A ótica contemporânea do princípio da dignidade humana

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A ótica contemporânea do princípio da dignidade humana
A ótica contemporânea do princípio da dignidade humana
Iremos primeiramente narrar e enumerar diferentes situações ligadas à
dignidade humana.
Em França, reconhecidamente um lugar sofisticado e refinado, havia um
espetáculo baseado no arremesso de anão, no qual os frequentadores da
notável casa noturna deveriam atirá-lo à maior distância possível.
Em francês temos a expressão “lancer de nains”, um esporte apreciado na
cidade de Morsang-sur-Orge, onde a Prefeitura, usando seu “poder de polícia”
interditou o bar, sob o argumento de violação da ordem pública através de
prática de atividade contrária à dignidade humana.
A decisão, proferida pelo órgão máximo jurídico administrativo, está disponível
nos seguintes links:
http://www.utexas.edu/law/academics/centers/transnational/work_new/french/ca
se.php?id=1024
http://archiv.jura.uni-saarland.de/france/saja/ja/1995_10_27_ce.html
Um anão (M. Wackenheim), revoltou-se contra a decisão e sob a alegação de
possuir o direito ao trabalho e à livre iniciativa, bem como o direito de decidir
como “ganhar a vida”, ensejou uma demanda jurídica que, encerrou-se em
outubro de 1995, com a decisão, em grau de recurso que, o poder público
daquele município possuía autorização para interditar o local.
Após esta decisão o anão, ainda inconformado, recorreu ao Comitê de Direitos
Humanos da ONU alegando que a decisão acima violava seu direito ao
trabalho e, ainda, seria discriminatória.
O recurso foi julgado em setembro de 20021 com decisão que confirmou o
posicionamento do Conselho de Estado Francês (órgão máximo jurídico
administrativo francês), onde restou reconhecida a violação da dignidade da
pessoa humana (vide links acima).
1
As autoridades francesas decidiram proibir a prática de arremesso de anões em uma danceteria e
culminou na decisão em grau de recurso do Conselho de Estado francês em outubro de 1995, em razão do
respeito à dignidade humana.
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No Reino Unido, Mrs. Natalie Evans, após perder os ovários desejou implantar
em seu útero os embriões fecundados com seus óvulos e o sêmen do exmarido, de quem se divorciara.
Em 2001, Natalie e seu marido recorreram à técnica de congelamento de
embriões, em virtude da necessidade de tratamento de câncer em seus
ovários. Tal tratamento a deixou estéril.
Algum tempo depois, o casal se separou e o marido solicitou a destruição dos
embriões, o que fatalmente impediria a utilização pela ex-mulher.
Natalie pretendia engravidar e entrou com pedido unto ao Supremo Tribunal
Inglês no ano de 2003, porém o pedido foi recusado, sendo a decisão favorável
ao ex-parceiro, Jonhston.
Tal decisão foi embasada no fato de que, para a lei britânica, o procedimento
de inseminação só pode ser autorizado mediante a anuência de ambos os
doadores.
Após a decisão negatória, Natalie recorreu ao Tribunal Europeu, fundamentada
pelo respeito à vida privada e familiar, discriminação e direito à vida.
Seus advogados alegaram violação aos direitos humanos. Mesmo conseguindo
a autorização, Natalie só poderia utilizar os embriões até 2006, pois a
autorização legal para congelamento de embriões só dura 3 (três) anos.
Entretanto, novamente foi negada a autorização para o procedimento de
inseminação2.
A decisão pode ser lida em seu texto original em:
http://www.bailii.org/ew/cases/EWCA/Civ/2004/727.html
O caso Lorraine Hadley, ficou igualmente conhecido pela semelhante batalha
judicial. Com 37(trinta e sete) anos, mãe de uma filha de 17(dezessete) anos
de outro casamento, Lorraine congelou dois embriões, junto com Wayne
Hadley, entretanto, ele manifestou o desejo de que os embriões fossem
destruídos, alegando não desejar filhos após um considerável tempo de
separação conjugal.
Lorraine Hadley mencionou em uma entrevista à BBC: « Um embrião não é
parte dos bens divididos na altura do divórcio. Um embrião é uma vida », pois
considerava que esta seria a sua última oportunidade de ter filhos.
2
A polêmica dos embriões congelados culminou em perda para duas mulheres em suas disputas legais no
Tribunal superior do Reino Unido para que pudessem utilizar os embriões congelados sem a permissão de
seus ex-parceiros.
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Apesar de Natalie e Lorraine afirmarem abertamente suas intenções de
recorrerem das decisões, apresentaram recursos em face da lei britânica, que
exige a autorização dos dois cônjuges, em pleno acordo, acerca da
conservação e/ou da utilização dos embriões, em cada fase de fecundação.
A recomendação aos casais é de que façam uma reflexão moderada sobre o
que pode suceder com seus embriões em caso de separação ou falecimento.
As duas senhoras argumentaram que os embriões seriam a única oportunidade
que teriam de engravidar. Apesar de demonstrar solidariedade, o tribunal
britânico manteve-se fiel ao texto legal e, ainda transpareceu a manifestação
do desejo do juiz, de que a legislação fosse alterada, entretanto tais alterações
somente serão possíveis através do Parlamento.
Evans argumentou ainda que, caso soubesse, antecipadamente da mudança
de opinião de seu ex-parceiro, teria optado por outro tratamento.
Segundo a legislação britânica, em 1990, não pode haver implantação do
embrião sem mútuo consentimento. Porém, os causídicos, em defesa das
mulheres alegam que a sentença violaria os direitos humanos das mulheres,
segundo a lei européia.
Considera-se grande ironia que, no caso de uma concepção natural, a mulher
possua direitos absolutos de maternidade, entretanto, não os possui, em se
tratando de tratamento de fertilidade. Tal ironia é assinalada pelo professor Ian
Craft do Centro de Fertilidade de Londres.
No caso Evans, a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de
Estrasburgo em 10/04/2007, surpreende ao assinalar que não houve violação
alguma os artigos 2º, 8º e 14 da Convenção Européia dos Direitos Humanos,
negando o direito de ser mãe à apelante3.
Na Itália, a família Englaro tentou suspender os procedimentos médicos que
mantinham a Sra. Eluana viva, para deixá-la morrer “em paz” 4.
Eluana Englaro, uma italiana com 35 anos, vive em “estado vegetativo” desde o
dia 18 de janeiro de 1992, causado por um traumatismo craniano grave,
ocorrido em um acidente de automóvel. A hidratação e alimentação eram
mantidas através de sonda nasogástrica.
Seu pai, Sr. Beppino Englaro, ingressou com pedido judicial requerendo
autorização para que os aparelhos fossem desligados, sob a alegação de que
3
A decisão se deu por 13 votos contra 4.
4
A batalha legal durou por mais de 10 (dez) anos, pois o pai e tutor de Eluana Englaro, Sr. Beppino
conseguiu uma das maiores vitórias, quando no ano de 2007, ganhou um recurso, conseguindo a repetição
do julgamento, cuja sentença “negou a suspensão da alimentação assistida” que mantinha viva Eluana.
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sua filha, quando em vida consciente, informara que preferia morrer do que ser
mantida em estado vegetativo.
A Corte de Apelação de Milão, em 1999, julgou improcedente o pedido. Feito
recurso à Corte de Cassação Italiana, foi rejeitado no ano de 2005.
Já em 2007, a Corte de Cassação permitiu o julgamento através da Corte de
Apelação de Milão que, no dia 09 de julho de 2008 autorizou o Sr. Beppino a
suspender a alimentação e hidratação, afirmando que agir desta forma seria
manter o curso natural da doença5.
Apesar da interposição de novo recurso pelo Ministério Público, a Corte de
Cassação o julgou inadmissível por ilegitimidade.
