Controle do Poder Executivo e presidencialismo de coalizão

Transcrição

Controle do Poder Executivo e presidencialismo de coalizão
Controle do Poder Executivo e
presidencialismo de coalizão
Marcus André Melo*1
Introdução
A discussão sobre abuso de poder e suas formas de controle para seu combate são tão antigas quanto a própria democracia. Como afirmou um dos pais
fundadores da democracia americana, “se os homens fossem anjos, não seria
necessário haver governos”2. Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os controles internos e externos. Se os homens fossem anjos, os
contratos dariam lugar a promessas. O desenho institucional representa assim
o antídoto para o governo “ilimitado”. Historicamente, a ideia de “constituição
mista”, influente no republicanismo clássico e medieval, precedeu a de checks
and balances e de separação de poderes que passaram a ser as ideias forças principais do debate moderno. Separação de poderes significa fundamentalmente que
se deve atribuir a ramos distintos dos governos funções distintas especializadas:
judicante, legislativa e executiva. Por sua vez, checks and balances implica que se
confira a cada ator institucional um papel no exercício de funções especializadas
de outros. Como argumentou persuasivamente Manin, esta última prescrição
vingou no debate em torno da Constituição americana de 1787, malgrado a
ferrenha oposição dos antifederalistas3 e se tornou, desde então, um princípio
basilar de desenho institucional para as constituições republicanas.
Na América Latina este debate tem raízes históricas e o desenho constitucional foi a referência básica para todo o debate desde seus primórdios no século
XIX. No entanto, logo foi subsumido no seio da tradição iliberal que caracteriza historicamente a região4. Os episódios de abuso de poder na Venezuela, no
Equador e na Argentina, para citar os países que mais se destacaram, assumiram
muitas formas, desde ataques e intervenção ativa contra órgãos da imprensa, passando por intervenções no Poder Judiciário, até a proteção de “milícias cidadãs”,
1
Professor associado de ciência política e coordenador do Núcleo de Opinião e Políticas Públicas na
Universidade Federal do Estado de Pernambuco.
2
Madison, 1982 [1788], The Federalist 51.
3
Cf Manin (1994). Fiéis à Montesquieu, os antifederalistas acusavam os dispositivos do texto da
constituição sobre checks and balances de violar o princípio de separação de poderes.
4
Cf Gargarella (2010).
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que violam as liberdades fundamentais de membros da oposição. Na tradição
iliberal, a questão da efetividade da ação pública para combater a desigualdade
e promover o desenvolvimento tem precedência sobre o constitucionalismo, o
controle do abuso presidencial e a corrupção. Daí a alta tolerância a abusos e à
corrupção seriam justificáveis pelos fins divisados com a ação do Estado5.
Neste artigo discuto – de forma decerto sintética e estilizada – a questão do
abuso do poder no Brasil em perspectiva comparada, buscando avaliar em que
medida ele tem um padrão específico no país, e se ele mantém uma correlação com os poderes constitucionais dos presidentes, especialmente seus poderes
legislativos. Busco também discutir como o desenho institucional brasileiro –
definido como um presidencialismo forte assentado em coalizões de governo –
afeta as formas pelas quais o abuso de poder se manifesta. Inicio a discussão com
uma narrativa analítica das formas de abuso de poder pelo Executivo no país,
buscando entender como as inovações no desenho institucional de forma ampla
– ou a arquitetura constitucional brasileira – responderam a diagnósticos específicos sobre o abuso de poder no país. No artigo também discuto uma questão de
grande interesse normativo: quando a delegação presidencial significa usurpação
ou abdicação. Esta questão tem sido abordada na análise positiva das relações
Executivo-Legislativo. Agenda de pesquisa em torno da questão permitiu um
grande avanço no entendimento das condições sob as quais o Legislativo delega
mais poder ao Executivo de forma geral. A questão normativa de fundo é de
outra natureza e preocupa-se com as relações entre abuso de poder e delegação.
A agenda positiva em torno da questão tem sido marcada pela utilização de
modelos agente-principal e por modelos de delegação cujo suposto básico é que
agentes voluntariamente agem de forma coordenada para superar problemas de
ação coletiva. O fato de que o exercício do Poder Executivo e Legislativo revela
estratégias de maximização do poder político é frequentemente desconsiderado
nos modelos de delegação (Moe 2005).
O presidencialismo de coalizão brasileiro tem sido discutido em termos consequencialistas, ou seja, por sua funcionalidade para a governabilidade ou dos
ganhos de eficiência que permite. Recentemente seu modo de funcionamento
5
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No Brasil, as raízes intelectuais desta malaise iliberal estão nos pensadores antiliberais e autoritários
da Primeira República e ideólogos da Era Vargas, tais como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo
Amaral, e perpassa o espectro ideológico da esquerda à direita. Com efeito, a influência destes intelectuais é mais robusta do que a tradição socialista com a qual comunga a mesma descrença nos valores
do constitucionalismo liberal. Apologética dos governos fortes e de forte intervenção na sociedade e
na economia, a ideologia autoritária dos governos militares e de amplos setores da esquerda, no limite, cultua o bom ditador, contanto que este último promova a inclusão social e o desenvolvimento
econômico.
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tem sido invocado como o preço que se paga pela governabilidade, entendido
em um sentido fraco do termo: ausência de crises institucionais e elevada capacidade de o Executivo aprovar sua agenda. A consideração das dimensões normativas deste desenho institucional tem sido pouco explorada, mas a literatura deixa entrever dois juízos valorativos: ora ele é apresentado como normativamente
defensável; ora como uma degeneração do ideal democrático. O presente artigo
busca contribuir para preencher a lacuna em torno da questão.
A invenção do presidencialismo de coalizão e o abuso de poder
“Grande tirano aquele que só se manterá legalmente na base da
coligação dos partidos dentro do Congresso, tal e qual nos regimes
parlamentares do continente europeu.”
Afonso Arinos 1949
Abuso e concentração de poder assumiu formas variadas ao longo da história brasileira. No Brasil a questão do abuso de poder se colocou no Império em
torno das prerrogativas reais e da legitimidade do Poder Moderador. Ademais, a
Constituição de 1824, por exemplo, estabelecia que o imperador não podia ser
responsabilizado: “Elle não está sujeito a responsabilidade alguma” (artigo 99).
