógica da avaliação conteudista que trabalha com objetivos externos aos sujeitos em coesões de universalização e homogeneização das coisas. Cabe considerar que os Diários de Bordo têm origem na navegação e no fluxo do tráfego rodoviário e aéreo, objetivando registrar os eventos mais importantes acontecidos a cada dia de translado. No caso da Educação, sua prática originou‐se a partir da necessidade de uma avaliação contextualizada nos Cursos de Educação à Distância. Atualmente, mesmo em cursos presenciais, é utilizado como uma estratégia pedagógica na qual o aluno resenha e anexa suas produções e impressões sobre a temática que está sendo explorada, apresentando seu entendimento e as relações que estabelece com e sobre o conhecimento em questão. Dessa forma, fui teorizando minha própria prática e compreendendo essa maneira diferente de fazer educação. O Diário de Bordo apresenta um grande potencial interativo porque permite a elaboração e a edição de suas informações em diferentes gêneros de textuais; e a inserção de imagens, ou mesmo, objetos significantes e significativos. Dessa forma, promove a interação e o compartilhamento, de conhecimentos, emoções, sensações e impressões. Em fim, um Diário de Bordo anuncia em si, não apenas a identidade do aprendiz, mas as maneiras de fazer cotidianas, que compõem o sujeito e estão expressas a partir da elaboração cuidadosa do que se quer dizer. Não apresenta apenas os conceitos de um objeto em estudo, mas dos significados do conhecimento elaborado a partir do que se sabe e do que se vive, que vão sendo construídos nas e pelas consequentes relações com o cotidiano. É uma forma de mediação do processo reflexivo, das ações e sobre as ações em determinados cenários ou contextos. Expõe as reflexões do autor a partir do diálogo interior, oferecendo informações pertinentes aos processos de aprendizagens e de socialização no ambiente escolar e fora dele. É a fundamentação de um instrumento de autoavaliação, proporcionando ao autor a reflexão sobre as informações que ele mesmo produziu a partir das relações com os saberes em questão. O Diário de Bordo apresenta elementos referentes aos processos de aprendizagens, mas também aponta para a qualidade desse processo e dos conhecimentos que estão sendo construídos como constitutivos da formação pessoal. Evidencia o autor como um todo, protagonista das próprias aprendizagens. Rompe com a ideia de linearidade hierárquica, apresentando uma participação ativa do aluno nos processos de aprendizagens. Permite a exploração de alternativas referentes ao ambiente e aos conhecimentos, ao tempo e ao Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 172 movimento favoráveis para a realização de inferências sobre as relações entre os diferentes saberes, e os diferentes sujeitos, estabelecendo similaridades entre ideários, facilitando descobertas de princípios, conceitos ou relações. Conforme os sujeitos escrevem sobre si e suas relações com o conhecimento, os autores rompem com a lógica linear, conteudista e estática do currículo tradicional, percebendo o conhecimento em diferentes vivências. Quando trabalhamos com o Diário de Bordo, pressupomos a existência de um currículo espiralado, que possibilita ao autor perceber o mesmo conhecimento sob diferentes aspectos, níveis de aprofundamento e formas de representação. Rompe com as ideias de estruturação, transversalidade e linearidade do currículo para percebê‐lo vivo dinâmico e relacional. Penso no Diário de Bordo como uma estratégia de (auto)aprendizagem (o que também pressupõe ensinagem) desafiadora, onde, a partir das suas percepções e narrativas, bem como da perspectiva da forma de organizá‐las, o autor aprende solucionando problemas e desafiando a si mesmo a compreender o mundo e suas relações. Conforme o autor vai elaborando o Diário de Bordo, vai atribuindo sentido ao que faz a partir da compreensão de si em relação com o mundo (conhecimento). Constrói sua identidade ao observar‐se e narrar‐se nessa relação com o mundo e que constitui as maneiras de fazer inventivas do cotidiano. Uma forma de (re)avaliar‐se em movimento (auto)reflexivo que possibilita a criação de condições para que a aprendizagem se efetive. Voltar‐se sobre si, em movimentos de autoconhecimento é narrar o indizível, o invisível aos outros que, imperceptível em um primeiro momento, transborda o conhecimento construído pelo cotidiano nas relações das próprias histórias de vida. Escrever uma Tese, é também (re)escrever‐se, pensando‐se, dizendo‐se e (re)inventando‐se no cotidiano investigativo. (Fragmento do Diário de Bordo, 2013). Escrevendo no Diário de Bordo narrativas de si, os sujeitos tornam‐se protagonistas da sua formação, o que muito me agradou na perspectiva da forma metodológica dessa disciplina. O fato de poder lidar com as possibilidades dos sujeitos e a imprevisibilidade das aprendizagens favorece a intenção pedagógica do professor. Através dos diários de Bordo e da reflexão realizada para compô‐los, fui elucidando elementos pertinentes às minhas aprendizagens protagonizando‐as em um tempo próprio e singular, articulador do movimento histórico constitutivo do sujeito. A partir das narrativas da turma, relacionadas com nossos estudos, fomos articulando diferentes momentos de aprendizagens constitutivos dos sujeitos em formação. Nessa minha vivência, no/sobre o Diário de Bordo, diretamente implicada no meu cotidiano, percebi indícios que podiam apontar os caminhos para construir um novo paradigma sobre a avaliação. Oliveira (2009), diz que ensinar não basta, é preciso proporcionar aos alunos, que vivenciem diferentes estratégias de ensino aprendizagem em situações de vivência e colaboração na construção dos conhecimentos que cada um busca para si. As aulas começaram com a presença tímida dos alunos e a orientação afetuosa dos professores. Aos poucos foi estabelecendo‐se uma dialogicidade entre o lugar e entre os sujeitos, definindo que relações seriam estruturadas e valorizadas. Criou‐se um entrelugar de cultura de aprendizagens que em linguagens, muitas vezes silenciosas, definiam‐se pela prática cotidiana de aprender e suas “maneiras de fazer” pesquisa em educação, registrando mais do que anotações da aula, mas as reflexões sobre o que se está fazendo/aprendendo. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 173 Falar sobre o cotidiano é dizer‐se em diferentes “maneiras de fazer” com que as possibilidades sejam inventadas pelo que se vai pensando e sobre o que se vai fazendo em ações articuladas pela convivência afetuosa com os outros. Registrar as compreensões dessas relações é (re)escrever‐se, em ação presente, em (auto)formação. (Auto)reflexão: memórias Se é a própria vida e eu continuo a vivê‐la, Como, simplesmente, memória? O que é memória? O que é vida? Saberia eu que o vivido tornar‐se‐ia memória? E por que estas memórias e não aquelas? Onde estarão escondidas as coisas vividas Que hoje não lembro? Memória é produção, conservação e evocação de informações e/ou conhecimentos elaborados a partir da própria experiência pessoal. À produção de memória, também podemos chamar por aprendizado. Memórias apenas adquirem sentido quando são evocadas, isto é, acessadas para serem utilizadas em ações no presente. Memória é vida fluída, é mundo vivido inventado no cotidiano. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando‐se com as percepções atuais, desloca estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 2004, p.09) Nossa maneira de agir, pensar, planejar, de realizar e de sentir, relaciona‐se, estreitamente, com aquilo que lembramos, pois aquilo que lembramos, é aquilo que sabemos. O que não aprendemos, ou o que, por algum motivo tenha ficado esquecido, não faz mais parte de nós, não nos pertence mais, não nos é identitário. A identidade de cada um vai se formando de jeitos e trajetos diferentes porque cada um tem sua própria história construída pelo que é vivido cotidianamente e pela forma como é lembrado, ou esquecido, pelos sujeitos. Somos aquilo de que nos lembramos porque também decidimos o que queremos esquecer. Somos nossas memórias. Somos o que conseguimos aprender nas diferentes formas que percebemos e nos relacionamos com o mundo, inventando e reinventando nosso cotidiano. Como diz Norberto Bobbio: “Somos aquilo de que nos lembramos” (1997, p. 30) Eu diria: Somos o encontro daquilo que lembramos com o que decidimos esquecer. Alguns pesquisadores (STERNBERG, 2008) acreditam que a memória deveria ser estudada em ambientes reais, não apenas em laboratórios, enunciando como empregamos a memória em situações cotidianas e para que, efetivamente, ela serve. A ideia é que a pesquisa em memória deva aplicar‐se a fenômenos naturais ocorrentes em ambientes naturais, para que seja concebida como uma estratégia de interação com o mundo real e possibilite a análise das aprendizagens cotidianas. O Diário de Bordo aparece como uma pertinente forma de registro e (auto)reflexão. Dessa forma, é possível vislumbrar a memória (auto)biográfica cumprindo um determinado propósito nas nossas interações com o mundo e consequentes relações com os saberes estabelecendo‐se como uma metodologia de Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 174 pesquisa. Uma pesquisa sobre nós mesmos, investigando que possibilidades de aprendizagens temos construído para nós e que significações o cotidiano e as relações intrínsecas a ele, vão proporcionando a formação do sujeito. As reflexões sobre si, buscando compreensão das dinâmicas e significações elaboradas pelas histórias de vida no cotidiano, permitem a transformação das pessoas em atores biográficos (Josso, 2010). A ideia de atores biográficos parte da concepção de que, embora as pessoas estejam inseridas em um determinado contexto sociocultural, podem protagonizar suas histórias de vida inventando‐se no seu cotidiano. Caminhar para si (Josso, 2010) permite um duplo movimento de consciência que relaciona e envolve o que é presente pelo que foi vivido no passado e que projeta perspectivas de futuro por aquilo que virá a ser. “Esse olhar retrospectivo e prospectivo estimula a reflexão sobre a responsabilidade do sujeito sobre seu vir a ser e sobre as significações que ele cria.” (JOSSO, 2010, p. 189) Através dos séculos, o relato oral sempre foi a maior fonte de dados para as Ciências, em geral, através da transmissão da palavra, isto é “experiência indizível que se procura traduzir em vocábulos”. (Queiroz, 1988, p.16) A invenção da escrita, nada mais é do que a cristalização do relato oral em registros mnemônicos. A História Oral, como é chamado agora o Relato Oral, em função de sua revalorização, é uma técnica de coleta de dados em pesquisas qualitativas que contribui com o pensamento acadêmico com sua vivacidade e fartura de detalhes que configuram os aspectos dos fatos sociais. É uma forma de registrar o que ainda não está determinado em documentações escritas e que se não for registrado, em uma sociedade contemporânea, dominadora, classista e essencialmente urbana, tenderá a desaparecer. As histórias das pessoas comuns tendem a desaparecer engolfadas pelo mundo urbano, soberano nos seus saberes, tirano nos seus fazeres, consumidas pelos desejos e apelos da urbanidade. Construir um Diário de Bordo, é transformar vozes em palavras escritas. Entendida como uma metodologia que favorece as relações entre memória e história, as Histórias de Vida interrelacionando‐se com a história do tempo em tríade, passado, presente e futuro, isto é, de um tempo que não é apenas recorte, mas movimento. E por estar em movimento, elabora mais uma dimensão, a das relações entre os três tempos, que conseguimos captar quando escrevemos. Possibilita aos pesquisadores captar o que não está explícito, talvez mesmo, o indizível que, recolhido na memória e na sensibilidade dos sujeitos expande possibilidades da compreensão do real. Vivenciar a história do tempo/movimento permite que se perceba com clareza a articulação entre as percepções e as representações dos atores biográficos e as determinações e interdependências que tecem as relações sociais e as transformações culturais. A experiência humana, pessoal/social, tem uma natureza temporal cujo caráter apresenta‐se articulado pela narrativa, em especial quando clarifica a dualidade “tempo cronológico”/”tempo fenomenológico”. (...) A perspectiva tridimensional do tempo narrado, também se apresenta no tempo pensado/vivenciado, com as ambiguidades e, mesmo, contradições no seio dessas três instâncias, passado, presente, futuro. (ABRAHÃO, 2006, p. 151) Escrever essa história tempo/movimento através das narrativas de si em um Diário de Bordo auxilia a compreender as transformações que vamos vivenciando a partir de nossas formações, realizando uma autoformação. É preciso aguçar a percepção para envolver‐se em escritas de si, demonstrando que as diferentes maneiras de fazer o/no Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 175 cotidiano é sempre resultado de uma elaboração que compreende tempo/movimento, ou seja, história sempre será uma contínua construção de nós mesmos e nós, seres inacabados. Para Freire, as relações de ensino‐aprendizagem estão relacionadas ao inacabamento de homens e mulheres no mundo. Essa característica, reafirmada por ele (1997), exige que o processo educativo escolar esteja permanentemente aberto às questões emergentes na sociedade. Que seja dialogado com elas, sem, contudo, abrir mão de suas origens, sua cultura, suas experiências, enfim, seus saberes e fazeres. (BARCELOS, 2013, p. 78) É importante ressaltar que Histórias de Vida, conforme Queiroz (1988), pesquisadora da sociologia, diferenciam‐se das autobiografias, biografias, depoimentos pessoais e das entrevistas. No entanto, em pesquisas na Educação e na antropologia, existe uma visível tendência a aproximar biografias e autobiografias das Histórias de Vida. Nas (auto)biografias e Histórias de Vida, elementos presentes na cultura de um determinado tempo‐espaço desse sujeito, podem ser elucidadores ao objeto de pesquisa. É preciso transformar o narrador em colaborador e relacionar suas histórias, saboreando‐o na construção de textos elucidadores do contexto. No Magistério, lembro de algumas professoras perguntando se tínhamos certeza que queríamos ser professoras e expunham os muitos problemas da profissão Mas o brilho que elas traziam no olhar, o desafio que se impunha na entonação, o orgulho, visível na postura ... Não tínhamos como desistir. Sim. Queríamos ser professoras. Fiz meu Magistério nos anos finais da década de 70. Às vezes, ao fundo da sala de aula de determinadas professoras, um homem de preto sentava‐
se. Olhávamos enfileiradas, muitas vezes de revesgueio, como se nossas nucas estivessem sendo perfuradas por um raio incisivo vindo de um olho superpoderoso. Mas não éramos seu interesse prioritário. Hoje compreendo melhor essa tirania, o que me fez diferente. (Fragmentos do Diário de Campo) Apesar da História de Vida ser contada por um determinado personagem e girar em torno deste, o que se busca como pesquisador/escritor são as particularidades que singularizam os sujeitos e suas trajetórias envolvidas em teias de relações coletivas. É um método que pode ser utilizado em pesquisas em Educação, que propicia analisar, esclarecer e compreender as relações coletivas que se estabelecem entre os sujeitos de determinados grupos e contextos, sendo o ponto de intersecção das relações entre o que é externo ao sujeito e o que ele carrega em seu íntimo. Da mesma forma, (auto)biografias configuram‐se, cada vez mais, como férteis espaços de conhecimento da problemática em investigação. Essa deve ser a fundamentação da avaliação: investigação para construir possibilidades. Assim conseguimos romper com a lógica de uma avaliação que mensura, para construir uma lógica formadora dos sujeitos e das suas possibilidades. Diferentemente, no processo de interpretação das informações utilizamos uma concepção em que as categorias de sujeitos são entendidas como espaço de enunciação, em que os elementos pertinentes vão se desenhando na medida da relação das narrativas com seus contextos. Esta compreensão privilegia, ao invés da estrutura amostral de uma história segundo o sentido originário dos textos ou dos elementos de profundidade de seus sentidos ocultos, o entendimento de que a origem e o sentido profundo dos textos é algo que construímos pari passu, diuturnamente. (Abrahão, 2006, p.155) Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 176 O que faz possível utilizar a (auto)biografias como metodologia de avaliação, é a fundamentação da sua análise. No caso do Diário de Bordo, as percepções dos seus autores em relação aos seus saberes e fazeres pedagógicos e sua aprendizagem. É conseguir transformá‐los em texto (conhecimento) e, assim, promover com que o próprio autor se perceba como potencial ator da dinamização das possibilidades de aprendizagens. Recorte do Diário de Bordo de uma professora alfabetizadora (2013) Professores, independentemente do nível de ensino em que atuem, esperam, na maioria das vezes, resultados previsíveis de seus alunos, estabelecendo objetivos externos a eles. Preocupados com o que deveriam ensinar, e não com as possibilidades de aprendizagens de seus alunos, direcionam o currículo de uma forma linear e reprodutora. Realizam avaliações que mensuram o conhecimento de cada um em relação ao que é pretendido pelo professor. Embora pensem em como o aluno aprende, preocupam‐se com o que querem que o aluno aprenda. E, às vezes, inventar se torna impossível. Não há inovações, apenas permitem‐se retocar seu fazer pedagógico com as nuances das propostas e metodologias da época, sem favorecer com que os alunos protagonizem seus conhecimentos e sua própria formação. Sem criatividade. Sem saberes e sem sabores inovadores. Buscar novos métodos e novas teorias, não se tem mostrado suficiente, muito menos eficiente, para alterar a prática da sala de aula, seja ela em qualquer nível ou modalidade de ensino. (Auto)Avaliação: processos de aprendizagens Avaliação é um termo muito amplo, inerente ao nosso cotidiano e que traz diferentes implicações. Inicialmente, para pensarmos avaliação, é imprescindível considerar os princípios e quais critérios são seus balizadores. Nossas práticas são imbuídas de concepções, representações e sentidos que expressam nossa forma de ver, ser e de estar no mundo. A cultura escolar ainda está impregnada pela lógica seletiva e classificatória pertinentes à cultura da meritocracia responsável pelo êxito de uns e o fracasso de muitos, nos diferentes tempos de escolarização , inclusive, na formação superior. Nesse semestre, descobri que a escola (a Academia por extensão), não me constitui aquilo que sou, mas aquilo que me possibilita ser, redescobrindo o universo da pesquisa em educação e, consequentemente, a compreensão das maneiras de fazer no meu cotidiano de Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 177 professora/formadora. Descobri que um trabalho articulado e realizado de diferentes formas metodológicas e narrativas, possibilita a criação de um ambiente de aprendizagens favorável à nossa (auto)formação. Compreendi‐me também em processo de formação intrinsecamente relacionado à formação das minhas alunas, colocando‐me no lugar de aluna e aprendendo com as narrativas delas. Fui registrando minhas considerações e emoções no meu Diário de Bordo e nele encontrei um potente instrumento de (auto)formação. Meus professores deste semestre e minha orientadora propunham leituras de diferentes textos e a discussão de ideias e conceitos a partir de diferentes estratégias pedagógicas, objetivando articular questões de ordem teórico metodológicas ao campo da educação, assim como outras disciplinas que já cursei e como em cursos que já ministrei. O diferencial, eu acredito que esteja na forma como as aulas foram organizadas, propondo dialogicidade entre o pensar e o fazer; na forma como os conceitos foram discutidos em sugestões de leituras, filmografias, análise de teses e na produção dos Diários de Campo, sempre discutidos em grupo, em clima de parceria e compartilhamento, o que nos deixou extremamente à vontade para expor nossas ideias, nossas angústias e nossos projetos. Embora soubéssemos que estávamos sendo avaliados, percebíamos que a avaliação acontecia de uma forma natural, contribuindo com nossas produções e não, mensurando nossas práticas. E percebi que também no meu Grupo de Trabalho (GT14) do Pacto Nacional pela Afabetização na Idade Cesta (PNAIC), era essa a essência da nossa formação. Como (re)pensar práticas pedagógicas além das dimensões consensuais que obliteram a alfabetização? Em quais rituais de incorporação e de investidura (Bourdieu, 1994, p.3) realizaríamos de forma eficaz a troca dialógica, silenciosa, invisível e talvez, indizível que nos levaria a transformar nossas práticas pedagógicas em felizes movimentos de alfabetização e letramento? (Fragmento do Diario de Campo, 2013) É preciso lembrar que (auto)avaliação e (auto)formação têm um espaço reduzido nas práticas pedagógicas cotidianas. A efetivação do Diário de Campo nessas disciplinas foi primordial para romper com a comumente utilizada lógica da avaliação conteudista que trabalha com objetivos externos aos sujeitos em coesões de universalização e homogeneização das coisas. Com a minha Orientadora, nos estudos realizados, o enfoque era a memória. Também no GT14 trabalhamos com Diários de Campo e com Memórias, objetivando a (auto)formação das professoras participantes desse grupo de trabalho. Mas foi apenas quando realizei esse trabalho comigo e construi meu próprio Diário de Bordo, com a intenção de redescobrir‐me em conhecimentos potencializadores da minha formação, foi que compreendi que essa seria uma estratégia perfeita para a (auto)formação, que pode ser empregada em qualquer nível de ensino, inclusive na formação de Professores, justamente porque trabalha diretamente com a autoavaliação e, consequentemente, com a (auto)formação. Penso que temos aqui, uma estratégia narrativa eficiente para a (auto)avaliação e consequente, (auto)formação. Já a pratico há alguns anos, mas apenas agora, que a vivi no papel de aluna, é que entendi sua essência e todo o seu potencial formador, assim como compreendi que é nas nossas maneiras de fazer, incorporando a necessidade de aprender e de sempre ser aluna no nosso cotidiano, que vamos nos redescobrindo, autoavaliando e Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 178 (auto)formando. Além disso, quando realizamos as socializações dos Diários de Bordo, vamos compreendendo a visão do outro sobre si, sobre nós e sobre o cotidiano. Proponho a ruptura com o senso comum naturalizado nos espaços e tempos escolares, de uma avaliação pautada em aptidões, bem como com o princípio de uma avaliação como sinônimo de mensuração, isto é, de atribuição de algum valor para os saberes que nos são próprios. O pior, a escola ainda estende essa valoração às pessoas, ignorando seus processos de aprendizagem e desmerecendo o papel do professor. E, indo além, as práticas comuns compreendem a avaliação do processo de aprendizagem desvinculada dos processos de ensinagem. Dificilmente, quando realiza a avaliação dos seus alunos, o professor avalia ao seu trabalho. Pensa‐se em processos, mas se esquecem de que processos são efetivados a partir de relações que acontecem no presente e que constroem possibilidades, não agindo de forma processual. 4 De qual avaliação estou falando: avaliação (auto)formadora Uma Avaliação (Auto)Formadora pressupõe estratégias de registro de aprendizagem (e de ensinagem) que sejam essencialmente narrativas, assim como o Diário de Bordo. A partir de estudos realizados com a orientação da professora Helenise Sangoi Antunes e baseados em teóricos como Perrenoud (1999) que apresenta a necessidade de uma avaliação formadora e reguladora do aprender e do ensinar; Abrahão (2009, 2010, 2011), Passeggi (2009, 2010) e Souza (2010, 2011), que apresentam a importância das narrativas pessoais para a autoformação e consequente formação humana; e Arroyo (2004), que prioriza a superação dos paradigmas escolares a partir das trajetórias pessoais de alunos e mestres e por todas as informações aqui expostas; minha proposta é conceber a avaliação escolar como (auto)formadora, pois entendo que essa dimensão possibilita‐se a partir do princípio da narrativa em ações criativas do dizer‐se. O Diário de Bordo inclui essa dimensão facilitando a aprendizagem tanto do aluno, quanto do professor. Expondo em diferentes formas narrativas as reflexões do autor/escritor, oferece informações pertinentes aos processos de aprendizagens e de socialização no ambiente escolar, tanto para o aluno,como para o professor. É a base de um instrumento de auto‐
avaliação proporcionando ao autor, a reflexão sobre as informações que ele mesmo produziu, tanto referente aos processos de aprendizagens, como da qualidade desse processo e dos conhecimentos que estão sendo construídos como elementos de formação pessoal. Evidencia o autor/escritor como um todo, protagonista das próprias aprendizagens. Rompe com a ideia de linearidade hierárquica, apresentando uma participação ativa do aluno/escritor e do professor nos processos de aprendizagens. Permite a exploração de alternativas (ambiente e conhecimentos) favoráveis para a realização de inferências sobre as relações entre os diferentes saberes, e de estabelecer similaridades entre ideários, facilitando descobertas de princípios, conceitos ou relações. Conforme escrevem sobre si e suas relações com o conhecimento, os autores rompem com a lógica linear, conteudista e estática do currículo tradicional, percebendo o conhecimento em diferentes vivências. Pressupõe um currículo espiralado, que possibilita aos envolvidos no processo educativo, perceber o mesmo conhecimento sob diferentes aspectos, níveis de aprofundamento e formas de representação. Rompe com as ideias de estruturação, transversalidade e linearidade do currículo para percebê‐lo vivo, dinâmico e relacional. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 179 Assim como rompe com a ideia de separar a aprendizagem e a ensinagem, amalgamando os dois processos nas narrativas que se fazem formadoras dos sujeitos e dos saberes. Não penso mais nas letras, mas em dizer‐me, pois sou fruto do meu desassossego que me delineia em experiências de amizades expressas em linguagens e corporeidades. Como assim? Se nesse movimento o outro sou eu? (Fragmentos, do Diário de Bordo, 2013) O Diário de Bordo é uma estratégia de (auto)aprendizagem (o que também pressupõe ensinagem) desafiadora, onde, a partir das suas percepções e narrativas, bem como da perspectiva da forma de organizá‐las, o autor/escritor e o professor, aprendem solucionando problemas e desafiando a si mesmos a compreender o mundo e suas relações. Voltar‐se sobre si, em movimentos de autoconhecimento é narrar o indizível, o invisível aos outros que, imperceptível em um primeiro momento, transborda o conhecimento construído pelo cotidiano nas relações das próprias histórias de vida. Escrever uma Tese, é também (re)escrever‐se, pensando‐se, dizendo‐se e (re)inventando‐se no cotidiano investigativo. (Fragmento do Diário de Campo, 2013). Escrevendo, no Diário de Bordo, narrativas de si, os sujeitos tornam‐se protagonistas da sua formação, seja ela em que nível, ou modalidade de ensino for. Conforme o autor/escritor vai elaborando o Diário de Bordo, vai atribuindo sentido ao que faz a partir da compreensão de si. Constrói sua identidade ao observar‐se e narrar‐se em relação com o mundo. Escrever‐se em diferentes gêneros narrativos é uma forma de (re)avaliar‐se em movimento autorreflexivo e contínuo que possibilita a criação de condições para que as aprendizagens se efetivem. Referenciais ABRAHÃO, PASSEGGI e SOUZA. Coleção Pesquisa (auto)biográfica e Educação. Vários títulos. Coedição EDUFRN e EDIPUC, 2008, 2009, 2010, 2011. ABRAHÃO, Maria Helena M. B. (org.). A aventura (auto)biográfica: teoria e empiria. EDIPUCRS, PoA. 2006. ANTUNES, Helenise S. Ser Aluna e Ser Professora. Um olhar para os ciclos de vida pessoal e profissional. Editora UFSM. Santa Maria/RS, 2011 ARROYO, Miguel. Imagens Quebradas. Trajetórias e tempos de alunos e mestres. 3ª Ed., Vozes, Petrópolis, 2004. BARCELOS, Valdo. Uma Educação nos Trópicos, ‐ Contribuições da Antropofagia Cultural Brasileira. 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Cuestiones sobre el acto de conocimiento: El conocimiento como epigénesis, La emocionalidad y El lenguajear como coordinación de interacciones. In: NOGUEIRA, Adriano S. Ambiência. Diálogos Freirianos e Formação docente. Líber Livro. Brasília, 2012. OLIVEIRA, Marilda Oliveira de Oliveira. O papel da cultura visual na formação inicial em artes visuais. In: Educação na cultura visual: narrativas de ensino e pesquisa.MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene (Orgs). Santa Maria. EdUFSM, 2009, p. 213‐225. QUEIROZ, M. I. Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. In: VON SIMSON (org.) Experimentos com Histórias de Vida: Itália‐Brasil. São Paulo: Vértice, 1988. PERRENOUD, Philippe. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens, entre duas lógicas. Artmed. RS/PoA, 1999. STERNBERG, Robert. Psicologia cognitiva. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2008. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 181 A história de vida do Maestro Levino Ferreira de Alcântara: uma fonte autobiográfica da área de Educação Musical do Distrito Federal Delmary Vasconcelos de Abreu UnB [email protected] Este trabalho apresenta um recorte de uma pesquisa em andamento desenvolvida no grupo de estudos e pesquisa Educação Musical Escolar e Autobiografia – EMAB que tem como objetivo desenvolver pesquisas autobiográficas relacionadas a construção da educação musical escolar no Distrito Federal – DF. O campo empírico desta pesquisa consiste na História de Vida do educador musical Levino Alcântara, percussor do movimento musical e músico‐educacional no DF. Trago, portanto, os elementos teórico‐metodológicos que fundamentam a pesquisa autobiográfica com destaque para as dimensões que tratam das Histórias de Vida. O procedimento metodológico das histórias de vida é uma busca de sentido a partir de acontecimentos vividos. Ele cria a memória entre passado e futuro, entre o fazer e o dizer. É uma prática de produção de si mesmo que contribui para que cada um tome em mãos a própria vida, tornando‐a formadora. Essa dimensão da pesquisa autobiográfica nos permite compreender a narrativa como um processo do qual o narrador é sujeito e objeto da pesquisa, uma vez que ele desenvolve um conhecimento mais apurado de si, num movimento constante de construção/reconstrução do contexto histórico, social, cultural e educacional. A pesquisa autobiográfica em educação musical se inscreve na condição humana de um sujeito que conta, por meio da sua relação com música, o que ele é, ou, poderá vir a ser. Essa visão integrada da experiência estruturada pelos contextos permite uma interpretação dos sentimentos, comportamentos e pensamentos que ocorrem com as pessoas que se relacionam com música, bem como o cenário estudado. Assim, acredito que ao descrever os caminhos construídos pelo informante da pesquisa será possível capturar particularidades que, talvez, possam explicar as dimensões que envolvem a educação musical escolar construída no DF. Palavras‐chave: Educação Musical; Histórias de vida; Fonte autobiográfica. Introdução O projeto “Construção da Educação Musical do Distrito Federal” desenvolve‐se no âmbito do Grupo de Pesquisa: Educação Musical Escolar e Autobiografia – EMAB e integra a Linha de Pesquisa Educação Musical e pesquisa autobiográfica, inserido no Programa de Pós‐Graduação em “Música em Contexto”, da Universidade de Brasília. As características deste projeto são voltadas para o ensino e a aprendizagem da música em escolas de educação básica, como um processo amplo implicado no desenvolvimento, formação e autoformação da pessoa, destacando seus entrelaçamentos com as histórias de vida. Acolhe estudos e pesquisas em educação musical que potencializam a dimensão pedagógica da experiência humana em suas interações com os aspectos educacionais, sociais, biográficos, culturais dos sujeitos e das subjetividades na sociedade contemporânea. A pesquisa que se ocupa com a música nas escolas de educação básica (Vertente I) trabalha, também, com construção de Histórias de Vida de destacados educadores musicais do Distrito Federal e do Brasil (Vertente II) em Seminários Investigativos e Fóruns de Pesquisa em Educação Musical Escolar. Em relação à Vertente I, estamos trabalhando no sentido de expandir pesquisas que agreguem objetivos que visam estudar construções da educação musical escolar, por meio de trabalhos autobiográficos de alunos de PIBIC e mestrado. No que se refere à Vertente II, que tem como objeto as Histórias de Vida de destacados educadores musicais e sua representatividade na História da Educação Musical do Brasil, em especial do Distrito Federal, no que tange à construção do vir a ser educador musical e à profissionalização docente, procuraremos avançar no conhecimento de nosso objeto de estudo para o qual as Histórias de Vida têm grande representatividade. Nesse sentido, procuramos afinar mais o aporte teórico‐
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 182 metodológico da pesquisa que emprega as narrativas e outras fontes para construir as Histórias de Vida de educadores musicais. Essa vertente da pesquisa está inserida, em forma de subprojeto, na pesquisa em rede desenvolvida pela pesquisadora Maria Helena Menna Barreto Abrahão da PUC/RS. A pesquisadora desenvolve o projeto “O sujeito singular‐plural – narrativas de vida, identidade, docência e educação continuada do professor”, que tem a abrangência de “um guarda‐chuva” que acolhe diversos projetos até o ano de 2016. Portanto, esse projeto que é da área de educação musical faz parte de uma rede de projetos interdisciplinares de diversas áreas que desenvolvem pesquisas autobiográficas. Nesse sentido, acreditamos estar ampliando o campo da educação musical dialogando com diversas áreas do conhecimento. Para este trabalho trago um recorte metodológico de uma pesquisa em andamento relacionada à Vertente II – Histórias de Vida de Educadores Musicais. O objetivo da pesquisa consiste em investigar como as Histórias de Vida de Educadores Musicais do Distrito Federal podem contribuir na compreensão de como a Educação Musical Escolar vem sendo construída no Distrito Federal. A primeira História de Vida que nos propomos a investigar foi a do maestro e educador musical Levino Ferreira de Alcântara, fundador da Escola de Música de Brasília – EMB. A escolha pelo maestro Levino se deu pelo fato deste ser um dos percussores do movimento da música em Brasília. De acordo com Matos e Pinheiro (2007), O movimento de música que resultou na fundação da EMB iniciou‐se cerca de 1960 em Taguatinga, uma cidade satélite de Brasília, quando o maestro Levino de Alcântara ingressa na antiga FEDF, fundação Educacional do Distrito Federal e começa no CEMAB, Centro de Ensino Médio Asa Branca, atividades de canto coral junto com um pequeno núcleo de instrumentos de orquestra [...] Em 1964 o maestro Levino assume no CEMEB, Centro de Ensino Médio Elefante Branco, também pertencente a FEDF, na quadra 908 Sul do Plano Piloto [...] as atividades do coral de Brasília. (MATOS e PINHEIRO, 2007, p. 214‐215) A história de vida de educadores musicais, e pesquisas autobiográficas tem possibilitado ampliar questões teórico‐metodológicas relacionadas a produção da área de educação musical no Brasil (cf. (GAULKE, 2013; LIMA, 2013; ABREU, 2011; LIMA e GARBOSA, 2012; GARBOSA et.al., 2012; ANEZI, GARBOSA e WEBER, 2012; MACHADO, 2012; LOURO, 2004; BOZZETTO, 2004; TORRES, 2003). De acordo com Souza (2007, p. 19), as pesquisas como fontes autobiográficas conferem um estatuto teórico‐metodológico para uma compreensão das práticas educativas e escolares. Assim, as narrativas do educador e maestro Levino Alcântara, se inscreve, numa perspectiva da história da educação musical no Distrito Federal, marcando a construção de uma área no espaço escolar. Como salienta Catani (2005, p. 32) “as escritas das obras autobiográficas que testemunham as relações pessoais com a escola pode ser útil como fonte para a elaboração da história da educação” musical escolar. Como pesquisadores, é imprescindível, portanto, pensarmos em algumas questões de opção teórica quando nos vemos imbricados no processo de ouvintes sensíveis das experiências de quem olha, retrospectivamente, para sua vida procurando os sentidos de suas opções. Por isso, “é pertinente a problematização metodológica, que se inicia pela reflexão sobre as formas de ouvir, registrar e interpretar as narrativas” (SOUZA, 2007, p. 66). Para tanto, apresentamos, a seguir, a concepção de história de vida com a qual estamos trabalhando nesta pesquisa. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 183 Construindo caminhos teórico‐metodológicos para a História de vida A entrada das Histórias de Vida no campo das Ciências Sociais se deu no início do século passado, na Escola de Chicago, por sociólogos que experimentaram um estudo da sociedade pelo viés das narrativas de vida de imigrantes poloneses. Pela primeira vez, a palavra dos atores sobre suas vivências era solicitada para acender à compreensão de fenômenos sociais estudados em grande escala. Atualmente, pesquisadores de diversas áreas, principalmente historiadores utilizam e coletam depoimentos de vida das pessoas locais para construir a grande História. A história de vida, que teve seu reconhecimento epistemológico no âmbito do movimento etnometodológico, defende a importância da experiência direta com os atores sociais para a compreensão de sua realidade (MINAYO, 2004). Segundo Pineau (1984), esse procedimento metodológico das histórias de vida é uma busca de sentido a partir de acontecimentos pessoais vividos. Ele cria a memória entre passado e futuro, entre o fazer e o dizer. É uma prática de produção de si mesmo que contribui para que cada um “tome em mãos” a própria vida, tornando‐a formadora. Esse procedimento narrativo permite aos sujeitos, “tomar em conjunto” os acontecimentos, os encontros que marcaram sua história, integrando‐os, pela narrativa, num contexto sócio‐histórico, cabendo a cada um deslindar sua parte pessoal daquela que emana do coletivo (PINEAU, 1984, p. 23). No trabalho de coleta de dados de história de vida, quem decide ou não o que deve ser contado é o ator, a partir da narrativa de sua vida, não exercendo papel importante à cronologia dos acontecimentos e sim o percurso vivido pelo sujeito. Ainda que o pesquisador dirija a conversa de forma sutil, é o informante que determina o “dizível” da sua história, da sua subjetividade e dos percursos de sua vida. Nesse sentido, o papel do pesquisador, no processo de recolha das fontes e elaboração do conhecimento, consiste em perceber os componentes e dimensões relevantes na vida dos sujeitos que lancem luz sobre as problemáticas construídas. Esta pesquisa foi organizada com base na história de vida do maestro Levino Alcântara, na cidade de Brasília. Optou‐se por essa abordagem pela potencialidade de diálogo entre o individual e o sociocultural, pois como afirma Moita (1995), “só uma história de vida põe em evidencia o modo como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com seus contextos” (In Nóvoa, 1995, p. 113). A entrevista com o maestro Levino Alcântara ocorreu no dia 07 de agosto de 2013 na sala do Grupo de Pesquisa EMAB, no Departamento de Música da Universidade de Brasília. Elaborei um documento solicitando a autorização do maestro Levino, que prontamente autorizou o uso das imagens e dos dados contidos nas narrativas para publicação. Esclareci ao entrevistado o motivo da entrevista e iniciei esse processo com uma pergunta geradora, em que pedia ao entrevistado para que narrasse a sua história com a educação musical no Distrito Federal. A entrevista durou três horas e quarenta e três minutos. Jovchelovitch e Bauer (2002) dizem que um bom indicador de duração de uma entrevista narrativa consiste no cerne da ação das histórias contadas. Por isso, é importante o papel do pesquisador de formular um tópico inicial adequado para que o entrevistado possa engajar uma história. Trago neste trabalho, uma breve descrição reflexiva dos primeiros achados, a partir das narrativas do entrevistado, e que farão parte do processo de construção das dimensões que emergirão das narrativas. Segundo Abraão (2004) “As Histórias de Vida constituem‐se de narrativas produzidas, por solicitação de um pesquisador, com a intencionalidade de construir uma memória pessoal ou coletiva em um determinado período histórico”. Nessa ótica o pesquisador participa da “elaboração de uma memória que quer transmitir‐se a partir da demanda de um investigador” (ibid, p. 17) Portanto, a História de Vida é uma construção da qual participa o próprio investigador. É, nas palavras da autora, “a forma máxima de implicação entre quem entrevista e a pessoa entrevistada” (ABRAÃO, 2004, p. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 184 16‐17). Ao fazer uso da pesquisa autobiográfica, com opção metodológica de história de vida, trazemos à tona um movimento de investigação sobre os processos de construção/reconstrução da Educação Musical Escolar no Distrito Federal. Interpretação das informações coletadas A partir da pergunta geradora: “Conte‐me como a sua história está imbricada no processo de construção da educação musical no Distrito Federal”, o entrevistado disse: “O seu campo [a educação musical] é muito mais importante do que a minha própria história, mas eu vou lhe contar algumas de minhas histórias, posso?”. Indagou‐me Levino, parecendo pedir permissão para fazer narrativas de si, e prosseguiu contando: “Foi uma luta... Em 1962 me mudei para Brasília. Fui convidado pelo pai do Ataíde, o atual diretor da Escola de Música de Brasília. A Secretaria de Educação queria que eu ensinasse música na escola, fizesse coral nas escolas”. Embora conhecido como maestro, Levino contou que para assumir o ensino de música nas escolas foi “nomeado como professor” em uma escola da rede pública de ensino de Brasília. Levino lembrou que “foi um amigo do Rio de Janeiro, da escola do Vila Lobos que fez o convite pra ficar na escola elefante branco. Ele estava indo embora de Brasília e ele me chamou pra trabalhar com a educação musical nas escolas”. Em seguida disse com expressão firme: “A educação musical não é nova na escola, só tiraram do currículo. E isso é um problema... É uma luta”. Das memórias de sua juventude são trazidas algumas cenas de estudo, trabalho e amizades construídas ao longo da sua vida: “Fui para o Rio de Janeiro. Eu lia muito, estudei no Rio e fiz vestibular. Fiz curso de educação musical com Vila Lobos”. O maestro lembrou ainda de cenas de trabalho com Vila Lobos, e disse: “Guardo lembranças de grandes professores como Vila Lobos. Ele participou de minha história, da minha vida. Ele tinha coral de mil vozes. Criei um coral que cantava em todo canto do Rio de Janeiro. Regi o Brasil todo, São Paulo, Belo Horizonte, Bahia...”. Além de sua formação e profissionalização na área de regência coral, o maestro Levino contou que também se especializou em regência de orquestra: “Dirigi a orquestra sinfônica. Eleazar me chamou e minha vida mudou. Fui ensinar a quem precisava. Na orquestra que criei, tinha um menino que tocava trompa, João Jerônimo que hoje mora na suíça”. Regendo coros de mil vozes pelo Brasil, Levino passou também pelo Estado de Goiás, sua última parada antes de se mudar para o Distrito Federal e lá construir uma nova história. O maestro contou que “viajava o Brasil de trem levando o coro e juntando pessoas nos lugares que chegava para fazer coral de mil vozes. Imagine a cena de tantas pessoas viajando juntas sob minha responsabilidade?”, indagou Levino expressando na face sua autoconfiança. Uma pessoa que pela experiência e trajetória de vida sabia como fazer para que a música se tornasse de fato um acontecimento pelos lugares que passava. Mas, como narrou Levino, foi em Goiânia que sua vida tomou novos rumos: “Fiz concurso em Goiânia para poder ensinar coral nas escolas. Tornei‐me professor de música do colégio estadual de Anápolis. Eu era regente de coral nessa escola”. Uma vez conhecido no Brasil e no Estado de Goiás, divisa com o Distrito Federal, foi inevitável surgirem convites para que o maestro Levino viesse atuar em Brasília. Na efervescência da criação e inauguração da capital federal em 1960, o movimento musical que estava apenas começando insere em seu rol de músicos e educadores musicais de destaque o maestro Levino Ferreira de Alcântara como um dos protagonistas da história da educação musical de Brasília. Das narrativas que elucidam acontecimentos relacionados a maneira como a educação musical escolar tem sido construída no Distrito Federal Levino narrou o seguinte: “Veja bem, um amigo do Rio de Janeiro, que dava aula na escola pública Elefante Branco me convidou para ficar em Brasília. Ele ia embora e me chamou pra ficar aqui. Ele foi meu colega na escola do Vila Lobos”. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 185 Levino deixou‐se contar como foi o processo de sua inserção como professor de música na rede pública de ensino do Distrito Federal: A Secretaria de Educação queria que eu ensinasse música nas escolas. Fiz concurso e passei. Eu hoje sou aposentado com salário de professor. Fui nomeado professor de música em uma escola pública de Brasília, na escola Elefante Branco, mas eu não quis o plano piloto. Eu quis Taguatinga porque lá não tinha nada especial nas escolas. Comecei a fazer meu trabalho de base. Criei o coro madrigal com professores, alunos e serventes da escola. Chamava‐se coral de candangos. Esse trabalho nas escolas foi chamado de programa de educação musical nas escolas. O programa de educação musical nas escolas de Brasília consistia, segundo Levino, do ensino e aprendizagem musical de canto coral. Ele disse que “formava coral nas escolas e juntava‐os em apresentações na torre de TV. Eram mais de quatro mil crianças cantando, fora o madrigal”. Ao refletir sobre essa experiência o maestro disse o seguinte: “Todo domingo tinha concerto. Eu apresentava toda semana que era para o povo ouvir. Se o povo não pode ouvir como vai gostar de ajudar as escolas, me diga?”. O maestro disse que esse programa “durou oito anos”, e narrou como fez para manter o programa educação musical nas escolas durante esse tempo: Em cada colégio e em cada cidade satélite eu coloquei um piano e dois professores. Eu não deixava Brasília sem coral cantando em todo o canto. Os que cantavam em outros corais passaram para o meu coral, porque o coral dos candangos cantava tão bem que todos queriam entrar. Eu tinha de trabalhar um nível entre eles. Criou‐se até um constrangimento, mas o meu era bom. Fiquei oito anos nesse programa. Esse grupo foi aperfeiçoando. Fiz com o coral madrigal toda a historia da música e de Brasília. Passou por mim a Vanda Odicica, o Ermelindo Castelo Branco, tenor e pianista, o Nei Matogrosso. Recebi o papa há 30 anos com coral de 300 vozes cantando em uma missa. Trabalhei demais. Foi uma luta de crédito. O maestro Levino Alcântara, que finalizou a narração desse episódio com as palavras “foi uma luta de credito”, retomou‐a depois de uma pequena pausa, e esclareceu: “Foi um luta de crédito, mas também de algumas perdas. O tempo da revolução botou abaixo o projeto. Se tivessem continuado aquele programa, teria menos assaltantes hoje”, ponderou de forma reflexiva. Em seguida, acrescentou com certa altivez: “Mas esse programa também me levou a pensar em criar uma escola de música para formar professores para ensinar nas escolas. Criei a Escola de Música de Brasília”. “Criei a Escola de Música de Brasília para ser um centro de formação de professores de música para ensinar nas escolas” O melhor termo para definir Levino Ferreira de Alcântara poderia ser o que Ferrarotti (1988) chama de “universal singular, tendo sido totalizado, e assim universalizado pela sua época”, um homem que pela singularidade universalizante dos seus projetos se tornou a própria história da educação musical escolar do Distrito Federal. Levino totalizou por meio de seu contexto social os pequenos grupos dos quais fez parte. A esse respeito Levino disse: “Consegui enquadrar todos os grupos do Distrito Federal e criei a Escola de Música de Brasília. Invadi um terreno do governo e Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 186 coloquei uma placa com o nome da escola. Criei a Fundação Escola de Música de Brasília. E começamos com um núcleo instrumental”. O maestro procurava chamar a atenção das autoridades para o seu trabalho “sempre tocando e cantando, até que o governador vendo aquilo aprovou a construção do teatro da escola. Da ferradura nasceu um concreto, uma concha acústica, um teatro. Comprei livros e obras de arte em Buenos Aires. Fiz viagens internacionais para falar do meu trabalho”. Para iniciar as atividades da escola, Levino contou que buscou trabalhar em parceria com as “embaixadas dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha”. Ele disse: “iniciei com professores que a embaixada nos ajudava. Coloquei o primeiro grau e o curso profissionalizante. Todo ano eu mandava meninos para estudar lá fora”. Embora essa parceria com as embaixadas tenha trazido bons resultados, Levino contou com certo pesar que enfrentou alguns problemas com relação à contratação de músicos‐professores: “Dei emprego para músicos internacionais. Arrumei empregos para músicos que fugiam da guerra, mas haviam muitos aproveitadores. Por que não trabalhar junto? Planejar junto? Esse foi o problema que enfrentei”. A criação da Escola de Música de Brasília foi para Levino “uma maneira de formar professores pra trabalhar nas escolas. Era muito trabalho. Com o tempo passei a orientar os professores em um programa de ensino. Isso acontecia toda quarta‐feira”. A formação desses profissionais para atuar como docentes em música ocorria na própria Escola de Música de Brasília, tida pelo maestro Levino como “centro de formação de professores”. A esse respeito ele narrou o seguinte: “Nunca botei o cara pra ser professor por que tinha título, mas pelo o que ele era. Eu não queria que repetissem o que faz a universidade. Eu queria o conhecimento e a experiência deles”. Para Levino a formação musical nasce da experiência dos indivíduos. Ele acredita que “a universidade não considera a experiência da pessoa e isso é um problema”. Isso remete as palavras de Delory‐Momberger (2008) que acredita ser necessário que as instituições formadoras desenvolvam uma concepção global da formação, de forma que, ao lado dos saberes formais e externos ao sujeito, aos quais visa a instituição universitária, devam estar os saberes subjetivos e não formalizados que os indivíduos utilizam na experiência de sua vida, nas suas relações sociais e na sua atividade profissional (DELORY‐MOMBERGER, 2008, p.90‐91). O maestro Levino acredita que formar pessoas “é estar ali junto, cara a cara estudando de verdade, preparando para lutar por esse país”. Para aclarar essa ideia, Levino contou a seguinte história: Quando Dom João chegou ao Brasil, encontrou um mulato chamado José Mauricio, filho de escravo, criado no orfanato. Ele começou a estudar e escrever música. Estudou para padre para enfrentar os problemas da época porque era negro. Assim, tinha como se inserir socialmente e lutar. Ele tinha uma causa. O fio condutor da história de vida de Levino é tramado pelas suas lutas espelhadas na de outras pessoas. Sua história expressa às tessituras que conferem legibilidade e visibilidade às suas causas. Para ele, a formação de pessoas deve estar embrenhada de causas. Disse ele: “Devemos lutar muito para salvar esse país, pois Prefeitos que entram sem formação. É preciso aumentar o número de cursos com qualidade. É um pena um país com tanta inteligência e capacidade, e ninguém estuda direito. É tudo mais ou menos”, finalizou movimentando a cabeça sinalizando certo descontentamento. Desse descontentamento brotaram as seguintes palavras: “Os jovens precisam acreditar em si mesmo para saber que vão influenciar outras pessoas”. A crença em formar pessoas “para pensar um mundo melhor deve‐se iniciar pelas crianças”, afirmou de forma veemente. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 187 Em tom de desabafo, o maestro trouxe lembranças relacionadas à política e seu trabalho com crianças. Ele disse: “a política da época era da ditadura militar. Eu não tinha nada com política. Eu trabalhava com as crianças. Ajudei, sugeri, lutei, mas fui traído”, pontuou de forma conclusiva. Ao falar da sua visão atual sobre a Escola de Música de Brasília e Secretaria de Educação, Levino disse: “Hoje a minha relação com a Escola de Música é só a de dar conselhos. Se me pedirem conselho eu dou, porque acho que tinha de ser diferente. Pensar na criança, e não ficar fechado”. Com relação a Secretaria de Educação, Levino acredita que “se a secretaria tivesse concordado... Eu queria criar o ensino de música de tempo integral... Se tivesse deixado... Nem vou falar....” ponderou reticencioso. Em seguida falou sobre suas justificativas, ou seja, os motivos que o levaram a querer implementar um projeto de música para crianças em tempo integral. Assim narrou sobre o assunto: “Eu tinha um sistema para atender aos finais de semana. Eu queria uma orquestra para educar crianças. Orquestra sinfônica? Não! Meu foco era educação musical. Minha preocupação era a criança. Ou nos preocupamos com eles ou não salvaremos esse país”. Para Levino a formação começa por “preparar professores para atender as crianças e suas necessidades. Eu tinha uma menina que nasceu com problema na mão, tinha problema de ritmo, mas tinha vontade. Isso é fabuloso, extraordinário!”, exclamou com orgulho ao falar dos resultados alcançados no ensino e na aprendizagem da música de alunos que passaram por suas mãos. “Hoje”, disse ele, “tenho alunos concursados como músicos e professores. Isso é fabuloso. Outros que são médicos e têm me ajudado no tratamento desse câncer”. Expressando otimismo, persistência e determinação, Levino disse: “Hoje venho a Brasília por causa do meu tratamento de câncer e do CIVEBRA45. Que seria se não tivesse descoberto, heim? Nunca senti nada, to sentindo agora. O remédio é forte pra burro. Estou tomando providencias pra ficar bom”. Essas providencias, tomadas por Levino, explicitam a vontade em dar continuidade ao seu projeto de vida. “Não posso perder tempo, o meu projeto é continuar educando crianças” A história de vida contada por ele mesmo mostra o quanto Levino tem consciência de si, de sua formação e autoformação como pessoa e músico experiente. O projeto de si tem sido construído desde a mais tenra idade, mas foi em 1974, por ocasião da inauguração da Escola de Música de Brasília, que o maestro projetou o seu futuro narrando o seguinte episódio: Parei de dar aulas. Coisas ruins aconteceram. Aposentei como funcionário público. Aposentei e deveria ir embora. Em 74 inaugurei a escola e comprei uma fazendinha, um lugar para ficar depois de aposentado. Fiz a fazenda para viver a vida lá. Plantei árvores, fiz um pomar para os passarinhos terem o que comer. Fiz um açude de peixes na fazenda. Na construção da Escola de Música de Brasília eu construí tanques de peixes para os pais levarem seus filhos para ver os peixinhos e poder ouvir as músicas tocadas na escola. Os peixes continuam... Eles estão no açude não para pescar, mas para viver. Como protagonista de sua própria história, o maestro Levino se coloca não como ator, mas autor de uma vida projetada. Ter um projeto de si consiste em tornar‐se autor de uma vida vivida com consciência. Isso significa dizer que o mundo necessita de autores de si para tornar‐se um bom lugar para se conviver. Construir um pomar para os passarinhos, açude para os peixes e uma escola de música para crianças no sul do Estado do Pará pode‐se dizer que Levino constrói a sua história integrada à vida. Depois de reger “o Brasil todo” e fazer história no Distrito Federal, Levino conclui: “Estou começando agora”. Com espírito de um visionário, o maestro contou que desenvolve um projeto no 45OCursoInternacionaldeVerãodeBrasília–CIVEBRA,criadoporLevinoFerreiradeAlcântara,é