A decisão transitou em julgado, permanecendo reconhecido o direito da Sra.
Eluana de recusar tratamento médico, autorizando ao seu pai a solicitar o
desligamento dos aparelhos que a mantinham viva. Permitindo que a sua morte
ocorresse naturalmente.
Os aparelhos foram desligados no dia 06 de fevereiro. Seu falecimento ocorreu
no dia 09 de fevereiro, ou seja, 3 (três) dias após, contrariando a expectativa
dos médicos que indicavam que ela poderia sobreviver por 12(doze) a
14(quatorze) dias após o desligamento.
Terri Schiavo (Theresa Marie Schindler-Schiavo), com 41(quarenta e um) anos,
enfrentou uma parada cardíaca associada a grande perda de potássio em
virtude de bulimia. Após cinco minutos sem irrigação cerebral, sofreu lesões
irreversíveis que a deixaram em “estado vegetativo”.
A batalha teve diversas correntes, seus pais (Mary e Bob Schindler) e irmãos
desejavam que a alimentação artificial fosse mantida, entretanto, seu marido
(Michael Schiavo) pretendia o desligamento da sonda artificial.
Durante a batalha judicial, o marido obteve sentença favorável por três vezes,
sendo as duas primeiras revertidas através de recursos, porém, em 19 de
março de 2005, a sonda foi removida e não foi mais recolocada até a data de
falecimento de Terri, ocorrida no dia 31 de março de 2005, após sobreviver
durante 15 (quinze) anos em estado vegetativo.
Este caso, em particular, reabriu a polêmica política sobre a eutanásia,
concebendo uma crise entre o Premiê e o Presidente George Napolitano.
5
Apesar de ilegal, a eutanásia, na Itália, foi considerada, a irreversibilidade do coma e ainda o fato da
declaração da jovem anterior ao acidente, de que preferia morrer a levar uma vida vegetativa. A decisão
foi contestada por grupos radicais conservadores e pela Igreja Católica.
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Napolitano se opôs ao Decreto de Berlusconi para não contradizer a sentença
prolatada em novembro de 2008, pelo Tribunal de Cassação, principal instância
jurídica da Itália.
Nas últimas décadas a dignidade da pessoa humana6 consagrou-se com um
dos grandes consensos éticos do mundo ocidental. Esta é mencionada em
inúmeros documentos internacionais, em Constituições, leis e decisões
judiciais. No plano abstrato, poucas idéias se equiparam à dignidade da pessoa
humana na capacidade de seduzir o espírito e ganhar unânime adesão.
Porém, tal fato não minimiza ou até agrava as dificuldades na sua utilização
como instrumento relevante na interpretação jurídica.
Frequentemente esta funciona como um mero espelho, no qual um projeta sua
própria imagem da dignidade humana.
E, pelo mundo a fora, esta tem sido invocada pelos dois lados em disputa, em
temas tais como: interrupção da gestação, eutanásia, suicídio assistido, uniões
homoafetivas, hate speech (discurso raivoso), trotes de calouros, negação do
holocausto, clonagem, manipulação genética, inseminação artificial, post
mortem, cirurgias de mudança de sexo, prostituição, descriminalização de
drogas, abate de aviões sequestrados, proteção contra a autoincriminação,
pena de morte, pena perpétua, uso de detector de mentiras, greve de fome,
exigibilidade de direito e ainda das liberdades públicas e do patrimônio mínimo.
Laurence, cidadão norte-americano e seu parceiro sexual, foram presos e
condenados em razão da Lei Estadual do Texas7 que considera crime a prática
de certos atos íntimos por pessoas do mesmo sexo.
John Geddes Lawrence, um médico de 55(cinqüenta e cinco) anos e Tyron
Garner (falecido em 11 de setembro de 2006), empreenderam verdadeira
batalha jurídica que, após vários recursos, o caso foi aceito pela Suprema
Corte Americana em 26 de março de 2003, e, sendo decidido em 26 de junho
do mesmo ano.
O teor do acórdão entendia que havia interferência da lei texana na vida íntima
dos cidadãos, vez que eram criminalizados por conduta voluntária cometida por
adultos em privacidade, sendo estes, adultos capazes.
Destaca-se o interessante voto (opiniom) da Ministra Sandra O’Connor, pois
segundo ela a lei texana afrontava (feria) a Constituição, por não tratar de
forma isonômica (equal protection of the laws), os parceiros homossexuais e
6
O estudo do direito não pode deixar de lado a análise da sociedade na sua historicidade local e
universal. Somente com tal análise definir o papel da juridicidade na complexidade do fenômeno social.
7
Vide: http://www.law.cornell.edu/supct/html/02-102.ZS.html .
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heterossexuais. De fato, surpreende uma legislação que, neste caso, só
criminalize os atos praticados (grifo nosso) por pessoas do mesmo sexo.
Registrar a relevância da dignidade da pessoa humana no direito
contemporâneo seja no plano interno ou internacional e discutir o conteúdo
contemporâneo do conceito de dignidade da pessoa humana são os objetivos
do presente artigo.
Por outro lado, geograficamente os direitos humanos e fundamentais sofrem
grave descompensação que segundo Giancarlo Rolla impede qualquer
tentativa de globalização ou generalização dos direitos humanos em face de
ideologias diversas, diversidades constitucionais quanto à soberania e
relativismo cultural.
Giancarlo Rolla conclui que se por um lado o modelo ocidental de direitos
humanos não pode ser uniformemente imposto ao mundo, por outro lado, o
relativismo cultural tem sido manipulado para manter tradições incompatíveis
com a dignidade humana, razão pela qual o nacionalismo se revela o maior
inimigo dos direitos humanos do que a pretensão de universalizá-los (Las
Perspectivas de los Derechos de La Persona a La Luz de las recientes
tendências consitucionales, in Revista Española de Derecho Constitucional,
Madrid, no. 54 (PP. 39-83, set-dez-1998).
O conteúdo mínimo da dignidade da pessoa humana inclui o respeito à
integridade física e psíquica, igualdade e liberdade e mínimo existencial (que
mereceu dos civilistas a consagração de direito ao patrimônio mínimo).
Tal conteúdo é a pedra fundamental para a preservação dos direitos da
personalidade, vejamos que na Lei 11.346/2006 que alude à alimentação
adequada e que produz sérios efeitos no âmbito escolar e ainda nas ações
revisionais de alimentos (a fim de ajustar as necessidades do alimentando);
Outra aplicação temos na REsp 820.475/RJ8 o STJ reconheceu a possibilidade
jurídica de união homoafetiva reconhecida como entidade familiar. E, por fim,
Lei 11.382/2006 prevê a modificação do CPC e alterou seus arts. 648 e 649
que dispõe sobre os bens absolutamente impenhoráveis. Reservando então o
patrimônio mínimo capaz de tutelar a dignidade da pessoa humana.
Também no sentido de proteger o patrimônio mínimo se prevê a função social
da propriedade, do contrato e da responsabilidade civil. Principalmente com a
prevalência da responsabilidade pressuposta (Giselda Hironaka) onde qualquer
efeito da responsabilidade civil deve ter por fundamento o princípio
constitucional previsto no art. 1º,II da CF da dignidade da pessoa humana e na
8
Vide http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6993702/recurso-especial-resp-820475-rj-20060034525-4-stj/relatorio-e-voto
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proteção permanente e integral a quaisquer direitos da personalidade por
serem estes inerentes à pessoa.
O conceito de dignidade humana9 é pertencente a diferentes continentes e
países e, por isso, carece de alguma uniformidade à sua utilização. Além de se
precisar sua natureza jurídica, como pressuposto, de seu modo de aplicação.
Revelando-se como direito fundamental, valor absoluto ou princípio jurídico
essas são algumas das qualificações feitas em diferentes países, gerando
embaraços tanto teóricos como práticos.