O intenso debate institucional do Império voltou-se para soluções para reduzir
o poder do imperador e para a criação de formas de responsabilização dos governantes. A solução vencedora, como sabemos, foi a criação de uma República
federalista, em que a figura do presidente eleito e responsabilizável substitui o
imperador como chefe de governo e chefe de Estado. Na República Velha, a
agenda pública esteve dominada por questões relacionadas a debilidades das
instituições republicanas e privilegiou temas como militarismo (e por extensão o
estado de sítio), a fraude eleitoral em escala massiva, o arbítrio das intervenções
salvacionistas nos estados, e as patologias da representação associadas ao sistema de partidos único no nível estadual, além da ausência de oposição digna de
nome. Basta lembrar que Rodrigues Alves foi eleito em 1918 com 99,7% dos
votos – situação que faria inveja mesmo a caudilhos empedernidos.
Por sua vez, as inovações institucionais que se sucederam a partir da Revolução
de 30 voltaram-se para eliminar ou reduzir as patologias que afligiram o funcionamento do sistema político brasileiro na sua primeira experiência democrática
republicana. A criação da Justiça Eleitoral em 1932 e a introdução do voto secreto
eliminaram ou diminuíram a fraude; a adoção da representação proporcional em
1935, com o propósito explícito de quebrar os monopólios políticos estaduais,
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varreu os sistemas de partido único nas unidades federativas; a exigência de partidos políticos nacionais consagrada na Constituição de 1946 representou golpe
importante, mas não fatal no abuso de poder no plano dos estados.
Já na década de 40, Afonso Arinos percebeu que estas inovações representaram o golpe de morte no que denominava o “poder pessoal” do presidente e
criaram uma inovação política inédita no plano internacional: o presidencialismo de coalizão. Como sabemos, o conceito adquiriu uma formatação técnica
a partir da contribuição seminal de Sérgio Abranches, de 1988, fartamente reconhecida no debate recente. Abranches chamou atenção para a singularidade
deste arranjo político no plano internacional: “multipartidarismo e o ‘presidencialismo imperial’, organiza o Executivo com base em grandes coalizões. A esse
traço peculiar da institucionalidade concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, presidencialismo de coalizão”6.
Muito antes do escrutínio rigoroso ao qual submeteu Abranches esta forma
de presidencialismo, Afonso Arinos persuasivamente apontou para as mudanças
ocorridas na natureza do Poder Executivo:
“os partidos nacionais, a representação proporcional, os ministros
congressistas, o comparecimento dos ministros ao Congresso fizeram do nosso presidencialismo algo de muito diferente do que
conhecemos daquele presidencialismo morto em 1930.” (Franco
1949 p. 93).
O “poder pessoal” do presidente e dos governadores foi duramente afetado
pelo surgimento do “voto autêntico” – ou seja, não fraudado pelas comissões de
verificação – e, sobretudo, pela formação de coalizões, que substituíam o sistema
de partido único que predominou na República Velha:
“É uma experiência nossa, que temos que resolver com os nossos
próprios elementos. O presidente foi eleito pelos votos de partidos
coligados. Seu antagonista não eleito apoiou-se também nos votos
de uma coligação de partidos. No Congresso ninguém sonha com a
maioria do trabalhismo inglês. Como se pode falar em poder pessoal, em poder tirânico do presidente em face desses fatos que estão à
nossa vista? Grande tirano aquele que só se manterá legalmente na
base da coligação dos partidos dentro do Congresso, tal e qual nos
regimes parlamentares do continente europeu”. (1949, p. 92)
6
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Abranches (1988)
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Sobre as implicações mais amplas na natureza do presidencialismo brasileiro e
sua natureza peculiar, por estar ancorado em coalizões, Arinos argumentava que:
“Cingindo-se ao aspecto federal, as relações do presidente com o
Congresso têm de ser na base da coligação, porque nós praticamos
um sistema talvez único no mundo: o presidencialismo com representação proporcional, de onde emergiram vários partidos fortes.
...
A situação do presidente da República e dos governadores de voto
praticamente autêntico (não queremos dizer consciente em toda
parte), e de representação proporcional, se aproxima mais, politicamente, dos chefes de Estado do parlamentarismo europeu do
que do presidente e governador dos Estados Unidos.” (p. 92)
A chave do enfraquecimento do poder pessoal era dada pela “única verdadeira revolução política operada no Brasil, que foi a revolução eleitoral com a
instituição dos partidos nacionais, do voto secreto, da representação proporcional e da Justiça Eleitoral”. (Franco, p. 89)
Sua aposta no papel dos partidos e do Poder Legislativo era alta. Os partidos
se constituiriam no principal obstáculo ao abuso de poder presidencial. Se o
diagnóstico era este, a terapia já estava dada: cabia ao Poder Legislativo, através
de partidos nacionais, exercer o controle do Poder Executivo.
“Diferenciação econômica, multiplicidade partidária, autenticidade eleitoral, enfraquecimento político do presidente e dos governadores, eis o processo fatal, inevitável, que estamos vivendo.
Hoje, que estamos no início do sistema, o presidente não faz governadores (foi derrotado em grandes estados), nem deputados,
nem senadores. Quem os faz são os partidos nacionais. Quando
na política, os resíduos do poder pessoal se fazem sentir, é por
capitulação desnecessária do Congresso.”
A centralidade do sistema de partidos na redefinição das relações federativas
era destacada por Afonso Arinos:
“Com a revolução eleitoral, as relações do presidente da República
com os governadores e com o Congresso tiveram que se estabele-
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cer em bases absolutamente distintas das conhecidas na Primeira
República: em bases de coligação partidária.” (p. 90)
O presidencialismo de coalizão – que resultava do que este autor chamava “constituição transacional” – representava para ele a inovação institucional
que impedia o poder pessoal e o exercício hegemônico de poder a la mexicana.