realizadopelaEscoladeMúsicadeBrasíliahá35anos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 188 sul do Pará com a finalidade de atender um grande número de crianças no fazer musical: “trabalho pelos 15 municípios porque o Pará vai ser o estado do futuro”, afirmou Levino. O “estado do futuro”, supramencionado pelo maestro, pode ser comparado ao seu jeito de enxergar o mundo. Levino define o lugar em que está como um espaço de possibilidades, cujas ações são produzidas de acordo com o potencial que cada situação se apresenta. Schaller (2008, p. 70) afirma que, esses espaços que não se fecham, mas tornam possíveis que a inteligência individual e coletiva caminhe com a mobilidade que o próprio espaço permite. As narrativas mostram que os lugares por onde Levino passou deixaram rastros. Sendo assim, é preciso assumir‐se imbricado ao lugar para construir o seu vir a ser. O maestro Levino Ferreira de Alcântara deixou‐se dizer que o seu projeto de vida consiste em trabalhar com as crianças. Ele disse: “Quero acordar as crianças com concertos de Haydn. A criança precisa aprender a ser e não a ter. Ter é consequência do ser. Ela também precisa estudar uma língua estrangeira”. “No futuro”, disse Levino: “o sonho é trabalhar com as crianças de Conceição. Montando a história do Pedro e o Lobo para despertar o gosto pela orquestra. Quero levar cursos de uma semana com professores convidados para ampliar o conhecimento dos alunos de Conceição”. Em tom conclusivo, Levino disse ainda que vai “recorrer aos antigos amigos para ajudar as crianças. Vou fazer um concerto no dia das crianças, um concerto para crianças”. Por fim, disse com voz firme: “Eu não posso perder tempo”. “Gosto de contar minhas histórias, por causa das crianças” Muitos foram os fios que se tramaram na construção deste trabalho, porém a altivez de Levino mostra uma história de vida entrelaçada de lutas, determinação e uma concepção de educação musical integrada a vida. O maestro acredita que um país se torna melhor quando o seu projeto está calcado na educação de suas crianças. É por isso que Levino ao fazer narrativas de si produz uma história de luta. Um homem que desafia lugares, tempos e espaços, convocando pessoas a construírem uma educação musical de qualidade e para todos. A narrativa produzida por Levino Alcântara exprime pontos de vista sobre o que e qual educação musical ele acredita. Para ele a natureza da educação musical escolar consiste na tradição herdada pelo modelo construído por Vila Lobos, isto é, promover o ensino de música através de coros e orquestras escolares com o objetivo de levar música para o povo. O maestro acredita que essa retroalimentação poderá sensibilizar os ouvintes a defender o ensino de música na escola de forma mais consistente e permanente. Muito embora, como afirma Arendt (1997), o problema da educação contemporânea reside no caminhar em um mundo não estruturado nem tampouco mantido coeso pela tradição, para Levino a falta de tradição parece ser “um problema [...] As universidades estão muito modernas [...] Ninguém estuda de verdade, é tudo mais ou menos [...] Na Escola de Música de Brasília o estudo está muito misturado, é o popular com o erudito...”. Para o maestro o estudo da música deve ser estruturado por níveis de conhecimento, mas sem perder de vista as experiências adquiridas ao longo da vida. A história de vida musical de Levino Alcântara caracteriza‐se por uma narrativa pessoal, entretanto, os acontecimentos vividos, principalmente no Distrito Federal deixam entrever a passagem de um sujeito singular para um relato plural. É nessa pluralidade que se apresenta a experiência de uma coletividade, especificamente, a construção de uma educação musical escolar centrada no ensino de instrumento, ou, pelo menos, na ideia de preparar a criança para tocar um instrumento musical. Muitos personagens secundários a história de vida de Levino Alcântara como Vila Lobos, Eleazar de Carvalho contribuíram para a sua formação em educação musical com vistas a inserir todas as pessoas em igualdade de oportunidade para que aprendam música. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 189 Da sua autoformação em educação musical evidencia‐se a história de um protagonista cujos princípios filosóficos influenciaram e continuam influenciando pessoas e instituições de ensino no Distrito Federal a promoverem uma educação musical escolar cujos princípios pedagógico‐musicais consistem no ensino e aprendizagem de instrumentos para formação de grupos orquestrais. Uma vez concluída a entrevista narrativa com Levino Alcântara, Jerusa, sua secretária, apanhou o chapéu azul preto e entregou‐o à Levino, que parecia querer começar um novo episódio. Ele disse: “Encontrei Jerusa há muitos anos atrás. Uma menina magra, trabalhando num cartório. Era uma menina religiosa. Estudou música comigo”. Jerusa respondeu docemente: “Não foi o senhor que me encontrou, fui quem encontrei o maestro”. Parafraseando as palavras de Jerusa, dirigidas ao maestro Levino Alcântara, é possível afirmar que, não foi Levino que encontrou uma educação musical no Distrito Federal, mas foi a Educação Musical do Distrito Federal que encontrou em Levino um modo de se constituir. A gênese da Educação Musical do Distrito Federal está imbricada a História de Vida de Levino Ferreira de Alcântara. Considerações Finais Nesta pesquisa tive como objetivo apresentar o método investigativo – Histórias de Vida como conceito teórico‐metodológicos utilizados na investigação como a educação musical escolar está sendo construída no DF. O campo empírico desta pesquisa é constituído pelo maestro e educador musical Levino Ferreira de Alcântara, um dos percussores do movimento musical e músico‐educacional nas escolas do DF. Nossa contribuição, neste momento da pesquisa, consiste em sintetizar os elementos teórico‐metodológicos que fundamentam a pesquisa autobiográfica com destaque para as dimensões que tratam das Histórias de Vida de educadores musicais. Essa dimensão da pesquisa autobiográfica nos permite compreender a narrativa como um processo do qual o narrador é sujeito e objeto da pesquisa, uma vez que ele desenvolve um conhecimento mais apurado de si, num movimento constante de construção/reconstrução do contexto histórico, social, cultural e educacional. Como investigação a história de vida contribui para retratar um recorte histórico, ou uma época vivenciada pelo investigado. Os recursos das histórias sobre suas trajetórias de formação e atuação favorece analisar as situações vividas, compreendendo as suas influências. Isso pode ampliar o campo da educação musical e possíveis implementações de políticas de formação do sujeito com ênfase na história de vida em formação, envolvendo a capacidade de lidar com diferentes saberes de diferentes grupos presentes no contexto em que o sujeito está inserido. No sentido epistemológico, podemos dizer que é ressaltando a relevância da subjetividade, da tomada de consciência do sujeito, dos saberes construído pela pessoa no seu fazer pedagógico‐musical diário, que vamos ampliando o nosso objeto de estudo, isto é, a área de educação musical. Os resultados apontam, na experiência de vida de Levino Alcântara, princípios de ação em educação musical. Esses princípios sugerem caminhos para aprofundamentos de pesquisas na área de educação musical que, por meio das pesquisas autobiográficas, possam contribuir na ampliação do seu objeto de estudo. Assim, acredito que ao descrever os caminhos construídos pelo informante da pesquisa na área de educação musical escolar, será possível capturar particularidades que, talvez, possam explicar as dimensões que envolvem a educação musical escolar construída no DF. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 190 Referências ABRAHÃO, Maria Helena M. B. Memória, narrativas e pesquisa autobiográfica. In: ______. História da Educação (ASPHE). Pelotas: Editora da UFPel. v.14, n. 1, p. 79‐95, 2004. ABREU, Delmary Vasconcelos. Tornar‐se professor de música na educação básica: um estudo a partir de narrativas de professores. Tese (Doutorado em Música). Programa de Pós‐Graduação em Música, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. 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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 192 Subjetivação nas dobras da produção de si: como se vem a ser professor de filosofia Elenilda Alves Brandão UESB/Campus Jequié [email protected] Esta investigação transcorre o percurso das questões reflexivas sobre como se vem a ser professor de Filosofia: contribuições, dobras, processos de subjetivação que produziram/produzem este ser/sendo educador em sua prática. A formação nas vielas da singularização e agenciamentos na produção de si, isto é, constituição do ser enquanto professor de Filosofia. Esta vinculada ao Curso de Pós Graduação em Filosofia Contemporânea da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia –UESB. As memórias dos sujeito em estudo, como profisional da educação, graduados e atuantes na área de Filosofia da rede estadual e municipal de Ibitrapitanga‐BA; coprotagonistas de aulas da disciplina para alunos de escola pública do ensino fundamental II e médio. Cercos, redomas, experimentações articulados às historias de vida destes educadores, identificando marcas e momentos "charneiras", onde se encontraram resonâncias capazes de fazerem emergir demolições/edificações nas trajetórias/ações pedagógicas exercidas por estes educadores, cujas práticas fizeram e fazem emergir o professor/sustentador de voôs dos seus educandos. As fontes (auto) biográficas reveladas nos processos de narrativas de si: memoriais, história de vida, entrevista semi estruturada, espelhos do sujeito/educador, objeto vasculhado em seus processos de subjetivação, produziu‐se professor instigador, motivador, sacudidor, intrigueiro, capaz de despertar em seus educandos a curiosidade e inquietação necessária ao estudo de Filosofia, vôos portanto. Calçada sob a ousadia da hermenêutica nos pressupostos teórico metodológicos nas linhas da autopoiética esta mergulhada no campo das práticas educacionais, vislumbradora de uma análise mais aprofundada na relexão/ação estruturada nos processos da memória projetiva, instigadoras de devires na constituição do ser que se escolhe professor de Filosofia. Palavras‐chave: Subjetivação; (Auto) biografia; Professor de Filosofia; Autopoiética. Nas entrelinhas da subjetividade: a proposta “O caminhar para si se faz e refaz informado pela reflexividade, resultante de um movimento autopiético.” ABRAHÃO (2013, p. 10) A tradição filosófica ocidental abriga o sujeito dotado de "natureza humana", bastando existir para ser‐lhe atribuída uma essência, contudo, este sujeito tomado na concepção deleuzeana, DELEUZE, (2001, p. 113) “O sujeito se constitui no dado”, desta forma, o contexto vivenciado, experienciado, na realidade sociocultural onde as escolas e os sujeitos da educação (alunos, educadores, pais, comunidade), estão inseridos é o que o constitui como seres plurais e não homogêneos. Nestes termos é que a análise desses sujeitos é tomada. A partir das realidades vivenciadas em seus processos formativos e constitutivos de si. Um resgate das experiências edificadoras, demolidoras. Negando toda concepção de inteireza onde o sujeito é objeto pronto e imutável. Rastrear processos de subjetivação onde a formação acontece num fluxo ininterrupto. E o que é dado ao professor de Filosofia como fim de constituir‐se? Um sistema educacional intrujado em vias de regras rígidas, não deslizantes, embreadas num poderio constituinte que produz alienação e produção homogênea dos sujeitos. PEREIRA (2013, p.41) "O sujeito é produto construído a partir do engendramento dessas zonas de subjetivação, espécie de bolsas de forças entrelaçadas que se estabelecem no diagrama geral no sentido de transfigurar uma forma visível". Compreender tais engendramento e posicionar‐se como ser de ação torna‐se então um desafio dado. Uma realidade social onde até mesmo a produção da subjetividade é vigiada e ditada Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 193 a fim de que o poderio constituinte capitalístico continue a manifestar‐se nas formas de ser e viver dos sujeitos. Uma varredura às formas de subjetivação onde o sujeito percorre as suas próprias trilhas e ainda que projetado num campo de forças coesivas como os modelos educacionais vigentes, projeta‐se como se capaz de escolher‐se professor de Filosofia. Desta forma, um breve olhar sobre o processo formador deste grupo de professores de Filosofia de uma Escola pública do interior da Bahia‐ Brasil efetiva‐se na busca por processos de subjetivação instauradores e não homogêneos capazes de fazerem emergir o ser individuando‐se na realidade social dada nos processos de produção de subjetivação. ROLNIK (1997, p. 4) “A subjetividade tende então a ser tomada por uma inquietude que a impele a tornar‐se outra, de modo a dar consistência existencial para sua nova realidade sensível.” Neste contexto, ampliado nas lentes de Rolnik (2007), pairamos sobre os processos de subjetivação onde se produzem subjetividades capazes de impulsionar o sujeito a desorganizar‐se como ser concreto e pronto para ajustar‐se à sua forma atualizada na realidade existencial sensível. Neste ínterim, o sujeito vai compondo‐se no processo de individuação, concepção que tem na constituição do sujeito seu foco principal de sustentação. Conforme descrita por JUNG (2007, p. 61) "A individuação é um processo central no qual o ser humano evolui de um estado infantil de identificação para um estado de maior diferenciação e ampliação da consciência". Diante de uma formação acadêmica, muitas vezes totalmente distante da realidade observada na sala de aula, o professor de Filosofia cria outras perspectivas para o ensino, mesmo que de maneira solitária, mergulhada numa realidade onde nem sempre os alunos estão solícitos às reflexões filosóficas. Assim, o indivíduo se identificaria menos com as regras do meio em que vive e mais com as orientações emanadas de sua essência. Neste contexto o indivíduo vasculha‐se a si mesmo e projeta para o exterior formas de compreensão do mundo pautadas nas regras e modelos capitalísticos. Passa a compor seu próprio fluxo de reflexão‐compreensão‐ação, ousando induviduar‐se na realidade dada na sala de aula. Não tem mais a preocupação de reproduzir modelos e movimentos propostos, ousa ser quem é e ao assumir‐se como tal, cria e evolui dentro do seu próprio modo de produção de si. Neste caminho não há verdades incontestáveis, uma vez que o ser ao escolher‐se professor de Filosofia participa de modo não opcional do processo apresentado por SIMONDON (2007) De forma geral, individuação é o nome dado a processos pelos quais os “indiferenciados” se tornam “individuais” ou a processos em que componentes “diferenciados” se tornam “indivisíveis” como um todo. Através desse processo, o ser/sendo professor de Filosofia passa a identifica‐se menos com as condutas e valores encorajados pelo meio no qual se encontra e mais com as orientações emanadas do Si mesmo. Ao invés de relações previsíveis, imóveis e dependentes, como as das máquinas na fábrica, o professor de Filosofia cria‐se, edifica‐se, demoliza‐se, reconstrói‐se, driblando o lugar comum do currículo proposto. DELEUZE (1996, p 94) "Participa de um processo de demolição constante, movimento permanente de individuação". Em sua formação permanente, na realidade dada das salas de aula, vai experienciando, modificando, evoluindo com o outro em direção a Si mesmo. O ser individuado não é um recorte do ser, mas, uma fase dele. Como compartilha DELEUZE (1996, p. 44) "O devir é o modo de ser do ser". O colapso ou resolução imediata Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 194 produz individuação. Cada fase ou patamar atinge um equilíbrio metaestático e possui um potencial de criação de novas formas ou de invenção de novas soluções sem, no entanto, eliminar as antigas, SIMONDON (2007, p. 55 “O indivíduo é individual e continua a se in‐ dividuar”. Desta forma, ao escolher‐se professor de Filosofia abriga no ser um devir permanente. Devir então, é o estado de ser próprio do sujeito que se escolhe professor de Filosofia, no processo de individuação que o projeta no fluxo da modificação de si, depara‐se constantemente com a defasagem com relação à sua própria constituição e o caminho para a atualização permanente é por vez carregada de tropeços idas e voltas, retornos, reviravoltas, tomadas e retomadas, organização e desorganização constante. Nem melhor, nem pior, diferenciando‐se, segue. O estado metaestático instituído por Simondon vem da própria constituição do ser enquanto sujeito que se individua e traz da sua realidade pré‐individual a condição permanente de individuar‐se. Pode‐se então compreender o estado metaestável do ser a partir de SIMONDON (2007, p. 67) “O regime da metaestabilidade, fronteira entre o estável e o instável, não só é mantida pelo indivíduo como também carregada com ele, de maneira que o indivíduo constituído transporta consigo certa carga associada de realidade pré‐ individual (reservatório de possíveis).” Tomado pelo devir permanente o sujeito segue o seu processo de subjetivação em sua composição do ser professor de Filosofia, em sua prática, sustenta os processos de subjetivações também experimentadas pelo outro, (educando) e neste viés de composição de individuações de si e do outro as aulas acontecem no tecido da realidade dada as edificações e os desmanchamentos galgam passos lentos, muito embora firmes. As ideias de DELEUZE & GUATTARI (1997, p. 31) "Subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo”. Não implica uma posse mas, uma produção incessante que acontece a partir dos encontros que vivemos com o outro. Nas dobras que se estendem e voltam a se dobrar, do lado de dentro, interior, desdobramentos que fazem e desfazem o ser em estados transmutáveis de invenção e reinvenção permanente. As dobras aqui devem ser compreendidas segundo as concepções rolnikeanas que acontece na extensão de toda pele, (realidade dada), a escola, a família, o trabalho, a convivência humana, o fluxo da vida. Os acontecimentos que chegam involuntariamente produzem movimentos de ressonâncias no sujeito que produzem dobras e extensões continuamente em consonância com o devir que lhe é próprio. A dobra, enunciada por DELEUZE (1996, p. 34), constitui‐se com quatro interfaces, tomando aqui a terceira delas como: “É a dobra do saber ou a dobra da verdade: constitui uma ligação do que é verdadeiro com o nosso ser, e de nosso ser com a verdade." No âmbito da produção de si, o professor de Filosofia depara‐se com os desdobramentos do lado de fora, exterior. DELEUZE (1996, p. 104) “O lado de fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, animada de movimentos peristálticos, de pregas e de dobras que constituem um lado de dentro: nada além do lado de fora, mas exatamente o lado de dentro do lado de fora”. Neste contexto dentro/fora o professor de Filosofia enfrenta fluxos de forças capazes de refletir em sua formação/ação. Das dobras de fora, realidade, refletidas nas dobras de dentro num fazer e desfazer de dobras reflete inquietação constante. Para ROLNIK (1997, p. 6) O dentro é uma desintensificação do movimento das forças do fora, cristalizadas temporariamente num determinado diagrama que ganha corpo numa figura com seu microcosmo; o fora é uma permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 195 seu dentro, diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile. A formação permanente, marcada pelas dobras de fora, compreendida por PEREIRA (2013 p. 35) "Processo de transformação em que as relações que o sujeito estabelece com o mundo/outros/consigo são afetadas de modo proposital e consciente". A formação (processo) pessoal e coletiva, não se recebe: a formação se faz em um processo ativo que requer a aproximação de, o envolvimento com, a mediação de outros. Neste sentido, o professor de Filosofia, ao relatar a sua história de vida, vai (re) significando elementos constitutivos inseridos na realidade social e cultural vivenciada, observando as marcas que processos, pessoas, situações definiram m sua formação, no âmbito das relações estabelecidas consigo mesmo, no contexto sociocultural onde forma‐se continuamente. Podemos compreender esse outro como todas as pessoas e situações que de maneira involuntária ou não provocam movimentos que intensificam mudanças no modo de como esse professor de Filosofia vinha sendo em sua prática, demolindo ações, edificando outras, restaurando significados e compreensões, ou seja, em pleno exercício do devir. Nas dobras do tecido estampado no real: o constituir‐se “Obra de si na dobra do outro. Um espanto! Passagem livre para o aberto do ser na superfície lisa do seu aparecer. Também beleza vivente!” PIMENTEL, GALEFFI, MACEDO (2012, p. 9) Neste movimento de dobras, o lado de fora se torna intrínseco ao lado de dentro e a muitas mãos vive o seu fazer e desfazer constante para formar‐se e (des)formar‐se em sua prática. ROLNIK (1994, p. 6) enfatiza que “Não se trata de alucinar um dentro para sempre feliz, mas sim de criar as condições para realizar a conquista de uma certa serenidade no sempre devir outro.” Nas marcas das histórias de vida, vasculhamos os modos de subjetivação presentes na realidade dada ao professor de Filosofia. A constituição deste processo formação no fluxo do tecido social onde a subjetividade aflora à pele em meio a dobras que ora se produzem e voltam a se estender, pairaremos nas experiências que foram/são formadoras cabendo a instigação tecida por PEREIRA (2013 p. 21) "Como se vem a ser professor?" Amparado na trajetória da pesquisa qualitativa, estreitado nas narrativas das histórias de vida, presente na concepção do método (auto) biográfico, seguindo a trilha da perspectiva aberta crescente no campo da educação. Nos elementos que vai deixando cair de si, constitui espaços de subjetivação onde encontra a si mesmo, o modo com que fora e continua sendo produzido, como nos fala BAKHTIN (2003, p 115) “Os indivíduos se produzem, evoluem e assumem sua subjetividade e historicidade à medida que interagem com as esferas comunicativas nas quais circulam, reconhecem‐se, são reconhecidos por elas e nelas se (re) inventam.” Segundo NÓVOA, FINGER (2003, p. 88) "A abordagem (auto) biográfica proporciona refletir sobre o seu próprio processo de formação e tomar consciência dos espaços e dos momentos que para ele (o professor), foi formador ao longo de sua vida". Uma varredura, portanto nas formas com que a sua vida fora arquitetada, escrita, experienciada, narrada. O professor em estado de contemplação vendo a sua existência sendo encenada no palco da vida, diante do seu próprio olhar. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 196 Entre as várias possibilidades de utilização do método (auto) biográfico, tomemos a sua direção na produção subjetiva dos sujeitos, como corrobora PASSEGI, VICENTINI SOUZA (2013, p. 18) “As narrativas de si como práticas de formação e autoformação, procurando investigar a reflexividade autobiográfica e suas repercussões nos processos de constituição da subjetividade e da inserção social do sujeito.” Neste sentido os professores de Filosofia que aqui se narram, se refletem no exercício da reinvenção de si em pleno movimento autopoiético. A opção em aprofundar o estudo teórico e metodológico de/com histórias de vida e (auto) biografias, está vinculada ao como refere‐se NÓVOA (2003, p. 74) “O caráter formativo do método” onde o sujeito ao reconstruir seu itinerário de vida realiza uma reflexão quando rememora o seu passado e a partir disso toma consciência de si. Portanto, o caráter formativo do método, reside nessa tomada de consciência de suas experiências sejam elas negativas ou positivas, as quais possibilitam rever sua trajetória de vida observando as marcas que o constituíram como ser humano e como educador. Remontando trajetórias, no cerco das rodas de conversas, consigo mesmo e com os colegas de caminhada, pé no chão, peito aberto, o olhar no passado, mais precisamente ajoelhado ao lado do baú das memórias que trazem histórias edificantes, agulhas e linhas construtoras de tracejos e alinhavos que ora se desmancham, ora de apertam, numa trama reveladora da trajetória desta figura que vem sendo professor de Filosofia individuando‐se e deleitando‐se sobre os movimentos que produzem dobras relevantes, traços contrários, organizadores e desorganizadores deste palco da existência. Na fala de NÓVOA & FINGER (2003, p. 75) expressa "O método autobiográfico é um instrumento cuja utilização depende sempre do objetivo visado pela pesquisa. Ao pedir aos adultos para percorrer sua trajetória educativa, para dela extrair os elementos formadores, eu solicito uma informação muito pessoal, que eles fornecerão de acordo com o modo que lhes convier. Neste sentido, tornam‐se explícitas informações que nem mesmo o professor de Filosofia havia se dado conta da importância e fundamentação. São nestas ruas, vilas e avenidas da existência que o exercício de reflexão sobre si mesmo e seu percurso formativo se dão. O reencontro com suas experiências, cujas transitoriedades se tornaram vivências edificadoras de um profissional da educação, um processo de singularizar‐se no tecido educacional onde, este sujeito que se escolhe professor de Filosofia, produz‐se em devir‐outro, continuamente. A história de vida no campo da pesquisa em educação principalmente os relatos de pesquisas, apontam‐no como um método que possibilita uma reflexão sobre o próprio processo de formação e subjetivação do ser. JOSSO (apud BUENO 2002, p. 81) afirma que “A educação é assim feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida”. A mesma autora atenta para os "momentos charneiras", aqueles onde foram produzidas fortes marcas no ser e provocaram um desabamento no professor que vinha sendo, edificando outras práticas e modos se subjetivação. Movimentos de desdobramentos permanentes. Compartilhando desta ideias, JOSSO (2004, p.25) "As histórias de vida são importantes porque nos ajudam a pensar a formação do professor para atuar frente aos novos papéis que vem sendo solicitado pela escola" Nesta perspectiva situando o professor de Filosofia, seu modo de subjetivação e produção de si, frente às exigências ao educador que tem como fator primordial da sua área de ensino/estudo o pensamento reflexivo na complexidade do mundo contemporâneo. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 197 Neste sentido, a relação com a Filosofia inaugurada desde os tempos de estudantes, se constitui em tornar a realidade cognoscível, objeto de reflexão e problematização no palco da sala de aula, desta forma, não se trata apenas de corresponder às exigências do “mundo contemporâneo”, mas torná‐lo objeto de refletividade dinâmica, face à realidade dada aos sujeitos educacionais. A evolução dos papéis, das funções, das concepções, dos lugares que afetam todas as profissões, transforma a responsabilidade individual do sujeito em responsabilidade cívica coletiva. Do professor de Filosofia é esperado mais do que a postura de um como indica PEREIRA (2013, p. 128) "dador de aulas"; também já não cabe mais a concepção pronta daquele que pretende "ensinar a pensar". A subjetividade deve estar presentes em sua prática, junto à desconstrução das verdades prontas, alças num currículo que anula a diversidade e a própria subjetivação do sujeito como ser pleno e autônomo. Atores profissionais e socioculturais que se efetua todos os dias sob o olhar de homens e mulheres sedentos de existência plena, como nos fala JOSSO (2004, p. 41) "Mais do que nunca, o ato de aprender solicita uma consciência aguda das questões, dos problemas e mesmo dos impasses que, alternadamente, são a manchete dos jornais, e que estão em jogo no exercício dos nossos direitos políticos". É neste cenário desafiador que o professor de Filosofia é convidado a incentivar a atuação dos educandos como sujeitos de pensamento reflexivo. Ao professor de Filosofia, a tão corajosa, inacabada e irreverente Filosofia, cabe uma missão mais do que instrumentalizar o ensino da Filosofia, esta uma conquista histórica de acordo com HORN (2000, p 16) em “A presença da filosofia no currículo do Ensino Médio brasileiro: uma perspectiva histórica” acompanhada dos pressupostos teóricos metodológicos explícitos nos Parâmetros Curriculares Nacionais, para o ensino médio, PCNs (1999, p. 295) com: “Leitura de textos filosóficos, debates, discussões dialéticas.” A tarefa é ainda mais ampla, redonda e profunda; e, como diz letra da música Gita, de Raul Seixas (1970), "Raso, largo, profundo". Uma das propostas desafiadora não tão fácil de ser concretizada da Filosofia e seu ensino é a postura crítica conquistada após um longo e contínuo processo de reflexão, como corrobora CORBISIER (1972, p. 20) “Da ironia socrática à dúvida cartesiana e o niilismo nietzschianco observar a filosofia como crítica radical.” e isso, indica um processo de superação da alienação por meio de uma consciência do processo alienador perfeitamente alcançável por qualquer sujeito que esteja determinado a desenvolver o pensamento filosófico e isso inclui também obviamente os sujeitos da educação. Cabe subjetivação em teias de liberdade e autonomia. Aproximemos das falas de FREIRE (2002, p. 31) É preciso, porém que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa (re) significação em face das ofensas que nos destroem o ser. Resistir e viver, eis uma tarefa que deve ser confundida com o próprio ato de educar filosoficamente. E isso só é dado a partir da crítica reflexiva. Resistência é a palavra viva que rege a prática reflexiva do professor de Filosofia, para que venha à tona o ser educando em toda a sua extensão e subjetividade, inclusive, nas propostas curriculares, sobre isso, nos fala FERRAÇO (2005, p. 34): "No âmbito das histórias de vida, ainda que de no cotidiano, os currículos são realizados nas redes de sabererfazeres dos sujeitos e, desse modo, misturam‐se com elas, tornando‐se impossível sua identificação Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 198 objetiva". Desta forma, a vida é o grande palco dos saberfazeres da prática reflexiva do professor de Filosofia, dela se extrai os conteúdos atrelados aos conceitos filosóficos na magnífica correlação entre o conteúdo estudado e o vivenciado; instituindo a vida dos próprios sujeitos como objeto de estudo, neste termo, enfatiza o currículo proposto, como nos fala ARROYO (1999, p. 43) “Território de disputa”, como forma ampliada de compreender os conhecimentos escolares sugeridos pelo sistema educacional (co) relacionadas com a própria vida. As negociações, atravessamentos, usos, traduções e o que é praticado pelos sujeitos que ha‐bitam os cotidianos é o que interessa ao professor de Filosofia, e isto traduzido na prática educacional, denota em compreender como os sujeitos das práticas tecem os seus conhecimentos; elaboram as suas ideias e interferem na realidade existencial. Um passo significativo para a ocupação do território curricular pelos sujeitos produtores de conhecimentos. Estes processos surgem num constante trançar/destrançar entre os conhecimentos instituídos pelos agentes educacionais governamentais e os enredados nos espaço/tempo das escolas, como indica FERRAÇO (2005, p. 103) “E por efeito, da vida.” Os desdobramentos da própria vida do sujeito que ao mesmo tempo em que apreende, também produz conhecimentos. Uma disputa, portanto, por espaços e visibilidade na realidade escolar. Tais práticas que envolvem fios das diferenças culturais, das invenções, dos deslocamentos, das múltiplas singularidades acontecem com os sujeitos da escola que ajudam a produzir políticas de currículo e de formação dos sujeitos. Desta forma, os processos de subjetivação do sujeito que vem sendo professor de Filosofia, no terreno da autopoiéses tornam‐se objetos que configuram uma proposta de educar para o pensar e pensar a própria educação e seus processos constitutivos. A questão curricular diz Oliveira, ao discutir os currículos praticados no cotidiano, OLIVEIRA (2003, p. 68) observa: “É com Certeau que vamos, mais uma vez, buscar a compreensão das formas de criação de alternativas curriculares, tentando evidenciar as “artes de fazer” daqueles a quem foi reservado o lugar da reprodução.” O cotidiano aparece como espaço privilegiado de produção curricular, para além do previsto nas propostas oficiais, substituindo o ato de reprodução pelo de produção. Assim, nas dobras das suas vivências o professor de Filosofia imprime em suas aulas sua postura , cultura, visão de mundo em pleno devir e faz da produção curricular, transparecido nos conteúdos das suas aulas; um saber fazer instituído na própria vida. Segue individuando‐se no espaço/tempo, educacional na constituição da Autopoiéses, compreendida na concepção de MATURANA; REZEPKA (1998, p. 205) como: "Arte da construção de si, produz continuamente a si mesmo. Poiesis é um termo grego que significa produção". Autopoiese então, autoprodução. No tecido da existência, compreende‐se como ser que vem si formando professor de Filosofia, ao mesmo tempo em que serve‐se desta prática educacional, distribui aos seus alunos, enfim, produz subjetividades. O passado à sua frente, reconstói pedaços do caminho trilhado, rememora, revive, consome‐se na fogueira da memória projetiva, riscos e mascas de si mesmo. Deixa vir à tona, resquícios agora tão próximos, reinterpretados bem verdade, pois, o devir não alimenta a ser estáticos, ainda assim, recortes moldam, refazem e tecem no agora o tecido do ontem. Numa conversação bastante descontraída, surge alguns questonamentos que conduzem a Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 199 outros tantos sinteticamente relatados a seguir. No movimento autopoiético: os sujeitos “Toda história individual humana é a transformação de uma estrutura inicial hominídea fundadora, de maneira contingente com uma história particular de interações que se dá constitutivamente no espaço humano” (MATURANA; REZEPKA, 1998, p. 28) O que levou à escolha do curso de Filosofia? Como você vem sendo professor de Filosofia? Quais atitudes pessoais motivaram tais escolhas? Como você se posiciona em suas aulas? O que foi realmente formador em sua trajetória como professor (a) de Filosofia? Quais práticas foram adotadas inicialmente e quais foram somadas ou subtraídas? Bastou tais indagações e uma sucessão de outras questinamentos interreacionadas para que brotasse uma leve discussão sobre a atuaçao do professor. De modo geral, quatro dos sete professores apresentaram como motivação pela escolha foi o encantamento devido à postura de ex professores de Filosofia, os demais apresentaram a proximidade com a política e a religião. Apenas um dos sete professores tiveram incentivo dos familiares. Todos confessaram já terem se envolvido com atividades ligadas ao teatro e artes literárias. Seis dos sete ouvidos revelaram em suas falas adotarem uma postura democrática em sala de aula. Apenas um disse não se sentir à vontade em adotar tal prática, porém, não se estendeu sobre os motivos. A educação dos sujeitos para a liberdade sujerida por Freire e tantos outros estudiosos do campo educacional, parece ser uma prática que ainda atravessa percalços e resistências que vão desde a própria estrutura educacional vigente, até mesmo o cotidiano das salas de aula. Cinco indicaram mudança ou vontade de mudar as suas aulas e driblam constantemente os conteúdos curriculares por outros atrelados à realidade dos estudantes e o fazem por motivação pessoal ou desejo de instaurar reflexões e debates na classe. Neste ponto, os saberesfazeres da pespectiva curricular se implantam continuamente na prática destes educadores e as disputas pelo território do conhecimento se projeta de modo intencional. Os problemas relacionados ao desinteresse dos alunos pelas aulas de Filosofia que vão desde a indisciplina até ao indiferentismo, foi o que fez todos eles reestruturarem e ressignificarem as suas posturas e práticas em sala de aula e confessaram observar melhorias significativas nos rendimento dos alunos aproveitamento das aulas além da satisfação profissional a partir deste feito. Uma observação bastante pertinente implica em expor a discrepância existente entre a formação acadêmica e á realidade das salas de aulas, ambiente de trabalho dos professores de Filosofia, uma qustão discutida por MURCHO (2002, p. 9) “Uma das primeiras coisas que o professor recém‐ formado descobre com espanto é que o que estudou e aprendeu na faculdade é praticamente irrelevante na sua prática letiva.” De algum modo, tem de se aprender outra coisa quando começa a dar aulas”. Um aprendizado que se projeta para além da formação recebida na universidade. Neste momento, a história de vida deste educador e as marcas que o vem constituindo fazem emergir intensicadamente o ser em processo de individuação, passando Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 200 a criar um ser‐outro, exigente, criativo e isto em muitas circunstâncias passa a ser uma exigência para a própria sobrevivência como profissional da educação. O professor de Filosofia busca em sua habilidade metaestável a capacidade de instalar‐se como ser incitador da relexão que produz o debate e consequentemente o estado de crítica consciente em seus educandos. Cinco destes educadores sentem‐se contentes com seus desempenhos e valorizados pela maioria dos alunos e professores. Dois deles ainda se encontram “inseguros e desvalorizados” diante de colegas que lecionam outras disciplinas. Um ponto que sem dúvida, digno de discussões mais aprofundadas. Todos abrem espaços nas aulas para o envolvimento de recursos tecnológicos e atividades relacionadas as artes, um indício da produção subjetiva do professor de Filosofia rebuscadas em suas memórias e reavivadas em suas práticas. Houve total receptividade à ideia de mudanças nas aulas de Filosofia e desejam buscar instrumentos na formação continuada de iniciativas pessoais, vez que esta é raramente oferecida pelos orgãos educacionais responsáveis. O quadro traçado deixa evidente a autopoética na vida destes educadores, inclusive, como fator contíuo no envolvimento das artes, religião e polítca. Muito embora não tomando como regra geral, ficou evidente que a ligação com esse agentes da cultura na adolescência, juventude e até na vida adulta, os tornaram mais próximos da Filosofia. A postura democrática e o drible ao currículo inside no fato pertinente à provocação aos estudantes, com o propósito de envolvê‐los numa abordagem reflexiva própria da Filosofia como afirma LANGON; SIDEKUM (2003, p. 95), provocar uma sacudidela nos jovens, fa‐ zê‐los ‘quebrar a cabeça’, derrubar suas certezas e provocar dúvidas, violar suas virgindades, fazê‐los perder irrecuperavelmente inocências e canduras. Toda aula de filosofia exerce a violência para provocar no outro um movimento. Em seus processos de formação foram as dificuldades, o não resolvido, a recusa, a apatia dos jovens que coausaram uma descontinuidade em suas práticas para que outras viessem ser adotadas e um novo processo de subjetivação se instalasse. retomando, JOSSO (2004, p. 14) "Momentos charneiras". Apontam a descontinuidade no processo de formação, o atropelo ao ser que vinha sendo, retomadas a outras formas de fazer aula. O espetáculo da passagem do "dador de aulas" ao professor de Filosofia. Descontinuidades, angútias, microrrevoluções aparecerm continuamente nas falas dos professores de Filosofia e e até mesmo o descontentamento de alguns com o estado atual, revelam anseios por mudanças no sistema educacional e até mesmo na forma como a disciplina é organizada e tratada, isso indica a construção de uma postura de educador, professor de Filosofia, a isso refere‐se KASTRUP (1995, p. 97), “Para ser mestre não basta transmitir informações novas e igualmente descartáveis, mas produzir experiência nova que não envelhece, que conserva sua força disruptiva e se mantém sempre nova”. A subjetividade presente, acontece nos movimentos do exercício do que se vem sendo e como se vem sendo nas práticas em sala de aula e isso lhe é servido das mais diferenciadas formas no contexto educacional. Netse sentido, a produção da subjetividade esta instalada sob os eixos das disputas curriculares e da própria postura do educador como instigador reflexivo da relidade social dada, ainda que alguns alunos apresentem desiteresse sobre tais questões; forma visível de alienação, produzida pelos aparelhos ideológicos exclusivistas e disciplinatórios. Quando observada pelo ângulo que verifica o indiferentismo de alguns alunos com Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 201 relação à realidade social, a estrutura subjetiva do trabalho do professor de Filosofia ganha ainda mais destaque, uma vez que a sua própria história de vida acarreta elementos de participação social, posicionamentos, questionamentos, ligação com a cultura e as artes; propostas que no campo da profissão tornam‐se instrumentos potencializadores para a realização de aulas que despertem o interesse, posicionamentos e a discussão à cerca da realidade vivenciada. Entre achados e anunciando continuidades necessárias: algumas considerações “Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino.” FREIRE (2000, p. 40) Ao que tudo indica esta breve abordagem, o ser individuado, professor de Filosofia em seu processo permanente de individuação esta em processo permanente de formação e constituição de si, sofrendo influencia da dobra de fora, reiventa‐se em sua prática em ressonãncia com as doras de dentro num processo de permanente devir. Sofre , porém cria. A formação universitária que para muitos aparece como instrumento de formação constitutiva dos seres que por suas salas de aulas transitam por anos e anos a fio não é o suficiente para que o professor de Filosofia lecione com sucesso, os procesos de subjetivação produzidos em sua existência do indivíduo têm importância fundamental na constituição do sujeito como professor de Filosofia. Confere‐se uma subjetivação presente nas constituição deste sujeitos compreendendo como nos diz TOURAINE (2006, p. 119) Os indivíduos passam a repensar sua relação com o mundo, seus papéis, e assumir uma postura criativa frente à realidade social, atribuindo um sentido para suas vidas. Essa formação se dá na vontade de escapar às forças, às regras, aos poderes que nos impedem de sermos nós mesmos”. Inventa a si mesmo, revoluciona a sua prática num seio de microrrevoluções silenciosas que acontece todos os deias no exterior e interior da sala de aula. Movido por moldes de subjetividade plural, observa na sua história de vida momentos de rompimentos, demolições e recostruções que o fizeram ser quem é e percebe o quanto vem se modificando, porém, o quanto ainda necessita modificar‐se, no seio da sua individuação, produz‐se lugar de subjetivação e reconhece‐se ser‐em‐devir‐permanente. O grupo de professores que contribuiram com este trabalho bebem da própria Filosofia como parâmetro de autopoiése e servem‐se da postura questionadora e inquieta desta área de conhecimento para constituirem a partir de suas aulas um campo de reflexividade que podem desencadear autopoiése no sujeito educando, num fluxo de estendimento/dobra, demolição/reconstrução, na exensão de toda pele/teia social. As obserações feitas a partir deste breve estudo conferem com a teorização o pensamento freireano, pois, inscreve‐se na moldura da educação libertadora. Nessa concepção estão implicados os conceitos sujeridos por FREIRE (2000, p. 16) “Politicidade da educação, democracia, justiça social, poder, liberdade, utopia e ética.” O que confere a esse trabalho uma legitimidade própria do ato de filosofar sobre os processos de subjetivação e autopoiéses que constituem o professor de Filosofia como ser pensante, autocrítico e crítico. Os indícios de disputas curriculares são evidentes nas narrativas dos professores de Filosofia quando classificam a sua prática como democrática e isto implicam em “dribles/adaptações” estratégicos dos conteúdos sugeridos por outros mais atrelados à Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 202 realidade dos educandos, favorecendo assim a reflexão crítica dos educandos e a produção das suas próprias subjetividades, neste sentido, o professor de Filosofia ao mesmo tempo em que bebe da fonte subjetiva faz emergir outras nascentes da autopoiéses em seus alunos. Conclamando com as ressignificações no território curricular analisa SILVA (2004, p. 17) Contrapontos aos temas geradores, os contra‐temas se dão a partir da discussão das possíveis situações e falas significativas, considerando tanto os limites explicativos que a comunidade possui para tais situações, quanto à visão e análise que os educadores coletivamente fazem sobre as mesmas durante o processo de redução temática. Essa construção curricular expressa o início de uma ação educativa que estará em constante revisão. Pressupõe diálogo tanto em relação à escolha do objeto de estudo, quanto no processo de ensino‐aprendizagem efetivado na prática pedagógica cotidiana. Quando os limites do currículo instituído passam a ser derrubados é sinal de que a crítica, tarefa primeira do ensino da Filosofia, passa a ter representatividade da sala de aula, ainda que de maneira sutil, os sujeitos do conhecimento, vão produzindo outros espaços e subjetividades. As literaturas, as artes, a poesia, a política, o teatro, atividades culturais, portanto; a postura irreverente, a atividade de escuta, a inquietação a busca por justificativas construções de posturas religiosas, entre outros aspectos, são representatividades imprescindíveis na constituição dos professores de Filosofia que contribuíram com suas falas e narrativas de suas histórias de vidas. Neste trabalho a produção da subjetividade não é coagulada diante dos impasses educacionais, ao contrário, contribuem para a permanente individuação e singularização dos sujeitos. A teorização deste estudo não cessa, induz a uma série de outras investigações no campo da individuação dos sujeitos; subjetividades; marcas na formação de professores; história de vida, currículo; ensino de Filosofia; o professor de Filosofia; a próprio pensamento filosófico nas linhas da concepção crítica e da ética, da subjetivação e dos processos educacionais entre outros. 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Um Novo Paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 2006. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 204 Memórias de alfabetização: experiências de vida e de profissão. Fabiane Santana Oliveira UNEB [email protected] Este trabalho tem o objetivo de analisar registros (auto) biográficos, memórias de alfabetização de professores do ciclo da alfabetização do município de Tucano‐Bahia, sujeitos em formação pelo programa do governo federal Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, e pelo Grupo de Estudos em Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação – GEEMPA, de modo a conhecer alguns dos processos escolares vivenciados por estes, buscando perceber como suas trajetórias de escolarização trazem implicações em suas práticas pedagógicas, bem como, perceber se as trajetórias de alfabetização dos professores envolveram ou não práticas docentes pautadas num currículo inclusivo e na perspectiva do letramento. Trata‐se de uma pesquisa bibliográfica pautada numa abordagem qualitativa, a partir da qual é possível visualizar dispositivos (auto) biográficos e ampliá‐los por via do memorialismo, percebendo como os registros narrativos possibilitam aos sujeitos, por meio da memória, entrarem em contato com suas histórias de vida e de profissão, permitindo‐