Definir o conteúdo mínimo para a dignidade humana como premissa
fundamental para libertá-la de ser conceito vago e inconsistente, capaz de
legitimar situações contraditórias, suscitando problemas complexos.
Fixar sólidos critérios para sua aplicação sendo um modo de estruturar o
raciocínio jurídico no processo decisório, assim como ajudar nas ponderações
e escolhas fundamentadas quando necessário.
O positivismo jurídico em todas suas vertentes confere demasiado privilégio ao
direito criado pelo Estado, pondo em segundo plano os direitos individuais. A
crítica neopositivista de Dworkin resgata esse direito, colocando-o a salvo do
coletivismo da maioria.
Ao tornar um conceito mais objetivo, claro e operacional, transforma-se em
elemento argumentativo relevante e, não mero ornamento retórico, assumindo
definitivamente o caráter de valiosa ferramenta na busca da melhor
interpretação jurídica e da adequada realização da justiça.
O princípio da preservação da dignidade humana sugere uma ordem de
otimização dentro do conceito jurídico e real existente. A desatenção ao
princípio acarreta não apenas uma ofensa a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo sistema de comandos.
Por isso, não podemos olvidar que a acepção constitucionalizada do Direito
Civil impõe que todo e qualquer princípio de Direito Civil esteja conectado
frontalmente com a legalidade constitucional. A tônica coerente é a prevalência
dos valores mais humanitários e sociais.
A dignidade da pessoa humana em sua acepção contemporânea parte
indubitavelmente de sua origem religiosa e bíblica, (pois o homem foi feito à
imagem e semelhança de Deus). E, como tal deve ser respeitado e preservado.
9
A dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados
ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos
fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais (Luís Roberto Barroso).
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Com o advento do Iluminismo e a centralidade do homem faz a dignidade
humana migrar para a filosofia, tendo por fundamento a razão, a capacidade de
valoração moral e autodeterminação do indivíduo. Vivenciamos a saída do
conceito da esfera teocêntrica para a antropocêntrica.
Ao longo do século XX, a dignidade humana torna-se um objetivo político
cativado pelo Estado e pela sociedade. Após as barbáries da Segunda Grande
Guerra Mundial, a idéia de dignidade humana paulatinamente passa
efetivamente para o mundo jurídico em função de dois movimentos: o primeiro
foi o surgimento de uma cultura pós-positivista que tanto reaproximou o Direito
da Filosofia moral e da Filosofia política, atenuando a outrora separação radical
imposta pelo positivismo normativista.
O segundo movimento consistiu na efetiva inclusão da dignidade humana em
diferentes diplomas legais internacionais e Constituições de Estados
democráticos.
Portanto, a dignidade humana10 convertida em um conceito jurídico apresentou
a dificuldade de se definir um conteúdo mínimo a fim de se tornar uma
categoria operacional e útil (seja no plano interno ou internacional).
A autonomia é o elemento ético da dignidade, ligado à razão e atuação da
vontade, na conformidade de determinadas normas. É, portanto parte da
dignidade a capacidade de determinação, o direito do indivíduo de decidir os
caminhos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade.
Ter autonomia significa também poder de realizações, ponderações de valores
morais, de laborar escolhas existenciais, o que inclui sobre religião, opção
sexual, trabalho, ideologia e outras opções personalíssimas, que não podem
ser subtraídas do ser humano sem violar visceralmente sua dignidade.
A autodeterminação pressupõe determinadas condições pessoais e sociais
para seu exercício. A autonomia tem uma dimensão privada e outra pública.
Sendo na órbita privada, é conteúdo essencial da liberdade no direito de
autodeterminação, sem interferências externas ilegítimas.
Corresponde o direito à igualdade em sua dimensão material. No plano dos
direitos políticos, a dignidade se expressa como autonomia política,
identificando o direito de cada um participar no processo democrático.
A autêntica democracia significa uma parceria de todos que dinamiza o projeto
de autogoverno, cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de
10
Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações
que compõe o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas
parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há
ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação
dos direitos (Luís Roberto Barroso).
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influenciar decisões não apenas pela via eleitoral, mas também através do
debate público e da organização social.
A dignidade humana está subjacente aos direitos sociais que são fundamentais
e ligados ao conceito de mínimo existencial.11 Assim, para haver plena
cidadania há de ser livre, igual e capaz, além de ter satisfeitas suas
indispensáveis necessidades no tocante à sua existência física e psíquica.
É bem observado, por exemplo, na Constituição Canadense à promoção de
igualdade de oportunidades para o bem estar dos canadenses.
Assim, o núcleo essencial dos direitos fundamentais constitui o mínimo
existencial e não há como captar esse conteúdo em rol exaustivo, pois variará
no tempo e no espaço.
Inclui, sem dúvida, o direito à educação básica, à saúde essencial, à
assistência aos desamparados e ao acesso à justiça.
Portanto, o mínimo existencial tem eficácia direta e imediata, por isso, na
jurisprudência de diversos países traz diversas decisões fundadas na
autonomia como conteúdo da dignidade.
Por isso, decisões jurisprudenciais impedem o suicídio assistido, buscam
legitimar as relações homoafetivas (a conduta sexual íntima é afirmada como
parte da liberdade protegida pela cláusula do devido processo legal
substantivo, nos termos da 14º Emenda -1868).
Em defesa da liberdade e da dignidade como autonomia já se decidiu também
pela inconstitucionalidade da proibição da eutanásia, e até já se assegurou
direitos trabalhistas aos trabalhadores do sexo.
A constituição dos Estados Unidos da América, traduzida, pode ser visualizada
no link da Embaixada dos Estados Unidos localizada em Brasília, ou em seu
11
John Rawls propõe um modelo de justiça, em que os homens estabelecem um contrato social, no qual
cada um desconhece qual será sua posição na sociedade, (véu da ignorância?), com a determinação de
princípios básicos de funcionamento da sociedade e de distribuição de bens (Rawls, John. Liberalismo
Político. México. Fundo de Cultura Econômica. 1995. p.p. 47/48). Assim sendo, Rawls estabelece dois
princípios básicos: 1) Todas as pessoas possuem o mesmo sistema de direitos e liberdade; 2) Somente é
possível alterar o esquema de liberdades para beneficiar os mais desfavorecidos. Esse princípio é
denominado de princípio da diferença. (In PORTELLA, Simone de Sá. Direitos Humanos e o Mínimo
Existencial,
acessível
http://www.netlegis.com.br/indexRJ.jsp?arquivo=detalhesArtigosPublicados.jsp&cod2=1302 ).
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em:
texto original no site do Senado Norte Americano. Para tal, acesse os seguintes
endereços eletrônicos abaixo:
http://www.embaixadaamericana.org.br/index.php?action=materia&id=643&submenu=106&itemmenu
=110
http://www.senate.gov/civics/constitution_item/constitution.htm
Na legislação brasileira temos assegurados os direitos à integridade física dos
trabalhadores nas indústrias de vestuários femininos, reconhecidos como
constrangimento ilegal, vejamos:
“Constrangimento ilegal. Submissão das operárias de
indústria de vestuário à revista íntima, sob ameaça de
dispensa. Sentença condenatória de primeiro grau
fundada na garantia constitucional da intimidade e
acórdão absolutório do Tribunal de Justiça, porque o
constrangimento
questionado
à
intimidade
das
trabalhadoras, embora existente, fora admitido por sua
adesão ao contrato de trabalho. Questão que, malgrado a
sua relevância constitucional, já não se pode ser solvida
neste processo, dada a prescrição superveniente, contada
desde então” (STF, RE 160.222/RJ, rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJU 1.9.95).
A dignidade como valor comunitário abriga o seu elemento social. O indivíduo
em relação ao grupo e traz os valores civilizatórios ou seus ideais de vida boa.