Na realidade, Arinos centrava sua análise no tipo de poder majestático e imperial que caracterizava a República Velha, e que foi tão acidamente criticada por
Hambloch.7 No entanto, este último justapôs a sua crítica ao poder discricionário dos presidentes no período e a inexistência de qualquer forma de responsabilização política neste período à sua crítica ao presidencialismo enquanto sistema
de governo. Ao papel subserviente do Poder Legislativo e à submissão do Poder
Judiciário, Hambloch sublinhava o poder majestático do presidente brasileiro, o
qual também enxergava nos outros países latino-americanos e mesmo nos EUA.
Mas sua crítica à falta de liberdade de expressão, à violência, à fraude política
generalizada e à debilidade da separação de poderes e do estado de direito no
país deixa entrever a extensão do abuso de poder na República Velha.
Hambloch sublinha que a malaise econômica e social do país tinha raízes
nas suas instituições políticas. Antecipando o diagnóstico neoinstitucionalista
que veio a caracterizar grande parte da literatura de ciência política e de economia a partir da década de 90, argumentava que:
“Foreigners who study Brazil today usually do so from the standpoint
of their economic situation. Brazilians themselves do so. And both
Brazilians and foreigners are baffled. Their studies lead them to no
definite conclusions and they fall back on grandiloquent, albeit sincere phrase about the Great Future of Brazil. But when things are
continuously not well with a country of Brazil´s formidable resources,
there must be some causal factor that is constant to account for that
phenomenon. High import duties, export taxes…, excessive borrowing
valorization schemes, lack of continuity in the policy of public administration, social disturbances and revolutions – all these and other
influences may be invoked to account for dislocation of trade and financial difficulties. But they are not prime causes and in themselves
they explain nothing.
7
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Hambloch (1936).
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The origins of Brazil´s troubles are to be sought in the defect of the
political regime.” (Hambloch 1936, p. 1)
Para Hambloch o problema fundamental brasileiro eram suas instituições
políticas e particularmente o abuso de poder presidencial. Ele também atribuía
ao presidencialismo, enquanto tal regime, parte das mazelas, mas sua crítica à
baixa qualidade da democracia brasileira centrava-se fundamentalmente no poder despótico exercido pelo Executivo e a ausência de Rule of Law que decorria
deste estado de coisas8.
Arinos não antecipou – e não seria justo esperar que o fizesse – os problemas de abuso de poder associados ao manejo de coalizões, como se verificou no
marco dos dois últimos mandatos presidenciais. Também não poderia entrever
que o Poder Executivo sairia muito mais fortalecido constitucionalmente como
resultado da delegação ampla de poderes observada na Constituição de 1988 –
delegação esta que ele entendia necessária já na década de 40 9. Na realidade,
este fenômeno é universal, embora ocorra de forma muito diferenciada entre
as democracias. Na área do Orçamento, por exemplo, o grau de delegação ao
Executivo que ocorreu historicamente no Reino Unido foi muito mais intenso
do que o que ocorreu nos EUA (Wehner, 2010). No Brasil, o significativo poder
presidencial nesta área tem origem na década de 20, com a reforma constitucional de 1926. Para Hambloch esta reforma epitomiza o domínio do Executivo,
que já era hegemônico, porque ampliava o poder federal em intervir nos estados
e limitava o habeas corpus (Hambloch, 1936):
“The word of the Brazilian Constitution of 1891 is by no means clear,
and in that respect it faithfully mirrors the state of mind of its framers.
The amendment introduced in 1926 merely strengthened , as it was
intended they should, the autocratic control of the country by the Federal President – in three directions: by weakening the autonomy of the
states; by facilitating the application of the presidential veto; and by
imposing further restraints on the liberty of the citizen.”
Hambloch admite que pode ser “financially quite desirable”, o veto parcial
(line item veto), mas “as a political principle is open to question” (p.90). Tendo
8
“o fato de ser o Judiciário invariavelmente flácido, dependendo demasiado do Executivo que o nomeia; assim, a Justiça é muitas vezes ineficaz, mesmo quando não há, no caso, uma falha da Justiça”
(Hambloch 1936).
9
Medidas voltadas para expandir o poder dos presidentes eram propugnadas por Afonso Arinos como
solução para problemas governativos nas sociedades complexas. Ele cita com aprovação o artigo
“Delegationofpowers” na Encyclopaediaof Social Sciences (Franco , p. 96). Veja-se Pessanha (2002)para
uma discussão aprofundada das leis delegadas.
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a enorme prerrogativa do veto parcial (e não apenas o veto total previsto na
Constituição de 1891), e passando a contar com a prerrogativa de executar o
Orçamento do ano anterior caso o relativo ao ano em curso não fosse aprovado,
o Poder Executivo passava a desfrutar de enorme poder em matéria de orçamento e finanças, aumentando assim o potencial de abuso presidencial.
Como sabemos, as prerrogativas presidenciais foram ampliadas significativamente com a Constituição de 1988 (Limongi 2008). Executivos dotados
de amplos poderes delegados, no entanto, não implicam necessariamente em
maior potencial de abuso de poder; como argumento a seguir, na realidade, o
inverso pode ocorrer. Esse foi o erro fundamental de Hambloch, embora parte
importante de seu diagnóstico permaneça essencialmente correta. Na realidade,
o entendimento de que delegação de poderes implicava subjugação do Legislativo – amplamente aceito por Hambloch – informou a discussão pública em
torno destas questões na década de 30 e 40. A experiência autoritária do Estado
Novo provocou forte resistência, de forma que a delegação presidencial foi expressamente proibida na Carta de 46, embora tenha se manifestado de várias
formas indiretamente, sobretudo no poder de regulamentação da produção legal
e nos vários arranjos organizacionais adotados no âmbito do Poder Executivo,
como nas comissões e conselhos que proliferaram na Era Vargas. Durante o regime militar, os poderes delegados foram ampliados de forma significativa através de vários institutos legais, como, por exemplo, o decreto-lei. Na realidade,
para além do caráter democrático ou não dos regimes, a delegação de poderes
ao Executivo aumentou monotonicamente ao longo das cinco últimas décadas
(Pessanha 2002). A extensa delegação ocorrida afetou prerrogativas de iniciativa
exclusiva de leis em matéria administrativa, tributária e orçamentária, poder de
emitir medidas legislativas com validade imediata além de amplos poderes de
agenda nas microrrelações com o Congresso (Limongi 2008).