lhes uma compreensão de seus percursos e suas práticas, ampliando a percepção de si enquanto profissionais de alfabetização e a consciência de suas responsabilidades, além do conhecimento da história particular de uma sociedade, mais especificamente a respeito da corrente teórico‐metodológica predominante no processo de alfabetização que vivenciaram e da que experienciam, atualmente, em suas atividades pedagógicas. Palavras‐chave: Autobiografia; Memória; Alfabetização; Experiências de vida e profissão. Introdução O artigo propõe‐se a analisar registros de memórias de alfabetização de professores alfabetizadores do município de Tucano‐Bahia, de modo a conhecer os processos escolares vivenciados por estes, buscando perceber como suas trajetórias de escolarização trazem implicações em suas práticas pedagógicas. Esta produção decorre de estudos realizados como aluna especial da disciplina Abordagem (auto) biográfica e formação de professores‐leitores do Programa de Pós‐
graduação em Educação e Contemporaneidade, da Universidade Estadual da Bahia–UNEB Campus I, bem como do trabalho desenvolvido ao longo do ano letivo de 2013, na orientação de estudos dos professores do ciclo da alfabetização no programa de formação continuada do governo federal ‐ Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, juntamente ao Grupo de Estudos sobre Educação Metodologia de Pesquisa e Ação – GEEMPA, responsável pela metodologia de alfabetização no município. No início da formação do PNAIC/GEEMPA os professores foram provocados a produzir o registro de suas memórias de alfabetização, identificando experiências na perspectiva do currículo inclusivo/ letramento, revisitando, desta forma, suas experiências de vida e observando de que maneira estas influenciam positivamente e/ou negativamente na atividade profissional que escolheram. Considerando a relevância dessa investigação para o avanço da compreensão sobre a abordagem autobiográfica, bem como das práticas docentes, o desenvolvimento deste artigo deu‐se por meio de pesquisa bibliográfica pautada numa abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa representa uma atividade situada que localiza o observador/pesquisador no mundo (DENZIN, 2005; LINCOLN, 2005), sua inserção no campo de estudo, suas práticas e matérias interpretativas dão visibilidade ao mundo, transformam‐
no em uma série de representações e significações realizadas pelos próprios sujeitos da ação. Neste sentido, a pesquisa qualitativa envolve uma abordagem interpretativa do Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 205 mundo circundante, tentando entender ou interpretar os fenômenos em termos dos significados que as pessoas a eles conferem. Ela abarca, ainda segundo Denzin e Lincoln (2005), o estudo do uso e a coleta de uma diversidade de matérias empíricas como: estudo de caso; experiência pessoal; introspecção; história de vida; entrevista; artefatos; textos e produção culturais; textos observacionais, históricos, interativos e visuais; práticas que garantem uma visibilidade diferente ao mundo. Nesta perspectiva, se configura o entendimento de que a pesquisa qualitativa vai além dos dados quantitativos, abordando uma variedade de técnicas com a finalidade de apreender e interpretar os significados existentes no ambiente da investigação, neste caso, as memórias de alfabetização de seis docentes do município de Tucano. Dessa forma, a análise da proposta de escrita, que fora lançada aos professores em 2013, permite articular o estudo sobre os registros autobiográficos (memórias de alfabetização), as dimensões experienciais de vida e da formação dos professores alfabetizadores, estabelecendo diálogos com os autores e conceitos estudados ao longo da disciplina Abordagem (auto) biográfica e formação de professores‐leitores. Autobiografia e memorialismo Os textos autobiográficos se constituem como um espaço no qual o escritor registra sua própria experiência de vida, sua personalidade, valores e crenças, podendo‐se configurar, ainda, na oralidade. São narrativas que, segundo Chiara (2001, p. 15‐16) “não são a vida, mas neles podemos ler a ‘vida’ no seu essencial: a paixão”. Entende‐se por paixão, portanto, a própria singularidade do sujeito, sua relação com a subjetividade e com a “verdade”. A escrita autobiográfica tem o poder de eternizar aquilo que foi vivido, dando vazão ao desejo de imortalidade das experiências, de maneira que, para que essa escrita se materialize os sujeitos necessitam recorrer ao campo das lembranças. Por meio do trabalho da memória, que pode ser situada como um dos gêneros autobiográficos, é que o sujeito sairá em busca de sua verdade singular, expondo e demarcando os limites de sua personalidade inscrevendo‐se numa história, seja ela familiar, social, profissional, dentre tantas outras. De acordo com Lejeune (2008) autobiografia e memorialismo apresentam determinadas distinções no que se refere ao assunto tratado por elas. Enquanto na autobiografia o enfoque dado privilegia a vida individual, no memorialismo o “relato do eu” se estende para questões mais coletivas, incluído aspectos históricos e sociais de uma época. Conforme reforça Coutinho (2012): A poética memorialística forja‐se na intersecção de dois planos: o histórico, onde geralmente se dá a incidência do tempo passado, evocando‐se certa realidade dentro de uma configuração espaço‐temporal, e o plano do eu pessoal, onde prevalece a subjetividade do poeta, que se diz a si mesmo enquanto sustenta uma conexão com o real, submetendo‐se à injunção histórica. (COUTINHO, 2012, p. 95). Neste sentido, as memórias de alfabetização podem ser lidas pelas vias dos dois conceitos, uma vez que elas tornam‐se interlocutoras das experiências individuais de cada docente e, ao mesmo tempo, permitem conhecer a história particular de uma sociedade, Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 206 mais especificamente a respeito da corrente teórico‐metodológica predominante no processo de alfabetização em determinada época. Memórias de alfabetização revelando práticas docentes A abordagem autobiográfica, tomada no contexto das narrativas docentes de suas trajetórias de alfabetização, constitui‐se como um dispositivo fértil permitindo “ao professor tomar consciência de suas responsabilidades [...] através da apropriação retrospectiva de seus percursos de vida” (SOUZA, 2006, p.262). Nessa perspectiva, permite que cada professor compreenda “melhor suas razões de ser e de estar na profissão se constituindo [...] um instrumento valoroso para o pesquisador melhor compreender como os professores aprendem a ser professor” (PASSEGI et al, 2008, p.258). As narrativas dos professores, com ênfase em de seus percursos alfabetizadores, revelam não “só a vida interior dos sujeitos e suas ações, mas também os contextos interpessoais e sociais que ele/ela atravessou” (BERTAUX, 2010, p.47). Assim sendo, “o sujeito que lança, solitário, um olhar retrospectivo sobre sua vida passada, a considera na totalidade e como uma totalidade” (BERTAUX, 2010, p.49 ). Tais narrativas se constituem, portanto, como um dispositivo importante para melhor compreender os sujeitos, tomando como referência seus percursos e suas práticas. Os docentes, em suas escritas, compreendem esses registros autobiográficos como instrumentos que lhes possibilitam, através do rememorar de seus percursos, reconstruir experiências, reavivar sentimentos, como revela a professora de 2º ano, Cleonice Guilherme46: Recordações, lembranças, acontecimentos que ocorrem em nossas vidas, fatos que fazem parte da nossa identidade. Sendo que todo indivíduo tem sua própria história. Relembrar de como ocorreu a alfabetização em minha vida, me faz reviver acontecimentos que possibilita sentir emoções como: pavor, imaginação e conhecimento. (Cleonice, Memória de Alfabetização, 2013). A professora, em sua narrativa, chama atenção para o ato de recordar, característica primordial da escrita memorialística que, segundo Coutinho (2012, p. 95) “exige o transcurso do tempo, o distanciamento dos eventos, o esquecimento, a lembrança”, cumprindo efetivamente sua função de revelar o eu pessoal, o que foi vivido. Na esteira dessas reflexões é que é examinada a escrita memorialística de docentes do ciclo de alfabetização, na qual, o passado é tido como matéria prima para o entendimento de processos históricos, sociais, pessoais e profissionais desses sujeitos, bem como para melhor compreensão do presente. Quando se fala em educação, especialmente do segmento da alfabetização, pressupõe‐se que cada escola firme compromissos que garantam a aprendizagem dos estudantes, pensando num currículo construído na prática diária dos professores. Assim, cada escola deveria eleger, conforme afirma Murta apud Leal e Guedes‐Pinto (2012, p.6), “(...) um conjunto de intenções educativas e um conjunto de diretrizes pedagógicas que se articulem para orientar a organização e o desenvolvimento da sua prática educativa. Referenciais mais amplos‐ de natureza político‐filosófica, epistemológica e didático‐
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Os nomes das professoras, participantes da pesquisa, foram mantidos mediante autorização através de carta de cessão. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 207 pedagógica”, referenciais estes que sirvam de base para a análise da realidade escolar e possibilitem, tanto ao corpo docente quanto aos gestores escolares, o planejamento de intervenções sobre ela. É com base no reconhecimento da necessidade desses referenciais que se pode falar da construção de situações favoráveis à aprendizagem em uma perspectiva inclusiva. De acordo com Leal e Guedes‐Pinto (2012), a busca por um currículo inclusivo rompe com os valores relativos à competitividade, ao individualismo e à busca de vantagens individuais. Seus princípios supõem a definição de alguns conhecimentos a serem apropriados por todos os estudantes e o favorecimento de condições de aprendizagem coletivas, respeitando‐se as singularidades dos sujeitos e grupos sociais. A Educação Básica é um direito que deve ser garantido a todos os brasileiros e, segundo prevê a Lei 9.394, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, “tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar‐lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer‐lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Art. 22). Assim, para atender às exigências previstas nas diretrizes, tornou‐se necessário delimitar os diferentes conhecimentos e as capacidades básicas que devem permear toda ação pedagógica, os chamados “Direitos de aprendizagem”, que definem as capacidades específicas a serem desenvolvidas pelos estudantes, e que estão organizados por eixos nas diversas disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciência e Artes. Diante disso, a organização de um currículo inclusivo de alfabetização parte também dessa definição de “Direitos de Aprendizagem”, enquanto conhecimentos apropriados que precisam ser garantidos a todos os estudantes até o final do 3º ano do ciclo da alfabetização, respeitando‐se as singularidades e diferenças individuais e dos grupos sociais. Essa busca pela garantia dos Direitos de Aprendizagem a todos os estudantes é denominada “perspectiva inclusiva”. Além do respeito às singularidades dos sujeitos, a perspectiva inclusiva tem como um de seus princípios a valorização dos conhecimentos prévios dos educandos. Em seu registro autobiográfico, a professora Cleonice evidencia como as práticas educativas vivenciadas em sua alfabetização deixaram à margem o princípio citado. (...) os métodos que nossos professores utilizavam eram ultrapassados, as práticas autoritária, descontextualizada, um currículo excludente, onde as informações eram oferecidas para o aluno como verdade absoluta sem dar oportunidade do educando mostrar o conhecimento prévio sobre o conteúdo, construir e compartilhar conhecimento, bem como desenvolver suas habilidades. (Cleonice, Memória de Alfabetização, 2013). A professora vem em defesa de um trabalho a favor da inclusão de todos no processo de ensino‐aprendizagem, o que requer do professor a ação de mediador da aprendizagem, permitindo a construção do aluno, sua participação ativa nesse processo. A mesma professora revela, ainda, que sua prática procura ser diferenciada daquela que vivenciou, enfatizando a mudança didática decorrente de um novo contexto escolar e das atividades formativas que lhe conferiram a capacidade de inovar em sala de aula. (...) estamos inseridos em um contexto diferenciado dos tempos passados e como consequência, várias são as mudanças que ocorreram no âmbito escolar, entre tantas podemos destacar nossas posturas em sala de aula, atualmente buscamos Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 208 usar mais autoridade e menos autoritarismo, tentamos ouvir e valorizar o conhecimento prévio do educando, afinal os tempos mudaram e são os processos formativos que nos colocam a frente das inovações e a nossa função enquanto educador é assumir com dedicação, compromisso e responsabilidade aquilo que almejamos alcançar. (Cleonice, Memória de Alfabetização, 2013). Dessa forma, a professora procura demonstrar consciência acerca dos princípios que regem sua prática, enfatizando a importância dos processos formativos que vivencia, atribuindo‐lhe maior autonomia no planejamento e realização da ação didática, uma vez que o professor necessita estar cada vez mais preparado para acompanhar as inúmeras transformações da sociedade contemporânea, exigindo do professor conhecimentos mais especializados e abrangentes. Vale ressaltar, ainda, que os princípios apresentados acima, pela docente, dizem respeito não especificamente ao tipo de atividade planejada, mas às novas posturas, aos modos de mediação, à capacidade de explicar e dialogar com as crianças. Além da perspectiva inclusiva, é importante ressaltar o trabalho de apropriação da linguagem nos primeiros anos escolares que, segundo Araújo (1998, p. 94) deve “possibilitar vivências com a leitura e escrita que tenham relevância e significado para a vida da criança, algo que se torne uma necessidade para ela e que lhe permita refletir sobre sua realidade e compreendê‐la”, atentando, dessa maneira, para a importância de se interrogar sobre os usos sociais da leitura e da escrita bem como sobre a própria lógica de seu funcionamento. Conforme afirma a professora do 3º ano do ciclo da alfabetização, Anaildes: De alguns anos pra cá é consensual entre os educadores a necessidade de formar crianças capazes de ler e produzir, com qualidade, textos de uso social dentro de uma diversidade de gêneros linguísticos. Para isso os educadores precisam estar atentos, pedir ajuda e estudar para compreender como a criança aprende. (Anaildes, Memória de Alfabetização, 2013). Neste sentido, a educadora evidencia a necessidade de a escola garantir situações favoráveis de aproximação entre a cultura escolar e a cultura própria de outras esferas sociais. Revela diferentes demandas de ensino que devem abranger diversas dimensões: domínio do Sistema de Escrita Alfabética, a inserção das crianças nas práticas sociais em que a escrita se faz presente e a ampliação dos usos da oralidade. Tais dimensões se articulam na defesa da alfabetização na perspectiva do Letramento que, segundo Leal e Guedes‐Pinto (2012, p.16) trata‐se de “um processo em que as crianças possam aprender como é o funcionamento do sistema de escrita (...) de modo articulado e simultâneo às aprendizagens relativas aos usos sociais da escrita e da oralidade”. Segundo a professora Anaildes, essa perspectiva de alfabetizar letrando não se efetivou em suas vivências particulares, acarretando em dificuldades pessoais e profissionais que ela apresenta até hoje: Acredito que meu processo de alfabetização deixou muito a desejar. Pra começar entrei na escola aos 7 anos, idade permitida na época, e o ensino era voltado para o pronto e acabado, cada um em seu canto, agindo somente como receptores. Aprendi muita coisa e o que realmente me entristece até hoje é a falta de comunicação, falar em público é a minha maior dificuldade. (Anaildes, Memória de Alfabetização, 2013). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 209 De certo modo, fica subtendido, na memória escrita da professora, o sentimento de passividade diante da aprendizagem, quando ela assume a posição dos estudantes da época como meros “receptores”. As experiências escolares vivenciadas provavelmente não se constituíram como espaços de provocação para o uso da oralidade numa diversidade de situações sócio comunicativas, acarretando implicações no exercício docente da professora Anaildes. Em sua Narrativa, a professora Anaildes, situa a falta de formação dos professores do período de sua alfabetização como o fator primordial para o ensino alheio à perspectiva do Letramento e do Currículo Inclusivo. Segundo Anaildes, a grande diferença da atualidade é “a existência de vários projetos e programas que auxiliam os professores nesse tão almejado processo de alfabetização”, considerando a formação continuada docente como espaço de reflexão e construção sobre como e o que se deve ensinar às crianças. Vale ressaltar que, a princípio, a formação para o exercício da docência acontecia somente antes da atuação profissional, através do curso de Magistério, formação similar, ou do Curso Superior em Pedagogia. Posteriormente à sua conclusão, acreditava‐se que todos já estariam preparados para atuar na atividade docente por toda a vida. Hoje, essa forma de pensar foi sendo substituída pela concepção de uma formação ao longo da vida, “formação continuada”, diante de mudanças decorridas na sociedade nos âmbitos político, econômico e cultural. De acordo com Ferreira (2012), a formação continuada de professores aparece dentro dessa nova realidade social, como um caminho para reverter os indicadores de desempenho dos alunos, como uma das principais vias de acesso à melhoria da qualidade do ensino, o que implica numa mudança de mentalidade na vida profissional docente. As professoras Lucineide, de 2º ano do ciclo da alfabetização, e Ana Paula, de classe multisseriadas, em seus registros memorialísticos, abordam a respeito da importância da continuidade de seus estudos para o alcance de resultados exitosos em suas turmas de alfabetização, relatando sobre suas experiências no Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação ‐ GEEMPA, bem como do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, PNAIC. Com o passar do tempo fui adquirindo experiência, fazendo pesquisas em livros, obtendo informações, facilitando minha forma de ensinar. No ano passado, tive a chance e o prazer de fazer o Curso do GEEMPA, trazendo novas dramáticas47 em forma de ensino. Tive sucesso na aprendizagem dos alunos fazendo o 100%48. O curso do PNAIC está sendo fabuloso, pois temos a chance de trocar ideias e informações para por em prática esses conhecimentos e ajudando na aprendizagem de cada aluno. (Lucineide, Memória de Alfabetização, 2013) Depois da formação, comecei a aplicar em minha classe o que havia aprendido, as novas metodologias e é claro que muita coisa mudou, percebo um grande avanço 47
Na proposta teórico‐metodológica apresentada pelo GEEMPA, é percebida uma nova concepção de ensino, embebida na lógica e na dramática, isto é, numa alfabetização baseada não somente na lógica pura dos conteúdos vinculados à leitura e escrita, mas com uma contextualização dramática. Dramática refere‐se àquilo que faz sentido (PAIN apud GROSSI, 2010), que produz desejo e gera energias para pensar e agir. 48
100% refere‐se à visão geempiana de que não há dificuldades de aprendizagem insuperáveis, de modo que “Todos podem aprender” (GROSSI, 2010). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 210 nos meus alunos e fico radiante quando realizo a aula entrevista49 e vejo que meu trabalho está sendo proveitoso. (Ana Paula, Memória de Alfabetização, 2013) É importante destacar que a maioria das experiências de alfabetização, descritas nas memórias dos professores de 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental e também de classes multisseriadas de alfabetização, remonta ao Tradicionalismo como corrente teórica prevalente nas práticas docentes da época em que foram alfabetizados, um ensino geralmente baseado na perspectiva da repetição e memorização, cujo recurso pedagógico principal era a cartilha, conforme afirma ter sido alfabetizada, a professora de 2º ano Jucicleide (2013), numa “época em que a escola trabalhava com conceitos bem metódicos e sistematizados, onde só era possível avançar de lição na cartilha quando íamos bem no ditado de palavras e na leitura individual da cartilha”. Para muitos, essa corrente teórica, os métodos e posturas docentes da época acarretaram em dificuldades pessoais e/ou profissionais ao longo da vida: “Hoje sinto muita dificuldade em produzir texto, pois percebo que a professora não estava utilizando um bom método para alfabetização” (Cristiane, Memória de Alfabetização, 2013), enquanto outros afirmam ter vivido experiências positivas, a exemplo da professora Jucicleide: O ponto positivo nesse contexto marcante foi o fato de estar na sala da professora mais requisitada da escola. (...) Chamava‐se Maria da Glória. Antes não entendia como ela conseguia dividir sua atenção e carinho com todas as crianças sem distinção de cor ou classe social. Hoje compreendo bem! Essa professora era tão especial por trabalhar com o coração, a afetividade era sua proposta de ensino. (...) Sempre que essas memórias da minha infância voltam, faço uma reflexão acerca da postura dessa professora, em especial comparada a outros tantos que passaram por minha fase escolar. Muitos com certeza, a maioria deixou más recordações, no entanto também serviram terminantemente para a formação dos conceitos de aprendizagem que busco. Tais fatos me acompanharam por todo o meu processo de ensino aprendizagem até hoje e com certeza serve de reflexão e estudos para que eu possa determinar meu trabalho como professora alfabetizadora. (Jucicleide, Memória de Alfabetização, 2013) Dessa maneira, percebe‐se que, através do registro memorialístico é possível apreender percursos alfabetizadores percorridos pelos docentes, percebendo, ainda, como estas trajetórias e as posturas observadas em seus professores trouxeram implicações diretas na escolha profissional daqueles sujeitos, na reprodução de práticas e/ou mudança das mesmas. Considerações finais A leitura e análise das memórias de alfabetização das professoras do ciclo de alfabetização possibilitou visualizar dispositivos autobiográficos e ampliá‐los por via do memorialismo, uma vez que seus registros se estenderam para além do “relato do eu” (CHIARA, 2001), incluindo também a história particular da sociedade na qual vivenciaram 49
A aula‐entrevista é uma atividade de avaliação individual que o professor faz com seus alunos. Constituída de dez tarefas que possibilitam ao professor perceber a construção do conhecimento de cada um de seus alunos, identificando os níveis de leitura e escrita em que se encontram. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 211 seus processos alfabetizadores e daquela em que experienciam suas atividades pedagógicas, hoje. Segundo Benjamin (1994, p. 197), “a arte de narrar está em vias de extinção”, no entanto, o exercício da produção narrativa, em Tucano, sobretudo nos programas de formação docente PNAIC/GEEMPA, tem representado uma tarefa contínua, mediante a escrita das memórias docentes que se configuram para os educadores na possibilidade de ampliar a percepção de si enquanto profissionais. Através dos relatos de si e de suas práticas que são sociais e que, por isso, incluem o outro, o espaço e as relações estabelecidas com estes, os professores podem visualizar pontos positivos, negativos e apontar encaminhamentos no tocante às suas ações didáticas. Nestas memórias, os sujeitos que narram suas histórias de vida e de profissão, fazem uso do recurso das imagens do “eu” que à luz do passado, podem perceber‐se no presente, imagens a partir das quais se evidenciam suas identidades e singularidades, proporcionando o diálogo que é estabelecido entre o ser individual, que narra sua vida, e o ser sociocultural que fala de uma realidade social vivida. A análise dos registros autobiográficos permitiu perceber como os docentes “adotam, além da temporalidade e reflexividade, outros aspectos e questões relativas à subjetividade” (CORDEIRO; SOUZA, 2010, p. 218), configurando, ainda, a “importância de se ouvir a voz do professor ou compreender o sentido da investigação‐formação, centrada na abordagem experiencial, cujo sujeito aprende a partir da sua própria história.” (p.218). A proposta de escrita narrativa, portanto, conferiu aos sujeitos entrarem em contato com suas histórias, lembranças e, ainda, suas vivências e discursos pedagógicos, permitindo‐lhes se reconhecerem como os profissionais que são. Referências ARAÚJO, Mairce Teresa. Alfabetização tem conteúdos? In: GARCIA, Regina Leite (Org.) A formação da professora alfabetizadora: reflexões sobre a prática. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1998. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. 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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 213 Entre narrações e memórias: a docência como espaço de vida‐formação Fulvia de Aquino Rocha UNEB [email protected] Sara Menezes Reis de Azevedo UNEB [email protected] O presente trabalho apresenta resultados de duas pesquisas empreendidas pelas autoras durante o mestrado em Educação e Contemporaneidade do Programa de Pós‐ Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduc/UNEB). As duas entradas de pesquisa tomaram as histórias de vida enquanto abordagem teórico‐metodológica, por esta possibilitar o desvelamento necessário à elucidação dos percursos de formação de professores. Assim sendo, o lastro metodológico clarifica a trajetória formativa, revelam as referências e influências de cada itinerância, a escolha pela docência e como cada professora se torna o que é. Para tanto, a entrevista narrativa e a escrita do memorial foram utilizados como dispositivos de formação e autoformação: a primeira foi realizada com uma professora que atua na educação básica em uma escola municipal de Salvador e o segundo foi escrito por uma professora de uma instituição de ensino superior privada da cidade de Feira de Santana. O diálogo teórico das pesquisas foi realizado com os trabalhos consolidados por Josso (2008), Souza (2006), Passegi (2011), Rios (2007), Nóvoa (2010), Nóvoa e Finger (2010), Ferrarotti (2010), Pineau (2006), Pineau e Le Grand (2012), dentre outros que serão explicitados no decorrer do texto. As singulares histórias de vida das professoras retratam suas trajetórias e os percursos formativos experienciados no viver da docência e revelam que a possibilidade de narrar e escrever suas histórias, de participar do movimento de formação/autoformação proporcionou reflexões e ressignificações para à prática docente. Bem como, o agregar de outros significados a própria formação e a conscientização de que essa formação se dá no entrelaçamento de suas vivências nas diversas dimensões que compõe a vida de um sujeito. Palavras‐chave: Histórias de vida; Escritas de si; Formação. Introdução O presente trabalho apresenta o diálogo entre duas pesquisas empreendidas pelas autoras durante o mestrado no Programa de Pós‐Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduc/UNEB). As duas entradas de pesquisa, inseridas no movimento investigativo‐formativo da pesquisa (auto)biográfica, tomaram as histórias de vida enquanto abordagem teórico‐epistemológica‐metodológica, por esta possibilitar o desvelamento necessário à elucidação dos percursos de formação e os modos como nos constituímos. O processo de formação pelas histórias de vida apresenta‐se enquanto movimento de reivindicação, reconhecendo os saberes subjetivos, não formais, e adquiridos nas experiências e nas relações sociais. Pineau e Le Grand (2012, p. 15) define a história de vida como “busca e construção de sentido a partir de fatos temporais pessoais”, que “envolve um processo de expressão da experiência”. Experiência essa que, segundo Larrosa (2002), em suas construções sobre a Educação e suas articulações entre experiência/sentido, é algo raro de se viver, pois, mesmo que vivamos muitos acontecimentos em nossa trajetória de vida, poucas coisas nos tocam significativamente. E não nos tocam, por estarmos imersos num movimento de constante busca por informações, para que saibamos e possamos opinar sobre todas as coisas; encharcados de saberes advindos da facilidade de acesso as tantas informações; porque nos Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 214 excedemos no trabalho, numa rotina atribulada de compromissos que nos impedem de parar, silenciar e rememorar. Sendo estes elementos “inimigos mortais da experiência”, realmente nada pode nos passar, tampouco nos acontecer. É experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar, nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação. Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão. [...] O sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. [...] O sujeito da experiência é, sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos. [...] tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo‐se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião (LARROSA, 2002, p. 24‐25). A compreensão de que, estamos imersos em contextos que nos impede de viver a experiência numa dimensão complexa, é que torna imperativo que vivamos em nosso percurso, outro movimento que seja de resistência e que nos permita, na dimensão formativa, viver a experiência em sua plenitude, a partir do momento em que possibilita que paremos, silenciemos, lembremos e narremos nossa história. Que sejamos capazes de nos modificar e transformar as outras dimensões de nossas vidas através do ato de narrar. “Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece” (Idem, p. 27). Em busca da potência em torno desse conhecimento outro, é que, o mergulho nas histórias de vida dos sujeitos enquanto movimento de formação, se torna premente. Segundo Delory‐Momberger (2011, p.47), “no momento em que os indivíduos têm cada vez mais dificuldades de encontrar seu lugar na história coletiva”, a corrente de investigação‐ação‐formação das histórias de vida se desenvolve. Numa lógica de se repensar a educação de adultos, se relaciona a processos de auto/hetero/transformação significativos e emancipadores e remete os sujeitos a si mesmos, tendo em cada narrativa da história de vida, a própria história de formação de cada sujeito. “Para além das definições literárias ou disciplinares, a história de vida é, desse modo, tratada como prática autopoiética, ou seja, aquela que trabalha para produzir por si mesma sua própria identidade e agir em conformidade com seu propósito” (PINEAU; LE GRAND, 2012, p. 16). Assim, o trabalho com as histórias de vida necessita ser pensado como um projeto de conhecimento, na interface entre pesquisa e formação e como prática de formação. E nesse sentido é que as pesquisas aqui apresentadas, com sujeitos professoras, visam contribuir. Entre o narrado e o escrito: dispositivos de formação. Para Maria da Conceição Passeggi (2010), narrar é um ato eminentemente humano. É próprio da nossa natureza evidenciar percursos e lugares, pessoas e momentos que foram Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 215 significativos no processo formativo, por meio de diferentes formas de narrar (contar, escrever, dentre outras). Para textualizar a vida: narrada e escrita, e suas implicações sobre a docência de duas professoras baianas, admitimos que a reflexividade autobiográfica é "mediadora da consciência histórica das aprendizagens e promotora de inflexões enriquecedoras para o sujeito no mundo da vida" (PASSEGGI, 2010, p.126). Sendo o trabalho com as histórias de vida capaz de propiciar um processo de pesquisa‐ação‐formação, como vimos acentuando, a autora lembra que para que esse movimento se torne visível aos olhos do seu autor, ele necessita "da mediação de instrumentos semióticos, para tomar corpo e se objetivar" (Idem, p. 123). Portanto, para mediar esse processo, nos utilizamos de dois dispositivos de formação e autoformação: a entrevista narrativa e a escrita do memorial. A primeira foi realizada com uma professora que atua na educação básica em uma escola municipal de Salvador, no âmbito da pesquisa "Histórias de Vida de Professoras Alfabetizadoras: espaços de vida‐
formação" (ROCHA, 2013). E o segundo foi escrito por uma professora de uma instituição de ensino superior privada da cidade de Feira de Santana, para fins da pesquisa "E assim nos fizemos leitoras: histórias de vida e de leitora de estudantes do PPGEduc entre 2005 e 2010" (REIS, 2014). A narrativa é uma maneira de produzir conhecimento individual e coletivo; provocar/promover a reflexão do sujeito sobre seus próprios percursos, experiências, o que gera a conscientização sobre seu próprio ser e fazer. Dessa forma, as entrevistas narrativas (JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002) individuais, “considerada uma forma de entrevista não estruturada”, proporciona aos sujeitos, sem a interrupção imediata do pesquisador/entrevistador, um movimento de livre expressão dos seus sentimentos e de sua história. Quem narra constrói o enredo de sua história, com seus tempos, personagens, escolhe o que deseja revelar e o que deseja ocultar sobre suas itinerâncias de vida‐
formação‐profissão, cronologicamente ou não. A entrevista provoca o sujeito a revelar sentimentos, concepções, percursos formativos e suas projeções, também através dos gestos, olhares e silêncios. A técnica exige do pesquisador escuta atenta durante a narrativa central, para que ao perceber o final da narrativa, faça questionamentos pertinentes em busca do aprofundamento das questões de pesquisa, “este é o momento em que a escuta atenta do entrevistador produz seus frutos” (2002, p. 99). Vale ainda a ressalva de que a realidade da narrativa se associa ao que é real para quem narra; propõem representações/interpretações particulares do mundo; não estão abertas para serem julgadas como verdadeiras ou falsas e estão inseridas no contexto sócio‐
histórico (JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002). A utilização dos Memoriais como dispositivo formativo se inscreve em uma perspectiva de escrita pautada no ato de auto‐bio‐grafar (escrever sobre a própria vida), configurando‐se como um elemento que possibilita “o acesso à vida e à docência através da voz e da letra de quem é professor (a)” (PASSEGGI, 2010, p.1). Por meio do memorial, o sujeito‐autor “[...] narra sua história de vida intelectual e profissional, analisa o que foi significativo para a sua formação [...] sendo também, um modo de cada autor modificar‐se” (PASSEGGI e CAMARA, 2008, p.15). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 216 Segundo Passegi (2011), o memorial pode ser de dois tipos: acadêmico e de formação. O acadêmico é escrito com vistas ao ingresso ou progressão funcional em instituições de ensino superior. O memorial de formação é produzido durante a formação inicial ou continuada, sendo geralmente acompanhado por um orientador. Neles, o autor assume, simultaneamente, os papéis de narrador e de candidato e se inscreve em um movimento de tecer uma imagem pública de si. Nesse tipo de escrita autobiográfica, as trajetórias profissionais e de formação são analisadas pelos autores, com o objetivo de inserir suas histórias na da instituição que serve de cenário para a concepção da escrita. Assim o memorial configura‐se como "um espaço‐
tempo de tensões contraditórias: o da injunção de falar de si, e o de sedução de se inventar pela narrativa" (PASSEGGI, 2011, p.20). Os excertos que aparecerão no próximo espaço desse texto são de um memorial acadêmico, escrito para fins de ingresso no doutorado e de uma entrevista narrativa. Passamos a expor, assim, impressões, memórias e singularidades que emergiram do entrecruzamento dos dois dispositivos e que revelam parte das Histórias de Vida das educadoras: Lícia e Maria Flor50. Das histórias cruzadas: experiências comuns e singulares A leitura de autores como Pineau (2006), Nóvoa (2010), Nóvoa e Finger (2010) Passeggi (2008; 2011), Souza (2006), dentre outros, serviu como fonte inspiradora para revelar os perfis, trajetos e itinerâncias formativas das colaboradoras que conosco partilharam suas singulares memórias, registradas em relatos (oral e escrito) que mesclaram elementos diversos. As professoras tem entre 34 e 50 anos. Lícia é solteira e não tem filhos; é mestre e doutoranda em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), com oito anos de experiência no ensino superior (privado). Maria Flor é casada, mãe de um filho; formada em pedagogia, fez o curso de especialização Arte em Educação e atua há 10 anos na Educação Básica. As acepções sobre o ser/constituir‐se/reconhecer‐se enquanto professoras estão, nos relatos partilhados, ligados às memórias desveladas desde os anos iniciais da infância e as trajetórias retrospectivas da trilha docente. Assim, Uma autobiografia busca sempre “manter coesas” as representações de uma prática cultural eminentemente polimorfa, visto que se propõe nela escrever o que constitui a unidade de uma vida, a história de uma personalidade. Mas, nem por isso, ela deixa de ter um significado social. (POMPOUGNAC, 1997, p. 49) E essa prática cultural eminentemente polimorfa, parafraseando Pompougnac (1997) é encarnada em gestos, hábitos, tempos e espaços. Compreendendo que os caminhos da profissão docente não são apenas diversos, mas também podem ser contraditórios, buscamos nas histórias narrada e escrita compreender: Que marcas da docência são percebidas nas vidas das professoras? E qual a implicação dessas marcas nos seus percursos (formativos e de atuação profissional)? 50
Pseudônimos escolhidos pelas professoras que colaboraram com as pesquisas. A utilização de pseudônimos respeita o que preconiza o Conselho de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, por meio da portaria 196/96, que delimita os marcos dos trabalhos realizados com pessoas. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 217 Na tentativa de compreender esses elementos para com eles estabelecer diálogos, leituras e releituras foram realizadas, ao passo que ao entrecruzarmos as informações do memorial e da entrevista narrativa, emergiram algumas unidades de análise: o lugar que a família ocupa em suas trajetórias; considerações sobre a escola, a universidade e a forte presença de outro espaço formativo; e a escolha, os caminhos e o compromisso com a docência. Passamos a explicitar considerações em torno dessas unidades. O lugar da família Para Lícia, as experiências vivenciadas no contexto familiar, lugar que possibilitou momentos de dor e superação, fornecem as primeiras pistas/marcas sobre sua formação docente. Segundo ela, seus caminhos trilhados dentro do lar, foram mais significativos que os vivenciados na escola. Rejeitada pelos pais biológicos, ela foi acolhida como filha na casa de parentes, cuja preocupação com os estudos ocupava boa parte do tempo e das conversações. A lembrança dos genitores é acompanhada pela reflexão de que “pais de verdade são os que criam e se dedicam a assumir responsabilidades em prol de outro ser”, o que a faz afirmar que os laços se constroem na convivência, no compartilhamento de valores. Tal desprendimento por parte de meus pais biológicos fez com que aos dezesseis dias de nascida fosse levada para viver no interior e ser criada por outra família. As marcas da vivencia em família estão para mim na compreensão de que os verdadeiros laços não são necessariamente os da consanguinidade, mas os da afinidade e comunhão de ideias, na casa espaçosa e cheia de gente, nos almoços de domingo, na comemoração dos meus aniversários que sempre reuniam boa parte da família e amigos (Lícia – Memorial, 2006). Na vida interiorana que levava junto aos familiares que a acolheram, a oralidade teve um papel fundante nas primeiras impressões da professora. “As rodas de conversa no fim da tarde, as brincadeiras na rua com meus pares, as histórias narradas pelos mais velhos e canções aprendidas e cantadas” (Lícia – Memorial, 2006) são descritas como as primeiras aproximações com o universo letrado, vivenciadas na infância. Por conta de um tratamento médico, teve que afastar‐se da escola logo no primeiro ano de estudos, sendo este o único ambiente que, a priori, fornecia os suportes textuais mais conhecidos por ela (os livros didáticos). As leituras dos livros de receita da mãe servem como “distração”. Essa é uma leitura que acontece nos cantos da casa e, principalmente, na cozinha. A rememoração da casa é um movimento que cruza reminiscências infanto‐juvenis e do período da graduação. Na trajetória familiar de Maria Flor a figura que se destaca é a materna, marcada por embates, distanciamentos e presença definidora na continuidade de seus estudos. A mãe é lembrada tanto como aquela que a acompanhou até a alfabetização, no sentido de ser quem a levava para escola, quanto como aquela que não a acompanhava na trajetória escolar, no sentido de cobrar um bom desempenho na escola e de orientar nas necessidades. Sentiu essa ausência durante o percurso escolar. A presença e o incentivo materno surgem como peça fundamental quando Maria Flor, já casada, passa no vestibular e sua ajuda contribui para que ela conclua os estudos. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 218 Eu sou a mais velha e ainda tinha que tomar conta do meu irmão, eu que fazia as tarefas com ele, cuidava dele porque minha mãe tinha que sair para trabalhar. No meu percurso solitário fui me dedicando, me esforçando, fiz o ginásio na escola pública, não sei se minha mãe olhava pra mim e achava que eu não precisava, porque eu sempre fui responsável. Então, depois do meu 2º grau, foi na época que meu pai faleceu e eu tive que trabalhar, aí eu parei de estudar. [...] E foi o momento (quando passa no vestibular) em que, a ausência de minha mãe sentida durante toda a minha adolescência, minha pré‐adolescência, ela esteve muito presente comigo nesse momento da faculdade. (Excerto da entrevista narrativa de Maria Flor, 2012). Diante das adversidades, é possível perceber nos trechos narrados, que Maria Flor venceu os possíveis determinismos, como a falta de acompanhamento dos pais na sua vida escolar. Ela poderia ter se “desvirtuado”, e faz esse destaque em várias passagens de sua narrativa, trazendo a forte influência espiritual para que isso não acontecesse. A doença do pai fez com que a professora passasse por um intenso e precoce movimento de amadurecimento. É relevante destacar o pensamento do pesquisador Henri Bergson (1941) que, em seu livro Matéria e Memória, denomina o trabalho da memória como um trabalho do espírito: “[...] Às vezes, ela implicará um trabalho do espírito que buscará no passado, para dirigi‐las sobre o presente, as representações mais capazes de serem inseridas na situação atual” (BERGSON, 1941, p.82). Ainda sobre memória, Mário Osório Marques lembra que não é ela "[...] uma simples armazenagem, mas estruturação e organicidade. Não só guarda e evoca, mas seleciona e prioriza o que guardar e evocar" (MARQUES, 1999, p.10). Lícia e Maria Flor buscaram nas reminiscências, tempos, momentos e pessoas que fizeram parte dessa trajetória. Isso as levou também a relatar a presença de outros espaços que foram igualmente formativos e marcantes em seus caminhos rumo à docência. A escola; O espaço para além dela e a Universidade: espaços de (trans)formação As discussões em torno da fertilidade da utilização das Histórias de Vida como metodologia de formação impulsiona a reflexão sobre os lugares de aprendizagem da docência, uma vez que o pressuposto é de que a aprendizagem docente se dá à escala da vida, o que obviamente inclui os espaços formais e os tempos sequenciados de formação, mas certamente transcende‐os. Nessa escala, os caminhos e descaminhos trilhados bem como as trilhas futuras se constituem em peças que podem se articular no tabuleiro da vida, em que aprender é, sobretudo, como afirma Josso (2004), aprender consigo a aprender, e para Pineau (2006), aprender é viver e viver é aprender. Isso gera a necessidade de compreender que as professoras buscaram superar as dificuldades, e nessa busca outro espaço formativo surge como fundamental: o espaço religioso. Interessante ressaltar na escrita de Lícia que o espaço “escola” é demarcado como lugar do não prazer; onde se cumpre obrigatoriedades e onde há presenta de conteúdos sem significado. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 219 Apesar dos diversos amigos/afeições conquistados no espaço escolar, não tinha a escola como um ambiente prazeroso, sentia‐me obrigada a dar conta de atividades, conteúdos que não apresentavam sentido para mim. Na fase da adolescência, especialmente aos dezesseis anos, despertei para a importância do estudo. Entretanto, o meu reconhecimento e valor não surgiram na própria instituição escolar, mas em um ambiente religioso.[...] A minha adolescência foi marcada pela contestação, pela curiosidade e pela transgressão do que era imposto pela escola para dar lugar as preferências e os gostos que iam sendo revelados na interação com professores, amigos e colegas, principalmente, fora da escola (Lícia – Memorial, 2006). É no seio de um grupo religioso que ela tem despertada a compreensão acerca da importância dos estudos, o que amplia seus conhecimentos, permite vivenciar um processo de amadurecimento e contribui para que ela mude de postura e atinja a aprovação no vestibular, cuja opção é feita pela Pedagogia. O grupo inspirava leituras diversas para refletir sobre si e sobre o mundo; a professora diz que depois daí, aos dezesseis anos, atenta para a importância do ato de ler e faz desse um ato de aceitação perante os outros e de construção de posicionamentos políticos: “[...] Não era interessante só frequentar, mas ler, se posicionar e interagir com o grupo” (Lícia – Memorial, 2006). O espaço da Universidade na escrita da professora é o que possibilita a ampliação de visão, de horizontes, de possibilidades. Representação de Liberdade, autonomia, vínculos, formação intelectual, ampliação dos horizontes culturais, aprendizados políticos, aprendizados para além das salas de aula (pesquisa), o que a levou a ampliar os estudos em nível de mestrado. Ao mesmo tempo em que considera vaga suas lembranças acerca da escola até o ensino fundamental, Maria Flor não deixa de ressaltar a importância de sua professora de alfabetização, pela afetividade a ela dirigida, bem como a figura de uma professora de geografia do ginásio, por ter validado o seu esforço e compromisso. A turma polêmica da qual fez parte na faculdade, deixou para Maria Flor a certeza de que na universidade aprendeu, sobretudo, a se defender, a se expressar e vencer um pouco sua timidez, ressaltando a contribuição da Pedagogia nesse processo. Tais recordações acentuam o que nos diz Nóvoa (2010, p.55): “a maneira como a pessoa define as situações com que se viu confrontada desempenha um papel primordial na explicação do que se passou”. Assim, os relacionamentos estabelecidos com os professores no processo inicial de escolarização, bem como aqueles com os quais se aprende o ofício docente, revelam as influências que constituem o ser profissional e as opções feitas em torno dessa constituição. Na história de Maria Flor o grupo de estudos de base espiritualista é o espaço que lhe dá uma direção; permite enxergar a Educação em sua completude e a leva ao conhecimento de si. Depois de casada e com filhos resolvi retomar meus estudos. [...] Até então eu fazia vestibular, mas fazia assim, sem nenhum ideal, aí surgiu esse grupo de estudo e apareceu Jair, que foi esse grande mentor na minha vida, falou assim “faz pedagogia”, isso porque tinha todo um trabalho metodológico no grupo, eu participava de seminários ligados à educação, a educação verdadeira e o homem integral, onde o ser humano começa a se permitir ter consciência, autoconfiança, autoestima e foi por aí que me criei, pela Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 220 pedagogia e foi aí que descobri que é a pedagogia fazia muito significado na minha vida. [...] Foi aí que comecei a entender a verdadeira e genuína importância da Educação na vida individual, social, ou seja, educação como um todo (Excerto da entrevista narrativa de Maria Flor, 2012). Esses outros espaços formativos configuraram‐se como lócus de amadurecimento e certificação do caminho que trilhariam as professoras: a docência. A partir da convivência com esses grupos, ambas as colaboradoras certificam‐se que a profissão professora seria realmente a opção escolhida. Isso as implica e provoca, cotidianamente, a serem mais comprometidas com essa escolha. A escolha, os caminhos e o compromisso com a docência Segundo Pineau (2006), a formação docente se dá por três modos diferentes, porém interdependentes. Para este autor, o professor forma‐se a si próprio, através de uma reflexão sobre os seus percursos pessoais e profissionais (autoformação), forma‐se na relação com os outros, numa aprendizagem conjunta que faz apelo à consciência, aos sentimentos e às emoções (heteroformação) e forma‐se através das coisas (saberes, técnicas, culturas, artes, tecnologias) e da sua compreensão crítica (eco‐formação). Para Lícia, a docência foi um caminho de encontro consigo mesma, ressignificando a sua identidade pessoal e profissional. Assim, com leituras que proporcionaram uma visão mais politizada do contexto em que estava inserida, dentro do grupo religioso frequentado, ela ingressa na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) no Curso de Pedagogia. Foi preciso deslocar‐se da casa dos pais, em Alagoinhas, para a cidade de Feira de Santana para cursar a graduação. Os estudos, as discussões e reflexões incessantes sobre a vida e a formação na universidade marcaram a construção da sua identidade profissional e da prática docente: A leitura proporcionou‐lhe o movimento de caminhar para si, descobrindo‐se nos percursos da docência. A pesquisadora Michele Petit (2009, p. 112) constata que, a revisitação das nossas histórias de vida e marcas da docência também podem ser o ponto de partida para a reconstrução da identidade dos sujeitos em diferentes momentos: “Do nascimento à velhice, estamos sempre em busca de ecos do que vivemos de forma obscura, confusa, e que às vezes se revela, se explicita de forma luminosa e se transforma, graças a uma história, um fragmento, ou uma simples frase”. Nesta busca dos ecos vividos nas memórias das professoras emerge um aspecto importante: o comprometimento que possuem com a escolha que fizeram. O compromisso com a docência é evidenciado em vários momentos por elas, narrados e escritos. Maria Flor relata que possui um "profundo respeito" pelos educandos, considerando suas histórias e saberes advindos de outros espaços formativos, que não os da escola, sempre politizando e refletindo sobre sua prática pedagógica. Assim, se descreve como uma educadora que: [...] a cada dia descobre, busca métodos para trabalhar, sendo inspirada por meus alunos, porque apesar da contextualização de vida deles, são crianças que tem potencial, pena que não são explorados de forma significativa. Sou uma educadora, como também sou educanda porque eu aprendo muito com meus educandos e busco a cada dia melhorar não só como profissional, mas como ser humano porque isso passa, essas crianças são Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 221 muito perceptivas, elas sentem, os alunos tem muito a cara da professora. Então, o trabalho de educação não é só ensinar e aprender tem muita coisa por trás disso. (Excerto da entrevista narrativa de Maria Flor, 2012). Lícia afirma que a partir do exercício profissional ela compreende que a docência configura‐se como uma atividade imprevista, por ser desenvolvida entre seres humanos, mas que não dispensa planejamento, flexibilidade, fundamentação teórica e respeito com os alunos, sujeitos cujo conhecimento será mediado e não direcionado pelo docente que assim se compromete. A verdade é que a partir do exercício profissional vamos compreendendo que a docência configura‐se como uma atividade imprevista, por ser desenvolvidas entre seres humanos, mas que requer planejamento, flexibilidade, fundamentação teórica explicita e respeito ao sujeito ao qual iremos mediar o conhecimento (Lícia – Memorial, 2006). O que podemos apreender ao revisitar as narrativas das professoras é que não se pode prescindir da ideia de que o sujeito que aprende está implicado em seus processos de aprender, de “que ele existe na sua humanidade e complexidade, e, ainda, de que a aprendizagem se dá em uma escala de vida” (RIBEIRO e SOUZA, 2011, p. 134). Nesse movimento de caminhar para si encontramos o que Dominicé (2010, p.89) ressalta: “[...] as relações familiares influenciam de forma importante as opções tomadas no curso escolar ou a construção da escolha da profissão”, o que valida a importância de darmos espaço para que as influências reveladas nas narrativas sejam evidenciadas enquanto parte do processo de formação e autonomização dos sujeitos. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos... Essa é uma frase que compõe parte da escrita de Guimarães Rosa em “Grande Sertão Veredas (1986)”, com a qual Lícia finaliza a escrita de seu memorial. As singulares histórias de vida das professoras retratam suas trajetórias e os percursos formativos experienciados no viver da docência, e revelam que a possibilidade de narrar e escrever suas histórias, de participar do movimento de formação/autoformação proporcionou reflexões e ressignificações para à prática docente. Bem como, o agregar de outros significados a própria formação e a conscientização de que essa formação se dá no entrelaçamento de suas vivências nas diversas dimensões que compõe a vida de um sujeito. Entre o tecer das narrativas, as referências e influências que tiveram em cada momento de sua itinerância formativa desvelam tanto o processo de escolha pela docência, quanto como cada professora se torna o que é, conforme nos diz Nóvoa (1992). Ambas reconhecem que o movimento de narrar/escrever potencializa a reflexão e a (re)invenção de si, como diria Guimaraes Rosa: “De cada vivimento real que eu tive, de alegria ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa”(1986, p.82). As professoras demonstraram tamanha capacidade de resiliência, de sobreviver às situações adversas, ao passo que criaram alternativas para controlar os desafios e responder às dificuldades, atitude comum a quem se propõe viver a docência no contexto brasileiro. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 222 Suas recordações‐referência (JOSSO, 2004) contam o que aprenderam experiencialmente, nas circunstâncias da vida. Sendo assim, a história de vida possibilita aqueles que desse movimento participa, sujeitos e também nós pesquisadoras, tomar consciência dos diferentes registros que atravessam a formação, que orientam e operam escolhas; reinventam o vivido e recupera a intensidade das experiências. Reler as nossas memórias, a partir da revisitação das nossas histórias de vida, e encontrar nelas marcas docentes, nos permite vivenciar e rememorar nosso próprio percurso formativo. Isso nos implica e provoca, na medida em que percebemos sua influência em nossa prática docente cotidiana. Portanto, entre narrações e memórias, a docência se desvela como espaço de vida‐