Não se trata apenas de escolhas individuais, mas as responsabilidades e
deveres a estas associadas.
Funciona mais como construção externa à liberdade individual do que como um
meio de promovê-la.
A dignidade com valor comunitário prioriza objetivos diversos, entre estes:
a) A proteção do próprio indivíduo contra atos autorreferentes;
b) A proteção de direitos de terceiros;
c) A proteção de valores sociais, incluída a solidariedade.
Obtém ainda sua dimensão ecológica, abrangendo a proteção ambiental e da
fauna e flora. O repensar do homem como “pessoa”, a necessidade de
percebê-lo como centro de liberdade e complexidade único, indivisível e não
intercambiável leva ao reconhecimento de uma espécie de solidariedade
ontológica, impondo-se um valor jurídico em si mesmo e atender aos valores
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que a vida humana representa e ganhando a amplitude da preservação da
humanidade como um todo.
Avulta-se séria preocupação no embate dos direitos fundamentais com as
razões de Estado com seu enfraquecimento; problemas práticos e institucionais
das políticas paternalistas.
São exemplos emblemáticos na jurisprudência mundial que proíbem o
arremesso de anão (França), a criminalização do sadomasoquismo, mesmo
que consentido (Reino Unido), e ainda, na possibilidade teórica de se legitimar
restrições à liberdade, com fundamento na proteção da dignidade do próprio
sujeito.
E isso é válido para situações como a defesa da vida, da repressão à pedofilia
ou cerceamento da liberdade de expressão em casos de calúnia. A proibição
dos discursos de ódio para a proteção da dignidade humana, o que vem
automaticamente cercear a liberdade de expressão.
A imposição coercitiva de valores sociais em prol da dimensão comunitária de
igualdade sempre exigirá fundamentação coerente; a existência ou não de um
direito fundamental em questão; a existência de consenso social forte em
relação ao tema; a existência de risco efetivo para o direito de outras pessoas.
Frise-se que a dignidade de um indivíduo jamais deverá ser suprimida, seja por
ação própria ou de terceiros. Porém, os aspectos relevantes da dignidade
poderão ser paralisados em determinadas situações, é o caso da prisão
legítima em flagrante delito ou de um condenado criminalmente.
A invocação, pela jurisprudência pátria, da dignidade humana ocorre como
reforço argumentativo, o que justifica o longo elenco dos direitos fundamentais
(os setenta e oito incisos do artigo 5º da Constituição Federal de 1988).
Há no constitucionalismo brasileiro uma ambiguidade de linguagem, o que
acarreta a necessidade de se escolher a função que melhor realize e
concretize a dignidade humana e, a eventual colisão de normas constitucionais
e direitos fundamentais levará em consideração a supremacia de valores
essenciais à dignidade humana.
É abundante a referência à dignidade humana em matéria penal e processual
penal na jurisprudência do STF. O que ratifica que o indivíduo não pode ser
parte da engrenagem do processo penal.
Eis o motivo para haver decisões assegurando aos acusados nos processos
criminais o direito a não-discriminação; à presunção de inocência; à ampla
defesa; contra o excesso de prazo em prisão preventiva; ao livramento
condicional; às saídas temporárias do preso; a não-utilização de algemas;
aplicação do princípio da insignificância. Discute-se se os artefatos
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tecnológicos como a tornezeleira eletrônica é meio garantidor ou violador da
dignidade humana.
Existem, igualmente, precedentes do STF relacionadas à manutenção da
integridade física e moral dos indivíduos e à proibição de tortura e de
tratamento desumano e cruel.
No polêmico direito à saúde, principalmente aos relacionados com
procedimentos médicos e medicamentos não oferecidos no plano do Sistema
Único de Saúde – SUS.
Todavia o orçamento que financia o direito à saúde é finito e que, portanto há
de ser realizada ponderação adequada a se fazer para atender a vida, a saúde
e a dignidade de uns versus a vida, saúde e a dignidade de outros. Igualmente
o Superior Tribunal da Justiça têm-se multiplicado as referências à dignidade
da pessoa humana em decisões das mais variadas.
Há pois muitos precedentes em quase todas as áreas do direito, envolvendo o
mínimo existencial, restrição ou direito de propriedade, o uso de algemas, o
crime de racismo, de tortura, a vedação ao trabalho escravo, direito de
moradia, direito à saúde, aposentadoria de servidor público por invalidez,
vedação do corte de energia elétrica para serviços públicos essenciais, dívidas
de alimentos, direito ao nome, direito a redesignação sexual e muitos outros.
Três questões controvertidas envolvendo a dignidade são habitualmente
apresentadas à jurisdição constitucional no Brasil: as uniões homoafetivas, a
pesquisa das células-tronco embrionárias e a interrupção da gestação dos
fetos anencefálicos.
O principal busilis envolve o reconhecimento da legitimidade das uniões
homoafetivas. Há o direito fundamental em jogo e eles devem funcionar como
troféus contra a vontade da maioria, se este for o caso. Contemporaneamente,
são aceitas tais relações, mas não se pode cogitar em consenso social.
Não devem ser criminalizadas tais relações e merecem receber tratamento
adequado, por isso, recentemente procurou-se descriminalizar a homofobia.
Já na fertilização in vitro, método que busca superar a impossibilidade de ter
filhos, ocorre a produção de embriões excedentários, que não são utilizados e
poderiam ser criogenizados e armazenados em laboratório.
Os embriões possuem as células-tronco que podem se conceber em todos os
tecidos e órgãos humanos correspondendo a uma eficiente ferramenta para a
chamada medicina restaurativa.
Na perspectiva contemporânea o Direito não pode mais ser entendido como
sistema neutro e nem se esgota na operação lógico-formal entre fato e norma,
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na cartesiana subsunção, mas tem como nota a sua indeterminação e conflito
entre valores.
O princípio da dignidade da pessoa humana estende-se pelo corpo
constitucional e através de um conjunto de outros princípios, subprincípios e
regras que procuram concretizá-lo e explicitar os efeitos que dele devem ser
extraídos.
Nessa dimensão, a noção de propriedade sofre significativa alteração a partir
da função social, e o direito subjetivo por excelência passa a ser considerado
como situação jurídica complexa. E, se encontra inserido numa temática ainda
mais ampla que o direito à cidade, contemplando o direito à moradia como um
de seus componentes.
No Brasil, permite-se que tais embriões que estejam congelados há mais de 3
(três) anos sejam destinados para pesquisas científicas e sob a autorização e
concordância de seus genitores.
Recentemente, o Conselho Federal de Medicina decretou portaria que limitou o
número de embriões implantados; permitiu a utilização da fertilização in vitro
por casais homoafetivos e, mesmo a sua utilização post mortem, condicionada
apenas a prévia autorização formalizada em instrumento público pelos pais.
Algumas legislações como a Lei de Biossegurança, se preocupam em restringir
a manipulação genética para fins terapêuticos, mas há de se respeitar o
embrião como vida potencial e, portanto, devem ter sua existência e dignidade
validamente preservadas.
Os interesses em debate são do embrião, dos genitores, da pesquisa e os da
sociedade em geral; em razão dos avanços científicos galgados pela medicina.
A proteção da vida potencial do embrião pode ser questionada pela
razoabilidade, pois antes de ser implantado no útero materno ainda não é vida
potencial.
No plano da autonomia pode-se discutir o desejo do embrião não ser destruído,
no entanto, é inexigível o implante deste no útero materno. Mesmo se
considerada sua vontade, isso não alteraria sua condição de potencial vida,
sem efetiva prospecção de acontecer.
Por outro lado, há o direito dos genitores de escolherem o destino do material
genético que forneceram. Em derradeiro, há a liberdade de pesquisa do
cientista que encontra respaldo no valor comunitário, é a frágil tese de que o
embrião congelado há mais de três anos, sem se tornar uma vida, tem um
direito fundamental de não ser destruído.