A expectativa de Arinos era que o multipartidarismo solapasse as bases do
poder pessoal dos presidentes. Mas para Hambloch essa questão sequer se colocava, porque enxergava na forma mesma presidencialista os germes do abuso.
Com efeito, podemos dizer que o diagnóstico de Arinos estava correto, porque,
ao ter que barganhar com parceiros potenciais, os presidentes têm que fazer
concessões para construir maiorias e aprovar sua agenda. Ceteris paribus, um
presidente tem, portanto, menos poder sob multipartidarismo do que sob um
sistema de dois partidos, governista e oposição. Mas o multipartidarismo também engendra incentivos que fortalecem os presidentes. Dois deles podem ser
apontados. O multipartidarismo reduz os incentivos para os controles do Legislativo em relação ao Executivo na medida em que partidos que são parceiros
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reais ou mesmo potenciais de outros não têm incentivo para denunciar abusos
e controlar o Poder Executivo. A expectativa de fazer parte do governo reduz
também os controles horizontais entre partidos no país10. O Executivo pode
também se beneficiar de uma Oposição dividida.
Quando a delegação é abdicação?
A questão normativa central para a discussão do fenômeno da delegação
diz respeito à fronteira entre abuso e concentração de poder, por um lado, e ganhos de eficiência, por outro. Estes últimos encontram uma formulação recente,
na ciência política, da delegação em termos de relação principal (mandante) –
agente. A principal conclusão que se deriva desse argumento é que a delegação
não significa abdicação ou usurpação de poder pelo agente (Executivo). Antes,
ela serve para superar problemas de ação coletiva no seio do Poder Legislativo. A
delegação constitui uma estratégia para superar problemas de coordenação entre
os mandantes ou principais, ou seja, os parlamentares. Os ganhos de eficiência
daí resultantes refletem as preferências democráticas da maioria dos parlamentares, que se assume poderiam revogar a delegação quando bem lhe aprouverem
– argumento que critico a seguir. Esse argumento é plausível e encontra respaldo
empírico não trivial em estudos de exemplos específicos de delegação.
A ideia de que poderes de decreto como solução para problemas de ação coletiva e barganha (e sua distinção com relação a “iniciativas paraconstitucionais”)
é discutida em Carey e Shugart (1993) e Huber (1993)11. Essa linha analítica foi
estendida para o caso brasileiro em influente trabalho de Figueiredo e Limongi
(1998), que mostrou como a delegação presidencial está na base do funcionamento do presidencialismo de coalizão pós-1988. A principal conclusão destes
autores é que este mecanismo é ingrediente essencial para a estabilidade institucional no país e para a governabilidade. A despeito de a análise realizada
ser essencialmente positiva, ela deixa escapar aspectos normativos fundamentais
para um exame da democracia brasileira. As implicações normativas da análise
muitas vezes são vazadas em tom positivo, mas elas são claramente identificáveis:
há um equilíbrio institucional que garante estabilidade e, como a extensa delegação que lhes dá sustentação não representa abdicação, só podemos concluir que
10 O exemplo mais claro disso na atual conjuntura é a inexistência de críticas por parte do PT em relação a partidos envolvidos em práticas corruptas e que são parte da base aliada, tais como o PR e o
PMDB.
11 Carey e Shugart (1998).
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este equilíbrio é normativamente defensável. Há também problemas empíricos
na análise, como apontado por alguns analistas.
Para Amorim Neto o argumento da delegação só se aplica a um subconjunto
empírico específico onde o manejo da coalizão presidencial é proporcionalista, ou
seja, apenas quando se observa ampla participação dos parceiros da coalizão de governo no Poder Executivo (como evidenciado pela sua taxa de coalescência entre
peso parlamentar e portfólios ministeriais alocados aos partidos da base). Neste caso
se enquadrariam os dois governos do presidente Fernando Henrique Cardoso e o
segundo governo Lula. Sem uma garantia institucional para a estabilidade da base
de sustentação do governo – presente nos parlamentarismo e no semipresidencialismo –, a estabilidade é tributária do estilo presidencial de gestão da coalizão. Por
sua vez, Pereira, Power e Raille (no prelo) argumentam que o cálculo presidencial
envolve não só participação na coalizão governativa, mas também a distribuição de
bens privados ou benefícios localizados (pork). Ao abrir sua “caixa de ferramentas”,
o presidente pode escolher entre executar estrategicamente emendas ao Orçamento; alocar portfólios ministeriais a parceiros da coalizão (potencialmente minando a
racionalidade do processo de decisão); distribuir postos na burocracia pública; ou
simplesmente recorrer a métodos heterodoxos. Serão fundamentais nesta escolha a
distância ideológica entre o partido presidencial e o estilo de gerenciamento da coalizão. O potencial de abuso associado a estas práticas varia amplamente.
Para Limongi e Figueiredo o segredo do funcionamento da democracia brasileira é eficiente, para parafrasear a conhecida passagem de Bagehot12, e normativamente defensável. Para Amorim e Santos (2003), este segredo apresenta um misto de
ineficiência e eficiência e é normativamente atraente apenas quando se observa alta
taxa de coalescência. Para estes autores: “a ineficiência de tal divisão do trabalho legislativo reside no fato de o paroquialismo dos congressistas não oferecer aos eleitores
opções claramente identificáveis entre políticas públicas nacionais na época das eleições”. (p. 451) Mas, no caso brasileiro, a delegação produz responsabilidade fiscal, e
portanto produz eficiência, ao contrário do que é previsto pelo modelo apresentado
por Shugart e Carey (1992). A delegação também produz ineficiência de outra forma, quando o Poder Executivo, por exemplo, emite medidas provisórias, provoca
insegurança jurídica e afeta investimentos – resultando daí ineficiência alocativa13.
Mas o otimismo se manifesta quando Amorim e Tafner defendem que o “caráter an-
12 Cf Cox (1987). Shugart e Carey referem-se ao segredo ineficiente prevalecente na América Latina em
um contexto em que os presidentes detêm grandes poderes legislativos e os eleitores não conhecem as
implicações nacionais ou programáticas de seus votos, gerando, no limite, irresponsabilidade fiscal.