formação. Espaço que promove associações geradoras de aprendizados individuais e coletivos, singulares e plurais, somente possível no curso real das vidas. Referências BERGSON, Henri. Matéria e memória. 1941. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. CHARTIER, Roger (Org.). A história cultural – entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S. A., 1990. DELORY‐MOMBERGER, Christine. Os desafios da pesquisa biográfica em educação. In: SOUZA, Elizeu Clementino (org.). Memória, (auto)biografia e diversidade: questões de método e trabalho docente. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 43‐58. DOMINICÉ, Pierre. O que a vida lhes ensinou. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010. P. 189‐222. (Coleção Pesquisa (auto)biográfica & Educação. Clássicos das Histórias de vida). FISCHER, Beatriz T. Daudt. Cotidiano de pesquisadora: detalhes dos bastidores. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo, v. 4, n. 1, p. 63‐74, 2000. JOSSO, Marie‐Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004. JOVCHELOVITCH, Sandra.; BAUER, Martin W. Entrevista narrativa. In: BAUER, M. W. GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. Anped, São Paulo, n.19, 2002. MARQUES, Mario Osorio (et alii). 4 vidas, 4 estilos, a mesma paixão. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1999. NÓVOA, António (org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1992. NÓVOA, António; FINGER, M. (org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010. PASSEGGI, Maria da Conceição. "Narrar é humano! Autobiografar é um processo civilizatório". In: PASSEGI, Maria da Conceição e SILVA, Vivian Batista da. Invenções de vidas, compreensão de itinerários e alternativas de formação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010, p.103‐130. PASSEGGI, Maria da Conceição; BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre (orgs.) Memorial acadêmico: gênero, injunção institucional, sedução autobiográfica. Natal, RN: EDUFRN, 2011. PASSEGGI, Maria Conceição. BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre (org). Memórias, memoriais: pesquisa e formação docente. Natal, RN: EDUFRN, São Paulo: PAULUS,2008. __________________________; CÂMARA, Sandra Cristinne X. da. Gêneros acadêmicos autobiográficos: desafios do GRIFARS. In: SOUZA, Elizeu Clementino de; PASSEGI, Maria da Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 223 Conceição (org). Pesquisa (auto) biográfica: cotidiano, imaginário e memória. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. PETIT, Michele. A arte de ler ou como resistir à adversidade. Tradução de Arthur Bueno e Camila Boldrini. São Paulo: Ed. 34, 2009. PINEAU, Gaston. As histórias de vida como artes formadoras da existência. In: SOUZA, E.C.; ABRAHÃO, M.H.M.B (org). Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2006. ______________. As histórias de vida em formação: gênese de uma corrente de pesquisa‐
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Na pesquisa busco investigar os saberes e o processo formativo dos Monitores/educadores das Escolas Famílias Agrícola (EFAs) do Médio Jequitinhonha, estado de Minas Gerais, tendo em vista a escassez de estudos sobre estes profissionais no âmbito das pesquisas sobre formação de professores no Brasil, bem como a complexidade do trabalho docente no contexto das EFA´s. Especificamente, objetivo nesta comunicação apresentar algumas discussões e reflexões sobre o percurso teórico‐metodológico da pesquisa, que se desenvolve a partir de uma abordagem qualitativa e emprega o método (auto)biográfico, apoiando‐se nas contribuições de autores como Antônio Nóvoa (2007), Antônio Nóvoa e Matthias Finger (2010), Carlos Marcelo García (1999), Elizeu Clementino de Souza (2007; 2008), dentre outros. Palavras‐chave: Educação do Campo; Formação de educadores; Escola Família Agrícola; Pedagogia da Alternância; Monitor. Introdução A Educação do Campo emerge como processo de luta e conquistas para os povos do campo, na perspectiva de uma educação que atenda às suas necessidades e expectativas de uma melhor qualidade de vida. O movimento da Educação do Campo contrapõe‐se ao histórico abandono do Estado brasileiro em relação à educação dos povos do campo e, também, a perspectiva conservadora que marcou a Educação Rural, que se caracterizou pela oferta de uma escolarização inconstante, precária e urbanocêntrica que pretendia incorporar os camponeses como forças produtivas do capitalismo em expansão no campo. Embora as iniciativas da Educação do Campo tenham se concentrado nas últimas duas décadas, quando se multiplicaram experiências alternativas tocadas pelos Movimentos Sociais do Campo para superar o abandono do Estado e, por outro lado, a ação mais coordenada dos movimentos sociais do campo, fizeram exigir políticas públicas específicas para superar o quadro de exclusão educacional que marca a população do campo, podemos encontrar a gênese destas iniciativas em décadas anteriores. É o caso das Escolas Famílias Agrícolas que começaram a ser criadas no Brasil em 1969, expandindo‐se nas décadas seguintes. Até 2009, existiam no Brasil 263 Centros Familiares de Formação por Alternância – CEFFAS, novos estudos estão sendo feitos para atualizar este número. Estas escolas se configuram como uma experiência pedagógica exitosa, pois tem atendido filhos e filhas de pequenos agricultores e trabalhadores rurais, oferecendo‐lhes uma formação articulada ao desenvolvimento do campo em uma perspectiva emancipatória. Entretanto, as EFA’s têm enfrentado uma série de desafios, entre os quais podemos citar o seu financiamento, a permanência e formação do quadro de educadores das EFAs, que são designados de Monitores. Segundo Araújo (2010), a formação dos educadores que atuam nas escolas do campo ainda se encontra num contexto em que “Os educadores do campo, em sua grande maioria, Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 225 enfrentam sobrecarga de trabalho, alta rotatividade [...], dificuldade de acesso a determinadas comunidades, salários inferiores, baixa qualificação profissional, revelando a inexistência de políticas públicas voltadas para os educadores [...]” (ARAÚJO, 2010, p. 132). Há uma problemática extensa na realidade deste educador, em meio a qual se situa a sua formação. Neste cenário, este texto problematiza sobre a formação do educador desta escola que se pretende ser diferenciada. Se a escola é diferenciada, assim também o educador dever ser? Propomos então uma discussão deste no campo da sua preparação, da sua formação para que dê conta de atuar e ao mesmo tempo potencializar o processo, respeitando as especificidades do campo e ajudando os sujeitos em formação a se descobrirem e valorizarem suas raízes. De forma mais específica, o nosso alvo principal é discutir a formação do educador da Escola Família Agrícola (EFA) do Médio Jequitinhonha, no estado de Minas Gerais, Brasil, trazendo resultados parciais de nosso projeto de trabalho final do curso de Mestrado Profissional em Educação do Campo, que vem sendo realizada na UFRB. Nosso trabalho pretende uma aproximação com o método autobiográfico, portanto será um dos nossos objetivos dialogar com esta perspectiva com base em autores de destaque nesta temática. Nosso artigo está estruturado em três partes: primeiro traremos discussões sobre o campo da formação de professores (incluindo no campo), abordando a perspectiva autobiográfica; depois trataremos da experiência das Escolas Famílias Agrícolas com ênfase no trabalho do monitor e por fim, nossas reflexões tendo como base a pesquisa de mestrado em andamento. O campo da formação de professores: desafios no contexto da educação do campo e a perspectiva da autobiografia A formação docente, seja inicial ou continuada, tem se constituído em elemento de grande preocupação no contexto das políticas e da produção acadêmica na atualidade (GATTI, 2009). A importância atribuída ao educador está inclusive respaldada na Constituição Federal da República Federativa do Brasil (promulgada em 1988), que em seu Artigo 206, item V, estabelece a “valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)”. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), considerada a lei maior da educação nacional institui no seu Título VI, Arts. 61 a 67, a formação docente como elemento importante para o exercício do magistério, configurando‐o, inclusive como um direito dos professores. Araújo (2010, p. 132), ao analisar o que a LDB propõe em termos de formação docente no marco legal da educação brasileira afirma que para a LDB, a formação de professores, levando em consideração as etapas de ensino, modalidades e especificidades, baseia‐se em dois fundamentos: “I ‐ a associação entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço; II ‐ aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e outras atividades” (BRASIL, 1996). É importante salientar que mais que um direito legal, a formação docente é uma necessidade que de uma forma ou de outra se manifesta no cotidiano da escola, nas atividades pedagógicas e administrativas, no planejamento, condução e avaliação das Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 226 temáticas trabalhadas nas aulas, na relação com o estudante, sua família e comunidade, enfim, para intervir na realidade complexa que é ensinar e aprender. Neste sentido, entendemos que a preparação prévia e durante o processo é imprescindível para que tal projeto educativo cumpra com seus objetivos. Para Gimonet (2007, p. 150), a Formação Pedagógica Inicial constitui uma obrigação do educador que começa seu trabalho. Já a formação continuada dará o direcionamento para “ampliar o campo do conhecimento e das competências” já adquiridas. Dessa forma, percebemos a formação do educador aquela que acompanha o mesmo na entrada e, posteriormente, na caminhada profissional, juntando a prática à sua teorização. Garcia (2005, p. 26) define a formação de professores como um campo “de conhecimentos, investigação e de propostas teóricas e práticas, no âmbito da Didáctica e da Organização Escolar”. Ao tratar da formação dos professores, seja inicial ou continuada, é importante trazer outras preocupações que acabam influenciando as partes. Há uma realidade de desencanto em relação ao trabalho docente. Lapo e Bueno em estudo sobre este tema discutem os conflitos que cercam esta realidade na caminhada profissional dos professores, o que muitas das vezes contribui para a sua evasão desta profissão. Seus estudos trazem constatações de motivações para a desistência da profissão docente, tais como: condições inadequadas de trabalho; baixos salários; não permanência regular dos docentes nas escolas (rotatividade); regulação excessiva do professor (burocracia); recursos materiais insuficientes; apoio técnico‐pedagógico insatisfatório; tempo insuficiente para formação (LAPO e BUENO, 2003). Lelis (2012) também aponta problemáticas no que se refere à prática docente e indica ainda “a sobrecarga de trabalho, o esgotamento crescente que vem acometendo os professores e as dificuldades que enfrentam de atualização profissional”. Em artigo sobre os dez anos de pesquisas sobre a formação de professores51, Marli André trata da importância desta temática como destaque na área educacional. Nos últimos cinco anos, periódicos de reconhecida importância para a área apresentaram dossiês ou números temáticos que focalizam o tema da formação docente. Nos principais encontros científicos da área, o número de trabalhos sobre essa temática cresce a cada ano. Nos discursos políticos e na mídia, o tema também vem sendo recorrentemente mencionado (2006, p. 605). Por outro lado a autora questiona tamanho interesse pela formação dos professores: “quais aspectos tem sido privilegiados nos estudos sobre formação de professores? Quais os temas emergentes e quais os silenciados? Que metodologias vêm sendo utilizadas nesses estudos? Que resultados vêm sendo apontados nos trabalhos?”52 (ANDRÉ, 2006, p. 605). Tardif (2012, p. 240‐242) propõe mudanças substantivas na formação de professores tendo como base as atitudes de pesquisa já apontadas anteriormente. Primeiro, é preciso admitir que os professores são sujeitos portadores e construtores de conhecimentos e estes deveriam ser reconhecidos e ouvidos como direito sobre sua própria formação, seja nas Instituições de Ensino Superior (IES) ou não. Segundo, a formação docente deveria se basear 51OartigoDezanosdepesquisassobreformaçãodeprofessoresdeAndré(2006)objetivoucomparardados
dasituaçãode1992comade2002,averiguandoosacontecimentosnesseespaçodetempo.
52Paraaprofundarnasquestõescolocadas,favorconsultarAndré(2006).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 227 nos conhecimentos dos professores, tendo em vista a sua especificidade. O currículo da formação dos professores é na sua maioria de conteúdos disciplinares e não trazem os saberes relacionados à profissão, ao trabalho docente em si. Há uma distância entre a teoria e a prática da formação e as condições de trabalho dos professores. Na formação de professores ensinam‐se teorias sociológicas [...], psicológicas, didáticas, filosóficas, históricas, pedagógicas, etc., que foram concebidas, [...] sem nenhum tipo de relação com o ensino nem com as realidades cotidianas do ofício do professor. Além do mais, essas teorias são muitas vezes pregadas por professores que nunca colocaram os pés numa escola ou, o que ainda é pior, que não demonstram interesse pelas realidades escolares e pedagógicas [...]. Assim, é normal que as teorias e aqueles que a professam não tenham, para os futuros professores e para os professores de profissão, nenhuma eficácia nem valor simbólico e prático (TARDIF, 2012, p. 241). Em terceiro, de acordo com Tardif, o ensino atual tem sua organização na lógica disciplinar, ou seja, de forma fragmentada onde os estudantes recebem aulas que sequer tem qualquer relação entre si. Para o autor, a proposta não é excluir ou esvaziar a “lógica disciplinar dos programas de formação para o ensino, mas pelo menos abrir um espaço maior para a lógica de formação profissional que reconheça os alunos como sujeitos do conhecimento [...]” Tardif (2012, p. 242). Uma outra metodologia desponta no cenário mundial e nacional de formação de professores, profissão docente e pesquisa: as histórias de vida e autobiografias. Em análise do texto de Bueno et al (2006), onde pretendeu revisar os trabalhos educacionais que usaram estes temas como “como metodologia de investigação científica no Brasil”, no período de 1985 a 2003, podemos perceber o avanço desta metodologia, principalmente nos anos 90, ganhando “visível impulso no Brasil nos últimos quinze anos” (p. 385‐387). Afirma o autor português Nóvoa, referência na pesquisa destas abordagens, que “os métodos biográficos [...] e as biografias educativas assumem, desde o final dos anos 70, uma importância crescente no universo educacional” (p. 18). Segundo Nóvoa, o uso “das abordagens (auto) biográficas é fruto da insatisfação das ciências sociais em relação ao tipo de saber produzido e da necessidade de renovação dos modos de conhecimento científico”, “nasceu no universo pedagógico, numa amálgama de vontades de produzir um outro tipo de conhecimento, mais próximo das realidades educativas e do quotidiano dos professores”. Este movimento tem como fato marcante o livro publicado por Ada Abraham em 1984, intitulado O professor é uma pessoa. A partir daí, surgiram muitos estudos sobre “a vida dos professores, as carreiras e os percursos profissionais, as biografias e autobiografias docentes ou o desenvolvimento pessoal dos professores”, recolocando os professores de forma central nos debates e pesquisas educacionais (NÓVOA, 2007, p. 15‐19). É importante questionar: “Como é que cada um se tornou no professor que é hoje? E por quê? De que forma a acção pedagógica é influenciada pelas características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada professor?” Para responder a estas perguntas, Nóvoa (2007) apresenta três AAAs que sustentam aquilo que para ele identifica um professor: Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 228 __ A de Adesão, porque ser professor implica sempre a adesão a princípios e a valores, a adopção de projectos [...]. __ A de Acção, porque também aqui, na escolha das melhores maneiras de agir, se jogam decisões do foro profissional e do foro pessoal. Todos sabemos que certas técnicas e métodos “colam” melhor com a nossa maneira de ser do que outros. Todos sabemos que o sucesso ou o insucesso de certas experiências “marcam” a nossa postura pedagógica, fazendo‐nos sentir bem ou mal com esta ou com aquela maneira de trabalhar [...]. __ A de Autoconsciência, porque em última análise tudo se decide no processo de reflexão que o professor leva a cabo sobre a sua própria acção. É uma dimensão decisiva da profissão docente, na medida em que a mudança e a inovação pedagógica estão intimamente dependentes deste pensamento reflexivo (NÓVOA, 2007, p. 16). As autoras Bueno et al indicam a diversidade de nomes usados por vários autores: memória(s), lembranças, relatos de vida (récit de vie), depoimentos, biografias, biografias educativas, memória educativa, histórias de vida, história oral de vida, história oral temática, narrativas, narrativas memorialísticas, método biográfico, método autobiográfico, método psicobiográfico, perspectiva autobiográfica. Vale ressaltar que muitos trabalhos usam mais de uma denominação, deixando implícita a idéia de que são tomadas como sinônimos (2006, p. 388). Para Souza (2008): Trabalhar com narrativa [...] como perspectiva de formação possibilita ao sujeito aprender pela experiência, através de recordações‐referências circunscritas no percurso da vida e permite entrar em contato com sentimentos, lembranças e subjetividades marcadas nas aprendizagens experienciais [...] com base em experiências e aprendizagens construídas ao longo da vida. A década de 90 é marcante para o avanço do método autobiográfico no Brasil através de textos acessados em nosso país, publicados em Portugal, “reunindo colaborações de autores portugueses, franceses, suíços, italianos, com teorias e investigações sobre o método autobiográfico como recurso metodológico e como fonte de pesquisa, foi um dos aspectos definidores do cenário que se desenha nos anos de 1990”. Um fato marcante para tal expansão é “A publicação em Portugal, em 1992, de Vida de professores e Profissão professor, duas coletâneas organizadas por António Nóvoa (1995a; 1995b)”, sendo muito repercutido em nosso país (BUENO et al, 2006, p. 391). Nóvoa ressalta que este método tem sido alvo de críticas e aponta duas predominantes em correntes da psicologia e sociologia: “no primeiro caso, centrada na frágil consistência metodológica, na ausência de validade científica ou nas dimensões analíticas implícitas nas abordagens (auto)biográficas; no segundo caso, baseadas no esvaziamento das lógicas sociais, numa excessiva referência aos campos individuais e na Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 229 incapacidade de apreender as dinâmicas colectivas de mudança social” (2007, p. 19). Por outro lado Bueno et al (2006) conclui que a recorrência das metodologias citadas em nosso país, “contribuiu para renovar a pesquisa educacional sob vários aspectos, notadamente no que diz respeito à pesquisa e à formação de professores”, motivando olhares para novos temas e questões, como “profissão, profissionalização e identidades docentes” (p. 402). Discutindo a relação da pesquisa com a temática da formação dos professores, chama‐nos à atenção os temas mais silenciados na pesquisa da formação de professores. Com poucas pesquisas ou quase nenhuma, identificamos a formação dos professores que trabalham em movimentos sociais e no meio rural (André e Romanowski, 2002). A nossa pesquisa trata de um tema insistentemente pesquisado de forma geral, a formação de professores, mas de forma irrisória no campo em que pisamos, o chão das Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), o chão da Educação do Campo. A formação de professores do campo no contexto da Educação do Campo A formação dos educadores é uma das várias pautas nas lutas dos movimentos sociais organizados em prol de uma Educação do Campo e no Campo, conforme evidenciamos no texto de Caldart, Elementos para Construção do Projeto Político e Pedagógico da Educação do Campo, vemos a análise das demandas apresentadas pela Articulação por uma Educação do Campo ao Governo como pauta de política pública para a Educação do Campo (2004). Entre essas, podemos ressaltar a “reivindicação por políticas públicas de formação de educadores, quando as pesquisas educacionais informam que existe uma enorme quantidade de professores atuando nas escolas do campo sem uma formação específica” (SILVA e GOMES, 2010). Para tanto, Caldart (2004) afirma que “Construir a Educação do Campo significa educadores e educadoras do e a partir do povo que vive no campo como sujeitos destas políticas públicas [...], do projeto educativo que nos identifica”. Neste bojo, a formação dos educadores do campo é um elemento essencial para a realização do projeto que almeja os povos do campo, “Por isso defendemos com tanta insistência a necessidade de políticas e projetos de formação das educadoras e dos educadores do campo” (p. 158). Arroyo (2007) discute situações e condições necessárias para se ter uma educação do campo e no campo e neste sentido, o corpo docente é peça essencial para que este projeto seja construído e implementado com coerência aos princípios que requer esta educação, entretanto, discute o currículo da escola e da formação dos educadores, mas enfatiza que antes e ao mesmo tempo, é preciso que a formação dos educadores esteja num projeto de desenvolvimento do campo como um todo, e isso inclui pensar nas próprias condições de trabalho de forma geral para o trabalho do professor. No seu entender, os parâmetros para um projeto educativo não deve ser o urbano, mas sim as práticas vivenciadas nas experiências dos movimentos sociais e no campo. É consenso nas pesquisas realizadas sobre educação que a qualidade do ensino está diretamente relacionada com a formação de qualidade dos profissionais da educação. Infelizmente, os dados demonstram que o nível de escolaridade dos professores que atuam nas escolas da zona rural é de carência total (SILVA e GOMES, 2010, p. 09) Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 230 Os princípios que sustentam a escola família agrícola e as especificidades do trabalho dos monitores As Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) são Centros de Formação de escolarização que atuam na Educação do campo, especialmente a filhos e filhas de agricultores e agricultoras familiares53, através da Pedagogia da Alternância (PA). Estas escolas fazem parte dos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs) que constituem uma articulação de redes de escolas que utilizam a PA. Em 2008, existiam 1.325 CEFFAs54 distribuídos nos cinco continentes do mundo. Na América eram encontradas 593 CEFFAs distribuídos em 17 países, onde o Brasil representa 44% desse total (CALVÓ, 2010, p. 110‐117). As EFAs de Minas Gerais contam (desde 1993) com a Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas (AMEFA) que agrega em 2014 vinte EFAs em funcionamento, abrangendo várias regiões do estado. Embora, este tipo de escola tenha se adequado bem à realidade dos/as agricultores/as brasileiros/as, esta experiência nasce na França, em 21 de novembro de 1935. As primeiras EFAs brasileiras foram implantadas no estado Espírito Santo no final da década de 60. O estado da Bahia foi o segundo a implantar esta experiência (em 1975), chegando em Minas em 1984 com a primeira experiência de Alternância no município de Muriaé, região da Zona da Mata Mineira.55 Escola Família Agrícola: conceitos e princípios As EFAs surgem no seio da agricultura familiar. Os agricultores e agricultoras têm um papel fundamental na gestão das escolas como protagonistas, no volante de uma escola camponesa do campo e no campo, dando a direção para os objetivos a serem alcançados para a educação de seus filhos. As EFAs funcionam com base em 4 princípios fundamentais, os pilares que sustentam e caracterizam uma Escola Família Agrícola e que a diferencia de outras escolas convencionais. “Estes pilares constituem as invariáveis do movimento mundial dos CEFFAs” e são apresentados de forma generalizada (GIMONET, 2007). Como tal, são resultados da sua construção histórica, sendo as bases de funcionamento e de identidade destas escolas no Movimento mundial, com seus meios e objetivos (CALVÓ, 1999). A Figura a seguir nos mostra o esquema dos referidos princípios ou pilares. 53
Em muitas efas do Brasil, encontra‐se também indígenas e quilombolas, inclusive em Minas Gerais. Para a contabilização do número de ceffas foi utilizado o critério da garantia mínima do trabalho com os quatro princípios: Associação de pais, Pedagogia da Alternância, Formação Integral e Desenvolvimento do meio (CALVÓ, 2010). 55
Para aprofundar no processo histórico das efas desde sua origem, consultar autores como Nosella (2013), Zamberlan (2003), Begnami (2003). 54
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 231 Figura 01 – Os quatro pilares dos CEFFAs56 Fonte: Calvo (2005, p.29) Os princípios meios são aqueles que na sua implementação devem levar o projeto educativo a alcançar suas finalidades: uma formação integral e o desenvolvimento do meio onde vive o estudante e sua família. Neste quadro, destacamos a Pedagogia da Alternância57 que cumpre um papel fundamental na estruturação pedagógica da EFA e é onde mais se dá a atuação profissional dos monitores, mas reforçamos a importância dos quatro pilares para que uma EFA de fato cumpra seu papel. O educador da Escola Família Agrícola: “um ator em complexidade” Na pedagogia tradicional, o professor é considerado o mestre, aquele que detém o saber, que possui mais conhecimentos; ao aluno resta se adaptar à lógica do professor e da escola. Admitindo uma nova Pedagogia, segundo Gimonet, é o programa e o professor que devem se adaptar ao aluno. “O professor neste caso não é mais aquele que tem mais conhecimentos, mas aquele que acompanha, guia, orienta em direção às fontes do conhecimento, ajuda na construção destes, facilita as aprendizagens, ensina quando necessário” (1999, p. 24). Begnami entende que os monitores “são fundamentais como catalisadores de todo o processo educativo” (2003, p. 47). Já Gimonet define‐o como um “ator em complexidade”, “um componente essencial do sistema de formação alternada. É sobre ele que se apóia, no dia a dia, o funcionamento pedagógico, educativo e material do CEFFA”. A complexidade referida por Gimonet se dá quando este educador se compromete numa diversidade de “encontros e confrontos” com os estudantes adolescentes, jovens e adultos, com “as realidades da vida profissional”, “com os parceiros co‐formadores”, “com os diferentes tipos de saber”, com a animação da vida de grupo e com a vida da EFA e sua associação de pais (2007, p. 145‐147). Seguindo a abordagem do autor, o monitor tem um lugar na interseção do sistema da EFA, onde se vê dentro de conjuntos variados e o compara a um “clínico geral”. 56
Além das EFAs, estes pilares sustentam também a proposta das CFRs e ECORs. Faz parte desta pedagogia um conjunto de instrumentos pedagógicos que disciplinam, direcionam e permitem a alternância dos tempos escola e comunidade de forma integrativa. 57
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 232 Ele não pode ser um professor centrado em sua disciplina. Ele passa a ser, pela própria estrutura e o projeto educativo, um agente de relação e de comunicação entre diferentes instâncias do sistema. Ele tem uma função mediadora nas relações da pessoa alternante com ela mesma, com o saber, com o outro, com o grupo, com os adultos de seu ambiente” (GIMONET, 1999, p. 125). Ainda tratando da função de “clínico geral”, Gimonet classifica o trabalho polivalente do monitor em pelo menos 4 tipos diferentes: ‐ de relação e de animação das estruturas dentro das quais ele age: ‐ A Associação do CEFFA a qual precisa dar vida [...]; ‐ A rede dos parceiros co‐formadores [...]; ‐ A vida interna do CEFFA como estrutura material e estrutura educativa; ‐ Os diferentes grupos [...] da vida residencial no CEFFA. ‐ de educação com relação aos jovens [...] permitir ao alternante encontrar‐
se, construir sua identidade, crescer, e conquistar a sua autonomia [...]. ‐ técnicas em termos de competências e de conhecimentos dentro dos campos profissionais com os quais os jovens em formação são confrontados [...]. ‐ pedagógicas para colocar em prática as metodologias, os instrumentos, o saber‐fazer apropriado a fim de articular os tempos e os lugares da formação, associar e colocar sinergia os conhecimentos profissionais e gerais, otimizar as aprendizagens (GIMONET, 1999, p. 127‐128). Inquietações de uma pesquisa em curso Considerando as questões acima apontadas, pretendemos apresentar a seguir inquietações que tem motivado nossa pesquisa de conclusão do curso de Mestrado Profissional em Educação do Campo na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. As motivações que nos levaram a esta investigação partem da experiência como monitor e assessor das EFAs da região do Médio Vale do Jequitinhonha, estado de Minas Gerais‐Brasil. Várias inquietações nos motivam a persistir neste estudo, bem como: Até que ponto as formações implementadas pela Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas – AMEFA, nos últimos anos dão conta de formar os monitores das EFAs do Médio Jequitinhonha para interferir na realidade atual? Quais passos podem ser dados para que os monitores tenham uma formação inicial e contínua de forma mais efetiva? Que outros tipos ou modelos das formações em alternância são possíveis e necessários, além da Formação Inicial e Continuada proposta e da Formação Emergencial Pedagógica? Além das formações promovidas pela AMEFA, quais outras formações foram importantes para o trabalho na Educação do Campo? A EFA também busca formação para seus monitores? Os monitores praticam a auto‐formação? Os monitores buscam formação em Alternância e Educação do Campo por iniciativa própria? Neste sentido, temos como objetivo investigar e analisar os saberes destes educadores, entender como estes saberes são construídos e praticados, no intuito de contribuir para a melhoria da formação dos educandos e da prática dos tipos de formação, de modo que possamos ter subsídios para repensar e reformular os processos formativos Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 233 construídos pelo Movimento EFA, especialmente pela AMEFA, entidade que coordena o processo de formação dos monitores das EFAs de MG e desta região. De forma específica, a nossa pesquisa visa a compreender como se processa a formação de monitores das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil, enquanto sujeitos da própria história, especialmente nas EFAs do Médio Vale do Jequitinhonha, tanto nos aspectos formais, quanto informais e contribuir para formulações de processos formativos; analisar como se dá o engajamento desses monitores no projeto EFA, tomando consciência de que para pertencer a esta instituição, exige militância, além de competência; descrever, analisar e refletir sobre os significados das experiências de formação vivenciadas pelos monitores no trabalho da EFA. Nossa pesquisa tem como contexto o espaço da educação, e de forma mais especial, a Educação do Campo, que se destina “a sujeitos históricos, culturais e sociais”, sendo assim, estamos estudando as opções metodológicas com direção à “abordagem qualitativa” (ARAÚJO, 2010, p. 140). O método autobiográfico se apresenta como opção principal, enquanto caminho investigativo. Segundo Ferrarotti (1988), a autobiografia está dentro se caracteriza como uma abordagem qualitativa, quando se ocupa dos sentidos que as pessoas colocam nas várias experiências vivenciadas. Este método se identifica com aquilo que queremos: temos a preocupação com os acontecimentos, com os resultados, mas com o percurso até chegar lá, o processo é mais importante, pois pode revelar muito mais do que os próprios resultados. Este método, assim como outros possíveis, está sendo analisado, estudado e no caminhar da pesquisa, iremos moldando e lapidando‐o de forma a definir os melhores instrumentos e ferramentas a serem utilizadas para colher e qualificar os dados, de forma que sejam importantes para a compreensão pretendida. Considerações finais O que se pretendeu com este texto foi socializar as reflexões e impressões iniciais de uma pesquisa iniciada no curso de Mestrado citado. Portanto, permitiu‐nos trazer à tona as discussões sobre a formação de educadores de forma geral, no campo e, de maneira especial, nas Escolas Famílias Agrícolas. Foi importante perceber a Educação do Campo como projeto com questões diferenciadas para as escolas do campo, o que exige tamanha percepção, disponibilidade, interesse e capacidade do educador para não se submeter mais uma vez à imitação da escola urbana. Para tanto, a sensibilidade e flexibilidade fazem parte do perfil deste educador, mas é imprescindível se pensar a formação destes também de forma diferenciada e efetiva. No que tange ao educador da EFA, esta complexidade aumenta ainda mais, visto que a Alternância, como metodologia própria e apropriada, exige um olhar múltiplo sobre o processo, e como tal, uma formação inicial e continuada que dê conta de preparar o monitor a ser um mediador das várias relações existentes no contexto de uma EFA. Para tanto, esse aprofundamento teórico pode ser importante para ajudar os próprios educadores a refletirem sobre seus processos de formação, entendendo ou problematizando as contradições do seu trabalho. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 234 Referências ANDRÉ, Marli E. D. A. de. Dez anos de pesquisas sobre formação de professores. In: BARBOSA, Raquel L. L. (Org.). Formação de educadores: artes e técnicas, ciências políticas. São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 605‐616. ARAÚJO, Sandra R. M. de. Educadores do Campo: descobrindo os caminhos da formação inicial para os monitores das Escolas Famílias Agrícolas do Estado da Bahia. Revista FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, v. 19, p. 131‐144, 2010. Disponível em: http://www.uneb.br/revistadafaeeba/files/2011/05/numero34.pdf. Acesso em 16 de julho de 2013. ARROYO, Miguel G. Políticas de Formação de Educadores(as) do Campo. Cad. Cedes, Campinas, vol. 27, n. 72, p. 157‐176, maio/ago. 2007 BEGNAMI, João B. 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Para tanto, traremos um pouco do contexto histórico da educação do campo e, especialmente, do ensino em escolas multisseriadas. Faremos uma rápida discussão sobre o trabalho docente nesses espaços e, por fim falaremos, dos desafios enfrentados pelos docentes que trabalham nessas classes a partir da análise de depoimentos de um professor que trabalhou de 1996 a 2000 e de uma professora que ainda atua em classes unidocentes. Essa discussão tem como objetivo mostrar que, apesar das dificuldades que envolvem o trabalho em classes dessa natureza, é preciso considerar a importância que elas têm para as comunidades nas quais estão inseridas. As reflexões tecidas no referido artigo estão fundamentadas em Farias (2008), Hage (2006, 2010, 2011), Santos, (2012), Tardif (2002), Arroyo (1999, 2004, 2006). Soma à contribuição desses autores o Nº 6.755, DE 29 de janeiro de 2009 e o Decreto 7352 de 04 de novembro 2010. Os depoimentos apresentados nesse trabalho, em sua maioria revelam uma quantidade enorme de problemas que dificultam, em alguns casos até impedem, o trabalho nessas escolas isoladas e unidocentes. Mostra também, que apesar de todas as dificuldades é possível perceber aspectos positivos, sobretudo, se analisarmos sob a ótica dos estudantes e da comunidade onde se encontram tais escolas. Palavras‐chave: Educação do Campo; Classe Multisseriada; Trabalho Docente. Introdução O presente trabalho é resultado da análise de depoimentos coletados durante cursos de formação de professores ministrados em alguns municípios do interior da Bahia. Apesar de saber da relevância de caracterizar tais municípios não o faremos em função do número de páginas destinadas à construção desse artigo e considerarmos existir elementos mais importantes que não poderiam deixar de serem tratados. Aqui queremos apresentar alguns elementos que caracterizam as escolas multisseriadas e refletir sobre a implicação dos mesmos no desenvolvimento da prática pedagógica na tentativa de contribuir com o processo de desconstrução do mito que envolve as classes dessa natureza e as culpabilizam pela má qualidade do processo de ensino aprendizagem desenvolvido nas escolas do campo. Para tanto traremos um pouco do contexto histórico da educação do campo e, especialmente, do ensino em escolas multisseriadas. Faremos uma rápida discussão sobre o trabalho docente nesses espaços e por fim falaremos dos desafios enfrentados pelos docentes que trabalham nessas classes a partir da análise de depoimentos de um professor que trabalhou de 1996 a 2000 e de uma professora que ainda atua em classes unidocentes. Essa discussão tem como objetivo mostrar que, apesar das dificuldades que envolvem o Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 237 trabalho em classes dessa natureza, é preciso considerar a importância que elas têm para as comunidades nas quais estão inseridas. Refletindo sobre a Educação do Campo a Partir do Contexto das Classes Multisseriadas As discussões sobre Educação do Campo são recentes e datam segundo alguns estudiosos (Caldart, Cerioli e Fernandes) dos anos 90 do século XX, porém a questão da educação do meio rural é tão antiga quanto o processo de colonização brasileira embora só venha aparecer referência específica sobre esta na Constituição de 1934. Embora segundo Souza (2010 p. 132 Apud Santos, 2012 p. 38) seu surgimento data de 1889, com a Proclamação da república quando foi instituída a pasta de Agricultura, Comércio e Indústria, que dentre suas atribuições devia atender aos estudantes do campo. Nos anos 90 do século XX, os segmentos sociais do campo, preocupados com o descaso com que as autoridades governamentais vinham tratando o campo e, sobretudo, a educação destinada à população camponesa, passaram a incluir nas suas pautas de reivindicações dentre outras coisas uma educação de qualidade que aqui é entendida como aquela que possibilita às crianças, jovens e adultos do campo habilidades que, como Diz Nozella, deem a eles condições de viverem dignamente tanto no campo quanto na cidade. Ao recorrermos ao histórico da educação brasileira e percebermos que ela se inicia no meio rural, com o trabalho dos Jesuítas, só em 1934 aparecerá pela primeira vez na Constituição Federal uma referência clara sobre a educação para o meio rural inclusive vinculando recursos destinados à sua manutenção. É preciso lembrar que nossas primeiras instituições escolares eram marcadas pela presença de pessoas de idades diferentes e com níveis de saberes também diferentes, o que poderíamos dizer que essas classes eram um tipo particular de classes multisseriadas. Santos (2012, p. 57), fazendo referência à Lei de 15 de outubro de 1827, diz que as Classes Multisseriasdas também chamada de “escolas de primeiras letras” surgiram de modo institucionalizado durante o Império a partir da Lei de 15 de outubro de 1827 que dizia no artigo 1º que “ em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos haverão as escolas de primeiras letras que forem necessárias” (BRASIL, 1827 Apud Santos 2012 p. 57). Temos presenciado um movimento crescente que defende o fechamento das classes multisseriadas e propõem a nucleação escolar. Em 2010 ouvimos uma secretária de educação de um município baiano se vangloriar por ter conseguido nuclear todas as classes unidocentes do município em questão. Apesar das pressões dos movimentos sociais do campo e demais segmentos sociais do campo para evitar o fechamento dessas classes no Brasil inteiro, e da Resolução nº 2, de 28 de abril de 2008 que cria as Diretrizes Complementares para a Educação do Campo trazerem uma série de critérios a serem considerados no processo de nucleação escolar, recentemente, fevereiro de 2014, um secretário de educação de outro município baiano disse em seu depoimento que estava empenhado em fechar as classes multisseriadas do município uma vez que estas se encontravam funcionando em quartos de casas de pessoas da comunidade ou em casas alugadas sem infraestrutura mínima necessária. A Resolução acima mencionada traz pela primeira vez as normas que orientam o processo de nucleação das escolas do campo. O artigo 4º, parágrafo único, dessa Resolução estabelece que: Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 238 Quando os anos iniciais do Ensino Fundamental não puderem ser oferecidos nas próprias comunidades das crianças, a nucleação rural levará em conta a participação das comunidades interessadas na definição do local, bem como as possibilidades de percurso a pé pelos alunos na menor distância a ser percorrida”, e; “quando se fizer necessária a adoção do transporte escolar, devem ser considerados o menor tempo possível no percurso residência‐escola e a garantia de transporte das crianças do campo para o campo” (BRASIL, 2008, p. 1). Apesar do que propõe a Resolução nº 02 de abril de 2008, no que diz respeito às condições em que devem acontecer o processo de nucleação, esse processo tem sido realizado levando em consideração apenas os aspectos que fragilizam o trabalho das escolas multisseriadas, sobretudo a questão econômica. Nesse sentido Haje (2011 p. 03), diz que [...] são muitos os fatores que evidenciam as condições existenciais inadequadas dessas escolas, que estimulam os professores e os estudantes a nelas permanecerem ou sentirem orgulho de estudar em sua própria comunidade, fortalecendo ainda mais o estigma da escolarização empobrecida e abandonada que tem sido ofertada no meio rural e forçando as populações do campo a se deslocarem para estudar na cidade, como solução para essa problemática. A partir dos relatos anteriormente apresentados cabe‐ nos questionar até que ponto o fechamento das escolas dessa natureza diminuirá os problemas da Educação do Campo? Em alguns momentos essas autoridades se perguntaram qual significado daquela classe na comunidade? Esses questionamentos se deparam com outros relacionados às condições oferecidas para os docentes realizarem seus trabalhos, questões de ordem econômica, haja vista que lema do Capitalismo Neoliberal é fazer muito gastando o mínimo possível de recursos. Não podemos desconsiderar a particularidade que é o contexto das classes multisseriadas, entretanto, também é preciso refletir sobre o que escolas dessa modalidade representam para a comunidade, pois conforme depoimento de um professor “ela (a classe multisseriada) na maioria das vezes é a única possibilidade de contato com o conhecimento sistematizado para as crianças de algumas comunidades”. Nesse sentido Haje, (2006 p.05), destaca que, “as escolas multisseriadas oportunizam aos sujeitos acesso à escolarização em sua própria comunidade, fator que poderia contribuir significativamente para a permanência dos sujeitos no campo, com o fortalecimento dos laços de pertencimento e a afirmação de suas identidades culturais [...]”