Clique aqui para fazer o
Transcrição
Clique aqui para fazer o
doBRASIL retrato WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$6,00 | N O 14 CRIME EM GOIÂNIA Brasileiro e inglesa unidos por delitos, drogas e morte FUTEBOL NO BRASIL Vendendo os artistas e pagando pelo espetáculo AGRONEGÓCIO NO PODER Uma reportagem de Carlos Azevedo A GRANDE VITÓRIA Os chineses enfrentaram e venceram grandes desafios, especialmente políticos. E fizeram os maiores Jogos Olímpicos de toda a história retratodoBRASIL 14 1 2 retratodoBRASIL 14 doBRASIL retrato WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$6,00 | NO 14 | SETEMBRO-OUTUBRO 2008 Ponto de vista A GRANDE VITÓRIA A China realizou os maiores Jogos Olímpicos da história. A despeito de grandes problemas, especialmente políticos 04 Polícia CRIMES PERFEITOS Sucessivos governos incentivaram capitais brasileiros evadidos ilegalmente a retornarem ao País como estrangeiros. Agora, como punir os delinqüentes? Raimundo Rodrigues Pereira 06 Reportagem MAGGI, O AGRONEGÓCIO NO PODER Uma história da família de agricultores que, combinando astúcia, negócios e política, chegou ao governo do Mato Grosso e quer mais Carlos Azevedo 10 Reportagem OS FIOS DE UMA TRAGÉDIA O brutal assassinato da inglesa Cara Marie Burke pelo brasileiro Mohammed D’Ali, ambos jovens e pobres, envolve desajustes familiares, pequenos delitos, uso de drogas e o sonho de mudar de vida morando no exterior Tânia Caliari 24 Livros O PODER NO BRASIL COLONIAL Marcaram a cena política da época as disputas e associações entre descendentes dos pioneiros europeus e comerciantes ricos que ou aportaram mais tarde, sob o manto da Coroa, ou eram ex-escravos Renato Pompeu 31 Futebol VENDENDO SEUS CRAQUES Os clubes europeus fazem do esporte um negócio milionário. Os brasileiros mal se sustentam exportando jogadores Rafael Hernandes 34 Neurociência QUEBRANDO O ENCANTO DA MEMÓRIA Um grupo gaúcho de cientistas diz como funciona o cérebro humano quando um cheiro ou um sabor nos faz recordar situações ocorridas no início de nossas vidas Verônica Bercht 36 EXPEDIENTE REDAÇÃO SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira • EDIÇÃO Armando Sartori • REDAÇÃO Carlos Azevedo • Lia Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht • COLABORA NESTA EDIÇÃO Renato Pompeu • EDIÇÃO DE ARTE Ana Castro • Pedro Ivo Sartori • REVISÃO Silvio Lourenço • Marco Bortolazzo • OK Lingüística VENDAS [[email protected]] GERENTE Daniela Dornellas • REPRESENTANTE EM BRASÍLIA Joaquim Barroncas ADMINISTRAÇÃO Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho • Gabriel Carneiro Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. EDITORA MANIFESTO S.A. PRESIDENTE Roberto Davis • DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Marcos Montenegro • DIRETOR EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira REDAÇÃO Rua Fidalga, 146 conj. 42 • São Paulo SP • CEP 05432 000 • Telfax 11 38149030 • [email protected] ADMINISTRAÇÃO Rua do Ouro, 1.725 2 o and. • Belo Horizonte MG • CEP 30210 590 • Telfax 31 32814431 • [email protected] ASSINATURAS [email protected] • Tel 11 3813 1527 • 11 3037 7316 ATENDIMENTO AO ASSINANTE [email protected] ESCRITÓRIO COMERCIAL EM SÃO PAULO Daniela Dornellas • Tel 11 3813 1527 • 11 3037 7316 • [email protected] REPRESENTAÇÃO COMERCIAL EM BRASÍLIA Joaquim Barroncas • SCN Quadra 01 Bloco F • American Office Tower sala 1.408 • Brasília DF • CEP 70711 905 • Tel 61 33288046 • [email protected] IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica Grecco & Melo • Rua Chave, 614 • Barueri SP •Tel. 11 4198 9860 CAPA Yang Wei, ginasta chinês ganhador de três medalhas, Pequim (14/08/2008)/ Hans Deryk/ Reuters retratodoBRASIL 14 3 Ponto de vista: Inicialmente houve um grande empenho em promover uma condenação política dos Jogos Olímpicos de Pequim. A oportunidade surgiu com os incidentes ocorridos em março em Lhasa, capital do Tibete, região autônoma da China. Manifestações realizadas por monges para marcar o 49º aniversário do levante de 1959, que pretendia decretar a independência tibetana, transformaram-se em ações violentas contra propriedades e indivíduos da etnia han, amplamente majoritária no país, mas minoritária na região. A repressão a esses atos gerou uma campanha pelo boicote aos Jogos. Em várias cidades pelas quais passou a tocha olímpica, no tradicional percurso entre a Grécia e o local de cada edição dos Jogos, houve manifestações, algumas violentas. Os manifestantes não destacavam, evidentemente, que a violência, em Lhasa, começou com os monges. O ambiente criado contra a realização dos Jogos foi tal que levou à reação de um grupo de intelectuais italianos, entre os quais o filósofo Domenico Losurdo. Eles divulgaram um manifesto denunciando a “sórdida campanha de demonização da República Popular da China”, orquestrada por “governos e órgãos de imprensa”. E concluíram o documento lembrando que no fim do século XIX havia na China, na entrada das concessões ocidentais, uma placa com os dizeres “Proibido o ingresso aos cães e aos chineses”. “Esta interdição não desapareceu, sofreu apenas alguma variação, como demonstra a campanha para sabotar ou comprometer de qualquer maneira as Olimpíadas de Pequim: ‘Proibidas as Olimpíadas aos cães e aos chineses’”. DISCRIÇÃO Os Jogos Olímpicos de Pequim, no entanto, foram os maiores realizados até hoje. Além de envolverem 11,5 mil atletas de 205 países, em seus 17 dias de duração foram batidos 43 recordes mundiais, inclusive o dos simbólicos 100 metros rasos, considerado a prova mais nobre do atletismo. Estima-se que 4 bilhões de pessoas em todo o mundo assistiram, pela TV, às competições de Pequim. Além do sucesso esportivo, os Jogos podem ser vistos também como uma vitória do regime chinês, comandado pelo Partido Comunista. Não porque o governo chinês tenha feito qualquer campanha ostensiva nesse sentido. Ao contrário, manteve4 Daniel Aguilar / Reuters A GRANDE VITÓRIA A China realizou os maiores Jogos Olímpicos da história. A despeito de grandes problemas, especialmente políticos se em posição discreta. É que, evidentemente, ser bem-sucedido na realização de um evento de tal magnitude, para o qual estavam voltados os olhos do mundo, por si só, tem um grande significado. E esse significado acabou potencializado diante das demais dificuldades enfrentadas para a realização dos Jogos Olímpicos, além das políticas. Em maio, um terremoto atingiu a província de Sichuan, causando a morte de quase 70 mil pessoas. A apenas quatro dias do início das competições, um atentado terrorista ocorreu na província de Xinjiang, onde predomina a minoria uigur, de religião muçulmana, matando 16 pessoas. O governo chinês teve de enfrentar também as desconfianças motivadas pela má qualidade do ar da capital, decorrente das condições naturais e agravada pela fumaça industrial e da frota automobilística. Temiase que a poluição afetasse drasticamente o desempenho dos atletas. A China respondeu a todos esses desafios. No caso do terremoto, foram alocados 9,7 bilhões de dólares para atender as necessidades da região atingida. O primeiroministro chinês, Wen Jiabao, recebeu elogios do secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, pelo atendimento prestado às vítimas. Para prevenir novos atentados terroristas, a segurança foi reforçada. Mais de 100 mil agentes, entre militares, policiais e membros de equipes antiterroristas foram empregados. E, contra os efeitos da poluição, foram tomadas providências como a paralisação de fábricas e o rodízio de circulação de automóveis, que deram bons resultados. SEM “ELEFANTES BRANCOS” O empenho do governo chinês para a realização dos Jogos de Pequim, no entanto, foi bem além das medidas adotadas recentemente. Desde 2001, quando a cidade foi escolhida para sediá-los, estima-se que tenham sido investidos 40 bilhões de dólares em infra-estrutura. Esse dinheiro foi empregado numa ampla reforma urbana, que exigiu a realocação de mais de um milhão de pessoas e que incluiu a ampliação das linhas de metrô (que passaram de 54 km para perto de 200 km), a abertura de ruas e avenidas e a construção de grandes instalações esportivas. De acordo com as autoridades chinesas, com exceção dos magníficos Ninho de Pássaro (o Estádio Olímpico, onde foram realizadas as cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos) e Cubo d’Água (Centro Aquático, local das disputas das provas de natação), que serão utilizados menos rotineiramente, todas as demais instalações serão incorporadas ao dia-a-dia da cidade. Não se transformarão em “elefantes brancos”, isto é, grandes e caras instalações sem utilidade, como já ocorreu em cidades que foram sede das Olimpíadas. Tais investimentos só puderam ser feitos porque a China se transformou numa potência econômica, detentora do segundo maior PIB global pelo critério da pari- retratodoBRASIL 14 dade do poder de compra, superada apenas pelos EUA. Os Jogos, de certa forma, apresentaram-se para o mundo como uma síntese do poder chinês atual. E, para o regime, eles representaram a oportunidade de mostrar aos estrangeiros uma nova face: a de uma nação que quer crescer sem entrar em confronto com outros países, que não fala mais em revolução e que passou a dar grande peso às relações pacíficas e harmoniosas, inclusive com as potências capitalistas. Assim como, internamente, abandonou a ênfase na luta de classes, que foi substituída pela palavra de ordem do desenvolvimento. É claro que o desempenho econômico da China precisa ser relativizado. Trata-se de um país com 1,3 bilhão de habitantes, o mais populoso do planeta. Isso significa que, apesar de o PIB chinês ter avançado para a segunda colocação no ranking mundial, o PIB per capita da China ainda está bem distante dessa posição. Além disso, o crescimento ultra-acelerado dos últimos anos provocou distorções graves na sociedade chinesa. A desigualdade aumentou, principalmente entre moradores do campo e das cidades. Os problemas ambientais se avolumaram. A produção ainda se baseia no uso extensivo de recursos naturais, e a China não é um país que os possua em abundância. E há “muitos problemas que afetam o imediato interesse popular em áreas, como emprego, seguridade social, distribuição de renda, educação, saúde pública, habitação, segurança no trabalho, administração da Justiça e ordem pública”. “ESTÁGIO PRIMÁRIO” Esse diagnóstico está longe de descrever a China como um paraíso terrestre. Poderia muito bem ter sido produzido por adversários do regime. Saiu, entretanto, do informe de Hu Jintao, presidente da República da China, divulgado durante o 17º Congresso Nacional do Partido Comunista, em outubro do ano passado, que Hu apresentou na condição de secretário-geral do partido. Nele, Hu afirma que a China está “no estágio primário do socialismo”, que a democracia socialista “continua a desenvolverse”, mas que os esforços feitos até agora nesse sentido “têm sido insuficientes”. E diz que “a reestruturação política tem que ser aprofundada”. retratodoBRASIL 14 Quem faz um diagnóstico parecido é Wang Hui, crítico do regime chinês. Professor da Universidade de Pequim, Wang foi durante 11 anos co-editor da revista Dushu (“Leitura”, em chinês), uma das mais influentes entre a intelectualidade do país. Wang, que participou quando estudante das manifestações da Praça da Paz Celestial em 1989, duramente reprimidas pelo governo, foi incluído pela revista americana Foreign Policy na lista dos cem principais intelectuais do mundo. Numa entrevista concedida à revista semanal Veja no fim de 2006, ele falou sobre alguns dos temas abordados por Hu. Quando tratou de questões políticas, foi mais preciso. Disse que o país vive um “processo lento de transição democrática” que deve durar décadas. E que é uma “ilusão pensar que com eleições livres podemos facilmente resolver todas as questões” da China. Ele lembrou que há formalmente oito partidos no país, embora o Partido Comunista “seja, de longe, o mais forte”. “A questão principal, contudo, é saber como tornar esse sistema mais aberto. Os partidos políticos, que deveriam ser a base de sustentação do regime, estão vivendo uma crise em todo o mundo”. Wu apontou os problemas das democracias liberais, que têm as eleições como centro da atividade democrática. “No período pré-eleitoral, quando estão procurando votos, os políticos defendem interesses diversos, às vezes conflitantes. Uma vez inseridos na estrutura de poder, essas diferenças são anuladas. O resultado é uma grande confusão ideológica. Na Europa Ocidental, algumas políticas que as pessoas imaginam de direita estão sendo adotadas pelo partido trabalhista ou pelo social-democrata”. Falando sobre a censura, disse que há liberdade de expressão nas universidades. Disse que tem “total liberdade” para discutir assuntos com seus alunos sem “nenhuma intervenção das autoridades políticas”. A censura, disse, “não está presente em todos os setores da vida chinesa”. “Nas livrarias, há obras de todos os espectros ideológicos, da extrema esquerda à extrema direita, incluindo muitos títulos traduzidos”. A censura “é mais presente e abrangente nos veículos de comunicação de maior tiragem e na internet”, concluiu. Problemas e limitações não faltam à China na sensacional arrancada de desenvolvimento que empreendeu nas últimas déca- das. E os chineses demonstram estar conscientes deles. Isso também pode ser observado no campo esportivo, em que o sucesso olímpico parece não ter subido à cabeça das autoridades. A China ficou em primeiro lugar no ranking de medalhas disputadas em Pequim. Obteve 51 medalhas de ouro, contra 36 dos EUA e 23 da Rússia (os competidores brasileiros conseguiram somente três). Estima-se que nos Jogos de Londres, em 2012, os chineses continuem à frente dos americanos. Isso quer dizer que se transformaram numa potência esportiva? MODELO SUPERADO Segundo artigo publicado ainda em meio aos Jogos na edição on-line do Diário do Povo, do PC Chinês, essa é uma imagem nãorealista da situação do esporte no país. “O esporte chinês segue os passos do antigo modo soviético e está superado em seu sistema gerencial e operacional”, diz o texto. Desde 1949, fundação da China comunista, a Constituição define que o Estado está comprometido com o desenvolvimento e com a massificação do esporte. Essa determinação corresponde às idéias de dois grandes líderes políticos chineses do século passado, o republicano Sun Yat-sen e o comunista Mao Zedong, que valorizaram muito a prática de atividades físicas. Eles se contrapuseram à tendência dominante entre as elites chinesas que, de acordo com Xu Guogi, autor de um livro sobre o sonho chinês de realizar as Olimpíadas, até o fim do século XIX só se valorizavam as atividades intelectuais. Apesar de inscrita na Constituição, entretanto, a orientação está distante de atingir as pessoas comuns, diz o texto do Diário do Povo. “Para promover uma substancial massificação do esporte, a China terá que, antes de mais nada, otimizar ou transformar o sistema esportivo existente”. A partir da massificação, investimentos estatais e comerciais podem ser direcionados para os esportes de alto rendimento. “A massificação do esporte ajudará a construir uma sociedade mais forte e racional na qual o esporte de competição pode progredir muito. Nessas bases a China irá um dia crescer até tornar-se uma real potência esportiva”, conclui o texto. A crueza das análises dos dirigentes chineses é algo incomum. Tamanho realismo, sem dúvida, é um dos fatores que explica o sucesso da China nos últimos anos. 5 CRIMES PERFEITOS Na Operação Satiagraha, a espetaculosa ação da Polícia Federal (PF) dirigida contra o banqueiro Daniel Dantas e o grupo Opportunity, a organização à qual ele está associado, haveria, pelo menos, uma prova cabal da ação ilegal do banco. É uma lista de nomes, essencialmente de brasileiros, diz a PF, com aplicações no Opportunity Fund das Ilhas Cayman, dedicados legalmente apenas a não-residentes no País. A lista já foi citada por Retrato do Brasil: são 84 nomes, obtidos a partir de perícia na memória do sistema central de computação do banco Opportunity e informados pelo Instituto Nacional de Criminalística (INC) da PF ao delegado Protógenes Queiroz, que iniciou a Satiagraha e a comandou até meados de julho. Essa memória foi apreendida na sede do banco no Rio de Janeiro, durante a Operação Chacal, investigação da PF sobre escutas clandestinas ilegais envolvendo o banco associado a Dantas e a Telecom Italia, em outubro de 2004. Desde bem antes, no entanto, buscavam-se listas de investidores brasileiros ilegais no fundo do Opportunity em Cayman. Em maio de 2001, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o órgão oficial que supervisiona os investimentos em ações e outros papéis no mercado financeiro brasileiro, tinha aberto um inquérito, a partir de denúncia de Luiz Roberto Demarco, ex-sócio de Dantas, para saber se o banco realizava essas aplicações ilegais. Mais de três anos depois, em setembro de 2004, saiu a decisão. Por unanimidade dos três integrantes da comissão julgadora, foram condenados o Banco Opportunity, mais duas empresas de asset management (gestão de negócios) do grupo, dois de seus diretores – Verônica Dantas, irmã do banqueiro, e Dório Ferman, sócio majoritário do banco –, e o ABN Amro Real, banco administrador do Opportunity Fund no Brasil e um dos diretores deste banco. A condenação, entretanto, deu-se não por ter sido encontrada a lista dos brasileiros que aplicavam ilegalmente. A despeito de o próprio Demarco ter tentado provar a ilegalidade, apresentando testemunhos de 6 Reprodução Política: retratodoBRASIL 14 Sucessivos governos incentivaram capitais brasileiros evadidos ilegalmente a retornarem ao País como estrangeiros. Agora, como punir os delinqüentes? | Raimundo Rodrigues Pereira funcionários do banco que o teriam auxiliado a fazer aplicações ilegais de meio milhão de dólares no fundo de Cayman, a