13 Amorim e Tafner (2002).
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timajoritário não pode se estender por muito tempo”14. Numa avaliação normativa,
Amorim e Santos argumentam que a divisão de trabalhos implícita na delegação é
virtuosa, porque há incentivos para que a oposição possa apresentar opções programáticas de alcance nacional. Para Pereira et al este modelo é eficiente porque importa
em baixos custos de transação, permitindo ganhos de troca e gerando estabilidade
democrática. O modelo é consistente com um ideal robusto de democracia devido
ao expressivo ganho líquido representado pela sustentabilidade do arranjo democrático, mas esse modelo, sustento, é subótimo do ponto de vista normativo.
A chave da questão normativa em torno do argumento das virtudes da delegação no presidencialismo de coalizão brasileiro diz respeito ao pressuposto, não
explicitado na análise, de que os parlamentares são agentes perfeitos do eleitorado.
Nesta análise, as maiorias legislativas representam, por construção, preferências
majoritárias do eleitorado. A estrutura de incentivos dos parlamentares os conduz a delegar poderes ao Executivo. Isoladamente, os parlamentares não podem
retaliar ou apresentar ameaças críveis ao Executivo. A estratégia dominante do
parlamentar é, assim, alinhar-se com o Executivo. Este, por sua vez, detém recursos estratégicos que lhe permitem agir como agente autônomo: nomeações para
cargos de comissão na administração direta e indireta; a execução orçamentária via
emendas ou simples alocação de recursos definidos pelo Executivo no Orçamento público; uso estratégico das compras, contratações e decisões corporativas em
empresas estatais, tais como Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal
ou Correios; dentre outros. O fato de o Executivo dispor de recursos tão vastos
converte-o, no mínimo, em um kingmaker15. Essa posição hegemônica molda a estrutura de incentivos nas relações Executivo-Legislativo, na qual a estratégia dominante dos parlamentares é apoiar sempre o Poder Executivo, salvo no caso em que
há chances efetivas de a oposição chegar ao poder. Neste último caso, será a competição política que definirá, essencialmente, se as relações Executivo-Legislativo
degeneram ou não em um padrão forte de dominância presidencial. O argumento
de que a delegação é defensável porque o Legislativo pode revogá-la desconsidera
que, quando há delegação de poder na esfera política, este poder pode ser utilizado coercitivamente (as iniciativas paraconstitucionais, na linguagem de Carey e
Shugart, 1998), e nisto a delegação na esfera da política se distingue fortemente da
delegação na esfera das transações voluntárias de mercado (Moe 2005). Em outras
palavras, o Poder Executivo pode utilizar os poderes de agenda para perpetuar os
14 Ibid.
15 Na teoria dos jogos um kingmaker é um jogador que, mesmo não dispondo da capacidade de ganhar
ou decidir um jogo, tem recursos suficientes para influenciar quem vai fazê-lo.
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poderes de agenda, que lhe foram concedidos a partir de uma escolha constitucional originária e democrática.
A análise padrão da delegação, por outro lado, tende a desconsiderar a assimetria de informação entre parlamentares e cidadãos e trata os primeiros como
agentes perfeitos destes últimos. Sob o presidencialismo, a delegação legislativa
de poderes ao Executivo não significa necessariamente delegação democrática –
e, portanto, normativamente atraente – do eleitorado para o Poder Executivo.
O potencial de abuso se abre com a possibilidade de conluio entre os poderes
Legislativo e Executivo – que podem renegar suas promessas em relação ao eleitorado. Strom afirma que a delegação indireta que ocorre no parlamentarismo
– do cidadão ao parlamentar e deste último para o Executivo – abre maiores
possibilidades de risco moral16 por parte do Executivo em relação aos eleitores
do que na delegação direta do eleitor para o presidente e daquele para o parlamentar. Como é partícipe do Poder Executivo, o legislativo se depara com desincentivos ao controle do Executivo. Persson, Roland e Tabellini (1997) também
acreditam que nos regimes presidencialistas há mais incentivos para controles
recíprocos entre os poderes (sobretudo do ocupante do Poder Executivo). Mas
no presidencialismo de coalizão isso não ocorre pelas razões citadas.
Ocorre que os incentivos para que os parlamentares apoiem o Executivo são
muito grandes – ainda mais quando participam de coalizões com representação
nos portfólios ministeriais. O potencial de conluio, portanto, é significativo,
devido fundamentalmente à magnitude dos recursos comandados pelo Executivo. Ademais no caso brasileiro não há o mecanismo de accountability vertical
que é acionado quando uma moção de confiança é aprovada ou quando o chefe
de governo dissolve o Parlamento – cenário que ocorre em quadros de abuso de
poder e perda de legitimidade do Executivo.
A interpretação de Amorim e Taffner de que a reedição de medidas provisórias com alteração de conteúdo representa um controle do tipo alarme de incêndio é uma interpretação otimista do nexo entre cidadãos/interesses organizados
– parlamentares – Executivo. Ao emitir medidas unilateralmente, cujo conteúdo
contraria os interesses da sociedade, o Executivo disporia de um instrumento de
correção do erro via pressão exercida sobre os congressistas. No entanto, é perfeitamente plausível que medidas tomadas pelos parlamentares e pelo Executivo
atendam apenas aos interesses dos grupos encastelados em ambos os poderes,
sobretudo as medidas com benefícios concentrados e custos difusos. As vanta16 O risco moral refere-se aos incentivos para um agente renegar promessas em uma situação pós-contratual. Um parlamentar pode, por exemplo, ter incentivos em renegar promessas uma vez que
tenha passado a eleição.
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gens dos ocupantes dos cargos eletivos na competição – incumbency advantages
– estão marcadas pelo risco moral de usar os recursos que podem ser mobilizados pelo Executivo para a entronização no poder dos atuais ocupantes de
cargos no Executivo e no Legislativo. Neste caso há o recurso dos instrumentos
de coerção – uma dimensão essencial que é esquecida nas análises da delegação
(Moe 2005). As instituições surgem não apenas como esforços de coordenação
e solução de problemas de ação coletiva, mas também como forma de exercício
do poder e de forma a maximizar o poder exercido (idem). A coalizão original
que está por trás da criação de uma instituição ou regra não explica a sobrevivência de uma instituição ou pode inclusive não ter essa função, a sobrevivência
podendo ser explicada apenas pelo controle do poder de agenda de um ator
que dela se beneficia. Dessa forma, a delegação presidencial consubstanciada na
Constituição de 1988 pode subsistir, mesmo quando as suas bases de sustentação tenham mudado.