. As classes multsseriadas em sua maioria estão localizadas no meio rural, segundo o censo escolar 2011 (www.educaao.uol.com.br) ainda existem no Brasil 45.716 escolas com turmas multisseriadas, das quais 42.711 ficam no campo e 3.005 ficam localizadas no meio urbano. A Bahia conta com 6518 classes multisseriadas das quais 6.092 estão localizadas no meio rural. Trabalho Docente em Classes Multisseriadas: Desafios e Interface com a Comunidade Falar sobre trabalho docente na contemporaneidade é uma situação complexa, pois evolve a ética, a formação, a valorização, dentre outros pontos. Quando precisamos falar do Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 239 trabalho docente em classes multisseriadas, a questão torna ainda mais delicada, uma vez que precisamos considerar os pontos citados no período anterior e ainda considerar a complexidade do contexto das classes multisseriadas. Segundo Souza e Santos (2007. P 05), são vários os problemas que envolvem o ensino no meio rural dentre os quais destacam a questão do transporte, das chuvas, a falta de manutenção das estradas, consequentemente a dificuldade de acesso dos estudantes e professores às salas de aulas. Destaca ainda o fato de o currículo adotado e desenvolvido pelas escolas do campo terem como parâmetro o meio urbano. Em si tratando das classes multisseriadas, podemos acrescentar a heterogeneidade, que leva autores como Arroyo (2006), dizer que deveríamos falar em classes multiidade, considerando a particularidade das classes dessa natureza, inclusive para evitar a visão estereotipada que acompanham essas classes. Embora já tenhamos alcançados alguns avanços na melhoria do trabalho em escolas do campo, como concursos específicos para trabalhar em escolas do meio rural, um aumento no número de professores com o diploma de licenciatura em diversas áreas, no que diz respeito ao trabalho em classes unidocentes esses avanços ainda não chegaram. O professor para trabalhar nesses espaços, em sua maioria, vai através de indicações políticas de alguma pessoa com influência na comunidade, como mostra o depoimento abaixo: “Logo que terminei de cursar o antigo magistério no Instituto de Educação Anísio Teixeira, no ano de 1995, fui convidado por uma amiga professora, para substituí – la em sua classe durante o seu período de licença maternidade. Dessa forma assumo a função de professor do ensino fundamental, em uma escola multisseriada localizada a 45 km da sede do município de Caetité, em 1996. Ao retornar, a professora que havia me convidado para substituí – la foi removida para a secretaria municipal de educação deste município e fui mantido na função de regente da Escola Napoleão Bonaparte, na fazenda Passagem de Areia, Caetité – Ba, até o ano de 1999”. (professor de uma escola multisseriada no período de 1996 a 2000) O depoimento acima nos chama a atenção para uma das fragilidades que envolve o trabalho em classes multisseriadas que é questão da falta de concurso específico para os docentes. Essa situação termina gerando uma série de transtornos, primeiro para a comunidade, pois termina recebendo docentes que não queriam estar trabalhando naquele espaço e que, em sua maioria nada conhece sobre a dinâmica da educação do campo, menos ainda da dinâmica do trabalho em classes com tamanha diversidade. Outra situação que marca o trabalho em classes unidocentes é falta de uma infraestrutura adequada, bem como formação inicial e continuada para os docentes dessa modalidade. Nesse sentido os professores dizem que: “A Escola Napoleão Bonaparte funcionava num prédio constituído de dois cômodos, sendo uma sala ampla e um banheiro que nunca era utilizado, pois necessitava de que seu abastecimento d’água fosse feito manualmente e isso era tarefa por demais desgastante, haja vista que não existia nenhuma fonte de água próxima à escola. No que se refere ás condições em que se encontrava o prédio, estas se aproximavam do abandono total, pois a estrutura física, já ultrapassada, sofria, profundamente, do desgaste do Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 240 tempo, servindo em bom grado como abrigo, principalmente, para pássaros e os mais diversos animais. A cobertura estava quase que completamente desfalcada de telhas, impossibilitando as aulas no período chuvoso. O quadro – negro apresentava deficiências que dificultava a sua utilização como um todo. As carteiras, que há muito não eram substituídas, já não se apresentavam em número suficiente para todos os alunos, mesmo utilizando aquelas que já apresentavam algum tipo de defeito”. (Professor A atuou em classe multisseriada de 1996 a 2000) “Chegando lá (zona rural em que foi trabalhar) foi o senhor da casa que me recebeu, o mesmo tinha um carro de boi que guardava no espaço que ele cedia para que as aulas acontecessem, dava aula para três turmas de manhã e 3 turmas a tarde” (professora B atuou em classe multisseriada de 2000 até 2013) Os depoimentos acima ressaltam a falta de prédio próprio, ou falta de manutenção dos prédios existentes. De fato, estudar nessas condições desfavoráveis, não estimula os professores e os estudantes a permanecer na escola, ou sentir orgulho de estudar em sua própria comunidade, fortalecendo ainda mais o estigma da escolarização empobrecida que tem sido ofertada no meio rural, e incentivando as populações do campo a buscar alternativas de estudar na cidade, como solução dos problemas enfrentados. (HAGE, s.d p 02) Normalmente as escolas com classes comportando alunos de várias séries estão localizadas em áreas isoladas distantes dos centros urbanos, sem água potável, energia elétrica. Além disso, essas escolas não contam, em sua maioria, com funcionário para fazer a limpeza ou preparar a merenda escolar como podemos perceber na fala de um professor “A merenda, que muitas vezes não passava de um mingau de milho, era preparada pelo professor com a ajuda de uma senhora que recebia uma espécie de ajuda de custo da prefeitura para realizar tal tarefa”. (professor A, atuou em classe multisseriada de 1996 a 2000) A multisseriação não foge da lógica de seriação quanto à organização dos conteúdos, o planejamento, e entre outros. No que se refere à espacialidade, ter estudantes de diferentes idades e séries num mesmo espaço é bastante complexo para um profissional de educação que, não se sente estar preparado para enfrentar tamanho desafio. Desse modo, faz‐se necessário repensarmos a questão da formação docente para professores de escolas multisseriadas, pois segundo os relatos dos professores é nítida a falta de formação que contemple as especificidades do trabalho em classes com várias séries. É preciso destacar a necessidade dos cursos de formação do educador do campo cuidar para não cair na negação da cultura e da identidade camponesa como nos lembra Arroyo (1999). O depoimento abaixo mostra a necessidade de as autoridades gestoras, sobretudo as municipais, investirem nos cursos de formação inicial e continuada para os docentes das classes multisseriadas: Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 241 “Em todo o período em que estive como regente (1996 a 2000) não houve nenhum curso ofertado pela secretaria municipal de educação com intuito de capacitar os docentes que atuavam no meio rural em turmas multisseriadas. Qualquer tipo de formação, quando acontecia, era a partir da iniciativa dos docentes, através de estudos contínuos. Vale ressaltar que os cursos que buscávamos e eram acessíveis a nós não contemplavam as especificidades do ensino em escolas multisseriadas, como o meu caso, que fiz o curso de Licenciatura em História cursado com muita dificuldade, uma vez que tinha que deslocar 28 Km de bicicleta diariamente para a sede do município” (Professor A). Considerando que as classes multisseriadas estão institucionalizadas desde 1827, e que em pleno século XXI ainda existam mais de 45 mil classes com várias séries no mesmo espaço, era de esperar um número considerável de políticas públicas voltadas para atender essas escolas, sobretudo, políticas voltadas para a formação e acompanhamento pedagógico. Entretanto, só em 1997 temos a primeira política voltada para atender as especificidades das classes mutisséries‐ o Programa Escola Ativa, o qual tinha como objetivo oferecer formação inicialmente aos educadores, posteriormente, passou a oferecer formação apenas para os sujeitos denominados de multiplicadores, ou seja, para as pessoas de cada secretaria municipal encarregada de coordenar as classes multisséries. Além da formação esse programa busca também levar “kites” pedagógicos para cada escola. Apesar das inúmeras críticas que esse programa tem recebido, ele ainda é uma das poucas, senão, a única forma de ação voltada diretamente para essas escolas. Nesse sentido o trabalho nesses espaços torna ainda mais desafiador, uma vez que o professor precisa aprender a partir da experiência qual a melhor maneira de organizar pedagogicamente o seu trabalho. Segundo alguns autores a exemplo de Imbrnón (2011), Schon (1992 e 2000) a formação do educador se dá no só nos bancos das Universidades, e desse modo classifica os saberes docentes em: saberes da experiência, saberes curriculares e saberes acadêmicos. Não é objetivo desse trabalho explicar o que significa cada um desses saberes, mas é preciso destacar que como diz Tardif (2002), não podemos considerar que um seja mais importante que o outro, eles se completam. Neste trabalho daremos destaque para o saber da experiência, haja vista a singularidade do professor que atua em classes multisseriadas, que descobre durante o desenvolvimento do seu trabalho qual a melhor forma de fazê‐lo. Não estamos querendo dizer que o professor que atuam em classes com essa especificidade não precise de formação acadêmica, ao contrário queremos mostrar o quanto o professor dessas classes precisa ser respeitado e valorizado, uma vez que conta com um desafio maior que qualquer docente, já que esse professor não precisa apenas dominar os saberes de cada componente curricular. Ele precisa organizar sua aula considerando os princípios da educação do campo, previstos no Decreto 7352 de 2010, e ainda contemplar a heterogeneidade marcante nessas turmas, que contam com estudantes de diferentes culturas, diferentes idades e diferentes séries. Na maioria das vezes esses professores contam apenas como apoio da comunidade para desenvolver seu trabalho, pois a secretaria se faz ausente como podemos perceber na fala abaixo: Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 242 “Em se tratando do desenvolvimento das atividades pedagógicas, estas ocorriam sem nenhum tipo de acompanhamento por parte da secretaria municipal de Educação, quando muito disponibiliza – se, na sede do município, um servidor para operar um mimeógrafo em que deveriam ser preparadas todas as “atividades” das escolas rurais, óbvio que na grande maioria das vezes essa alternativa não supria a demanda, além do fato de que o tipo de apoio que necessitávamos estava muito além disso. Na prática, as atividades desenvolvidas em sala de aula, eram aplicadas conforme o interesse de cada professor sem nenhum tipo de acompanhamento por parte da secretaria municipal de educação municipal, o único tipo de exigência para com os professores se resumia à entrega da folha de freqüência, mensalmente na secretaria acima mencionada. Portanto, o acompanhamento pedagógico era inexistente e esse fato inquietava – me, pois a minha formação ( Magistério) em momento algum havia, ao menos, me apresentado aquele tipo de realidade, ou seja, turmas em que se misturavam estudantes das mais variadas séries, situação em que o professor precisa decidir qual série iria ser atendida inicialmente, em qual parte do quadro negro seriam expostas as atividades de tal série, quais estudantes teriam que auxiliar os demais, enfim, tudo aquilo que estava posto era assustador e por conta disso, fortalecia a idéia de que a Educação caminhava a passos lentos para ofertar àquelas pessoas a mínima condição de alcançar ao menos sua alfabetização” (Professor A atuou em classes multisseriadas de 1996 a 2000). A situação apresentada no depoimento acima pouco mudou com o tempo, como mostra a fala de uma docente que atuou de 2000 a 2013. Hoje temos alguns cursos oferecidos pela secretaria municipal de educação, porém poucos deles tratam de questões específicas das escolas multisseriadas. Eu mesma só participei de um curso de dois dias, realizado por um professor que foi contratado para trabalhar com a gente a metodologia de trabalho nas classes multisseriadas e depois uns dois encontros com o multiplicador da escola ativa. (Professora B atuou de 2000 a 2013). Esses depoimentos mostram alguns dos desafios enfrentados pelos docentes que, por livre escolha, ou por pressionados pelos prefeitos e secretários de educação por algum motivo, estão trabalhando em classes dessa especificidade. Soma‐se a essa questão a falta de material pedagógico, a ausência de um espaço adequado. É preciso destacar que a legislação que orienta a organização de nosso sistema de Ensino Básico em suas diversas modalidades, diz que para estar em sala de aula dos anos finais do ensino fundamental é preciso ter licenciatura nas áreas específicas e para atuar nos anos iniciais precisa ter no mínimo licenciatura em Pedagogia, mas não diz nada sobre a formação dos docentes no Ensino Fundamental do Campo. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394 de 1996, em seu artigo 62 diz que A formação de docentes para atuar na Educação Básica far‐se‐á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida como formação mínima para Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 243 exercício do magistério na educação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade normal. (BRASIL, 1996). Apesar de a referida lei não falar nada sobre a formação necessária para atender as diferentes modalidades da Educação Básica, exige em seu artigo 28 que, na oferta do ensino básico à população do campo, seja contemplada as especificidades da vida rural de cada região. Já o Decreto 7352 de 2010, que dispõe sobre a política de Educação do Campo e sobre o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, no que diz respeito à formação do educador do campo, traz que, Art. 5º A formação de professores para a educação do campo observará os princípios e objetivos da Política Nacional de Formação de profissionais do Magistério da Educação Básica, conforme o disposto no Decreto nº 6755 de 29 de janeiro de 2009, e será orientada no que couber, pelas Diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação. ... §3º As instituições públicas de ensino superior deverão incorporar nos projetos políticos pedagógicos de seus cursos de licenciatura os processos de interação entre o campo e a cidade e a organização dos espaços e tempos da formação, em consonância com diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação. (BRASIL, 2010). Por fim, o Decreto de nº 6755 de 2009, que institui a Política Nacional de Formação dos Profissionais do Magistério da Educação básica, não traz nada de específico sobre a formação dos professores do campo, menos ainda sobre os professores de classes multisseriadas. Fala apenas no artigo 3º inciso X que é objetivo desse Plano, dentre outras coisas, “promover a integração da Educação básica com a formação inicial docente, assim como reforçar a formação continuada como prática escolar regular que responda às características culturais e sociais regionais” (BRASIL, 2009). Como tentativa de atender as especificidades das modalidades da Educação Básica, os cursos de licenciaturas começaram a introduzir alguns componentes curriculares, a exemplo do curso de pedagogia que inclui a disciplina Educação do Campo. Entretanto essa disciplina é insuficiente para preparar os docentes para trabalharem dentro da concepção de educação do campo. No sentido de atender a necessidade de oferecer uma formação específica para o educador do campo surgiram algumas iniciativas a exemplo do curso de Pedagogia da Terra, realizado em vários estados brasileiros, na Bahia foi oferecido pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário‐ MDA, Instituto Nacional de Colonização e reforma Agrária‐ Incra e com os Movimentos Sociais do Campo. Temos também o exemplo do curso de Licenciatura em Educação do Campo‐ ProCampo que na Bahia foi oferecida duas turmas uma na Universidade Federal da Bahia‐ UFBA e outra pela Universidade do Estado da Bahia‐ UNEB. Mesmo esses cursos que foram pensados com a participação direta de segmentos sociais do campo não trataram da especificidade das classes multisseriadas. Todos os elementos apontados até aqui apontados mostram o lado frágil das classes multisséries, entretanto, é preciso considerar que, na verdade o que torna difícil o trabalho em classes com essa especificidade não é o fato de ter várias séries no mesmo espaço, Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 244 embora esse seja o complicador, mas a quantidade de desafios acima apresentados das mais variadas ordens, que não vamos aqui repetir. O Outro Lado do Discurso Sobre Classes Multisseriadas Apesar desse artigo até agora ter mostrado as características que estigmatizam as classes multisseriadas, é preciso destacar alguns aspectos que tornam extremamente importantes a presença dessas escolas nas comunidades. O professor e pesquisador Salomão Hage, em entrevista concedida ao Jornal do Professor ao ser questionado sobre as vantagens desse tipo de ensino para os alunos, responde dizendo: Quando a escola está presente na comunidade, os estudantes podem acessá‐la com mais tranqüilidade e a comunidade pode interagir com ela de forma mais efetiva. Em grande parte das pequenas comunidades rurais, a escola é o único espaço em que o Estado se faz presente junto à população, atendendo as direitos de cidadania já assegurados nos dispositivos legais em vigência. A existência da escola na comunidade possibilita à população local acessar os conhecimentos acumulados pela sociedade em seu próprio lugar de origem, contribuindo para a afirmação das identidades culturais locais, para a permanência da população no meio rural e para o desenvolvimento da própria comunidade. (HAGE, 2010) No que diz respeito ao trabalho docente, apesar das dificuldades geradas, dentre outros fatores, pela heterogeneidade da classe, é possível observar, através de depoimentos, que os docentes percebem pontos positivos, como mostra os depoimentos abaixo: “Se existe um lado positivo nessa situação, este se refere ao respeito que a grande maioria dos cidadãos, que compunham a Comunidade de Passagem de Areia, dedicavam à escola em questão. Apesar das deficiências, da estrutura vergonhosa daquela escola, a comunidade acreditava que ela reunia todas as condições de tornar suas crianças capazes de ler, contar e escrever, fato que superava a melhor das expectativas da grande maioria daquela população que ainda não dominava o significado das letras”. (Professor A, atuou em classe multisseriada de 1996 a 2000) “A relação escola e comunidade é muito boa, pois nas datas comemorativas a comunidade participa muito, nos dia das mães, por exemplo, fazemos um almoço aqui na escola e toda comunidade participa assim como o dia da consciência negra, dia das crianças. e aqui sempre estamos trazendo outras comunidades para mostrar sua cultura e trocar conhecimentos”. (Professora B atuou em classe multisseriada de 2000 a 2013) Esses depoimentos mostram outra versão dos discursos que envolvem as classes unidocentes, destacam também a necessidades de pensar a preservação dessas escolas levando em consideração os estudantes e os pais que depositam muitas expectativas no trabalho nelas desenvolvidos. Sabemos que do ponto de vista cognitivo, as possibilidades em uma classe seriada são maiores, entretanto, quando consideramos a distância que os estudantes terão de percorrer em muitos dos casos para chegar a uma escola núcleo, bem Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 245 como as condições desse percurso, perceberemos a importância de preservar e manter essas classes multisseriadas em boas condições de funcionamento. Considerações Iniciais: o que podemos concluir dos depoimentos? Falar das classes multisseriadas nos remete a pensar primeiro sobre a Educação do Campo. Em quais condições ela vem sendo oferecida? Tem sido de fato direito de todos? Todos têm tido acesso a uma escola pública de qualidade? Àqueles lugares mais isolados do nosso Brasil tem sido assegurado o direito de todos à educação? Tem garantido as condições mínimas de trabalho aos educadores do campo? Como podemos perceber são muitas as questões que precisam ser respondidas, muitas delas já estão parcialmente respondidas e as respostas até agora encontradas não são muito animadoras apesar das pressões exercidas pela sociedade e pelos segmentos sociais do campo. No tocante às classes multisseriadas, a situação pouco mudou de 1827 até os dias atuais. O único programa voltado para essas escolas era a Escola Ativa iniciado em 1997 importado da Colômbia e sem as devidas adequações ao nosso contexto, que foi interrompido em 2013, para dar lugar à Escola da Terra que faz parte do Programa Pronacampo. Em pouquíssimos lugares esse programa já foi iniciado, o que tem deixado, na Bahia, por exemplo, os professores dessas escolas sem um acompanhamento regular. Isso nos leva a concluir que para superar as dificuldades existentes nas escolas do campo, o processo de nucleação e fechamento das escolas unidocentes, não é a solução mais adequada à situação. É preciso enfrentar esse problema começando por elaborar políticas públicas que contemple as classes multisseriadas, começando pelo investimento em formação para os educadores que trabalham em classes dessa natureza e melhorando as condições físicas, estruturais e de acessos a essas escolas. Os depoimentos apresentados nesse trabalho, em sua maioria revelam uma quantidade enorme de problemas que dificultam, em alguns casos até impedem, o trabalho nessas escolas isoladas e unidocentes. Mostra também, que apesar de todas as dificuldades é possível perceber aspectos positivos, sobretudo, se analisarmos sob a ótica dos estudantes e da comunidade onde se encontram tais escolas. Os dados também revelam que é preciso levar a sério essa questão, investir em infraestrutura que vai desde a construção de prédios escolares, até a aquisição de materiais pedagógicos, passando por melhorias no acesso às comunidades onde estão as escolas e valorização do professor que inclui investir na formação que contemple as especificidades dessas turmas. Nesse sentido, é preciso analisar criteriosamente cada caso, antes de decidir pela nucleação e fechamento dessas escolas. A Resolução nº 02 de abril de 2008 diz que para fazer a nucleação quando necessário é preciso ouvir a comunidade e garantir condições de transporte escolar para os estudantes. Referências ARROYO, M. G. Ciclos de Desenvolvimento Humano e Formação de Educadores. Educação e Sociedade, Campinas, n. 68, p. 143‐162, 1999. ARROYO, M.G, CALDART. R & MOLINA, M.C. Por uma Educação do Campo. Petróplis‐RJ: Vozes, 2004. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 246 ARROYO, Miguel Gonzales. 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A pesquisa fundamenta‐se teórica e metodologicamente na abordagem (auto)biográfica e utiliza‐se como dispositivo de pesquisa a entrevista narrativa dialogando com Nóvoa (1991), Souza (2003), Ferraroti (1998), Arfuch (2010) Delory‐Momberger (2012) entre outros que convergem para a compreensão de que as experiências vividas em contextos pessoais, profissionais e educacionais integram os movimentos e práticas docentes, pois este processo não se desvincula do sentido que o sujeito atribuí ao mundo e ao seu fazer nele. Também dialoga com Moreira (2005) Rios (2011), Hall (1997), Carneiro (2005) Souza (2011), pois discutem a questão das identidades dos sujeitos que se reconfiguram no contexto da contemporaneidade, e, em especial, daqueles que tem suas origens em contextos rurais. A pesquisa indica a relevância da entrevista narrativa como movimento de autoformação, a partir do processo de reflexividade e da compreensão de profissionalização da docência, pois exerce um papel formativo quando os indivíduos compreendem a si próprios e se reestruturam na relação consigo mesmo e com o mundo. O trabalho ainda aponta os reflexos que a experiência identitária do sujeito produz nos projetos profissionais docentes. Palavras‐chave: (Auto)biografia; Docência; Ruralidade; Educação Profissional Técnica. Contextualizando o trabalho: narrativas e ruralidades na Educação Profissional Técnica O presente artigo nasce das discussões sobre as ruralidades contemporâneas no contexto educacional, a partir de um olhar sensível58 sobre os itinerários e os processos identitários de docentes que vivem ou viveram em diversos espaços rurais. As reflexões produzidas nesse artigo emergiram das discussões produzidas no contexto da pesquisa que desenvolvemos, sobre a produção da docência na Educação Profissional Técnica no Instituto Federal da Bahia – IFBA/Campus Ilhéus, vinculada à Linha II no DIVERSO – Grupo de Pesquisa Docência, Narrativas e Diversidade, do Programa de Pós‐Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC, da Universidade do Estado da Bahia – Uneb. A pesquisa busca desvelar os significados que os sujeitos atribuem à docência e como a compreensão de trabalho e técnica dos professores atravessa seus modos de produzir sua prática pedagógica na Educação Profissional Técnica – EPT. Abordamos esta temática considerando os processos formativos, experiências profissionais e histórias de vida como tecido constitutivo da docência no contexto atual da EPT. Nesse sentido buscamos encontrar trajetórias docentes de professores que fizeram o movimento rural ‐ cidade e analisar como esse processo implica na produção da sua docência. Considerando as questões apresentadas o presente texto toma a narrativa de um professor da EPT, que tem origem em um contexto de ruralidade, definido pelo próprio 58
Usamos a palavra sensível para caracterizar a postura teórico‐epistemológica adotada nesse trabalho que defende a produção do conhecimento voltada para os benefícios que contemple e desenvolva a pessoa humana em sua individualidade, bem como as sociedades. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 248 narrador como “sertão”, afirmando‐se como tal “porque eu me vejo como sertanejo”. No percurso de vida‐profissão narrado, João‐de‐Barro59 desloca‐se do interior para a capital do estado, forma‐se em Arquitetura e migra para a docência, expressa como desejo latente e implicado com sua própria história de vida. Na itinerância profissional, atua e vive em contextos culturais diferentes, o que ao mesmo tempo lhe promove deslocamentos físicos e identitários, também lhe promove conforto por considerar que tem na sua constituição pessoal uma transversalidade. Assim diz: “Eu sou um sujeito de discussão transversal por natureza”. João‐de‐Barro afirma, após um breve silêncio, ao falar de sua condição de ser de outra cidade e ter ido atuar num campus em outra região do estado. eu transito confortavelmente independente de quem olhe para mim, de onde eu esteja, né é... Isso ai é uma, não sei, uma construção emocional minha de ter alguma ousadia de ter, ou de ter uma vivência meio migratória, né que me impôs a necessidade de viver dessa forma porque eu tento me relacionar bem aqui, né. (João‐de‐Barro, 2013) Nesse sentido, compreendemos ruralidades como um espaço dinâmico, marcado por elementos identitários que não são essencialistas. Migram, dissolvem‐se e se reconstroem num contexto de fronteiras cruzadas. Segundo Rios (2011, p. 77) reportar‐se ao rural é reportar‐se “às relações que são desenvolvias ali a partir de vários elementos, como pertencimentos, deslocamentos, posicionamentos, subjetividades”, é ainda tratar “dos discursos que o constituem como um espaço de sentidos e significados” (RIOS, 2011, p. 80). Ao ouvir a narrativa de João‐de‐Barro defrontamo‐nos com os processos identitários que vão se produzindo no acontecer da docência e, em especial, na Educação Profissional Técnica, dentro do cenário atual de sua historicidade. Tal historicidade remete aos processos e lutas políticas e sociais da EPT. Ela carrega em si a trajetória de docentes que foram constituindo‐se e instituindo uma profissão nos encontros, disputas e movimentos dessa modalidade educacional, sobretudo, pela construção de uma política de formação, como caminho para sua profissionalização e de modos de atuação que em si denunciam o olhar destinado ao docente da Educação Profissional. Atualmente a EPT constitui‐se como uma política pública de educação e na última década ganhou destaque após o Decreto nº 5.154/04 que reacendeu a “necessária utopia” (MOURA, 2013, p. 151) para mobilizar educadores na luta histórica por uma educação profissional integrada ao Ensino Médio e, consequentemente, um novo status para a docência na EPT, reconhecendo que a profissionalização é um processo endógeno. Essa integração veio com sentido de formar cidadãos capazes de compreender a realidade social, econômica, política e cultural, interpretando‐a sob princípios éticos e sendo capaz de articular saberes da ciência, trabalho, cultura e tecnologia. Nesse processo observa‐se um ritmo acelerado de expansão da Rede Federal de Educação Profissional Tecnológica – RFEPT. O Instituto Federal da Bahia, após a sua organização, vem em crescente expansão ampliando sua estrutura multicampi e pluricurricular, de sete campi até 2010 para dezesseis campi e cinco núcleos avançados em 2012, oferecendo cursos de nível médio, nas modalidades integrada, subsequente, e Proeja, 59
Usamos o nome fictício de João‐de‐Barro para o entrevistado desse trabalho para preservar sua identidade. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 249 além de cursos superiores (bacharelados, engenharias, licenciaturas, formações tecnológicas) e pós‐graduações. É nesse processo de expansão que surge a implantação do campus de Ilhéus, lócus da pesquisa, inaugurado em 2011, mas com início de atividades acadêmicas em 2012. Em processo de implantação, o campus vem recebendo novos professores com experiências docentes diversas, advindos de outros lugares, como é o exemplo do Professor João‐de‐
Barro, ou ter uma história de vida na cidade ou cidades circunvizinhas, mas com experiência anterior em outros campi da instituição. João‐de‐Barro, vivendo esse processo descreve nosso campus tendo menos de dois anos de funcionamento ele tem professores que vieram, né de vários outros campi por transferências, né voltando muito possivelmente pra sua terra natal, né porque daqui trabalharam numa...numa é ... (silêncio) faixa aqui periférica, né Valença ou Porto Seguro, Eunápolis. (João‐de‐Barro, 2013) Assim, é evidente que a docência abarca marcas históricas, incorpora marcas de um ofício com perícias e diálogos próprios da história do trabalho docente. Essa historicidade constitui‐se numa herança social e cultural que também é parte das imagens produzidas da docência e lhe dão formas pelas relações estruturadas, inclusive das escolas e dos sistemas educacionais. Nesse sentido as pesquisas assentadas em um movimento epistemológico, teórico e metodológico, voltados à superação da radical dualidade sujeito‐objeto, são relevantes para o universo educacional, sobretudo, para pesquisas onde o olhar para o sujeito/professor reside em uma escuta das subjetividades e processo identitários que constituem a docência. Considerando a especificidade epistemológica, metodológica e técnica adotamos o método autobiográfico nesse trabalho, pois reconhecemos a subjetividade como conhecimento produzido. Tal questão se materializa já na definição das narrativas autobiográficas como materiais primários da pesquisa com a sua possibilidade de comunicação interpessoal complexa e recíproca entre narrador e observador (FERRAROTTI, 1998). Nesse movimento, as narrativas de vida, formação e profissão possibilitam a emersão das relações que se produzem entre subjetividades e práticas, cruzamentos entre discursos, por expressarem a complexidade da docência com suas tensões, contradições e afirmações. Segundo Souza (2003, p. 21) “Através da narrativa (auto)biográfica, torna‐se possível desvendar modelos e princípios que estruturam discursos pedagógicos que compõem o agir e o pensar do professor”. Assim possibilita compreender como os docentes da Educação Profissional Técnica vem lidando com as tensões provocadas no movimento de rupturas, anúncios e permanências e como ordenam sentidos existenciais para sua vida‐profissão. As narrativas constituem‐se em espaços biográficos (ARFUCH, 2010), pois permitem a interação discursiva entre sujeitos, a partir de uma existência real e uma leitura analítica transversal atenta as tecituras da trama interdiscursiva que produz a construção da subjetividade. Enquanto espaço biográfico, as narrativas exercem um papel quando os indivíduos compreendem a si próprios e se reestruturam na relação consigo mesmo e com o mundo, porque há uma relação entre o espaço‐tempo individual e o espaço‐tempo social (DELORY‐MOMBERGER, 2012) o que indica um conhecimento por parte do indivíduo sobre as instituições e os contextos. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 250 O texto foi organizado nessa primeira parte onde abordamos o contexto do trabalho e seus objetivos, além de tratarmos do caminho metodológico da pesquisa. No segundo tópico abordamos a questão da docência como um movimento que transversaliza a vida e constitui‐se enquanto profissão na luta por sua profissionalização. No terceiro tópico tratamos, a partir da discussão das ruralidades, os processos identitários, os conflitos, e as ressonâncias disso na produção da docência e na cotidianidade do professor. Por fim, fazemos uma conclusão considerando a experiência da entrevista como processo de reflexividade e movimento formativo, os silêncios como pronunciamentos da outridade de nós mesmos e da alteridade estabelecida com o outro, além do rebate do processo identitário sobre os projetos profissionais de João‐de‐Barro. Da docência que transversaliza a vida à busca pela profissionalização Abordar a docência sob o prisma da subjetividade implica em considerar os docentes como sujeitos de sua história e produtores de sua práxis pedagógica. É frente aos encontros, desafios e superações de cada professor no seu fazer pedagógico e na sua própria vida que a docência se realiza, resultando do encontro com a atividade educativa e com outras tantas atividades que os constituem professores. Como todo sujeito no mundo, o professor carrega e atribuí sentidos produzidos na relação com o outro. Nesses encontros, produz‐se como sujeito de pertença a uma cultura. Assim, a reflexão sobre a docência exige compreender a articulação do eu pessoal com o eu profissional, (NÓVOA, 2007), as interfaces entre os percursos formativos de vida, formação e profissão, entendendo a docência como resultante da própria subjetividade da pessoa‐
professor. Na entrevista realizada ao falar de como a docência surge em sua vida João‐de‐Barro revela que as influências familiares e a imagem positiva do exercício da docência produziram um desejo pela profissão. Ainda criança demonstra que, na condição de observador, essa experiência familiar lhe era muito próxima isso tá relacionado com a observação de uma situação familiar que era o primeiro convívio com a presença de livros, né já que eu observava meu pai lecionando, ele era professor de inglês, ele tinha um curso, né e tinha uma escola, né e na família havia outras pessoas também ligadas ao ensino da língua inglesa. (...) por conta dessa desse gosto pelo pelo aprendizado pelo ensino do inglês né e.. eu era muito próximo tá em casa ver meu pai sair pra dar aula de inglês e voltar. (João‐de‐Barro, 2013) Ainda nesse sentido revela que experiências de vida em contextos onde fez “ao acaso” o papel de docente foram construindo um desejo e “um gosto” pela docência. Marcas e vivências revelam como as experiências ligadas à família, aos grupos sociais mais próximos, com quem se estabelece uma relação afetiva são singulares. Dominicé (1988, p. 152) afirma que “a escolha profissional aparece como resultante das experiências afetivas mais fortes”. Assim, João‐de‐Barro narra Acho que ai tem uma coisa muito legal que foi antes de qualquer é... vínculo profissional com a docência eu ter tido o oportunidade na participação de uma é... de um de um grupo é...religioso numa comunidade Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 251 de fé, numa igreja, né. (...) em alguns momentos dessas experiências de de é... reflexão sobre a fé está é... lecionando, ministrando diante desses grupos, né. (...) eu era o... ao mesmo tempo o provocador e a pessoa que tinha que oferecer respostas quando quando esta dada, né. Então é a situação análoga à docência ou tão legitimamente docente quanto essa, embora não tivesse ligação profissional com isso, né. (João‐de‐Barro, 2013) Além das marcas na infância e adolescência positivas com a docência, a vida acadêmica enquanto aluno de graduação também reforçou a formação do desejo pela profissão, apesar de graduar‐se em Arquitetura, área da sua formação inicial. Sua experiência formativa num curso de mestrado na área o implicou na sua escolha, revelando um compromisso ético e afetivo com a profissão. a possibilidade de tá é exercitando o... o... a... (silêncio) que palavra eu posso dizer pra pra esse sentido que tô procurando?... (silêncio) o sentido comum da ideia de mestrado e de mestre ,né. Então pra que que serve um sujeito que... que se propõe a maestria se não voltar para sala de aula, né? (João‐de‐Barro, 2013) Fica evidente que a docência é um devir, uma teia constituída de experiências visíveis e invisíveis, de movimentos fluídos, constantes, permanentes que desestabilizam as subjetividades e exige a ressignificação da própria existência. Tal processo acaba sendo um desafio, pois mesmo considerando que outras experiências são importantes e constitutivas da formação, não se pode negar a relevância de uma construção acadêmica que promova aproximações e reflexões sobre a profissão. Isso implica em considerar que os saberes desenvolvidos na prática educativa são importantes e determinantes para o exercício da docência, entretanto, não pode representar um lugar ausente de um investimento teórico e metodológico necessários ao ofício de professor. Diante de toda essa influência, mesmo com oportunidades profissionais na sua área, frente ao primeiro convite, fruto do reconhecimento de seu desempenho acadêmico ele posicionou‐se em favor de assumir a docência como profissão. eu trabalhava na época numa, numa empresa que realizava construções, projetos e construções, a proposta da minha formação seria arquitetura e urbanismo, né. E... E ele se identificou, ele disse: olha você não me conhece e seu nome foi indicado pela professora é... Lisiê e o propósito da minha consulta é que você é... verificar sua disponibilidade para lecionar no curso de arquitetura e a gente precisa compor esse quadro para começar o semestre já. E eu disse: quanto tempo eu preciso, quanto tempo você me dá para eu pensar no assunto? Ele me disse: decida e me diga amanhã. E eu já desci pra sala do chefe perguntando, você me demite ou eu vou ter que me demitir? Então foi uma coisa que parece que já era latente, um desejo de tá trabalhando com sala de aula eu já tinha feito dois cursos de de especialização, né , estava recém ingressado num mestrado que eu tive que trancar e... a vivência acadêmica apontava para algo que... eu ia experimentar nesse momento ser, ser parte do meu futuro ou não. (João‐
de‐Barro, 2013) Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 252 Nesse sentido a docência como um acontecimento profissional, como um arranjo, como outra possibilidade de profissão, impõe ao sujeito desafios muito específicos de quem adentra um campo sem conhecer bem o território, as nuances e os embates do processo educacional. Isso é muito evidente em educadores que tem sua formação inicial como bacharéis e, portanto, não articulam a docência no seu horizonte de formação acadêmica. Ao narrar sobre o início de sua atividade docente João‐de‐Barro explicita. de certo modo me sentia no desespero do despreparo de não ter tido a formação em licenciatura, né. Eu era bacharel, né. Eu estava lidando com problemas práticos para os quais eu não havia sido preparado, né e ainda por cima eu tava lidando com um é, um curso que tinha no seu, nos seus componentes curriculares discussões que eu não tinha tido na minha época de graduação, então eu tinha disciplinas novas que eu tinha que lecionar, né e que eu não, eu não havia sido aluno daquelas disciplinas é ou de discussões que tivessem sido formuladas, né. Da maneira como aquele pacote tava sendo é...é...apresentado para mim é e eu tive que me apropriar dessas discussões de uma maneira quase que é..., como prepara o miojo. (João‐de‐Barro, 2013) Tal processo ainda pode ser mais agudo associado à condição de inexperiência docente. No contexto em que muitos professores são recém‐chegados cabe pensar como assinala Cavaco (1999) que professores jovens são muito suscetíveis aos poderes já arraigados dentro da escola. Aparecem como um incômodo a uma estrutura e grupos sociais existentes dentro do espaço escolar. O seu reconhecimento como inexperiente o coloca em situações de hesitação, receios e descrença diante dos alunos na sala de aula. Isso possibilita uma reatualização das experiências vividas enquanto aluno como suporte para decisão diante situações conflituosas levando‐o a manter posturas mais tradicionais e bloqueando a ação de atitudes mais criativas e inovadoras. Assim, João‐de‐Barro conta O começo foi, foi uma coisa que provocou em mim exatamente isso desespero e angústia, principalmente por causa das disciplinas que eu tinha é...recebido na minha graduação e nem nas pós‐graduações. Então era algo que eu tinha que estudar é... freneticamente e na semana seguinte, né (...) e toda aquela é...aquela... desconfiança que pairava sobre os alunos ou que eu não é... ou que eu acreditava que os alunos tinham de que chegou um professor que a gente vai poder fritar se ele demonstrar insegurança, né. (João‐de‐Barro, 2013) Além disso, o professor novo é suscetível às mudanças estruturais de lugar, fazendo com que rompa em frequência seus laços, seus projetos, exigindo deslocamentos não apenas físicos, mas também afetivos pelo enfrentamento de situações e arranjos novos que vão se produzindo em ambientes diferenciados Bom, é...eu tive que me deslocar, eu morava em Salvador então foi uma mudança de vida radical, né. Eu fui para Aracajú de mala e cuia é... e a loucura é que na época estava saindo dois professores para o doutorado e eu recém ingressado no mestrado tinha que substituir os dois doutorandos. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 253 Então foi uma proposta do tipo a empresa quer economizar, era uma instituição privada, né e eu fui me dar conta disso depois, a frigideira que eu me meti era, você vai entrar com cinco disciplinas e eu fui ter a dimensão do problema em que eu tava me metendo, né uns dois meses depois quando eu não conseguia dar conta do que eu consegui. (Risos) (João‐de‐Barro, 2013) Assim, a docência é um caminho a percorrer. Sem dispositivos formativos específicos, os docentes bacharéis são entregues a sua própria realização e tem sua experiência formativa como principal legado para produzir sua prática educativa. Entretanto, permanecer na docência é processo que se revela como movimento de superação e compromisso. A produção da docência requer uma capacidade de atuar frente aos contextos históricos e sociais produzidos. Nesse sentido, requer análise da própria prática, das razões que sustentam a posições; uma tomada de decisão diante a função real do ensino, das condições e condicionantes da prática educativa, dos próprios pensamentos e das demandas sociais. Essa reflexividade é fundamental para a constituição de uma profissionalização que perpassa pela construção de um saber, Assim, o professor relata seu movimento permanente em busca de uma formação, produzido num movimento de consciência de suas condições e necessidades formativas. Isso fica marcado em diversos momentos de sua narrativa quando relata a busca por aquisição de livros e participação em cursos. uma experiência muito interessante foi ter caçado (enfâse) um curso que não ia acontecer num ano e eu ficava colocando meu nome na lista de espera, “não mas esse é para o ano ainda essa lista nem foi aberta”, mas eu quero fazer (enfâse) que era um curso sobre é... avaliação e ensinagem pra professores, né da própria universidade, né então é.. aquilo foi uma coisa muito importante pra mim porque era um desejo que eu tinha de, de poder é... colocar, me colocar atrás da do carro de boi não ficar mais puxando essa história mas ficar nas é... rédeas do processo. (João‐de‐Barro, 2013) O modelo profissional deve ser encarado a partir de objetivos expressos em competências, habilidades e saberes a serem produzidos na formação. Nesse sentido, o primeiro passo nesse processo é a construção subjetiva do problema como uma questão ético‐política e não apenas técnica, ou seja, precisa compreender o que pensa e como se posiciona diante de uma situação‐problema, que são circunstâncias instáveis, incertezas, singulares e conflituosas. É preciso que o profissional saiba mobilizar saberes e atitudes profissionais para enfrentá‐las, estabelecendo uma conexão dos estudos pontuais com o conhecimento científico da comunidade acadêmica. (RAMALHO, NUÑES e GAUTHIER, 2004). No seu percurso de vida‐profissão, João‐de‐Barro ao ingressar no IFBA encontra‐se mais uma vez em situação de (re)constituição de sua profissão. Apesar de sua experiência revela que o processo de implantação tem gerado também um encontro com elementos de desprofissionalização, de isolamento e de limitação. Como os campi iniciam suas atividades com algumas turmas, por vezes, existe um professor para cada disciplina o que limita a interlocução, a troca entre pares. Assim narra João‐de‐Barro sobre sua docência no campus Ilhéus do IFBA. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 254 eu identifico como dificuldade maior minha nem tanto essa novidade que oferece coisas muito desgostosas também pra mim da da descoberta, mas o fato de não ter interlocutores da área numa escola pequena onde praticamente cada professor ensina a sua uma ou duas materiais, né. Então eu não tenho pessoas com quem conversar sobre arquitetura. E isso é ex...ex‐tre‐ma‐men‐te é... limitador! eu me sinto atado (ênfase) nesse universo. (João‐de‐Barro, 2013) A cotidianidade exige ações muito específicas, abordagens únicas ligadas ao contexto no qual se aplica e o enfretamento da incerteza sobre os resultados da ação. Assim, uma postura que promove o diálogo e recriação junto aos alunos e aos pares possibilita outras esferas de ação e realização de práticas educativas. Quanto mais imersos nos seus processos de ensino, nas suas ações, mais os professores são capazes de responder com criatividade, com inovações as situações complexas, incertas e conflituosas. A capacidade de responder as questões cotidianas amplia o nível de satisfação, confiança e autoestima dos docentes. Tal consciência revela‐se no entendimento de que para além da vocação é necessária uma formação, uma profissionalização do trabalho que permita profissionais diversos que atendem a Educação Profissional Técnica construir uma docência. Nesse sentido ainda afirma eu acredito que a docência pode ser desenvolvida pode ser exercida com competência mesmo por pessoas que é... participem é... que tenham na numa na sua agenda a participação de outras atividades profissionais, né é... caso contrário não poderia haver é... por exemplo engenheiros bons professores por que eles não foram orientados vocacionalmente a uma licenciatura, né ou médicos bons professores. (João‐de‐Barro, 2013) Nesse processo de situar‐se em um novo contexto, que é social e político, João‐de‐
Barro vive outros aspectos cotidianos que perpassam sua condição de sujeito‐político. Em um ambiente de disputa, de demarcação de território, vivido no campus, os docentes são chamados ao conflito, à definição de lados e, portanto, de posicionar‐se, o que gera fragmentação e dissolução de relações profissionais com os pares. Para sujeitos que vivem processo de mudança geográfica e física isso pode criar ainda mais um afastamento e isolamento social no espaço da instituição o momento de construção dessa escola, né impôs as pessoas que entraram na minha leva, né é... se posicionarem politicamente diante de grupos que tentaram estabelecer é...uma posição de controle sobre a escola, um campus novo uma situação é de minoritária de apoio à posição da reitoria e uma situação de crítica extremamente severa a escola, né a direção da escola e quem (enfâse) entrava era imediatamente (enfâse) cotado a se posicionar de maneira uma ou outra, (silêncio) eu...por índole (ênfase), sou o colaborar dos processos que fazem as coisas funcionarem (silêncio) e dessa forma comecei a ser visto como uma pessoa de é... é.. de é... ligação com a direção da escola e oposição natural dos críticos à direção da escola, “tô nem aí, tô nem aí” (canto e risos). (João‐de‐Barro, 2013) Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 255 Ao escutar o processo atual vivido por João‐de‐Barro no campus, percebemos a importância de se pensar a cultura organizacional das instituições de educação. Nesse sentido é preciso superar a lógica de um modelo de profissionalização docente que despreza o desenvolvimento pessoal do professor, a anulação da cotidianidade e dos dilemas vitais e comuns nas dinâmicas escolares. Cada campus é um mecanismo vivo, repleto de representações, lutas, contradições, afetos, valores que marcam os modos se sentir‐pensar‐
viver dos professores. Essa pungência de elementos produz a escola. Portanto, os processos que institui a docência precisam pensar numa nova profissionalidade docente que estimule uma cultura solidária e formativa no seio da instituição produzindo uma escola reflexiva (ALARCÃO, 2001) e integra nos seus modos de acolher os dilemas e as experiências subjetivadas pelos docentes. Mas, também é fundamental que o professor experiencie a escola em sua cotidianidade, para ampliar o processo de identificação com as demandas da comunidade escolar. Isso potencializa a atividade de pensar o trabalho escolar, sua concepção, análise, possibilidades e limites. Estrangeiro, sim senhor! Porque há um sertão em mim! eu não perdi essa identidade ligada ao sertão (ênfase), né. Eu tô agora numa outra região do estado da Bahia e é... (silêncio) não articulo muito bem no meu imaginário a... a ausência da roça de mandioca, do vaqueiro da... , né da criação de bode, né. Então, é isso é algo que faz parte de mim, nesse particular se reforça a ideia de que eu continuo me sentindo um estrangeiro (silêncio) na terra e, por consequência, por ligação indireta, na escola. (João‐