condenação teve outro motivo. “Foi impossível obter a identificação dos cotistas do Opportunity Fund, não obstante os inúmeros esforços”, disse o relator do processo da CVM no dia do julgamento, segundo os autos da Satiagraha. A punição foi relativamente branda, se considerada a renda provável dos condenados, de 20 mil reais ou 100 mil reais, para cada pessoa física e jurídica, e aplicada porque a CVM considerou que estaria provado o “esforço de colocação” das aplicações irregulares, embora não as tivesse conseguido comprovar. A CVM não conseguiu apoio da Cayman Islands Monetary Authority que é, digamos assim, a guardiã legal dessas listas e que se recusou a fornecê-las. Posteriormente, em agosto de 2007, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), que funciona no Banco Central (BC), derrubou a condenação, cancelando as multas. A absolvição do Opportunity, embora seja fato notório, não está nos autos do processo. Segundo o diário Valor Econômico, o banco foi inocentado pelo mesmo motivo já citado: não tinham sido obtidas as listas de investidores ilegais para provar a acusação. Segundo Dorio Ferman, ouvido por RB, a absolvição teve também outra causa: a acusação de Demarco é falsa, baseada em documentos manipulados por ele. As votações no CRSFN foram duas. Na referente à acusação de Demarco, o Opportunity ganhou por oito votos a zero. Na outra, que analisou uma possível negligência do banco em informar aos aplicadores, no prospecto do fundo, sobre a exigência de não-residência no Brasil, o banco ganhou por cinco votos a três. De que forma vai ser provado, agora, na Justiça, que a lista da PF com os nomes de brasileiros que teriam aplicado ilegalmente no fundo do Opportunity em Cayman é verdadeira? O banco diz que ela é falsa: manretratodoBRASIL 14 tém em seus registros apenas os nomes de aplicadores em fundos de investimentos locais. E que a tarefa de registro das aplicações e controle de suas movimentações no fundo off-shore é do banco legalmente encarregado dessa tarefa, o UBS Ltd. (União de Bancos Suíços Ltda.), de Cayman. O Opportunity, por meio de suas duas empresas de gestão, Opportunity Asset Management Ltda. e Opportunity Asset Management Inc, é apenas gestor do fundo: seleciona os ativos e realiza as aplicações do bolo de dinheiro dos cotistas, os quais não controla individualmente. “A distribuição de quotas do fundo se dá exclusivamente por intermédio de bancos internacionais. São estes que efetuam a venda das quotas dos fundos aos clientes, exclusivamente no exterior”, disse o banco em meados de julho passado, logo que a existência da lista dos 84 nomes foi divulgada. O ELO DO MENSALÃO Desde o segundo semestre de 2006, a área técnica da PF trabalhou na memória eletrônica do banco para obter a lista de investidores clandestinos do Opportunity. E, como se verá ao fim desse artigo, ainda julga que precisa de mais informações. A liberação para a perícia só foi obtida depois que a memória do banco foi arrolada como parte de outro escândalo. No começo de 2006, a Procuradoria da República enviou cópias às suas seções de São Paulo e Minas Gerais da denúncia que fez ao Supremo Tribunal Federal (STF) a partir do relatório da CPI do Mensalão e que apontava um elo possível entre empresas então comandadas por Daniel Dantas e esse escândalo. Brasil Telecom, Telemig Celular e Amazônia Celular teriam sido as principais empresas financiadoras do Mensalão, com 130 milhões de reais repassados pelo “valerioduto” para o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, por meio das empresas de publicidade de Marcos Valério, diz o relatório da CPI. A Procuradoria da República em São Paulo examinou essa denúncia e conseguiu, en- tão, autorização da Justiça Federal em São Paulo para periciar a memória e encaminhou o material para investigação da PF. Antes, o relator da CPI, Osmar Serraglio, pediu a perícia ao STF. A então presidente do órgão, ministra Ellen Gracie, negou. Da perícia dessa memória apreendida pela Operação Chacal e do relatório dessa operação, surgiu a Operação Dalien, nome derivado de Dantas e Alien, o alienígena da famosa série cinematográfica. Na Dalien, comandada pelo delegado Élzio Vicente da Silva, surgiram as primeiras listas de investidores clandestinos a partir dos trabalhos preliminares de análise da área técnica da PF. A seis de fevereiro de 2007, o delegado Silva enviou à 2ª Vara Criminal de São Paulo um relatório de suas investigações e pediu a prorrogação das interceptações sigilosas das comunicações do Opportunity por meio da internet. Entre os materiais que ele apresentou, há uma lista de 293 nomes de supostos aplicadores ilegais no fundo do Opportunity de Cayman. O relatório de Silva caracteriza sua investigação como tratando do “crime de evasão de divisas”. Contudo, uma análise atual aponta um defeito: os nomes apresentados não incluem os 84 da lista do INC divulgada recentemente e que, supostamente, é a mais precisa, pois não se apresenta mais como um resultado preliminar. Silva reconhece também, como diz o banco, que “o atendimento a clientes e a escrituração das quotas do Opportunity Fund são efetuados pelo UBS Ltd”, nas Ilhas Cayman, “domicílio” do fundo. Ele semeia certa confusão ao incluir no relatório inúmeras listas, com alguns milhares de nomes, sob diversos critérios, como cidade, grupo econômico, famílias de aplicadores. No relatório de Silva, esse capítulo das listas diversas é intitulado “Listagem de investidores nos Fundos de Aplicação do Banco Opportunity S.A. Ele não afirma, em ocasião alguma, se são ou não investidores ilegais. No relatório da Satiagraha, do delegado Queiroz, que é o esforço seguinte da PF para separar o joio do trigo no caso das listas, não 7 8 veu interesses gigantescos, e é possível que a compreensão do que foram esses interesses seja o que mais ajude a entender os aspectos mais gerais desse caso que não sai das manchetes de jornais e revistas há uma década. Nesse momento, no entanto, vamos voltar à lista de investidores ilegais, que aparentemente é o pecado original de Dantas. Para isso, é preciso compreender o outro braço de seus negócios: o da gestão dos chamados fundos públicos. 6 MIL FUNDOS, R$ 1,2 TRILHÃO O fundo de Cayman é um de três dúzias de fundos públicos geridos pelo Opportunity, mas é o único off-shore. Todos os outros são locais. Nos fundos locais, o Opportunity é especialista num dos subsetores do mercado de ações: o de Ações Índice Bovespa Ativos com Alavancagem e tem o maior dos fundos desse subsetor: o Opportunity Logica II FIA, que administra recursos de terceiros no valor atual de 2,3 bilhões de reais. O Lógica II está longe de ser um dos maiores fundos de investimentos do País. Essa área do mercado financeiro brasileiro, no total, inclui cerca de seis mil fundos e administra um patrimônio de 1,2 trilhão de reais. Todavia, o Lógica II deve ser destacado porque parece muito longe de ser uma maquinação cavilosa de um gênio do mal. Possui 22 anos de existência e foi criado por Dorio Ferman, o sócio principal de Dantas que, segundo Valor Econômico, é uma figura tradicional e respeitada no mercado. Teria havido, inclusive, no Rio, diz o jornal, o início de um movimento em defesa de Ferman, quando foi divulgada sua prisão no dia 8 de julho. Além disso, diz Ferman, o volume de aplicações no Logica II FIA e a persistência dos aplicadores, mesmo depois dos escândalos da Chacal e da Satiagraha, tem uma explicação simples: quem aplicou o equivalente a 10 mil dólares no fundo em 1986 e retirou a aplicação apenas no fim de 2007 ficou milionário – teria, então, 14 milhões de dólares. Se tivesse aplicado no índice Ibovespa teria cerca de 10 vezes menos, 150 mil dólares. A acusação contra Dantas e o Opportunity não vem de sua gestão nos fundos locais, mas concentra-se no fundo off-shore, criado em 16 de outubro de 1992 com base no Anexo IV da Resolução 1.289 de 1987, do BC. E na instrução 169, de 1992, da CVM. Essas regulamentações, até hoje famosas, marcam o início da abertura financeira do País. A rigor, elas foram feitas não só para trazer capitais estrangeiros para o País, mas também para incentivar investidores brasileiros que tivessem levado ilegalmente seu capital para fora a aplicá-los novamente aqui, disfarçados de estrangeiros. Foi dada isenção de imposto de renda para os rendimentos e os lucros na venda das ações que fossem compradas aqui. Argumentava-se que a vinda desses capitais criariam empregos, ao em vez de gerá-los lá fora. Dantas: segundo o banqueiro, o Opportunity seguiu a legislação Wilson Dias/ABr há um esclarecimento preciso desse problema, porque ele parte de uma visão improvável do grupo Opportunity. Para Queiroz, o grupo é uma maquinação completa do “maligno” Daniel Dantas, com uma infinidade de empresas nas quais ele escala, a seu gosto, “laranjas” de todos os níveis, e, ao mesmo tempo, uma completa falta de ordem, em que Dantas não tem ciência de tudo que se passa. De uma leitura dos autos que desconte essa esquizofrenia e busque entender melhor a organização comandada por Dantas, percebe-se que o Opportunity são dois empreendimentos. Um, de gestão de fundos abertos, que aplica dinheiro de clientes em carteiras de investimentos como ações e títulos de renda fixa negociados nos chamados mercados organizados, como as bolsas e o openmarket. O outro, de gestão de fundos fechados, de private equity, no termo em inglês, cujos ativos são posições de controle completo ou parcial de companhias adquiridas por meio do processo de privatização brasileiro – como as teles já citadas, o metrô do Rio de Janeiro, o terminal principal do porto de Santos e a Sanepar, companhia de saneamento do estado do Paraná. No caso da operação dos fundos fechados, pode-se dizer que Dantas faz parte da espécie de financistas que disputam agressivamente o controle de empresas por meio de processos de compras, de fusões e do controle da direção e dos conselhos dessas empresas, visando usar o mínimo de capital próprio e obter o máximo de lucro e patrimônio. Nesse sentido, Dantas se assemelha a banqueiros como João Paulo Lehman, um dos criadores do banco Garantia e da Ambev, e com André Esteves, um dos fundadores do Pactual e que recentemente tentou adquirir o UBS, um dos mais tradicionais bancos do mundo, para citar somente dois exemplos. A diferença é que Dantas está sendo praticamente expulso do grande negócio da qual foi um dos principais articuladores: o da formação das teles privadas a partir da Telebrás. No momento, o banqueiro está usando o dinheiro adquirido com a venda de suas participações na área das telecomunicações para iniciar grandes negócios no setor agropecuário e na mineração. Já possui, por exemplo, 600 mil hectares de terras e meio milhão de cabeças de gado. A história da investigação contra Dantas nessa área, tratada por RB na edição passada, precisa ser ainda revisitada. A disputa no setor de telecomunicações no Brasil envol- retratodoBRASIL 14 O Anexo 4 do BC e a instrução 169 da CVM criaram a estrutura legal para essa lavagem de capitais. O investidor individual, pessoa física ou jurídica, apresenta-se a um banco do exterior, o register and transfer agent, para registro e movimentação de suas quotas – no caso analisado, o UBS Cayman. No Brasil, aparecia apenas o fundo coletivo, por meio de um representante legal. Esse representante escolhia o gestor do fundo, que cuidava da aplicação do dinheiro sem precisar conhecer a lista de quotistas individuais. O aplicador ficava escondido dentro do fundo e protegido pelas leis do sigilo bancário de outros países. No caso do Opportunity Fund, pela Cayman Islands Monetary Authority. Diversos fundos como o do Opportunity foram criados e muitos se aproveitaram dessas condições. Um exemplo é o do próprio Demarco, embora ele se diga enganado pelo Opportunity, pois não saberia que o fundo era reservado a não-residentes no Brasil, embora fosse um operador do mercado financeiro. Outro, como veiculado pela Folha de S.Paulo no dia 11 de julho passado, teve como fonte, segundo a coluna social do jornal, o próprio aplicador, o ex-senador pelo Distrito Federal Luiz Estevão. Ele tinha 494 mil dólares no Delta Bank dos EUA sob os nomes fictícios de Leo Green e James Towers e pegou esse dinheiro e o aplicou no Brasil em 1994 por meio do Opportunity Fund de Cayman. Atualmente, o Anexo IV e a instrução 169 são regras completamente superadas. Não porque foram estabelecidas dificuldades para entrada e saída de capitais do País. Ao contrário: nos sucessivos governos, de 1987 até agora, ampliaram-se as facilidades para essa movimentação. As posições no Brasil em ações de investidores não-residentes foram de 16,7 bilhões de dólares no fim de 1995 para 50,4 bilhões de dólares no fim de 2005 e 165,7 bilhões de dólares no fim do ano passado. Isso sem contar as posições desses não-residentes em american depositary receipts (ADRs), ações de empresas brasileiras sob custódia da Bolsa de Valores de Nova York, que não existiam em 1995 e que, no fim de 2005, estavam em 75,1 bilhões de dólares e chegaram a 198,3 bilhões de dólares no fim do ano passado. DOIS CRIMES PERFEITOS? De qualquer modo, o relatório do INC de agora, que aponta os investimentos ilegais de brasileiros no Opportunity Fund, feito a partir da memória do sistema de computação apreendido em 2004, trata de um problema passado, de uma infração a regras então existentes. E diz explicitamente que foram localizadas mais de uma centena de operações de crédito e débito entre clientes do banco e o fundo off-shore. E que “os exames (...) mostram que o Banco Opportunity mantinha controle dos clientes com utilização de CPF e CNPJ, documentos essencial- Lula Marques/Folha Imagem Protógenes: para o delegado, o Opportunity é uma maquinação do “maligno” Dantas retratodoBRASIL 14 mente brasileiros. Conclui-se, portanto, que a instituição detinha conhecimento dos investimentos realizados por brasileiros no referido fundo”. Entretanto, esse é um relatório cauteloso. Diz, também nas suas conclusões, que há um trabalho difícil pela frente. “Faz-se necessário efetuar exames contábeis e financeiros em toda a documentação do banco Opportunity, que é o centro operacional financeiro, responsável pela operacionalização e pela movimentação dos recursos dos clientes da instituição, tendo em vista a dificuldade de se apartar os clientes normais daqueles que efetivamente possam ter participado de operações suspeitas”. O relatório também pede mais investigações, organizadas segundo normas que facilitem o trabalho do instituto. Operações de fiscalização e quebra de sigilo bancário no Opportunity deveriam ser feitas “em padrão e leiaute utilizados pelo Instituto Nacional de Criminalística”, diz o relatório. O documento é datado de 19 de junho passado. Nesse mesmo dia, um auxiliar do delegado Protógenes Queiroz, Vitor Hugo Rodrigues, enviou ofício ao juiz Fausto de Sanctis para a preparação de um flagrante de tentativa de corrupção que teria sido iniciada, também naquele dia, por emissário de Dantas – Hugo Chicaroni –, ao abordá-lo num almoço em que estava acompanhado de Queiroz. No dia 23, Queiroz enviou ao juiz de Sanctis pedido de autorização para realizar a grande rodada de prisões afinal efetuada no dia 8 de julho. Chicaroni diz que era amigo de Queiroz há tempos. Sua defesa alega que ele foi vítima de um flagrante ilegal de tentativa de corrupção, armado pelo delegado, e pediu a quebra do sigilo telefônico de Queiroz para mostrar que ele ligou para Chicaroni várias vezes antes do dia 19. De qualquer modo, Queiroz não quis seguir as sugestões do INC para prosseguir no trabalho de análises técnicas da escrituração do Opportunity. Um possível raciocínio seguido é de que o crime das listas de investidores ilegais do Opportunity era, ao mesmo tempo, notório, mas feito segundo regras que o tornavam perfeito. E com a providencial ajuda das prisões televisionadas e da divulgação das fotos da mala de dinheiro apreendida na casa de Chicaroni, Queiroz cometeu também o seu crime perfeito: realizou uma condenação pública antecipada da organização que predefiniu como criminosa. 