O que garante que o poder coercitivo delegado não se volte para o próprio
Parlamento ou contra os cidadãos? O controle do Poder Executivo é exercido nas
democracias maduras pelas instituições de accountability horizontal e pelos checks
and balances previstos constitucionalmente. A estrutura de incentivos que permite
que o controle dos governos seja efetivo está ancorada fundamentalmente pelo
padrão de competição política. Apenas quando o poder está fragmentado o Executivo enfrenta custos de coordenação para interferir na autonomia das decisões
judiciais ou de controle externo (Chave, Ferejohn e Weingast, 2003). A alternância no poder engendra incentivos do tipo political insurance (seguro político) que
dão sustentação a instituições independentes (Ginsburg, 2003).
Nas constituições de 1934 e 1946, a preocupação com o controle do poder
imperial do presidente e dos presidentes de província levou à criação do presidencialismo de coalizão. Qual a natureza do cálculo constitucional em 1988? Ao
invés de reduzir os poderes presidenciais como em 1946 – na qual a delegação
foi proibida –, a coalizão vitoriosa em 1988 buscou controlar o poder do Executivo através da delegação sem precedentes de poder ao Judiciário, ao tribunal de
contas e ao Ministério Público. Isso foi possível devido ao caráter competitivo
do processo constituinte. O segredo da solução “presidentes fortes, democracia
robusta” tem sido a competição política e a alternância no poder17. O grau de
delegação às instituições de controle foi muito robusto, gerando um arranjo
institucional caracterizado por três poderes fortes.
17 Para um tratamento mais completo da questão, ver Melo (2009).
Artigos & Ensaios
67
Modelos institucionais de controle
Como afirmamos anteriormente, sob o presidencialismo de coalizão no
Brasil há fortes incentivos para que o Legislativo passe a dar sustentação ao Executivo, abdicando de seu papel clássico no presidencialismo de fiscalizar o Executivo. Essa estrutura de incentivo o aproxima do regime parlamentarista com
uma grande diferença: neste último caso há uma garantia institucional de dissolução do governo dentro do mandato, caso o apoio legislativo não se materialize.
Neste momento o eleitor passaria a exercer a accountability horizontal. No caso
brasileiro, este momento não existe, embora os incentivos para a accountability
horizontal sejam minados pela estrutura de incentivos criada em torno de um
presidente com enormes poderes constitucionais e, sobretudo, não legislativos.
Elemento constitutivo da própria definição de democracia, o controle e a
fiscalização da ação do Poder Executivo assumem formas distintas e complementares nos sistemas políticos democráticos. Nas democracias majoritárias, o
controle é de natureza essencialmente parlamentar, sendo exercido pelo Poder
Legislativo com o concurso de um órgão de auditoria externa, tipicamente um
controlador ou auditor geral (denominado General Auditor ou Comptroller). No
entanto, os incentivos para a ação de fiscalização variam amplamente em função
do sistema de governo. Governos majoritários de partido único ou em coalizão
em contextos parlamentaristas geralmente implicam controle parlamentar inexpressivo, uma vez que tais maiorias dão sustentação parlamentar e têm poucos
incentivos para o exercício de checks sobre a ação do Executivo, que, por construção, se assenta em maiorias parlamentares.
Essa debilidade é compensada pela existência de comissões de contas públicas cujo comando é exercido pela oposição, a quem cabe também a nomeação do
auditor. Nas democracias parlamentaristas, as comissões congressuais são débeis
e, nos modelos que adotam um formato westminsteriano, a atividade controle
parlamentar assume o formato do shadow cabinet. Há instrumentos específicos
que garantem o escrutínio da ação do Poder Executivo (como o question time),
mas tipicamente “o governo governa e a oposição critica”. Ou seja, a oposição
não se envolve substantivamente na feitura de leis e o trabalho congressual é
escasso e pouco relevante.
Essa dominação do Executivo sobre o processo governativo confere ao primeiro ministro o caráter de ditador parlamentar, ditador temporário, bem entendido, porque sujeito à sustentação parlamentar e, por extensão, a confirmação
do gabinete nas urnas. A accountability vertical, portanto, é elemento essencial
da sustentação destes modelos de democracia. A responsabilidade coletiva dos
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gabinetes perante o Parlamento é ingrediente fundamental18. Não é necessário
enfatizar que o Poder Judiciário nestes modelos institucionais não tem funções
políticas e seu papel é circunscrito a uma burocracia especializada. Não havendo
revisão judicial das leis, a judicialização das questões políticas tende a ser baixa.
Em regimes presidencialistas – ou de separação de poderes –, os incentivos
ao controle do Executivo assumem um caráter inteiramente distinto19. A independência de mandatos converte os checks horizontais em elemento essencial
da dinâmica política. O Poder Legislativo, neste sistema, tende a ser muito
mais vigoroso e a atividade congressual muito mais robusta. As comissões assumem poderes significativos (de caráter terminativo na tramitação legislativa,
por exemplo) e a oposição pode ter papel de obstrução relevante como nos casos de “governo dividido”, em que a maioria parlamentar pode ser de partido
ou coalizão distinta da coalizão presidencial. Os órgãos de controle externo
tipicamente também exercem um papel mais destacado. Neste modelo institucional, o Poder Judiciário exerce controle da constitucionalidade das leis e
tipicamente detém prerrogativas muito maiores do que nos seus congêneres
parlamentaristas. Este é o modelo puro de separação de poderes sobre o presidencialismo. Este modelo informou a Constituição brasileira de 1891, mas
permanece vivo apenas na imaginação de alguns operadores do direito. Isto se
deve fundamentalmente ao fato, identificado por Arinos na década de 40, de
que a dinâmica do controle no país é essencialmente similar àquela vigente
sobre o parlamentarismo, sem conter o mecanismo de accountability vertical
que caracteriza este último.