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Mas a perspectiva da pesquisa científica em trazer a cura e salvar vidas pode
franquear a manipulação dos embriões excedentários que não podem ser
objeto de comercialização, por ferir mortalmente a dignidade humana, mas não
deixa de tornar legítimas as pesquisas científicas, mesmo que acabem por
determinar a destruição do embrião congelado, há mais de 3 (três) anos.
O aborto de anencefálicos (que sofrem de má formação fetal congênita que
resulta no fechamento do tubo neural durante a gestação) e corresponde à
ausência de cérebro, trata-se de uma anomalia irreversível e fatal da totalidade
dos casos.
As pesquisas apontam que aproximadamente 65% dos fetos anencefálicos
deixam de respirar ainda na fase intrauterina. E, quando chegam a nascer,
deixam de respirar minutos após o parto. Há relatos de situações excepcionais,
onde podem se passar alguns dias até que haja a cessação final da função
vital.
Graças aos avançados métodos tecnológicos, pode-se então chegar com
segurança ao diagnóstico de anencefalia, sendo possível a confirmação
através da ecografia a partir do terceiro mês de gestação.
Em ação constitucional dirigida ao STF, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde pede que seja reconhecido o direito de interrupção da
gestação por vontade exclusiva da gestante, afastando-se as clássicas
punições ao aborto previstas no Código Penal Brasileiro.
O feto anencefálico ainda dentro do útero possui vida potencial, mas como não
chega a ter vida cerebral, não há vida a ser tutelada em sentido jurídico.
Em prol do direito de interrupção da gestação de feto anencefálico, pode-se
invocar o direito à integridade física da mulher, pois após uma longa gestação e
todas as suas consequências físicas e fisiológicas, receberá um filho com a
mínima possibilidade de sobrevida. Traduzindo-se enfim, em um sofrimento
inútil.
Confronto inútil entre a autonomia de vontade do feto de permanecer no útero
materno e aguardar seu parto, chocando-se com o direito da mãe em não
manter uma gestação inviável. Cogita-se da liberdade existencial referente aos
direitos reprodutivos.
Nem mesmo com relação à criminalização do aborto existe um forte consenso
social, e na maioria dos países desenvolvidos e democráticos admite-se sua
prática até determinada época da gravidez e, menos ainda haverá, nas
hipóteses de inviabilidade fetal.
O aborto do anencefálico foi abordado de forma eficiente por Luís Roberto
Barroso
em
suas
Razões
Finais
(ADPF
Nº
54
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http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/anencefalicos_razoes_finais.pdf) e Manifestação
sobre
audiências
públicas
(anexo
às
razões
finais
http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/anencefalicos_manifestacao_sobre_audiencia_p
ublica.pdf).
Recentemente podemos constatar diversas jurisprudências onde existe a
autorização para a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia como
podemos verificar nas decisões a seguir:
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=4792607
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=4915890&vlCaptcha=pMb
SU
Destaca-se, no teor de algumas decisões, a interferência moral na interrupção
de uma gestação onde é sabido, de forma inconteste, que o feto não terá
sobrevida. Onde, há o reconhecimento da dignidade da pessoa da gestante;
onde se opera o consenso, na busca de evitar diversos transtornos,
frustrações, sofrimento, em prol da valoração humana da gestante.
“(...) O casal cuja mulher estava grávida de 24 semanas
(cerca de 6 meses) procurou a Defensoria Pública após
receber a confirmação de que o feto que estava gerando
era anencéfalo, condição que é incompatível com a vida
extra-uterina. “Os requerentes, cientes do grave quadro,
manifestam de forma segura e inequívoca a intenção de
realizar a interrupção da gravidez, até porque não faz
sentido algum, sob a ótica jurídica ou mesmo médica,
prolongar uma gestação em que inexiste a possibilidade
de sobrevida do feto”, afirmaram, na ação, os Defensores
Públicos Júlio Cesar Tanone e Rafael Bessa
Yamamura.(...)”
“(...) O pedido para que a gravidez fosse interrompida foi
negado pelo Juiz de Direito em primeira instância. A
Defensoria Pública, então, recorreu com uma medida
cautelar para o Tribunal de Justiça, que concedeu decisão
liminar favorável. “Se fossem possível, quando da
elaboração do Código Penal, os exames médicos que
hoje possibilitam apurar defeitos genéticos do feto, o
legislador, para bem ou para mal, certamente teria
autorizado este caso [a interrupção da gravidez em caso
de anencefalia]”, justificou, na decisão, o Desembargador
Francisco Bruno. (...)”
Fonte:
[http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticia
www.abdpc.org.br
s/NoticiaMostra.aspx?idItem=31515&idPagina=1&flaDesta
que=V] Acesso em: 06/02/2011.
Após a Segunda Guerra Mundial, a dignidade da pessoa humana se tornou um
dos grandes consensos éticos mundiais e serviu de base para a cultura
peculiarizada pela centralidade dos direitos humanos e dos direitos
fundamentais.
E foi positivada em declarações internacionais de direitos e as Constituições
democráticas o que contribuiu para a formação da jurisprudência. A dignidade
humana é valor moral absorvido pela política e sendo um valor fundamental
dos Estados Democráticos de Direito.
Tal valor foi igualmente absorvido pelo Direito e passou a ser reconhecido
como princípio jurídico. Daí decorre três tipos de eficácia: a eficácia direta,
interpretativa e a negativa.
Pela eficácia direta se tem a possibilidade de se extrair uma regra do núcleo
essencial do princípio, permitindo a subsunção.
Pela eficácia interpretativa entende-se que as normas jurídicas devem ter seu
sentido e alcance determinados de maneira que melhor realize a dignidade
humana, que servirá como critério de ponderação na hipótese de colisão de
normas.
E, finalmente a eficácia negativa paralisa ou neutraliza, é de caráter geral ou
particular, a incidência de regra jurídica que seja incompatível com a dignidade
humana.
São conteúdos mínimos de dignidade humana o valor intrínseco da pessoa
humana, a autonomia da vontade e o valor comunitário. Decifremos cada um, a
seguir:
O valor intrínseco é o elemento ontológico da dignidade decorre do fato que, as
pessoas são um fim em si mesmas e não, meios para a realização de metas
coletivas ou propósitos de terceiros.
A inteligência, a sensibilidade e a capacidade de comunicação são atributos
peculiares e únicos que servem de justificação para essa condição singular.
Desse valor intrínseco da dignidade decorrem direitos fundamentais como o
direito à vida, à igualdade e à integridade física e psíquica.
A autonomia da vontade é elemento ético subjetivo da dignidade e associado à
capacidade de autodeterminação nas escolhas básicas (valoração moral e,
ainda os direitos e liberdades individuais). Tendo também dimensão pública
onde se apoiam os direitos políticos como o de participar do processo eleitoral
e do debate público.
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Para adequado exercício da autonomia seja pública ou privada é indispensável
que seja atendido o mínimo existencial, com a satisfação das necessidades
vitais básicas.
Já o valor comunitário da dignidade humana se preocupa com a relação entre o
indivíduo e o grupo, e com valores que servem de limites às escolhas
individuais, a promoção de objetivos sociais diversos, a proteção de bens
sociais (tais como meio ambiente, material genético e etc., patrimônio históricoartístico).
Desde sua origem histórica a dignitas esteve relacionada ao status, a posição
social ou determinadas funções públicas.
Da dignidade decorriam deveres de tratamento reconhecendo a superioridade
de certas pessoas.