9 Reportagem: MAGGI O AGRONEGÓCIO NO PODER 10 retratodoBRASIL 14 retratodoBRASIL 14 Rondonópolis, Mato Grosso, avenida presidente Médici, 4269. Às oito da manhã, um raio de sol faz brilhar um busto de bronze bem polido postado na entrada de uma grande construção horizontal. A estátua é uma homenagem a André Maggi, fundador da empresa, que morreu em 2001. Do lado de fora, com altas paredes cinzentas, a sede do grupo André Maggi se pareceria com um grande armazém não fossem as duas palmeiras imperiais ainda jovens e a enorme fachada de vidro espelhado na qual as imagens da avenida se refletem. Do lado de dentro, a construção de uns 250 metros por 200 metros é uma sucessão de surpresas. Distribui-se em três pisos, semelhantes a mezaninos interligados por largas escadarias e corredores. Tudo fartamente decorado por quadros muito coloridos de pintura ora naturalista, ora primitiva, só de artistas matogrossenses. Esses labirintos conduzem a grandes salas muito claras com ar-condicionado. Numa delas, cerca de trinta pessoas em seus computadores falam com o mundo. É o coração do departamento comercial, vendendo soja, algodão ou milho diretamente para Pequim e Amsterdã, como para São Paulo, de acordo com as cotações da Bolsa de commodities de Chicago. Em 2007, a Amaggi, empresa exportadora do grupo, vendeu 2,7 milhões de toneladas de soja, dos quais 77% foram destinados a exportação, um volume superior a 5% de toda soja exportada pelo Brasil naquele ano. O grupo tem 2,9 mil empregados, que são chamados de “família”, e se compõe de quatro divisões. A já referida Amaggi, de exportação e importação, a Divisão Agro, que cuida da produção agrícola e em 2007 produziu em suas 10 fazendas próprias e nas arrendadas 414 mil toneladas de soja, 53 mil toneladas de algodão em caroço e 171 mil toneladas de milho, a empresa de navegação Hermasa, que transporta pelo rio Madeira a soja exportada a partir de Itacoatiara, porto no rio Amazonas que recebe navios de grande calado, e a Maggi Energia, braço que produz energia hidrelétrica e desenvolve projetos para etanol e biodiesel. Em 2007, o grupo realizou uma receita líquida de 2 bilhões de reais e declarou um lucro de 134,7 milhões de reais. No ranking do diário Valor Econômico, é a 131ª entre as 250 maiores holdings de finanças. E, para a revista Exame, a exportadora Amaggi, no quesito vendas, é a 29ª entre as 50 maiores exportadoras. É a maior empresa do Mato Grosso, e seu principal proprietário, Blairo Maggi, elegeu-se governador do estado em 2002 e foi reeleito em 2006, confirmando uma tradição inaugurada por seu pai: a política sempre ao lado dos negócios. A DITADURA E O LATIFÚNDIO Não é por acaso que a sede do grupo Maggi está assentada em uma avenida chamada presidente Médici. A trajetória do pioneiro André Maggi, até a transformação de sua empresa em uma corporação de inserção internacional, e a de outros pioneiros do Mato Grosso, como Ariosto de La Riva, em Alta Floresta, e Enio Pipino, fundador de Sinop e de outros 30 municípios, faz parte de uma história maior, a da modernização conservadora do estado. A ditadura militar (1964-1985) fez uma releitura da política de Getulio Vargas e de Juscelino Kubitschek de ocupação territorial do Centro-Oeste e do Norte do País. Foi uma escolha a favor do latifúndio empresarial, associado ao capital financeiro e com concentração da propriedade da terra, em detrimento tanto da massa imigrante de trabalhadores rurais quanto da democratização da terra. O objetivo estratégico era a ocupação da Amazônia com pecuária e produção de grãos, por motivos de segurança nacional e para agregar essa parte do território à economia capitalista. Essa política foi inaugurada com o Plano de Integração Nacional (PIN), do governo Médici, e aprofundada nos anos seguintes com o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que viabilizou a construção de estradas, silos e armazéns, incentivos fiscais da Sudam para a ocupação dos “espaços vazios”, a implantação de rede bancária para financiamento com crédito subsidiado à produção, que inicialmente beneficiou o eixo Rondonópolis-Cuiabá, no cerrado do sudeste do estado. Ricardo Stuckert/PR Carlos Azevedo Uma história da família de agricultores que, combinando astúcia, negócios e política, chegou ao governo do Mato Grosso | Carlos Azevedo 11 Divulgação Grupo Maggi/ Cortesia O jovem André com a família em Torres (RS) e nos tempos de pioneiro no Paraná Em 1976, o Conselho de Segurança Nacional decretou as Exposições de Motivo 05/ 76 e 06/76, que definiram as condições para a regularização de terras de domínio da União consideradas “indispensáveis ao desenvolvimento e à segurança nacional”. No Mato Grosso, tanto a União, mediante o Incra, quanto o governo do estado, por meio do Instituto de Terras do Mato Grosso (Intermat), utilizaram amplamente essa legislação federal para promover a regularização de terras e a legalização de imensos grilos, sustentados por títulos falsos, mas considerados como “ocupações de boa-fé”. A regularização fundiária era uma ação de “reforma agrária” a partir do reconhecimento de situações preexistentes, mediante apresentação de títulos ou comprovação de posse. E havia a colonização oficial e particular, que consistia na liberação de grandes glebas a empresas privadas ou órgãos do 12 governo para mobilizar a imigração de camponeses sem terra do Sul e Sudeste, a fim de aliviar tensões sociais na origem e assentálos mediante venda de lotes de terra e promessa de financiamento e construção de infra-estrutura. Nesse processo, em meio a um caos fundiário, com a existência de dupla e até tripla titulação de terras, o Incra e o Intermat estavam seriamente envolvidos em corrupção para concessão das terras, de acordo com CPI realizada pela Assembléia Legislativa em 1995. O auge da grilagem tolerada pelos órgãos oficiais se deu entre 1983 e 1987, nos governos de Júlio Campos e Wilmar Perez, quando 4 milhões de hectares foram vendidos a preço simbólico a quem se apresentava como “procurador” de proprietário ou posseiro. Desse total, apenas 10% foram destinados à regularização de pequenas posses. Ao fim, Mato Grosso estava retalhado em grandes latifúndios, como estivera no passado, mas, agora, com a diferença de que eram latifúndios empresariais. A maioria dos projetos de colonização e assentamento de trabalhadores rurais havia fracassado ou se descaracterizou, mas a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento da acumulação capitalista estava à disposição dos empresários, visto que fora desapropriada das terras que viera buscar, concentrada em sua maioria nos 61 novos municípios criados no meio da floresta ou do cerrado, como diz a geógrafa Gislaene Moreno, da Universidade Federal de Mato Grosso (“Terra, poder e corrupção – a política fundiária em Mato Grosso – 1970/1990”, Revista Mato-grossense de Geografia, dezembro de 1997). Das centenas de milhares de pessoas que se deslocaram para a região em busca de terras, a maioria continuou pobre, uma parte como pequenos proprietários em lotes de colônia e assentamentos da reforma agrária. A maior parte nem terra conseguiu, tornando-se, na região, força de trabalho assalariada. Entre eles, houve quem abriu um pequeno comércio ou loja de serviços. Outros seguiram em frente, atrás de um lugar na nova fronteira agrícola, que sempre caminha para o Norte. Só alguns enriqueceram muito, formaram grupos poderosos, monopolizaram os meios de produção e se tornaram hegemônicos na economia regional. Mas estes, salvo alguma exceção, não eram imigrantes proletários. Como André Maggi, eles eram capitalistas atraídos pela política do estado à região para dar impulso à economia. QUATRO FAMÍLIAS NUM CAMINHÃO O começo da história de André Maggi se dá em 1955, quando, aos 28 anos, decidiu deixar sua terra natal, Torres, Rio Grande do Sul. Lá, como seu pai e seu avô italiano, ele trabalhava criando porcos e plantando mandioca. Vendeu a pequena gleba de terra, insuficiente para produzir além da subsistência, e levou a família, a mulher grávida e duas filhas, para o oeste do Paraná. Viajaram num caminhão por sete dias, dividindo espaço com outras três famílias, tão pequena era sua mudança. Foram para a região de Foz do Iguaçu, num lugar chamado “Gaúcha”, na fronteira com o Paraguai e a Argentina. Seguiam o chamado de Getulio Vargas – a “Marcha para o Oeste” – para ocupação da região. Sob o estímulo do governo, dezenas de empresas colonizadoras se instalaram, retratodoBRASIL 14 mearam Ferdinando Felipe Pagot como interventor em 1968. Ele era ex-oficial da Marinha Mercante, ligado aos serviços de segurança do governo militar e amigo de André Maggi. Os órgãos de segurança do Exército e da Marinha faziam reuniões periódicas com Pagot para planejar repressão a ações consideradas subversivas na fronteira, e Maggi participou de grande número delas. Conforme depoimento de seu genro Hugo Carvalho Ribeiro, atual vice-presidente do Conselho Administrativo da empresa, o sogro era homem de falar pouco. “Não fazia brincadeiras, não contava piadas. Só falava dos projetos em que estava envolvido, entrava em detalhes sobre o que fazer, como fazer, obsessivamente. Ou, então, discutia política. Tinha grande interesse em discutir estratégias políticas com os próprios políticos e autoridades, procurava influenciar nos acontecimentos, mas preferia ficar em segundo plano. Era um estrategista político”. Mas André Maggi era, sobretudo, um pragmático, e em tudo que fazia procurava combinar com o objetivo maior de melhorar de vida. As boas relações com as autoridades certamente favoreciam suas credenciais para obter crédito no Banco do Brasil. Assim, expandiu a indústria de madeira, ampliando a serraria, apossando-se de matas em terras devolutas e comprando a madeira das matas de outros colonos. Sua mãode-obra predominante era paraguaia, que ficavam acampados na mata em condições controlando as terras e vendendo-as a colonos gaúchos e catarinenses. Por ser região de Mata Atlântica, havia ali muita madeira. André começou como empregado em uma serraria. Trabalhador incansável e espírito de negociante, corria a floresta cortando árvores, que transportava até as margens do rio Paraná e vendia a uruguaios e argentinos. Iniciou negócios com terras. Comprou três chácaras de colonos. Trocou-as por um caminhão para transportar madeira. Também viajava a Torres para vender lotes de terra. Comprou uma fazenda onde havia uma pequena serraria. A partir daí, o padrão de vida melhorou. Na tradição italiana, era agarrado ao conceito de família. Construiu uma casa grande prevendo abrigar filhos, genros e netos. Também vieram a morar na casa famílias de ami- “Não fazia brincadeiras, não contava piadas. Só falava dos projetos em que estava envolvido” retratodoBRASIL 14 A primeira fábrica de sementes de Maggi em São Miguel do Iguaçu, ainda no Paraná Divulgação Grupo Maggi/ Cortesia gos, alguns dos quais o acompanhariam por toda a vida, como Altair Fabris, que trabalhou 39 anos com ele, chegou a presidente do grupo Maggi e hoje está aposentado. Na própria casa, abriu uma mercearia em sociedade com um amigo. Era a única do povoado e se tornou ponto de encontro de pessoas influentes e políticos da região, do que André se aproveitou para ampliar seu círculo social. Tinha vocação política, sabia juntar as pessoas em torno de objetivos como construir a igreja, escola, abrir estradas, fazer reivindicações. Participou da mobilização pela criação do município de São Miguel de Iguaçu, que se deu em 1961. Ajudou a eleger o prefeito e se elegeu vereador pela legenda do PTB, partido do então presidente da República, João Goulart. Sempre apoiar o governo seria uma regra que seguiria todo o tempo. Tornou-se eminência parda no novo município, influenciava a administração e a política, tanto que o segundo prefeito foi seu primo Nadir Maggi. Com a queda de Goulart, passou a apoiar a ditadura militar, assumindo posição nitidamente de direita, aproximando-se da Arena, partido do governo. Pelo fato de São Miguel de Iguaçu estar em área de fronteira, os militares no- precárias e recebiam baixíssimos salários, situação similar à de trabalho escravo. Em entrevista dada ao geógrafo Carlos Alberto Franco da Silva em 2000, constante do livro Grupo André Maggi: Corporação e Rede em Área de Fronteira (Entrelinhas, 2003), o pioneiro se justifica: “depois da expansão do negócio de café no Paraná, não agüentava pagar [pela mão-de-obra] o que os outros pagavam”. Com os lucros da serraria, começou a comprar terras de colonos endividados, chegando a possuir 200 hectares. Introduziu a serra-fita, um novo equipamento na serraria, e comprou caminhões e tratores. Hugo Ribeiro conta que, quando não havia compradores, Maggi lotava caminhões e ia pessoalmente vender em São Paulo. Havia 20 serrarias em São Miguel do Iguaçu no auge da exploração madeireira. Antecipando-se ao fim desse ciclo, Maggi vendeu a serraria e investiu na agricultura mecanizada. Com financiamento do Banco do Brasil, comprou tratores e equipamentos e construiu um armazém graneleiro para adquirir a produção de outros produtores e estocar para a comercialização em condições mais vantajosas de preço. Com financiamento do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), hoje extinto, Maggi investiu na compra de 56 silos especiais para aclimatação de sementes. E construiu um segundo armazém graneleiro. Também investiu na pecuária e já tinha 3 mil cabeças de gado. 13 Laercio Miranda Armazém em Campo Novo dos Parecis. São 38 graneleiros como este, com capacidade para 2,6 milhões de toneladas Ferdinando Pagot, mesmo depois de afastado da Prefeitura, continuou a ser seu braço direito em estratégias políticas. Essa era uma das características de André, conforme relatou Hugo Ribeiro. “Em primeiro lugar queria a família sempre a seu lado. Esforçava-se para que filhos e filhas, genros e noras ficassem trabalhando com ele. Quando me casei, havia me formado em engenharia civil em Curitiba, comecei a trabalhar por lá. Mas seu André me contratou para fazer construções para a firma dele. E, afinal, me trouxe para dentro da empresa. Ele era um formador de equipes. Ia juntando os amigos de confiança e atraindo-os para trabalhar com ele”. Estes iam se tornando uma extensão da família, num ambiente de lealdade de grupo. Maggi havia adquirido mais terras, e a produção de soja aumentou muito no município. Entre 1973 e 1977, esta passou de 50 mil toneladas para 120 mil toneladas. No entanto, o centro da atividade da empresa, então chamada Sementes Maggi, não era a produção, e sim o comércio da soja. Somente os armazéns de sua empresa tinham sementes. Maggi iniciava então a estratégia de sucesso que alcançaria seu auge anos depois no Mato Grosso: fornecia sementes, insumos e financiamento aos outros produtores, que se comprometiam a lhe entregar a produção a um preço previamente acertado. Os agricultores, sem alternativa, pois não havia ou14 tra estrutura de armazenagem na região, não tinham a mesma facilidade para conseguir financiamento bancário. Além dos financiamentos que conseguia no Banco do Brasil, Maggi havia estabelecido relações comerciais com os grandes grupos do setor de alimentos, Sanbra, Cargil, Anderson Clayton, junto aos quais obtinha empréstimos que ele repassava aos agricultores com juros mais altos. Depois, pagava os empréstimos com soja. Assim, com a safra regional sob seu controle, adquirida a baixos preços e acomoda- “Você não precisa ter dinheiro, precisa ter crédito”. Mas o pulo do gato ele não ensinava da em seus armazéns, Maggi esperava o melhor momento para vender. Ganhava com a venda de sementes e insumos, com os juros do financiamento e, afinal, com as diferenças de preços. Isso, sem falar, na sua própria produção, que não era desprezível. Nessa época, ele cunhou uma frase que ficou famosa: “você não precisa ter dinheiro, precisa ter crédito”. O pulo do gato é como você faz para ter crédito. Começou ali a rápida e intensa acumulação de capital do grupo Maggi. A CONQUISTA DO CERRADO Em 1979, quando chegou a Rondonópolis, André Maggi era um empresário de sucesso no Paraná, mas já sem espaço para crescer. Vinha em busca de ampliar suas forças produtivas para se apropriar de um excedente de trabalho maior. Em Rondonópolis, encontrou condições favoráveis, pois havia infra-estrutura, mão-de-obra disponível, as terras de cerrado eram muito baratas e a produção de soja deslanchava. Logo encontrou uma pechincha. Um fazendeiro endividado com o Banco do Brasil vendeu-lhe uma fazenda. Valendo-se uma vez mais de suas boas relações com o banco, André assumiu e renegociou a dívida alongando o prazo. Esses primeiros 2,4 mil hectares da fazenda no município de Itiquira foram só o começo da formação de um grande domínio territorial. A produção de soja no entorno de Rondonópolis crescia rapidamente. As empresas de máquinas, insumos e implementos agrícolas abriam filiais por lá, consolidando o modo de produção do agronegócio, a “indústria agrícola”, baseada no latifúndio capaz de produzir em grande escala e assentada nas multinacionais de equipamentos, fertilizantes químicos e agrotóxicos, a chamada “revolução verde”, que mobiliza grandes capitais na retaguarda da cadeia produtiva. Desde 1976, a Embrapa havia instalado na região um campo de pesquisas e vinha deretratodoBRASIL 14 ta sempre, não há um movimento retilíneo de sucesso, e com o seu André também foi assim. Ele era do tipo patriarcal, sistemático, muito seguro de suas idéias e capaz de perseverar até se convencer de que estava errado. Ele enxergava à frente, mas por vezes tomava decisões que traziam dificuldades e a equipe tinha de dar duro para honrar os compromissos. Felizmente, os seus acertos foram maiores que os erros”. Diz isso para lembrar que o começo foi difícil para eles no Mato Grosso, tiveram dúvidas sobre o acerto da iniciativa do chefe do grupo. “Faltava capital para comprar equipamentos, mas como as épocas de plantio e colheita no Paraná e aqui são diferentes, seu André embarcava suas máquinas agrícolas do Paraná em caminhões e as trazia para cá, mais de 2 mil km. Depois, levava para lá de novo”. André Maggi não era só um agricultor, mas um homem de negócios. Construiu o maior armazém graneleiro do Estado em sua fazenda MS3, para comprar soja, e, mesmo assim, logo este ia ficar insuficiente (atualmente, o grupo possui 38 armazéns desse tipo). Tratava de repetir o sistema comercial que dera certo no Paraná. Como não conse- Carlos Azevedo A sede em Rondonópolis, simples por fora, abriga instalações e equipamentos sofisticados retratodoBRASIL 14 Divulgação Grupo Maggi/ Cortesia senvolvendo as variedades “Santa Rosa” e “Cristalina”, adequadas para o cerrado. Aos poucos, os produtores iam acertando as quantidades necessárias de calcário, para a correção do solo, e de fertilizantes. E em 1979, Mato Grosso produzia sua primeira grande safra de soja, 117 mil toneladas em 70 mil hectares. Maggi logo transferiu alguns dos principais membros de sua “família” para Rondonópolis, como seus genros Itamar Locks e Hugo Ribeiro e os amigos Jacyr Bongiolo e Itamar Fabris. O grupo comprou mais terras na região, fazendas que chamou SM1, SM2, SM3, SM4, SM5 e Ponte de Pedra, as quais somavam mais de 18 mil hectares. Mais tarde, vieram as fazendas Tucunaré, Agro Sam e Itamarati, a noroeste, e Tanguro, a sudeste, compondo um total de 215 mil hectares. Em 1980, a primeira produção de soja foi um fracasso, porque André e sua equipe não conheciam as características do solo do cerrado (quanto de calcário era preciso, quanto de fertilizantes?) e as sementes do Paraná não produziam bem ali. Hugo Ribeiro conta que “houve altos e baixos, você não acer- Hugo Carvalho Ribeiro, genro de André