O controle do Poder Executivo na América Latina e no Brasil
Afirmamos anteriormente que não há correlação entre presidentes com fortes poderes constitucionais e baixo desempenho democrático. Os dados analisados a seguir são suporte a essa afirmação. Do ponto de vista comparativo, como
se verá, a situação brasileira em termos de qualidade das instituições relevantes
para o controle do Executivo (tribunais de contas, mídia etc.). Pode-se afirmar
que restringir tal comparação ao contexto latino-americano, onde predominam
países de pouca experiência democrática, não é um exercício válido. Acredito,
no entanto, que embora as instituições brasileiras não resistam a uma análise em
que os benchmarks utilizados sejam democracias estabelecidas, esta comparação
18 Veja-se a fina análise de Strom (2005).
19 Idem. Ibidem.
Artigos & Ensaios
69
pode ser útil para o argumento que se apresenta no texto sobre a natureza do
abuso do poder e as formas de controlá-lo.
Historicamente, o controle do Executivo é elemento central do debate sobre
a democracia na América Latina. Homens fortes e caudillos fazem parte efetivamente da tradição política na região, e o processo de democratização consistiu
em larga medida em desconstruir os poderes dos presidentes. Existe, no entanto,
ampla variação nos poderes constitucionalmente delegados aos presidentes na
América Latina. A linha que divide a concentração ilegítima de poderes pelos
presidentes e a delegação democrática de poderes (orçamentários, legislativos
etc.) é tênue. Os poderes constitucionais representam delegação explícita do
corpo legislativo ao Poder Executivo e, em princípio, poderiam ser revogados
por maiorias legislativas democraticamente. Essa delegação está implícita nas
escolhas constitucionais e por isso mesmo apresenta certa resiliência, podendo
desta forma expressar um movimento de concentração de poder. Essa resiliência
se expressa, por exemplo, quando o Executivo se utiliza de suas prerrogativas
para eximir-se do controle da Justiça ou procura influenciar a mídia, ou apoiar
grupos que o fazem.
Um ponto essencial é que os executivos latino-americanos dispõem de um
arsenal de instrumentos não institucionais que permitem a concentração de poder para além das prerrogativas legais. Nestes casos, observa-se não a delegação
de poderes ao presidente, mas, como já discutimos, a usurpação de poder legislativo e de atribuições constitucionais dos tribunais superiores e das instituições
de controle. Dentre os instrumentos utilizados neste sentido estão a utilização
da máquina administrativa e do Orçamento como recurso de patronagem e cooptação, a mobilização de movimentos sociais como elemento desestabilizador
dos poderes Legislativo e Judiciário, além da alteração casuística das regras do
jogo institucional. As patologias institucionais que afetam o presidencialismo
latino-americano não são novas. No entanto, na atual conjuntura, observa-se
em muitos países uma alarmante deterioração do equilíbrio de separação de poderes que se constituiu em um importante ideal normativo durante o processo
de transição democrática na região.
70
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Figura 1. Poderes constitucionais dos presidentes na América Latina
Fonte: UNDP
O exercício de poderes constitucionais não tem sido acompanhado, no entanto, de abuso de poder. Antes, maiores poderes constitucionais parecem estar
associados a melhor desempenho institucional com fortes repercussões sobre o
desempenho macroeconômico e social. A Figura 1 apresenta um índice de poderes presidenciais na região com dados para circa 2002. Como se observa, os
países onde os presidentes desfrutam de maiores poderes presidenciais são Brasil e
Chile – justamente os países que têm apresentado melhor desempenho em termos
de governança democrática na América Latina. Esses países têm se mostrado estáveis institucionalmente e as relações Executivo-Legislativo apresentam um padrão
mais consistente de apoio parlamentar em coalizões multipartidárias. Os países
cujos presidentes detinham menos poderes – orçamentários, de veto e legislativo
(capacidade de emitir decretos com vigência imediata) – são exatamente aqueles
nos quais os poderes constitucionais eram restritos: Venezuela, Bolívia, Nicarágua,
Artigos & Ensaios
71
Peru. E mais importante, são aqueles onde as crises institucionais têm sido mais
expressivas. Na realidade, parte importante da instabilidade política resulta das
iniciativas de concentração de poder constitucional pelos presidentes, com recurso
frequente a estratégias inconstitucionais e abuso de poder.
Não há evidências de que a concentração de poderes constitucionais esteja
associada linearmente à boa governança. Os efeitos positivos de presidentes fortes só se fazem sentir na presença de constrangimentos institucionais igualmente
robustos. Apenas onde há Poder Legislativo dotado de instrumentos efetivos de
intervenção no processo legislativo, Judiciário independente, controle externo
efetivo, além de mídia autônoma, os poderes delegados dos presidentes engendram resultados institucionais consistentes.
As tabelas 1 e 2 apresentam dados comparativos sobre o desempenho institucional do Poder Judiciário e do controle externo na América. Os dados apresentados referem-se a medidas de independência judicial selecionadas para a
América Latina, as quais foram produzidas segundo metodologias distintas. A
conhecida dificuldade de diferenciar a independência efetivamente observada
(independência de facto) daquela garantida na legislação e nos dispositivos constitucionais torna a tarefa bastante complexa. Ademais, as dificuldades metodológicas em torno da mensuração da independência efetiva convertem o esforço de
mensuração em uma “tarefa de Sísifo”. Não obstante, verifica-se uma certa consistência de resultados (ver Tabela 1). O Chile apresenta-se como o país dotado
do Judiciário mais independente. O Brasil aparece em segundo lugar (muitas
vezes empatado com outros países nesta posição) em seis de sete estudos existentes e em quarto lugar em um estudo. Assim, os mesmos países que apresentam
melhor desempenho institucional – Chile, Brasil – são aqueles onde se observa
melhor desempenho na qualidade e independência das instituições judiciais,
tribunais de contas e controladorias na América Latina.
Da mesma forma, observa-se que Chile e Brasil parecem possuir os tribunais
de contas mais efetivos da América Latina. A Tabela 2 contém dados para um
conjunto de indicadores de qualidade institucional.