E, segundo a tese de Jeremy Waldron, citando Gregory Vlastos12, numa
especulação exponencial, a igualdade significa a equalização das posições,
respeito antes só devotado aos nobres. Portanto no futuro, todos serão nobres
e, como o desejo humano é ilimitado por natureza. Mais adiante, no ápice da
evolução da dignidade humana, todos serão deuses.
Em síntese, pode-se conceituar que os direitos da personalidade são os
inerentes à pessoa e à sua dignidade13.
É importante associar os direitos da personalidade com cinco ícones colocados
em prol da pessoa humana que são:
a) Vida e integridade físico-psíquica;
b) Nome da pessoa natural ou jurídica, com proteção específica constante
entre os artigos 16 a 19 do Código Civil, bem como na Lei de Registros
Públicos, Lei 6.015/73.
c) A imagem classificada como imagem-retrato; a imagem-atributo, soma
de qualificações de alguém ou repercussão social da imagem;
12
Gregory Vlastos, 1984, apud Jeremy Waldron. Dignity, rank, and rights: The 2009 Tanner Lectures at
UC Berkley. Public Law & Legal Theory Research Paper Series, Working Paper n. 09-50, September
2009.
13
A dignidade da pessoa humana é valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta
singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a
pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, que se constituindo um mínimo invulnerável que todo
estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao
exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem
todas as pessoas enquanto seres humanos.
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d) Honra ou repercussões físico-psíquicas subclassificadas em honra
subjetiva (autoestima14) e objetiva (a repercussão social da honra).
e) Intimidade, sendo certo que a vida privada da pessoa natural é inviolável
(vida art. 5º, X, CF/88).
Esses ícones são relacionados com três princípios básicos constitucionais, a
saber, (grifos nossos):
Princípio de proteção à dignidade da pessoa humana – como fundamento
do Estado Democrático de Direito;
Princípio da solidariedade social – preocupado com a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária e visando a erradicação da pobreza.
Princípio da igualdade lato sensu ou isonomia – eis que todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Desta forma, estão os direitos da personalidade para o Código Civil como os
direitos fundamentais estão para a Constituição Federal.
E, ainda informa o Enunciado 274 do CJF da IV Jornada de Direito Civil, que o
rol de direitos da personalidade previsto entre os artigos 11 ao 21 do Código
Civil é meramente exemplificativo (numerus apertus), bem como, o rol de
direitos fundamentais na Constituição Federal não é taxativo e nem exclui
outros direitos colocados a favor da pessoa humana.
Mas no caso de colisão entre os direitos da personalidade deve-se adotar a
técnica da ponderação (técnica desenvolvida no direito comparado por Robert
Alexy15).
Diante do hard case, devem ser sopesados os princípios e os direitos
fundamentais diante do caso concreto para se buscar a melhor solução, o que
se exige inclusive um conhecimento interdisciplinar.
Nota-se que a vida, o nome, a integridade físico-psíquica, a honra, a imagem, a
produção intelectual e a intimidade foram cobertos pelo manto do CC/2002,
enquanto que os outros deixaram de ser mencionados , como o caso da opção
sexual e nem se pode entender que os direitos da personalidade tratados pelo
CC não são os únicos admitidos.
14
Para Dworkin, o direito a tratamento digno prevalece àqueles que sequer tem condições de reconhecer
eventuais insultos à sua autoestima, bem como àqueles que perderam sua capacidade de autodeterminação
, dentre outras classes minoritárias que constantemente são alijadas em diversas searas.
15
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001.
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Pois vige a cláusula geral de tutela humana que admite outros direitos da
pessoa (direito à educação, à moradia, à informação, à alimentação adequada,
à infância e adolescência, à privacidade e, etc.).
Ensina Senise Lisboa16, que “todos os direitos da personalidade decorrem da
existência, ainda que pretérita da vida”. É possível identificar um direito à vida
digna a partir do entendimento do artigo 1º, III da Constituição da República,
tendo como pressuposto lógico da personalidade humana e, ipso facto, dos
direitos da personalidade.
Assim, é notória a existência e eficácia da cláusula geral de proteção da
personalidade.
O direito à integridade física inclui a tutela do corpo vivo e do corpo morto, além
dos tecidos, órgãos e partes suscetíveis de separação e individualização. Vale
recordar as normas acerca da disposição do cadáver pelo titular que estão
disciplinadas na Lei 9.434/97 que, requer a manifestação da vontade para doar
seus órgãos para depois da morte.
Mas não se pode vedar a participação da pessoa em tratamentos terapêuticos
e científicos, que só podem ocorrer mediante consentimento informado.
Gustavo Tepedino identifica a ocorrência de duas grandes correntes
doutrinárias que procuram identificar a existência dogmática de proteção à
dignidade humana.
E, conclui que as leis não conseguiram tutelar de forma exaustiva todas as
manifestações da personalidade, restando superadas as teorias pluralistas,
segundo as quais os chamados direitos de personalidade se encontram
aplicados na lei; enquanto que as teorias monistas sustentam a existência de
um único direito de personalidade, originário, geral e capaz de conter todas as
multifaces das situações existenciais.
Confirmam apesar de superadas as referidas teorias uma forte tendência da
despatrimonialização e consequente personalização do Direito Privado.
Alguns autores preferem apontar a repersonalização, é o caso de Luiz Edson
Fachin e que repercute na análise de vários institutos de Direito Civil, com
relevante função prática.
E sob o prisma constitucional, os direitos da personalidade não podem estar
enquadrados em rol taxativo. Os direitos da personalidade são tendentes a
assegurar a integral proteção da pessoa humana, considerada em seus
múltiplos aspectos tais como corpo, alma e intelecto.
16
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo, SP: Revista
dos Tribunais, 2003. v. 1.
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A classificação dos direitos da personalidade não exaure o rol, posto que
constituam uma categoria elástica. Aliás, seria recomendável em face da
dinâmica evolução científica creditar-se num direito geral de personalidade.
São três ordens: a integridade física (direito à vida, ao corpo, à saúde, ao
cadáver); a integridade intelectual (direitos do autor, liberdade religiosa, de
expressão) e integridade moral (direito à privacidade, ao nome, à imagem).
Vivemos numa era de incertezas e perplexidades, o que fatalmente reflete no
Direito.
Mas, apesar do contexto histórico filosófico, do pós-positivismo onde os
princípios são a base normativa do sistema. Estes concretizam valores
considerados democraticamente e considerados como essenciais àquela
comunidade.
No sistema legal de tradição romano-germânica o berço por excelência dos
princípios jurídicos é exatamente o texto constitucional.
E, em razão da supremacia constitucional, tais princípios se impõem sobre a
interpretação e aplicação de qualquer norma inferior e, possuem os princípios
da eficácia horizontal, plena e imediata sobre qualquer relação jurídica concreta
e, garantindo a coerência axiológica de todo o sistema.
No fundo, a ambigüidade e amplitude peculiares das normas jurídicas são
majoradas pelo uso dos princípios, mas é a identificação dos princípios
aplicáveis que fornecem segurança jurídica, e fornecem também a razão em
cada interpretação a aplicação jurídica.
Portanto, determinar o significado e o conteúdo de cada princípio e, em
especial do princípio da preservação da dignidade humana é de total relevância
e, por essa razão é obrigatória a fundamentação/argumentativa das decisões
judiciais (art. 93, IX, CF/88).
Lembremos que os princípios não são expressões meramente valorativas e,
nem podemos entender conforme como Tzvetan Todorov sugeriu, citando
Lichtenberg:
“um texto é apenas um piquenique onde o autor entra
com as palavras e os leitores com o sentido. Mesmo que
isso fosse verdade, as palavras trazidas pelo autor são
um conjunto um tanto embaraçoso de evidências
materiais que o leitor não pode deixar passar em silêncio,
nem em barulho [...]”
Fonte:
ECO,
Umberto.