guia ainda produzir sementes adaptadas ao cerrado, concentrou-se em fornecer adubos e equipamentos e emprestar dinheiro aos agricultores, recebendo o pagamento em soja. É a chamada “moeda verde”, de antiga tradição, que vem desde o café. Assim, comprava por preços mais baixos e conseguia concorrer com os grandes grupos comerciais, as tradings, como Cargill, Ceval, Sanbra, Sadia, na disputa pela produção. Armazenava os grãos comprados. E vendia com melhores preços a esses mesmos grupos. Como detinha soja em seus armazéns, também conseguia empréstimos em condições favoráveis com as mesmas tradings, antigas parceiras desde o Paraná, e com bancos. Era com esses recursos que financiava “seus” produtores, que chegaram a ser mais de 1,6 mil. Os produtores se mantinham “cativos”, porque os financiamentos bancários só eram dados aos grupos mais poderosos, e eles, sem acesso ao crédito junto aos bancos oficiais, tinham de capitular diante de empresas comerciais como a Maggi, que funcionava tal como um banco. A produção capitalista, entretanto, depende da extração do excedente do trabalho produzido, e Maggi sabia como realizá-la. De acordo com o testemunho de Luís Rodrigues, 38 anos, taxista de uma cooperativa em Rondonópolis que ganha 1,5 mil reais por mês e não pensa em voltar à agricultura, André Maggi pagava baixos salários em suas fazendas. Anos atrás, Luís trabalhou em ser15 Divulgação Grupo Maggi/ Cortesia Em 1985, Blairo assumiu a direção, e o pai foi ser pioneiro outra vez, em Sapezal viços gerais e como tratorista na Fazenda Ponte de Pedra, de propriedade do grupo Maggi. A empresa lhe pagava salário mínimo, mas com registro em carteira, férias, 13º salário, convênio médico e um abono por horas extras. “O Maggi pagava pouco, mas era correto, o que prometia, cumpria”. Saiu desse emprego porque o salário era muito baixo para alguém como ele, que conhecia os métodos de trato da terra e sabia operar os equipamentos de plantio e colheita. Foi trabalhar em uma fazenda vizinha como encarregado da pecuária, ganhando mais. Luís conta que o velho André ia para o campo com os trabalhadores, trabalhava com eles. “Exigente, criticava abertamente as falhas. Pegava a ferramenta e mostrava como fazer. O filho Blairo já era diferente. Não ficava no campo. Ia só ver os resultados”. O jornalista Onofre Ribeiro, de Cuiabá, 65 anos, que em 1994 conviveu durante uma semana com André e Blairo na fazenda deles em Sapezal, conta que o velho era carismático. Deitava-se às sete da noite, mas antes das quatro da manhã já estava sentado no alpendre da casa de madeira, tomando chimarrão e conversando com os empregados. Era uma conversa amistosa e, simultaneamente, um relatório do trabalho feito e a programação do que se ia fazer. A um perguntava: “consertou a bobina do trator”, “E aquele retentor que estava vazando?”. E a outro: “e como vai sua filhinha, melhorou da tosse? Se piorar, leva ao médico!”. Ao mesmo tempo, ele cobrava, ensinava, dava conselhos. Diz Onofre: “era um típico patriarca, um homem alto, corpulento, olhos claros, cabelos lisos, ralos. Conservava o sotaque italianado dos sulis16 tas e tinha uma voz suave. Era uma voz mansa, camarada, mas, ao mesmo tempo, retratava autoridade. Era um homem solene, não aceitava ser interrompido”. FINANÇAS E TECNOLOGIA A partir de 1985, quando o filho Blairo assumiu a direção, o grupo adquiriu novas feições, aprofundou laços com o capital financeiro, internacionalizou suas vendas e operações de crédito. Funcionava mais declaradamente como banco, financiador da produção. Captava recursos junto a bancos internacionais, como o BNP (Banco Nacional de Paris), UBS (União de Bancos Suíços), ING Baring (inglês), Societé Generali (francês), Harbour Bank (holandês), Sumitomo (japonês) e HSBC (inglês), e também brasileiros. Continuava a captar recursos junto às suas tradicionais “concorrentes-parceiras”, as tradings Cargil, Ceval e outras,e junto a empresas produtoras de adubos. Esses capitais financeiros, obtidos com custos menores que os dos concorrentes, eram repassados aos produtores, “fidelizados” por falta de alternativa, em troca de sua produção. Assim, o grupo Maggi passou a se apropriar de boa parte da soja do Mato Grosso e também de Rondônia. Outro aspecto da ampliação do poder do grupo Maggi é o controle da pesquisa tecnológica, obtido por meio de uma instituição de pesquisas. É a Fundação de Apoio à Pesquisa de Mato Grosso, ou Fundação MT, que tem sua sede na saída de Rondonópolis, à margem da estrada para Cuiabá, num amplo edifício que já foi o centro de pesquisa da Embrapa na região. Sob a liderança de Blairo Maggi, 23 grandes produtores buscaram uma parceria com a Embrapa para o desenvolvimento de sementes de soja e algodão e de métodos de produção, a fim de elevar a produtividade. Reuniram fundos e formaram a Fundação Mato Grosso, da qual Blairo foi o primeiro presidente. Após sete anos de parceria e o desenvolvimento de soja mais produtiva e resistente às pragas e fungos e de sementes de algodão adaptadas ao cerrado, a parceria se desfez turbulentamente, e o caso foi parar na Justiça. O contrato de parceria terminou em 2000. A Embrapa insistia em novo contrato com alterações nos termos de co-titularidade do material genético desenvolvido, temerosa de que novas parcerias feitas pela Fundação MT poderiam levá-la a perder controle sobre seu banco de germoplasma. Blairo Maggi se recusou a assinar a renovação com as mudanças requeridas pela Embrapa, alegando que “a propriedade intelectual dos materiais em desenvolvimento passariam a ser de propriedade exclusiva da Embrapa, fato com o qual a Fundação MT não concorda, pois todo o investimento humano e financeiro, dentro desses convênios, era arcado pela Fundação”. Em 2002, a decisão da Justiça foi dividir o banco de germoplasma, ficando 50% para cada lado. A Embrapa se retirou de Rondonópolis e sua sede passou à Fundação MT. Na imprensa, surgiram acusações de que a Fundação MT havia se apropriado ilegalmente de patrimônio público. Blairo Maggi alegou que por trás da questão estaria o envolvimento da Embrapa com a Monsanto no tocante ao desenvolvimento de produtos transgênicos. Disse: “a Monsanto exigia da Embrapa o rompimento do contrato com a Fundação MT. Quer dizer, a Monsanto, de certa forma, quer controlar a questão das sementes no Brasil e nós dissemos não. Nós temos nosso mercado e não vamos fazer isso”. GRUPO MAGGI NA POLÍTICA Até o rompimento da parceria, a Fundação MT e a Embrapa detinham o controle de 83% da produção de sementes do Estado, que eram comercializadas pela Fundação. O restante era comercializado pela Monsoy, subsidiária da Monsanto. Apesar da incorporação da Agroceres pela Monsanto, a Fundação MT ainda é responsável por uma fatia considerável do comércio de sementes no Centro-Oeste e Norte, um setor altamenretratodoBRASIL 14 te lucrativo e que garante autonomia ao grupo Maggi e seus associados na Fundação. Naquela semana de 1994, passada na fazenda de Maggi, Onofre Ribeiro conversou muito sobre política. “À noite, comendo carneiro e tomando vinho, falávamos da política mato-grossense, tradicionalmente dividida em dois ramos. Naquela época, um dos lados era representado por Carlos Bezerra e Dante de Oliveira. E o outro, por Jayme Campos e Júlio Campos. Eu argumentava que, pela expressão que vinham adquirindo na economia, os sulistas já se capacitavam para formar uma terceira força capaz de almejar o poder no estado. Blairo ouvia sem se manifestar. E seu pai não participava das conversas, já havia ido se deitar. No último dia, o velho, que até então se mantivera arredio, disse que queria conversar à parte comigo. Pediu a um empregado: “traga o meu uísque”. Serviu a mim e a ele. Disse que ouvira nossas conversas (em vez de dormir ficava na cama nos ouvindo). Achava que Blairo tinha futuro político, mas estava imaturo, além de que o grupo ainda não reunia suporte financeiro suficientemente forte para construir um pólo político que fizesse frente aos grupos poderosos então existentes. Mas concordava que os sulistas uma hora iam chegar ao poder. Entretanto, para Manuel Mota, cientista político da UFMT, que morou em Rondonópolis nos anos 80, os Maggi já estavam envolvidos na política mato-grossense havia tempos. Segundo ele, mantiveram relação próxima a Júlio Campos durante seu gover- no de 1983-1986. Em seguida, apoiaram e financiaram Carlos Bezerra, do PMDB, eleito governador pela oposição para o período 1987-1990. Na eleição seguinte, foi eleito o conservador Jayme Campos, que governou entre 1991-1994, mas André não o apoiou, porque, de acordo com Ribeiro, “Jayme havia faltado à palavra com ele, coisa que um patriarca não admite”. Em 1994, o apoio foi para a candidatura de Dante de Oliveira, membro da oligarquia tradicional (era parente de Roberto Campos), mas de visão mais progressista. Blairo Maggi iria se aproximar muito de Dante de Oliveira durante seu go- “Produtor ‘cativo’ recebe sementes, adubos, dinheiro e, em troca, entrega a produção” verno e obteve bons dividendos com essa amizade política, como no caso do relaxamento da legislação ambiental para construção de pequenas usinas hidrelétricas, decreto assinado por Dante. Isso não impediu que, em 2002, Blairo apoiasse a reeleição de Jonas Pinheiro, derrotando a candidatura de Dante ao Senado. Isso porque a relação política mais próxima dos Maggi se deu com Jonas Pinheiro, um político eleito deputado federal três vezes pelos produtores rurais e que tinha muita influência no Banco do Brasil, intermediava financiamentos, negociações de dívida, abria portas. Era o homem que o velho Maggi andara procurando. Em 1994, os Maggi apoiaram fortemente Jonas Pinheiro para o Senado, derrotando o antigo aliado Carlos Bezerra até mesmo em Rondonópolis, seu domicílio eleitoral. Blairo Maggi foi suplente de Jonas, o que lhe permitiu assumir a cadeira no Senado por quatro meses em 1999, ocasião em que, entre outros negócios, viabilizou financeiramente a Hermasa, empresa de navegação pelo rio Madeira, junto ao governo Fernando Henrique Cardoso. De acordo com Ribeiro, uma figura já se destacava naquela época ao lado de Blairo, como seu braço direito, homem de pensamento estratégico, Luís Antonio Pagot, filho daquele Felice Pagot que, no Paraná, fora o pensador estratégico de André e interventor dos militares em São Miguel do Iguaçu. Ribeiro descreve Luís Antonio como “um trator”. Como assessor parlamentar de Jonas Pinheiro no Senado, foi, depois de 1994, o arquiteto e articulador em Brasília do projeto da Hermasa, empresa de navegação do Rio Madeira, da qual se tornou depois seu gestor mais destacado. Foi o principal articulador da campanha de Blairo a governador (“levou no peito”, diz Ribeiro), depois secretário de estado em três secretarias estratégicas, e hoje é diretor do Departamento Nacional de Infra-estrutura e Transporte (DNIT) do governo Lula, por indicação do governador. O DNIT é o órgão encarregado de desenvolver o sistema de transportes, Fotos: Folha Imagem Senador Jonas Pinheiro, o homem que “abria portas”. Dante Oliveira deu ajuda para a energia. Jílio Campos regularizou os “grilos” retratodoBRASIL 14 17 estradas, hidrovias, ferrovias. Aparelho estratégico para os interesses dos produtores do Mato Grosso (e quem pode se beneficiar mais com isso do que o grupo Maggi?). O jornalista acha que Blairo não tinha vocação política, mas se contradiz quando relata as manobras do atual governador para se filiar a um partido. Foi convidado por vários, PMDB, PSDB e outros, ameaçava ir e acabava não indo, negaceava. Acabou se filiando ao PPS, partido originário do antigo Partido Comunista Brasileiro, não por suas tradições de esquerda que, aliás, há muito renegou, mas pelo fato de ele ser quase inexistente no Mato Grosso. Nisso mostrou refinada matreirice, porque, na prática, arranjou um partido que ele pudesse controlar sem as interferências de outros caciques, conforme admitiu em entrevista a Franco da Silva, no livro já citado: “era necessário romper com esse negócio. Logo, eu tinha que buscar um partido que não tivesse a presença desses políticos antigos...”. Assim, pôde se eleger governador duas vezes, sem dever politicamente a ninguém. No fim, Ribeiro admite: “mas ele tomou gosto! Ele aprendeu o caminho das pedras”. E como aprendeu! Em 2006, Blairo Maggi foi reeleito governador no primeiro turno. Lula, que no primeiro turno perdera a eleição em estados onde o agronegócio é forte, como no Mato Grosso, negociou o apoio de Maggi. Este, que havia apoiado Geraldo Alckmin, mudou de posição e declarou apoio a Lula. “No primeiro instante, a repercussão em suas bases foi muito nega- tiva,” conta o jornalista. “Mas Blairo é um negociador esperto e duro. E negociou um amplo acordo com Lula. Negociou o que sabemos e o que não sabemos”. O acordo trouxe benefícios imediatos para o agronegócio ainda antes da votação do segundo turno: créditos de 3 bilhões de reais, alongamento da dívida dos produtores, compensações para aos exportadores pela desvalorização do dólar, promessas de cargos para aliados de Maggi na administração federal, no DNIT, Incra, Funasa. Fazendo sua parte, Blairo viajou pelo País se reunindo com as lideranças do setor. Resultado: no segundo turno, Lula obteve votações muito maiores nos estados controlados pelo agronegócio. No Mato Grosso, por exemplo, no primeiro turno Alckmin conseguira 55% dos votos e Lula, 38,6%. No segundo, deu empate. Blairo teve de deixar o PPS por imposição do presidente do partido, Roberto Freire. Não perdeu nada com isso, foi para o PR juntamente com seus deputados e prefeitos. Em compensação, ganhou espaço para exercer influência no governo federal. SAPEZAL, A GRANDE CARTADA Até 1979, os poucos sinais do homem branco na parte oeste do grande cerrado da Chapada dos Parecis eram as ruínas da linha telegráfica implantada pelo Marechal Rondon em 1908. No mais, esse largo planalto apenas levemente ondulado continuava a ser o território dos povos indígenas Pareci, Enawenê-Nawê e Nambiqwara, em inúmeras aldeias instaladas ao longo dos verdes 18 Folha Imagem Carlos Azevedo O jornalista Onofre Ribeiro e Luis Antonio Pagot, o estrategista de Blairo e encachoeirados rios do Sangue, Papagaio, Juruena, Sapezal, Juína, Mutum. Essas terras faziam parte do imenso município chamado Diamantino, onde o Incra e o Intermat estavam começando a discriminar glebas para empresas de colonização com imigrantes do Sul. Um dos primeiros a chegar aonde surgiria mais tarde o município de Sapezal, ainda em 1979, foi Aldir Schneider, gaúcho descendente de alemães, que vinha a mando da Cotrijuí – Cooperativa de Triticultores de Ijuí – preparar terras e estradas para o acesso dos colonos. Ali se instalaram fazendeiros em glebas de no mínimo mil hectares, não havendo lugar previsto para pequenos produtores desde o início. A partir de sua fazenda Lagoão, Schneider e sua mulher, Elaine, a “Preta”, cooperavam com os vizinhos, todos instalados a quilômetros de distância uns dos outros. Preta organizou uma escola e um posto de saúde em sua casa, únicos na região. As dificuldades eram enormes, pois tinham de se abastecer em Cuiabá, em viagens de caminhão que demoravam 15 dias de ida e volta. Por três vezes, tentaram formar um núcleo urbano, mas, sem recursos e sem que seus pedidos de ajuda fossem atendidos pelo estado, não tiveram sucesso. Em 1985, André Maggi estava desobrigado de muitos de seus afazeres na empresa, já que o filho Blairo assumira a liderança. Aos 58 anos, cheio de energia, foi procurar o que havia buscado em toda a vida, terras virgens e baratas, porque sabia que elas eram um fator de geração de novas riquezas. Havia abundância de terras na Chapada dos Parecis, entretanto já complicadas pela presença de grileiros e títulos falsos de propriedade. É provável que o velho Maggi tenha se entusiasmado com o rico cerrado de transição, aquele imenso chapadão de rios encachoeirados (ela já via usinas hidrelétricas ali), de terras planas a perder de vista, as quais percebia excelentes para a agricultura mecanizada. A “família” não estava de acordo. Ele contou, em entrevista de 2000: “O Blairo falou que eu estava ficando louco [...] o pessoal dava contra. Tudo o que eu fazia não ia dar certo, mas eu sabia que ia dar certo”. Blairo comentou em 2001: “ele botava na cabeça que queria fazer alguma coisa, ele simplesmente ia fazer [...] às vezes até sendo irresponsável [...] e o resto da máquina administrativa tinha que correr atrás para cobrir os furos...”