de‐Barro, 2013) A narrativa do professor leva a pensar que ser docente em outro contexto institucional, geográfico e cultural promove um movimento de deslocamento e ao mesmo tempo de afirmação de pertencer a um certo lugar, e, como tal, ser carregado de relações, histórias e memórias, que vão dialogando com novos territórios e novas experiências. Isso revela a tensão entre o global e o local, afastando uma visão de identidades essencialistas e unificadas (Hall, 1997) Nesse sentido, “ser do sertão”, constitui para João‐de‐Barro reconhecer‐se como ser de um certo lugar, ainda que já não mais fisicamente localizado, mas que culturalmente marca um modo de ser‐pensar e de imaginar o mundo e sua própria vida. Segundo Carneiro (2005, p. 10) “os indivíduos podem expressar o seu vínculo com um determinado território (sua identidade territorial) mesmo estando fora de sua referência espacial” o que se aplica à João‐de‐Barro quando manifesta suas práticas culturais entendidas como rurais em espaços percebidos como urbanos. Apesar de ter sua infância ligada diretamente à cidade de Feira de Santana, na Bahia, João‐de‐Barro demarca sua ruralidade sertaneja como um processo constituído por experiências, memórias e pela formação de um imaginário que o coloca nessa condição. minha família em duas oportunidades do ano aproveitava o recesso junino e as férias de fim de ano pra, não pra ir a praia, né, mas sempre pra ir à roça. Isso acabou criando em mim um imaginário muito forte que o gostoso, de que a diversão era estar no sertão. Então, passar o ano todo sem ir numa Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 256 casa de farinha, passar o ano todo sem tomar leite no curral no pé da vaca, passar o ano todo sem ver a.. o cenário dos animais na zona rural, isso pra mim era cortar o barato do ano, né. As minhas férias estavam ligadas com a presença desse elemento rural dessa dessa coisa muito forte ligada com a paisagem do sertão. (João‐de‐Barro, 2013) Assim, João‐de‐Barro aponta uma compreensão de ruralidade como um espaço diversificado, tecido e elaborado, a partir de construtos de suas relações sociais. Um lugar “de realização, uma produção, uma criação coletiva, um projeto refundador do laço social e recriador do imaginário social” (SOUZA et al, 2011, p. 155). Segundo Rios (2011) as novas ruralidades supõem compreender os contornos, as representações desse lugar rural como espaço físico, lugar onde se vive e lugar de onde se vê e se vive o mundo. O rural imaginário seria reconstruído e mesmo criado como tradições do e no presente. Comporiam simulacros da própria cultura e das identidades contemporâneas; desenraízamento do tempo e do espaço, fazendo desaparecer o passado, atribuindo sentidos ao presente. Considerando essas definições a narrativa de João‐de‐Barro demonstra como esse processo marca a subjetividade de uma pessoa e o desloca e o re‐coloca em posição identitária definida por ele de estrangeiro. Seu isolamento na área de trabalho, já que é o único professor das disciplinas que leciona, o coloca em posição de convidado para participar de coletivos por área dos docentes na escola nas atividades cotidianas. Sente‐se e apresenta‐se como sujeito transversal e gosta do diálogo com diversas áreas, mas visto como de fora do grupo percebe‐se como estrangeiro. Assim relata em três passagens de sua narrativa a área de humanas, né começou a... abrir pra participação minha nas discussões próprias de humanas. É muito interessante porque é... eu estando lotado aqui do curso de é.. da área de tecnologia que é o curso de edificações e tendo é... feito por um curso para uma disciplina que não é propedêutica faz com que eu seja visto por esses professores como professor engenheiro (...) (João‐de‐Barro, 2013) ... essa janela de transito (silêncio) transversal é uma coisa que me animou (ênfase), trouxe um fôlego (ênfase), mas ainda sou visto como estrangeiro. (...) (João‐de‐Barro, 2013) bom, como convidado, participo. É enriquecedor para mim né, mas é... participo na oportunidade que a porta é aberta e alguém me diz vem. E um espaço que me é dado, né na... nessas situações é gostoso, é bacana, mas até então não passa disso. (João‐de‐Barro, 2013) Essa situação cria um sentimento de não‐pertencimento, já que as identidades e subjetividades se fazem na relação com o outro, produzidas em imersão na sociedade e nos dilemas e desafios constituintes desta. Segundo Rios (2011, p. 44) “a identidade é um construção multirreferencial, definida por processos complexos de significação socialmente determinados. (...) não é um absoluto que se encerra em si mesmo, é uma relação”. Tal questão leva a reconfiguração das identidades docentes. Nesse sentido, ser professor submete‐se há um novo jogo identitário, em que o sujeito está lançado a uma Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 257 fluidez das identidades que abrem campos para as polarizações ou para as negociações, para o exercício de poder e de domínio de espaços ou de construção de redes colaborativas e de espaços plurais. Nesse sentido João‐de‐Barro ainda expressa preocupação. os que tinham direito sobre o território chegam antes e estabelecem nitidamente uma uma situação de é... (silêncio) que eu percebo, pode não ser nada disso, né como é... um conforto hierárquico colocado, né então os que vem depois tem que chegar num território que não é deles, né e de fato não é meu, né, é... ah! me sinto ainda como alguém de fora, né e (silêncio) não sei se em qualquer tempo vou me sentir diferente. (João‐de‐Barro, 2013) Portanto, a produção das identidades docentes é simultaneamente um jogo entre o ser humano da razão e do afeto. É nesse jogo de contradições que a vida cotidiana e a profissão é tecida por complementariedade ou contradição numa ação contínua entre vida pessoal e profissional. Uma docência reflexiva e implicada com a identidade sertaneja. O percurso da entrevista foi marcado por alguns elementos identificadores de um processo de reflexividade muito eminente em João‐de‐Barro. Isso é notado tanto na sua consciência da necessidade formativa e da busca por meios de compreender os processos constituintes da relação de mediação pedagógica. No decorrer da entrevista, por vezes buscou‐se que ele falasse de suas práticas. No fim do primeiro encontro, ao ser abordado mais uma vez essa questão ele diz Professora eu acho que eu tangenciei eu fui periférico a esse tema (...) eu acho que pra isso eu tinha que pensar ter outro encontro (...) porque isso me impõe ao trabalho de comparação modo de comparação, né com o modo como outros professores trabalham no seu exercício docente. Então é uma leitura autocritica a que eu não havia me imposto, né. (...). já é oportuno pelo tempo de estrada que eu tenho nisso, praticamente 10 anos, né que eu inverta essa situação, já me senti é é...compelido a ta é..., fazendo um vestibular para pedagogia, né porque que eu gostaria de ver isso por outro lado, né. (João‐de‐Barro, 2013). Esse processo nos faz compreender o caráter formativo da narrativa, pois diante de sua própria experiência a pessoa tem a oportunidade de olhar para o vivido e pensar nos sentidos que isso tem para si. A narrativa é uma oportunidade de re‐atualizar o que a experiência oferece; o espaço para uma tomada de consciência do caráter subjetivo e intencional de qualquer acontecimento e do caráter cultural dos conteúdos dessa subjetividade. As experiências de transformação da identidade e da subjetividade são tão variadas que só podemos tratá‐las a partir dos contextos vividos. Esse processo vai evocar a reflexividade, o olhar para si e a necessidade de se re‐
construir e de re‐compor a própria docência. Ao apropriar‐se das experiências vividas fica mais clara a consciência e as necessidades de conhecimento, possibilitando que João‐de‐
Barro busque o que é mais importante para ele e institua seu saber. O saber de experiência Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 258 se dá na relação entre conhecimento e vida humana. Por isso, é finito, individual, particular, contingente. Não se separa do indivíduo que o encarna e só faz sentido nele e com ele. Nesse contexto evoca‐se a capacidade de reflexividade do professor. Ser um professor reflexivo é ter a capacidade de repensar os processos de aprendizagem dos alunos e de ensino de si mesmo. Antes de classificar em certo ou errado é compreender que toda ação é fruto de hipóteses de conhecimento e, portanto, analisar estas hipóteses, implicam em tomar a prática educativa como campo de observação, mediação e análises permanentes. Outro elemento marcante da narrativa de João‐de‐Barro são as pausas e silenciamentos por toda a narrativa, interrompidos pela palavra pensada60, resultante da própria reflexão de quem fala de um outro de si mesmo. Arfuch (2010) afirma que ao narrar já é a voz de alguém em outra instância do próprio acontecimento. São vozes da mesma voz que se inscreve no decurso da mesma. O silêncio também carrega a alteridade, o outro que passou por nós, pois “os silêncios se produzem, restituindo aquilo que não foi dito, que não teve lugar, que não teve tempo de se produzir” (RIOS, 2011, p. 140). Ainda marco nesse processo de reflexão como o movimento identitário ecoa forte sobre os sujeitos, sobre seus projetos profissionais. Ao se reportar sobre a profissão de arquiteto mostra que a compreende enquanto um ato pedagógico e político ele diz a... ideia que tem me passado a mente seria estudar a implantação de um curso de arquitetura que é traga em si uma um modo de é... comprometer esse estudante com sua terra natal porque a cidade do interior do estado, as cidades do sertão são altamente desestruturadas do ponto de vista de é... presença de esgotos é... redes de de infraestrutura, organização do crescimento urbano que naturalmente tem se dado por uma periferização é.. sem sem uma ordem aparente sem um cuidado com de integração com o centro da cidade, né. Então esse profissional é extremamente necessário nos seus sertões de origem que são as áreas onde menos se encontra densidade de profissionais de projeto. Então eu acho realmente que a cidade já tá saturada de pessoas que se preocupem da cosmética das construções. O arquiteto tem se descomprometido com a tecnologia, né e ele deve voltar a abraçar isso de preferência dando a oportunidade a cidades que não há profissionais é... com esse oficio e muitas vezes as próprias cidades de origens desse estudante que acaba migrando pra capital. (João‐de‐Barro, 2013). Compreendo que o rural marcado no imaginário de João‐de‐Barro suplanta uma dimensão romantizada e trafega por um sentido onde a urbanidade e ruralidade trocam saberes, modos de ser e estar no mundo e os sujeitos vão se ressignificando a partir de sua matriz uma nova identidade na conversão do eu com o mundo. Assim, potencializa por meio de sua profissão o sertão como lugar de sociabilidades mais complexa que aciona novas redes sociais e regionais, variadas e de revalorização do mundo rural, envolvendo a diversificação produtiva, tecnológica, democratização das relações produtivas, das festas 60Identificamosassimummovimentoconstantenanarrativadoprofessorentrevistadoqueseconstituía
de uma fala pausada, com palavras que se repetiam como se desse um tempo para pensar qual seria a
próximapalavraaserdita.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 259 associadas à produção de artefatos e modos de ser e existir, (MOREIRA, 2005) consolidando o interior também como espaço político de dignidade e bem‐estar da vida humana. Referências ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico‐ dilemas da subjetividade contemporânea. Trad.Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010. CARNEIRO,Maria José, et al (Org.) Identidades Sociais: ruralidades no Brasil contemporâneo Rio de Janeiro: DP&A, 2005. CAVACO, Maria Helena. Ofício do Professor: o tempo e as mudanças. In: NÓVOA, Antônio(Org). Profissão Professor Porto‐Portugal. Porto: 1999. DELORY‐MOMBERGER, Christine A Condição Biográfica‐ ensaios sobre a narrativa de si na modernidade avançada. Natal, RN:EDUFRN, 2012. DOMINICÉ, Pierre. O que a vida lhes ensinou. In: FINGER, M. e NÓVOA, A. O método (auto) biográfico e a formação Lisboa, Ministério da Saúde, 1988. FERRAROTTI, F. Sobre autonomia do método biográfico In: FINGER, M. e NÓVOA, A. 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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 260 Narrativa sobre a própria formação e a formação de pedagogos: contribuições para a construção do currículo no contexto da disciplina História e Cultura Afro‐Brasileira e Indígena Heldina Pereira Pinto Fagundes UNEB [email protected] Este trabalho apresenta uma narrativa sobre nossa ação de professora, e o processo formativo de pedagogos, refletindo sobre a interpenetração entre o currículo formal e o currículo real no desenvolvimento da disciplina História e Cultura afro‐brasileira e indígena. Trata‐se de uma pesquisa que utiliza uma epistemologia qualitativa, por meio do método autobiográfico. Utilizamos como instrumentos de coleta de dados: narrativa, análise de documento, entrevistas e grupo focal, entre outros. Pretende‐se refletir sobre o currículo formal e o currículo real, a partir do olhar da professora da disciplina e dos alunos/as. O cenário é o Campus XII, Uneb, tendo como sujeitos/as 10 alunos/as e a professora. Como principais resultados, busca‐se uma vinculação maior entre teoria e prática, para que as discussões acadêmicas se articulem com a realidade da educação básica, no processo de formação docente, haja vista a consolidação de uma educação antirracista proposto pelas Leis 10.639/3003 e 11645/2008, que produziram alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Mas para que elas tenham repercussão, é preciso que perpassem os cursos de formação docente. Para que os objetivos da Lei sejam alcançados são necessárias ações de reflexão e avaliação sobre a condução e os desdobramentos de sua implementação no sistema educativo. Percebemos que, no currículo em ação do curso de pedagogia, o próprio encontro dos graduandos com conhecimentos relativos às populações afro e indígena já possibilita uma quebra de paradigmas, no sentido de apresentar informações capazes de desconstruir preconceitos e construir uma nova visão sobre a contribuição dessas populações para o processo civilizatório da humanidade. Palavras‐chave: Lei 10.639/2003; Currículo; Formação de professores; autobiografia. Introdução A partir da vigência da Lei 10639/2003, que institui as Diretrizes Curriculares para o Ensino de História e Cultura Afro‐brasileira e Africana, as propostas curriculares da educação básica e dos cursos de formação de professores se veem às voltas com a necessidade de reestruturação. Da Educação Infantil à Universidade, muitas instituições vêm procurando trabalhar os conteúdos propostos pelas Diretrizes e desenvolvendo diversas ações no contexto escolar, indo além da formalidade curricular, principalmente nos cursos de licenciatura. A Universidade do Estado da Bahia (Uneb) tem procurado se adequar a essas determinações e oferecido, em algumas licenciaturas, uma disciplina que atenda as exigências legais. Especificamente, no curso de Pedagogia, do Campus XII, a partir do semestre 2006.2, introduziu‐se a disciplina Educação e Cultura afro‐brasileira, no quinto período, ministrada por professores diferentes até o semestre 2009.1. Cada professor/a desenvolveu sua proposta ou programa, conforme a ementa e tendo como base suas leituras, concepções, saberes e perspectivas. A partir do semestre 2007.2, ao reassumir minhas funções, após afastamento para curso de Pós‐Graduação, assumi a disciplina, já que minha formação em nível de mestrado e doutorado se volta para o campo das relações raciais. Mas, em 2009.1, com a vigência da Lei 11.645/2008, novas alterações foram feitas, ampliando‐se a discussão para a História e Cultura Indígena, numa disciplina oferecida no 3º semestre. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 261 Após mais de dois anos de trabalho com a disciplina, percebi a necessidade de um repensar sobre o recorte que tem sido dado na elaboração do planejamento, na seleção do conteúdo e na metodologia. Senti necessidade de realizar uma reflexão sobre o como e o quê é essencial a ser abordado para que os futuros professores tenham melhores condições de atuar na Educação Infantil e Séries Iniciais bem como na pesquisa sobre essa discussão. Tais questionamentos surgiram a partir da observação do Estágio Curricular obrigatório61, no qual foram realizadas oficinas em escolas municipais, abordando essa temática. Tais oficinas tiveram minha orientação e supervisão, sendo feitas por alunos/as do sexto e sétimo semestres, em conjunto com as professoras de estágio. Observei, que mesmo tendo domínio teórico de conceitos básicos, conforme apresentados nas aulas de História e cultura Afro‐brasileira e indígena, muitos tiveram dificuldades e mostraram que a forma e o conteúdo a serem desenvolvidos, como prática curricular, nas escolas de Ensino Fundamental podem se constituir em uma “faca de dois gumes”, oferecendo mais munição para que se perpetue o racismo, o preconceito e a discriminação entre crianças dos 6 aos 13 anos. Isto porque se um conteúdo for trabalhado de forma superficial e o professor não tiver convicção do que está fazendo corre o risco de difundir uma visão superficial, podendo atiçar ainda mais o preconceito e a discriminação. Atualmente, há cursos de licenciatura na Universidade do Estado da Bahia, como os de Educação Física entre outros, que ainda não promoveram a inclusão dessa disciplina, sob a perspectiva das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico‐
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro‐Brasileira e Africana. Mesmo com a obrigatoriedade prevista para os cursos de licenciatura, essa questão ainda não se encontra totalmente elucidada62. Diante disso, desejo realizar uma análise sobre minha ação enquanto professora, num processo de autoformação, refletindo sobre o que fazemos, sobre como o currículo prescrito (ementa) e o currículo experienciado (olhar dos alunos) pelos estudantes se articulam. Para tanto, tenho percebido que a disciplina História e Cultura Afro‐Brasileira e Indígena a ser trabalhada no curso de graduação em Pedagogia, com carga horária de, apenas, 60 horas deve levar em consideração o tipo de profissional que está sendo formado bem como seu futuro campo de atuação, sem se preocupar em abordar conteúdos numa perspectiva que interessa mais aos professores de História. Isto não significa negligenciar esses conteúdos, mas usá‐los didaticamente a partir do ponto de vista das relações raciais. Nesse sentido, não há como trabalhar todos os conteúdos desta disciplina, sob a perspectiva da história africana, afro‐brasileira e indígena com carga horária tão restrita. Tal constatação é o que me impulsiona a pensar numa proposta, que ao mesmo tempo em que 61
O grupo de professores do 5º período de Pedagogia organizou um projeto, coordenado pelas professoras de Estágio, para levar os graduandos para a escola básica, iniciando o estágio curricular obrigatório. Os docentes se prepararam anteriormente, juntamente com os estudantes. Assim, foram montadas oficinas, realizados planejamentos de atividades para crianças de séries iniciais. O meu grupo preparou atividades baseadas no que foi desenvolvido na disciplina de Educação e Cultura Afro‐Brasileira. Todavia, os sujeitos desta pesquisa não são os mesmo que realizaram estágio em 2009. 62
Na Universidade do Estado da Bahia ‐ Uneb, a oferta da disciplina História e Cultura Afrobrasileira e Indígena não vem ocorrendo de forma homogênea para todos os cursos de licenciatura. Até abril de 2014 ainda não existe uma regulamentação do Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (CONSEPE), por meio de resolução. Por isso alguns cursos funcionam sem a oferta da disciplina. Todavia, em 2010, o Conselho Estadual de Educação solicitou à Universidade que realizasse as alterações nos currículos que se encontravam em processo de reconhecimento. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 262 atende a sugestão da ementa, busca fazer adaptações, conforme as necessidades dos sujeitos para os quais se volta. Ou seja, os conhecimentos que podemos organizar e trabalhar nessa disciplina devem ter como horizonte as necessidades formativas de professores de Educação Infantil e séries iniciais, considerando suas especificidades. Imaginando a possibilidade de atuar como professora‐pesquisadora‐em‐ação, conforme discutido por Moreira (1998), desenvolvendo uma prática reflexiva, transformando‐me em pesquisador de minha própria prática, considero o que este autor sugere: a) realizar a reflexão‐em‐ação – parar e pensar em meio à ação; b) realizar a conversa‐reflexiva‐com‐a‐situação – envolve o processo de colaboração dialógica entre professores e alunos na investigação do material disponível e na propositura de possíveis soluções. Formar o professor para atuar em contextos culturalmente específicos envolve muitos desafios, já que é muito difícil mudar representações, condicionamentos e preconceitos profundamente arraigados. Não basta oferecer conteúdos e trabalhar apenas a dimensão racional, é preciso mudar atitudes. Essa é uma constatação, após mais de oito anos lecionando a disciplina em questão. Diante disso, organizei um projeto de pesquisa, ainda em fase de conclusão, que busca responder algumas questões básicas:  Que conhecimentos e saberes podem ser trabalhados de modo a instrumentalizar o/a Pedagogo/a para lidar com as situações de racismo e preconceito na sala de aula?  Que conteúdos seriam mais apropriados para trabalhar, na formação desses profissionais, na disciplina em questão?  O que priorizar na organização do programa do curso?  Será que o acesso às informações sobre África e sobre os povos indígenas garante a formação do sujeito voltado para a promoção de posturas antirracistas?  O que mais pode ser incluído nesse contexto?  Que concepções de currículo e de multiculturalismo fundamentam a elaboração do planejamento e a seleção de temáticas sobre a história e cultura africana, afro‐brasileira e indígena para serem desenvolvidas no curso de Pedagogia? Diante dessas inquietações apresentamos a seguinte problemática: Quais inovações e repercussões decorrem da introdução da disciplina História e Cultura Afrobrasileira e Indígena no currículo do curso de Pedagogia: da formação à intervenção? Nesse sentido, estabeleci como objetivo geral analisar a ocorrência ou não de inovações a partir da introdução da disciplina História e Cultura Afrobrasileira e Indígena no currículo do curso de Pedagogia e quais suas repercussões na intervenção do Pedagogo/a. Metodologia O escopo da pesquisa volta‐se para uma reflexão sobre o trabalho desenvolvido em um semestre letivo, durante a oferta da disciplina História e Cultura Afro‐brasileira e Indígena e posteriormente o acompanhamento da ação das alunas durante o período de estágio curricular. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 263 Recorremos à epistemologia qualitativa, com destaque para o método autobiográfico, para pensar nossa ação enquanto docente num curso de formação de professores. Segundo Moreira (1996) trabalhar com autobiografias e narrativa pessoal na criação de contextos favoráveis ao engajamento multicultural (JACKSON, 1995, apud MOREIRA 2001: 29) envolve diversos aspectos. Assim, “a autobiografia tem sido combinada com uma orientação fenomenológica para enfatizar os aspectos formativos do currículo, entendido, de forma ampla, como experiência vivida” (SILVA, 1999, p. 43). Este método tem sido empregado como instrumento de formação. [...] o fato biográfico é esse viés que acompanha tudo o que percebemos e compreendemos ao longo de nossa vida. Trata‐se de um espaço‐tempo interior, que preexiste à escrita efetiva, mas que encontra na narrativa sua forma de expressão, a ponto de confundir‐se com ela Na narrativa de si, como ato autopoiético, o autor vai construindo uma figura de si, no exato momento em que se anuncia como sujeito e se enuncia como autor de sua história. (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI,p. 381, grifo dos autores) Empregamos diversos instrumentos de coleta de dados, como a memória das aulas, análise documental, entrevistas e portfólios. Neste momento, também são realizados os registros do cotidiano das atividades do currículo em ação, ou seja, das nossas práticas. Os documentos referem‐se aos projetos das oficinas montadas pelas alunas para serem trabalhadas nas turmas do Ensino Fundamental e os meus próprios planos de curso e de aula. As entrevistas abertas possibilitaram captar a perspectiva dos sujeitos pesquisados sobre o modo como vivenciaram o currículo e posteriormente sua prática na escola. Foram selecionados e analisados 10 portfólios de dez alunas. Mas, neste texto, não serão apresentados os dados das entrevistas, pois esta pesquisa ainda não foi concluída. Na primeira fase, concomitantemente com o desenvolvimento das aulas, busquei conhecer publicações sobre a pesquisa autobiográfica. E, assim, tento caminhar por essas novas veredas da pesquisa, tomando ciência dos pesquisadores que vêm fortalecendo esse campo que se consolida atualmente, alguns desses citados nas referências. Acreditamos ser este o melhor caminho no qual uma professora e seus alunos, presos nas teias do currículo, buscam desvendar os fios e tramas para enxergar o objeto sobre o qual falam. Os sujeitos pesquisados incluem, além da professora da disciplina, os graduandos do terceiro período de Pedagogia, do Campus XII, matriculados em História e Cultura Afro‐
brasileira e Indígena, no semestre 2009.1. Não pretendemos realizar observação nas escolas de ensino fundamental, mas pesquisar suas falas e suas reflexões sobre a atuação. A coleta de dados e a revisão bibliográfica tiveram início juntamente com a oferta da disciplina, em julho de 2009. A análise dos dados parte de uma perspectiva hermenêutico‐fenomenológica e interpretativa. Currículo e formação: duas faces de um mesmo processo Para transitar nessas veredas da pesquisa autobiográfica, ainda novas para mim, busco apoio numa concepção de formação me permita compreender a minha trajetória docente, descobrindo o sentido e o significado de minhas ações e decisões. A reflexão sobre a ação envolve um distanciamento da situação vivida, uma reconstrução mental da experiência, no sentido de analisá‐la retrospectivamente. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 264 Tem‐se como finalidade descrever e analisar um conhecimento que está implícito na ação. (SANTOS, 2008, p. 208, grifo do autor). O docente, tendo o entendimento crítico acerca de suas práticas curriculares, pode utilizar a reflexão sobre o seu conhecimento e sua experiência para a proliferação da criticidade. Assim é que me vejo tentando um caminho novo, voltando meu olhar para os produtos que coloco no mundo, refletindo sobre o meu processo criativo, pois é como vejo a atividade de professor, como uma ação criativa. [...] como os indivíduos dão forma à suas experiências e sentido ao que antes não tinha, como constroem a consciência histórica de si e de suas aprendizagens nos territórios que habitam e são por eles habitados, mediante o processos de biografização (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 371). Nesse sentido, é importante compreender a importância do currículo na formação profissional, pois em todas as ações da prática pedagógica, estão subjacentes suas concepções. Isto é válido para avaliar, para planejar, para adotar determinada metodologia, para se relacionar com os alunos, enfim, para organizar o trabalho docente. Trata‐se de um dos saberes sobre os quais Tardiff (1991), apud Gallego, (2013, p. 48) aponta como aquele “exigido para que os conteúdos sejam ensinados dentro do que é previsto, devendo‐se estabelecer os objetivos, forma de ensinar e avaliar, por exemplo”. Compreendo que currículo e formação de professores são duas faces de um mesmo processo. A prática pedagógica é permeada pelo currículo e, nós professores, estamos sempre trabalhando dentro desse espaço, o que garante que o currículo se concretize por meio de nossa ação. Assim, somos também aprendizes do currículo. Por isso, é necessário que nos eduquemos enquanto professores, como intelectuais críticos, para que possamos produzir os conhecimentos de si, utilizando os conhecimentos proporcionados tanto pela prática quanto pelas teorias do currículo, no exercício da docência, como instrumento para o fortalecimento de nosso poder intelectual, visando uma educação de qualidade e produtora de sentido tanto para nós quanto para nossos alunos. A organização do programa dessa disciplina está permeada pelas minhas concepções, por isso, busco numa produção anterior sintetizar o que é currículo: [...] o currículo pode se constituir em campo de lutas e conflitos, um território no qual estão presentes relações de poder vividas na sociedade. Nesse sentido, pode se constituir tanto num instrumento que legitima valores, autorizando discursos, linguagem, como também ser em um meio de garantir a afirmação de vozes historicamente silenciadas, instituindo o diálogo entre as diferenças. O currículo corresponde a uma forma de política cultural (PINTO, 2005, p. 87). Essa perspectiva é o que me estimula a assumir tarefas, cada vez mais voltadas para a reversão das condições de subjugação às quais se encontram negras e índios e, ainda, da revisão crítica da narrativa colonialista de educação e cultura que herdamos da modernidade. Nesse sentido, currículo também é uma narrativa que pode ser contada em prol dos grupos marginalizados culturalmente, a partir de categorias que expressem sua visão de mundo e modo de vida. Tenho me aproximado, também, da perspectiva defendida por Goodson (2007, p. 242) de que é “precisamos mudar de um currículo prescritivo para um currículo como Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 265 identidade narrativa; de uma aprendizagem cognitiva prescrita para uma aprendizagem narrativa de gerenciamento da vida”. Convivo com colegas, alunos e outros sujeitos pertencentes a classes, etnias, gêneros, sexualidades, religiosidades diferentes, os quais têm compreensões diversas do mundo, da vida, das relações sociais, com símbolos, rituais, crenças, valores diferenciados. Nesse contexto, eu e meus alunos/as entrelaçamos as mãos para caminharmos juntos, mesmo sabendo‐nos sujeitos possuidores de um modo de vida próprio, costumes, conhecimentos, etc., ainda assim, capazes de atuar juntos como protagonistas na construção coletiva dos conhecimentos e sentidos que tecem os fios da trama do currículo. A categoria sujeito unifica, mas, também, preserva as diferenças, o que possibilita o diálogo que consubstancia em mediação formadora. A proposta curricular do curso de Pedagogia, Uneb, Campus XII, que os sujeitos dessa pesquisa cursaram, data de abril de 2004, mas, sofreu reformulações a partir da Resolução CNE/CP, Nº 1 de 15 de maio de 2006, quando foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia e Licenciatura e, em 2008, quando foram feitas novas adaptações a algumas resoluções do Conselho Superior da Universidade e à Lei 11.645/2008. Os alunos que cursaram a disciplina História e Cultura Afro‐Brasileira e Indígena no terceiro semestre de pedagogia têm sua trajetória curricular delineada a partir de uma perspectiva interdisciplinar, conforme definido na Proposta Curricular. Na justificativa do documento, faz‐se uma opção “pelo uso da expressão ‘matriz curricular’ que “aponta para o conceito de currículo para além da listagem de conteúdos, do saber ‘atrás das grades’”. (UNEB, 2004, p. 29). O documento é intitulado “Proposta de redimensionamento dos cursos de formação de professores – licenciatura plena em Pedagogia: docência e gestão de processos educativos”. A matriz é organizada em eixos de conhecimentos, sendo que cada período aborda uma temática. Esses eixos devem ser trabalhados de modo a construir novos objetos do conhecimento a partir da ação interdisciplinar proposta no documento. Isto significa que além das disciplinas de cada período letivo, há um espaço designado de eixo interdisciplinar, que deve ser articulado às outras atividades desenvolvidas naquele contexto – o chamado “Trabalho do Eixo Interdiciplinar”. No semestre em que teve início essa pesquisa, o “Trabalho do Eixo” voltou‐se para as discussões das relações raciais. Foi elaborado e executado um projeto no qual todas as disciplinas se articularam em torno desse assunto. Em 2007 foi introduzida a disciplina Educação e Cultura Afro brasileira, atendendo à necessidade de formação dos professores da educação básica, conforme exigências da Lei 10.639/2003. A ementa dessa disciplina foi organizada assim: Educação anti‐racista: contexto escolar e prática docente. Discriminação racial/educação: (re) pensando a identidade étnico‐racial do/a educador/a e dos/as educandos/as. Políticas de Ação Afirmativa e a Lei 10.639/03. Material didático: valorização e resgate da história e cultura afro‐brasileira, desconstruindo estereótipos. Posteriormente, com a vigência da Lei 11645/2008, foi feita uma nova adaptação, apresentando outra disciplina, que incluía a questão indígena e excluíndo a anterior, mas mantendo‐se a carga horária. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 266 Discriminação étnico‐racial/educação: (re)pensando a identidade étnico‐
racial do(a) educador(a) e dos(as) educandos(as). Educação anti‐racista: contexto escolar e prática docente. Políticas de Ação Afirmativa e Legislação específica. Análise e produção de material didático. Valorização e resgate da história e cultura afro‐brasileira e indígena: desconstruindo estereótipos. A ementa é uma síntese do programa da disciplina a ser desenvolvido durante o curso. Juntamente com ela é apresentada uma bibliografia como sugestão ao trabalho do professor. Assim, ao analisar o plano de curso da primeira turma que cursou a disciplina que hora analiso, percebi que o mesmo enfocava predominantemente a história e que a professora ministrante era licenciada em história. Obviamente o curso fora muito bem planejado e apresentava temáticas extremamente relevantes. Todavia, quando assumi a disciplina, realizei uma pesquisa bibliográfica para dar um recorte que tivesse o foco voltado para as questões mais comuns do cotidiano da sala de aula da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Assim, elaborei um esboço de Plano de Curso, para ser desenvolvido no semestre letivo, após ser apresentado e discutido com os alunos, incluindo questões que lhes interessavam ou que fossem polêmicas e que pudessem ajudá‐los no fazer docente. Minhas análises, minhas sínteses e perspectivas têm sido um espaço no qual alinhavo minha vida às diversas vidas com as quais tenho estado unida dentro do curso do currículo. Nesse sentido, eu também tenho procurado me formar dentro da organização na qual atuo para além dos conhecimentos dos livros e dos diversos cursos realizados. Esse movimento é diferente, na medida em que ocorre em espaços administrativos, colegiados, entre colegas, entre alunos, na coordenação de projetos de pesquisa e extensão, representações dentro e fora da universidade, a partir da leitura de documentos como a própria proposta curricular do curso, entre outras ações nas quais atuo como protagonista ou como participante, apenas. Assim é que me venho autoformando enquanto professora da disciplina, juntamente com a própria reformulação do currículo e com as mudanças na sociedade. Sinto essa evolução e procuro fluir junto com esse movimento, que tende a ganhar mais força, à medida que realizo reflexões pessoais que se somam às de outros sujeitos que atuam nesse campo do conhecimento. No contexto da discussão da reorientação curricular de São Paulo, Freire (1991, p. 41) afirmou: “todo projeto pedagógico é político e se acha molhado de ideologia”. Tenho pensado muito nessa afirmação, uma vez que a lógica natural é compreender o currículo como uma narrativa. Isto significa que meu percurso profissional como professora no ensino superior também faz de mim alguém que passou e passa longo tempo costurando narrativas e textos. A disciplina História e Cultura Afro‐Brasileira e Indígena na sala de aula Tenho procurado desenvolver a disciplina abordando conteúdos relativos ao sentido e ao significado de educação e cultura, na perspectiva dos estudos culturais (SILVA, 2001), destacando o conceito de cultura como prática de significação. Com apoio teórico de Moreira (2001), discuti, com a turma, quais conteúdos trabalhar, questionando sobre qual Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 267 perspectiva abordar os conteúdos sobre África, refletindo sobre qual África deve ser conhecida. Analisamos o que são as africanidades brasileiras, a história de luta dos quilombolas (Carvalho, 1993), a infância afrodescendente (Santos, 2006) e a questão dos mitos, na perspectiva da cosmovisão religiosa africana, o Candomblé, os Orixás, etc. Apresentei à turma, também, quais são os conteúdos relevantes para a compreensão dos conceitos de racismo, preconceito e discriminação, em publicação organizada por Munanga e Ana Célia Silva (2001). Apresentamos vídeos, literatura infantil e infanto‐juvenil, abordando o cotidiano das escolas de Educação Infantil e Séries Iniciais, sugeridos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico‐Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro‐Brasileira e Africana. Diversos materiais foram trabalhados, destacando algumas personagens negras e protagonistas de feitos históricos, culturais. Explorei bastante o uso de imagens, filmes, entre outros. Todo esse trabalho foi acompanhado pela turma que registrou tudo nos portfólios. Além, disso, alguns fizeram também levantamentos bibliográficos, dentre outras buscas e reuniram muito material relacionado à disciplina. Diante disso, acabamos acrescentando parte desse material ao planejamento das aulas. No início do curso, as ações afirmativas, ou discriminação positiva também têm sido conteúdos básicos, os quais têm gerado muita polêmica no que tange à questão das cotas. Ao final do curso, a maioria compreende e até passa a defender a necessidade das ações afirmativas. Tendo situado essas questões, retomo uma reflexão sobre minha ação e sua influência na formação do pedagogo do Campus XII da Uneb, com o sentimento e o desejo de encontrar respostas, mas também produzir conhecimentos que me conduzam à melhor direção no trato da educação anti‐racista. Tomo como pressupostos fundamentais a união entre teoria e prática. Nessa perspectiva, a prática não significa simplesmente a aplicação de teoria, mas “são dois componentes indissolúveis da ‘práxis’ definida como teórico‐prática, ou seja, têm um lado ideal, teórico, e um lado material, propriamente prático” (VASQUEZ, 1977, p. 241, apud CANDAU, 1993, p. 55). Assim é que percebo que nossa ação – da turma e minha – pode ser definidora de uma proposta que mesmo procurando atender ao que está no currículo prescrito vai além dele. Nesse sentido apresento, primeiramente, um flash das atividades de sala de aula, por meio das memórias das aulas, tentando refletir sobre o que emerge da interação com a turma. Construindo o planejamento Tenho como principio básico iniciar o ano letivo apresentando um esboço de plano de curso à classe, discutindo o porquê das minhas escolhas, destacando os critérios usados para a seleção dos conteúdos, além de apresentar os objetivos a serem atingidos. Quando a turma realiza questionamentos ou sugere a inclusão de algumas temáticas, discutimos até chegarmos a um consenso sobre a pertinência ou não dessa inclusão. Em alguns casos a turma não se motiva muito a participar, deixando toda a decisão sob minha responsabilidade. Mas, isso pode mudar no decurso de nossos trabalhos, onde as mudanças são bem vindas ao longo do semestre. Todavia, tudo tem que ser organizado no planejamento, que é sempre provisório, mesmo que seja registrado num documento burocrático, que é o plano a ser submetido ao colegiado de curso. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 268 No caso dessa turma, registrei na memória do primeiro dia de aula: Apresentei o plano, lendo cada item, de estudos até as referências bibliográficas. Os alunos participaram de forma limitada, pois não se dispuseram a falar muito. Mesmo os graduandos que já haviam trabalhado como professores nas escolas particulares ou em projetos como o Peti63 e outros. Afirmam que não trabalham com a questão afro‐brasileira, conforme disposto nas Leis 10639/03 e 11645/08 e Diretrizes próprias. As professoras/graduandas do município afirmam que também não trabalham “adequadamente”, mas, apenas, nas datas comemorativas. (Memória da 1ª Aula dia 16/07/2009) Percebo que mesmo após seis anos de vigência das leis que alteraram a principal lei da educação, a Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB) n. 9394/96, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro‐brasileiras e africanas nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio, garantindo o acesso ao conhecimento sobre as relações raciais e a história e cultura dos povos negros e indígenas, essa discussão ainda não é muito bem conhecida nem por muitos educadores nem pela sociedade civil. Mas, a constatação da lentidão desse processo de implementação da lei não me desmotiva a continuar a fazer esse trabalho semelhante ao da formiguinha que carrega sua folha em direção ao formigueiro. O que não devo é perder de vista um horizonte maior, que é o fato de estar atuando numa classe de futuros pedagogos, que poderão seguir a carreira de professores, podendo desempenhar importante papel na educação básica, formando sujeitos mais democráticos e respeitadores da diversidade etnicorracial. Atividades de aula Geralmente, na primeira unidade, prefiro levar informações e materiais que causem certo impacto, de modo a despertar o interesse sobre os conteúdos mais densos de forma agradável. Assim, utilizo textos de revistas de curiosidades científicas e culturais mais leves, voltadas para o público jovem e adulto. Vamos abrindo caminhos nessa seara e conquistando territórios (no currículo) com prazer. Dialoguei com a turma sobre o encaminhamento dos trabalhos de hoje [...]. Assim explico os objetivos da aula e apresento o material ‐ questões sobre o filme/documentário “A origem do homem”, do Discovery Channel64 e os textos – 1); “Viemos todos da África”, da Revista Planeta abril, 2008, pág. 18 – 23, 3) e 2); “As filhas de Eva” da Revista Super Interessante, junho 2000, p. 83 – 87. Os grupos se organizaram em 4 e 5 pessoas para ler o dois textos e responder às questões levantadas. 63
“O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) é um Programa do Governo Federal que tem como objetivo retirar as crianças e adolescentes, de 07 a 14 anos, do trabalho considerado perigoso, penoso, insalubre ou degradante, ou seja, aquele trabalho que coloca em risco a saúde e segurança das crianças e adolescentes”. Cf. http://portal.mte.gov.br/delegacias/sp/peti‐programa‐de‐erradicacao‐ao‐trabalho‐infantil/. Acesso em 10/02/2012. 64
Cf.<http://discoveryblog‐documentarios.blogspot.com.br/2009/05/documentarios‐discovery‐channel‐
africa.html>. Acesso em: 28/02/2014. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 269 [...] Os grupos responderam as questões sobre o documentário, já temos sugestões para aprofundar melhor algumas categorias e conceitos como: raça, racismo, preconceito e discriminação, além de explicar sobre assuntos do documentário como, por exemplo, a melanina e a Lei da seleção natural, para melhor compreender, o que foi abordado sobre as alterações ocorridas no corpo do homem moderno (características fenotípicas), conforme se adaptava nas diversas regiões do planeta. Os grupos foram para os diversos espaços, como sala de leitura, corredor, ficaram na sala (maioria) para realizar as atividades propostas. Utilizaremos 2 encontros – 4 aulas para trabalhar essas questões, já que na próxima aula faremos as discussões em um painel (grande grupo), além da minha própria abordagem, explicando algumas teorias. (Memorial do dia 23/07 – segunda aula). O trabalho com esse documentário foi muito rico, pois além de criar oportunidades para discutir teorias sobre a formação do homem moderno, permitiu que fossem travadas discussões sobre raça, etnia, racismo, preconceito, discriminação. Além disso, recorremos ao uso de mapas, para conhecer a África, sob diversos ângulos, com apoio de representações cartográficas voltadas para a desconstrução de imagens e conceitos estereotipados, os quais têm sido historicamente narrados sob a perspectiva colonizadora e ocidental, conforme mostrado por Said (2007), que nos revela o modo como o ocidente inventa um conceito de oriente permeado por representações que o coloca como incapaz e inferior. Um fato ocorrido nesse período, que merece ser lembrado refere‐se à ausência de mapas da África na Biblioteca do Campus. Busquei esse tipo de material para preparar a aula, mas só havia um globo terrestre, o qual foi utilizado juntamente com os mapas e imagens que reuni. Isso é revelador do quanto ainda é necessário criar as condições e a estrutura para trabalhar esses novos conteúdos, como a produção de materiais curriculares, dentre outras necessidades. Sem perder o foco da formação de professores para atender as crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental e a Educação Infantil, aproveitamos essa oportunidade para analisar os materiais didáticos, principalmente os livros adotados na rede municipal e estadual da cidade de Guanambi, fazendo relações com o que discutimos nessas aulas. É o que mostra a memória do terceiro encontro. Após a conclusão dessas discussões, passamos a analisar alguns mapas de livros didáticos da 4ª serie do Ensino Fundamental (5º ano)65. Estes já trazem conteúdos sobre os povos indígenas. Analisamos, também, informações relevantes e críticas, mostrando a África como um continente, com diferentes regiões geográficas, climáticas, políticas e culturais, destacando seus diversos países. Observamos que o livro já continha textos, imagens e conteúdos que possibilitavam localizar em diversos mapas do Brasil a distribuição dos povos indígenas e outros conhecimentos significativos sobre seu trabalho, estratégias de sobrevivência, alimentação, mitos indígenas, etc. Mesmo as graduandas que eram professoras desconheciam que já se trabalhavam esses conteúdos nos livros didáticos e dizem que não sabem como abordar essas questões. Isso permitiu que levantássemos questionamentos sobre a necessidade do professor em formação inicial, se situar diante dessas discussões que emergem em sala de aula. Diante disso, constatou‐se a importância de se conhecer não apenas as discussões acadêmicas, mas também o que se anuncia nos materiais curriculares e livros a partir das leis 10639/03 e Lei 11645/08. (Memória do dia 22/07) 65
História Série Brasil. 4ª Série. A presença Indígena e Negra no Brasil, de Maria Aparecida Lima Dias. Editora Ática. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 270 Alguns alunos me procuraram anteriormente para fazer importantes colocações, apresentando informações que obtiveram das leituras de outras fontes não indicadas nas minhas referências e de cursos e encontros dos quais participaram, motivados pela disciplina. Uma aluna referiu‐se a um evento que ocorre anualmente numa cidade próxima, sobre o “negro” e sobre o material do palestrante, um professor que fez sua tese de doutorado, tendo realizado pesquisas na África por dois anos. Alguns dados do documentário coincidiram com aquelas que foram apresentadas pela aluna sobre o trabalho desse professor da Uneb nesse evento. Além disso, diversos alunos acrescentaram outros fatos e detalhes importantes para a compreensão da história antiga da África e para sua contribuição ao processo civilizatório de humanidade. O interessante é que em cada aula, abríamos espaço66 para quem desejasse acrescentar outras fontes pesquisadas e sugerir textos, vídeos e filmes. E, assim, foi feito, com ampla participação da maioria. Mas, houve, ainda, alunos que contribuíram muito com as aulas e com sua própria formação, juntando muito material interessante no Portfólio. A retomada das memórias das aulas se constitui numa atividade muito agradável, entretanto passarei a mostrar um pouco do que os portfólios apresentam. Os procedimentos da análise envolveram: a) uma leitura exploratória do conjunto dos textos produzidos a cada aula e do material juntado pelas autoras; b) releitura dos portfólios, procurando identificar a interface entre o currículo proposto e o currículo experienciado pelos graduandos. No portfólio, os estudantes deixam registrado de maneira concreta o seu caminho ao longo da escolaridade. Funciona como “um baú de memórias”. Ao final do ano ou ciclo, o estudante terá um dossiê de sua trajetória e poderá ter um acervo de material rico para lhe auxiliar nas suas próximas etapas. (FERNANDES E FREITAS, 2007, p. 32). Nesse sentido o portfólio serviu como instrumento de avaliação, “dossiê” e como “acervo de material”, conforme destacado pelos autores acima. A cada aula, o estudante deveria escrever sobre aquele momento e juntar o material trabalhado, além de acrescentar outras coisas que considerasse pertinentes. Em relação ao trabalho sobre o documentário “A origem do homem”, foram distribuídos textos e questões para reflexão e discussão nos grupos. Esse material foi incluído nos portfólios, com a seguinte interpretação: O 1º conteúdo explicado pela professora foi sobre a “origem do homem”. Passando um documentário, que conta a história de uma mulher, denominada Eva (mitocondrial), que viva na África há 140.000 anos. Mas, também é a história de todos os seres humanos que vivem na terra hoje. Conta como todos fazem parte de uma pequena família, como descendentes de um grupo de pessoas que deixaram a África há 80.000 anos, e pouco a pouco, chegou à América. (Aluna A). São vários os indícios que nos revelam que mesmo havendo misturas de genes, formando uma só raça [...]. Que a origem do homem moderno está na África. (ALUNA B). 66
Para cada aula era destinado um tempo de 15 minutos para que fossem apresentadas informações, materiais e outras contribuições que os graduandos desejassem fazer. Esse tempo sempre foi utilizado de forma muito eficiente e agradável. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 271 Mais adiante, a aluna B escreve sobre se há motivos e argumentos que justifiquem as práticas de racismo, preconceito e discriminação baseados na ideia de raça: Não há motivos e argumentos para estas práticas racistas [...]. Sinais de diversidade como a cor da pele, religião, hábitos e lugares de origem continuam a causar problemas para milhões de pessoas. No dia 30/07 houve continuação da discussão sobre o documentário, fazendo uma relação com o texto “Viemos todos da África”, no qual retrata o surgimento dos povos e para onde foram. Aconteceu também uma breve reflexão sobre a evolução da espécie humana, onde a discussão se pautou no surgimento dos Neandertais. . (ALUNA B). É importante, mostrar mais um excerto de Portfólio, que revela como o trabalho foi abraçado pelo grupo de alunos/sujeitos da pesquisa. Percebo que há entusiasmo nas descrições e interpretações da Aluna C quanto a essa mesma discussão: 30/07/2009. Término das discussões dos textos: “todos nós viemos da África” e “As filhas de Eva” e do documentário: “A origem do homem” para conclusão das perguntas /análise de mapas da África, do deserto do Saara e Egito/Pontos Cardeais e Rosa dos ventos e análise da questão indígena e Negra no Brasil, verificando em livros didáticos do Ensino Fundamental como é trabalhada essa temática nas escolas (livro: História Série Brasil – 4ª Série – “A presença Indígena e Negra no Brasil”‐ Maria Aparecida Lima Dias – Editora Ática. O documentário ajuda‐nos a entender que todos tivemos a mesma origem! E também, a compreender a importância de aceitar as pessoas como são, respeitando suas diferenças. As práticas de racismo, preconceito e discriminação são abomináveis em todas as suas formas e devem ser combatidas. É inadmissível que o ser humano dotado de faculdades de raciocinar, pensar e sentir seja intolerante e cruel com os seus semelhantes. Apesar de diferentes, todos nós temos a mesma origem e pertencemos a uma única raça e como tal, precisamos ser considerados e respeitados! A aluna acima acrescentou diversos outros textos ao seu material e elaborou um glossário e listas de conceitos para cada temática estudada. Nesse sentido, o Portfólio se caracteriza como um instrumento que contribui para “o processo de construção pessoal do conhecimento” (SILVA, 2006, p. 36), além de ser uma “estratégia muito útil para a formação, constituindo um modelo de avaliação alternativo às formas tradicionais” (SILVA, 2006, p. 36). É o que percebo também nos textos escritos por algumas alunas em seus Portfólios na introdução, desenvolvimento e na conclusão: Os índios querem que os brancos respeitem suas terras. Os Ashaninka tiveram que procurar ajuda para se instalarem em suas reservas, proibiram entradas e fecharam portões, mostrando para todos que os índios são capazes de sobreviver e se fortalecerem politicamente, conhecer suas leis, ter uma organização para defender seus direitos. [...]. (ALUNA A). No caso acima, trata‐se da reflexão da aluna sobre um texto que discute a situação dos índios no Brasil que discutimos após assistir também ao documentário67: Índios no 67