Interpretação
Superinterpretação. São Paulo, Martins Fontes, 2005.
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e
Estudamos a dialética entre os direitos contidos nos textos legais e os direitos
de seus intérpretes. Mas reconheçamos que o direito destes foram
indevidamente maximizados.
É preciso dotar de concreta cientificidade os conceitos, os princípios e institutos
jurídicos, papel precípuo da doutrina.
As primeiras perspectivas do Direito Civil Constitucional foram delineadas por
Piero Perlingieri17.
Podemos observar sua influência na Constituição Federal de 1988, onde o
objetivo dera garantir que a onda de democracia, solidariedade e proteção à
dignidade humana adentraram nos feudos do direito privado, remodelando-o.
O marco teórico do direito civil constitucional corresponde as suas principais
características tais como:
prevalência das situações existenciais em relação a situações
patrimoniais;
preocupação com a historicidade e a relatividade na interpretação e
aplicação do direito;
A prioridade da função dos institutos jurídicos, notadamente a função
social com relação à sua estrutura.
Há três perspectivas que dizem respeito à estrutura dos desafios enfrentados
pelo direito civil constitucional e a primeira perspectiva refere-se à proteção dos
aspectos mais íntimos da pessoa, ou seja, a privacidade.
A segunda perspectiva corresponde à responsabilidade civil na proteção da
dignidade humana e a terceira perspectiva corresponde ao desenvolvimento da
personalidade humana no ambiente familiar.
Sinteticamente a tutela da privacidade, da responsabilidade civil e das relações
familiares, Tepedino18 indica que, segundo Maria Celina Bodin de Moraes, são
os “turnings points” para avaliarmos o problema da segurança jurídica no plano
civil-constitucional.
Grandes desafios são enfrentados em razão dos desenvolvimentos
tecnológicos da biomedicina, da engenharia genética e da difusão de dados por
meios de comunicação como a Internet na amplidão do ciberespaço. Como a
17
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução:
Maria Cristina De Cicco. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
18
TEPEDINO, Gustavo (Organizador). Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da
legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008.
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privacidade de dados genéticos, bem como seu uso indiscriminado, seja por
empregados, companhias de seguro, ou por planos de saúde.
A idéia da medicina preventiva permitiu com sua evolução detectar através de
testes genéticos algumas predisposições patológicas e algumas doenças
graves tais como o câncer de mama. Perguntar-se-ia a quem pertence tais
informações e quem pode exigi-las.
Num extremado entendimento, poderá um membro da família tomar
conhecimento do teor desses testes genéticos para ser informado
tempestivamente sobre sua potencialidade patológica.
Em alguns países testes genéticos podem ser vendidos em farmácias e
debate-se se deve sofrer controle oficial. A utilização dos testes genéticos
enseja intrincadas questões éticas e jurídicas e se defrontam com a
privacidade da pessoa humana.
Assim, o direito à privacidade torna-se instrumento fundamental contra a
discriminação, a favor da igualdade e da liberdade. O direito à privacidade já foi
entendido como o “direito de manter o controle sobre as próprias informações e
determinar o modo de construção da própria esfera privada”19.
Samuel Warren e Louis Brandeis acrescentam em seu artigo, de forma mais
radical, que é “right to be let alone” (direito de ficar só) ou “privacy”
(privacidade), e o direito de ter autodeterminação informativa20.
Na sociedade contemporânea como sociedade de informação que é, a
identidade incorpora tais informações. Logo podemos afirmar que nós somos
as nossas informações. Desta forma, controlar a circulação das informações e
saber quem as usa, significa adquirir concretamente, um poder sobre si
mesmo.
Cogita-se da colocação dos chips colocados sucutâneos para admissão de
fiscais em centro de documentação, ou para rastreamento em caso de
sequestro, para ingresso em casas noturnas, para programa de vigilância do
governo inglês para fixar com exatidão e por via satélite de criminosos em
liberdade condicional.
Nos EUA, depois do dia 11 de setembro, na luta contra o terrorismo, passou-se
a considerar imprescindível o exercício do controle total sobre os cidadãos
19
RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. A privacidade hoje. Trad. de Maria Celina
Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
20
The Right to Privacy
http://groups.csail.mit.edu/mac/classes/6.805/articles/privacy/Privacy_brand_warr2.html [ acesso em 28
fev. 2011]
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através da coleta de suas comunicações telefônicas, eletrônicas e seus
deslocamentos, em particular, das viagens aéreas.
Construíram um estado de vigilância total estruturada com muitas câmeras e
controle de dados pela internet, por e-mails, cartas telefonemas e, até de todos
os cidadãos do mundo, se for possível.
Há dois divergentes modelos de proteção de dados pessoais: o modelo
europeu e o modelo americano. No modelo europeu, há regulamentação que
visa proteger efetivamente a privacidade da pessoa, mas normalmente ocorre a
posteriori quando já ocorrera a violação.
Já no modelo americano ocorre a ausência de regulamentação, o que é
danoso.
E devido ao princípio máximo da liberdade garantido naquela sociedade, o que
gera a possibilidade contraditória e paradoxal que é a criação de banco de
dados centralizado e gigantesco, mantendo a todos sob vigilância tal qual um
Big Brother e ainda, a possibilidade de cruzamento de dados reproduzindo uma
versão ciberespacial do “Panótico de Bentham”.
Da sociedade de informação fluímos para a sociedade do controle em prol de
suposta garantia de segurança.
Estudando mais ciosamente, a segunda perspectiva refere-se à
responsabilidade civil, presenciamos no Brasil, uma autêntica revolução, onde
o foco outrora tradicionalmente recaía sobre a pessoa do causador do dano e,
nem por ser ato reprovável e punível.
Deslocou-se para a tutela garantida à vítima do dano injusto e, passou a ter o
direito de ser reparada, independentemente da identificação de uma culpa.
A perseguição esquizofrênica da culpa passou a ser secundária, passando o
nexo de causalidade ter relevância de primeiro plano.
Os princípios, que antes eram alheios ao surgimento da obrigação de
indenizar, foram incorporados à definição do regime de reparação civil.
Se o sistema tradicional de responsabilidade se fulcrava somente na tutela do
direito de propriedade e dos demais direitos patrimoniais, hoje a dignidade da
pessoa humana, a solidariedade social e a justiça distributiva modificaram
definitivamente a sistemática do dever de ressarcir.
A responsabilidade civil objetiva volta-se para a tutela dos interesses da vítima,
independentemente de qualquer critério de reprovabilidade em relação ao ato
do agente ofensor.
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Sendo assim, servirá então de instrumento para a proteção dos direitos
fundamentais da pessoa.
Tal mudança de perspectiva pode acarretar nos dois problemas que merecem
atenção da doutrina e causam controvérsias na jurisprudência que é o da
conceituação do dano moral e o da cláusula geral da responsabilidade objetiva.
É por demais calcarmos na declinação subjetiva: “dor, vexame, sofrimento e
humilhação”.
Ponderando-se sobre a existência ou não de danos morais pelo uso não
consentido da imagem de uma bela atriz, o TJRJ concluiu que só as mulheres
feias poderiam sofrer com a exposição de sua imagem sem sua autorização.
Desta forma o relator Des. Wilson Marques, ao avaliar a causa onde a atriz
teve suas fotografias, apenas a uma revista exposta, depois também nas
páginas de um jornal, deduziu:
“nas circunstâncias do caso concreto, não se percebe de
que forma o uso inconsentido da imagem da autora pode
ter-lhe acarretado dor, tristeza, mágoa, sofrimento,
vexame, humilhação.
Ao revés, a exibição do seu estético corpo, do qual ela,
com justificada razão, certamente se orgulha,
naturalmente lhe proporcionou muita alegria, júbilo,
contentamento, satisfação, exaltação, felicidade.”