. André Maggi teimou e comprou “um mundo” de terras, 70 mil hectaretratodoBRASIL 14 Laercio Miranda Cargil, Bunge, Dreyfus, Bom Futuro e o maior de todos, o da Maggi. Sapezal fica à margem da BR-364, seu núcleo urbano tem uma área aproximada de 1 km por 1 km, dentro do qual quinze ruas e avenidas, todas asfaltadas, cruzam-se geometricamente. Na cidade e na zona rural moram não mais que 15 mil pessoas. O PIB per capita é de mais 20 mil reais, um dos maiores do País. Pudera, o município se tornou o segundo maior produtor de soja do Mato Grosso, com 1 milhão e 85 mil toneladas na safra de 2007, 7% da produção do estado. Somando com a produção de milho, algodão, feijão, a colheita do município alcançou 1 milhão e 800 mil toneladas. A produção de soja cresceu 74% desde 2002 e já alcança uma produtividade de 54 sacas/hectare, bem superior à média nacional de 47 sacas/hectare. Entretanto, essa alta produtividade não se deve à fertilidade natural do solo. No começo, a soja não se deu bem nesse cerrado, de terras fracas e ácidas, apesar de haver chuva suficiente, 2.100 mm/ ano e em época adequada. A atual terra fértil foi construída pela tecnologia. Isto é, deveu-se a uma série de procedimentos adotados ao longo de anos, como correção do solo, à média (elevada) de cinco toneladas de calcário e adubo por hectare, desenvolvimento de sementes adaptadas ao clima e resistentes às pragas, rotação anual de cultura com milho e algodão, incorporando ao solo os restos da lavoura, plantio direto e constituição de terraços para evitar erosão. E o terreno plano facilitou a A Prefeitura de Sapezal fica ao lado do prédio da Maggi, retrato de uma hegemonia Sapezal se tornou o segundo maior produtor de soja do Mato Grosso, com alta produtividade nós regularizamos lá no Intermat”. Os fazendeiros ficaram gratos ao governador, tanto que deram o nome de Campos de Júlio a um município da região. Ao mesmo tempo, André Maggi se incorporou aos planos da comunidade para criar um núcleo urbano. Ele tinha recursos e influência política suficientes para dar o impulso que faltava. André comprou outra fazenda e destinou parte de suas terras para ser o núcleo urbano de Sapezal. A cidade foi planejada juntamente com a comunidade e os terrenos foram divididos em lotes de 20 m x 60 m e 40 m x 60 m, as chamadas “datas”. Sempre negociante, André não doou os terrenos, criou uma empresa imobiliária, a Cidezal (Cia. de Desenvolvimento de Sapezal), para vendê-los. Pôs tratores e caminhões para as obras de arruamento e urbanização. Instalou abastecimento de água e energia elétrica, a partir de uma pequena usina que fez em sua fazenda Tucunaré. A seu pedido, o Banco do Brasil instalou uma agênretratodoBRASIL 14 cia na cidade. Nada disso saiu de graça, de alguma forma ele cobrou por tudo. Por exemplo, os equipamentos e materiais que cedeu para o desmatamento e a construção das ruas foi debitado e cobrado da Prefeitura quando ela se instituiu. Em parte, a construção da hidrelétrica em sua fazenda foi possível mediante a cotização dos outros produtores em troca de receberem energia gratuita em suas propriedades. Passados alguns anos, Maggi vendeu a energia produzida para a Cemat, companhia energética do estado, que a integrou à rede geral e passou a mandar a conta para os produtores. A longo prazo, Maggi passou a ter um novo e nada desprezível rendimento, mas os antigos cotistas se sentiram lesados. Nos anos iniciais, tudo era feito em consenso e com a participação ativa dos pioneiros. Foi dessa forma que a comunidade se mobilizou para promover a emancipação, e Sapezal se tornou município em 1994. Dois anos depois, André foi eleito seu primeiro prefeito. Ficou até 1998, brigou com os vereadores, renunciou a favor do seu vice, Aldir Schneider, que, naquela altura, fazia parte da “família” Maggi. Schneider governou por dois anos e se elegeu para o período 20012004. Mostrou-se independente demais. Ele conta que, por isso, sofreu pressões e ameaças e foi alijado da “família”, afinal. E esta recuperou a prefeitura. O atual prefeito é João César Maggi, primo-irmão do governador e que, evidentemente, vai se reeleger na próxima eleição, porque é candidato único. A oposição não se sentiu forte o suficiente para a disputa. Prefeito, Schneider tentou ser independente Carlos Azevedo res, de grileiros, por preços muito baixos. Experiente, escolheu um lugar espetacular, as terras em torno das cabeceiras do rio Juruena. Dois anos depois, seu amigo Júlio Campos assumiu o governo do estado. Este ficaria conhecido por ser o maior especialista em “desenrolar” negócios de terras complicadas junto ao Incra e ao Intermat. E assim foram regularizadas as terras de todos, conforme informa outro fazendeiro e empresário de Sapezal, o pioneiro Inácio Webler, dono de 10 mil hectares: “era tudo grilo e AGRICULTURA INDUSTRIAL A primeira imagem para quem chega a Sapezal é a dos gigantes armazéns graneleiros, poderosos e desafiantes, postados lado a lado na entrada da cidade, com suas estruturas metálicas brilhando ao sol. Lá estão 19 20 retratodoBRASIL 14 retratodoBRASIL 14 21 mecanização do que chamarei de “agricultura industrial” no latifúndio empresarial. Desde o início, Sapezal se caracterizou pelas grandes propriedades. Descontadas as áreas indígenas, os 850 mil hectares de terras restantes inicialmente foram apropriados por cerca de cem grandes proprietários. A concentração da propriedade da terra já reduziu esse número para cerca de 80 produtores. Desses, 12 são grandes empresas, que detêm mais da metade da área plantada e da produção. A concentração está em marcha acelerada. Em 2007, só a área plantada com soja foi de 335 mil hectares. Em rotação de culturas, foram plantados mais 120 mil hectares de milho e 57 mil hectares de algodão. São elevados os graus de organização e de mecanização do trabalho para realizar ao longo do ano as operações de preparo do solo, plantio, adubações, aplicação de veneno, colheita em duas e até três lavouras sucessivas (safrinha), transporte, armazenamento e comercialização. Exigem-se grandes investimentos, trabalhadores especializados e uma logística sofisticada. Roni César Claro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, informa que há 8 mil trabalhadores formais em atividade na agricultura no município. A mão-de-obra informal é mínima. Desses, 2 mil são trabalhadores temporários, cada vez menos em- pregados, porque quase já não há entressafra e as atividades agrícolas se sucedem umas às outras. Os salários variam de 650 reais, mãode-obra braçal, até 1,4 mil reais, o operador de máquina, que precisa ter noções de inglês para ler o manual e operar a máquina. Na maior parte do tempo, falta mão-de-obra em Sapezal. Os empresários disputam os trabalhadores mais preparados e são obrigados a contratar em outras regiões. As dez maiores empresas de Sapezal, responsáveis pela maior Poder econômico crescente amplia horizonte político. Blairo quer mais. Em 2010, vai ser candidato ao Senado parte da produção, oferecem plano de saúde, e três delas dão participação nos lucros que pode chegar a um salário e meio anual, dependendo da produtividade. Roni diz que as empresas agora buscam cumprir as leis trabalhistas e ambientais. O motivo é a obtenção do “Selo Verde”, concedido pelos ministérios e sem o qual elas não conseguem exportar. Carlos Azevedo A fazenda de Inácio Webler é uma empresa agroindustrial de alta produtividade 22 Cerca de 5 mil operários moram nas próprias fazendas. Os 3 mil que moram na cidade são transportados por ônibus das empresas. Como Sapezal não foi planejada para abrigar uma massa de trabalhadores, há falta aguda de moradia, e os que não residem nas fazendas moram mal, amontoados em quartinhos, pensões. NA FAZENDA ENCANTADO É uma produção capitalista moderna, que mobiliza grandes capitais e produz um enorme excedente do trabalho. Um exemplo vivo: na colheita de algodão na fazenda Encantado, a 20 km do centro de Sapezal, meados de agosto, havia em trabalho coordenado cinco colheitadeiras, seis caçambas para receber o produto das colheitadeiras, cinco grandes máquinas enfardadeiras, auxiliadas por oito tratores. A mão-de-obra, exceto cinco trabalhadores manuais, era composta por 20 operários com algum tipo de qualificação. Márcio, 28 anos, operador de colheitadeira, diz que recebe 1,3 mil reais por mês, com registro em carteira, 13º salário, férias e um abono por produtividade que pode superar um salário. Tem convênio médico. Solteiro, mora e se alimenta na fazenda, grátis. O dono da fazenda, Inácio Webler, 64 anos, gaúcho, descendente de alemães, acompanha pessoalmente os trabalhos da colheita. Opera uma colheitadeira, por puro prazer. Desce dela dizendo: “um algodão assim dá gosto de colher, está rendendo perto de 300 arrobas em caroço por hectare”. Com 180 arrobas/hectare já se pagam os custos. Conta que neste ano colheu soja a 55 sacas/hectare em média, e que 44 sacas/hectare pagaram os custos. Plantou 7 mil hectares de soja e depois 5 mil hectares de algodão em sua fazenda de 10 mil hectares. Também plantou milho e girassol. Vende a soja às tradings, para quem pagar melhor. O algodão é levado para a sede da fazenda, onde uma usina retira os caroços, limpa e o prensa à média de 300 fardos por dia. Embarcados em caminhão, os fardos são levados para o mercado do Sudeste. Numa usina ao lado, o caroço é esmagado para extração do óleo comestível, que também irá de caminhão para o mercado. O bagaço do caroço, misturado a farelo de soja e milho, vai virar ração para 300 bois confinados. E, assim por diante, produzindo lucros. Com seu jeito simples, Webler vai mosretratodoBRASIL 14 Divulgação Grupo Maggi/ Cortesia O porto de Itacoatiara, rio Amazonas, pôs a Maggi no mercado internacional. Tanto poderio econômico abre novos horizontes políticos para Blairo Maggi trando sua empresa. Ele é um industrial, da agricultura industrial. UM PLAYER INTERNACIONAL Os sucessos de Sapezal comprovaram a capacidade de André Maggi de olhar à frente e enxergar oportunidades. A “família” não só teve de reconhecer, mas agradecer. Em poucos anos, a fazenda Tucunaré passou a produzir muita soja. A produção dos outros empresários também se expandiu rapidamente. Aplicando em Sapezal o padrão Maggi de financiamento que “captura” o fazendeiro, logo o grupo monopolizava toda a produção, impondo os preços, porque os produtores não tinham outra fonte de financiamento nem condições de escoar a safra. Por algum tempo, a Maggi ficou praticamente só no mercado, pois as tradings concorrentes, intimidadas pela carência de estradas, demoraram a chegar. Afinal, os riscos eram grandes. Sapezal fica a 2 mil km de Santos e 2,5 mil km de Paranaguá e o frete até lá custa perto de 200 reais por tonelada, mais pedágio. Entretanto, quando chegaram, as outras tradings encontraram ainda mais dificuldade para concorrer, porque a Maggi estava abrindo um caminho exclusivo para o escoamento da safra para o Norte, a hidrovia pelo rio Madeira até Itacoatiara, no rio Amazonas, um porto para navios oceânicos. De camiretratodoBRASIL 14 nhão até Porto Velho o custo do frete cai para 90 reais por tonelada. Dali até Itacoatiara a soja segue em balsas da Hermasa, a empresa de navegação da Maggi. Itacoatiara fica muito mais próxima do mercado europeu e da Ásia que os portos do Sudeste e Sul do país. Há um grande barateamento no custo de transporte que permite à Maggi negociar diretamente com os clientes finais e obter ganhos com diferenças substanciais diante dos concorrentes. Hoje, a Maggi negocia com as outras tradings recebendo a soja que elas têm em estoque em Sapezal em troca de soja em Rondonópolis. Ou elas transportam sua soja pela hidrovia do Madeira, pagando por esse transporte à Maggi. De qualquer forma, a “família” sai ganhando. Tanto Blairo como outros dirigentes do grupo negam que Sapezal e a alternativa do caminho do Norte pela hidrovia tenham sido um projeto estrategicamente planejado no passado. Blairo admite que “era um sonho meio solto, você olhava geograficamente e observava que a soja tinha que sair para o Norte...”. Mas, desde 1989, ele já participava de negociações com representantes do Ministério do Trabalho e da Portobrás. O cenário só se tornou favorável em 1994, quando conseguiu apoio no governo federal e apresentou um projeto de sociedade ao governador Amazonino Mendes, do Amazonas. Por essa época, a chapada dos Parecis já produzia soja suficiente para justificar os investimentos. Maggi entrou com 28 milhões de reais, o estado do Amazonas, com 21 milhões de reais e o BNDES emprestou 27 milhões de reais. O presidente Fernando Henrique Cardoso inaugurou a hidrovia em abril de 1997. Em seguida, Maggi comprou a parte do governo amazonense, que, seguindo a onda neoliberal da época, desfez-se facilmente alegando que empresa de navegação não era negócio para o estado. A Maggi ficou com 95% das ações e com o empréstimo do BNDES, a longo prazo e juros baixos. Os 5% restantes são da Petrobras Distribuidora. Negócio melhor que esse é difícil. O fato inquestionável é que tanto Sapezal quanto o caminho para o Norte foram estratégicos e significaram um salto de qualidade para a empresa. Promoveram um grande aumento de sua capacidade de reprodução ampliada do capital ao viabilizar um maior controle sobre a produção e maiores ganhos do excedente de trabalho. Essa dinâmica tornou a corporação Maggi uma protagonista no mercado internacional de commodities. Esse poderio econômico amplia os horizontes políticos do líder Blairo, que não deverá ter dificuldade para se eleger senador em 2010. E depois, o que será? 23 Polícia: OS FIOS DE UMA TRAGÉDIA MOHAMMED O Popular D’ALI 24 1987- Mohammed D’Ali Carvalho dos Santos, 20 anos, não usa cocaína, crack, maconha, skank, LSD, quetamina ou outro entorpecente qualquer desde 31 de julho, quando foi preso. Isolado num pavilhão da Casa de Prisão Provisória de Goiânia, vive os sintomas da abstinência. Sente tonturas e dores. Seu corpo treme. Sua muito. Não pode dormir e seus males são parcialmente aplacados por meio dos medicamentos ministrados pelo médico da instituição. Parcialmente... Ele aguarda aflito a visita da mãe, que, até meados de agosto, mesmo tendo voltado de Londres, onde vivia, não o havia visitado, temendo o assédio da imprensa. Preferiu permanecer em São Paulo. Mohammed confessou à polícia que, na tarde de 26 de julho, um sábado, depois de cheirar cocaína e fumar crack por quatro dias seguidos, matou Cara Marie Burke, jovem inglesa de 17 anos, em seu apartamento. Depois do crime, disse Mohammed em depoimento, ele arrastou o corpo para o box do banheiro. Mais tarde, ao tomar banho, foi obrigado a reajeitar o cadáver. Depois, foi a uma festa, onde passou a noite consumindo mais cocaína. No dia seguinte, esquartejou o corpo de Cara. Colocou o tronco dentro de uma mala preta de viagem, que jogou na margem de um rio em Goiânia. Cabeça, braços e pernas foram embalados em vários sacos de lixo, jogados num ribeirão em um município 30 quilômetros a noroeste da capital goiana. Antes, com seu celular, Mohammed fotografou o corpo ainda inteiro. Fotografou também um arranjo feito com as partes do cadáver depois de tê-lo esquartejado. Na sede da seção goiana da Associaão Brasileira da Polícia Militar, o cabo reforretratodoBRASIL 14 O brutal assassinato da inglesa Cara Marie Burke pelo brasileiro Mohammed D’Ali, ambos jovens e pobres, envolve desajustes familiares, pequenos delitos, uso de drogas e o sonho de mudar de vida morando no exterior | Tânia Caliari mado Josué de Araújo Júnior, presidente da instituição, conta que, ao ver na TV o noticiário da prisão e confissão de Mohammed apenas cinco dias depois do crime, um amigo policial lhe puxou pela memória: “Lembra do cabo Santos? Ele tinha um filho chamado Mohammed D’Ali e outro, Bruce Lee, lembra? Ele gostava muito de artes marciais e de lutadores e deu esses nomes para os meninos. Será que esse menino é o filho do Santos?”. Dias depois, os jornais locais recuperaram de seus arquivos a história da morte violenta do cabo da Polícia Militar Lázaro José dos Santos, pai de Mohammed, ocorrida em 24 de outubro de 1990, dia do aniversário da cidade. Na ocasião, Santos, 26 anos, e seu cunhado, o pintor Valtercídio Ferreira da Silva, aproveitavam o feriado para pescar nos arredores de Goiânia. Foram numa moto. Três dias depois, seus corpos foram encontrados numa fazenda no município de Trindade, com as cabeças cobertas com sacos plásticos. Segundo as reportagens da época, eles foram mortos com tiros, pauladas e enforcamento. Santos também apresentava sinais de tortura: teve suas orelhas, nariz e órgãos genitais decepados, olhos perfurados, pernas quebradas e dedos cortados. No chão, marcas de pneus e sinais de que os corpos tinham sido arrastados por algum veículo. Na ocasião, o coronel Jaime Carlos Flores e Silva, então comandante do Regimento de Polícia Montada, no qual Santos era lotado, disse que o cabo era um policial exemplar e que a morte teria sido uma represália por parte de alretratodoBRASIL 14 guém que ele tivesse abordado durante o trabalho. Para uns, o cabo Santos se enquadra no modelo descrito pelo coronel. Para outros, ouvidos nesta reportagem, era um policial violento, que supliciava suspeitos antes de entregá-los à delegacia. Na ficha oficial do cabo na PM, há pelo menos uma prisão disciplinar de oito dias por ter agido com violência desnecessária durante uma detenção. A crueldade empregada em seu assassinato parece indicar uma forma de vingança. Teria sido em decorrência de uma rotineira forma violenta de agir quando em serviço? É uma hipótese que Retrato do Brasil não pode comprovar. O QUE FOI FEITO DELES? O que é claro, pelo testemunho de Araújo, é que a morte de Santos abalou familiares e colegas. “Eu me lembro de dois meninos bem pequenos no meio de todo mundo, chorando e pedindo: ‘levanta, papai, levanta...’