Tabela 1 – Independência do Judiciário na América Latina
72
PRS
Fraser
Henisz
Feld e Voigt
De Facto
La porta
et al
Feld e Voigt
De Jure
JRF
IDB
Argentina
0,33
0,18
0
0,33
1,00
0,66
0,66
0,26
México
0,33
0,49
0
0,71
0,33
0,80
0,83
0,47
Chile
0,83
0,63
1
0,57
0,66
0,78
0,66
0,66
Brasil
0,33
0,52
0
0,49
0,66
0,92
0,83
0,56
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PRS
Fraser
Henisz
Feld e Voigt
De Facto
La porta
et al
Feld e Voigt
De Jure
JRS
IDB
Colômbia
0,12
0,33
0
0,57
0,33
0,94
0,66
0,44
Guatemala
0,33
0,30
0
0,55
NA
0,49
0,66
0,31
Equador
0,5
0,13
0
0,40
1,00
0,83
0,66
0,27
Paraguai
0,33
0,17
0
0,60
NA
0,78
1,00
0,20
Honduras
0,33
0,20
0
NA
0,33
NA
0,83
0,27
2ª
2ª
---
4ª
2ª
2ª
2ª
2ª
Posição Brasil
Fontes:
PRS: medida de “law & order” do Political Risk Services.
Ver: http://www.prsgroup.com/ICRG_Methodology.aspx
Fraser: medida de estrutura legal e proteção ao direito de propriedade do Fraser’s Institute.
Ver: http://www.freetheworld.com/
Henisz: medida de independência judicial de Wittold Henisz.
Ver: http://wwwmanagement.wharton.upenn.edu/henisz/
Feld & Voigt: medidas de independência judicial de jure e de facto. Ver: Feld, Lars P. e Stefan Voigt, 2003. “Economic Growth and Judicial Independence: Cross Country Evidence Using
a New Set of Indicators”, European Journal of Political Economy, vol. 19, 497-527.
La Porta et al: medida de checks and balances judiciários. Ver: La Porta, Rafael, Florencio Lopez de Silanes Christian Pop-Elches e Andrei Shleifer, 2004. “Judicial Checks and Balances”, Journal of Political Economy, 112, nº 2.
JRF: índice de independência judicial de Rios-Figueroa (disponível com o autor).
IDB: medida do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Tabela 2 – Índice de efetividade das instituições de
controle externo na América Latina
Países
Brasil
Escore
Independência
Credibilidade
Tempestividade
Enforcement
0.63
0.88
0.42
0.24
1.00
Colômbia
0.61
0.75
0.46
0.21
1.00
Chile
0.59
0.78
0.40
0.18
1.00
Costa Rica
0.49
0.66
0.48
0.16
0.67
Média regional
0.44
0.68
0.29
0.11
0.67
Nicarágua
0.42
0.78
0.20
0.03
0.67
El Salvador
0.40
0.53
0.08
0.00
1.00
México
0.36
0.59
0.38
0.12
0.33
Peru
0.32
0.78
0.12
0.04
0.33
Argentina
0.28
0.44
0.22
0.13
0.33
Equador
0.28
0.66
0.14
0.00
0.33
Fonte: Santiso (2007).
Artigos & Ensaios
73
Mas há variação não trivial: há países com presidentes poderosos – tais como
Equador e El Salvador – que apresentam instabilidade institucional e baixa qualidade da democracia. Nesses países a autonomia do Poder Judiciário é baixa,
como também suas instituições de controle externo apresentam pouca efetividade e independência. No entanto, a existência de presidentes fortes impacta
endogenamente os demais poderes. A questão da causalidade remete, portanto,
aos determinantes da autonomia das instituições judiciárias e da mídia.
Considerações finais
O abuso do poder no Brasil assume um caráter específico: ele está associado
fundamentalmente à forma de funcionamento do presidencialismo de coalizão.
No país, os três poderes são fortes, mas a estrutura de incentivos em torno de um
Executivo poderoso, que desfruta poderes constitucionais quase sem paralelo e de
vastos poderes efetivos não legislativos, gera práticas que potencialmente enfraquecem os controles horizontais e verticais. Como vimos, o multipartidarismo cumpre papel em reduzir os poderes presidenciais, mas engendra desincentivos para o
controle no seio da coalizão de governo. Esse desincentivo é provavelmente tanto
maior quanto maiores forem os poderes presidenciais. No entanto, outros fatores
importam. Dentre eles, destaca-se a delegação de poderes a instituições autônomas
e de checks and balances. Em ambientes políticos competitivos, essa delegação
pode ser bastante efetiva para coibir os abusos de poder.
Por que o país apresenta um quadro relativamente favorável no que se refere
ao abuso de poder comparativamente aos demais países da região? Em primeiro
lugar, a resposta está em última instância no padrão de competição política no
país, que – semelhante ao Chile – se organiza em dois blocos e é marcado por
vigorosa contestabilidade eleitoral, em vários níveis da federação.
Igualmente importante foi o fortalecimento dos demais poderes na Constituição de 1988. Curiosamente, o desenho constitucional brasileiro tem origens históricas no diagnóstico dos problemas do abuso de poder prevalecentes
na República Velha. O presidencialismo de coalizão foi uma decorrência da
implantação da representação proporcional em 1932 e de sua efetiva prática a
partir de 1946. Seus efeitos não demoraram a ser notados, como atesta a fina
análise de Arinos já na década de 1940. Se o hiperpresidencialismo da República Velha foi grandemente solapado, como notou, não é menos verdade que
as bases institucionais do Poder Executivo sofreram mudanças notáveis com a
crescente delegação de poder aos presidentes. Essas duas tendências marcaram
o debate institucional brasileiro nas décadas de 50 e 60. Após o regime militar,
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elas ressurgem em um quadro de expansão organizacional brutal do Executivo.
A coalizão que dominou os trabalhos constituintes em 87-88 buscou enfraquecer o poder presidencial, fortalecendo notavelmente os demais poderes ao invés
de reduzir suas prerrogativas. Como resultado, um Executivo poderoso exerce
um papel centrífugo no sistema político, minando os controles e debilitando as
instituições. De outra parte, instituições relativamente autônomas e organizacionalmente complexas encontram na competição política os incentivos para
o controle. A extensa delegação de poderes ao Executivo se converte em abuso
quando o manejo da coalizão é unilateral. Os incentivos para que deixe de sê-lo
são pequenos, porque a estrutura de incentivos para os parlamentares os impele
a apoiar o Executivo de turno.
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