Pluralidade Cultural. Índios no Brasil, quem são eles? Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do>. Acesso em: jun 2009. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 272 Brasil: quem são eles? Além do que foi descrito acima, a turma fez a leitura do texto e uma produção escrita sobre o mesmo. Outros fizeram reflexões mais críticas, conforme pode ser visto a seguir. Essa disciplina está sendo muito importante na minha formação profissional, enquanto professora crítica e consciente das práticas racistas, preconceituosas e discriminatórias inegáveis na área da educação. É um desafio à nossa prática pedagógica desenvolver um currículo inclusivo e democrático que respeite a diversidade e a diferença, apresentando aos alunos a verdadeira história dos povos que compõem a nossa nação. Negros e indígenas: povos que formam a base da cultura e da história de todo o povo brasileiro e configurando o eixo central na estrutura de nossas origens. (ALUNA C). As reflexões dessa aluna sinalizam que a inserção da temática das relações raciais na formação de professores dos anos iniciais da Educação Básica pode realmente contribuir para forjar identidades profissionais mais comprometidas com a construção de uma sociedade mais democrática e igualitária. Isso é fundamental na preparação de profissionais que vão trabalhar com crianças pequenas. Em outro Portfólio, outra graduanda apresenta o conteúdo do que desenvolvemos na aula e do que ela acrescentou, a partir de outros materiais que ela mesma associou àquilo que fazíamos, como “ilustrações, acrósticos, poemas e reportagens” (ALUNA C). Este portfólio, realizado por mim, baseado nas informações obtidas através de pesquisas em livros, sites educativos, slides e discussões em sala de aula. Constam relatos ocorridos nas aulas da disciplina História e Cultura Afro‐Brasileira e Indígena durante o período de dezesseis de julho de dois mil e nove a doze de novembro do mesmo ano, bem como descrições das aulas expositivas, discussões, textos, trabalhos, avaliações, sinopses de filmes, ilustrações, acrósticos, poemas e reportagens, em anexo. (ALUNA D). Uma das indagações levantadas nesta pesquisa refere‐se ao que é essencial a ser abordado nessa disciplina. Mas, os conteúdos que emergem das produções dos alunos são reveladores de que é muito importante a construção de uma consciência crítica sobre a situação em que vivemos no Brasil, onde é difundido o discurso da democracia racial, mas que no fundo impera a marginalização cultural e racial a ponto de ser preciso criar políticas, programas e projetos que nos façam perceber a necessidade de mudanças profundas nas formas como nos relacionamos. Em 29/10/2009 foi passado um documentário com o tema “Educação Infantil e relações raciais”, enfatizando como as escolas devem estabelecer, no currículo, a cultura afro‐brasileira, desde a educação infantil [...]. (ALUNA F) Do que foi analisado até aqui, neste artigo, sobre o currículo prescrito e o vivido, o que não inclui os dados das entrevistas, pode‐se antever que os conceitos de preconceito, estereótipo, racismo e discriminação são conteúdos essenciais, na formação do pedagogo. O mais interessante é que atualmente há diversos materiais que podem ser trabalhados68, de modo a enriquecer as aulas e travar diálogos fecundos bem como construir argumentos 68
O filme “Vista Minha Pele”, por exemplo, foi importante nesse contexto. Mas, há, ainda, documentários, textos, oficinas pedagógicas, músicas, livros infantis, entre outras coisas. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 273 sólidos para a construção de uma pedagogia reversiva das relações de inferiorização de índios e negros. Mas, além disso, é necessário adentrar também em conteúdos históricos e dados mais pontuais sobre a situação dos povos indígenas e da população negra no Brasil, por isso, não é possível dispensar alguns livros de História da África69 e do Brasil. Mas, também é fundamental analisar criticamente os livros didáticos de História dos anos iniciais do Ensino Fundamental, recorrer aos livros de literatura infantil e infanto‐juvenil, que podem ser explorados de diversas formas, como a contação de histórias e preparação de atividades a partir delas. Em nosso caso, pedimos também aos grupos para elaborarem planos de aulas para turmas de Educação Infantil, os quais foram apresentados e avaliados por toda a turma, quando foram feitas considerações sobre a pertinência ou não das temáticas selecionadas e as metodologias propostas. Também é relevante lembrar que não pode ficar de fora do programa dessa disciplina a discussão sobre as religiões africanas e afro‐brasileiras. Para trabalhar esse conteúdo, todavia, é preciso estar bastante fundamentado, uma vez que, ainda hoje, a depender da forma de abordagem, pode se tornar um assunto polêmico, mas que pode ser trabalhado de forma muito agradável tanto na formação de professores quanto nas atividades com as crianças, usando músicas, livros de literatura, documentários, imagens, ente outros. Considerações finais Captar a experiência do sujeito só é possível por meio de suas produções, tais como relatos e entrevistas ou outros dispositivos que lhe permitam expressar o modo como interpreta a realidade. Assim, até o momento, foi possível perceber que tanto eu, na condição de professora, quanto meus alunos, nos tornamos centrais no contexto da reflexão sobre as ações que desempenho como docente. Tudo isso, porque acreditamos que as aprendizagens resultantes de um percurso curricular específico podem ser compartilhadas, tendo em vista a compreensão desse processo formativo. Percebe‐se que a maioria dos portfolios analisados registram atividades que procuramos desenvolver e que se encontram no programa da disciplina. Além disso, a qualidade com que os trabalhos foram apresentados esteticamente, bem como os conteúdos que transcenderam o que foi planejado revela que todos se uniram em torno do projeto proposto por mim e, melhor do que isso, avançaram além do que planejei. Ademais, percebo que os conteúdos que considero essenciais foram trabalhados, permitindo que os futuros pedagogos possam se conscientizar da necessidade de atuar como profissionais éticos e substancialmente democráticos, a partir de pressupostos epistemológicos e políticos baseados no respeito aos direitos humanos, na valorização da diversidade e na construção de uma educação descolonizadora. 69
Ver por exemplo M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Tomo I (até o século XVIII). Salvador, Edufba, 2009, além de obras desse nível que abordam a questão indígena. Há materiais produzidos pela SECAD, como o livro de LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 274 A luta empreendida por militantes, ativistas, pensadores, profissionais da educação e membros do movimento negro e indígena entre outros, que culminou com a aprovação de leis que garantem a inserção da História e Cultura Afro‐Brasileira, Africana e indígena na Educação Básica, tem como objetivo assegurar o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania aos brasileiros. Nesse sentido, os cursos de formação de professores são postos diante de novos desafios que os levam a reestruturar e reorganizar seus currículos para atender às exigências da formação docente. A implementação de políticas voltadas para a construção de uma educação antirracista visando o cumprimento dos objetivos das Leis 10.639/2003 e 11. 645/2008 exige que se realizem ações, reflexões e avaliação sobre a condução e os desdobramentos desse processo no sistema educativo brasileiro. Percebemos que a decisão de oferecer a disciplina nos cursos de formação de professores, por exemplo, é uma necessidade, porém não é suficiente. A consolidação dessas ações ainda deve demorar um pouco mais. Mas, é preciso continuar a investir em não apenas na formação, mas na gestão do sistema educativo, na produção de material didático e paradidático, além de acompanhar a atuação dos Conselhos Municipais na fiscalização e observância da Lei, conforme assevera Gomes (2010). Referências BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico‐Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro‐Brasileira e Africana (2007). Disponível em<http://www.mec.gov.br/secad/diversidade/ci> Acesso em: 20/20/2009. FERNANDES, Claudia de Oliveira; FREITAS, Luiz Carlos de. Currículo e Avaliação. IN: Indagações sobre currículo. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. 43 p GALLEGO. Rita de Cássia. Percursos formativos: tempos, saberes e identidades docentes: estágio como iniciação?! IN: PEREIRA, Áurea e VILELA, Marco Antonio Maia. Letramentos no estágio supervisionado e formação de professores. Salvador, EDUNEB, 2013. GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico‐racial, inclusão e equidade na educação brasileira: desafios, políticas e práticas. Disponível em: <http://www.anpae.org.br/iberolusobrasileiro2010/cdrom/94.pdf>. Acesso em: julho de 2011. GOODSON, Ivor. Currículo, narrativa e futuro social. IN: Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 35 maio/ago. 2007. MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa. Multiculturalismo, currículo e formação de professores. Anais do IX Endipe. Águas de Lindóia, SP, 1998. ____MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa. Em defesa de uma orientação cultural na formação de professores. In: MOREIRA, Antonio Flávio B. et. al (orgs.). Ênfases e omissões no currículo. Campinas, S. P.: Papirus, 2001. MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. 3. ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2001. PASSEGGI, Maria da Conceição; SOUZA, Elizeu Clementino de; VICENTINI, Paula Perin. Entre a vida e a formação: pesquisa (auto)biográfica, docência e profissionalização. Educ. rev., Belo Horizonte , v. 27, n. 1, Apr. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102‐
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Graduação em Educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Atrela‐se a perspectivas epistemológicas e metodológicas (auto)biográficas na expectativa de que a ativação memorialística de trajetórias pessoais e profissionais possa contribuir para ampliar produções de conhecimento acerca do agir e do pensar humanos, especificamente articulados à docência de pedagogos na disciplina Matemática a partir da questão de pesquisa: Como as experiências vividas com a Matemática, nos percursos de formação, se expressam na professoralidade de pedagogos/professores? A mobilização para este estudo deu‐se a partir de inquietações com o ensino e a aprendizagem da Matemática, desde que adentrei à escola e posteriormente através de contatos com colegas pedagogos, docentes em classes dos anos iniciais do ensino fundamental, os quais apontavam para dificuldades na organização e desenvolvimento de situações de ensino e aprendizagem relacionadas ao citado componente curricular. A sua realização acontece com a participação de 4 pedagogas que atuam em classes dos anos iniciais do ensino fundamental. Seus objetivos: Analisar experiências e percursos de formação de pedagogos/professores e as possibilidades destas terem resvalado para os modos de composição da professoralidade; compreender como se evidenciam, na professoralidade de pedagogos/professores, seus movimentos de professoralização, em especial na lida com a Matemática; identificar como foram estabelecidas as relações de pedagogas/professores com a Matemática no interior de uma licenciatura em Pedagogia. Há expectativas de que esta investigação ganhe um cunho formativo e acione renovados movimentos de professoralização de pedagogos/professores a partir de ações vitais de (re)construção de si mesmos. Palavras‐chave: Pedagogos/professores. Educação básica. Anos iniciais. Matemática. Os primeiros fios “A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriarmo‐nos de nossa própria vida”. (LARROSA, 2002, p. 25) Na composição deste texto nos convocamos a pensar acerca da tessitura da vida humana propondo o entrelaçamento dos seguintes fios: vida, experiência e formação num processo de costura do ser‐sendo. Tal intento decorre da percepção sobre a necessidade da construção de diálogos cujas direções apontem para perspectivas de formação que vislumbrem a ruptura com modelos preestabelecidos e fixos cujas finalidades consistem no enclausuramento dos homens a fim de adaptá‐los às exigências do capitalismo como sistema vigente em nossa sociedade que interfere nas instâncias formativas a fim de garantir o controle da sua manutenção (PARO,2007; 2011). Assim, as marcas deste escrito se ancoram na subjetividade humana como cerne para pensar a formação, uma vez que nos propomos a pensá‐la como percurso de constituição de si, ou seja, colocamos neste trabalho a formação docente vinculada à imbricação do professor pessoa e profissional, por concebermos que são dimensões do ser e por isso é essencial não separá‐las ou dicotimizá‐las (NÓVOA, 1995; PEREIRA, 1996; 2001; 2010). A estreita relação entre os fios da vida, da experiência e da formação que sinalizamos como alicerce da nossa pesquisa se explicita nos acontecimentos aos quais atribuímos Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 277 sentidos no movimento de desfazimento‐refazimento do eu pela individuação em que o sujeito vai alcançando fases de si no processo de invenção, dando lugar à diferença no lugar da repetição. Nessa via ocorre a abertura para que o ser permita se abalar e produza as marcas da ruptura com o que vinha sendo, o que resulta na produção de novas configurações de si (DELEUZE e GUATTARI, 1995; SIMONDON, 1989). Desse modo, inscrevemos aqui uma visão de formação como processo de autoformação em que os sujeitos vão construindo as escritas de si através da heteroformação e da ecoformação que se configuram como as forças dos outros e do meio interferindo nos abalos do eu como indivíduo, o que proporciona as afetações e as elaborações que produzimos para responder a essa provocações (PINEAU, 2010). Nessa perspectiva, a educaçãoformação está inserida no projeto do devir (DELEUZE e GUATTARI, 1995), num movimento permanente que se processa ao longo da existência, constituindo a infinitude na finitude (FREIRE, 1987). Nessa ótica, a educação corresponde a um empreendimento de superação pelas vias da transformação eu‐mundo em oposição ao modelo de permanência do estabelecido que propõe um estado de conformismo nas pessoas. Há, com isso, o interesse na análise de experiências escolares e suas possibilidades de resvalar‐se para os modos de composição de uma denominada professoralidade; conceito que traduz a constituição do ser professor como produção que ultrapassa uma identidade fixa, rompe com estereótipos e se vincula ao modo como o indivíduo vai se constituindo no mundo vivido (PEREIRA, 2010). Queremos, portanto, aprofundar a compreensão das experiências vividas durante os percursos formativos, em especial as experiências com a Matemática, o que tem implicado buscar na reflexão biográfica marcas de historicidade para além do tempo de agora. Tais intenções acontecem no entendimento de que “é investigando como me tornei o professor que sou, por que me tornei o professor que estou sendo é que investigo a professoralidade” (PEREIRA, 2010, p. 67). Justificamos a intencionalidade deste estudo a partir de inquietações pessoais, além de contatos e vivências pontuais com colegas pedagogos, docentes dos anos iniciais do ensino fundamental, que amiúde, apontavam (apontam) para dificuldades na organização de situações de ensino e aprendizagem atrelados ao citado componente curricular. Nossa mobilização reside assim na atribuição de sentidos ao que aconteceu e ao que está acontecendo; às interpretações e significações que se atribuem às próprias experiências formativas, aos citados movimentos de professoralização (PEREIRA, 1996; 2010; 2013). Esses movimentos são as mobilizações empregadas pelos docentes na escolha da profissão, nas formas produzidas para a permanência como professor; nas linhas com as quais a pessoa tece o percurso profissional como uma costura que vai sendo produzida fio a fio, desmanchada, refeita e jamais acabada porque está sempre a sofrer atualizações. Partindo de tais premissas, enunciamos caminhos de investigação conectados a uma alternativa teórico‐metodológica colocada a serviço da pessoa que se interroga a si própria e cuja tematização passa pelas próprias experiências de vida como percurso formativo no qual o indivíduo vai constituindo‐se de modo evolutivo numa definição de si mesmo (JOSSO, 2007, p. 416). Desse modo, numa vinculação entre a abordagem autobiográfica e o campo educativo, formulamos a questão norteadora deste estudo: Como as experiências vividas com a Matemática, nos percursos de formação, se expressam na professoralidade de pedagogos/ professores? Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 278 No fomento dessa indagação, estamos discutindo acerca das práticas como produções humanas de homens e mulheres comuns que nas suas labutas cotidianas produzem seus fazeres e dizeres (CERTEAU, 2012) como possibilidades de irmos além da manutenção do que é prescrito e encontrarmos outros caminhos em meio às ressonâncias do vivido na constituição subjetiva dos saberes e quefazeres docentes. Escolhemos a escuta das vozes que geralmente são silenciadas, por entendermos que há verdades fabricadas no intuito de manter o sistema dos privilegiados pela exploração humana. E acreditamos que os sujeitos podem romper com a conformação que lhes é proposta na medida em que” saem de si mesmos e se abrem para as interrogações acerca do que se é, e realizam assim a ruptura com a reiteração rotineira” (LARROSA, 2000, p. 39‐40). Atrelamo‐
nos, portanto ao potencial investigativo e formativo das narrativas, apontando para “o capital narrativo como uma nova forma de capital cultural produtor de um novo modo de reprodução social” (GOODSON, 2007, p. 80). Modo esse que permite escapar da prorrogação e produzir a diferença no ainda não sido. Assim podemos ir para além do que temos sido num caminho sempre provisório. Inscrevemos aqui a perspectiva da produção de sentidos como possibilidade de formação através da capacidade de escutar e dizer como constituição de si rompendo com o utilitarismo e o pragmatismo (BENJAMIN, 1987; LARROSA, 2000; PASSEGGI, 2008). É tecendo esses fios da vida que nos lançamos nesta pesquisa carregando as marcas da nossa implicação, vista por nós como força mobilizadora. Pois pelo nosso entendimento, o empreendimento da investigação consiste em experiência e não em experimento. Assim este trabalho também atinge nosso percurso formativo, e nos atravessa vigorosamente, nos toca com as cores e texturas de cada fio dessa trama. Abarcando a experiência como o que marca cada pessoa de maneira singular, pois nisso reside à elaboração da subjetividade como campo de potencialidades e incertezas no qual o eu está prenhe de devires, entre as escolhas, pressões e deslocamentos como movimentos de atualizações do ser que vamos sendo, contemplamos o professor como estar sendo professor em superação ao determinismo fixo do que é ser professor. Na direção escolhida, nos debruçamos a fim de apurar o olhar para compreender lidas e acontecimentos da docência de pedagogos, atuantes nos anos iniciais do ensino fundamental, particularmente atrelados ao trabalho com a Matemática. Nesse sentido, os objetivos da investigação são: analisar experiências e percursos de formação de pedagogos/professores e as possibilidades destas terem resvalado para os modos de composição da professoralidade; compreender como se evidenciam, na professoralidade de pedagogos/professores, seus movimentos de professoralização, em especial na lida com a Matemática; identificar como foram estabelecidas as relações de pedagogas/professores com a Matemática no interior de uma licenciatura em Pedagogia. E nas trilhas dos objetivos que delineamos ecoam questões acerca do currículo que nos fazem refletir sobre sua organização e as formas de ensinar, dirigindo nosso foco para os interesses e as disputas presentes nos currículos, o que nos desperta para o interesse de olhar a produção nessa teia de relações entre o currículo escrito e o currículo em ação (GOODSON, 1995). Desse modo, percebemos que nas narrativas produzidas pelos professores se entrelaçam os fios de suas histórias que contam sobre seus percursos formativos e sensibilizamo‐nos em relação à relevância desse material narrativo como potencializadores do processo de reflexão sobre as práticas e os saberes docentes, implicando na perspectiva Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 279 de movimentos desses profissionais no sentido de empreenderem os desvelamentos do eu, do tu e do mundo através do encontro com suas próprias vozes e com as outras vozes que ecoam nos relatos produzidos por cada um deles. Nos fios a busca do caminho “[...] que podemos cada um de nós fazer, sem transformar nossa inquietude em uma história? [...] cada um tenta dar sentido a si mesmo como um ser de palavras a partir das palavras e dos vínculos narrativos que recebeu”. (LARROSA, 2000, p. 22) Através do nosso envolvimento com a educação, desde os caminhos da escola até a trajetória profissional que nos permitiram percorrer os espaços da universidade e da escola novamente, notamos um lugar de status ocupado pela Matemática numa visão hierarquizada dos componentes curriculares de nossas instituições escolares, o que também ocorre com a Língua Portuguesa. Ao mesmo tempo, acontece um afastamento da Matemática no delineamento de um cenário no qual prevalece o fracasso, conforme apontam, por exemplo, dados das últimas avaliações do Ministério da Educação (MEC), pois apesar do indicativo de resultados melhores, há uma distância entre o alcançado e o almejado como apresentamos a seguir. De acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) que é uma avaliação feita pelo MEC, nas turmas de 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e 3º ano do Ensino Médio nas escolas públicas brasileiras, para avaliar o domínio de conhecimento da leitura, em Língua Portuguesa e da resolução de problemas, em Matemática. Segundo os resultados, no 5º ano do Ensino Fundamental o IDEB passou de 4,6 em 2009 para 5,0 em 2011. Já no 9º ano esse crescimento foi menor: de 4,0 para apenas 4,1. O mesmo ocorreu no 3º ano do Ensino Médio, que passou de 3,6 para 3,7. O município de Jequié, onde trabalham os sujeitos envolvidos neste estudo, alcançou os seguintes resultados: 3,1 em 2007; 3,2 em 2009 e 3,5 no ano de 201170. No que se refere ao distanciamento da Matemática, Grando e Toricelli (2012) afirmam “que muitos alunos escolhem o curso superior de Pedagogia ou o antigo magistério para não esbarrarem com a Matemática, esquecendo‐se de que a ensinarão a seus alunos.” Tal afirmação me faz pensar acerca das marcas elaboradas pelos pedagogos durante o percurso formativo que se dá desde a escola básica e depois na licenciatura. Trago as palavras de Curi (2005) “ao apontar que os professores passam uma grande parte de seu tempo de formação na escola, local em que irão exercer sua profissão. Isto significa que a formação do professor se inicia muito antes de frequentar o curso específico destinado a formá‐lo profissionalmente”. A partir da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), de 24 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), a preparação dos professores da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental deve acontecer nos cursos de licenciatura em Pedagogia, o que destina ao referido curso o lugar de licenciatura responsável pela formação dos docentes que trabalharão de maneira polivalente, como já ocorria com o curso de magistério, formação exigida anteriormente. A atuação dos pedagogos envolve então o 70
Dados obtidos no site: www.mec.gov.br. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 280 ensino de todas as disciplinas a serem oferecidas aos alunos nos segmentos educacionais já mencionados, conforme dispõe a Resolução CNE/CP Nº 1, de 15 de maio de 2006: Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina‐se à formação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. (BRASIL, 2006, p .2). Os pedagogos têm, portanto no exercício da docência a responsabilidade do ensino de todas as disciplinas, por isso empregamos o termo polivalente. E sobre a relação de pedagogos com a Matemática, Ortega e Santos (2012, p. 27) comentam que “é comum nos depararmos com alunos de Pedagogia que afirmam ter encontrado muitas dificuldades em relação aos conceitos matemáticos durante a Educação básica, e se mostram inseguros ao trabalhar com tais conceitos enquanto professores”. Como revelamos inicialmente, o presente estudo aponta para o que emerge da labuta tecida nas peregrinações pelos espaços escolares, onde encontramos os dilemas e desafios, que nesse caso direcionaram nossos olhares para a relação dos pedagogos com a Matemática durante o processo formativo de suas vidas como pessoas e profissionais. A partir disso, surge o entrelaçamento do currículo da educação básica e do currículo da Pedagogia. O entrelaçamento a ser perscrutado entre o currículo prescrito e o currículo vivido, ou seja, como e o que se materializa no cotidiano das pessoas na perspectiva do cotidiano como lugar da criação e da transformação invisível e silenciosa das relações de poder (CERTEAU, 2012). Ademais, enfatizamos a necessidade de considerar os docentes como sujeitos que constroem a história e possuem uma história, não sendo admissível, portanto, tratá‐los como repetidores a quem se diz o que fazer e se espera que a tarefa solicitada seja rigorosamente cumprida. Para os professores é necessário um projeto de valorização que compreenda a importância de investimento em formação adequada à especificidade da profissão, bem como condições dignas de trabalho. Isso inclui estrutura da escola, tempo para estudo e planejamento do trabalho, como também a questão salarial, a fim de garantir ao professor o exercício da docência como profissão e não como mais uma atividade em meio a outras tantas para a garantia do sustento. No entanto, sabemos que a maioria desses trabalhadores experimentam condições precárias (FREIRE, 1997; NÓVOA, 1995). Os fios das narrativas “A educação é assim feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida”. (JOSSO, 2010) Para o desenvolvimento desta ação investigativa que se pretende também formativa, escolhemos um caminho metodológico subsidiado na abordagem qualitativa da pesquisa, pela concepção de mundo, de homem e de conhecimento que a mesma traz, viabilizando a elaboração de um trabalho comprometido com o desenvolvimento da realidade em que a pesquisa tem caráter político e ético, imprescindível à prática cidadã, a qual compreende os envolvidos como sujeitos. Em tal dimensão, dialogamos com Macedo (2004) quando diz que: “realidades sociais são constituídas por pessoas”, o que exige deste estudo um Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 281 direcionamento que ultrapasse o reducionismo do quantitativo em prol de adentrar na complexidade do humano para ir além da mera descrição. Buscamos apoio nesse viés em Bodgan e Biklen (1994), para os quais a realidade é construída pelas pessoas, à medida que vão vivendo as suas vidas. As pessoas podem ser ativas na construção e modificação do mundo real. Nesse trajeto investigativo, estamos explorando as experiências numa relação compartilhada de caráter processual que visa apreender os sentidos do vivido (MASINI, 1994). Pelo aporte do método autobiográfico em Nóvoa e Finger (2010), visamos contemplar a valorização das experiências através das histórias de vida dos pedagogos/professores como elementos formativos, uma vez que o trabalho com as memórias demonstram oferecer aos sujeitos a possibilidade do movimento da reflexão crítica; as narrativas, nesse sentido, dão mostras de funcionar como dispositivos e pontes para os desvelamentos de si como pessoa e profissional; isto nos interessa particularmente. Reafirmamos, portanto, a utilização dos caminhos da autobiografia para a investigação. E, nesse sentido, conduzimos este estudo para a compreensão da formação conforme os horizontes da epistemologia da formação (NÓVOA; FINGER, 2010). Tal abordagem põe em cena as vozes antes silenciadas dos professores na expectativa de que estas vozes possam emanar dos contextos do eu e do mundo como forças reveladoras e ativadoras do pensamento crítico; quiçá revelem as relações tecidas na vida afora e promovam desvelamentos em cada instância do vivido. Finalmente, que possuam a força de abrir fronteiras viabilizadoras de engendramentos permeados de outras experiências e possíveis construções do ainda não vivido. Alicerçamos nossa caminhada pelas vias da (auto)biografia por considerarmos a natureza emancipatória das histórias de vida, uma vez que essas narrativas possibilitam o acesso ao vivido e a elaboração de reflexão crítica acerca do conteúdo explicitado no ato de rememorar, movimento que permite o defrontar‐se com o próprio eu, caminho para oportunizar a transformação de si e de suas práticas nos caminhos do vir a ser (JOSSO, 2007). A pesquisa está acontecendo com a participação de quatro professoras de uma escola pública da rede municipal de Jequié, cuja escolha tem caráter aleatório, tendo o critério da cidade relação com os baixos índices apontados pela avaliação do MEC. Trata‐se de uma unidade escolar que atende a 120 alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, distribuídos em quatro turmas nos turnos matutino e vespertino. Em relação aos sujeitos da pesquisa, há a exigência de serem licenciados em pedagogia e atuarem em salas de aula dos anos iniciais do ensino fundamental, sendo, portanto responsáveis pelo ensino da disciplina Matemática. Em virtude desse critério dos sujeitos serem licenciados em Pedagogia e atuarem na docência, criamos a expressão pedagogos/professores. Obtivemos a adesão de todos os docentes que atuam na referida instituição, sendo cinco sujeitos do sexo feminino. E dessas professoras, uma é licenciada em Biologia e, portanto não atende aos critérios que estabelecemos. Iniciamos com a apresentação da proposta da pesquisa e em seguida realizamos uma entrevista na qual colocamos a vinculação aos sentidos das conversas em Certeau (2012). Tivemos uma conversa com a diretora cujo objetivo consistiu na produção de dados acerca do cenário da investigação. Identificamos então que a escola funciona em prédio próprio e foi fundada em 1965. A construção necessita de reforma que já foi solicitada à secretaria de educação pela dirigente conforme nos informou. Observamos que a estrutura física da escola requer um planejamento técnico. Além das salas de aula, há os seguintes espaços: quadra esportiva, Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 282 área livre, salas de leitura, teatro e dança, mas as construções apresentam inadequações. Há equipamentos como computadores, impressora e projetor, entretanto existe dificuldade para a manutenção e o acesso a materiais, a exemplo da ausência de livros para os alunos do terceiro ano. Tais informações nos comunicam sobre as condições da educação básica em nosso país a indicar a distância existente entre os discursos das políticas e as condições de funcionamento das instituições. Na conversa que realizamos com as pedagogas/professoras, falamos do planejamento para o desenvolvimento do trabalho proposto, e consideramos importante informar que tanto elas como a diretora declararam que a perspectiva da pesquisa, para essas mulheres algo diferente e até estranho em virtude da constatação do interesse pela vida de professoras que são pessoas comuns, pessoas anônimas foi o que motivou a adesão delas. E diante dessa exposição, pensamos em discursos que afirmam serem os professores da educação básica desinteressados na participação de atividades de formação; ao contrário há vontade de sentir‐se participando de um processo formativo e recusa por um tratamento de alienação que separa sujeito e objeto. Nesse momento de conversa com as professoras, elas nos falaram de suas vidas marcadas pela opção da docência e de como têm sido essa itinerância vida‐profissão. Foi um encontro entre o eu e o tu na fala de cada uma e na escuta da narrativa alheia. Houve a emoção ao lembrar acontecimentos ligados à discência e à docência, lágrimas correram dos olhos e também saltou dali um olhar de criança ao descobrir uma brincadeira nova ao perceberem os entremeamentos dos fios das experiências de estudante e de professora. Por ora, estamos vivendo a produção das narrativas nos Ateliês (auto)biográficos (DELORY‐MOMBERGER, 2006) com a participação das 4 professoras anteriormente mencionas. Duas tem mais de seis anos na docência e as outras duas mais de quatorze anos. E até o presente momento, conseguimos realizar dois ateliês. Nos ateliês citados estão ocorrendo procedimentos de narrativas e socialização destas, a partir da produção de memoriais como fontes de pesquisa, em registros de histórias de vida particularmente relacionadas a trajetos escolares na condição de discentes e docentes. Através da utilização de dispositivos pensados como instrumentos de ativação da ligação entre o passado, o presente e o futuro dos sujeitos em vias de fazer emergir formações existenciais, projetos pessoais, trajetórias escolares e experiências que constituem elementos do percurso formativo dessas pessoas num espaço que consideramos de reencontro com a vidaprofissão por meio da fala, da escuta, da escrita e da leitura. Para subsidiar a nossa opção de trabalho dialogamos com Delory – Momberger (2008) que nos diz: O que dá forma ao vivido e à experiência dos homens são as suas narrativas, como lugar no qual o indivíduo toma forma, no qual elabora e experimenta a história de sua vida. (DELORY‐ MOMBERGER, 2008, p. 97). Na proposição desta investigação de caráter formativo, partimos de premissas epistemológicas que informam de que, nas narrativas, a pessoa tem a oportunidade de organizar determinada realidade e pensar sobre os acontecimentos, suas ações e das outras pessoas, pelos movimentos das construções das narrativas em que produz e organiza os arranjos dos fios da trama que chamamos: VIDA! Parece haver, nesse caminho, um sujeito a alcançar mais compreensão acerca de si, o que indica possibilidades de autoformação. Este viés empresta a esta proposição um pretendido caráter investigativo‐formativo. A exemplo Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 283 de Moita (1992), empregamos como pressuposto a formação não como uma atividade de aprendizagem isolada, situada no tempo e no espaço, mas como ação vital de produção de si mesmo. Nesse sentido, as narrativas de si têm colocado as pessoas em contato com suas experiências formadoras, permeadas por simbolizações e subjetivações construídas ao longo da vida. A esse respeito nos referendamos em Passeggi (2008) ao mencionar o seguinte: Auto‐bio‐grafar é aparar a si mesmo com suas próprias mãos. Aparar é ajudar aqui utilizado em suas múltiplas acepções: segurar, aperfeiçoar, resistir ao sofrimento, cortar o que é excessivo e, particularmente, como se diz no Nordeste do Brasil, aparar é ajudar a nascer. Esse verbo rico de significado permite operar a síntese do sentido de bio‐grafar‐se, aqui entendido, ao mesmo tempo, como a ação de cuidar de si e de renascer de outra maneira pela mediação da escrita (PASSEGGI, 2008, p. 27). Colocamos assim os caminhos das produções narrativas como aberturas para a compreensão das próprias práticas e elaboração de possíveis ressignificações. Nessa ótica, as narrativas de si são contempladas como atividades formadoras (SOUZA, 2006) as quais atendem a perspectiva que já anunciamos na abertura deste texto, de formação produzida não para os professores e sim com os professores, e, portanto de percurso formativo cujo cerne consiste na subjetividade humana, uma vez que não há ruptura entre vida e profissão. A formação então é elaborada na via da autoformação. Ao atingir essas linhas do escrito, nos damos conta novamente da relevância da dimensão processual desta pesquisa a nos apresentar o desafio do vir a ser como percurso a ser trilhado, diante do que se apresenta como a incerteza do que não conhecemos e a angústia da ausência que se instala em meio ao nó da complexidade (MORIN, 1984; 1986; 1996). Há diante disso, apenas uma certeza, que reside no esforço para a produção das compreensões como empreendimentos vivos oriundos de leituras/escutas densas do material que está sendo produzido. Os fios de uma costura inacabada [...] é também nas dobras do cotidiano que a história se realiza. Benjamin (1987) Em virtude da situação da pesquisa em andamento, registramos neste texto somente algumas impressões baseadas no percurso já trilhado, ou seja, neste momento nos questionamos acerca dos fios presentes na composição do empreendimento da pesquisa considerando a produção de um espaço para a compreensão da composição das práticas dos pedagogos/professores no ensino da Matemática nos anos iniciais do ensino fundamental por meio do que as narrativas dizem das suas experiências, o contexto social das histórias, e resvalando as análises para as questões que permeiam o currículo e a formação docente. Buscamos aporte em Goodson (1995) ao explicar a existência de um contexto social no qual o conhecimento é concebido e produzido e da formação que traduz esse conhecimento para uso nas salas de aula. Desse modo, visamos depreender a concepção de Matemática desses docentes, bem como, revelar possíveis dilemas e conflitos presentes no percurso formativo dos sujeitos da pesquisa no que se refere à relação destes com o conhecimento matemático e possíveis desdobramentos de tal processo em suas práticas educativas com a referida disciplina. Produzimos através das questões iniciais e das pistas encontradas no meio do caminho, possibilidades para pensar a educação como formação e não semiformação (ADORNO, Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 284 2003), e diante das pedras e das luzes do caminho, como peregrinos, seguimos em busca da abertura de uma formação que considere como princípio a compreensão de como o sujeito se produz, se constrói dentro das práticas e de como elabora seus conhecimentos e suas ações no tempo e no mundo (PEREIRA, 2010). Na produção do primeiro Ateliê, a provocação ocorreu com um bolo e um livro de receitas que fizeram surgir palavras como: cozinha, avó, mãe, lanche e cantina. Houve então a narrativa de cada participante e depois a escrita e a leitura com base no tema: Sabores na Família e na Escola. Nesse Ateliê encontramos os fios que contam dos primeiros contatos com a escola que no caso de todas elas houve a dificuldade do acesso pelas questões sociais e econômicas. Uma delas ficou marcada por uma queda no caminho para a escola, o que fez com que seu pai interrompesse por algum tempo esse percurso e se organizasse para passar a residir na cidade, e nesse sentido percebemos o valor atribuído à escolarização e os esforços em prol dos estudos dos filhos para pais que não tiveram essa possibilidade. Relacionamos ainda a figura do mestre como alguém com poderes de decisão sobre as vidas de seus alunos, uma vez que conforme as escritas elaboradas, os professores interferiam nas vidas dentro e fora da escola, e o que era feito ou dito por eles tinha o apoio da família e daquela comunidade, assim os professores tinham um prestígio na sociedade, pois sua figura estava imbricada à relação saber‐poder. No segundo Ateliê, utilizamos como dispositivo para acionar as memórias a música: Ao mestre com Carinho. Entregamos a letra digitada a cada professora e colocamos a canção gravada nas vozes de um grupo de crianças. Ouvimos e cantamos ao mesmo tempo, todas juntas e com expressões que indicavam alegria e entusiasmo. Em seguida, as professoras começaram a sinalizar algumas lembranças referentes a professores que tiveram, e duas delas narraram acontecimentos que estavam nítidos naquele instante, mas não lembravam os nomes das professoras, as memórias produziram cenas de violência que elas presenciaram. A primeira disse que a professora havia utilizado uma régua para bater numa colega e a outra narrou acerca de uma professora que colocava todos da turma de castigo ajoelhados no milho; e que agora ela ficava pensando que nunca foi castigada e queria saber como era; acha que não ficava no tal castigo por ser muito obediente, afinal seu pai era o zelador da escola e sua mãe era uma das docentes. Segundo essa professora, sempre era advertida pelos pais de que tinha que ser um exemplo de aluna! Essas narrativas provocaram um comentário de outra professora que mencionou a normalidade desses acontecimentos naquela época, e todas confirmaram que de algum modo tiveram experiências relacionas a comportamentos autoritários de seus professores, inclusive três professoram apresentaram a seguinte indagação: Por que os professores que ensinavam Matemática eram os mais rígidos? No ecoar da questão mencionada, houve a mobilização para a escrita com vistas a buscar nas memórias os fios das experiências com os mestres, o que eles faziam que eu também faço e/ou o que não faço e como tem sido então ser a professora que venho sendo...As vozes das pedagogas/professoras têm demonstrado as possibilidades de aprendizagens fragilizadas, as cicatrizes do autoritarismo, a figura do medo na fuga da Matemática e o desespero do reencontro com a “temida disciplina”. Disso ecoa um chamamento para que prossigamos juntos nessa empreitada que remexe com a vida de cada um e de todos nós. Em meio ao desenvolvimento da investigação, vamos vivendo nela a condição de experiência como relação de escuta que nos faz olhar para nós e para o mundo de olhos limpos como a criança. Esses são olhares que lutam contra o conformismo Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 285 dos estereótipos e ousam um itinerário de desfazimento do eu e de aberturas para a formação como autoformação (BENJAMIN, 1987; LARROSA, 2000). Diante do exposto, pontuamos a composição de uma pesquisa comprometida em aproximar a produção acadêmica através de seus estudos do que ocorre nas salas de aula, entendendo o espaço da escola como local de materialização das práticas. Essa postura coloca em evidência uma compreensão de currículo que vai além dos documentos. Por isso, nossa pesquisa envereda por trajetos que contemplam a escuta dos sujeitos nas condições de discentes e docentes a fim de considerar o currículo em movimento para o entendimento desse jogo social em que o ser humano é produzido e se faz também produtor. Referências ADORNO, T. “Educação para quê?”. Trad. Wolfgang Leo Maar. In: Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza. Ensaio obtido em Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114‐119. BOGDAN, R; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação – uma introdução à teoria e aos métodos. Porto Editora. Portugal, 1994. BRASIL. Conselho Nacional de Educação Resolução CNE/CP 1/2006. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia, licenciatura. 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A proposta de construção de biografias educativas conecta‐se à concepção de pesquisa em que seus objetivos imbricam‐se com a formação. A questão‐base relaciona‐se à compreensão de narrativas (auto)biográficas como um processo de reconstituição da gênese de ser professor. Seus objetivos: recolher informações acerca dos movimentos de professoralização; compreender se os conhecimentos produzidos pelos atos de narrar‐se e às práticas cotidianas produzem novos traços na professoralidade; analisar de que modo as experiências pedagógicas, desde a condição de discentes, se expressam nos citados movimentos; por último, analisar se as interrogações acerca do que se vem sendo, proporcionam uma percepção mais acurada de si e um aprofundamento acerca das situações pedagógicas vivenciadas. As análises parciais revelam que as escritas (auto)biográficas vêm enriquecendo e reforçando o (auto)conhecimento e promovendo, de algum modo, transformações na professoralidade. Observamos que, na explicitação dos enredos de suas histórias, as narradoras se reapropriam de suas experiências de formação em delineamentos dinâmicos e que os movimentos de professoralização, ao transparecerem, parecem incitá‐las à reorganização da professoralidade no cotidiano pedagógico. Palavras–Chave: Educação infantil; (Auto)biografia; Formação Docente. Palavras Iniciais Quando os mestres relatam suas lembranças, estas são um tecido de práticas. É nas práticas que se reconhecem sujeitos, onde se refletem como espelho. Onde reconstroem sua identidade. (Miguel Arroyo) As histórias de vida e os estudos autobiográficos como metodologias de investigação científica na área da Educação ganharam visível impulso no Brasil nos últimos quinze anos (NÓVOA, 1995). A partir das memórias docentes resgatadas por meio dos relatos biográficos, observamos ações e reações que nos impulsionam a reafirmar o caráter formativo desta modalidade de estudo. Quanto mais nos lembramos da experiência vivida, escrevemos ou falamos sobre ela, melhor podemos ressignificá‐la. Ao narrar e escrever suas experiências, enfrentamentos, dificuldades e superações, enquanto discente, os professores passam a perceber que tais memórias são importantes para a compreensão da cultura escolar, tendo em vista que as práticas vivenciadas, quando rememoradas e refletidas contribuem para a construção e reconstrução do percurso de formação docente. A prática do trabalho com as narrativas de formação ganha outro estatuto, a partir da compreensão que foi sendo construída a partir das contribuições advindas dos trabalhos de Nóvoa (1995, 2010), de Catani et al. (2003) e de Josso (2004, 2010), uma vez que tais autores Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 288 vêm aprofundando e sistematizando diferentes aspectos epistemológicos e metodológicos sobre as pesquisas com histórias de vida, autobiografias docentes e processos de formação. A pesquisa (auto)biográfica amplia e produz conhecimentos sobre a pessoa em processo de formação, as suas relações com territórios, grupos e tempos de aprendizagem e seus modos de ser, de experienciar conflitos e expressar posicionamentos frente ao vivido. A memória, resgatada sob a forma de lembrança narrada, permite ao sujeito tomar consciência de elementos que definem como ele se relaciona hoje a partir das percepções do ontem. A motivação inicial para o desenvolvimento desse trabalho surgiu do interesse nos estudos sobre o processo de formação do professor e se estendeu na perspectiva de interpretação do cotidiano da sala de aula, especificamente, na tentativa de compreender os processos de apreensão e apropriação dos movimentos de professoralização (PEREIRA, 2001) em profissionais que atuam na Educação Infantil. Assim, a presente investigação‐