. Aí, todo mundo que estava lá caiu no choro também. Um de nossos companheiros teve uma crise e, logo depois, deu baixa na PM”, conta o cabo. Ele conduz a reportagem até um barracão nos fundos de uma chácara. Ali, onde a família de Santos morava de favor, ocorreu o velório. “Na época, isso aqui era um setor de chácaras, e os bairros em torno, onde fazíamos a radiopatrulha, eram bem violentos. Hoje, mesmo com a droga por toda parte, isso aqui melhorou muito, não tem tanto cara de periferia”, diz Araújo, que chegou a dividir a viatura da radiopatrulha com Santos. Para Araújo, o assassinato signi- ficou o distanciamento da família do colega. “Depois daquele velório, nunca mais ouvi falar dos meninos nem da esposa do cabo. O que foi feito deles?” Ivany Carvalho dos Santos, a viúva do cabo Santos, não teve uma vida fácil desde o assassinato do marido. Aliás, nunca teve. Não são muitas as informações obtidas por RB a respeito dela. Tanto em razão de ela não ter parentes próximos em Goiânia quanto pela aversão que seus conhecidos têm ao assédio da imprensa após a morte de Cara. Apuramos que ela cedo se casou, teve filhos e assumiu o sustento da família. A mãe de Bruce Lee e Mohammed D’Ali, hoje com cerca de 40 anos, teria sido criada fora de seu círculo familiar por uma mulher que a maltratava. Com 14 anos, teria ido morar com Santos. Aos 18, com o companheiro recém-admitido na Polícia Militar, casaram-se. Seu primeiro filho nasceu no mesmo ano. Bonita, cabelos negros que chegavam à cintura, ficou viúva aos 22. Como a pensão da PM demorou a sair, Ivany foi trabalhar no turno da noite de uma fábrica de condimentos. Deixava os filhos pequenos trancados em casa. “Quem garante que os meninos não acordavam à noite procurando a mãe”, indaga Jane, que tinha 14 anos à época da morte de Santos e cuja família passou a ser um apoio para a viúva e os meninos. Em 2000, Ivany tomou a decisão de trabalhar no exterior. Se lhe faltava formação profissional, sobrava coragem para emigrar e levar os filhos, então com 12 e 14 anos de idade. Seguiu para o estado da 25 Geórgia, nos EUA. Lá, enfrentou a clandestinidade e o trabalho duro em serviços gerais, limpeza e afins. Milhares de jovens trabalhadores de Goiânia, geralmente sem qualificação, como a mãe de Mohammed, deparam-se com esse tipo de dificuldade e, tal como ela, buscam no estrangeiro uma perspectiva melhor para suas vidas. Hoje há entre 250 mil e 300 mil goianos trabalhando no exterior, compondo a maior comunidade de brasileiros fora do País. Se antes o destino da maioria eram os EUA, depois dos atentados do 11 de Setembro e de o México passar a exigir visto de entrada para os brasileiros, a opção passou a ser a Europa. “Eles vão para melhorar a vida e pelo exemplo que têm de parentes que conseguiram alguma coisa”, explica, com pesado sotaque, Elie Chediac, brasileiro de origem libanesa criado na França, assessor de Assuntos Internacionais do estado de Goiás, responsável pela assistência consular aos emigrantes do estado. “SEMPRE FOI MIUDINHO” Chediac destaca a importância de ter parentes no exterior. “Os imigrantes chegam já com uma rede de apoio”. Algo de grande importância, pois “a maioria enfrenta uma vida de subemprego e de alto risco, pois não têm direitos trabalhistas nem civis”, diz. A idade dos goianos que se aventuram nessas jornadas varia de 22 a 45 anos. “Eles são os responsáveis por aproximadamente 15% dos 8 bilhões de dólares enviados ao País pelos imigrantes brasileiros no ano passado”, avalia o funcionário. Num fim de tarde, no modesto bar no jardim Novo Mundo, onde são vendidos espetinhos de carne como tira-gosto e frango assado aos domingo, Jane e sua mãe, dona Isabel, tentam pontuar a trajetória de Ivany e sua família. Falam sobre a infância e a personalidade de Mohammed. “Ia lá em casa desde menino, e se eu não desse o prato de comida na mão dele, ele não comia. Sempre foi miudinho, quieto...”, diz dona Isabel. Ela parece sofrer por não poder fazer o tempo voltar para cuidar do menino tímido, pois criou, além de seus próprios filhos, alguns parentes, netos e enteados. Para Bruce e Mohammed, a temporada americana acabou em 2003. Bruce terminou o segundo grau nos EUA e entrou 26 numa faculdade quando voltou para Goiânia, cursando administração de empresas. Ivany permaneceu nos EUA e continuou enviando dinheiro para manter o padrão de vida da família e financiar os estudos dos filhos, o que ela via como um trampolim para ascensão social. Contratou uma irmã de Jane para cuidar da casa, onde eles passaram a morar. A essa altura, entretanto, os adolescentes já não se deixavam controlar. Mohammed estabeleceu seu universo na própria Vila Moraes. Amigos, festas e drogas faziam parte de seu mundo. Quando o dinheiro acabava e não havia como comprar drogas, ele cheirava gás de cozinha, muitas vezes diante dos olhos incrédulos de Jane. “Ele cortava a mangueirinha e cheirava. Às vezes, um botijão que dura um mês durava três dias só”. Nessa fase, foram registradas, pelo menos, duas passagens de Mohammed, ainda menor de idade, pela polícia. Em uma delas, acompanhado de Bruce Lee, atirou três vezes contra outro rapaz, sem acertálo, por causa de um incidente de trânsito. Da outra vez, permaneceu preso por seis meses no Centro de Internação Provisória e no Centro de Internação de Adolescentes (CIA) de Goiânia. Foi condenado por roubo e desmanche de carro, além de porte ilegal de arma. Em 2005, Mohammed obteve o benefício da liberdade assistida. No fim do ano, Ivany, que voltara dos EUA especialmente para amparar o filho, conseguiu uma autorização judicial e embarcou com os rapazes para Londres. Apoiada por amigos goianos que moravam na Inglaterra, ela iniciou outra etapa em sua vida. Jane participou dessa fase até recentemente. Em Londres, ela dividiu a casa com Ivany, seus filhos e mais um brasileiro, de janeiro a junho deste ano. Eles viviam no bairro de Seven Sisters, numa região de grande diversidade étnica, que reúne comunidades de sul-americanos, caribenhos, africanos e turcos. A despeito de informações contraditórias, algumas desabonadoras, com relação às atividades da família em Londres e à fama de arruaceiros de Mohammed e Bruce, Jane atesta a boa convivência entre os irmãos e o empenho de Ivany para levantar dinheiro, fazendo faxinas, cuidando de idosos, e de Bruce, chefe de uma agência de courrier, motoqueiros que entregam encomendas entre cidades. “A Ivany é muito simples. Veste roupa comprada em camelô, come qualquer coisa, mas para os seus filhos dá sempre do melhor, como roupa de marca, sapato de shopping... Pagou escola boa aqui. Parece que, com isso, quer compensar as dificuldades da infância dos meninos, e mesmo da dela. Não deixava o Diali trabalhar. Quando eu disse a ela que os repórteres aqui questionaram se a mesada de 2 mil reais não era muito para um rapaz que não trabalhava nem estudava, ela simplesmente me disse: ‘Eu posso dar isso para ele. Ele não precisa trabalhar’. Parece que ela não entende...” Quando Mohammed retornou ao Brasil em abril passado, encontrou, ao chegar, um apartamento pronto para morar no setor Leste Universitário, bairro de classe média consolidada criado em torno de universidades e faculdades. Ivany tinha enviado dinheiro para uma conhecida, que alugou o imóvel e comprou a mobília. Além de mesada, a mãe enviava dinheiro para cobrir despesas do dia-a-dia e para pagar uma empregada doméstica. Ivany deu a Mohammed dinheiro para comprar à vista um carro equipado até com aparelho de DVD, que acabou em perda total num acidente. “IMAGINE 4 DIAS DE COCAÍNA” No retorno à capital goiana, Mohammed voltou a usar drogas em companhia dos amigos que deixara quando se mudou para Londres. Em seu depoimento oficial no inquérito, assinado com letra miúda e infantil, Mohammed afirma que usava todo tipo de drogas: “skank, LSD, cocaína, MGA, ácido, quetamina, balão...”. O advogado do rapaz, Carlos Trajano, pretende pedir exames de dependência química e de saúde mental de Mohammed. Segundo Trajano e familiares, ele sempre soube do assassinato do pai e é revoltado pelo fato de o crime não ter sido solucionado. Mas só conheceu os detalhes cruéis por meio de um repórter de uma emissora de TV goiana, quando já estava preso pelo assassinato de Cara. “A morte do pai pode ter sido uma tragédia na vida da criança, mas alegar isso para justificar esse outro crime bárbaro, não!”, diz o delegado titular da Delegacia de Homicídios de Goiânia, Jorge Moreira, 26 anos de polícia. “É subestimar a dor de toda pessoa que soretratodoBRASIL 14 O Popular freu traumas até maiores, e nem por isso sai matando por aí”. Moreira chega à delegacia usando camiseta com estampa de camuflagem e calça jeans, traje apropriado para o calor de Goiânia no fim do inverno, mas nada usual entre delegados, geralmente engravatados. “É que eu estava no mato, numa diligência. Fomos prender um peão que matou outro por uma dívida, e que estava cheio de cachaça”. “Se a cachaça deixa o sujeito valente, imagine quatro dias usando cocaína e crack... A droga também não justifica o crime de Mohammed, mas deu energia para a ação”, diz Moreira, responsável pelo inquérito sobre o assassinato de Cara, quase concluído. Mohammed foi indiciado no dia 8 de agosto por homicídio triplamente qualificado – de forma torpe, sem chance de defesa e com vilipêndio –, o que o torna um crime hediondo. “Ele foi frio, cruel e até produziu provas contra si”, diz o delegado, jogando sobre a mesa a impressionante foto da menina esquartejada encontrada no celular de Mohammed. O delegado, para quem os jovens de hoje são “moderninhos demais”, acha que a vítima, Cara, também não era “santa”. “O que uma menina de 17 anos, inglesa, que nem falava português direito, estava fazendo aqui em Goiânia, sem sua família?” Cara estava pela segunda vez em Goiânia em menos de quatro meses. Chegou, pela primeira vez, em 9 de abril, com Mohammed. Voltou no início de maio para Londres. E retornou a Goiânia no dia 22 do mesmo mês. É isso que mostram os carimbos em seu passaporte britânico, elegantemente decorado com silhuetas de aves em papel policromado. O passaporte, no entanto, não pode responder a respeito de quem financiou as vindas e idas de Cara, um dos muitos fatos sobre os quais há várias versões. Alguns dizem que ela voltou à Inglaterra porque sua mãe, Anne Marie, estava hospitalizada. Esta disse que desconfia que a filha tenha sido usada para fazer tráfico de drogas nessa viagem. Há, no entanto, certo consenso de que as primeiras passagens, de vinda e de volta, foram pagas por Ivany. Os jovens se conheciam desde 2005, unidos pelas amizades brasileiras em Londres, o gosto pelo futebol e por uma vida solta de juventude. Não se sabe ao certo retratodoBRASIL 14 CARA MARIE BURKE 1991-2008 27 “ERA DOIDINHA” Ao contar as desventuras da filha ao jornal sensacionalista inglês Mirror, Anne Marie disse que, até os 12 anos, a esperança e o alvo da dedicação de Cara era o clube de futebol Chelsea. Quando sua vida em Londres se complicou devido às condenações, surgiu uma nova coincidência nas histórias de vítima e algoz, que buscaram na migração uma saída para resolver seus problemas e desajustes. Mal teve a pulseira eletrônica retirada, Cara embarcou para o Brasil com o amigo Mohammed. Embora a família de Mohammed negue, haveria, inclusive, planos para um casamento que garantisse a livre circulação dos dois nos dois países. Cara ganharia algum dinheiro por esse suposto trato, sobre o qual, inclusive, faz referência numa mensagem que enviou a Mohammed na noite anterior à sua morte. O plano de um casamento por conveniência contribuiu para que muita gente acreditasse que eles eram namorados, como foi amplamente divulgado na im28 O Popular quem pagou a segunda vinda de Cara. Mohammed diz que teria sido um novo namorado. Todas essas dúvidas, entretanto, não encobrem diversas semelhanças entre as vidas dos dois jovens. Assim como Mohammed, Cara já estivera presa numa instituição punitiva para menores em Londres. Ela também perdeu o pai quando era criança e, igualmente, de forma trágica: ele morreu jovem, aos 32 anos, vítima de overdose de drogas. Anne Marie, como Ivany, também fez serviços de limpeza para criar ela e outros dois irmãos mais velhos. Sem pouso certo desde que saíra da casa da mãe em Southfields, um distrito suburbano no sudoeste da grande Londres, Cara, em 2004, foi expulsa da escola por roubar um colega. Nessa época, por ter importunado seus vizinhos, foi enquadrada como Asbo (anti-social behavoir order), classificação dada a pessoas de comportamento considerado anti-social. Por fim, passou seis meses internada num instituto de menores infratores por ter violado a punição que recebeu da Asbo e participado de um roubo. Foi solta, mas teve de portar uma pulseira eletrônica, que permitia à polícia vigiar seus movimentos, e esteve proibida de entrar nas lojas de seu bairro. Os amigos Cara Burke e Mohammed D’Ali: vidas com muito em comum prensa brasileira. Mas, pelo que relatam amigos de Cara em Goiânia, parece que eles eram apenas amigos. Em seu depoimento, Mohammed confirma essa versão. Afirma que, logo que se conheceram, eles tiveram relações sexuais apenas duas vezes. Depois, restou a amizade. No início de sua estada no Brasil, Cara viveu no apartamento de Mohammed e, aparentemente, era sustentada por ele. “Ela comia o que eu comia”, disse o rapaz no depoimento. Quando retornou a Goiânia, no entanto, Cara procurou se afastar do cotidiano de drogas do amigo. A busca por informações sobre esse ponto do caso levou a reportagem novamente ao jardim Novo Mundo. Foi ali que Cara fez, em poucas semanas, amizade com gente simples, fora da esfera de influência de Mohammed. “GENTE BOA DEMAIS” No fim de maio, ela procurou dona Elizete, mãe de Wendel, um ex-namorado brasileiro que ainda vive em Londres. Sentada no fundo de sua lojinha de produtos evangélicos na avenida Nova York, Elizete, 48 anos, interrompe seu crochê disposta a falar de sua convivência com Cara, que a chamava de “mãe”. “Era doidinha. Se vestia como um rapazinho. Aparecia aqui de moto, sem capacete, e eu falava pra ela ‘dange, dange’”, diz, rindo das palavras de seu inglês improvisado, com as quais pretendia alertá-la dos perigos. Antes mesmo de conhecê-la, quando o filho contou sobre a namorada nova em Londres, Elizete levou a foto de Cara para a igreja pentecostal Pedra Viva para que orassem pelo namoro do filho. Mas Wendel, segundo a mãe “um rapaz ajuizado de 30 anos, que não bebe e não fuma”, e que havia migrado com um grupo de quatro primos em 2005 para trabalhar como motoboy, terminou o romance quando soube das amizades de Cara em Goiânia. “Eu a continuei amando”, diz Elizete, “Continuo afirmando que ela não gostava de drogas. As confusões que ela fazia láem Londres eram só para bagunçar. Parece que faltava carinho e atenção a ela, mas não era uma marginal”. As amizades de Cara no jardim Novo Mundo se concentraram no entorno da praça George Washington, uma árida rotatória com um centro comunitário, em meio a vários quarteirões de construções baixas. Ela sempre parava para conversar no salão de beleza de Cláudia Pereira, que chegou a hospedá-la por alguns dias. A cabeleireira foi quem identificou seu tronco no Instituto Médico Legal, ao reconhecer uma tatuagem. Outro local freqüentado por Cara no bairro era uma lan house, cuja dona, Cristiane, ela chamava de irmã. “Ela adorava aqui, adorava meu filhinho de 11 meses, só não gostava da comida. Arroz e feijão não eram com ela. Ela pegava qualquer bicicleta que estivesse parada aqui na porta e saía andando. Tive que falar pra ela várias vezes que aqui não era assim não”, diz Cristiane. “Era gente boa deretratodoBRASIL 14 mais”. Os que a conheceram viam em Cara uma moça expansiva, mas carente, que parecia buscar uma família nos amigos que havia feito há poucas semanas. Cara havia decidido retornar novamente à Inglaterra. Sua partida estava marcada para o dia 20 de junho. Um dia antes, entretanto, sofreu um acidente de moto e passou dois dias sob observação na casa de Elizete. Adiou o retorno para 3 de agosto. Telefonou a Mohammed, para que ele a aceitasse de volta no apartamento até o seu embarque. É provável que tentasse se livrar do zelo talvez excessivo de Elizete, que passou a tratá-la como filha e a controlar seus passos. Foi combinar a mudança naquele sábado à tarde em que encontrou o amigo mergulhado na cocaína há dias. O estopim de seu assassinato foi aceso quando Cara viu o estado de Mohammed. Ameaçou chamar a polícia e avisar sua mãe. Há muito o criticava por gastar o dinheiro enviado por Ivany com drogas. De acordo com o depoimento de Mohammed, diante das ameaças da amiga, ele foi até a cozinha e pegou uma faca para “passar medo nela”. Quando voltou, Cara estava ao celular. Disse que ligava para a polícia. Mohammed diz que só se lembra de caminhar para o seu lado e depois vêla morta no chão, entre o sofá e a TV. “FOI A MELHOR FORMA” “Esse seria um crime qualquer, de drogado que mata alguém, se ele não tivesse esquartejado a menina”, avalia Jane. “E não teria todo esse destaque, toda essa cobertura, você não estaria aqui...”, diz, recriminando a atitude sensacionalista da imprensa. Pode ser. Por que Mohammed esquartejou o corpo? Ele mesmo explicou no depoimento, apresentando motivos lógicos e racionais: precisava retirar o cadáver do local e a forma mais discreta de fazer isso foi cortá-lo em pedaços para que pudesse ser transportado sem despertar suspeitas. “O desespero de tirar o corpo de dentro do apartamento me deu coragem. Foi a melhor forma que eu encontrei, pôr dentro da mala”. Mohammed lamentou que a disposição da mala com o tronco de Cara tenha fracassado. “A mala deveria ter caído dentro do rio”, disse. Para o advogado do assassino, seu cliente não demonstrou crueldade ao cortar Cara, pois ela já estava morta. “O que ele demonstrou foi desretratodoBRASIL 14 29 O Popular tificado por Mohammed ao delegado como Abraham, pergunta por que teria matado Cara, ele respondeu em inglês: “porque a garota estava dizendo merda e disse que eu não poderia fazer merda para ninguém, então eu tive que mostrar a ela o que eu posso fazer com alguém”. Em mensagem para outro amigo, em português, disse: “joguei a cara pro sako dpois te mando a foto dos pedaços dela pod crê [sic]”. Parece que, no desespero depois do crime, Mohammed precisava mostrar para amigos nos dois continentes que tinha finalmente realizado algo. ALGO ALÉM DA DROGA Mohammed nas buscas para achar o corpo: •”a mala deveria ter caído no rio” prezo pelo cadáver, e não crueldade para ferir alguém”, diz Trajano. O advogado pode ter razão. Sob um exame mais sereno, é possível concluir que a marca mais escabrosa do crime não foi o esquartejamento, que, no caso, tinha um objetivo racional e certamente exigiu enorme frieza para ser executado. Mas, e as fotos que Mohammed tirou com seu celular e mostrou a conhecidos? E os comentários que fez nas mensagens que trocou com amigos de Londres após o assassinato? Como explicar? 