A definição objetiva do dano moral liga-se a lesão aos direitos da
personalidade, ainda é calcada no modelo tradicional e essencialmente
patrimonializado do direito subjetivo.
O dano moral em verdade como lesão à dignidade da pessoa humana será,
portanto, toda e qualquer circunstância que atinja o ser em sua condição
humana, que mesmo longinquamente, pretenda tê-lo como objeto, e que negue
sua qualidade de pessoa, e será automaticamente considerado violador de sua
personalidade. E, se caracterizada, é causadora de dano moral a ser
indenizado.
Por consequência, o dano moral corresponde à lesão a algum dos substratos
que compõem, ou conformam a dignidade humana, isto é, a violação aos
princípios da liberdade, da igualdade, da solidariedade ou da integridade
psicofísica de uma pessoa.
Revelou-se para proteção da vítima a insuficiência da imputabilidade moral
com base na culpa, transferindo o ônus de reparar para o agente ofensor.
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Quando do período após a Revolução Pós-Industrial, os acidentes se tornaram
frequentes e não são mais considerados como fatalidades extraordinárias,
passaram a ser estatisticamente previsíveis e mensurados em função do
desempenho da atividade e, surgindo à imposição do dever de repará-los, há
de decorrer da mera assunção deste risco.
Com a superação do modelo de responsabilidade subjetiva, muitas são as
vantagens, tais como: desonerar a vítima do pesado ônus da prova (por vezes
impossível); diminuir a discricionariedade judicial pela prevalência do dever de
indenizar independentemente de culpa, e, por fim, força o agente a internalizar
o custo de sua atividade.
Inerentemente de seu maior ou menor cuidado, terá este que pagar por todo
dano causado. Em prol da efetiva proteção da vítima dos danos injustamente
sofridos através dos dois mecanismos mencionados, se não é fruto, vem em
perfeita consonância com a teoria da constitucionalização do direito civil.
Mas há de se ponderar adequadamente para não se recair em exageros. O
maior desafio da responsabilidade de hoje não é a escassez e, sim o excesso.
Se tudo é dano moral, se todo sofrimento humano deve ser indenizado, a óbvia
tendência é de que os danos venham custar cada vez menos.
Se todos são vítimas, ou revés, ninguém é vítima; se todos são responsáveis,
então ninguém será responsável. A ausência de limites dogmaticamente
estabelecidos,
provavelmente
acarretará,
em
médio
prazo
a
desresponsabilização, gerando portanto, a desproteção e o desamparo da
dignidade humana.
É observável que os valores estabelecidos pelo STJ para a reparação do dano
moral pela indevida inscrição de nome no Serviço de Proteção ao Crédito, onde
o quantum indenizatório foi a menos de mil reais, quando em 1999, o TJRJ
condenou sistematicamente pela reparação do dano moral a 100 (cem)
salários-mínimos.
A terceira perspectiva refere-se à democratização das relações familiares.
Quando nos referimos às relações familiares, estas abrangem as relações
conjugais, as relações paterno-filiais, etc. Aliás, é sabido, que a tradicional
família patriarcal apresenta-se e revela-se triplamente desigual e cruel.
Pois nessa família, os homens possuíam um maior valor que as mulheres; os
pais tinham maior importância que os filhos e os heterossexuais mais direitos
que os homossexuais.
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Inauguramos o modelo da família democrática21, onde não há direitos sem
responsabilidades nem autoridade legítima sem democracia. Os papéis de
seus membros foram remodelados, e substituiu-se o então famélico pátrio
poder pela expressão “poder familiar”.
A democratização na família implica nos pressupostos como a igualdade,
respeito mútuo, autonomia, tomada de decisão através da comunicação,
resguardo da violência e integração social.
Na família democrática existe a igual distribuição de poder de decisão, onde
todos possuem iguais e adequadas oportunidades de se manifestar, e são
capazes e interessados em ouvir.
Limando qualquer discriminação ou preconceito e, permitindo ao cidadão, ao
ser humano, o direito de protagonizar igual papel ao forjar um destino comum.
A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como forte característica a
valorização do afeto nas relações afetivas entre as pessoas do mesmo sexo.
A adoção no Brasil da famosa eficácia horizontal dos direitos fundamentais (a
drittwirkung, desenvolvida inicialmente pelo Tribunal Federal Constitucional
Alemão), corrobora com o reconhecimento das relações homoafetivas com o
escopo de formar família e estar sob o manto protetor da lei.
A família democrática é aquela em que existe a dignidade de seus membros,
das pessoas que a compõe, é respeitada, incentivada e tutelada.
Embora nosso direito de família esteja entre os mais avançados ainda assim,
30% dos nascimentos não possuem paternidade registrada. E, deve-se
principalmente a cultura machista em vigor no país, a qual permite que os
homens se sintam livres de qualquer responsabilidade de registrar e sustentar
seus filhos (mesmo em relações fora do casamento e não-estáveis).
Em geral, grande percentual da responsabilidade parental é apenas suportada
pela mãe e, no caso de gravidez acidental, vive o dilema atroz do aborto
criminoso e a parentalidade solitária.
Assim, no caso de deserção do pai, temos o abandono moral, ou ainda, ao
revés, a síndrome da alienação parental.
Na tentativa de reatar os nós, os tribunais brasileiros passaram a aplicar o
princípio da presunção relativa da paternidade em caso de injustificada recusa
do exame biológico, o que foi consolidado na Súmula 301 (de 2004) do STJ.
21
Ressalte-se, por fim, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela
Resolução n. 217A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10121948 e assinada pelo Brasil na
mesma data, reconhece a dignidade como inerente a todos os membros da família humana e como
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.
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“STJ Súmula nº 301 - 18/10/2004 - DJ 22.11.2004
Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a
submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris
tantum de paternidade..”
Fonte:
http://www.centraljuridica.com/sumula/g/1/superior_tribuna
l_de_justica/superior_tribunal_de_justica.html [acesso em
05/03/2011]
E, ainda diante da concreta desigualdade da mulher no âmbito das relações
conjugais, diante da corriqueira violência doméstica, daí a Lei 11.340/2006, que
veio tratar da vedação de todas as formas de discriminação contra as mulheres
e ainda a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência
contra a mulher.
O Direito Civil-Constitucional é de aplicação direta dos princípios
constitucionais às relações privadas. Exigindo a releitura dos institutos privados
em face da prevalência do princípio da preservação da dignidade humana.
O reconhecimento do caráter normativo dos princípios, ao lado das regras (já
na lição de Dworkin), na filosofia pós-positivista e, ainda a pluralidade destes,
buscando proteger a dignidade, especialmente em sociedades desiguais.
A ilusão de segurança nos faz pressentir que existem novos caminhos a serem
trilhados para defender a dignidade humana22.
De qualquer modo, a ideologia dos direitos do homem nascida no século XVIII,
da filosofia das luzes, veio a ressurgir, e penetrar na mentalidade
contemporânea.
22
Impõe-se a garantia da identidade e integridade física e espiritual da pessoa através do livre
aprimoramento da personalidade; a libertação da "angústia da existência" da pessoa por meio de
mecanismos de sociabilidade, dentre os quais se incluem a viabilização de trabalho, educação, saúde,
lazer, moradia, segurança, previdência social, proteção à maternidade, à infância e assistência aos
desamparados, além de outras garantias de condições existenciais mínimas. (Alexandre de Moraes)
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ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2003.
Autoras:
Gisele Leite
Professora universitária, pedagoga, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia,
Doutora em Direito, Conselheira-chefe do Instituto Nacional de Pesquisas
Jurídicas, membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil,
professora da FGV e professora-tutora do FGV Online.
Denise Heuseler
Professora universitária. Especialista em Direito Processual Civil. Professoratutora do FGVOnline. Pesquisadora do INPJ.
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