formação, ora em andamento tem origem em nossas reflexões enquanto docente em cursos de formação inicial e continuada de professores e como coordenadora pedagógica do Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol. Essa experiência aguçou o nosso interesse em pensar as implicações das trajetórias pessoais, que demarcam escolhas que podem estar vinculadas as experiências da profissão e o cotidiano dos profissionais que exercem a docência na Educação Infantil. Nessa perspectiva, diversos questionamentos sinalizaram a preocupação em compreender os sentidos e as representações dos professores acerca do seu fazer pedagógico, sendo necessário conhecer os saberes/fazeres construídos pelos profissionais de Educação Infantil ao longo de suas trajetórias formativas, para assim entender os processos engendrados na constituição dos seus movimentos de professoralização. Assim sendo, esse estudo intenciona conhecer os sentimentos e saberes acerca das experiências vivenciadas pelos professores em suas trajetórias formativas, como forma de melhor compreender como estes se expressam no cotidiano das práticas desenvolvidas com crianças pequenas. As ideias nele contidas são fruto das nossas inquietações enquanto pesquisadora que lida com a problemática “formação, saberes, profissionalização e movimentos de professoralidade” de professoras de Educação Infantil, especialmente, estudos que focalizam o interesse pela narrativa (auto)biográfica como instrumento metodológico para a apropriação do percurso de formação docente. Nesse sentido, acreditamos que os conhecimentos produzidos pelos atos de narrar‐se e às práticas cotidianas, proporcionariam, nas professoras, uma percepção mais acurada de si e um aprofundamento acerca das situações vivenciadas. Diante do exposto, os objetivos deste estudo conectam‐se à averiguação de narrativas (auto)biográficas como um processo de reconstituição da gênese de ser professor; nesse sentido, buscou‐se recolher informações acerca dos movimentos de professoralização; compreender se os conhecimentos produzidos pelos atos de narrar‐se e às práticas cotidianas produzem novos traços na professoralidade; analisar de que modo as experiências pedagógicas, desde a condição de discentes, se expressam nos citados movimentos; e por último, analisar se as interrogações acerca do que se vem sendo, proporcionam uma percepção mais acurada de si e um aprofundamento acerca das situações pedagógicas vivenciadas na Educação Infantil. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 289 Portanto, com base nos objetivos acima delineados, este artigo busca desvelar imagens tecidas e evocadas pelas professoras, através do resgate da memória acerca das práticas pedagógicas vivenciadas desde a discência, tendo em vista o olhar das mesmas acerca de seu saber/fazer cotidiano junto às crianças, bem como conhecer como estas interpretam seus percursos e lhes dão sentidos e significados. Caminhos Percorridos na Educação Infantil... desafios formadores A formação dos profissionais de educação deve estar voltada para a aprendizagem – e não mais apenas para o ensino. (Marly Weber) As contínuas transformações que têm afetado a sociedade fazem emergir novas demandas para a escola e para todos que nela convivem em seu cotidiano. Decorrentes das inovações tecnológicas e científicas, dos processos de globalização, das novas configurações do mundo do trabalho e das relações sociais, tais demandas passam a exigir modos diferenciados de formação, atuação e interação dos sujeitos sociais. Assim, a escola, enquanto instância responsável pelo aprendizado/formação de crianças e jovens acaba por se integrar às novas configurações organizativas da sociedade. Nessa nova dinâmica social, o mercado é colocado na posição de árbitro fundamental das regulações que se estabelecem nos campos econômico, social, cultural e educacional (FRIGOTTO, 2001). Destarte, evidencia‐se as relações de determinação existentes entre a educação e sociedade e a estreita vinculação entre a forma de organização da sociedade, os objetivos da educação e a forma como a escola se organiza. Nas últimas décadas, a Educação Infantil vem sendo reconhecida mundialmente como um segmento importante do processo educativo. A aprovação da Lei 9394/96‐ LDB, oportuniza importantes perspectivas ao avanço de propostas que reconheçam as necessidades específicas das crianças de 0 a 5 anos, superando o caráter assistencialista da maioria dos programas destinados à faixa etária. Entretanto, fator importante a ser considerado é a formação dos profissionais que atuam nesse âmbito da Educação Básica, uma vez que em seu processo formativo os mesmos devem se apropriar de diversos conhecimentos que lhes possibilitem exercer uma prática educativa crítica e reflexiva. Os estudos de Sanches (2003), apontam que a formação dos docentes de Educação Infantil não ocorre somente pelo acúmulo de cursos, palestras e técnicas, mas por “trabalho de reflexão crítica sobre as práticas e (re) construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso, é tão importante investir na pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência” (NÓVOA, 1995, apud, SANCHES, 2003, p. 27). Assim, embora muitos professores saiam dos cursos de formação buscando fazer a diferença em seus espaços de atuação, as dificuldades vivenciadas no exercício da profissão acabam sendo decisivas quanto ao posicionamento do professor perante o enfrentamento ou desistência da carreira. Tais dificuldades vão desde as condições estruturais oferecidas pela escola, até mesmo ao menosprezo pelo saber experiencial, elaborado a partir das situações diárias com as quais este profissional se depara. Nesta perspectiva, André (2005), reafirma: [...] é preciso explicitar, também, que falar em processo de reconstrução do Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 290 saber docente significa considerar questões relativas tanto aos estudos sobre o processo de ensino e a formação do professor, quanto aos estudos sobre o saber que o professor desenvolve sobre a sua prática docente. (p. 10). Assim, a ideia de ser ou vir a ser professor vai se constituindo a partir das experiências vivenciadas, desde o momento inicial, da infância propriamente dita. Conta a história das relações daquele sujeito com a escola e com os processos de aprendizagem pelos quais passou e, principalmente, da produção de sentido e significados sobre estas experiências, das marcas produzidas pelas mesmas. Larrosa (2002) assinala que “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca e não simplesmente o que passa, o que acontece, ou o que toca”. Assim frente à ideia de tornar‐se professor vão também se articulando uma gama de maneiras de vir a ser e estar no mundo, de valores e posturas que vão se constituindo num entrelaçamento entre o social e o individual, mas que ao acontecer modifica o que se é e consequentemente, o que se vem sendo. Assim, trabalhar com a formação de professores de Educação Infantil seja ela inicial ou contínua, nos impulsiona a refletir sobre os processos de construção e apropriação dos saberes pessoais e profissionais, desenvolvidos a partir das experiências no cotidiano infantil. Nesse sentido, o acesso às trajetórias de vida, formação e (auto)formação percorridas pelos educadores de crianças pequenas, a partir do processo de narrativa (auto)biográfica, possibilita apropriação e ressignificação das práticas pedagógicas que foram construídas ao longo das histórias desses sujeitos. Nesta direção, faz‐se necessário pensar a aprendizagem da docência enquanto processo que se realiza a partir das dimensões internas e externas ao sujeito, constituindo‐
se como um movimento estabelecido entre as potencialidades do sujeito e as exigências estabelecidas pelas condições reais de enfrentamento da profissão. As interações com colegas, alunos e demais companheiros de profissão, em meio ao lócus escolar, assumem uma importância fundamental, na medida em que se constituem como elementos fomentadores da aprendizagem docente, num movimento de vir a ser professor. Tal perspectiva nos aproxima das discussões propostas por Pereira (2001) ao indicar que vir a ser professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, uma diferença que o sujeito produz em si, um estado de desequilíbrio, um processo marcado por rupturas e conflitos, entre o buscado e o encontrado, entre exigências pessoais e profissionais que se dá no decorrer da trajetória formativa do professor. Nesta direção, o mesmo autor, ao cunhar o termo professoralidade enfatiza o movimento processual de produção de diferenças que o sujeito professor realiza ao longo de seu percurso formativo. A proposta de construção de biografias educativas conecta‐se à concepção de pesquisa em que seus objetivos imbricam‐se com a formação. Compreendemos as narrativas (auto)biográficas como um processo de reconstituição da gênese de ser professor. Acreditamos, que através das mesmas possamos recolher informações acerca dos movimentos de professoralização, e assim compreender se os conhecimentos produzidos pelos atos de narrar‐se e às práticas cotidianas produzem novos traços na professoralidade, analisar se as interrogações acerca do que se vem sendo proporcionam ao professor de Educação Infantil uma percepção mais acurada de si e um aprofundamento acerca das situações pedagógicas vivenciadas no contexto escolar. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 291 Alguns Achados... “[...] Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens a mesma história que eu leio, comovido”. (Ferreira Gullar, 1975). O percurso trilhado nessa pesquisa teve por base uma experiência pesquisadora fenomenológica, baseada nas histórias de vida como método de investigação qualitativa e prática de formação, com a participação de oito professoras de Educação Infantil, atuantes no Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol/UESB ‐ Jequié. A proposta de construção de biografias educativas conecta‐se à concepção de pesquisa em que seus objetivos imbricam‐
se com a formação. A questão‐base relaciona‐se à compreensão de narrativas (auto)biográficas como um processo de reconstituição da gênese de ser professor. Escolhemos esse dispositivo, visto que, para Alarcão (2004), o ato de escrita é um encontro conosco e com o mundo que nos cerca. “As narrativas serão tanto mais ricas quanto mais significativas se registrarem. Para serem mais compreensíveis, é importante registrarem‐se não apenas os fatos, mas também o contexto físico, social e emocional do momento.” (p.53). Não há uma única forma de se expressar, assim como são múltiplas as possibilidades de se registrar o vivido. Utilizar a autobiografia é dar espaço para o professor se auto‐revelar, possibilitando a tomada de consciência sobre si mesmo e sobre o seu fazer. Nesse sentido, buscamos analisar os escritos produzidos a partir das narrativas (auto)biográficas (NÓVOA, 1995) das professoras que atuam no Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol / Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Campus Jequié. Essas professoras trabalham em turmas de Berçário, Maternal I e II, com crianças na faixa etária de um ano a quatro anos de idade. A participação foi voluntária, mas optamos pelo anonimato da amostra de oito professoras participantes da pesquisa. O grupo está constituído por quatro professoras que já concluíram o ensino superior e quatro profissionais em formação nos Cursos de Licenciatura em Pedagogia e Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. As informações recolhidas foram analisadas e processadas com vista a apropriação de sentidos e significados expressos pelos participantes em momentos de narrativas das memórias evocadas a partir do vivido. A partir de nossa inserção no cotidiano do Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol, enquanto coordenadora pedagógica, surgiu à possibilidade de construção de um roteiro (auto) biográfico que estimulasse a reflexão das professoras / parceiras da pesquisa acerca das suas trajetórias de vida e das implicações na prática docente. Acreditamos na potencialidade do trabalho com professoras enquanto narradoras de suas experiências de vida, pois as mesmas desvendam perspectivas sobre a dimensão pessoal, visto que é a pessoa que se forma, em diversos contextos cotidianos, e se constitui por meio da compreensão que elabora do seu próprio percurso de vida. Ao ler as biografias educativas com as memórias das professoras / participantes da pesquisa, pudemos compartilhar vários sentimentos como: alegria, amor, encantamento, medo e incertezas, sobre as experiências no trabalho com as crianças. Com essas imagens, portanto, narramos aqui um pouco dos segredos e mistérios dos caminhos pelos quais as professoras pesquisadas vêm se apropriando do seu percurso profissional. Nesse sentido, buscamos focar o significado e a fertilidade da construção das narrativas de formação em Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 292 seus movimentos de professoralização, que evidenciam as relações que os profissionais de Educação Infantil estabelecem com os espaços, tempos, rituais e aprendizagens da prática docente. Inicialmente buscamos fazer emergir a partir de recurso metodológico evocativo, as lembranças de como se deu a escolha da docência como profissão, objetivando identificar os percursos e as motivações que encaminharam as professoras para a carreira da docência. Através da análise das narrativas das professoras participantes da pesquisa foi possível perceber que a opção pela docência surgiu muito antes da escolha profissional propriamente dita, esta se consolidou a partir de uma série de fatores que foram se constituindo em elementos condutores a assunção da docência, como nos revela as narrativas das professoras Esmeralda e Jade: PE‐ Meu sonho sempre foi trabalhar com crianças, e contribuir para sua formação individual e social. Quando criança, lembro que tive uma professora que era muito carinhosa, mas tradicional, porque a gente nem podia levantar e nem olhar para os lados. Então, ao brincar de escolinha, eu fazia desse jeito também. .(Profª Esmeralda). PJ‐ [...] tenho boas lembranças da escola, minha professora de Língua Portuguesa, pessoa que procurou extrair o melhor de mim. Incentivadora de minhas leituras, compartilhava seus livros. Essa professora me fez acreditar em meu potencial acadêmico e pessoal.(Profª Jade). A percepção das implicações pessoais e das marcas que foram sendo impressas na trajetória individual de cada participante, por meio do movimento de narrativas biográficas sobre o processo de construção da aprendizagem pessoal e coletiva da profissão, tendo por base a experiência e vivência no cotidiano escolar, revela‐se como um fértil exercício de formação e de pesquisa, na medida em que possibilita ao sujeito em formação compreender‐se como autor e ator do seu percurso formativo, bem como, ressignificar o seu fazer a partir do enfrentamento de dificuldades, escolhas e superações. Quando mobilizadas a evocar os sentidos e significados de ser professora de Educação Infantil, as professoras expressaram sentimentos variados, como orgulho e contentamento, em poder contribuir para o desenvolvimento de um ser integral, em uma etapa de vida tão importante. As narrativas abaixo são bastante significativas e reveladoras. PP‐ É recompensador saber que você colaborou na formação de um ser, em sua constituição social afetiva e intelectual.(Profª Pérola). PC‐ Por acreditar que a educação infantil é o alicerce da formação educacional, vejo que o sentido de ser professor se baseia em considerar a criança como alguém curioso, ativo e com direitos. Alguém que necessita de um espaço escolar que busque aproximar cultura, cognição, linguagem e afetividade ao seu desenvolvimento. (Profª Cristal). Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 293 A escrita narrativa impulsiona o sujeito a um movimento de auto‐escuta, como se estivesse contando para si próprio as experiências e aprendizagens que construiu ao longo do seu percurso de vida, através da apropriação do conhecimento de si. Nessa perspectiva a biografia educativa se instaura como um recurso de investigação‐formação. No momento que focaliza o processo de construção de conhecimento e de formação que se vincula a partir do exercício de tomada de consciência, por parte do sujeito, das itinerâncias e das aprendizagens ao longo da vida, as quais são expressas através do ato de narrar‐se, dizer‐se de si para si mesmo como uma evocação dos conhecimentos construídos nas suas experiências formadoras. Outro aspecto evidenciado nas narrativas refere‐se a apropriação dos saberes necessários ao desenvolvimento do ato educativo na Educação Infantil: PT‐ Em minha opinião, em primeiro vem o conhecimento prático que vai sendo construído e adquirido no dia a dia do professor, depois alguns conhecimentos teóricos relacionados a algumas teorias do conhecimento, ou melhor, da aquisição do conhecimento e de alguns saberes relacionados a teorias sobre o desenvolvimento cognitivo, social e psicológico na infância. (Profª Turmalina). PS‐ Alguns saberes são necessários para o trabalho com educação infantil, entre eles que o professor não dissocie o cuidar, o ensinar e o brincar, que juntos são indispensáveis na construção da rotina, no planejamento de atividades e principalmente na prática pedagógica. (Profª Safira). As professoras Turmalina e Safira evidenciam em suas falas uma concepção pragmática sobre o exercício da docência na Educação Infantil, tendo como premissa primordial para o bom desempenho docente, o domínio da rotina e planejamento de atividades diárias, como também o conhecimento de teorias sobre o desenvolvimento cognitivo, social e psicológico da criança. Logo, é possível indicar que tais experiências se configuram como elementos estruturantes do habitus docente destas professoras, servindo como um dos aspectos orientadores do desencadeamento da docência exercida junto a crianças pequenas. Tardif (2002) afirma que os saberes adquiridos durante a socialização primária e escolar possuem um peso extremamente importante na compreensão da natureza dos saberes, do saber–
fazer e do saber‐ ser que serão mobilizados e utilizados no decorrer da formação inicial do professor e até mesmo no próprio exercício da profissão. Para este autor, o que foi retido das experiências familiares ou escolares poderá dimensionar, ou pelo menos orientar os futuros investimentos e ações voltadas à docência. Uma das possibilidades de aproximação entre o professor e uma concepção mais integral do processo educativo poderia ser a utilização de estratégias de problematização, a partir de situações reais de ensino em que, mesmo partindo de lugares diferentes, pudessem contribuir para a formação do educador, em que seja considerada a perspectiva crítica com a formação do cidadão autônomo, ativo, político e socialmente comprometido com a transformação social. Estas indagações deveriam partir de inquietações reais, que fossem importantes para as tomadas de decisão, de modo que se poderia buscar o que Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 294 tanto a Educação têm a dizer sobre os problemas encontrados. As narrativas (auto) biográficas impulsionam a reflexão / ação, transformando‐as em apropriação da experiência vivida, num movimento permanente do professor pensar sobre sua prática, desmembramento de escolhas e posicionamentos em sua trajetória de construção do conhecimento. Acreditamos que o conhecimento é um processo de descoberta coletiva, mediatizada pelo diálogo entre educadores e educandos (Romão, 1999). Nesse sentido, a presente investigação‐formação, ora em andamento, buscou ouvir as vozes das professoras acerca de seus sentidos, significados e sentimentos sobre as práticas educativas experienciadas ao longo de seus processos formativos, em meio ao lócus de um Centro de Convivência Infantil. Considerações em aberto Apesar da pesquisa apresentar‐se em desenvolvimento, já é possível, mediante a análise de trechos das escritas (auto)biográficas que estão sendo realizadas, identificarmos algumas impressões dos professores do Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol acerca do processo de construção da gênese do ser professor e os desafios enfrentados com as diversidades culturais na Educação Infantil. Assim, atentar para a forma como o professor de Educação Infantil reflete sobre o seu trabalho, como o elabora e o realiza, parece ser um recurso interessante para compreender os percursos formativos vivenciados por estes no meio educacional que se fazem presentes na prática pedagógica. É certo que o profissional de educação que atua junto às crianças pequenas se depara com questões que precisam ser resolvidas e que envolvem a criança, a compreensão que ele próprio tem da vida, seus valores e do papel que estes desempenham na formação do psiquismo infantil. As narrativas apontam que a grande maioria das professoras envolvidas no processo de pesquisa‐formação, se sentiram mobilizadas a evocar suas memórias, entendendo esse movimento de rememoração do fazer cotidiano, tomada de decisões necessárias e enfrentamentos diante das dificuldades postas ao exercício da docência, especialmente junto á crianças pequenas, vai além dos processos educativos desenvolvidos em sala de aula. As análises parciais revelam que as escritas (auto)biográficas vêm enriquecendo e reforçando o (auto)conhecimento e promovendo, de algum modo, transformações na professoralidade. Consideramos, ainda que na explicitação dos enredos de suas histórias, as narradoras se reapropriam de suas experiências de formação em delineamentos dinâmicos; assim, os movimentos de professoralização, ao transparecerem, parecem incitá‐las à reorganização da professoralidade no cotidiano pedagógico. Neste sentido, as narrativas biográficas trabalhadas no estudo presente, apresentam‐
se como uma ação complementar, que enriquece e reforça as transformações desencadeadas na interação social. Consideramos ainda que na busca de um enredo, para suas histórias, as narradoras selecionam, estabelecem relações, organizam os fatos, encontram justificativas, clarificam suas imagens de docência e de criança. Nesse processo, re‐conhecem, re‐descobrem suas relações com os saberes de suas práticas com a educação infantil, com o grupo, mas, principalmente, com sua criança. Nessa perspectiva, há fortes indícios de que a construção da professoralidade acontece imbricada ao processo de desenvolvimento permanente da pessoa e que a Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 295 formação docente tem início muito antes de a pessoa ingressar nos cursos de preparação para o magistério e prossegue no decorrer de sua prática profissional. Assim, trabalhar com professores de Educação Infantil, nos leva a valorizar suas histórias de vida, suas narrativas biográficas, para a partir destas, refletir sobre os saberes construídos por esses profissionais, em suas itinerâncias, seus percursos formativos. Saberes que vão desde a experiência sobre o lúdico, o corpo, a linguagem, a estética em sua formação, seja ela inicial ou contínua. Esta pode ser uma possibilidade de ressignificar as práticas pedagógicas que foram construídas ao longo das histórias desses sujeitos. Conforme D’Ávila (2007) “Os saberes profissionais são, pois, saberes da ação. Essa hipótese reforça a ideia de que os saberes profissionais são trabalhados e ressignificados no contexto do próprio trabalho”. Em outras palavras, os saberes profissionais dos docentes são temporais, isto é, são adquiridos através do tempo, visto que boa parte do que sabem sobre a própria profissão provêm de suas próprias histórias de vida e, sobretudo, de suas trajetórias educativas. As narrativas (auto)biográficas proporcionam aos educadores o autoconhecimento, permitindo assumir‐se como sujeitos que pensam e falam de acordo com sua subjetividade, com direito de se transcenderem no tempo, no espaço e nos desejos. A subjetividade é impossível de ser ignorada, uma vez que cada um interpreta o mundo e cria uma fantasia única conforme a incorporação daquilo que vivenciou e, isso transforma cada sujeito em um enigma a ser decifrado. Deste modo, o professor se abre para uma visão real das limitações de cada individuo frente às diferentes situações culturais em que vive, adquirindo preparo para ter uma postura de escuta em relação ao outro sujeito, melhorando assim sua compreensão e seu relacionamento com este. Os resultados da investigação, ora em desenvolvimento, levaram ‐nos a concluir que há uma crescente preocupação das professoras com relação aos seus processos de formação, bem como ao exercício do seu trabalho, no entanto, as mesmas ainda enfrentam o desafio de superação de uma formação inicial e continuada sem grandes alicerces para abordar as temáticas diversas que emergem cotidianamente nas salas de aulas de Educação Infantil, algumas delas sobre as diferenças, principalmente, envolvendo questões como preconceitos raciais, sexuais e de gênero. Além disso, o trabalho docente repercute nas diversidades culturais das quais as crianças se originam, o que acaba por limitá‐las em ações pontuais e esporádicas realizadas em projetos especiais desenvolvidos a partir de necessidades específicas identificadas junto a clientela do Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol. Finalmente, ao tomar os primeiros movimentos desencadeados rumo a percepção da construção da professoralidade dos profissionais de Educação Infantil, oo presente contexto investigativo compreende que a valorização e a qualificação da profissão docente passam por instâncias que auxiliem esses profissionais a desvelar e analisar os contextos histórico/sociais/políticos/culturais/organizacionais nos quais se dá sua atividade docente. De nossa parte posso antever que, por esses vieses, é possível percorrer renovados caminhos investigativos relacionados à subjetivação, ampliando perspectivas de relacionar‐
se, com novos olhares, com a pesquisa na educação. Portanto, o que propomos nessa perspectiva é levantar questões sobre a dimensão da docência na Educação Infantil, que se entrelacem no contexto da formação pessoal e profissional, investindo na valorização de seus saberes, suas experiências e seus valores, através de suas histórias de vidas e possibilitando, quem sabe, práticas inovadoras. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 296 Referências ALARCÃO, I. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. São Paulo: Cortez, 2004. ANDRÉ, M.E.D.A. Etnografia da prática escolar. 12ªed. Campinas: Papirus, 2005 ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. Petrópolis: Vozes, 2000. CATANI, D. B. Lembrar, narrar e escrever: memória e autobiografia em história da educação e em processos de formação. In: BARBOSA, R. L. L. (org.) Formação de Educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: Unesp, 2003. p. 119‐130. D’ÁVILA MAHEU, C. Eclipse do Lúdico. 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Propôs‐se investigar como as colaboradoras da pesquisa dialogam com as demandas endógenas e exógenas, concernentes às dimensões do público e do privado, diante da formação em primeira Licenciatura do Curso de Pedagogia no PARFOR no município de Serrinha‐Bahia. As participantes do estudo, em número de dez colaboradoras, são professoras da rede pública municipal. A investigação encontra‐
se ancorada no referencial teórico‐metodológico do self dialógico de Hermans et al (1992); Hermans e Hermans Konopka (2010); Bakhtin (2010); Salgado et al (2007); Valsiner (2012). Constitui‐se em uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de casos múltiplos. A discussão dos resultados indica que as políticas públicas do PARFOR promovem o acesso de professores à formação específica de qualidade, mas é imprescindível que a proposta curricular seja contextualizada e considere as condições reais dos sujeitos professores que se disponibilizam para esta formação. Conclui‐se que marcas foram impressas nos selves das professoras‐
estudantes gerando a percepção de incompletude, a busca por novos saberes, e o necessário investimento em novas formações com vistas a dar conta da metamorfose que envolve o conhecimento na trajetória de vida das colaboradoras da pesquisa. Palavras‐chave: PARFOR; Narrativas docentes; Formação de profesores. Introdução Desde que foi sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n.o 9.394/96 (BRASIL, 1996) e entraram em vigor as prerrogativas do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), surgiram, nos diversos estados brasileiros, ações articuladas entre o governo municipal, estadual e federal, tendo como foco viabilizar a concretização de formações emergenciais de professores da rede pública que não possuem formação adequada. Para participar desta formação, o docente deve ser professor da rede pública de ensino. Reconhece‐se que a ação prática docente exige atitudes de envolvimento com a pesquisa, com o estudo e com a autonomia diante do conhecimento. Contudo, essas iniciativas advêm de um querer, de um desejo e de uma necessidade concernente ao investimento na profissão. Vale salientar que ainda é grande o déficit da formação de professor para a educação básica e que esses profissionais atuam na rede pública sem deter formação inicial adequada. Com efeito, o objetivo deste estudo é explicitar as narrativas de professoras‐
estudantes que fazem parte da formação promovida pelo Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) através de mapas do self. Ademais, a metodologia utilizada neste artigo consiste em uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de casos múltiplos, vinculada às narrativas de formação, tendo como universo dez professoras‐
estudantes, mas neste artigo são explicitadas as narrativas de duas colaboradoras. Ressalta‐se que este estudo encontra‐se ancorado na pesquisa de doutoramento intitulada “Entre Casulo e Asa: Diálogos e Movimentos do Selves de Professoras‐Estudantes no Contexto da Formação no PARFOR” vincada ao programa de Pós‐Graduação em Família Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 299 na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador. Neste artigo, o olhar migra sobre esse contexto formativo de docentes para a educação básica, destacando que o PARFOR consiste em uma experiência atrelada à coordenação efetivada pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), que é acompanhada e avaliada pela Coordenação Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O artigo está estruturado em quatro seções: introdução, teoria do self dialógico algumas reflexões sobre o PARFOR, narrativas de formação e as considerações finais. Teoria do self dialógico Ao considerar que este estudo lida diretamente com os olhares de professores que são estudantes na formação do PARFOR, a teoria do self dialógico constitui‐se em um marco teórico indispensável para viabilizar a compreensão e análise do objeto de pesquisa e as contribuições epistemológicas da referida teoria. Esta teoria encontra‐se fundamentada em um conjunto de estudos sobre self e narrativa, efetivados por Hermans e colaboradores os quais estão ancorados na teoria do self de William James e na noção de romance polifônico de Bakhtin, pelo fato desse gênero textual apresentar no seu bojo muitos pontos de vista, muitas vozes, cada qual recebendo do narrador o que lhe é devido (HERMANS; KEMPEN, 1992). Os estudos de James produziram uma primeira estrutura divisória do self para a psicologia, a qual apresenta a seguinte descrição em quatro partes: o self material, o self social, o self espiritual e o ego puro – os três primeiros diretamente relacionados à vida empírica (HERMANS; KEMPEN, 1992). O self material envolve desde a estrutura corpórea do indivíduo até os seus bens materiais. O self social corresponde às imagens que são atribuídas ao indivíduo por outros sujeitos, revelando o reconhecimento que ele tem pelos seus pares na sociedade. É importante ressaltar que a valorização ou a diminuição da percepção social dos outros sobre o sujeito tem um impacto emocional na sua percepção interna. Já o self espiritual é composto pelas capacidades ou disposições psíquicas concernentes ao indivíduo. Por fim, o ego puro refere‐se ao senso de “mesmidade” (sameness), ou seja, o senso da identidade pessoal. Dessa forma, o ego puro corresponde ao “eu”, que conhece, enquanto as três primeiras visões estão relacionadas ao “mim”, que é conhecido. Os estudos de James indicam que o self apresenta uma distinção entre “eu” e “mim”, destacando o princípio da continuidade que circunda a experiência do self. Bakhtin constitui‐se em outra importante contribuição à teoria do self, pois a sua percepção dialógica desencadeou a compreensão de que não existe um único autor em cada pessoa e que o centro da personalidade humana não reside num ‘cogito’ central e monodal, mas na tessitura de uma estrutura dialógica entre “autor” e “ator”. Essa percepção é reverberada nos romances polifônicos oriundos de estudos da obra literária de Dostoiévski. Para Bakhtin, as personagens possuem características conflitantes dotadas de vozes independentes, incorporadas em relações dialógicas. Não obstante, a polifonia consiste no emergir de diferentes vozes, cada qual emanando sua relação e compromisso com a vida e com o social (HERMANS; HERMANS‐JESSEN, 2003). Essa compreensão é destacada por Hermans e Hermans‐Jessen (2003) como descontinuidade que é relacionada à multiplicidade de vozes. Com base nessa direção, é importante ressaltar alguns princípios axiológicos acerca do dialogismo bakhtiniano, sendo Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 300 eles: o princípio relacional, o princípio da dialogicalidade, o princípio da alteridade, o princípio contextual e o princípio dinâmico. O princípio relacional está ancorado no poder comunicacional e significativo na relação entre indivíduos. Esse princípio não se constitui apenas na origem, mas na base teórica que sustenta a leitura de fenômenos. O princípio da dialogicidade constitui‐se em uma base nas relações humanas, pois permeará as atribuições de significados entre um Eu e um Outro. Contudo, é salientado pelos autores supracitados que essa compreensão não invalida algumas tentativas de superação e supressão da referida condição dialógica, sobretudo no que se refere aos discursos monológicos. A distinção entre relações monológicas e dialógicas perpassa pelo princípio de que a tentativa da relação monológica é estabelecida pela negação da possibilidade de resposta do interlocutor com seu interveniente. Todavia, esse aspecto não consiste em um definidor da relação monolítica, mas a uma troca ou negociação semiótica, a qual pode ser concretizada em uma relação permeada pela autoridade e pelo poder. Já na relação dialógica se concretiza através da possibilidade de trocas comunicacionais que acontecem em um emaranhado de significados. Fica evidente nesses estudos que, embora haja distinção entre a relação monológica e dialógica, uma não contradiz a outra pelo fato de se estar permanentemente em uma relação de negociação, na qual tentativas de silenciar o outro são possíveis, ou seja, a condição da relação dialógica permite o trajeto de sua erradicação. O princípio da alteridade considera que todo conhecimento ocorre inevitavelmente através de processo dialógico com o outro. Dessa forma, esse olhar de alteridade comunica que a relação humana é estabelecida mediante uma atividade de interlocução com o outro ou, no dizer de Bakhtin (1984, p. 287), “ser é comunicar”. Assim, em qualquer situação que envolva pessoas, comunidade ou sociedade, é criada uma condição comunicacional e destinada ao outro. Para Marková (2003, p. 257), alteridade implica em uma tensão díade entre Eu‐Outro e para essa “[...] o self não está a tentar fundir‐se com o outro, mas, pelo contrário, a tentar definir a sua posição e assimilar a estranheza”. Ou, no dizer de C. Cunha (2007, p. 19): [...] a alteridade surge pela relação específica com um endereçado concreto a quem me dirijo (alteridade relacional ou outridade), mas também pelo envolvimento com um “supra‐endereçado” (uma alteridade abstracta), que ultrapassa a tirania do aqui e agora e que cria um contraste possibilitador do sentido (re)criado no presente. Essa assertiva imprime uma marca da complexidade que está envolta nos princípios bakhtinianos – contextual, dinâmico –, nos quais a relação Eu‐Outro tem uma dupla dimensão, abstrata e concretizada, às quais são endereçadas durante o diálogo. O princípio contextual está diretamente relacionado à possibilidade de adaptação da existência pessoal a um determinado contexto social e histórico, o qual reverbera nas relações comunicacionais, pois a cultura vivenciada pelos sujeitos é relevante nas relações com o outro. Essa narrativa é um convite a pensar‐se que muitos aspectos do diálogo estão ancorados nas experiências vivenciadas no contexto cultural. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 301 O princípio dinâmico remete a uma lógica de movimento nas relações com o outro, em que a organização e a reorganização dialógica apresentam‐se como uma constante. Com efeito, o princípio dinâmico institui a possibilidade de transformação entre o ser e o estar no mundo, consigo e com o outro, e vivenciar diariamente a necessária trajetória de conflitos que inauguram um campo semântico de possibilidades do diálogo. Essa afirmação ratifica o olhar de Hermans (2001), de que as posições do EU são, respectivamente, posições pessoais e posições culturais. Para Hermans, Kempen e Van Loon (1992, p. 28) o self dialógico constitui‐se em “[...] uma multiplicidade dinâmica de posições do 'eu' relativamente autônomas em uma paisagem imaginária”. Nessa perspectiva, o self é multivocal e dialógico, estando relacionado a um processo de construção e reconstrução das narrativas vivenciadas pelo sujeito em diferentes momentos. Algumas reflexões sobre o PARFOR O PARFOR consiste em um programa brasileiro implantado pela CAPES em regime de colaboração com as Secretarias de Educação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e com as Instituições de Ensino Superior (IES). Seu principal objetivo é garantir que os professores em exercício na rede pública de educação básica obtenham a formação exigida pela LDB n.o 9.394/96, por meio da implantação de turmas especiais, exclusivas para os professores em exercício. Vale ressaltar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional deixa clara essa necessidade de formação nos artigos 62 e 63: Art. 62 – A formação de docentes para atuar na educação básica far‐se‐á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidade e institutos superiores de educação, admitida como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal. Art. 63 – Os Institutos Superiores de Educação manterão: I. cursos formadores de profissionais para a educação básica, inclusive o curso normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental; II. programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior que queiram se dedicar à educação básica; III. programas de educação continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis. (BRASIL, 1996). A legislação indica como deverá ser conduzida a formação de docentes, reorientando que as redes de ensino devem colocar‐se a tarefa de investir na formação e atualização permanente de seus profissionais, aproveitando as práticas e os conhecimentos já acumulados daqueles que já trabalham com crianças há mais tempo. As ações colaborativas desenvolvem‐se com universidades públicas federais e estaduais, sobretudo para dar conta do fosso na formação docente da educação básica, destacando o curso de Licenciatura em Pedagogia, o qual tem como foco a docência na Educação Infantil e Ensino Fundamental I. A formação dos professores no PARFOR acontece em universidades públicas estaduais e federais e por institutos federais de educação, ciência e tecnologia, que oferecem graduação. Na Bahia, a UNEB constitui‐se em uma das representantes oficiais para assumir a operacionalização dos cursos de graduação integrantes do PARFOR – primeira Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 302 Licenciatura, nas áreas de Artes Visuais, Ciências Biológicas, Computação, Educação Física, Física, Geografia, História, Letras, Matemática, Pedagogia, Química e Sociologia, a serem oferecidos nos 29 Departamentos dos seus 24 campi, no formato modular ou semestral, com duração de 3 anos. Os docentes têm livre arbítrio na escolha da licenciatura que reverbera na especificidade da prática pedagógica que ministra na escola que atua. Os cursos foram estruturados em três tipos: 1. Primeira licenciatura – para docentes em exercício na rede pública da educação básica que não tenham formação superior; 2. Segunda licenciatura – para docentes em exercício na rede pública da educação básica, há pelo menos três anos, em área distinta da sua formação inicial; e 3. Formação pedagógica – para docentes graduados não licenciados que se encontram em exercício na rede pública da educação básica. Nesta estrutura, uma das licenciaturas é do interesse deste estudo: aquela concernente à primeira licenciatura em Pedagogia no formato modular, mais especificamente, a localizada no município de Serrinha no Estado da Bahia. Narrativa sobre a formação do PARFOR Ao considerar que este estudo lida diretamente com os olhares de professoras que são estudantes na formação do PARFOR, a escolha da pesquisa qualitativa ocorre devido à natureza do objeto que demanda a interlocução com as subjetividades das entrevistadas, através do mapa do self dialógico. O mapa do self dialógico consiste em um método baseado na Family Circles Method (FCM), que permite aos participantes da pesquisa produzir uma representação das suas vidas pessoais, os limites e espaço, parentes próximos e a distância dos relacionamentos (CHAUDHARY; SHARMA, 2008). Sua efetivação corresponde a duas partes: na primeira, o sujeito é convidado a desenhar um círculo que representa o seu self; em seguida, desenham‐
se outros círculos correspondentes às representações de outras pessoas, domínios e áreas consideradas significantes. Vale ressaltar que a disposição dos círculos na folha de papel é formatada de acordo com o desejo do pesquisado. Esse esboço registrado na folha é utilizado a posteriori como gerador de diálogo sobre as escolhas das dinâmicas entre o self‐outro e, em seguida, as colaboradoras da pesquisa são convidados a desenhar outros mapeamentos similares do seu self passado (cinco anos atrás) e do seu self futuro (cinco anos à frente). Essa dinâmica, de acordo com os estudos de Chaudhary; Sharma (2008) tem possibilitado aos pesquisadores várias pistas da organização do self. No contexto dessa pesquisa, o mapeamento do self dialógico representa uma forma de compreender o percurso de formação identitária revelado pelas colaboradoras sobre as dimensões da práxis educativa, na condição de mulher, mãe, estudante e professora, percebendo o olhar para o posicionamento do “eu” no caráter processual da formação docente e da vida. Neste contexto, os diálogos, evidenciados com cada participante, foram de extrema importância para avaliarmos as influências internas e externas da formação. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 303 Deste modo, a análise e discussão dos resultados estão ancoradas, inicialmente, na descrição individual dos selves das dez estudantes‐professoras, os quais são explicitados em três figuras interligadas. A primeira consiste no mapa do self presente, no qual as colaboradoras da pesquisa representaram, através de desenhos, suas percepções do Eu na relação com os outros significativos, atribuindo posições dialógicas com os seus selves. A segunda representa uma retrospectiva das mesmas relações explicitadas no desenho anterior, revelando as implicações há cinco anos. No terceiro desenho, as professoras‐
estudantes estabelecem uma relação prospectiva referentes à cinco anos futuros sobre as mesmas relações representadas anteriormente. Importante ressaltar que o registro desses desenhos fora efetivado através das narrativas reveladas pelas participantes, após a feitura de cada desenho. Vale ressaltar que neste artigo estaremos evidenciando os registros de mapas, digitalizados, de duas professoras‐estudantes, designadas por nomes fictícios, das dez colaboradoras da pesquisa ora apresentada, com vistas a evidenciar o procedimento de análise utilizando este instrumento. Caso 1 professora‐estudante Patrícia Figura 1‐ Mapas do self presente, passado, futuro – Professora‐estudante Patrícia, Serrinha Fonte: Dados da Pesquisa (2012) O primeiro caso é o da professora‐estudante Patrícia, 37 anos, professora, docente há quatro anos com carga horária de quarenta horas, casada e mãe de quatro filhos. Solicitada a falar sobre os desenhos do seu self no presente, a professora‐estudante, aqui denominada com o nome fictício de Patrícia, ressalta que, nesse período histórico de sua vida, sente‐se muito triste, pois o marido é uma pessoa muito ausente tanto na vida da família, quanto em todo movimento de conquista na profissão e de estudo por que ela vem passando. Nesse instante, salienta que, recentemente, recebeu uma premiação no trabalho Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 304 (na escola), o qual foi efetivado pelo secretário da Educação do Município. Na oportunidade, vestiu‐se bem, estava feliz em receber o reconhecimento pelo trabalho efetivado com crianças com necessidades especiais. O marido, no dia do evento, por conta de ciúmes, acompanhou‐a com má vontade, ficou de “cara amarrada” e, assim que acabou a cerimônia, saiu de pronto, sem esperar pela comemoração, ou seja, fugiu da festa. Neste instante, Patrícia revela ter sido tomada por uma profunda tristeza por não ter aproveitado um momento tão especial para ela e seu grupo de trabalho. Nesse momento, a professora Patrícia se emociona, fica pensativa e, depois de alguns segundos, acrescenta: “Mesmo assim não consigo deixar de amá‐lo e tomar uma atitude mais rígida”. Não obstante, é oportuno observar que, no mapa desenhado pela professora Patrícia, o seu esposo apresenta‐se no desenho como uma pessoa entre o trabalho e a formação e, ao mesmo tempo, representa certo afastamento dos filhos e de seus familiares mais próximos (pai, mãe, tia, prima e professora da formação). Fica nitidamente explícita a sua ligação com os filhos, os quais são considerados parte fundamental de sua vida. A professora reitera que os seus filhos são muito importantes para que ela continue com a Formação no PARFOR. Mas, destaca a filha mais velha, que faz faculdade de Engenharia em uma Universidade Federal em outro Estado. Essa filha representa uma grande força para ela continuar a formação no PARFOR, pois, diante das dificuldades de convivência com o esposo, devido aos ciúmes e à condição de desempregado (vive de seguro desemprego), pensa muitas vezes em desistir. Contudo, com os incentivos das duas filhas mais velhas, da prima e de uma professora do curso que a acolheu e aconselhou diante desse momento difícil, tem conseguido perseverar até agora e não pretende desistir nunca! Além disso, deixa claro que os pais, a avó paterna, os irmãos representam sustentação e porto seguro, mas ela não consegue continuar levando os seus problemas para eles, então procura se calar e sofrer sozinha essa dor desencadeada pela postura ciumenta do esposo. Nesse momento, a professora‐estudante Patrícia recebe uma mensagem no celular, pede licença e liga para o esposo, quando este reclama, pois afirma que ligou e ela não atendeu. Logo ela explicou que estava participando de uma pesquisa e ele não entendeu... A professora Patrícia deixou transparecer a sua indignação diante da situação e desabafou: “Eu não aguento mais esses ciúmes, que checa o tempo todo onde estou, quando não atendo logo o telefone, fica irritado...! Mas, tenho os meus filhos... Por isso ainda estou com ele”. Em seguida, a professora‐estudante explicitou as mesmas relações explicitadas no desenho do self no presente com o tempo histórico de cinco anos atrás. Patrícia inicia suas declarações sobre o mapa denominado de momento difícil; a palavra difícil é mais uma vez citada como no momento presente. Só que agora é referendado há cinco anos quando ela relata que estava em outro Estado do nordeste, longe da família (pai, mãe, avó, tia, prima e irmãos) que tanto preza e de quem tem apoio. Como se não bastasse essa distância, teve de conviver com a dificuldade de desemprego do marido e as consequências financeiras oriundas dessa situação. Relata, ainda, que não sabe como sobreviveu durante os seis anos que passou nesse estado, sem trabalhar fora de casa, exercendo a função de dona de casa, sobrevivendo com a ajuda dos parentes dela e dele que enviavam suprimentos e algum dinheiro para complementar os “biscates” que ele conseguia fazer. Além disso, explicita que o esposo de fato estava muito doente, recebeu o diagnóstico de depressão e foi detectado que tinha problemas de coração. A sobrevivência, então, só foi possível com a ajuda da família. Importante destacar que, nesse momento, Patrícia salienta que “a distância da família causa Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 305 um vazio muito grande, pois o porto seguro estava bem distante. Eu chorava muito!” Afirma, ainda, que o ciúme do marido já existia, mas era ameno. Fica evidente na organização do mapa do self a presença da narrativa da professora‐
estudante, sobretudo no que concerne ao distanciamento da família (a saudade), a qual parece unida para enviar recursos para sua sobrevivência, de seu esposo e seus filhos. Ademais, embora no desenho o marido esteja ao seu lado, é evidente o afastamento dele dos filhos e da própria esposa, talvez a depressão tendo causado esse afastamento... As crianças aparecem ligadas à mãe e bem afastadas do pai, assim como a condição de desemprego do pai aparece paralela à condição situacional que é estar em outro Estado, com dificuldades no casamento e sem trabalho. Quando Patrícia narrou essas passagens explicitadas no mapa do self, demonstrou, também, certa fragilidade, pois nesse instante estava presa ao serviço doméstico, diante da necessidade de cuidar das crianças e do marido doente, não podia contribuir financeiramente com o sustento da família. E isso causava muita dor, pois não foi fácil viver da ajuda de outrem sem puder tomar atitudes mais concretas sobre a situação. Dando prosseguimento aos diálogos efetivados após os desenhos do mapa do self do presente, há cinco anos, foi solicitada a professora‐estudante Patrícia que explicitasse uma visão prospectiva dos elementos vivenciados para uma visão daqui a futuros cinco anos. Nesse contexto futuro, Patrícia indica que a sua pretensão consiste primeiramente em ver a família feliz, esperando ver filhas encaminhadas: a primeira formada em Engenharia; a segunda formada em técnica de mineração; quanto aos dois menores, deseja que estejam bem na escola e psicologicamente. A questão psicológica é referida, pois a docente declara que “minha terceira filha no presente toma calmante e espero que daqui a cinco anos ela não esteja mais com essa necessidade”. Outro desejo que é externado por Patrícia consiste no crescimento profissional na escola onde trabalha. Ela ressalta que pretende assumir a coordenação pedagógica da escola e que, paralelamente, deve fazer uma especialização em educação especial, modalidade de ensino em que trabalha. Reitera, ainda, que pretende se aproximar mais da família (pai, mãe, irmãos), pois, diante da situação vivenciada no seu casamento, tem se afastado da família. Todos ficam muito preocupados e ela não quer atribuir mais problemas aos pais, que têm certa idade, assim como sofrer julgamento do porquê ela suporta essa situação. É ressaltado que, nesse período (cinco anos futuros), deseja estar separada do marido (separação de corpos), mas unidos em virtude da necessária convivência harmoniosa como pais dos seus filhos. Essa atitude é salientada por ela, durante o diálogo, como motivo de libertação do sofrimento, pois acredita que não suportará mais a situação desgastante vivenciada no âmbito da relação a dois. Paralelo a essa afirmativa, o seu trabalho aparece como deslumbramento de conquistas e possibilidades para mudança de vida. Importante destacar que seus olhos iam se enchendo de alegria à medida que projetava a feitura de um curso de especialização, assim como ao entrever a possibilidade de assumir a coordenação da Escola, possibilidade que já é suscitada por colegas e direção da escola, em virtude da sua implicação com o fazer pedagógico, da criatividade na relação com as crianças e da responsabilidade com tudo a que se propõe fazer na sua práxis docente. Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 306 Caso 2 professora‐estudante Ivonilde Figura 2 ‐ Mapas do self presente, passado, futuro‐ Professora‐estudante Ivonilde, Serrinha Fonte: Dados da Pesquisa (2012) O segundo caso é o da professora‐estudante Ivonilde, 40 anos, professora há vinte e um anos com carga horária de quarenta horas, casada e mãe de três filhos. O desenho do mapa do self da professora‐estudante, aqui denominada de Ivonilde, revela uma certa harmonia em volta da família, em face da disposição que os filhos gêmios, o filho mais velho, os seus pais e esposo assumem ao redor do seu eu. Ivonilde ressalta que vive tranquila ao lado dos seus filhos, esposo e pela importante convivência com seus pais, seis irmãs e um irmão. Em seguida, fica evidente a sequência de importância das demais atividades na sua vida. Ela traz a Secretaria de Educação do Município, a escola, contextos que representam seu trabalho, depois o PARFOR que representa a sua formação docente na UNEB e as relações provinientes desses lugares como colegas das escola, colegas do PARFOR e colegas de infância. Importante destacar que Ivonilde explicita durante o diálogo que não tem dificuldades em aticular a posição de técnica na Secretaria da Educação do Município, de professora em outro período e de ser mãe, esposa. Deixa claro que seu esposo é parceiro ativo na educação dos filhos e na ajuda do lar, pois as tarefas domésticas são efetivadas por uma empregada doméstica e isso facilita muito a sua vida, no q

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