30 “Tirei a foto para mandar para um brasileiro na Inglaterra, que queria matar a Cara por ela ter roubado um dinheiro dele”, disse ele à polícia. “Eu ia mandar para ele por e-mail para mostrar que o que ele não teve coragem de fazer alguém aqui teve”. Uma explicação que passa longe da racionalidade e frieza demonstrada no esquartejamento, pois o expôs de forma desnecessária. Mohammed também evocou coragem nas mensagens que trocou com um amigo londrino pelo celular. Quando Abm, iden- Ao analisar a tragédia ocorrida com o filho de seu colega em um artigo de jornal, o cabo Araújo, sem querer justificar a atitude de Mohammed D’Ali, chama a atenção para um aspecto importante. “Acredito que se a instituição da Polícia Militar de Goiás, as comissões de direitos humanos da OAB, Câmara Municipal, Assembléia Legislativa ou Câmara Federal tivessem oferecido um acompanhamento psicológico aos filhos do cabo Santos na época de seu assassinato, talvez essa tragédia tivesse sido evitada”. Araújo diz que estão em curso nesse momento outros casos de desamparo psicológico a famílias de policiais. “Será que alguém poderá imaginar que estamos correndo o mesmo risco de esses filhos cometerem algum absurdo como no caso de Mohammed D’Ali?” Chediac, o funcionário do governo goiano encarregado de acompanhar os emigrantes, aponta para outra questão. “Vejo pelo menos um ponto em comum entre o rapaz que matou e a moça que morreu, que é a desagregação de suas famílias com as mortes de seus pais quando [aqueles] eram muito novos”, diz. “Tamanha ofensa à moça e à sociedade tem que ter explicação além do uso de droga. Talvez seja a falta de referência dessas crianças para entenderem que nem tudo pode ser permitido”. Chediac, dedicado a casos de brasileiros fora do País, recebeu no início de agosto um missão atípica: cuidar da burocracia e do traslado do cadáver de Cara, que, pela falta de recursos de sua família, será pago por uma irlandesa anônima que doou cerca de 20 mil reais. Chediac aguarda o fim do inquérito e a autorização judicial para enviar para Londres as partes do corpo da jovem inglesa, numa caixa de zinco lacrada. retratodoBRASIL 14 Livros: O PODER NO BRASIL COLONIAL Rugendas/ Reprodução Nos tempos coloniais no Brasil, as lutas sociais entre as elites eram, ao mesmo tempo, mais simples e mais complicadas em relação às que ocorrem na sociedade brasileira contemporânea. É o que mostra o livro Conquistadores e negociantes – Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII, uma coletânea de artigos organizada pelos historiadores da chamada “escola do Rio”, na maioria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), João Luis Ribeiro Fragoso, Carla Maria Carvalho de Almeida e Antonio Carlos Jucá de Sampaio. As lutas sociais entre as elites coloniais, segundo mostra o livro, eram mais simples do que as entre as elites atuais, pois envolviam menor número de participantes. Havia a elite dos “conquistadores”, isto é, as famílias descendentes dos que haviam conquistado as terras dos índios e que se estabeleceram, preferencialmente, como proprietárias de terras em que vigorava o trabalho escravo, e havia a elite dos “negociantes”, na maioria portugueses, que dominavam o tráfico de escravos, o comércio exportador, o comércio entre cidade e campo e os rudimentos do sistema de crédito que então existia. Fora isso, o que havia de elite na sociedade colonial eram uns poucos representantes da Coroa portuguesa. retratodoBRASIL 14 Atualmente, em contrapartida, temos, entre as elites, a burguesia industrial, a comercial, a financeira, a agrária; setores privilegiados dos profissionais liberais, da classe média intelectualizada e dos próprios intelectuais orgânicos que, em tese, defendem os interesses dos assalariados em geral ou de categorias deles em particular. Temos também os políticos, entrelaçados com essas diferentes camadas. Ao mesmo tempo, as relações entre as elites na Colônia eram mais complicadas do que as de hoje, quando prevalecem as relações de força na economia e, secundariamente, na política. Segundo mostram, com notável uniformidade metodológica, os treze artigos que formam o livro coordenado por Fragoso, Almeida e Sampaio, na sociedade colonial, eram importantes, além daquelas entre os poderes econômicos das diferentes “classes”, também as relações entre os diversos graus de prestígio e as diferentes genealogias dos vários “estamentos” nas relações de poder. NOBREZA PRINCIPAL DA TERRA As classes dominam, os estamentos governam. A velha frase do sociólogo alemão Max Weber, na passagem do século XIX para o século XX, vale para o que Conquistadores e negociantes denomina como “nobreza principal da terra”. Assim como Marcaram a cena política da época as disputas e associações entre descendentes dos pioneiros europeus e comerciantes ricos que ou aportaram mais tarde, sob o manto da Coroa, ou eram exescravos | Renato Pompeu a antiga nobreza portuguesa da Metrópole – constituída por descendentes dos soldados que haviam sido fundamentais na Reconquista militar das terras de Portugal e da Península Ibérica em geral, até então dominadas pelos chamados mouros –, independentemente de sua origem social remota e de sua prosperidade econômica atual, os naturais do Brasil, igualmente independentemente de sua origem social remota e de sua prosperidade econômica atual, também se julgavam – e eram em grande parte julgados – constituintes da nobreza principal da terra. Essa nobreza era vista como principal em relação às nobrezas mais recentes, compostas de integrantes de quaisquer origens titulados como nobres pela Coroa em razão de terem alcançado grande poder político ou administrativo. Com muito mais razão, essa nobreza principal da terra se julgava superior aos não-titulados, por mais ricos e poderosos que estes fossem. Assim, torna-se mais analítico, como que microfotografado, o quadro sintético das relações de poder na Colônia, quadro herdado dos grandes intelectuais dos anos 1930, como Caio Prado Jr. e outros. Em vez de confrontos Metrópole versus Colônia e senhores de terra versus escravos, o que temos na “escola do Rio” é um quadro mais nuançado. Nele, o poder dominante, político e econômico, era a “nobreza principal da terra”, que detinha, na prática, a totalidade dos cargos de camaristas (vereadores) e, em grau menor, os cargos de capitães-mores (equivalentes aos governadores e prefeitos de hoje, governantes de cada capitania e de cada vila, nomea31 dos pela Coroa) – e também a totalidade das funções de eleitores que escolhiam os camaristas. A “nobreza principal da terra” em grande parte se confundia com os senhores agrários donos de escravos, mas não era essa a fonte do seu poder. Independentemente do poder econômico do indivíduo, bastava-lhe ser descendente dos “conquistadores” para ter condições de aspirar ao poder político que lhes era reservado. Do poder político, portanto, estavam excluídos, por mais poderosos economicamente que fossem, os negociantes que não tivessem se aliado por casamento à nobreza principal da terra, mesmo que fossem titulados como nobres pela Coroa. Um fidalgo “de sangue”, descendente de conquistadores, ainda que estivesse arruinado e só tivesse como posse “um negrinho”, era mais viável a um cargo de camarista ou mesmo à função de açougueiro único da cidade ou vila, nomeado pelos camaristas, do que um rico traficante fidalgo “da corte”, mesmo que fosse devedor de créditos adiantados pelo negociante. Segundo os autores, o fato de a “nobreza principal da terra” ser constituída de naturais do Brasil e de os negociantes e traficantes serem, em sua maioria, portu>> CONQUISTADORES E NEGOCIANTES Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII autores João Luis Ribeiro Fragoso, Carla Maria Carvalho de Almeida, Antonio Carlos Jucá de Sampaio (Orgs.) editora Civilização Brasileira ano 2007 no de páginas 462 preço sugerido R$ 55 gueses de nascimento não implicava, de modo algum, um protonacionalismo. Não havia uma disputa entre “fidalgos de sangue brasileiros” e “fidalgos da corte e nãofidalgos portugueses”, pois a nobreza principal da terra brasílica era fiel súdita da Coroa, considerava que, em nome dela, seus ancestrais haviam conquistado as terras da América portuguesa e não fazia nenhuma restrição aos integrantes da antiga nobreza portuguesa descendente dos soldados que haviam conquistado, ou reconquistado, as terras secularmente ocupadas por muçulmanos. A disputa era entre “fidalgos de sangue do Brasil e de Portugal” 32 contra “fidalgos da corte e não-fidalgos do Brasil e de Portugal”. O que havia de surpreendente nisso tudo era que a “nobreza principal da terra” do Brasil não era titulada pela Coroa, ao contrário da “nobreza principal” de Portugal. A Coroa, na maioria dos casos, dava títulos de nobreza, no Brasil, a altos funcionários administrativos ou a grandes negociantes e traficantes. Porém, a força dos costumes herdados da Metrópole prevalecia, e a “nobreza principal da terra” continuou dominando os cargos de camaristas e impondo preços não determinados pelo mercado, e sim por seus interesses, por mais que autoridades e negociantes dirigissem petições à Coroa se queixando dessa situação. SEGUNDO ESTADO E MEIO Apesar de não conceder títulos à “nobreza principal da terra” e aos negociantes que a esta se associavam pelo casamento, a Coroa outorgava aos conquistadores e negociantes a ela ligados algumas “mercês” e privilégios, como o cargo de eleitor, mas isso raramente ou nunca atingia o grau maior de privilégio outorgado à antiga nobreza militar portuguesa ou mesmo à nobreza da corte de Lisboa. O Brasil inteiro era considerado pela Coroa um “Terceiro Estado”, isto é, seus estamentos de nobreza e clero não eram reconhecidos como tais, mas apenas como povo. No máximo, os nobres da terra eram tidos como uma espécie de “segundo Estado e meio”. Isso não impedia, no entanto, que a “nobreza principal da terra” dominasse os cargos de eleitores, camaristas e capitães-mores, além de outros, no território da Colônia. Outra vertente que o livro explora é a ascensão social entre os negociantes. A sociedade estamental da Colônia não era imune à mobilidade social, porém, esta se dava em situação bem diferente da sociedade moderna, plenamente capitalista, na qual o que conta, quase exclusivamente, para a determinação do status é a posse de bens. Era preciso algo mais: a consideração como nobre é que dava acesso à consideração como “grande” na escala social. Um nobre pobre tinha mais consideração social e mais poder político do que um negociante rico que não fosse associado à “nobreza principal da terra” pelo casamento, não constando, assim, da genealogia dos descendentes dos primeiros “conquistado- res” de terras. Até mesmo um negociante que se tornasse proprietário agrário escravista, mesmo em grandes proporções, não detinha a consideração social e o poder político garantidos a um “fidalgo com um só negrinho”. Era necessário que o novo senhor de terras tivesse algo mais além dos bens materiais, das terras e dos escravos para que fosse considerado “grande” na sociedade. Porém, dentro desse quadro, havia uma mobilidade social razoavelmente intensa na Colônia. Um caixeiro, por exemplo, que trabalhasse para um negociante podia prosperar, abrir o seu próprio negócio e chegar ao ponto de adquirir terras e escravos, aumentando seu poderio econômico e podendo até se tornar credor dos “grandes”. Isso lhe dava poder econômico e algum status social, mas não o melhor acesso ao poder político, só possível no caso de aliança matrimonial com alguma família “grande”. O mais notável é que esse caixeiro em ascensão, ou qualquer negociante, podia ser um ex-escravo ou um descendente liberto de escravos que estava livre para subir na vida, independentemente de qual fosse a cor de sua pele. Contudo, quanto menos escura ou quanto mais clara esta fosse, mais fácil era o caminho. Como qualquer caixeiro que chegasse a negociante e pudesse se transformar em senhor agrário escravista, o ex-escravo ou descendente de escravos que trilhasse esse caminho podia também se associar, pelo casamento, à “nobreza principal da terra”, embora com mais dificuldade do que os brancos. As pessoas até mesmo “mudavam de cor” conforme a sua ascensão social. Nos registros feitos pelas autoridades, o indivíduo podia passar de “negro” a “pardo” e de “pardo” a “branco”, não conforme sua cor real de pele, mas conforme o status social que tivesse alcançado. Assim, se concordarmos com as teses expostas no livro, teremos de concordar que o preconceito no Brasil tem mais origem “social” do que “racial”, mesmo porque os autores rejeitam o conceito biológico de “raça”. Um ex-escravo podia, assim, se tornar, ele próprio, proprietário de escravos. RENATO POMPEU é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O mundo como obra de arte criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, 2006. retratodoBRASIL 14 Folha Imagem Futebol: O futebol é um esporte muito simples. Qualquer pequeno grupo de crianças, em qualquer parte do globo, pode improvisar uma bola de meia, usar uma latinha ou até uma pequena pedra e sair chutando por aí, mais ou menos como se fazia na China há alguns milhares de anos, como disse Eduardo Galeano, grande escritor uruguaio e fã do esporte, em seu livro Futebol: ao sol e à sombra. Segundo Galeano, é bem provável que os chineses tenham sido os inventores das bases do futebol ainda durante o período neolítico, quando bolas de pedra eram manufaturadas para que habitantes da província de Shan Xi pudessem chutá-las. Mais tarde, durante a dinastia dos Han (206 a.C. – 220 d.C.), jogava-se o cuju (ou tsutchu, que significa golpe na bola com o pé), que possuía regras muito semelhantes às do futebol conhecido atualmente, praticado nas ruas e em terrenos baldios por crianças, adolescentes e adultos, que comemoram com êxtase cada vez que a bola passa entre as “balizas”, muitas vezes formadas apenas pelos chinelos de algum dos jogadores e separadas por uma distância aleatoriamente escolhida. E é essa retratodoBRASIL 14 PERDENDO SEUS CRAQUES simplicidade que faz do futebol o esporte mais popular do planeta e lhe dá um poder tão grande, a ponto de sua Copa do Mundo ser o único evento esportivo, além dos Jogos Olímpicos, capaz de emocionar e mobilizar povos de todos os continentes. Nas últimas décadas, essa força acabou se transferindo para os negócios que giram em torno do esporte. Hoje, o futebol movimenta uma economia que chega à casa dos bilhões de dólares. Na temporada 2006-2007, os 20 maiores clubes do mundo atingiram uma receita combinada equivalente a 5,4 bilhões de dólares. PARTICIPAÇÃO SECUNDÁRIA Como em quase todas as áreas da economia mundial, o dinheiro do fute- Os clubes europeus fazem do esporte um negócio milionário. Os brasileiros mal se sustentam exportando jogadores | Rafael Hernandes bol é distribuído desigualmente. O Brasil, por exemplo, que produz regularmente jogadores de alta qualidade e cuja seleção possui o maior número de títulos mundiais, exerce papel secundário nesse negócio. A começar pelo volume das receitas de nossos principais clubes, nenhum deles relacionado entre os maiores do mundo, que, em 2007, foi de cerca de 815 milhões de dólares. Segundo a Casual Auditores Independentes, empresa especializada em entidades esportivas e responsável por estudo realizado com informações financeiras obtidas nas demonstrações contábeis dos clubes de maior receita do País, esse é o maior valor alcançado desde que esses dados começaram a ser di33 vulgados. Amir Somoggi, da Casual, diz que essa renda advém principalmente de fontes como a venda de direitos de transmissão para a TV e das arrecadações obtidas com esporte amador, com o setor social do clube e com o marketing. O dinheiro da TV tem lugar de destaque na arrecadação, há alguns anos, e chegou até a ocupar a primeira posição. Levando em conta somente as transmissões do Campeonato Brasileiro negociadas pelo Clube dos 13 (grupo formado pelos mais tradicionais times nacionais) com a TV Globo, em 2008 essa fonte de arrecadação deve gerar 300 milhões de reais para os clubes, receita que deve subir nos próximos anos com a disputa cada vez mais acirrada entre as emissoras pela liderança da audiência. Os departamentos social e amador dos clubes, por um bom tempo considerados deficitários, devido à arrecadação marginal que obtinham, passaram a ser encarados de forma diferente nos últimos anos: em 2007, tornaram-se a terceira principal fonte de receita. Há dois clubes que merecem destaque nessa área, ambos de Porto Alegre: Internacional, que arrecadou 20,1 milhões, e Grêmio, que obteve 18,5 milhões. Apesar de ser uma atividade incipiente no futebol brasileiro, o marketing demonstrou crescimento superior ao das demais fontes: entre 2003 e 2007, a arrecadação proveniente dessa atividade entre os principais clubes de futebol do País saltou de 59 milhões de reais para 145 milhões de reais. UM TERÇO, TRANSFERÊNCIAS A maior fonte de arrecadação, no entanto, não vem da exploração do espetáculo esportivo ou da paixão dos torcedores e associados. A transferência de atletas, especialmente ao exterior, é que reina sobre todas as fontes de receita. Somente no último ano, elas representaram aproximadamente 455 milhões de reais. O que equivaleu a 34% de todo o dinheiro arrecadado pelos grandes clubes brasileiros. O número de atletas nacionais negociados com o exterior em 2007 foi recorde, 1.085, 27,5% a mais que os 851 do ano anterior. Os destinos desses jogadores foram os mais variados possíveis, desde países tradicionais, como Espanha, Itália e Alemanha, até 34 os improváveis Vietnã, Montenegro, Letônia e Ilhas Faroe, num total de 88 nações. Portugal, com 227 jogadores, foi o que mais contratou brasileiros. O Brasil não é o único grande exportador. Países da América Latina e da África estão na mesma situação: tornaram-se criadouros de craques que brilham no estrangeiro. Somente na última Copa Africana de Nações, por exemplo, mais da metade dos 146 atletas que disputavam o torneio jogavam na Europa. Enquanto o futebol dos países da periferia se sustenta vendendo seus craques, o da Europa, lar dos clubes mais ricos do planeta, vive da exploração do espetáculo que eles proporcionam. Segundo Somoggi, os clubes europeus têm “três ‘macro-receitas’: os recursos gerados com seus estádios (chamados matchday revenues), os provenientes da mídia e as receitas com a exploração comercial de suas marcas”. Um exemplo de grande negócio efetuado por um clube europeu é o acordo entre o Arsenal FC, da Inglaterra, e a empresa de transporte aéreo Emirates Airlines. O Arsenal assinou contrato com a companhia num valor equivalente a 180 milhões de dólares. O clube receberá esse dinheiro por ceder, por 15 anos, os naming rights, direito de escolha do nome do novo estádio que construiu, e também por permitir, por oito anos, que a empresa estampe sua marca na camisa utilizada pelos jogadores. Esses recursos financiarão boa parte dos mais de 700 milhões de dólares g astos na constr ução do Emirates Stadium, moderníssima arena com capacidade para 60 mil pessoas e que conta com uma grande loja voltada para a comercialização de artigos com a marca do clube, museu, bares e restaurantes. Com a nova casa, o Arsenal elevou suas receitas nos dias de jogos em quase 10%, de 70 milhões de dólares na temporada 2006-2007 para 76 milhões na encerrada neste ano. No caso do futebol brasileiro, os motivos para que nossos clubes tenham se tornado fornecedores de jogadores para a Europa e outros centros são variados, a começar pela diferença de poder econômico entre o País e muitas das nações importadoras, e entre nossos times e os de fora. Na opinião de Somoggi, parte principal dos problemas que levaram a essa situação está no modo como os clubes brasileiros são administrados. Dados das pesquisas da Casual Auditores mostram que enquanto as receitas dos clubes aumentam de forma irregular, descontínua, com momentos de expansão seguidos de retração, as despesas sobem regularmente, mesmo nos anos de redução na arrecadação. Somente no último ano, as despesas totais das 21 maiores agremiações se elevaram de 39% para 1,63 bilhão de reais, anulando completamente o bom ano de receitas e contribuindo para que o já considerável déficit de 2006, de 197 milhões de reais, crescesse 53% e chegasse a 309 milhões de reais. TIMEMANIA É SOLUÇÃO? Para remediar essa situação, o governo federal instituiu a Timemania, uma nova loteria administrada pela Caixa Econômica Federal (CEF) baseada nas marcas dos times, que recebem 22% da receita arrecadada. Mas, como o grande credor individual dos clubes é o próprio governo federal, o que eles embolsariam acabaria indo diretamente para órgãos, como o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a Secretaria da Receita Federal, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Pelo menos, até que as dívidas sejam sanadas. Um efeito controverso da nova medida foi que, ao aderirem à Timemania, alguns clubes tiveram suas dívidas aumentadas expressivamente. Isso porque a adesão foi condicionada à emissão de certidões negativas dos órgãos oficiais. Dessa forma, dívidas não assumidas pelos clubes, por motivo de disputas judiciais, passaram a constar dos balanços. Assim, o Fluminense carioca viu seu passivo subir para 104,5 milhões de reais. São Paulo (29,8 milhões de reais), Flamengo (23,1 milhões de reais) e Palmeiras (21 milhões de reais) também sentiram o mesmo efeito. A simplicidade do jogo de futebol contrasta com a complicada situação de nossos clubes. As dívidas dos beneficiados com a Timemania podem ser pagas em até vinte anos. É um bom tempo. Será o suficiente para que o futebol brasileiro assuma um novo papel nos negócios globais? retratodoBRASIL 14 retratodoBRASIL 14 35 Neurociência: QUEBRANDO O ENCANTO DA MEMÓRIA O tema de Marcel Proust na obra Em busca do tempo perdido é a memória, a mesma questão que, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, anima o trabalho do neurocientista Ivan Izquierdo e de sua equipe, que ele apresenta nos livros Memória (Artmed Editora, 2002) e A arte de esquecer (Vieira&Lent, 2004). Da mesma maneira que o cientista argentino-brasileiro, Proust busca desvendar – em seu caso, de forma artística – os mecanismos da lembrança e do esquecimento. No primeiro romance daquela série célebre, No caminho de Swan, ele investiga a diferença entre o que chama de “memória voluntária, a da inteligência”, e aquele conjunto de recordações que estão esquecidas, mortas. Compara-as às almas que, nas lendas célticas, são aprisionadas, por encanto, a algum animal, árvore ou pedra e que despertam quando passamos por perto ou entramos na posse desses seres ou objetos. “Então, elas palpitam, nos chamam e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto”, escreveu. Foi na seqüência dessa argumentação que Proust descreveu a famosa cena do chá e das madalenas, um bolinho pequeno e recheado. No “mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim”. Era o “edifício imenso da recordação” das manhãs de férias no campo, numa longínqua e feliz infância, que parecia morto e agora o invadia. O grupo gaúcho de neurocientistas procura entender os mecanismos da memória na intrincada rede de eventos neuroquímicos e neurocelulares. Onde e como as recordações são guardadas? Como são 36 ativadas? O que é e por que ocorre o esquecimento? Que caminhos as células nervosas percorrem para recordar? A série de experimentos que permitiu ao grupo descrever alguns mecanismos do funcionamento da memória, que formam a base material do pensamento, não tem a elegância de escritos como os de Proust, mas rendeu centenas de artigos científicos em revistas de renome internacional e ajudou – junto com outros grupos, como o do neurobiólogo londrino Steven Rose, autor de O Cérebro no Século XXI: como entender, manipular e desenvolver a mente (Editora Globo, 2006) – a detalhar e a aumentar as evidências que comprovam processos cerebrais relacionados com a memória e que permaneciam até recentemente no plano da suposição. IDÉIA BÁSICA TEM CEM ANOS Em grande parte, os atuais estudos experimentais sobre a memória se baseiam na idéia de que suas bases biológicas estão nas alterações anatômicas e fisiológicas das ligações entre as células nervosas, tecnicamente chamadas de sinapses. Essa idéia já havia sido postulada em 1893 pelo médico espanhol Santiago Ramón y Cajal, considerado o fundador das neurociências e laureado com o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1906. Hoje, ela é a suposição dominante entre os pesquisadores. São muitas as evidências de que um novo aprendizado aumenta a atividade neural em regiões específicas do cérebro. E esse crescimento de atividade neural é acompanhado pelo aumento da quantidade de um neurotransmissor, a substância química liberada, na sinapse, pela extremidade de uma célula nervosa e que é res- Um grupo gaúcho de cientistas diz como funciona o cérebro humano quando um cheiro ou um sabor nos faz recordar situações ocorridas no início de nossas vidas | Verônica Bercht ponsável pela transmissão do estímulo nervoso às células vizinhas. É acompanhado também pela ativação de receptores de neurotransmissores particulares e pela ativação de genes específicos relacionados com a produção de proteínas constituintes da membrana das células nervosas, além de provocar alterações no tamanho, na estrutura e até no número de sinapses. O cérebro humano possui cerca de 200 bilhões de neurônios. Na parte do cérebro chamada córtex, cada neurônio recebe entre mil e 10 mil conexões procedentes de outras células nervosas e emite prolongamentos que fazem conexões com outros neurônios, entre dez e mil deles. “Como se vê, as possibilidades de intercomunicação entre células do cérebro são imensas, e de cada uma dessas conexões ou sinapses podem surgir memórias; sem contar o fato de que cada conexão pode participar de muitas memórias diferentes (...). É, portanto, altamente provável que a capacidade de armazenamento seja gigantesca”, escreve Izquierdo em A arte de esquecer. Os experimentos mostram que os mecanismos que formam ou evocam lemretratodoBRASIL 14 Reprodução ração, tão bem exemplificado na descrição de Proust. A memória de curta duração só serve para manter a informação disponível durante o tempo que a memória de longa duração leva para ser construída. Ela “desempenha um papel crucial no processamento verbal: ela nos permite manter uma conversa ou uma leitura; sem ela, isto nos resultaria impossível”, escreve Izquierdo. Diferentemente do que se imaginava até há pouco, as vias metabólicas dos processos de formação de memórias de curta e de longa duração são diferentes. São dois processos paralelos, e não a continuação um do outro. Há também boas evidências de que o ato de lembrar, de recuperar as memórias, desencadeia uma cascata bioquímica parecida, mas não idêntica, à que foi percorrida durante sua formação. O ato de lembrar, então, reconstrói a memória. E, quando nos lembramos de algo, não evocamos a memória original, e sim aquela refeita da última vez. Portanto, pode-se dizer que as memórias mais fiéis são as que estão mais esquecidas. EMOÇÕES MARCAM MAIS branças são saturáveis e, ao contrário do que se pensava, o esquecimento não é uma “falha” da memória, mas um processo biológico fundamental para a manutenção de uma mente saudável. Izquierdo explica que, “em boa parte, esquecemos para poder pensar e esquecemos para não ficarmos loucos; esquecemos para poder conviver e para poder sobreviver”. Hoje se reconhece a existência de três tipos de memória. A memória de trabalho, que os humanos compartilham com todos os outros vertebrados, é uma memória on-line, que dura segundos ou, no máximo, poucos minutos. Alguns estudiosos comparam-na a um “gerenciador”, porque, mais do que armazenar, ela é responsável por comparar as informações que o cérebro recebe com aquelas que já estão armazenadas. “Enquanto escrevia, a memória da terceira palavra da frase anterior (que já perdi) foi parte da minha memória de trabalho. O mesmo aconteceu com você, leitor, ao ler esta frase: você compreendeu a terceira palavra de minha frase, mas já não a recorda mais”, exemplifica Izquierdo. retratodoBRASIL 14 A memória de trabalho depende da atividade elétrica de neurônios de uma área cerebral chamada de córtex pré-frontal. Quando cessa sua ativação, desaparece também a memória de trabalho. Mas, enquanto o mecanismo da memória de trabalho é ativado em cada experiência, a informação processada nessa área se comunica e faz um intercâmbio de informações com outras regiões do cérebro, inclusive com aquelas que analisam rapidamente a informação sensorial e as que armazenam memórias de maior duração. “Assim, nosso cérebro toma aquela famosa terceira palavra da frase anterior e a insere num contexto maior”, permitindo a compreensão do texto, continua Izquierdo. Mas aí já inicia o processo de formação de um outro tipo de memória, a de curta duração, que se forma rapidamente, em minutos, e declina de três a seis horas depois. Esse tipo de memória envolve outras três áreas do cérebro, em especial o hipocampo, uma parte do córtex que o circunda, e a amígdala cerebral. Essas áreas, aliás, são as mesmas envolvidas com o terceiro tipo de memória, o de longa du- Além disso, o cérebro está sob influência de várias substâncias, como a dopamina e a serotonina, moduladoras das atividades neurais, e de hormônios, como a adrenalina das glândulas supra-renais, o estrogênio, a testosterona e os demais produzidos em locais distantes. Tanto os hormônios como os neuromoduladores estão associados à manifestação de estados emocionais – como preocupação, estresse, medo, alarme, contentamento e alegria – e influenciam a formação e a evocação de memórias. Estudos feitos com seres humanos mostraram que as memórias com conteúdo emocional são mais fortes do que as puramente cognitivas. Outros estudos mostraram que algumas memórias só são evocadas quando ocorre uma situação emocional semelhante àquela em que ocorreu a formação da memória. Izquierdo quase parafraseia Proust. “As memórias dependentes de um estado emocional determinado ficam, por assim dizer, ‘à espreita’ de que uma certa constelação de fenômenos bioquímicos apareça novamente”, diz. Essas memórias permanecem inacessíveis, mas não foram apagadas. Em geral, elas vêm à tona independentemente de qualquer ação voluntária: é o cérebro que reconhece os diferentes estados em que se encontra e os associa com elas. Talvez esse seja o mecanismo da memória das fobias, aqueles medos exagerados direcionados a animais (aranhas ou cobras), altura (vertigem), espaços fe37 Os experimentos da equipe dirigida por Ivan Izquierdo foram feitos com ratos de laboratório presos numa gaiola, e a atividade de exploração (percorrer a gaiola e cheirar todos os cantos) era limitada, segundo a vontade dos pesquisadores, por choques elétricos. O assoalho da gaiola era constituído, em parte, por uma pequena plataforma inócua e, na maior parte, por uma grade eletrificada. Os experimentos seguiram os passos daqueles feitos pelo grande fisiologista russo Ivan Pavlov no início do século XX, quando, ao descrever o reflexo condicionado – um tipo de memória adquirida por meio da associação –, uniu em sua prática científica a psicologia à fisiologia. É clássica a experiência que ele fez com cachorros (imagem ao lado). Pavlov partiu da observação de que os cães salivam ao ver um pedaço de carne – um comportamento natural, inato, que ocorre, observadas as diferenças de gosto, também nos seres humanos. Esse comportamento é chamado reflexo incondicionado. Em seu famoso experimento, Pavlov apresentou a carne ao cachorro simultaneamente ao toque de uma campainha. Após algumas repetições, ele observou que o cachorro salivava apenas ao ouvir o toque, mesmo na ausência da carne. Isto é, a salivação estava condicionada ao estímulo sonoro. Pavlov também observou que o cachorro já não salivava mais caso se repetisse muitas vezes o toque de campainha na ausência de carne. Isto é, o estímulo perdia seu efeito e ocorria a extinção do reflexo condicionado. O grupo de Izquierdo trabalha da mesma forma. No rato, o comportamento de exploração espacial é um reflexo incondicionado que ocorre toda vez que ele depara com um ambiente novo, como quando é colocado numa gaiola. No entanto, se levar um choque ao tentar sair da plataforma inócua do assoalho e tocar a grade eletrificada, ele evitará fazê-lo na próxima vez em que for colocado naquela mesma gaiola. Ainda da mesma forma, se o ratinho nunca levar o choque numa gaiola, deixará de ter a reação de exploração quando for colocado nesse ambiente. “Essa é a forma mais simples de aprendizado e que deixa memória”, escreve Izquierdo em Memória, e é também a mais utilizada nos estudos biológicos sobre a memória. Porém, o requinte das experiências não pára por aí. Antes mesmo do início da experiência, o camundongo passa por uma cirurgia na qual é implantado um tubo fininho (uma cânula) na região específica do cérebro a ser estudada. Nessa cânula são injetadas drogas que inibem ou ativam processos específicos que ocorrem no tecido nervoso. Assim, os cientistas conseguem inferir qual a importância de determinadas áreas cerebrais na formação, lembrança (ou evocação) e esquecimento de memórias, assim como analisar os respectivos processos moleculares. Foi com experimentos desse tipo, realizados entre 1998 e 1999, quando testaram mais de uma dezena de drogas em diferentes áreas cerebrais, que o grupo gaúcho confirmou que a memória de curta duração é independente da memória de longa duração. Izquierdo e sua equipe generalizam os resultados que obtiveram. “Uma lesma, uma abelha, um pinto, um camundongo e um ser humano, quando submetidos a um estímulo que causa desconforto, aprendem basicamente a mesma coisa: a evitar esse estímulo.” Essa observação de que substâncias químicas psicoativas tendem a produzir os mesmos efeitos em animais de laboratório e em seres humanos acentua o caráter de continuidade evolutiva do cérebro, pelo menos nos aspectos bioquímicos e celulares. “É como se a evolução, uma vez inventado o neurônio e sua sinapse como estrutura para a operação do cérebro, não tivesse mais motivo para alterá-lo depois”, explica Steven Rose em O Cérebro no Século XXI. 38 chados (claustrofobia) ou abertos (agorafobia). Há, no entanto, outras memórias que deixam de existir fisicamente. Isso é resultado ou da destruição dos neurônios que as contêm ou da eliminação das sinapses, provocada pela interrupção prolongada da sua estimulação. É bem conhecido que “tudo que aprendemos fica mais bem ‘gravado’ se o repetimos”, diz Izquierdo. “Logo, a menos que seja uma experiência deveras inesquecível, aquilo que não repetimos mais acaba sendo esquecido.” Izquierdo e sua equipe foram autores de descobertas importantes para desvendar os mecanismos da memória. Entretanto, ele Reprodução NAS PEGADAS DE PAVLOV Será que as experiências com animais bastam para explicar como funciona a memória humana? não leva em conta o valor do significado das lembranças e da autoconsciência (que é própria do homem) e estende aos seres humanos descobertas feitas no cérebro de animais. Com isso, pode estar deixando de ver, ou simplificando, os processos que são próprios do homem. Segundo Steven Rose, “o que começa a ter importância quando se vai de espécie em espécie, de cérebro em cérebro, são os modos pelos quais estas unidades [as sinapses] estão organizadas” Nos seres humanos, a cultura e a reflexão têm um papel decisivo nelas. “As memórias biológicas são significado vivo, não informação morta”, diz o cientista britânico. Como Proust já havia percebido. retratodoBRASIL 14 retratodoBRASIL 14 39 realização Inscreva-se e ganhe: Uma assinatura da Fórum até fevereiro de 2009 Um exemplar do livro Geração de Trabalho e Renda 40 A revista Fórum e a Fundação Banco do Brasil vão levar cinco professores do ensino público fundamental para participar do Fórum Social Mundial em janeiro de 2009, na cidade de Belém (PA). Serão premiadas as melhores propostas de difusão do conceito e das experiências de Tecnologia Social na comunidade. PARTICIPE retratodoBRASIL 14